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CÂMARA, Marcos Vinicius - A Propósito Da (Des) Construção de Alguns Conceitos Na Teoria de Wilhelm Reich - A Perspectiva Deleuzeana

Este documento discute a teoria de Wilhelm Reich à luz da perspectiva de Gilles Deleuze. Aponta como Deleuze pode ajudar a atualizar e desconstruir alguns conceitos reichianos, como a noção de identidade e a relação corpo-mente. Questiona a visão reichiana de sexualidade e orgasmo e propõe que Deleuze valoriza mais o desejo e as singularidades em constante devir. Busca aplicar os conceitos deleuzeanos de fluxo, devir e simulacro para promover novos desen
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CÂMARA, Marcos Vinicius - A Propósito Da (Des) Construção de Alguns Conceitos Na Teoria de Wilhelm Reich - A Perspectiva Deleuzeana

Este documento discute a teoria de Wilhelm Reich à luz da perspectiva de Gilles Deleuze. Aponta como Deleuze pode ajudar a atualizar e desconstruir alguns conceitos reichianos, como a noção de identidade e a relação corpo-mente. Questiona a visão reichiana de sexualidade e orgasmo e propõe que Deleuze valoriza mais o desejo e as singularidades em constante devir. Busca aplicar os conceitos deleuzeanos de fluxo, devir e simulacro para promover novos desen
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A propsito da (des)construo de alguns conceitos na teoria de Wilhelm Reich - a perspectiva deleuzeana

Marcus Vinicius Cmara*

RESUMO Este trabalho objetiva a atualizao de algumas noes enunciadas na teoria de Wilhelm Reich. A partir da leitura de conceitos reichianos fundamentais pretende-se elucidar limites e promover desdobramentos tericos e prticos que possam configurar novas redes de saber. Para tanto, o instrumental utilizado inclui a obra do filsofo Gilles Deleuze e contribuies de autores como Foucault e Guattari. Com a crtica desenvolvida, espera-se concorrer para o redimensionamento da importncia da obra de Reich na contemporaneidade.

On the (de)construction of some concepts in Wilhelm Reichs theory - the perspective of Gilles Deleuze
ABSTRACT The purpose of the present work is to update some notions stated in Wilhelm Reichs theory. Starting from a new reading of fundamental reichian concepts, we intend to show limits and to promote theoretical and practical developments that may form new knowledge nets. Our instruments include philosopher Gilles Deleuzes work and also contributions from authors such as Foucault and Guattari. With the criticism here carried out, we aim to collaborate to an evaluation of the importance of Reichs work in contemporary scene.

Outubro / 1997
Psicoterapeuta Corporal e Doutorando do Curso de Ps-Graduao em Psicologia da UFRJ. Este trabalho foi apresentado em 02/06/98 na APCRJ.
*

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que no sabemos ou que sabemos mal? necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. S escrevemos na extremidade de nosso prprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorncia e que transforma um no outro. s deste modo que somos determinados a escrever. Gilles Deleuze

Sumrio

I - Introduo .....................................................................................................................p. 1 II - Identidade x Devir: O Conflito....................................................................................p. 3 1. Reich Psicanalista ...........................................................................................p. 3 2. O Analista de Carter e Vegetoterapeuta ........................................................p. 6 3. O Orgonoterapeuta ..........................................................................................p. 9 III - Concluso: Os Fluxos Desejantes ..............................................................................p. 11 IV - Referncias Bibliogrficas .........................................................................................p. 12

