XII Semana de Letras da Ufop
Pluralidade da Memria: literatura, traduo
e prticas discursivas
23 a 26 de outubro de 2012
Ufop Mariana, MG, Brasil
PAUL RICOEUR, PAUL CONNERTON E JAN ASSMANN:
reformulando o conceito de Memria Coletiva de Maurice
Halbwachs
Andiara Pinheiro (UFOP)
Estefnia Costa (UFOP)
Resumo:
Ao longo da dcada de 80, aumentou o interesse pela questo da memria. Os estudos se disseminaram
em vrias disciplinas e campos discursivos. Verifica-se essa expanso tanto na prtica de instituies
culturais quanto na mdia, sendo que, nesta ltima, o ritmo mais fortemente acelerado. As constantes
transformaes das novas tecnologias de informao, pela mdia e pelo consumismo, conduz a sociedade
a uma instabilidade: ora obcecada pela memria, ora aflita frente ao esquecimento. Este artigo procurou
apresentar, sucintamente, trs estudiosos que formam o conjunto de crticas referentes teoria da memria
coletiva proposta por Maurice Halbwachs: Paul Ricoeur, Paul Connerton e Jan Assmann. Halbwachs
de grande importncia para os estudos sobre a memria, pois, em A memria coletiva, estabeleceu o
conceito fundador de Memria Coletiva.
Palavras-chave: Memria coletiva. Memria social. Memria cultural.
1 Introduo
Ao longo da dcada de 80, aumentou o interesse pela questo da memria. Os estudos
se disseminaram em vrias disciplinas e campos discursivos. Verifica-se essa expanso tanto na
prtica de instituies culturais quanto na mdia, sendo que, nesta ltima, o ritmo mais fortemente
acelerado. As constantes transformaes das novas tecnologias de informao, pela mdia e pelo
consumismo, conduz a sociedade a uma instabilidade: ora obcecada pela memria, ora aflita frente
ao esquecimento.
Este artigo apresenta sucintamente trs estudiosos que formam o conjunto de crticas
referentes teoria da memria coletiva proposta por Maurice Halbwachs: Paul Ricoeur, Paul
Connerton e Jan Assmann.
Halbwachs de grande importncia para os estudos sobre a memria, pois, em A memria
coletiva (2006), estabeleceu o conceito fundador de Memria Coletiva. Paul Ricoeur, em A
memria, a histria, o esquecimento (2007), questiona radicalmente a superficialidade da memria
individual efetuada por Halbwachs e prope a noo de prximo como uma instncia mediadora
entre o eu e os coletivos. Em Como as sociedades recordam (1999), Paul Connerton elabora
seu conceito de memria social, cuja inovao reside na investigao da memria incorporada,
marcando sua diferena em relao ao paradigma da memria inscrita, de carter lingustico, e
transmitida pela escrita. Por sua vez, Assmann, em Religio e memria cultural (2008), faz uma
reformulao crtica da noo de memria coletiva de Halbwachs, limitada memria formada pela
experincia vivida na interao de indivduos dentro de vrios grupos sociais.
A seguir, veremos um pouco mais das propostas elaboradas por cada um desses estudiosos.
2 Maurice Halbwachs
A proposta do conceito de Memria Coletiva, apresentada por Maurice Halbwachs, possui
em seu cerne a ideia de que a memria individual se consolida e se mantm atravs das interaes
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no interior dos grupos sociais. Assim, quando h o afastamento dos indivduos que formam um
grupo social, torna-se cada vez mais difcil a manuteno dessas recordaes.
Nossas lembranas, mesmo aquelas que aparentemente possuem um carter individual
por terem se originado enquanto estamos sozinhos, so constitudas pelas memrias dos outros,
pois jamais estamos ss1. Isto se d pelo fato de as lembranas permanecerem coletivas, mesmo
quando somente ns vimos ou vivemos alguma situao. Isto , carregamos traos das recordaes
que tivemos com os outros ou que lemos em textos, e essa memria vai se tornando mais precisa
na medida em que se baseia e faz parte de um compartilhamento de pontos de vistas entre os
envolvidos, dentro da memria coletiva de um grupo.
