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JOST, François. Compreender A Televisão PDF

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pare TT _ Compreender a Televisao iil) i 0 livro, centrado no ponto de vista do ielespectador, desenvolve um percurso Conceltual que vai do entendimento da midia telavisdo, considerada por inteiro; passando pela concepedo dos trés mundos — real, fictivo CO TiTel OO (UM iHTATe Une MaTeYer- te ee elie] COE chegar ao exame da programagao, especificamente a francesa; e tudo isso para mostrar ao telespectador o que ele precisa para compreender 0 porqué e 0 como dos programas a que assiste. Dessa forma, pode-se dizer que OTe etme CAO MUM NON EUS em que Francois Jost, tomando como referéncia a televisao francesa, apresenta suas concepgoes tedricas sobre essa midia e sobre 0 modo de funcionamento das emissoras. Mas, acima de tudo, sua leitura é instigante, pois desafia o leitor a fazer adaptagoes e paralelos com a realidade do pais, levando-o a uma melhor compreensao acerca das articulagdes ¢ inter-relagdes possiveis dentro (ofOMTA I cles(On Cella S10 Maria Lilia Dias de Castro Compreender a televisao CONSELHO EDITORIAL DA COLECAO ESTUDOS SOBRE © AUDIOVISUAL: Tténia Maria Motia Gomes Maria Lilia Dias de Castro Elizabeth Bastos Duarte José Luiz Braga Apoio eee & 644 “5 QcnPq 7 &* ‘Coutts yfeoratighe % es 1960 Sobre 8 audiovisual Compreender a televisao Francois Jost Tradugio Elizabeth Bastos Duarte Maria Lilia Dias de Castro Vanessa Curvello 3 Editora Sulina SISBIN-UFOP ng. 6. © Editora Meridional/Sulina, 2010. Capa Danni Calisto Projeto grifico ¢ editoragio Vania Moller Revisora Caren Capaverde Tradugio Elizabeth Bastos Duarte, Maria Litia Dias de Castro e Vanessa Curvello Editor Luis Gomes Dados Intetnacionais de Catalogagéo na Publicagio CIP Bibliotecitia Responsavel: Denise Mari de Andrade Souza - CRB 10/960 J84c Jost, Francois. Compreender a televisio / Francois Jost. Teadugio de Blizabeth Bastos Duarte, ia Lilia Dias de Castro ¢ Vanessa Curvello Porto Alegre: Sulina, 2007. 168 p. ~ (Colegio Estudos sobre 0 audiovisual) ISBN: 978-85-205-0583-0 1. Televisio. 2. Meios de informagio. 3. Communicagio de massa 4, Midia, 5, Televisio — Indiistria Cultural, T. Titulo, “DD: 070.1 CDU: 316.74 654,19 659.3 ‘Todos os direitos desta edigio reservados 4 Eprrora Mrriptonan Lrpa. svaldo Aranha, 440 cj. 101 “ep: 90035-190 PortoAlegre-RS ‘Tel: (Oxx51) 3311-4082 Fax: (Oxx51) 3264-4194 wwweditorasulina.com.br email: [email protected] Outubro/2010 Iwrresso NO Brasi/PRINTED IN BRAZIL 21 25 az OF 28 29 31 3 32, 33 33 34 35 SUMARIO PREPACIO APRESENTAGAO INrRoDUGAO 1, OpsTACULOS A ANALISE 1.1 Julgamento de valor: televisio como objeto mau Uma midia “suja” Indistria culturak fonte de embrutecimento Influéncia televisual: uma midia manipuladora 1.2 Obstaculo epistemolégico: cinema como modelo Uma mesma linguagem? Eimissio: um equivalente do filme? 1.3 Obstaculo matetial: efemetidade da midia Programas de estoque, programas de fluxo Obras € nao obras Lugares da memoria 2. O QUE E A TELEVISAO? 2.1 Antes da televisio: os sonhos da tele-visao Um sonho pré-mididtico Uma midia sonhada Da invencio a midia 2.2 Hé uma linguagem televisual? Direto, autenticidade, cotidianidade Intimidade Uma sintaxe televisual? 2.3 Arte de programar 2.4 Identidade das emissoras Emissora como marca Emissora como responsavel pela programagio Emissota como pessoa 54 55. 56 57 59. 60 62 63 64 65 67 67 69 72 93 94 94 95, 97 oF 100 102 104, 104 2.5 O que ser da televisdo amanha? Multiplicagao dos canais, fragmentagiio do publico Multiplicagao das telas e mobilidade Autonomia do telespectador 3. PARA ALEM DA IMAGEM, 0 GENERO 3.1 Mundos da televisio e tom das emissGes Mundo teal Mundo fictivo Mundo hidico Tom das emissdes 3.2 Papéis estratégicos do género Diferentes usos do género Promessas dos géneros Mistura de géneros, um novo género? 4, PROGRAMAGAO 4.1 Da televisio da oferta 4 televisio formatada Légica da obra Formato 4.2 Grandes indicadores de medida de audiéncia Audiéncia e parte de audiéncia Do “todo publico” ao alvo 4.3 Légicas das grades Programacao vertical, programacao horizontal Repercussdes da programacao sobre os programas 4.4 Programacio e identidade das emissoras 5. EM NOME DO REAL. 5.1 O direto como fundamento do acesso ao teal Um conceito frequentemente mal definido O que traz 0 direto? 5.2 Telejornal Em que sentido falar de informacao? Lugar do saber na interpretacio do visivel Violéncia das imagens ou violéncia do mundo? Ideologia do telejornal 5.3 Telejornal e telerrealidade ‘Telejornal como modelo da tealidade 106 109 110 110 i 113, 113 114 116 118 118 121 122 125 126 126 128 130 130 133 133 134 137 141 142 142 143 147 149 153 155 158 161 Telerrealidade, modelo do telejornal 6. FIc¢AO E TELEVISAO 6.1 Concepcées erréneas da ficcio Ficcio como mentira Ficgdo como narrativa 6.2 Ficgiio como patasita do real Indices de ficcionalizacio Mundo ficcional Acessibilidade da ficgio 6.3 Ficgio na grade Ficgao e tempo social Ficgao televisual ¢ ficgio cinematogrifica Tdentidade da emissora 7. MuNDO DO JOGO 7.1 Mundo hidico e jogos Tépico dos jogos televisuais Jogo e divertimento Por que 0s jogos? 7.2 Jogos de perguntas ¢ respostas 7.3 Jogos de papéis De Donjons et Dragons a Fort Boyard A telerrealidade como jogo de papéis 7.4 Fronteiras do lidico 8. Frrapas DA ANALISE, 8.1 Escolha do angulo e construgao do objeto Qual olhar? Programas de contexto 1) Promessas da emissora 2) Anilise do estatuto genérico da emissao 3) Recepcao genética flutuante 8.2 Um corpus? 8.3 Espacos de andlise BIBLIOGRAFIA Francois Jost PREFACIO PRIMEIRAS PALAVRAS Maria Lilia Dias de Castro Dando continuidade as teflexdes propostas pelo professor e pesquisador Frangois Jost em Seis ligves sobre televisdo (Sulina, 2004), € dada a aceitagio do livro pelo publico interessado nos estudos de televisio, é com prazer que, neste momento, ttazemos ao leitor a traducio de Compreender a televisio. Desde seu langamento, em 2005, o livto ocupa uma posi¢io tinica no cenario dos estudos televi- suais, em todo o mundo, pela pon- tualidade do tema e pela lucidez de visio, utilizadas pelo professor Jost, acerca da tealidade televisual, em especial no universo francés. Para esta traducio, ¢ em virtude da proximidade do autor com a televisio brasileira, foram feitas alzumas complementagoes, 0 que enriqueceu ainda mais a reflexdio proposta. Olivro, centrado no ponto de vista do telespectador, desen- volve um percurso conceitual que vai do entendimento da midia televisio, considerada por inteiro; passando pela concepgao dos trés mundos — real, ficctivo ¢ lidico — 10 COMPREENDER A TELEVISSO que fundam a nogao de género; até chegar ao exame da programagio, especificamente a francesa; e tudo isso para mostrar ao telespectador do que ele precisa para compreender 0 porgué e 0 como dos programas a que assiste. Na construg&o desse percurso, o livro apresenta oito capitulos, assim distribufdos: O capitulo 1, Obstéculos @ andiise da televisdo, centra-se no exame das especificidades envolvidas em uma andlise televisual, discutindo desde julgamentos de valor, até questdes epistemologicas e materiais, sobretudo em se pensando a televisio como uma midia que articula cotidianamente a gfémeridade de um fluco na regularidade de tempo social, O capitulo 2, O que éa televisao?, volta-s para a compreensio do que verdadeiramente se entende pot televisio, na perspectiva da historia e de sua dimensao midiatica, com logica propria, linguagem especifica e instituigdes (emissoras) que a constituem. O capitulo 3, Para alt da imagem, o género, reforca a questao do género, relacionado ao conjunto de emissdes que possuem ptoptiedades comuns, mostrando que ha uma l6gica subjacente que permite agrupar a pluralidade dos géneros em torno de um pequeno mimero de eixos. Na sequénc , mostra que, para distingui-los, é necessario recorrer 4 nogao de mundos — real, ficctivo, lidico —, os quais servem de fundamento a uma classificagao racional dos géneros. O capitulo 4, Programagio, toma como ponto de partida a caracteristica fundamental que a televisio possui de estruturar a temporalidade e a vida do telespectador. Para essa teflexio, destaca-se quatro questdes em especial: a légica da oferta, o conceito de formato, o indicador de audiéncia e a relagio com a publicidade. O capitulo 5, Em nome do real, centraliza a reflexio em torno do tratamento que a televistio faz da realidade, discutindo o papel das transmis des diretas, sobretudo pela questo de simultancidade entre 0 momento em que o programa se desenrola e 0 tempo do telespectador. Ressalta, ainda, a fungao do telejornal ¢ sua relagio com a tealidade e com a telerrealidade. eS wy Francors Jost 1 © capitulo 6, Fitzao e televisito, centra-se na discussio em torno do entendimento acerca de fic¢io (como mentira, como ita do real), para, na sequéncia, analisat os narrativa, como paras indices de ficcionalizagao, 0 mundo ficcional e os critétios de acessibilidade da ficgio. Por fim, examina a relagio da ficcao dentro da grade das emissoras. © capitulo 7, Mando do jogo, enfatiza aquele mundo intermediatio entre as regras de ficgao € o espaco da realidade. Nesse ponto, introduz a nogao de jogo, com os quatro tipos propostos por Caillois: iinx, aléa, dgon e mimicry, e busca telaciona-los com os programas da grade. O capitulo 8, Evapas de andlise, propde-se a trazer a questao referente ao papel do estudioso de televisio, ressaltando, de antemao, a diferenga entre anilise e critica. Nesse sentido, apresenta alguns tragos que devem ser considerados pelo analista para, em seguida, propor um exemplo de anilise. Nesse percurtso, é importante ressaltar que, quando chama a atencao para a necessidade de as emissoras buscarem melhorar seus indices de audiéncia, Frangois Jost rediscute a funcionalidade dos programas, as logicas das grades e, sobretudo, a relagio da televisio francesa com 0 mundo publicitario, mostrando como os programas sfio pensados em fungi dos anunciantes, Os exemplos que ele cita demonstram muito bem 0 quanto a insercao publicitaria resulta, basicamente, da conexio com fatos tratados no programa, da ptoximidade com 0 tema ¢ da ptojecao (perfil, faixa evdria) acerca do telespectador e provivel consumidor do produto, Esse testemunho deixa clara a diferenga com a realidade brasileira em que essas insergdes ocotrem, muitas vezes, de forma desmedida, sobretudo porque, no Brasil, a televisdo é centralmente comercial, 0 que tem acarretado a apropriagio da linguagem publicitéria, a fim de incorporar, ao fazer televisual, o jeito glamotoso que sempre foi a matca obstinada da publicidade, Além disso, a televisio brasileira permite a insercio de anunciantes e/ou de patrocinadores no interior dos programas, chegando-se, em COMPREENDER A TELEVISAO alguns casos, até, a identificar a interferéncia desse anunciante na propria emissio. Com as telenovelas, entio, esse movimento é mais explicito. A Globo, por exemplo, chega a langar, em boletins prdptios aos anunciantes, a sinopse de novelas a serem veiculadas, projctando possibilidades de insercao em seus nucleos para atrair o anunciante para suas tramas. E isso porque a telenovela mudou de estatuto: deixou de ser apenas a representacao do sonho, da recompensa, do encontro do amor verdadeiro, da vinganga, para ficar mais proéxima do telespectador. Hoje, ela é assunto das pessoas, é conversa da familia, étema de comentarios em reunides sociais, ¢ é 0 elemento norteador da programacio. Como, em principio, a telenovela é construida em cima da fantasia, a fala publicitaria se encaixa na trama sem perder nunca sua telagdo com o teal, tornando o discutso mais recheado de valores. Eo caso especifico do merchandising, e ai se incluem todas as variacdes que o formato possibilita: a colocagao explicita do produto na trama, com referéncia direta no texto, ou a simples posigio no cendtio, como pano de fundo da movimentagio dos personagens: nao é apenas alguém que testemunha as vantagens do produto, é detetminado personagem que, dentro da trama, tem uma conduta de vida, expde seus sentimentos e suas ideias, representa valores e, por isso, confere outra dimensao de sentido quando faz men¢io ao produto. Nada mais propicio, entao, a insergio publicitaria, transferindo pata o telespectador as vantagens de determinados produtos postos em cena, as agdes de natureza pedagégica ali tratadas, os temas de mobilidade ¢ de repercuss%o social. H uma forma de mostrar, pela linguagem, como os meios projetam suas verdades, como fazem para dizer 0 que dizem, e como a sociedade convive com esses valores. Sio movimentos que atingem o telespectador, sobretudo naquele momento de distracio e de descontracao diante da telinha, além de renderem benefit FRaNcots Josr anunciantes, garantirem visibilidade social 4 emissora e, ainda, segurarem a audiéncia pretendida. Nesse contexto, como tudo é regido pelas leis do mercado, pelo jogo de concorréncia, confundem-se as formas e os espacos de divulgacio, tudo para garantir a estabilidade econémica da emissora e, em verdadeiro citculo vicioso, assegurar mais reccita, mais investimento ¢, assim, mais audiéncia. E dessa forma que as emissoras fortalecem a sua matca, na telagao com 0 concorrente; consolidam a instituigao, por se mostrar sensivel as questdes de interesse da sociedade; e dao sustentabilidade 4 empresa, que se vé regida pela légica do mercado. Essa, na verdade, é a configuragio na televisio no Brasil: de um lado, a divulgar produtos de outros anunciantes (na condicao de veiculo); de outro, a assumit a posi¢ao de anunciante em relacio a seus proptios produtos (na condigio de empresa). Seu objetivo é, sobretudo, fornecer condicdes favordveis 4 manutencao de seu negécio, garantida pelo aumento da audiéncia e pela obtengio de margens comerciais que possibilitem os investimentos pata atualizagio tecnolégica, pagamento de custos fixos e variaveis € obtengao de lucros. Dessa forma, pode-se dizer que Compreender a televisiio é um liveo valioso em que Francois Jost, tomando como referéncia a televisio francesa, apresenta suas concepcdes tedricas sobre essa midia e sobre o modo de funcionamento das emissoras. Mas, acima de tudo, sua leitura é instigante, pois desafia o leitor a fazer adaptagoes © paralelos com a realidade do pais, levando-o a uma melhor compreensio acerca das articulagdes ¢ inter-relagbes possiveis dentro do universo televisual. APRESENTACAO 15 AAINDA ALGUNS APONTAMENTOS INICIAIS Elizabeth Bastos Duarte Compreender a televisao aptesenta, com a clareza ¢ a sim- plicidade prdprias da maturidade académica, as concepgées tedricas de Frangois Jost sobre os mundos que povoam a televisao. Esses mundos, ofertados aos telespecta- dores sob a forma de promessa, constituem-se, segundo o autor, em. categorias distintivas dos géneros televisuais. Mas o livro vai além, a par de suas proposicées tedricas, descreve as légicas que presidem a acao das emissoras, sistematizando aspectos ptagmaticos referentes ao funcionamento da televisio e A sua interferéncia na vida do telespectador. Nesse petcurso de estru- turacio tedrico-metodolégica, Jost aponta a releviincia da definicao de tom, a qual dedica a segdo 3.1.4 deste livro, distinguindo-a de sua concepgio de mundos —teal, fictivo € idico, Segundo 0 autor: O fato de uma emissao enviar aun mundo — real, “fitivo o1 lidico — néo prejulga a maneira como ela realiza esse ato. Da mesma _forma como umm professor pode ser muito 16 COMPREENDER A TELEVISAO sério on privilegiar o humor, uma emissio pode se referir & realidade ou a fieeao, sob warios tons (Jost, 2010). Exemplifica com o caso de uma artista que, em uma mesma semana, dé inuimeras entrevistas sobre o lancamento de um produto, as quais se diferem entre si pelo tom caracteristico de cada programa. Esse tom é também o que seguidamente distingue as ficgdes das diferentes emissoras. Assim, para Jost (2005, p. 40): Nao se pode confundis, portanto, tom e mundo: ainda que um animador permeie seu jornal de blagues (como o fez, em seu tempo, Bruno Masure), isso nao é suficiente para classificar 0 telejornal sob o rétulo do mundo hidico. Embora 0 tom seja uma categoria 4 qual recorrem os profissionais, cle ainda é largamente negligenciado pelos pesqui- sadores. Essas observacdes referentes ao tom interessam-me, particularmente, na medida em que o processo de tonalizacio do discurso vem sendo objeto de minhas investigagées ha bastante tempo. Poucos estudiosos de televisto mencionam formalmente essa questo, Embora Jost nao aprofunde, neste livro, sua concepgio sobre o tom, fornecendo indicagdes metodoldgicas mais precisas de como trata-lo, ele naio s6 reconhece sua existéncia, como tece uma série de consideragdes que sustentam e reforgam a conviccio de que a situagao comunicativa televisual comporta, para além das ancoragens de tempo, espaco, aspecto € atores, um outto dispositivo sintatico-semantico, que pode set chamado de tonalizagio do discurso. Esse dispositivo seria responsavel pela conferéncia de um ponto de vista, a partir do qual sua narrativa quer ser reconhecida pelo telespectados, independentemente do plano de tealidade ou do regime de crenca com que opera, visto que ... wma emissao pode se referir d realidade on i fieco, sob varios tons (Jost, 2010). A tonalizacao é, nessa perspectiva, uma forma especifica de enderecamento que ganha muita relevancia no discurso televisual. Francois Jost 7 Assim, foi a partir de afirmacdes como essas que se chegou 4 conclusio de que o tom no discurso televisual decorre de um alargamento do sentido do termo — tal como € empregado por linguagens isoladas, como a cromatica, a musical ou a verbal —, sustentado pelo deslocamento da percepsao inicial ¢ imediata dos tracos significantes responsaveis por sua expresso, em direio ao seu contetido. Em textos complexos como os produtos televisuais, a petcepcio do tom se da na ditegio inversa, do contetido A expressio, sendo extensiva a totalidade da emissao. O processo de tonalizagao tem por tarefa a atribuicio estratégica de um tom principal ao discurso produzido ¢ a sua articulacio com outros tons a ele correlacionados. No entanto, é preciso tet presente que a escolha de um tom em televisio € uma deliberacio de carater estratégico. Atwalmente, mais do que antes, no inicio de cada emissao anuneie se 0 tom que ir domind-la: se havera risos ¢ légrimas, ‘surpresas’, a revelardo de segredos ou da verdade (Jost, 1999, p. 28). Mais ainda, essa deliberagio sobre 0 rom confere ao produto televisual um cardter interpelativo: acertat 0 tom, ou melhor, sua expressio, implica que ele seja reconhecido e apteciado pelo telespectador, Se isso nao ocorter, todo 0 processo de conferéncia fica comprometido — nao obtém éxito, pois o tom se ditige, necessatiamente, ao meio social. Ele supde um interlocutor virtual ow atual que, a medida que é capaz de detectar 0 tom conferido a um produto televisual, torna-se cimplice de seus enunciadores; percebe sua proposiclio engajante; adere ao convite que Ihe é feito pela instincia de enunciagio, Trata-se de um jogo que, mais do que para fazé-lo refletir ou entreter-se, tem uma intencio estratégica: manter o telespectador cativo. Ora, esse jogo ¢ demasiado astucioso para ser apenas informagio ou mero entretenimento. Como ¢ previsivel, a proposicao de um tom orienta-se por um feixe de relagdes representadas pela tentativa de harmonizagio entre o tema, o géneto/subgénero do programa, o puiblico a que se destina € 0 tipo de interagio que a emissio pretende estabelecer com 0 telespectadot, interferindo, do ponto de vista discursivo, na 18 COMPREENDER 4 TELEVISAO configuragio dos atores, do tempo, do espaco, bem como da prépria organizagao narrative. Sua escolha nunca é neutra, procurando sempre fazer jus a0 conjunto do real que quer dar a conhecer a partir de um ponto de vista singular. Os tons podem combinar-se entte si para dar corpo a um determinado programa televisual, opetando sobre um fundo comum de discursos que compdem o paradigma do subgénero. Por outro lado, embora 0 tom, como afirma Jost, nao seja uma categoria definidora dos géneros televisuais, visto que se pode referir 4 realidade ou 4 ficcio sob diferentes tons, cada subgénero televisual atualiza, enquanto expectativa social ou pritica de audiéncia, um tom principal ou uma combinatéria tonal. Nao obstante, no processo de realizagio de um subgénero televisual, cada formato manifesta sua escolha tonal, expressa por uma determinada combinatéria de tons, que passa a identificar o programa, Dessa forma, a combinatéria tonal € trago distintivo entre subgénetos e formatos, pois, embora as producées televisuais de um mesmo subgénero apresentem, em principio, semelhangas tonais, elas operam com determinadas combinagdes tonais que as distinguem entre si, tornando-se sua marca registrada e atuando como signo de diferenciacio com forte potencial fidelizador do publico telespectados. O processo de tonalizacio implica dois tipos de procedimentos com vistas 4 harmonizacio e compatbilizacio das combinatorias tonais, envolvendo movyimentos de: modulagao, deslocamento ou passagem do tom principal aos tons comple- mentares a ele relacionados e vice-versa, e gradago, aumento ou diminuigio de énfase em determinado tom. Esses