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_ Compreender a Televisao
iil) i0 livro, centrado no ponto de vista do
ielespectador, desenvolve um percurso
Conceltual que vai do entendimento da midia
telavisdo, considerada por inteiro; passando
pela concepedo dos trés mundos — real, fictivo
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chegar ao exame da programagao,
especificamente a francesa; e tudo isso para
mostrar ao telespectador o que ele precisa
para compreender 0 porqué e 0 como dos
programas a que assiste.
Dessa forma, pode-se dizer que
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em que Francois Jost, tomando como referéncia
a televisao francesa, apresenta suas
concepgoes tedricas sobre essa midia e sobre
0 modo de funcionamento das emissoras.
Mas, acima de tudo, sua leitura é instigante,
pois desafia o leitor a fazer adaptagoes e
paralelos com a realidade do pais, levando-o
a uma melhor compreensao acerca das
articulagdes ¢ inter-relagdes possiveis dentro
(ofOMTA I cles(On Cella S10
Maria Lilia Dias de Castro
Compreender a
televisaoCONSELHO EDITORIAL DA
COLECAO ESTUDOS SOBRE © AUDIOVISUAL:
Tténia Maria Motia Gomes
Maria Lilia Dias de Castro
Elizabeth Bastos Duarte
José Luiz Braga
Apoio
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‘Coutts yfeoratighe % es
1960
Sobre 8 audiovisual
Compreender a
televisao
Francois Jost
Tradugio
Elizabeth Bastos Duarte
Maria Lilia Dias de Castro
Vanessa Curvello
3
Editora Sulina
SISBIN-UFOP
ng.
6.© Editora Meridional/Sulina, 2010.
Capa
Danni Calisto
Projeto grifico ¢ editoragio
Vania Moller
Revisora
Caren Capaverde
Tradugio
Elizabeth Bastos Duarte, Maria Litia Dias de Castro e Vanessa Curvello
Editor
Luis Gomes
Dados Intetnacionais de Catalogagéo na Publicagio CIP
Bibliotecitia Responsavel: Denise Mari de Andrade Souza - CRB 10/960
J84c Jost, Francois.
Compreender a televisio / Francois Jost. Teadugio de Blizabeth
Bastos Duarte, ia Lilia Dias de Castro ¢ Vanessa Curvello
Porto Alegre: Sulina, 2007.
168 p. ~ (Colegio Estudos sobre 0 audiovisual)
ISBN: 978-85-205-0583-0
1. Televisio. 2. Meios de informagio. 3. Communicagio de massa
4, Midia, 5, Televisio — Indiistria Cultural, T. Titulo,
“DD: 070.1
CDU: 316.74
654,19
659.3
‘Todos os direitos desta edigio reservados
4 Eprrora Mrriptonan Lrpa.
svaldo Aranha, 440 cj. 101
“ep: 90035-190 PortoAlegre-RS
‘Tel: (Oxx51) 3311-4082
Fax: (Oxx51) 3264-4194
wwweditorasulina.com.br
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Outubro/2010
Iwrresso NO Brasi/PRINTED IN BRAZIL
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SUMARIO
PREPACIO
APRESENTAGAO
INrRoDUGAO
1, OpsTACULOS A ANALISE
1.1 Julgamento de valor: televisio como objeto mau
Uma midia “suja”
Indistria culturak fonte de embrutecimento
Influéncia televisual: uma midia manipuladora
1.2 Obstaculo epistemolégico: cinema como modelo
Uma mesma linguagem?
Eimissio: um equivalente do filme?
1.3 Obstaculo matetial: efemetidade da midia
Programas de estoque, programas de fluxo
Obras € nao obras
Lugares da memoria
2. O QUE E A TELEVISAO?
2.1 Antes da televisio: os sonhos da tele-visao
Um sonho pré-mididtico
Uma midia sonhada
Da invencio a midia
2.2 Hé uma linguagem televisual?
Direto, autenticidade, cotidianidade
Intimidade
Uma sintaxe televisual?
2.3 Arte de programar
2.4 Identidade das emissoras
Emissora como marca
Emissora como responsavel pela programagio
Emissota como pessoa54
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2.5 O que ser da televisdo amanha?
Multiplicagao dos canais, fragmentagiio do
publico
Multiplicagao das telas e mobilidade
Autonomia do telespectador
3. PARA ALEM DA IMAGEM, 0 GENERO
3.1 Mundos da televisio e tom das emissGes
Mundo teal
Mundo fictivo
Mundo hidico
Tom das emissdes
3.2 Papéis estratégicos do género
Diferentes usos do género
Promessas dos géneros
Mistura de géneros, um novo género?
4, PROGRAMAGAO
4.1 Da televisio da oferta 4 televisio formatada
Légica da obra
Formato
4.2 Grandes indicadores de medida de audiéncia
Audiéncia e parte de audiéncia
Do “todo publico” ao alvo
4.3 Légicas das grades
Programacao vertical, programacao horizontal
Repercussdes da programacao sobre os programas
4.4 Programacio e identidade das emissoras
5. EM NOME DO REAL.
5.1 O direto como fundamento do acesso ao teal
Um conceito frequentemente mal definido
O que traz 0 direto?
5.2 Telejornal
Em que sentido falar de informacao?
Lugar do saber na interpretacio do visivel
Violéncia das imagens ou violéncia do mundo?
Ideologia do telejornal
5.3 Telejornal e telerrealidade
‘Telejornal como modelo da tealidade
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161
Telerrealidade, modelo do telejornal
6. FIc¢AO E TELEVISAO
6.1 Concepcées erréneas da ficcio
Ficcio como mentira
Ficgdo como narrativa
6.2 Ficgiio como patasita do real
Indices de ficcionalizacio
Mundo ficcional
Acessibilidade da ficgio
6.3 Ficgio na grade
Ficgao e tempo social
Ficgao televisual ¢ ficgio cinematogrifica
Tdentidade da emissora
7. MuNDO DO JOGO
7.1 Mundo hidico e jogos
Tépico dos jogos televisuais
Jogo e divertimento
Por que 0s jogos?
7.2 Jogos de perguntas ¢ respostas
7.3 Jogos de papéis
De Donjons et Dragons a Fort Boyard
A telerrealidade como jogo de papéis
7.4 Fronteiras do lidico
8. Frrapas DA ANALISE,
8.1 Escolha do angulo e construgao do objeto
Qual olhar?
Programas de contexto
1) Promessas da emissora
2) Anilise do estatuto genérico da
emissao
3) Recepcao genética flutuante
8.2 Um corpus?
8.3 Espacos de andlise
BIBLIOGRAFIAFrancois Jost
PREFACIO
PRIMEIRAS PALAVRAS
Maria Lilia Dias de Castro
Dando continuidade as
teflexdes propostas pelo professor
e pesquisador Frangois Jost em Seis
ligves sobre televisdo (Sulina, 2004), €
dada a aceitagio do livro pelo
publico interessado nos estudos de
televisio, é com prazer que, neste
momento, ttazemos ao leitor a
traducio de Compreender a televisio.
Desde seu langamento, em
2005, o livto ocupa uma posi¢io
tinica no cenario dos estudos televi-
suais, em todo o mundo, pela pon-
tualidade do tema e pela lucidez de
visio, utilizadas pelo professor Jost,
acerca da tealidade televisual, em
especial no universo francés.
Para esta traducio, ¢ em
virtude da proximidade do autor
com a televisio brasileira, foram
feitas alzumas complementagoes, 0
que enriqueceu ainda mais a
reflexdio proposta.
Olivro, centrado no ponto
de vista do telespectador, desen-
volve um percurso conceitual que
vai do entendimento da midia
televisio, considerada por inteiro;
passando pela concepgao dos trés
mundos — real, ficctivo ¢ lidico —10 COMPREENDER A TELEVISSO
que fundam a nogao de género; até chegar ao exame da programagio,
especificamente a francesa; e tudo isso para mostrar ao telespectador
do que ele precisa para compreender 0 porgué e 0 como dos programas
a que assiste.
Na construg&o desse percurso, o livro apresenta oito
capitulos, assim distribufdos:
O capitulo 1, Obstéculos @ andiise da televisdo, centra-se no
exame das especificidades envolvidas em uma andlise televisual,
discutindo desde julgamentos de valor, até questdes epistemologicas
e materiais, sobretudo em se pensando a televisio como uma midia
que articula cotidianamente a gfémeridade de um fluco na regularidade
de tempo social,
O capitulo 2, O que éa televisao?, volta-s
para a compreensio
do que verdadeiramente se entende pot televisio, na perspectiva da
historia e de sua dimensao midiatica, com logica propria, linguagem
especifica e instituigdes (emissoras) que a constituem.
O capitulo 3, Para alt da imagem, o género, reforca a questao
do género, relacionado ao conjunto de emissdes que possuem
ptoptiedades comuns, mostrando que ha uma l6gica subjacente que
permite agrupar a pluralidade dos géneros em torno de um pequeno
mimero de eixos. Na sequénc
, mostra que, para distingui-los, é
necessario recorrer 4 nogao de mundos — real, ficctivo, lidico —, os
quais servem de fundamento a uma classificagao racional dos géneros.
O capitulo 4, Programagio, toma como ponto de partida a
caracteristica fundamental que a televisio possui de estruturar
a temporalidade e a vida do telespectador. Para essa teflexio,
destaca-se quatro questdes em especial: a légica da oferta, o conceito
de formato, o indicador de audiéncia e a relagio com a publicidade.
O capitulo 5, Em nome do real, centraliza a reflexio em torno
do tratamento que a televistio faz da realidade, discutindo o papel
das transmis
des diretas, sobretudo pela questo de simultancidade
entre 0 momento em que o programa se desenrola e 0 tempo do
telespectador. Ressalta, ainda, a fungao do telejornal ¢ sua relagio
com a tealidade e com a telerrealidade.
eS
wy
Francors Jost 1
© capitulo 6, Fitzao e televisito, centra-se na discussio em
torno do entendimento acerca de fic¢io (como mentira, como
ita do real), para, na sequéncia, analisat os
narrativa, como paras
indices de ficcionalizagao, 0 mundo ficcional e os critétios de
acessibilidade da ficgio. Por fim, examina a relagio da ficcao dentro
da grade das emissoras.
© capitulo 7, Mando do jogo, enfatiza aquele mundo
intermediatio entre as regras de ficgao € o espaco da realidade. Nesse
ponto, introduz a nogao de jogo, com os quatro tipos propostos
por Caillois: iinx, aléa, dgon e mimicry, e busca telaciona-los com os
programas da grade.
O capitulo 8, Evapas de andlise, propde-se a trazer a questao
referente ao papel do estudioso de televisio, ressaltando, de antemao,
a diferenga entre anilise e critica. Nesse sentido, apresenta alguns
tragos que devem ser considerados pelo analista para, em seguida,
propor um exemplo de anilise.
Nesse percurtso, é importante ressaltar que, quando chama
a atencao para a necessidade de as emissoras buscarem melhorar
seus indices de audiéncia, Frangois Jost rediscute a funcionalidade
dos programas, as logicas das grades e, sobretudo, a relagio da
televisio francesa com 0 mundo publicitario, mostrando como os
programas sfio pensados em fungi dos anunciantes, Os exemplos
que ele cita demonstram muito bem 0 quanto a insercao publicitaria
resulta, basicamente, da conexio com fatos tratados no programa,
da ptoximidade com 0 tema ¢ da ptojecao (perfil, faixa evdria) acerca
do telespectador e provivel consumidor do produto,
Esse testemunho deixa clara a diferenga com a realidade
brasileira em que essas insergdes ocotrem, muitas vezes, de forma
desmedida, sobretudo porque, no Brasil, a televisdo é centralmente
comercial, 0 que tem acarretado a apropriagio da linguagem
publicitéria, a fim de incorporar, ao fazer televisual, o jeito glamotoso
que sempre foi a matca obstinada da publicidade, Além disso, a
televisio brasileira permite a insercio de anunciantes e/ou de
patrocinadores no interior dos programas, chegando-se, emCOMPREENDER A TELEVISAO
alguns casos, até, a identificar a interferéncia desse anunciante na
propria emissio.
Com as telenovelas, entio, esse movimento é mais explicito.
A Globo, por exemplo, chega a langar, em boletins prdptios aos
anunciantes, a sinopse de novelas a serem veiculadas, projctando
possibilidades de insercao em seus nucleos para atrair o anunciante
para suas tramas.
E isso porque a telenovela mudou de estatuto: deixou de
ser apenas a representacao do sonho, da recompensa, do encontro
do amor verdadeiro, da vinganga, para ficar mais proéxima do
telespectador. Hoje, ela é assunto das pessoas, é conversa da familia,
étema de comentarios em reunides sociais, ¢ é 0 elemento norteador
da programacio.
Como, em principio, a telenovela é construida em cima da
fantasia, a fala publicitaria se encaixa na trama sem perder nunca
sua telagdo com o teal, tornando o discutso mais recheado de valores.
Eo caso especifico do merchandising, e ai se incluem todas as variacdes
que o formato possibilita: a colocagao explicita do produto na trama,
com referéncia direta no texto, ou a simples posigio no cendtio,
como pano de fundo da movimentagio dos personagens: nao é
apenas alguém que testemunha as vantagens do produto, é
detetminado personagem que, dentro da trama, tem uma conduta
de vida, expde seus sentimentos e suas ideias, representa valores e,
por isso, confere outra dimensao de sentido quando faz men¢io ao
produto.
Nada mais propicio, entao, a insergio publicitaria,
transferindo pata o telespectador as vantagens de determinados
produtos postos em cena, as agdes de natureza pedagégica ali
tratadas, os temas de mobilidade ¢ de repercuss%o social. H uma
forma de mostrar, pela linguagem, como os meios projetam suas
verdades, como fazem para dizer 0 que dizem, e como a sociedade
convive com esses valores. Sio movimentos que atingem o
telespectador, sobretudo naquele momento de distracio e de
descontracao diante da telinha, além de renderem benefit
FRaNcots Josr
anunciantes, garantirem visibilidade social 4 emissora e, ainda,
segurarem a audiéncia pretendida.
Nesse contexto, como tudo é regido pelas leis do mercado,
pelo jogo de concorréncia, confundem-se as formas e os espacos
de divulgacio, tudo para garantir a estabilidade econémica da
emissora e, em verdadeiro citculo vicioso, assegurar mais reccita,
mais investimento ¢, assim, mais audiéncia. E dessa forma que as
emissoras fortalecem a sua matca, na telagao com 0 concorrente;
consolidam a instituigao, por se mostrar sensivel as questdes de
interesse da sociedade; e dao sustentabilidade 4 empresa, que se vé
regida pela légica do mercado.
Essa, na verdade, é a configuragio na televisio no Brasil:
de um lado, a divulgar produtos de outros anunciantes (na condicao
de veiculo); de outro, a assumit a posi¢ao de anunciante em relacio
a seus proptios produtos (na condigio de empresa). Seu objetivo é,
sobretudo, fornecer condicdes favordveis 4 manutencao de seu
negécio, garantida pelo aumento da audiéncia e pela obtengio de
margens comerciais que possibilitem os investimentos pata
atualizagio tecnolégica, pagamento de custos fixos e variaveis €
obtengao de lucros.
Dessa forma, pode-se dizer que Compreender a televisiio é um
liveo valioso em que Francois Jost, tomando como referéncia a
televisio francesa, apresenta suas concepcdes tedricas sobre essa
midia e sobre o modo de funcionamento das emissoras. Mas, acima
de tudo, sua leitura é instigante, pois desafia o leitor a fazer adaptagoes
© paralelos com a realidade do pais, levando-o a uma melhor
compreensio acerca das articulagdes ¢ inter-relagbes possiveis dentro
do universo televisual.APRESENTACAO
15
AAINDA ALGUNS
APONTAMENTOS INICIAIS
Elizabeth Bastos Duarte
Compreender a televisao
aptesenta, com a clareza ¢ a sim-
plicidade prdprias da maturidade
académica, as concepgées tedricas
de Frangois Jost sobre os mundos
que povoam a televisao. Esses
mundos, ofertados aos telespecta-
dores sob a forma de promessa,
constituem-se, segundo o autor, em.
categorias distintivas dos géneros
televisuais. Mas o livro vai além,
a par de suas proposicées tedricas,
descreve as légicas que presidem a
acao das emissoras, sistematizando
aspectos ptagmaticos referentes
ao funcionamento da televisio
e A sua interferéncia na vida
do telespectador.
Nesse petcurso de estru-
turacio tedrico-metodolégica, Jost
aponta a releviincia da definicao de
tom, a qual dedica a segdo 3.1.4
deste livro, distinguindo-a de sua
concepgio de mundos —teal, fictivo
€ idico, Segundo 0 autor: O fato de
uma emissao enviar aun mundo — real,
“fitivo o1 lidico — néo prejulga a maneira
como ela realiza esse ato. Da mesma
_forma como umm professor pode ser muito16 COMPREENDER A TELEVISAO
sério on privilegiar o humor, uma emissio pode se referir & realidade ou a fieeao,
sob warios tons (Jost, 2010).
Exemplifica com o caso de uma artista que, em uma mesma
semana, dé inuimeras entrevistas sobre o lancamento de um produto,
as quais se diferem entre si pelo tom caracteristico de cada programa.
Esse tom é também o que seguidamente distingue as ficgdes das
diferentes emissoras.
Assim, para Jost (2005, p. 40):
Nao se pode confundis, portanto, tom e mundo: ainda que um
animador permeie seu jornal de blagues (como o fez, em seu
tempo, Bruno Masure), isso nao é suficiente para classificar 0
telejornal sob o rétulo do mundo hidico.
Embora 0 tom seja uma categoria 4 qual recorrem os
profissionais, cle ainda é largamente negligenciado pelos pesqui-
sadores. Essas observacdes referentes ao tom interessam-me,
particularmente, na medida em que o processo de tonalizacio do
discurso vem sendo objeto de minhas investigagées ha bastante
tempo. Poucos estudiosos de televisto mencionam formalmente
essa questo, Embora Jost nao aprofunde, neste livro, sua concepgio
sobre o tom, fornecendo indicagdes metodoldgicas mais precisas
de como trata-lo, ele naio s6 reconhece sua existéncia, como tece
uma
série de consideragdes que sustentam e reforgam a conviccio
de que a situagao comunicativa televisual comporta, para além das
ancoragens de tempo, espaco, aspecto € atores, um outto dispositivo
sintatico-semantico, que pode set chamado de tonalizagio do
discurso. Esse dispositivo seria responsavel pela conferéncia de um
ponto de vista, a partir do qual sua narrativa quer ser reconhecida
pelo telespectados, independentemente do plano de tealidade ou
do regime de crenca com que opera, visto que ... wma emissao pode se
referir d realidade on i fieco, sob varios tons (Jost, 2010). A tonalizacao é,
nessa perspectiva, uma forma especifica de enderecamento que
ganha muita relevancia no discurso televisual.
Francois Jost 7
Assim, foi a partir de afirmacdes como essas que se chegou
4 conclusio de que o tom no discurso televisual decorre de um
alargamento do sentido do termo — tal como € empregado por
linguagens isoladas, como a cromatica, a musical ou a verbal —,
sustentado pelo deslocamento da percepsao inicial ¢ imediata dos
tracos significantes responsaveis por sua expresso, em direio ao
seu contetido. Em textos complexos como os produtos televisuais,
a petcepcio do tom se da na ditegio inversa, do contetido A
expressio, sendo extensiva a totalidade da emissao.
O processo de tonalizagao tem por tarefa a atribuicio
estratégica de um tom principal ao discurso produzido ¢ a sua
articulacio com outros tons a ele correlacionados. No entanto, é
preciso tet presente que a escolha de um tom em televisio € uma
deliberacio de carater estratégico. Atwalmente, mais do que antes, no
inicio de cada emissao anuneie
se 0 tom que ir domind-la: se havera risos ¢
légrimas, ‘surpresas’, a revelardo de segredos ou da verdade (Jost, 1999, p.
28). Mais ainda, essa deliberagio sobre 0 rom confere ao produto
televisual um cardter interpelativo: acertat 0 tom, ou melhor, sua
expressio, implica que ele seja reconhecido e apteciado pelo
telespectador, Se isso nao ocorter, todo 0 processo de conferéncia
fica comprometido — nao obtém éxito, pois o tom se ditige,
necessatiamente, ao meio social. Ele supde um interlocutor virtual
ow atual que, a medida que é capaz de detectar 0 tom conferido a
um produto televisual, torna-se cimplice de seus enunciadores;
percebe sua proposiclio engajante; adere ao convite que Ihe é feito
pela instincia de enunciagio, Trata-se de um jogo que, mais do que
para fazé-lo refletir ou entreter-se, tem uma intencio estratégica:
manter o telespectador cativo. Ora, esse jogo ¢ demasiado astucioso
para ser apenas informagio ou mero entretenimento.
Como ¢ previsivel, a proposicao de um tom orienta-se por
um feixe de relagdes representadas pela tentativa de harmonizagio
entre o tema, o géneto/subgénero do programa, o puiblico a que se
destina € 0 tipo de interagio que a emissio pretende estabelecer
com 0 telespectadot, interferindo, do ponto de vista discursivo, na18 COMPREENDER 4 TELEVISAO
configuragio dos atores, do tempo, do espaco, bem como da prépria
organizagao narrative. Sua escolha nunca é neutra, procurando
sempre fazer jus a0 conjunto do real que quer dar a conhecer a
partir de um ponto de vista singular. Os tons podem combinar-se
entte si para dar corpo a um determinado programa televisual,
opetando sobre um fundo comum de discursos que compdem o
paradigma do subgénero.