De um modo geral, para Halbwachs, a memria coletiva, essa memria constituda pelos
processos comunicativos dentro de um grupo social no compartilhamento dos pontos de vista,
que orientar as recordaes das memrias individuais de cada pessoa. Como ele afirma, s nos
lembraremos se nos colocarmos no ponto de vista de um ou muitos grupos e se nos situarmos
em uma ou muitas correntes de pensamento coletivo2. Nesse processo, h alguns meandros que
necessitam serem explicitados.
Halbwachs cita o caso em que realizamos uma viagem com um grupo, mas que ao mesmo
tempo, algo em nosso ambiente familiar nos chama a ateno. Nessa situao, nossa ateno no
est nem totalmente no grupo de viagem, nem no grupo familiar, por isso, as memrias originadas
nesse processo possuem as interferncias dos dois grupos. Sua recordao se torna um processo
mais complexo e ganha uma aparente percepo de que seria uma memria exclusivamente
individual. Halbwachs afirma que isso seria uma iluso, a iluso de uma autonomia da busca
interior da memria, pois o que na verdade ocorre a iluso de uma memria exclusivamente
individual, mas que se constitui pela interferncia invisvel entre os dois grupos.
O terico admite que a memria coletiva no explica todas as nossas lembranas e talvez
no explique por si a evocao de qualquer lembrana e se contradiz. Menciona a existncia de um
estado de conscincia puramente individual, que alguns acreditam existir, chamada de intuio
sensvel, na qual os elementos sociais no fazem parte. Ele confronta-se com Charles Blondel, para
o qual a memria individual seria necessria e suficiente para lembrar; Halbwachs, por sua vez,
critica essa ideia, pois, para ele, as memrias individuais sempre remetem a uma base coletiva.
Para Halbwachs difcil encontrar lembranas que nos levem a um momento em que
nossas sensaes eram apenas reflexos dos objetos exteriores, em que no misturssemos nenhuma
das imagens, nenhum dos pensamentos que nos ligavam a outras pessoas e aos grupos que nos
rodeavam.
O autor enfatiza ainda o papel de lugares e objetos para evocar as lembranas. Algumas
recordaes s ressurgem quando estamos fisicamente diante desses lugares e objetos. Ao nos
reaproximarmos dos elementos que compem os grupos sociais aos quais essa memria est
associada, e de outra forma, a tentativa de reconstruir mentalmente essa situao, no reativaria
a memria. Nesse caso o que est em jogo o fato, de que ele nunca mais pensou nisso porque
no conseguiu reagrupar todas essas imagens atravs da memria e da reflexo, jamais consegui
reconstruir esta combinao singular e exata de impresses sensveis, s ela poderia orientar meu
esprito exatamente para essa lembrana.3
De forma geral, como Halbwachs destaca, a memria coletiva tem por base um conjunto
de pessoas, de onde retira sua fora e durao, pois so os indivduos que se lembram, enquanto
integrantes dos grupos. Evidencia-se que essa memria no possui a mesma intensidade para cada
um dos indivduos. Alm disso, cada memria individual um ponto de vista sobre a memria
coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar
1
HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 30.
HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 41.
3 HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 53.
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muda segundo as relaes que mantenho com outros ambientes4. Temos assim, um conjunto de
combinaes muito dinmicas e complexas na constituio e relao entre memria individual e
coletiva.
No prximo tpico, veremos a crtica de Paul Ricoeur teoria de Maurice Halbwachs.
3 Paul Ricoeur
Paul Ricoeur reconhece a contribuio mpar dada por Halbwachs, que atribui a memria a
uma entidade coletiva.
O primeiro ponto de tenso entre a teoria de Halbwachs e a crtica de Ricoeur o fato de o
primeiro afirmar que a memria individual deriva da coletiva. Ricoeur nomeia essa derivao de
consequncia extrema. Antes de por a prova essa questo, Ricoeur expe sobre as anlises sutis
da experincia individual de pertencer a um grupo, que mostram que na base do ensino recebido
por outros que a memria individual toma posse de si mesma.
Ricoeur afirma que, ao atacar a tese que se pode chamar de psicologizante, representada na
poca por Charles Blondel, segundo a qual a memria individual seria uma condio necessria e
suficiente para a recordao e o reconhecimento da lembrana, o ensaio entra na sua fase crtica. O
autor conclui que no prprio campo do fenmeno mnemnico que a batalha se trava5, j que h,
neste momento, um embate entre a tese da memria coletiva e a memria estritamente individual.
