0 calificaciones0% encontró este documento útil (0 votos) 283 vistas13 páginasComplexo, Moderno, Nacional e Negativo (Roberto Schwarz)
Texto de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis
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ROBERTO SCHWARZ
QUE HORAS SAO?
ENSAIOS
3° reimpressiio
CoMANHIA Das LETRAS:Copyright © Roberto Schwarz
Capa
Ettore Bottini
sobre ilustragdo de Vassili Kandinsky
Revisao:
Marizilda Lourengo
‘Sandra Dolinsky
Carlos Queiroz Rocha
Dados Internacionais de Catalogagao na Public:
(Cimara Brasileira do Livro, se, Brasil)
aaa
Schwarz, Roberto, 1938 -
Que horas sio? : ensaios / Roberto Schwarz, — Sio
Paulo : Companhia das Letras, 1987,
(ew)
ISON 85-85095-57-1
|. Ensaios brasileiros 2. Literatura brasileira - Historia ©
critica 1. Titulo,
0p-869.945
87.2342 869.909
indices para catilogo sistematico:
1. Ensaios : Século 20 : Literatura brasileira $69,945
2. Literatura brasileira : Historia e critica 869.909
3, Século 20 : Ensaios : Literatura brasileira 869.045
2002
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NACIONAL, E NEGATIVO
a Sara Hirschman
O aspecto menos estudado do romance machadiano é a
composigao. Em parte, porque as piruetas e intromissdes do
narrador fazem que ela parega nao ter logica nem impor-
(Ancia, sendo, por isso mesmo, dificil de estabelecer. E em
parte porque a critica viu nela um ponto fraco. Augusto Me-
yer, autor das melhores pAginas sobre Machado, sentiu nas
abelhudices do narrador uma certa impoténcia para a narra-
liva realista de flego. E Carpeaux observa que o figurino de
humorista inglés permite encobrir dificuldades de construgio.
O argumento do presente artigo vai em direcao oposta, e diz
que ha método nas manhas narrativas do romancista. Estas
sido parte de uma composi¢ao rigorosa, que formaliza e expde
em sua conseqiiéncia dinamismos decisivos da realidade bra-
sileira. |
Transcrevemos em seguida uma passagem das Memorias
postumas de Bras Cubas (1881), que sera nosso ponto de par-
lida. SAo as linhas finais do primeiro capitulo, e a maior parte
do segundo, onde o “‘defunto autor” explica as causas de sua
morte. O leitor notara que a comicidade depende de uma dis-
posig&o anémala das nogdes. Mas, seria o caso de perguntar,
andmala em relagao a qué? Uma vez que estamos falando de
ficgao, digamos provisoriamente que ela esta fora de esquadro
11S
a lttem relagao ao que esperava um leitor de romances europeus.
Veremos que se trata de uma originalidade artistica, e da
transposicao de formas sociais peculiares. — Para situar 0
trecho, note-se que 0 titulo do livro é uma provocagao, ja que
nao € possivel escrever memérias depois de morto; que tam-
bém a dedicatéria aos vermes, em forma de epitafio, 6 um
desrespeito ostensivo; que no prélogo, o leitor é tratado com
piparotes e insultos; e que nas linhas de abertura se revezam
disparates, dicc4o grave, consideragdes de método, atengdes a
moda, e o desplante de o autor comparar a sua literatura 4 de
Moisés no Pentateuco. Isso posto, vejamos o texto.
[...] Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos
a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e util a causa da mi-
nha morte, é possivel que o Jeitor me n&o creia, e todavia é
verdade. Vou expor-Ihe sumariamente 0 caso. Julgue-o por si
mesmo.
CAPITULO II
Oemplasto
Com efeito, um dia de manh@, estando a passear na cha-
cara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no
cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a
fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possivel
crer. Eu deixei-me estar a contempla-la. Sabito, deu um gran-
de salto, estendeu os bracos e as pernas, até tomar a forma de
um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa idéia era nada menos que a invengao de um medica-
mento sublime, um emplasto anti-hipocondriaco, destinado a
aliviar a nossa melancélica humanidade. Na petigao de privi-
légio que entao redigi, chamei a atengdo do governo para esse
resultado, verdadeiramente cristéo. Todavia nao neguei aos
amigos as vantagens pecuniarias que deviam resultar da dis-
tribuigao de um produto de tamanhos e tao profundos efeitos.