I - Introduo Wilhelm Reich tem sua primeira fissura com Freud, formulando o conceito de potncia orgstica. O quantum de energia referido na noo de potncia orgstica propicia uma ponte para a teoria deleuzeana no que diz respeito ao sentido de fora e intensidade contido nessa idia. A concepo energtica atravessa a relao corpo-mente. De acordo com Reich, a psique-soma seria uma unidade funcional, quebrando, dessa forma, a ciso da tica tradicional, psicanaltica. J Deleuze parece recuperar a configurao psicanaltica de muitas almas em um s corpo e de uma alma em muitos corpos, no atrelando um esprito a um nico soma. Certa limitao do ponto de vista reichiano igualmente pode ser observada no enfoque sobre a sexualidade. Daqui decorre uma naturalizao da genitalidade e uma patologizao ou, ao menos, uma afirmao de deficincia ou dificuldade - de tudo o que no-genital como (im)possibilidade de se chegar ao orgasmo. Desse modo, Reich desconsidera a produo de comportamentos singulares, de multiplicidades. Em Deleuze, as singularidades pr-pessoais e pr-individuais contrapem-se s idias de identidade e estrutura, uma vez que tais conceitos cristalizam a possibilidade de fluidez. Para este autor, a noo mais apropriada concepo de que tudo est em movimento a idia de devir. Este, por sua vez, produz acontecimentos. Acontecimentos so jatos de singularidades que contradizem s essncias como ncleos das estruturas. Os mltiplos acontecimentos se expressam constituindo a univocidade, a integrao com o ser unvoco. Na verdade pode-se fazer um paralelo entre esta relao e a perspetiva reichiana da descarga orgstica como integrao ao Cosmos. Segundo Reich, a descarga orgstica produto da pulsao natural do corpo, de sua auto-regulao. Auto-regulao implica em equilbrio, que funo da carga e descarga energtica no organismo. Assim, enquanto Reich busca harmonia, Deleuze elege o desejo como propiciador de fluxos que tudo atravessam. Quando o organismo est mal regulado, perde o contato psquico e, inibindo-se, desencadeia a angstia do orgasmo e o encouraamento muscular. Reich passa a trabalhar no limiar entre a psique e o soma. Deleuze tambm parte da superfcie para compreender o incorporal. O espao, o territrio, a extenso so os focos de sua ateno.

O paralelismo esprito-corpo, muito antes de Reich, j era endossado por Espinoza, que valorizava o inconsciente do pensamento - pois a conscincia mais imediata era iluso - e o desconhecido do corpo. Para ele, a verdadeira conscincia aquela integrada ao ser superior. A relao corpo-mente dinamizada pelo processo de auto-regulao, segundo Reich, associa o equilbrio energtico noo de sade, de onde se conclui que o desequilbrio patolgico. Atravs da viso crtica deleuzeana, pode-se questionar esta etiqueta nosolgica e compreender este comportamento como diferente. Este ltimo prisma assinala uma marca pautada na inovao, na inveno, na valorizao do dessemelhante, j que tudo assim o . Em Reich, o que vincula a relao psique-corpo o orgnio - energia primordial universal. , do mesmo modo, a substncia que permeia tudo e todos. A energia orgnica a responsvel pela pulsao vital dos corpos. Enquanto Reich caminha nesta direo, Deleuze enfatiza a verdade no-absoluta, o desejo e o ser elevado ensima potncia - o ser superior. E se, para Reich, o orgnio energia fsica, o mundo de Deleuze virtual: o incorporal, o devir, a metamorfose. A tica reichiana afirma que a energia orgnica compreende estruturas orgonticas, constitudas de ncleo, membrana e campo energtico, que procuram a fuso umas com as outras. Sob uma perspetiva deleuzeana, a posio reichiana demarca um estruturalismo e um aprisionamento funcional. Fundamentando-se em Deleuze, pode-se dizer que tais conceitos podem ser rompidos atravs das noes de simulacros, que so destitudos de modelos originais e de fluxos, que escapam a direes pr-determinadas. A auto-regulao dos sistemas orgonticos alavancaria o processo de auto-gesto social, o homem aprenderia a ser livre e capaz de se auto-gerir em comunho com outros homens: assim pode ser descrita a democracia do trabalho, segundo Reich. Na verdade, um olhar menos ingnuo e mais crtico sobre as possibilidades de transformao social encontrado em Foucault e seus estudos sobre o poder/saber e as redes sociais, bem como, tem Guattari obras fundamentais sobre os movimentos sociais. Quanto a Deleuze radicado nestes dois autores, alm de Nietzsche, prope um contraponto dominao: elevar-se fora, transcender-se e integrar-se aos fluxos desejantes, ao unvoco - ao ser superior de tudo o que pode ser - potencializar-se o desejo e a verdade do humano demasiadamente humano.

