0 notas 0% acharam este documento útil (0 voto) 103 visualizações 34 páginas Diálogos Sobre o Ceticismo e A Dúvida Cartesiana. Plinio Junqueira Smith
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Diuvida Cartesiana
Plinio Junqueira Smith"
1, Oscar : Nao esqueceu nada em casa, Eduardo ??
Eduardo : Quase esqueci de pegar o livro que estou Iendo. Quanto as
roupas, chequei tudo duas vezes e nao esté faltando nada. Vamos passar um.
belo feriado na praia da Baleia !
Felipe : Para falar a verdade, os melhores fins-de-semana na praia sio
aqueles que vém antes ou depois de um feriado, pois so sempre os mais,
tranqiilos; as praias ficam vazias e as estradas, seguras; e, se quisermos ir
tomar um sorvete ou comer uma lula frita, ndo hé filas. A tinica vantage do
feriado 6 a de que teremos a possibilidade de desfrutar quatro dias inteiros
de sol, caso a previsdo do tempo nio falhe...
Marta : Vira essa boca pré la. A tiltima vez que vim para a Baleia foi em
abril do ano pasado, quando estava dando um curso sobre filosofia moderna.
Estava tao tomada pela leitura de Descartes que nem sequer via cor do mat...
Felipe : A mim também me agrada muito a leitura das Meditacdes. Recen-
temente, andei lendo algumas discusses sobre Descartes ea filosofia moder
nae nao pude deixar de notar que se tornou um lugar comum filos6fico a
critica ao mentalismo cartesiano.
Eduardo : Devo confessar que também tive uma experiéncia semelhante;
tantas foram as minhas leituras nesse sentido, que acabei por me tornar eu
mesmo um severo critico da filosofia de Descartes.
Felipe : A recusa generalizada da idéia de que a mente s6 tem acesso as
prOprias afecgoes faz com que aceitemos, se nao os argumentos com que se
1 Deptartamento de Filosofia UFPa
2 Julguel imprescindivel a manutengSo académica de por referéncias bibliogréficas em notas
de rodape, aposar de essa exigancia no se adequar & forma de didlogo.O Ceticismo e a Ditvida Cartesiana 73
pretende refutar a posicio de Descartes, pelo menos a convicgéo de que deve
haver equivocos em sua argumentagdo. Nao raras foram as ctiticas que,
recusando um mentalismo que se julgou pressuposto na argumentagio
cartesiana, adotaram um realismo como ponto de partida para a filosofia.
Entendendo que o mentalismo era uma op¢ao filosdfica primeira injustificé.
vel, incorreram no dogmatismo oposto: optaram, de inicio, pelo corpo e, com
isso, pretenderam desembaracar-se da argumentacao cartesiana. Outra linha
de ataque a Descartes consiste em apontar a ilegitimidade da duivida cética.
Varios foram os diagnésticos nessa direcdo, freqiientemente conflitantes entre
si, mas em geral identificando algum desvio no uso comum das palavras ou
alguma negligéncia na consideragao dos critérios usuais para dirimir nossas
Aavidas. Embora tentadoras, essas criticas nao obtiveram o meu crédito.
Eduardo : Sempre pensei, Felipe, que vocé estivesse do meu lado contra
Descartes, mas agora me parece que eu me havia equivocado.
Felipe : Minha intencdo nao é, desde logo, a de defender o cartesianismo
dessas criticas, mas, a0 contrério, a de encontrar uma outra maneira de
Eduardo : Mas por que vocé julga necessério retomar esse caminho tio
batido pelo pensamento atual ?
Felipe : Em primeiro lugar, porque nao me parece uma postura mais
defensével do que a cartesiana aquela que valoriza como principio de toda
filosofia o realismo de senso comum (ao transformar as opinides vagas
imprecisas do senso comum em teses filos6ficas), exceto talvez pra quem nao
se desvinculou inteiramente dos preconceitos do homem comum; e, em
segundo lugar, porque ndo estou seguro de que se possa medir e julgar uma
filosofia a partir do uso comum das palavras, como se este constituisse um
padrao rigido de normalidade. Em ambos os casos, parece-me, a deniincia de
equivocos contidos na argumentacio cartesiana s6 se faz em nome de uma
outra certeza prévia e a identificagio de « erros » s6 se da A luz de algo que
se toma previamente como « certo ». Ea forga do pensamento cartesiano
reside precisamente no desarmamento dessas certezas prévias. Em suma, 0
que pretendo ¢ tentar uma critica a Descartes que no pressuponha alguma
dessas duas formas de dogmatismo, isto é, uma critica cuja perspectiva ndo
seja aquela de um dogmatismo realista ou da linguagem.
Eduardo : E como voc® pretende fazer isso ?
Felipe : Nao é tarefa facil, mas creio que devemos abordar a questao de
pelo menos dois pontos de vista distintos. Num primeiro momento, susten-
tarei que Descartes reformulou o ceticismo sem ter alterado algum de seus
aspectos bisicos, apoiando-me em comparagdes com 0 ceticismo grego,
pirrOnico e académico. Procurarei mostrar, por um lado, que Descartes nao
introduz na argumentaco cética nenhum elemento original que permita
inferir ocogito dessa argumentacao como um magico tira um coelho da cartola
©, Por outro, que ele nio reduz o escopo do questionamento cético, manobra” Plinio Junqueira Smith
essa que Ihe permitiria resguardar a legitimidade filos6fica do dominio
‘mental ou puramente intelectual. Se o ceticismo cartesiano ¢ tio abrangente
quanto 0 pirrénico e se o primeiro encontra necessariamente no cogifo uma
certeza indubitével, parece inegavel que também o pirronismo deveria
reconhecer essa certeza, embora tenha sido cego para ela. Assim, uma critica
cética a Descartes pareceria impossivel.
Seré objeto de investigacdo do segundo momento de minha anélise
precisamente a premissa de que o ceticismo cartesiano encontra necessaria-
mente no cogito uma certeza indubitével, isto é, questionarei a idéia de que
(05 argumentos céticos empregados por Descartes se encacleiam em determi-
nada ordem légica de abrangéncia cada vez mais geral ¢ a de que aquele
argumento considerado como o mais abrangente € incapaz de pér em diivida
a minha propria existéncia. Apoiar-me-ei em comparacées com as considera-
‘Ges feitas por outros filésofos sobre esses mesmos argumentos, para mostrar
que, ao fim e ao cabo, a articulacdo cartesiana entre premissas ¢ conclusbes,
entre dominio e limite dos argumentos, € inteiramente arbitraria e nao
obedece a nenhuma ldgica que se imponha necessariamente a nés. Assim, 0
cogito, entendido como limite da hipdtese do Génio Maligno, menos do que
uma certeza arrancada dessa hipstese e do ceticismo, é um dogma que
Descartes Ihes acrescenta com a finalidade de rejeité-los, sem que haja nisso
alguma necessidade intrinseca aos proprios argumentos céticos.
‘Oscar : Parece-me que voce esta confiante demais em sua estratégia,
sobretudo se levarmos em conta que esse é um assunto bastante discutido ¢
que recebeu Iuzes das mais variadas. Em todo 0 caso, prossiga com a
apresentacio da linha de raciocinio a ser desenvolvida, para que possamos
posteriormente questioné-la.
Felipe : Muito bem, aceito a observacao e prossigo. Esse segundo momento
visa ressaltar no s6 0 fato de que Descartes instaura uma logica propria em
sua filosofia, mas também que seu procedimento légico nao é — como nao
poderia ser — o da logica formal. A andlise comparativa com outros fildsofos
ajuda-nos a perceber que uma decisio filosofica articula determinada premis-
sa a determinada conclusio e que outras decisdes seriam igualmente possi-
veis ou plausiveis. Se, com outras l6gicas filoséficas, se seguem conclusdes
diferentes a partir das mesmas premissas, no ha por que assumir a teoria
cartesiana da mente, uma vez. que, por mais persuasiva que sua argumenta-
gio possa parecer, essa forca persuasiva se dissolve em meio a outras
argumentagées igualmente persuasivas, como forcas opostas que se anulam.
Em outras palavras, 0 confronto entre diferentes decisées filosoficas, que
instauram diferentes logicas argumentativas, pode servir como uma vacina
contra a tentacéo de aceitar uma tese filos6fica particular e, assim, de cair em
dogmatismo. Se, por um lado, como historiadores da filosofia, nao devemos
assumir o papel de critico, médico ou diretor de consciéncia e deixamos a
iniciativa para o fil6sofo, nada nos impede, por outro lado, de trocar de papel(0 Ceticismo ¢ a Ditvide Cartesiana 75
¢, tomando a iniciativa em nossas maos, recusar os passos que antes haviamos
dado apenas porque nos submetiamos metodologicamente a résponsabilida-
de filos6fica do autor’.
Marta : Se estou entendendo a sua estratégia de argumentagio, eu diria
que a sua pretensio é a de desenvolver uma critica cética a Descartes. E se
esse € 0 caso, vejo que vocé nao mudou seu pensamento,
Felipe : Nao, ndo mudei. Pelo menos quatro aspectos do pirronismo —
veja, Marta, se isso te parece correto — sao retomados por mim nessa tentativa
de uma critica cética a Descartes. A maior parte da discussdo de Sexto
Empirico versa sobre questies particulares das mais variadas artes e ciéncias,
Embora disponha de um arsenal de argumentos gerais, 0 pirronismo julga
necesséria a investigagdo detalhada e por t6picos. por isso que, para
desenvolver um pensamento cético me ative a uma questéo precisa, a.do
mentalismo, uma questao importante e certamente das mais discutidas hoje
em dia, Associada a essa idéia esta a de que o pirronismo ¢ essencialmente
uma terapia e, reconhecendo o mundo da vida comum como uma dimensao
a ser explorada pela ciéncia (que o cético pode tranguiilamente praticar), toma
para si a tarefa de neutralizar as doutrinas dogmaticas. Do mesmo’ modo,
procuro apenas recusar as doutrinas dogmiéticas, sem tentar descrever anossa
concepcao comum de homem. A sofisticacdo e eventual transformacao dessa
concepcéo comum deve provir de uma anilise de resultados da ciéncia
empirica e no da mera reflexao filos6fica. Em terceiro lugar, argumento
por mim empregado é basicamente 0 da didphonia, pois seré na comparagao
entre diferentes usos dogmaticos dos argumentos céticos da primeira Medi-
ago que recusaremos 0 uso cartesiano. Por fim, a confrontagao das filosofias
‘«concretas » é o instrumental, pirténico e meu, para se alcangar a suspensao
do juizo. A historia da filosofia € matéria da qual o filosofar se alimenta ¢ é
também, parece-me, o destino de toda nova filosofia dogmatica
‘Marta : Nao posso julgar agora se sua critica se manterd fiel 4 sua intencao;
6 0 que veremos no decorrer de nossas discussdes, No entanto, posso dizer
desde jé que o espirito é certamente pirrénico e que tragos importantes do
pirronismo 40 mencionados por vocé. Ha um certo tempo, tenho em meu
espirito a idéia de que um pirrbnico stricio sensu € aquele que combate as
teorias filoséficas e nao aquele que, & maneira dos académicos, elabora
doutrinas positivas que acabam por nao se diferenciar de maneira muito clara
das doutrinas dos dogméticos. E, por isso, agrada-me ver que sua postura é
fiel ao pirronismo. Talvez. essa seja a raza0 de vocé preferir discutir questdes
particulares, como sempre o ouvi discutir, em vez de considerar argumentos
gerais sobre a impossibilidade de decidir o conflito das filosofias e passar
logo em seguida a descrigies sisteméticas da nossa visio comum do mundo.
3 Para uma breve comparagio entre 0 papel do filésofo eo do historiador da filosofia ver V.
Goldschani (1970),76 Plinio Jungueira Smith
De qualquer maneira, expresso aqui meras opiniées, ou antes, impresses,
que me ocorrem no presente momento.
Felipe : Essa critica a Descartes pode ser dita « cética » também, porque
Pressupée apenas o ceticismo cartesiano, isto é, procuro refutar Descartes
utilizando-me tio somente dos elementos contidos em sua reflexio « cética »
Eduardo : Jé estamos chegando. Proponiho um passeio na praia e 0
adiamento de nossas discusses para amanha.
Felipe : Também estou cansado e gostaria de caminhar um pouco antes de
me retirar e ir dormir.
2. Oscar : Ora, jf desperto a essa hora da manh§, Eduardo !
Eduardo : O barulho que vocés fazem para tomar café da manha é t4o
grande que ¢ impossivel dormir. Mas, com esse belo dia, nio me arrependo
de ter levantado tio cedo.
Marta : Ainda tem leite quente. Vocé quer ?
Eduardo : Se vocés quiserem ir para a praia, eu os acompanho, pois nio
costumo tomar café.
