3. Patrimonialismo
Desde o inicio dessa breve histria de cinco séculos foi logo ficando patente a dificuldade que
‘temos de construir modelos compartlhados de zlo pelo bem comm, Em seu lugar, wiias formas
de compaaio, a moeda de troca dos favors, 0 recurso a pistldes, 0 famoso habito de furar fila, de
evar vantagem, ou a utilizagdo de intermedisrios se enraizaram nesta terra do uso abusive do Estado
para fins privados. O certo é que persists no Brasil um séio dficitrepublicano enquanto prticas
patrimoniaise cientelistas continuarem a imperarno interior da nosso sistema politico eno corasdo
de nossas institugbes pablicas.
“Repablica” significa “coisa publica” — bem comum —, em oposisio ao bem particular: ares
privat. Pensada nesses termos, como bem ajuiza 0 historiador José Murilo de Carvalho, “nossa
Republica nunca foi republicana”. Por mais tautoldgico que posta parecer, ndo pode haver replica
sem valores republicanos, e por aqui sempre fer falta interesse pelo coltivo, a virtude civica e 0s
principios prOprios ao exericio da vida pablica, Nos falta, ainda mais, 0 exertcio dos direitos
sociais, qual sj, a participagao na rigueza coletiva: o dirito, ou melhor, o pleno exerico do dieito
sate, 3 educagdo, ao emprego, moradi, a0 transporte e ao lazer,
Diante desses impedimentos, ficam expostas a cidadania precarizada de certos grupos sociais
Drasileros as priticas de scgregisio a que continuam sujites. Sobretudo para of setores
vvulaeréveis da sociedade, a repra democritica permanece muitas vezes suspensa no pais, nosso
presente, ainda muito marcado pelo passado escravocrata, autoritaio e controlado pelos
mandonisms locas,
E, como nossa Republica ¢ frig, ela se toma partcularmente vulnerivel ao ataque de seus dois
rincipais inimigos: o patrimonialiemo € a cofrupsio. © primeira deles, © patrimonialismo, &
resultado da relaclo viiada que se estabelee entre a socidade eo Estado, quando o bem puilico &
apropriado privadamente. Ou, dito de outra mancira, trata-se do entendimento, equivocado, de que
© Estado é bem pessoal, “patriménio” de quem detém o poder.
E, apesar de o conceito de patrimonialismo parecer velho e em desuso, até superado, ele nunca se
rmostrou tio atual, A pritica atravesa diferentes classes, nfo sendo monopélio de um grupo ou
estrato social. Utilizada pela primeira ver pelo socilogo alemao Max Weber (1864-1920) ainda em
finais do século xx, a palava “patriménio” deriva de “pai”, enquantoo termo em si evoca o sentido
de propriedade privada, O concsto também sugere a importincia do lugar patrimonil; isto 6, do
cspaco individual que constantemente se impe diante das causas pblicase comuns.
As teses do socilogo alemio nio se limitaram, entretanto, a um uso particular ¢ localzada do
conctito. Nas mios dess tedrico, ele ganhou um sentido mais amplo, remetendo a uma forma de
poder em que as fronteras entre as esferas pblica e privadas se tomam tio nebulosis que acabam
por se confundir. Patrimonialismo passou a designar, entdo, a utlizaglo de ineresses pessoas,
Aesttuidos de ética ou moral, por meio de mecanismos publicos. Nso vale, porém, 0 eu contro: ©
uso de bens privados em prol da vontade pblica, Nese caso, a ordem dos fatores alters, e muito, 0
produto.
Anda segundo Weber, quando o Estado far uso esse tipo de expedient patrimonial e passe ase
entendido como mera extensfo dos descos daqueles que ocupam o poder, a maquina politica acaba
por se revelar, ela propria, ineficiente. Isto é, 0 Estado perde em racionalidade quando os interesses
publics detsam de ditar as normas de governo, e ainda mais, quando se afiema o personalismo
politico: esa verdadera colcha de arranjos pessoas que alimenta priticas de conchavo, de
apadrinhamento, de mandonismo e de cientlsmo, as quas se sobrepoem a regra pica.
