0 inicio da Be
et A Pknge
1956. O ritmo modificado pela
batida original de’Joi0 Gilberto, os
arranjos mais etuditos de Tom
estudoti, tony Joachim
e Villa-Lobés, a letra. _,
2 mais direta e elaborada'e, enfim,a
voz Ai.cant
Jobim, que
Koellreutte
rnao'hias operibAea, :
complementavai tum-nGvo estilo
“Berimbau”, 1964
tanchos como “Marcha de Quarta- 8
Feira’de Cinzas”, 1964? coin Garlos =
; as marchas
;
Liras as CangSes-recitativos c@nmo o
“Sartba da Béncao”, 1964, e as
cangées e sambasscompostos com
bi
Mas, aind Seus
oquial carioca, ai permanece
d sempre um tom “‘literario” pop
ef. i
indisfargavel que estaya em.‘ Poema
dos Olhos da Amada” (1954p que I we
faz parte tanto de seus dis: de
e dequal o atticulista do «
Politica ¢ literéria
DE Nog, p
0 Monrrnisyio
A408 “Seco
SE Motnapos”Masica Poputar & Mopeana Porsia BRASILEIRA ul
Este estudo resultou de algumas cos -ias sobre musica popular que fiz
em Curitiba (1973), Rio de Janeiro (1974) € Niterdi (1976), ¢ de alguma maneira sio
quase que a transcrigio direta de um modo geral de expor os dados principais sobre
© assunto. Nao é um estudo exaustivo. A metodologia usada € bastante livre ¢ se
socorre de elementos sociais, hist6ricos ¢ literarios.
Por outro lado, como a intengao era estabelecer comparagdes entre peri
dos da histéria da poesia no século XX e fases de nossa misica popular, muitos
pois sua contribuigio € mais musical que litera. Roberto Carlos €
meno sécio-musical gue literitio, ainda que suas letras e as de Erasmo Carlos possi-
‘Pilitem uma bela andlise. Jorge Ben, hoje Jorge Ben Jor, pelas suas liberdades e
exttavagincias prosaicas, mereceria um estudo 4 parte que no fosse este. Outros
surgiram depois que este texto estava estruturado.
A pretensao foi servir um texto a alunos, professores ¢ mtisicos interessados
em conhecer as possiveis conexdes entre mtisica popular ¢ poesia literaria através de
uma linguagem menos arida que a usada pela critica universitaria. Insisto uma vez
mais dentro deste livro que essa parte deve ser lida somando-se as informagées das
partes anteriores.
Debito a Aramis Millach ter-me feito ordenar mais ou menos essas idéias
esbogadas no “Curso de Introducao 4 Musica Popular Brasileira”, (Curitiba, Teatro
Paiol, 1973) do qual também participaram Guerra Peixe, Sérgio Cabral, Aloisio
Oliveira, Tarik de Sousa ¢ Ricardo Cravo Alvim.arg a
se observaria uma ligago mais sistemdtica entre a miisica popular ¢ a poesia “literdia’
12. Arronso ROMANO Dé SaNT'ANNA
ProrosigoEs
ste estudo partird das seguintes observacées:
a. OQ Modernismo de 1922, tendo-se interessado pelo folclore brasileiro ¢ seguido
um programa para recriar 0 cotidiano das diversas realidades do pais, niio chegou ase
interessar pela miisica popular!. Isto se deve, em parte, ao fato de que a propria musica
popular brasileira era ainda algo mal configurado, nfo tendo aquele tempo se conver
tido num produto econémico € estético viavel e visivel. Os poucos estudos da época
referem-se a um aspecto apenas histrico das miisicas ¢ dangas do século XIX e,
sempre através de Mario de Andrade, temos alguns ensaios sobre miisicos ¢ruditod
como Emnesto Nazaré, Chiquinha Gonzaga ¢ outros que mantiveram vinculos com a
‘miisica popular, Deste modo, a atividade de Noel Rosa, por exemplo, aparece
‘0 da série literaria, embora numa andlise se
do humor em suas misicas
noo alae dos poets noes gu san do Spoema-
re 1922 ¢ 1930 um processo critico da cultura brasileira
BD mesma maneira que € possivel estabelecer um parallo entre a pariia ~
como efeito caustico e critico em. Noel Rosa—ea em Oswald de Andrade,
Murilo.Mendes.e Carlos Drummond de Andrade, talvez seja possivel aproximar a
‘pardjrase ~ como endosso e cépia — tal como aparece através do ufanismo de_poetas.
como Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida, ¢ 0 igual ufanismo de Ary Barroso
na a década de de ‘1930. 194 € 1940 sob os 08 a auspicios da ditadura de Getilio Vargas. Nessa linha
de relagies (crono) légicas pode-se observar uma “‘coincidéncia” entre a chanada
Geracio de 1945, dentro da série literiria, ¢ a voga de tangos, boleros, sambas-cangSes
outras formas melosas lircas e sentimentais do pés-guerra, Somente com a criagdo
a de Liicio Rangel, na década de 1950, com a passa-
da Revista de Musica Popular Bras id
gem de Vinicius de Moraes para a série musical ¢ o surgimento da Bossa Nova é que
no Brasil (no século XX).
c. _ Encerra-se entio um periodo de equivalincas entre misica e poesia, para iniciar-
se a fase das identidades. A Bossa Nova nio é apenas a mtisica da classe média da Zona
Sul carioca, mas seria a elaboragio de um produto mais sofisticado, tanto musical
quanto literariamente, revelando uma alegria de viver correspondente ao clima euférico
do governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960), A Bossa Nova instaura também
‘uma redescoberta ecolégica da natureza urbana carioca e apresenta formalmente um
certo depuramento que a aproxima das correntes de vanguarda iniciadas em 1956 na
série literatia.
\_ Estou me referindo aos escritores, pois Villa-Lobos, por exemplo, que participou da Semana de Arte
Moderna, desde cedo aproximou-se das manifestagées populares, como o choro.
Musica Poputar & MoDERNA POESIA BRASILEIRA 1B
Jana década de 1960, as identidades tornam-se ainda mais nitidas com 0
surgimento das cangdes de protesto social ¢ 0 aparecimento de Violio de Rua, Cinema,
teatro, literatura ¢ artes plisticas apresentam uma linguagem uniforme, nivelando-se
com a miisica de fundo social, feita principalmente por universitérios. O surgimento
do Tropicalismo (1968), que também repercute no teatro, artes plisticas, cinema, mé
sica popular e literatura é um novo epis6dio nessa integracio, Com 0 Tropicalismo € a
cangio de protesto fixam-se entre outros nomes, Caetano Veloso e Chico Buarque.
Este mais ligado @ linha social, aquele mais a uma linha formal. O Tropicalismo traz 0
clima de carnavalizagao da vida, restaura a parddia € procura um elo com os modernis
tas de 1922, passando pelas vanguardas de 1956.
d. A partir de 1968 no Brasil e no mundo, os movimentos estudantis de protesto
chegam ao auge e entram em decadéncia por motivos-hist6ricos-e-de-forga- maior.
Ocorre uma passagem do carnaval quaresma. A uma misica tropical e solar sobrevém
uma misica ¢ uma literatura underground, mais morbida, csotérica, penuimbrista €
da curticao do momento ¢ uma apologia do lado sujo € 5 sbrdldo dr vida como: mancicw
de opor-se ao sistema. Ao limpo da Bossa ardas de 1950 sobrevém
2 Axeratura uma miisica ¢ linguagem univ no as roupas em blie jeans
@ Todaessa evolugio marca, no entanto, uma crescente transformagio da misica
140, io. apenas sonoro, mas num 1 produto escrito. O
© ponto maximo desses movimentos de equivalinda ¢ identidade, Por isto, crticos e
professores universitérios comecam a se interessar pela éetra da misica ca popular, surgin-
do dat urna ensaistica a cla dedicada que no ¢ apenas o texto jornalstico das crdnicas
de ontem ou das necessérias historias da mésica popular. Com isto se estende 90
10. ‘mais nitido Ee do cas
3 a, afastando-se do conceito de “elas
Jets”, para se converter cada vez mais numa pritica semiolégica que procura inter-
pretar todos os signos escritos ¢ produzidos pelo homem.
DESENVOLVIMENTO
1, As ORIGENS DO saMBA, Nort Rosa & 0 MODERNISMO
Em 1922 realizava-se em Siio Paulo a Semana de Arte Moderna propondo
um novo conceito de arte que atualizasse o Brasil em relagio 4 Buropa ¢ ao. mesmo
tempo estivesse mais voltado para'a realidade nacional. Enquanto os modernistas fazi-
am sua espalhafatosa pregacao pelos jornais e teatros expondo uma plataforma estéti-
ca, que iria influenciar a vida politica e literiria brasileira nos proximos 50 anos, ia-se
configurando mais nitidamente na década de 1920 uma linguagem diferente dentro de
i“4 Asfons0 ROMANO DESANT'ANNA
nossa emergente musica popular e que acabou cristalizada nas composigdes de Noel
Rosa, Sinhd, Donga, Ismael Silva.
- Essa linguagem ia-se formando independentemente da influéncia direta
dos poetas “literarios”. Em 1917, com a gravacio de “Pelo Telefone”, Donga
efetivava o samba como género descendente do lundu africano. As modinhas,
maxixes, polcas cariocas, tangos e outras formas musicais ja haviam evoluido e se
cruzado a tal ponto que ja se misturava a origem nobre de umas com 0 uso
popular de outras.
Em 1923 surge a primeira emissora de tidio, a Rédio Sociedade, e em
1924, a Radio Clube do Brasil. Isso evidentemente deu um impulso 4 inddstria
Fonogrifica criada em 1902 com a gravacio do lundu de Xisto Bahia ~ “Isto ¢
Bom”. Ao lado da ridio e do disco, a comédia musical, ou melhor, 0 teatro de
revista, que ja existia desde a segunda metade do século XIX ganha, por volta de
1915, “uma estrutura tipicamente brasileira ¢ carioca estava pronto para langar-se
a uma nova fase: a da busca desenfreada de revistégrafos ¢ compositores mais
atualizados, e capazes de fazerem frente a enorme procura de textos ¢ de musicas
exigidas pelo sistema de ‘teatro por sessdes’, responsavel por um consumo sem
precedentes de revistas, revueites, mégicas ¢ burletas de uma hora'e quinze minutos
de representacio”.
O periodo entre 1918 e 1930 é o de fermentagio das comédias musicais.
J. R. Tinhorio apresenta um levantamento quantitativo das que foram apresenta-
das pelos dez maiores autores do género incluindo desde Freire Junior até Ary
Barroso, Observa-se que, embora a comédia musical exista até nossos dias, ela
sofreu uma concorréncia do cinema sonoro a partir da década de 1930. O cinema
descobtia também o carnaval divulgando os sucessos de cada ano. A partir da
década de 1940 ¢ até meados da de 1950 o ridio seria o elemento divulgador por
exceléncia. H 6 periodo de ouro da Radio Nacional: s6 na década de 1960 a
televisio concorreria com aqueles meios de divulgacao ¢ imprimiria novas carac-
teristicas A difusio da miisica, inclusive através dos festivais de cangies e de pro-
gramas especiais com grandes astros da miisica.
Nessa trajetéria sucinta da mtisica ¢ seu relacionamento com os meios de
divulgasio podem-se ji estabelecer dois comentarios em relacio A literatura. A
poesia, que interessa mais a esse estudo, ficou alheia a todos esses canais de
comunicacao. Continuow encerrada no livro com eventuais surgimentos namo
noutro meio de divulgagio. $6 na década de 1950, misturando-se com as artes
plisticas, cla procurou outros meios de expansio. Mas sempre numa faixa restrita
€ atingindo a um piblico de elite, Outra observaco é a de que a hist6ria da miisica
popular esté ligada visceralmente a certas datas populares como o carnaval ¢ festas
ites Gerth res como o carnaval ¢ festag
juninas. Desde as comédias musicais aos teatros até as chanchadas da Adantida,
passando pela TV ¢ pelo radio, 0 carnaval foi um elemento polart
como ritual, festa de massa, 0 carnaval realiza 0 exercicio de sentimentos magicos,
‘Musica Poputar Mopeans Possia BRast ema 15,
primitivos ¢ lidicos da comunidade, Através da mascara, do disfarce, da liberagio
dos instintos nivelam-se as classes sociais e tagas, ¢ a miisica aliada a danca atinge
sua funcio primordial que é a aglutinagio do grupo a exptessio dos sentimentos.
E significative que aquele periodo dureo (1918-1930) das comédias carna-
valescas coincida com 0 aparecimento mais sistemitico da tematica do carnaval
dentro da literatura. Em 1918, em Carnaval, Manuel Bandeira langa uma coletiinea de
versos que esteticamente antecedem a Semana de Arte Moderna de 1922, porque é
nesse livro que aparece o poema “O Sapo” em que satiriza os poetas parnasianos,
tio apegados ais rimas ricas e dificeis ¢ 4 métrica dura e forcada. O pierrd, a colombina,
© arlequim ¢ as referéncias & terca-feira gorda ow A quarta-feira de cinzas tém af, no
entanto, ainda um tom de fim de século.
Além de Bandeira, Menotti Del Picchia escreve o livro Mascaras (1917) €
depois Mitio de Andrade “Carnaval Carioca”, poema bem modernista, lembran-
do, pela repeticdo onomatopaica dos instrumentos e vozes, a atmosfera dionisfaca e
Pag, que 0 conjunto “Os Jograis de Sio Paulo” interpretou em disco, tio bem, na
década de 1950, Em Oswald de Andrade 0 tema aparece niio s6 nos poemas, mas
no romance Memérias Sentimentais de Jodo Miramar (1924). Reaparece em No Pats do
Carnaval de Jorge Amado (1931), Amanuense Belmiro de Ciro dos Anjos (1937) e em
Viagem Maravilbosa de Graga Aranha (1929). Depois desse periodo, o tema ainda
apareceria outras vezes em potas e romancistas mais recentes.
Talvez se pudesse fazer um estudo um dia sobre o significado da presenga
do carnaval em nossa cultura ¢ literatura? Esse estudo chegaria necessariamente, nos
dias de hoje, a uma constatagao de que a tematica carnavalesca saida da realidade e
ingressa na literatura voltou 4 realidade enriquecida pela passagem literaria. Refiro-
me 20 fato de que desde ha alguns tempos as escolas de samba do Rio de Janeiro,
especialmente, tém usado como enredo temas literarios descrevendo obras e temas
de autores modernistas como a Pasirgada de Manuel Bandeita, Invenio de Orfeu de
Jorge de Lima, Macunaina de Mario Andrade, a obra de Monteiro Lobato e outros.
Cria-se af um jogo de espelhos: miisica ¢ literatura sio imagens ¢ reflexos de si
mesmas nfo se sabendo qual reflete qual.
A exemplo do que sucede na mtisica de Chico Buarque, que analisamos
em outra parte deste livro, o carnaval é tematizado recotrentemente mesmo em
cangdes nao destinadas aquela festa. Hi ai a idéia de anulacio do tempo através do
Espago da festa, a revolta contra a opressio do dia-a-cia ¢ a liberagio dos instintos,
a abertura de um espaco utdpico, em que a miisica ¢ o ruido significam vida, em
oposi¢ao ao siléncio, 4 auséncia de festa ¢ 4 morte. Considerado como um ato
cosmogénico, na expressio dos antropélogos, 0 carnaval é a festa em que se
secciona o tempo ¢ se reinventa um sentido para a vida. O cosmo ea vida renascem
Com efeito, a partir dessa data, orientei dezenas de teses sobre a questio do carnaval ¢ da
carnavalizagio, deseavolvendo a teoria da carnavalizagio exposta por Mikhail Bakhtine desde que seus
livros comegaram a ser traduzidos no Ocidente a partir de 1970.A
16 Asronso ROMANO DE SANT'ANNA
pelos instintos em liberdade. Deixa-se parte do fardo repressivo. Dai ser 0 carnaval
essa utopia ansiada e vivida sempre ¢ de novo esperada a cada ano, E. nesse rito
primitivo a misica alia-se 4 danca para dar ao homem a sensagao afrodisiaca de libertacio.
O homem esti por detris de seus disfarces autenticamente se reintegrando, ao integrar
a aparéncia e a essénci:
Retomando os comentirios sobre a década de 1920 ¢ 1930, é importante
assinalar que com todos esses elementos como mediadores (radios, discos, teatro,
cinema, carnaval) na década de 1930, especialmente, a-miisica popular, ou melhor, 0
samba, jé nao é uma atividade caracteristica de ex-escravos ou de negros € mestigos em
ascensio social. Comecam a surgit os primeiros compositores braricos de importincia
como Noe! Rosa, que chegou a ser académico de Medicina, € Axy Barroso, estudante
de Direito, formado em 1930 na mesma turma dé Mario Reis, sendo que este, no
dizer de J. R. Tinhorio, era “mogo de sociedade, académico dé Direito e jogador de
tenis”. Nessa época surge também Orestes Barbosa, que como moleque de mua foi
amigo de Jodo da Baiana, mas que tinha uma formagio literéria mais pretensiosa, pois,
adolescente, publica Penumbra Sagrada, livro de versos que mereceu clogios de Agripino
» Grieco, Orestes, aquele do: “e tu pisavas 03 astros distraida’” - verso que Manuel Ban-
|] deira achava dos mais belos de nossa lingua, além de jornalista tinha pretensGes a uma
carrcira litefaria, chegando até a candidatar-se 4 Academia Brasileira de Letras.