II - Identidade x Devir: O Confronto

1. Reich Psicanalista No que Reich no quisesse ser visto como psicanalista, ele o desejava e muito, porm j em 1924 era produzida a primeira fissura entre ele e Freud com a formulao do conceito de potncia orgstica. O ltimo estava l a se preocupar com a qualidade, o simblico, enquanto que a quantidade j merecia uma ateno especial de Reich. A potncia orgstica1 como a capacidade de descarregar a energia acumulada de forma plena e contnua marcava o sentido da intensidade, da fora, do quantum de energia. Gilles Deleuze igualmente valoriza a potncia quando, citando Nietzsche, aponta a vontade de potncia como elevar o que se quer ensima potncia, isto , extrair sua forma superior...2. Aqui comea a trilha que, indo de um autor ao outro, permite investigar e revigorar o pensamento de Reich. Esta a proposta deste trabalho. A energia era vista como libido e atravessava a unidade corpo-mente. Reich acreditava que no s o funcionamento da psique, como a prpria relao psique-soma era dialtica. O psquico e o orgnico seriam antteses complementares. Sem dvida, a viso reichiana j representava uma quebra do paradigma tradicional da ciso corpo-mente na psicanlise. No entanto, quando recorremos a Deleuze, reportando-se a Klossowski, podemos compreender que a relao psique-corpo no seria conseqncia de um movimento de contrrios noabsolutos, como queria Reich, mas de um corpo que possui muitas almas, como tambm, de uma alma que est em muitos corpos, isto :
perversidade... pois... vrias almas entram no mesmo corpo e... uma mesma alma possui vrios corpos; perversidade do alto, pois... os prprios corpos se misturam. Deus no pode garantir nenhuma identidade! a grande pornografia, a desforra dos espritos, ao mesmo tempo sobre Deus e sobre os corpos... Klossowski insiste sobre o seguinte: que Deus a nica garantia de identidade do Eu e de sua base substancial, a identidade do corpo. No conservamos o eu sem ter que guardar tambm Deus. A morte de Deus significa essencialmente... a dissoluo do eu: o tmulo de Deus tambm o tmulo do eu.3

Reich, W. Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual, 1927/1977.* * Nas obras citadas, a primeira data refere-se ao escrito ou publicao originais, a segunda edio referida. 2 Diferena e Repetio, 1968/1988, p. 31. 3 Deleuze, G. Lgica do Sentido, 1969/1994, pp. 301 e 302.

Assim se destri as noes de identidade e de essncia, pois, na verdade, h diversas essncias. De acordo com Deleuze4, o corpo tem muitos espritos, vrias mscaras. Dessa forma, a relao que se estabelece entre corpo e a alma de pluralidade. O que move esta relao a produo das diferenas, o esprito do diferente que se instala a cada momento, a possibilidade de se ser qualquer coisa, o novo, o inusitado. Desse modo, esfacela-se outro modelo e abre-se para a inveno de que o corpo no prisioneiro de uma nica forma de ser. A nica forma de ser - a priso - de modo semelhante, pode ser percebida no enfoque reichiano sobre a sexualidade. Segundo Reich5, h uma sexualidade natural genital, como tambm h desvios: sodomia, homossexualidade, fetichismo, exibicionismo. Estes so substitutos da relao sexual genital-natural. Parece que Reich, naturalizando o comportamento genital, provoca uma patologizao de comportamentos diferentes do tradicionalmente esperado (genital). Neste caso, Reich refora a importncia do percurso da libido da pr-genitalidade genitalidade, normatizando o sentido do orgasmo baseado em um nico critrio, desconsiderando a produo de novos comportamentos sexuais e as singularidades dos diversos possveis orgasmos. Conseqentemente, ao contrrio de Reich, no se fala em universais, mas em singularidades que eliciam multiplicidades6. A produo de multiplicidades contrape-se idia de identidade. No texto Psicologia de Massas do Fascismo (1934/1988), Reich apresenta a estrutura bio-psquica do homem constituda de trs nveis: no nvel superficial, o homem mdio enquadra-se nos parmetros sociais e morais vigentes que apelam para que ele seja comedido, atencioso, compassivo, responsvel, consciencioso; no nvel intermedirio, localizam-se os impulsos cruis, sdicos, lascivos, sanguinrios e invejosos, o inconsciente ou o reprimido de Freud, mas, segundo Reich, estes so impulsos secundrios; no nvel mais profundo est o cerne natural. Aqui o homem honesto, trabalhador, cooperativo, ama e tendo motivos, odeia7. Ele profundamente funcional, natural. Um olhar crtico respaldado em Deleuze, denuncia que a perspectiva da existncia de um ncleo ou cerne natural endossa uma concepo essencialista. O trabalho reichiano passa a objetivar que o homem possa viver o mais em contato possvel com o seu ncleo. No cerne o homem . A partir da formulao da noo de essncia configura-se uma forma estrutural
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Op. Cit., 1968/1988. Origens da Moral Sexual, 1932/1988; O Combate Sexual da Juventude, 1932/1986 e outras obras. 6 Escobar, C. H. de. Dossier Deleuze, 1991/1991. 7 Prefcio 3a edio, pp. XVII e XVIII.