procedimentos sustentam a eficacia das combinatérias tonais, constituindo-se em subtragées ou adigdes de tons, repetigées ou proposigées de alteragdes tonais, pois possuem também uma fungio de autor- regulacio, tendo em vista as relacdes e reaces do enunciatario frente ao discurso enunciado. Como a produgao televisual se movimenta basicamente entre dois objetivos fundamentais, informar e divertir, Prancors Josr 1 que ora sao priorizados isoladamente, ora se combinam, acredita-se que as demais categorias tonais se articulem em torno de uma categoria principal, disposigao, cujos eixos opositivos se estruturam, cm torno das tensdes entre seus dois polos extremos — sobriedade e Iudicidade (seriedade, goxapio, espirituosidade, irivialidade). ‘A combinatoria tonal investida em um produto televisual pode-se dar entre tons afins, ou seja, cocrentes € compativeis entre si ou mio, manifestos pela relacao estabelecida entre as diferentes linguagens sonoras ¢ visuais empregadas em sua textualizagao — figurino, representagio, gestos, expresso corporal, fala, cenario, rufdos, misica, Dai porque o grau de intimidade que une os tons atualizados em uma dada combinatoria tonal é varidvel. Quando se observa uma conexio telativamente intima entre dois tons, diz-se que eles contraem uma relagio de coeréncia. Se, ao contrartio, inexiste tal conexdo, ha uma relacio de incoeréncia entre eles que provoca rupturas. Em nivel textual, 0 tom se impde como uma pretensao de contetdo em busca de diferentes tragos expressivos que 0 exteriorizem. Esses tragos podem nao se dar imediatamente a ver, encontrando sua forma de expressio na atticulagio de diferentes niveis de linguagens, ligadas 4 harmonizagio de cores, formas ¢ sons, ao jogo de cameras e edicfio, aos registros de lingua, a0 figurino, cenario, encenagio: manifestam-se estrategicamente através da sobreposi¢io ¢ inter-relacionamento de diferentes substancias € formas de expresso, que servem simultaneamente para veiculat outros sentidos. Ha, no obstante, programas televisuais em que existem atores discursivos — apresentadotes, Ancoras, repérteres —, responsiveis pela proposicao ¢ manutengao do tom, centralizando em sia tarefa de tonalizagio da emissio. Segundo Jost (2005, p. 40, 0 tom é um componente que se ancora principalmente no animador, para as emissies que advém do mundo real ¢ lidico, on nos personagens, no caso da ficgao. ‘Assim, todo programa televisual submete-se a umn duplo desafio: descobrir o tom adequado e 7elar por sua manutengio no 20 COMPREENDER A TELEVISAO decorrer dos episédios, capitulos, temporadas, edigdes ou jornadas de um mesmo programa. Diante do exposto, nao podetia finalizar esses apontamentos sem creditar a Frangois Jost um mérito que lhe cabe por direito, aquele proprio dos grandes mestres: o de, além de desenvolver suas proptias pesquisas, inspirar, com suas ideias, o desenvolvimento de outras investigacdes, no caso, sobre a comunicacio televisual, fazendo avangar o conhecimento. Feancors Josr INTRODUGAO 21 A televisao é sem duivida a inica midia que mobiliza cotidiana- mente a atengdo de todas as outras. Se, nos anos 50, os telespecta- dores, ainda pouco numerosos, deviam procurar na revista do programa de r4dio a meia pagina consagrada as emissdes de tele- visao, atualmente tanto a imprensa escrita como as radios atraem os leitores ou os ouvintes, propondo rubricas, suplementos ou emissdes que comentam os programas televisivos que virdo, a audiéncia dos que aconteceram ou, ainda, que revelam os bastidores desse ou daquele programa de telerrealidade. Certas emissdes de televisio propdem-se mesmo a se deter sobre a imagem para melhor com- preender a maneira como a teali- dade é consttuida pela informagio. Entretanto, 0 que é com- preender a televisio? F fazer entre- vistas no meio profissional para aprender como se faz uma emissao? Fi investigar os arquivos esctitos, estudar o sistema de leis e os textos que regulam a vida das emissoras? F desmontar os mecanismos econémicos? Ou é se ater, simples- mente, ao estudo dos programas? No plano ideal, deve ser tudo isso ao mesmo tempo. Os debates sobre 22 COMPREENDER A TELEVISAO a qualidade dos programas que mobilizam as conversas entre amigos ¢ focalizam todas as criticas enderecadas periodicamente a essa midia, por exemplo, giram em torno do vazio, quando nao sio considerados, em conjunto, dados bastante diversos: obtigacdes da emissora em. relacio a seu caderno de encargos', natureza da emissora (publica ow privada), lugar da emissiio na grade e, certamente, definicao dos ctitérios do que se entende por qualidade. Diante dessa multiplicidade de abordagens, é dificil escolher, ainda mais que todas clas sfo perfeitamente legitimas, sendo assim setia necessatio acrescentar algumas outras, como, por exemplo, a historia: os programas niio aparecem, como por vezes se fazem acreditar, por meio de rupturas bruscas, ¢ sim pelas transformagées progressivas operadas nos formatos e nos dispositivos. No entanto, nao basta enumerar os métodos especificos dessas abordagens sem mostrar 0 proveito que se pode titar de sua associacao na anilise. Este livto posiciona-se, inicialmente, do ponto de vista do telespectador. A questao que o guia, de uma extremidade a outra de suas paginas, é esta: do que se necessita para compreendet 0 porqué © 0 como dos programas a que se assiste? Como it além do visivel para colocar em pauta a logica que leva as emissoras a proporem uma detetminada emissao em tal hora e 0 telespectador a assistir? As respostas a essas questées devem ser procuradas em diversas diregdes: unidade da diligéncia vem do objeto estudado, o programa. No que os mistérios da televisao interessam ao ptblico, com efeito, se ela € tio somente um meio de veiculagao dos conteidos audiovisuais a domicilio? Oestudo da televisio encontra muitas tesisténcias, dirigidas até mesmo Aqueles cuja tatefa é criticd-la. Ao mau gosto de dedicar tempo ao que se chama, hé algumas décadas, desdenhosamente, de espetdculo do pobre, soma-se aquele de a ele sacrificar seu tempo de estudo. Em lugar de calar sobre esse estado de fato, preferiu-se aqui "© caderno de encargos regula as obrigagdes das emiss seus programas. oras no que se refere a Francots Jos 23 enfrentar de inicio essa questio do estatuto para ficar livre (definitivamente?) da condescendéncia com que, 4s vezes, sao observados os analistas de televisio. O plano deste livro é de afunilamento: primeiramente, parte- se da interrogacio sobre a midia televisiio e sobre as crengas que ptesidem sua invenc&o, passando a algumas questdes sobre as mutacGes progressivas que a levaram a ser o que é hoje (capitulo 2). Ele considera em seguida 0 papel-chave que o género desempenha na comunicacao televisnal, nto sem se interrogar sobte a relacio que une o telespectador As emissoras. A multiplicagio das denominagées de géneros (telerrealidade, docufic¢io ¢ outras docurrealidades) pode fazer acreditar que os produtores e os difusores inventam constantemente noyas formulas, gerando rupturas radicais da televisio de hoje com aquela de ontem. Com efeito, todas as emissdes sio interpretadas em fungio de trés mandos: o mundo real, o mundo ficticio e o mundo lidico (capitulo 3). Como a televisiio nio ganha sentido a nao ser no tempo, a partir da maneira particular que a emissora tem de acompanhar a temporalidade social, volta-se entio pata a programacio, que no est4 longe de representar a pedra angular da comunicacio televisual (capitulo 4). Finalmente, depois de se terem definidos os mundos da televisao e os principios de sua disposigio no interior da grade dos programas, exploram-se uns apés 0s outtos (capitulo 5 a7). Espero que, ao término deste percurso, o proprio leitor se lance na anilise da televisio, complementando o passo decisivo que leva da critica ao conhecimento. Francois Josr 1. OBsTACULOs A ANALISE DA TELEVISAO 25 Os professores de ciéncias imaginam frequentemente, con- forme alerta o fildsofo Gaston Bachelard, que, para que se possa fazer um aluno compreender uma demonstracio de fisica, ¢ suficiente repeti-la ponto por ponto, até o momento em que, por milagre, esse a compreenda. Assim fazendo, eles esquecem que o adolescente, quando chega a uma aula em que lhe ensinam uma matéria nova, nao esta destituido de opiniio, nao é uma /abula rasa, mas um individuo que ja possui certas representagdes: concernentes aos fendmenos que vai estudar e prejulgamentos bem ancorados, fundados em obser- vagOes cotidianas que nem sempre sio simples de refutar: assim, a impressio de resisténcia que um corpo flutuando na superficie da Agua aptesenta, quando se procura afunda-lo, torna mais dificil a compreensio do principio de Arqui- medes, que demonstra a ideia inversa, ou seja, de que é a agua quem resiste. O que se pode attibuir fisica torna-se ainda mais evidente no caso da televisdo: cada individuo ja passou um mimero incalculével de horas frente 4 tela e acumulou, ao final desse tempo, opinides ou 26 COMPREFNDER A TELEVISAO crengas sobre o funcionamento dessa midia. E aqueles que pretendem nunca mais olhar a telinha nao podem ficar de fora, pois é precisamente em nome de uma certa concepgao da televisio que eles justificam sua decisio. A primazia da experiéncia televisual, entaizada na obsetvagiio, est de tal forma ancorada nas pessoas que, As vezes, fica dificil imaginar que a televisio possa set um campo promissor de estudos. O que se pode dizer sobre a televisiio que j4 nio se saibal — éo0 que se tem vontade de salientar aos pesquisadores que pretendem dela fazer um objeto cientifico. A isso, os defensores da educacio para as midias refutam que é necessario aprender com as criancas a decodificar a televistio ou a adquirir a linguagem da imagem, como se faz com a propria lingua. F'ssa segunda posigo tem o mérito de postular que a impregnacao tclevisual nao é suficiente para compreender a midia ¢ que é necessAtio pesquisar, além do sensivel, modelos de inteligibilidade. Porém, toda a questo se centra no como proceder para atingir esse fim. Como seus programas sio feitos de imagens, de sons e de palavras, acredita-se, as veres, que é suficiente estudar sucessivamente cada um desses materiais ou desses canais (Viallon, 1996) para analisa-los. Se esse método demonstrou eficiéncia durante um tempo para o cinema, nio parece nada adequado, em contrapartida, a compreensio de uma midia cuja caracteristica essencial nao é tanto a producao de obras, mas a articulacdo cotidiana da efemeridade de um fluxo na regularidade do tempo social. Assim, convém interrogar- se sobre em que medida a importacao pura e simples do instrumental desenvolvido pelas teorias do cinema nfo se constitui atualmente em um obstaculo para o estudo da televisio. A efemeridade da midia televisio foi, durante muito tempo, um obstéculo 4 constituigio de uma memoria. Até a aparicao do videoteipe nas emissoras de televisio, em torno dos anos 60, as emissdes s6 podiam ser registradas e conservadas se filmadas em uma tela sobre um suporte cinematogrifico (cinescopio). Mas, somente as emissGes que conquistavam o estatuto de obra tecebiam Pnancors Josr 27 um tratamento dessa ordem; ja as emissdes de palco (os debates, as apresentacdes de telejornais etc.) desapareciam nas lixeiras da historia? Fssas dificuldades explicam em parte por que as andlises de televisio sao ainda hoje centradas muito mais no conjunto de programas que na programacio. Felizmente, esse tiltimo obstaculo, inerente 4 propria midia, estd sendo levado em conta pelas novas condigdes de pesquisa, que motivam este livro. 1.1 JULGAMENTO DE VALOR: TELEVISAO COMO OBJETO MAU ¢ Uma midia suja No século XVIII, os romances eram desaconselhados As mocas ¢, no século XTX, aquelas que se deleitavam com sua leitura eram consideradas como perdidas (Madame Bovary ilustra perfeitamente a sorte pouco desejavel reservada 4s leituras que confundiam os romances de aventura com a vida). No inicio do século XX, foi a vez de o cinema se tornar um objeto mau. Por muito tempo considerado um divertimento de périas (Duhamel), ele 36 foi alcado A categoria de objeto de estudo universitario nos anos 80. Em se tratando da televisao, a teferéncia constante, feita pelos discursos nostilgicos as misses da televisio publica de antanho, esquece quase sempre aquela que diz respeito ao entretenimento. S6 se retém dessa idade do ouro a revista de informacio Ging colonnes & la une, Las perses, de Jean Prat, ou Dom Juan, de Marcel Blowal, ¢ apressa-se a esquecet que a mesma década via nascet Intervilles ¢ seus combates de mendigos. Ainda hoje, os que so Contra a tevé (titulo de um livro do ctonista do jornal Libération) centram 2 Jean Arnaud, ditezor de programas de televisio, escreveu no nimero de 13 de abril de 1952 do jornal Radia 32: “Quanto ao espetienlo de qualidade, que até agora desaparecia 20 mesmo tempo em que aparecia sobre a tela o painel ‘fim’, vai ser possivel o registro sobre a pelicula, entao repetido, trocado, conservado. Uma filmoteca de televisio, armazenando tesouros, vai poder set construida 28 COMPREENDER A TELEVISAO seus ataques no fato de a evé ser uma midia vendida (Marcelle, 1998, p. 15) ¢ mal compreendem que ela possa ser um objeto de estudo sério: Entre todos os especialistas da imagem, parece que hé os tebricos da televisiza, socidlogas voluntérios on midiblogos duros que ex a com especial curiosidade, frequentemente decepcionada, A perspicécia pontual nunca me pareceu justificar sen investimento (ibid. p. 21). Se se imagina equivocadamente que um tedtico passa, ou, antes, perde tempo estudando essa midia, é porque ele est contaminado pela imundicie do meio. Essa critica contida, no caso, na opinido de um jornalista, é reiterada igualmente pela atitude de determinados universitarios, que consideram ser mais dignificante estudar filmes do que emissdes de televistio, ou pela fala da mae de familia, que diz ao filho, hipnotizado frente a pequena tela: vocé faria melhor lendol ° Indtistria cultural: fonte de embrutecimento Os filésofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, deram seus titulos de nobreza na defesa dessa posigao a partit de 1947, em um livro fundador, A dialética da razéo. Qual € a sua argumentagdo? A incistria cultural busca embrutecer 0 ptiblico, que se torn: em suas méos, um brinquedo passivo, O divertimento é o instrumento dessa dependéncia vinda de cima ([1947] 1974, p. 131). Se Adorno e Horkheimer acusam a indiistria cultural (os midia) de alienar as massas com seus produtos setializados, é porque o proprio meio é desprezivel, assim como as produgées audiovisuais que faz nascer. A imagem sonora, como teria dito André Bazin, é suspeita de nao servir para nada além do entretenimento, atividade desvalorizada a prior’ e oposta A cultura € a arte, como se tratassem de elementos inconciliaveis. As taizes dessa concep¢io séria da cultura podem certamente ser buscadas na nogio de divertimento de Pascal, mas também se constituem em /apos que acompanha a massificagao de todas as midias, como se viu (jptimeiro a leitura, depois o cinema ¢, por tiltimo, a televisio). Essa desvalorizagao da televisio encontra entio sua fonte em uma confusio entre média (midia) e medium (meio). Condena-se Francors Jost 29 a televisiio (midia), porque assistit passivamente as imagens (meio) seria uma atividade menos dignificante que outras (em primeiro lugar, a leitura), F, mais proveitoso ler um romance da moda que assistir a um documentatio sobre a vida dos animais ou sobte algum fendmeno das sociedades contemporiineas? A questio é frequen- temente aludida em proveito de um amalgama entre os contetidos € a midia, como testemunha o relatério Kriegel sobre a violéncia na televisio (2002), que toma como ponto de partida a condenacio dos programas demasiado violentos ou potnograficos ¢, pata concluir, sobre a nocividade de tantas longas horas passadas em frente a tehvisdo?, caja consequéncia seria a sonoléncia na escola. e Influéncia televisual: uma midia manipuladora No fim de 1989, os telespectadores do mundo inteiro vivenciaram, quase ao vivo, a queda do regime comunista de Ceaucescu. Fim 22 de dezembro, eles descobriram as imagens de uma dezena de mortos perfilados lado a lado no chao. Os jornalistas falaram do massacte de Timisoara e de seus 12.000 mortos (enter- rados em vala comum), exibindo essa sequéncia como uma prova da crueldade do ditador, Alguns dias mais tarde, observando as opines de médicos legistas sobre as cicatrizes que tinham todos os cadaveres, foi descoberto que se trataya unicamente de mortos autopsiados, sem nenhuma telagao com os acontecimentos vividos na Roménia. Esse acontecimento do falso massacre de Timisoara d que se estendeu pata além da esfera intelectual. Uma pesquisa regular sencadeou um movimento de desconfianga em relacao A televisao, sobre a confianga dos franceses nas midias (Le paint/ La croix, em uma amostra de 1.000 pessoas) revela uma brusca queda de ctedibilidade da midia: enquanto, em 1989, 65% das pi joas entrevistadas pensavam que as coisas se haviam passado verdadeiramente > La violence a la télévision, Pasis, relato da senhora Blandine Kriegel ao senhor Jean Jacques Aillagon, ministro da Cultura ¢ da Comunicagio, 2002, p. 22. Nota-se que, no inicio, o cinema era acusado por esse mesmo géncro de efeito. 30 COMPREENDER A TELEVISAO on mais ou menos como a televisao as havia mostrado; em 1990, elas nic séo mais que 52% (e 45%, em 2005). A questo colocada é evidentemente ctiticavel, pois parte do pressuposto de que a televisio poderia set uma simples janela para o mundo, mas nao restam seniio as respostas testemunhando uma tomada de consciéncia sobre a impossivel objetividade da midia. Alguns pensadores, entre os quais se encontra Pierre Bourdieu, vao transmitir ¢ amplificar essa tomada de consciéncia em suas obras. O pequeno livro vermelho do socidlogo, intitulado sobriamente Sobre a televisao (1996), sintetiza as ctiticas direcionadas a0 campo jornalistico: a influéncia do jotnalismo sobre os campos de produgao cultural, que ele chama simplesmente de a influéncia da televisio, € responsivel, para o socidlogo, por indmeras ameagas a democracia: circularidade da informacao, fast thinking, falsos debates etc. Se esses ataques prolongam as condenagdes da industria cultural, também testemunham implicitamente uma hierarquizagio dos géneros televisuais. O fato de Bourdieu haver se referido A televisio, quando de fato ele critica apenas 0 funcionamento da informagio, é sintoma de uma redugdo muito comum da midia televisdo a uma parte desses programas (os telejornais tepresentam cerca de 10% do conjunto). Da mesma maneira, a emissiio Arrét sur ‘images (aa France 5) que, durante mais de dez anos, pretendia analisar a televiso, toma majoritariamente como base de suas pesquiisas as reportagens ou os temas do telejornal. Confundir a televisio com uma de suas miss6es (informat) diz muito sobre o valor que se atribui As outras misses (entreter, instruit) e As emissdes que reivindicam para si essa funcio. Assim como os géneros pictéricos eram hierarquizados no século XVII em fun 10 do objeto reptesentado (do mais nobre, a pintura teligiosa, ao mais prosaico, a natureza morta), os estudos sobre a televisiio aparecem como mais ou menos legitimos, segundo seu contetido tematico: se todo mundo concorda com a necessidade de analisar como é tratada a informacio, a ficgio nao parece tio digna de interesse, acusada que € por sua fungio de entretenimento, Quanto aos jogos ou as variedades, eles FRANGOIs Jost 31 sio frequentemente desprezados, a ponto de se constituirem na atualidade nos parentes pobres dos estudos televisuais. Bss yalorizacio da televistio por seus objetos no é a mesma em todas as culturas: em um pais como 0 Brasil, em que a informagio foi pot , 20 contratio, muito tempo dominada por um regime autoritario, a ficciio (com as telenovelas) que esté no centro de todas as atengGes. 1.2 OBsTACULO EPISTEMOLOGICO: CINEMA COMO MODELO © Uma mesma linguagem? ‘As pesquisas sobre o cinema alcancaram um passo decisivo com Christian Metz, que as fez passar da critica — na qual se havia distinguido um André Bazin — a semiologia. De inspiragio linguistica, essa semiologia de primeira geragio conferiu aos analistas instru- mentos cientificos. Tornou-se possivel, com seus ptimeitos trabalhos, analisar um filme com o mesmo rigor que um texto literatio. No entanto, 0 sucesso dessa disciplina teve como deploravel contrapartida a aglomeracio do conjunto dos objetos audiovisuais, fossem eles cinematograficos ou televisuais, na medida em que, para Metz (1971, p.170), 0 que se denomina audiovisual, com efeito, é une grupo de lingnagens vizinhas e que compreendem o cinema, a televisio, 0 radio em algumas de suas produgies [...] a fotografia, a fotonovela [. animado... Considerados sob o Angulo da linguagem, cinema ¢ }, 0 desenho televisio sio mais que proximos, na medida em que eles mobilizam os mesmos codigos, as duas midias constituem, ao menos nos seus tragos Jfositos essenciais, uma tinica e mesma linguagem (ibid, p. 177). Ainda que ele reconhega quatto tipos de diferencas entre cinema ¢ televisio — diferengas tecnologicas, sociopoliticas, psicossociolégicas e de programacio —, Metz considera que essas tém um peso relativamente ‘pequeno no que concerne ao néimero ¢ a impartancia considerdvel das cadificagtes que as duas linguagens tém em comum (ibid, p. 177) e que podem ser assitn resumidas: imagem obtida mecanicamente, mltipla, mével, combinada com irés espécies de elementos sonoras (palavras, misica, raédos) e com as mencies esenitas (ibid, p. 171). 