6/6/2014 Revista Z Cultural Raa, o significante flutuante
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Raa, o significante flutuante
Stuart Hall
Traduo de Liv Sovik, em colaborao com Katia Santos*
Mesmo que alguns considerem um tanto tarde, quero voltar questo do que queremos
dizer, quais so as implicaes de dizer como fiz no ttulo bastante provocador desta
palestra que raa uma construo discursiva, um significante deslizante. Afirmaes
desse tipo j tm certo prestgio nos crculos avanados da crtica hoje em dia, mas est
claro que crticos e tericos nem sempre querem dizer a mesma coisa nem tiram as
mesmas concluses dessa afirmao. Alm disso, a ideia de que raa possa ser
entendida como significante no , na minha experincia, algo que tenha atingido com
profundidade, e nem tenha sido eficaz em desarticular ou desalojar, o que eu chamaria de
pressupostos do senso comum e formas cotidianas de falar de raa e de produzir sentido
sobre raa na sociedade de hoje. E estou falando, em parte, do mundo grande,
bagunado e sujo no qual raa importa, fora da Academia, e no s da luz que podemos,
a partir da Academia, lanar sobre ela.
O mais srio que no foram adequadamente mapeados ou avaliados os efeitos
deslocadores de se pensar raa como significante, sobre o mundo da mobilizao poltica
em torno de questes de raa e racismo, ou sobre as estratgias da poltica e da
educao antirracistas. Bem, talvez vocs no estejam persuadidos ainda, mas essa
minha desculpa por voltar neste momento tardio a esse tpico, mesmo sabendo que
muita gente acha que, afinal, tudo de til que poderia ser dito sobre raa j foi dito.
A rejeio formal do racismo biolgico
O que quero dizer com significante flutuante? Para falar em termos bem genricos, raa
um dos principais conceitos que organiza os grandes sistemas classificatrios da
diferena que operam em sociedades humanas. E dizer que raa uma categoria
discursiva reconhecer que todas as tentativas de fundamentar esse conceito na cincia,
localizando as diferenas entre as raas no terreno da cincia biolgica ou gentica, se
mostraram insustentveis. Precisamos, portanto diz-se substituir a definio
biolgica de raa pela scio-histrica ou cultural[1]. Como resumiu o filsofo Anthony
Appiah em algum momento: hora do conceito biolgico de raa ser afundado sem
deixar rastro. W. E. B. Du Bois, o grande pensador e escritor afro-americano, no to
conhecido no Reino Unido quanto deveria, escreveu sobre essas questes um texto
maravilhoso e tocante intitulado As almas da gente negra [2]. Em outro texto, um ensaio
intitulado A conservao das raas, fala do que chama de as diferenas de cor, cabelo
e osso que ainda comentou , embora sejam claramente definidas para o olhar de
historiadores e socilogos , coisa boa, porque existem muitas coisas que socilogos
no enxergam, mas ele achava que a diferena racial fosse algo que eles mais ou menos
conseguiam distinguir que tais coisas so de maneira geral de baixa correlao
com a diferena gentica e, por outro lado, impossveis de serem correlacionadas
significativamente com as caractersticas culturais, intelectuais ou cognitivas de um povo.
Alm da extraordinria variao existente dentro de uma mesma famlia, principalmente
qualquer unidade chamada famlia de raas.
A sobrevivncia do pensamento biolgico
Quero pontuar quatro coisas simultaneamente, sobre essa posio geral. Primeiro, ela
representa o que j de senso comum entre cientistas proeminentes nesse campo.
Em segundo lugar, esse fato nunca impediu que estudiosos consagrassem uma
atividade intensa, por uma minoria de acadmicos comprometidos, tentativa de provar a
correlao entre caractersticas genticas vinculadas a racialidades e desempenho
cultural. Noutras palavras, no estamos lidando com um campo no qual, digamos, o fato
reconhecido cientfica e racionalmente impede os cientistas de continuarem tentando
provar o oposto.
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Em terceiro lugar, noto que, embora as implicaes racializadas deste trabalho cientfico
permanente sobre o tema, por exemplo, sobre raa e inteligncia, sejam clamorosamente
condenadas por grande nmero de pessoas, certamente pela maioria de profissionais
liberais e sobretudo por grupos negros de todos os tipos, de fato, grande parte do que
dito por esses mesmos grupos entre si baseado em premissas desse mesmo tipo, por
exemplo, de que um fenmeno social, poltico ou cultural como a correo de uma linha
poltica, ou os mritos de uma produo literria ou musical, ou a adequao de uma
atitude ou crena pode ser atribudo ou explicado e sobretudo fixado e garantido em
sua verdade pela identidade racial da pessoa envolvida.