Para comprovar esta disputa, Ricoeur expe: Argumento negativo: quando no fazemos mais
parte do grupo na memria do qual tal lembrana se conservava, nossa prpria memria se esvai
por falta de apoios externos6. Argumento positivo: Lembramo-nos contanto que nos coloquemos
no ponto de vista de um ou vrios grupos e nos recoloquemos em uma ou vrias correntes do
pensamento7. O autor ainda acrescenta que no nos lembramos sozinhos.
Ricoeur no deixa de citar o ataque feito por Halbwachs tese sensualista a qual v na
origem da lembrana uma intuio sensvel conservada tal qual e recordada de modo idntico.
A partir de exemplos dados por Halbwachs, Ricoeur expe que a noo de mbito social
deixa de ser uma noo simplesmente objetiva, para se tornar uma dimenso inerente ao trabalho
de recordao8. Contesta, porm, a ideia de uma sequncia interna na qual interviria apenas uma
ligao interna ou subjetiva9 qualquer para explicar a reapario da lembrana. Ricoeur expe
que, para Halbwachs, a originalidade das impresses ou dos pensamentos que sentimos no se
explica por nossa espontaneidade natural, mas pelos encontros em ns de correntes que tm uma
realidade objetiva fora de ns10.
Para Ricoeur, o ponto alto do captulo consiste na denncia de uma atribuio ilusria
da lembrana a ns mesmos, quando pretendemos ser seus possuidores originrios. Ele indaga:
o prprio ato de se recolocar num grupo e de se deslocar de grupo em grupo e mais geralmente
de adotar o ponto de vista do grupo, no supe uma espontaneidade capaz de dar sequncia a si
mesma?11. Ricoeur argumenta que, em caso contrrio, a sociedade no teria atores sociais.
Ainda, questionando Halbwachs, Ricoeur afirma que, se a ideia da espontaneidade de um
sujeito individual da recordao pode ser denunciada como uma iluso porque nossas percepes
do mundo exterior se sucedem segundo a mesma ordem de sucesso dos fatos e fenmenos
materiais. Ento, a ordem da natureza que invade o nosso esprito e regra o curso de seus estados.
4
HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 69.
RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 131.
6 RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 131.
7 HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 63 apud RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 131.
8 RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 132.
9 HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 82-83 apud RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 132.
10 RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 132.
11 RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 132.
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Haveria, portanto, apenas dois princpios de encadeamento: o dos fatos materiais e o da memria
coletiva. Como um reflexo no se explica por um reflexo anterior, mas pela coisa que ele reproduz
no prprio instante12, ento, para o lado das representaes coletivas que se deve voltar para dar
conta das lgicas de coerncia que presidem percepo do mundo.
Um argumento kantiano, segundo Ricoeur, usado em favor das estruturas da sociedade,
reencontrado aqui de modo inesperado, lembrando-nos que se recai no emprego antigo da noo de
quadro: nos quadros do pensamento coletivo que encontramos os meios de evocar a sequncia e
o encadeamento dos objetos. Somente o pensamento coletivo consegue realizar essa operao 13.
Ricoeur ressalta que falta a explicao de como o sentimento da unidade do eu deriva
desse pensamento coletivo. Expe que por intermdio da conscincia que consideramos, a cada
momento, pertencer simultaneamente a vrios meios; mas essa conscincia existe apenas no
presente. Segundo ele, a nica concesso que Halbwachs se permite a de dotar cada conscincia
do poder de se situar no ponto de vista do grupo e mais ainda de passar de um grupo a outro.
Refora, no entanto, que essa concesso rapidamente retirada: essa ltima atribuio ainda uma
iluso que resulta de uma adaptao presso social; esta nos leva a acreditar que somos os autores
de nossas crenas.
Para Ricoeur, o ponto de partida de toda anlise no pode ser abolido por sua concluso:
no ato pessoal da recordao que foi inicialmente procurada e encontrada a marca social. O autor
enftico ao afirmar que o prprio Halbwachs acredita poder situar-se no ponto de vista do vnculo
social, quando o critica e o contesta; e que seu texto contm os recursos de uma crtica que pode ser
voltada contra ele. Ricoeur compartilha com Halbwachs a ideia de que cada memria individual
um ponto de vista sobre a memria coletiva, que esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele
ocupo e que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relaes que mantenho com outros meios14.