Agora, porém, que estou ca do outro lado da vida, posso con-
fessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver
impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e en-
fim nas caixinhas do remédio, estas trés palavras: Emplasto
Bras Cubas. Para que nega-lo? Eu tinha a paixao do arruido,
do cartaz, do foguete de lagrimas. Talvez os modestos me ar-
116guam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hao de re-
conhecer os habeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces,
como as medalhas, uma virada para o publico, outra para
mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de
nomeada. Digamos: — amor da gléria.
Observe o leitor o encadeamento das razées, que nao dei-
xa de surpreender.
Na petigéo que dirige ao governo, Bras Cubas chama a
atengdo para os resultados crist&os de seu invento; aos amigos,
confessa que espera ter lucro.
Até aqui, nada de particular: descobrir 0 cAlculo atras da
{achada generosa é 0 movimento normal do romance realista.
Um movimento alias que indica 0 vinculo — critico — entre
esse tipo de romance e a ordem individualista que o capita-
lismo vinha criando.
Ocorre que esta nao é a explicac4o final. Depois dela ha
outra, mais esquisita, vinda de além-timulo, onde nao ha ra-
vio para disfarce. O motivo real do falecido havia estado no
wosto do cartaz, na ansia de ver o nome em letra de forma.
Noutras palavras, o calculo de lucro era... uma desculpa.
Assim, a busca da vantagem econémica da cobertura ao
desejo de reconhecimento pessoal, e nao vice-versa. A espe-
ranga de lucro é uma apar€ncia, e nesse ponto ela nao difere
da inspiragao crista na petigao ao governo. Ambas ocultam a
paixaio da notoriedade, que é 0 tinico motivo verdadeiro.
Esta mesma conjung¢4o reaparece no final do paragrafo:
“Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas,
uma virada para o publico, outra para mim. De um lado, fi-
lantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos:
amor da gléria’”. Diferentemente do que seria de esperar,
{ilantropia e lucro nao estéo em campos opostos. Pelo con-
(ririo, est&éo de maos dadas, e na mesma face da medalha: na
face confessavel, voltada para o piblico. Na outra, que é a
verdadeira e secreta, esta a “sede de nomeada”’. Esta é a rea-
lidade privada e efetiva, por oposigao as aparéncias publicas,
apoiadas no sentimento cristao tanto quanto na ambicAo eco-
nomica.
117Em suma, a Bras Cubas 0 calculo egoista aparece como
algo de socialmente estimavel, que se deve até apregoar, muito
diverso do motor oculto e sombrio da vida moderna, a que nos
habituou o romance realista europeu. Esta é uma primeira
originalidade. Acresce que 0 cAlculo econ6dmico nao é um mo-
tivo real, e sim um Alibi para outro desejo mais secreto, menos
sério, e o mais verdadeiro de todos — o que é outra origina-
lidade. Economia e Cristianismo so frivolidades para os-
tentar, enquanto que a sede de atengdo e cartaz, que se diria
frivolidade pura, é posta como a instAncia ultima da realidade.
Que pensar desta ordenagao inesperada — e por assim
dizer leviana — das causas? A inversado poderia ser passageira,
um capricho que o desenvolvimento ulterior do romance reti-
fica. Poderia ser também o traco distintivo de uma perso-
nagem futil. Todavia nao é assim. Veremos 0 dominio estrito
desta ordenacfo sobre enredo, caracteres, assunto, ritmo nar-
rativo, conduc4o da frase, mescla de estilos etc. O romance a
desenvolve e explora com a légica implacével propria as gran-
des obras. Seria o caso, entao, de entendé-la como inversao
satirica da realidade? Ou como exemplo precoce de ruptura
com as convencdes do romance realista? Ambas as coisas, até
certo ponto. Com efeito, tudo nestas memorias é extravagante,
e os caprichos do narrador volta e meia desrespeitam as con-
vengdes de que depende o senso realista da verossimilhanca.