Felipe : Nao hé lugar mais agradavel para se discutir filosofia do que uma
praia ensolarada, A luz do sol naturalmente ilumina nosso intelecto, a maresia
inspira-nos com idéias profundas e, quando estivermos com a cabeca fervi-
Ihando, podemos dar um mergulho no mar para nos refrescarmos, Hi quem
diga que condigdes téo propicias como essas tém ainda a virtude de impedir
© dogmatismo, uma vez que o dogmético, interessado apenas na pura
contemplacio da verdade, esquece-se da vida e de seus prazeres. Dito isso,
comecemos por examinar as trés caracteristicas da diivida cartesiana e suas
relagées com o questionamento pirronico, como creio ter ficado acertado entre
és na conversa de ontem. Eu digo que, mesmo supondo que este questio-
namento nio fosse voluntério (na minha opinido, ele é voluntario), 0 fato de
que a diivida de Descartes € voluntéria ndo tem, evidentemente, maiores
conseqiiéncias filoséficas e ndo desempenha um papel relevante na refutagio
do ceticismo.
Eduardo : Parece-me que vocé est indo um pouco depressa demais a0
julgar que a caracterizagio da diivida como voluntéria néo tem maior
relevancia filos6fica. Poder-se-ia, talvez, pretender quea idéia de uma duivida
voluntéria jé pressupde um sujeito que duvida. Enquanto o pirronico apenas
questionaria os discursos dogméticos a partir do que esses mesmos discursos
Ihe oferecem e encontrar-se-ia em aporia diante das alternativas oferecidas, 0
cético cartesiano duvidaria de suas opinides. No primeiro caso, nenhuma
concepgao de sujeito estaria pressuposta, pois toda a argumentagio se
desenvolve dialeticamente; no segundo, seria preciso um sujeito para a agio
de duvidar, pois € © proprio cético (cartesiano) quem levanta o problema
te6rico.O Ceticismo e a Diivida Cartesiana 7
Felipe : Em primeiro lugar, ndo me parece que uma investigacao dialética
dispense um investigador; de fato, toda a questdo é saber a natureza desse
sujeito pressuposto pela investigacao filoséfica, se é um sujeito meramente
empirico ou puramente mental. E, em segundo lugar, como conseqiiéncia
disso, a traducio de « encontrar-se em aporia » por « duvidar de algo » nao
trai o ceticismo, uma vez que, pelo menos a primeira vista, no « duvidar de
algo » nada parece implicar necessariamente a existéncia de uma mente
separavel do corpo.
Marta : Duas observacées histéricas podem ter interesse aqui, pois vio no
mesmo sentido das palavras de Felipe. A primeira éa de que Santo Agostinho
ja empregava 0 verbo « dubitare » para expér 0 pensamento cético, sem
instituir a partir dai uma filosofia mentalista.‘ E a segunda éa de que o termo
« doute » aparece com freqiiéncia nos textos de Montaigne, o que mostra que
a dtivida pode ser plenamente compativel com o ceticismo. Dar ao ceticismo
a forma da diivida, portanto, nfo € uma deformagio de suas idéias.>
Eduardo : Se ninguém tem mais nada a dizer sobre a voluntariedade da
diivida, eu gostaria de ouvir o que Felipe pensa a respeito de outra de suas
caracteristicas. Jé se alegou que a argumentacao pirrénica é desorganizada e
sem método, enquanto a cartesiana é sistemtica.®
Felipe : Quem disse isso parece nao ter atentado para o fato de que Sexto
Empirico divide seus argumentos em gerais e particulares e, no que diz
respeito a esses tiltimos, também procede sempre de forma organizada. Assim
como Descartes pretende destruir todas as opiniées recebiclas por meio de
tuma critica dos seus fundamentos, também Sexto Empirico aludia a idéia de
um ataque aos pontos centrais que sustentam os dogmas nas diversas
cigncias. Sexto criticava primeiramente as nogées de critério e de prova
Porque essas nogdes permeavam todas as divisoes da filosofia no discerni-
mento da verdade. A « légica », que trata do critério e da prova, constituia-se
no ponto de partida da filosofia justamente porque a suspensio do juizo sobre
essas nogbes lancava duividas sobre as demais.” E mesmo na argumentagao
detalhada, Sexto reconhecia que era imposssivel refutar todas as opinides,
uma a uma, e devia por isso proceder de modo metédico e completo; ou,
como diz alhures, empregando 0 mesmo vocabulério que Descartes, deve
atacar os principios, cuja destruicéo envolverd a destruicéo das opinides que
sobre ele se apdiam *
Eduardo : Pode-se pretender, ainda assim, como o faz M. Williams, que a
prolixidade de Sexto é mais significativa do que parece & primeira vista. O
Por ex in Agostinho CA, VI, 16 e VIM 17
Porex in Montaigne ARS, p. 502: « De modo que a profissfo dos pirtdnicos € a de abalar,
duvidare investigar»
GEM. Williams (1988), pp. 556-557.
Sento Empirico, HP I, 13; AM VIL, 24
Sexto Empitico, HP 23; AM I 18,78 Plinio Junqueira Smith
pirronismo, sendo antes de tudo uma pratica, evita basear seu ceticismo em
consideracdes epistemologicas gerais, obrigando-se sempre a recorrer a
argumentacSes particulares. O ceticismo moderno, porém, teria um compro-
miso com uma imagem fundamentacionista do conhecimento que o obriga-
ria a organizar-se em tomo de questdes particulares, como a da existéncia do
mundo externo, a da existéncia de outras mentes e o problema da inducao.
Segundo essa visio, a diferenca entre ceticismo grego e ceticismo moderno
ado seria mais de grau, onde o ultimo seria mais radical do que o primeiro,
mas « eles seriam estritamente incomensuraveis. »? Assim, 0 ceticismo mo-
demo pode permitir-se propor argumentos gerais sobre determinadas ques-
tdes levantando problemas especificos capazes de serem resolvidos
independentemente dos demais. O pirronismo, ao contrario, seria uma teagio
ao dogmatismo e apenas oporia argumentos positivos e negativos de modo
a neutralizé-los; além disso, suas preocupacées epistemol6gicas seriam ape-
nas de cardter formal, como, por exemplo, os Modos da circularidade,
regresso a0 infinito e hipétese.
Felipe : Ainda que a comparagdo entre ceticismo pirrénico e moderno
proposta por essa visio possa ser essencialmente correta, ndo me parece que
se siga a concluséo de que séo duas formas incomensuréveis de ceticismo.
Em primeiro lugar, como o proprio M. Williams nota (creio que nesse mesmo
artigo ao qual vocé se referiu), 0s Modos pirrénicos tém caréter epistemolé-
gico e é preciso explicar como eles podem ter um lugar de destaque numa
argumentagio que privilegia a discussao pormenorizada. Qualquer que seja
essa explicagdo, € um fato que 0s pirrénicos também se esforcaram por
oferecer argumentos cada vez mais gerais: ap6s os dez Modos de Enesidemo,
Agripa formulou seus cinco Modos, que foram reformulados posteriormente
em apenas dois Modos, por autor desconhecido para nés (¢ 0s dez Modos
néo tém caréter formal, como alega Williams). Por que nao poderia a hipétese
do Génio Maligno ser constitufda num tinico Modo ? O pirrénico certamente
‘ao julgaria esse argumento como definitivo e continuaria a argumentar nos
‘minimos detalhes, mas poderia aceité-lo como um argumento geral a mais
que cumpre uma determinada finalidade.
Eduardo : Nao se deve esquecer, por outro lado, que a concluséo do
argumento cartesiano é uma tese epistemolégica negativa e nao a suspensio
do juizo : Descartes supde que nio tem maos, olhos etc." Esse ponto nao é
de menor importincia, pois sendo o ceticismo cartesiano um pessimismo
epistemolégico, segue-se que ele é incompativel com 0 pirronismo e se
assemelha ao ceticismo académico tal como interpretado por Sexto, ou seja,
6 um dogmatismo negative.
Felipe : Permita-me, mais uma vez, discordar de sua opiniao. Com efeito,
9M. Williams (1988), p. 586
10 Como parece pretender M, Williams (988), p. 573-574.0 Ceticismo e a Ditoida Cartesiana 79
Descartes leva em consideragio, na primeira Meditagio, dois aspectos diferen-
tes e fundamentais para o seu propésito : por um lado, temos as razdes
filos6ficas para duvidar de nossas crengas prévias e, por outro, temos as
motivagdes psicologicas para abandoné-las. No que diz respeito ao aspecto
filos6fico, Descartes nao precisa mostrar a falsidade das opinies, o que talvez
seja impossivel, mas apenas que sio dubitéveis e, no que diz respeito a0
aspecto psicolégico, reconhece ser necesséria uma séria aplicagao para erra-
dicé-las de seu espitito. Nao nos diz outra coisa a transformacéo do argu-
mento do Deus Enganador, razio mais que suficiente para duvidar das
matematicas e das coisas simples, em argumento do Génio Maligno, trans-
formacdo essa que permite contrabalancar nossa tendéncia habitual em crer
no que é familiar e provavel."” Do ponto de vista estritamente racional, 0
primeiro argumento:nos conduz a suspensio do jufzo, mas como o homem
nao é 6 um ser racional, possuindo também habitos e tendéncias naturais, é
preciso reformulé-lo de modo a efetivamente alcangar, por meio da suposic’o
da falsidade das crencas, a suspensio do juizo.
Oscar : Declaro-me satisfeito com relacio a esse ponto e creio que Eduardo
também, restando-nos finalmente examinar a universalidade da diwvida carte-
siana. Vocé certamente nao ignora a interpretacao tradicional de que Descar-
tes radicalizou o ceticismo ao formular o argumento do Deus enganador e a0
levantar a hipétese do Génio Maligno, estendendo o questionamento do
ceticismo grego. # 0 que se lé, por exemplo, na coniversacio de Descartes com
Burman : « Aqui o autor toma o homem tdo incerto e o joga em diividas tio
grandes quanto pode; € por isso que ele nao objeta s6 0 que os céticos tém 0
costume de objetar, mas também tudo o que se pode objetar, para chegar a
destruir assim absolutamente todas as diividas. £ com esse fim que ele
introduz. aqui 0 Génio Maligno »22 Segundo essa opiniéo, ainda que'as
ilusdes dos sentidos e 05 argumentos do sonho e da loucura tenham sido
considerados pelos eéticos gregos, estes nao foram capazes de chegar a uma
diivida tao geral e devastadora quanto aquela que se baseia na idéia de uma
divindade enganadora. Uma vez que o cogito é, por assim dizer, arrancado
dessa idéia, poder-se-ia sustentar que essa inovagao argumentativa de Des-
cartes € condigao de possibilidade do seu mentalismo. E, por isso mesmo, 0
Pirronismo ndo teria sido capaz de enxergar a existéncia da coisa pensante.
Marta : A sugestdo de que a inovacao cartesiana consiste num argumento
jamais pensado pelos céticos.cai por terra tao logo lemos os Académicos de
Cicero, em que a idéia de que os deuses podem nos enganar esta presente."
‘Um dos argumentos dos céticos académicos contra os estdicos ¢ 0 de que os
deuses nos enviam mensagens pelos oréculos e pelos sonhos e essas mensa-
11. Descartes MM, pp. 271-272
12. Deseartes CB, p 1356,
13 Cicero, Aci,80 Plinio Junqueira Smith
«gens podem conter equivocos. A idéia nuclear é a de que os deuses podem
criar representagdes falsas to semelhantes as verdadeiras que nao podemos
distingui-las e, portanto, no podemos estar seguros de que nossas repre-
sentagdes verossimeis sejam verdadeiras, jé que podem provir de « objetos
ndo-existentes ». A originalidade de Descartes, portanto, no esta nos pré-
rios argumentos.
Oscar : Eu jé esperava que Marta, com sua erudigao habitual, rejeitasse
prontamente aquela sugestao. No entanto, essa consideracao nao faz senao
deslocar o problema para o seu devido lugar. Burnyeat reconhece que os
académicos jé consideraram a possibilidade de um deus enganados, mas
apenas no caso de algumas percepgées, ¢ jamais generalizam o argumento a
onto de considerarem que pudéssemos ser enganados em todas as nossas,
percepcées.'# No seu entender, s6.a generalizagao cartesiana permitiria incluir
© proprio corpo como objeto de duivida. Uma segunda sugestio 6, pois, a de
que @ originalidade de Descartes esta na extensio dos argumentos, jé que a
diivida cartesiana pOe em xeque a existéncia do proprio corpo e nenhum
eg0, inclusive Sexto Empirico, teria pensado em duvidar dessa existéncia,
no alcance dos argumentos que radicaria a diferenca entre a diivida
cartesiana e 0 questionamento cético : a inclusio do préprio corpo como
objeto de duivida nao teria sido considerada pelos pirrdnicos, nem pelos
académicos, porque, dada a sua intencéo de agir e viver no mundo, nao faria
sentido um tal questionamento. Descartes, tendo em vista um projeto de
investigagao pura, desligado de toda e qualquer consideracio pratica, abre a
possibilidade de recusar a existéncia do proprio corpo, resultando dai a
ossibilidade de conceber um sujeito sem corpo, como puro pensamento
incorp6reo. Um argumento adicional seria lembrar que os céticos ndo ques-
tionaram o mundo externo tal como o fez a filosofia moderna, pois « externo »
(ckiés) em Sexto Empirico é sempre externo ao corpo e nao externo a mente,
de forma que o recorte conceitual feito pelos ceticismos grego e moderno é
diferente."