[No caso brasileira, nfo foram poucos os autores que lidaram com o conccito de patrimonialsmo
so resumie priticas politics reincidentes no pats. Ainda em 1936, no lio Ralzes do frail, Sérgio
Buarque de Holanda atacou nossa renitente “ca de fundo emotivo” e a mania nacional de evitar
28 instincas pablics eo corpo da lei. Chamou de “cordialidade” a esse modelo e angow um alert
“Cor” (“coragio”),explica ee, ern do ltim, e serve para defini a manera como os basieros usam
© afeto em ver de se aplicarem no exericio da rarAo. Tal aito estaria presente em nosso passado
colonial, mas teria sido ampliado durante o Império e sobretudo com a Reptblica a qual, segundo o
histriador, padecia com a “frouxidfo das instituigoes”
A recepeio da obra de Holanda foi, porém, matreira com seu proprio autor. Desde a segunda
ceigdo de Rates, ele teve que se defender contra o uso equivocado de sua interpretacio, ¢ da mi
leitura que recebeu seu capitulo mais famoso, nao por acaso chamado “O homem cordial”. O que
era uma critica, e, de acordo com Holanda, representava um dos claros empeclhos para a entrada
do pals na moderidade, passou a ser entendido como elogio e motive de regoaijo. Come se nossopapel no concerto das naces fosse ofertar ao mundo “um homem cordial” ou, por natureza,
tivéssemos sda moldados por este tipo de pritica patrimonial. Com certeza no existe uma formula
de remo prescrita,expressamente, para os brasleitos, por mais que uma série de mito sociais
procurem jogar para a biologia © que € da légica e da experfncia politica dos suetos e dos atores
Raymundo Faoro, em Os donos do poder: Formagio do patronato politi brasileiro (1958),
explorou o termo recuando ao contexto do século xv Invest, pois, na anise de nossa formaga0
colonial, lagamente pautada na grande propricdade latifundiria, no trabalho cscravizado © na
‘concentracio politica ¢ econémica em torno dos senhores de terra. Era essa aristocracia rural que
personalizava a lei eas propriasinsituigbes da trra, ¢ no tinha prutido algum em governar seus
dominios a parte ds dividends do proprio quintal
‘Também Antonio Candido, em seu ensaio “Dialética da malandragem” (1970), tendo como base
‘0 romance de Manuel Antdnio de Almeida, Memrias de um sargemt de micas, de 1854, chegou d
conch
viraria, ao mesmo tempo, lice ilcto. Nessa estrutura complesa, a intimidade se transmutaria em
de que sobreviveria entre nés uma certa“dialética da ordem ¢ da desordem”, onde tudo
‘moeda corrente, levando a uma “vasta acomodagio geral”, dissolvendo os extremes e solapando o
significado da lie da ordem.
J Roberto DaMata, em seu livro Camavais, malandros ¢ hers, de 1979, propos uma nova
interpretagto do Brasil a partir da famosa expressto: “Voce sabe com quem est falando?”. Segundo
‘© antropélogo, a frase lembratia a maneira como por aqui se aplica € com "rigor", a norma privada
nna manutenglo da hierarquia social e das pritcas nepotistas no interior do Estado. Diagnosticou,
ainda, a exsténcia de uma socicdade dual, onde conviveriam duas formas paralclas de conceber ©
agir no mundo. Um mundo de “individuos”, sueitos & Id, © outro de “pessoas”, para as quais os
bigs seria formulapbesdistantese até irrelevant,
De toda maneira, ¢ a despeito de vivermos num longo period de redemocratizacio, firmado
desde a Carta Magna de 1988, que tornou mais obustas as insituigbes brasileira, o certo € que 0
‘onceto continua operante no Brasi, onde a pritica politica € ainda muito afeta 8 mistura entre
afetos publics e privados. Essa contaminagio de esferas leva, por sua vez, a0 fortalecimento dos
‘pequenos ¢ grandes poderes pestoais, ampliando as possibilidades de suas ages nas esferas do
Estado,
‘A propésito, a perssténcia dos mandonismes locais acaba por produzir outra expécie de
patrimonialismo, quando interesses regionats passam a afetar ditamente aIdgica publica. Nao que
‘© Estado dea ser imune as demandas setorializadas; o problema se apresenta quando tm certo tipo
de comporativismo politico favoree alguns cidadios, em detrimento de muitos,
Priticas patrimonialistas sio mesmo antigas entre nés. Caio Prado Jnior, no seu lio Evelugio
politica do Brasil e outros estudos (1933), mostrou como nos primitos 150 anos da colonizacdo a
presenga da Coroa portuguesa na sua colonia americana era apenas diminuta e residual, Cabia,
portanto, ao proprietério de terras, por intermédio das cimaras municipais, exercicio do poder
politico, Colonos e donatirios faziam 0 papel de “delegados locas", uma vez que eram os