Noutra faixa de implantacio e divulgacio da misica popular brasileira, a voz
de Vicente Celestino (no auge do sucesso em 1930) € a de Francisco Alves faziam a
confluéncia da opereta com o popularesco ajudando a expandir um tipo de produgio
artistica que a essa altura inclufa nao s6 os compositores dos morros, mas até mesmo
«um primitivo regionalista jé comprometido com a vida literéria como Catulo da Pai-
7 xio Cearensé, que erm 1910 era sucesso com “Luar do Sertio” e que, segundo Luis
Edmundo em O Rio de Janeiro do Me Tempo, era cantor e freqientador dos saldes de
Botafogo € Laranjciras. E J. R. Tinhordo, que a isto. se refere, lembra também que
Catulo chegou “a apresentar-se para nada menos de quatro presidentes da Republica:
Nilo Pecanha (1909-1910), Hermes da Fonseca (1910-1914), Epiticio Pessoa (1919-
1922) ¢ Arthur Bernardes (1922-1926)”. - ~
~ Desse modo, quando Sinhd é convidado a participar da campanha politica de
Jilio Prestes & sucesso de Washington Luis e faz um samba - “Seu Julinho ver ai.” ou
‘quando 0 mesmo Sinhé aparece para uma apresentacao no Teatro Municipal de Sio
Paulo para realizar “um festival tipicamente brasileito” a miisica popular brasileira ja
havia se tornado uma realidade configuravel e até mesmo definivel. Em Sao Paulo ela ia
ao mesmo teatro onde fora deslanchada a Semana de Arte Moderna em fevereiro de
1922 e no Rio de Janeiro ¢ em outros estados ja 0 era, mas a miisica deste ou daquel
grupo, mas um complexo de manifestagdes que cumpria plenamente © papel social. de
aplutinagio de massa ¢ expressio de desejos, simbolos € pensamentos do povo.
Enquanto era esse 0 panorama, qual o interesse dos escritores ¢ artistas do
Modernismo pela mésica popular?
Sow a
wir? ie ke Eghebia?
» Fels f
Musica Porutaa MODERNA POESIA BRASILEIRA, 7
Limitar-me-ei a duas observaces iniciais. A primeira diz. respeito as mengdes
que os modernistas pouco fizeram, em seus ensaios, & miisica popular. A segunda é
relativa a técnica da poesia moderna tematizada na apropriagio de temas, assuntos
personagens relativos a misica
‘Até que se faga uma pesquisa mais acurada, me parece, foi Mario de
Andrade, no Modernismo, quem mais perto esteve de inserir a misica e a poesia
populares no ambito das preocupacdes do escritor culto, Sua Pequena Histéria da
Miisica term ur capitulo dedicado 4 “Musica Popular Brasileira”, em que faz um
pequeno hist6tico dos diversos ritmos musicais que impregnaram nossa forma-
gio. Acentua quais os instrumentos mais comuns, refere-se a diversos tipos de
dangas, as influéncias africanas, indigenas, portuguesas espanholas, comentando
as observagées dos primeiros viajantes estrangeiros pelo pais, impressionados com
a musicalidade do povo. Especificamente sobre as figuras representativas da ma-
sica popular, jd ao tempo do Modernismo, assinala:
“as manifestagdes popularescas que tiveram maior ¢ 0 mais geral desen-
volvimento sio, desde 0 século pasado, as modinhas, os maxixes ¢ sam-
bas urbanos que andam profusamente impressos. No século XIX distin
guiram-se mais como inventores de modinhas, Xisto Bahia, que era tam-
bém ator, Mussurunga, Almeida Cunha, Carlos Dias da Silva, Soares Bar-
bosa. Nos maxixes salientaram-se duas figuras valiosas: Ernesto Nazaré,
fixador do carater carioca, e Marcelo Tupinamba que deu a essa danga
uma expressio mais geral, entre cabocla e praciana, Fspecializaram-se ain-
da Donga, Sinhé, Noel Rosa, as figuras contemporiineas mais interessan-
tes do samba impresso. Mencio especial deve ser feita a Francisca Gonzaga,
tipo curioso de compositora cujas dancas ¢ cantigas, muito dotadas de
carter brasileiro forte, mereciam maior atencao e respeito”.
Em seus outros livros, Mario voltaria mais largamente ao assunto. Leia-se
a tespeito, entre outros: Ensino sobre Musica Brasileira, Masica Doce Miisita, Aspects
Miisica Brasileira ¢ Miisica de Feitiaria. Nessas obras sio estudados ndo apenas os
musicos eruditos que participaram do Modernismo, mas os seus predecessores
alguns misicos modernos de outros paises. Em tudo perpassa o intelectual bem
informado ¢ ctitico capaz de versar 0 assunto também em artigos mais ligeiros
como “O Ditador e a Misica” em que ironizava o governo Vargas.
Apesar dessas anotages, no entanto, a musica popular, caracterizada pelo
samba ¢ outras formas urbanas, seguia uma trajetoria independente, desenvolven
do curiosamente alguns efeitos que os poetas “literarios” também queriam com18 AFfONSO ROMANO DE SANTANNA
0 poema piada, uma forma cologuial de poesia muito perto da letra do samba.
Tome-se, como exemplo, esse poema de Carlos Drummond de Andrade:
Cfoadade Amor
E 0 amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Nio se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
S6 © amor volta pata brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.
Mas, se nio fosse ele, também
que graca que a vida tinha?
Mariquita, da c4 0 pito,
no teu pito esta o infinito.
A pattir do titulo ja se percebe uma inversio de significados. O poeta prefe-
' re a “toada” — forma sertaneja de miisica ~ as baladas, madrigais, rondés, etc., de
Corigem mais aristocrata. O poema se constr6i de forma irdnica ¢ imprevista, 0
poeta atropela as palavras sem usar virgulas. Reproduz a voz € 0 ritmo de quem fala,
‘usa expressdes banais desmusicalizando a musicalidade do verso tradicional.
A exemplo do que faria Noel Rosa, ha um certo estranhamento, tama sensa-
cao de desafinagio, de dissonfincia e de brincadeira critica. Bastaria, num estudo mais
pormenotizado, fazer um levantamento no apenas em Drummond, mas em outros
poetas modernistas, da maneira como utilizam os temas musicais, para se ter uma idéia
da diferenca que introduziram na estética literdria. Ainda em Drummond tomemos,
20 2caso, outro poem, também sintomaticamente com um nome ligado 4 misica:
Joo amava Teresa que amava Raimundo
{que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que no amava ninguém.
Joo foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se ¢ Lili casou com J, Pinto Fernandes
que nio tinha entrado na histéria.
Musica Porotan & Mopexna Porsia BRAsitEiRA 19
O ritmo dessa quadrilha musical e sentimental € quebrado exatamente pelo
J. Pinto Fernandes, nome burgués, 0 tinico com sobrenome. Eo mesmo Drummond
que ironiza a mésica de Chopin num poema, ¢ noutro lembra a viola: “Também ja
fai brasileiro / moreno como vocés /. Ponteci viola, guiei forde” e confessa que a
sua situagio de poeta moderno, gauche e desajeitado, € a do individuo que perdeu o
ritmo € nao rima mais “mulher” com “estrela”, reconhecendo: “Hoje no deslizo
mais nao / no sou irdnico mais nio, / nao tenho ritmo mais a0”.
‘As referéncias a certos géneros mais sérios, como a balada, sio irénicas.
“Balada do Amor Através das Idades” é uma parédia literaria do amor cinemato:
grifico (tipo Paramount) com beijos € muita felicidade. Esse espitito irénico estar
ausente da poesia brasileira feita pela Geragio de 1945. Ali, balada, cangio, rond6,
serenata, etc. tem um io de fraque ¢ cartla. Mas, por outro lado, 1945 sera
também © tempo do s “do bolero, dos tangos e oultos congeneres.
Disto falarei mais tarde. ee
O que é a poética do Modernismo est conceatrado em dois poemas de
Manuel Bandeita: “Poética” e “Evocacio do Recife”. Sao dois manifestos, com
praticamente todos os preceitos da nova estética. Inclusive o discurso a favor da
lingua brasileira:
A vida nfo me chegava pelos jornais nem pelos livros,
Vinha da boca do povo na lingua errada do povo
Lingua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso © portugués do Brasil
Ao passo que nés
© que fazemos
f mscaguese
A sintaxe lusfada
(“Evocagio do Recife”).
‘A modernidade do lirismo esté em Noel Rosa como contrapartida a essas
propostas literarigs. $6 que no sambista nfo ha um proposito catequético, intencional
¢ deliberado, ainda que cle tivesse também que se descartar de urna linguagem ante-
rior romantica e simbolista, em que, alids, cai algumas vezes. Mas no seu veio mais
popular ¢ renovador Noel Rosa desafina em relacio aos antigos ¢ afina-se com 0s
modernistas (instintivamente): poytuide be Join \
Y Lbecndle. de pia pro jem,
biupeajenr tan
a
“Voce que atende 20 apito
de uma chaminé de barro
por que nao atende ao gritos70NSO ROMANO DESANTANNA
tio aflito
da buzina do meu carro?”
(Tiés Apitos”, 1933).
-Temtando concentrat as observagdes anteriores num tinico texto de Noel
Rosa, vejamos de que mancita o “antlteriio”, as expressoes corriqueiras, o humor,
as solucdes imprevistas ¢ outros efeitos estao presentes ness poeta tanto quanto nos
“modernistas. Tome-se 0 texto:
Conversa de Botequim
Seu gargom faca o favor de me trazer depressa)
‘ama boa média que no seja requentada
uum pio bem quente com manteiga & besa
tum guardanapo ¢ um copo dagua bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
que nio estou disposto a ficar exposto ao sol.
‘Va perguntar ao seu fregués do lado
qual o resultado do futebol.
Se voce ficar limpando a mesa
nio me levanto nem pago a despesa
va pedir ao seu patrio
uma caneta, um tinteiro, um envelope € um cartio,
Nao se esquega de me dar palito
¢ um cigarto pra espantar mosquito.
Va dizer 20 charuteiro
aque'me empreste uma revista, um cinzeiro ¢ um isqueiro.
Telefone a0 menos uma vez
para 34-4333
¢ ordene 20 seu Osério
que me mande um guarda-chuva aqui pro nosso escritério.
Seu gargom me empreste algum dinheiro
que eu deixei 0 meu com o bicheiso
vi dizer ao seu gerente
que pendure esta despest no cabide ai em frente.
Poxlem-se observar af os seguintes efeitos de ordem estilstca, para nz0 falar
em outros contesidos socinis e culturais que caberiam em outto po de andlise em
‘Miisica Poputar & MODERNA POESIA BRASILEIRA
aque se estudasse a ideologia expressa no samba brasileiro.
a. O texto nao d
telos, pregoes e modinhas. Nao tem nem 0 estribilho nem o refrao, que caracterizam
: 9 correm livremente QUE
= 4 ordem métrica prefixada como nos jundus, toadas, mar-
J maioria das musicas populares tradi
interacio com a misica dando uma sensagio de,
:proviso e naturalidade.
eB FeiRSS Coin esses OS Modernistas também usavam, ‘abandonando os po-
emas dé forma fixa como 0 soneto, ¢ construindo wm texto due parecia seguir um
“juno interior do poeta, chegando alguns deles até a abolir a ponmuasae, como, 20S
poemas de Bandeira ¢ Drummond, citados eriormente, :
pocmas eas mn
A Linguagem € a mais prosaica posstvel, a comegar Gas primeiras palavras: “seu
garcom’, em que aparece a forma popular “eu” ¢ 0 aportuguesamento da palavsa
francesa garon. A construgio das frases sepue, Portanto, 6 mesma naturalidade do |,
ritmo exterior do texto, numa ordem direta, co “Tem que a0 sujeito segue-se 0 |}
sitmo extetiot do eto eee” ish {
predicado € 0 complemento, sem busca de outro i
a ito retorico mais “literario”. |
Ygualmente, no Modernismo,.os postas re¢ -scobriram a lingaa que s¢ falava *)
no pais, abrasileiraram a sintaxe, & semintica € o vocabulério na tentativa de se alean-
car aquilo que se chamou “lingua brasileira” — conforme as muitas tentativas de
Mario de Andrade principalmente. Descobriu-se a ineficicia do concei®. de “pala:
vra particularmente poética”” e “palavra nao p ca” O pottico nascia do contexto,
da maneira de se empregar esse ou aguel no estranhamento_ que, 0 Poems
‘trazia ag seu leitor.
7 As rimas, pelo imprevisto. com que se organizam, reforgam o sentido irénico
musical do texto. Ao mesmo tempo em que ele rima “depressa / a bega”, “Osorio
/ escritério”, utiliza-se de um efeito ainda mais raro rimando néimeros com palavtas
“gma vez / 34-4333” — em que a repeticio do som “tres” reforca certa harmonia
irénica ja na seqiiénci: tinteiro-charuteiro-cinzeiro-isqueiro.
‘© Madernismo, por sua vez, fez pouco caso da sina ¢ despsszou métrica,
revelandogoutro tipo de musicalidade:, O sentido da liberagao € espontaneidade da
iz 0 Upo Ce wearer
GA Noel Rosa levou-o a assumir certos riscos €
construgio musical € tex
expetiéncias muito de acordo com o exercicio Iudico de qualquer criador. Cite-se 0
samba do “Gago”: ferae HF W078
wee 4
Mu., mu... mulher em mim ... fizestes um estrago
Eu de nervoso esto... fi. ficando gago
Nio po.. posso com a cru... crueldade
Da saudade
Que que mal... maldade
Vi... vivo sem afago22 Asronso ROMANO DE SANTANNA
Outro efeito, no entanto, que pode aproximar Noel Rosa dos modernistas
€, por conseqiiéncia, da mnisica popular, é a utilizacio da parédia. Aliés, o samba por
sua natureza, as vezes caricata, é uma atitude parodistica. Certamente Noel Rosa nio
‘parodiou, como os modernistas, a “Cangio do Exilio” de Goncalves Dias:
Minha terra tem palmares
onde gorjeia o mat
os passarinhos daqui
ago cantam como os de li
(Oswald de Andrade)
Minha terra tem macieiras da California
onde cantam gaturamos de Veneza
‘Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
€ ouvir um sabié com certidao de idade
(Murilo Mendes)
‘Mas Noel estabeleceu a parédia dentro da propria série musical realizando
‘um trabalho pertinente de critica, Assim, prope seu “Barbeiro de Niter6t”, referén-
ia a opera de Rossini. E dentro da série musical brasileira propée o “Ladrao de
Galinha”:
Quem roubou o meu capio de estimagio
foicle...
Quem abriu o portio para o ladrio
Foi cla.
Referindo-se criticamente a0 “Foi Ela” de Ary Barroso:
Quem roubou meu violio de estimagio
Foicla..
Nessa linha, ele chegaria ao samba “Sao Coisas Nossas” em que, dentro
de uma linha satirica, ainda que nao essencialmente satirica, ainda que nao essenci-
almente parodistica, faz a cronica da vida brasileira num tom nfo muito distante
dos modernistas ou até mesmo de um poeta do século XVII como Gregorio de
Matos Guerra. Esse samba originou-se, segundo Almirante em seu livto No Tempo
2) de Noel Rosa (Francisco Alves, 1963), da apreseatacio do primeiro filme sonoro
brasileiro 0-11-1931) que, embora produzido por Wallace Downey, tinha 0 titu-
lo “Coisas Nossas”.
‘Musica Popur.an MopERNa Posta BRasiLEina 23
Talvez se compreenda melhor a letra lembrando-se que © cinema sonoro
surgiu nos Estados Unidos em 1929 ¢ no mesmo ano jé era trazido para o Brasil
onde no Cinema Palicio, na Cinelindia, se apresentou “Melodias da Broadway”.
S40 Coisas Nossas
Queria ser pandeiro
Pra sentir 0 dia inteiro ‘
‘A tua mao na minha pele a batucar. Ye pA a"
aw? tm
Saudade do violao e darpalhogas, = /¥ ph
Coisa nossa...coisyaossas : |
O samba, a “prontidio” ¢ outras “bossas”,
. fee (
Sio nossas coisas... si0 coisas nosis:
Baleiro, jornaleiro
Motorista, condutor e passageiro,
Prestamista e vigarista...
E o bonde que parece uma carroga...
Coisa nossa... muito nossa..
Menina que namora
Na esquina € no portio
Rapaz casado com dez filhos, sem tostio,
Se o pai descobre o traque dé uma coca,
Coisa nossa... coisa nossa...
Malandro que nao bebe...
Que nao come, que no abandona 6 samba
Pois o samba mata a fome,
Morena bem bonita lé na roca,
Coisa nossa... muito nossa...
No citado livro, Almirante dedica um capftulo especial as parédias de Noel
Rosa, destacando; “Pesado 13”, em relagio 20 tango “El Penado 14”; “Dono do
meu Nariz”, em referéncia a valsa de Francisco Alves ¢ Orestes Barbosa “Dona de
Minha Vontade”; “Paga-me esta noite”, ironizando “Diga-me esta Noite”, fox-trot
do filme “Be Mine Tonight”,
Ora, a parédia $6 existe dentro de um sistema que tende 4 maturidade, pois
€ uma critica a0 proprio sistema (tanto social quanto musical). A parddia pressupoe
elementos preexistentes que possam ser criticados. Por outro lado, através dela cria~
se um distanciamento em relagio a uma verdade comum e opera-se a possibilidade24 AFFONso ROMANO DE SANTANNA
de uma outra verdade. Faz parte do processo de desenvolvimento de qualquer
sistema aberto, é 0 instrumento de negagio ¢ assimilagio dos contritios. B 0 corte
com a tradigo e a instauracio de uma nova linguagem. Ao se destacar da linguagem
que critica, o autor configura melhor a sua propria linguagem pela diferenga ou
inversio de significados. Sendo um efeito estético, tem também uma funcio social €
se posta a servico de uma contra-ideologia que critica a ideologia dominante.
Nesse sentido, Noel Rosa nio apenas estabelece © comentitio da série musical,
mas, coerentemente, 0 estende a diversos setores da vida brasileira atingindo até alguns
assuntos especificos ou assaz estranhos para um samba, como aquele “Positivismo”, feito
em parcetia com Orestes Barbosa. Ai ironiza Augusto Comte, que exerceu um fascinio
muito grande sobre os intelectuais ¢ militares brasileiros da Repiiblica Velha (1889-19.
© trabalho vem no principio,
‘A ordem por base,
O progresso é que deve vir no fim,
Esqueceste esta lei de Augusto Comte
¢ foste ser feliz longe de mim.