Felipe : Essa interpretacéo, contudo, ndo resiste a uma anélise dos textos
de Sexto Empirico. Pois, em primeiro lugar, existe uma passagem de Sexto
«em que o proprio corpo é mencionado como objeto de drivida. « Assim, nossa
propria cor é vista diferente no ar quente de como 0 € no ar frio, e nés nao
serfamos capazes de dizer qual & por natureza nossa cor, mas apenas como
se observa em conjungio com cada uma dessas condicdes.’* E, em segundo
lugar, o questionamento cético a respeito da nogao de corpo e das demais
nogGes aela associadas é tal que nao parece possivel sustentar quea existéncia
do’ mew corpo constitua ou possa constituir uma excegéo. Com efeito,
14 Burnyeat (1982), pp. 9637
15. Essa ¢ esumidamente a opiniso de Burnyeat (982, pp. 32-40).
16 Sexto Empirico, HP 1,1250 Ceticismo e a Diivida Cartesiana a1
encontramos em Sexto uma discussdo sobre a apreensibilidade do corpo,
sobre a sua suposta tridimensionalidade ou solidez e sobre seu estatuto
sensivel ou inteligivel” Assim sendo, nao resta ao cético senio a possibili-
dade de suspender o juizo em relacio a existéncia dos elementos corpéreos.
E, ao lermos a discussio da fisica feita por Sexto, nao é outra a conclusao que
podemos tirar, uma vez que as nogdes de espaco, de movimento, de tempo,
de geracéo e corrupgio, de aumento e diminuigéo, de mudanga fisica e de
repouso so todas elas objetos de investigacao e suspensio do juizo por parte
do cético."* £, portanto, bastante estranho que se possa sustentar a existencia
do préprio corpo sem que se possa dizer que ele esta no espaco ou no tempo,
que ele se possa mover, estar em repouso ou crescer, ete. Ora, tudo isso leva
naturalmente & suposigao de que também o proprio corpo 6 objeto de
questionamento por parte do ceticismo. A finalidade pratica proposta pelo
cético para si mesmo, em oposigdo ao projeto de investigagio pura de
Descartes, nao faz com que o alcance de seus argumentos seja mais limitado
e acabe por excluir da diivida o préprio corpo. A meu ver, a oposicao mesma
entre um ceticismo pratico (pirrOnico) e um teérico (cartesiano) € question’-
vel, pois se pode dizer que a prépria divisdo pirronica entre um critério
pratico (o fendmeno) e um critério tedrico (a respeito do qual se suspende o
juizo) j4 aponta para a idéia de uma investigagao pura.”
Marta : Talvez. seja de algum interesse para a nossa discussio uma nota
historica. A generalizagdo da duivida cética pode ter origem na filosofia
medieval. Frede sugere que, para entendermos algumas diferencas entre 0
ceticismo grego e 0 moderno, é preciso lembrar as doutrinas famosas de
Ockham sobre os conhecimentos e sobre a onipoténcia divina e 0 uso dela
feito por Nicolau de Autrecourt. Para Ockham, nossos conhecimentos so
entidades e se distinguem dos objetos reais dos quais provém e, dada a
onipoténcia divina que permite a destruigio de qualquer uma de duas
entidades distintas, Deus poderia preservar em nés um conhecimento a0
mesmo tempo em que aniquilaria o objeto conhecido. Ockham, contudo,
considerou que os conhecimentos intuitivos eam garantias de um julgamen-
to certo. Segundo Frede.”” Nicolau de Autrecourt teria generalizado essa
possibilidade para todos os conhecimentos de modo que seria possivel
termos todos os conhecimentos que temos sem que nenhum objeto existisse
eem um trecho de uma carta, bastante significativo para nossos propésitos,
ele afirma : « por meio de um conhecimento natural, foda conscigncia que
17, Sexto Empirico, HP 10, 38.55 (para # apreensibilidade do corpo), 40-44 (para a suposta
{¥idimensionalidade), 45-46 (para a solidez)e 47-49 (para o estatuto sensivel ou inteligivel.
18 Sexto Empirico, AM X, 636 e HP II, 119-135 (espago); AM X, 37-168 e HP Ill 63-81
(movimento); AM X, 169-247 e HP I, 136-150 (tempo); AM X, 310-951 e HP Ill 109-114
(geracto ecorrupeio); HPI, 82-84 (aumento e diminuigSo); HPI, 102-108 (avudanga fisca)
HP Il, 115-118 (repouso),
19. Sexo Empfrico, HPI, 21-22; HP 1,14; AM VI, 29-30,
20 Prede (98), p. 27482 Plinio Junqueira Smith
tivermos da existéncia de objetos fora de nossa mente pode ser falsa ».2! Marion
faz sugestao semelhante ao discutir o argumento do Deus enganador e a
divida cartesiana sobre o fundamento da ciéncia. A idéia de um Deus
todo-poderoso que pode produzir em nés conhecimentos intuitivos sem que
8 objetos correspondentes,existam & uma idéia que Descartes vai buscar
numa « velha opinigo », que Marion identifica como sendo a dos nominalis-
‘as, em particular a de Ockham. A evidéncia da existéncia da coisa seria uma
res absoluta e se distinguiria de toda outra res absoluta, de modo que Deus
poderia, em virtude de sua onipoténcia, que Ihe permite produzir imediata-
‘mente aquilo que naturalmente se produz de acordo com causas segundas,
criar em nés 0 conhecimento intuitivo de alguma coisa independentemente
da existéncia da coisa.” Por aproximar o argumento ockhamista da diivida
sobre as naturezas simples e sobre as verdades matematicas, Marion parece
atribuir ao pensamento de Ockham aquela generalidade que Frede s6 atribui
a0 de Nicolau de Autrecourt. De qualquer maneira, se essas indicagées
hist6ricas esto corretas, a diivida universal sobre a existéncia dos corpos fora
da consciéncia nao pode ter patente requerida por Descartes.
Oscar : Creio que nossa investigacio pura deve se interromper e ceder 0
asso para a moral proviséria, caso nao queiramos dar razao aquele velho
argumento est6ico e humano. Em suma, estou com fome. Por que néo
entramos para comer um atum com maionese e tomar uma caipirinha ?
Marta : Eu acho uma boa idéia.
Felipe : Ja tomamos muito sol. Vou dar um mergulho e ja entro.
3. Oscar : Novamente de pé cedo, Eduardo ! Isso jé esté se tornando um
habito...
Eduardo : Fui deitar com algumas preocupacées e, pela: manha, estive
pensando nelas. O resultado de minhas reflexdes foi o seguinte. Examinamos,
até aqui, as possiveis vantagens ou acréscimos trazidos pela diivida cartesia-
na em relagdo ao questionamento pirrdnico e verificamos que, apesar das
diferencas existentes, nenhuma delas leva a supor uma doutrina incompativel
‘ou mesmo radicalmente diferente da pirrénica. No entanto, nao sera a diwvida
cartesiana, ao contrério, uma versio enfraquecida do pirronismo ? Nao teria
ela ficado aquém de uma suspenséo universal do juizo ? Devemos investigar
também se ha deficiéncias, — e nao vantagens, — na dtivida cartesiana, que
estariam ausentes no questionamento pirronico. Pareceu-me que o tema de
nossa discusséo de hoje deveria ser 0 possivel enfraquecimento da posigio
pirronica.
21. Nicolau de Autrecourt (967), p. 657; grifos meus.
22 Marion (881), pp. 231-333, Na nota, Marion se refere a F. Hochsttter (Studien zur Metaphysik
tun Erkenntnisiehre Wilhems von Ockham, pp. 19.¢57), que ja tera feito a aproximagao entre
(Ockham e Descartes.O Ceticismo e a Diiv
Cartesiana 83
Oscar : Se ninguém se opuser, posso comecar expondo uma opiniao que
sempre me pareceu bastante interessante. Pretendeu-se que por tras do « eu »
que duvida ao longo de toda a primeira Meditacio, 0 cogito j4 estivesse
escondido, como uma carta na manga do casaco. Indicio desse pressuposto
inconfesso é 0 de que a argumentacao cartesiana pée em diivida a existéncia
do mundo, mas nao investiga o que é o homem. Ora, 0 pirronismo grego teria
questionado tanto a nogao de corpo, quanto a de homem, suspendendo 0
juizo a respeito de ambas as questdes. « £ 0 pressuposto da ‘mente’ que
engendra 0 ceticismo sobre 0 mundo, assim como é a substancializagio da
‘mente’ que abre caminho para a superagio e rejeicao do mundo, restabele
cendo nossas certezas ‘dogmaticas’. E oportuno, porém, lembrar que esse
expediente estava ao alcance de Descartes tio somente porque ~ e malgrado
as aparéncias em contrério — o ceticismo da primeira Meditacdo foi, de fato,
muito menos radical que o ceticismo grego. Pois a epaché de Sexto Empitico
era absolutamente universal : ela incidia sobre todas e quaisquer opinides
doutrinas, as dos filésofos e as dos homens comuns; em particular, ela dizia
também respeito as controvérsias sobre a existéncia da alma, sobre a exist
cia e a natureza do 'intelecto, sobre o poder do intelecto de apreender-se a si
préprio, sobre sua capacidade de apreenséo dos objetos. Descartes efetuow,
em verdade; uma discriminacao seletiva entre os argumentos céticos, ele em
nenhum momento utilizou — nem mesmo examinou ou discuti — aqueles
argumentos céticos que deveriam levé-lo & suspensio de juizo sobre os
t6picos fundamentais e as certezas basicas sobre 0s quais se edificaria a sua
filosofia. Somente em aparéncia, portanto, Descartes exacerbou a diivida
cética até 0 seu extremo limite » 9
Felipe : Embora certamente interessante, devo discordar dessa opinio,
pois, na primeira Meditagao, o « eu » que duvida é ainda um « eu » empirico
que, a certa altura de sua vida, resolveu fazer uma revisio de seus conheci-
rmentos. f um « eu » que teve inféncia, na qual recebeu uma série de opinies,
6 um « eu» que esta maduro para empreender uma critica ferrenha daquilo
que na infancia tomou por verdadeiro; é um « eu » que procurou a solidao
a tranqiiilidade para se dedicar com maior afinco a esse émpreendimento; €
um « eu » que senta ao pé de uma lareira para aquecer-se e dorme nu a noite
debaixo de seu cobertor; é um « eu » que ainda dispora de tempo para
promover a ciéncia que pretende fundamentar de maneira definitiva e
absoluta. S6 apés a descoberta do cogito e de um mundo interior é que se
23. Cf Porchat (1987), item V; levemente alterado para se adequar ao presente dislogo. f preciso
acrescentar que Porchat no mais atribui ao ceticismo pierOnico uma filosofia da mente,
‘mesmo que em germe. Williams (988, p. 585) reconhece que no hé no pirronismo um
‘mundo interior a partir do qual se possa problematizar um mundo exterior, sustentando
ue, para Sexto, o homem é sempre tm ser vivo e néo uma mente desencarmada, Minha
Intenso ¢ mostrar que também o ceticismo cartesiano pode ser interpetado sem pressupor
‘omentalisme,84 Plinio Junqueira Smith
poderd falar propriamente da questio da existéncia de um mundo exterior.
Antes do cogito, tratava-se ainda da existéncia do mundo, simplesmente ¢
sem uma determinacio ou qualificagao.
Oscar : Poder-se-ia dizer que Descartes emprega a expressio « coisas
exteriores » na primeira Meditaglo™ e que isso seria um indicio de que 0
recorte entre mente e corpo jé est implicito nela.
Felipe : Esse argumento, porém, peca por nao atentar ao contexto da
expressio, pois por « coisas exteriores » Descartes se refere claramente a5
coisas externas a0 nosso corpo e nao a nossa mente. Por « coisas exteriores »,
ele entende o sol, a terra, as cores, as figuras, os sons, etc. que vemos. Aseguir,
continuando a sua enumeragdo das coisas de que pretende duvidar, ele inclui
© seu préprio corpo, isto é, suas maos, cabeca e olhos, com os quais vé as
«coisas exteriores ».
Oscar : De qualquer modo, a diivida cética incide sobre os corpos e nao se
mencionam os espiritos.
Felipe : Ao contrério, Descartes abribui ao ceticismo da primeira Meditacao
uma diivida sobre a existéncia de espiritos quando afirma ter se persuadido
de que nao havia « nada no mundo, que nao havia nenhum céu, nenhuma
terra, espiritos alguns, corpos alguns ».# Embora essa passagem nao se refira
explicitamente a0 meu espirito e, pela continuagao do raciocinio, o meu
espirito esteja excluido dela (pois resistira 4 dtivida hiperblica), torna-se
manifesto que, pelo menos indiretamente, os espiritos em geral foram objeto
de duivida.
