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Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz ETICO

Este documento resume a biografia do escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade e apresenta três contos do livro "Contos de aprendiz". O resumo biográfico destaca que Drummond nasceu em 1902 em Minas Gerais e se tornou um dos maiores nomes da poesia brasileira. Os contos exploram temas como brigas infantis, a inocência da infância e a compaixão por meio de histórias narradas da perspectiva de crianças.

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Carlos Drummond de Andrade - Contos de Aprendiz ETICO

Este documento resume a biografia do escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade e apresenta três contos do livro "Contos de aprendiz". O resumo biográfico destaca que Drummond nasceu em 1902 em Minas Gerais e se tornou um dos maiores nomes da poesia brasileira. Os contos exploram temas como brigas infantis, a inocência da infância e a compaixão por meio de histórias narradas da perspectiva de crianças.

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Carlos Drummond de Andrade

Contos de aprendiz

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

1. Biobibliografia
Carlos Drummond de Andrade nasceu na pequena
cidade de Itabira, interior mineiro, em 1902. Viveu grande parte da sua vida na cidade do Rio de Janeiro, onde
morreu aos 85 anos de idade, em 1987.
Formado em farmcia, Drummond optou pelo funcionalismo pblico, transferindo-se, em 1934, para o Rio
de Janeiro, onde foi trabalhar no Ministrio da Educao. Trabalhou tambm como codiretor do jornal Tribuna Popular.
A partir da dcada de 1950, passou a dedicar-se unicamente produo literria, intensificando o seu trabalho de cronista.
Embora tenha produzido muito como cronista, Carlos Drummond de Andrade visto como o maior nome
da poesia contempornea brasileira.

Obras
Poesias
Alguma poesia (1930); Brejo das almas (1934); Sentimento do mundo (1940); A rosa do povo (1945); Claro enigma (1951); Viola de bolso (1952); Fazendeiro do ar (1955);
A vida passada a limpo (1959); Lio de coisas (1962); Boitempo (1968); Menino antigo (1973); Corpo (1984).

tenham ocorrido as maiores transformaes do sculo


XX. No plano internacional, a dcada inicia-se com a depresso econmica que se seguiu quebra da Bolsa de
Valores de Nova York, o avano do nazifascismo e a ecloso da Segunda Guerra Mundial, quando Hitler invade a
Polnia, em 1939.
No Brasil, Getlio Vargas, levado ao poder pela Revoluo de 1930, consolida-se como ditador, no Estado
Novo. Inconformados com a perda do poder, os paulistas desencadeiam a Revoluo Constitucionalista de
1932. Ainda nesta poca, crescia a ideologia fascista,
manifestada pelos seguidores de Plnio Salgado (que
havia participado da Semana de Arte Moderna em
1922), fundador da Aliana Nacional Libertadora (ANL).
Agindo clandestinamente, aps ter sido fechada pelo
governo federal, a ANL tenta uma revoluo que, em
1936, acompanhada por revoltas populares, que serviam de pretexto para consolidar o regime. Em novembro de 1937, h o fechamento do Congresso Nacional
e a decretao do chamado Estado Novo. Esse foi um
perodo antidemocrtico, anticomunista, em que Vargas
exercia um poder ditatorial e centralizador, at que, em
29 de outubro de 1945, pressionado, renuncia.
No cenrio mundial, a Segunda Guerra termina tragicamente com a rendio alem, expondo ao mundo as
atrocidades do governo nazista contra os judeus.

Crnicas
Confisses de Minas (1944); Passeios na ilha (1952);
Fala, amendoeira (1957); A bolsa e a vida (1962); Cadeira de balano (1966); Caminhos de Joo Brando (1970);
O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso
(1972); De notcias e no notcias faz-se a crnica (1974);
Os dias lindos (1977); Boca de luar (1971);

Contos
Contos de aprendiz (1953); 70 historinhas (1978); Contos plausveis (1981).

2. A segunda gerao modernista

3. Contos de aprendiz
Nos Contos de aprendiz, Carlos Drummond de Andrade exerce no s a sua grande capacidade como prosador, mas tambm como poeta, deixando escapar em
vrios momentos o lirismo e tambm o seu antilirismo
que o fizeram conhecido como o poetamaior. Assim ironia, humor, comicidade, tragicidade, romantismo, antirromantismo, enfim, situaes cotidianas transformadas
em fico, desfilam aos olhos do leitor, confirmando a
sua exmia tcnica de contador de histrias.

A salvao da alma
A segunda fase do Modernismo brasileiro estende-se
de 1930 a 1945, perodo em que, historicamente, talvez

Foco narrativo: 1a pessoa.


Tema: briga de irmos.

Tito ps-se de quatro, eu montei-o, segurando nos


ombro, e l fomos rua acima, ele salvando a sua alma e
eu sem querer tirando a minha desforra. Ai, anos de
humilhao e derrota, de gengivas sangrando e de braos
roxos na poeira!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz.
12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. p. 18.

Augusto, para estimular Tito, sem calcular bem, recorre a um golpe duplo de calcanhares, atingindo em
cheio a virilha do irmo, que urra de dor e parte para
cima dele:
Toma, desgraado! Toma, cachorro! Toma! Era assim que voc queria ajudar a salvar a minha alma? Toma,
bandido!
No pudemos comungar no dia seguinte.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 19.