Mas ainda assim, o efeito do conjunto é de realismo, pode-
roso, além de desolador. Entre paréntesis, a comédia de mo-
tivos encenada na passagem que citamos apresenta muita se-
melhanca com 0 clima ideolégico do pais, como nota quem
tenha familiaridade com o século XIX brasileiro. Enfim, estas
observagdes podem se resumir em duas perguntas: se ha rea-
lidade nesta visdo das coisas, por que a impressfo amalucada?
e caso se trate de extravagancia, como explicar 0 efeito de rea-
lismo? Antes de tentar uma resposta, vejamos ainda alguns
elementos de forma — sempre fatores de generalizagao no in-
terior do romance — para que 0 leitor se convenca de que o
trecho citado nao é uma excentricidade ocasional.
O traco marcante do romance de Machado de Assis é a
volubilidade de seu narrador. Este nio permanece igual a si
118mesmo por mais de um curto pardgrafo, ou melhor, muda de
opiniaio, de assunto ou de estilo quase que a cada frase. Ha
um elemento de complacéncia nesta disposi¢4o mercurial,
bem como no virtuosismo retérico de que ela depende para se
izar. SAo yiravoltas sobre viravoltas, que invariavelmente
companham de uma satisfagio de amor-préprio para o
narrador. Esta tem a ver com o desejo de atenciio e reconhe-
cimento que sublinhavamos atras, ao analisar 0 texto, desejo
decisivo para 0 nosso raciocinio. Uma vez que este movimento
subordina tudo o mais, pode-se ver nele o principio formal do
livro.
Para observa-lo em funcionamento, voltemos a nosso tre-
cho. Na frase que o precede, o defunto autor menciona as es-
tagdes que a morte o havia feito percorrer: “‘o corpo fazia-se-
me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma’’. Estas moda-
lidades do ser, que s&o 0 nosso destino comum, tém uma gra-
vidade que lhes é propria, mas que ja na frase seguinte é con-
trastada pela pneumonia. Com este termo entram em cena a
morte individual e a sua parte de azar e explicagdes médicas.
Estas por sua vez serao substituidas por outra causa mortis
mais nobre, de vibragao liberal: 0 Autor teria morrido de
“uma idéia grandiosa e util’. Como diz Bras Cubas, cabe ao
leitor isento decidir entre estas diferentes acepgdes da morte.
Nao obstante, no paragrafo que segue, a mente vem conce-
bida como um trapézio em que as idéias se dependuram e
fazem cabriolas, um simile circense que nao abona a indepen-
déncia do juizo humano. Em suma, a cada um destes passos
algo se rompe, em idéia ou forma, 0 que forga o leitor ao riso e
proporciona uma vitéria ao narrador. Esta comicidade muito
amarrada é um traco da prosa machadiana, um trago que a
primeira vista 6 desagradavel e parece fraqueza, mas que aca-
ba se impondo como um achado capital. Trata-se da reite-
racio deliberada de aspectos autoritarios e malignos daquela
volubilidade que est4 nos interessando. Voltaremos ao as-
sunto.
A seguir, em seqiiéncia acelerada, Bras Cubas posara
como inventor, como cristéo, como comerciante e como pro-
pagandista engenhoso de seu proprio nome. Uma vez que as
se
119transformacdes de personagem, de assunto e registro irao no
mesmo ritmo até o fim do romance, nao ha sentido em se-
gui-las uma a uma. Notemos porém que na série que estamos
examinando ha mais do que simples variedade. Os seus ter-
mos s4o escolhidos de modo a configurar um alto grau de abs-
tragdo, ou de pseudo-abstracdo, a qual A sua maneira resume
a totalidade do real, que assim fica inteiro — nada menos — a
mercé dos caprichos do narrador. Por exemplo, este é ora um
crist&o, que se dirige a seu governo, ora uma pessoa privada,
que se confessa aos amigos, ora uma voz do além, perfeita-
mente sincera, tudo no espaco limitado de umas poucas li-
nhas. Juntas, estas trés atitudes — a piedade crista, 0 inte-
resse pelo lucro e o desapego do defunto — compdem um
mundo completo e definido de que elas seriam as partes exaus-
tivas. Os ‘“‘modestos” e os “‘habeis’’, que respectivamente con-
denam e admiram a paix4o do arruido de Bras, estao no mes-
mo caso e perfazem o conjunto do publico, ou até da huma-
nidade. Idem para as duas faces da idéia (a publica e a pri-
vada), para 0 conjunto dos motivos (filantropia, lucro e amor
da gléria), e para os estagios da decomposi¢4o (do humano ao
vegetal ao mineral). S40 arranjos que fazem supor a visdo
abrangente e articulada do todo, que desta forma é manipu-
lado enquanto tal pela imaginacao, a qual tem o prazer nao sé
de dispor da realidade, como também de recolher 0 aplauso
devido ao descortino e 4 formulacao breve. Por outro lado, ja
que estas abstracées sao claramente arbitrarias elas mesmas,
nao é somente a realidade externa que é vitimada pelos ca-
prichos do narrador: 0 préprio ato de abstrair é envolvido
também. Com efeito, ha nestes romances uma comicidade
muito especial, ligada as faculdades de abstraciio e raciocinio.