E é preciso notar que, ap6s a descoberta de que uma tinica existéncia, a
minha, escapa diivida do Génio Maligno, Descartes investiga que tipo de
existéncia € essa, isto é © que é o homem. Num primeiro momento,
retomando a definicéo aristotélica, se pergunta se o homem é um animal
racional e, depois, se a nocéo comum do homem, como tendo corpo e alma,
€ satisfat6ria. Como todos sabem, ambas as opinides so recusadas e apenas
© puro pensamento é aceito como um atributo que me pertence necessaria-
mente. Seria de se estranhar que a diivida universal, que atinge até a
evidéncia intrinseca das intuiges simples das mateméticas, deixasse de
abranger nossa concepcdo de homem. A diivida cartesiana, embora nao seja
‘mais radical e universal do que 0 questionamento pirrénico, também nao
constitui um empobrecimento desse.
Oscar : Se 0 que vocé diz é verdade, entdo 0 « eu » da primeira Meditagao
é um « eu » que supde no ter um corpo e, pelo menos de modo confuso, nao
ter uma alma. Mas que « eu » desencarnado e desalmado pode ser esse ?
Felipe : Para entender esse ponto € preciso ter em mente duas coisas. A
primeira é que a conclusao dos argumentos céticos é a susperisio do juizo e
24 Cf. Descartes, MM, p.272.
25 Descartes, MM, p. 27; grifo meu.O Ceticismo ¢ a Ditvida Cartesiana 85
a segunda € que Descartes distingue cuidadosamente entre a percepgio.¢ 0
juizo* O « eu », portanto, nao poderia ser aquele que 0s juizos afirmam,
aquele que as teorias filos6ficas e a opiniao comum postulam; restaria como
tinica possibilidade que esse « eu » fosse apenas objeto da percepcio, isto 6,
uum « eu » puramente fenoménico. Mas esse « eu fenoménico » seria uma
ilusdo cética, visto que a minha alma escaparé ao argumento do Génio
Maligno e me permitiré falar de uma coisa pensante.
Oscar : Ainda nao consigo entender exatamente o seu propésito. Parece-
me que vocé est atribuindo coisas demais ao ceticismo cartesiano : a0
atribuir uma davida sobre os espiritos e também uma diivida confusa sobre
© meu espirito, vocé me parece ser levado a supor um « eu » fenoménico nao
explicitado no texto cartesiano e que ninguém jamais teria detectado.
Felipe : A dificuldade dese ponto repousa no fato de que o ceticismo
cartesiano nao é uma posigéo completamente elaborada. Descartes nio esta
preocupado com uma exposicio minuciosa do ceticismo porque é uma etapa
a ser superada em sua filosofia. A razo pela qual o ceticismo € superado é a
de que ele é inconsistente, isto é, engendra a sua prépria superagao. Minha
interpretasio visa dar consisténcia ao ceticismo cartesiano a partir de seus
Préprios elementos € no se preocupa com a interpretacio oferecida por
Descartes na segunda Meditacio, De acordo com esta interpretacao, a minha
alma néo pode ser objeto de diivida; mas, de acordo com os elementos
oferecidos na primeira Meditagdo, pode-se pensar em um « eu fenoménico ».7
A questao pode ser posta nos seguintes termos : do ponto de vista de
Descartes, a minha existéncia resiste aos argumentos céticos e, entéo, 0 «eu»
tem que ser concebido como uma mente; do ponto de vista cético, os
argumentos céticos atingem plenamente as teorias sobre o « eu », obrigando-
nos a concebé-lo como um sujeito fenoménico. Mais adiante, argumentarei
que o cogito é um dogma imposto aos argumentos céticos e nio extraido deles
ou a eles imune.
Eduardo : Temos entio definido o nosso assunto de amanha.
Felipe : Se conseguirmos dar conta do assunto em um sé dia,
Oscar : Resta explicar, para que sua interpretacao fique completa, por que
se péde atribuir & primeira Meditacdo aquilo que de fato pertence & segunda,
por que foi possivel supor com plausibilidade que o cogito jé estava embutido
nas diividas céticas
Felipe : A maneira pela qual Descartes estabelece a existéncia e a ésséncia
do cagito é por meio do « processo de eliminagao », como o chama Gueroult.?*
Esse proceso consiste em eliminar todas as opinides que jé-tinhamos
26 Descartes, MM, p. 281
2 Na medida em que Descartes pretend seguir uma « ordem de razdes », ndo me parece
‘nadequaclo fazer uma letura da primeira Meditate come esbogo de uma posicae autanoma,
independente das demais Meditate,
28 Gueroult (1968), p55.86 Plinio Junqueira Smith
anteriormente e ver se alguma delas resiste & diivida cética. Nesse sentido, a
opinido de que somos uma alma ou uma mente j estava presente na primeira
Meditaio, mas nao como uma opinido privilegiada, pressuposta pela propria
maneira de Descartes problematizar a existéncia do mundo, mas como uma
opinido entre outras, como uma opinigo ensinada pela natureza, mas que
ainda carecia de fundamento, de indubitabilidade e mesmo de clareza. Uma
vez tendo resistido ao ataque do Génio Maligno, esse « eu » que se revela na
segunda Meditacio pode ser retrospectivamente projetado na primeira; mas
isso nao implica que 0 « eu » tenha sido sempre identificado com uma coisa
pensante. Descartes ndo parece ser criticavel por cometer uma peticio de
principio.
Oscar : Por ora, aceito sua interpretagio. Passo a Eduardo a obrigagao de
apresentar uma outra posigdo para que vocé a examine.
Eduardo : De um outro ponto de vista poder-se-ia pretender que a diwvida
cartesiana é mais limitada do que a pirronica. Enquanto 0 cético pirrdni
questiona tanto as crengas baseadas nos sentidos e na razio, 0 cético
cartesiano duvidaria apenas daquelas crencas aprendidas « dos sentidos ou
pelos sentidos ».2° lo essa interpreta¢do, sustentada por Frankfurt, as
‘matemiéticas seriam consideradas da perspectiva do homem comum, isto é,
no como abstratas e separadas da matéria e de seus casos particulares, mas
de modo confuso e empiric : « nada discutido na primeira Meditagto é
tomado como sendo clara e distintamente percebido. »*" Correspondente-
mente, as coisas mais simples e gerais, que escapam ao argumento do sonho,
sio interpretadas como « objetos sensiveis materiais e nao-imaginérios »,"2 ¢
iio como idéias apreendidas pela razdo. A distingao entre simples e comple-
xo, embora possa ser aceita mais adiante por Descartes, é entendida, na
primeira Meditagio, apenas como um esforgo de Descartes na defesa do ponto
de vista empirista do homem de senso comum.” E a apreensio que o homem
comum tem « dos objetos da razdo € invariavelmente misturada com a
percepcao sensivel. »™
29. Descartes em MM, p.277 reconhece, com efeito, que jamais inha pensado claramente sobre
‘0 que éa alma e pretende agora dar uma nova e mais precisa defnicio de rard0.
30 Descartes, MM, p 268. interpretacao de que a davidada primeira Medtagtoatinge apenas
(0s sentidos, e ndo a razdo, encontra-s em Frankfurt (1970), parte 1. Na pagina 61, Frankfurt
diz que « [apesar] das aparéncias em contrarlo, portanto, um erro supor que a primeira
‘Matitagto lida primeiro com erengas sensiveds ¢, entio, apés o argumento do sonho, com
‘rencas de razB0.A faculdade racional como algo distinto dos sentides, nao rectbea atengao
‘explicta da investigagio de Descartes até consideravelmente depots nas Meditagoes » Por
tum lado, essa observagio ¢ trivial, pois 656 na segunda Meditapio que Descartes pretende
‘separarnitidamentea mente do corpo, pela primeira vez na historia da filsofia, como & dito
no comeco das segundas respostas. Por outro lado, & questionsvel a idéia de que as crengas
racionais no sio objeto de consideracio, como sustento logo a seguir.
Frankfurt (1970), p. 68.
Frankfurt (1970), p. 70
‘Frankfurt (1970), p57
eee0 Ceticismo ¢ a Ditvida Cartesiana 87
Felipe : A meu ver, essa interpretacdo da primeira Meditacdo parece reduzir
excessivamente 0 escopo da dtivida cartesiata. O fato de que Descartes
reconhece os sentidos como o principio em que suas opinides se baseiam nao
implica que, ao final de seus argumentos, apenas os sentidos sejam postos
em dtivida, pois o aprofundamento sucessivo dos niveis da duivida pode
Jevar-nos a caminhos antes insuspeitados. O que me parece estar em jogo, em
Liltima instancia, é 0 estatuto dos objetos simples na primeira Meditagao : so
eles objetos sensiveis ou entes de raza0 ? Se sio objetos sensiveis, como quer
Frankfurt, entao a davida esta confinada a esfera do sensivel; se esse nao for
© caso, entio a diivida atinge também os entes de razdo, Ora, a propria
caracterizacao dos objetos simples parece excluir a possibilidade de que sejam
percebidos por nés. A primeira limitacio do argumento do sonho permanece
certamente no nivel sensivel, pois as imagens do sonho seriam compostas por
‘mios, olhos,etc.; mas a continuagao do texto vai além e exemplifica os simples
como sendo a natureza corporal em geral e sua extensao, figura, quantidade
mimero, bem como seu lugar e tempo.®® Podem os sentidos aprender a
natureza corporal em geral ? Tudo o que os sentidos percebem ndo é
necessariamente particular ? Podem os sentidos medir a duracdo das coisas
corporais ? Nao sera preciso 0 entendimento para medir o tempo ? £ 0
mtimero, e no a propria coisa, objeto dos sentidos ? Em suma, seré que
Descartes, mesmo em nome do homem comum, sustentaria que as coisas
mais simples e universais cairiam sob o dominio do sensivel ? Lembremo-nos
de que, para um empirista, nao ha coisas universais, mas apenas particulares
que, enquanto signos de outras coisas particulares que se lhes assemelham,
sto supostas gerais. Mas Descartes se refere a coisas que so elas mesmas
simples e universais, aceitando um grau de abstracao incompativel com uma
doutrina empirista, mesmo uma doutrina empirista grosseira como a do
homem comum. Ainda que os objetos da razo sejam concebidos de modo
confuso e obscuro, isto é, misturados com os sentidos, nao se pode negar que
a dhivida cartesiana se exerce sobre as opiniges racionais.
Marta : Considere, ademais, Eduardo, que, se a dtivida se limitasse aos
sentidos e nao atingisse as idéias da razo, entio nao s6 a existéncia do cogito
enquanto puro pensamento seria uma resposta satisfatéria aos argumentos
céticos, mas também a existéncia de Deus e das verdades matematicas se
revelariam imediatamente indubitdveis e verdadeiras, como € 0 caso em
Malebranche e Agostinho. A falsidade e a possibilidade de duvidar destas
estariam além do alcance do arsenal cético. Mas tal nao 0 caso e nao parece
possivel explicar satisfatoriamente, se todas as idéias claras e distintas S80
indubitaveis, por que s6 0 cogito resiste & arguinentacdo cética da primeira
‘Meditagao, A verdade das mateméticas e da existéncia de Deus s6 podiem ser
34 Frankfurt (1970), p. 63
‘35. Descartes, MM, p. 270.38 Plinio Junqueira Smith
provadas depois que 0 cogito fornece um ponto de apoio para raciocinios
subseqiientes e propicia 0 critério de verdade das idéias claras e distintas.
Felipe : Assim, ao invés de um refinamento progressivo da posigao do
homem comum em defesa dos sentidos, pode-se ver nos sucessivos niveis da
chivida cartesiana um ataque as diferentes faculdades do homem. O argu-
mento da ilusio tem por finalidade o exame dos sentidos; o argumento do
sonho atinge a imaginacao (e meméria); e 0 argumento do Génio Maligno
abala a nossa confianga na razAo. Dessa maneira, a duivida cartesiana passa
em revista todas as nossas faculdades, nao deixando nenhuma delas, pelo
menos em principio, com o seu funcionamento assegurado. Cai por terra,
assim, aquela idéia de que 0 ceticismo cartesiano é mais limitado do que o
pirrdnico porque ndo pée em diivida a razdo e as crencas racionais. Causaria
surpresa ao leitor se uma dtivida que se pretende tio universal como a
cartesiana deixasse de lado as crencas racionais; uma limitagdo tio evidente
‘nko escaparia aos olhos de ninguém e a refutagdo do ceticismo seria presa
facil de objegées e de criticas. Ambas as formas de ceticismo acabam por
examinar e negar que sentidos e razio possam nos conduzir a alguma
verdade absoluta.
Oscar Nao, obrigado, nao queremos comprar redes.
Marta : Nao, também nao quero comprar uma canga.
Oscar : Como esses vendedores séo chatos ! Nao véem que queremos ficar
tranqiilos, conversando ?
