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Complexo, Moderno, Nacional e Negativo (Roberto Schwarz)

Texto de Roberto Schwarz sobre Machado de Assis

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ROBERTO SCHWARZ QUE HORAS SAO? ENSAIOS 3° reimpressiio CoMANHIA Das LETRAS: Copyright © Roberto Schwarz Capa Ettore Bottini sobre ilustragdo de Vassili Kandinsky Revisao: Marizilda Lourengo ‘Sandra Dolinsky Carlos Queiroz Rocha Dados Internacionais de Catalogagao na Public: (Cimara Brasileira do Livro, se, Brasil) aaa Schwarz, Roberto, 1938 - Que horas sio? : ensaios / Roberto Schwarz, — Sio Paulo : Companhia das Letras, 1987, (ew) ISON 85-85095-57-1 |. Ensaios brasileiros 2. Literatura brasileira - Historia © critica 1. Titulo, 0p-869.945 87.2342 869.909 indices para catilogo sistematico: 1. Ensaios : Século 20 : Literatura brasileira $69,945 2. Literatura brasileira : Historia e critica 869.909 3, Século 20 : Ensaios : Literatura brasileira 869.045 2002 Todos ov direitos desta edigio reservados & HDITORA SCHWARCZ LTDA Ru Bandeira Paulista, 702, ¢), 32 045.42-002 — Silo Paulo — sp Volefone: (11) 3167-0801 Hox (1) M107-08 14 www companhiadastetray com. br COMPLEXO, MODERNO, NACIONAL, E NEGATIVO a Sara Hirschman O aspecto menos estudado do romance machadiano é a composigao. Em parte, porque as piruetas e intromissdes do narrador fazem que ela parega nao ter logica nem impor- (Ancia, sendo, por isso mesmo, dificil de estabelecer. E em parte porque a critica viu nela um ponto fraco. Augusto Me- yer, autor das melhores pAginas sobre Machado, sentiu nas abelhudices do narrador uma certa impoténcia para a narra- liva realista de flego. E Carpeaux observa que o figurino de humorista inglés permite encobrir dificuldades de construgio. O argumento do presente artigo vai em direcao oposta, e diz que ha método nas manhas narrativas do romancista. Estas sido parte de uma composi¢ao rigorosa, que formaliza e expde em sua conseqiiéncia dinamismos decisivos da realidade bra- sileira. | Transcrevemos em seguida uma passagem das Memorias postumas de Bras Cubas (1881), que sera nosso ponto de par- lida. SAo as linhas finais do primeiro capitulo, e a maior parte do segundo, onde o “‘defunto autor” explica as causas de sua morte. O leitor notara que a comicidade depende de uma dis- posig&o anémala das nogdes. Mas, seria o caso de perguntar, andmala em relagao a qué? Uma vez que estamos falando de ficgao, digamos provisoriamente que ela esta fora de esquadro 11S a ltt em relagao ao que esperava um leitor de romances europeus. Veremos que se trata de uma originalidade artistica, e da transposicao de formas sociais peculiares. — Para situar 0 trecho, note-se que 0 titulo do livro é uma provocagao, ja que nao € possivel escrever memérias depois de morto; que tam- bém a dedicatéria aos vermes, em forma de epitafio, 6 um desrespeito ostensivo; que no prélogo, o leitor é tratado com piparotes e insultos; e que nas linhas de abertura se revezam disparates, dicc4o grave, consideragdes de método, atengdes a moda, e o desplante de o autor comparar a sua literatura 4 de Moisés no Pentateuco. Isso posto, vejamos o texto. [...] Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e util a causa da mi- nha morte, é possivel que o Jeitor me n&o creia, e todavia é verdade. Vou expor-Ihe sumariamente 0 caso. Julgue-o por si mesmo. CAPITULO II Oemplasto Com efeito, um dia de manh@, estando a passear na cha- cara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possivel crer. Eu deixei-me estar a contempla-la. Sabito, deu um gran- de salto, estendeu os bracos e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te. Essa idéia era nada menos que a invengao de um medica- mento sublime, um emplasto anti-hipocondriaco, destinado a aliviar a nossa melancélica humanidade. Na petigao de privi- légio que entao redigi, chamei a atengdo do governo para esse resultado, verdadeiramente cristéo. Todavia nao neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam resultar da dis- tribuigao de um produto de tamanhos e tao profundos efeitos. Agora, porém, que estou ca do outro lado da vida, posso con- fessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e en- fim nas caixinhas do remédio, estas trés palavras: Emplasto Bras Cubas. Para que nega-lo? Eu tinha a paixao do arruido, do cartaz, do foguete de lagrimas. Talvez os modestos me ar- 116 guam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hao de re- conhecer os habeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da gléria. Observe o leitor o encadeamento das razées, que nao dei- xa de surpreender. Na petigéo que dirige ao governo, Bras Cubas chama a atengdo para os resultados crist&os de seu invento; aos amigos, confessa que espera ter lucro. Até aqui, nada de particular: descobrir 0 cAlculo atras da {achada generosa é 0 movimento normal do romance realista. Um movimento alias que indica 0 vinculo — critico — entre esse tipo de romance e a ordem individualista que o capita- lismo vinha criando. Ocorre que esta nao é a explicac4o final. Depois dela ha outra, mais esquisita, vinda de além-timulo, onde nao ha ra- vio para disfarce. O motivo real do falecido havia estado no wosto do cartaz, na ansia de ver o nome em letra de forma. Noutras palavras, o calculo de lucro era... uma desculpa. Assim, a busca da vantagem econémica da cobertura ao desejo de reconhecimento pessoal, e nao vice-versa. A espe- ranga de lucro é uma apar€ncia, e nesse ponto ela nao difere da inspiragao crista na petigao ao governo. Ambas ocultam a paixaio da notoriedade, que é 0 tinico motivo verdadeiro. Esta mesma conjung¢4o reaparece no final do paragrafo: “Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico, outra para mim. De um lado, fi- lantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor da gléria’”. Diferentemente do que seria de esperar, {ilantropia e lucro nao estéo em campos opostos. Pelo con- (ririo, est&éo de maos dadas, e na mesma face da medalha: na face confessavel, voltada para o piblico. Na outra, que é a verdadeira e secreta, esta a “sede de nomeada”’. Esta é a rea- lidade privada e efetiva, por oposigao as aparéncias publicas, apoiadas no sentimento cristao tanto quanto na ambicAo eco- nomica. 117 Em suma, a Bras Cubas 0 calculo egoista aparece como algo de socialmente estimavel, que se deve até apregoar, muito diverso do motor oculto e sombrio da vida moderna, a que nos habituou o romance realista europeu. Esta é uma primeira originalidade. Acresce que 0 cAlculo econ6dmico nao é um mo- tivo real, e sim um Alibi para outro desejo mais secreto, menos sério, e o mais verdadeiro de todos — o que é outra origina- lidade. Economia e Cristianismo so frivolidades para os- tentar, enquanto que a sede de atengdo e cartaz, que se diria frivolidade pura, é posta como a instAncia ultima da realidade. Que pensar desta ordenagao inesperada — e por assim dizer leviana — das causas? A inversado poderia ser passageira, um capricho que o desenvolvimento ulterior do romance reti- fica. Poderia ser também o traco distintivo de uma perso- nagem futil. Todavia nao é assim. Veremos 0 dominio estrito desta ordenacfo sobre enredo, caracteres, assunto, ritmo nar- rativo, conduc4o da frase, mescla de estilos etc. O romance a desenvolve e explora com a légica implacével propria as gran- des obras. Seria o caso, entao, de entendé-la como inversao satirica da realidade? Ou como exemplo precoce de ruptura com as convencdes do romance realista? Ambas as coisas, até certo ponto. Com efeito, tudo nestas memorias é extravagante, e os caprichos do narrador volta e meia desrespeitam as con- vengdes de que depende o senso realista da verossimilhanca. Mas ainda assim, o efeito do conjunto é de realismo, pode- roso, além de desolador. Entre paréntesis, a comédia de mo- tivos encenada na passagem que citamos apresenta muita se- melhanca com 0 clima ideolégico do pais, como nota