Ricoeur conclui: o prprio uso que Halbwachs faz das noes de lugar e de mudana de
lugar que pe em xeque um uso quase kantiano da ideia de quadro que se impe de modo unilateral
a cada conscincia15.
No prximo tpico, veremos alguns pontos da teoria de Paul Connerton sobre a memria
social.
4 Paul Connerton
Paul Connerton questiona a teoria de Halbwachs no que se refere transmisso e
conservao da memria no inteiror dos grupos, j que o terico da Memria Coletiva, no
aborda esta questo. Para responder a este quesito, o autor prope um enfoque menos usual, que
consiste na anlise da memria incorporada, isto , transmitida pelo corpo por performances (mais
ou menos) rituais.16
Para Connerton, a tradio hermenutica privilegiou, historicamente, a memria inscrita em
detrimento da memria incorporada. Neste ponto, j comea haver uma reformulao do conceito
de Memria Coletiva de Halbwachs; essa proposio de Connerton, referida como Memria
Social, leva em conta um ponto no abordado por Halbwachs em A Memria Coletiva, a
transmisso intergeracional, e, alm disso, aborda duas reas da atividade social: as prticas
corporais e as cerimnias comemorativas.
Como exemplo, o autor aponta a Revoluo Francesa. A passagem do Antigo Regime para
o perodo da Revoluo foi marcada por um ato cerimonial de execuo que inverteu a lgica
12
HALBWACHS, M. A Memria Coletiva, p. 85 apud RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 133.
RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 133.
14 RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 133-134.
15 RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento, p. 134.
16 CONNERTON, P. Como as sociedades recordam, p. 42.
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simblica do coroamento real, da seguinte forma: o herdeiro real assume sua posio de rei no
ato de coroao, em que ele recebe a beno de Deus como predestinado, de tal forma que o
movimento revolucionrio ao realizar o regicdio, como forma simblica de romper com esse ciclo,
revoga ritualmente com a decapitao do rei o princpio de sucesso dinstica. Isso porque, um dos
elementos que a Revoluo trs de novo, no o regicdio, mas sim a deposio do rei sem colocar
outro no lugar.
Outro elemento na anlise da Revoluo Francesa a questo das prticas corporais. Os
revolucionrios, por terem em mente o hbito de servido inserido no comportamento corporal,
instauraram um novo paradigma com relao s vestimentas a serem utilizadas. O que motivou essa
atitude foi o interesse em romper com um modelo no qual se definem os trajes permitidos com base
no estrato social ao qual indivduo faz parte.
Esses so dois elementos que evidenciam um movimento de rompimento com o passado
no intuito de instaurao de uma nova ordem, buscando estabelecer um ponto de partida marcado
por um comeo radical, apesar de no ser exatamente um comeo do nada, como aparentemente
pregado, mas que toma como referncia um padro de memrias sociais.17
Para Connerton, Halbwachs deixa de lado a transmisso da memria atravs das
performances rituais. Alm disso, o autor afirma tambm que Halbwachs no expe explicitamente
a forma como a memria transmitida de uma gerao outra, apesar de se poder inferir que
esse processo acontea atravs de algum sistema de comunicao. Connerton prope, ento, uma
estruturao na transmisso intergeracional, na qual a passagem da memria no ocorreria dos pais
para os filhos, mas sim diretamente entre avs e netos, j que cabiam s avs, nas sociedades rurais
tradicionais, o cuidado dos netos enquanto os pais trabalhavam.
dessa forma que Connerton pretende abordar um elemento importante na atual teoria
social e que normalmente negligenciado, a permanncia social que advm das performances
rituais. Como o autor afirma, o rito alm da capacidade de conferir valor e sentido vida daqueles
que os executam18 atravs de metanarrativas, atua tambm como continuidade de um evento do
passado atualizando-o e revivendo-o no presente. E sua caracterstica performtica se evidencia em
dois pontos na necessidade da execuo do ritual e na formalidade de sua linguagem litrgica j
pr-definida.