Felipe : Creio que ¢ hora de aproveitarmos essa interrupcio, desfrutarmos
das vantagens que a praia oferece e darmos um mergulho.
Eduardo : Vocé esta batendo em retirada ?
Felipe : Néo, apenas usando a estratégia cartesiana de tratar de um assunto
por dia.
4, Oscar : Que azar ! © tempo virou.
Eduardo : Pelo menos a chuva néo esté forte e da para ficar deitado na
rede.
‘Marta : Jé vou avisando que hoje eu nao cozinho.
Eduardo : Entao jantaremos pizza pronta.
Oscar : Nada como uma rede ! Se bem me lembro, Felipe, parece que vocé
esta em apuros, pois toda a anélise dos dias precedentes leva a crer que
Descartes efetivamente refutou o ceticismo e que devemos aceitar a existéncia
de uma res cogitans. Desde o principio, quando voc expos a sua estratégia,
pareceu-me que o feitico poderia voltar contra o feiticeiro, De que maneira
voce pretende sair dessa enrascada ?
Felipe : Talvez nao seja tdo dificil quanto parece & primeira vista. Podemos
indagar se, de fato, investigamos a questao sob todos os seus Angulos; isto é,
ao invés de abordarmos a duivida cartesiana pelas suas caracteristicas,O Ceticismo e a Diivida Cartesiana 89
devemos abordé-la sob outro prisma. Neste sentido, uma revisdo dos trés
niveis da diivida e de suas relagdes impée-se. Deixe-me retomar, com essa
finalidade, alguns pontos bastante conhecidos da primeira Meditagao.
Faz parte da estratégia de Descartes que um nivel da diivida seja mais
profundo do que o outro. A idéia motriz da primeira Meditagao é a de que os
argumentos céticos encontram limites a partir dos quais certas opiniées so
tidas como indubitéveis. Como se pode aprofundar sucessivamente o nivel
das diividas, em virtude da propria natureza dos argumentos céticos, até
alcangarmos 0 argumento cético mais geral e mais devastador, podemos
descobrir uma certeza primeira que resiste ao ataque cético como um todo.
Descartes reconhece que a introducao do argumento do Génio Maligno tem
em vista precisamente esse fim." O alvo da critica proposta é a idéia de que
se pode atribuir limites fixos aos argumentos céticos e de que eles se deixam
organizar em fungao de sua abrangéncia, Procurarei mostrar que, conforme
se formulam diferentemente os argumentos, suas relagées muituas e seus
limites adquirirao outros contornos, vale dizer, o aprofundamento progressi-
vo dos argumentos e a evidéncia do cogito serao postos em xeque.
Descartes pretende que 0 argumento da ilusio dos sentidos tem alcance
muito curto, pois podemos facilmente distinguir entre condigdes favoraveis
de percepgio e condigdes desfavoraveis, sendo que as ilus6es ocorreriam
apenas nessas tiltimas condigdes. A existéncia de um critério para distinguir
ilusdes de percepcdes, que nado ¢ ele préprio ilusério, limitaria o argumento
da ilusio dos sentidos. Ora, é precisamente dessa limitacéo que se acha livre
‘0 argumento do soniho, pois aqui todo critério de verdade também poderia
estar sendo sonhado. Assim, o argumento do sonho permitiria langar uma
duivida geral sobre as percepcoes, 0 que o argumento da ilusio nao consegui-
ria, E freqiientemente notado, ademais, que Descartes passa muito rapido
pelo argumento da loucura. Uma das explicagdes mais plausiveis é a de que,
por estar discutindo com o homem comum principiante na filosofia, ele nio
pode (e nao precisa) usar um argumento que se baseia em experiéncias
particulares e ndo gerais, como 0 sonho. A prépria ilusao foi descartada por
motivo semelhante : podemos distinguir cortdigdes ideais de percepcio'e,
agora, podemos distinguir condicées ideais de entendimento. Distinguimos
a ilusio da percepcéo normal, assim como distinguimos 0 louco do homem
sao.
Eduardo: Nao te parece, porém, que os argumentos da ilusio dos sentidos
€ da loucura sio menos gerais do que 0 do sonho ? De minha parte, jamais
vi problemas nessa formulacao cartesiana. Como vocé bem sabe, minha
objegdo ¢ a de que uma duivida universal é carente de sentido.
Felipe : Para examinar cuidadosamente essa sua objecio, precisariamos,
creio, de um outro feriado na praia; por ora, eu me limitaria a dizer que,
36 Ver, mais acima, citagio da conversa de Descartes com Burman, 6.90 Plinio Jungueira Smith
menos do que uma objecdo a Descartes, vocé apenas confirma o que ele diz,
pois toda a argumentacéo de Descartes procura mostrar que uma divida
universal é impossivel; mas, com relagdo sua pergunta, posso dar uma
resposta imediata : depende da maneira como os construimos. Se entender-
mos que o argumento da ilusdo dos sentidos tem por finalidade estabelecer
que temos percepcdes conflitantes e que, para escolher entre elas, no
dispomos de um critério neutro, entdo nao hé por que recusar-Ihe a generali-
dade do argumento do sonho. O que a ilusdo mostraria é que as relagdes entre
© homem e 0 objeto interferem no modo pelo qual este ultimo aparece. Entre
essas relacées, esto as posigdes, as distancias e as localizagbes ¢, entre os
exemplos de Sexto, esté 0 da torre que, de longe, aparece redonda e, de perto,
quadrada,” citado por Descartes em sua sexta Meditagio.¥ Como todos os
objetos si percebidos em algumas dessas condigées que produzem uma
alteracio perceptual, segue-se que toda escolha sera parcial, porque aquele
que escolhe sera parte do conflito e, portanto, deve suspender o juizo sobre
qual percepcéo corresponde ao objeto real. Para mostrar a impossibilidade
dessa escolha, Sexto usa 0 argumento de que ninguém seré digno de crédito
‘em sua escolha se nao oferecer provas e, se fornecer provas em apoio de sua
escolha, cairé numa regressio ao infinito, pois se pedirao novas provas para
as premissas usadas em suas provas e assim por diante. Ora, se o argumento
dailusio dos sentidos nos leva a suspensio do juizo sobre todas as qualidades
sensiveis e se nossa apreensio do mundo exterior se faz basicamente por meio
delas, entdo se segue que nada podemos dizer a respeito desse mundo
exterior. E, portanto, o argumento da ilusio adquire um alcance tio grande
quanto 0 do sonho.
Eduardo, E quanto ao argumento da loucura ?
Felipe : Exatamente 0 inesmo pode ser dito para o argumento da loucura,
uma vez que loucura e sanidade sao estados do sujeito na sua apreensio do
mundo. Ora, néo se pode julgar e desqualificar as percepgdes de um estado
a partir do outro e vice-versa, pois nao seriamos um juiz imparcial. As
percepgées da loucura sao reais para o louco e irreais para o homem sadio,
assim como as percepcdes do homem sadio sdo irreais para o louco.” Se assim
é, 0 argumento da loucura pode questionar toda a nossa apreensio da
realidade exterior, pois toda apreensio sempre se dé ou na loucura ou na
sanidade mental. Curiosamente, 6 nesse ponto preciso que Sexto introduz 0
argumento do sonho, formulando-o de modo igual ao da loucura® Como
Ho podemos julgar as percepgdes do sonho a partir da vigilia, nem as da
vigilia a partir do sonho, pois estariamos julgando parcialmente, e como toda
apreensio dos objetos se dé nesse ou naquele estado, segue-se que podemos
2 Stoke sn
3 Soars
een i
SZSEbe oyO Ceticismo e a Diivida Cartesiana 91
questionar nossa apreensio global do mundo exterior. Assim, vernos que 0
argumento do sonho nao é mais abrangente que o da loucura."!
‘Marta : Vocés jé devem estar cansados de minhas observacies histéricas,
sempre em apoio do que disse Felipe. Mas o que fazer ? Apés anos de estudos
conjuntos, concordamos em muitos pontos. Ainda assim, nao é desproposi-
tado lembrar aqui as reflexes de Agostinho a respeito das diividas dos
académicos. Ao argumento da ilusdo dos sentidos, ele responde que chama
de « mundo a tudo o que, seja o que for, nos sustenta e nos contém; a tudo
isso, digo, que aparece a meus olhos e é percebido por mim com sua terra e
seu céu, ou 0 que parece terra e céu. »? Segundo Agostinho, mesmo que, para
08 sentidos, o falso possa assemethar-se ao verdadeiro, o fato mesmo de que
algo aparece ndo pode ser negado e, portanto, nao se pode duvidar da
existéncia do mundo que aparece. E que responde ele ao argumento do
sonho ? Exatamente a mesma coisa : « Mas dirés : logo, quando dormes,
também existe esse mundo que vés ? Jé 0 disse : chamo de mundo o que se
me oferece, seja o que for. Pois se te agrada chamar de mundo s6 o que véem.
os despertos © os sios, afirma, se te atreves, que os que dormem e os
alucinados nao alucinam e néo dormem nesse mundo. »* O alcance e o limite
dos argumentos da ilusio e do sonho, bem como da loucura, para Agostinho,
sio exatamente os mesmos, a0 contrario do que se da em Descartes.
‘Uma outra passagem atesta essa equivaléncia entre os argumentos. Apés
citar exemplos de ilusdes dos sentidos, como o remo imerso na agua e a torre
vista de longe e de perto, Agostinho diz que nao vé como « um académico
possa refutar quem diz : sei que isso me parece branco; sei que isso deleita
-meus ouvidos; sei que esse odor me agrada; sei que isso tem sabor doce para
‘mim; sei que isso € frio para mim. » Logo a seguir, considera uma objecdo
do académico, a de que no sonho, por exemplo, nao se saboreia nada, ao que
responde da seguinte maneira : « acaso me oponho a ele ? Contudo, aquilo
ainda em sonhos me produziria deleite. Logo, nenhuma imagem falsa pode
confundir minha certeza sobre esse fato. »*° A certeza do aparecer escapa aos
argumentos do sonho e da ilusio.
Notemos que, para Agostinho, essa certeza subjetiva, embora tenha
semelhancas com a doutrina cartesiana, nao é a de uma afeccéo da mente,
‘mas ade um aparecer que se dé para mim, estando assim mais préxima da
perspectiva pirrOnica. Agostinho afirma a certeza daquilo que percebe, sem
fazer dessa percepcao uma representacio mental e sem comentar 0 « para
441 Também Protégoras, segundo a exposicto de Sexto Empgirico (AM VII, 60-6), abolindo o
enitério de verdade, poe lado.a lado os argumentos da loucura e do sonko, com
argumentagio bastante semethante & de Sexto,
“Agostinho, CA I, 11,24
“Agostinho, CA MI 11,25.
‘Agostinho, CA IL 11,26
‘Agostinho, CA I, 11,26 1
SEBS92 Plinio Junqueira Smith
mim » como um « para uma mente ». Ao contrario, na passagem que acabei
de ler, Agostinho refere-se ao mundo do aparecer como algo que « 110s
sustenta e nos contém », © que aponta para a diregio oposta de um mundo
centrado em torno da mente, Além disso, o vocabulério de Agostinho é o de
que « algo aparece », néo empregando a expresso « parece-me que... »,
enquanto esta iiltima expresso valoriza 0 sujeito a quem algo aparece, no
linguajar do aparecer, ressalta-se um mundo que aparece. Kirwan parece
confirmar essa interpretagéo quando diz. que « o participio passado ‘visu’
(diferentemente do nome abstrato grego ‘phantasia’) naturalmente se refere a
tragos ou estados do mundo, néo da mente; e sua derivagao (como a de
‘phantasia’) do verbo comum para ‘parecer’ da pouco encorajamento positivo
para a idéia de um meio representative ou correlato mental de coisas
externas. »# A certeza subjetiva, que chega a ser caracterizada por Agostinho
como uma « scientia »4” nao conduz, como em Descartes, a um mundo
subjetivo ¢ interno a ser explorado. Lembremo-nos ainda de que no mundo
que aparece a Agostinho estio incluidos sonhos e delirios de outras pessoas.
Para além desse dominio do que percebo (e Agostinho usa ‘perceptio’ também
como sinénimo de ‘comprehensio’)# Agostino parece conceder ao académico
que nada podemos saber, pois estabelecer o que é real seria exigir demais.”
Néo 56 as verdades subjetivas servem de resposta aos argumentos da
ilusao, do sonho e da loucura, mas também as verdades necessérias sio
invocadas por Agostinho contra os académicos. Entre essas verdades esto
as disjuntivas, como por exemplo « 0 mundo é uno ou no é uno » ¢ « se ha
muitos mundos, so em ntimero finito ou infinito »,% e as mateméticas, como
por exemplo « se ha um mundo mais seis mundos, ha sete mundos »" Apés
lembrar esses dois tipos de verdade, Agostinho lanca um desafio ao acadé-
mico. « Demonstra-me, pois, que essa conexao ou as disjungdes podem ser
falsas no sonho, na loucura ou na ilusao dos sentidos e, entao, se ao despertar
eu as conservar na meméria, dar-me-ei por vencido. »°? Peco perdao por ter
feito uma exposigao um pouco longa demais, mas a clareza assim o exigia.