Por serem tao impalp4veis e do dominio légico, estas nao pa-
recem matéria de ficcdo, e entretanto é nelas que a volubi-
lidade e desfagatez se mostram em forma maxima, ou mais
radical. Analogamente, a sintaxe muito armada e cheia de
construgées paralelas e subdivididas, recurso, em principio,
de complexidade racional, 6 uma expresso cémica de arbi-
trio. E enfim, para fechar o circulo, 0 morto escrevendo as
suas memdrias configura uma situacdo narrativa artificiosa,
120r
tia qual o estatuto da ficco e do leitor ficam privados de sua
“naturalidade” ou verosimilhanga, e sao elementos de uma
vonstante provocagao.
Noutras palavras, a volubilidade que viemos comentando
no é de Ambito modesto. Ela abraga o mundo em sua ex-
tensio, e trabalha a fundo o plano das formas. No mesmo
passo, ela transcende a psicologia individual, com sua parte
de contingéncia, para tornar-se uma forma literaria que nao
sofre excegdes, bem como uma visio do mundo. Deve estar
clara, depois do que dissemos, a quantidade de trabalho pro-
priamente técnico necessaria 4 configuragao desta forma.
Noutras palavras, Machado ajustou um procedimento artis-
tico no qual a realidade burguesa corrente, em qualquer uma
de suas expresses, seja ideolégica, sintatica, estética etc., é
regularmente sujeitada 4 veleidade pessoal, sem que no en-
tanto o processo se complete. Uma tal forma naturalmente é
um feito de construgao, e pouco tem de espontanea. No resul-
tado, a semelhanca com a vida brasileira do século XIX é
grande. E um exemplo da travagao construtiva da mimese, ou
por outra, da complexidade dos requisitos formais do efeito
realista.
Depois de considera-lo em separado, vejamos o narrador
no terreno concreto de sua evoluc4o, a comegar pelo enredo.
No todo, o romance é alinhavado pela vida de Bras Cubas,
intercalada de digressdes, anedotas e apdlogos mais ou menos
alusivos, e entrelagada com uma crénica do Rio de Janeiro
daquele tempo. Quanto 4 sucessio de episédios, poderia se
dizer que ele, o romance, é volubilidade em c4mara lenta. Nao
faltam desejos, que sdo vivazes, ao passo que inexiste a conti-
nuidade-de propésitos — o que vai bem com o cavalheiro abas-
tado e sem ocupagao que é a figura principal. Dai 0 enredo erra-
tico e frouxo, muito original a seu modo, uma trama que nao é
retesada por conflitos, j4 que estes requerem alguma espé-
cie de constancia. As suas complexidades nao se prendem ao
desdobramento de contradi¢des — desmanchadas no ambito
do capricho — mas 4s sutilezas e aos ritmos da mudanga incons-
ciente, do tédio, da deriva entre as estacdes da vida (assuntos,
alias, que colocam as Memérias péstumas entre as anatomias
121
ieeemodernas da vontade e da experiéncia do tempo). Sao es-
tagdes que nada tém de incomum, para um filho das classes
dominantes brasileiras: estudos em Coimbra, amor, poesia,
politica, filosofia, jornalismo, ciéncia, filantropia e morte. E
conspicua a auséncia do trabalho e, mais geralmente, de qual-
quer forma de esforco sustentado ou de compromisso ideolé-
gico. Assim, os passos que mencionamos, e que mal ou bem
sio repositérios do valor da vida moderna, aparecem somente
enquanto objetos de capricho, o que é dizer que a sua légica
propria esta subordinada ds necessidades sempre momen-
téneas do amor-préprio do heréi. Trazidas ao campo da volu-
bilidade, as finalidades-mestras da vida burguesa reduzem-se
arecurso de satisfacdo imaginaria imediata, uma satisfacao
em que 0 escarnio tem paste, e a que a presuncdo de grandeza
e objetividade daquelas finalidades acrescenta o sabor. Di-
mensionadas pelo capricho, elas tomam forma barateada: no
lugar da Ciéncia, a invengao do emplasto; no da Politica, o
discurso parlamentar de Bras Cubas, defendendo duas pole-
gadas a menos nas barretinas da Guarda Nacional; no da Poe-
sia, as inflexdes estudadas com que 0 vitivo recente declama o
seu adeus a esposa; no da Filosofia, pensamentos sociais ins-
pirados no espetaculo de uma briga de cachorros.