Deduzo da intensa atividade de pesquisa a lio incmoda de que posies polticas
opostas muitas vezes derivam do mesmo argumento filosfico. E embora a explicao
gentica do comportamento social e cultural seja frequentemente denunciada como
racista, as definies genticas, biolgicas e fisiolgicas de raa passam bem, obrigado,
nos discursos de senso comum de todos ns. O fato que a definio biolgica,
fisiolgica e gentica de raa, convidada a se retirar pela porta da frente, tende a dar a
volta e retornar pela janela.
Esse o paradoxo que quero explorar e discutir a seguir. Por que assim?
O distintivo de raa
Em um artigo na revista Crisis de agosto de 1911, Du Bois muda decisivamente seu
discurso para escrever sobre civilizaes onde hoje podemos falar de raas,
acrescentando que mesmo as caractersticas fsicas, incluindo a cor da pele, so
resultado direto, em medida considervel, do ambiente fsico e social. Alm disso, so
indefinidos e fugazes demais, ele afirma, para servirem como base para qualquer
origem, classificao ou diviso de grupos humanos. Agora, baseado nesse
reconhecimento em Dusk of Dawn, sua autobiografia, o autor abandona a definio
cientfica de raa em prol do fato de que ele escreve sobre africanos, e que africanos e
afrodescendentes tm o que chama de ancestralidade racial em comum porque
importante not-lo tm uma histria em comum, sofreram um mesmo desastre e tm
uma nica e longa memria de desastre. Porque a cor, embora pouco significativa em si,
importante Du Bois afirma como distintivo da herana social da escravido, da
disseminao e do insulto dessa experincia.
Um distintivo, uma insgnia, um signo? Aqui est a ideia, preconizada no ttulo de minha
conferncia, de que raa um significante, e que o comportamento e a diferena
racializados devem ser entendidos como fato discursivo e no necessariamente gentico
ou biolgico.
Raa como linguagem, um significante flutuante
No quero desviar de meu caminho e entedi-los com um longo tratado terico sobre os
termos que estou usando, mas simplesmente lembr-los que o modelo que est sendo
proposto aqui est mais prximo do funcionamento de uma linguagem do que do
funcionamento de nossa biologia ou de nossas fisiologias. E que raa se assemelha
mais a uma linguagem do que nossa forma de constituio biolgica. Talvez pensem
que uma coisa absurda e ridcula, talvez at estejam olhando em volta para terem
certeza de que suas aparncias estejam funcionando bem. Garanto que esto. As
pessoas so meio esquisitas, algumas marrons, outras bastante pretas, algumas at,
com esta luz, repugnantemente rosadas. Mas no h nada de errado com suas
aparncias. Mesmo assim, quero defender que raa funciona como uma linguagem. E os
significantes se referem a sistemas e conceitos da classificao de uma cultura, a suas
prticas de produo de sentido. E essas coisas ganham sentido no por causa do que
contm em suas essncias, mas por causa das relaes mutveis de diferena que
estabelecem com outros conceitos e ideias num campo de significao. Esse sentido,
por ser relacional e no essencial, nunca pode ser fixado definitivamente, mas est
sujeito a um processo constante de redefinio e apropriao. Est sujeito a um processo
de perda de velhos sentidos, apropriao, acmulo e contrao de novos sentidos; a um
processo infindvel de constante resignificao, no propsito de sinalizar coisas
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diferentes em diferentes culturas, formaes histricas e momentos.
No possvel fixar o sentido de um significante para sempre ou trans-historicamente.
Ou seja, h sempre um certo deslizamento do sentido, h sempre uma margem ainda
no encapsulada na linguagem e no sentido, sempre algo relacionado com raa que
permanece no dito, algum sempre o lado externo constitutivo, de cuja existncia a
identidade de raa depende, e que tem como destino certo voltar de sua posio de
expelido e abjeto, externo ao campo da significao, para perturbar os sonhos de quem
est vontade do lado de dentro.
Como dar conta da realidade da discriminao e da violncia raciais?