Por outro lado, embora 0 tom, como afirma Jost, nao seja
uma categoria definidora dos géneros televisuais, visto que se pode
referir 4 realidade ou 4 ficcio sob diferentes tons, cada subgénero
televisual atualiza, enquanto expectativa social ou pritica de
audiéncia, um tom principal ou uma combinatéria tonal. Nao
obstante, no processo de realizagio de um subgénero televisual,
cada formato manifesta sua escolha tonal, expressa por uma
determinada combinatéria de tons, que passa a identificar o
programa, Dessa forma, a combinatéria tonal € trago distintivo entre
subgénetos e formatos, pois, embora as producées televisuais de
um mesmo subgénero apresentem, em principio, semelhangas tonais,
elas operam com determinadas combinagdes tonais que as
distinguem entre si, tornando-se sua marca registrada e atuando
como signo de diferenciacio com forte potencial fidelizador do
publico telespectados.
O processo de tonalizacio implica dois tipos de
procedimentos com vistas 4 harmonizacio e compatbilizacio das
combinatorias tonais, envolvendo movyimentos de: modulagao,
deslocamento ou passagem do tom principal aos tons comple-
mentares a ele relacionados e vice-versa, e gradago, aumento ou
diminuigio de énfase em determinado tom. Esses procedimentos
sustentam a eficacia das combinatérias
tonais, constituindo-se em
subtragées ou adigdes de tons, repetigées ou proposigées de
alteragdes tonais, pois possuem também uma fungio de autor-
regulacio, tendo em vista as relacdes e reaces do enunciatario frente
ao discurso enunciado. Como a produgao televisual se movimenta
basicamente entre dois objetivos fundamentais, informar e divertir,
Prancors Josr 1
que ora sao priorizados isoladamente, ora se combinam, acredita-se
que as demais categorias tonais se articulem em torno de uma
categoria principal, disposigao, cujos eixos opositivos se estruturam,
cm torno das tensdes entre seus dois polos extremos — sobriedade e
Iudicidade (seriedade, goxapio, espirituosidade, irivialidade).
‘A combinatoria tonal investida em um produto televisual
pode-se dar entre tons afins, ou seja, cocrentes € compativeis entre
si ou mio, manifestos pela relacao estabelecida entre as diferentes
linguagens sonoras ¢ visuais empregadas em sua textualizagao —
figurino, representagio, gestos, expresso corporal, fala, cenario,
rufdos, misica, Dai porque o grau de intimidade que une os tons
atualizados em uma dada combinatoria tonal é varidvel. Quando se
observa uma conexio telativamente intima entre dois tons, diz-se
que eles contraem uma relagio de coeréncia. Se, ao contrartio,
inexiste tal conexdo, ha uma relacio de incoeréncia entre eles que
provoca rupturas.
Em nivel textual, 0 tom se impde como uma pretensao de
contetdo em busca de diferentes tragos expressivos que 0
exteriorizem. Esses tragos podem nao se dar imediatamente a ver,
encontrando sua forma de expressio na atticulagio de diferentes
niveis de linguagens, ligadas 4 harmonizagio de cores, formas ¢ sons,
ao jogo de cameras e edicfio, aos registros de lingua, a0 figurino,
cenario, encenagio: manifestam-se estrategicamente através da
sobreposi¢io ¢ inter-relacionamento de diferentes substancias €
formas de expresso, que servem simultaneamente para veiculat
outros sentidos. Ha, no obstante, programas televisuais em que
existem atores discursivos — apresentadotes, Ancoras, repérteres —,
responsiveis pela proposicao ¢ manutengao do tom, centralizando
em sia tarefa de tonalizagio da emissio. Segundo Jost (2005, p. 40,
0 tom é um componente que se ancora principalmente no animador,
para as emissies que advém do mundo real ¢ lidico, on nos personagens, no
caso da ficgao.
‘Assim, todo programa televisual submete-se a umn duplo
desafio: descobrir o tom adequado e 7elar por sua manutengio no20 COMPREENDER A TELEVISAO
decorrer dos episédios, capitulos, temporadas, edigdes ou jornadas
de um mesmo programa.
Diante do exposto, nao podetia finalizar esses apontamentos
sem creditar a Frangois Jost um mérito que lhe cabe por direito,
aquele proprio dos grandes mestres: o de, além de desenvolver suas
proptias pesquisas, inspirar, com suas ideias, o desenvolvimento de
outras investigacdes, no caso, sobre a comunicacio televisual,
fazendo avangar o conhecimento.
Feancors Josr
INTRODUGAO
21
A televisao é sem duivida a
inica midia que mobiliza cotidiana-
mente a atengdo de todas as outras.
Se, nos anos 50, os telespecta-
dores, ainda pouco numerosos,
deviam procurar na revista do
programa de r4dio a meia pagina
consagrada as emissdes de tele-
visao, atualmente tanto a imprensa
escrita como as radios atraem os
leitores ou os ouvintes, propondo
rubricas, suplementos ou emissdes
que comentam os programas
televisivos que virdo, a audiéncia
dos que aconteceram ou, ainda, que
revelam os bastidores desse ou
daquele programa de telerrealidade.
Certas emissdes de televisio
propdem-se mesmo a se deter
sobre a imagem para melhor com-
preender a maneira como a teali-
dade é consttuida pela informagio.
Entretanto, 0 que é com-
preender a televisio? F fazer entre-
vistas no meio profissional para
aprender como se faz uma emissao?
Fi investigar os arquivos esctitos,
estudar o sistema de leis e os textos
que regulam a vida das emissoras?
F desmontar os mecanismos
econémicos? Ou é se ater, simples-
mente, ao estudo dos programas?
No plano ideal, deve ser tudo isso
ao mesmo tempo. Os debates sobre22 COMPREENDER A TELEVISAO
a qualidade dos programas que mobilizam as conversas entre amigos
¢ focalizam todas as criticas enderecadas periodicamente a essa midia,
por exemplo, giram em torno do vazio, quando nao sio considerados,
em conjunto, dados bastante diversos: obtigacdes da emissora em.
relacio a seu caderno de encargos', natureza da emissora (publica
ow privada), lugar da emissiio na grade e, certamente, definicao dos
ctitérios do que se entende por qualidade.
Diante dessa multiplicidade de abordagens, é dificil escolher,
ainda mais que todas clas sfo perfeitamente legitimas, sendo assim
setia necessatio acrescentar algumas outras, como, por exemplo, a
historia: os programas niio aparecem, como por vezes se fazem
acreditar, por meio de rupturas bruscas, ¢ sim pelas transformagées
progressivas operadas nos formatos e nos dispositivos. No entanto,
nao basta enumerar os métodos especificos dessas abordagens sem
mostrar 0 proveito que se pode titar de sua associacao na anilise.
Este livto posiciona-se, inicialmente, do ponto de vista do
telespectador. A questao que o guia, de uma extremidade a outra de
suas paginas, é esta: do que se necessita para compreendet 0 porqué
© 0 como dos programas a que se assiste? Como it além do visivel
para colocar em pauta a logica que leva as emissoras a proporem
uma detetminada emissao em tal hora e 0 telespectador a assistir?
As respostas a essas questées devem ser procuradas em diversas
diregdes:
unidade da diligéncia vem do objeto estudado, o programa.
No que os mistérios da televisao interessam ao ptblico, com efeito,
se ela € tio somente um meio de veiculagao dos conteidos
audiovisuais a domicilio?
Oestudo da televisio encontra muitas tesisténcias, dirigidas
até mesmo Aqueles cuja tatefa é criticd-la. Ao mau gosto de dedicar
tempo ao que se chama, hé algumas décadas, desdenhosamente, de
espetdculo do pobre, soma-se aquele de a ele sacrificar seu tempo de
estudo. Em lugar de calar sobre esse estado de fato, preferiu-se aqui
"© caderno de encargos regula as obrigagdes das emiss
seus programas.
oras no que se refere a
Francots Jos 23
enfrentar de inicio essa questio do estatuto para ficar livre
(definitivamente?) da condescendéncia com que, 4s vezes, sao
observados os analistas de televisio.
O plano deste livro é de afunilamento: primeiramente, parte-
se da interrogacio sobre a midia televisiio e sobre as crengas que
ptesidem sua invenc&o, passando a algumas questdes sobre as
mutacGes progressivas que a levaram a ser o que é hoje (capitulo 2).
Ele considera em seguida 0 papel-chave que o género desempenha
na comunicacao televisnal, nto sem se interrogar sobte a relacio que
une o telespectador As emissoras. A multiplicagio das denominagées
de géneros (telerrealidade, docufic¢io ¢ outras docurrealidades) pode
fazer acreditar que os produtores e os difusores inventam
constantemente noyas formulas, gerando rupturas radicais da
televisio de hoje com aquela de ontem. Com efeito, todas as emissdes
sio interpretadas em fungio de trés mandos: o mundo real, o mundo
ficticio e o mundo lidico (capitulo 3). Como a televisiio nio ganha
sentido a nao ser no tempo, a partir da maneira particular que a
emissora tem de acompanhar a temporalidade social, volta-se entio
pata a programacio, que no est4 longe de representar a pedra
angular da comunicacio televisual (capitulo 4). Finalmente, depois
de se terem definidos os mundos da televisao e os principios de sua
disposigio no interior da grade dos programas, exploram-se uns
apés 0s outtos (capitulo 5 a7).
Espero que, ao término deste percurso, o proprio leitor se
lance na anilise da televisio, complementando o passo decisivo que
leva da critica ao conhecimento.Francois Josr
1. OBsTACULOs A
ANALISE DA
TELEVISAO
25
Os professores de ciéncias
imaginam frequentemente, con-
forme alerta o fildsofo Gaston
Bachelard, que, para que se possa
fazer um aluno compreender uma
demonstracio de fisica, ¢ suficiente
repeti-la ponto por ponto, até o
momento em que, por milagre, esse
a compreenda. Assim fazendo,
eles esquecem que o adolescente,
quando chega a uma aula em que
lhe ensinam uma matéria nova, nao
esta destituido de opiniio, nao é
uma /abula rasa, mas um individuo
que ja possui certas representagdes:
concernentes aos fendmenos que
vai estudar e prejulgamentos bem
ancorados, fundados em obser-
vagOes cotidianas que nem sempre
sio simples de refutar: assim, a
impressio de resisténcia que um
corpo flutuando na superficie da
Agua aptesenta, quando se procura
afunda-lo, torna mais dificil a
compreensio do principio de Arqui-
medes, que demonstra a ideia
inversa, ou seja, de que é a agua
quem resiste.
O que se pode attibuir
fisica torna-se ainda mais evidente
no caso da televisdo: cada individuo
ja passou um mimero incalculével
de horas frente 4 tela e acumulou,
ao final desse tempo, opinides ou26 COMPREFNDER A TELEVISAO
crengas sobre o funcionamento dessa midia. E aqueles que
pretendem nunca mais olhar a telinha nao podem ficar de fora, pois
é precisamente em nome de uma certa concepgao da televisio que
eles justificam sua decisio. A primazia da experiéncia televisual,
entaizada na obsetvagiio, est de tal forma ancorada nas pessoas
que, As vezes, fica dificil imaginar que a televisio possa set um campo
promissor de estudos.
O que se pode dizer sobre a televisiio que j4 nio se saibal —
éo0 que se tem vontade de salientar aos pesquisadores que pretendem
dela fazer um objeto cientifico. A isso, os defensores da educacio
para as midias refutam que é necessario aprender com as criancas a
decodificar a televistio ou a adquirir a linguagem da imagem, como
se faz com a propria lingua. F'ssa segunda posigo tem o mérito de
postular que a impregnacao tclevisual nao é suficiente para
compreender a midia ¢ que é necessAtio pesquisar, além do sensivel,
modelos de inteligibilidade. Porém, toda a questo se centra no como
proceder para atingir esse fim.
Como seus programas sio feitos de imagens, de sons e de
palavras, acredita-se, as veres, que é suficiente estudar sucessivamente
cada um desses materiais ou desses canais (Viallon, 1996) para
analisa-los. Se esse método demonstrou eficiéncia durante um tempo
para o cinema, nio parece nada adequado, em contrapartida, a
compreensio de uma midia cuja caracteristica essencial nao é tanto
a producao de obras, mas a articulacdo cotidiana da efemeridade de
um fluxo na regularidade do tempo social. Assim, convém interrogar-
se sobre em que medida a importacao pura e simples do instrumental
desenvolvido pelas teorias do cinema nfo se constitui atualmente
em um obstaculo para o estudo da televisio.
A efemeridade da midia televisio foi, durante muito tempo,
um obstéculo 4 constituigio de uma memoria. Até a aparicao do
videoteipe nas emissoras de televisio, em torno dos anos 60, as
emissdes s6 podiam ser registradas e conservadas se filmadas em
uma tela sobre um suporte cinematogrifico (cinescopio). Mas,
somente as emissGes que conquistavam o estatuto de obra tecebiam
Pnancors Josr 27
um tratamento dessa ordem; ja as emissdes de palco (os debates, as
apresentacdes de telejornais etc.) desapareciam nas lixeiras da
historia?
Fssas dificuldades explicam em parte por que as andlises
de televisio sao ainda hoje centradas muito mais no conjunto de
programas que na programacio. Felizmente, esse tiltimo obstaculo,
inerente 4 propria midia, estd sendo levado em conta pelas novas
condigdes de pesquisa, que motivam este livro.
1.1 JULGAMENTO DE VALOR: TELEVISAO COMO OBJETO MAU
¢ Uma midia suja
No século XVIII, os romances eram desaconselhados As
mocas ¢, no século XTX, aquelas que se deleitavam com sua leitura
eram consideradas como perdidas (Madame Bovary ilustra
perfeitamente a sorte pouco desejavel reservada 4s leituras que
confundiam os romances de aventura com a vida). No inicio do
século XX, foi a vez de o cinema se tornar um objeto mau. Por
muito tempo considerado um divertimento de périas (Duhamel), ele
36 foi alcado A categoria de objeto de estudo universitario nos anos
80. Em se tratando da televisao, a teferéncia constante, feita pelos
discursos nostilgicos as misses da televisio publica de antanho,
esquece quase sempre aquela que diz respeito ao entretenimento.
S6 se retém dessa idade do ouro a revista de informacio
Ging colonnes & la une, Las perses, de Jean Prat, ou Dom Juan, de Marcel
Blowal, ¢ apressa-se a esquecet que a mesma década via nascet
Intervilles ¢ seus combates de mendigos. Ainda hoje, os que so Contra
a tevé (titulo de um livro do ctonista do jornal Libération) centram
2 Jean Arnaud, ditezor de programas de televisio, escreveu no nimero de 13 de abril
de 1952 do jornal Radia 32: “Quanto ao espetienlo de qualidade, que até agora
desaparecia 20 mesmo tempo em que aparecia sobre a tela o painel ‘fim’, vai ser
possivel o registro sobre a pelicula, entao repetido, trocado, conservado. Uma
filmoteca de televisio, armazenando tesouros, vai poder set construida28 COMPREENDER A TELEVISAO
seus ataques no fato de a evé ser uma midia vendida (Marcelle, 1998,
p. 15) ¢ mal compreendem que ela possa ser um objeto de estudo
sério: Entre todos os especialistas da imagem, parece que hé os tebricos da
televisiza, socidlogas voluntérios on midiblogos duros que ex a com especial
curiosidade, frequentemente decepcionada, A perspicécia pontual nunca me
pareceu justificar sen investimento (ibid. p. 21). Se se imagina
equivocadamente que um tedtico passa, ou, antes, perde tempo
estudando essa midia, é porque ele est contaminado pela imundicie
do meio. Essa critica contida, no caso, na opinido de um jornalista,
é reiterada igualmente pela atitude de determinados universitarios,
que consideram ser mais
dignificante estudar filmes do que emissdes
de televistio, ou pela fala da mae de familia, que diz ao filho,
hipnotizado frente a pequena tela: vocé faria melhor lendol
° Indtistria cultural: fonte de embrutecimento
Os filésofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer,
deram seus titulos de nobreza na defesa dessa posigao a partit de
1947, em um livro fundador, A dialética da razéo.
Qual € a sua argumentagdo? A incistria cultural busca
embrutecer 0 ptiblico, que se torn:
em suas méos, um brinquedo
passivo, O divertimento é o instrumento dessa dependéncia vinda
de cima ([1947] 1974, p. 131). Se Adorno e Horkheimer acusam a
indiistria cultural (os midia) de alienar as massas com seus produtos
setializados, é porque o proprio meio é desprezivel, assim como as
produgées audiovisuais que faz nascer. A imagem sonora, como
teria dito André Bazin, é suspeita de nao servir para nada além do
entretenimento, atividade desvalorizada a prior’ e oposta A cultura €
a arte, como se tratassem de elementos inconciliaveis. As taizes dessa
concep¢io séria da cultura podem certamente ser buscadas na nogio
de divertimento de Pascal, mas também se constituem em /apos que
acompanha a massificagao de todas as midias, como se viu (jptimeiro
a leitura, depois o cinema ¢, por tiltimo, a televisio).
Essa desvalorizagao da televisio encontra entio sua fonte
em uma confusio entre média (midia) e medium (meio). Condena-se
Francors Jost 29
a televisiio (midia), porque assistit passivamente as imagens (meio)
seria uma atividade menos dignificante que outras (em primeiro
lugar, a leitura), F, mais proveitoso ler um romance da moda que
assistir a um documentatio sobre a vida dos animais ou sobte algum
fendmeno das sociedades contemporiineas? A questio é frequen-
temente aludida em proveito de um amalgama entre os contetidos €
a midia, como testemunha o relatério Kriegel sobre a violéncia na
televisio (2002), que toma como ponto de partida a condenacio
dos programas demasiado violentos ou potnograficos ¢, pata
concluir, sobre a nocividade de tantas longas horas passadas em frente a
tehvisdo?, caja consequéncia seria a sonoléncia na escola.
e Influéncia televisual: uma midia manipuladora
No fim de 1989, os telespectadores do mundo inteiro
vivenciaram, quase ao vivo, a queda do regime comunista de
Ceaucescu. Fim 22 de dezembro, eles descobriram as imagens de
uma dezena de mortos perfilados lado a lado no chao. Os jornalistas
falaram do massacte de Timisoara e de seus 12.000 mortos (enter-
rados em vala comum), exibindo essa sequéncia como uma prova da
crueldade do ditador, Alguns dias mais tarde, observando as opines
de médicos legistas sobre as cicatrizes que tinham todos os cadaveres,
foi descoberto que se trataya unicamente de mortos autopsiados,
sem nenhuma telagao com os acontecimentos vividos na Roménia.
Esse acontecimento do falso massacre de Timisoara
d
que se estendeu pata além da esfera intelectual. Uma pesquisa regular
sencadeou um movimento de desconfianga em relacao A televisao,
sobre a confianga dos franceses nas midias (Le paint/ La croix, em
uma amostra de 1.000 pessoas) revela uma brusca queda de
ctedibilidade da midia: enquanto, em 1989, 65% das pi
joas
entrevistadas pensavam que as coisas se haviam passado verdadeiramente
> La violence a la télévision, Pasis, relato da senhora Blandine Kriegel ao senhor Jean
Jacques Aillagon, ministro da Cultura ¢ da Comunicagio, 2002, p. 22. Nota-se que,
no inicio, o cinema era acusado por esse mesmo géncro de efeito.30 COMPREENDER A TELEVISAO
on mais ou menos como a televisao as havia mostrado; em 1990, elas nic
séo mais que 52% (e 45%, em 2005). A questo colocada é
evidentemente ctiticavel, pois parte do pressuposto de que a televisio
poderia set uma simples janela para o mundo, mas nao restam seniio
as respostas testemunhando uma tomada de consciéncia sobre a
impossivel objetividade da midia. Alguns pensadores, entre os quais
se encontra Pierre Bourdieu, vao transmitir ¢ amplificar essa tomada
de consciéncia em suas obras. O pequeno livro vermelho do
socidlogo, intitulado sobriamente Sobre a televisao (1996), sintetiza as
ctiticas direcionadas a0 campo jornalistico: a influéncia do jotnalismo
sobre os campos de produgao cultural, que ele chama simplesmente
de a influéncia da televisio, € responsivel, para o socidlogo, por
indmeras ameagas a democracia: circularidade da informacao, fast
thinking, falsos debates etc.
Se esses ataques prolongam as condenagdes da industria
cultural, também testemunham implicitamente uma hierarquizagio
dos géneros televisuais. O fato de Bourdieu haver se referido A
televisio, quando de fato ele critica apenas 0 funcionamento da
informagio, é sintoma de uma redugdo muito comum da midia
televisdo a uma parte desses programas (os telejornais tepresentam
cerca de 10% do conjunto). Da mesma maneira, a emissiio Arrét sur
‘images (aa France 5) que, durante mais de dez anos, pretendia analisar
a televiso, toma majoritariamente como base de suas pesquiisas as
reportagens ou os temas do telejornal. Confundir a televisio com
uma de suas miss6es (informat) diz muito sobre o valor que se
atribui As outras misses (entreter, instruit) e As emissdes que
reivindicam para si essa funcio. Assim como os géneros pictéricos
eram hierarquizados no século XVII em fun
10 do objeto
reptesentado (do mais nobre, a pintura teligiosa, ao mais prosaico,
a natureza morta), os estudos sobre a televisiio aparecem como mais
ou menos legitimos, segundo seu contetido tematico: se todo mundo
concorda com a necessidade de analisar como é tratada a informacio,
a ficgio nao parece tio digna de interesse, acusada que € por sua
fungio de entretenimento, Quanto aos jogos ou as variedades, eles
FRANGOIs Jost 31
sio frequentemente desprezados, a ponto de se constituirem na
atualidade nos parentes pobres dos estudos televisuais. Bss
yalorizacio da televistio por seus objetos no é a mesma em todas
as culturas: em um pais como 0 Brasil, em que a informagio foi pot
, 20 contratio,
muito tempo dominada por um regime autoritario,
a ficciio (com as telenovelas) que esté no centro de todas as atengGes.