A sitira € a parddia voltam em outro samba, “Coracio”, em que critica a
linguagem dos livros de Medicina em que chegou a estudar. Diz Almirante que foi
composto logo apés a aula do doutor Bastos Davili, no Café Nice:
Coracio,
grande érg%io propulsor,
transformador do sangue
venoso em arterial
Pode-se lembrar que so da natureza dofsamnba a par
“ante cita diversas composigies feitas a propésito de*Pelo Telefone” de Donga, em
1916, e relativas tanto 20 jogo de azar ¢ ao chefe de policia quanto a outros dados da
vida social da'época,
Além desse sentido de patddia, que ser recobrado pelo Tropicalismo na
década de | le-se estabelecer um outr a série literaria ea
miisica popular, Enquanio os modernistas se diversificavam
manifestos € se empenhavam em disputas tedricas e politicas, os sambistas também
se dividiam em certos agrupamentos musicais ¢ ideoldgicos efetivando disputas €
desafios no mbito em que hes competa agi. A polémica entre Noel R
sta, de que sairam sambas como “Onde Bstd a Honestidade”, “
“Rapa Folgado” e ‘Palpite Infeliz”, mostra ja um solo estivel para a musica popu-
Masica Poputan # Mopeana Porsia BRasttena 25
lar, agora dividida em partidos ¢ preferéncias que, se nao aspiram ao poder estético
e politico — como ocorria dentro da série literéria — aspian a0 poder individual
gue reafirma 0 individuo dentro do grupo, a exemplo dos “desafios”, de origem
medieval ainda presentes no f sses agrupamentos ¢ competigoes
\ganhariam forma fais ampla e madura na organizacio das Escolas de Samba que
se constituiram verdadeiros partidos, em que a miisica é o elemento agenciador de
toda uma energia lidica necesséria 4 elaboracdo de um produto social-estético. A
Escola de Samba Estagio Primeira de Mangueira forma-se em 30-4-1929, Portela
em 11-4-1923 ¢ o Salgueiro passa por diversas fases ¢ nomes desde 2 década de
1920. Esses agrupamentos so fixados no samba “Palpite Infeliz de Noel”:
Salve Esticio
Salgueiro ¢ Mangueira
Oswaldo Cruz e Matriz
E testemunham o crescimento diversificado que caminha cada vez mais da
claboragio individual ¢ artesanal para a producio industrial de massa dirigida para
um piiblico brasileiro ¢ estrangeiro.
Finalmente, enfatize-se ainda que a proposta Modernista: atualizagio da cultu-
a brasileira ou a atualizacio da Anguagem brasileira foi realizada também pelo samba €
‘outros géneros populares nas décadas de 1920 € 1930. Deixou-se de lado a linguagem
empostada ¢ literdria que acompanhava as modinhas de salio do.século XIX e que
‘ainda aparece em Orestes Barbosa (“Cho de Estrelas”) ¢ mesmo em Sinhd (“pois fui
‘de plaga em plaga, o além do além / numa esperanga vag", “Cansei"). Nos sambas
‘como o de Ismael Silva “O Antonico”), numa linguagem cologuial invejavel, enos.de )
Noel Rosa, em geral, encontramos o tom da lingua brasileira que os modernistas perse-
guiram. Em Noel Rosa esto os jogos de palavras que caracterizariam certas emboladas
de Manezinho Araiijo e cancées folcléricas nordestinas:
Vocé é um tipo
Que no tem tipo
com todo tipo vocé se parece
Vocé ficou, agora convencido
de que seu tipo jé esta batido
pois 0 scu tipo ¢ 0 tipo
do tipo esgotado
(‘Tipo Zero”, 1934)26 AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
E dai até certas imagens estranhas € quase surtealistas como essas de “Casa~
co de Molambo”:
Meu terno branco:
parece casca de alho
foi a deixa de um cadaver
De acidente no trabalho
Essas aproximagdes entre Noel Rosa eo Modernismo evidentemente nao
esgotam nenhum dos dois tépicos, antes procuram rastrear um caminho de seme-
Ihangas e afinidades dentro de nosso panorama cultural. Por af se percebe que
tanto o produto “literario” mais erudito quanto a miisica popular fixam certas
constantes estéticas ¢ ideolégicas importantes para uma interpretagio globalizante
da vida brasileira.
Poderiamos, nessa linha, adiantar que na década de 1930 outra aproximacao
seri possivel de ser desentranhada: desta feita entre a miisica de Ary Barroso ¢ a
produgio ufanista tipifieada num
Por af se poderia estabelecer mesmo uma proporcao: Noel Rosa est4 para o Mo-
dernismo assim cor Barroso esta para a poesia ufanista da ditadura de Vargas.
Como esse assunto aiado mais adiante, dentro da mesma técnica de tomae
apenas um autor para exemplificar uma linha ideolégica e estética, me limitarei a
encerrar esta parte do estudo com outro tipo de observagio: ao terminar a década
de 1930 a musica popular ¢ a séric literaria cotriam paralelas sem muito intercambio.
‘A imisica que se tenta jastapor 20s textos dos poetas modernistas € sempre de
fnatureza erudita ¢ querendo adguitir im ténus popular no consegue mais do que
set uma espécie de Lead brasileiro, musica de sallo, semi-erudita para recitais em
conservatérios ¢ salas burguesas de concerto. Manuel Bandeira, por exemplo, que
em intimeros poemas demonstrou sua preocupago com a afinacio musical dos
vyersos € que sobre isto disserta longamente em seu livro de confissbes ¢ memérias
Ze — liineriro de Pasirgada (1954), mesmo tendo se interessado pela “fala brasileira”
por uma nova melodia de nosso verso, parece ter se interessado ainda mais pela
miisica classica ou de cimara. As referéncias a misica popular so poucas¢ mesmo
assim como aquela crénica “Sambistas” onde revela uma possivel marotagem de
Sinhd, autor de uma toada que, na verdade, Bandeira diz ser de seu Candu, quando
nio fosse ja sucesso de carnaval em 1925.
] Outros poetas como Cecilia Meireles, Jorge de Lima ¢ Carlos Drummond
| de Andrade tiveram varios de seus poemas musicados, mas sempre por composito-
Aap, es eruditgs. Lorenzo Fernandes musicou, por exemplo, “Essa Nega Fulé” de Jorge
“de Lima; Manuel Bandeira teve “Modinha” musicado por Villa Lobos ¢ “Azulao”
por Camargo Guarnieri; Cecilia Meireles, com uma poesia essencialmente musical
iano Ricardo, especialmente em Martim Cerecé.
lante € oficial incrementado na
Mosica Porutan # Mopeana Possia BRASILEIRA 27
no sentido simbolista do termo teve varios textos convertidos em pegas musicais |
maiores como “Cantata da Cidade de So Sebastitio do Rio de Janeiro”, misica de
Camargo Guarnieri; “Oratério de Santa Clara”, misica de Francisco Mignone;
“Oratorio de Santa Maria Egipciaca”, miisica de Ernst Widma. E assim poderfamos |
alongar esta lista ilustrativa. Ser4 apenas a partir da década de 1950 que a miisica |
popular se cruzaré com a poesia literéria gracas a0 passe de Vinicius de Moraes da
poesia para a mnisica. Vinicius, que segundo alguns exiicos € 0 dltimo poeta moder-
0 novo mundo que Stata
Surgindo com o publico univérsititio € a Bossa Nova, Antes de af chegarmos, vaya"
mos © que ocorre na década dé 1930 e na década de1940. r
2. O UFANISMO DE Ary BARROSO E 0 VERDE-AMARELISMO DE CAsSIANO RICARDO
Em literatura existem certas datas mais estabelecidas:
1922 — Modernismo: poema-piada ¢ romance experimental.
1930 — Romance Social do Nordeste ¢ inicio do romance urbano e psicolé-
gico moderno.
1945 - Geragio de 45 com uma poesia mais comportada em relagio a0
Modernismo.
1956 2 1968 — Vanguardas poéticas, que vao do Concretismo ao Tropicalismo.
Jéem misica as datas so menos estabelecidas, pois a musica popular é uma
instituigao ainda recente no pais. Tirando as datas do aparecimento da Bossa Nova
‘ha década de 1950 € do Tropicalismo em 1968, os primeiros 50 anos podem ser
analisados segundo critétios diversos e nem sempre coincidentes._
Prosseguindo, contudo, na tentativa de encontrar Crrespondénciasventre 0.
gue sucedia na literatura ¢ na musica popular, assim como foi licito aproximar Noel
‘Osa do Modernismo, € possivel um paralelo entre Ary Barroso ¢ 0 ufanismo ulu-
cada de 1930 com a ditadura de Getalio io Vargas.
“Fvidentemente que outros nomes surgiram nesse periodo, que poderiam (e''
deveriam) ser estudados numa outra pesquisa sobre misica que se pretendesse mais
completa, Ai é esta um Lupigcinio Rodrigues com “Se Acaso Vocé Chegasse” (1938),
eum emergente Ataulfo Alves, que nos daria “Leva Meu Samba” (1940), “Ai que
Saudades da Amélia” (1941) ¢ “Atire a Primeiza Pedra” (1941). Ai também ja esti
Dorival Caymi, que em 1939 langa duas misicas - “O Que é Que a Baiana Tei
“A Preta do Acarajé”, reforcando a linha que o mineiro Ary Barroso exploraria com
repetcussées nacionais e internacionais. Por questio de économla metodol6gicava
mos nos restringir apenas a uma linha, a um segmento da evolugio de nossa musica,
destacando 0 problema do ufanismo — que sendo um dado social ¢ histérico, por
outro lado, € um traco marcante da mis
ica nesse periodo.28 Affonso ROMANO DE SANT'ANNA
‘Tomem-se miisicas como “No Tabuleito da Baiana” (1926), “Na Baixa do
Sapateiro” (1938), “Aquatela do Brasil” (1939), “Os Quindins de laid” (1940) e “Brasil
Moreno”. Os textos localizam numa regiio do pais (Bahia) uma série de valores
\deoldgicos que seriam depois sistematicamente explorados, até pata a propaganda
no exterior. Essas composicdes reacendem o cheiro do nacionalismo verde-amarelo
de efeito programado, que facilmente agradaria a Hollywood ¢ a Walt Disney, Esse
Painel sonoro de temas, mitos € valores ideol6gicos foi estimulado pelo préprio
DIP (Departamento de Informagio ¢ Publicidade) da ditadura Vargas, que chegou
4 fazer um concurso de misica popular em que “Aquatela do Brasil” foi classificada
¢ vitoriosa, prenunciando assim o sucesso avassalador nos estiidios americanos e
interagindo com a imagem baiana de Carmem Miranda ou com o aparecimento de
2€ Catioca de Walt Disney. Transformada em fundo musical turistico nossa musica
atingia, enfim, 0 selo exportacio, em parte pelo seu valor ¢ em parte como decor-
réncia da politica de boa vizinhanca desencadeada pelo Departamento de Estado
orte-americano, que assim beneficiou outros compositores latino-américanos da
€oca, fazendo com que os Estados Unidos importassem também tangos, boleros
€ outros tipos de cangdes do Caribe. Alias, nfo era aperias em direcio aos Estados
Unidos que se organizava a exportacio da misica popular, o DIP, conforme se
Pode ler ems Escolas de Samba (Fontana, 1975) de Sérgio Cabral e Peguena Hitria
la Musica Popular Brasileira (Vozes, 1974) de José Ramos ‘Tinhorio, transmitia varios
Programas diretamente dos mortos ¢ favelas para horarios es ‘ciais na Alemanha.
tal paralelo entre 9 Modemismo e Noel Rosa, apro-
jada v: ‘0 efeito de parédia tanto nos
rt S, talvez se possa estender mais o pensamien
to € dizer que Ary Barroso esti nio apenas do lado do ufanismo, mas ideologica-
mente compoe uma série de miisicas que se situam na paréfrase ideoldgica que
cacontra semelhaneas na obra de Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, Menotti
Del Picchia, Plinio Salgado e outros.
Dentro dos primeitos anos do Modernismo, ao lado de revistas e manifes-
‘os radicaise sintonizados com uma politica de esquerda, coexistiram autores e obras
com tendéncias para a diteita. A radicalizagéo dos movimentos politicos levou-os
bry os extremos. Assim, de um lado esquerdizante temos o movimento Paa Bra
(1924) ¢a Revista Anirapofagia (1928) em que ca Oswald de Andrade.
De outro lado, esto Anta (1927) ¢ 0 Verdeamaraliimo | que se destaca
Cassiano Ricardo. Esses autores foram se definindo estética ¢ politicamente, ocu-
pando cargos administragoes estaduais ¢ na administracio federal,
UMisturada a arte, gera‘se toda uma campanha tambem pelo poder literario € politi-
Co. Cassiano Ricardo ¢ Guilherme de Almeida ocapam postos importantes no go-
verno paulista revolucionario de 1932. Cassiano af é o secretatio do Governo Provi-
Sério. Mais tarde, vencidos os obsticulos da revolucio e contra-revolucio, trabalha
dirctamente com Getilio Vargas, sendo mentor de uma politica de expansio nas
artes baseada na ideologia dos bandeirantes.
‘A PovULaR £ Monza Possia BRASILEIRA 29
Em seu livo ce memérins, Viagem no Tempo no Espao(Livtatia José Olimpio,
1970), dedica todo um capitulo ao “grupo cultural Bandeira” que tentou orgunizar em
1936 € que recebeu apoio de Benedito Valadares, Neteu Ramos, general Eurico Dutra
€ outros lideres. Os itens desse programa cultural eram:
4% Coordenar toda a acio criadora de Sio Paulo, fixada nos principios da disciplina
¢ hierarquia ¢ culto da tradicéo bandeirante, em beneficio da patria comum;
b. Dedicar-se a interpretagio do sentido de nossa Historia para, com suas concla-
Ses, fazer instituicdes ¢ iniciativas aderirem plenament
psiquica do pais;
c. Brocessar uma rigorosa revisio dos conceitos, preconceitos ¢ idéias correntes,
Procurando sua legitimidade, desraigando da mente das nossas populacdes as
concep¢ées inadaptiveis ou forasteiras;
4. Daruma fungac(Social’ art ef literatura, uilizando-as como rocesso de intepracio
na
& Realizar, no setor do espirito, as atribuigdes que lhe forem conferidas pelo Estado;
f. Organizar bandeiras de penetracio cultural ¢ assistencial, levando os recursos de
civilizacio 20 interior do pais;
Lutar pela justiga social;
Velar pelo livro. Amparar a criagio artistica, promover estudos, literirios e politi-
£08, conferéncias ¢ debates, publicar livros relativos ao papel de Sio Paulo na
“comunhio brasileira”.
idade econdmica ¢
moe
No final daquele capitulo Cassiano Ricardo adianta que o Estado Novo
acabou por adotar a caminho previsto pela “Bandeira”. E concluiu, jé em 1970:
“Nio € outra a disetriz seguida, hoje, no Brasil, Ela se funda no prinefpio da autori-
dade, come garantia para o exercicio da liberdade. Nada mais presente, nos nossos
dias, do que o programa da ‘Bandeira’,”.
Muito do que ai esti é também a retomada das propostas de algumas dague-
las revistas da década de 1920, quando no seja uma atualizagio do que Afonso Celso
Cscreveu no seu célebre Por que Me Uano de meu Pais (1900). Aliés,o poema Martin Cereré
(1928) de Cassiano Ricardo tem os mesmos compostos ideolégicos. Conforme indi-
auei no ensaio “Modernismo: Poéticas do Centramento ¢ do Descentramento”, que
abre este livro, o que caracteriza este longo poema é 0 seu uufanismo centrado em Sio
Paulo. Dai o poeta vislumbra toda uma cultura e civilizagio decorrentes do
expansionismo dos bandeirantes, Sentimentaliza ¢ idealiza a Historia, ti
sangue € a ligrima, Os tiros ¢ n io teatrais. A Historia do Brasil parece em
como por milagre de comum acordo ¢ entr gerais. O negro, o indi ‘brane
So elementos mais crométicos que humanos, mais Coteograficos que dramaticos. Os *
Bandeirantes si0 “gigantes de botas”, figuras mitologicas acima de qualquer suspeitie
4 uniéo da Uiara com o b ima erdtico de complementacao ideold.
ne
feita‘Artonso RoMANO D& SaNTANNA
Metamortose
Meu avé foi buscat prata
mas a prata virou indio.
Meu avé foi buscar indio
mas 0 indio virou ouro.
Meu avé foi buscar ouro
mas © ouro virou terra.
Meu avé foi buscar terra
a terra virou fronteira.
‘Meu avé, ainda intrigado,
foi modelar a fronteira:
E 0 Brasil tomou forma de harpa.
‘Toda a conquista territorial é uma resultante musical, sem dissondincias de so-
frimento. Ora, este tipo de abordagem distancia-se ¢ muito 5 da | ‘parddia ¢ inscreve- Se
se contin iauago dos padroes ideoldgicos dominantes, iGo de
A critica
“i Historia deve estar em alguma parte, mas sucumbe ante o elogio e 0 endosso.
Na misica popular, no entanto, a ideologia acha-se mais a flor das frases. A
intencionalidade de apoio ou de critica é mais desvelada. Chega a ter uma certa singe-
leza psimitiva a letra de uma “Aquarela do Brasil”:
Brasil
Meu Brasil brasileiro,
‘Meu mulato inzoneito;
Vou cantar-te nos meus versos.
© Brasil, samba que dé
Bamboleio, que faz gingar
© Brasil do meu amor,
Terra de Nosso Senhor.
Brasil, Brasil
Pra mim, pra mim.
Oil abre a cortina do passado,
Tira a mae preta do cerrado,
Bota 0 rei-congo no congado.
Brasil, Brasil.
Deixa cantar de novo o trovador
A merencéria luz da lua
“
Musica Porutan & Monza Porsta BRasmena, 31
‘Toda a cancio do meu amor.
Quero ver a4 dona caminhando
Pelos saldes arrastando
0 seu vestido rendado.
Brasil, Brasil.
Pra mim, pra mim.