O SORVETE
Foco narrativo: 1a pessoa.
Tema: universo infantil (ingenuidade dos meninos
do interior).

Dois amigos chegam ao colgio no Rio de Janeiro,


em 1916. O narrador, filho do coronel Juca, tinha onze
anos, e seu amigo Joel, treze. Vinham de uma cidade pequena e aos domingos saam do colgio para irem ao
cinema, ao circo, almoarem em casa de parentes, em
confeitarias... Claro que, para desfrutarem de todos esses prazeres, precisavam ter tido, durante a semana, um

comportamento exemplar. O oramento infantil para


os gastos com lazer eram exguos, j que os pais eram
orientados a deixar dinheiro para os meninos apenas
para pequenas despesas. Ento, volta e meia, tinham de
fazer escolhas, abrindo mo de um prazer em prol de
outro. Certa vez, os dois jovens, a caminho do cinema,
depararam-se com uma placa anunciando um delicioso
sorvete de abacaxi. Como nunca haviam experimentado tal delcia, acabaram deixando o filme pela metade e
correndo ao sorvete:
[...] e j ouo um leitor maduro que me interrompe:
Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histrica? Leitor irritado, no bem isso.
Peo apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda
h dois meninos do mais longe serto. Eles nunca haviam
sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos
os meninos de todos os pases, se travavam conhecimento com uma coisa de que s conhecessem antes a representao grfica ou oral, dela se aproximavam no raro
atribuindo-lhe um valor mgico...
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 28.

Para os meninos, o sorvete foi detestvel, muito gelado, agressivo aos dentes, de abacaxi no tinha gosto, um
horror, uma dor, um total sofrimento. Joel, percebendo
que o amigo tambm estava desconfortvel com a situao, e no direito de mais velho, baixou uma ordem,
exigindo que o amigo acabasse logo com o sorvete, do
contrrio ficaria desmoralizado:
[...] Mas restava um dever do sorvete a cumprir, um dever miservel. Refreando as lgrimas, o desapontamento,
a dor que um filho de boa famlia no pode sentir em pblico, mastiguei as ltimas pores daquela matria atroz.
Joel olhou-me de novo, j agora aprobativo e cordial.
Ele tambm sofrera bastante, mas a vida um combate.
O garom aproximou-se. Joel ps a mo no bolso, perguntou quanto era.
O dinheiro no chegava.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 31.

A DOIDA
Foco narrativo: 3a pessoa.
Temas: loucura e compaixo.
Uma doida habitava um chalezinho em uma rua cheia
de capim que descia para um crrego. Corria a histria de
que aquela mulher, que contava mais de sessenta anos,
fora noiva de um fazendeiro. Tiveram uma festa estrondosa de casamento, mas, na prpria noite de npcias, o

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Augusto tem quatro irmos: Miguel, o mais velho;


Edison, Ester e Tito, com quem Augusto tem muitas brigas de irmos. Tito, mais velho que Augusto um ano,
era o que mais batia no caula, mas tambm o defendia
contra os assaltos dos meninos do grupo escolar. No entanto, quando chegavam em casa, Tito se revoltava contra Augusto, dizendo-lhe que no deveria ter provocado
briga se no tinha fora para sustent-la. No fosse Tito,
Augusto Novais Jnior, de nove anos, apanharia em pblico, para satisfao dos Teixeira, dos Andrada, dos Guimares e dos outros cls rivais. Um dia, Ester apareceu
com a notcia de que chegariam por ali uns padres que
ouviriam toda a gente em confisso e tambm fariam
pregaes. Tendo ido confessar Augusto e Tito, este, tomado por um desejo de pacificar-se e atingir a bondade
e a compreenso, prope ao irmo no mais brigarem
e que, a partir daquele momento, Augusto poderia humilh-lo o quanto quisesse e, ainda assim, ele no mais
revidaria:

marido a repudiara e, no calor do bate-boca, ele a empurrou escada abaixo. Ela arrebentou-se toda e os dois
nunca mais se viram. J outros diziam que no havia sido
o marido, mas o pai que a expulsara de casa certo dia, suspeitando de que a moa pretendia envenen-lo para ficar
com o seu dinheiro. Seja como for, o fato que a mulher
fechou-se naquele chal, perdendo o juzo:
Vinte anos de tal existncia, e a legenda est feita. Quarenta, e no h mud-la. O sentimento de que a doida carregava uma culpa, que sua prpria doidice era uma falta
grave, uma coisa aberrante, instalou-se no esprito das
crianas. E assim, geraes sucessivas de moleques passavam pela porta, fixavam cuidadosamente a vidraa e lascavam uma pedra. A princpio, com justa penalidade. Depois, por prazer. Finalmente, e j havia muito tempo, por
hbito. Como a doida respondesse sempre furiosa, criara-se na mente infantil a ideia de um equilbrio por compensao, que afogava o remorso.

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 34.