32 COMPREENDER A TELEVISAO Quer reivindiquem ou nfo 4 semiologia, essas abordagens da televisio que tratam seu objeto por uma decomposicao dos parimetros da imagem (escala de planos, movimentos, ligagées etc.) e do som (voz, barulhos, lingua) admitem implicitamente que a imagem cinematografica e a imagem televisual diferem tao somente pela dimensio (Metz, 1971, p. 178). Com certeza, isso nao é inteiramente falso, mesmo que a questio do tamanho das telas esteja hoje em plena mudanga, e nao ha nenhuma dtivida de que, para descrever um telefilme, seria util conhecer as espessuras de um plano ou as ligacdes, mas 0 essencial da televisio nao esté nisso, ¢ por varias razdes: primeiro, porque ela difunde intimeros géneros que nao tém nenhum equivalente no cinema (telejornal, debates ou jogos); depois, porque, em certos aspectos, a televisao esta igualmente proxima do radio (ele empresta-Ihe certas emi: es), 0 que justifica outras aproximagées de cddigos; e por ultimo, porque a palavra tem ai um papel tio fundamental como a imagem. Isso nao quer dizer que nao sera necessdrio, em momento futuro, recorter a certos instrumentos fotjados pela semiologia do cinema, mas, hierarqui- camente, essa contribuicio deve ser secundaria na presente abordagem da televisio. Emiss4o: um equivalente do filme? O peso do modelo de anilise cinematografica sobre a andlise televisual provocou, em um primeiro momento, 0 exame das emissdes como se fossem filmes, sem levar em conta o contexto de difasio. A maior parte dos estudos sobre filmes omite as citcuns- tancias materiais de sua projecio: com excecio dos historiadores, para quem a sessio como tal pode ser um objeto de pesquisa, poucas criticas se voltam, na andlise de filme, para a sala de cinema onde ele é visto, para os horatios ou para as publicidades que os precedem. Nio é por acaso que, nessas condigées, os primeiros estudos sobre ptogramas tenham iniciado pelas emissdes fora de contexto ou, mais precisameate, pelas colegdes de emissdes, isto ¢, pelas séries de emissdes, como Dadlas, que foram objeto de bastante atengio Prancors Josr 33 por parte de pesquisadores dos anos 80 (Ang, 1985; Blum, 1985; Liebes et Katz, 1986). Decerto, ao contratio dos analistas de filmes, os tedricos da televisio preferem como unidade exemplar a colegao de programas. Mas, na medida em que cla é estudada como um puro paradigma, sem levar em conta o seu lugar na grade ¢ as variagdes de faixas horirias em fungao dos paises, procede-se tio abstratamente como nos filmes. Ora, se esse método foi aprovado para o cinema, sua eficicia é bem menor pata a televisio, na medida em que os programas sao concebidos em fungio de faixas horarias especificas, as vezes para um certo tipo de ptblico ¢, quase sempre, para ligar-se as publicidades que contribuem para financié-los. E importante lembrar que as soap-operas exibidas a tarde nos Estados Unidos (day-time) deram otigem as ficgdes financiadas pelos grandes anunciantes para prender a atencio das mulheres frente 4 telinha, para que elas consumissem, em espacos regulares, as publicidades de seus produtos. Isso explica o fato de serem desprovidos de climax ou de resolugio: cada episddio nada faz além de reafirmar a repeticio monétona de sua cotidianidade (Modelski, 1982). 1.3 OBSTACULO MATERIAL: EFEMERIDADE DA MIDIA ¢ Progtamas de estoque, programas de fluxo E necessatio dizer que a esses obstaculos epistemoldgicos acrescenta-se uma dificuldade objetiva: a volatilidade da midia. Nao se pode esquecer que, até os anos 60, a televisio era comparada tanto as artes do espeticulo vivo, quanto 4 efemeridade de suas produgdes. Desprovida de meios de registro eletrdnico—o videoteipe profissional s6 aparece nos anos 60 -, ela s6 podia gravar imagens ¢ sons produzidos ao vivo com uma cimera de cinema projetada sobre uma tela de televisto (o Ainescope). Como consequéncia, os profissionais do meio rapidamente fizeram oposicio entre programas de estoque ¢ programas de fluxo. Enquanto os primeiros mereciam ser conservados, porque eram suscetiveis, mais ou menos, 34 COMPREENDER A TELEVISA de retransmissio, os outros requeriam um uso imediato que niio impunha nenhum arquivamento. Por essa raz4o, é mais facil encontrar o registro de um drama exibido ao vivo nos anos 50 do que o de um telejornal completo, no somente com suas reportagens, mas com seu apresentador no cendtio. As teportagens eram gravadas porque rodavam sobre um supotte filmico (16 mm) ¢ porque os acontecimentos presentes podiam necessitar de sua reexibicio (a morte de um homem politico ou a lembranga de um fato histérico, por exemplo), as intervencd s ao vivo nao etam objeto de registro, pois nelas niio se via utilidade’ Antes do uso do videoteipe, a citagio de uma sequéncia s6 podia ser parcial: ou se reescutava o didlogo de uma emissio precedente, passando o disco de sua gtavacio, como acontece no iltimo episddio da colecio Ffut d'urgence, em que 0 apresentador, Roger Louis, faz ouvir um didlogo desenrolado no palco de uma de suas emissées precedentes (1954); ou simplesmente se brincava com a cena, como no muito famoso Cing dernitres minutes em que dois telespectadores, no estiidio, isolados em cabines, deviam encontrar indicios, em uma dramatizagio interpretada ao vivo que confundia © culpado de um crime. Para fazer isso, cles podiam reexaminat cenas reinterpretadas pelos atores. © Obras e nao obras A categotizaciio das emissdes em fungio de sua maior ou menor cfemeridade esta implicita na maneira como o CSA (Conselho Superior do Audiovisual, instituigao que regula, na Franca, televisdes € tadios) distingue duas categorias de emissées: as obras ¢ as nao obras. Constituem-se obras audiovisuais as emissies nito derivadas de um dos seguintes génera: obras cinematgréficas de longa duragio; jornais e emissbes de informacao; variedades; jogos; outras emissbes nao ficcionais realizadas 0 ptimeiro telejornal francés completo conservado data de 1956, Os apresentadores sé aparecem em 1954, FRangols Jost 35 preferencialmente emt paleo; retransmissbes esportivas; mensagens publicitdrias, televendas; autopromocao; servicos de teletexto. Essa definicdo pelo negativo exclui do campo das obras emiss6es prioritariamente realizadas em palco (telejornais, variedades, sdes esportivas, publicidades, jogos), assim como retransmis televendas ou autopromogio. Se for colocada de lado a emissio de ficagio duas carater comercial, podem-se extrair dessa class conclusées: de um lado, a fic¢io goza de um ptivilégio quase tinico, dado que toda ficgio, mesmo no paleo, € considerada como uma obra; de outro, as emissdes a0 vivo ou realizadas em palco nao podem se beneficiar do estatuto de obra. i necessario retornar as implicagdes dessa classificagéo na televisio de hoje, mas, n0 momento, é suficiente assinalar que as obras sao, nessa ldgica, as emissdes que se podem rever, porque seu interesse se situa para além da atualidade: ficgdes televisuais, desenhos animados, documentatios, assim como magazines e programas de entretenimento minoritariamente realizados em palco. O telejornal owa retransmisstio de uma partida de futebol estariam, assim, ligados ao presente. e Lugares da meméria Talvez todos se lembrem de Martin Tupper, o herdi da série Dream on, que, diante de diversos acontecimentos de sua vida, recorda-se de cenas ficcionais de televisio que assistiu em sua infincia; ou dos personagens de Friends, que, também, tomam voluntariamente como referéncia as emissées de televisio (Acabo de fazer amor com um rapax que néo tinha nascido na estreia de Dinasty!,exclama uma das personagens). Os cendgrafos nao precisam procurar muito longe essas situagdes, que, bem-entendido, estao na memoria do ptblico que eles querem seduzit: para os filhos da televisio, com efeito, as emissées da infancia tornaram-se lugares de nostalgia que constituem a meméria comum de uma geracio, memoria essa que tem seus titos de celebragao, como a noite Gloubi bouke, colocada sob a autoridade de Casimir, a marionete de tamanho humano de 36 COMPREENDER A TELEVISAO Lille aus: enfants. O fato de um personagem de uma emissio de palco, emblemética do fluxo, tornar-se um signo de agregacio atesta que a utilizagio da televisio pelo seu publico nfo coincide forco- samente com a categorizagio institucional das emissées: 0 que pareceria ser da competéncia do efémero é armazenado pela meméria dos individuos e acaba por tomar lugar ao lado das emissées arquivadas. A emissio Les enfants de la té#é contribuiu pata constituir 0 repertério das imagens cultas que retinem os telespectadores de uma época ~ Zitrone, perdendo suas lunetas em Intervilles; Giscard, dizendo adeus ao povo francés, apés sua derrota na cleicio ptesidencial de 1981 etc. No langamento dessa volta ao passado, muitos editotes trouxeram as fitas cassetes ou os DVDs das emissdes, que, ha 20 anos, pareciam fadadas ao esquecimento: justamente Cocorico boy, Nalle part ailleurs ow L'lle ance enfants. Esse movimento atesta que 0 olhar sobre 0 objeto televisio est4 mudando, pois o publico mani- festa o desejo de reter os tacos das emissdes da televisio, que sio também os tragos proprios do passado, ¢ esses vestigios nao esto unicamente localizados nos lugares oficiais em que se queria confini-los (ficcdes, documentitios ou magazines de reportagem). Esse modelo nostilgico da meméria nao é suficiente para essa abordagem histérica da televisio. A histéria nao se reduz A meméria individual, e o fato de nao ter nascido em tal época nao justifica, de forma alguma, a ignorincia sobre essa épocal Assim, se a hist6ria nao se construisse seniio pela escala da memoria humana, seu poder de investigagao seria bem limitado. Enquanto s6 existia 0 videoteipe para salvar os programas da curta duracio, todos estavam condenados a perpetuar esse modelo geracional de arquivamento, construindo miciatecas pessoais em casa. Desse ponto de vista, 0 verdadeito corte epistemoldgico, que separou a teotia da televisio da teoria do cinema, data de 1995, quando se abtiu 0 Depésito Legal do Audiovisual. A Inathéque de France (é 0 nome dessa instituicao situada no BNF, cf. capitulo 8) arquiva as emissdes ptoduzidas e difundidas na Franca e em seguida as coloca a Piancors Jost 7 disposigao dos pesquisadores. Além da missio inicial, de conservar os progtamas a partir de 1995, ela da acesso a dezenas de milhares de horas de programas anteriores a esse ano (desde os anos 50), de modo que as condigées da pesquisa mudaram radicalmente: enquanto, antes, a andlise das emiss6es softia as limitagées da propria midiateca (em que a andlise de emiss6es unititias era feita sobre 0 modelo do filme), hoje ¢ posstvel ter acesso nfio somente As colegdes, como construir um corpus com vistas a resolver esse ou aquele problema teérico. Ao modelo nostalgico pode ser contraposta uma meméria histérica para a qual o investigador, com a sua pesquisa, contribui para a construgao. Desde a abertura do deposito legal, numerosos estudos foram feitos sobre a televisio francesa, dando lugar seja a publicagao de obras, seja 4 redacio de teses, de acordo com métodos diversos, Entre essas, podem-se citar notadamente: de um ponto de vista metodolégico, Jerome Bourdon e Francois Jost (eds), Penser la télévision, De Boeck-INA, 1998; de um ponto de vista semioligico, Francois Jost, La télévision du quotidien, Enire réalité et fiction, De Boeck-INA, 2001, Virgine Spies, La télévision dans ke miroir, UHarmattan, 2004; de um ponto de vista socialigico, Dominique Pasquier, La ature des sentiments, MSH, 1999, Jean- Pierre Esquenazi, Télévision ef démocratie, PUF, 1999, Sébastien Rouquette, I%mpopulaire télévision populaire, L’Harmattan, 2001, Vie et mort des débats télévisés, De Boeck-INA, 2002; de um ponto de vista késtorico, Isabelle Veytat-Masson, Quand la télévision explore le temps, Fayard, 2000. 2.O QUEEA TELEVISAOP 39 O sucesso da expressiio novas tecnologias faz pensar, as vezes, que as novas midias decorrem quase mecanicamente das inovagdes técnicas. Se, no entanto, for considetada a situacio atual, nada é tao incerto: de fato, a internet mudou os modos de informagio e de comunicacio, mas sua existéncia como midia nao esta ainda bem assegurada, ao menos se cla for entendida como uma instituigao que gera conteidos com vistas a sensibilizar um publico, e nio como uma simples mediagio autorizada pelo meio eletrénico. Para apreender esse desvio entre a técnica ¢ a midia, € suficiente pensar nas aventuras da nebcane. de inicio, a numeragao das imagens de uma ciimera ligada a um computador provocou novos usos, como virat a objetiva para o seu quarto de dormir ¢ dar condigées aos internautas do mundo inteiro de se voltarem para sua intimidade, possibilidade essa que uma jovem americana, Jenni, explorou com a ctiacio da jennicam (1996). No entanto, se esse dispositivo ganhou seus espectadores, escondidos na sombra ¢ disseminados no espago, nfio teve verdadeiramente um ptiblico, uma comunidade reunida por interesses ou perversdes comuns. Isso s6 existiu como tal a 40 COMPREENDER A TELEVISAO partir do momento em que os canais de televisio apropriaram-se desse dispositivo para construir um conceito, conhecido com o nome de Big brother. 1s se 0 programa obteve o sucesso que se conhece, é, sem diwwida, menos pelo que possui de novidade e mais pelo fato de que ele deve ter cotrespondido a aspiragdes bem-ancoradas no ser humano: o desejo de estar em varios lugates a0 mesmo tempo (ubiquidade) ¢ de penetrar na cabeca dos outros (omnisciéndia), faculdade que se atribui a Deus. Esse exemplo atesta que uma invengio técnica somente se torna midia a partir do momento em que ela é apropriada pelos usos mais ou menos especificos do meio. Eles proprios sao suscetiveis de serem recuperados por uma instituicao que os transforma em produtos culturais (esse esquema nio esta distante daquele forjado por Gaudreault-Marion (2000, p. 24) para o cinema, que considera que @ histéria do cinema dos primeiros tempos nos faria entio passat, sucessivamente, da aparigéo de am procedimento tecnoligico, aguele das ‘méquinas a vista’, & emergéncia das ‘vistas animadas’, lugar de procedimentos diversificados, faxendo surgir 0 dispositivo, ¢, depois, ao advento de uma midia instituida, V. necessatio ainda acrescentar a essa genealogia que as inveng6es técnicas nao sio fruto do acaso; elas s6 se produzem quando respondem a esperas que esto no at do tempo, embora se possa afirmar que a capacidade tecnoligica necessita da imaginagiio cultural para se tornar prética cultural (Urtichio, 2003, p. 20). Para compreender como a televisio se torna uma midia por inteiro, com uma légica propria e instituigdes que sto as emissoras, é necessatio entio primeiramente interrogar sobre o que tepresentou, no inicio do século XX que viu nascet a invencao da tele-visio, 0 televisual como construgio imaginatia e tecnoldgica Gbid.), e quais usos foram imaginados para essa nova linguagem. 2.1 ANTES DA TELEVISAO: OS SONHOS DA TELE-VISAO ¢ Um sonho pré-midiatico O desejo de ver a distancia, cuja materializacio mais recente 6a webcam, é um velho sonho da humanidade. Ja no segundo século FRrancols Josr 41 de nossa era, Lucien de Samosate (125 d.C. — 192 d.C.) descreve, em sua Histoire néritable, habitantes da hia que dispdem de um sistema de obsetvacSo sonora € visual a distancia. O explorador-narrador do romance conta que essa maravilha vive no palacio do rei: wm espelho muito grande disposto acima de um poco, que nao & extremamente profundo. Se aleném desce ao pogo, ele entende tudo que € dito em nossa casa, sobre a terra e, se alguém olla esse expelbo, v6 todas as cidades, todas as nagdes, exatamente como se estivesse no meio delas’. Nesse telato de ficgao cientifica, como em todos aqueles que retomam 0 tema até 0 inicio do século XX, os espelhos cessam de tefletir ¢, pode-se dizer, permitem ir além do visivel: ao invés de pensar sobre 0 que é apresentado na io. acesso a um mundo realidade em torno daquele que o contempla, espacialmente ausente, mas acessivel de forma mégica pela visio. © espelho magico é esse opetador que dé ao seu utilizador a faculdade da visio a distancia, que ¢ 0 sentido primeito de fele-visao (€ que se encontra na denominagio alema Fernsehen). © Uma midia sonhada Em 1890, ow seja, cinco anos antes do aparecimento do cinematégrafo Lumiéte, surgiu um romance, intitulado Lz vingtidme sitcle, la vie électrique. Nessa narrativa que supostamente se desentola apés 1950, 0 autor, Albert Robida, imagina o telefonoscopio, que ria de consiste em uma simples placa de cristal, inerustada numa divis apartamento on colocada como um espelbo acima de uma chansiné qualquer (Delavaud, 2003, p. 15). Uma vez mais, o espelho é uma janela para o mundo, mas, nesse caso, no se contenta apenas em prolongar os sentidos, pois d acesso ao uso das novas tecnologias da época. Como 0 nome indica, 0 éelefonascépio éum telefone dotado de imagens , que permitem tanto ver o interlocutor, ou perfeitamente nitida mesmo supervisioné-lo, se esse esqueceu a chave de seguranga, como # Esse texto, como muitos outros, encontra-se no excelente site Histoire de da télévision, proposto por André Lange (http:histv2.firee.fi). 42, COMPREENDER A TELEVISAD assistit a cortidas a distancia, ser testemunha ocular, em Patis, de um acontecimento ptoduzido em mil lugares da Europa, ou de espetaculos apresentados no teatro. Robida imagina tanto telefonoscépios colossais, colocados acima da sede de um jornal, para retransmitir imagens enviadas do mundo inteito, como modelos de bolso. No final do século XIX, a alianga de imagem e telefone, com a qual todos hoje esto acostumados, niio é mais um sonho: sio experimentados os teatrofones, que colocam um domicilio particular em conexZio com um espeticulo vivo. Proust foi um de seus calorosos utilizadores para acompanhar éperas de casa. Se se busca prolongar essa tecnologia, é porque ela tesponde, muito melhor do que o cinema, a espera da simultaneidade, aspiragio completamente enraizada no ser humano, Da mesma maneira que 0 telégrafo, que escreve a distiincia, 0 telefone leva a voz ao longe e, inversamente, torna-a audivel; assim, se essas invengGes nao suprem de verdade a auséncia, impedem-na, aumentando artificialmente as capacidades dos érgdos dos sentidos (Elsner et al., [1990], 2003, p. 26). Nessa perspectiva, a televisio aparece como o complemento natural do telefone pela sua capacidade de fazer ver e escutar ao vivo: durante décadas, ela vai pertencer tanto ao imaginario popular como aquele dos inventores que vao registrar suas patentes. Mas 0 cinema, de mais facil consecugio, frente as condicdes técnicas da época, nasce quase trinta anos antes da televisao. * Da invengio a midia ‘Tradicionalmente, atribui-se a invencio da televisio a John Baird, que, em 1925, fez a primeira demonstracio de uma imagem televisual, em Londres, na Inglaterra. Essa data, porém, interessa pouco em relacio ao processo que vai da realizacio do procedimento A sua institucionalizagdo mididtica. Contrariamente ao que pos sa levar a crer qualquer tipo de rettospecgio, uma nova midia nao encontra de pronto seu lugar entre as outras j4 instauradas. O acesso ao estatuto de midia, em geral, passa por lutas ou aliangas. Se o telefone esté na origem do FRANgots Jost B imaginatio da invengao, a constituigao da midia passa por diversas aptoximagées com outros tipos de espetaculos ou midias ja existentes‘, como atestam as diversas denominagées: sala de cinema a distancia (sem fio), cinema doméstico (sem fio), receptor som- imagem, fala televisada, atualidades televisadas € sala de cinema e de televisio Elsner [1990], 2003, p. 31). Cada um desses nomes encontra sua origem nas condigées de difusio ou no contetido dos programas dessa televisio nascente. Tecnicamente, a televisio aparece primeiro como um complemento do radio, comfrequéncia chamada, nos anos 30, de TSE, isto é, telefone sem fio, Como comprovagio, citam-se os primeiros programas exibidos na Franca em 1936, apds a feira da TSE ¢ que podiam ser captados pelo radio, sem as imagens. As primeiras emissGes da década foram heranga direta dessa midia: pede-se a Marcel Laporte, cujo apelido é significativamente Radiolo, © cuidado de realizar programas com palhacos, cancioneiros, cantores e atores da comédia francesa. Nessas condi¢Ges, nao causa surpresa que a nova midia tenha o andamento de uma fala tele-visada. Mas seu lugar de projegio aproxima-a de outro espetaculo: o cinema. Os aparelhos receptores individuais so, no inicio, pouco numerosos, e sua tela é muito pequena, o que faz com que a recep¢ao das emissbes torne-se ptiblica: faz-se fila para passar diante da mintiscula tela de um aparelho colocado em uma sala. Depois, a televisio transforma-se em um espeticulo que retine o piiblico em um mesmo lugar. Durante a Exposicio Universal de Paris, em 1937, um aparelho de 1m? foi instalado no pavilho da radio e da televisio e pode-se assistit ao primeito micropasscio ao vivo: uma cimera colocada a algumas centenas de metros, perto da ponte Alexandre III, enviava imagens de transeuntes interrogados, a quem se perguntavam impressées sobre a exposic¢ao (Blanckeman, 1961). O novo © 6 também o caso do cinema que nfio ganha seu estatuto de arte, de 1910 a 1920, por comparacio com as artes legitimas (teatto, pintuta ou musica). A4 COMPREENDER A TELEVISAO dispositivo assemelhaya-se bastante a uma sala de cinema a distancia (sem fio). Esse parentesco foi ainda mais forte na Alemanha, onde a televisio foi recebida nas salas de cinema que continham até 800 espectadores (Berlim). Em suma, a televisio é, em sua origem, o que se poderia chamar de intermedia: longe de se afirmar como uma midia independente, com propriedades tinicas ¢ insubstituiveis, ela faz a sintese de técnicas e de espetaculos ja existentes. Uma midia sé se constitui verdadeiramente como tal a partit do momento em que passa do estado de novidade técnica ao de elaboragio de program: Desse ponto de vista, é a partir dos anos 30 que comeca esse processo para a televisdio, em velocidades distintas segundo os diferentes paises. As primeiras difusées experimentais ocorrem em 1929, na Alemanha e na Inglaterra; em 1932, na Franca; em 1950, no Brasil. Em 1935, a primeira estagao de televisio é inaugurada em Berlim, e as emi: sGes sio difundidas regularmente até a guerra. A primeira emissao oficial da tclevisdo francesa tem lugar em 26 de abril de 1935, ao vivo, diretamente dos estidios de Grenelle do Ministério dos PIT (Correio, Telégrafo e Telefone). Em 1936, ja existem emiss es exibidas diariamente, em Paris, entre 16 horas e 1Ghoras ¢ 30min; mas é somente em 1937 que passam a ser exibidos programas regulares, @ noite: variedades, extratos de pecas, documentitios e, mesmo, uma primeira emissio literitia semanal, Vient de paratire, comandada por Molly Boulanger: uma obra é ai trazida, com citagdes € apresentagio do autor. Até a Segunda Guerra Mundial, a televisio permanece como uma curiosidade, mesmo que a maior parte dos grandes paises coloque no ar algumas horas de ptogramagio diaria, Na Franca, é paradoxalmente da guerra que vai resultar a institucionalizacao da midia. Os alemaes adquirem um music-hall, o Magic City, na cua Cognacq:Jay, de onde eles passarn a transmitir, das 10 horas da manha 4 meia-noite, programas destinados aos soldados que estavam hospitalizados. Essas emissGes eram primeitamente procedentes da cena, que serve de esttidio: sio difusdes de miisicas tocadas pelas otquestras, ntimeros de citco ou ERA cols Jost 45 de music-hall, entrecruzadas com a exibicio de alguns filmes. Com a Liberaco, por iniciativa de Jean Guignebert, primeiro diretor da Radio Difusao Francesa, a televisao francesa retoma essa base cénica, quando entao alguns animadores, como Gilles Margaritis, trazem para ela espetdculos de circo que eles tinham feito, alguns anos antes, para a televisao alema. 