quem tenha familiaridade com o século XIX brasileiro. Enfim, estas observagdes podem se resumir em duas perguntas: se ha rea- lidade nesta visdo das coisas, por que a impressfo amalucada? e caso se trate de extravagancia, como explicar 0 efeito de rea- lismo? Antes de tentar uma resposta, vejamos ainda alguns elementos de forma — sempre fatores de generalizagao no in- terior do romance — para que 0 leitor se convenca de que o trecho citado nao é uma excentricidade ocasional. O traco marcante do romance de Machado de Assis é a volubilidade de seu narrador. Este nio permanece igual a si 118 mesmo por mais de um curto pardgrafo, ou melhor, muda de opiniaio, de assunto ou de estilo quase que a cada frase. Ha um elemento de complacéncia nesta disposi¢4o mercurial, bem como no virtuosismo retérico de que ela depende para se izar. SAo yiravoltas sobre viravoltas, que invariavelmente companham de uma satisfagio de amor-préprio para o narrador. Esta tem a ver com o desejo de atenciio e reconhe- cimento que sublinhavamos atras, ao analisar 0 texto, desejo decisivo para 0 nosso raciocinio. Uma vez que este movimento subordina tudo o mais, pode-se ver nele o principio formal do livro. Para observa-lo em funcionamento, voltemos a nosso tre- cho. Na frase que o precede, o defunto autor menciona as es- tagdes que a morte o havia feito percorrer: “‘o corpo fazia-se- me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma’’. Estas moda- lidades do ser, que s&o 0 nosso destino comum, tém uma gra- vidade que lhes é propria, mas que ja na frase seguinte é con- trastada pela pneumonia. Com este termo entram em cena a morte individual e a sua parte de azar e explicagdes médicas. Estas por sua vez serao substituidas por outra causa mortis mais nobre, de vibragao liberal: 0 Autor teria morrido de “uma idéia grandiosa e util’. Como diz Bras Cubas, cabe ao leitor isento decidir entre estas diferentes acepgdes da morte. Nao obstante, no paragrafo que segue, a mente vem conce- bida como um trapézio em que as idéias se dependuram e fazem cabriolas, um simile circense que nao abona a indepen- déncia do juizo humano. Em suma, a cada um destes passos algo se rompe, em idéia ou forma, 0 que forga o leitor ao riso e proporciona uma vitéria ao narrador. Esta comicidade muito amarrada é um traco da prosa machadiana, um trago que a primeira vista 6 desagradavel e parece fraqueza, mas que aca- ba se impondo como um achado capital. Trata-se da reite- racio deliberada de aspectos autoritarios e malignos daquela volubilidade que est4 nos interessando. Voltaremos ao as- sunto. A seguir, em seqiiéncia acelerada, Bras Cubas posara como inventor, como cristéo, como comerciante e como pro- pagandista engenhoso de seu proprio nome. Uma vez que as se 119 transformacdes de personagem, de assunto e registro irao no mesmo ritmo até o fim do romance, nao ha sentido em se- gui-las uma a uma. Notemos porém que na série que estamos examinando ha mais do que simples variedade. Os seus ter- mos s4o escolhidos de modo a configurar um alto grau de abs- tragdo, ou de pseudo-abstracdo, a qual A sua maneira resume a totalidade do real, que assim fica inteiro — nada menos — a mercé dos caprichos do narrador. Por exemplo, este é ora um crist&o, que se dirige a seu governo, ora uma pessoa privada, que se confessa aos amigos, ora uma voz do além, perfeita- mente sincera, tudo no espaco limitado de umas poucas li- nhas. Juntas, estas trés atitudes — a piedade crista, 0 inte- resse pelo lucro e o desapego do defunto — compdem um mundo completo e definido de que elas seriam as partes exaus- tivas. Os ‘“‘modestos” e os “‘habeis’’, que respectivamente con- denam e admiram a paix4o do arruido de Bras, estao no mes- mo caso e perfazem o conjunto do publico, ou até da huma- nidade. Idem para as duas faces da idéia (a publica e a pri- vada), para 0 conjunto dos motivos (filantropia, lucro e amor da gléria), e para os estagios da decomposi¢4o (do humano