Trs garotos que desciam a rua para banhar-se e pegar passarinhos passaram pela casa da doida para provoc-la, apesar de suas mes insistirem que isso era um
ato horrvel, um pecado muito grande. Os meninos, tendo verificado que no tinha mais graa apedrejar a casa,
comearam a jogar calhaus lisos, de ferro, pela chamin.
A doida, porm, naquele dia no reagia. O menino de
onze anos, mais audacioso, resolveu penetrar o jardim,
pisando firme e com cautela, enquanto os outros dois
sumiram, amedrontados. Ele acabou entrando na casa e
chegando ao quarto daquela velha pequenininha, que
se escondia com medo atrs de uma barricada de mveis. Todo desejo daquele menino em maltratar aquela
velhinha se dissipou. Ela pediu-lhe gua e parecia estar
morrendo:
Foi tropeando nos mveis, arrastou com esforo o pesado armrio da janela, desembaraou a cortina, e a luz
invadiu o depsito onde a mulher morria. Com o ar fino
veio uma deciso. No deixaria a mulher para chamar ningum. Sabia que no poderia fazer nada para ajud-la, a
no ser sentar-se beira da cama, pegar-lhe nas mos e
esperar o que ia acontecer.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 40.

PRESPIO
Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: conflito (devoo religiosa versus prazeres
carnais).

Dasdores era moa de numerosas obrigaes. Os


pais exigiam-lhe o mximo, no porque fosse pobre,
mas porque o primeiro mandamento da educao feminina : trabalhars dia e noite. Naquele dia, a moa
estava dividida entre encontrar o namorado Abelardo
na missa do galo ou montar o prespio antes da meia-noite, j que s ela conhecia o lugar de cada pea, cada
musgo, cada bicho no nascimento do menino Jesus. E o
relgio no lhe dava trgua:
[...] Saber que a vida parou seria reconfortante para
Dasdores, que assim lograria folga para localizar condignamente os trs reis na estrada, levantar os muros
de Belm. Comea a faz-lo, e o tempo dispara de novo.
Agarra-me! Agarra-me! Nas cabeas que espiam pela
porta entreaberta, no estouvamento dos irmos, que
querem se debruar sobre o caminho de areia antes
que esteja espalhada, na muda interrogao da me,
no sentimento de que a vida variada demais para caber em instantes to curtos, no calor que comea fazer
apesar das janelas escancaradas h uma previso de
malogro iminente. Pronto, este ano no haver Natal.
Nem namorado. E a noite se fundir num largo pranto
sobre o travesseiro.
Mas Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida, juntando na imaginao os dois deuses,
colocando os pastores na posio devida e peculiar adorao, decifrando os olhos de Abelardo, as mos de Abelardo, o mistrio prestigioso do ser de Abelardo, a aurola que
os caminhantes descobriram em torno dos cabelos macios
de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro
quem botou! ardendo na areia do prespio, e que Abelardo fumava na outra rua.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 45-46.

CMARA E CADEIA
Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: indignao poltico-social.
Os vereadores daquele municpio pobre encontravam-se reunidos na Cmara Municipal, discutindo o oramento para 1920. Valdemar, irritado, levanta-se e se
pergunta por que o povo elege nove representantes,
mas apenas cinco se dispunham a comparecer s sesses. Atravessa a sala e vai at os fundos do prdio para
respirar um ar menos oficial. A cadeia pblica ficava no
mesmo prdio no andar de baixo. Valdemar fica observando os presos distrados, jogando restos de comida e
pequenas coisas s galinhas atravs das grades que os
separavam do terreno vizinho:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 51.

Ouvindo um barulho l dentro na sala, Valdemar deixa a sacada e corre para ver o que acontecia. Para a sua
surpresa, um dos presos havia escapado e invadido a
sala de sesses, assustando os vereadores, que faziam
exclamaes e murmrios:
O coronel procurava impor-se:
O senhor est preso, repito! Vamos, renda-se autoridade!
Preso? disse o criminoso. Preso eu j estou h dois
anos. O senhor no pode me prender outra vez, Coronel.
Afinal eu no fugi, apenas subi a escada...
[...]
Como foi que chegou at aqui? perguntou Valdemar, em tom sereno.
A porta estava aberta, ou por outra, eu abri a porta.
L embaixo fazia muito calor...
E os outros?
Os outros ficaram, respondeu calmamente o preso.
A maioria est doente por causa da comida ( uma lavagem de porcos) e por falta de exerccio. No quiseram me
acompanhar. E eu no teimei com eles.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 53.