Oh! 6i essas fontes murmurantes
Oi onde eu mato a minha sede
€ onde a lua vem brincar.
Oh! esse Brasil lindo e t
Bs meu Brasil brasileiro.
Terra de samba e pandeiro.
Brasil, Brasil. -
Pra mim, pra mim.
Uma anilise mais emorada poderia destacar al os mesmos sinais de pardfrase
de uma linguagem antiga, recopiando modelos rominticos ¢ parnasianos: “merencOria
Tz da Ina’, a “cortina do pasado”, o Brasil como um “mulato”, confluéncia de todos
os desejos, Brasil terra da utopia musical onde vibram 0 “samba e 0 pandeiro”.
Importante como composicio, sintomitica como sindrome ideolégica ufanista, esse
texto (¢ outros) cumpre uma das fungGes da arte que ¢ expressar contetidos ideolégicos
implicitos ¢ explicitos.
As misicas nascentes de Dotival Caymie Ary Barroso
gem exotica, numa reedicao do elemento regional em nova forma. De alguma manei-
ra, para no ir muito longe, o tom dessas miisicas j4 estava em Lufs Peixoto que em
1928 fazia a letra de “Ai loid”:
Ai, ioid!
Eu nasci pra sofré
Ful oi pra vocé,
‘Meus oinho feché!
E, quando os dio eu abri,
Quis grité, quis fugi,
Mas vocé,
Eu nfo sei por que
Vocé me chamé!
Ai, ioid!
‘Tenha pena de mim
Meu Sinh6 do Bonfim
Pode inté se zangi.
Se ele um dia soubé32 As0xs0 ROMANO DE SANT'ANNA
Que voc’ é que
O iid de iaidl
Chorei toda noite
E pensei
Nos beijo de amé
Que te dei.
Toié meu benzinho
Do meu coragio
Me leva pra casa
Me deixa mais nao.
Evidentemente esse tipo de musica reagcende também a uma linguagem de
Catulo da Paixio Cearense ¢ outros sertanejos com a intencio clara de apresentar um
portugués deformado e feproduzindo foneticamente a fala do interior. Mas no deixa
de ser importante que a poesia modernista em torno de 1930 desencadeie mais nitida-
mente um processo também regionalista ou tegionalizante conjuntamente com 0 cha-
mado Romante de 30 (Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, etc). Parte-
SG tanto na musica como no romance e na poesia, para uma aceitacio maior dos
valores ideolgicos fixados por uma aquarela e um paisagismo costumbrista. Alias, além
da poesia de Cassiano Ricardo, também poetas como Jorge de Lima e Ascengo Ferreira
abordam temas semelhantes. Jorge de Lima em Poemas (1927) publica versos com uma
_dicgio e um vocabulétio extraidos do folelore.nordestino. Os poemas repetem sitnos
“Populares ¢ sons de macumba, agindo muito mais do lado da pardjrase (identidade) do
Gdiferenga). Em Nows Poemas (1929) € que ele ele cristaliza isto,
especialmente'no jé antolégico “Essa Nega Fula” no qual descreve as faceirices da
escrava ong hat seu amo através da seducio erdtica. F uma versio também,
digamos, brejeira, da esctavidio, menos realista que a do préprio Castro Alves. Lem-
brando apenas 0 poema, para colocé-lo ao lado das letras das miisicas citadas:
Ora, se deu que chegou
(isso ja faz muito tempo)
no bangué dum meu avo
uma negra bonitinha
chamada negra Fuld.
Essa negra Fulé!
Essa negra Fulé!
A poesia vai tendendo para o sonoro € o discursivo € as paisagens predomi-
nam nos livros seguintes. Em Poemas Escolhidos (1932) © em Poemas Negros (1947) ele
Masica Porutak & MopERNa POEStA BRASILEIRA 33
chegaria 4 fixacio mais decidida de toda a temitica regional, negra ¢ nordestina
bem verdade que em seus textos ha uma dose mais nitida de problematizacio
politica e social, ndo incidindo como os compositores populares, a exemplo de_
Ary Barroso, naquele tipo de descritivismo romintico, ufanista e saudosista
~~" Esses dados que aqui levanto e que talvez tenhani algama importancia
para a leitura da ideologia musical, poética ¢ politica de uma época poderiam se
tornar mais relevantes se se fizesse um estudo da relaio entre arte € poder. Entio
se poderia constatar como os intelectuais ¢ miisicos colocaram-se a servigo do
poder e como chegaram af através de suas obras. Nao deixa de ser significativo
que tanto a série musical quanto a literdria tenham fornecido a politica brasileira
um conjunto de personagens que expressaram ou expressam faccdes tepresentati-
vas do pensamento nacional
‘Assim como Oswald de Andrade iria se ligar a0 comunismo, Plinio Salga-
do, ao integralismo; Cassiano, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Jorge
de Lima, Jorge Amado e outros também teriam atuagio politico-partidaria. Até
de Minas, do grupo que publicou A Revista, na década de 1920, sairiam fututos
nomes do PSD ¢ UDN, como Gustavo Capanema, Milton Campos, Abgart
Renault ¢ Gabriel Passos, J4 na miisica popular, para nio ir muito longe, basta
lembrar que Ary Barroso foi deputado pela UDN, ¢ Humberto Teixeira, cleito
apés a queda de Vargas, gracas ao prestigio de seus baides.
Enfim, duas anotacées poderiam ser feitas ainda, A primeira é de que a
ivéncia da misica com o poder era ainda acidental ¢ periférica, a exemplo da
” em 1920 no piquenique na Tijuca, em honra aos reis
écada de 1960 com as cangdes de protesto € 68 movimentos
ssempenho politico mais sis
Tans seas, attavés do Cinta Now, é
‘A outra observacio é de que a década de 1930 ¢ a de 1940 vao se carac- |
tetizar mais pela parafrase, enquanto a de 1920, 1950 € 196
parédia. Basta fazer um confronto entre a atitude tropicalista nos anos 60 € certa |
e definem pela |
firanda ¢ Ary Barroso. Ha |
nar6dia que seria de Joao
3. GiRAGAO 45 ENTRE TANGOS E BOLEROS
Como disse anteriormente, essa divisio em datas ¢ décadas é um tanto
arbitréria, conquanto metodologicamente coerente € justificdvel. Ha varias linhas
de pesquisa dentro da misica popular ¢ da poesia brasileira e a opgio feita aqui©
a
34 - ___Arronso ROMANO DESANT'ANNA
leva, forcosamente, a privilegiar alguns aspectos ¢ a negligenciar outros, que nao
sfio menos importantes, apenas menos pertinentes no conjunto do trabalho.
' A aproximacio entre os poetas da Getacio 45 ¢ 0 samba-cancio, tangos €
boleros talvez esteja mais no plano da sugestio para uma pesquisa mais ambicioss
“Bissa Geracio 45 continuou atuante pela década de 1950, até ser acwada pelas vanguar-
das que eclodiram a partir de 1956, Até hoje no foi bem estudada apesar de ja ter sido
muito insultada. Alguns a consideram abominivel ¢ outros apenas como um perfodo
de interesse maior na poesia classica e intimista. No artigo “Geragio 45: um mal-
entendido faz 25 anos”, reproduzido neste livro, fixei algumas dessas contradligies €
__ caracteristicas;O problema desse grupo de poetas que os que Ihe so contra 0 sio de
maneira ferrenha ¢ irracional e emitem juizos de valor sobre seus membros sem entrar
em comprovagdes mais especificas, Por outro lado, seus defensores, geralmente os que
participaram daquela geragio, defendem-na também por instinto de sobrevivéncia €
com uma dose de sentimentalismo (explicavel)..
Sabendo que nfo cabe aqui senao uma aproximacio entre a poesia e a misica,
tentemos caracterizi-la. Em primeiro lugar, colocar-se os de 45 numa posiglo anta-
~ uma “poesia séria” ¢ cheia de sentimentos chamados profundos. Retomam aaa Rage
_ gem romantica e neo-simbolista utiizando formas mais estabelecidas de composieo.
~ ‘O soneio volia@ set usado. Inclusive pelos poetas mode
tas de 1922. Isto tem dado
" mmargem a uma discussio: se os de 45 influenciaram Drummond, Jorge de Lima
outros ou se a evolugio desses coincidiu com uma modificagio na poesia brasileira. O
fato é que o verso longo dos anos 40 é diferente da poesia da década de 1930, Ha uma
estabilizac3o formal, uma poesia mais abertamente lirica e, em alguns casos, metafisica.
(Os de 45 voltam-se contra os de 22 propondo uma estética mais universal em_
fsoempis
ltomana em oposicio a mitologia indigena de 22. Essa poesia de 45 insiste numa
temética © mum vocabulirio mais ou menos codificado: mar, amor, noite, solidi, resas,
estrelas, peixes, horizontes, lrias, canto, praia, além de reviver as imagens dos menesiréis medievais,
dos jograis ¢ outras imagens presentes no simbolismo do fim do século ou no
Romantismo do século XIX.
+ ‘A exemplo do que indicamos no periodo de 22, quando 0s titulos dos poe-
mas mostravam palavras telativas 4 miisica sempre de modo irdnico, se poderia ver
aqui o contritio. A balada, a cancio, a ode, 0 madrigal sio exercitados agora seriamen-
te, Nio ha parddia, ha di, bi parifrase, Esereve-se dentro de tum ebdigo conhecido sem
preocupagao de ruptura das regras. H4 exclamagoes, palavras dificeis, raras no diciona-
rio, uma cetta nobreza ou aristocratizacao do verso, Tomando aleatoriamente exem-
plos da Antologia da Nova Poesia Brasileira (Livros de Portugal, 1965);
frags He Hf Labuek, ee Br" a
oh ebvers|
‘PRRs MTD ARR NESSES US
Masica Porucax : Mopeiwa Possia BRASILERA 35
Cantiga de Amor
Cerra as pilpebras, 6 fragill
Para os nardos e violetas
cetra as pilpebras doridas,
que no limbo das cisternas
gemem almas ontem flores...
Tanto jé basta, 6 vohivel,
para que as aves emigrem,
© tempo mude de rosto
08 rios sequem na areia.
O bela, apaga teu sisol
(Péticles Rugénio da Silva Ramos)
Pastoral
Imével, a amante aguarda
desabrochada como um litio;
tons ¢ palavras escoam
de seu corpo ¢ sua boca;
niio a toca a pocira, nem
a morde a sombra violeta
no chi, entre margaridas,
amo-a, agreste, amanhecida.
(Fernando Ferreira de Loanda)
Evidentemente que a poesia de 45 nfo ¢ toda semelhante, Mais do que as
diferencas estilsticas ha diferencas na estruturacao dos proptios poemas. Assim € que
\Jodo Cabral de Mello Neto dela faz parte historicament a uma poesia
a, seca, prosaica, ristica, ferina, a qual Chico Bu:
a década de 1960. Ha também os poemas sociais de Geir Campos, de Afonso Félix
de Sousa ¢ outros. Em 45, para maior complexidade do assunto, estio os futuros
vanguardistas de 56, fazendo seus sonetos também.
Quantos poetas fazem parte da Geracio 45? Dificil precisar, porque as anto
logias publicadas sobre o grupo tém sempre nomes novos ¢ modificagées em seus
quadros. Mas entre eles estio, além dos jé citados, Bueno de Rivera, Paulo Mendes36 ArTONso ROMANO DE SANTANNA
Campos, Marcos Konder Reis, Darcy Damasceno, José Paulo Moreira da Fonseca,
~ Esse periodo em literatura é internacionalizante. chee sepee inden
Pessoa, Fillit, Valéry, Garcia Lorca, Neruda, etc. Na musica também: a voga dos
7? | boleros, Tangos eum samba-cangao muito proximo dessas influéncias mostram umm
producto distante do thinisio de 30 ou da parddia de
"Nia imésica popular, apesar de um eee Também intexnacionalizante, sar-
gem sinais, ainda que isolados,.de.defesa da miisica brasileira através do cletoda
parddia, Esssas reivindicacdes estavam em “Al6 Jane” de Jurandir Santos, “Cangio
para Inglés Ver” de Lamartine Babo, “Nio tem Tradugio” de Noel Rosa e principal-
mente em Assis Valente, que na década de 1930 j4 fizera letras como as de “Tem
Francesa no Morro”,
Doné mud si vu plé lonér de bancé aveque mua
Dance ioié
Dance iaia
Si vu frequente macumbe
Entré na virada e fini pur samba,
Isto além de “Good-Bye”, samba escrito na atmosfera de influéncias de
Carmem Miranda:
Good-bye, boy, good-bye, boy
Deixa a mania do inglés
Fica tio feio pra vocé
$6 se fala good morning, good night
J se desprezou o lampio de querosene
14 no morro s6 se usa luz da Light..
_Eassim se poderia it estudando essa posicio nacionalista vesusa internacionalista,
que possui uma gama incrivel de conotagdes no permanente conifronto de ideologias
politicas ¢ estéticas. “Brasil Pandeiro” de Assis Valente ¢ de 1946 ¢ poderia significar
essa posi¢aio muitas vezes ambigua que valoriza o nacional, mas se desvanece ante o
reconhecimento ki fora: “O Tio Sam esta quérendo / conhecet a nossa batucada”.
Lamartine Babo talvez pudesse também ser tomado como um paradigma
para marcar a passagem de um perfodo a0 outro. Do nacionalismo critico 20 naciona-
lismo ingnuo (“Hino do Carnaval Brasileiro”) até a retérica romantica retomada pela
literatura em 1945, ele serve para exemplificar diversos passos de nossa musica. E no
tom de nostalgia ¢ sentimentalismo também é um mestre como em “No Rancho
Mosica Porutan £ Monenna Possta BRASILina 37
Fundo” ou em “Eu Sonhei que tu Estavas tio Linda” (1940) em que fala de
“valsa-dolente”, “taro esplendor”, “mil desejos” com juras de amor e violinos
tangendo o ar de emocées.
Na miisica popular, nesse perfodo, dentro da diversidade de manifestagdes
nota-se uma identidade de comportamento sem grandes arrojos. Claro que paralela-
mente havia vatios tipos de composigio musical de autores como Luis Gonzaga,
Jackson do Pandeito e Manezinho Aratjo que traziam a rudeza de um primitivismo €
humor da criagio vocabular urbana e regional. Esse primitivismo que se estende até
Humberto Teixeira e seus baides e passa por Dorival Caymi e suas cancées praieiras.
‘Mas, de uma maneira geral, transparecia em tudo uma remarcada atmos-
fera Aitsch (= mau gosto). Havia uma mistura de varias influéncias nacionais ¢
estrangeiras, e a musica popular como produto transmitia a espontancidade das
manifestages sem uma certa sofisticacio que viria posteriormente. Isto pode ser
mais um ponto de contato entre a producio musical da €poca ¢ a produgio
poética “literaria”: um certo ecletismo, uma evidente indecisio ¢ uma aceitagio
heterogénca ¢ indiscriminada de fontes.
Essa idéia do itch evidentemente é também resultado de um deslocamento
temporal, Hoje é mais facil vermos mau gosto nas coisas de ontem, Mau gosto que
_ontem, vivendo naquele tempo, nlio vamos. Assim sucede com os filmes da época, as
“chanchadas da Atléntida ou com os filmes em superproducio colorida da Metro, Igual-
dsicas de sucesso de ontem ouvidas hoje soam as vezes ridicula:
Conglomerando a atividade musical, a Radio Nacional através de programas
como César de Alencar, 208 sibadlos, ¢ Manuel Barcelos, as quintas-fciras, organizava os
sucessos musicais controlando ¢ dirigindo o mercado, mais ou menos como ocorre
hoje com a atividade da Rede Globo de Televisio que por suas radios, gravadoras de
discos ¢ telenovelas, programa os sucessos nacionais e estrangeiros para 0 consumo.
Nesse esquema a Revista do Radio era um veiculo poderosissimo € mostrava na sua
confeccio a fervente atividade heterogénea, mas anunciadora de uma cultura de massa
nova no pais. Alids, para se tet uma medida entre esse periodo e 0 periodo seguinte,
caracterizado pela Bossa Nova, basta comparar duas publicagdes: a Revista do Radio,
ligada ao antigo ¢ ao bitsch, ¢ a Revista de Musica Popular Brasileira, de cicculagio mais
testrita, organizada por Liicio Rangel, mas que na década de 1950 prenuncia uma
‘Tigagio maior entre a misica popular e os poetas da série literiria, como veremos em
outra parte deste estudo. _
~~" fato € que a voz de um Jorge Goulart ¢ de um Nelson Gongalves, assim
como de um Caubi Peixoto, que surgiria depois, tem muito a ver com a natureza dos
textos ¢ das miisicas compostas na época. Despertando sentimentos melosos, trégicos
€ romiinticos esses cantores preferiam maisicas descritivas ¢ natrativas que s6 encontra-
vam paralelo nas vozes femininas de Dalva de Oliveira e seu sucedaneo, Angela Maria.
Também Nora Nei comparecia com sua voz grave e tristonha, prenunciando uma
Maysa (Matarazzo), sistematizadora da fossa, que com Dolotes Duran antecedeu 4
“ade.
. awn aun UP,
Pea38 AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
Bossa Nova. Pairando nessa atmosfera escura ¢ lamurienta estava a voz de um Carlos
Galhardo com suas valsinhas foménticas, Ai estava Herivelto Martins com “Ave-Maria
no Morro” (1942), ¢ com “Caminhemos” (1947) seguia uma linha vizinha de drama-
bar-amores encontradica em Lupigcinio Rodrigues. Tome-se 0 “Caminhemos” de
Herivelto:
Nio, cu no posso lembrar que te amei
Nao, cu preciso esquecer que sofri.
Faca de conta que 0 tempo passou
E que tudo entre nés terminou
E que a vida nio continuou pra nés dois.
Caminhemos, talvez nos vejamos depois.