Dirijo-me a essa questo diretamente porque acredito que aqui que os mais cticos
entre vocs esto comeando a pensar: Tudo bem, d para dizer talvez que raa no
seja, afinal, uma questo de fatores genticos, biologia, caractersticas fisiolgicas,
morfologia do corpo, no uma questo de cor, cabelo e osso, esse trio pavoroso que
Du Bois elenca tantas vezes. Entretanto, talvez digam: Voc est mesmo afirmando que
raa um simples significante, um signo vazio, que no est fixado em sua natureza
interna, que seu sentido no pode ser assegurado, que flutua em um mar de diferenas
relacionais? esse o seu argumento? E no seria esta no s errada, mas tambm uma
abordagem leviana[3] e ouo a palavra sendo murmurada no pblico idealista de
fatos crus da histria humana, que afinal de contas deformaram as vidas e aleijaram e
constrangeram o potencial de literalmente milhes de despossudos do mundo? E
depois, por que no usar a evidncia diante de nossos olhos? Se raa fosse um negcio
to complicado, por que ela estaria evidente de forma to manifesta aonde quer que
olhemos?
Preciso diz-lo novamente porque percebo o sentimento de alvio depois de darmos
umas voltas por essas diversas estruturas discursivas ao chegarmos ao que todos
ns sabemos sobre raa: sua realidade. D para ver seus efeitos, d para v-la nos
rostos das pessoas sua volta, d para ver as pessoas se remexendo quando pessoas
de um outro grupo racial entram na sala. D para ver a discriminao racial funcionando
nas instituies, e assim por diante. Para que toda essa algazarra acadmica sobre raa,
quando voc pode apenas voltar-se para a sua realidade?
Que caminho atravs da histria mais literalmente marcado pelo sangue e a violncia,
pelo genocdio da Middle Passage, os horrores da servido nos engenhos e a forca
improvisada? Um significante, um discurso? Sim, esse o meu argumento.
Duas posies: a realista e a textual
J que no estamos preocupados aqui com a crtica terica abstrata e sim com uma
tentativa de abrir os segredos do funcionamento de sistemas raciais de classificao na
histria moderna, permitam-me voltar questo de como observamos esse
funcionamento em torno da preocupante questo acerca das diferenas grosseiras de
cor, osso e cabelo, que constituem o substrato material, o denominador comum absoluto
e final dos sistemas raciais de classificao. Quando todos os demais refinamentos
foram apagados, parece haver um resduo de diferenas que so palpveis nas pessoas,
as quais chamamos de raa. De onde ser que vieram, se so simplesmente, o que
estou tentando afirmar, discursivas?
Em termos gerais, entendo que h trs opes aqui. Primeiro, podemos alegar que as
diferenas de tipo fisiolgico ou de natureza realmente fornecem base para que
classifiquemos as raas humanas em famlias. Quando se comprova que conseguem
faz-lo, podem ser representadas de forma adequada em nossos sistemas de
pensamento e linguagem. Essa uma posio realista: est a, e s falta refletir de forma
adequada sobre o que est l fora no mundo, nos sistemas de linguagem e
conhecimento que utilizamos para conduzir investigaes sobre seus efeitos.
Uma segunda possibilidade a posio chamada muitas vezes de puramente textual ou
lingustica. Raa , aqui, um sistema autnomo de referncia. Este no pode ser testado
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contra o mundo efetivo da diversidade humana, s dentro do jogo do texto e do jogo de
diferenas que construmos na nossa prpria linguagem.
Uma terceira posio: o discursivo
Existe uma terceira posio, qual me filio. Essa terceira posio a de que existem
diferenas de todo tipo no mundo, e que a diferena um tipo de existncia anmala por
a, uma srie randmica de todo tipo de coisa que a gente chama de mundo e no h
motivo para negarmos essa realidade ou essa diversidade. Acho que o que Foucault s
vezes, mas nem sempre, chama de extra-discursivo. Mas estou em Goldsmiths e no
quero provocar os foucaultianos Apenas quando essas diferenas foram organizadas
dentro da linguagem, dentro do discurso, dentro dos sistemas de sentido, que podemos
dizer que as diferenas adquiriram sentido e se tornaram fatores da cultura humana e da
regulao de condutas essa a natureza do que estou chamando de conceito
discursivo de raa. No que as diferenas no existam, mas sim que o que importa so
os sistemas que utilizamos para dar sentido a elas, para tornar as sociedades humanas
inteligveis; os sistemas que cotejamos com as diferenas, a forma como organizamos
essas diferenas em sistemas de sentido com os quais, de alguma maneira, fazemos
com que o mundo nos seja inteligvel. E isso nada tem a ver com negar que como digo,
o teste do pblico se voc olhar ao redor vai descobrir que, realmente, temos
aparncias diferentes uns dos outros.