BEIRA-RIO
Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: crtica ao autoritarismo (explorao e abuso
de poder).
Em uma cidade improvisada, de nome Capito Borges, viviam operrios, tcnicos e diretores de uma grande Companhia que ali estava para iniciar as obras de instalao de uma indstria. Essa Companhia tinha pressa
na execuo do programa e com isso os operrios tinham que se esforar ainda mais sem garantia nenhuma
de pagamento do servio suplementar, alm do que,
acabavam no recebendo nenhuma remunerao no
dia do acerto, j que deviam todo o valor do salrio ao
armazm, que pertencia tambm mesma Companhia.
Existe um rio que corta a cidade e, certo dia, chega de
balsa Simplcio da Costa, homem digno e trabalhador,
com o propsito de montar ali, beira do rio, um varejo
de cigarros, pastis e aguardente, com a devida licena
do governo. O balseiro previne o comerciante de que a
Companhia no iria facilitar-lhe as coisas, j que era ela
que dava as ordens por aquelas bandas:
Mas os vigias da Companhia participam em frao. Um
negro, vindo do Norte, sob pretexto de negociar com cigarros e coisas de comer, na realidade est vendendo uma
cachaa perturbadora. De sorte que toda essa disposio
para o trabalho vem simplesmente do lcool.
O subdiretor chama dois homens de confiana. Eles
tm a misso de policiar disfaradamente os colegas e,
quando preciso, descer-lhes a lenha sem dar impresso de
que por ordem superior. Recebem instrues para entender-se com o negro e convid-lo a remover sua tralha da
beira do rio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 63.

J que aquele preso conseguira livrar-se do cadeado,


poderia ter fugido logo dali, mas pretendera zombar antes daqueles homens importantes:
Foi saindo de costas, muito gil, mo erguida e fechada, e sumiu, literalmente sumiu, como evaporado no calor.
Valdemar ainda quis persegui-lo, num gesto mais formal
do que instintivo, mas o farmacutico travou-lhe o brao:
Est doido?! e da, ele simpatizara tanto com o preso,
a cadeia l embaixo era to repugnante... A polcia que se
arranjasse. Chegando sacada, viu ainda o homem, que
desaparecia no beco.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 56.

Soldados invadiram a vendinha de Simplcio e jogaram todo o estoque no rio, agredindo o homem e expulsando-o dali:
Agora, negro, finca o p na estrada e vai olhando
sempre para a frente. Se no...
Empurraram-no, mas Vosso Criado no quer correr.
Caminha natural, num passo pesado, de ps chatos, sem
pressa.
Eta negro safado, at parece que ele tem costume...
Para assust-lo, os soldados atiram a esmo. Detidos a
distncia pelas sentinelas, apontador e balseiro contemplam as runas.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 65.

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E j no tinha gosto para sorver o ar da serra nem perder os olhos na mata. Uma simples tbua o separava de
meia dzia de criaturas embrutecidas, pisadas, que comiam, dormiam e faziam necessidades juntas, sobre o
cho atijolado que no se lavava nunca. O ar pareceu-lhe
empestado, como se de repente subisse at as alturas da
Cmara o cheiro de mofo e de urina que pairava na parte
baixa do edifcio.

MEU COMPANHEIRO
Foco narrativo: 1 pessoa.
Tema: autocrtica.
a

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Motinha comprou um cachorrinho: o Pirolito. Enquanto se dirigia a casa, pensava preocupado que teria
de convencer sua mulher Margarida a aceitar o animalzinho, j que era contrria a existncia de animais domsticos em casa, por zelo pela sade das crianas e amor
limpeza. Certa vez, um gato apareceu por l, desaparecendo dois dias depois, Deus sabe de que maneira. Mas
com Pirolito foi diferente, Margarida encantou-se logo
com ele. O cachorrinho foi dado oficialmente ao Juquinha, j que era o caula. Pirolito era um cozinho alegre,
querido por todos da casa. Sempre que passava pela sala
de estar, parava diante do enorme retrato do av de Motinha, como para farejar o mistrio de suas barbas negras:
Adquiri logo de hbito de conversar com Pirolito. Conversvamos horas e horas, sua e minha maneira. Abanar o
rabo, lamber, levantar ou descer as orelhas, contemplar-me
de boca aberta, resfolegando eram outras tantas maneiras de exprimir seus conceitos sobre as coisas do tempo,
que eu traduzia para a limitada linguagem humana, como
se me fosse necessrio comunic-los a outro homem que s
compreendesse portugus. Geralmente ele me tratava por
esse diminutivo com que na cidade todos me conheciam:
Motinha, e o fazia sempre na terceira pessoa: Motinha
est pensando que vai ganhar na loteria? Que esperana!
Trate de dar suas aulas no ginsio, se no quer tirar o leite
dos garotos. Era assim, sarcstico e positivo. Se me percebia derivando para o sonho, experimentava as armas do
realismo. No deixava entretanto de sugerir-me um caminho menos suave, toda vez que me via disposto a qualquer
grande transigncia com os poderes materiais, representados pelo prefeito e sua camarilha. Estou com pena de
Motinha, dizia-me o focinho mido; ele quer vender a alma
ao Coronel Dutra. Para chegar talvez a diretor do ginsio...
Se fizer isso, no conte mais comigo. E o projeto de ir para
a Capital? Comea bajulando o prefeito e acaba enterrado
nestes cafunds, como o Dr. Macedo... o Dr. Laurindo... Hoje
no estou satisfeito com Motinha, no.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 70-71.

Um dia no viram mais o amigo. Procuraram por toda


parte e nada. Pirolito era para Motinha um companheiro, um confidente, um crtico e um cmplice:
[...] Aqui me vem uma suspeita miservel, que eu repilo.
O gato apareceu e sumiu dois dias depois; Pirolito durou
mais tempo, mas tambm despareceu. Margarida to

boa, to afetuosa no gostava de animais, por causa


dos meninos, segundo diria. Cime de mim nunca teve.
Seria possvel?... No. Muitas pessoas tambm somem de
repente, sem a menor explicao, e nunca se sabe.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 74.