2.2, HA UMA LINGUAGEM TELEVISUAL? Embora a televisio nascente balance entre diversas midias, os estudiosos vio muito cedo se interrogar sobre a especificidade da linguagem da televisio em relacdo a linguagem cinematografica. © Direto, autenticidade, cotidianidade ‘Todo o mundo concorda, desde o inicio, com a ideia de que a verdadeira novidade da televisao, mais do que na sintaxe de sua linguagem, reside no fato de que ela difunde imagens e sons ao vivo. Refletir sobre a televisdo é entao, antes de tudo, levar em conta seu contexto e o lugar particular ocupado pelo telespectador; é adotar © que hoje se chama uma abordagem pragmatica (em oposigio a abordagem semiolégica voltada unicamente 4 andlise das mensagens). Alguns veem na transmissio direta a possibilidade de uma transparéncia absoluta, da negagio da mentita: nada de trugues, de cortes, de montagens, de corregées, nada de vida posta em conserva e servida fria e requentadal Enfim, a verdade toda nua e quente (Thévenot, 1946). Os menos otimistas ou mais hicidos, nao obstante, temem que 0 a0 vivo anule a reflexao em proveito da emogio e crie um corte fundo entre aqueles que aprenderam a olhar as imagens e os outros: agueles que sabem observar ¢ chegar a conclusies tirario beneficios do que olbam. Os outros se deixaréio levar totalmente pelas imagens que veriio na tela ¢ ficarto confundidos pela diversidade daguilo que eles poderio ver (Arnheim [1935], 1983, p. 202), Se esse risco é grande com a imagem televisiva, é porque, contrariamente 4 imagem cinematogrifica, que prolongs a vista, ela 46 COMPREENDER A TELEVISAO pde o mundo na mio do telespectador e, como tal, depende sobretudo do toque. Hissa propriedade tatil da televisio é sublinhada por McLuhan, que vé nisso um argumento de peso para dela se desconfiar, bem como de seus efeitos nefastos sobre as criangas. Enquanto a escrita fonética recorre ao visual ¢ requer uma leitura analitica, a televistio exige uma participagiio ¢ um engajamento de todo 0 ser, tudo no sentido do toque, Pata 0 socidlogo, essa impossibilidade de isolamento, que engendra a miopia, em nada depende da programagéio e aconteceria 0 mesmo se 0 conteiido dos programas fosse sempre do mais elevado valor cultural (1977 [1968], p. 379-380). Independentemente dos eventuais perigos, essa tactilidade do ao vivo tem duas incidéncias fortes, uma sobre os programas e outta sobre a relacdo com o telespectador. Enquanto 0 cinema volta-se prioritariamente pata a ficca essa capacidade da televisio de por qualquer telespectador em contato com os mais variados pontos do globo é uma fonte continua de admiragio e, até mesmo, de narcisismo. Se, como disse Godard, 0 documentirio é 0 tescto que fala dos outros; a flaca é aguele que fala de mim, isso fa crer que a televisao, desde sua origem, parece falar de mim quando fala dos outros, ou ao menos quando fala dos meus semelhantes, Como afitma Gilbert Sedes ({1950] 2003, p. 57), em um texto de 1950, as pessoas se interessam mais talvex pelas pessoas do que pelas tramas . Esse enternecimento pela propria condi¢io humana e pela banalidade do cotidiano faz supor, desde 1936, que os Jelespectadores preferem assistir a uma imagem real e ao vivo do Circo Oxford nas horas de pico a ver a mais recente das comédias musicais de un custo de 100.000 kibras. A conjugacio entre esse valor de verdade atribuido 4 transmissao direta ¢ 0 interesse pela banalidade cotidiana s6 passa a se exprimir plenamente algumas décadas mais tarde, com o surgimento de Big brother, sob 0 nome de Loft story, na Franca. e Intimidade Um outro traco da linguagem televisual sobre o qual todos concordam € a relagao particular de intimidade que instala com 0 espectador. Para muitos, como Gerald Cock (2002 [1936] DA, Francois Josr 47 p. 47), 0 cinema tem alguma coisa de impessoal , destina-se a um piiblico numeroso, contrariamente @ televisiio, que, como 0 radio, enderega-se a uma sé pessoa. A partir de 1954, Wladimir Porché, diretor da Radio ‘Televisio Francesa, passou a tecomendar a todos que se dirigiam a0 ptiblico que fixassem a edmera visto que eles se dirigem nao somente a uma sala, mas a espectadores isolados'. Essa nova notma opde-se totalmente aquela do cinema de ficgio, que, exceto em géneros particulares (como a comédia musical), probe os atores de olharem para a objetiva. Por que existe essa diferenca fundamental entre as duas midias? Porque o filme, responsavel pela apresentagio da intriga, deve dar a impressio de que se desenrola unicamente pata que o espectador com ele se identifique, ao passo que o endereca- mento do animador pata o telespectador visa primcitamente estabelecer uma ligaco proxima da conversagio, 0 que supde uma troca franca, olhos nos olhos. e Uma sintaxe televisual? Alguns tealizadores ou tedricos consideram que essa intimidade é quase induzida por um determinismo técnico: a televisio estaria condenada ao grande plano, que representa o individuo na escala de seu telespectador, simplesmente porque a telinha torna ilegivel o plano geral e 0 plano conjunto. George Freedland (2002 [1949], p. 61) estabelece uma compatacio entre as linguagens cinematogrifica ¢ televisual a partir desses dados. De inicio, diz ele, fio a convém distinguir televisio e telefilme: a primeira é aquela vis distncia, j4 evocada, que se presta particularmente bem a retrans- missio ao vivo de acontecimentos da atualidade; a segunda caracteriza os documentos cujas cenas foram registradas em um suporte cinematografico e ordenadas em uma ordem preconcebida. Para Preedland, a televisio utiliza a sintaxe da montagem cinematografica, notadamente a montagem paralela, que entrelaca ‘Mon programme, n° 78, 1954, 48 COMPREENDER A TELEVISAO varias séries narrativas para exprimir a simultaneidade. Com efeito, na reportagem ao vivo, o realizador tem a possibilidade de passar de uma cimera 4 outra, de aproximar os espacos divididos e de reforgar a convic¢io do telespectador de que ele esti em toda a parte ao mesmo tempo, Essa figura de retética (mais que de sintaxe), herdada de Griffith, é ainda muito frequentemente utilizada: ela permite dramatizar tanto o entetro de um chefe de Estado (gf 0 funeral de Mitterrand, que alterna as cetiménias da Notre Dame de Paris ¢ de Jarnac), como 0 Tour de France (cortida que mostra os corredotes do primeiro escalfio e aqueles que os perseguem). Paradoxalmente, é 0 telefilme que mais difere do cinema e que traz novidades quanto a sua sintaxe, por razOes que se ligam menos a0 objeto ou as condigdes de filmagem ¢ mais aquelas de recep¢! ». Diferente do espectador de cinema, que esté grudado em sua poltrona, o telespectador, em casa, tem livre movimentacio, do que decorre uma menor concentragiio. O realizador, para Freedland, a0 deve jamais perder de vista esse dado e deve levar em conta tanto a filmagem quanto a montagem: além da eliminacio dos planos de conjunto ja refetidos, deve evitar as agdes de conjunto, simplificar a montagem, actescentando os planos explicativos, e abrandé-los. Como se constata, essas transformagoes retéricas da linguagem televisual nio mudam em profundidade a propria linguagem cinematografica. Seja como for, o debate sobre a especificidade da televisio em relacio ao cinema ptossegue até os anos 70, posicionando-se em favor do cinema, pelo fato de os criticos considerarem que a criaco est sempre ligada 4 linguagem cinematografica: o Office de Radio-Télévision Franeaise (ORTF) estava superequipada em video (iéenita de registro eletrinico). Os novos canais devem hoje rentabilizar esse equipamento em detrimento do filme, técnica que permite (na montagem em particilar) mais flexibilidade ¢ lisura. Todos os documentos de criagiio que vocks veem este ano sao filmes (Jacques Bertrand, Télédrama, outubro de 1975). A evolugio da televisiio nem sempre confitmou as profecias de Freedland: com a melhoria da qualidade das telas, 0 plano conjunto retomou seu lugar nas montagens ao vivo, a ponto de os Francors Jost 49 jogos de ténis serem hoje quase exclusivamente retransmitidos desse modo. Cada vez mais se encurtou a dutacao dos planos, ¢ a transmissao direta deixou de submeter-se exclusivamente a sintaxe cinematografica: os realizadotes de debates ou de jornais televisivos nem sempte respeitam as sacrossantas ligagdes, considerando sem diivida que a compreensio do sentido € suficiente para assegurar a continuidade espacial. 2.3 ARTE DE PROGRAMAR A teoria da televisio tem isto de particular: ela se ancora em uma reflexio sobre a atividade do telespectador. Se essa atividade tem incidéncias em termos de linguagem, ela provoca, sobretudo, consequéncias em termos de contetido de programas, Como captar aatengio nesse livre ir ¢ vir no interior da propria casa? Com efeito, supde-se equivocadamente, no inicio de toda programaciio televisual, que o telespectador pate suas atividades, para se plantar na frente de uma tela, e olhe em siléncio um episédio que o aborrece. Como ela exige, apesar de tudo, mais atengio que o radio — escuta-se o radio dirigindo, mas a televisio nao —, conclui-se, em oposi¢io a opiniio de Freedland, Gilbert Sedes ¢ Jean Thévenot, respec- tivamente os primeiros diretores dos programas da CBS, nos Estados Unidos, e da televisio francesa, que a nova midia deve privilegiar a brevidade e adaptar suas emissdes ao ritmo de vida dos telespectadores (Seldes, 1937; Thévenot, 1946). Os petiodos da semana ou do dia que permitem maior concentragio sto adequados 4 difusfio de filmes (meio da tarde, fim de noite, domingo); nas horas de atengio dispersa, sio privilegiadas evvissdes radiofinicas ornadas de imagens tao pouco necessérias como aquelas de um Balzac ilustrada (Thévenot), ou seja, as emissdes fazem mais apelo ao ouvido do que aos olhos. De fato, os ptimeiros programas de televisio advém diretamente dos programas de radio. Que se considere isto: 0 Correio Parisiense, radio de sucesso no periodo de entreguerras, difundia informagoes, emissdes de variedades em auditétio, jogos, teatro 50 COMPREENDER A ‘TELEVISAO radiofénico, concertos de misica classica, mas também de jazz, gravados pelas melhores orquestras da época no grande auditério dos Champs-Elysées (fonte: 100ansdetadio.free.fr). Em sua equipe, encontravam-se muitos jornalistas ¢ animadores que desem- penharam um papel importante nos primeitos anos da televisio francesa — Jean Nohain, Claude Darget ou Jean Guignebert. A preocupagao com essa adequagao entre o programa ¢ 0 tipo de atengao que permite a atividade do telespectador é muito maior nos canais de televisio comerciais, o que nao é 0 caso da Franca, mas é 0 dos Estados Unidos, entre outros. Freedland (1949 [2002], p. 60) imagina, a partir de 1949, que a presenca da publicidade vai pesar na estrutura dos programas: ela deveria, segundo ele, reabilitar a forma antiga do serial com um numero indefinido de episddios: No fim de cada transmissaio, esses telefilmes terminariam pelo antincio do que segue, a fim de que o expectador, ansioso por conhecer a sequéncia, soja obrigado a ver e escutar a publicidade que enquadra 0 programa. Até 1964, a Franca sé tinha uma emissora de televisio que transmitia essencialmente na parte da noite. Assim, a ideia dessa articulagao da programagao com a vida cotidiana dos telespectadores nfo ganhou forca. A escolha dos programas segue somente em parte o ritmo da vida social: terga, dia de folga dos teatros, dramatica; quinta, dia de descanso das criancas, programas pata a juventude. As mudangas s6 ocorrem verdadeiramente em 1964 com a chegada da segunda emissora: a progtamacao entao se torna a arte de elaborar uma grade, termo que s6 aparece na televisao francesa nesse ano. Nos anos 70, com a chegada de uma terceira emissora, a concorréncia se instala e a programagiio nio é mais uma estruturagao do tempo motivada pelo calendario social; ela se organiza em uma distri- buigio as vezes arbitratia de emissées em fungio do horario, distribuicdo essa cujo objetivo central é atrair mais telespectadores que os outros canais. O capitulo 4 retoma em detalhes os instru- mentos da programagao. Cabe aqui frisar que, na televisio de hoje, é ela que permite aos canais se diferenciarem uns dos outros ¢ forjarem uma identidade. Prancos Jost 51 2.4 IDENTIDADE DAS EMISSORAS e Emissora como marca Até os anos 70, quando a televisio fala dela mesma, é essencialmente para dar a conhecer ao telespectador os bastidores da instituicao televisual, o fancionamento da empresa no que concerne aos diferentes oficios com que opera, passando pelas reportagens consagradas as estrelas da telinha (Spies, 2004, p. 246). A chegada da segunda emissora nao muda muito esse estado de coisas, dado que, ao término de seus dois primeiros anos, 70% das pessoas suscetiveis de tecebé-la confessam nunca té-la olhado. Somente com a chegada da terceira emissora, inaugurada em 31 de dezembro de 1972, a ideia de emissora verdadeiramente se impés. Seu langamento foi precedido por uma campanha de comunicagio ¢ por um documentirio em dois momentos, difundido pela segunda emissora: a primeira parte intitulava-se, de maneira fortemente significativa, A imagem de, marca da tetceira emissora (17 de dezembro de 1972, as 16h30) [Chambat- Houillon, 2005]. Fa instituigao televisio cedendo lugar as emissoras que passam a se constituit em marcas. Para compreender a transformagio profunda que essa mutagao implica, é necess4tio recordar os caracteres constitutivos da marca: o nome, condigaio necessdria pata que cla se identifique com uma pessoa ou personagem; uma identidade, que se constrdi ao mesmo tempo por tracos visuais € sonoros; sua carta grafica; e, enfim, um campo de dominio, que confere determinados atributos ao discurso da marca (por exemplo, a eficacia, a juventude etc) A primeira atitude das trés emissoras publicas, depois do rompimento da Office de Ridio Televisio Francesa (ORT), em 1974, foi aadocio de um nome, que nao fosse um simples mimero. Assim apareceram ‘Televisio Francesa 1 (TF1), Antena 2 (A2) e Franca Regides 3 (FR3), com suas logomarcas, Com a privatizaciio da TF1, em 1986, e a habito estampar chegada de numerosos canais via cabo, tornou- as imagens exibidas por esse sage. A motivagio explicita dessa marcacio é, certamente, o reconhecimento imediato da emissora 52 COMPREENDER A TELI pelo telespectador; mas, em realidade, significa bem mais (tanto que, gtacas ao controle remoto, o telespectador sabe em getal onde se encontra): como 0 selo real de antigamente, ele autentica um ato que, nesse caso, é a difusiio. Fm um perfodo em que os canais produzem cada vez menos as emissdes que exibem, o /ago da emissora, insctito na imagem, garante a aprovacao do programa. Em outros termos, ele testemunha que o programa exibido pertence ao campo de dominio da marca, ou seja, contém os valores de que ela é portadora. Para a emissora, toda a questo se resume, evidentemente, em bem definir qual é esse campo ¢ em evidencia-lo ao telespectador. Para fazer isso, o logo deve fazer ouvir duas vozes (Jost, 1998). e Emissora como responsével pela programacaio Escolher contetidos (emissdes) e coloca-los em faixas horarias, agao entendida como arte de programar, nio é um procedimento neutro. A selegio, como a sucessiio e a aproximagio dos programas sio criadores de sentido ¢ contribuem para forjar a identidade da emissora. O fato de o apresentador das 13 horas da TF! orientat seu telejornal em diregdo ao consumo e aos problemas encontrados pelos habitantes do sul da Franca e de, além disso, animar Combien ga cofie?, cuja missio explicita é lutar contra os desperdicios do Estado, tem uma dupla incidéncia sobre a semantizacio dos programas: de um lado, a presenca de um jornalista como apresentador de magazine reforca sua credibilidade; de outro, esse magazine aparece como uma tesposta da emissota ds injusticas a que 0 telejornal cotidianamente faz eco. A presenca na'I'F1 de um magazine como Sams ancun doute, no qual o animador telefona diretamente 4s empresas ou aos individuos que se comportam mal com os mais fracos, reforga a ideia de que a emissora nao é somente um intermediario que fala do mundo, mas também um ator que intervém para defender as pessoas. Outro exemplo, o encadeamento de um episédio de L’instit e de um debate de Ca se discute, a partir do tema desenvolyido pela ficgao (a infancia maltratada ou o incesto), confere uma ptofundidade especial ao telefilme, que poderia passat, FRaNco1s Jost sem essa aproximacao, por um simples divertimento. Para evitar que as intengdes da programagio escapem ao piiblico, ou sejam mal compreendidas, as emissoras recorrem A autopromocio, aos trailers € 4 publicidade, esclarecendo a coeréncia de seus encadeamentos, e Emissora como pessoa Fazendo as escolhas de programas ¢ de programagio, a emissora afirma-se nao s6 como responsavel editorial, mas contribui para construir uma imagem de si prdpria como pessoa e como parceira do telespectador. Noticiar um acontecimento sem estar certa de que ele vai-se produzit, como fez a France 2, em 3 de fevereiro de 2004, as 20 horas, anunciando a retitada do primeito ministro Juppé da vida politica; ou recusar-se abertamente de programar as emissGes de telerrealidade s4o atos que participam da construgio da identidade, ou da imagem da emissora: o primeiro a descredibiliza, o segundo é uma garantia de qualidade junto a um determinado public. Tanto para as escolhas editoriais, como pata a de suas emiss6es, a emissora, como o oradot, constroi uma imagem de seus valores, de seu ethos (Soulez, 2002). Se, aqui como alhutes, dizer é fazer, na medida em que constrdi uma personalidade aos olhos do telespectador, a emissora dispde de numerosos meios de comunica¢io para construir sua identidade. Em primeiro lugar, vem a publicidade que explicita o posicionamento: assim, em 1997, a ‘TF1 fez uma campanha radiofonica, na qual os spo/t desenvolviam aideia de que assistir 4 emissora equivalia a receber seu irmio e sua cunhada ou a jogar cartas entre amigos. Em segundo, aparece a vestimenta: em 1992, no momento em que a France-Télévision foi constituida, a France 2 e a France 3 cobriram todas as telas publicitarias de imagens, seja cortadas duas a duas no sentido da altura, seja em trés, na horizontal. Ao mesmo tempo em que reenviava ao nome das marcas, essa carta grafica significava respectivamente a divisdo, a interatividade, 0 calor, a conivéncia com o