Acho que esses sistemas so discursivos porque o jogo entre a representao da
diferena racial, a escrita do poder e a produo do conhecimento crucial para a
maneira em que foram gerados e funcionam. E uso a palavra discursivo aqui para
marcar teoricamente a transio de uma compreenso mais formal da diferena para
uma compreenso de como as ideias e conhecimentos da diferena organizam as
prticas humanas entre os indivduos.
Religio: uma primeira tentativa de classificao radical
Os sistemas de classificao racial tm uma histria. Sua histria moderna emerge onde
povos de tipos muito diferentes tm que fazer sentido como povos de uma outra cultura,
significativamente diferente. Podemos datar o momento desse encontro histrico. Quando
o Velho Mundo encontrou os povos do Novo Mundo, ele colocou uma questo, a famosa
questo que Seplveda fez a Las Casas no debate no interior da igreja catlica, a questo
da natureza dos povos que encontramos no Novo Mundo. No disseram, como os mais
religiosos entre vocs gostariam de pensar, So ou no so homens como ns e
nossos irmos? No so elas mulheres como ns e nossas irms? No, no disseram
isso, demorou muito para isso acontecer dois ou trs sculos antes do movimento
abolicionista colocar essa questo. No, o que disseram foi: So homens verdadeiros?
Isto , pertencem mesma espcie que ns ou nasceram de outra criao? E aqui
durante sculos no era a cincia, mas a religio o significante do conhecimento e da
verdade, no lugar onde as cincias humanas, e depois a cincia como tal, estava
destinada a ficar mais tarde, para fundamentar a verdade da diferena humana e da
diversidade em um fato controlvel, que definia que o lado deles era l, e o nosso aqui;
eles nos navios e ns no topo da civilizao que conquistamos e etc.
Dormir melhor: a funo cultural do conhecimento
Organizar pessoas em diversos grupos sociais, de acordo com suas diferenas, para
isso que serve o ato da classificao humana. isso o que se procura primeiro atravs
de um discurso religioso, depois antropolgico e, finalmente, em um discurso cientfico.
Aqui, cada um desses conhecimentos est funcionando no como provimento da
verdade, mas como aquilo que tranquiliza os homens e as mulheres e os deixa dormir
melhor. So chupetas, chupetas de conhecimento que se coloca na boca; primeiro
coloca-se a chupeta religiosa e espera-se que, no final das contas, Deus tenha criado
dois tipos de homens, tenha feito duas tentativas num fim de semana, depois noutro, e
eles estavam l e ns estvamos c, e s muito tempo depois a gente acabou topando
uns com os outros. Mas no h qualquer ideia de que viemos do mesmo lugar. E essa
chupeta no funciona, voc a tira e coloca outra: e em termos antropolgicos, eles dizem:
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Bem, so parecidos conosco, porque todo mundo vem dos macacos mas alguns so
mais prximos dos macacos do que a gente e embora no haja uma diferena absoluta,
voc sabe que isso suficiente para encontrar diferenas, nos departamentos
universitrios, na publicao de artigos etc. E, finalmente, quando a prpria antropologia
por fim desiste, logo aparece James Clifford, que desiste desse tipo de conhecimento
sobre o que a antropologia consegue fazer, separar as ovelhas das cabras. E a vem a
cincia e diz: Eu consigo, eu sei fazer. Tente a gentica. Voc no enxerga a gentica,
um sistema maravilhoso, interno, no fazemos ideia do que seja, podemos v-lo no
laboratrio mas os seres humanos no o veem, o que veem so os efeitos da
operao do cdigo gentico. Assim, um cdigo maravilhosamente secreto que apenas
um nmero pequeno de pessoas tm ao seu dispor, que faz o que a religio[4] no
conseguiu e a antropologia afinal acabou fracassando em fazer. Ele consegue dizer por
que essas pessoas no so do mesmo campo, por que so diferentes umas das outras,
e por que so realmente de outra espcie. E no seria bom saber que em vez de tentar
descobrir se os que so seus amigos so mais prximos de voc do que aqueles que
no o so, todo aquele mapa complexo de alianas e etc. que constituem as relaes
humanas no seria legal se voc pudesse dizer algo simples como: Vou dar um pulo
no laboratrio e depois lhe digo se eles so prximos ou no. isso que a gentica
consegue fazer.