Oscar : Nao é preciso se justificar, pois a pertinéncia do que disse é
justificacao mais do que suficiente.
Eduardo : Devo confessar que, para mim, ainda nao esté completamente
claro que relagdes podem ter as reflexdes de Agostinho e mesmo a dos céticos
antigos com a primeira Meditacao de Descartes. Afinal, 0 que nos mostram
essas lembrancas de outros usos histéricos dos argumentos céticos ?
46 Kirwan (980), p. 215.
Agostinho, CAN, 11,26.
(Gf Kirwan (989), p. 213,
Agostinho, CA ML 11,26.
‘Agostinho, CA I, 10, 2
‘Agostinho, CA I, 10, 26.
52 Agostinho, CA Il, 11,26. Essas passagens de Agostinho sugerem que Descartes utilizou 0
Contra os Acaiémicos na elaboracho da primeira Medias.
2B68S© Ceticismo e a Diivida Cartesiana 93
Felipe : Nao é minha intencio, certamente, discutir a validade dos argu-
mentos da ilusdo dos sentidos, da loucura e do sonho, mas apenas mostrar
‘como a hierarquizacao cartesiana dos argumentos e os limites, que, por isso
mesmo, ele Ihes impde, s4o opcdes arbitrdrias que nao se tem por que aceitar.
Em verdade, Descartes define um itinerdrio logico particular que, & luz da
‘comparacio hist6rica, se poderia dizer que mutila as potencialidades légicas
dos argumentos céticos por ele utilizados. E éjustamente por isso que se pode
ter a impressdo, sob outros prismas iluséria, de aprofundamento e radicali-
zagao nos niveis sucessivos da duivida cética. A dramatizagio de niveis
sucessivos e cada vez mais abrangentes é um artificio empregado por
Descartes para sustentar a idéia de que uma tinica certeza resistiré a toda e
qualquer diivida cética. Mas estamos percebendo que essa hierarquizacio das
davidas céticas é uma construcéo particular de Descartes. A consideragao
dessas outras exposigdes dos argumentos céticos é ttil na medida em que
permite ressaltar o grau de liberdade com que Descartes manipula conceitos
argumentos, prescrevendo-Ihes tais ou quais escopos, atribuindo-lhes essas
ou aquelas conclusses.
Eduardo : Creio que comeco a entender que tipo de critica vocé esta
formulando contra Descartes.
Felipe : Passo agora para as relagdes entre os argumentos céticos tradicio-
nais 0 argumento cético acrescentado por Descartes, 0 do Génio Maligno.
Qual a diferenga, para Descartes, entre o argumento do sonho e o do Génio
Maligno ?
Eduardo : Enquanto 0 primeiro atingia apenas a evidéncia de coisas
compostas, deixando intocadas as ciéncias a respeito dos simples, o segundo
colocava em diivida até a racionalidade intrinseca das intuigées dos simples.53
Desse modo, também as matemiticas, ciéncias que lidam com as coisas
simples, acabavam por ter as suas opinides abaladas pela dtivida cética
Felipe : Como vocé bem sabe, Malebranche também fazia uso, em sua
filosofia, do argumento do Génio Maligno. E 0 que diz ele a respeito desse
argumento ?
Eduardo : Por coincidéncia, & justamente Malebranche que estou lendo.
Posso até citar a passagem para vocé : « Se eu supusesse, por exemplo, um
Deus que se divertisse em me seduzir, estou muito persuadido de que ele nio
poderia me persuadir em meus conhecimentos de viséo simples, como
naquele pelo qual conheco que sou, a partir de que penso, ou que 2 vezes 2
sto 4»
Felipe : Ao contrério de Descartes, portanto, Malebranche exclui as mate-
maticas do alcance do Génio Maligno, nao atribuindo a esse argumento
nenhum poderio maior do que o do argumento do sonho. A razio dessa
53. Ver Gueroult (1968), pp. 44-45
54 Malebranche, RV, Vi parte 2, cap. 6, p. 2384 Plinio Junqueira Smith
limitagdo do argumento do Génio Maligno é a de que a percepgio das coisas.
{le visio simples se faz sem o uso da meméria e, mesmo que o queiramos,
wo podemos duvidar das idéias racionais. A percepcao das idéias claras ¢
distintas é uma visdo em Deus ¢, conseqiientemente, nossa visio nao difere
da visio que Deus tem delas. Assim, nenhum Deus poderia enganar-nos a
seu respeito. No entanto, tio logo precisemos da meméria para raciocinar nas
matematicas (ou em qualquer outro raciocinio complexo), torna-se possivel
para o Génio Maligno a introducao de principios falsos, produzindo em nés
raciocinios equivocados. Assim, para assegurar-nos da grande maioria das
conclusdes mateméticas, serd preciso afastar essa diivida radical. O argumen-
to do Génio Maligno encontra ainda um terceiro limite no conhecimento da
existéncia de Deus, além dos que encontra no da minha existéncia e no das
‘mateméticas. Ao contrério de Descartes, que apoiar4 sua primeira prova na
causalidade de uma idéia infinita, Malebranche recorreré a0 argumento
ontolégico. Malebranche introduz essa modificacao, porque nenhum racioci-
nio ¢ indubitével enquanto a hipstese do Génio Maligno nao estiver afastada.
A prova ontol6gica, ao contrario, apbia-se numa visio simples : vé-se que hd
sum Deus to logo se veja 0 infinito, porque a existéncia necessaria esta
encerrada na idéia de infinito.*° O que a posigéo de Malebranche nos mostra
€ que a ligacao entre a suposicao de um Génio Maligno e a desconfianca de
intuigdes simples racionais resulta de uma decisio arbitréria de Descartes.
(Oscar : Parece haver uma dificuldade na argumentagao até agora desen-
volvida, pois vocé mostrou apenas que os argumentos da ilusdo dos sentidos,
da loucura e do sonho podem ter o mesmo alcance e que o argumento do
Génio Maligno pode ter seu escopo reduzido, isto é, todos serviriam para
duvidar da existéncia dos corpos, enquanto a existéncia da mente permane-
ceria intocada. Por isso mesmo, poder-se-ia sustentar que a diivida cética, na
sua versio mais radical ou na versao mais radical que podemos conceber, e
que foi formulada por Descartes, nos conduz diretamente ao cogito ou nio
nos permite duvidar de sua existéncia.
Felipe : O escopo do argumento do Génio Maligno pode ser nao sé
diminuido, mas também aumentado, se quisermos pensé-lo ainda com mais
radicalidade do que o pensou Descartes. Suponhamos, pois, que um Deus
nos engane sistematicamente e que todas as nossas representacdes possam.
ser falsas. Nesse caso, a impressio que tenho agora de que o meu discurso é
articulado, de que aquilo que pensei hé pouco se coaduuna com 0 que penso
ce escrevo agora e de que ha uma logica progressiva entre os meus argumentos
{ilusdo dos sentidos, sonho e Génio Maligno) é também uma representagio
falsa enviada por esse Deus que se diverte ao me enganar. Esse Deus tio
poderoso pode me fazer crer que meu discurso tem sentido e que nele, ao fim
e a0 cabo, estabeleco alguma certeza, quando de fato todas estas palavras nao
55. Malebranche RV, VI parte, eap. 6p. 240.© Ceticismo e a Ditvida Cartesiana 95
Passariam de sons inarticulados e sem sentido, desprovidos de qualquer
contevido, filoséfico ou nao. Uma ver que a loucura é a supressao do sentido,
© argumento do Génio Maligno, se levado as tiltimas conseqiiéncias, termi.
naria por suprimir a minha sanidade mental, uma possibilidade anteriormen-
te rejeitada nas Meditagdes.* Nao é dificil perceber que Descartes nao poderia
aceitar essa formulacéo do argumento do Génio Maligno, pois nenhuma
certeza, nem mesmo a da minha propria existéncia, poderia resultar desse
« discurso delirante ». Também 0 argumento do Génio Maligno, tao radical
fem relagio & existéncia dos corpos, sob outro prisma, aparece com suas
ossibilidades légicas represadas.”
Oscar: Supondo que essa sua formulacio do argumento do Génio Maligno
seja a mais radical possivel (e, no presente momento, no vejo 0 que objetar
a ela), ainda assim resta uma tiltima insatisfacdo e essa discussio sobre 0
Génio Maligno leva-nos diretamente para a questio decisiva : de que modo
seestabelece a existéncia e a esséncia do cogito na filosofia cartesiana ? Podem
‘5 argumentos céticos, vistos.ou nao sob o prisma cartesiano, abalar a
pretensio de Descartes ? O argumento cartesiano € 0 de que a minha
existéncia ndo depende do meu corpo e, portanto, escapa a diivida cética mais
geral: se hé um Génio Maligno que se diverte em me enganar, existe alguém
que é enganado e que sou eu. Assim, enquanto o meu pensamento apreende
a si mesmo e se pensa, independentemente de qualquer atividade ligada ao
corpo (como andar, sentir fome ou imaginar), uma certeza intuitiva e
indubitavel esté estabelecida. E, por isso mesmo, essa existéncia, assegurada
apenas pelo pensamento, néo pode consistir sengo em um puro pensar, pois
todos os meus demais atributos (por dependerem do corpo) estio sob 0
alcance da diivida cética. O que pensar agora desse pensamento que se pensa
asimesmo?
Felipe : Vou insistir no meu estilo histérico de pensar. Uma vez que Marta
[56 Gf Frankfurt (970, pp 81 8, onde amibém se aproxima o argumento do Geno Maligno
com o da loucura.
57 ‘eis de uma radcalizasto do argumento do Génio Maligno 20 ponto de suprimir 0
‘sentido do discursocartesiano me fot sugerida por Porchat sea nase aproxion de we
posivel extensio da consideragio malebrancions, que acima resumi Se6 Geno Maligno
Pde indus me ao erro quando a meméra participa de um raciociio seo significado
fas palavias depende em grande medida da regularidade com goe spo usndes via,
do seu uso no tempe), nada me garanfe que 0 uso atual das Palavras que eteprege &
signifcativ (pois cada ver que a emprego ela pode ter um « significado ferent) ose
axgumento vale para o discirso como ui todo, una vez que € preciso lembra © ue fo
dito antes esaber seh um encadeamentolgico enre as parte do discus er, €eolete
que aqui 0 Génio Maligno pode nos ludibriae, enviando una fala npecosse de
‘oncordinia entre o dscurso presente e o dscutsopassado. Ou ainda se 40 fe verdes
de visto simples escapam ao argumento do Génio Malignoe seo significado das Paliores
‘io € objeto de uma visto simples, entdo esse argumentocompromste tole 9 cectido do
meu discureo, E, conseqientemente, também abolia@ dscuse que instar ne verdades
de visto simpies como vedas indubtives *96 Plinio Junqueira Smith
Jembrou Agostinho, talvez. valha a pena retomar a sua refutacao do ceticismo.
As reflexes de Agostinho a esse respeito tanto confirmam alguns aspectos
do pensamento cartesiano, quanto deixam de confirmar outros. Agostinho
retira a propria existéncia dos argumentos céticos, isto 6, do fato de que me
cengano : si fallor, sum, e, como Descartes, deduz dessa certeza imediata do
pensamento a sua pura espiritualidade.* Alias, o proprio Descartes, em
outros textos,” repete Agostinho e nao menciona © Deus enganador ou 0
Génio Maligno para refutar os céticos e constatar a existéncia do cogito. No
entanto, Agostinho nao encerra 0 cogito em si mesmo, mas faz. com que cle
remeta de imediato para Deus, do qual ¢ imagem. Enquanto res cogitans,
temos autonomia e, em algum sentido, nossa propria existéncia se basta
(enquanto © pensamento se pensa a si mesmo); mas, no pensamento de
Agostinho, o cogito revela sua caréncia e sua dependéncia de Deus no preciso
momento em que se afirma frente as dtividas céticas. Se Agostinho, ao criticar
0s céticos, deduz. a espiritualidade da alma, é apenas para ressaltar a sua
semelhanga com Deus. O cogito agostiniano nao tem nenhuma espessura, no
pode ser uma substancia.
Oscar : Nao se pode negar as diferencas entre Agostinho e Descartes; mas,
as semelhangas talvez sejam mais significativas.
Felipe : Vocé tem razdo. Para afastar a sua insatisfacio, sero necessarios
argumentos mais fortes. Das consideragdes precedentes sobre o argumento
do Génio Maligno, porém, duas linhas de criticas podem ser vislumbradas.
Aprimeira é a de que a evidéncia de que dispomos para a existéncia de nossa
consciéncia é apenas empirica e ndo permite inferir a esséncia do que somos.