telespectador e, para a France 3, wma relagho mais voltada para a descoberta, ion, 1992, p. 3). ¢ experiéncia humana e a proximidade (Prance-TElév 54 COMPREENDER A TELEVISA Nada garante que essas intengdes de comunicagao acontegam sempre da mesma forma. Sio, enfim, os dossiés de imprensa ¢ as intervengdes nas midias. Cada vez mais, hoje em dia, os responsaveis pelas emissoras de televiséo intervém nas outras midias e fazem promessas sobre o sentido que deve ser conferido aos programas (cf. capitulo 3). Assim, a maior parte das emissdes de telerrealidade é apresentada como programas de vertente pedagégica: mostrar os jovens franceses como eles sio (Laff story), explicar as virtudes e as atmadilhas dos regimes de emagrecimento (J'ai dévidé de maigri?), ow mostrar a vida em uma fazenda do século XIX (La ferme), Nao se tem garantia, entretanto, de que essas proposi¢ées de sentido sejam recebidas da mesma maneira por todos os telespectadores. Para resumit, podem-se representar as diversas instancias da enunciagao televisual da seguinte maneita: Identidade da emissora (a televisio) peer nt a emissora como a emissora como responsavel pela pessoa constituida programagao pelo(a) ethos autopromogio comunicagio 2.5 O QUE SERA DA TELEVISAO AMANHA? Em alguns anos, a televisio mudou profundamente, e a nds encontramos finalmente em uma situagdo pouco distante daquela que foi descrita no inicio deste capitulo, do ponto de vista, em todo caso, da proliferacao dos sonhos que ela provoca. Como Robida, ha mais de cem anos, podem-se imaginar muros de imagens, se esses no sio espelhos, ¢ um contato do telespectador com o resto do PRancors Jos mundo, esteja ele onde estiver, A televisio do futuro tornou-se um objeto sobre o qual se legisla (lei no 2007-309, de 05.03.2007, relativa 4 modernizacio da difusio audiovisual e da televisio do futuro), ou do qual se anuncia o fim (Missika, 2006). O que se pode dizer sem correr 0 risco de se enganar e sem cair nas redes da futurologia? © Multiplicagao dos canais, fragmentagao do publico O lancamento da ‘Televisto Digital ‘Terrestre (TNT), na Franga, em 31.03.2005, provavelmente mudou a paisagem audiovisual. Os telespectadores tiveram, de pronto, a possibilidade de receber gratuitamente 14 canais; depois, um pouco mais tarde, cerca de 20, Em trés anos, as grandes cadeias hertzianas histéricas puderam ver sua audiéncia cair em relagio as novas emissoras da TNT, que representavam, no final de 2008, quase 25% da audiéncia (sobre essa nogio, ver capitulo 4). A TF1 perdeu trés pontos de audiéncia em um ano, ¢, proximo de 10, em dez anos, para chegar ao patamar de cerca de 27% da audiéncia. i necessatio ainda observar que, sempre na mesma data, somente 50% dos franceses, tém acesso 4 TNT, mas que, em 30.11.2011, toda a televisio tradicional, ou seja, a televisio analégica vai emigrar para a digital. Essa baixa mecanica de audiéncia das grandes emissoras, em diregao aos novos canais gratuitos é, por si s6, uma prova de que o publico da televisio se fragmenta, embora nao se deva concluir com isso que ele possa ser reunido. Duas observagdes convidam a um pouco mais de prudéncia. A primeira diz respeito ao fato de que os grandes acontecimentos sto ainda capazes de mobilizar enormes quantidades de telespectadores, como 0 ptova o fato de que a mais alta audiéncia de 2008 foi registrada pela M6, na transmissiio do jogo da copa europeia na Franca, em 17 de junho (13,2 milhdes). ‘A segunda é que os canais da TNT com mais audiéncia sio os generalistas (como a TMC): contrariamente aquilo que muitos pensavam no momento do lancamento dos canais a cabo, a fragmen- taco, em outra medida, do priblico pelas emissoras teméticas nfo se constitui em uma via frutifera. As emissoras mais especializadas 56 COMPREENDER A TELEVISAO estao em dificuldades econdmicas (por exemplo, Pink TV, destinada aos homossexuais). Isso explica por que as emissoras que segmentaram o publico procuram hoje alargar seus horizontes: GULL, inicial- mente dedicada as criancas, busca hoje um ptiblico familiar; W9, uma emissora até entao musical, tenta tornar-se generalista. ¢ Multiplicagao das telas e mobilidade Vive-se a era da convergéncia. O telefone, a televisio ¢ 0 computador no sio mais objctos delimitados por fronteiras intransponiveis, com usos clatamente distintos. Nesse contexto, torna-se algumas vezes dificil saber a qual desses meios de comunica¢ao deve-se reservar 0 nome de televisio: certamente a tela que reina ainda na sala de estar parece merecer mais que os outros esse titulo; mas, do ponto de vista da funcio, que é a de permitir ver a distancia, ela nao é a unica a de! empenhar essa tarefa, O emprego da televisio, multiplicado no interior de um mesmo centro, da mesma forma que os computadotes e os telefones moveis, faz com que nfo seja raro uma familia dispor de cinco ou seis telas mjinimas pata recebet as imagens difundidas. F af que reside uma outta causa de fragmentacio possivel do publico. Pode-se ver nisso tanto o fim da televisio, como uma extensio de seu poder: se, até agota, a televisio mobilizava o telespectador (menos que o cinema, € verdade), ela 0 acompanhara amanhi por todos s lugares em que ele for. Nesse sentido, est assim reforgada sua presenca no cotidiano, Paralelamente se assistiré a um duplo movimento tecnolégico (que ja esta em ago): de um lado, a miniaturizacao das telas mdveis; de outro, o aumento das telas fixas em casa, até o telio das imagens. Essa nova situacio trara consequéncias: a) sobre os programas — sem ser um defensor do determinismo tecnolégico, pode-se pensar que a natureza dos espetculos difundidos no telio ¢ na tela portitil nto é a mesma: 0 que é espetacular para 0 primeiro (um jogo, uma ceriménia ou um. filme), € reduzido para o outro, e, inversamente, imagens amadoras que passam bem na tela portatil nao so tao agradaveis de ver na Francots Jost Bi tcla grande. Ai reside a questo de saber que contetidos convém as duas ao mesmo tempo. b) sobre a programac&o — ainda que as grandes emissoras de televisio hertziana busquem, durante o dia, um ptiblico mais homogéneo, bem conhecido dos programadores, pessoas que estio em casa, elas devem compor com um piblico muito mais hetero- géneo, cujas prdprias atividades serio diversificadas (transporte, lugar de estudo ow trabalho, lugares péblicos etc), 0 que deveria ocasionar incidéncias sobre a natureza dos programas difundidos (capitulo 4). e Autonomia do telespectador A duragio de assisténcia 4 televisio tende a diminuir (3h24min em média para os franceses em 2008, com trés minutos a menos do que em 2007), e a baixa é mais sensivel na faixa de 15-34 anos (2h38min por dia, com seis minutos a menos). Uma das tazdes por que os jovens veem menos televistio que os mais velhos é 0 fato de que eles passam mais tempo na frente do computador, o que nao quer dizer, entretanto, que eles se afastem da televisdo. Bem ao contritio, isso significa, acima de tudo, que, em vex de esperar que uma emissora programe a sequéncia das séries de que eles gostam, eles vio procutat na internet as sequéncias seguintes. Hssa liberdade em telagio as restrigdes ditadas pela programac’o dos canais é um sinal, entre outros, de uma determinada tendéncia dos telespecta- dores para a autonomia (sobre a qual se falar no capitulo 4). Essa tendéncia nao é completamente nova se se recorda a minirrevolugao no comportamento acatretada com a chegada do magnestoscope nos anos 80. Mais do que perder uma emissio ou dormir tarde, os telespectadores, nessa época, habituaram-se a se desligar dos horatios rigidos da grade e de vé-la segundo sua vontade. O que muda com © digital é que essa possibilidade, que dependia até entio do telespectador, passou a ser proposta pelos sites, pelos operadores telefdnicos ou pelas préprias emissoras, porque isso permite uma troca bidirecional com o usuario (contrariamente 4 televiséo 58 COMPREENDER A TELEVISAO analégica cuja comunicagio era vetorializada ¢ sem retorno possivel pelo mesmo canal). Assim apareceram Video on demand —VOD (as vezes ttaduzido por Video a demande — VAD) ¢ a televisiio de recuperacio ou catch-up télévision, que petmite rever, durante alguns dias, no site de uma emissora, o progtama que foi perdido. Os japoneses jé trabalham com modelos mais ambiciosos: uma vez que a capacidade dos discos duros dobra a cada nove meses, logo se poderd gravar todo um ano de televiséo ¢ escolher o que se quer ver em fungio de seus proprios parimetros — género de programa, atores, ou tipo de narrativa.. io apenas concretizou, como se viu, A invengio da televi as aspiracdes ancestrais do homem (estat onde ele nao estava, ver a distancia). Nao é certo que a televiséo do futuro se funde sobre novos sonhos. Ela permitira somente satisfazé-los um pouco mais. A multiplicagio das emissoras e das telas, a faculdade de cada um programar seus contetidos seriam fatores suficientes para determinar o desaparecimento dos grandes difusotes ¢ 0 fim da midia televisio? Quando se considera a evolugio do tidio ao longo dos ultimos decénios e esta, recente, da internet, pode-se duvidar por duas razdes: uma que vem dos atores econémicos € outra dos telespectadores. Na vertente econdmica, passado 0 Momento da segmentacio, assistiu-se a movimentos de concentra¢a0 que conferem autoridade aos contetidos € aos grandes grupos. Quanto ao telespectador, é possivel apostar que, apesar das veleidades de autonomia, ele nio perder o gosto de set surpreendido por um espetaculo que cle nao esperava, encontrado no simples gesto de acender a televisio. Franco Jost 3. PARA ALEM DA IMAGEM, O GENERO De alguns anos pata ca, 0 lancamento de novos programas vem getalmente acompanhado de ica que os uma campanha mid: rotula, que os nomeia. Em 1999, a denominacao docunovela apareceu para catactetizar os novos programas que apresentavam, sob a forma de folhetim, a vida de cidadios comuns. Depois foi a era da telerrealidade ou da real televisio para Big brother, Survivor e seus detivados. Enfim, neste momento, fala-se de docu- ficcdo, para qualificar os produtos audiovisuais, como L’edyssée de Tespice. De onde vem essa obsti- nacdo de produtores ou difusores de fazer corresponder uma categoria nominal as emissdes que se ve? Em primeiro lugar, vem do fato de que 0 sentido global das imagens nao se impde sozinho. A dissecacio do extraterrestre de Roswell, a retransmissao ao vivo do desabamento das Torres Gémeas de Nova Torque, o testemunho de cosmonautas contando que a expe- digo para a Lua foi construida, em todas as pecas, em um esttidio sao momentos muito surpreendentes da televisio, se capturados por um gito de zapping. Dessas sequéncias, surgem inevitavelmente quest6es do tipo: é a realidade uma ficgao? 60 COMPREENDER A ‘TELEVISAD uma falsidade? uma reconstrugio? uma mentira? etc. E necessario ter conhecimento para determinar uma posicio de aceitacio, recusa, colera ete. Para responder a essas interrogacdes que existem na cabega de todo telespectador, as emissoras, e também os jornais sobre sua programagio ou os sites de internet, propdem entao etiquetas que vio satisfazer essa incoercivel necessidade do espirito humano de tornar conhecido 0 desconhecido, etiquetas essas que permitem reagrupar um conjunto de emissdes dotadas de propriedades compariveis e que caracterizam 0 que se convencionou chamar de género. Esses génetos, como se viu no capitulo precedente, nao nascem ex nihilo — alguns vém de outras midias ou mesmo da sociedade pté-midiatica—e nao sao definidos de uma vez por todas’, Além disso, a atribuigdo a essa ou Aquela emissio é frequentemente arbitraria, como prova o exame detalhado das diversas maneitas de qualificar 0 mesmo programa, Disso advém as miiltiplas questées que este capitulo vai tentar resolver: ha uma légica subjacente que permite agrupar a plutalidade dos géneros em torno de um pequeno nuimero de eixos? Qual é a fungo estratégica da classificagio dos programas em géneros? O que se deve pensar sobre a mistura de géneros? 3.1 MUNDOs DA TELEVISAO E TOM DAS EMISSOES Tomando etiquetas de diferentes épocas: de um lado, documentitio, reality shom, telerrealidade; de outro, drama, soap opera (novela), docunovela, docudrama, docuficgao, 0 que se pode aprender sobre as emissdes? Documentério vers de documento, termo que os programa- dores preferem hoje em dia, ¢ que frequentemente se opde A ficcao. ® Um estado de Téidrama, a0 fim de décadas, mostra, por exemplo, que eles sio nume- rosos e precisos nos anos 70, e mais e mais vagos nos anos 80 (Fsquenavi, 1997), Francois Jost 61 Por sua derivacao, o termo remete 4 prépria matetialidade do pro- gama, considerado mais como um documento que como um filme. Reality show, denominagio americana, importada pela Franga no inicio dos anos 90, remete 4 realidade, mas sob 0 aspecto distanciado do show, como a maior parte dos nomes de géneros americanos. Telerrealidade, surgida na Franca em 2001, remete nfo mais a.um tipo de documento, mas identifica a midia 4 propria realidade, apagando simultancamente a ideia de mediagao. Essa passagem do nome que caracteriza um género pela sua materialidade (documentério) para um nome que reenvia a um mundo (a realidade), igualmente, se observa do ponto de vista dos géneros fictivos. Drama, nome de género herdado do radio, no qual se deram as adaptag6es teatrais de um texto, dos anos 50 aos anos 70, remete por sua etimologia a um espetaculo, o teatro. Soap opera (novela) data, para a televisio, dos anos 50 € refere, igualmente, 4s artes da cena e 0 modo de financiamento (os patrocinadores). Docudrama data dos anos 70 e designa o fato de dramatizar acontecimentos, fazendo-os representar pelos atores (Rose, 1985, p. 185). Docnficeio, nascido por volta de 2003 para qualificar as emissdes que reenviam a realidade, mas sio representadas por atores. O género nao esta muito longe do docudrama, mas deve sua denominagio nao ao teatro, mas a uma categoria bem mais ampla: a ficcao (existem ficgdes em todos os tipos de arte). ‘Todos esses nomes de género nfo esto no mesmo nivel: alguns tomam como traco pertinente a forma da emissio (forma cénica para drama, docudrama); outros, sua materialidade (documentitio, documento); outros, enfim, fazem referéncia a conjuntos muito mais vastos (rcalidade, ficg4o), que chamo de mundos, A hipétese que formulo aqui é que esses mundos podem servir de fundamento a uma classificacao racional dos génetos ¢ formar arquigéneros. Quais sao cles? 62 COMPREENDER A TELEVISAO e° Mundo real Todos aqueles que assistiram por acaso as imagens do 11 de setembro ao vivo ficaram pot elas siderados, visto que nao sabiam muito bem se o que viam se passava realmente em frente de seus olhos ou se era uma reconstitui¢do hollywoodiana. Essa hesitacio pode set sentida em muitos casos, nfio necessariamente paroxisticos: quando, pot exemplo, se pergunta se essa ou aquela cena de telerrealidade foi vivida por seus protagonistas ou escrita anteriormente pela produgio; quando se ass ste a uma cena improvavel em um outro mundo e nao se sabe mais se se deve cre ou nio (a dissecagéo de um extraterrestre [Alien autopsy film, 1995] ou o deslocamento de um copo unicamente pela forca do olhat de uma crianga). Um cineasta como William Karel levou ao extremo essa passagem obtigatoria de interpretagao das imagens televisuais, realizando um filme que desenvolve a tese de que a alunissagem da Apollo 11, em julho de 1969, é de fato uma gigantesca trapaca, colocada em cena por Stanley Kubrick a pedido do presidente Nixon e da NASA. A mistura de testemunhos da época, entre os quais, Donald Rumsfeld, secretirio de Estado americano da defesa, Henry Kissinger, enti conselheiro do presidente para a seguranga nacional, Christiane Kubrick, vitiva do cineasta britdnico, ou ainda Buzz Aldrin, o segundo homem da Apollo 11, € testemunhos dados pelos artistas conferem uma grande credibilidade a essa tese, que é, evidentemente, uma atmadilha para os telespectadores crédulos (Operation June, primeira difusio em 16.10.2002; segunda difusio em 01.04.2004). ‘Todos esses exemplos, € os outros ainda, atestam que o ptimeiro interpretante das imagens, para falar como o semioticista Peirce (1978), € o mundo, denominado por comodidade de mundo real. Assim fazendo, nfo se afirma que toda imagem deve set comparada com 0 mundo real para ser interpretada, ou que o mundo real € uma entidade perfeitamente identificdvel ¢ idéntica para todos. Quet-se somente dizer que 0 primeiro reflexo do telespectador é determinar se as imagens falam do mundo ou nfo, qualquer que seja a ideia que se faca desse mundo: essa visio de mundo varia Francois Josr 63 segundo as idades (a realidade da crianca nao é a mesma do adulto) eas culturas (a representacio do mundo real francés nfo é igual 4 do brasileiro, por exemplo). © Mundo fictivo A ficgio € 0 termo e a categoria que se opde mais cottiqueitamente 4 tealidade, como bem testemunha a expressio frequentemente utilizada: “a realidade tem ultrapassado a ficcio”. A partir do momento em que se pensa que um relato advém do mundo fictivo, esté-se pronto a aceitar acontecimentos nos quais nao se acreditatiam set atribuidos ao mundo teal: assim, o mesmo. telespectador, que se recusa a cret em uma imagem, retirada de uma revista sobre o paranormal que mostra uma crianga deslocando um copo somente pelo poder de seu pensamento, pode ter imenso prazet em seguir uma série ou um filme fundado na telequinesia. Inversamente, a pegadinha de um pedestre que tropeca na calgada e se estatela no chao em todo comprimento nao faz o telespectador sorrir em uma ficgao, mas desencadeia ataques de riso no Videggag. Como a crenca em relagio aos acontecimentos mostrados ou contados difere, quer estejam ligados ao mundo real ou 20 mundo fictivo, é usual dizer, desde Coleridge, poeta e critico britanico do século XTX, que a compreensio da fic¢4o, em oposigao 4 realidade, repousa sobre uma suspensio da incredulidade. Contudo, mesmo ai, a atribuicdo desse ou daquele documento ao mundo fictivo nao um processo universal ¢ intangfvel: os personagens das telenovelas sio as vezes identificados pelo piblico brasileiro como pessoas verdadeiras, até porque personalidades politicas reais desempenham por vezes um papel nesses folhetins. Quanto ao termo docuficgio, evocado, ele testemunha a completa dificuldade de cada um em determinar de que lado se encontram os filmes como L’Odssée de Zespece. Fissa dificuldade surge justamente quando se evoca um filme baseado em uma historia verdadeira, 0 que sera retomado no capitulo 6. O importante, no momento, é reconhecer que uma fico supe uma certa coeténcia, o que nao é obrigatoriamente o caso do mundo, uma parte de invengao e a presenga de atores. 