Fixando a diferena: a funo cultural da cincia
A cincia tem uma funo, uma funo cultural, em nossa sociedade. Vou parar antes que
eu v longe demais. No estou sugerindo que a cincia no tem substncia. Estou
falando da funo da cincia dentro dos sistemas culturais humanos. Estou falando da
funo cultural da cincia e que essa funo, nas linguagens e discursos do racismo, tem
sido precisamente a de dar garantia e certeza da diferena absoluta que nenhum outro
sistema de conhecimento at ento tinha conseguido prover. por isso que o trao
cientfico permanece um instrumento to poderoso no pensamento humano, no s na
Academia, mas em toda parte do discurso do senso comum das pessoas. Durante
sculos, se lutou para estabelecer uma diferena binria, entre dois tipos de pessoa. Mas
quando chegamos ao Iluminismo, que diz ou reconhece que somos todos de uma
mesma espcie, foi preciso encontrar uma maneira de marcar a diferena dentro dessa
espcie e no entre duas espcies porque uma parte da espcie diferente: mais
brbara, atrasada ou civilizada do que a outra parte. E voc se depara com uma marcao
diferente da diferena, a diferena que marcada dentro do sistema. Vejam como
Edmund Burke escreveu para o historiador William Robertson em 1777: No precisamos
mais recorrer histria, afirmou, para traar o conhecimento da natureza humana em
todas as suas fases e perodos. Por qu? Porque agora o grande mapa da humanidade
est todo na estrada e no h estado ou gradao de barbrie ou modo de refinamento
que no esteja simultaneamente sob nossa vista. Este o olhar panptico do
Iluminismo: tudo, toda a criao humana est, por assim dizer, sob o olho da cincia. E,
neste mbito, possvel marcar as diferenas que realmente importam. E quais so? As
civilidades muito diferentes da Europa e da China; a barbrie de Tartary e da Arbia; e o
estado selvagem da Amrica do Norte e da Nova Zelndia. Meu argumento no diz
respeito cincia em si, mas ao que estiver no discurso de uma cultura que fundamenta
a verdade sobre a diversidade humana, que abre o segredo das relaes entre natureza e
cultura, que desata o n enigmtico da diferena humana que importa. O que importa no
que contenham a verdade cientfica sobre a diferena, mas que funcionem como
fundamento do discurso sobre a diferena racial. Fixam e estabilizam o que de outra
maneira no haveria como ser fixado ou estabilizado. Asseguram e garantem a verdade
das diferenas discursivamente construdas.
Natureza = cultura
Ento, a relao aqui que a cultura feita para ser um ato contnuo da natureza, ela se
apoia na natureza para se justificar. A natureza e a cultura operam como metforas uma
para a outra. Operam metonimicamente. a funo do discurso, e de raa como
significante, fazer com que ambos os sistemas natureza e cultura correspondam um
ao outro, de maneira que uma possa ser lida atravs da outra. Assim, uma vez que se
saiba onde uma pessoa cabe na classificao das raas humanas naturais, possvel
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inferir da o que provavelmente pensam, o que sentem ou produzem, a qualidade esttica
de suas produes, e assim por diante. A funo de raa como significante constituir um
sistema de equivalncias entre natureza e cultura.
Exige-se o trao biolgico como sistema discursivo na medida em que os sistemas
raciais tenham a funo de essencializar, de naturalizar, essa maneira de tirar a diferena
racial da histria, da cultura, e localiz-la para fora do alcance da mudana.
Ver crer
No entanto, esse no , a meu ver, o nico motivo pelo qual o raciocnio biolgico,
enquanto funciona como se fosse largamente falso, ainda permanece na conversa
quando falamos de raa. Esse no o nico motivo. O ponto de partida de Du Bois era
precisamente as diferenas mais grosseiras de cor, cabelo e osso.