FLOR, TELEFONE, MOA


Foco narrativo: 1a pessoa.
Tema: realismo fantstico (sobrenatural).
Drummond narra a histria que uma amiga lhe contou, asseverando que era mesmo verdadeira e que ele
podia acreditar: uma moa que morava perto do cemitrio So Joo Batista, e que por isso no teria como
no tomar conhecimento da morte constantemente,
acabou achando que ver enterro era melhor do que no
ver nada. Acostumou-se na distrao de passear pelo
cemitrio tarde. E em um dos seus passeios vespertinos apanhou uma flor de uma cova bem modesta e no
prestou ateno ao nome inscrito na sepultura. Amassou a flor e jogou-a por algum lugar, do qual no se lembrava apesar do esforo:
[...] O certo que j tinha voltado, estava em casa bem
quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou,
ela atendeu.
Alooo...
Quede a flor que voc tirou de minha sepultura?
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 77.

No incio, a moa pensou tratar-se de um trote, por


isso riu, retrucou, debochou, mas depois a perseguio
telefnica no parava. Sempre mesma hora, no mesmo tom:
Isso durante quinze dias, um ms, acaba por desesperar um santo. A famlia no queria escndalos, mas teve de
queixar-se polcia. Ou a polcia estava muito ocupada em
prender comunista, ou investigaes telefnicas no eram
sua especialidade o fato que no se apurou nada...
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 81.

O pai da moa tentou saber alguma coisa na companhia telefnica, mas nada conseguiu. A me, desesperada, rezava, mandava rezar missas, plantava flores nos
tmulos do lado do cemitrio onde a moa havia passeado naquela tarde. Nada adiantava, a voz continuava a atormentar aquela famlia. At que o pai, no mais
suportando a situao, resolveu recorrer ao espiritismo,
e era grande a sua f de emergncia, mas tambm nada
se esclareceu:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 84.

A BARONESA
Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: cobia.
Lus, um hspede no apartamento da baronesa Ana
Clementina de Soromenho Pinheiro Lobo e Figueiredo
Moutinho a qual acabara de falecer, ficara incumbido de
avisar do falecimento o sobrinho-neto da baronesa, Renato. Outros parentes j tinham sido avisados e j estavam no apartamento quando Lus e Renato chegaram.
Todos interessados nos bens que a baronesa deixara.
Nas palavras de Renato, ela era uma boa velha, mas um
pouco chata...
Eram o sonho da famlia, essas joias de um sculo morto, que poderiam ser convertidas em bom dinheiro, caso
no se preferisse transform-las em alguma coisa de moderno. As joias escorriam da baronesa. Seus vestidos oficiais j se tinham desvanecido h muito, mas deles restava
a lembrana de corpetes bordados a ouro e guarnecidos
com brilhantes fingindo gotas de orvalho. Joias de cabea e pescoo, de busto, cintura e brao, de dedo e orelha;
joias de sapato, e quem sabe at se outras joias... Algumas
tinham sido distribudas pela baronesa como presentes
de casamento e batizado; outras (inexplicavelmente) desapareceram. Com a memria fraca, Ana Clementina era
incapaz de dar relao de tudo, e s vezes se encontrava
um anel rolando no cho; alm do que, famlias de trato
em geral desconfiam de arrumadeiras.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 89-90.

O sobrinho aproxima-se do corpo sem vida da mulher sobre a cama e percebe que alguns parentes j deviam ter passado por ali, pois os seus braos estavam
nus e os dedos vazios. Para Renato, restaram os brincos
que ele tratou de arrancar das orelhas da mulher. Conversou um pouco mais com Lus e antes de ir-se dali
partilhou com honestidade os brincos que conseguira
surrupiar do cadver.

O GERENTE
Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: comportamento inslito.
Samuel viera novo e inexperiente de Sergipe para o
Rio de Janeiro. Teve um emprego modesto e estudava
contabilidade at chegar a gerente de banco. Tornou-se um cidado bem posto, de maneiras muito discretas e suaves. Apesar de ser considerado pelas moas um
timo partido, no se casou. Interessava-se por futebol,
cinema, corridas, jantares e recepes. Principalmente,
recepes, onde acontecia uma coisa muito desagradvel: vrias mulheres, quando tinham a mo beijada por
Samuel, sentiam faltar-lhes um pedao de dedo. Essa
barbrie se repetiu vrias vezes com as mais diferentes
senhoras, nunca senhoritas, das relaes de Samuel.
O impressionante era que tudo acontecia to rpido
que jamais se conseguiu provar que quem praticava o
canibalismo era mesmo Samuel:
Mas sucede uma coisa desagradvel, que aborrece
muito Samuel; o rosto da senhora, que tambm sorria,
contrai-se um instante, seus dentes se apertam. Ela baixa
os olhos, enquanto sua mo enluvada se ergue. O tecido
rendado sbito se tinge em um dos dedos. A senhora olha
atnita para a mancha que se alastra. Instintivamente a
mo se fecha, procurando ocultar o dedo indiscreto, que
escolheu para sangrar logo este momento, vista de todos. Samuel a princpio no compreende, mas a realidade
se lhe oferece, evidente.
Feriu-se? Mas que horror; sua mo est ensopada de
sangue! Como foi que aconteceu? Espere a, vou arranjar
um pouco de iodo, algodo....
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 98.