1.2 OBsTACULO EPISTEMOLOGICO: CINEMA COMO MODELO
© Uma mesma linguagem?
‘As pesquisas sobre o cinema alcancaram um passo decisivo
com Christian Metz, que as fez passar da critica — na qual se havia
distinguido um André Bazin — a semiologia. De inspiragio linguistica,
essa semiologia de primeira geragio conferiu aos analistas instru-
mentos cientificos. Tornou-se possivel, com seus ptimeitos trabalhos,
analisar um filme com o mesmo rigor que um texto literatio.
No entanto, 0 sucesso dessa disciplina teve como deploravel
contrapartida a aglomeracio do conjunto dos objetos audiovisuais,
fossem eles cinematograficos ou televisuais, na medida em que, para
Metz (1971, p.170), 0 que se denomina audiovisual, com efeito, é une grupo
de lingnagens vizinhas e que compreendem o cinema, a televisio, 0 radio em
algumas de suas produgies [...] a fotografia, a fotonovela [.
animado... Considerados sob o Angulo da linguagem, cinema ¢
}, 0 desenho
televisio sio mais que proximos, na medida em que eles mobilizam
os mesmos codigos, as duas midias constituem, ao menos nos seus tragos
Jfositos essenciais, uma tinica e mesma linguagem (ibid, p. 177). Ainda que
ele reconhega quatto tipos de diferencas entre cinema ¢ televisio —
diferengas tecnologicas, sociopoliticas, psicossociolégicas e de
programacio —, Metz considera que essas tém um peso relativamente
‘pequeno no que concerne ao néimero ¢ a impartancia considerdvel das cadificagtes
que as duas linguagens tém em comum (ibid, p. 177) e que podem ser
assitn resumidas: imagem obtida mecanicamente, mltipla, mével, combinada
com irés espécies de elementos sonoras (palavras, misica, raédos) e com as mencies
esenitas (ibid, p. 171).32 COMPREENDER A TELEVISAO
Quer reivindiquem ou nfo 4 semiologia, essas abordagens
da televisio que tratam seu objeto por uma decomposicao dos
parimetros da imagem (escala de planos, movimentos, ligagées etc.)
e do som (voz, barulhos, lingua) admitem implicitamente que a
imagem cinematografica e a imagem televisual diferem tao somente pela dimensio
(Metz, 1971, p. 178). Com certeza, isso nao é inteiramente falso,
mesmo que a questio do tamanho das telas esteja hoje em plena
mudanga, e nao ha nenhuma dtivida de que, para descrever um
telefilme, seria util conhecer as espessuras de um plano ou as ligacdes,
mas 0 essencial da televisio nao esté nisso, ¢ por varias razdes:
primeiro, porque ela difunde intimeros géneros que nao tém nenhum
equivalente no cinema (telejornal, debates ou jogos); depois,
porque, em certos aspectos, a televisao esta igualmente proxima do
radio (ele empresta-Ihe certas emi:
es), 0 que justifica outras
aproximagées de cddigos; e por ultimo, porque a palavra tem ai
um papel tio fundamental como a imagem. Isso nao quer dizer
que nao sera necessdrio, em momento futuro, recorter a certos
instrumentos fotjados pela semiologia do cinema, mas, hierarqui-
camente, essa contribuicio deve ser secundaria na presente
abordagem da televisio.
Emiss4o: um equivalente do filme?
O peso do modelo de anilise cinematografica sobre a andlise
televisual provocou, em um primeiro momento, 0 exame das
emissdes como se fossem filmes, sem levar em conta o contexto de
difasio. A maior parte dos estudos sobre filmes omite as citcuns-
tancias materiais de sua projecio: com excecio dos historiadores,
para quem a sessio como tal pode ser um objeto de pesquisa, poucas
criticas se voltam, na andlise de filme, para a sala de cinema onde ele
é visto, para os horatios ou para as publicidades que os precedem.
Nio é por acaso que, nessas condigées, os primeiros estudos sobre
ptogramas tenham iniciado pelas emissdes fora de contexto ou,
mais precisameate, pelas colegdes de emissdes, isto ¢, pelas séries
de emissdes, como Dadlas, que foram objeto de bastante atengio
Prancors Josr 33
por parte de pesquisadores dos anos 80 (Ang, 1985; Blum, 1985;
Liebes et Katz, 1986). Decerto, ao contratio dos analistas de filmes,
os tedricos da televisio preferem como unidade exemplar a colegao
de programas. Mas, na medida em que cla é estudada como um
puro paradigma, sem levar em conta o seu lugar na grade ¢ as
variagdes de faixas horirias em fungao dos paises, procede-se tio
abstratamente como nos filmes.
Ora, se esse método foi aprovado para o cinema, sua eficicia
é bem menor pata a televisio, na medida em que os programas sao
concebidos em fungio de faixas horarias especificas, as vezes para
um certo tipo de ptblico ¢, quase sempre, para ligar-se as
publicidades que contribuem para financié-los. E importante lembrar
que as soap-operas exibidas a tarde nos Estados Unidos (day-time)
deram otigem as ficgdes financiadas pelos grandes anunciantes para
prender a atencio das mulheres frente 4 telinha, para que elas
consumissem, em espacos regulares, as publicidades de seus
produtos. Isso explica o fato de serem desprovidos de climax ou de
resolugio: cada episddio nada faz além de reafirmar a repeticio
monétona de sua cotidianidade (Modelski, 1982).
1.3 OBSTACULO MATERIAL: EFEMERIDADE DA MIDIA
¢ Progtamas de estoque, programas de fluxo
E necessatio dizer que a esses obstaculos epistemoldgicos
acrescenta-se uma dificuldade objetiva: a volatilidade da midia. Nao
se pode esquecer que, até os anos 60, a televisio era comparada
tanto as artes do espeticulo vivo, quanto 4 efemeridade de suas
produgdes. Desprovida de meios de registro eletrdnico—o videoteipe
profissional s6 aparece nos anos 60 -, ela s6 podia gravar imagens
¢ sons produzidos ao vivo com uma cimera de cinema projetada
sobre uma tela de televisto (o Ainescope). Como consequéncia, os
profissionais do meio rapidamente fizeram oposicio entre
programas de estoque ¢ programas de fluxo. Enquanto os primeiros
mereciam ser conservados, porque eram suscetiveis, mais ou menos,34 COMPREENDER A TELEVISA
de retransmissio, os outros requeriam um uso imediato que niio
impunha nenhum arquivamento. Por essa raz4o, é mais facil
encontrar o registro de um drama exibido ao vivo nos anos 50 do
que o de um telejornal completo, no somente com suas reportagens,
mas com seu apresentador no cendtio. As teportagens eram gravadas
porque rodavam sobre um supotte filmico (16 mm) ¢ porque os
acontecimentos presentes podiam necessitar de sua reexibicio
(a morte de um homem politico ou a lembranga de um fato histérico,
por exemplo), as intervencd
s ao vivo nao etam objeto de registro,
pois nelas niio se via utilidade’
Antes do uso do videoteipe, a citagio de uma sequéncia s6
podia ser parcial: ou se reescutava o didlogo de uma emissio
precedente, passando o disco de sua gtavacio, como acontece no
iltimo episddio da colecio Ffut d'urgence, em que 0 apresentador,
Roger Louis, faz ouvir um didlogo desenrolado no palco de uma de
suas emissées precedentes (1954); ou simplesmente se brincava com
a cena, como no muito famoso Cing dernitres minutes em que dois
telespectadores, no estiidio, isolados em cabines, deviam encontrar
indicios, em uma dramatizagio interpretada ao vivo que confundia
© culpado de um crime. Para fazer isso, cles podiam reexaminat
cenas reinterpretadas pelos atores.
© Obras e nao obras
A categotizaciio das emissdes em fungio de sua maior ou
menor cfemeridade esta implicita na maneira como o CSA (Conselho
Superior do Audiovisual, instituigao que regula, na Franca, televisdes
€ tadios) distingue duas categorias de emissées: as obras ¢ as nao
obras. Constituem-se obras audiovisuais as emissies nito derivadas de um dos
seguintes génera:
obras cinematgréficas de longa duragio; jornais e emissbes de
informacao; variedades; jogos; outras emissbes nao ficcionais realizadas
0 ptimeiro telejornal francés completo conservado data de 1956, Os apresentadores
sé aparecem em 1954,
FRangols Jost 35
preferencialmente emt paleo; retransmissbes esportivas; mensagens publicitdrias,
televendas; autopromocao; servicos de teletexto.
Essa definicdo pelo negativo exclui do campo das obras
emiss6es prioritariamente realizadas em palco (telejornais, variedades,
sdes esportivas, publicidades,
jogos), assim como retransmis
televendas ou autopromogio. Se for colocada de lado a emissio de
ficagio duas
carater comercial, podem-se extrair dessa class
conclusées: de um lado, a fic¢io goza de um ptivilégio quase tinico,
dado que toda ficgio, mesmo no paleo, € considerada como uma
obra; de outro, as emissdes a0 vivo ou realizadas em palco nao podem
se beneficiar do estatuto de obra. i necessario retornar as
implicagdes dessa classificagéo na televisio de hoje, mas, n0
momento, é suficiente assinalar que as obras sao, nessa ldgica, as
emissdes que se podem rever, porque seu interesse se situa para
além da atualidade: ficgdes televisuais, desenhos animados,
documentatios, assim como magazines e programas de
entretenimento minoritariamente realizados em palco. O telejornal
owa retransmisstio de uma partida de futebol estariam, assim, ligados
ao presente.
e Lugares da meméria
Talvez todos se lembrem de Martin Tupper, o herdi da série
Dream on, que, diante de diversos acontecimentos de sua vida,
recorda-se de cenas ficcionais de televisio que assistiu em sua
infincia; ou dos personagens de Friends, que, também, tomam
voluntariamente como referéncia as emissées de televisio (Acabo de
fazer amor com um rapax que néo tinha nascido na estreia de Dinasty!,exclama
uma das personagens). Os cendgrafos nao precisam procurar muito
longe essas situagdes, que, bem-entendido, estao na memoria do
ptblico que eles querem seduzit: para os filhos da televisio, com
efeito, as emissées da infancia tornaram-se lugares de nostalgia que
constituem a meméria comum de uma geracio, memoria essa que
tem seus titos de celebragao, como a noite Gloubi bouke, colocada
sob a autoridade de Casimir, a marionete de tamanho humano de36 COMPREENDER A TELEVISAO
Lille aus: enfants. O fato de um personagem de uma emissio de
palco, emblemética do fluxo, tornar-se um signo de agregacio atesta
que a utilizagio da televisio pelo seu publico nfo coincide forco-
samente com a categorizagio institucional das emissées: 0 que
pareceria ser da competéncia do efémero é armazenado pela
meméria dos individuos e acaba por tomar lugar ao lado das emissées
arquivadas. A emissio Les enfants de la té#é contribuiu pata constituir
0 repertério das imagens cultas que retinem os telespectadores de
uma época ~ Zitrone, perdendo suas lunetas em Intervilles; Giscard,
dizendo adeus ao povo francés, apés sua derrota na cleicio
ptesidencial de 1981 etc.
No langamento dessa volta ao passado, muitos editotes
trouxeram as fitas cassetes ou os DVDs das emissdes, que, ha 20
anos, pareciam fadadas ao esquecimento: justamente Cocorico boy,
Nalle part ailleurs ow L'lle ance enfants. Esse movimento atesta que 0
olhar sobre 0 objeto televisio est4 mudando, pois o publico mani-
festa o desejo de reter os tacos das emissdes da televisio, que
sio também os tragos proprios do passado, ¢ esses vestigios nao
esto unicamente localizados nos lugares oficiais em que se queria
confini-los (ficcdes, documentitios ou magazines de reportagem).
Esse modelo nostilgico da meméria nao é suficiente para
essa abordagem histérica da televisio. A histéria nao se reduz A
meméria individual, e o fato de nao ter nascido em tal época nao
justifica, de forma alguma, a ignorincia sobre essa épocal Assim, se
a hist6ria nao se construisse seniio pela escala da memoria humana,
seu poder de investigagao seria bem limitado. Enquanto s6 existia 0
videoteipe para salvar os programas da curta duracio, todos estavam
condenados a perpetuar esse modelo geracional de arquivamento,
construindo miciatecas pessoais em casa. Desse ponto de vista, 0
verdadeito corte epistemoldgico, que separou a teotia da televisio
da teoria do cinema, data de 1995, quando se abtiu 0 Depésito
Legal do Audiovisual. A Inathéque de France (é 0 nome dessa
instituicao situada no BNF, cf. capitulo 8) arquiva as emissdes
ptoduzidas e difundidas na Franca e em seguida as coloca a
Piancors Jost 7
disposigao dos pesquisadores. Além da missio inicial, de conservar
os progtamas a partir de 1995, ela da acesso a dezenas de milhares
de horas de programas anteriores a esse ano (desde os anos 50), de
modo que as condigées da pesquisa mudaram radicalmente:
enquanto, antes, a andlise das emiss6es softia as limitagées da propria
midiateca (em que a andlise de emiss6es unititias era feita sobre 0
modelo do filme), hoje ¢ posstvel ter acesso nfio somente As colegdes,
como construir um corpus com vistas a resolver esse ou aquele
problema teérico. Ao modelo nostalgico pode ser contraposta uma
meméria histérica para a qual o investigador, com a sua pesquisa,
contribui para a construgao.
Desde a abertura do deposito legal, numerosos estudos foram
feitos sobre a televisio francesa, dando lugar seja a publicagao
de obras, seja 4 redacio de teses, de acordo com métodos
diversos, Entre essas, podem-se citar notadamente: de um
ponto de vista metodolégico, Jerome Bourdon e Francois Jost (eds),
Penser la télévision, De Boeck-INA, 1998; de um ponto de vista
semioligico, Francois Jost, La télévision du quotidien, Enire réalité
et fiction, De Boeck-INA, 2001, Virgine Spies, La télévision dans
ke miroir, UHarmattan, 2004; de um ponto de vista socialigico,
Dominique Pasquier, La ature des sentiments, MSH, 1999, Jean-
Pierre Esquenazi, Télévision ef démocratie, PUF, 1999, Sébastien
Rouquette, I%mpopulaire télévision populaire, L’Harmattan, 2001,
Vie et mort des débats télévisés, De Boeck-INA, 2002; de um
ponto de vista késtorico, Isabelle Veytat-Masson, Quand la télévision
explore le temps, Fayard, 2000.2.O QUEEA
TELEVISAOP
39
O sucesso da expressiio
novas tecnologias faz pensar, as
vezes, que as novas midias decorrem
quase mecanicamente das inovagdes
técnicas. Se, no entanto, for
considetada a situacio atual, nada é
tao incerto: de fato, a internet
mudou os modos de informagio e
de comunicacio, mas sua existéncia
como midia nao esta ainda bem
assegurada, ao menos se cla for
entendida como uma instituigao que
gera conteidos com vistas a
sensibilizar um publico, e nio como
uma simples mediagio autorizada
pelo meio eletrénico. Para apreender
esse desvio entre a técnica ¢ a midia,
€ suficiente pensar nas aventuras da
nebcane. de inicio, a numeragao das
imagens de uma ciimera ligada a um
computador provocou novos usos,
como virat a objetiva para o seu
quarto de dormir ¢ dar condigées
aos internautas do mundo inteiro de
se voltarem para sua intimidade,
possibilidade essa que uma jovem
americana, Jenni, explorou com a
ctiacio da jennicam (1996). No
entanto, se esse dispositivo ganhou
seus espectadores, escondidos na
sombra ¢ disseminados no espago,
nfio teve verdadeiramente um
ptiblico, uma comunidade reunida
por interesses ou perversdes
comuns. Isso s6 existiu como tal a40 COMPREENDER A TELEVISAO
partir do momento em que os canais de televisio apropriaram-se desse
dispositivo para construir um conceito, conhecido com o nome de Big
brother. 1s se 0 programa obteve o sucesso que se conhece, é, sem diwwida,
menos pelo que possui de novidade e mais pelo fato de que ele deve ter
cotrespondido a aspiragdes bem-ancoradas no ser humano: o desejo
de estar em varios lugates a0 mesmo tempo (ubiquidade) ¢ de penetrar
na cabeca dos outros (omnisciéndia), faculdade que se atribui a Deus.
Esse exemplo atesta que uma invengio técnica somente se
torna midia a partir do momento em que ela é apropriada pelos
usos mais ou menos especificos do meio. Eles proprios sao
suscetiveis de serem recuperados por uma instituicao que os
transforma em produtos culturais (esse esquema nio esta distante
daquele forjado por Gaudreault-Marion (2000, p. 24) para o cinema,
que considera que @ histéria do cinema dos primeiros tempos nos faria entio
passat, sucessivamente, da aparigéo de am procedimento tecnoligico, aguele das
‘méquinas a vista’, & emergéncia das ‘vistas animadas’, lugar de procedimentos
diversificados, faxendo surgir 0 dispositivo, ¢, depois, ao advento de uma midia
instituida, V. necessatio ainda acrescentar a essa genealogia que as
inveng6es técnicas nao sio fruto do acaso; elas s6 se produzem
quando respondem a esperas que esto no at do tempo, embora se
possa afirmar que a capacidade tecnoligica necessita da imaginagiio cultural
para se tornar prética cultural (Urtichio, 2003, p. 20).
Para compreender como a televisio se torna uma midia
por inteiro, com uma légica propria e instituigdes que sto as
emissoras, é necessatio entio primeiramente interrogar sobre o que
tepresentou, no inicio do século XX que viu nascet a invencao da
tele-visio, 0 televisual como construgio imaginatia e tecnoldgica
Gbid.), e quais usos foram imaginados para essa nova linguagem.
2.1 ANTES DA TELEVISAO: OS SONHOS DA TELE-VISAO
¢ Um sonho pré-midiatico
O desejo de ver a distancia, cuja materializacio mais recente
6a webcam, é um velho sonho da humanidade. Ja no segundo século
FRrancols Josr 41
de nossa era, Lucien de Samosate (125 d.C. — 192 d.C.) descreve,
em sua Histoire néritable, habitantes da hia que dispdem de um sistema
de obsetvacSo sonora € visual a distancia. O explorador-narrador
do romance conta que essa maravilha vive no palacio do rei: wm
espelho muito grande disposto acima de um poco, que nao & extremamente
profundo. Se aleném desce ao pogo, ele entende tudo que € dito em nossa casa,
sobre a terra e, se alguém olla esse expelbo, v6 todas as cidades, todas as nagdes,
exatamente como se estivesse no meio delas’. Nesse telato de ficgao cientifica,
como em todos aqueles que retomam 0 tema até 0 inicio do século
XX, os espelhos cessam de tefletir ¢, pode-se dizer, permitem ir
além do visivel: ao invés de pensar sobre 0 que é apresentado na
io. acesso a um mundo
realidade em torno daquele que o contempla,
espacialmente ausente, mas acessivel de forma mégica pela visio.
© espelho magico é esse opetador que dé ao seu utilizador a
faculdade da visio a distancia, que ¢ 0 sentido primeito de fele-visao
(€ que se encontra na denominagio alema Fernsehen).
© Uma midia sonhada
Em 1890, ow seja, cinco anos antes do aparecimento do
cinematégrafo Lumiéte, surgiu um romance, intitulado Lz vingtidme
sitcle, la vie électrique. Nessa narrativa que supostamente se desentola
apés 1950, 0 autor, Albert Robida, imagina o telefonoscopio, que
ria de
consiste em uma simples placa de cristal, inerustada numa divis
apartamento on colocada como um espelbo acima de uma chansiné qualquer
(Delavaud, 2003, p. 15). Uma vez mais, o espelho é uma janela para
o mundo, mas, nesse caso, no se contenta apenas em prolongar os
sentidos, pois d acesso ao uso das novas tecnologias da época.
Como 0 nome indica, 0 éelefonascépio éum telefone dotado de imagens
, que permitem tanto ver o interlocutor, ou
perfeitamente nitida
mesmo supervisioné-lo, se esse esqueceu a chave de seguranga, como
# Esse texto, como muitos outros, encontra-se no excelente site Histoire de da télévision,
proposto por André Lange (http:histv2.firee.fi).42, COMPREENDER A TELEVISAD
assistit a cortidas a distancia, ser testemunha ocular, em Patis, de um
acontecimento ptoduzido em mil lugares da Europa, ou de espetaculos
apresentados no teatro. Robida imagina tanto telefonoscépios
colossais, colocados acima da sede de um jornal, para retransmitir
imagens enviadas do mundo inteito, como modelos de bolso.