ao vegetal ao mineral). S40 arranjos que fazem supor a visdo abrangente e articulada do todo, que desta forma é manipu- lado enquanto tal pela imaginacao, a qual tem o prazer nao sé de dispor da realidade, como também de recolher 0 aplauso devido ao descortino e 4 formulacao breve. Por outro lado, ja que estas abstracées sao claramente arbitrarias elas mesmas, nao é somente a realidade externa que é vitimada pelos ca- prichos do narrador: 0 préprio ato de abstrair é envolvido também. Com efeito, ha nestes romances uma comicidade muito especial, ligada as faculdades de abstraciio e raciocinio. Por serem tao impalp4veis e do dominio légico, estas nao pa- recem matéria de ficcdo, e entretanto é nelas que a volubi- lidade e desfagatez se mostram em forma maxima, ou mais radical. Analogamente, a sintaxe muito armada e cheia de construgées paralelas e subdivididas, recurso, em principio, de complexidade racional, 6 uma expresso cémica de arbi- trio. E enfim, para fechar o circulo, 0 morto escrevendo as suas memdrias configura uma situacdo narrativa artificiosa, 120 r tia qual o estatuto da ficco e do leitor ficam privados de sua “naturalidade” ou verosimilhanga, e sao elementos de uma vonstante provocagao. Noutras palavras, a volubilidade que viemos comentando no é de Ambito modesto. Ela abraga o mundo em sua ex- tensio, e trabalha a fundo o plano das formas. No mesmo passo, ela transcende a psicologia individual, com sua parte de contingéncia, para tornar-se uma forma literaria que nao sofre excegdes, bem como uma visio do mundo. Deve estar clara, depois do que dissemos, a quantidade de trabalho pro- priamente técnico necessaria 4 configuragao desta forma. Noutras palavras, Machado ajustou um procedimento artis- tico no qual a realidade burguesa corrente, em qualquer uma de suas expresses, seja ideolégica, sintatica, estética etc., é regularmente sujeitada 4 veleidade pessoal, sem que no en- tanto o processo se complete. Uma tal forma naturalmente é um feito de construgao, e pouco tem de espontanea. No resul- tado, a semelhanca com a vida brasileira do século XIX é grande. E um exemplo da travagao construtiva da mimese, ou por outra, da complexidade dos requisitos formais do efeito realista. Depois de considera-lo em separado, vejamos o narrador no terreno concreto de sua evoluc4o, a comegar pelo enredo. No todo, o romance é alinhavado pela vida de Bras Cubas, intercalada de digressdes, anedotas e apdlogos mais ou menos alusivos, e entrelagada com uma crénica do Rio de Janeiro daquele tempo. Quanto 4 sucessio de episédios, poderia se dizer que ele, o romance, é volubilidade em c4mara lenta. Nao faltam desejos, que sdo vivazes, ao passo que inexiste a conti- nuidade-de propésitos — o que vai bem com o cavalheiro abas- tado e sem ocupagao que é a figura principal. Dai 0 enredo erra- tico e frouxo, muito original a seu modo, uma trama que nao é retesada por conflitos, j4 que estes requerem alguma espé- cie de constancia. As suas complexidades nao se prendem ao desdobramento de contradi¢des — desmanchadas no ambito do capricho — mas 4s sutilezas e aos ritmos da mudanga incons- ciente, do tédio, da deriva entre as estacdes da vida (assuntos, alias, que colocam as Memérias péstumas entre as anatomias 121 ieee modernas da vontade e da experiéncia do tempo). Sao es- tagdes que nada tém de incomum, para um filho das classes dominantes brasileiras: estudos em Coimbra, amor, poesia, politica, filosofia, jornalismo, ciéncia, filantropia e morte. E conspicua a auséncia do trabalho e, mais geralmente, de qual- quer forma de esforco sustentado ou de compromisso ideolé- gico. Assim, os passos que mencionamos, e que mal ou bem sio repositérios do valor da vida moderna, aparecem somente enquanto objetos de capricho, o que é dizer que a sua légica propria esta subordinada ds necessidades sempre momen- téneas do amor-préprio do heréi. Trazidas ao campo da volu- bilidade, as finalidades-mestras da vida burguesa