que, por sua vez, se reveste de uma identidade. Deleuze8 assinala o quanto o conceito de identidade aprisiona, cristaliza o que ele compreende como fluxo. J a noo de devir produz movimento, fluidez e desconstri a tica estruturalista radicada na essncia. Na verdade, h entes em fluxos. Tudo muda, gira, pulsa, se modifica a cada aion - repartio infinita do tempo, vazio do tempo. Como os homens no tm essncia, so muitos em um, no so seres particulares, so plural. Os contornos estruturais tornam-se nuvens de poeira, no mais delineamentos e identidades, s devires. Dessa maneira, objetiva-se realar os simulacros, os reflexos, as diferenas. o eterno retorno do outro e isto arrebenta com a repetio cclica do idntico. O que se repete no a cpia, mas o simulacro; o que se repete no o passado, mas o novo, o devir. O sujeito se dissolve, no h identidade. Deleuze9, assim como Nietzsche, no acredita na unidade do eu, pensa que tudo mscara. O devir furta-se ao presente, produz singularidades:
O que no nem individual nem pessoal, ao contrrio, so as emisses de singularidades enquanto se fazem sobre uma superfcie inconsciente e gozam de um princpio mvel imanente de auto-unificao por distribuio nmade que se distingue radicalmente das distribuies fixas e sedentrias como condies das snteses de conscincia. As singularidades so os verdadeiros acontecimentos transcendentais. (...) Longe de serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem gnese dos indivduos e das pessoas.10

Por acontecimento, Deleuze entende no uma histria ou um drama, mas por ser sempre inatributvel ou imprevisvel11. Os acontecimentos so jatos de singularidades que se opem possibilidade da existncia de essncias. O acontecimento no o acidente..., pois o problemtico12, ele diz respeito a problemas. O acontecimento no carrega uma marca. No desse ou daquele jeito. Ele singular. passado e futuro ao mesmo tempo. por isso que no h acontecimentos privados e outros coletivos, como no h individual e universal, particularidades e generalidades. Tudo singular e por isso coletivo e singular e ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem universal.13

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Op. Cit., 1968/1988. Nietzsche, 1965/1994. 10 Deleuze, G. Op. Cit., 1969/1994, p. 105. 11 Escobar, C. H. de. Op. Cit., 1991/1991, p. 59. 12 Deleuze, G. Op. Cit., 1969/1994, pp. 56 e 57. 13 Id., p. 155.

O acontecimento o expresso, faz a linguagem existir. Os mltiplos acontecimentos constituem a univocidade, a integrao com o ser unvoco. Este enfoque possibilita uma releitura da descarga orgstica na teoria reichiana. Na compreenso de Reich o orgasmo se revestiria do simbolismo de integrao ao Cosmos. A perspectiva deleuzeana instrumentaliza a observao de que o orgasmo pode estar relacionado ao fato do homem, imbricado nos fluxos desejantes, procurar a integrao com o ser superior, o ser unvoco, que neste caso no o move na direo do Cosmos, como sugere Reich, mas em produzir o que de melhor se possa ser, como instiga Deleuze. No entender de Reich, na impossibilidade da descarga orgstica, instauram-se os xtases como aqueles observados em muitos cultos religiosos.14 De acordo com Reich, a descarga vegetativa orgstica produto da pulsao natural do corpo, de sua auto-regulao. A auto-regulao dos indivduos implica numa auto-regulao sexual que se ope regulamentao moral vigente. Tentar compreender as conseqncias da moral compulsria reacionria e conservadora o que faz Reich em A Revoluo Sexual (1945/1976). A noo de auto-regulao parte de um pressuposto que se oporia moral tradicional. Esta tica, entretanto, naturaliza o conceito de auto-regulao, associa-o s noes de equilbrio, ordem, pois aquele conceito implica em que a descarga energtica deva ser proporcional carga, energia acumulada. Prope-se aqui uma alternativa, pautada em Deleuze, a este paradigma de auto-regulao: uma abordagem fundamentada na produo do desejo. Este como alavancador da inovao, do disforme, do simulacro, do fantasma que foge ao presente, do invlucro. 2. O Analista de Carter e Vegetoterapeuta Reich vai afastando-se da psicanlise ortodoxa quando prope uma variao do mtodo psicanaltico: a anlise do carter. Afirma que diante da opo de interpretar contedos inconscientes ou atacar as resistncias, deveria-se escolher esta ltima: no fazer interpretao de sentido quando necessrio uma interpretao de resistncia15. O como (presente) o indivduo se comporta ganha prioridade, num primeiro momento na terapia, em relao ao porque (passado). A expresso sobrepe-se impresso como ponto de partida da anlise.
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Reich, W. Op. Cit., 1934/1988. Anlise do Carter, 1933/s/d, p. 59.