Essa memria performativa transmitida pelos hbitos corporais, e o elemento que o
autor menciona ter sido ignorado, a memria social corporal. Connerton tem na base dessa ideia o
fato de que podemos tambm preservar deliberadamente o passado sem o representarmos
explicitamente com palavras ou imagens19. Dentre as formas de transmisso da memria, o autor
evidencia dois modos: a memria inscrita e a memria incorporada. Na primeira temos os usos de
dispositivos para captar e armazenar a informao. J na segunda, h a utilizao do corpo na
atividade de transmisso. Afirma ainda que, apesar da grande importncia, e poderamos dizer
pleno predomnio da memria inscrita, essa memria estar mutilada caso no levemos em conta
tambm as questes da memria incorporada. Alm disso, essas prticas de incorporao dependem
de duas caractersticas distintas: o seu modo de existncia e o seu modo de aquisio, no
existem objectivamente, independentemente da sua execuo. E so adquiridas de modo a
dispensar uma reflexo explcita sobre a sua execuo.20
Podemos constatar assim, que essas prticas corporais so socialmente constitudas em um
duplo sentido, tanto pela questo performtica quanto pelas performances habituais na transmisso
e na conservao da memria21.
17
CONNERTON, P. Como as sociedades recordam, p. 15.
CONNERTON, P. Como as sociedades recordam, p. 51.
19 CONNERTON, P. Como as sociedades recordam, p. 83.
20 CONNERTON, P. Como as sociedades recordam, p. 117.
21 CONNERTON, P. Como as sociedades recordam, p. 119.
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A seguir, veremos alguns pontos da teoria de Jan Assmann.
5 Jan Asmann
Nossa memria, para Assmann, tem uma dupla base: uma neural e outra social e refora
que, sem os quesitos neurais, uma memria impossvel. Reconhecendo a contribuio de Maurice
Halbwachs, que atribui uma base social memria, Assmann afirma que partir desta base para
dar um passo adiante, postulando uma base cultural, pois s desta forma, segundo ele, podemos
entender os abismos temporais nos quais o homem se insere enquanto ser dotado de memria.
Segundo Halbwachs, comenta Assmann, a memria um fenmeno social. A base neural
seria algo como o hardware da memria: pode se desenvolver com mais ou menos fora e por meio
de treinamento podemos aperfeio-la individualmente. Porm, o contedo e o gerenciamento deste
dispositivo se determinam por nosso contato com os outros, pela linguagem, pelas aes, pela
comunicao e pelos laos afetivos que nos unem na nossa vida em sociedade.
Assmann distingue dois tipos de memria: a episdica (se refere a nossas vivncias e
experincias) e a semntica (se refere a tudo que temos aprendido e retido). Ele coloca, como
desdobramento da memria episdica, a memria fotogrfica, que no teria uma base social. Ainda,
devido estrutura plena de sentido da memria episdica, Assmann a subdivide em: cnica (mais
bem organizada visualmente) e narrativa (bem mais organizada linguisticamente). Ele afirma que
estas estruturas conectivas so as que esto mediadas socialmente segundo Halbwachs e, segundo
Proust, a memria cnica estaria mais prxima da memria involuntria e a memria narrativa mais
prxima da memria voluntria. Essas memrias se cruzam, no h fronteiras rgidas entre elas.
Neste ponto do texto, quando distingue aqueles tipos de memria, Assmann critica
Halbwachs esclarecendo que este exagerou ao afirmar em sua tese que uma pessoa que cresce em
total solido no tem nenhum tipo de memria. Assmann afirma que a memria narrativa desta
pessoa estaria incansavelmente desenvolvida e lhe seria difcil distinguir entre cenas sonhadas,
alucinaes e entre o que realmente viveu. Porm, deixa claro que a influncia criadora de sentido
e de estrutura prprias da nossa vida em sociedade, com suas normas e valores, suas definies do
que tem sentido e do que importante, repercute at nas nossas memrias mais ntimas. Este campo
no explorado por Halbwachs, mas por Connerton.