Apesar do fato de que permanecem anmalos s populaes, transcendem a definio
cientfica, so os que, afinal, provm o fundamento das linguagens que usamos no
cotidiano para falar sobre raa: os fatos fsicos grosseiros, que teimam em existir, de cor,
cabelo e osso. Ora, a questo central sobre essas diferenas fsicas grosseiras que
elas no esto baseadas na diferenciao gentica, mas so claramente visveis a olho
nu. So absolutamente, evidentemente, indisputavelmente presentes. So a diferena
visvel. So, para o olho no cientfico, o que faz com que raa seja um assunto que
continuamos discutindo. So os fatos brutos, fsicos e biolgicos que aparecem no
campo de viso humano, onde ver crer.
Frantz Fanon foi arrebatado por essa inscrio da diferena racial na superfcie do corpo
negro: o que ele chamou de evidncia escura e inquestionvel de sua prpria negritude.
Em Pele negra, mscaras brancas (2008[1952]) ele disse: Sou um escravo no da ideia
que outros tm de mim mas de minha prpria aparncia, sou fixado por ela. Pois o que
pode transfixar as pessoas mais do que aquilo que poderoso, evidente e concretamente
presente? Uma diferena racial que se inscreve indelevelmente na escritura de um corpo?
Mesmo assim, quero argumentar que acontece a um jogo de significantes.
Gentica: produzindo sentido com a diferena
De onde surgem esses signos evidentes e visveis de diferena racial? Cabelo crespo,
nariz largo, lbios grossos, traseiros grandes. E, conforme o escritor francs Michel
Cournot o expressou com delicadeza, pnis do tamanho de catedrais. O que d origem a
tudo isso, claro, o cdigo gentico. Porque essas coisas no esto simplesmente
presentes. J tentaram fazer uma triagem de um conjunto de pessoas que apresentem
algumas dessas diferenas, separando-as em dois grupos discretos e opostos? Isso
impossvel de ser feito. impossvel. Algumas pessoas ficam em um polo, outras noutro,
e depois h um grupo no meio que fica deslizando para dentro e para fora. No possvel
fix-lo. Assim, embora raa seja claramente o que voc v, o que a fixa o que todos
sabemos, ns da rea cientfica. O que lhe d respaldo o cdigo gentico, o qual
lamentavelmente no se consegue enxergar. Mas possvel inferir sua existncia a partir
do fato de que algumas pessoas tm traseiros grandes e outras cabelos crespos, e
alguns tm narizes largos e alguns, como dizem, tm o pnis do tamanho de uma
catedral. Mas no d para organizar a populao sabe, dizer abaixe as calas e lhe
digo se voc isto ou aquilo porque a coisa anmala demais. Mas se pode ter
certeza de que, geneticamente, um pedao de cdigo deu origem a essas diferenas no
nvel da superfcie das aparncias[5]. E ns, pobres mortais, temos que trabalhar com
essa superfcie das aparncias porque no temos acesso ao cdigo gentico.
Ler o corpo
Tudo bem, vocs devem estar dizendo, isso pode ser verdade, mas o que voc est
dizendo, de fato, que essas coisas que so visveis tambm so significantes! Voc as
est lendo como signos em um cdigo que no d para ser visto, presumindo que o
cdigo gentico que produz essas diferenas grosseiras de cor, cabelo e osso. E que s
por causa disso que podemos us-las como uma forma de fazer distino entre um e
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outro grupo de pessoas. Se eu disser, aconteceu por acaso, no a resposta que
procuramos. Procuramos entender o fato de que voc consegue ler o corpo como se
fosse um texto. Ele um texto. Agora, meus amigos, sei que vocs vo dizer, Se voc me
bater, me cortar, eu vou sangrar. Se me atropelar na rua, como acontece frequentemente
aqui em New Cross, vou me machucar. Ento, no me diga que sou um texto. Talvez seja
verdade, mas na medida em que estamos falando do sistema de classificao de
diferenas, o corpo um texto e somos todos leitores dele. E circulamos, olhando esse
texto, inspecionando-o como crticos literrios cada vez mais de perto para ver as
diferenas mais refinadas, as to sutis diferenas de metfora. E quando isso no
funciona comeamos, como verdadeiros estruturalistas, a fazer uso das combinaes.
Bem, com um permanente, sabe, um nariz no to largo, com cabelos um pouco
crespos, e se tenho um traseiro grandinho e sabe Deus mais o qu, talvez eu chegue a
uma aproximao. Somos leitores de raa, isso o que est rolando. Somos leitores da
diferena social. E o cabelo citado como se fosse definitivo, como se pusesse fim
discusso. Voc diz que raa um significante, mas no , no. O pessoal l diferente,
d para perceber que so diferentes! Bem, essa obviedade, a prpria obviedade da
visibilidade de raa, o que me convence de que isso funciona, porque isso est
significando algo: um texto que conseguimos ler.