Em suma, trata-se de um andamento sem correnteza cen-
tral, mas repleto de necessidades de percurso, j4 que todos os
seus momentos est&o sob o império do capricho, das perso-
nagens tanto quanto do narrador. E uma estranha conjungio,
em que a vida é cheia de satisfagdes, e vazia de sentido; em
que a légica dos momentos — implacavel e mondétona como 0
proprio capricho, que esta sistematizado — sublinha o carater
incerto do conjunto. Ainda neste sentido, note-se que o ro-
mance é incansavelmente espirituoso, e que no entanto o seu
efeito total é desolado e termina em nada, como fica dito em
todas as letras no capitulo final, chamado ‘‘Das Negativas”’.
Aqui, Bras Cubas enumera as coisas que n4o chegou a ser, e
conclui por um pequeno saldo, que é a negativa mais radical:
o famoso “‘ndo tive filhos, nao transmiti a nenhuma criatura o
legado de nossa miséria”. Essa impressdo é multiplicada ain-
da pelas intromissdes, digressdes e guinadas do narrador, que
122P
freileram, em ritmo vertiginoso, a combinag4o de intensidade
© auséncia de objetivo que no enredo flui em marcha mais
lenta
Contudo, a despeito da descontinuidade de propésitos, o
vomance tem a sua curva. Algo como um movimento de movi-
Mentos, que forma sentido: um ritmo em que o interesse do
narrador, das personagens, bem como do leitor passa por ci-
clos constantemente renovados de animacio e fastio, sendo
que o conjunto desliza da vivacidade para a saciedade e a
morte — tudo sempre aquém de um propésito objetivado
qualquer. De passagem seja dito que alguns dos melhores ro-
mances brasileiros, notadamente Macunaima, com sua extra-
ordinaria tristeza final, encontraram um ritmo semelhante. A
diferenga de um tal movimento com o enredo-tipo do realismo
europeu é decisiva. Neste, a tens’o prende-se ao choque entre
um individuo forte e a ordem social: 0 que vale e é tipico, para
falar com Lukacs, é a contradigao, incluidos os padecimentos
que the correspondem, entre as justas ambicées do primeiro e
is exigéncias da segunda. O resultado global diz que a ordem
burguesa é contraditéria e nao cumpre o que promete. Ao
Passo que o enredo machadiano diz que a vida de nosso ri-
cagos foi excelente, mas — em palavras de Oswald — corrida
numa pista inexistente.
Dando um balango, digamos que talvez o emplasto esteja
a medicina como a barretina da Guarda Nacional esta
para a politica, como os pensamentos de Bras diante da briga
de ciies est&o para a filosofia, como o andamento erratico esta
para a intriga com heréi enérgico. Em cada um destes pares
ha um lado diminuido e caricato, que no entanto, uma vez
lido o romance, é 0 verdadeiro apoio da acao e de sua légica, e
portanto, para efeitos ficcionais, o lado real. De onde entao a
0 de fantasia risivel? O irreal no estar4 do outro
Esquematicamente, o critério de realidade que preside a
caracterizagaéo é um, e o que comanda a acio é outro, sendo
que num caso a norma é juiz, e no outro, como vimos, objeto
de capricho. Mesma coisa para a fenomenal expansao do arbi-
trArio pessoal, que neste romance ataca e sujeita todas as di-
mensdes da vida, mas sem perder a conotagdo de inconse-
impre:
lado’
123qiiéncia e marginalidade que lhe deu a civilizacdo burguesa do
século XIX. E certo, enfim, que as satisfagdes do narrador se
obtém pelo desacato ao sistema das virtudes burguesas, invo-
cado para isso mesmo, © que entretanto nado impede que ele
tenha vigéncia, e que 0 sentimento de ser desprezivel seja
essencial 4 situacgao daquele mesmo narrador (Bras Cubas
neste ponto se assemelha ao homem do subsolo de Dostoiev-
ski, que sofre do figado mas nao vai ao médico, porque des-
preza o racionalismo ocidental, sem prejuizo de se desprezar a
si mesmo porque nao vai ao médico). A dualidade de critério é
constitutiva da forma e da inquietagao do romance macha-
diano; ela é a hélice que 0 empurra — em diregao ao nada. A
explicacio, no caso, leva a circunstancias nacionais.