Os mdicos declaravam dentada humana como a


causa dos acidentes com as mulheres. A polcia investigava, acolhia depoimentos, mas no foi realmente
provado nada contra Samuel. Depois de vinte anos de
servios prestados, acabou sendo afastado do banco
por determinao do seu presidente, sugerindo-lhe que
tirasse umas frias em Buenos Aires. Como o caso havia
sido arquivado, Samuel resolveu que iria uns tempos a
So Paulo, onde ningum o conhecia, mas, depois de
oito anos vivendo longe dos conhecidos do Rio, acaba
tendo que retornar cidade para tratar de uns negcios
de exportao com o presidente do banco. Instalado no
hotel, recebe surpreendentemente um telefonema de
D. Deolinda, que estava com o brao amputado por causa de complicaes poca do episdio do seu dedo
mordido. Havia tomado conhecimento da chegada de

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

[...] Algum pede continuamente uma certa flor, e essa


flor no existe mais para lhe ser dada. Voc no acha inteiramente sem esperana?
Mas, e a moa?
Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito
triste. A moa morreu no fim de alguns meses, exausta.
Mas sossegue, para tudo h esperana: a voz nunca mais
pediu.

Samuel e pretendia encontr-lo para conversarem. Encontraram-se e a mulher demonstrou interesse por Samuel e explicou-lhe que por essa razo havia prestado
depoimento polcia, inocentando-o:

uma residncia para outra, ela tem duas casas. Catarina


e Pepino foram inventados s pressas s para mostrar
Luci que ela precisava ser mais obediente, menos mimada e mexedeira:

engraado como as coisas acontecem, Samuel.


Sempre achei voc um homem simptico. Gostava de suas
maneiras to finas. Quando fui ao banco pela primeira vez
e o conheci, disse para mim mesma: Este homem um encanto, e ningum o descobre. Est escondido numa sala
escura, no meio de mquinas. Se sasse rua... Depois,
soube que voc frequentava muito a sociedade, e fiquei
imaginando um encontro casual, fora do banco. Mas eu
estava viva de pouco tempo, no podia ir a festas. Voc se
lembra? Ora, se lembra nada. Depois, foi aquele encontro
na confeitaria...

Voc est vendo aquela bruxa ali? Catarina.


Que Catarina?
Uma menina de sua idade, igualzinha a voc, talvez
at mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um
dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a me no queria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o
cachorrinho. Ento, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.
[...]
Pepino tem existncia mais positiva. Circula na rua
a rua o espao entre as duas quadras, repleto de surpresas geralmente tarde. Vem bbedo, curvado, expondo
em frases incoerentes seus problemas ntimos. Pegador de
crianas.
Vou embora para minha casa. Voc vai me levar.
Mas voc mora to pertinho...
E Pepino?
Pepino no pega ningum. Ele camarada.
Pega, sim. Eu sei.

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 117.

Saram os dois pelos bares, bebendo at no mais


poder. Aquela mulher jamais teria certeza de que fora
Samuel que lhe arrancara a ponta do dedo, no encontro
na confeitaria, culminando na amputao de seu brao:
Escute, Deolinda. Voc est completamente enganada. O que se passou naquela tarde de fato foi uma coisa
horrorosa. E isso o que aconteceu depois, e de que s agora eu estou sabendo, foi pior ainda. Mas como voc podia
pensar um minuto apenas que eu...? absurdo, veja bem.
Seria preciso que eu fosse um indivduo anormal, um desses casos de cinema, de romance. Eu admito que no momento a dor no lhe permitisse ver bem. Mas depois que
tudo passou, diga, neste momento, agora, voc acredita
mesmo que eu...?
Acredito (sua voz era indecisa, a certeza se dilua em
angstia).
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 121.

D. Deolinda soluava muito e ameaava vomitar,


efeitos do exagero na bebida. Samuel descobriu o seu
endereo, remexendo sua bolsa, e levou-a de txi at a
sua casa, deixando-a dormindo em sua cama, e foi-se.
Na manh seguinte, retornava a So Paulo par aliquidar
o negcio.

NOSSA AMIGA
Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: universo infantil.
Luci Machado da Silva uma menina de trs anos
que adora ser mimada e cortejada. Anda pela rua de

ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 127.

Para que Luci tome banho e vista-se sem reclamar,


preciso dizer a ela que ter uma festa, que na verdade
no acontece, mas isso exerce sobre a menina verdadeira fascinao. Na imaginao, a pequena pode ser tudo
e nas brincadeiras que se realiza, imitando gente grande: a boneca a filhinha que tem dodi na barriga e vai
tomar injeo, a amiga a comadre... Sua criao de
partes iguais de vida e de sonhos.