Do mesmo modo, segundo Deleuze16 o que importa a superfcie, a extenso, no as alturas ou as cavernas. ali na superfcie da manifestao corporal, que se d a luta entre o desejo e a represso, ou melhor, entre o desejo e a dominao. Em 1943, Reich proferiu uma conferncia no XIII Congresso Psicanaltico Internacional, em Lucerna: Contato psquico e corrente vegetativa. Esta marcou a sua transio da psicanlise e da anlise do carter para o trabalho que veio a ser conhecido como vegetoterapia. Nesta conferncia Reich defendeu que a falta de contato psquico, a blindagem (rigidez) de carter, o encouraamento muscular e a no fluidez de energia do organismo caminham lado a lado. Alm disso, a falta de contato, geralmente, reflexo da angstia do orgasmo, isto , medo do contato orgstico17, do encontro com as pessoas e com a prpria vida. Da mesma forma, o contato psquico est associado a circulao de energia vegetativa e a produo do equilbrio organsmico, que se d atravs do reflexo do orgasmo. no limiar, na superfcie corporal o lugar de atuao de Reich. Assim tambm o para Deleuze. Quando escreve, Reich, por vezes, raivoso, ressentido, amoroso, passional e da mesma forma Deleuze o . So sensaes, emoes, sentimentos os atravessadores desses autores. Como diz Escobar18 de escritores como Deleuze: so entes transbordantes. O sentido implica numa valorizao da superfcie, da extenso. Isto profundidade, isto intensidade. A reforar tal ponto de vista est l Deleuze19, referindo-se a Paul Valry: O mais profundo a pele. margeando a superfcie que passamos dos corpos ao incorporal. Portanto, percorrer a extenso aprofundar-se. H que se perceber as dobras da extenso, o avesso, o direito, a continuidade. Anteriormente a Reich, j Espinoza20 propunha um novo paradigma: o corpo. Mais do que conscincia, ele o inexplicvel. no corpo que se enraza o inconsciente. Espinoza valorizava o inconsciente do pensamento e o desconhecido do corpo. Para ele, a conscincia o lugar de uma iluso21. Parece que para Espinoza conscincia mais imediata iluso, a conscincia verdadeira comea a acontecer quando se interage com o ser superior. Notese que assim como Nietzsche e Deleuze, Espinoza no se refere a um Eu superior, porm ao ser superior, portanto dissolvendo a noo de eu. Este autor sugeria um paralelismo entre esprito e corpo, onde negava a relao de superioridade de um sobre o outro: ... o que ao
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Op. Cit., 1969/1994. Reich, W. Op. Cit., 1933/s/d, p. 390. 18 Op. Cit., 1991/1991. 19 Op. Cit., 1969/1994, p. 11. 20 Deleuze, G. Espinoza e os Signos, 1970/s/d. 21 Id., p. 27.