Essa retérica reaparece em “Segredo” (1947) em frases como: “Quando 0
infortinio nos bate 4 porta”. Aparece também em Lupigcinio Rodrigues, que ulti-
mamente sofreu um processo de exumaco e deformagio, ainda que muito esfor-
cada e bem intencionada, por parte de Augusto de Campos que num atroubo meio
grotesco chega a compari-lo a Shakespeare ou a dizer que sua mtisica “Vinganca””
instaura a “fenomenologia da coritude”. Na verdade, Lupigtinio faz parte da at-
mosfera Aitsch que anteceden a Bossa Nova. Nada mais naturalmente de “mau gos-
to” que “Vinganca”:
Eu gostei tanto,
tanto quando me contaram
que lhe encontraram
chorando e bebendo
na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
por mim perguntaram
uum solugo cortou sua voz
niio lhe deixou falar.
E € esse o tom que esti de novo em “Nervos de Ago” (1947) ¢ outras
miisicas menos divulgadas como “Ponta de Langa”.
Insisto em que aqui nao se quer menosprezar ou valorizar negativamente a
composicio Aitschy pois como jé assinalei em outro trabalho (Por un Novo Conceito de
Literatura Brasileira, Eldorado, 1977) 0 conceito de “mau-gosto” é doado por uma
classe elitista em detrimento de outra. Estou querendo apenas estabelecer 0 contraste
entre periodos estilisticos de nossa miisica, contraste esse que crescera mais se
“Gistanciadas um tanto quanto da:
Mosica Porusan s MoDERNA Porsia BRASILERA 39
compararmos 0 periodo de 40 com o que ocorreu com a Bo
“Tropicalismo, que sio colocagdes mais intelectualizadas ¢, talvez por isto mesmo,
eaciirliy uinezanto madas populares.
A passagem desse periodo (década de 1940 e principios de 1950) para o
segainte vai se dando com os nomes como Jair Amotim ¢ Evaldo Gouveia e depois
Dolores Duran, Anténio Maria, Tito Madi e outros. Mas até entio o que dominava
ao lado de tudo aqui jé citado eram as vozes de Orlando Silva, Silvio Caldas, Elizeth
Cardoso — que conseguiu se renovar com a Bossa Nova. De uma maneira geral ao
chegarmos & década de 1950 tinhamos de tudo, até Bob Nelson cantando verdadei-
tas “emboladas” americanas (este seria o melhor nome para as parifrases que fazia
das misicas de faroeste e que alcangaram sucesso inusitado entre nés). Toda essa
musica hibrida e sem muita imaginagio foi produzida numa atmosfera semelhante
que € 0 governo Dutra (1946-1950), colocando em cena o sentimentalismo dos
poleros, tangos, valsas, sambas-cancdes numa produgio bem comportada, con-
quanto as vezes tocante. Isto tudo ia muito bem com os filmes mexicanos da Pelmex
exibidos em nossas telas ¢ as visitas do Pero Vargas ¢ Gregorio Barrios. Como
elemento de passagem para a Bossa Nova surge a miisica de Antonio Maria, Dolores
Duran e as vozes de Maysa, Liicio Alves e Dick Farney. Antonio Maria, jé escritor €
cronista de sucesso, tepete no jornal o tom das misicas tristonhas ¢ ternas como
“Cancio da Volta” (1954), “Ninguém me Ama” (1952) e até mesmo uma “Se Eu
Morresse Amanha” (1953), que ressoa 4 lirica roméntica de Alvares de Azevedo
um poema também intitulado “Se Eu Morresse Amanha”. Em Antonio Maria jé
esti a nova fase com “Manhi de Carnaval” (1959), preparada para a peca de Vinicius
de Moraes Orfew da Conceisdo e a louvacio & natureza com Valsa de wma Cidade (1954),
cangGes limpidas ¢ saudaveis revelando o sentido ecoldgico redescoberto pela Bossa
Nova. De resto, a voz grave de um Dick Farney e Liicio Alves ea ligacao de ambos
com 0 jazz, mais do que lembrar a possivel influéncia de Frank Sinatra ¢ Bing Crosby,
revela a interpretacao intimista que caracterizaré o periodo seguinte.
4, Bossa Nova: A APROXIMACAO COM ESCRITORES E FORMAS NOVAS
Um fator importante para assinalar a divisio entre um periodo ¢ outro é 0
aparecimento da Revista de Miisica Popular Brasileira (1954-1956) ditigida por Liicio
Rangel ¢ Pérsio de Morais, da qual sairam 14 os. Na pagina de abertura dizem
08 responsiveis:
Os melhores especialistas no assunto estario presentes, desde este ntimero
inaugural, nas paginas que se seguem. Ao estamparmos na capa do nosso
primeiro németo a foto de Pixinguinha, saudamos aele, como simbolo, a0
auténtico misico brasileiro, o criador ¢ verdadeiro que nunca se deixou
influenciar pelas modas efémeras ou pelos ritmos estranhos a0 nosso40 Astonso ROMANO DE SANT'ANNA
populiitio. Mas no nos limitaremos a tratar apenas da miisica popular brasi-
leira. Algumas paginas serio dedicadas, em cada nimero, a0 jagg — a grande
criagdo dos negros norte-americanos.
Esse interesse pelo jazz, muito evidenciado na década de 1950, teria impor-
tancia notéria no repensar de nossa popular. No entanto, mais do que a
alianca de Pixinguinha (retrato na capa) ¢ do jazz através das secdes de José Sanz ¢
Jorge Guinle, o importante nesta revista ¢ a aproximagio mais nitida entre a literatu-
rae a miisica popular através do veio jornalistico dos cronistas Rubem Braga, Paulo
Mendes Campos, Sérgio Porto e outros escritores como Millor Fernandes, Manuel
| Bandeira, Onestaldo Penaforte, Vinicius de Moraes ¢ até textos antigo:
| Andrade, Esses autores se retinem a Ary Barroso, Nestor de Hollanda, Fernando
“Lobo, Haroldo Barbosa ¢ outros como 0 jovem Herminio Bello de Carvalho, para
fazerem uma revista eclética, aberta tanto a estudos sécio-histéricos, como os de
Mariza Lira, como aos comentarios ¢ notas sobre Angela Maria, Dalva de Oliveira,
Ataulfo Alves ¢ outros.
Parece que, depois da forte contribui¢io de Mario de Andrade durante 0
| Modernismo, esta Toi a aproximacio mais relevante entre misica popular ¢ literatura
7? |, até entao. O estilo redacional dos colaboradores revela um estigio da imprensa brasi-
leira um tanto quanto artesanal. Ainda se escrevia como se falava, Hé muitos adjetivos,
muita informagio supérflua. O /ad com 0 quem, quando, onde, como e porfue nfo havia se
tornado uma mania na imprensa. O que hé sio comentitios leves, humanos e despre~
tensiosos sem tom profissionalizante que hoje encontramos nos livros € revistas
sobre miisica popular. Sobretudo, parece que o surgimento desses cronistas ligados
diretamente & literatura representou num certo momento no apenas a mundanizacio
da literatura, mas um caminho preparador da Bossa Nova, que se itradiaria de
Copacabana, Ipanema e Leblon aliciando um piblico estudantil e de classe média.
Com 0 inicio da Bossa Nova assem _uma.mudanga_ng ritmo, 20
c, alguns depoimentos data
‘ ficado pela batda 0: a
Gilberto, os atranjos mais eruditos de ‘Tom Jobim, que estudou, com Joachim
Koelireutter ¢ Villa-Lobos, a letra mais direta ¢ elaborada e, enfim, a voz do cantor
mais operistica, complementavam um novo estilo de comunicagio sonora mais 50
: ticado. Sob um ponto de vista social, essa Bossa Nova significa a expansiio ¢ o-sambal
|iden
da classe média, 4 Fealizagao de um samba mais refinado em diversos niveis
Evidentemente que no se trata aqui de uma anilise dos aspectos gerais da
Bossa Nova, sendio de uma tentativa de fixar, em relacdo ao texto e a literatura, quais as
suas caracteristicas mais sintomticas. Uma anilise do fenémeno como conjunto tem
sido tentada por especialistas, entre os quais miisicos de vanguarda corno Jtilio Medaglia
¢ Rogério Duprat. Ambos sao tedricos e miisicos ligados também a geragio formada
por Koellreutter e as escolas de miisica de Si Paulo e da Bahia que tiveram um dia
a isc Sc SANE A LA eR a
Mosica Poputar & MopERNa Possia BRasiEina 41
alunos como Isaac Karabtchevsky, Diogo Pacheco, Carlos Alberto Fonseca, Carlos
Eduardo Prates ¢ outros ligados 4 misica sinfénica e erudita,
Deixando de lado (taticamente) as consideragdes sobre a “miisica”, tenho que
ressaltar a figura de Vinicius de Moraes, que originariamente provém da série teria
embora tenha se iniciado na miisica popular com 6 foxtrot “Loura ou Morena”
(1932), um ano antes de sua iniclacao literétia, Caminhos para 193
"~~" anilise global da obra de Vinicius de Moraes talvez pertenca mais aos
estudos literérios propriamente ditos, porque ele esta comprometido, de origem,
com esses valores culturais elitistas ¢ tradicionais. Diplomata de carreira, aluno de
“literatura na Inglaterra, a rigor, o que Vinicius de Moraes traz para a miisica popular
a sua maneira diversificada de compor a letra e a misica. Assim j4 em literatura cle
se dava o prazer de produzir textos abrangendo uma gama vatiada de direcBes €
tendéncias. Fez a “Quinta Elegia” com versos de vanguarda imitando os telhados
das casas do bairro londrino de Chelsea ¢ misturando pormgués inglés; fez versos
dentro da métrica e dic¢io populates como “Operatio em Construcio”; os seus
primeiros poemas so neo-simbolistas, e, a0 meio da obra, faz um Livro de Sonefos
‘num estilo clissico-romintico.
Em misica também procura exetcitar-se em todos os géneros ¢ ritmos: af
estio os sambas afro-brasileiros (ou afto-baianos) compostos com Baden Powell (“Can-
‘to de Ossanha”, 1966 € “Berimba wrchas tanchos como “Marcha de
‘de Ginzas®, 1964, com Carlos Lira; as cangdes-recitativos como o “Sam-
bada Béngao”, 1964, € as cangdes e sambas compostos com Tom Jobim. Mas, a5, ainda
‘que seus textos retratem tanto o falar moderninho de Ipanema e o coloquial carioca, af
petmanece sempre um tom “literério” indisfarcével que estava em “Poema dos Olhos /,
da Amada” (1954), que faz parte tanto de seus discos como de sua Anfolgia Pott
Oh, minha amada
que olhos os teus!
Sio cais noturnos
cheios de adeus.
Sio docas mansas
trilhando luzes
que brilham longe
longe dos breus
Estilisticamente esse poema pertence ii mesma faixa de “Serenata do Adeus”
(1957), em que as expressées romantics e simbolistas acham-se ligadas a0 dramati-
co de certos textos scus antigos:42 AsFONSO ROMANO DE SaNT'ANNA
‘Ab, mulher estrela a refulgir,
parte, mas antes de partir,
rasga 0 meu coracao.
Crava as garras no meu peito em dor
e esvai em sangue todo amor,
toda a desilusao.
‘Textos assim, literariamente, nao estao muito distantes de um Candido das
Neves com “Cinzas” (1937), ainda com ressaibos de uma retérica do fim do século:
Algida saudade me maltrata
desta ingrata
que nao me sai do pensamento
cesse 0 meu tormento
tréguas a minha dor
ressaibos do meu triste amor
Em Vinicius, uma das contibuigdes mais notdveis é a recuperagio do colo-
quial carioca reencontrando assim o cotidiano prosaico para a misica popular como
em “Garota de Ipanema”, Numa tentativa de sintetizar as possiveis contribuicdes da
Bossa Nova através de Vinicius ¢ letristas mais jovens como Ronaldo Béscoli, Carlos
Lira, Johnny Alf, ‘Tom Jobim e outros, arrolariamos os seguintes tépicos:
a. Utilizagio de um vocabulitio reduzido e simples, tentando codificar a fala dessa
classe média em suas manifestagdes sentimentais. O vocabuléio é minimo e simples,
embora pudesse ser minimo e complexo, a exemplo da composicao
“Analfomegabetismo” de Caetano e Gil, que se inscreve no periodo posterior a
Bossa Nova, em que ha um ntimero de palavras que se repetem pretendendo um
inusitado efeito cubista de linguagem.
b. Os versos, as vezes, tornam-se bastante curtos como em “Outra Vez” (Tom Jobim)
Outra vez
sem voré,
outra vez
sem amor,
outra vez
Mosca Porutan MoDERNA Porta BRASiLEIRA 43
vou sofrer
vou chorar
até vocé voltar
Nesses versos assim como em “Insensatez” (Jobim Vinicius) ou “Barqui-
ho” (Menescal e Béscoli) a economia das palavras centradas sempre no verbo € no
substantivo reforgam 0 jogo sonoro estruturalmente ligado a0 ritmo € & melodia.
‘© Reabilitam-se o jogo da linguagem a alegria da composigio que no periodo ante-
ior estava reservada apenas para as musicas primitivas ¢ carnavalescas. Embora a
Bossa Nova tenha muitas das expresses romiinticas, af est um texto Kidico e inventivo
como “© Pato” (Jayme Silva e Neuza Teixeira), no qual os instrumentos ¢ as vozes
repetem as vozes dos animais num didlogo musical. Os sons: “quen-quen”, “vem-
”, “no samba-no samba” mostram uma brincadeica
vem”, “muito bem-muito bem”,
em que a miisica comenta a si mesma.
Esse mesmo jogo sonoro estaria nas composicées de Joio Gilberto “Bim
Bom” e “Oba-lé-14”, em que Jtilio Medaglia vé “um misto de humor, nonsense € econo:
mia verbal, aspectos importantes ¢ inovadores da BN”
d. Nessa linha surgem as composicdes que conceituam a teoria ¢ a pritica da Bossa
Nova como “Samba de Uma Nota $6” (Jobim e Newton Mendonca) ¢ “Desafina-
do” (Jobim ¢ Newton Mendonca). Esta, especialmente, é uma espécie de manifesto,
comentario tedrico ¢ irénico sobre a maneira de compor e cantar a Bossa Nova. Essas
tetas inscrevem-se dentro daquilo que hoje se chama de metalinguagem: uma lingua °
gem comentando outra linguagem, tomando como assunto da composisio a propria
composicio e nao os temas naturais e sentimentais.
Desafinado
Se voce disser que eu desafino, amor,
saiba que isto em mim provoca imensa dor.
$6 privilegiados
tém ouvido igual ao seu
eu possuo apenas 0 que Deus me deu.
Se vocé insiste em classificar
meu comportamento de antimusical
‘cu mesmo mentindo devo argumentar
que isto € bossa nova,
que isto ¢ muito natural.
O que vocé nao sabe
nem sequer pressente
& que os desafinados também tém um coracao.44 ArFonso ROMANO DE SANTANA
Fotografei vocé na minha rolle-flex
revelou-se a sua enorme ingratidio.
$6 nao podera falar assim do meu amor,
ele é 0 maior que vocé pode encontrar, viu.
Vocé com a sua miisica esqueceu o principal
que no peito dos desafinados
no fando do peito
bate calado,
no peito dos desafinados
também bate um coracio.
A letra, primeiramente, restabelece para a musica popular brasileira a poesia
niio-poética. O cantor parece muito mais estar falando, como em Noel Rosa, do_
+ que compondo um texto literério, Desmistificando a retérica romintica enquanto
vai rimando Coracio/ingratidéo coloca uma frase desestruturadora da senti
mentalidade: fotografei vocé na minha rolley-flex, em que o ridiculo ¢ 0 prosaico do
nome estrangeiro reafirmam a ironia constante dos versos. A misica ¢ a letra com-
pdem-se como uma mentira-verdadeira ou uma verdade-mentirosa. O cantor desa-
finado que est sendo ironizado é, na verdade, aquele que tem 0 controle da afinacao
| a ponto de poder desafinat intencionalmente. A letra esta entiio ironizando os que
escutam a nova afinagio como desafinacio. O ctiticado nao esta se criticando, mas
finge se criticar para criticar aqueles que o criticam.
O movimento vai assim ganhando coeréncia com a teoria e a pritica, atra-
vés desses manifestos musicais, a exemplo dos manifestos literdrios em que os poe-
tas dos séculos XIX ¢ XX expressam suas idéias encaminhando seu fazer poético.
Esse tipo de comportamento, naturalmente, existe em todo grande compositor,
como Noel Rosa, no qual 0 controle da técnica possibilita alto indice de Indicidade.
©. A misica narrativa fixada tanto nas misicas sertanejas quanto nas cancées senti-
mentais de Nélson Gongalves, Orlando Silva, Vicente Celestino é substituida pela
mitsica de situagia. Nao ha a nartagio de como a mulher apareceu, suas roupas, obje-
tos, a descrigao linear, espaco-temporal. Fixa-se antes um », um momento,
um instante a ser sugerido ¢ singularizado. B isto que esté em “Coisa Mais Linda”
(Lira e Vinicius) na qual se descreve a beleza da mulher ou em “Insensatez” (Jobim ¢
Vinicius), “Este seu Olhar” (Jobim) e dezenas de outras composi¢des.