O cagito, em vez de ser transparente para si mesmo, é inteiramente opaco €
tudo 0 que percebemos sao apenas pensamentos empiricos. Nao posso estar
seguro de uma coisa (res), mas apenas de pensamentos (cogitationes) desco-
nexos. A segunda, mais radical, impede a inferéncia mesma do cogito em
‘qualquer de suas concepcses, pois poe em xeque a idéia de que dispomos de
evidéncias para o cogito.
Oscar : Sou todo ouvidos. Nao o interromperei enquanto estiver expondo
6s seus argumnentos.
Felipe : A primeira sugestio vem de Malebranche. A reformulagio do
pensamento cartesiano no se confina a validade do argumento do Génio
‘Maligno e as certezas que lhe escapam, mas também atinge a propria maneira
de conceber a consciéncia. Como é sabido, Malebranche aceitaré apenas 0
conhecimento de minha existéncia, mas no o de minha esséncia. Com efeito,
todos os nossos pensamentos demonstram suficientemente a sua existéncia,
embora sua natureza permaneca desconhecida para nés. A experiéncia que
58. Gilson (1930), pp. 195-196.
59 Cf, por ex, Descartes DM, p. 147
60 G'Marion (1986), pp. 138-443. 50 Ceticismo e a Diivida Cartesiana 7
tenho de mim mesmo é apenas uma experiéncia psicologica e nio metatisica.
Conheco de mim apenas 0 que o sentimento interior me revela, a saber, meus
pensamentos empiricos, pois nao vejo em Deus a idéia de mim e, téo logo
comeco a raciocinar sobre 0 que sou, © Génio Maligno pode induzir-me ao
erro, « Nao sabemos da alma sendo aquilo que sentimos se passar em nés. »*!
© argumento do Génio Maligno, para Malebranche, encontra o seu limite
apenas na determinacio da existéncia do cogito e nao na determinagao de sta
esséncia.?
© que Malebranche faz ¢ romper com o paralelismo estabelecido por
Descartes entre a prova da propria existéncia e a prova da minha esséncia.
‘Também Gassendi havia concedido a Descartes a prova da existéncia, mas
nao da minha esséncia, ao que Descartes respondeu, dizendo que « espanto-
me por confessardes que todas as coisas que considero na cera provam que
conheco distintamente que eu sou, mas néo de que modo sou ot qual éminha
natureza, visto que um nao se demonstra sem outro. »® Para Descartes, a
minha existéncia ndo é outra coisa sendo a existéncia do meu puro pensamen-
to e quem concede apenas a existéncia sem conceder, ao mesmo tempo, a
esséncia, de fato nao concede nada, pois por « existéncia » entenderé algo
bem diverso do que entendia Descartes (isso é mostrado pelo préprio fato de
fildsofos tio diferentes quanto Gassendi e Malebranche estarem de acordo
sobre a concessao apenas da minha existéncia). A evidéncia empirica do meu
pensamento, para Malebranche, ndo permite a inferéncia da existéncia de
uma coisa que pensa, mas apenas assegura a certeza de que ha pensamentos,
‘uma conclusao bem mais modesta do que a cartesiana. Malebranche, parece-
‘me, jé antecipa Hume nesse ponto e concebe a mente como um « feixe de
representacées » (embora, por outros caminhos, restaure a dignidade da
mente como substancia).
Também da perspectiva wittgensteiniana pode-se inferir a existéncia de
‘uma consciéncia a partir dos argumentos céticos, sem que, no entanto, essa
consciéncia se constitua num puro pensar. Com efeito, Wittgenstein aponta
para anecessidade de uma consciéncia a partir da consideragao do argumento
do sonho. Se posso estar sonhando, entao meu discurso também pode estar
sendo parte de um sonho e, nesse caso, também o sentido de minhas palavras
pode ser mero sonho. Nas palavras de Wittgenstein : « © argumento ‘eu
posso estar sonhando’ é sem sentido porque precisamente nesse caso essa
expresso também € sonhada, e também porque essas palavras tém um
significado. » Ora, entre um discurso ter sentido e 0 sonhar que um discurso
tem sentido vai uma longa distancia. O argumento do sonho, portanto, se
vlido, acaba por destruir 0 sentido do préprio discurso cético, isto é, a
61 Malebranche, RV, II parte 2 cap. 7, p. 257.
62. Malebranche, RV, II parte 2 ap. 7, pp. 257259: RV, XLEd.
(68, Descartes, MM, p. 484; tra. Bento Prado Jr
64 Wittgenstein, UG, 383.98 Plinio Junqueira Smith
prépria colocagio da dtivida cética jé pressupde a aceitacéo de uma conscié
cia. A primeira vista, esse argumento é semelhante a0 de Descartes : se
duvido, penso; mas uma observacdo um pouco mais atenta aponta para outra
diregdo (e nao poderia ser de outro modo, pois o aforisma de Wittgenstein é
formulado num contexto anticartesiano).
Essa nova maneira de pensar o argumento do sonho conduz a uma nova
maneira de entender a consciéncia, bastante diferente daquela pretendida por
Descartes. Para que uma proposicéo tenha sentido é preciso haver uma
onstituiria, porém, essa consciéncia um « mundo interior » ou
uma « interioridade » ? Vejamos a passagem em que Wittgenstein afirma a
necessidade de uma consciéncia. « Mas também em tais casos se eu no posso
errar, — nio € possivel que eu esteja narcotizado » ? Se estou assim e se a
nnarcose roubou de mim a consciéncia, entao agora eu nao falo e penso realmente.
‘Nao posso supor seriamente que eu sonho agora. Quem, sonhando, diz ‘eu
sonho’, ainda que fale de modo audivel, tem téo pouca raztio quanto se ele,
‘no sonho, dissesse ‘chove’, enquanto de fato chovesse. Mesmo que seu sonho
estivesse efetivamente associado ao barulho da chuva. »§ Nio se poderia
alegar uma razio para dizer « eu sonho » porque nao ha consciéncia : 0 jogo
das raz6es pressupée a consciéncia das razbes que nos permitem afirmar algo.
A associagdo a que se refere Wittgenstein 6 uma associac3o « causal » e,
portanto, pode ser inconsciente; mas uma associagao racional é aquela em
que a razio pode ser conscientemente invocada por quem afirma algo e, no
sonho, falta precisamente essa consciéncia. Esse argument néo pée uma
coisa pensante ou reflexiva, pois se trata apenas de nos lembrar em que casos
empregamos a palavra « razio » (quando ha consciéncia) e de nossa capaci-
dade para justificar algumas afirmagoes. © argumento do sonho teria 0 seu
limite, por assim dizer, no sentido das palavras, isto 6 na consciéncia empirica
ou fenoménica que deve ser pressuposta para que 0 discurso tenha sentido.
Nao ha por que inferir, da indubitabilidade do meu pensar, a existéncia de
‘uma coisa pensante.
‘© que essa primeira linha de critica nos mostra é que a evidéncia empirica
de nossos pensamentos, imaginagées, etc., nfo parece ser suficiente para
atestar a existéncia de uma coisa pensante, nem mesmo a idéia de que as
diividas céticas pressupdem uma consciéncia parece nos assegurar da tese de
que essa consciéncia constitui um « mundo interior ». Ao julgar que o mesmo
argumento que estabelece necessariamente a minha existéncia é aquele que
6 Wingenstin UG, 66 grits meus
66 Fate Prado qutn ume minha leno para esse aor sobre a neesidade de
tinaconsiéncmem Witgenstn Em sev artgne A lapingao- Teomenologane Folia
“Anais » (ir Alun Enea, Max Lamond So Pau, 188, tem V. pp. 83), Bento
dscute brevemente a impossbidade de se dizer » cu soho" Gee wane
Stifeatvamente'0 verbo sonar» na prime presen do Segula no pce do
indica,0 Ceticismo e a Ditvida Cartesiana 99
estabelece a minha esséncia enquanto puro pensamento, Descartes estabcle-
ceu um vineulo que nao € evidente para outros pensadores e atribuiu a esse
argumento (ou a evidéncia de nossos pensamentos), com liberdade talvez
excessiva, uma validade que outros Ihe recusam e que nao me parece que
devamos aceitar, E como jé observado, quem nao concede a esséncia do cogito,
nao concede nada, pois a existéncia permaneceria inteiramente indetermina-
da, Nada exige a postulagao de um « eu » mental ou substancial para além
do « eu » fenoménico.
‘Vejamos agora a segunda linha de critica a filosofia cartesiana, aquela que
recusa que, dos argumentos céticos, se possa extrair qualquer certeza. Essa
linha esta associada a duas observacdes que fiz anteriormente. A primeira é
a de que a divida cartesiana nao é menos geral do que a diivida pirrénica,
abarcando nao s6 0s corpos fisicos, como também a existéncia dos espiritos
(entretanto, Descartes certamente atribuiria a uma confusdo ou inconseqiién-
cia a assimilagio do meu espirito aos outros espiritos). Mas, a meu ver, 0
argumento do Génio Maligno fomece-nos subsidios suficientes para questio-
nar a nossa prépria existéncia. Com efeito, se parece impor-se a mim que 05
pensamentos indubitaveis ou irrecusdveis s40 meus, essa imposigao pode
dever-se apenas a malicia e esperteza do Génio Maligno. Por quea evidéncia
de que esse pensamento que se pensa estaria imune a um Deus to poderoso?
Por que a evidéncia de um pensamento seria evidéncia de alguma coisa ? Ora,
86 a crenga no discurso, que distingue entre sujeito e predicado e faz com que
atribuamos ao sujeito um predicado, toma os pensamentos evidéncias que
‘nos permitem inferir algo, isto é, s6 a crenca na estrutura predicativa autoriza
a passagem da constatacao de pensamentos para a suposicdo de que ha um
« eu» por tras deles. No dizer de Nietzsche : « Que, quando é pensado, deve
haver alguma coisa que pensa, isso ¢ simplesmente uma formulagao de nosso
habito gramatical, que a um agir faz corresponder um agente. »* Esse
«habito gramatical », segundo Nietzsche, esconde uma série de pressupostos
inconfessos : « deveriamos, afinal, desvencilhar-nos da sedugio das pala-
vras ! O povo que acredite que conhecer é um conhecer final; 0 filésofo tern
que dizer a si mesmo : se eu decomponho © processo que esté expresso na
Proposicéo ‘eu penso’, obtenho uma série de afirmagdes temerdrias, cuja
fundamentagao € dificil, talvez. impossivel, — por exemplo, que sou eu quem
pensa, que em geral tem que haver algo que pensa, que pensar é uma
atividade e efeito da parte de uma esséncia que é pensada como causa, que
hé um ‘eu’, e, enfim, que ja est estabelecido firmemente o que se deve
designar como pensar — que eu sei o que é pensar. »* Todas essas « premis-
sas » do argumento cartesiano, parece-me, poderiam ter sido postas em
67 Nietzsche, Der Wille zur Macht, Alfted Kroner Verlag, Leipzig, 1911, pardgrafo 484; ctado
fe Bourerese (857, p15
+ 68 Nietzsche, BM, 16; trad. Rubens Rodrigues Torres Filho,100 Plinio Junqueira Smith
diivida por Descartes com base nos argumentos do Génio Maligno e, assim,
a postulacio do cogito teria sido evitada. Nao apenas os outros espiritos
cairiam sob 0 escopo desse argumento, mas também a minha existéncia seria
posta em xeque”
segunda observacao é a de que podemos conceber o argumento do Génio
Maligno de modo mais radical do que Descartes, destruindo assim o sentido
do préprio discurso em que se formula a dtivida eética e a certeza do cogito
Se 0 argumento do Génio Maligno abole o sentido do discurso, fica imedia-
tamente impugnada toda tentativa de estabelecer por meio de um discurso
racional qualquer tese filos6fica. Quando enuncio « penso, existo », « penso,
sou » ou « eu sou, eu existo », que sentido podem ter essas palavras ? Sejam
essas proposigdes resultado de inferéncias ou intuigdes, € 0 préprio estatuto
de proposigdes que esta em jogo; ao invés de proposicées articuladas, elas
nao passariam de sons inarticulados que apenas uma impressio falsa enviada
pelo Génio Maligno me faria julgar que tém algum significado. Poder-se-ia
objetar que, de qualquer forma, 0 Génio Maligno envia uma impresso para
‘mim, que ele me engana, que sou eu que julgo falsamente a respeito do sentido
do discurso. Mas essa objecio peca por privilegiar indevidamente aspectos
do discurso; em primeiro lugar, como acabamos de ver na primeira observa-
fo acima, sou constrangido a me expressar usando pronomes pessoais de
primeira pessoa do singular e nada me garante que as necessidades que a
linguagem me impée correspondam a urna suposta estrutura do real; mas,
em segundo lugar e no que diz respeito a segunda observacio, essas
proposigdes mesmas em que a objegao se formula podem ser desprovidas de
sentido. Dizer « se 0 Génio Maligno envia uma impressao falsa, ento hé
alguém que recebe essa impressio », ou « hé alguém que é enganado se ha
uum enganar », etc,, no passaria de um puro delirio, delirio esse que sou
obrigado a pensar (talvez.falsamente) como meu. Em suma, parece-me que
se pode, a partir do prisma cartesiano ou de outras perspectivas, estender os
argumentos céticos a ponto de questionar-se a legitimidade da conclusao de
Descartes acerca da existéncia do cogito.