Desta forma, o autor acredita ser uma tarefa difcil distinguir entre uma memria coletiva e
uma memria individual. Para ele, a memria individual em si tem alto grau social, tanto quanto a
linguagem e a conscincia em geral. Ela, em sentido estrito, seria algo como uma linguagem
privada, que s ns mesmos entendemos, ou seja, um caso especial, uma exceo. Por esta razo,
juntamente com Aleida Assmann, o autor definiu como memria comunicativa o aspecto social
da memria individual que definiu Halbwachs. Assmann salienta que, para uma memria
comunicativa em atividade, o esquecimento to importante quanto o recordar, por isto ela no
fotogrfica. Completa que, assim como a base neural, a base comunicativa da memria conhece
perturbaes e patologias e cita alguns exemplos. Um bastante recorrente em outros autores, o
Holocausto, tambm citado por Assmann, quando este afirma que se as memrias crescem em ns
vindas desde o exterior e passando por laos afetivos, em igual medida cresce em ns aquilo capaz
de comover a viso coletiva, como o Holocausto comoveu.
Para Assmann em toda recordao h algo de desejo de ateno e de pertencimento e que
no somente a socializao que nos permite recordar, mas nossas recordaes nos permitem
socializarmos. A socializao no uma mera fundao, mas uma funo da memria. Por esta
razo, o autor considera falar em uma memria de ligao.
Assmann afirma que o terico da memria de ligao Friedrich Nietzsche. Assim como
Halbwachs demonstrou que o ser humano necessita de relaes para desenvolver uma memria e
poder recordar, Nietzsche demonstrou que o ser humano necessita de uma memria para poder se
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relacionar. Assmann esclarece que, certamente, Nietzsche no pensa na memria comunicativa,
descrita por Halbwachs, autorregulativa e difusa, na qual a recordao e o esquecimento interagem,
mas postula uma memria distinta, especial a que chama de a memria da vontade, na qual como
ele mesmo disse a capacidade de esquecer suspensa em alguns casos, aludindo queles casos em
que se fazem promessas. Segundo Nietzsche, esta memria no prpria da natureza humana, mas
foi criada por ns para vivermos em sociedade.
Como Halbwachs, continua Assmann, Nietzsche se retrai diante da transio do corporal, do
neural e do afetivo at o puramente simblico. S concede validez queles smbolos que se podem
inscrever diretamente no corpo mediante as sensaes, ou seja, a dor. E entre todos os exemplos de
sofrimento que d, lista a religio como sistema de crueldade. Esta anlise nietzschiana da religio
liga-se de Freud, expe Assmann, que via nesta uma neurose compulsiva e coletiva. No entanto,
Freud avana na temporalidade diacrnica, procurando explicar as transferncias que se do de
gerao em gerao. Porm, como Nietzsche e Halbwachs, se detm na fronteira do corpo, negandose a cruz-la chegando at a cultura, com suas formas simblicas e arquivos. Ambos, Nietzsche e
Freud, desenvolvem um conceito de memria coletiva, mas de forma direta, em termos de
inscrio, ao corpo e ao psquico respectivamente. Outras ligaes entre esses dois tericos so
feitas por Assmann.
Assmann afirma que, junto da memria de ligao, existe a memria coletiva, em um
sentido autntico e acentuado. Sua tarefa, antes de tudo, consiste em transmitir uma identidade
coletiva. A sociedade se inscreve a si mesma nesta memria, com sua norma e valores, criando no
indivduo essa autoridade que Freud chamou de super ego e que convencionalmente se designa
conscincia moral.
O autor no deixa de relatar que Aleida Assmann tem demonstrado, no contexto do debate
baseado no discurso de Martin Walser, que a memria coletiva particularmente vulnervel diante
das formas politizadas da recordao. O culto aos mortos, com fins polticos, um exemplo disso.
Mais uma vez, Assmann menciona a base no s social da memria, mas tambm a cultural:
afirma que para recordar e pertencer o coletivo e o indivduo recorrem ao arquivo das tradies
culturais, ao arsenal das formas simblicas, ao imaginrio dos mitos e das imagens, aos grandes
relatos, s sagas e lendas, s cenas, que no tesouro de tradies de um povo esto sempre vivos e
podem reativar-se.