No final do século XIX, a alianga de imagem e telefone,
com a qual todos hoje esto acostumados, niio é mais um sonho:
sio experimentados os teatrofones, que colocam um domicilio
particular em conexZio com um espeticulo vivo. Proust foi um de
seus calorosos utilizadores para acompanhar éperas de casa. Se se
busca prolongar essa tecnologia, é porque ela tesponde, muito
melhor do que o cinema, a espera da simultaneidade, aspiragio
completamente enraizada no ser humano, Da mesma maneira que
0 telégrafo, que escreve a distiincia, 0 telefone leva a voz ao longe e,
inversamente, torna-a audivel; assim, se essas invengGes nao suprem
de verdade a auséncia, impedem-na, aumentando artificialmente as
capacidades dos érgdos dos sentidos (Elsner et al., [1990], 2003, p. 26).
Nessa perspectiva, a televisio aparece como o complemento natural
do telefone pela sua capacidade de fazer ver e escutar ao vivo: durante
décadas, ela vai pertencer tanto ao imaginario popular como aquele
dos inventores que vao registrar suas patentes. Mas 0 cinema, de
mais facil consecugio, frente as condicdes técnicas da época, nasce
quase trinta anos antes da televisao.
* Da invengio a midia
‘Tradicionalmente, atribui-se a invencio da televisio a John
Baird, que, em 1925, fez a primeira demonstracio de uma imagem
televisual, em Londres, na Inglaterra. Essa data, porém, interessa
pouco em relacio ao processo que vai da realizacio do procedimento
A sua institucionalizagdo mididtica.
Contrariamente ao que pos
sa levar a crer qualquer tipo de
rettospecgio, uma nova midia nao encontra de pronto seu lugar
entre as outras j4 instauradas. O acesso ao estatuto de midia, em
geral, passa por lutas ou aliangas. Se o telefone esté na origem do
FRANgots Jost B
imaginatio da invengao, a constituigao da midia passa por diversas
aptoximagées com outros tipos de espetaculos ou midias ja
existentes‘, como atestam as diversas denominagées: sala de cinema
a distancia (sem fio), cinema doméstico (sem fio), receptor som-
imagem, fala televisada, atualidades televisadas € sala de cinema e
de televisio Elsner [1990], 2003, p. 31). Cada um desses nomes
encontra sua origem nas condigées de difusio ou no contetido dos
programas dessa televisio nascente.
Tecnicamente, a televisio aparece primeiro como um
complemento do radio, comfrequéncia chamada, nos anos 30, de
TSE, isto é, telefone sem fio, Como comprovagio, citam-se os
primeiros programas exibidos na Franca em 1936, apds a feira da
TSE ¢ que podiam ser captados pelo radio, sem as imagens.
As primeiras emissGes da década foram heranga direta dessa midia:
pede-se a Marcel Laporte, cujo apelido é significativamente Radiolo,
© cuidado de realizar programas com palhacos, cancioneiros,
cantores e atores da comédia francesa. Nessas condi¢Ges, nao causa
surpresa que a nova midia tenha o andamento de uma fala tele-visada.
Mas seu lugar de projegio aproxima-a de outro espetaculo: o cinema.
Os aparelhos receptores individuais so, no inicio, pouco numerosos,
e sua tela é muito pequena, o que faz com que a recep¢ao das
emissbes torne-se ptiblica: faz-se fila para passar diante da mintiscula
tela de um aparelho colocado em uma sala. Depois, a televisio
transforma-se em um espeticulo que retine o piiblico em um mesmo
lugar. Durante a Exposicio Universal de Paris, em 1937, um aparelho
de 1m? foi instalado no pavilho da radio e da televisio e pode-se
assistit ao primeito micropasscio ao vivo: uma cimera colocada a
algumas centenas de metros, perto da ponte Alexandre III, enviava
imagens de transeuntes interrogados, a quem se perguntavam
impressées sobre a exposic¢ao (Blanckeman, 1961). O novo
© 6 também o caso do cinema que nfio ganha seu estatuto de arte, de 1910 a 1920,
por comparacio com as artes legitimas (teatto, pintuta ou musica).A4 COMPREENDER A TELEVISAO
dispositivo assemelhaya-se bastante a uma sala de cinema a distancia
(sem fio). Esse parentesco foi ainda mais forte na Alemanha, onde
a televisio foi recebida nas salas de cinema que continham até 800
espectadores (Berlim).
Em suma, a televisio é, em sua origem, o que se poderia
chamar de intermedia: longe de se afirmar como uma midia
independente, com propriedades tinicas ¢ insubstituiveis, ela faz a
sintese de técnicas e de espetaculos ja existentes. Uma midia sé se
constitui verdadeiramente como tal a partit do momento em que
passa do estado de novidade técnica ao de elaboragio de program:
Desse ponto de vista, é a partir dos anos 30 que comeca esse
processo para a televisdio, em velocidades distintas segundo os
diferentes paises. As primeiras difusées experimentais ocorrem em
1929, na Alemanha e na Inglaterra; em 1932, na Franca; em 1950,
no Brasil. Em 1935, a primeira estagao de televisio é inaugurada em
Berlim, e as emi:
sGes sio difundidas regularmente até a guerra. A
primeira emissao oficial da tclevisdo francesa tem lugar em 26 de
abril de 1935, ao vivo, diretamente dos estidios de Grenelle do
Ministério dos PIT (Correio, Telégrafo e Telefone). Em 1936, ja
existem emiss
es exibidas diariamente, em Paris, entre 16 horas e
1Ghoras ¢ 30min; mas é somente em 1937 que passam a ser exibidos
programas regulares, @ noite: variedades, extratos de pecas,
documentitios e, mesmo, uma primeira emissio literitia semanal,
Vient de paratire, comandada por Molly Boulanger: uma obra é ai
trazida, com citagdes € apresentagio do autor. Até a Segunda Guerra
Mundial, a televisio permanece como uma curiosidade, mesmo que
a maior parte dos grandes paises coloque no ar algumas horas de
ptogramagio diaria, Na Franca, é paradoxalmente da guerra que vai
resultar a institucionalizacao da midia. Os alemaes adquirem um
music-hall, o Magic City, na cua Cognacq:Jay, de onde eles passarn a
transmitir, das 10 horas da manha 4 meia-noite, programas
destinados aos soldados que estavam hospitalizados. Essas emissGes
eram primeitamente procedentes da cena, que serve de esttidio: sio
difusdes de miisicas tocadas pelas otquestras, ntimeros de citco ou
ERA
cols Jost 45
de music-hall, entrecruzadas com a exibicio de alguns filmes. Com
a Liberaco, por iniciativa de Jean Guignebert, primeiro diretor da
Radio Difusao Francesa, a televisao francesa retoma essa base cénica,
quando entao alguns animadores, como Gilles Margaritis, trazem
para ela espetdculos de circo que eles tinham feito, alguns anos antes,
para a televisao alema.
2.2, HA UMA LINGUAGEM TELEVISUAL?
Embora a televisio nascente balance entre diversas midias,
os estudiosos vio muito cedo se interrogar sobre a especificidade
da linguagem da televisio em relacdo a linguagem cinematografica.
© Direto, autenticidade, cotidianidade
‘Todo o mundo concorda, desde o inicio, com a ideia de
que a verdadeira novidade da televisao, mais do que na sintaxe de
sua linguagem, reside no fato de que ela difunde imagens e sons ao
vivo. Refletir sobre a televisdo é entao, antes de tudo, levar em conta
seu contexto e o lugar particular ocupado pelo telespectador; é adotar
© que hoje se chama uma abordagem pragmatica (em oposigio a
abordagem semiolégica voltada unicamente 4 andlise das mensagens).
Alguns veem na transmissio direta a possibilidade de uma
transparéncia absoluta, da negagio da mentita: nada de trugues, de
cortes, de montagens, de corregées, nada de vida posta em conserva e servida fria
e requentadal Enfim, a verdade toda nua e quente (Thévenot, 1946).
Os menos otimistas ou mais hicidos, nao obstante, temem que 0 a0
vivo anule a reflexao em proveito da emogio e crie um corte fundo
entre aqueles que aprenderam a olhar as imagens e os outros: agueles
que sabem observar ¢ chegar a conclusies tirario beneficios do que olbam. Os
outros se deixaréio levar totalmente pelas imagens que veriio na tela ¢ ficarto
confundidos pela diversidade daguilo que eles poderio ver (Arnheim [1935],
1983, p. 202),
Se esse risco é grande com a imagem televisiva, é porque,
contrariamente 4 imagem cinematogrifica, que prolongs a vista, ela46 COMPREENDER A TELEVISAO
pde o mundo na mio do telespectador e, como tal, depende sobretudo
do toque. Hissa propriedade tatil da televisio é sublinhada por
McLuhan, que vé nisso um argumento de peso para dela se desconfiar,
bem como de seus efeitos nefastos sobre as criangas. Enquanto a
escrita fonética recorre ao visual ¢ requer uma leitura analitica, a
televistio exige uma participagiio ¢ um engajamento de todo 0 ser, tudo no sentido
do toque, Pata 0 socidlogo, essa impossibilidade de isolamento, que
engendra a miopia, em nada depende da programagéio e aconteceria 0 mesmo se
0 conteiido dos programas fosse sempre do mais elevado valor cultural (1977
[1968], p. 379-380). Independentemente dos eventuais perigos, essa
tactilidade do ao vivo tem duas incidéncias fortes, uma sobre os
programas e outta sobre a relacdo com o telespectador.
Enquanto 0 cinema volta-se prioritariamente pata a ficca
essa capacidade da televisio de por qualquer telespectador em
contato com os mais variados pontos do globo é uma fonte continua
de admiragio e, até mesmo, de narcisismo. Se, como disse Godard,
0 documentirio é 0 tescto que fala dos outros; a flaca é aguele que fala de mim,
isso fa
crer que a televisao, desde sua origem, parece falar de mim
quando fala dos outros, ou ao menos quando fala dos meus
semelhantes, Como afitma Gilbert Sedes ({1950] 2003, p. 57), em
um texto de 1950, as pessoas se interessam mais talvex pelas pessoas do que
pelas tramas . Esse enternecimento pela propria condi¢io humana e
pela banalidade do cotidiano faz supor, desde 1936, que os
Jelespectadores preferem assistir a uma imagem real e ao vivo do Circo Oxford
nas horas de pico a ver a mais recente das comédias musicais de un custo de
100.000 kibras. A conjugacio entre esse valor de verdade atribuido 4
transmissao direta ¢ 0 interesse pela banalidade cotidiana s6 passa a
se exprimir plenamente algumas décadas mais tarde, com o
surgimento de Big brother, sob 0 nome de Loft story, na Franca.
e Intimidade
Um outro traco da linguagem televisual sobre o qual todos
concordam € a relagao particular de intimidade que instala com 0
espectador. Para muitos, como Gerald Cock (2002 [1936] DA,
Francois Josr 47
p. 47), 0 cinema tem alguma coisa de impessoal , destina-se a um piiblico
numeroso, contrariamente @ televisiio, que, como 0 radio, enderega-se a
uma sé pessoa. A partir de 1954, Wladimir Porché, diretor da Radio
‘Televisio Francesa, passou a tecomendar a todos que se dirigiam
a0 ptiblico que fixassem a edmera visto que eles se dirigem nao somente a
uma sala, mas a espectadores isolados'. Essa nova notma opde-se
totalmente aquela do cinema de ficgio, que, exceto em géneros
particulares (como a comédia musical), probe os atores de olharem
para a objetiva. Por que existe essa diferenca fundamental entre as
duas midias? Porque o filme, responsavel pela apresentagio da
intriga, deve dar a impressio de que se desenrola unicamente pata
que o espectador com ele se identifique, ao passo que o endereca-
mento do animador pata o telespectador visa primcitamente
estabelecer uma ligaco proxima da conversagio, 0 que supde uma
troca franca, olhos nos olhos.
e Uma sintaxe televisual?
Alguns tealizadores ou tedricos consideram que essa
intimidade é quase induzida por um determinismo técnico: a televisio
estaria condenada ao grande plano, que representa o individuo na
escala de seu telespectador, simplesmente porque a telinha torna
ilegivel o plano geral e 0 plano conjunto. George Freedland (2002
[1949], p. 61) estabelece uma compatacio entre as linguagens
cinematogrifica ¢ televisual a partir desses dados. De inicio, diz ele,
fio a
convém distinguir televisio e telefilme: a primeira é aquela vis
distncia, j4 evocada, que se presta particularmente bem a retrans-
missio ao vivo de acontecimentos da atualidade; a segunda
caracteriza os documentos cujas cenas foram registradas em um
suporte cinematografico e ordenadas em uma ordem preconcebida.
Para Preedland, a televisio utiliza a sintaxe da montagem
cinematografica, notadamente a montagem paralela, que entrelaca
‘Mon programme, n° 78, 1954,48 COMPREENDER A TELEVISAO
varias séries narrativas para exprimir a simultaneidade. Com efeito,
na reportagem ao vivo, o realizador tem a possibilidade de passar
de uma cimera 4 outra, de aproximar os espacos divididos e de
reforgar a convic¢io do telespectador de que ele esti em toda a
parte ao mesmo tempo, Essa figura de retética (mais que de sintaxe),
herdada de Griffith, é ainda muito frequentemente utilizada: ela
permite dramatizar tanto o entetro de um chefe de Estado (gf 0
funeral de Mitterrand, que alterna as cetiménias da Notre Dame de
Paris ¢ de Jarnac), como 0 Tour de France (cortida que mostra os
corredotes do primeiro escalfio e aqueles que os perseguem).
Paradoxalmente, é 0 telefilme que mais difere do cinema e
que traz novidades quanto a sua sintaxe, por razOes que se ligam
menos a0 objeto ou as condigdes de filmagem ¢ mais aquelas de
recep¢!
». Diferente do espectador de cinema, que esté grudado em
sua poltrona, o telespectador, em casa, tem livre movimentacio, do
que decorre uma menor concentragiio. O realizador, para Freedland,
a0 deve jamais perder de vista esse dado e deve levar em conta tanto
a filmagem quanto a montagem: além da eliminacio dos planos de
conjunto ja refetidos, deve evitar as agdes de conjunto, simplificar a
montagem, actescentando os planos explicativos, e abrandé-los. Como
se constata, essas transformagoes retéricas da linguagem televisual
nio mudam em profundidade a propria linguagem cinematografica.
Seja como for, o debate sobre a especificidade da televisio em relacio
ao cinema ptossegue até os anos 70, posicionando-se em favor do
cinema, pelo fato de os criticos considerarem que a criaco est sempre
ligada 4 linguagem cinematografica: o Office de Radio-Télévision Franeaise
(ORTF) estava superequipada em video (iéenita de registro eletrinico). Os novos
canais devem hoje rentabilizar esse equipamento em detrimento do filme, técnica
que permite (na montagem em particilar) mais flexibilidade ¢ lisura. Todos os
documentos de criagiio que vocks veem este ano sao filmes (Jacques Bertrand,
Télédrama, outubro de 1975).
A evolugio da televisiio nem sempre confitmou as profecias
de Freedland: com a melhoria da qualidade das telas, 0 plano
conjunto retomou seu lugar nas montagens ao vivo, a ponto de os
Francors Jost 49
jogos de ténis serem hoje quase exclusivamente retransmitidos desse
modo. Cada vez mais se encurtou a dutacao dos planos, ¢ a
transmissao direta deixou de submeter-se exclusivamente a sintaxe
cinematografica: os realizadotes de debates ou de jornais televisivos
nem sempte respeitam as sacrossantas ligagdes, considerando sem
diivida que a compreensio do sentido € suficiente para assegurar a
continuidade espacial.
2.3 ARTE DE PROGRAMAR
A teoria da televisio tem isto de particular: ela se ancora
em uma reflexio sobre a atividade do telespectador. Se essa atividade
tem incidéncias em termos de linguagem, ela provoca, sobretudo,
consequéncias em termos de contetido de programas, Como captar
aatengio nesse livre ir ¢ vir no interior da propria casa? Com efeito,
supde-se equivocadamente, no inicio de toda programaciio televisual,
que o telespectador pate suas atividades, para se plantar na frente
de uma tela, e olhe em siléncio um episédio que o aborrece. Como
ela exige, apesar de tudo, mais atengio que o radio — escuta-se o
radio dirigindo, mas a televisio nao —, conclui-se, em oposi¢io a
opiniio de Freedland, Gilbert Sedes ¢ Jean Thévenot, respec-
tivamente os primeiros diretores dos programas da CBS, nos
Estados Unidos, e da televisio francesa, que a nova midia deve
privilegiar a brevidade e adaptar suas emissdes ao ritmo de vida dos
telespectadores (Seldes, 1937; Thévenot, 1946). Os petiodos da
semana ou do dia que permitem maior concentragio sto adequados
4 difusfio de filmes (meio da tarde, fim de noite, domingo); nas
horas de atengio dispersa, sio privilegiadas evvissdes radiofinicas ornadas
de imagens tao pouco necessérias como aquelas de um Balzac ilustrada
(Thévenot), ou seja, as emissdes fazem mais apelo ao ouvido do
que aos olhos. De fato, os ptimeiros programas de televisio advém
diretamente dos programas de radio. Que se considere isto: 0 Correio
Parisiense, radio de sucesso no periodo de entreguerras, difundia
informagoes, emissdes de variedades em auditétio, jogos, teatro50 COMPREENDER A ‘TELEVISAO
radiofénico, concertos de misica classica, mas também de jazz,
gravados pelas melhores orquestras da época no grande auditério
dos Champs-Elysées (fonte: 100ansdetadio.free.fr). Em sua equipe,
encontravam-se muitos jornalistas ¢ animadores que desem-
penharam um papel importante nos primeitos anos da televisio
francesa — Jean Nohain, Claude Darget ou Jean Guignebert.
A preocupagao com essa adequagao entre o programa ¢ 0
tipo de atengao que permite a atividade do telespectador é muito
maior nos canais de televisio comerciais, o que nao é 0 caso da
Franca, mas é 0 dos Estados Unidos, entre outros. Freedland (1949
[2002], p. 60) imagina, a partir de 1949, que a presenca da publicidade
vai pesar na estrutura dos programas: ela deveria, segundo ele,
reabilitar a forma antiga do serial com um numero indefinido de
episddios: No fim de cada transmissaio, esses telefilmes terminariam pelo
antincio do que segue, a fim de que o expectador, ansioso por conhecer a sequéncia,
soja obrigado a ver e escutar a publicidade que enquadra 0 programa.
Até 1964, a Franca sé tinha uma emissora de televisio que
transmitia essencialmente na parte da noite. Assim, a ideia dessa
articulagao da programagao com a vida cotidiana dos telespectadores
nfo ganhou forca. A escolha dos programas segue somente em
parte o ritmo da vida social: terga, dia de folga dos teatros, dramatica;
quinta, dia de descanso das criancas, programas pata a juventude.
As mudangas s6 ocorrem verdadeiramente em 1964 com a chegada
da segunda emissora: a progtamacao entao se torna a arte de elaborar
uma grade, termo que s6 aparece na televisao francesa nesse ano.
Nos anos 70, com a chegada de uma terceira emissora, a concorréncia
se instala e a programagiio nio é mais uma estruturagao do tempo
motivada pelo calendario social; ela se organiza em uma distri-
buigio as vezes arbitratia de emissées em fungio do horario,
distribuicdo essa cujo objetivo central é atrair mais telespectadores
que os outros canais. O capitulo 4 retoma em detalhes os instru-
mentos da programagao. Cabe aqui frisar que, na televisio de hoje,
é ela que permite aos canais se diferenciarem uns dos outros ¢
forjarem uma identidade.
Prancos Jost 51
2.4 IDENTIDADE DAS EMISSORAS
e Emissora como marca
Até os anos 70, quando a televisio fala dela mesma, é
essencialmente para dar a conhecer ao telespectador os bastidores
da instituicao televisual, o fancionamento da empresa no que concerne
aos diferentes oficios com que opera, passando pelas reportagens
consagradas as estrelas da telinha (Spies, 2004, p. 246). A chegada da
segunda emissora nao muda muito esse estado de coisas, dado que,
ao término de seus dois primeiros anos, 70% das pessoas suscetiveis
de tecebé-la confessam nunca té-la olhado. Somente com a chegada
da terceira emissora, inaugurada em 31 de dezembro de 1972, a ideia
de emissora verdadeiramente se impés. Seu langamento foi precedido
por uma campanha de comunicagio ¢ por um documentirio em dois
momentos, difundido pela segunda emissora: a primeira parte
intitulava-se, de maneira fortemente significativa, A imagem de, marca
da tetceira emissora (17 de dezembro de 1972, as 16h30) [Chambat-
Houillon, 2005]. Fa instituigao televisio cedendo lugar as emissoras
que passam a se constituit em marcas.
Para compreender a transformagio profunda que essa
mutagao implica, é necess4tio recordar os caracteres constitutivos
da marca: o nome, condigaio necessdria pata que cla se identifique
com uma pessoa ou personagem; uma identidade, que se constrdi
ao mesmo tempo por tracos visuais € sonoros; sua carta grafica; e,
enfim, um campo de dominio, que confere determinados atributos
ao discurso da marca (por exemplo, a eficacia, a juventude etc)
A primeira atitude das trés emissoras publicas, depois do rompimento
da Office de Ridio Televisio Francesa (ORT), em 1974, foi aadocio
de um nome, que nao fosse um simples mimero. Assim apareceram
‘Televisio Francesa 1 (TF1), Antena 2 (A2) e Franca Regides 3 (FR3),
com suas logomarcas, Com a privatizaciio da TF1, em 1986, e a
habito estampar
chegada de numerosos canais via cabo, tornou-
as imagens exibidas por esse sage. A motivagio explicita dessa
marcacio é, certamente, o reconhecimento imediato da emissora52 COMPREENDER A TELI
pelo telespectador; mas, em realidade, significa bem mais (tanto que,
gtacas ao controle remoto, o telespectador sabe em getal onde se
encontra): como 0 selo real de antigamente, ele autentica um ato
que, nesse caso, é a difusiio. Fm um perfodo em que os canais
produzem cada vez menos as emissdes que exibem, o /ago da emissora,
insctito na imagem, garante a aprovacao do programa. Em outros
termos, ele testemunha que o programa exibido pertence ao campo
de dominio da marca, ou seja, contém os valores de que ela é
portadora. Para a emissora, toda a questo se resume, evidentemente,
em bem definir qual é esse campo ¢ em evidencia-lo ao telespectador.