64 (COMPREENDER A TELEVISAO ° Mundo hidico Uma outra categoria que supde o respeito as regras ¢ que, no entanto, encontra as vezes sua verdade no mundo teal é 0 jogo. Vejam-se, como exemplo, os seguintes jogos televisuais: um homem, que se faz passar por um padeito, deve confeccionar em alguns minutos uma massa de pizza (Qui est qui?), uma mulher caminha sobre uma viga, a dez metros do solo, com uma venda nos olhos (Fear factor); um marido deve descobrir qual é 0 prato prefetido de sua mulher (Les zamouri). O primeiro caso impée ao candidato o desempenho de um papel, como na fico, mas, diferentemente daquele que se faz passar pelo padeiro, seu comportamento vai ser julgado verdadeiro ou falso, no apenas em funcao de sua aparéncia (como € 0 caso pata o ator), mas em referéncia A sua situacdo ptofissional real. O segundo proporciona prazer ao telespectadot porque ele nao ¢ feito pot um dublé, como em um filme, mas por um amadoi, que, no entanto, nao corre mais risco que um ator, dadas as miltiplas precaugdes tomadas pela produgao. O terceiro, enfim, repousa sobre uma série de respostas to arbitrarias como as perguntas cuja vetdade se julga em fungao daquilo que cada um diz de sua vida. O mundo hidico é, portanto, intermediério entte o mundo da ficcio, a0 qual se conferem regras, eo mundo real, ligando de formas diversas 0 jogador 20 mundo do jogo. Se os jogadores podem representar papéis, cles entram algumas vezes em um mundo estruturado por um telato completo e coerente. Em outros termos, 0 jogo faz sempre mais on menos referencia a ele proprio: distinguiram-se, até 0 momento, duas maneiras de fazer mundos: seja fazendo referéncia ao mundo real —o que se convenciona chamar tealidade; seja fazendo referéncia a um mundo mental. Nos dois casos, 0s signos visam a uma certa transparéncia, sobretudo em e tratando de imagens e de son eles assumem menos importancia do que aquilo que mostram. [3 preciso acrescentar uma terceira maneira, na qual os atos, os gestos ou as imagens fazem sempre referencia as regras que os organizam: 0 mundo hidico. Esse é sui- FRancots Josr 65 reflexivo: ao mesmo tempo em que faz teferéncia a realidade, ele remete a si mesmo. Os jogos, contudo, esto longe de constituir uma categoria homogénea. Alguns se engajam a realidade (os jogos de papéis, os quiz, cujas assercées sio verificiveis no mundo real ete.); outros sio fortemente pintados com tracgos de ficgao. Os mais gratuitos entre eles visam 20 jogo pelo jogo (como 0 salto com elistico, cujo prazer reside no ato em si mesmo) [volta-se a essas distingdes no capitulo 7]. Ao para a verdade da informagio, que toma 0 mundo como referente, ao para a falsidade da ficgio, que visa a. um universo mental, é necessario entio acrescentar um para 0 riso, cuja mediagao toma por objeto, quer se trate de jogar com a linguagem (enunciagio), de jogar com 0 jogo (alfa) ou de fazer a arte pela arte. Resumindo, os trés mundos — mundo teal, mundo fictivo, mundo hidico — podem ser esquematizados da seguinte maneira: Lidico Real Fictivo © Tom das emissies O fato de uma emissao enviar a um mundo ~ real, fictivo ou lidico — no prejulga a maneira como ela realiza esse ato. Da mesma forma como um professor pode set muito sétio ou privilegiar o humor, uma emisstio pode se referir A realidade ou 4 ficcio, sob varios tons. A titulo de exemplo, considere-se a entrevista de uma artista para um jornalista ou um animador. Como géneto de discurso, essa forma de diélogo nao € propria de um sé tipo de emissio: ela pode 66 COMPREENDER A TELEVISAO ser encontrada tanto no telejornal como em diferentes magazines. Em uma mesma semana, uma mesma artista pode ser interrogada em diversas emissGes por ocasifio do langamento de um livro ou de um filme. As entrevistas vio somente se diferenciar pelo tom: a aptesentadora do T] estara séria, uma outra favorecera o humot (20h 10 pétantes) e uma outta ainda, a insoléncia (On peut pas plaire a tout le monde). Esse tom nao esta longe de representar a marca de fabrica do animador, por ele declinado em diversos programas, e que deve ser adequado & identidade da emissora (¢; 0 tom deslocado ou irdnico do Canal +). Esse tom é também o que seguidamente distingue as ficcdes das diferentes emissoras. Todas elas tém séries policiais e muitas contam a mesma histéria: isso que prende os telespectadores a essa ou aquela série decorre do mesmo processo: ama-se 0 humor do Dr House,a gentileza dos personagens de PJ ou o cinismo do inspetor Rovére, no Boukvard du palais. Como se pode ver, 0 tom nfo esta mecanicamente ligado ao mundo: 4 semelhanca dos magazines que, embora reenviem & atualidade, podem ser sétios, cémicos ou insolentes, os jogos nio tém obtigatotiamente um tom hidico — Julien Lepers, em Question pour wan champion, apresenta as quest6es com a maior seriedade; Nagui, qualquer que seja o jogo que anima, introduz uma dose de humor de segundo grau; ja o formato internacional do Maillon faible (The weakest link) deve seu sucesso 4 seyeridade de sua animadora (Laurence Boccolini). Nio se pode confundir, portanto, tom € mundo: ainda que um animador permeie seu jornal de blagues (como 0 fez, em seu tempo, Bruno Masure), isso no é suficiente para classificar 0 telejornal sob o rétulo do mundo hidico. O tom é um. componente que se ancora principalmente no animador, para as emiss6es que advém do mundo real ¢ lidico, ou nos personagens, no caso da ficcio. Embora 0 tom seja uma categoria a qual recorrem os profissionais, ele ainda é largamente negligenciado pelos pesquisadores (Duarte, 2004, 2010). Francois Jost 67 3.2 Paphis ESTRATEGICOS DO GENERO © Diferentes usos do género Todos os géneros estio ligados a um dos mundos aqui definidos. Mas, se essa ligagéo parece ir além, em certos casos (informacio, reportagem: teal; filme, telefilme, séties: ficgio ete), nao é sempre tao natural que se possa crer neles « priori. As emissoras podem ter intetesses diversos para ancorar um programa nesse ou naquele mundo: assim, em um perfodo de desconfianga em relacio 4 informacio televisual, 0 r6tulo telerrealidade é destinado a conferir essa autenticidade de que o publico necessita depois dos reality shows, que, ha dez anos atras, surgiram com a mesma finalidade. Para aumentar a credibilidade de uma ficc&o, uma emissora pode igualmente escolher autentificé-la por um antincio que insiste em sua ancotagem no mundo real, por exemplo, mantendo deliberadamente a confusio entre 0 personagem € 0 ator. Para tesumir, uma ficcio pode ser apresentada como realidade (exemplo precedente); um jogo pode set apresentado como realidade (Loff Story); acontece até mesmo de a realidade ser aptesentada como ficcio (Paule [col. La saga des Frangais, diff. FR3, 27.06.1977], filme sobre a vida de uma enfermeira em um hospital, identificado como uma invencio por parte do jornalista, dedicado a subjetividade). O nome do género nao term como tinica fungio impor ou propor um sentido ao publico, ele responde também a interesses jutidicos ¢ econdmicos, como demonstram os dois casos seguintes: a) Obrigagies em relagiio ao caderno de encargos. Cada emissora s6 esta autorizada a emitir em fungio de um caderno de encargos ou de convengées, negociadas com o CSA, que fixa seus deveres no que concetne aos programas. A TF, por exemplo, deve dedicar 16% de seu volume de negécios do ano precedente a obras originais ou europeias inéditas, cuja difusio comece entre 20 ¢ 21 horas, entre as quais ela deve produzir 120 horas de ficcio francesa inédita. Mas que programas podem ser classificados nessa categoria? E. possivel 68 COMPREENDER A TELEVISAO incluir um esquete original destinado a tornar atrativos 0s resultados da loto? O CSA pode contestar ou se recusar a computar esse programa na cota de ficgao francesa solicitada 4 emissora. © caderno de encargos adotado, em 2009, pela France ‘Télévision prescreve que @ sociedade difunda pelo menos um programa cultural cada dia, na primeira parte da noite, ttatando dos seguintes géneros: retransmissio de espetdculos ao vivo, emissées musicais, magazines e documentarios de cultura e de conhecimento, acontecimentos culturais excepcionais, ficgdes audiovisuais ¢ cinematograficas (adaptagoes literarias, reconstituigdes histéticas. A questio é, evidentemente, saber 0 que se denomina de cultura: sem diivida, o legislador, quando fala de adaptagao literaria, tem na cabega as grandes obras do patriménio (Balzac, Maupassant...), mas © que dizer quando se trata de Feydeau, que se insere em todas as vertentes, ou de Louis de Funes? Alguns objetario que os filmes desse ultimo nao pertencem a cultura. Entretanto, basta programa- los em uma colegio, Cémico de sempre, para fazé-los entrar no museu imaginario do cinema... De fato, é evidente que esses cadetnos de encargos levam em conta uma ideia de cultura legitima ¢ consideram como nao pertinente os produtos da cultura popular. b) Categorizacéo ¢ auxtlios 4 produgio. Se a categorizacio obra é determinante para a verificagio dos deveres da emissota, ela pode também, por outro lado, abrir-lhe os direitos aos sistemas de ajuda ao investimento, assegurados pelo Centre National de la Cinématographie (CNC). Um exemplo recente: segundo essa organizacio, os divertimentos nio podem jamais ser considetados como obra, mesmo que eles sejam majotitariamente realizados fora do palco, o que leva a excluir desse estatuto programas como Lof story. No entanto, os desenvolvimentos da suposta telerrealidade contornaram a dificuldade recorrendo a gravacio dos programas. Essa é a estratégia empregada pelo Papstars. Como se sabe, essa emissio mostra, durante muitas semanas, os bastidores de um conjunto nacional destinado a criar um grupo musical feminino. Seu produtor (Adventure Line, do grupo Expand) batiza-a como um folhetim, argumentando que ela relata durante muitas semanas, em um estilo reportagem, os fatos ¢ os gestos Frangots Jost 69 advindos de pessoas reais. Se essas emissdes se sucedem como os episddios de uma novela, fica mais dificil reconhecer seu estatuto de documentario, que supde geralmente que se filme um estado do mundo preexistente a filmagem, ao contririo de Popstars que organiza um mundo com o tinico objetivo de filma-lo. Seja qual for essa diferenca, o CNC e o CSA admitiram Popstars na categoria documentario, 0 que permitiu 4 produgio 0 acesso A conta de subvengao 4 industria dos programas e o beneficio de 126.500 euros do CNC para cada uma de suas trés temporadas. Final de dezembro de 2001, a Sociedade dos Autores e Compositores Dramaticos (SACD) e muitas instituigdes, defendendo interesses artisticos € culturais, entraram, perante o Conselho de Estado, com um recurso contencioso em face 4 tentagio de alargamento da qualificapio de obra audiovisual a programas de telerrealidade que néo correspanderian aos eritérios que uma obra exige. A SACD considerava que a emissio tinha 0 carater de jogo televisual, variedades ¢ autopromogio. O Conselho de Estado tejeitou o pedido, considerando que ele nfo tinha fundamento. Julgou que Popstars tinha por principal funcato apresentar ao puiblico entretenimento, formagao e progressao, no dominio da musica, das pessoas selecionadas, e descrever wm initio de carreina ofetiva, no seia dos fazeres do espetdculo, acrescentando que a emissao comporta elementos de roteira, mise en scéne ¢ montagem que sao elementos prdprios a obra televisual. O Conselbo de Estado destacon que a enissia comportava certos elementos de jogo e de variedades, mas que esses no eram sendio nim aspecto acessério ¢ ndo reduziram o programa Popstars ao meio jogo on a una emissio de variedades, (Relatorio de atividade 2003 do CSA). Em suma, uma decisio como essa poderia mudar a definigio do documentatio. © Promessas dos géneros De tudo que foi dito, pode-se concluir que o géneto é uma interface entre produtores, difusores e telespectadores, via 70 COMPREENDER A TELEVISAO mediadores que sao os jornalistas. Se ele possui uma fungao esttatégica na comunicagao televisual, isso se deve A virtude de um nome, de uma etiqueta, como os discursos produzidos no langamento de um novo programa, Ele é a promessa de uma relagio com um dos trés mundos definidos ja citados. Mais precisamente, 0 géneto contém duas espécies de promessas: a) uma promessa ontoligica. Essa promessa esta contida no proptio nome do género. Toda comédia, por exemplo, é uma promessa de riso, independentemente de seu sucesso efetivo enquanto comédia. ‘Toda emissio ao vivo esté fundada sobre a simultaneidade do acontecimento e da tecepgao c, ao mesmo tempo, € portadora de uma garantia de autenticidade, o que uma emissio gravada forgosamente nao tem. Toda ficcio é a promessa de um mundo organizado em fungio de uma coeréncia do conjunto, Essa enumeracio pode prosseguit, mas cla, por si sé, jé convence de que © conhecimento das promessas ligadas ao género é mais ou menos partilhado pelo puiblico. Se todos estio de acordo a respeito da obtigago de a comédia ser cmica, o tetmo ao vivo se presta hoje a muitas confusdes; alguns utilizam o termo para qualificar Programas nos quais um cantor canta em cena sem play-back; outtos para designar imagens tomadas ao vivo (2), nfo hesitando os proprios jornalistas em afirmar, em determinadas circunstancias, que as imagens a serem mostradas foram gravadas no dia anterior a0 vivo de Bagda... (¢f capitulo 5). Quanto a ficgio, a telagio que ela estabelece com a realidade nem sempre é clara no espitito do tclespectador (capitulo 6). Pod a categorizacéo de uma emissio em um género advém a0 mesmo tempo da crenga e do saber: ela desencadeia no telespectador a relacio com um mundo, ele préprio portador de uma crenca particular; mas, como essa ctenca pode estar equivocada, cabe a0 analista de televisio melhor definit 0 que se pode espetar de um género ou, se se prefere, qual é seu horizonte de expectativa (Jauss); b) uma promessa pragmatica, Uma coisa é sabet 0 que €0 a0 - concluir dessas observacdes que vivo ou a ficgio, outra é determinar se esse ou aquele programa é FRaNcors Jost n um ao vivo ou uma ficcao. Seguidamente, o telespectador nao sabe a priori a que genero uma emissao se liga, seja porque seu formato (¢, capitulo 4) é novo, seja porque nao existe nenhum modo de o saber: por exemplo, nada diferencia a retransmissao de um magazine ao vivo de uma retransmissio de um magazine gravado nas condicoes de ao vivo e é necessario frequentemente indices extratclevisuais para determinar se se trata de um caso ou de outro (por exemplo, saber que um cantor, Patrick Bruel, visto em 13.02.2002 no Séar academy, etiquetado como diteto, apresenta-se no mesmo momento em um teatro parisiense). Para influenciar as crengas dos telespectadores, as emissoras atribuem de antemao determinado nome de género a um programa: uma vez que o direto é portador de uma promessa ontoldgica de autenticidade, elas nao hesitam, como se viu, em estampar as imagens dessa mengiio, mesmo quando ela é falsa. As estratégias de marketing vio bem mais longe: 0 mais belo sucesso de seus Ultimos anos é, sem dtivida, a telerrealidade. Langada originalmente com a etiqueta real-life soap, Big brother, ao se tornat Loft story na Franga, viu-se dotado de um novo nome de géneto: telerrealidade. Se a primeira, dada pelo produtor da Endemol, direcionava 0 programa a ficgiio, mostrando que se tratava de fazer folhetim com a vida real, 2 M6, de inicio, situou o programa inteiramente no lado do mundo real. Essa estratégia andou para além de toda esperanca, focalizando, no langamento do programa, debates entre intelectuais sobre a questo da documentaridade e da reptesentatividade dos jovens (ver andlise detalhada desse langamento, capitulo 8). A promessa pragmatica pode também consistit em colocar uma ficgo em uma noite consagrada a um problema da sociedade, 0 Jo aos olhos do telespectador. que acaba por autentificar a emis Essa promessa da emissora é veiculada por diversos suportes de comunicagio: as conferéncias de imprensa dos dirigentes, que indicam as grandes orientacdes estratégicas (assim, no inicio de 2004, o presidente do diretério da M6 anuncia que a telerrealidade evolui em ditecdo 4 docuficgao), os anincios e, frequentemente, as vinhetas de abertura. COMPREENDER A TELEVISAO O ato promissivo 6 wm ato primeiramente unilateral e performativo: em outros termos, ele nao tem necessidade da concordancia do outro pata prometer; o fato tio somente de dizer “eu prometo” constitui a promessa. No entanto, o outro nao esta de modo algum obrigado a nela acteditat. E mesmo seu dever exigir que quem prometeu cumpra a promessa (Jacques, 1999). Aplicadas 4 televisfio, essas proptiedades do ato promissivo tém como consequéncia o fato de que o telespectador nao deva forcosamente aceitat as proposigdes de sentido da emissora; ele deve confronta- las com 0 produto acabado, a emissio, em lugar de olhar com as viseitas impostas pela emissora. Donde a necessidade de um olhar distanciado, de uma anilise. ¢ Mistura de géneros, um novo género? A expressio “mistura de géneros” ou “confusio de génetos” € utilizada correntemente para qualificar esse ou aquele novo Programa, sem que se saiba muito bem o que cla quer dizer. A luz deste capitulo, varias acepgdes sto distinguidas: a) mistura de dois mundos: na maioria dos casos, quando se fala de mistura de géneros, no se faz referéncia 4 mistura de dois géneros, sirinéo sensu, mas 4 mistuta de dois mundos: docuficgéo, pot exemplo, designa um programa que envolve simultancamente dois tipos de crengas, uma que remete a0 mundo teal, outra a ficcio, 0 que € contraditério; infotainment, palavra-chave formada a partir de informagao e de entretenimento, remete As emissdes que misturam informagio e divertimento (capitulo 7); b) justaposigéio de sequéncias de géneros diferentes: no século XIX, © termo variedades caracterizava espetaculos construidos a partir de mimeros de natuteza diferente (cangdes, quadros de médgica, imitagdes, ntimeros de citco ete.). Sustentando-se em um modelo bastante proximo, apareceram na metade dos anos 80 emissdes estrututadas em miiltiplas sequéncias curtas pertencentes a diferentes géneros, entrevistas, cangdes, sequéncias de filmes (cf. Nulle part aillenrs, no Canal +): chamaram-se esses programas de emissdes FRANcols Jost B omnibus (Casetti, Odin, 1990) para caracterizar 0 fato de que, pela diversidade de contetidos ¢ de formas solicitadas, elas se dirigiam a todos ao mesmo tempo (omnibus significa para todos, em latim). Essa sucesso de sequéncias tinha de fato em sua origem trés fun¢Ses em termos de programagao: de um lado, ela permitia contrapor um novo instrumento colocado 4 disposigio do telespectador, o controle remoto, que se fazia acompanhar de um fendmeno novo, o zapping de outro, cla permitia reunir 0 conjunto dos membros da familia, propondo a cada um uma sequéncia a seu gosto. Enfim, ela facilitava a chegada dos telespectadores na casa, uma vez que eles podiam, sem inconyeniente, acompanhar a emissao em andamento (0 que a ficcdo permite menos, uma vez que ela supde conhecimentos sobre 0 que ja aconteceu); ©) mistura de tons, por mistura de géneros, compreende-se enfim uma discordancia entre o tema € 0 tom esperado pata trata- lo. Exemplo tipico é o debate entre Barnard Tapie ¢ Jean-Marie Le Pen, em 1996. A guisa de introdugio, Paul Amar, o jornalista- animador, retita de uma sacola dois pares de luvas de boxe ¢ os estende aos candidatos, considerando os encontros precedentes entre os dois homens. Foi facil, para o primeiro, livrar-se da gozacio ial O animador, afastado da emissora dizendo: A politica é coisa 5 alguns dias mais tarde, tinha ido muito longe na escolha do tom, pouco adequado ao género debate politico. A construgio do mundo pelas emissoras comega bem antes da difusio dos programas. Nomear seus produtos e liga-los a um universo de sentido é um dos atos mais eficazes de sua comunicacio, na medida em que esse ato parece frequentemente natural. Desconstruir a promessa da emissora € 0 primeiro passo da anilise FRancors Josr 4, PROGRAMAGAO 5 Viu-se, no primeiro capf- tulo, que uma das diferengas essenciais entre o cinema e a televisio reside na relagao que eles mantém com os tempos do espectador. Enquanto a sessao de cinema suspende o tempo social, a televisao estrutura a temporalidade, a vida do telespectador: cada um busca 0 momento do dia em que quer ver um filme, pois os programas s6 podem ser olhados no horatio que as emissoras impdem. Se os tedricos do cinema pudessem negligenciar, até o momento, 0 contexto espago- temporal da projecio, porque eles postulam que esse contexto age pouco sobre a recepcio do filme, setia equivocado fazer 0 mesmo com a televisio. O sucesso ou 0 fracasso de um programa depende enormemente do horitio em que ele é difundido. E isso se deve a duas raz6es: ele pode nio atingir 0 publico pretendido, ou interess4-lo menos que a emissio proposta por uma emissota concorrente. Nessa perspectiva, uma das funcées estratégicas da emissora € estabe- lecer uma grade de programacio que leve em conta, ao mesmo tempo, os géneros mais apro- priados ao publico visado em uma 76 COMPREENDER A TELEVISAO dada hora ¢ a oferta dos outros canais. A essas duas exigéncias se acresce uma outta proveniente dos anunciantes: a de constituir um publico estavel, com mais ou menos as mesmas caracteristicas de uma semana para outra, um alvo. O problema do programador 6, entiio, compor com o Mesmo e com 0 Outro ¢ responder a esta questao: como difundit a cada semana um programa andlogo para fidelizar 0 publico, conferindo-lhe ao mesmo tempo a sensagao do novo? Quatro temas esto no centro dessa reflexdo: a colecio, 0 formato, a grade e sua relacio com a publicidade. 