reduzem-se arecurso de satisfacdo imaginaria imediata, uma satisfacao em que 0 escarnio tem paste, e a que a presuncdo de grandeza e objetividade daquelas finalidades acrescenta o sabor. Di- mensionadas pelo capricho, elas tomam forma barateada: no lugar da Ciéncia, a invengao do emplasto; no da Politica, o discurso parlamentar de Bras Cubas, defendendo duas pole- gadas a menos nas barretinas da Guarda Nacional; no da Poe- sia, as inflexdes estudadas com que 0 vitivo recente declama o seu adeus a esposa; no da Filosofia, pensamentos sociais ins- pirados no espetaculo de uma briga de cachorros. Em suma, trata-se de um andamento sem correnteza cen- tral, mas repleto de necessidades de percurso, j4 que todos os seus momentos est&o sob o império do capricho, das perso- nagens tanto quanto do narrador. E uma estranha conjungio, em que a vida é cheia de satisfagdes, e vazia de sentido; em que a légica dos momentos — implacavel e mondétona como 0 proprio capricho, que esta sistematizado — sublinha o carater incerto do conjunto. Ainda neste sentido, note-se que o ro- mance é incansavelmente espirituoso, e que no entanto o seu efeito total é desolado e termina em nada, como fica dito em todas as letras no capitulo final, chamado ‘‘Das Negativas”’. Aqui, Bras Cubas enumera as coisas que n4o chegou a ser, e conclui por um pequeno saldo, que é a negativa mais radical: o famoso “‘ndo tive filhos, nao transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Essa impressdo é multiplicada ain- da pelas intromissdes, digressdes e guinadas do narrador, que 122 P freileram, em ritmo vertiginoso, a combinag4o de intensidade © auséncia de objetivo que no enredo flui em marcha mais lenta Contudo, a despeito da descontinuidade de propésitos, o vomance tem a sua curva. Algo como um movimento de movi- Mentos, que forma sentido: um ritmo em que o interesse do narrador, das personagens, bem como do leitor passa por ci- clos constantemente renovados de animacio e fastio, sendo que o conjunto desliza da vivacidade para a saciedade e a morte — tudo sempre aquém de um propésito objetivado qualquer. De passagem seja dito que alguns dos melhores ro- mances brasileiros, notadamente Macunaima, com sua extra- ordinaria tristeza final, encontraram um ritmo semelhante. A diferenga de um tal movimento com o enredo-tipo do realismo europeu é decisiva. Neste, a tens’o prende-se ao choque entre um individuo forte e a ordem social: 0 que vale e é tipico, para falar com Lukacs, é a contradigao, incluidos os padecimentos que the correspondem, entre as justas ambicées do primeiro e is exigéncias da segunda. O resultado global diz que a ordem burguesa é contraditéria e nao cumpre o que promete. Ao Passo que o enredo machadiano diz que a vida de nosso ri- cagos foi excelente, mas — em palavras de Oswald — corrida numa pista inexistente. Dando um balango, digamos que talvez o emplasto esteja a medicina como a barretina da Guarda Nacional esta para a politica, como os pensamentos de Bras diante da briga de ciies est&o para a filosofia, como o andamento erratico esta para a intriga com heréi enérgico. Em cada um destes pares ha um lado diminuido e caricato, que no entanto, uma vez lido o romance, é 0 verdadeiro apoio da acao e de sua légica, e portanto, para efeitos ficcionais, o lado real. De onde entao a 0 de fantasia risivel? O irreal no estar4 do outro Esquematicamente, o critério de realidade que preside a caracterizagaéo é um, e o que comanda a acio é outro, sendo que num caso a norma é juiz, e no outro, como vimos, objeto de capricho. Mesma coisa para a fenomenal expansao do arbi- trArio pessoal, que neste romance ataca e sujeita todas as di- mensdes da vida, mas sem perder a conotagdo de inconse- impre: lado’ 123 qiiéncia e marginalidade que lhe deu a civilizacdo burguesa do século XIX. E certo, enfim, que as satisfagdes do narrador se obtém pelo desacato ao sistema das virtudes burguesas, invo- cado para isso mesmo, © que