Para fazer isso, o logo deve fazer ouvir duas vozes (Jost, 1998).
e Emissora como responsével pela programacaio
Escolher contetidos (emissdes) e coloca-los em faixas
horarias, agao entendida como arte de programar, nio é um
procedimento neutro. A selegio, como a sucessiio e a aproximagio
dos programas sio criadores de sentido ¢ contribuem para forjar a
identidade da emissora. O fato de o apresentador das 13 horas da
TF! orientat seu telejornal em diregdo ao consumo e aos problemas
encontrados pelos habitantes do sul da Franca e de, além disso,
animar Combien ga cofie?, cuja missio explicita é lutar contra os
desperdicios do Estado, tem uma dupla incidéncia sobre a
semantizacio dos programas: de um lado, a presenca de um jornalista
como apresentador de magazine reforca sua credibilidade; de outro,
esse magazine aparece como uma tesposta da emissota ds injusticas
a que 0 telejornal cotidianamente faz eco. A presenca na'I'F1 de
um magazine como Sams ancun doute, no qual o animador telefona
diretamente 4s empresas ou aos individuos que se comportam mal
com os mais fracos, reforga a ideia de que a emissora nao é somente
um intermediario que fala do mundo, mas também um ator que
intervém para defender as pessoas. Outro exemplo, o encadeamento
de um episédio de L’instit e de um debate de Ca se discute, a partir do
tema desenvolyido pela ficgao (a infancia maltratada ou o incesto),
confere uma ptofundidade especial ao telefilme, que poderia passat,
FRaNco1s Jost
sem essa aproximacao, por um simples divertimento. Para evitar
que as intengdes da programagio escapem ao piiblico, ou sejam
mal compreendidas, as emissoras recorrem A autopromocio, aos
trailers € 4 publicidade, esclarecendo a coeréncia de seus encadeamentos,
e Emissora como pessoa
Fazendo as escolhas de programas ¢ de programagio, a
emissora afirma-se nao s6 como responsavel editorial, mas contribui
para construir uma imagem de si prdpria como pessoa e como
parceira do telespectador. Noticiar um acontecimento sem estar certa
de que ele vai-se produzit, como fez a France 2, em 3 de fevereiro
de 2004, as 20 horas, anunciando a retitada do primeito ministro
Juppé da vida politica; ou recusar-se abertamente de programar as
emissGes de telerrealidade s4o atos que participam da construgio
da identidade, ou da imagem da emissora: o primeiro a descredibiliza,
o segundo é uma garantia de qualidade junto a um determinado
public. Tanto para as escolhas editoriais, como pata a de suas
emiss6es, a emissora, como o oradot, constroi uma imagem de seus
valores, de seu ethos (Soulez, 2002). Se, aqui como alhutes, dizer é
fazer, na medida em que constrdi uma personalidade aos olhos do
telespectador, a emissora dispde de numerosos meios de
comunica¢io para construir sua identidade. Em primeiro lugar, vem
a publicidade que explicita o posicionamento: assim, em 1997, a
‘TF1 fez uma campanha radiofonica, na qual os spo/t desenvolviam
aideia de que assistir 4 emissora equivalia a receber seu irmio e sua
cunhada ou a jogar cartas entre amigos. Em segundo, aparece a
vestimenta: em 1992, no momento em que a France-Télévision foi
constituida, a France 2 e a France 3 cobriram todas as telas
publicitarias de imagens, seja cortadas duas a duas no sentido da
altura, seja em trés, na horizontal. Ao mesmo tempo em que
reenviava ao nome das marcas, essa carta grafica significava
respectivamente a divisdo, a interatividade, 0 calor, a conivéncia com o
telespectador e, para a France 3, wma relagho mais voltada para a descoberta,
ion, 1992, p. 3).
¢ experiéncia humana e a proximidade (Prance-TElév54 COMPREENDER A TELEVISA
Nada garante que essas intengdes de comunicagao acontegam sempre
da mesma forma. Sio, enfim, os dossiés de imprensa ¢ as
intervengdes nas midias. Cada vez mais, hoje em dia, os responsaveis
pelas emissoras de televiséo intervém nas outras midias e fazem
promessas sobre o sentido que deve ser conferido aos programas
(cf. capitulo 3). Assim, a maior parte das emissdes de telerrealidade
é apresentada como programas de vertente pedagégica: mostrar os
jovens franceses como eles sio (Laff story), explicar as virtudes e as
atmadilhas dos regimes de emagrecimento (J'ai dévidé de maigri?), ow
mostrar a vida em uma fazenda do século XIX (La ferme), Nao se
tem garantia, entretanto, de que essas proposi¢ées de sentido sejam
recebidas da mesma maneira por todos os telespectadores.
Para resumit, podem-se representar as diversas instancias
da enunciagao televisual da seguinte maneita:
Identidade da emissora
(a televisio)
peer nt
a emissora como a emissora como
responsavel pela pessoa constituida
programagao pelo(a)
ethos autopromogio comunicagio
2.5 O QUE SERA DA TELEVISAO AMANHA?
Em alguns anos, a televisio mudou profundamente, e a nds
encontramos finalmente em uma situagdo pouco distante daquela
que foi descrita no inicio deste capitulo, do ponto de vista, em todo
caso, da proliferacao dos sonhos que ela provoca. Como Robida, ha
mais de cem anos, podem-se imaginar muros de imagens, se esses
no sio espelhos, ¢ um contato do telespectador com o resto do
PRancors Jos
mundo, esteja ele onde estiver, A televisio do futuro tornou-se um
objeto sobre o qual se legisla (lei no 2007-309, de 05.03.2007, relativa
4 modernizacio da difusio audiovisual e da televisio do futuro), ou
do qual se anuncia o fim (Missika, 2006). O que se pode dizer sem
correr 0 risco de se enganar e sem cair nas redes da futurologia?
© Multiplicagao dos canais, fragmentagao do publico
O lancamento da ‘Televisto Digital ‘Terrestre (TNT), na
Franga, em 31.03.2005, provavelmente mudou a paisagem
audiovisual. Os telespectadores tiveram, de pronto, a possibilidade
de receber gratuitamente 14 canais; depois, um pouco mais tarde,
cerca de 20, Em trés anos, as grandes cadeias hertzianas histéricas
puderam ver sua audiéncia cair em relagio as novas emissoras da
TNT, que representavam, no final de 2008, quase 25% da audiéncia
(sobre essa nogio, ver capitulo 4). A TF1 perdeu trés pontos de
audiéncia em um ano, ¢, proximo de 10, em dez anos, para chegar
ao patamar de cerca de 27% da audiéncia. i necessatio ainda
observar que, sempre na mesma data, somente 50% dos franceses,
tém acesso 4 TNT, mas que, em 30.11.2011, toda a televisio
tradicional, ou seja, a televisio analégica vai emigrar para a digital.
Essa baixa mecanica de audiéncia das grandes emissoras, em diregao
aos novos canais gratuitos é, por si s6, uma prova de que o publico
da televisio se fragmenta, embora nao se deva concluir com isso
que ele possa ser reunido. Duas observagdes convidam a um pouco
mais de prudéncia. A primeira diz respeito ao fato de que os grandes
acontecimentos sto ainda capazes de mobilizar enormes quantidades
de telespectadores, como 0 ptova o fato de que a mais alta audiéncia
de 2008 foi registrada pela M6, na transmissiio do jogo da copa
europeia na Franca, em 17 de junho (13,2 milhdes).
‘A segunda é que os canais da TNT com mais audiéncia sio
os generalistas (como a TMC): contrariamente aquilo que muitos
pensavam no momento do lancamento dos canais a cabo, a fragmen-
taco, em outra medida, do priblico pelas emissoras teméticas nfo
se constitui em uma via frutifera. As emissoras mais especializadas56 COMPREENDER A TELEVISAO
estao em dificuldades econdmicas (por exemplo, Pink TV, destinada
aos homossexuais). Isso explica por que as emissoras que segmentaram
o publico procuram hoje alargar seus horizontes: GULL, inicial-
mente dedicada as criancas, busca hoje um ptiblico familiar; W9,
uma emissora até entao musical, tenta tornar-se generalista.
¢ Multiplicagao das telas e mobilidade
Vive-se a era da convergéncia. O telefone, a televisio ¢ 0
computador no sio mais objctos delimitados por fronteiras
intransponiveis, com usos clatamente distintos. Nesse contexto,
torna-se algumas vezes dificil saber a qual desses meios de
comunica¢ao deve-se reservar 0 nome de televisio: certamente a
tela que reina ainda na sala de estar parece merecer mais que os
outros esse titulo; mas, do ponto de vista da funcio, que é a de
permitir ver a distancia, ela nao é a unica a de!
empenhar essa tarefa,
O emprego da televisio, multiplicado no interior de um mesmo
centro, da mesma forma que os computadotes e os telefones moveis,
faz com que nfo seja raro uma familia dispor de cinco ou seis telas
mjinimas pata recebet as imagens difundidas. F af que reside uma
outta causa de fragmentacio possivel do publico. Pode-se ver nisso
tanto o fim da televisio, como uma extensio de seu poder: se, até
agota, a televisio mobilizava o telespectador (menos que o cinema,
€ verdade), ela 0 acompanhara amanhi por todos
s lugares em que
ele for. Nesse sentido, est assim reforgada sua presenca no cotidiano,
Paralelamente se assistiré a um duplo movimento tecnolégico (que
ja esta em ago): de um lado, a miniaturizacao das telas mdveis; de
outro, o aumento das telas fixas em casa, até o telio das imagens.
Essa nova situacio trara consequéncias:
a) sobre os programas — sem ser um defensor do
determinismo tecnolégico, pode-se pensar que a natureza dos
espetculos difundidos no telio ¢ na tela portitil nto é a mesma: 0
que é espetacular para 0 primeiro (um jogo, uma ceriménia ou um.
filme), € reduzido para o outro, e, inversamente, imagens amadoras
que passam bem na tela portatil nao so tao agradaveis de ver na
Francots Jost Bi
tcla grande. Ai reside a questo de saber que contetidos convém as
duas ao mesmo tempo.
b) sobre a programac&o — ainda que as grandes emissoras
de televisio hertziana busquem, durante o dia, um ptiblico mais
homogéneo, bem conhecido dos programadores, pessoas que estio
em casa, elas devem compor com um piblico muito mais hetero-
géneo, cujas prdprias atividades serio diversificadas (transporte,
lugar de estudo ow trabalho, lugares péblicos etc), 0 que deveria
ocasionar incidéncias sobre a natureza dos programas difundidos
(capitulo 4).
e Autonomia do telespectador
A duragio de assisténcia 4 televisio tende a diminuir
(3h24min em média para os franceses em 2008, com trés minutos a
menos do que em 2007), e a baixa é mais sensivel na faixa de 15-34
anos (2h38min por dia, com seis minutos a menos). Uma das tazdes
por que os jovens veem menos televistio que os mais velhos é 0 fato
de que eles passam mais tempo na frente do computador, o que
nao quer dizer, entretanto, que eles se afastem da televisdo. Bem ao
contritio, isso significa, acima de tudo, que, em vex de esperar que
uma emissora programe a sequéncia das séries de que eles gostam,
eles vio procutat na internet as sequéncias seguintes. Hssa liberdade
em telagio as restrigdes ditadas pela programac’o dos canais é um
sinal, entre outros, de uma determinada tendéncia dos telespecta-
dores para a autonomia (sobre a qual se falar no capitulo 4). Essa
tendéncia nao é completamente nova se se recorda a minirrevolugao
no comportamento acatretada com a chegada do magnestoscope nos
anos 80. Mais do que perder uma emissio ou dormir tarde, os
telespectadores, nessa época, habituaram-se a se desligar dos horatios
rigidos da grade e de vé-la segundo sua vontade. O que muda com
© digital é que essa possibilidade, que dependia até entio do
telespectador, passou a ser proposta pelos sites, pelos operadores
telefdnicos ou pelas préprias emissoras, porque isso permite uma
troca bidirecional com o usuario (contrariamente 4 televiséo58 COMPREENDER A TELEVISAO
analégica cuja comunicagio era vetorializada ¢ sem retorno possivel
pelo mesmo canal). Assim apareceram Video on demand —VOD (as
vezes ttaduzido por Video a demande — VAD) ¢ a televisiio de
recuperacio ou catch-up télévision, que petmite rever, durante alguns
dias, no site de uma emissora, o progtama que foi perdido.
Os japoneses jé trabalham com modelos mais ambiciosos:
uma vez que a capacidade dos discos duros dobra a cada nove meses,
logo se poderd gravar todo um ano de televiséo ¢ escolher o que se
quer ver em fungio de seus proprios parimetros — género de
programa, atores, ou tipo de narrativa..
io apenas concretizou, como se viu,
A invengio da televi
as aspiracdes ancestrais do homem (estat onde ele nao estava, ver a
distancia). Nao é certo que a televiséo do futuro se funde sobre
novos sonhos. Ela permitira somente satisfazé-los um pouco mais.
A multiplicagio das emissoras e das telas, a faculdade de cada um
programar seus contetidos seriam fatores suficientes para determinar
o desaparecimento dos grandes difusotes ¢ 0 fim da midia televisio?
Quando se considera a evolugio do tidio ao longo dos ultimos
decénios e esta, recente, da internet, pode-se duvidar por duas razdes:
uma que vem dos atores econémicos € outra dos telespectadores.
Na vertente econdmica, passado 0 Momento da segmentacio,
assistiu-se a movimentos de concentra¢a0 que conferem autoridade
aos contetidos € aos grandes grupos. Quanto ao telespectador, é
possivel apostar que, apesar das veleidades de autonomia, ele nio
perder o gosto de set surpreendido por um espetaculo que cle nao
esperava, encontrado no simples gesto de acender a televisio.
Franco Jost
3. PARA ALEM DA
IMAGEM, O
GENERO
De alguns anos pata ca, 0
lancamento de novos programas
vem getalmente acompanhado de
ica que os
uma campanha mid:
rotula, que os nomeia. Em 1999, a
denominacao docunovela apareceu
para catactetizar os novos programas
que apresentavam, sob a forma de
folhetim, a vida de cidadios comuns.
Depois foi a era da telerrealidade
ou da real televisio para Big brother,
Survivor e seus detivados. Enfim,
neste momento, fala-se de docu-
ficcdo, para qualificar os produtos
audiovisuais, como L’edyssée de
Tespice. De onde vem essa obsti-
nacdo de produtores ou difusores
de fazer corresponder uma categoria
nominal as emissdes que se ve?
Em primeiro lugar, vem do
fato de que 0 sentido global das
imagens nao se impde sozinho.
A dissecacio do extraterrestre de
Roswell, a retransmissao ao vivo do
desabamento das Torres Gémeas
de Nova Torque, o testemunho de
cosmonautas contando que a expe-
digo para a Lua foi construida, em
todas as pecas, em um esttidio sao
momentos muito surpreendentes
da televisio, se capturados por um
gito de zapping. Dessas sequéncias,
surgem inevitavelmente quest6es
do tipo: é a realidade uma ficgao?60 COMPREENDER A ‘TELEVISAD
uma falsidade? uma reconstrugio? uma mentira? etc. E necessario
ter conhecimento para determinar uma posicio de aceitacio, recusa,
colera ete. Para responder a essas interrogacdes que existem na
cabega de todo telespectador, as emissoras, e também os jornais
sobre sua programagio ou os sites de internet, propdem entao
etiquetas que vio satisfazer essa incoercivel necessidade do espirito
humano de tornar conhecido 0 desconhecido, etiquetas essas que
permitem reagrupar um conjunto de emissdes dotadas de
propriedades compariveis e que caracterizam 0 que se convencionou
chamar de género.
Esses génetos, como se viu no capitulo precedente, nao
nascem ex nihilo — alguns vém de outras midias ou mesmo da
sociedade pté-midiatica—e nao sao definidos de uma vez por todas’,
Além disso, a atribuigdo a essa ou Aquela emissio é frequentemente
arbitraria, como prova o exame detalhado das diversas maneitas de
qualificar 0 mesmo programa, Disso advém as miiltiplas questées
que este capitulo vai tentar resolver: ha uma légica subjacente que
permite agrupar a plutalidade dos géneros em torno de um pequeno
nuimero de eixos? Qual é a fungo estratégica da classificagio dos
programas em géneros? O que se deve pensar sobre a mistura
de géneros?
3.1 MUNDOs DA TELEVISAO E TOM DAS EMISSOES
Tomando etiquetas de diferentes épocas: de um lado,
documentitio, reality shom, telerrealidade; de outro, drama, soap opera
(novela), docunovela, docudrama, docuficgao, 0 que se pode
aprender sobre as emissdes?
Documentério vers de documento, termo que os programa-
dores preferem hoje em dia, ¢ que frequentemente se opde A ficcao.
® Um estado de Téidrama, a0 fim de décadas, mostra, por exemplo, que eles sio nume-
rosos e precisos nos anos 70, e mais e mais vagos nos anos 80 (Fsquenavi, 1997),
Francois Jost 61
Por sua derivacao, o termo remete 4 prépria matetialidade do pro-
gama, considerado mais como um documento que como um filme.
Reality show, denominagio americana, importada pela
Franga no inicio dos anos 90, remete 4 realidade, mas sob 0
aspecto distanciado do show, como a maior parte dos nomes de
géneros americanos.
Telerrealidade, surgida na Franca em 2001, remete nfo mais
a.um tipo de documento, mas identifica a midia 4 propria realidade,
apagando simultancamente a ideia de mediagao.
Essa passagem do nome que caracteriza um género pela
sua materialidade (documentério) para um nome que reenvia a um
mundo (a realidade), igualmente, se observa do ponto de vista dos
géneros fictivos.
Drama, nome de género herdado do radio, no qual se deram
as adaptag6es teatrais de um texto, dos anos 50 aos anos 70, remete
por sua etimologia a um espetaculo, o teatro.
Soap opera (novela) data, para a televisio, dos anos 50 €
refere, igualmente, 4s artes da cena e 0 modo de financiamento
(os patrocinadores).
Docudrama data dos anos 70 e designa o fato de dramatizar
acontecimentos, fazendo-os representar pelos atores (Rose, 1985, p. 185).
Docnficeio, nascido por volta de 2003 para qualificar as
emissdes que reenviam a realidade, mas sio representadas por atores.
O género nao esta muito longe do docudrama, mas deve sua
denominagio nao ao teatro, mas a uma categoria bem mais ampla: a
ficcao (existem ficgdes em todos os tipos de arte).
‘Todos esses nomes de género nfo esto no mesmo nivel:
alguns tomam como traco pertinente a forma da emissio (forma
cénica para drama, docudrama); outros, sua materialidade
(documentitio, documento); outros, enfim, fazem referéncia a
conjuntos muito mais vastos (rcalidade, ficg4o), que chamo de
mundos, A hipétese que formulo aqui é que esses mundos podem
servir de fundamento a uma classificacao racional dos génetos ¢
formar arquigéneros. Quais sao cles?62 COMPREENDER A TELEVISAO
e° Mundo real
Todos aqueles que assistiram por acaso as imagens do 11
de setembro ao vivo ficaram pot elas siderados, visto que nao sabiam
muito bem se o que viam se passava realmente em frente de seus
olhos ou se era uma reconstitui¢do hollywoodiana. Essa hesitacio
pode set sentida em muitos casos, nfio necessariamente paroxisticos:
quando, pot exemplo, se pergunta se essa ou aquela cena de
telerrealidade foi vivida por seus protagonistas ou escrita
anteriormente pela produgio; quando se ass
ste a uma cena
improvavel em um outro mundo e nao se sabe mais se se deve cre
ou nio (a dissecagéo de um extraterrestre [Alien autopsy film, 1995]
ou o deslocamento de um copo unicamente pela forca do olhat de
uma crianga). Um cineasta como William Karel levou ao extremo
essa passagem obtigatoria de interpretagao das imagens televisuais,
realizando um filme que desenvolve a tese de que a alunissagem da
Apollo 11, em julho de 1969, é de fato uma gigantesca trapaca,
colocada em cena por Stanley Kubrick a pedido do presidente Nixon
e da NASA. A mistura de testemunhos da época, entre os quais,
Donald Rumsfeld, secretirio de Estado americano da defesa, Henry
Kissinger, enti conselheiro do presidente para a seguranga nacional,
Christiane Kubrick, vitiva do cineasta britdnico, ou ainda Buzz Aldrin,
o segundo homem da Apollo 11, € testemunhos dados pelos artistas
conferem uma grande credibilidade a essa tese, que é, evidentemente,
uma atmadilha para os telespectadores crédulos (Operation June,
primeira difusio em 16.10.2002; segunda difusio em 01.04.2004).