Assmann categrico, o ser humano o nico portador da memria22. Ele afirma que o
que preciso saber at que ponto se determina social e culturalmente essa memria nica. Mais
uma vez menciona Halbwachs, explicando que para este, apesar de ter dado um passo fora do
mundo do sujeito, ao considerar as condies sociais e emocionais da memria, se negou a avanar
at seus marcos simblicos e culturais. Para ele, a memria era sempre viva, encarnada e o que
estava mais adiante desta fronteira era a tradio, que se oporia memria. Assmann questiona se
possvel sustentar essa distino e se a tradio no se encarna continuamente tambm. Com esta
afirmativa, no h dvida da resposta para tais questes: o que a comunicao para a memria
comunicativa, a tradio para a memria cultural23. Em seu texto, o autor desenvolve mais esta
questo.
Observa-se que Assmann no distingue precisamente a memria social da memria coletiva,
porm observa uma fronteira, leva em considerao a temporalidade. Para ele, a memria cultural
diacrnica, enquanto a memria social sincrnica.
Concluso
22
23
ASSMANN, J. Religio e Memria Cultural, p. 25.
ASSMANN, J. Religio e Memria Cultural, p. 25.
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Foi exposto que o conceito fundador de Memria Coletiva de Halbwachs sofreu crticas
de Ricoeur, especificamente no que se refere memria individual, pois acreditava que Halbwachs
a conceituou de forma rasa, sem aprofundamentos consistentes, a reduziu a uma atribuio
ilusria feita pelo indivduo, devido ao carter insensvel da influncia do meio social. Ainda, para
Ricoeur, Halbwachs no explica como o sentimento da unidade do eu deriva desse pensamento
coletivo. Ao ressaltar a ideia de uma memria coletiva que se impe integralmente e reduzir a
memria individual a uma iluso forjada pela falta de percepo das influncias sociais, Halbwachs,
para Ricoeur, mostra-se contraditrio. Ricoeur prope a noo de prximo como uma instncia
mediadora entre o eu e os coletivos.
Por sua vez, Connerton dedica-se investigao da memria incorporada em oposio da
memria inscrita. O autor confere importncia ao estudo dos mecanismos e processos transmissores
da memria de um grupo, fato no desenvolvido por Halbwachs. Para Connerton, por meio das
cerimnias comemorativas e das prticas corporais em particular, possvel ver que as imagens do
passado e o conhecimento recordado do passado so transmitidos e conservados por performances
(mais ou menos) rituais.
Finalmente chegamos a Assmann, que inova ao fundar o conceito de memria cultural,
criticando a noo de memria coletiva de Halbwachs, limitada memria formada pela
experincia vivida na interao dos indivduos dentro de vrios grupos sociais. Essa nova teoria
incorpora um eixo diacrnico formado por maior profundidade temporal, capaz de alcanar
passados remotos. Diferentemente, a teoria de Halbwachs se mostra confinada ao domnio
horizontal, sincrnico de comunicao e ao ciclo de aproximadamente trs geraes. Assmann
apresenta vrias manifestaes e nveis de memria; inclusive, a memria coletiva de Halbwachs
redefinida como memria comunicativa. Halbwachs fala em eventos e no em comunicao entre
os membros do grupo. Ainda, continuando esse paralelo entre os dois autores, tem-se que enquanto
Halbwachs confere extrema homogeneidade na composio dos grupos e no distingue os vrios
nveis na formao da memria coletiva, Assmann, embora concorde que nunca estamos ss,
admite o espectro, uma nuance, uma vez que h momentos que somos mais influenciados pelos
grupos do que em outros.
Evidentemente, os paralelos que podem ser feitos entre esses quatro tericos no se esgotam
aqui. Outros pontos de acordo e/ou dissonncia ainda podem ser arrolados. Fizemos aqui uma breve
amostragem, que confirma mais uma vez a importncia das contribuies de Halbwachs, Ricoeur,
Connerton e Assmann para os estudos sobre a memria.
Referncias Bibliogrficas
ASSMANN, Jan. Introduccin. In: _______. Religin y memoria cultural. Buenos Aires: Lilmod,
2008.
CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Lisboa/Oieras: Celta Editora, 1999.
HALBWACHS, Maurice. Memria individual e memria coletiva. In: _______. A Memria
Coletiva. So Paulo: Centauro, 2006.
RICOEUR, Paul. O olhar exterior: Maurice Halbwachs. In: ________. A memria, a histria, o
esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.