Por que precisamos ir alm da realidade
E agora, ento, essa noo de que at o cdigo gentico impresso em ns atravs do
corpo, e no sobre o corpo, e de que no se pode parar na superfcie do prprio corpo
negro como se isso desse um fim discusso. Mas exatamente por isso que o corpo
invocado no discurso dessa maneira: na esperana de que ele encerre o assunto, de que
se voc invocar a prpria realidade, se voc disser, a pessoa mais preta nesta sala,
venha comigo, como se a possibilidade de apontar essa pessoa destrusse meu
argumento. s olhar: Olhe, ali! exatamente essa a funo de invocar o corpo como o
ltimo significante transcendental, como se ele fosse o marcador alm do qual todos os
argumentos so suspensos, toda linguagem cessa; como se todo discurso fosse
derrubado diante dessa realidade. Acho que no podemos nos desviar da realidade de
raa porque a prpria realidade de raa o obstculo que nos separa de uma
compreenso mais profunda do sentido de dizer que raa um sistema cultural.
Analisar as histrias do corpo
J disse que Fanon, no ensaio Pele negra, mscaras brancas, arrebatado e obcecado
pelo trauma de sua prpria aparncia e do que isso significa. Fica enlouquecido por estar
preso e trancado em um corpo que o outro, o outro branco, conhece s de olhar para ele,
que esse outro v atravs dele ao ler o texto do corpo negro. Est obcecado com esse
fato. E, no entanto, como vocs sabem, a potncia e importncia de Pele negra, mscaras
brancas que Fanon entendeu que por debaixo do que ele chamou de esquemas
corpreos est outro esquema. Um esquema composto de histrias e anedotas e
metforas e imagens que o que na realidade constri a relao entre o corpo e seu
espao social e cultural. So essas histrias e no o fato em si. O fato em si
precisamente a cilada da superfcie, que nos permite descansar no que bvio, no que
est presente de forma manifesta, o que nos oferecido como sintoma da aparncia.
Aquilo que assume o lugar do que de fato , um dos sistemas culturais mais profundos e
complexos que nos permitem distinguir entre dentro e fora, entre ns e eles, entre quem
pertence e quem no pertence.
Esse fato aparentemente simples, bvio e banal requer a invocao de territrios de saber
para que este seja produzido como fato simples, bvio e banal. Nesse sentido, a
diferena racial mais parecida com a diferena sexual do que outros sistemas de
diferena, precisamente porque a anatomia, a fisiologia, parece resolver a questo. O que
sabemos e aprendemos, aos poucos, sobre a diferena sexual, isto , a profundidade
das questes por trs da produo dessa distino, o que precisamos comear a
aprender sobre as linguagens que usamos para falar de raa.
Por que importa? combatendo o racismo
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Embora o conceito de raa no possa desempenhar a funo que lhe solicitada
prover a verdade fixando-a sem sombra da dvidas difcil livrar-se dele porque muito
difcil para as linguagens sobre raa funcionarem sem qualquer tipo de garantia
fundacional. O que estou dizendo aqui, sobre essa necessidade, no um argumento
terico, ou no apenas. um argumento poltico, porque tanto a poltica de raa quanto a
de anti-raa esto fundadas na noo de que de alguma maneira, em algum lugar, seja
atravs da biologia, ou da gentica, ou da fisiologia, da cor, ou algo que no seja a histria
e cultura humanas, h uma garantia da verdade e autenticidade das coisas nas quais
acreditamos e que queremos fazer. a busca da garantia, tanto na poltica antirracista
quanto na poltica racista, que nos vicia na preservao do trao biolgico. difcil abrir
mo dele porque, no final das contas, no sabemos como seria tentar conduzir uma
poltica, sobretudo uma poltica antirracista, sem garantias. No sabemos como conduzir
a poltica sem garantia. Queremos de alguma maneira que algo nos diga que as opes
polticas contingentes em aberto e usualmente erradas que fazemos podem, no final, ser
lidas a partir de uma template mais cientfico-terica que, se a tivssemos conhecido de
antemo, nos teria dito o que estava certo ou no. Precisamos de garantia, precisamos,
no sono da razo, de algo que nos diga Sim, faam-no. No s por nos dar a sensao
de ser, e nos parecer ser, a coisa certa, at onde nossos clculos alcanam, mas
tambm porque ao final ser a coisa certa, existir algo que a tornar certa. Isso porque
as pessoas que defendem as mesmas coisas, afinal, so as pessoas que voc conhece,
so boas pessoas. Como que pessoas que se juntaram em torno dessa forma comum
de identificao podem estar erradas? Mas a verdade que podem, como todos os seres
humanos comuns. Todos podemos estar errados, e muitas vezes estamos. De fato,
normalmente estamos, e d para afirmar que nossa poltica quase sempre o . A nica
coisa que no somos detentores de garantias da verdade do que fazemos.