na alma tambm ao no corpo, e o que paixo no corpo necessariamente paixo na alma.22 Espinoza utilizava mais a palavra esprito do que alma, em funo do sentido teolgico da segunda, enquanto que a primeira concerne multiplicidade, pois o esprito plural. Desse modo, compreende-se que, assim como o ato de teorizar, o trabalho clnico de Reich tambm diz respeito ao limiar da relao psique-soma, alma-corpo ou esprito-corpo. De acordo com Reich o objetivo da anlise caractero-vegetativa (unio da anlise do carter e da vegetoterapia) que o paciente possa desenvolver o reflexo orgstico, atravs da flexibilizao das couraas, com isso resgatando a capacidade de auto-regulao. A verbalizao e o desbloqueio das couraas propiciam a fluidez energtica, condio sine qua non para a sade do organismo. Equilbrio e sade andam juntos no enfoque reichiano. Assim, o outro lado da sade so as noes de doena e de desequilbrio energtico. Deleuze fornece um material que outorga a possibilidade de crtica dessa questo. A comear de uma concepo que normatiza os comportamentos: desequilbrio patolgico e mutatis mutandis sade equilbrio. Derivase da que todo comportamento considerado desequilibrado patolgico. Isto pressupe, entre outros argumentos, que os corpos tendem ao equilbrio, que este o padro. Esta tica terminaria por no levar em considerao o dessemelhante, aquele que marca o novo momento, a ciso, a quebra. Este paradigma no tolera o Diferente porque aplica-lhe a pecha de doente. No entanto, sob um olhar deleuzeano, tudo no seria diferente? H de fato coisas iguais? Se se perceber a vida com o devido cuidado, tudo no novo? Tudo no est sempre em movimento, como fazem crer os estudos sobre onda na fsica quntica? Simulacros e no cpias de um original, porque no existe original, s o diferente. Esta a concepo de Gilles Deleuze sobre a produo de fluxos e neste sentido o que vale a desordem e no a ordem, o caos e no a organizao, a fluidez e no a estrutura, conseqentemente, o diferente e no o normal equilibrado. E a dissoluo do Eu, o sentido de que se pode ser qualquer um, qualquer outro, porque se tudo ao mesmo tempo agora, porque se plural, se a humanidade e partir dela tambm se o ser unvoco, que tudo atravessa, na sua manifestao singular. De acordo com Deleuze, o que consubstancia a relao corpo-mente o vinculum, a prega referindo-se a Leibniz23. Da mesma forma, se pode dizer que o orgnio no que concerne a Reich. esta substncia que permeia tudo e todos e que a partir desse momento se focaliza neste trabalho.
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Id., p. 26. Escobar, C. H. de . Op. Cit., 1991/1991.

3. O Orgonoterapeuta Trabalhos experimentais sobre o reflexo do orgasmo levaram Reich, na Escandinvia, a iniciar pesquisas sobre energia e a perceb-la no mais como bioenergia (restrita aos seres vivos) mas a compreend-la como energia csmica primordial, uma vez que precederia a matria. No seu entender esta ltima no nada mais do que energia concentrada. Reich denominou a energia csmica primordial de energia orgnica. Segundo Reich, a energia produziria um movimento nos organismos denominado pulsao vital. A pulsao vital constitui o movimento ininterrupto de contrao e expanso dos corpos. Se as contraes ou expanses tornam-se crnicas e inviabilizam a pulsao, o indivduo torna-se angustiado. Do mesmo modo, viver com prazer desencadeia sade e vida. Entretanto, atravs de uma leitura mais crtica a respeito desse ponto, pode-se compreender que a pulsao vital somente uma das faces dessa questo, a outra diz respeito ao viver a verdade e o desejo como forma mobilizadora para a transformao de si e do social; assim mais do que o paradigma sade-doena, aquele que deve nortear o trabalho de terapeuta deve ser o de promover compromisso com o desejo e a verdade. Em Ether, God and Devil24 (1951/1979), Reich d uma conotao fisicalista energia orgnica quando diz que ela deriva do conceito filosfico de ter - fora fsica que envolveria tudo - e no do conceito mstico de Deus - o grande artfice do Universo. Alm disso, segundo Reich, o Reino do Diabo, representado pelo encouraamento rgido e crnico que desencadeia o dio destrutivo. A Orgonomia, alm do estudo da energia orgnica, se prope a pesquisar sobre os sistemas orgonticos. Estes so constitudos de um ncleo, uma membrana perifrica e um campo de energia. A funo desses sistemas a superposio. Eles buscam a superposio e a fuso orgonticas. O abrao genital, a unio com Deus, a ligao com o Cosmos podem ser compreendidos como o anseio do homem em dar prosseguimento busca do sentir-se inteiro, entregar-se plenamente, fazendo parte do Cosmos. O grande impedimento para isso a rigidez do encouraamento, que o afasta do centro energtico25. Observa-se, na teoria reichiana, que o orgnio costura todos os sistemas. Ele gera no s um sentido de uno como apresenta a possibilidade de tudo ser constitudo da mesma
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ter, Deus e o Diabo. Reich, W. Cosmic Superimposition, 1951/1979.