entretanto nado impede que ele tenha vigéncia, e que 0 sentimento de ser desprezivel seja essencial 4 situacgao daquele mesmo narrador (Bras Cubas neste ponto se assemelha ao homem do subsolo de Dostoiev- ski, que sofre do figado mas nao vai ao médico, porque des- preza o racionalismo ocidental, sem prejuizo de se desprezar a si mesmo porque nao vai ao médico). A dualidade de critério é constitutiva da forma e da inquietagao do romance macha- diano; ela é a hélice que 0 empurra — em diregao ao nada. A explicacio, no caso, leva a circunstancias nacionais. Embora sejam conhecidas, as dificuldades da situacao ideolégica e moral da camada dirigente brasileira, e especial- mente da Coroa, nao costumam ser levadas em muita conta. O assunto pode ser visto no livro notavel de Joaquim Nabuco sobre O abolicionismo (1883), Obrigados pelo seu papel de representa¢ao externa, esses dirigentes liberais de um pais de economia escrava diariamente tinham de pedir para a sua pa- tria e para si mesmos 0 reconhecimento do “mundo civili- zado’’, cujos principios elementares, entretanto, dada a reali- dade social, eles tinham de infringir com igual constancia. Noutra parte tentei a reconstrugo sociolégica deste impasse e de seu efeito sobre a vida das idéias.' Por agora, basta indicar o paralelo entre este movimento e a volubilidade narrativa tal como a vimos nas Memérias pdstumas. Também ela combina — em versdes que vio do cSmico ao torpe — desrespeito 4 ordem burguesa e Ansia de se afirmar como um membro seu, © que nao vai sem dois pesos e duas medidas, nem, dada a constante repeticao, sem desfagatez. S40 combinagdes que configuram a unidade minima e caracteristica desta prosa de romance. Assim, se é justa a nossa observa¢ao, a lei da prosa machadiana seria algo como a miniaturizacdo ou o diagrama do vaivém ideolégico da classe dirigente brasileira, articulada (1) R. Schwarz, Ao vencedor as baratas, So Paulo, Duas Cidades, 1977, cap. 124 com o mercado e 0 progresso internacionais, bem como com a escravidao e o clientelismo locais. Um vaivém que resume o yexame patrio, mas nao se esgota nele, pois diz respeito tam- bém 4 histéria global de que o mesmo Brasil é parte efetiva, ainda que moralmente condenada: a ordem burguesa no seu todo nao se pauta pela norma burguesa. Naturalmente ha di- ferencas de timbre entre o drama de nossa elite e a prosa de Machado. Nesta, ajudada pelo desapego que a ficc4o permite, os aspectos grotescos daquele estado explicitados e degustados, o que da origem ao registro diminuido que assinalamos. Mas a imparcialidade machadiana vai mais longe, e faz com que 0 mundo do arbitrio, desqualificado pelo confronto com a norma burguesa e européia, seja também a testemunha viva da rela- tividade desta, movimento que leva aos assuntos centrais da literatura moderna, ligados justamente ao limite da civ zagao burguesa. Enfim, a inferioridade patria existe, mas o metro que a mede nao é também inocente, embora hegem6- nico. Trata-se de uma posic4o antimitica e duas vezes nega- tiva, isenta de ufanismo conservador bem como de abdicagao do juizo diante de Europa e progresso, uma posi¢ao racional e sem absolutos, que em cem anos nao envelheceu. E talvez uma explicagado para o paradoxo que haviamos visto, da impressdo combinada de amalucamento — contin- gente e individual por natureza — e necessidade incontor- navel. Sartre, comentando a situacd4o do escritor francés de- pois de 1848, fala em “‘neurose objetiva’’: uma patologia im- posta pela conjuntura real, a que nao ha como escapar. Neste sentido, a dualidade de critérios que est4 no fundamento da arte machadiana é talvez a transposi¢4o e exploracio literaria de algo como um “‘despeito objetivo’, que era da situagao his- térica, uma incongruéncia ideolégico-moral imposta pela atualidade aos brasileiros esclarecidos, incluida neste tltimo adjetivo a implicagao de classe que ele trazia.

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