De fato, acredito que sem esse tipo de garantia teramos que recomear[6]. Recomear
em um outro espao, com um conjunto diferente de pressupostos para tentar nos
perguntar o que na identificao humana, na prtica humana, na construo de alianas
humanas que sem as garantias e certezas da religio, ou da cincia, antropologia,
gentica, biologia, ou da aparncia diante de nossos olhos , sem qualquer garantia,
poderia nos possibilitar a conduo de um discurso e de uma prtica humanos
eticamente responsveis sobre raa em nossa sociedade. Como seria conduzi-lo, sem
ter s nossas costas um toque de certeza, mesmo que parecssemos estar errados, se
tivssemos acesso ao cdigo, algo que tivesse nos dito o que fazer, desde o incio?
E esta uma verdade incmoda. incmodo, claro, para os que gostariam de poder
invocar os traos biolgicos ou genticos como forma de suspender o debate. Mas
tambm uma verdade muito difcil de ser encarada pelas pessoas que sentem que a
realidade de raa d uma espcie de garantia ou sustentao a seus argumentos
polticos, juzos estticos e crenas sociais e culturais. Quando adentramos a poltica do
fim da definio biolgica de raa, mergulhamos de cabea no nico mundo que temos: o
abismo do debate e da prtica polticos permanentemente contingentes e sem garantias.
Uma poltica crtica contra o racismo, que sempre uma poltica da crtica.
* Este texto uma conferncia proferida por Stuart Hall em 1995 em Goldsmiths College
University of London e reproduzida em documentrio por Sut Jhally Media Education
Foundation, 1996. Est disponvel na ntegra, em ingls, ilustrada por fotos e diagramas,
no YouTube. Comea no minuto 640 da parte 2 do documentrio Race, the Floating
Signifier, disponvel em:www.youtube.com/watch?
v=SIC8RrSLzOs&list=PL9DB8464B43CFAC14
* Stuart Hall, nascido na ento colnia da Jamaica em 1932, migrou para a Inglaterra em
1951. Preocupou-se desde cedo com questes ps-coloniais e questes ligadas ao
racismo. Dirigiu o Centre for Contemporary Cultural Studies, da University of Birmingham,
e o Departamento de Sociologia, da Open University, at se aposentar em 1997. Presidiu
por muitos anos os conselhos do Institute of International Visual Art (www.iniva.org) e
Autograph-ABP (anteriormente a Association of Black Photographers) www.autograph-
abp.co.uk.
6/6/2014 Revista Z Cultural Raa, o significante flutuante
http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/raca-o-significante-flutuante%EF%80%AA/ 9/9
* Liv Sovik professora da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (ECO-UFRJ) e organizadora da coletnea de Stuart Hall, Dadispora (Editora
UFMG, 2003).
Katia Santos pesquisadora independente, tradutora, escritora e autora do livroIvone
Lara, a dona da melodia.
[1] Incio da parte 3: www.youtube.com/watch?v=BI-
CwR8pCcY&list=PL9DB8464B43CFAC14
[2] Du Bois, W.E.B. As almas da gente negra. Trad. Helosa Toller Gomes. Rio de Janeiro:
Lacerda Ed., 1999.
[3] Incio da parte 4: www.youtube.com/watch?
v=rYGeqryELXk&list=PL9DB8464B43CFAC14
[4] Incio da parte 5: www.youtube.com/watch?
v=OVjmbDbnJKo&list=PL9DB8464B43CFAC14
[5] Incio da parte 6: www.youtube.com/watch?
v=GeD6awgSHGU&list=PL9DB8464B43CFAC14
[6] Incio da parte 7: www.youtube.com/watch?
v=vRRQ2KSBeyA&list=PL9DB8464B43CFAC14