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substncia, de uma mesma essncia, que resultaria em um terceiro aspecto: a eternidade. Afigura-se que o orgnio seria um elemento constante atemporal, a-histrico, natural, criador de um sentido de todo e eterno. Em Reich, a compreenso fisicalista do orgon pode ser criticada, luz da teoria deleuzeana, na medida em que a viso de mundo para o ltimo enfoque constituda de realidades virtuais. Aqui virtual ope-se ao atual, ao presente e no ao real. Virtual movimento, o tornar-se, o devir, o furtar-se ao presente, porque o que se percebe j passou, j no mais, o incorporal. Outra questo bsica a ser problematizada o entendimento de que h estruturas orgonticas bsicas com ncleo, membrana e campo energtico que, obedecendo a um postulado do funcionalismo orgonmico, deveriam cumprir a funo de fuso orgontica. A concepo de estrutura est vinculada de identidade e de certa imobilidade. De outra forma h uma compreenso no da Semelhana propiciada pelo conceito de identidade, mas da Diferena. O que retorna a Diferena26. Assim, no h cerne (ncleo) e identidade, mas acontecimentos e simulacros. A identidade carrega a noo de particular, o simulacro a de singularidades pr-individuais, pr-pessoais. A fuso orgontica implica na noo de superposio que compreende uma ao j previamente determinada, imutvel. Para aquele lugar deveriam marchar todos os corpos. a naturalizao das aes, o aprisionamento mascarado de libertao (o abrao genital), o caminho irrecusvel, inexpugnvel e fatalista, o retorno do mesmo27. Este , em Reich, o caminho para a auto-regulao e a harmonia. Entretanto, questiona-se: e se a busca for a da verdade e do desejo no-regulvel? E se a entrega for outra que no a genital? O que fariam os reichianos ortodoxos? Patologizariam este caminho? Diriam que so desvios? Com Deleuze instaura-se o desafio repetio; com Deleuze h espao para o impensvel, a inovao; com Deleuze a repetio s pode ser do Diferente. A comear dos questionamentos anteriores torna-se criticvel a idia de uma substncia eterna, inaltervel e contnua, pois sob a tica deleuzeana tudo est em movimento e em transformao. Da mesma forma a noo de uno confrontada com a de unvoco. O uno, o todo requer uma compreenso de soma de partes, dos elementos e de uma imagem de eu superior; j o unvoco diz respeito ao ser do devir, do diferente, mltiplo, produtor de simulacros, o acaso, o acontecimento, o desigual.
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Deleuze, G. Op.Cit., 1968/1988. Ver esta noo em Foucault, M. Histria da Loucura, 1961/1995.

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Para Reich28, a auto-regulao e a auto-gesto social esto imbricadas. No se deve planejar a democracia do trabalho, ela deve acontecer de forma natural na medida em que o homem vai se auto-regulando. O homem ir aprender a ser livre, no autoritrio, capaz de se auto-gerir. A auto-gesto no vive sem a liberdade e vice-versa. Reich condiciona a possibilidade de auto-gesto social auto-regulao organsmica. Por mais original que seja este enfoque de uma ingenuidade impressionante, na medida em que no d a devida importncia aos movimentos sociais e ao desejo, como propiciadores da democracia do trabalho. A questo da relao do corpo com o social foi bem problematizadora por Foucault29. Com relao ao desejo, se pode senti-lo vivenciando-se e elevando-se ensima potncia - como sugere Deleuze30 referindo-se a Nietzsche. Da decorre originar-se o super-homem, o melhor do que se pode ser. No o homem pequeno de Nietzsche ou de Reich em Escuta Z Ningum!31 (1948/1982), porm aquele que, elevando a sua fora, transcende e se integra ao unvoco como sugere Reich em O Assassinato de Cristo (1953/1987). O super-homem torna-se ente em fluxo desejante, integra-se ao caosmos, unese ao ser superior, ao esprito, a verdade no-absoluta, ao infinito sem comeo, afinal.