£, Essa misica de situacao leva a uma certa impessoalidade na composi¢io,
j impessoalidade esta que reforga 0 sentido livico do texto. Bode-se dizer entio que a
> Bossa Nova substitui o dramatico pelo lirico, Enguanto 9 dramatico precisa de perso-
ns nitidos, « nogio de um tempo especifico e de um lugar determinado, o lirico se
| di inespacialmente.¢ -intemaporalmente, Ha uma certa indeterminagio do sujeito € os
{ ~ pronomes Eu/Tu ou Eu/Vocé atingem a universalidade do Eu e do Outro.
g Essa cangio do Fu/Vocé leva a uma composigi6 de universo fechado, reforcan-
Musica Poputar & MopERNa Porsia BRasieina 45
“set tocada no interior do apa
pequena, Lsse universo restrito ¢ fechado tem um significado semiolégico, ideolégico
¢ social, pois revela o fechamento do Eu/Vocé diante de urna realidade de terceiros,
que s6 voltaria a set assunto da musica popular depois da influéncla dos shows de teatro
como 0 Opinido ou das composigdes de Sérgio Ricardo € outros compositores influ-
enciados pela atividade do Centro Popular de Cultura (da Unitio Nacional de Estu-
dantes) € compositores surgidos dos festivais de miisica promovidos pelas televisdes ¢
universidades.
h. Contrastando com esse aspécto intimista dentro da Bossa Nova, observa-se uma
tendéncia das mais singulares que poderia ser enquadrada como 0 sentido ecolégico
da Bossa Nova. Isto ficou muito patente num disco organizado por Aloisio Oliveira:
Rio/ Bossa Nova, para o qual coligiu 0 que lhe parecia mais tipico do movimento € que
expressa exatamente essa ligacio entre © poeta-cantor ¢ a natureza. Os titulos das
cangées: “Garota de Ipanema”, “Samba do Aviio”, “Ela é Carioca”, “Mulher Catio-
ca”, “Samba de Verio”, “Bossa na Praia”, “Corcovado”, “Moga na Praia”, todos
reforcam aquilo que ja tinha sido decantado pelas imagens florais ¢ maritimas de Vinicius
e pelo “O Barquinho” (Menescal ¢ Béscoli). Sobretudo, essas composiges documen-
tam um tipo de vida em extingio com a crescente expansio do mercado imobilidrio
que converteu Copacabana, Ipanema e Leblon numa babilénia moderna. Ja naqueles
tempos da Bossa Nova, quando na diregio da Repiblica pontificava o presidente
Kubitscheck com seus vaivéns constantes, em que o ptdprio presidente era um “pé-
de-valsa”, a vida da classe média ascendente era algo semelhante a um minueto, tal
como soa na cangio “Bossa na Praia” em que, coincidentemente, uma orquestta cons-
tr6i a sensacio da vida airosa ¢ leve da Zona Sul, reproduzindo um minueto s6 possi-
vel numa época em que a palavra poluicio inexistia.
Uma anilise mais demorada das letras da Bossa Nova, como “Rio” de Menescal
¢ Béscoli, na qual aparece o jogo de palavras: “FE sol, é sal, € sul” e “s6/rio”, com
influéncia (talvez) do Concretismo nascente em 1956, poderia levar a uma comprova-
io de tudo 0 que apontamos. No entanto, mais valeria talvez focalizar a titulo de
ilustragao do topico — Bossa Nova/ ecologia — 0 compositor mais forte do periodo:
‘Tom Jobim, que, se analisado detidamente, se revelaré como um dos melhores, sen‘io
6 melhor letista do grupo ~ mis direto, mais espontineo, menos litefiio, Essa colo-
cagio de "Tom como letrista superior obrigaria a uma revisio melhor do periodo ¢ da
Sua propria obra, uma ver que 05 criticos até agora absorvidos pela sua miisica pouco
se detém na sua letra, sempre em progresso e renovadora.
Neste sentido é importante anotar ainda que o sentimento da natureza perma
_nece fundamental na obra de Jobim, que testemunha isto no s6 biograficamente, mas
através de constantes declaracbes & imprensa. Tome-se seu depoimento para a série
“Disco de Bolso” (n° 1, 1972), organizada por Sérgio Ricardo:46 Afonso ROMANO DE SANT’ANNA
Eu acho que estamos num grande dilema. © homem, na ansia de progresso,
esti destruindo tudo: as arvores,os rios os animais. Toda chaminé que surge, 0
automével, tudo 0 que for baseado na combustao esti eliminando 0 oxigénio
do ar. E olhe que nés s6 temos oito quilémetros para cima, depois fica bas-
tante rarefeito. Entio, ao mesmo tempo em que o progresso vai resolvendo
cettos problemas, cria a cidade neurdtica, a Sao Paulo, a Nova lorque. O Rio
de Janeizo tem trifego, o assalto, a metralhadora, 0 apartamento, 0 confinado,
o tefrigerado. Af eu faco uma misica como ‘Matita Perciri’ e fica um negécio
assim da pessoa ter que ir a0 dicionatio procurar o Significado. O matita peré
é um passarinho do sertio, ele no vai nos auxiliar a comprar o detergente, a
ir ao supermercado, a comprar a maquina de lavar roupa. Assim ele comeca
a virar uma figura, como direi (underground?), uma figura folelérica, um ente,
uum Saci. Ora, o que que o barulho do Rio tem a ver com o Saci? Saci no da
em apartamento.
Em Jobim, a biografia ¢ a bibliografia informam o mesmo comportamento
i i bra ¢ vida nao se deixam separar. Daf que neles a
que desencadeou um movimento estético-musical. Nisto a mesma autenticidade dos
sambas de breque de um Moreira da Silva ou das miisicas nordestinas de Iya Gonz:
Com Jobim retoma-se 0 filio literirio que estamos tentando circunscrever
neste estuda. Nao € por acaso que suas admiragGes na literatura brasileira sao Guima-
fies Rosa, Carlos Drummond e Mario Palmério, Guimaraes e Palmério unem 0 pr
mitivo, 0 mitico € o magico da terra. Conforme declarou em entrevistas e conversas
informais, confer
cantos de passaros
juimaraes Rosa,
| recriando nos jnstrumentos os sons naturais que o romancista fixou foneticamente.
| Filho de um poeta pamasiano-simbolista, retoma Olavo Bilac como epigrafe para sua
“Aguas de Marco”. E, enquanto Bilac diz:
Foi em marco, ao findar das chuvas quase & entrada
Do outono, quando a terra, em sede requeimada,
Bebera longamente as aguas da estacio,
(“O Cagador de Esmeraldas”)
Jobim reconstrdi um sentido proprio em um tratamento vocabular € so-
noro original:
ge =
i pam é pedia
E 0 fim do caminho
£ um resto de toco
SY Tits Ctonther AH
amass ies
Musica Porutar £ MODERNA Possia BRASILEIRA a7
# um pouco sozinho
B um caco de vidro
Ea vida é 0 sol
E a noite é a morte
E um hago é anzol”
(“Aguas de Marco”)
O sentido da natureza dessa e de outras mtisicas j4 estava prenunciado na
“Sinfonia do Rio de Janeiro” feita de parceria com Billy Blanco com o subtitulo “Sin-
fonia Popular em ‘Tempo de Samba”, dividida em trés partes: “A montana”, “O sol”,
“© mar”. Ai ja se prenuncia a composicio solar e mediterranea que € a Bossa Nova ¢
seu sentido dionisiaco ¢ sensual.
~~ Gertamente que caberia a uma sociologia da misica popular analisar ainda as
relagées entre a Bossa Nova e nio apenas a ascensio da burguesia ¢ da classe média
afinada com as vivéncias da Zona Sul, mas ainda uma possivel relagio entre a leveza
dessa composigio, o periodo regido por JK e a construcéo de Brasilia. Haveria alguma
relacio entre a limpeza das formas na Bossa Nova ¢ a pureza das linhas arquitet6nicas
de Ni meyer em Brasilia? A critica, em literatura, tem visto muita relagao entre 0
“Concretismo (1956), o Neoconcretismo (1958) ¢ a construgao de Brasilia. As propos-
tas tedricas e priticas desses movimentos, visualizadas nas paginas do “Suplemento
Dominical” do Jornal do Brasil entre 1956 ¢ 1962, mostram 0 formalismo das escultu-
ras concretas ¢ dos textos de vanguarda respirando um espantoso espaco dentro de
uma nova paginacio do jornal e do espaco cultural.
Essa paginacdo ampla, limpa, generosa de um Amilear de Castro ¢ Reinaldo
Jardim corresponderia de alguma forma 4 paginacio do planalto central ¢ as linhas
rodovidrias tracadas entre os mais diversos pontos do pais. Uma redescoberta do
espago na poesia, no cotidiano jornalistico, na arquitetura, no urbanismo, na politica.
Na poesia inicia-se um periodo de formalismo idéntico 20 ocorrido nas artes plisticas.
A prépria critica literéria importa os principios do may antiism ¢ propoe uma raciona;
lizacio_ maior da.anilise do texto,
O fato é que & limpeza, a claridade ¢ certa geometrizagio das composig6es
musicais ¢ literdrias da década de 1950 io a década de 1960 com dois tipos de
propostas totalmente diversas: de um lado uma misica participante € de outro a ma
. € underground, A miasica participante € um esforgo de aplicagio da
vitalidade estética e existencial do jovem poeta agora nao mais encantado pelo cenério
da Zona Sul, mas descobridor dos mottos, das fibricas e dos dramas rurais. Deixa-se
a.com ressaibos das escolas de desenho industrial de Bauhaus ¢ de
nir a violéncia da vida ¢ o lixo da sociedade de consumo, 0 lixo
amontoado nos fiindos ¢ que nunca havia sido trazido a sala de visitas48 ___Atonso RoMANo DE SANTANNA
5. MUSICA DE PROTESTO E VIOLAO DE RUA
Os historiadores e comentaristas de miisica popular brasileira assinalam um
cruzamento estranho entre a Bossa Nova e a chamada Musica de Protesto a partir dos
anos 60. Depois que a Bossa Nova vencera lé fora no célebre concerto do Camegie
Hall (1962) e jé havia assegurado um tipo de mercado nos shows € vendagem de discos
um tipo de puisicn mais agressh nistica e um tanto
da Bossa
. Configura-se um mana que poderia set 0 divisor da Bossa Nova, a6 mésmo
tempo em que tem caracteristicas diferentes do Tropicalismo que ecloditia em 1968.
‘A mésica que se comega a fazer mais insistentemente ai também provém de
uma classe média, mas que procura outros valores que nio os da Zona Sul ou da
burguesia. H uma classe média, ou melhor, é toda uma geracao oriunda também da
universidade, mas com uma visio politica da realidade. Gracas ao clima criado pelos
governos liberais a partir de 1950, com a subida de Getilio, especialmente no gover-
no de Jofio Goulart (1961-1964), desenvolveu-se um tipo de atividade intermediria
entre a arte e a politica. Esse tipo de produgio continuari mesmo depois de 1964,
sob outras formas, até que em 1968 se deixe substituir pelo Tropicalismo. Configu-
. rando o panorama da época tome-se a atividade de Carlos Lyra,
Ocorre, entiio, na cultura brasileira um novo fenémeno: os criadores esfor-
cam-se por se aproximar 0 maximo possivel das camadas mais pobres do pais
numa atitude catequética e num empenho por encontrar novas solugdes para os
impasses puramente estéticos da Bossa Nova ou das vanguardas que se iniciaram em
1956. Surge um movimento de grande significagao e que tem sido minimizado
historicamente tanto pelas circunstncias da politica atual quanto pelos criticos
formalistas interessados em propagandear somente o seu parnasianismo sub specie
vanguardista, Assim talvez se revelem um dia mais concretamente obras, nomes ¢
problemas ainda pouco estudados ¢ que dizem respeito a esse periodo de nossa
cultura, Pois enquanto os movimentos de vanguarda se organizaram rapidamente
enfeixando em volumes seus depoimentos ¢ suas “hist6tias” privadas, com a pro-
dugio da misica de protesto ¢ com a literatura feita nessa época sucedeu 0 oposto.
Hi, na verdade, poucos documentos deixados para pesquisa ¢ comprova-
do. Mas a trajetéria agitada de um Ferreira Gullar, de poeta de vanguarda concretista
a poeta de protesto em O Violio de Rua, de critico de artes plisticas comprometido
com as correntes européias mais avancadas até o inflamado ensaista de Vanguarda e
‘Mosica Porutan & MopERNA Possia BRASILERA 49
Subdesenvolvimento (1969), mostra a riqueza daquele momento cultural.
fato é que se verifica uma ligaciio mais estreita nfio apenas entre a rmisica
popular e a poesia literdria, mas um cruzamento em todas as frentes. Um verdadeiro
mutirio estético-ideol6gico se forma. E. é possivel que um estudo da misica popular
em relacio ao teatro e ao cinema chegue a conclusées idénticas a de um estudo com-
parativo entre a miisica ¢ a literatura neste periodo, Na verdade ha um intercimbio
entre os artistas de diversos setores, caracterizando o espaco de uma nova geracio.
Carlos Lyra, da Bossa Nova, vai ao Centro Popular de Cultura (CPC). E dele a mtisica
de “Cangio do ‘Trilhaozinho” ¢ de “OQ Subdesenvolvido”, ambas com letras de Fran-
cisco de Assis. Ironizando 0 momento politico, introduzem a parédia de Casimiro de
Abreu, através de um texto participante e critica da Wicologi@ domminante:
© Brasil é uma terra de amores
alcatifada de flores
onde a brisa fala amores e
nas lindas tardes de abril.
Correi pras bandas do sul
debaixo de um céu de anil
encontrareis um gigante deitado
Santa Cruz
Hoje 0 Brasil.
Mas um dia o gigante despertou
deixou de ser gigante adormecido
€ dele um ana se levantou
cra um pais subdesenvolvido
Subdesenvolvido
subdesenvolvido
subdesenvolvido
subdesenvolvido
E passado 0 periodo colonial
O pais passou a ser um bom quintal
E depois de dada a conta a Portugal
Instaurou-se o latifiindio nacional
Subdesenvolvido, etc.
Entio 0 bravo povo brasileiro
Em perigos ¢ guerras esforcado
Mais que prometia a forca humana
Plantou couve, colhe banana
Bravo esforco do povo brasileiro50
Asfons0 ROMANO Dé SANT'ANNA
Mandou vie capital lé do estrangeiro
Subdesenvolvido, etc.
As nagdes do mundo para c4 mandaram
Os seus capitais tio desinteressados
As nag6es, coitadas, queriam ajudar, nao 6?
B aquela Tha Velha no roubou ninguém
Pais de pouca terra s6 nos fez um bem
Um Big-Ben um Big-Ben
Ben-Ben
Ben-Ben
Nos deu luz (Ah!)
Tirou ouro (Oh...)
Nos deu trem (Ahi)
Mas levou 0 nosso tesouro
Subdesenvolvido, etc.
Mas data houve em que se acabaram
Os tempos duros e softidos
Pois um dia aqui chegaram
Os capitais dos Paises Amigos
Pais amigo, desenvolvido
Pais amigo, Pais amigo
Amigo do subdeseavolvido
Pais amigo, Pais amigo
E 05 nossos amigos americanos
Com muita £6, com muita {6
Nos deram dinheiro e nds plantamos
$6 café, $6 café
E uma terra em que se plantando tudo.
Mas eles resolveram que nés deviamos plantar
S6 café, s6 café
Bento que bento é frade
Na boca do forno — forno
Tirai um bolo — bolo
Fareis tudo que seu mestre mandar?
Faremos todos, faremos todos
Comegaram a nos vender ¢ a nos comprar
Comprar borracha — vender pneu
Comprar minério ~ vender navio
P'ra nossa vela ~ vender pavio
$6 mandaram © que sobrou de
Matéria plistica, que entusiéstica, que coisa
Musica PoPutar & MODERNA POsSIA BRASILERA, St
elastica, que coisa drastica
Rock balada, filme de mocinho
Ar reftigerado ¢ chiclet de bola
E coca-cola
Subdesenvolvido, ete
povo brasileiro tem personalidade
Nio se impressiona com facilidade
Embora pense como americano
“Lm going to kill that indian
before he kills me”
Embora dance como americano
Embora cante como americano
Eh boi
ch rogado bio
© meié do meu sertio
comero 0 boi
Subdesenvolvido, ete
O povo brasileiro embora pense
Dance ¢ cante como americano
Nao come como americano
Vive menos, sofre mais
Isso é muito importante
Muito mais do que importante
Pois difere © brasileiro dos demais
Personalidade, personalidade, personalidad
Sem igual
Porém
Subdesenvolvida
Subdesenvolvida
Subdesenvolvida
Essa é a vida nacional!
© mesmo Carlos Lyra faria ainda as mtisicas dos filmes Bonttinha, Mas Ordind-
ria (texto de Nélson Rodrigues), O Padre ¢ a Moga (a partir de um poema de Carlos
Drummond de Andrade, diregio de Joaquim Pedro de Andrade), Cowro de Gato (tam-
bém direcdo de Joaquim Pedro), Gimba (de Guarnieri e dirigido por Flivio Rangel),
além de misicas para pegas de Maria Clara Machado,
se inter-relacionamento da musica com outros géneros artisticos continua
com Séigio Ricardos também provindo da B za
peca O Coronel de Macambira, de Joaquin Cardozo, ¢ dos filmes Deus ¢ 0 Diabo na Te
do Sol de Glauber Rocha € O Asti da Compadecida, originalmenté um texto de teatro
Nova e que agora faz a+
52 Asronso ROMANO DE SANT'ANNA
j de Ariano Suassuna. Nessa linha esta Geraldo Vandré Soman a partitura de 4
“Mais diretamente iota ao teatro, am
tito do Teatro de Arena ¢ do Opinido. Tome-se ai o trabalho de Edu Lobo em Arena
Conta Zumbi ¢ Marta Saré. Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa ¢ Dias Gomes
produzem com Ferreira Gullar espeticulos como Se Correr 0 Bicho Pega, se Ficar 0 Bicho
Come (1966), A Saida? Onde Fica a Saida (1967) © Dr. Getilio, sua Vida sua Gloria (1968).
E nesse clima que surge o Cinema Novo oriundo das primeiras s experiéncias
ed Nélson Pereita do Santos (Rio 40 Grans — 1955 e Rio Zona Norte — 1957) aprovei-
‘tando as lig6 realismo italiano em favor de um discurso social brasileiro.
Encontratia nos universitarios um publico natural c alguns de seus adeptos. Er signi-
ficativo que os episddios de Cinco Vezes Favela fossem de estudantes como Joaquim
Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Leon Hirschman, Marcos Farias e Miguel Borges.