Oscar : Nao destruiria igualmente o pirronismo essa radicalizacéo propos-
ta do argumento do Génio Maligno ? E se esse for o caso, também nao estaré
comprometido o « eu » fenoménico que o cético admite junto com o resto da
humanidade ?
Felipe : Parece-me que no. Enquanto o pirronismo pode aceitar a idéia
de um discurso que se destréi a si mesmo ou que pode ter sua inteligibilidade
© Ricoeur (1991, p. 27) comenta da seguinte maneira a critica que Nictasche, em alguns
fragmentos pstumos, drige a Descartes: « J& ndo insisto nesses argumentos em que néo &
‘ver nada de diferente, na minha opinido, a ndo ser um exercicio de davida
hiperbotiealancado mais longe que o de Descartes, vltado contra a propria cetera que este
pensava subtrair a dvida, Nietzsche ndo diz, plo menos nestesfragmentos,sendo sto et
‘hexido mehor que Descartes. © Cogito também duvidoso.»0 Ceticismo e a Ditvida Cartesiana 101
questionada, uma vez que concebe seus argumentos como um purgante que
se expele a si mesmo ou como uma escada que se joga fora apés ser usada,””
a filosofia cartesiana, na medida em que pretende provar algo, néo o pode.
Assim, a argumentagio aqui desenvolvida atinge apenas a pretensao carte-
siana de estabelecer uma tese, mas no 0 uso dialético dos argumentos.
Enquanto nos situamos no ambito da filosofia dogmatica, é possivel forjar
tum discurso com 0 mesmo rigor racional presente nesse ambito. O cético nao
assume como verdadeiras as conclusies de sua argumentac3o negativa
precisamente porque ela é um instrumento de combate que perde o seu efeito
to logo destrua o inimigo; ¢s6 tem sentido enquanto se supe que o discurso
dogmatico tem sentido.” E 0 « eu » fenoménico, por estar aquém dessa
controvérsia, escapa ileso do fogo de destruicao da artilharia cética, por mais
forte que essa possa ser.
Oscar : Dou-me por vencido, sobretudo porque hoje sou eu que cozinho,
Amanhd retomaremos a sua opiniao e veremos que conclusdes voc tira.
5. Eduardo : Infelizmente, hoje é o iiltimo dia e parece que temos chuva
de novo,
Felipe : Aqui, quando comeca, essa chuvinha no para mais. Pelo menos,
© transito de volta fica melhor, jé que muitos voltam mais cedo para casa.
Marta : Nés mesmos poderiamos voltar antes. O que vocés acham ?
‘Oscar : Nao sem antes terminarmos nossas discuss6es. Felipe, se no me
engano, ainda nos deve uma explicagio. Apés a revisio comparativa dos
argumentos céticos, é preciso voltar a questo inicial, que era a de identificar
a razao pela qual o pirronismo nao deveria aceitar o cogito como uma certeza
indubitével, tal como 0 ceticismo cartesiano a aceitou. Ora, a argumentagao
precedente procurou mostrar que o ceticismo cartesiano no precisava se
dobrar diante da « evidéncia » do cogito, de forma que a questao inicial se
transforma na seguinte questdo final : por que o ceticismo cartesiano néo p6s
‘em diivida a minha propria existéncia do eu (bem como a minha esséncia) ?
Ou melhor : por que Descartes julgou ser a certeza do cogito uma certeza
indubitavel ?
Felipe : Se o ceticismo cartesiano se resignou diante da certeza do cogito,
1do foi, parece-me, porque a sua diivida era mais sistematica ou universal do
que a pirrénica, jé que esta também era organizada e também inclufa 0
70 Sexto Empirico, AM VIII, 480-481.
71. A objegio de que o discurso dogmatico écarente de sentido e, por conseqiéncia,o discurso
ttico também o € pode-se dar a seguinte resposta: 1) 0 que se reeita aqui como carente de
sentido no éa postura cética, mas apenas os argumentos negatives que o céticoinventa na
auséncia de um discurso dogmaticoj existent; océico seria o primero recusar a validade
plena desse dogmatismo negativo; 2) pode-se aproximar a objeglo da perspectiva pirronica
porque também sugere a ndo-adocio de teses flosoficas.102 Plinid Junqueira Smith
proprio corpo; hem porque a diivida sobre o mundo pressupunha necessa-
riamente um sujeito mental, pois vimos como também a nocdo de homem e
de alma passaram pelo crivo da dtivida; nem, por fim, porque a raz0 foi
cexcluida do escopo da-diivida, uma vez que sentidos, meméria, imaginagio
e razio foram sucessivamente questionados.
Oscar : Vocé fez um belo resumo do que discutimos nos dois primeiros
dias, mas a sua resposta ainda permanece meramente negativa. Entéo,
recoloco a pergunta final : por que Descartes julgou ser a certeza do cogito
‘uma certeza indubitavel ?
Felipe : Para dar uma resposta positiva a sua pergunta, é necessério
lembrar 0 que discutimos ontem. Vimos como se pode questionar a idéia de
que 05 argumentos céticos admitem niveis uns mais radicais do que os
‘outros : para os pirrénicos e para Agostinho, os argumentos das ilusdes dos
sentidos, da loucurae do sonho tinham a mesma extenso; para Malebranche,
‘© argumento do Génio Maligno tinha o mesmo alcance que o do sonho. Além
disso, pode-se questionar a idéia de que o cogito cartesiano era 0 resultado
necessério das diividas céticas ou a essas resistia, visto que os limites
atribuidos aos argumentos eram os mais variados e que a propria nocao de
consciéncia diferia de filésofo para filésofo : para Agostinho, verdades
necessérias (mateméticas e disjuntivas) e subjetivas escapavam aos argumen-
tos céticos e © puro pensamento remetia para Deus como a c6pia remete para
© original; para Malebranche, estavam para além da critica oética a minha
existéncia (enquanto consciéncia empirica de meus pensamentos), a existén-
cia de Deus e as verdades simples das matemiticas; para Wittgenstein, uma
consciéncia empirica, néo necessariamente separavel do corpo, tem que ser
ressuposta para que as dtividas céticas tenham sentido; e vimos como a
radicalizacao do argumento do Génio Maligno impedia que o cogito ou
qualquer outra certeza pudesse emergir, ao final da argumentagao, como uma
certeza indubitavel.
Oscar : De que maneira essas consideracdes nos ajudariam a entender por
‘que Descartes nao se dobrou diante do ceticismo ?
Felipe : O aparente rigor da diivida cartesiana, tao evidente quando se
atenta para o seu texto, é perdido quando o comparamos com textos de outros
fildsofos do nivel de Descartes. O rigor e a preciséo da ordem das razdes
parecem desvanecer-se assim que constatamos a possibilidade de que os
argumentos céticos se encaixem em outros raciocinios de logica igualmente
impecavel. Portanto, o que é particular a Descartes é sobretudo a hierarquia
estabelecida entre os varios argumentos céticos ¢ é aqui que ele pretende
refutar de uma s6 vez o ceticismo : a légica cartesiana, que vé nas condigées
favordveis e desfavordveis de percepcao, na teoria da imaginacao como
composicdo de idéias simples e no cogito que se apreende a si mesmo como
uma intuigdo racional os limites dos diversos niveis da dtivida cética, é,
portanto, uma invengao arbitraria de Descartes. Em outras palavras, Descar-O Ceticismo e a Diivida Cartesiana 103,
tes cria um limite ficticio para cada argumento cético, de modo a produzir
uum efeito de radicalizagio da duivida até que se chegue, por fim,a uma certeza
aparentemente indubitavel. Em suma, o cogito nao é uma necessidade a que
05 argumentos céticos conduzem ou que a esses escapa, mas constituti-se em
um dogma limitador desses mesmos argumentos por meio de uma légica
elaborada com a maior acuidade filésofica. A resignacio do ceticismo carte-
siano perante o cogito se mostra indissocivel dessas logicas particular interna
que define uma racionalidade prépria ao sistema cartesiano,
A minha sugestdo é a de que Descartes represou artificialmente as diividas
céticas em niveis estanques, de profundidades variaveis, para dar a impressao
de uma radicalizacao crescente até que uma certeza primeira fosse encontra-
da, Mais precisamente, Descartes elaborou a idéia de limites naturais para os
argumentos céticos como se esses limites constituissem coisas indubitaveis
para aquele determinado nivel. Ora, se os argumentos céticos admitem
diferentes logicas, isto ¢, se eles podem ser dispostos segundo outras cadeias
de razées, com conclusdes bastante diferentes, entéo ndo hé por que aceitar
a ordem cartesiana das razées céticas, ou melhor, 6a propria ordem das razSes
que se dissolve, uma vez que nao se pode propriamente falar de razdes, mas
apenas de decisdes filos6ficas que instauram uma légica particular. Portanto,
se Descartes a aceitou, € porque jé antecipava a conclusio, antes mesmo de
laborar os seus argumentos : toda a construcao l6gica foi preparada para
mostrar a existéncia do cogito. O cogito precedeu a divida, a crenca orientou
a formulacao dos argumentos em seu apoio, Nesse sentido, pode-se aplicar
a Descartes a observacao geral que Bergson faz sobre a aceitacao de certas
opinides. « Que nos baste dizer que o ardor irrefletido com o qual tomamos
Partido em certas questdes prova suficientemente que nossa inteligéncia tem
seus instintos (..) As opinides a que mais nos apegamos sfo aquelas de que
mais dificilmente poderiamos dar conta, ¢ as razdes mesmas pelas quais as
justificamos so raramente aquelas que nos determinaram a adoté-las. Em
uum certo sentido, nds as adotamos sem razdo, pois o que Ihes confere valor
a nossos olhos é que a sua nuance responde a coloragao comum de todas as
nossas outras idéias, é que vimos nelas, desde o principio, alguma coisa de
nds, »?? A genialidade cartesiana, parece-me, consistiu em dar aparéncia de
rigor légico irrecusdvel a uma construcdo ret6rica para cujos artificios
devemos estar atentos.
Oscar : Apés ouvir e considerar atentamente tudo 0 que voce disse, tenho
a firme impressao de que se trata de uma argumentacio bastante amarrada
e articulada. No entanto, curiosamente, ainda ha algo que nao me satisfaz
ela e que é facil identificar: ela nao produz em mim convicsao. Em primeiro
lugar, porque vocé mesmo confessa que Descartes concebeu primeiro 0 cogito
ara depois dar sentido as suas diividas, 0 que nao é uma posicao muito
72 Bergson, EDIC, p. 89-100,104 Piinio Junqueira Smith
diferente daquela que vocé refutou no segundo dia da discusséo, segundo a
qual Descartes nao teria duvidado da existéncia da alma, mas apenas do
corpo, e apenas 0 pressuposto da mente permitiria a diivida sobre 0 mundo.
Felipe : Concordo que a diferenca entre aquela interpretagio e a minha
talvez seja menor do que fiz. parecer, pois ambas acabam reconhecendo que
Descartes nao passou pela ciivida para chegar ao cogito. Mas isso nao implica
que sejam iguais, pois enquanto aquela diz que o cogito 6 condigao de sentido
das duividas, isto 6, sem 0 cogito as dtividas nao fariam sentido; eu sustento
que elas fazem sentido sem o cogito, mas é a intengio de prové-lo que conduz
Descartes a dar uma determinada forma as diividas céticas.
Oscar ; Isso conduz ao segundo e principal motivo de minha insatisfagao,
Nao me parece muito verossimil que uma explicacéo formal, o represamento
das diividas céticas em diferentes niveis, possa ser a explicagio de uma
revolucao tao grande na filosofia quanto aquela levada a cabo por Descartes.
Eduardo : Se a filosofia é um didlogo edificante, entao eu diria que, mesmo
sem uma conclusdo definitiva, algo foi ganho nesse feriado.
Oscar: A filosofia tem sempre por objetivo a Verdade; ou a sua descoberta,
E se ndo chegamos a uma conclusdo, isso talvez se deva a novidade da
proposta de Felipe para mim.
Felipe : Ou talvez nao. Todo cético verdadeiro desconfia do seu ceticismo
e sempre evita afirmagées precipitadas, de modo que, se minha argumentacao
nao logrou seu intento, deve ser reexaminada para que se produza o resultado
mais racional ao nosso alcance. A tiltima coisa que posso dizer a favor de
minha opiniao é que a filosofia néo me parece muito distante da retérica e,
portanto, de certa maneira, também da literatura. Por que, entao, a forma que
Descartes da ao seu pensamento seria, do ponto de vista da persuaséo,
irrelevante ?
Marta : £ hora de fazermos as malas e voltarmos para So Paulo.
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