‘Todos esses exemplos, € os outros ainda, atestam que o
ptimeiro interpretante das imagens, para falar como o semioticista
Peirce (1978), € o mundo, denominado por comodidade de mundo
real. Assim fazendo, nfo se afirma que toda imagem deve set
comparada com 0 mundo real para ser interpretada, ou que o mundo
real € uma entidade perfeitamente identificdvel ¢ idéntica para todos.
Quet-se somente dizer que 0 primeiro reflexo do telespectador é
determinar se as imagens falam do mundo ou nfo, qualquer que
seja a ideia que se faca desse mundo: essa visio de mundo varia
Francois Josr 63
segundo as idades (a realidade da crianca nao é a mesma do adulto)
eas culturas (a representacio do mundo real francés nfo é igual 4
do brasileiro, por exemplo).
© Mundo fictivo
A ficgio € 0 termo e a categoria que se opde mais
cottiqueitamente 4 tealidade, como bem testemunha a expressio
frequentemente utilizada: “a realidade tem ultrapassado a ficcio”.
A partir do momento em que se pensa que um relato advém do
mundo fictivo, esté-se pronto a aceitar acontecimentos nos quais
nao se acreditatiam set atribuidos ao mundo teal: assim, o mesmo.
telespectador, que se recusa a cret em uma imagem, retirada de uma
revista sobre o paranormal que mostra uma crianga deslocando um
copo somente pelo poder de seu pensamento, pode ter imenso prazet
em seguir uma série ou um filme fundado na telequinesia.
Inversamente, a pegadinha de um pedestre que tropeca na calgada e
se estatela no chao em todo comprimento nao faz o telespectador
sorrir em uma ficgao, mas desencadeia ataques de riso no Videggag.
Como a crenca em relagio aos acontecimentos mostrados ou
contados difere, quer estejam ligados ao mundo real ou 20 mundo
fictivo, é usual dizer, desde Coleridge, poeta e critico britanico do
século XTX, que a compreensio da fic¢4o, em oposigao 4 realidade,
repousa sobre uma suspensio da incredulidade. Contudo, mesmo
ai, a atribuicdo desse ou daquele documento ao mundo fictivo nao
um processo universal ¢ intangfvel: os personagens das telenovelas
sio as vezes identificados pelo piblico brasileiro como pessoas
verdadeiras, até porque personalidades politicas reais desempenham
por vezes um papel nesses folhetins. Quanto ao termo docuficgio,
evocado, ele testemunha a completa dificuldade de cada um em
determinar de que lado se encontram os filmes como L’Odssée de
Zespece. Fissa dificuldade surge justamente quando se evoca um filme
baseado em uma historia verdadeira, 0 que sera retomado no capitulo
6. O importante, no momento, é reconhecer que uma fico supe
uma certa coeténcia, o que nao é obrigatoriamente o caso do mundo,
uma parte de invengao e a presenga de atores.64 (COMPREENDER A TELEVISAO
° Mundo hidico
Uma outra categoria que supde o respeito as regras ¢ que,
no entanto, encontra as vezes sua verdade no mundo teal é 0 jogo.
Vejam-se, como exemplo, os seguintes jogos televisuais: um homem,
que se faz passar por um padeito, deve confeccionar em alguns
minutos uma massa de pizza (Qui est qui?), uma mulher caminha
sobre uma viga, a dez metros do solo, com uma venda nos olhos
(Fear factor); um marido deve descobrir qual é 0 prato prefetido de
sua mulher (Les zamouri). O primeiro caso impée ao candidato o
desempenho de um papel, como na fico, mas, diferentemente
daquele que se faz passar pelo padeiro, seu comportamento vai ser
julgado verdadeiro ou falso, no apenas em funcao de sua aparéncia
(como € 0 caso pata o ator), mas em referéncia A sua situacdo
ptofissional real. O segundo proporciona prazer ao telespectadot
porque ele nao ¢ feito pot um dublé, como em um filme, mas por
um amadoi, que, no entanto, nao corre mais risco que um ator,
dadas as miltiplas precaugdes tomadas pela produgao. O terceiro,
enfim, repousa sobre uma série de respostas to arbitrarias como
as perguntas cuja vetdade se julga em fungao daquilo que cada um
diz de sua vida.
O mundo hidico é, portanto, intermediério entte o mundo
da ficcio, a0 qual se conferem regras, eo mundo real, ligando de
formas diversas 0 jogador 20 mundo do jogo. Se os jogadores podem
representar papéis, cles entram algumas vezes em um mundo
estruturado por um telato completo e coerente. Em outros
termos, 0 jogo faz sempre mais on menos referencia a ele proprio:
distinguiram-se, até 0 momento, duas maneiras de fazer mundos:
seja fazendo referéncia ao mundo real —o que se convenciona chamar
tealidade; seja fazendo referéncia a um mundo mental. Nos dois
casos, 0s signos visam a uma certa transparéncia, sobretudo em
e
tratando de imagens e de son
eles assumem menos importancia
do que aquilo que mostram. [3 preciso acrescentar uma terceira
maneira, na qual os atos, os gestos ou as imagens fazem sempre
referencia as regras que os organizam: 0 mundo hidico. Esse é sui-
FRancots Josr 65
reflexivo: ao mesmo tempo em que faz teferéncia a realidade, ele
remete a si mesmo.
Os jogos, contudo, esto longe de constituir uma categoria
homogénea. Alguns se engajam a realidade (os jogos de papéis, os
quiz, cujas assercées sio verificiveis no mundo real ete.); outros sio
fortemente pintados com tracgos de ficgao. Os mais gratuitos entre
eles visam 20 jogo pelo jogo (como 0 salto com elistico, cujo prazer
reside no ato em si mesmo) [volta-se a essas distingdes no capitulo 7].
Ao para a verdade da informagio, que toma 0 mundo como
referente, ao para a falsidade da ficgio, que visa a. um universo mental,
é necessario entio acrescentar um para 0 riso, cuja mediagao toma
por objeto, quer se trate de jogar com a linguagem (enunciagio), de
jogar com 0 jogo (alfa) ou de fazer a arte pela arte.
Resumindo, os trés mundos — mundo teal, mundo fictivo,
mundo hidico — podem ser esquematizados da seguinte maneira:
Lidico
Real Fictivo
© Tom das emissies
O fato de uma emissao enviar a um mundo ~ real, fictivo
ou lidico — no prejulga a maneira como ela realiza esse ato.
Da mesma forma como um professor pode set muito sétio ou
privilegiar o humor, uma emisstio pode se referir A realidade ou 4
ficcio, sob varios tons.
A titulo de exemplo, considere-se a entrevista de uma artista
para um jornalista ou um animador. Como géneto de discurso, essa
forma de diélogo nao € propria de um sé tipo de emissio: ela pode66 COMPREENDER A TELEVISAO
ser encontrada tanto no telejornal como em diferentes magazines.
Em uma mesma semana, uma mesma artista pode ser interrogada
em diversas emissGes por ocasifio do langamento de um livro ou de
um filme. As entrevistas vio somente se diferenciar pelo tom: a
aptesentadora do T] estara séria, uma outra favorecera o humot
(20h 10 pétantes) e uma outta ainda, a insoléncia (On peut pas plaire a
tout le monde). Esse tom nao esta longe de representar a marca de
fabrica do animador, por ele declinado em diversos programas, e
que deve ser adequado & identidade da emissora (¢; 0 tom deslocado
ou irdnico do Canal +).
Esse tom é também o que seguidamente distingue as ficcdes
das diferentes emissoras. Todas elas tém séries policiais e muitas
contam a mesma histéria: isso que prende os telespectadores a essa
ou aquela série decorre do mesmo processo: ama-se 0 humor do
Dr House,a gentileza dos personagens de PJ ou o cinismo do inspetor
Rovére, no Boukvard du palais.
Como se pode ver, 0 tom nfo esta mecanicamente ligado
ao mundo: 4 semelhanca dos magazines que, embora reenviem &
atualidade, podem ser sétios, cémicos ou insolentes, os jogos nio
tém obtigatotiamente um tom hidico — Julien Lepers, em Question
pour wan champion, apresenta as quest6es com a maior seriedade; Nagui,
qualquer que seja o jogo que anima, introduz uma dose de humor
de segundo grau; ja o formato internacional do Maillon faible (The
weakest link) deve seu sucesso 4 seyeridade de sua animadora
(Laurence Boccolini). Nio se pode confundir, portanto, tom €
mundo: ainda que um animador permeie seu jornal de blagues (como
0 fez, em seu tempo, Bruno Masure), isso no é suficiente para
classificar 0 telejornal sob o rétulo do mundo hidico. O tom é um.
componente que se ancora principalmente no animador, para as
emiss6es que advém do mundo real ¢ lidico, ou nos personagens,
no caso da ficcio.
Embora 0 tom seja uma categoria a qual recorrem os
profissionais, ele ainda é largamente negligenciado pelos
pesquisadores (Duarte, 2004, 2010).
Francois Jost 67
3.2 Paphis ESTRATEGICOS DO GENERO
© Diferentes usos do género
Todos os géneros estio ligados a um dos mundos aqui
definidos. Mas, se essa ligagéo parece ir além, em certos casos
(informacio, reportagem: teal; filme, telefilme, séties: ficgio ete),
nao é sempre tao natural que se possa crer neles « priori. As emissoras
podem ter intetesses diversos para ancorar um programa nesse ou
naquele mundo: assim, em um perfodo de desconfianga em relacio
4 informacio televisual, 0 r6tulo telerrealidade é destinado a conferir
essa autenticidade de que o publico necessita depois dos reality shows,
que, ha dez anos atras, surgiram com a mesma finalidade. Para
aumentar a credibilidade de uma ficc&o, uma emissora pode
igualmente escolher autentificé-la por um antincio que insiste em
sua ancotagem no mundo real, por exemplo, mantendo
deliberadamente a confusio entre 0 personagem € 0 ator.
Para tesumir, uma ficcio pode ser apresentada como
realidade (exemplo precedente); um jogo pode set apresentado como
realidade (Loff Story); acontece até mesmo de a realidade ser
aptesentada como ficcio (Paule [col. La saga des Frangais, diff. FR3,
27.06.1977], filme sobre a vida de uma enfermeira em um hospital,
identificado como uma invencio por parte do jornalista, dedicado
a subjetividade).
O nome do género nao term como tinica fungio impor ou
propor um sentido ao publico, ele responde também a interesses
jutidicos ¢ econdmicos, como demonstram os dois casos seguintes:
a) Obrigagies em relagiio ao caderno de encargos. Cada emissora
s6 esta autorizada a emitir em fungio de um caderno de encargos
ou de convengées, negociadas com o CSA, que fixa seus deveres no
que concetne aos programas. A TF, por exemplo, deve dedicar
16% de seu volume de negécios do ano precedente a obras originais
ou europeias inéditas, cuja difusio comece entre 20 ¢ 21 horas, entre
as quais ela deve produzir 120 horas de ficcio francesa inédita. Mas
que programas podem ser classificados nessa categoria? E. possivel68 COMPREENDER A TELEVISAO
incluir um esquete original destinado a tornar atrativos 0s resultados
da loto? O CSA pode contestar ou se recusar a computar esse
programa na cota de ficgao francesa solicitada 4 emissora.
© caderno de encargos adotado, em 2009, pela France
‘Télévision prescreve que @ sociedade difunda pelo menos um programa
cultural cada dia, na primeira parte da noite, ttatando dos seguintes
géneros: retransmissio de espetdculos ao vivo, emissées musicais,
magazines e documentarios de cultura e de conhecimento,
acontecimentos culturais excepcionais, ficgdes audiovisuais ¢
cinematograficas (adaptagoes literarias, reconstituigdes histéticas.
A questio é, evidentemente, saber 0 que se denomina de cultura:
sem diivida, o legislador, quando fala de adaptagao literaria, tem na
cabega as grandes obras do patriménio (Balzac, Maupassant...), mas
© que dizer quando se trata de Feydeau, que se insere em todas as
vertentes, ou de Louis de Funes? Alguns objetario que os filmes
desse ultimo nao pertencem a cultura. Entretanto, basta programa-
los em uma colegio, Cémico de sempre, para fazé-los entrar no museu
imaginario do cinema... De fato, é evidente que esses cadetnos de
encargos levam em conta uma ideia de cultura legitima ¢ consideram
como nao pertinente os produtos da cultura popular.
b) Categorizacéo ¢ auxtlios 4 produgio. Se a categorizacio obra é
determinante para a verificagio dos deveres da emissota, ela pode
também, por outro lado, abrir-lhe os direitos aos sistemas de ajuda ao
investimento, assegurados pelo Centre National de la Cinématographie
(CNC). Um exemplo recente: segundo essa organizacio, os
divertimentos nio podem jamais ser considetados como obra, mesmo
que eles sejam majotitariamente realizados fora do palco, o que leva a
excluir desse estatuto programas como Lof story. No entanto, os
desenvolvimentos da suposta telerrealidade contornaram a dificuldade
recorrendo a gravacio dos programas. Essa é a estratégia empregada
pelo Papstars. Como se sabe, essa emissio mostra, durante muitas
semanas, os bastidores de um conjunto nacional destinado a criar um
grupo musical feminino. Seu produtor (Adventure Line, do grupo
Expand) batiza-a como um folhetim, argumentando que ela relata
durante muitas semanas, em um estilo reportagem, os fatos ¢ os gestos
Frangots Jost 69
advindos de pessoas reais. Se essas emissdes se sucedem como os
episddios de uma novela, fica mais dificil reconhecer seu estatuto de
documentario, que supde geralmente que se filme um estado do
mundo preexistente a filmagem, ao contririo de Popstars que organiza
um mundo com o tinico objetivo de filma-lo. Seja qual for essa
diferenca, o CNC e o CSA admitiram Popstars na categoria
documentario, 0 que permitiu 4 produgio 0 acesso A conta de
subvengao 4 industria dos programas e o beneficio de 126.500 euros
do CNC para cada uma de suas trés temporadas.
Final de dezembro de 2001, a Sociedade dos Autores
e Compositores Dramaticos (SACD) e muitas instituigdes,
defendendo interesses artisticos € culturais, entraram, perante
o Conselho de Estado, com um recurso contencioso em face 4
tentagio de alargamento da qualificapio de obra audiovisual a programas
de telerrealidade que néo correspanderian aos eritérios que uma obra
exige. A SACD considerava que a emissio tinha 0 carater de
jogo televisual, variedades ¢ autopromogio. O Conselho de
Estado tejeitou o pedido, considerando que ele nfo tinha
fundamento. Julgou que Popstars tinha por principal funcato
apresentar ao puiblico entretenimento, formagao e progressao, no dominio
da musica, das pessoas selecionadas, e descrever wm initio de carreina
ofetiva, no seia dos fazeres do espetdculo, acrescentando que a emissao
comporta elementos de roteira, mise en scéne ¢ montagem que sao
elementos prdprios a obra televisual. O Conselbo de Estado destacon
que a enissia comportava certos elementos de jogo e de variedades, mas
que esses no eram sendio nim aspecto acessério ¢ ndo reduziram o programa
Popstars ao meio jogo on a una emissio de variedades, (Relatorio de
atividade 2003 do CSA). Em suma, uma decisio como essa
poderia mudar a definigio do documentatio.
© Promessas dos géneros
De tudo que foi dito, pode-se concluir que o géneto é uma
interface entre produtores, difusores e telespectadores, via70 COMPREENDER A TELEVISAO
mediadores que sao os jornalistas. Se ele possui uma fungao
esttatégica na comunicagao televisual, isso se deve A virtude de um
nome, de uma etiqueta, como os discursos produzidos no
langamento de um novo programa, Ele é a promessa de uma relagio
com um dos trés mundos definidos ja citados.
Mais precisamente, 0 géneto contém duas espécies de
promessas:
a) uma promessa ontoligica. Essa promessa esta contida no
proptio nome do género. Toda comédia, por exemplo, é uma
promessa de riso, independentemente de seu sucesso efetivo
enquanto comédia. ‘Toda emissio ao vivo esté fundada sobre a
simultaneidade do acontecimento e da tecepgao c, ao mesmo tempo,
€ portadora de uma garantia de autenticidade, o que uma emissio
gravada forgosamente nao tem. Toda ficcio é a promessa de um
mundo organizado em fungio de uma coeréncia do conjunto, Essa
enumeracio pode prosseguit, mas cla, por si sé, jé convence de que
© conhecimento das promessas ligadas ao género é mais ou menos
partilhado pelo puiblico. Se todos estio de acordo a respeito da
obtigago de a comédia ser cmica, o tetmo ao vivo se presta hoje
a muitas confusdes; alguns utilizam o termo para qualificar
Programas nos quais um cantor canta em cena sem play-back; outtos
para designar imagens tomadas ao vivo (2), nfo hesitando os
proprios jornalistas em afirmar, em determinadas circunstancias,
que as imagens a serem mostradas foram gravadas no dia anterior
a0 vivo de Bagda... (¢f capitulo 5). Quanto a ficgio, a telagio que ela
estabelece com a realidade nem sempre é clara no espitito do
tclespectador (capitulo 6). Pod
a categorizacéo de uma emissio em um género advém a0 mesmo
tempo da crenga e do saber: ela desencadeia no telespectador a
relacio com um mundo, ele préprio portador de uma crenca
particular; mas, como essa ctenca pode estar equivocada, cabe a0
analista de televisio melhor definit 0 que se pode espetar de um
género ou, se se prefere, qual é seu horizonte de expectativa (Jauss);
b) uma promessa pragmatica, Uma coisa é sabet 0 que €0 a0
- concluir dessas observacdes que
vivo ou a ficgio, outra é determinar se esse ou aquele programa é
FRaNcors Jost n
um ao vivo ou uma ficcao. Seguidamente, o telespectador nao sabe
a priori a que genero uma emissao se liga, seja porque seu formato
(¢, capitulo 4) é novo, seja porque nao existe nenhum modo de o
saber: por exemplo, nada diferencia a retransmissao de um magazine
ao vivo de uma retransmissio de um magazine gravado nas condicoes
de ao vivo e é necessario frequentemente indices extratclevisuais
para determinar se se trata de um caso ou de outro (por exemplo,
saber que um cantor, Patrick Bruel, visto em 13.02.2002 no Séar
academy, etiquetado como diteto, apresenta-se no mesmo momento
em um teatro parisiense). Para influenciar as crengas dos
telespectadores, as emissoras atribuem de antemao determinado nome
de género a um programa: uma vez que o direto é portador de uma
promessa ontoldgica de autenticidade, elas nao hesitam, como se viu,
em estampar as imagens dessa mengiio, mesmo quando ela é falsa.
As estratégias de marketing vio bem mais longe: 0 mais belo sucesso
de seus Ultimos anos é, sem dtivida, a telerrealidade. Langada
originalmente com a etiqueta real-life soap, Big brother, ao se tornat Loft
story na Franga, viu-se dotado de um novo nome de géneto:
telerrealidade. Se a primeira, dada pelo produtor da Endemol,
direcionava 0 programa a ficgiio, mostrando que se tratava de fazer
folhetim com a vida real, 2 M6, de inicio, situou o programa
inteiramente no lado do mundo real. Essa estratégia andou para além
de toda esperanca, focalizando, no langamento do programa, debates
entre intelectuais sobre a questo da documentaridade e da
reptesentatividade dos jovens (ver andlise detalhada desse langamento,
capitulo 8). A promessa pragmatica pode também consistit em colocar
uma ficgo em uma noite consagrada a um problema da sociedade, 0
Jo aos olhos do telespectador.
que acaba por autentificar a emis
Essa promessa da emissora é veiculada por diversos
suportes de comunicagio: as conferéncias de imprensa dos
dirigentes, que indicam as grandes orientacdes estratégicas (assim,
no inicio de 2004, o presidente do diretério da M6 anuncia que a
telerrealidade evolui em ditecdo 4 docuficgao), os anincios e,
frequentemente, as vinhetas de abertura.COMPREENDER A TELEVISAO
O ato promissivo 6 wm ato primeiramente unilateral e
performativo: em outros termos, ele nao tem necessidade da
concordancia do outro pata prometer; o fato tio somente de dizer
“eu prometo” constitui a promessa. No entanto, o outro nao esta
de modo algum obrigado a nela acteditat. E mesmo seu dever exigir
que quem prometeu cumpra a promessa (Jacques, 1999). Aplicadas
4 televisfio, essas proptiedades do ato promissivo tém como
consequéncia o fato de que o telespectador nao deva forcosamente
aceitat as proposigdes de sentido da emissora; ele deve confronta-
las com 0 produto acabado, a emissio, em lugar de olhar com as
viseitas impostas pela emissora. Donde a necessidade de um olhar
distanciado, de uma anilise.
¢ Mistura de géneros, um novo género?
A expressio “mistura de géneros” ou “confusio de génetos”
€ utilizada correntemente para qualificar esse ou aquele novo
Programa, sem que se saiba muito bem o que cla quer dizer. A luz
deste capitulo, varias acepgdes sto distinguidas:
a) mistura de dois mundos: na maioria dos casos, quando se
fala de mistura de géneros, no se faz referéncia 4 mistura de dois
géneros, sirinéo sensu, mas 4 mistuta de dois mundos: docuficgéo, pot
exemplo, designa um programa que envolve simultancamente dois
tipos de crengas, uma que remete a0 mundo teal, outra a ficcio, 0
que € contraditério; infotainment, palavra-chave formada a partir
de informagao e de entretenimento, remete As emissdes que
misturam informagio e divertimento (capitulo 7);
b) justaposigéio de sequéncias de géneros diferentes: no século XIX,
© termo variedades caracterizava espetaculos construidos a partir
de mimeros de natuteza diferente (cangdes, quadros de médgica,
imitagdes, ntimeros de citco ete.). Sustentando-se em um modelo
bastante proximo, apareceram na metade dos anos 80 emissdes
estrututadas em miiltiplas sequéncias curtas pertencentes a diferentes
géneros, entrevistas, cangdes, sequéncias de filmes (cf. Nulle part
aillenrs, no Canal +): chamaram-se esses programas de emissdes
FRANcols Jost B
omnibus (Casetti, Odin, 1990) para caracterizar 0 fato de que, pela
diversidade de contetidos ¢ de formas solicitadas, elas se dirigiam a
todos ao mesmo tempo (omnibus significa para todos, em latim).