III - Concluso: Os Fluxos Desejantes E se o sujeito no o fosse, mas prevalecesse o invlucro; e se a expresso denunciasse mais que a impresso; e se a unidade explodisse em mltiplos; se, como quer Guattari32, a mquina de guerra vencesse o Estado; e se a descrio e o sentido valessem mais que a interpretao, a representao e a analogia; se ocorresse de se utilizar somente verbos no infinitivo e no impessoal; se a essncia fosse iluso e o acontecimento uma realidade; se os cartgrafos trouxessem tona a importncia do espao, do lugar, do territrio; e se o poema rachasse a rigidez; e se a vontade de ser o melhor que se pudesse ser, tomasse o lugar da vontade de dominar; se a transcendncia derrotasse o niilismo; se a criana vencesse o camelo e o leo como na filosofia de Nietzsche; e se houvesse a reverso do platonismo e se acabasse com a idia de um modelo original; e se a Dialtica fosse superada pelo Eterno Retorno da
Reich, W. Op. Cit., 1934/1988. Foucault, M. Vigiar e Punir, 1975/1996. 30 Op. Cit., 1965/1994. 31 Em ingls Listen Little Man!, que foi traduzido como Escuta Z Ningem! distorcendo, desta forma, o sentido original empregado por Reich. No Brasil, em Portugal, por exemplo, Z Ningum significa Ele no nada, enquanto que homem pequeno, tanto para Nietzsche quanto para Reich, pode ser aquele que, abastado ou no, poderoso ou no, mesquinho, invejoso, enfim no um criador, mas um torturador da vida.
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Diferena; e se o carter no fosse mais do que um simulacro; e se a vida no fosse mais do que um lanamento de dados, nada mais do que o acaso?... Ento existiria o singularizar-se, que um fenmeno mltiplo, coletivo; a capacidade seria substituda pela potncia, o cronos pelo aion; o bom senso e o senso comum pelo nonsense e as singularidades nmades; a superfcie seria o espao de problematizao e no as alturas ou as cavernas; o presente seria roubado pela rapidez da metamorfose e tudo seria virtual; existiria uma fissura a tudo espreitar, e pregas e dobras que teimariam em insistir; ento, partindo do corporal, da pele, chegaramos ao profundo, aos efeitos incorporais. Assim, contra a dominao e o controle sociais33, haveria a aliana com a verdade no-absoluta e o desejo, e no com a auto-regulao, a harmonia e o equilbrio; presentificaria-se o insight de que h acontecimentos e no a busca da essncia, do ncleo, do cerne; haveria a expresso de devires, simulacros, fantasmas, entes e no a existncia da identidade, do Mesmo; e l onde se pensava haver o particular, haveria, na realidade, o singular que , ao mesmo tempo, plural. Finalmente - em off -, se indagaria: isto um trabalho acadmico? E se os sujeitos em dissoluo - inclusive o autor desse texto - s estivessem pegando carona nos fluxos desejantes e fossem eles cavalos de batalha a expressar a intensidade da fora que os precedeu? Ento seria a psicose, a psique, o esprito... ento no seria o eu, no seria o eu superior (Deus-antropomorfo) mas um ser superior de tudo que h e, da mesma forma, um fluxo de desejos e os entes a se entre-exprimirem34 em uma univocidade.

IV - Referncias Bibliogrficas CMARA, Marcus Vinicius. Contribuies para a atualizao da noo de corpo na teoria de Wilhelm Reich pela tica foucaultiana. In: Arquivos Brasileiros de Psicologia. Rio de Janeiro: Imago, 1997, vol. 49, no 2. DELEUZE, Gilles. Diferena e Repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _______________. Espinoza e os Signos. Porto: Rs, s/d. _______________. Lgica do Sentido. So Paulo: Perspectiva, 1994. _______________. Nietzsche. Lisboa: Edies 70, 1994. ESCOBAR, Carlos Henrique de (Org.). Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hlon, 1991.
Guattari, F. Revoluo Molecular, 1977/1987. Cmara, M. V. Contribuies para a atualizao da noo de corpo na teoria de Wilhelm Reich pela tica foucaultiana, 1997/1997. 34 Expresso utilizada por Deleuze, G. em Lgica do Sentido, 1969/1994, p. 183.
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FOUCAULT, Michel. Histria da Loucura. So Paulo: Perspectiva, 1995. _________________. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1996. GUATTARI, Felix. Revoluo Molecular: pulsaes polticas do desejo. So Paulo: Brasiliense, 1987. REICH, Wilhelm. Anlise do Carter. Viseu: Guerra, s/d. ______________. A Revoluo Sexual. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. ______________. Escuta, Z Ningum! Lisboa: Dom Quixote, 1982. ______________. Ether, God and Devil and Cosmic Superimposition. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1979. ______________. O Assassinato de Cristo. So Paulo: Martins Fontes, 1987. ______________. O Combate Sexual da Juventude. So Paulo: Epopia, 1986. ______________. Origens da Moral Sexual. Lisboa: Dom Quixote, 1988. ______________. Psicologia de Massas do Fascismo. So Paulo: Martins Fontes, 1988. ______________. Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual. Porto: Escorpio, vol. 1, 1977.

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