Como assinalamos, disso tudo se pode concluir que, num certo momento, 0
teatro, o cinema, a li
{ stura € a misica se cruzaram, movidos por interesses ideolégi-
| [osc estéticos. Alimentavam-se mutiamente déitro dé tim mesmo projelo Socal e
| Socalizante, Exa natural, portanto, que a poesia se desenvolvesse ai com certa violéncia
distanciando-se do classicismo da Geragio 45 e das experiéncias formalistas das van
i
“guardas de 1956. A tiger 6 texto afasta-se da série lterdtia, A chamada “
“Go Wemto passa 6 ser “ago seeundrg, Mises popula Secundario, Musica popular e poesia encontram-se despid
das pretensées estétias tradicionais. Preocupam-se antes com a “mensager”. Por isto
é que se pode dizer que nessa altura no ha apenas a eguivalinaa entre a série musical ¢ a
literdria, mas uma identidade. Nao cotrem paralclas, antes se misturam.
W A identidade pode ser verificada especialmente a partir da colegio Violda de
|) Bua, que saiu com trés volumes: I (1962), II (1962) ¢ HII (1963), editados pela Civ
\ “Yagio Brasileita sob coordenagao de Moacyr ‘O sucesso comercial da colecio
foi tal que ittal gus forurs vendidos ceea de 40 mil exemplares. Viol de Rua é um fendmeno
a ser estudado um dia em outro espaco, sob outras condigdes, com outros instru-
mentos ¢ por outros criticos. Mas jé no titulo, a jungao da miisica e da poesia. Mas 0
‘violio aqui nao é o da classe média, da Bossa Nova, mas algo que busca assemelhar-
ais popular. Assim como Carlos Lyra, Geni Marcon
¢ Billy Blanco fizeram misicas na faixa do protesto para o CPC, também essa cole-
_s2o de poesias aplutinou potas de todas as tendéncias. Ai estio
“de "Sit caer de 1956, ¢ outros ainda mais novos. Por exemplo: Joaquim ators,
Ferreira Gullar, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo, Carlos Pena Filho, Geir Cam-
pos, Paulo Mendes Campos, Reinaldo Jardim, Félix Ataide, Moacyr Félix, José Pau-
lo Paes, Affonso Romano de Sant’Anna, Solano Trindade, Audilio Alves, Fritz. Teixeira
de Salles, Fernando Mendes Viana, Clévis Moura, Heitor Saldanha, Paulo Loureiro,
Lufs Castro, Francisco Pinto, Ruy Barata, José Carlos Capinam e até Oscar Niemeyer.
Hi qualquer coisa de colagem na feitura desses volumes. Estilos diversos,
vozes cronologicamente distintas, medidas por um nico denominador: a preocu-
AES bo Dun!
Masica Poputar F MODERNA POESIA BRASILERA 53
pagdo com o aspecto social_do texto.
caracterizar pecas no estilo do Teatro Opiniao € do Teatro de Arena. A mistura é de
vores, estilos ¢ vivencias socials, Faz-se a mixagem da poesia e da prosa.
~~" Num estudo mais longo se poderiam mostrat as diversas tendéncias estilisticas.
Mas nesta rapsédia faremos sobressair a dominfncia dos ri poplars a através
itm
que se denomina redondilha maior. Ou seja,
‘lares, 0 verso de sete silabas com timas
: voltou a Sef usado, I'ssa forma ja estava em
Operario em Construcio” (1960) de Vinicius de Moraes e seria utilizada por
Ferreira Gullar em “Joio Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer” (1962) ¢ Reinaldo
Jardim em “As Safadezas do Diabo com a Mulher do Coronel”. a mesma forma
que Glauber Rocha usar para as letras de Deus ¢ 0 Diabo na Terra do Sol (1964) que
Sérgio Ricardo musicou. Recontando dramas extraidos da leitura que fez de Os
Sertées de uclides da Cunha ¢ de outros autores preocupados com os problemas
sociais nordestinos, sai uma letra exemplificada nesse trecho:
estilo de colagem, aliés, € 0 que vai
— Se entzega Corisco.
— Eu niio me entrego nao!
Bu no sou passarinho
pra viver lé na prisfo (bis)
— Se entrega Cotisco.
— Eu nfio me entrego ni,
no me entrego ao tenente,
no me entrego ao capitio,
eu me entrego s6 na morte
de parabelo na mio.
== — Bsentido épico ¢ drama
vem 0 poema de Vinicius de Moraes: O Openirio em Cansirug
jossa Nova. Nessa linha
Fra ele que erguia casas
onde antes s6 havia chao.
Como um passaro sem asas
ele subia com as casas
que lhe brotavam da mio.
Mas tudo desconhecia
de sua grande missio,
no sabia, por exemplo,
que a casa do homemi é um templo,
um templo sem religiio,
como tampouco sabiaI
54 AFFONS0 ROMANO DE SANT'ANNA
que a casa que ele fazia,
sendo a sua liberdade
era a sua escravidio.
Utilizando essa forma, Ferreira Gullar faria “A Bomba Suja”, poema que
nfo esconde suas marcas de influéncia de Joao Cabral de Mello Neto:
Introduzo na poesia
a palavra diatréia.
Nio pela palavra fria
mas pelo que ela semeia.
Quem fala em flor no diz tudo,
quem fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo,
sem as palavras reais.
No dicionario, a palavra
é mera idéia abstrata:
mais que palavea, diarréia
€ arma que fere € mata.
Que mata mais do que faca,
mais que bala de fuzil,
homem, mulher e crianga,
no interior do Brasil
Por exemplo, a diarréia,
no Rio Grande do Norte,
de cem criangas que nascem
setenta e seis leva 4 morte,
ES importante assinalar 0 nome de Jofio Cabral de Mello Neto neste contex_
_to, pois ele €a bifurcagio. de duas linhas da poesia brasileira. Dele tentaram se apo-
~derar os vanguardistas de 1956. Dele também partiram os poetas sociais em revanche
a0 formalismo estéril das vanguardas. Nao é 4 toa que seu livro publicado em 1956
reunindo pecas anteriores se chamasse Duas Aguas. Nele esto a pesquisa estética ¢ 0
texto de forte teor socal, Nele esti o limpo de “Uma Faca $6 Lamina” 0 sujo de
“Vi te Severina”. Pois é esse “sujo” que os poetas em torno de Violéo de Rua
clegeram em oposicao 20 limpo ¢ anti-séptico concretismo inspirado nas escolas
€
Musica Poputar & Mopeana Possia BRasieina 55
alemis de artes plisticas em Ulm e Bauhaus.
Fé dessa linhagem universitésia com preocupagées sociais que vem surgin-
do a misica de Chico Buarque de Holanda, Nesse sentido, 9 fato de Chico ter
colocado miisica em Vida ¢ Morte Severina & um acontecimento de repercussio na
iiteratura € na musica popular, Veja-se a respeito 0 depoimento do compositor e do
pocma durante a Expoesia I realizada em 1973 na PUC/R). Parece haver uma iden-
tidade entre 0 texto de Cabral ¢ outros textos escritos, tanto por Geraldo Vandré
comm por Chico Buarque ¢ Carlos Capinam, Apenssrecordando, leis esse echo
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeca grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
€ iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina
Em 1966, na ‘TV Record, ocorria o I Festival de Musica Popular ¢ 0 vence-
dor ed lado de “A Banda” de Chico Buarque, “A Disparada” de Saka
“Vandre hedfilo "Filho. Em 1967, Edu Lobo e Capinam ganhavam com
tcio” novo festival. As letras guardam memiéria das leituras literdrias ¢ repousam
numa diccdo popular que caracterizou a poesia desse periodo:
Disparada
Prepare o seu coracio
pras coisas que eu vou contar
eu venho lA do sertio (3 vezes)
€ posso niio The agradar.
‘Aprendi a dizer nao
ver a morte sem chorar
ca morte, 0 destino, tudo56
Arronso ROMANO DE SANTANNA
estava fora do lugar
eu vivo pra consertar.
Na boiada jé fui boi
mas um dia me montei
nfo por um motivo meu
ou de quem comigo houvesse
que qualquer querer tivesse
porém por necessidade
do dono de uma boiada
cujo vaqueiro morreu.
Boiadeiro muito tempo
laco firme, braco forte
muito gado, muita gente =
pela vida segurci.
Seguia como num sonho
¢ boiadeiro era um rei.
Mas o mundo foi rodando
rnas patas do meu cavalo
€ nos sonhos que fui sonhando
as visdes se clareando
até que um dia acordei.
Entio nfo pude seguir
valente lugar-tenente
de dono de gado ¢ gente
porque gado a gente mata
tange, ferra, engorda e mata
mas com gente é diferente.
Se vocé nfo concordar
nio posso me desculpar
no canto pra enganar
‘vou pegar minha viola
vou deixar vocé de lado
vou cantar noutro lugar.
Na boiada jé fui boi,
boiadeiro jé fui rei
nfo por mim nem por ninguém
Masica Porutar £ MODERNA PORSIA BRASIEIRA
que junto comigo houvesse
que quisesse ou que pudesse
por qualquer coisa de seu
querer ir mais longe que eu.
‘Mas 0 mundo foi rodando
nas patas do meu cavalo
¢ j que um dia montei
agora sou cavaleiro
laco firme, braco forte
de um reino que nao tem rei.
Ponteio
(Edu Lobo/Carlos Capinam)
Era um, era dois, era cem.
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violciro,
Que me desse 0 amor ou dinheiro,
Era um, era dois, eta cem.
Vieram pra me perguntar:
© vocé, de,onde vai, de onde vem,
Diga logo o que tem pra contar.
Parado no meio do mundo
senti chegar meu momento.
Olhei pro mundo ¢ nem via
Nem sombra, nem sol, nem vento.
Quem me dera agora
cu tivesse a viola pra cantar
Pra cantar...
Era um dia, era claro, quase meio.
Era um canto calado, sem ponteio.
Violéncia, viola, violeio,
Era a morte em redor mundo inteiro.
Era um dia, era claro, quase meio,
‘Tinha um que jurou me quebrar
Mas nao lembro de dor nem receio,
‘S86 sabia das ondas do mar.58 Aztonso Romano DE SANT'ANNA
Jogaram a viola no mundo
Mas fui no fundo buscar
Se eu toro a viola, ponteio:
Meu canto no posso para... no!
Quem me dera agora... ete.
Ponteio, todo mundo pontear
Pontear...
Ah...
Era um, era dois, era cem
Era um dia, era claro, quase meio,
Encerrar meu cantar ja convém,
Prometendo um novo ponteio.
Certo dia que sei por inteiro
Eu espero nfo va demorar,
Esse dia estou certo que vem,
Digo logo o que vim pra buscar.
Correndo no meio do mundo.
Nio deixo a viola de lado,
‘Vou ver 0 tempo mudado
E um novo lugar pra cantar
Quem me dera agora... etc.
‘Tanto uma cancio quanto a outra desenvolve, entre outros temas jé assinala-
dos, aquilo que Walnice Galvio chamou, num artigo citado por Tinhorao, “o dia que
vita”. Ou seja: 0 deslocamento do conflito para uma realizagao futura em que se
realizatio utopicamente 0s ansecios e sonhos. A esse respeito, um trabalho interessado
num estudo sécio-antropolégico das cangdes brasileiras deveria assinalar a identidade
entre esse periodo e o periodo pés-tropicalista em que a utopia surge de forma esotérica
através de um misticismo oriental em que entra uma visio apocaliptica com imagens
de discos voadores ¢ o anseio de estabelecimento de uma civilizagao, como as descritas
por Gilberto Gil e Raul Seixas, que atualizam o mito de Shangsi-l ¢ outras Pasirgadas.
No contexto brasileiro, depois das crises externas e internas de 1968, houve um desvio
¢ a energia que havia se deslocado no principio da década de 1960 para um plano
mitico social vai ao final da década derivar para o esoterismo, o hippismo ¢ uma
literatura e musica que Silviano Santiago chamou de “literatura da curticio”,
Antes que essa passagem se desse assim claramente, no entanto, em 1968,
houve o surgimento do ‘Tropicalismo.
Musica Porutan & Mopraa Pozsia BRASTERA 59
6. TROPICALISMO: A PARODIA E OS MEIOS DE COMUNICAGAO-
O Tropicalismo é antes de tudo um movimento dessacralizador. Irnico €
parodistico, nao se conteve apenas na musica popular, mas manifestou-se em outros
géneros artisticos. Ele surge pontuando uma mudanca de atitude em relagio a década
anterior, Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos por Horton e Carey ¢ aproveita-
dae adaptada ao Brasil por C. A. Medina em Misica Popular © Comunicario (Vozes,
1973) mostra que a miisica que se produzia em 1957 era quase que diametralmente
oposta 20 que se fez em 1969. As de 1957, em geral, eram compostas segundo um
esquema de cinco etapas tidas como o estigio do “tomance” narrado:
1. O prdlogo;
2. O inicio do namoro;
3. A lua-de-mel;
4, Aparecimento de forcas impeditivas:
5. Solidio.
‘As conclusdes de Horton (1957) € Carey (1969) levam a um conftonto entre
08 dois periodos. Num o “amor é-um profundo envolvimento romintico”, noutro, €
“reduzido a atragao fisica”; num os pré-requisitos tornam dificil a aproximacio dos
amantes, noutro, reduzem-se 4s pré-condicdes; num a relacio se estende no tempo € 0
amor € eterno, noutro, é valorizada a liberdade; num 0 amor est nas maos do destino,
noutro, é procurado ativamente; num a moga est4 num pedestal, noutto, estii no mes-
mo nivel do rapaz; num alimenta-se o romantismo, noutzo, elimina-se a dependéncias
num a solidao é algo negativo, noutro, é uma oportunidade de autoconhecimento.
Na pesquisa que realiza, procurando enquadrar esse esquema 4 miisica popu-
lar brasileira, Medina faz. um confronto entre diversos autores de um e outro periodo
€ mostra estatisticamente como Roberto Carlos esté ligado ao tratamento “rominti-
co”, enquanto Gilberto Gil em 85% de suas composi¢des trata dos mais diversos
assuntos que nao o amor e a paixdio, Assinala ainda como de 1950 para cé, incluindo Ft
‘a Bossa Nova, vem ocorrendo urna mudanca de atitude em relagio ao meio social
interessando-se © compositor cada vez mais pelos “outros”.
© Tropicalismo dentro do “caos” tedrico em que se fundamentou foi um
esforgo de atualizagio da linguagem musical brasileira em relagio a0 que se vinha
fazendo especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Surge como uma proposta
dionisfaca em confronto com uma atitude mais clissica e fechada. Esse impetuoso
espitito dionisiaco e tropical realiza agressivamente certas propostas sensuais da Bossa
Nova. Falar em dionisiaco € apolineo aqui € também uma citagao bibliogrifica obriga—
t6ria, uma vez que esses termos voltaram 20 uso em torno de 1968 gracas aos livros de
Herbert Marcuse langados no Brasil ¢ tidos como influenciadores das revoltas estudan-
tis nos Estados Unidos e Europa. Em Eros ¢ a Civilizagéo (Zahar, 1968), em A Ideolagia60 Artonso RomANO DE SANT'ANNA
da Sociedade Industrial (Zahar, 1967), Marcuse expande as teses de Freud, Nietzsche e de
Norman Brown (Life Against Death, Vintage, 1959): a liberacio dos instintos, a acusa-
gio de que a sociedade & repressora, a aceitagio do narcisismo ¢ o questionamento da
de consumo. Tudo isto vinha informar e conformar a ideologia hippie j
exportada para o mundo inteiro a partir da California. Partia-se para uma experiéncia
grupal (ou tribal?) de vida numa busca instintiva de reencarnagio da horda primitiva
(de que fala Freud) em que o sexo era comunititio.
Os festivais gigantes (Woodstock, Ilha de Wight, etc), as comunidades bippies,
© sentido de ambulatétio (fixado no filme Easy Rider de Peter Fonda) revelam uma
atte € uma midsica grupal. Assim, o ritual com todas as impregnacdes orientalistas
assumiu um papel importante através dos Jovesin — sessGes ao ar livre, nas pragas ¢
jardins onde milhares de jovens se agrupavam para se amarem de formas explicitas e
implicitas, No Brasil os revérberos desse movimento chegaram também, mas mais do
que comunidades hippies e de um movimento de importincia politica e social, configu-
rou-se um outro tipo de atividade mais de acordo com a paisagem cultural. A miisica
deixou as salas pequenas das baifes ¢ shows de bolso da época da Bossa Nova, saiu dos
sindicatos e agremiagées estudantis ¢ operirios da época do CPC para se dirigir a TV,
aos Festivais internacionais da cangao ¢ aos festivais universitérios que sensibilizaram 0
pais com a mesma intensidade (talvez) do futebol.
O exercicio de uma atividade grupal deu-se, contudo, dentro dos limites
fixados por um governo forte ¢ militar. A TV dirigia tudo estimulando a miisica seja
através de programas-sabatinas como “Esta Noite se Improvisa” — da TV Record,
seja através de jiris como “Programa Flavio Cavalcanti”. Elemento ainda reptesen-
tativo da necessidade grupal ou de expansio da atividade musical foi a repetigio do
fendmeno “Canecio” em todo o pais: em praticamente todas as capitais ¢ grandes
cidades construiram-se grandes casas de shows como 0 “Canecio” do Rio de Janeiro,
onde além de show havia montagens de espeticulos psicodélicos, projecio de filmes
de Chaplin e outros identificados com a sensibilidade hippie jé comercializada e
consumida pela classe média e a burguesia. Essas novas casas de espeticulo, que
duraram enquanto durou a moda, tinham nomes sempre no superiativo, ¢ com as
centenas de bares novos mudaram os habitos de cidades menores trazendo para a
vida noturna todo um publico adolescente modelado pelas roupas, cangées ¢ “filo-
sofia” dos Beatles ¢ dos Rolling Stones.