4.1 DA TELEVISAO DA OFERTA A TELEVISAO FORMATADA Légica da obra O termo grade sé aparece no vocabulirio dos profissionais da televisio francesa em 1964, no momento em que foi inaugurada a segunda emissora. Sem concorréncia ¢ indo ao ar somente no meio do dia e a noite, a televisao dos ptimeiros tempos foi concebida como uma sequéncia de espetaculos a distancia que, para o telespectador, nfo faziam concorréncia com os espeticulos ao vivo. Essa concorréncia intermidiatica, e nao intramididtica, como a que se conhece hoje entre as emissoras, motiva, como se viu, as primeiras cotrelacdes dos programas com o tempo social. Isso néo impede que, no final dos anos 60, 0 inventario dos géneros e dos ptogramas difundidos a cada semana seja ainda muito amplo. Apés os anos 50-60, que foram o reino dos realizadores, os anos 70 sio dominados pelos produtores, que propdem ais emissoras Pptojetos ou programas. O papel das emissoras era entiio oferecer esses programas, no momento mais adequado, ao publico. Nesse contexto, os programas unitarios tém ainda sua chance € os seriados recobrem objetos vatiados: assim, Cinéma 16, veiculado pela terceira emissora francesa, France Région 3 (FR3) de 1975 a 1990, acolhe filmes muito diferentes, cujo tinico ponto em comum é uma certa ideia de criaco cinematografica. Francors Jost 71 Durante muitas décadas, as televisdes difundem programas de carater essencialmente nacionais. Excetuando alguns casos particulares (como Campanile sera que originou Intervilles), a maior parte das emissdes da televisao francesa eram concebidas internamente ou gtagas 4 contribuicao de produtores franceses extetiores. S6 os enlatados, como os documentitios ou as séries, eram comprados e difundidos tal e qual em muitos paises, sendo Dallas certamente 0 caso mais representative, que conheceu nos anos 80 um sucesso mundial. Os anos 90 foram matcados por uma internacionalizacao dos programas de fluxo: jogo iniciante (The wheel of fortune, reakity-shows (Rescue 911, que otiginou, na Franca, La nuit des héros), telerrealidade em seguida (Big brother, Survivor) foram exibidos no mundo inteiro, sem que os telespectadores tomassem consciéncia dessa globalizacio da oferta televisual. Nos dias de hoje, € a vez de as ficgdes serem adaptadas em divetsos paises. Fi 0 caso de Betty /a fea, que recebeu miiltiplas versdes nacionais, das quais a americana (Ugh Bet) ¢ a alem& (Destin de Lisa) foram exibidas pela TF1. Se, no caso de Datlas,a mesma emis circulava de um pais a outro, apenas com a diferenga linguistica, no 10 caso das emissdes de fluxo, nao € 0 programa original que é exportado (a versio americana de The wheel of fortune, por exemplo), mas um ptograma andlogo, isto é, um programa concebido e realizado a partir de um mesmo formato. e Formato O que se pode exatamente entender por formato? Em ptimeiro lugar, essa nocio se opée a légica da oferta: o programa deve ser concebido para responder a uma necessidade de ptogramacao ou a um caderno especifico de encatgos, que constitui, para os produtotes, 0 quadto de demanda. Em segundo lugar, ela supe que o programa a ser exibido seja caracterizado por uma série de parametros ou de tratos estruturais, que permitam aos diferentes sujeitos envolvidos na concepsao e na produgio refazer indefinidamente um produto reprodutivel, isto é, serializavel, 78 COMPREENDER A TELEVISAO uma linha de produtos, como dizem certos diretores de unidades de programas. © formato deve ser distinguido daquilo que os profissionais chamam de conceito. Esse ultimo designa a ideia que esta na base de uma emissio: pode ser, por exemplo, fechar jovens em um estudio-apartamento e observa-los em seu cotidiano. Esse conceito pode conhecer diversas variagées: os candidatos podem ser desconhecidos ¢ condenados a exclusio até o final (Big brother), obrigados a constituit um casal (Laff s/or)), escolhidos em diferentes paises no meio estudantil (Nive peopl) ou divididos em dois apartamentos (Les Co-locataires). Em todos esses casos, 0 principio de base é permanente, s6 as regras e a estruturacao das emissdes mudam, Essas variacées devem ser distinguidas daquilo que os especialistas do marketing nomeiam de me-foo (eu também) pata designar esses produtos que sio concebidos como imitagao daqueles que os precederam com sucesso no mercado. Em alguns casos, a frontcira entre as duas nocdes pode parecer bem fragile dar lugar a processos de plagio, quando 0 produtor da segunda emissio nao € o mesmo que o da primeira: no caso de Nive peopk, por exemplo, a M6 foi acusada de haver copiado Loft story. AA nogio de formato tecobre tealidades um pouco diferentes, quet seja aplicada aos enlatados ou as emissdes de fluxo. Para a ficcfio, o formato estrutura-se como uma biblia, que enumera e descreve todas as restrigdes que recaem sobre a concepgio do roteiro: duracao do episddio, car4ter dos personagens, tipos de histérias possiveis. Muitos roteiristas podem assim trabalhar em conjunto, em uma mesma série, sob a direcio de um editor de histéria, que determina se as intrigas propostas permanecem no Ambito do mundo da ficcao, presente no ponto de partida da série. Para as emissGes de fluxo da telerrealidade, compottando o diteto (ao vivo), 0 formato define as grandes regras, os cendrios, as situagées, mas cabe notar que ele € muito mais permeavel as mudangas: a televisiio atual, buscando seus métodos no marketing, testa diferentes elementos de uma semana a outta para melhorat os FRANCOIS Jost 79 pontos que desagtadam o publico. Por ocasiio da primeira temporada de Svar academy, pot exemplo, o castelo no qual viviam os candidatos foi testado, a fim de determinar se ele correspondia muito ou pouco a um castelo, Os produtores, por outro lado, reagem muito 4s criticas, nfo hesitando em mudar brutalmente detalhes que poderiam chocar: na primeira exibigo de Lo/f story, a exclusio dos candidatos, por ter sido objeto de vivas criticas por parte dos intelectuais, foi substituida pela nominagio dos candidatos suscetiveis de deixar 0 programa. As versées nacionais dos formatos internacionais im, a versio as conhecem, além disso, desvios consideraveis espanhola de Svar academy, Operacién triunfo, difundida pelos canais ptblicos, TVE, ¢ exibida todo ano (contrariamente a Franga, onde ela s6 dura quatro meses) ¢ os candidatos nao sio filmados na sua vida ptivada. As vatiagdes em relacio ao formato de otigem (Star make?) so concebidas para se adaptarem a cultura local, como todo detalhamento de marketing dos produtos de consumo corrente. 4.2, GRANDES INDICADORES DE MEDIDA DE AUDIENCIA De acordo com uma ideia difundida e simplificadora, todo fendmeno televisual se explica pelo fato de as emissoras quererem, indice de audiéncia, embora existam diferentes maneiras de conseguir uma boa audiéncia. Uma mesma emissio, de acordo com o que ela esté programada por essa ou aquela emissora e nesse ou naquele horirio, nao terd a mesma audiéncia. Afinal 0 que se compreende precisamente por audiéncia? Em 1987, passou-se de um sistema de medida de audiéncia nos laces (Audimat) para uma escuta individual (Médiamat). O Médiamat é um painel de 3.150 lares equipados com audimetros com botao de pressao (cerca de 8.000 individuos de quatro anos ¢ mais), Esse painel selecionado em fungio de sua representatividade sociodemogrifica ¢ do 80 COMPREENDER A TELEVISAO equipamento audiovisual dos lares que possuem uma televisio, na Franca metropolitana. Cada membro da familia deve pressionar 0 botao quando ele assiste 4 televisio ou quando deixa de escutd-la. O recolhimento da informacao é em seguida registrado (fonte: Médiamétrie). © Audiéncia ¢ parte de audiéncia Frequentemente se confunde audiéncia com parte de audiéncia. Em primeiro lugar, convém distinguir taxa média da audiéncia, que € o percentual médio por segundo de individuos que olham um programa, ¢ a audiéncia acumulada, que é a soma dos individuos que estio assistindo, em um dado momento, a uma emissio, qualquer que seja sua duragio. A taxa média de audiéncia corresponde a um numero de telespectadores por segundo, que é calculado em fungao do valor do ponto de audiéncia. Na Franca, pais de 65 milhGes de habitantes, um ponto de audiéncia correspondente aos individuos de quatro anos e mais é de 566.800 pessoas, € 0 ponto de audiéncia correspondente aos individuos de 15 anos e mais é de 487.100. Quando querem medir 0 sucesso de um programa, as emissoras trabalham, se nao minuto por minuto, ao menos sequéncia por sequéncia para determinar aquelas que foram bem-aceitas e aquelas que perderam publico. A parte da audiéncia, em contrapartida, calcula menos uma quantidade que uma proporgio: ela fornece indicaces sobre a parte que representa a duragao de escuta de uma emissiio em relacao a duragao de escuta do conjunto das emissoras. Ter 1.000.000 de telespectadores, quando 3.000.000 de pessoas estao diante da televisio representa 33% da audiéncia; em contrapartida, isso no representa mais que 4,7% de um total de 21,000,000 de telespectadores. O final de Laff story, cujo sucesso ficou na memoria de todos, nao reuniu mais que 7.717.560 telespectadores, 0 que, na medida em que publico no inicio do verio é muito menos numeroso que o do resto do ano, constituiu- se de 49,6% da audiéncia, em 05.07.2001. Fhancols Josr 81 © Do todo pablico ao alvo A audiéncia dos programas é analisada notadamente em fancio dos géneros aos quais eles pertencem. A nomenclatura desses génetos, que difere sensivelmente daquela do Conselho Superior do Audiovisual (CSA) ou das instituigdes de arquivamento como a Inathigue, 6 estabelecida pela Médianétrie, em consonincia com as emissoras, que decidem sobre a categoria genética atribuida a esse ow Aquele programa. Essa atribuicio diz mais sobre a fungio do ptogtama na grade do que os dossiés da imprensa: embora tenha sido apresentada a imprensa como telerrealidade, uma emissio como On a éehangé nos mamans (adaptacio de Wife sup, do Channel Four) eta classificada sob a rubrica de cultura, conhecimento, magazine, sociedade. Fissa medida permite saber quais géneros tém mais sucesso, no conftonto dos nimeros da televisiio difundida com os da televisio tecebida: se a informagio ocupa 15% das emissdes difundidas pela emissora e se o ptiblico a cla dedica 17% de seu tempo para escutar determinada emissora, pode-se coneluir que ele est ai em busca de informagio. Um outro erro frequente é acreditar que os programas se dirigem, a todo momento, a todos os publicos. A partir dos anos 90, essa politica, que péde existir nas emissoras publicas, é posta em cheque em prol de uma meta cada vez mais precisa, como atesta esta declatacio de Etienne Mougeotte (Le monde, 14.10.1992), vice- presidente da’TF1: Os indices de andiéncia misturam ‘albos com bugalhos’ jovens e velbos, pessoas do campo e da cidade. A televisio comercial, como é 0 caso da TFI, trabatharé cada vex menos com dados globais, ¢ cada vex mais com alvos. E. uma nova fase de nossa reflextzo depois do discurso sobre o ‘total de audiéncia’ de 1987, mesmo se hé uma ligagiio entre alvo e audiéncia residencial, nds ndo raciocinamos mais sobre partes de mercado indiferenciadas. Nessa perspectiva, o primeiro patametro a ser levado em conta pelo programador é evidentemente a natureza do publico que esta em condigées de assistir as emissdes, 0 que se chama de televisio disponivel. Esse publico varia ao longo do dia (pela manhi, as criangas sio mais numerosas antes de ir A escola; a tarde, sao as 82 MPREENDER A TELRVISAO mulheres ¢ os desempregados) e em fungio dos momentos da semana (fim de semana) ou do ano (férias). Na medida em que essa presenca em casa é um dado de que todas as emissoras dispoem, o que vai diferencia-las é a escolha do alvo. O final da emissio de Pascal Sevran, La chance aux: chansons, em 22.12.1990, que agradava bastante as pessoas mais velhas, correspondeu a uma mudanga estratégica por parte da France 2, que preferiu se ditigir ptioritariamente as criancas que voltavam da escola. Essa troca niio se deve apenas ao fato de que seriam mais numerosas que as pessoas mais velhas em frente a tela, mas ao fato de elas constitufrem um melhor alvo, em termos econdmicos, pata os anunciantes, na medida em que elas ptescrevem maior consumo. O desenvolvimento da televisio mével (capitulo 2) podetia modificar a estrutura do publico disponivel, que nao sera mais forcosamente aquele que fica em casa. Se todas as emissoras possuem potencialmente o mesmo ptiblico disponivel, o programador pode colocar em jogo uma quarta variével, que é a televisio possivel. Tomando ao acaso o dia 22.08.2004: a TF apresenta uma comédia, New! mois, as 21h, seguida da apresentagao de trailers de filmes 4s 22h50, c, as 23 horas, de um. James Bond. A France 2, por sua vez, veicula 20 vivo os Jogos Olimpicos de Atenas até as 22h40 para dar lugar a uma ficgio, New York 911. Podem-se representar as escolhas dos telespectadores entre essas duas emissoras da seguinte maneira: ‘Fl Neuf mois (Gime) Aptesentacio de filmes On ne vit que denx: fois 22h50 23h 21h 22h France 2 JO (direto) 22h40 New York 911 Na medida em que é desagradavel perdet o inicio de uma ficcfio (Fonnet, 2003, p.39), pode-se imaginar que o telespectadot desejoso de ver um filme se liga ITI. Se ele a julga boa, ter’ Frangots Jost 83 menor tendéncia a zapear que o telespectador dos Jogos Olimpicos, liberado pelos tempos mortos entre uma competigao e outra. Em compensagio, a programagiio de esporte traz uma vantagem para a France 2: esse programa é descontinuo e pode acolher a qualquer instante os descontentes com o filme. Aqueles que acompanharam fielmente Neuf mois perderio dez minutos de televisio possivel da série de France 2 ; em outtos termos, perderio © inicio de New York 911, 0 que pode desencorajé-los a passar para essa emissora em virtude do principio enunciado mais acima. Evidentemente, essa situacao previsivel a priori esti na dependéncia ainda da patticipaciio dos atletas franceses nas competicdes. | bem mais complexa ainda se se considerar 0 conjunto das emissoras, 0 que nfo se faz aqui pela preocupacio com a simplificagio. Todos esses problemas de relag6es entre programas, programacao ¢ concorréncia levam a olhar de mais perto as légicas das grades. 4.3 LOGICAS DAS GRADES © Programagao vertical, programagao horizontal Até 1970, a televisao francesa exibia a parte mais importante de seus programas 4 noite: segundas, sextas ¢ sabados pela manha todas as tardes eram reservadas 4 televisio escolar no canal 1; o canal 2abria a sua antena as 14h30min para o programa Aujourd hui, madame, seguido de uma telenovela. © trabalho do programador é acima de tudo o de fixar encontros semanais mais ou menos modelados pela temporalidade social, como jé foi dito: terga-feira, dia de folga do teatro, drama; quarta-feira, véspera do dia de folga das criangas, circo; quinta-feira, informagio; sabado, teatro; domingo, filme. Essa légica semanal, que se chama programagio vertical, comanda igualmente 0 acesso de horatio nobre (em inglés, access- prime-time): a faixa hordria entre 18h45 e 19h15, no lugar de oferecer cotidianamente o mesmo programa, ptopde uma emissio diferente em funcio do dia da semana: sucessivamente um magazine feminino (segunda-feira), um magazine (Les quatre saisons, terca-feira), um 84 COMPREENDER A TELEVISAO programa de atualidade musical (Cadence, quarta-feira), um programa literdrio (quinta-feira), um documentétio (Iivre cheg soi, sexta-feira), um magazine de atualidade teatral (Osorir kes yeux, domingo). Somente as criangas tém direito, a cada inicio de noite, a 15 minutos de emissio, a mesma hora, antes de supostamente deitarem (Le petit Hon). Quanto 4 segunda emissora, seus encontros estio longe de serem estaveis: um programa como os Dossiers de Véeran, por exemplo, softe deslocamentos na grade, de quarta a sexta-feira (Jost, 2005). A apresentacio de um programa em uma mesma faixa horitia, cotidianamente, constitui a programacio horizontal. Desde que as emissoras passaram a funcionar todo o dia (na Franga, 1984), clas tém-se esforcado em combinar esses dois eixos, ou seja, exibir emissdes fixas em fungio das horas do dia. Contrariamente ao que se poderia pensar, as grades de hoje, as vezes, muito mais rigidas que aquelas das décadas precedentes, nio se modificam muito de um ano a outro (os programadores nio mudam o contetido de uma faixa horéria sem antes tomat muitas precaugdes). O cixo horizontal goza de atengao particular, visto que ele visa capturar a aten¢ao do telespectador o maior tempo possivel na mesma emissora, Para fazer isso, 0 programa mobiliza varias técnicas, notadamente: a) © stripping, que consiste em programar todos os dias, na mesma hora, a mesma emissio, de segunda a sexta-feira. Fsse método ¢ utilizado hoje por todas as grandes emissoras gencralistas; b) 0 ad in, que consiste em colocar um programa popular no inicio de uma faixa hordria, com vistas a conservar 0 publico para a faixa horaria seguinte, é 0 famoso efcito locomotiva, observavel sobretudo nas escolhas das emissées que precedem o telejornal televisivo das 20 horas; ©) 0 hammocking (literalmente, fazer uma rede), que € a insergao, entre duas emissies de sucesso, de um novo programa, a fim de assegurar sta andiéneia (Fonte: Mousseau, Dossiers de Vaudiovisuel, 1989 — 1992, p. 39). Essas técnicas nao explicitam evidentemente quais sio os contetidos a serem colocados depois de um programa popular ou entre duas emissées de sucesso: esses casos s4o entio etiquetas BRancols Jost 85 vazias, tanto que o programador nfo determina 0 espago em que se deve articular um programa com aquele que o sucede e o precede. Arte foi sem davida a primeira emissota a organizar suas noites em fungao de clos tematicos (Thema). Essa estratégia foi retomada, a sua moda, pela France 2 em Mercredis de /a vie, que encadeiam L‘instit Ca se discute, com um debate sobre o tema tratado pelo episédio da série, ou, mais tarde, Ca se discute jour apris jour, que entrelaga uma longa reportagem e entrevistas com especialistas sobre um mesmo tema. Mas a légica pode ser também genérica (Une soirée, dens polars, na sexta-feita, na mesma emissora) ou explicativa (a docuficgio Liodyssée de Vespéve, acompanhada de um making off. Os bastidores da Odisseia da espaco, exibida em 7.01.2003. Como ja se viu, 0 eixo vertical vem sendo trabalhado ha muito tempo em fungao da temporalidade social. Com o passar dos anos, foram acrescentadas regras externas, a que as emissoras devem obedecer, tais como a intetdicio de difundir os filmes na quatta- feira ou no s bado para proteger o cinema. No entanto, desde o final dos anos 70, 0 estabelecimento das grades resulta também de escolhas mais ou menos arbitra: ncial é guiada s, cuja légica es: pela concorréncia: assim, a TF1 tem optado por dedicar todas as noites de segunda-feira a uma série policial; enquanto a France 2 escolheu exibir esse género As sextas 4 noite. Como é muito dificil, por razBes concernentes 4 produgio, preencher uma mesma faixa horaria com a mesma série (0 que implica uma disponibilidade muito grande dos atores)’, as emissoras tém voluntariamente recorrido as seguintes técnicas: a) 0 hammoking semanal (Fonnet, 2003, p. 38), que consiste em colocar, em um dado dia da semana, o piloto de uma nova série entre dois episédios de séties de sucesso, contando com a fidelidade do puiblico nessa faixa horatia: na TE1, Commissariat police entre Julie Lescaut e Navarro; 7 A titulo de exemplo, é necessario ter na cabega que uma emissora como a ‘TFL produz 120 episddios de 90 minutos por ano. 86 CCOMPREENDER A TELEVISAO b) 0 checkerboarding semanal (de checkerboard, tabuleiro), que se centta na programacio de séties diferentes, a cada semana, na mesma faixa horiria: é 0 que faz a TF1, com suas segundas policiais, ou a France 2, com suas sextas polares. Esses dois uiltimos procedimentos sio particularmente interessantes pata o analista, pois repousam sobre a ideia que, para a emissora, as diversas colecdes difundidas em uma mesma faixa horatia (Navarro, Une femme d'honneur, Julie Lescaut) sto, de um certo ponto de vista, equivalentes. O desafio do analista € compreender quais sao os critérios que fundam essa equivaléncia. e Repercussées da programagao sobre os programas Para resumir o espirito dos diferentes procedimentos enumerados até o presente, pode-se dizer que a progtama¢io nao visa colocar, na grade, a cada instante, um programa de alta qualidade, que reuniria todos os ptblicos, mas um programa que atinge a maioria do pablico disponivel naquela faixa horaria ¢ a0 melhor custo. Essa definigao lapidar explica as numerosas escolhas concernentes aos programas. * Programas segmentados vs programas rennidos: durante o dia, na medida em que uma grande parte da populacio com mais de quatro anos trabalha fora de casa, a emissora adapta suas emissGes ao alvo determinado pelos anunciantes (a famosa dona de casa com menos de 50 anos que gera 0 consumo dos aparelhos domésticos). As 13 horas, para aqueles que se encontram na frente da tela, considerando as regides € as categorias sociais pelos seus gostos tradicionais (agricultores, comerciantes), a’TF1 optou por apresentar um telejornal, muito diferente daquele das 20 horas, centrado no consumo e valores ligados a terra. A France 2, no inicio de 2004, fez uma aposta inversa, propondo uma férmula sew /ook, a meio caminho entre telejornal, magazine ¢ falk-show, em um esforco de renovacio, sem duivida louvavel, mas pouco condizente com o publico disponivel. A noite, em contrapartida, todos os ptiblicos ¢ todas as idades esto reunidos em frente a pequena tela: assiste-se 4 televisio Francois Jost 87 em familia. Fi inconcebivel, nesse caso, a exibicio de um programa dissensual, que provocaria disputas entre pais e filhos. O progra- mador escolhe um /ess-objectionable-programme, como dizem os americanos, sabendo que a arte da programacio nao é selecionar o melhor programa, mas 0 menos pior, como diz o diretor de programagio da ‘TF1 (Fonnet, 2003, p. 19). Esse principio permite responder, de antemao, a esta questo reiterada: até onde ira a televisdio com seus desvios exibicionistas? Ela ird até onde as familias 0 permitirem. No inicio dos anos 90, a extinta TV 5 cometeu 0 erro de programar para terca-feira 4 noite, véspera do dia de folga das criangas, um filme erético, 0 que Ihe acarretou a perda de:todos os seus ptiblicos. Pela mesma razio, os programas sexy, muito numerosos nos anos 90, sumiram das emissoras. O grande mérito da primeita temporada de Loff story foi tet reunido as familias. Damesma maneira, Siar academy, fazendo os jovens cantarem muisicas do passado, reuniu dois publicos tradicionalmente fragmentados nas emiss6es de variedades. O custo do programa deve, certamente, adaptar-se também 4 quantidade de puiblico dispontvel ¢ aos rendimentos publicitarios afetidos. O maior equivoco de um programa como Mera pour linfo (2003-2004), do Canal +, foi o de custar muito mais caro do que as vantagens que lhe trazia sua audiéncia. ° Programas fragmentados vs conténuos: pata captar o maior numero possivel de telespectadores, no momento em que os membros da familia retornam 4s suas casas, frequentemente em horas pouco diferentes, as emissoras exibem no hordrio nobre programas com sequéncias curtas, oferecendo ao telespectador um maximo de televisio possivel (pode-se assistir 4 emissdo ja em curso). Em contrapartida, uma ficgéo longa é mais adaptavel as faixas horarias em que o ptiblico ja est4 