Embora sejam conhecidas, as dificuldades da situacao
ideolégica e moral da camada dirigente brasileira, e especial-
mente da Coroa, nao costumam ser levadas em muita conta.
O assunto pode ser visto no livro notavel de Joaquim Nabuco
sobre O abolicionismo (1883), Obrigados pelo seu papel de
representa¢ao externa, esses dirigentes liberais de um pais de
economia escrava diariamente tinham de pedir para a sua pa-
tria e para si mesmos 0 reconhecimento do “mundo civili-
zado’’, cujos principios elementares, entretanto, dada a reali-
dade social, eles tinham de infringir com igual constancia.
Noutra parte tentei a reconstrugo sociolégica deste impasse e
de seu efeito sobre a vida das idéias.' Por agora, basta indicar
o paralelo entre este movimento e a volubilidade narrativa tal
como a vimos nas Memérias pdstumas. Também ela combina
— em versdes que vio do cSmico ao torpe — desrespeito 4
ordem burguesa e Ansia de se afirmar como um membro seu,
© que nao vai sem dois pesos e duas medidas, nem, dada a
constante repeticao, sem desfagatez. S40 combinagdes que
configuram a unidade minima e caracteristica desta prosa de
romance. Assim, se é justa a nossa observa¢ao, a lei da prosa
machadiana seria algo como a miniaturizacdo ou o diagrama
do vaivém ideolégico da classe dirigente brasileira, articulada
(1) R. Schwarz, Ao vencedor as baratas, So Paulo, Duas Cidades, 1977, cap.
124com o mercado e 0 progresso internacionais, bem como com a
escravidao e o clientelismo locais. Um vaivém que resume o
yexame patrio, mas nao se esgota nele, pois diz respeito tam-
bém 4 histéria global de que o mesmo Brasil é parte efetiva,
ainda que moralmente condenada: a ordem burguesa no seu
todo nao se pauta pela norma burguesa. Naturalmente ha di-
ferencas de timbre entre o drama de nossa elite e a prosa de
Machado. Nesta, ajudada pelo desapego que a ficc4o permite,
os aspectos grotescos daquele estado explicitados e degustados, o
que da origem ao registro diminuido que assinalamos. Mas a
imparcialidade machadiana vai mais longe, e faz com que 0
mundo do arbitrio, desqualificado pelo confronto com a norma
burguesa e européia, seja também a testemunha viva da rela-
tividade desta, movimento que leva aos assuntos centrais da
literatura moderna, ligados justamente ao limite da civ
zagao burguesa. Enfim, a inferioridade patria existe, mas o
metro que a mede nao é também inocente, embora hegem6-
nico. Trata-se de uma posic4o antimitica e duas vezes nega-
tiva, isenta de ufanismo conservador bem como de abdicagao
do juizo diante de Europa e progresso, uma posi¢ao racional e
sem absolutos, que em cem anos nao envelheceu.
E talvez uma explicagado para o paradoxo que haviamos
visto, da impressdo combinada de amalucamento — contin-
gente e individual por natureza — e necessidade incontor-
navel. Sartre, comentando a situacd4o do escritor francés de-
pois de 1848, fala em “‘neurose objetiva’’: uma patologia im-
posta pela conjuntura real, a que nao ha como escapar. Neste
sentido, a dualidade de critérios que est4 no fundamento da
arte machadiana é talvez a transposi¢4o e exploracio literaria
de algo como um “‘despeito objetivo’, que era da situagao his-
térica, uma incongruéncia ideolégico-moral imposta pela
atualidade aos brasileiros esclarecidos, incluida neste tltimo
adjetivo a implicagao de classe que ele trazia.
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