Essa sucesso de sequéncias tinha de fato em sua origem trés fun¢Ses
em termos de programagao: de um lado, ela permitia contrapor um
novo instrumento colocado 4 disposigio do telespectador, o controle
remoto, que se fazia acompanhar de um fendmeno novo, o zapping
de outro, cla permitia reunir 0 conjunto dos membros da familia,
propondo a cada um uma sequéncia a seu gosto. Enfim, ela facilitava
a chegada dos telespectadores na casa, uma vez que eles podiam,
sem inconyeniente, acompanhar a emissao em andamento (0 que a
ficcdo permite menos, uma vez que ela supde conhecimentos sobre
0 que ja aconteceu);
©) mistura de tons, por mistura de géneros, compreende-se
enfim uma discordancia entre o tema € 0 tom esperado pata trata-
lo. Exemplo tipico é o debate entre Barnard Tapie ¢ Jean-Marie Le
Pen, em 1996. A guisa de introdugio, Paul Amar, o jornalista-
animador, retita de uma sacola dois pares de luvas de boxe ¢ os
estende aos candidatos, considerando os encontros precedentes
entre os dois homens. Foi facil, para o primeiro, livrar-se da gozacio
ial O animador, afastado da emissora
dizendo: A politica é coisa 5
alguns dias mais tarde, tinha ido muito longe na escolha do tom,
pouco adequado ao género debate politico.
A construgio do mundo pelas emissoras comega bem antes
da difusio dos programas. Nomear seus produtos e liga-los a um
universo de sentido é um dos atos mais eficazes de sua comunicacio,
na medida em que esse ato parece frequentemente natural.
Desconstruir a promessa da emissora € 0 primeiro passo da aniliseFRancors Josr
4, PROGRAMAGAO
5
Viu-se, no primeiro capf-
tulo, que uma das diferengas
essenciais entre o cinema e a
televisio reside na relagao que eles
mantém com os tempos do
espectador. Enquanto a sessao de
cinema suspende o tempo social, a
televisao estrutura a temporalidade,
a vida do telespectador: cada um
busca 0 momento do dia em que
quer ver um filme, pois os
programas s6 podem ser olhados
no horatio que as emissoras
impdem. Se os tedricos do cinema
pudessem negligenciar, até o
momento, 0 contexto espago-
temporal da projecio, porque eles
postulam que esse contexto age
pouco sobre a recepcio do filme,
setia equivocado fazer 0 mesmo
com a televisio. O sucesso ou 0
fracasso de um programa depende
enormemente do horitio em que
ele é difundido. E isso se deve a
duas raz6es: ele pode nio atingir 0
publico pretendido, ou interess4-lo
menos que a emissio proposta por
uma emissota concorrente. Nessa
perspectiva, uma das funcées
estratégicas da emissora € estabe-
lecer uma grade de programacio
que leve em conta, ao mesmo
tempo, os géneros mais apro-
priados ao publico visado em uma76 COMPREENDER A TELEVISAO
dada hora ¢ a oferta dos outros canais. A essas duas exigéncias se
acresce uma outta proveniente dos anunciantes: a de constituir um
publico estavel, com mais ou menos as mesmas caracteristicas de
uma semana para outra, um alvo.
O problema do programador 6, entiio, compor com o
Mesmo e com 0 Outro ¢ responder a esta questao: como difundit a
cada semana um programa andlogo para fidelizar 0 publico,
conferindo-lhe ao mesmo tempo a sensagao do novo? Quatro temas
esto no centro dessa reflexdo: a colecio, 0 formato, a grade e sua
relacio com a publicidade.
4.1 DA TELEVISAO DA OFERTA A TELEVISAO FORMATADA
Légica da obra
O termo grade sé aparece no vocabulirio dos profissionais
da televisio francesa em 1964, no momento em que foi inaugurada
a segunda emissora. Sem concorréncia ¢ indo ao ar somente no
meio do dia e a noite, a televisao dos ptimeiros tempos foi concebida
como uma sequéncia de espetaculos a distancia que, para o
telespectador, nfo faziam concorréncia com os espeticulos ao vivo.
Essa concorréncia intermidiatica, e nao intramididtica, como a que
se conhece hoje entre as emissoras, motiva, como se viu, as primeiras
cotrelacdes dos programas com o tempo social. Isso néo impede
que, no final dos anos 60, 0 inventario dos géneros e dos
ptogramas difundidos a cada semana seja ainda muito amplo.
Apés os anos 50-60, que foram o reino dos realizadores, os anos
70 sio dominados pelos produtores, que propdem ais emissoras
Pptojetos ou programas. O papel das emissoras era entiio oferecer
esses programas, no momento mais adequado, ao publico. Nesse
contexto, os programas unitarios tém ainda sua chance € os seriados
recobrem objetos vatiados: assim, Cinéma 16, veiculado pela terceira
emissora francesa, France Région 3 (FR3) de 1975 a 1990, acolhe
filmes muito diferentes, cujo tinico ponto em comum é uma certa
ideia de criaco cinematografica.
Francors Jost 71
Durante muitas décadas, as televisdes difundem programas
de carater essencialmente nacionais. Excetuando alguns casos
particulares (como Campanile sera que originou Intervilles), a maior
parte das emissdes da televisao francesa eram concebidas
internamente ou gtagas 4 contribuicao de produtores franceses
extetiores. S6 os enlatados, como os documentitios ou as séries,
eram comprados e difundidos tal e qual em muitos paises, sendo
Dallas certamente 0 caso mais representative, que conheceu nos
anos 80 um sucesso mundial. Os anos 90 foram matcados por
uma internacionalizacao dos programas de fluxo: jogo iniciante (The
wheel of fortune, reakity-shows (Rescue 911, que otiginou, na Franca,
La nuit des héros), telerrealidade em seguida (Big brother, Survivor)
foram exibidos no mundo inteiro, sem que os telespectadores
tomassem consciéncia dessa globalizacio da oferta televisual. Nos
dias de hoje, € a vez de as ficgdes serem adaptadas em divetsos
paises. Fi 0 caso de Betty /a fea, que recebeu miiltiplas versdes
nacionais, das quais a americana (Ugh Bet) ¢ a alem& (Destin de
Lisa) foram exibidas pela TF1. Se, no caso de Datlas,a mesma emis
circulava de um pais a outro, apenas com a diferenga linguistica, no
10
caso das emissdes de fluxo, nao € 0 programa original que é
exportado (a versio americana de The wheel of fortune, por exemplo),
mas um ptograma andlogo, isto é, um programa concebido e
realizado a partir de um mesmo formato.
e Formato
O que se pode exatamente entender por formato? Em
ptimeiro lugar, essa nocio se opée a légica da oferta: o programa
deve ser concebido para responder a uma necessidade de
ptogramacao ou a um caderno especifico de encatgos, que constitui,
para os produtotes, 0 quadto de demanda. Em segundo lugar, ela
supe que o programa a ser exibido seja caracterizado por uma
série de parametros ou de tratos estruturais, que permitam aos
diferentes sujeitos envolvidos na concepsao e na produgio refazer
indefinidamente um produto reprodutivel, isto é, serializavel,78 COMPREENDER A TELEVISAO
uma linha de produtos, como dizem certos diretores de unidades
de programas.
© formato deve ser distinguido daquilo que os profissionais
chamam de conceito. Esse ultimo designa a ideia que esta na base
de uma emissio: pode ser, por exemplo, fechar jovens em um
estudio-apartamento e observa-los em seu cotidiano. Esse conceito
pode conhecer diversas variagées: os candidatos podem ser
desconhecidos ¢ condenados a exclusio até o final (Big brother),
obrigados a constituit um casal (Laff s/or)), escolhidos em diferentes
paises no meio estudantil (Nive peopl) ou divididos em dois
apartamentos (Les Co-locataires). Em todos esses casos, 0 principio
de base é permanente, s6 as regras e a estruturacao das emissdes
mudam, Essas variacées devem ser distinguidas daquilo que os
especialistas do marketing nomeiam de me-foo (eu também) pata
designar esses produtos que sio concebidos como imitagao daqueles
que os precederam com sucesso no mercado. Em alguns casos, a
frontcira entre as duas nocdes pode parecer bem fragile dar lugar a
processos de plagio, quando 0 produtor da segunda emissio nao €
o mesmo que o da primeira: no caso de Nive peopk, por exemplo, a
M6 foi acusada de haver copiado Loft story.
AA nogio de formato tecobre tealidades um pouco diferentes,
quet seja aplicada aos enlatados ou as emissdes de fluxo. Para a
ficcfio, o formato estrutura-se como uma biblia, que enumera e
descreve todas as restrigdes que recaem sobre a concepgio do
roteiro: duracao do episddio, car4ter dos personagens, tipos de
histérias possiveis. Muitos roteiristas podem assim trabalhar em
conjunto, em uma mesma série, sob a direcio de um editor de
histéria, que determina se as intrigas propostas permanecem no
Ambito do mundo da ficcao, presente no ponto de partida da série.
Para as emissGes de fluxo da telerrealidade, compottando o diteto
(ao vivo), 0 formato define as grandes regras, os cendrios, as
situagées, mas cabe notar que ele € muito mais permeavel as
mudangas: a televisiio atual, buscando seus métodos no marketing,
testa diferentes elementos de uma semana a outta para melhorat os
FRANCOIS Jost 79
pontos que desagtadam o publico. Por ocasiio da primeira
temporada de Svar academy, pot exemplo, o castelo no qual viviam os
candidatos foi testado, a fim de determinar se ele correspondia muito
ou pouco a um castelo, Os produtores, por outro lado, reagem muito
4s criticas, nfo hesitando em mudar brutalmente detalhes que
poderiam chocar: na primeira exibigo de Lo/f story, a exclusio dos
candidatos, por ter sido objeto de vivas criticas por parte dos
intelectuais, foi substituida pela nominagio dos candidatos
suscetiveis de deixar 0 programa.
As versées nacionais dos formatos internacionais
im, a versio
as
conhecem, além disso, desvios consideraveis
espanhola de Svar academy, Operacién triunfo, difundida pelos canais
ptblicos, TVE, ¢ exibida todo ano (contrariamente a Franga, onde
ela s6 dura quatro meses) ¢ os candidatos nao sio filmados na sua
vida ptivada. As vatiagdes em relacio ao formato de otigem (Star
make?) so concebidas para se adaptarem a cultura local, como todo
detalhamento de marketing dos produtos de consumo corrente.
4.2, GRANDES INDICADORES DE MEDIDA DE AUDIENCIA
De acordo com uma ideia difundida e simplificadora, todo
fendmeno televisual se explica pelo fato de as emissoras quererem,
indice de audiéncia, embora existam diferentes maneiras de conseguir
uma boa audiéncia. Uma mesma emissio, de acordo com o que ela
esté programada por essa ou aquela emissora e nesse ou naquele
horirio, nao terd a mesma audiéncia. Afinal 0 que se compreende
precisamente por audiéncia?
Em 1987, passou-se de um sistema de medida de
audiéncia nos laces (Audimat) para uma escuta individual
(Médiamat). O Médiamat é um painel de 3.150 lares equipados
com audimetros com botao de pressao (cerca de 8.000
individuos de quatro anos ¢ mais), Esse painel selecionado
em fungio de sua representatividade sociodemogrifica ¢ do80 COMPREENDER A TELEVISAO
equipamento audiovisual dos lares que possuem uma
televisio, na Franca metropolitana. Cada membro da familia
deve pressionar 0 botao quando ele assiste 4 televisio ou
quando deixa de escutd-la. O recolhimento da informacao é
em seguida registrado (fonte: Médiamétrie).
© Audiéncia ¢ parte de audiéncia
Frequentemente se confunde audiéncia com parte de
audiéncia. Em primeiro lugar, convém distinguir taxa média da
audiéncia, que € o percentual médio por segundo de individuos que
olham um programa, ¢ a audiéncia acumulada, que é a soma dos
individuos que estio assistindo, em um dado momento, a uma
emissio, qualquer que seja sua duragio. A taxa média de audiéncia
corresponde a um numero de telespectadores por segundo, que é
calculado em fungao do valor do ponto de audiéncia. Na Franca,
pais de 65 milhGes de habitantes, um ponto de audiéncia
correspondente aos individuos de quatro anos e mais é de 566.800
pessoas, € 0 ponto de audiéncia correspondente aos individuos de
15 anos e mais é de 487.100. Quando querem medir 0 sucesso de
um programa, as emissoras trabalham, se nao minuto por minuto,
ao menos sequéncia por sequéncia para determinar aquelas que
foram bem-aceitas e aquelas que perderam publico. A parte da
audiéncia, em contrapartida, calcula menos uma quantidade que uma
proporgio: ela fornece indicaces sobre a parte que representa a
duragao de escuta de uma emissiio em relacao a duragao de escuta
do conjunto das emissoras. Ter 1.000.000 de telespectadores, quando
3.000.000 de pessoas estao diante da televisio representa 33% da
audiéncia; em contrapartida, isso no representa mais que 4,7% de
um total de 21,000,000 de telespectadores. O final de Laff story, cujo
sucesso ficou na memoria de todos, nao reuniu mais que 7.717.560
telespectadores, 0 que, na medida em que publico no inicio do
verio é muito menos numeroso que o do resto do ano, constituiu-
se de 49,6% da audiéncia, em 05.07.2001.
Fhancols Josr 81
© Do todo pablico ao alvo
A audiéncia dos programas é analisada notadamente em
fancio dos géneros aos quais eles pertencem. A nomenclatura desses
génetos, que difere sensivelmente daquela do Conselho Superior
do Audiovisual (CSA) ou das instituigdes de arquivamento como a
Inathigue, 6 estabelecida pela Médianétrie, em consonincia com as
emissoras, que decidem sobre a categoria genética atribuida a esse
ow Aquele programa. Essa atribuicio diz mais sobre a fungio do
ptogtama na grade do que os dossiés da imprensa: embora tenha
sido apresentada a imprensa como telerrealidade, uma emissio como
On a éehangé nos mamans (adaptacio de Wife sup, do Channel Four)
eta classificada sob a rubrica de cultura, conhecimento, magazine,
sociedade. Fissa medida permite saber quais géneros tém mais
sucesso, no conftonto dos nimeros da televisiio difundida com os
da televisio tecebida: se a informagio ocupa 15% das emissdes
difundidas pela emissora e se o ptiblico a cla dedica 17% de seu
tempo para escutar determinada emissora, pode-se coneluir que ele
est ai em busca de informagio.
Um outro erro frequente é acreditar que os programas se
dirigem, a todo momento, a todos os publicos. A partir dos anos
90, essa politica, que péde existir nas emissoras publicas, é posta
em cheque em prol de uma meta cada vez mais precisa, como atesta
esta declatacio de Etienne Mougeotte (Le monde, 14.10.1992), vice-
presidente da’TF1: Os indices de andiéncia misturam ‘albos com bugalhos’
jovens e velbos, pessoas do campo e da cidade. A televisio comercial, como é 0
caso da TFI, trabatharé cada vex menos com dados globais, ¢ cada vex mais
com alvos. E. uma nova fase de nossa reflextzo depois do discurso sobre o ‘total
de audiéncia’ de 1987, mesmo se hé uma ligagiio entre alvo e audiéncia residencial,
nds ndo raciocinamos mais sobre partes de mercado indiferenciadas. Nessa
perspectiva, o primeiro patametro a ser levado em conta pelo
programador é evidentemente a natureza do publico que esta em
condigées de assistir as emissdes, 0 que se chama de televisio
disponivel. Esse publico varia ao longo do dia (pela manhi, as
criangas sio mais numerosas antes de ir A escola; a tarde, sao as82
MPREENDER A TELRVISAO
mulheres ¢ os desempregados) e em fungio dos momentos da
semana (fim de semana) ou do ano (férias). Na medida em que essa
presenca em casa é um dado de que todas as emissoras dispoem, o
que vai diferencia-las é a escolha do alvo. O final da emissio de
Pascal Sevran, La chance aux: chansons, em 22.12.1990, que agradava
bastante as pessoas mais velhas, correspondeu a uma mudanga
estratégica por parte da France 2, que preferiu se ditigir
ptioritariamente as criancas que voltavam da escola. Essa troca niio
se deve apenas ao fato de que seriam mais numerosas que as pessoas
mais velhas em frente a tela, mas ao fato de elas constitufrem um
melhor alvo, em termos econdmicos, pata os anunciantes, na medida
em que elas ptescrevem maior consumo. O desenvolvimento da
televisio mével (capitulo 2) podetia modificar a estrutura do publico
disponivel, que nao sera mais forcosamente aquele que fica em casa.
Se todas as emissoras possuem potencialmente o mesmo
ptiblico disponivel, o programador pode colocar em jogo uma quarta
variével, que é a televisio possivel. Tomando ao acaso o dia
22.08.2004: a TF apresenta uma comédia, New! mois, as 21h, seguida
da apresentagao de trailers de filmes 4s 22h50, c, as 23 horas, de um.
James Bond. A France 2, por sua vez, veicula 20 vivo os Jogos
Olimpicos de Atenas até as 22h40 para dar lugar a uma ficgio,
New York 911. Podem-se representar as escolhas dos telespectadores
entre essas duas emissoras da seguinte maneira:
‘Fl Neuf mois (Gime) Aptesentacio de filmes
On ne vit que denx: fois
22h50 23h
21h 22h
France 2
JO (direto) 22h40 New York 911
Na medida em que é desagradavel perdet o inicio de uma
ficcfio (Fonnet, 2003, p.39), pode-se imaginar que o telespectadot
desejoso de ver um filme se liga ITI. Se ele a julga boa, ter’
Frangots Jost 83
menor tendéncia a zapear que o telespectador dos Jogos Olimpicos,
liberado pelos tempos mortos entre uma competigao e outra.
Em compensagio, a programagiio de esporte traz uma vantagem
para a France 2: esse programa é descontinuo e pode acolher a
qualquer instante os descontentes com o filme. Aqueles que
acompanharam fielmente Neuf mois perderio dez minutos de
televisio possivel da série de France 2 ; em outtos termos, perderio
© inicio de New York 911, 0 que pode desencorajé-los a passar para
essa emissora em virtude do principio enunciado mais acima.
Evidentemente, essa situacao previsivel a priori esti na dependéncia
ainda da patticipaciio dos atletas franceses nas competicdes. | bem
mais complexa ainda se se considerar 0 conjunto das emissoras, 0
que nfo se faz aqui pela preocupacio com a simplificagio. Todos
esses problemas de relag6es entre programas, programacao ¢
concorréncia levam a olhar de mais perto as légicas das grades.
4.3 LOGICAS DAS GRADES
© Programagao vertical, programagao horizontal
Até 1970, a televisao francesa exibia a parte mais importante
de seus programas 4 noite: segundas, sextas ¢ sabados pela manha
todas as tardes eram reservadas 4 televisio escolar no canal 1; o canal
2abria a sua antena as 14h30min para o programa Aujourd hui, madame,
seguido de uma telenovela. © trabalho do programador é acima de
tudo o de fixar encontros semanais mais ou menos modelados pela
temporalidade social, como jé foi dito: terga-feira, dia de folga do
teatro, drama; quarta-feira, véspera do dia de folga das criangas, circo;
quinta-feira, informagio; sabado, teatro; domingo, filme.
Essa légica semanal, que se chama programagio vertical,
comanda igualmente 0 acesso de horatio nobre (em inglés, access-
prime-time): a faixa hordria entre 18h45 e 19h15, no lugar de oferecer
cotidianamente o mesmo programa, ptopde uma emissio diferente
em funcio do dia da semana: sucessivamente um magazine feminino
(segunda-feira), um magazine (Les quatre saisons, terca-feira), um84 COMPREENDER A TELEVISAO
programa de atualidade musical (Cadence, quarta-feira), um programa
literdrio (quinta-feira), um documentétio (Iivre cheg soi, sexta-feira),
um magazine de atualidade teatral (Osorir kes yeux, domingo). Somente
as criangas tém direito, a cada inicio de noite, a 15 minutos de emissio,
a mesma hora, antes de supostamente deitarem (Le petit Hon). Quanto
4 segunda emissora, seus encontros estio longe de serem estaveis:
um programa como os Dossiers de Véeran, por exemplo, softe
deslocamentos na grade, de quarta a sexta-feira (Jost, 2005). A
apresentacio de um programa em uma mesma faixa horitia,
cotidianamente, constitui a programacio horizontal.
Desde que as emissoras passaram a funcionar todo o dia
(na Franga, 1984), clas tém-se esforcado em combinar esses dois
eixos, ou seja, exibir emissdes fixas em fungio das horas do dia.
Contrariamente ao que se poderia pensar, as grades de hoje, as vezes,
muito mais rigidas que aquelas das décadas precedentes, nio se
modificam muito de um ano a outro (os programadores nio mudam
o contetido de uma faixa horéria sem antes tomat muitas precaugdes).