O sentido grupal que se manifestou concretamente na organizacio de mi-
Ihares de conjuntos em todo o mundo moldados nos Beatles e nos Rolling Stones
no Brasil também se repetiu. Nos festivais de musica popular brasileira apareciam
muitos desses conjuntos vocais ¢ instrumentais na linha do MPB4 e do Quarteto em
Cy. De qualquer maneira, a musica de Caetano, Gil, Chico Buarque, Geraldo Vandré,
Milton Nascimento, Edu Lobo, Raul Seixas, Os Mutantes ¢ as vozes de Maria Bethania
‘ou Elis Regina (da primeira fase) revelam o libetado berro do instinto que fica muito
bem registrado na carreira de Gal Costa: no primeiro disco com Cactano tem aque-
Musica Poruran & Moneana Possia BRASILEIRA 61
la voz timida que depois se arrojaria na linha de Jane Joplin. O proprio Caetano larga
o intimismo na linha da Bossa Nova do seu primeiro disco, para liberar 0 seu corpo
¢ voz ¢ assumir a androginia numa explosio de significados montados num proces-
so de colagem da realidade. A forca da mitsica popular da ainda duas outras de-
monstragdes. Isaac Karabtchevsky utiliza orquestras sinfénicas para espeticulos ao
lado de misicos populares como Chico Buarque. E Carlos Drummond de Andrade «
traduz para a revista Realidade as letras dos Beatles. —
Ocorte entio com o Tropicalismo aquilo que teéricos como Mikael Bahktine
chamam de evento da “carnavalizacao”. A pluralidade de estilos e vozes, 0 erudito €
© popular mesclados, 0 prosaico e © poético, tudo dentro de um efeito ctitico de
parodia. As mascaras se revezam e a ironia é uma constante.
De onde provém a palavra “Tropicalismo”? Segundo Nélson Motta (O Giobo
10-9-1976):
O nome, no o movimento, nasceu de um papo engragado no Alpino, quan-
do Lufs Carlos Barteto, Gustavo Dahl, Cac Diegues, Glauber Rocha, Arnaldo
Jabor ¢ © locutor que vos fala cascateavam sobre uma grande festa a ser dada
contendo todas as coisas que melhor representassem a loucura brasileira. F
comer tudo, antropofagicamente como queria o nosso guru da época, Oswald
de Andrade. © teatro do Rei da Vela, 0 cinema de Terra em Transe © 0 LP
Tropicélia (Gil, Cactano, Gal, Nara, Torquato, Capinam, Duprat, Tom Zé)
tepresentam a sintese do pensamento e da visio estética e critica.
Um estudo melhor sobre 0 Tropicalismo ainda esta por se fazer. Em artigo
escrito ainda em cima dos acontecimentos: “Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as asas
sobre nés” (publicado no Jornal do Brasil, 2-3-1968 e reproduzido neste livro) fixei
irdnica e tropicalisticamente as principais caracteristicas do movimento. Af tentava situ-
ar as origens ptdximas (O Modemnismo de 1922 ¢ a figura de Oswald de Andrade) ¢
as origens remotas (tanto Manuel Botelho de Oliveira e Padre Vieira como Gregério
de Matos e outros). O ensaio, escrito dentro de uma redacio de jornal, reflete 0 caos
desse instante, acrescido de um outro fato jornalistico € tropical: escrito para pagina
dupla de jomnal, o paginador cortou-o apenas para uma pagina, resultando dai uma
espécie de colagem, Nesse estudo se mostrava que 0 ‘Tropicalismo nio era um movi-
mento exclusivamente musical, mas, como no perfodo anterior, também se realizava
em outros géneros artisticos ¢ no-artisticos, Por exemplo:
a. Nas artes plasticas: fundindo as manifestagdes pop op criadas nos Estados Unidos,
© Tropicalismo fazia uma recriago em termos nacionais, revalorizando 0 nosso
primitivismo criticamente. Ai sobressaem nomes como Hélio Oiticica, Rubens
Gershaman, Antonio Dias, Glauco Rodrigues ¢ as anélises criticas de Frederico de
Morais. Parte-se para uma arte brasileira intencionalmente malfeita e rude (Nova62 Azzonso ROMANO DE SANT'ANNA
Objetividade), incorporando os elementos da cultura de massa;
b. No cinema: passando necessariamente por Glauber Rocha, fornece em Terra em Transe
uma visio barroca nao s6 do Brasil, mas da América Latina, realizando um de seus
itens: uma visio latino-americana de nossa realidade mum estilo sensual, confuso ¢
profuso. De alguma mancira outros diretores do Cinema Novo participaram do
Tropicalismo. ‘Também velhos atores das antigas comédias da Atlantida ¢ personagens
antigos, como Carmem Miranda, passaram a ser citados ¢ revistos. Entre outros fil-
mes: Macaima de Joaquim Pedro de Andrade e Ai Als Carnaval de Carlos Diegues;
No featra: 0 marco se deu principalmente com O Rei da Vela de Oswald de Andrade
com Roda Vida de Chico Buarque, pecas dirigidas por José Celso Martinez Correa.
O paleo assumia todas as virtualidades do picadeiro ¢ da satira erdtica e politica.
Ocorria ai a carnavalizagio, exibindo-se agressivamente as falhas e contradic
sociedade de consumo;
d. Na telwisdo: nesse perfodo a TV brasileira ganha uma forca inusitada dando desta
que sem precedentes a misica brasileira. Especialmente os programas de Chacrinha
(A Buzina do Chacrinha” e “A Discoteca do Chacrinha”) convertem-se no picadei-
10 vivo, tragicémico onde se misturam todas as classes sociais ¢ culturais. Chacrinha
valotiza os tropicalistas como Caetano ¢ Gil, j4 que era ele mesmo um tropicalista
‘vant la etre, porque introduzira 0 mesmo sentido de carnavalizagio na sua roupa e_
nos imprevistos constantes do pro,
atuacio sistematica de Nélson Motta na Uitima Hora e Ruy Castro no
Correia da Manha alimentavam diariamente 0 movimento com novos textos € pre-
textos. Uma pesquisa que um dia se faga sobre 0 movimento teré que, necessaria-
mente, passar por ai, assim como tera que se deter sobre os nomes de pecas &
autorés que aqui apenas arrolamos.
Ena literatura?
Principalmente para se fazer um estudo do ‘Tropicalismo na literatura ha que
observar algo jé sucedido durante o perfodo anterior, quando os textos da série litera
8a (Violio de Rua) tinham 0 mesmo nivel dos textos das misicas, passando a ocorrer
uma equivaléncia de qualidade ¢ uma quebra de fronteiras entre as duas séries s, O
Fropicalismo repete esse mecanismo. Para se estudar a sua producio no se pode
partir de conceitos puramente estéticos ainda presos ao artistico ou a isso que chamam.
hoje de “literariedade”, que seria 0 “especifico literétio”, ¢. que nada mais ¢ que uma
variante do conceito elitista do Belo, Para se estudar tanto a literatura de protesto
@ Considerar a ob como um feo deixando de lado
Ganto 0 Tropicalismo, ha que &
as suas “Gualidades” literarias.
Haveria que tornar publicaces como Presenga, Flor do Mal, Bondinbo, Verbo ¢
outras menores para o estudo, Mas essas publicagdes j4 estio no limite entre o
Tropicalismo e 0 chamado underground. E quais seriam as semelhangas €
dessemelhangas entre um_e outro? A meu ver a diferenca poderia ser localizada a
Ect th AA? Bonde b Tita & heh? By bre fin
“Masica Popurar £ MODFaNA Porsia BRASILSIRA 63
partir da consciéncia critica muito mais evidente no Tropicalismo, enquanto o
underground cesvala pata 0 consumo de uma cultura Aippie internacional. Haveria entre
os dois a mesma diferenca entre parédia ¢ pariifrase que apontamos no principio
deste ensaio.
Mais ainda: poder-se-ia dizer que 0 Tropicalismo foi o primeiro momento
do widerground, 0 underground brasileito criado intuitivamente. Ai pelos anos de 1967
¢ 1968 0 jovem brasileiro no conhecia o que se passava la fora na Califérnia desde
1965, 0 que jé nao ocorria em Nova Iorque e Londres. De uma maneira geral os
cabelos compridos, as roupas em colagem € a apropriacio do guarda-roupa dos
ancestrais s6 vitaram moda entre nds depois de 1968, quando o movimento la fora
iniciava sua decadéncia.
‘Tetia 0 Tropicalismo produzido textos literirios? Em origem eles acham-
se ligndet as [ptisinig GH URE Elita TE Zeger, liveopovcomo, de
Torquato Neto, Os Ubimos Dias de Payptria (Eldorado, 1973), com artigos secolhi-
dos de jornal, seria um exemplo. Também Me Segura Qu'ew Vou Dar wm Trogo (José
Alvaro, 1972) de Wally Salomao. Haveria que recolher de jornais e revistas melho-
‘Tes € mais volumosas amostras.
Uma definigao do Tropicalismo vai se tornando mais facil quando o traze
mos para 0 terreno da miisica popular. Gilberto Gil, ciente do sentido licido do
‘Tropicalismo, prestou o seguinte depoimento da Expoesia I (1973-PUC/Rio):
© Tropicalismo foi uma proposicao. Um brinquedo que a gente inventou
utilizando © material que a professora da na escola pra gente em todos os
campos: social, politico, econdmico, postico, religioso, da existéncia, Foi uma
visio de momento em que a gente visualizava o Brasil de uma certa mancira,
com umas cettas cores. Entio a gente comunicou tudo isso através do
“Tropicalismo [..] Até que ponto aquela coisa de desenvolvimento, progres-
so, autodeterminacao — até que ponto aquilo tudo correspondia a realidade?
Até que ponto no era uma faca de dois gumes? Até que ponto a gente no
podia estar sendo eaganado por toda esta sensagio de estar participando da
modernidade do consumo internacional? O Tropicalismo foi isso tudo ¢
uma brincadeira, um exercicio. Foi formica ¢ dendé: comer moqueca de
peixe numa mesa de férmica.
© Tropicalismo tenta fazer uma critica da cultura nacional. Pega os lugares
comuns: as andorinhas de louga na varanda, o pingiiim em cima da geladeira, os
bibelds que enfeitam as casas de subiirbio, e em vez de chamar isto de mau-gosto,
incorpora tudo numa visio carnavalizada da cultura. Parte para a
do lado vergonhoso de nossa cultura, que a elite recusa, Aprop ia-se das frases
“feitas: “Dize-me com quem andas ¢ eu te direi quem és”, “Fu sou um homem que
trabalha ha dez anos ¢ nunca tirou férias”, “Desquitada e vagabunda para mim sio. Te sea tre Car fia si
~ “ Arfoxso ROMANO DE SANT'ANNA
a mesma coisa”. Propée a celebracio do Dia das Mies ¢ todas as datas semelhan-
tes, recupera Carmem Miranda e as bananas, o papel crepom e os ternos brancos
com chapéu palhinha.
Alguns textos podem servir como manifestos didaticos do que seja esse mo-
vimento. Tome-se “Tropicalia” que Caetano compés no principio de 1968 e que jé
transcrevemos na “Minuta Didatica”, em outra parte deste livro.
Esse texto tem sido analisado repetidamente nas escolas € para ajudar cito
apenas duas outras anilises: a de Mario Chamie no artigo “O ‘Trdpico Entrépico da
“Tropicilia” e Augusto de Campos em Balanzo da Bossa (Perspectiva, 1974). Sem recor-
ret a essas andlises, apenas introdutoriamente, se poderia assinalar nesse texto de Caeta-
no os seguintes elementos:
a Estilo é feito em técnica de colagem, técnica que ele usara sistematicamente em
toda a sua obra, € que analisamos no artigo a ele dedicado e presente neste livro;
b Dentro do processo de colagem ele coloca em confronto os elementos mais
dispares: a cidade € 0 campo, a cultura e a natureza, 0 civilizado eo primitivo. Ai
esto a palhoga e a bossa, a cidade nova que é Brasilia ¢ a velha Bahia, o Rio de
Janciro € 0 sertio;
c. __ Esse confronto ele realiza mencionando alguns lugares comuns de nossa cul-
tura. Confronta Catulo da Paixao Cearense (“verde mata’, “luar do sertao”) com os
caminhdes e avides. Cita José de Alencar (Iracema) ¢ faz sua atualizacio na Garota
de Ipanema;
d. Estabelece um comentario sobre a cena musical brasileira, enquanto recria 0
carnaval, conciliagao de todos os contritios e colagens: af esti o sambista marginal
(bang-bang) ¢ seu tamborim; esta a musica hippie com “acordes dissonantes pelos
cinco mil alto-falantes”, mas esta também a Bossa Nova; estd a mengio ao programa
“Fino da Bossa” que Jair Rodrigues ¢ Elis Regina apresentavam na TV Record e ai esti
a Jovem Guarda com Roberto Carlos citando: “que tudo mais va pro inferno, meu
bem”. Enfim, esta a tropicalissima Carmem Miranda ¢ a Banda de Ipanema ou a
“Banda” de Chico Buarque. -
Esses itens poderiam ser desdobrados e melhor retratados, Por exemplo, todo
© conflito social af subjacente entre a crianca nordestina morta e a festa da
irresponsabilidade nacional; o aproveitamento do folclore (“na mio direita tem uma
roseira”) em confronto com o literétio. Sobretudo a fustio do ew ¢ do oxtro quando 0
compositor mistura a sua bléprafia (Amaralina, Bahia) com a histéria do Brasil.
O texto é uma extensa parddia. Hé af um texto que comenta outros
textos, Seu autor esta manipulando os dados de sua cultura criticamente, Q_cu-
rioso é que Caetano tivesse composto esta cancio conhecer a parafernilia
tedrica que absorveu de alguma maneira no contato com os concretistas: “Voce
‘Sabe, eu compus “Tropicélia’ uma semana antes de ver Rei da Vela, a primeira
Mosica Porutak # MoDERNA Porsa BRASILAIRA 65
coisa que comheci de Oswald”.
—— Para um estudo ainda mais detalhado do assunto deve-se analisar os seguin-
tes textos além desse de Caetano: “Geléia Geral” (Torquato-Gil), “Cultura e Civili-
zacio” (Gil), “Lunik 9” (Gil), “Alegria, Alegria” (Caetano), “Panis et Circencis” (Gil-
Caetano), “Lindonéia” (Gil-Caetano),
Num estudo comparativo se podera ver que o Tropicalismo retoma mui-
ta coisa do Modernismo: 0 humor, 2 critica e a tematizagao do carnaval como
anotamos ld no principio deste estudo. Também ‘Tropicalismo se organizou
através de algumas festas, happenings em galerias e teatros 4 maneira do Modernis-
mo. E possivel que o que houve va virando tradi¢éo pouco a pouco, e, sendo
desenterrado, as pessoas que ali estavam se admirem pot que nfo sabiam que
estavam fazendo histéria.
A influéncia literéria sobre os misicos tropicalistas adveio do trabalho dos
poetas concretistas Haroldo de Campos, ‘Augusto de Campos ¢ Décio Pignatari.
Se tomarmos os textos de Cactano, Gil, Torquato Neto ¢ outros dessa fase, ob-
Fervaremos 6 resulta sees e outros composi-
fores utilizam frases e conceitos
teiros dos concretistas apropriando-se, por exem-
plo, de suas idéias sobre vanguarda e de cd frases de Oswald de Andrade
como aquela: “a alegria € a prova dos nove” que aparece no Manifesto Amtropéfago
924) que Oswald lancou na fermentaco modernista. Apropriam-se também da
eXpressao “geléia geral que os concretistas repetiram ad nausean”: “na geléia geral
brasileira alguém tem que exercer as fungdes de medula ¢ de osso” (revista Inven-
ga, 0° 6, SP, 1967).
‘Tome-se, a propésito, o texto “Geléia Geral” de Torquato Neto ¢ se veré
que uma série de observagées estruturai
de Caetano.
emelhante tanto af como no “Tropicélia”
© poeta desfolha a bandeira
a manhi tropical se inicia
resplandecente, candente, fagueira
num calor girassol com alegria
na geléia geral brasileira
que o Jornal do Brasil anuncia
E bumba-ié-i¢-boi.
Ano que vern, més que foi
E bumba-ié-ié-boi.
Ba mesma danga, meu boi
Alegria é a prova dos nove
a tristeza teu porto seguro.
Minha terta onde o sol é mais limpo
em Mangueira onde 0 samba é mais puro.66 Asronso ROMANO Di SANT/ANNA
‘Tumbadora na selva selvagem.
Pindorama pais do futuro.
E bumba-ié-ié boi.
a mesma danca na sala, no Canecio, na TV
© quem nio danga nio fala
assiste a tudo e se cala.
Nao vé no meio da sala
as reliquias do Brasil:
doce mulata malvada,
um elepé de Sinatra,
mmaracujé, més de abril,
santo barroco baiano,
superpoder de paisano.
Formiplac e céu de anil,
trés destaques da Portela,
carne-seca na janela,
alguém que chora por mim,
um carnaval de verdade,
hospitalei a amizade,
brutalidade e jardim.
EB bumbe-ié-ié-boi
Plurialva, contente, brejeira
Miss Linda Brasil diz bom dia
€ outra moga, também, Carolina
da janela examina a folia.
Salve o lindo pendio de seus olhos
ea satide que o olhar irradia,
E bumbaié-ié-bai...
O poeta desfolha a bandeira
eu me sinto melhor colorido.
Pego um jato, viajo, arrebento
com roteiro do sexto sentido
voz do morro
pilio de concteto,
tropic:
bananas ao vento
O texto se consiréi fazendo a colagem de diversas expresses comuns dos
hinos patridticos, falando de Pindorama, do “Auriverde pendio da esperanca que a
brisa beija e balanga” ¢ dos poetas romanticos € parnasianos, De um certo modo,
Gonsalves Dias (“Minha terra tem palmeitas / onde canta o sabié”) renasce af, mas
dentro da impureza da poluigio ideolégica atual. E. numa enfiada, ou melhor, numa
Masica Porutar & Mopesna Possia BRASILEINA 67
embolada, que seria o termo que melhor traduzicia esse stream of consciousness, auntam-
se escola de Samba, Sinatra, barroco baiano e a Carolina de Chico Buarque. A sintese
dos contrétios esti naquele bumba-meu-boi que é misturado com o i¢-ié-ié (“bumba-
ié-i@-boi”), numa montagem semelhante aquela que Gil tornaré a fazer com 0
“