MIGUEL E SEU FURTO


Foco narrativo: 3a pessoa.
Tema: a dura realidade transformada em poesia.
Miguel vivia da simpatia coletiva, no aprendera nenhum ofcio, tampouco tinha profisso liberal, era sustentado por um rico tio contrabandista e por um irmo
jogador. Quando o tio perdeu tudo, Miguel viu-se sozinho e s duas horas da tarde, sem almoo, provavelmente sem jantar, pensou at em suicdio. Ento, imaginou
que ele furtaria o mar e ficaria muito rico. Era a primeira
vez que se furtava o mar e Miguel permanecia indelevelmente simptico e vivia a arar as terras verdes do mar:
Miguel inteirou-se de tudo, calma e decorosamente, com
a compostura que era mais um de seus atributos depois de

As conchinhas da praia, que apresentam


A cor das nuvens, quando nasce o dia.
Como disse Cames.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 138.

CONVERSA DE VELHO COM CRIANA


Foco narrativo: 1a pessoa.
Tema: amizade.
Um senhor idoso chamado Ferreira subiu no bonde,
segurando vrios pacotes e acompanhado da menina
Maria de Lurdes Guimares Almeida Xavier, que trazia
consigo um pacote de balas. O homem e a menina eram
ntimos, mas no se soube se tratava de av e neta ou se
eram simplesmente amigos:
Ferreira... Chega aqui.
Ferreira inclinou-se, ps a velha orelha, coberta de pelos, junto boca lambuzada. A menina, vermelha, baixou os olhos com infinito pudor. Num sussurro, o segredo
grave passou de boca orelha, introduziu-se em Ferreira,
ocupou-o inteiro. Ele disse apenas: Ah!... Depois, retirou
do estribo o guarda-chuva e alou-o altura do cordo.
O bonde parou. Ferreira, Maria de Lurdes, guarda-chuva e
embrulhos desceram pausadamente, atravessaram a rua,
entraram pela primeira porta aberta...
Meu pai dizia que os amigos so para as ocasies.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 144.

EXTRAORDINRIA CONVERSA COM UMA


SENHORA DE MINHAS RELAES
Foco narrativo: 1a pessoa.
Temas: encantamento e beleza feminina.

partida de meditao infindvel e celeste, para a qual no


me sentia habilitado em circunstncias to mesquinhas,
tanto mais quanto qualquer olhar de mais aguda percepo, que me sentisse inclinado a emitir, podia muito bem
ser tomado como impertinente pela digna senhora que ali
estava, dona de todo o meu sincero respeito.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 148-149.

Conversaram durante o trajeto, mas o homem continuava sem lembrar de onde a conhecia, tampouco
lembrava-se do que haviam conversado do bairro at
o centro, s pensava em como aquela senhora era fina,
graciosa e respeitvel:
[...] Mas confesso que esta lhe pareceu a conversa mais
extraordinria de quantas, at o dia presente, hei tido com
senhoras de minhas relaes. Desculpai-me, se no a considerais sequer uma conversa.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 152.

UM ESCRITOR NASCE E MORRE


Foco narrativo: 1a pessoa.
Temas: solido, vaidade, indignao, sucesso, angstia (na trajetria de um escritor).
O escritor (no o homem) nasceu numa tarde de julho,
quando escreveu na escola uma narrao de uma viagem
de Turmalinas (a sua cidade) ao polo norte. A professora
elogiou o menino Juquita, dizendo-lhe que ainda seria
um grande escritor. Tudo o que ele conhecia de um grande escritor era de Rui Barbosa, homem pequenininho, de
cabea enorme, inteligentssimo. Quando deixou Turmalinas, ingressando num internato, tornou-se redator da
Aurora Ginasial. Mais tarde, teve os seus textos publicados
na Fon-Fon!, Para Todos, Careta e Revista da Semana, s
vezes, publicaes simultneas, o que o deixavam muito
orgulhoso. Ganhou evidente notoriedade:
No houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca
mais voltei l. De l ningum me escreveu; pedindo para
fazer uma pgina sobre o Pico do Amor ou a Fonte das
Sempre-Vivas. Meus parentes espalharam-se ou morreram. O escritor tornou-se urbano.

O homem subiu no nibus repleto, agarrou-se a uma


argola, smbolo da moderna escravido urbana, e deixei que as rodas rodassem (p. 146). Uma senhora muito
sensual cumprimenta-o sorrindo, mas ele no consegue
lembrar-se de onde poderia conhec-la:

Tornou-se um homem que sofria por saber-se literato. Era ferozmente solitrio. No parava de escrever e era
vaidoso, um artista puro:

Um simples vestido a, demasiado simples! na


dupla funo de recolher e desvendar, pode ser ponto de

Eu perseguia o mito literrio, implacavelmente, mas


sem f. Nunca meus poemas foram mais belos, meus

ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 156.

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

rico, ele que os possua tantos. Ningum cogitou de prendlo, e como? e por qu? De alegria, todos se davam as mos,
confraternizando. Miguel no se confessou derrotado. E
no fora derrotado mesmo. Depositou em bancos slidos
boa parte de sua fortuna, e passou a dedicar-se coleo
de conchinhas, lembrana indiscreta e nostlgica de sua
propriedade ocenica.

esprito que se decompunham... Tudo ia escurecendo...


escurecendo... Mas eu andava, eu continuava, eu no
queria acreditar...
Risquei um fsforo, j sob a escurido absoluta, e na
lmpada que minhas mos em concha formavam, percebi
que tinha feito trinta anos. Ento, morri. Dou minha palavra de honra que morri, estou morto, bem morto.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit. p. 160.

4. BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz.
12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975.

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

contos e crnicas mais fascinantes do que nesse tempo de crescente solido, Solido, solido... Era s o que
havia em torno a mim, dentro em mim. Era como se eu
morasse numa cidade que, pouco a pouco, fosse ficando
deserta. Algum tempo mais, no haveria ningum para
dirigir os sinais luminosos nas esquinas, dar corda aos
relgios, velocidade aos bondes, carne, po e fruta s
casas. De resto, para que bondes, relgios?... J no havia ningum, todos se haviam mudado para as cidades
em frente, ao norte, ao sul, e eu passeava lugubremente minha solido nas ruas que ressoavam a meu passo,
ruas que outrora me eram familiares, e agora pareciam
escurecer, mudar de forma, de cheiro; de tal modo estavam ligadas a uma poca, uma gerao, um estado de

1 No trecho adiante, do conto O sorvete, retirado da

6 Em que conto, de Contos de aprendiz, Drummond

obra Contos de aprendiz, de Drummond, tem-se um


exemplo de um recurso muito utilizado por autores
como Manuel Antnio de Almeida e Machado de Assis.
Que recurso esse?

aparece como o prprio narrador da histria?


a) A salvao da alma
b) Meu companheiro
c) A baronesa
d) A doida
e) Flor, telefone, moa

2 Nos Contos de aprendiz, de Drummond, h passagens extremamente lricas, lembrando os seus mais belos momentos poticos. Cite um dos contos em que o
lirismo chega a fazer com que o conto se torne um poema em prosa.

3 No conto Cmara e cadeia, de Contos de aprendiz,


Drummond situa o momento histrico-poltico de uma
determinada poca no Brasil. Qual o perodo e quem
era o presidente do Pas?

4 No conto O gerente, de Contos de aprendiz, de


Drummond, por que a personagem d. Deolinda prestou
depoimento polcia, inocentando Samuel?

5 No conto Um escritor nasce e morre, de Contos de


aprendiz, de Drummond, como o escritor considera que
tenha iniciado sua carreira literria?

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7 Num dos contos de Contos de aprendiz, de Drummond, h uma referncia a um perodo de perseguies
polticas no Brasil, principalmente aos comunistas. De
que conto se trata?

8 Um dos representantes a seguir no pertence


mesma gerao a que pertenceu Carlos Drummond de
Andrade:
a) Ceclia Meireles
b) Vinicius de Moraes
c) Jos Lins do Rego
d) Mrio de Andrade
e) Rachel de Queiroz

9 No trecho a seguir, retirado do conto Um escritor


nasce e morre, de Contos de aprendiz, Drummond se faz
valer de uma figura de estilo que o notabilizou, no s
em sua prosa, mas tambm em sua poesia. De que figura se trata?
[...] O fato de terem quase todos mais de 45 anos apenas adoava esse sentimento de repulsa, para introduzir
nele um gro de piedade triste. Em verdade, ter mais de
45 anos era no somente absurdo, como prova de extrema infelicidade. At certo ponto, os acadmicos mereciam
simpatia. Como, por exemplo, os dromedrios, animais estranhos que no podem ser responsabilizados pelo gnero
de vida que lhes impe o vcio de nascena. (p. 158).

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

(...) e j ouo o leitor maduro, que me interrompe: Afinal


este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa
cena histrica? Leitor irritado, no bem isso. Peo apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda h dois
meninos do mais longe serto. Eles nunca haviam sentido
na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os pases, se travavam conhecimento com
uma coisa de que s conhecessem antes a representao
grfica ou oral, dela se aproximavam no raro atribuindo-lhe um valor mgico... (p. 28).

1. Trata-se do recurso da metalinguagem, isto , uma conversa travada entre o autor e o leitor, sobre a prpria
histria que est sendo narrada.
2. Em Miguel e seu furto, o lirismo potico est marcadamente presente, como, por exemplo, neste trecho: Depositou em bancos slidos boa parte de sua fortuna, e passou a dedicar-se coleo de conchinhas, lembrana
indiscreta e nostlgica de sua propriedade ocenica. Podemos citar tambm os contos Extraordinria conversa
com uma senhora de minhas relaes e Prespio.
3. Incio da dcada de 20 do sculo XX, cujo presidente do Brasil era Epitcio Pessoa.
4. Porque, apesar de ter sido uma das vtimas de Samuel, declarou-se atrada e apaixonada por ele.
5. Para ele, o seu nascimento como escritor foi na escola, ao escrever uma narrao de uma viagem de Turmalinas
ao polo norte.
6. e

Reproduo proibida. Art. 184 do Cdigo Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

7. Trata-se do conto Flor, telefone, moa.


8. Com exceo de Mrio de Andrade, que pertenceu gerao de 1922 do Modernismo, todos os outros pertenceram gerao de 1930, ou na prosa ou na poesia.
9. A figura de linguagem evidente a ironia.

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