presente, quando o objetivo estratégico é impedir o telespectador de zapeat (quet-se conhecer o fim de um filme, mesmo quando ele é ruim). ° Programagéo horizontal e teasing a televisio de hoje teane duas caracteristicas que, até pouco tempo, eram consideradas 88 COMPREENDER A TELEVISAO opostas: a recorréncia da programagao ao longo do dia e da semana ¢ a fluidificagao da grade, As emissdes, hoje, devem, ao mesmo tempo, adaptar-se 4s mensagens publicitarias e de autopromogio e preservar os telespectadores, que sao convocados incessantemente para novos enconttos (dai a repeticfio das formulas como em seguida, a seguir etc.), Os manuais de roteiro ameticanos costumam dizet que uma ficcio deve ter tantos atos quanto intervalos publicitatios. Esse principio patece ter invadido toda a televisio comercial: as emissdes de fluxo devem conhecer tempos fortes que deixam o telespectador 4 espera da sequéncia seguinte e o impedem de ver 0 que se passa em outro canal, por medo de perder precisamente essa sequéncia. As emiss6es de telerrealidade que tém por base a exclusao compreenderam bem isso: s6 apresentam os nomes dos excluidos depois do interyalo publicitério. Mas esse principio de ‘easing, de aliciamento, tem também suscitado novos formatos de emissdes, fundados na contagem regressiva: as 100 melhores cangées, os 100 melhores momentos da televisao, a grande classificaciio dos anos 80 etc. O telespectador, atraido por esse tipo de emissio, fica cativo simultaneamente pela promessa de que o que ele ir4 ver é melhor do que aquilo que ele esta em vias de assistit ¢ pela cutiosidade de conhecer © ganhador, dois princfpios que comprovam, no caso, sua eficécia. * Programagao vertical e heréis recorrentes: se a grade se torna tigida no curso das décadas, é certo que a fidelizacao é fundamental para a emissora que promete um publico determinado, em quantidade ¢ qualidade, aos anunciantes, As séries respondem a essa necessidade econémica, propondo aos telespectadores a redescoberta de herdis que acabam por dar a impressio de serem conhecidos como familiares. Tanto isso é verdade que os herdis televisuais sao hoje também definidos por sua situacao familiar. A chegada da telerrealidade deu continuidade e amplitude a essa estratégia de duas manciras: de um lado, favorecendo a sensagao de familiaridade com os desconhecidos observados em seu cotidiano; de outro, multiplicando os encontros com seus opostos proximos. Loft story foia primeira emissio a se desdobrar em diversos formatos 89 (resumo cotidiano no acesso de horiirio nobre, espeticulo no horirio nobre, magazine no fim do dia, citagdes em diversos programas etc.). Com isso se construiu uma fidelizagio nao mais a faixa horaria, mas A propria emissora, * Mundo da publicidade, mando dos programas: todos os programas nio se prestam da mesma maneira 4 insergio publicitatia, ‘o que leva, como se acaba de ver, a esttututagao dos programas em fungio de sua interrupgao pata os spots. No entanto, a ptesenca da publicidade pode também ser chocante quando 0 contetido de uma emis: io esta muito distante do consumo. Como separar uma emissio sobre a miséria na Africa subequatorial das publicidades que clogiam as qualidades de um iogurte light ou de um novo perfume? Para evitar esse choque semintico, a TF1, excepcionalmente, abdica de todo encarte comercial. Mas, no dia a dia, essa esttatégia nao pode ser adotada. Em consequéncia, as emissoras sao levadas a acolher, cada vex mais, os programas pensados em fungio dos anunciantes. Hssa foi a origem da soap opera, mas € hoje um princfpio geral: Lof? story, com seus jovens cuja tinica preocupagio é 0 cuidado com seus corpos, a comida, a seducio, presta-se mais que qualquer outra emissio aos spots voltados aos produtos de consumo; Star academy ficou conhecida por criar um espaco para a Vivendi Universal, a maior empresa de discos, que fez multiplas publicidades de seus artistas; Jai décidé de maigrir € um bom suporte para os produtos Aght, ¢ Le pensionnat de Chavannes, patrocinado pelos cadernos Clairefontaine, coloca adolescentes nas condigées de uma escola dos anos 50. Essa continuidade semintica entre programas ¢ publicidade é ainda mais importante no Brasil, porque af a publicidade pode interferit no proprio interior das emissdes, como © merchandising (Castro, 2006, 2007). 4.4 PROGRAMACAO E IDENTIDADE DAS EMISSORAS Uma emissora é, a0 mesmo tempo, uma empresa, regida por uma légica cconémica; uma instituiclo, voltada a missdes no 90 COMPREENDER A TELEVISAO espaco piiblico; e uma marca, em concorréncia com outras emissoras, via seus programas € programacao. Essas trés instancias interferem, cada uma a sua maneita, sobre a programagio. A légica de empresa dita as escolhas dos programas pata a emissora, Se Leff story foi lancado pela M6, por exemplo, é porque uma tal inovaco seria um risco para uma emissora lider como a ‘TFI, que, na época, prometia a seus anunciantes 40% da audiéncia ‘no horario nobre. Na maior parte dos paises, os derivados do Big brother foram inicialmente lan¢ados por emissoras que podiam correr © tisco, como Veronica, nos Paises Baixos; RTL9, na Alemanha; ou Télé5, na Espanha, O desafio s6 podia ser benéfico para uma Pequena emissora, mas ele talvez representasse um fracasso pata a TFI. Segundo essa mesma légica, a'TF1 nio mantém uma emissiio que nao cortesponda imediatamente a seus objetivos de audiéncia, A l6gica da instituigao pesa também sobre a compra ou a produgao de um programa por uma emissora. Se custou pouco para a TF1 desprezar a tevé-lixo no lancamento de Loft sory para, alguns meses mais tarde, comprar todos os seus formatos, o mesmo vale para tevé publica. O caderno de encargos de 2009 proibe a difusiio de programas de telerrealidade, género que ela ja havia julgado contratio A sua obrigacio de respeito pela pessoa humana ¢ sua dignidade e 4 setiedade no tratamento da informacao e dos problemas da sociedade, na luta contra as discriminacées e as exclusdes de todos os tipos. Ao mesmo tempo, na medida em que as emissoras publicas se ditigem por dircito a todos os piblicos, clas nao podem mantet a mesma coeréncia em relagio aos programas que uma cadeia privada. Se a TF1 se posiciona como um canal que defende o telespectador-contribuinte, com programas como Combien ¢a cottte?, Sans aucun doute etc., fica dificil para a France 2 adotar algum posicionamento que contente apenas uma parte do publico, mesmo sendo ele majotititio. Recusando enderegar-se ai parte mais conservadora do publico disponivel, devido ao desejo de atingir um modelo ideal de telespectador, curioso por todas as infotmacées, FRancors Jost ” a France 2 tem dificuldade de descobrir um formato de telejornal para o meio-dia. ‘A logica de marca, enfim, impulsiona as emissoras a escolherem programas coerentes com sua imagem €, teciprocamente, a construirem a imagem da emissora, seja ela privada ou publica, comercial ou nao. Essa é, com efeito, a questo central a ser resolvida ada programa constitui a imagem da emissora pelo programado: e a imagem da emissora semantiza cada programa, de tal modo que assistit ao mesmo programa em duas emissoras diferentes ndo tem o mesmo sentido, Em tempos de globalizacdo, essa equagio é mais dificil de resolver, pois as emissoras do mundo inteiro tendem a escolher os mesmos formatos. As solugées dependem muito largamente das caracteristicas da emissora: generalista vs tematica; lider vs candidata a lider. Até onde ira a telerrealidade? Por que falta imaginagio na ficgio francesa? Por que a multiplicacio dos best of Todas essas questées, colocadas petiodicamente nas midias, nio encontram tespostas pertinentes se no se articulam, de uma mancira ou de outra, com as restrigdes que a rentabilizagao da grade exerce sobre a programacio. Se essa nao desculpa todas as escolhas feitas pelas emissoras, permite ao menos compreendé-las. Francors Jost 5. EM NOME DO REAL 93 Considerar que os génetos televisuais reenviam a trés mundos (capitulo 3) possibilita ultrapassar as segmentagées tradicionais entre informagao, ficcio ¢ divertimento. Muitos outros géneros, além do telejornal, pretendem, com efeito, mostrar o mundo exterior ou dele falar: documentirios, magazines, zalk-shows, telerrealidades, docuficgdes e outras docurrealidades; ¢ essa pretensio de difundir 0 mundo exterior, entretanto, nem sempre resiste 4 anilise, visto que ela nao passa, como se viu, de uma simples promessa. Fla testemunha, isto sim, a obstinagio continuada da televisio de obter sua legitimidade através da relagao que mantém com a realidade. Tudo se passa como se as midias tivessem progtessiva- mente se atribuido uma soberania particular sobre cada um desses mundos: a fie¢ao para 0 cinema; a realidade para a televisio; 0 hidico pata o music-hall Na base dessa construcio sobre a crenca televisual, encontra- se a transmissao diteta. A midia televisual mal havia nascido e¢ ja continha essa promessa de autenti- cidade: uma promessa de con- templar a verdade nua (capitulo 1). Representando quase 40% das 94 CCOMPREENDER A TEI transmissdes de 1960, o direto estendeu seu império bem para além da mera informagio, impregnando todos os génetos, ficticios ou lidicos, de uma veracidade suplementar, quer se tratasse dos primeiros dramas ou do recente Star academy. Toda abordagem da realidade televisual deve, dessa forma, comegar pela transmissio direta. Entretanto, nada indica que cla seja portadora da quantidade de informacio que se acredita, como bem mostra o exame da transmissio do 11 de setembro, Também nio é certo, por outro lado, que se saiba bem qual é 0 valor informacional da imagem, o que, na sociedade, é particularmente aparente nos debates sobre a violéncia das imagens. Essas interrogacées so preliminarmente necessarias na andlise do telejornal ¢ das inovacdes recentes trazidas pela telerrealidade. 5.1 O DIRETO COMO FUNDAMENTO DO ACESSO AO REAL e Um conceito frequentemente mal definido Embota a defini¢ao do direto nao apresente nenhuma ambiguidade, é ainda bastante comum confundi-la com aquilo que cla nao é. Regularmente, jornalistas ¢ apresentadores mantém essa confuséo a seu respeito, como bem testemunham as primeiras palavtas de Benjamin Castaldi, por ocasidio do langamento de Lift story: Eston extremamente feliz, de estar com vocés ao vivo na M6 para o Jancamento de Loft story (..) Seis rapazes, seis moras, que absolutamente nao se conbectm, iro viver juntos uma exxperiéncia tinica, aquela de viver totalmente separados ¢ isolados do mundo escterior durante 70 dias, em uma casa, que ramos explorar agora, ao vivo. Observem essas imagens... Aé esté, era ontem & noite, Foi filmado.... Se a primeiza alusdio ao direto define bem uma relacio de simultaneidade entre o momento em que o programa se desenrola e o tempo do telespectador, a segunda parece mais obscura: © animador quer reafirmar o estatuto da emissao ou sublinhar uma relagio indicial, entre toda imagem video € seu objeto, o que faz duyidar da precisio, visto que as imagens do Jy? foram filmadas Francots Jost 95 ontem @ noite? Em qualquer uma dessas possibilidades, nao € raro, sobretudo nessa época da imagem de sintese, empregar-se a expressiio direfo no sentido, muito solto, de uma ligacio existencial com o teal. Essa acep¢ao foi encorajada pela importagao para a lingua francesa do termo five, que abrange, no universo anglo-saxio, o que se chama direfo, acentuando a dimensao do ao vivo do acontecimento retransmitido e, nao, a telacio temporal de simultaneidade entre o que esta sendo exibido na tela ¢ 0 telespectador. Os luséfonos, com a expressio ao 10, ¢ os hispanicos, com o on vivo, partilham esse mesmo entendimento. Ora, se essas expressdes sao perfeitamente adequadas aos espetaculos ao vivo, na medida em que permitem sua oposicio A atmosfera fabricada no estudio de gravagio, elas deixam dtvida sobre a quantidade de tealidade bruta, suja, mal filmada, com seus movimentos de cdmera tremidos, superexposigdes ou desenquadramentos, liberada pelo diteto. © O que traz o direto? Essc imaginario nao coincide com a transmissio direta, nao preparada, do acontecimento mais importante desses tiltimos ano: o choque de um aviio com a primeira torre do World Trade Center, captado pela cimera da CNN, que supervisiona permanentemente a cidade de Nova Yorque. O plano fixo, perfeitamente enquadrado, dava aver um verdadeiro cartio postal de Manhattan, em que as torres ¢ 0 aviao em chamas se destacavam sobre um céu azul imaculado. Nao havia nenhum dos indices normalmente atribuidos ao direto. O trémulo, 0 tutvo sio 0 apandgio das imagens captadas ao vivo, que podem, naturalmente, ser registradas. Poucos diretos sio exibidos pela televisio sem ter sido nao somente ptepatados, como programados. De vinte anos para cA, os registros surgidos inespetadamente 2o vivo sobre a telinha contam- se nos dedos de uma mio (0 empurriio trigico no Estdio de Heysel, o desmoronamento das tribunas do estadio de Furiani, 0 atentado 96 COMPREENDER A TELEVISA nos Jogos Olimpicos de Atlanta, 0 11 de setembro...). Na maior patte do tempo, a emissao ao vivo é objeto de uma preparagio meticulosa, seja ela repetida, como nos dramas dos anos 50-60; seja cla programada, como nos grandes acontecimentos (sobre esse assunto, ver Dayan e Katz, 1996); seja ela reiterada cotidianamente, como no telejornal. Essa preparacio simultinea da cena (os movimentos na tealidade) e do enquadramento (os movimentos no plano ¢ na composi¢io da imagem) faz com que, na maioria dos casos, nao seja mais possivel diferenciar, em um primeiro olhar, uma transmissio direta (niio se pode agradar a todo 0 mundo) de uma emissio gravada (tudo é ensaiado). Se, na primeira, abreviam-se os tempos mortos para fazer com que a emissio tenha a dutagio combinada; na segunda, hé igualmente montagem: nela como na outra, todos os movimentos de camera foram previstos € os enquadramentos transmitidos a cada um dos operadores de camera para serem selecionados, certamente em tempos teais, mas segundo um encadeamento ja estabelecido. O direto nao é, portanto, index sui, signo dele mesmo; ele nao se designa como tal. Acontece, em certos casos, que os programas inscrevem em um canto da tela a expressao direfo (ao vivo), mesmo que a emissfo seja gravada, ao menos em patte. O telespectadot sé se da conta ao verificar a presenca de um mesmo cantor, no mesmo momento, em duas emissoras diferentes ou em uma emissora e em um teatro (¢/ capitulo 4). Se uma tal promessa pfagmatica é benéfica para a emissora, é porque ela é portadora de uma promessa ontoldgica de autenticidade — 0 telespectador cré que o direto é a mais auténtica das maneiras de restituir o real — porque sao necessatias numerosas verificacdes exteriores & emissio, imtiltiplos saberes laterais, para colocar em questao essa promessa. Se as imagens em directo veiculam informagdes preciosas para o telespectador, como ele pode duvidar dos comentarios jornalisticos? Mas os recentes acontecimentos histéricos, transmitidos nessas condigées, permitem que sejam colocadas duvidas a esse respeito. Os mais velhos recordam-se das referidas Francoss Josr 97 reportagens em direto da revolugao romena'®, nas quais 0 jornalista nfio chegava a ultrapassat 0 estigio da descrigio (bd wm tangue, um caminbéo... uma situacao de atentadoy; os mais jovens recordam-se da incompreensio provocada pelo choque do primeiro aviio nas torres de Manhattan: acidente? catastrofe? Nesse estagio, ninguém sabia como interpretar as imagens, a ponto de certos pensadores chegarem aafirmar que ela s6 informa a partir de uma segunda leitura. Téy-se exemplos cada vex que se revisam as alualidades ¢ se veem as imagens falvear os discursos que se enquadram (Dayan, 2004, p. 177). Em que medida se pode dizer que a imagem informa? Essa é uma questio preliminar a qualquer anilise do telejornal. 5.2 TELEJORNAL e Em que sentido falar de informagao? Se, neste 16 de dezembro (petiodo de inverno na Franca), no momento em que estas linhas sao esctitas, o telejornal das 13 horas da ‘TF1, que tradicionalmente comega pela meteorologia, declara que 0 tempo sera nublado e frio nas proximas horas, essa previsio nfo diz muita coisa: é suficiente levantar os olhos, olhar pela janela de onde mal se vé o edificio da frente, pata cret nas palavras do apresentador. Em outros termos, a informagao € muito pobre, assim como provavel. Em contrapartida, se o mesmo amincio interviesse nos meses de verio, haveria alguma raz4o para prestar atencio e esperar, com uma ligeira inquictude, as explicagées dos experts de todos os tipos (meteorologistas, climatologistas, gedgrafos etc.) sobre a razio de haver uma mudanga climitica tio incompreensivel. Esse simples exemplo atesta que informacio ¢ significacio sio duas realidades proporcionais: quanto mais um enunciado é \ Supostamente porque, embora ctiquetadas com o direto, as imagens eram reportadas 4 televisio romena que as difundia com uma diferenga de tempo em relagao 20 acontecimento. 98 COMPREENDER A TELEVISAO compteensivel, isto é, quanto mais a significacao é clara, menos ele informa; quanto menos um enunciado tem significacio, mais ele informa, Como escreve o teérico da cibernética Wiener (In Eco, 1965, p. 145): wm elemento de informagdo, para contribuir com a informagdo geral da comunidade, deve diger alguma coisa de substancialmente diferente do patriminio da informatio, jé colocado & disposigéo da comunidade, M esse respeito, fildsofos ¢ linguistas estio de acordo, quer se trate de J. R. Searle, definindo a asserciio por uma regra de cortesia, segundo a qual @ verdade da proposicdo expressa ndo deve parecer evidente nem ao anditério nem ao locutor no contexto da enunciagéo (1982, p. 105), ou de Sperber e Wilson, que consideram que « informagéo pertinente 6 aguela que melbora 0 conhecimenta do mundo dagueles que comunicam (1989). Essa proporcionalidade entre informagio e significagio pode set formulada também em termos de probabilidade: quanto mais uma informagio é provavel, mais cla é previsivel — como 0 antincio de um tempo frio no inverno —, mais cla é compreensivel, mas menos ela informa no verdadeito ¢ prdptio sentido (ela reitera 0 que se ja se pensava); quanto menos ela é provavel, maior é seu valor informativo. A esse tespeito, cabe lembrar 0 caso de uma jornalista da RIBF que sustentava que o fato de um pequeno grupo de pessoas ter encontrado trabalho depois do antincio de uma queda do desemprego era uma informagio. O principio muito simples aqui exposto vai evidentemente ao encontro de uma tal afirmagio: o que a imagem traz a respeito das estatisticas sobre a situagao do trabalho? Nada que elas jé nao contenham: se o desemprego baixou, duvida-se que se encontrem casos particulares pata ilustrar esse propésito geral. Trata-se do que Kant tetia chamado de julgamento analitico, ou seja, um julgamento que resulta de uma tinica andlise da proposicao inicial. Nesse caso, a imagem nao informa, porque sua mensagem ja € conhecida anteriormente. Se, em contrapartida, no momento em que se acaba de assistit a uma série americana, o programa é interrompido pelo plano de um aviio que cai em uma torte, a imagem € tio improvavel que ela transmite um maximo de Francots Jost 99 informagées"". ‘Tanto no se compreende a significacio que se é levado a levantar hipdteses ou a escutar aquelas apresentadas pelos experts... Se, entretanto, é reapresentada varias vezes, cla perde seu valor informativo; se o telespectador fica colado 8 tela, nfo é mais por razOes informativas, mas, sem diivida, pela emocio que experimenta. © Lugar do saber na interpretagao do visivel Fala-se tanto do 11 de setembro, que se acaba por esquecer como os fatos chegam pelo canal televisual. Nao obstante, trata-se, para o tedrico da imagem, de um verdadeito laboratério semistico, que merece uma visita. Frente a essa realidade demasiado plena de informacio, como reagem as testemunhas oculates? Muito curiosamente, elas nao tiveram consciéncia de ter visto os avides comertciais. Alguns referiram um jato privado (France 2, 15h43); outras, um Falcio (TF1, 15h43). Essa dificuldade de determinar o tamanho do aviao era mais patente para o telespectador ao qual chegava apenas uma imagem, Nao é senfio de um outto lugar que esse aspecto da imagem foi retido por David Pujadas, o apresentador da France 2: a primeira hipétese explicativa que lhe vem a cabega, as 15h37min, apoiou-se na evocagao de um outro meio de transporte, uma caminhonete, que teria explodido no estacionamento das torres, por ocasiao do atentado de 1993 (a retransmissio comega as 15h33min). Quer se tratasse de testemunhas ou de jornalistas, as pessoas presentes no lugat ou os espectadores profissionais, todos testemunharam a dificuldade de sintetizar as informagées visuais, de conferir-lhes uma significacao univoca; alguns prefeririam até se : do ousamas refugiar no imagindrio para sair desse impasse semantic imaginar que é a bolsa. Imaginemos a Bolsa com dois avibes (..). Pode-se imaginar que se contam com foridos as dezenas (Daniel Bilalian). Ou ainda: ‘Tem-se dificuldade em imaginar que essas imagens sejam bem reais, que elas "A TEI exibiu, em 11 de setembro, exatamente antes do em diteto, Le mari d'un autre ea France 2; Commissaire Lea Sommer,

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