O cixo horizontal goza de atengao particular, visto que ele
visa capturar a aten¢ao do telespectador o maior tempo possivel
na mesma emissora, Para fazer isso, 0 programa mobiliza varias
técnicas, notadamente:
a) © stripping, que consiste em programar todos os dias, na
mesma hora, a mesma emissio, de segunda a sexta-feira. Fsse
método ¢ utilizado hoje por todas as grandes emissoras gencralistas;
b) 0 ad in, que consiste em colocar um programa popular
no inicio de uma faixa hordria, com vistas a conservar 0 publico
para a faixa horaria seguinte, é 0 famoso efcito locomotiva,
observavel sobretudo nas escolhas das emissées que precedem o
telejornal televisivo das 20 horas;
©) 0 hammocking (literalmente, fazer uma rede), que € a insergao,
entre duas emissies de sucesso, de um novo programa, a fim de assegurar sta
andiéneia (Fonte: Mousseau, Dossiers de Vaudiovisuel, 1989 — 1992, p. 39).
Essas técnicas nao explicitam evidentemente quais sio os
contetidos a serem colocados depois de um programa popular ou
entre duas emissées de sucesso: esses casos s4o entio etiquetas
BRancols Jost 85
vazias, tanto que o programador nfo determina 0 espago em que se
deve articular um programa com aquele que o sucede e o precede.
Arte foi sem davida a primeira emissota a organizar suas noites em
fungao de clos tematicos (Thema). Essa estratégia foi retomada, a
sua moda, pela France 2 em Mercredis de /a vie, que encadeiam L‘instit
Ca se discute, com um debate sobre o tema tratado pelo episédio da
série, ou, mais tarde, Ca se discute jour apris jour, que entrelaga uma
longa reportagem e entrevistas com especialistas sobre um mesmo
tema. Mas a légica pode ser também genérica (Une soirée, dens polars,
na sexta-feita, na mesma emissora) ou explicativa (a docuficgio
Liodyssée de Vespéve, acompanhada de um making off. Os bastidores da
Odisseia da espaco, exibida em 7.01.2003.
Como ja se viu, 0 eixo vertical vem sendo trabalhado ha
muito tempo em fungao da temporalidade social. Com o passar dos
anos, foram acrescentadas regras externas, a que as emissoras devem
obedecer, tais como a intetdicio de difundir os filmes na quatta-
feira ou no s
bado para proteger o cinema. No entanto, desde o
final dos anos 70, 0 estabelecimento das grades resulta também de
escolhas mais ou menos arbitra: ncial é guiada
s, cuja légica es:
pela concorréncia: assim, a TF1 tem optado por dedicar todas as
noites de segunda-feira a uma série policial; enquanto a France 2
escolheu exibir esse género As sextas 4 noite. Como é muito dificil,
por razBes concernentes 4 produgio, preencher uma mesma faixa
horaria com a mesma série (0 que implica uma disponibilidade muito
grande dos atores)’, as emissoras tém voluntariamente recorrido as
seguintes técnicas:
a) 0 hammoking semanal (Fonnet, 2003, p. 38), que consiste
em colocar, em um dado dia da semana, o piloto de uma nova série
entre dois episédios de séties de sucesso, contando com a fidelidade
do puiblico nessa faixa horatia: na TE1, Commissariat police entre Julie
Lescaut e Navarro;
7 A titulo de exemplo, é necessario ter na cabega que uma emissora como a ‘TFL
produz 120 episddios de 90 minutos por ano.86 CCOMPREENDER A TELEVISAO
b) 0 checkerboarding semanal (de checkerboard, tabuleiro), que
se centta na programacio de séties diferentes, a cada semana, na
mesma faixa horiria: é 0 que faz a TF1, com suas segundas policiais,
ou a France 2, com suas sextas polares.
Esses dois uiltimos procedimentos sio particularmente
interessantes pata o analista, pois repousam sobre a ideia que, para
a emissora, as diversas colecdes difundidas em uma mesma faixa
horatia (Navarro, Une femme d'honneur, Julie Lescaut) sto, de um certo
ponto de vista, equivalentes. O desafio do analista € compreender
quais sao os critérios que fundam essa equivaléncia.
e Repercussées da programagao sobre os programas
Para resumir o espirito dos diferentes procedimentos
enumerados até o presente, pode-se dizer que a progtama¢io nao
visa colocar, na grade, a cada instante, um programa de alta qualidade,
que reuniria todos os ptblicos, mas um programa que atinge a
maioria do pablico disponivel naquela faixa horaria ¢ a0 melhor
custo. Essa definigao lapidar explica as numerosas escolhas
concernentes aos programas.
* Programas segmentados vs programas rennidos: durante o dia,
na medida em que uma grande parte da populacio com mais de
quatro anos trabalha fora de casa, a emissora adapta suas emissGes
ao alvo determinado pelos anunciantes (a famosa dona de casa com
menos de 50 anos que gera 0 consumo dos aparelhos domésticos).
As 13 horas, para aqueles que se encontram na frente da tela,
considerando as regides € as categorias sociais pelos seus gostos
tradicionais (agricultores, comerciantes), a’TF1 optou por apresentar
um telejornal, muito diferente daquele das 20 horas, centrado no
consumo e valores ligados a terra. A France 2, no inicio de 2004,
fez uma aposta inversa, propondo uma férmula sew /ook, a meio
caminho entre telejornal, magazine ¢ falk-show, em um esforco de
renovacio, sem duivida louvavel, mas pouco condizente com o
publico disponivel.
A noite, em contrapartida, todos os ptiblicos ¢ todas as
idades esto reunidos em frente a pequena tela: assiste-se 4 televisio
Francois Jost 87
em familia. Fi inconcebivel, nesse caso, a exibicio de um programa
dissensual, que provocaria disputas entre pais e filhos. O progra-
mador escolhe um /ess-objectionable-programme, como dizem os
americanos, sabendo que a arte da programacio nao é selecionar o
melhor programa, mas 0 menos pior, como diz o diretor de
programagio da ‘TF1 (Fonnet, 2003, p. 19). Esse principio permite
responder, de antemao, a esta questo reiterada: até onde ira a
televisdio com seus desvios exibicionistas? Ela ird até onde as familias
0 permitirem. No inicio dos anos 90, a extinta TV 5 cometeu 0 erro
de programar para terca-feira 4 noite, véspera do dia de folga das
criangas, um filme erético, 0 que Ihe acarretou a perda de:todos os
seus ptiblicos. Pela mesma razio, os programas sexy, muito
numerosos nos anos 90, sumiram das emissoras. O grande mérito
da primeita temporada de Loff story foi tet reunido as familias.
Damesma maneira, Siar academy, fazendo os jovens cantarem muisicas
do passado, reuniu dois publicos tradicionalmente fragmentados
nas emiss6es de variedades.
O custo do programa deve, certamente, adaptar-se também
4 quantidade de puiblico dispontvel ¢ aos rendimentos publicitarios
afetidos. O maior equivoco de um programa como Mera pour linfo
(2003-2004), do Canal +, foi o de custar muito mais caro do que as
vantagens que lhe trazia sua audiéncia.
° Programas fragmentados vs conténuos: pata captar o maior
numero possivel de telespectadores, no momento em que os
membros da familia retornam 4s suas casas, frequentemente em
horas pouco diferentes, as emissoras exibem no hordrio nobre
programas com sequéncias curtas, oferecendo ao telespectador um
maximo de televisio possivel (pode-se assistir 4 emissdo ja em curso).
Em contrapartida, uma ficgéo longa é mais adaptavel as faixas
horarias em que o ptiblico ja est4 presente, quando o objetivo
estratégico é impedir o telespectador de zapeat (quet-se conhecer o
fim de um filme, mesmo quando ele é ruim).
° Programagéo horizontal e teasing a televisio de hoje teane
duas caracteristicas que, até pouco tempo, eram consideradas88 COMPREENDER A TELEVISAO
opostas: a recorréncia da programagao ao longo do dia e da semana ¢
a fluidificagao da grade, As emissdes, hoje, devem, ao mesmo tempo,
adaptar-se 4s mensagens publicitarias e de autopromogio e preservar
os telespectadores, que sao convocados incessantemente para novos
enconttos (dai a repeticfio das formulas como em seguida, a seguir
etc.), Os manuais de roteiro ameticanos costumam dizet que uma
ficcio deve ter tantos atos quanto intervalos publicitatios. Esse
principio patece ter invadido toda a televisio comercial: as emissdes
de fluxo devem conhecer tempos fortes que deixam o telespectador
4 espera da sequéncia seguinte e o impedem de ver 0 que se passa em
outro canal, por medo de perder precisamente essa sequéncia.
As emiss6es de telerrealidade que tém por base a exclusao
compreenderam bem isso: s6 apresentam os nomes dos excluidos
depois do interyalo publicitério. Mas esse principio de ‘easing, de
aliciamento, tem também suscitado novos formatos de emissdes,
fundados na contagem regressiva: as 100 melhores cangées, os 100
melhores momentos da televisao, a grande classificaciio dos anos 80
etc. O telespectador, atraido por esse tipo de emissio, fica cativo
simultaneamente pela promessa de que o que ele ir4 ver é melhor do
que aquilo que ele esta em vias de assistit ¢ pela cutiosidade de conhecer
© ganhador, dois princfpios que comprovam, no caso, sua eficécia.
* Programagao vertical e heréis recorrentes: se a grade se torna
tigida no curso das décadas, é certo que a fidelizacao é fundamental
para a emissora que promete um publico determinado, em
quantidade ¢ qualidade, aos anunciantes, As séries respondem a essa
necessidade econémica, propondo aos telespectadores a
redescoberta de herdis que acabam por dar a impressio de serem
conhecidos como familiares. Tanto isso é verdade que os herdis
televisuais sao hoje também definidos por sua situacao familiar.
A chegada da telerrealidade deu continuidade e amplitude a essa
estratégia de duas manciras: de um lado, favorecendo a sensagao de
familiaridade com os desconhecidos observados em seu cotidiano;
de outro, multiplicando os encontros com seus opostos proximos.
Loft story foia primeira emissio a se desdobrar em diversos formatos
89
(resumo cotidiano no acesso de horiirio nobre, espeticulo no horirio
nobre, magazine no fim do dia, citagdes em diversos programas
etc.). Com isso se construiu uma fidelizagio nao mais a faixa horaria,
mas A propria emissora,
* Mundo da publicidade, mando dos programas: todos os
programas nio se prestam da mesma maneira 4 insergio publicitatia,
‘o que leva, como se acaba de ver, a esttututagao dos programas em
fungio de sua interrupgao pata os spots. No entanto, a ptesenca da
publicidade pode também ser chocante quando 0 contetido de uma
emis:
io esta muito distante do consumo. Como separar uma emissio
sobre a miséria na Africa subequatorial das publicidades que clogiam
as qualidades de um iogurte light ou de um novo perfume? Para
evitar esse choque semintico, a TF1, excepcionalmente, abdica de
todo encarte comercial. Mas, no dia a dia, essa esttatégia nao pode
ser adotada. Em consequéncia, as emissoras sao levadas a acolher,
cada vex mais, os programas pensados em fungio dos anunciantes.
Hssa foi a origem da soap opera, mas € hoje um princfpio geral: Lof?
story, com seus jovens cuja tinica preocupagio é 0 cuidado com seus
corpos, a comida, a seducio, presta-se mais que qualquer outra
emissio aos spots voltados aos produtos de consumo; Star academy
ficou conhecida por criar um espaco para a Vivendi Universal, a
maior empresa de discos, que fez multiplas publicidades de seus
artistas; Jai décidé de maigrir € um bom suporte para os produtos Aght,
¢ Le pensionnat de Chavannes, patrocinado pelos cadernos
Clairefontaine, coloca adolescentes nas condigées de uma escola
dos anos 50. Essa continuidade semintica entre programas ¢
publicidade é ainda mais importante no Brasil, porque af a
publicidade pode interferit no proprio interior das emissdes, como
© merchandising (Castro, 2006, 2007).
4.4 PROGRAMACAO E IDENTIDADE DAS EMISSORAS
Uma emissora é, a0 mesmo tempo, uma empresa, regida
por uma légica cconémica; uma instituiclo, voltada a missdes no90 COMPREENDER A TELEVISAO
espaco piiblico; e uma marca, em concorréncia com outras emissoras,
via seus programas € programacao. Essas trés instancias interferem,
cada uma a sua maneita, sobre a programagio.
A légica de empresa dita as escolhas dos programas pata a
emissora, Se Leff story foi lancado pela M6, por exemplo, é porque
uma tal inovaco seria um risco para uma emissora lider como a
‘TFI, que, na época, prometia a seus anunciantes 40% da audiéncia
‘no horario nobre. Na maior parte dos paises, os derivados do Big
brother foram inicialmente lan¢ados por emissoras que podiam correr
© tisco, como Veronica, nos Paises Baixos; RTL9, na Alemanha; ou
Télé5, na Espanha, O desafio s6 podia ser benéfico para uma
Pequena emissora, mas ele talvez representasse um fracasso pata a
TFI. Segundo essa mesma légica, a'TF1 nio mantém uma emissiio
que nao cortesponda imediatamente a seus objetivos de audiéncia,
A l6gica da instituigao pesa também sobre a compra ou a
produgao de um programa por uma emissora. Se custou pouco para
a TF1 desprezar a tevé-lixo no lancamento de Loft sory para, alguns
meses mais tarde, comprar todos os seus formatos, o mesmo vale
para tevé publica. O caderno de encargos de 2009 proibe a difusiio
de programas de telerrealidade, género que ela ja havia julgado
contratio A sua obrigacio de respeito pela pessoa humana ¢ sua
dignidade e 4 setiedade no tratamento da informacao e dos
problemas da sociedade, na luta contra as discriminacées e as
exclusdes de todos os tipos. Ao mesmo tempo, na medida em que
as emissoras publicas se ditigem por dircito a todos os piblicos,
clas nao podem mantet a mesma coeréncia em relagio aos programas
que uma cadeia privada. Se a TF1 se posiciona como um canal que
defende o telespectador-contribuinte, com programas como Combien
¢a cottte?, Sans aucun doute etc., fica dificil para a France 2 adotar
algum posicionamento que contente apenas uma parte do publico,
mesmo sendo ele majotititio. Recusando enderegar-se ai parte mais
conservadora do publico disponivel, devido ao desejo de atingir
um modelo ideal de telespectador, curioso por todas as infotmacées,
FRancors Jost ”
a France 2 tem dificuldade de descobrir um formato de telejornal
para o meio-dia.
‘A logica de marca, enfim, impulsiona as emissoras a
escolherem programas coerentes com sua imagem €, teciprocamente,
a construirem a imagem da emissora, seja ela privada ou publica,
comercial ou nao. Essa é, com efeito, a questo central a ser resolvida
ada programa constitui a imagem da emissora
pelo programado:
e a imagem da emissora semantiza cada programa, de tal modo que
assistit ao mesmo programa em duas emissoras diferentes ndo tem
o mesmo sentido, Em tempos de globalizacdo, essa equagio é mais
dificil de resolver, pois as emissoras do mundo inteiro tendem a
escolher os mesmos formatos. As solugées dependem muito
largamente das caracteristicas da emissora: generalista vs tematica;
lider vs candidata a lider.
Até onde ira a telerrealidade? Por que falta imaginagio na
ficgio francesa? Por que a multiplicacio dos best of Todas essas
questées, colocadas petiodicamente nas midias, nio encontram
tespostas pertinentes se no se articulam, de uma mancira ou de
outra, com as restrigdes que a rentabilizagao da grade exerce sobre
a programacio. Se essa nao desculpa todas as escolhas feitas pelas
emissoras, permite ao menos compreendé-las.Francors Jost
5. EM NOME
DO REAL
93
Considerar que os génetos
televisuais reenviam a trés mundos
(capitulo 3) possibilita ultrapassar
as segmentagées tradicionais entre
informagao, ficcio ¢ divertimento.
Muitos outros géneros, além do
telejornal, pretendem, com efeito,
mostrar o mundo exterior ou dele
falar: documentirios, magazines,
zalk-shows, telerrealidades, docuficgdes
e outras docurrealidades; ¢ essa
pretensio de difundir 0 mundo
exterior, entretanto, nem sempre
resiste 4 anilise, visto que ela nao
passa, como se viu, de uma simples
promessa. Fla testemunha, isto sim,
a obstinagio continuada da
televisio de obter sua legitimidade
através da relagao que mantém com
a realidade. Tudo se passa como se
as midias tivessem progtessiva-
mente se atribuido uma soberania
particular sobre cada um desses
mundos: a fie¢ao para 0 cinema; a
realidade para a televisio; 0 hidico
pata o music-hall
Na base dessa construcio
sobre a crenca televisual, encontra-
se a transmissao diteta. A midia
televisual mal havia nascido e¢ ja
continha essa promessa de autenti-
cidade: uma promessa de con-
templar a verdade nua (capitulo 1).
Representando quase 40% das94 CCOMPREENDER A TEI
transmissdes de 1960, o direto estendeu seu império bem para além
da mera informagio, impregnando todos os génetos, ficticios ou
lidicos, de uma veracidade suplementar, quer se tratasse dos
primeiros dramas ou do recente Star academy. Toda abordagem da
realidade televisual deve, dessa forma, comegar pela transmissio
direta. Entretanto, nada indica que cla seja portadora da quantidade
de informacio que se acredita, como bem mostra o exame da
transmissio do 11 de setembro, Também nio é certo, por outro
lado, que se saiba bem qual é 0 valor informacional da imagem, o
que, na sociedade, é particularmente aparente nos debates sobre a
violéncia das imagens. Essas interrogacées so preliminarmente
necessarias na andlise do telejornal ¢ das inovacdes recentes trazidas
pela telerrealidade.
5.1 O DIRETO COMO FUNDAMENTO DO ACESSO AO REAL
e Um conceito frequentemente mal definido
Embota a defini¢ao do direto nao apresente nenhuma
ambiguidade, é ainda bastante comum confundi-la com aquilo que
cla nao é. Regularmente, jornalistas ¢ apresentadores mantém essa
confuséo a seu respeito, como bem testemunham as primeiras
palavtas de Benjamin Castaldi, por ocasidio do langamento de Lift
story: Eston extremamente feliz, de estar com vocés ao vivo na M6 para o
Jancamento de Loft story (..) Seis rapazes, seis moras, que absolutamente nao
se conbectm, iro viver juntos uma exxperiéncia tinica, aquela de viver totalmente
separados ¢ isolados do mundo escterior durante 70 dias, em uma casa, que
ramos explorar agora, ao vivo. Observem essas imagens... Aé esté, era ontem &
noite, Foi filmado.... Se a primeiza alusdio ao direto define bem uma
relacio de simultaneidade entre o momento em que o programa se
desenrola e o tempo do telespectador, a segunda parece mais obscura:
© animador quer reafirmar o estatuto da emissao ou sublinhar uma
relagio indicial, entre toda imagem video € seu objeto, o que faz
duyidar da precisio, visto que as imagens do Jy? foram filmadas
Francots Jost 95
ontem @ noite? Em qualquer uma dessas possibilidades, nao € raro,
sobretudo nessa época da imagem de sintese, empregar-se a
expressiio direfo no sentido, muito solto, de uma ligacio existencial
com o teal.
Essa acep¢ao foi encorajada pela importagao para a lingua
francesa do termo five, que abrange, no universo anglo-saxio, o que
se chama direfo, acentuando a dimensao do ao vivo do acontecimento
retransmitido e, nao, a telacio temporal de simultaneidade entre o
que esta sendo exibido na tela ¢ 0 telespectador. Os luséfonos, com
a expressio ao 10, ¢ os hispanicos, com o on vivo, partilham esse
mesmo entendimento. Ora, se essas expressdes sao perfeitamente
adequadas aos espetaculos ao vivo, na medida em que permitem
sua oposicio A atmosfera fabricada no estudio de gravagio, elas
deixam dtvida sobre a quantidade de tealidade bruta, suja, mal
filmada, com seus movimentos de cdmera tremidos, superexposigdes
ou desenquadramentos, liberada pelo diteto.
© O que traz o direto?
Essc imaginario nao coincide com a transmissio direta, nao
preparada, do acontecimento mais importante desses tiltimos ano:
o choque de um aviio com a primeira torre do World Trade Center,
captado pela cimera da CNN, que supervisiona permanentemente
a cidade de Nova Yorque. O plano fixo, perfeitamente enquadrado,
dava aver um verdadeiro cartio postal de Manhattan, em que as torres
¢ 0 aviao em chamas se destacavam sobre um céu azul imaculado.
Nao havia nenhum dos indices normalmente atribuidos ao direto.
O trémulo, 0 tutvo sio 0 apandgio das imagens captadas ao vivo,
que podem, naturalmente, ser registradas.
Poucos diretos sio exibidos pela televisio sem ter sido nao
somente ptepatados, como programados. De vinte anos para cA, os
registros surgidos inespetadamente 2o vivo sobre a telinha contam-
se nos dedos de uma mio (0 empurriio trigico no Estdio de Heysel,
o desmoronamento das tribunas do estadio de Furiani, 0 atentado96 COMPREENDER A TELEVISA
nos Jogos Olimpicos de Atlanta, 0 11 de setembro...). Na maior
patte do tempo, a emissao ao vivo é objeto de uma preparagio
meticulosa, seja ela repetida, como nos dramas dos anos 50-60;
seja cla programada, como nos grandes acontecimentos (sobre esse
assunto, ver Dayan e Katz, 1996); seja ela reiterada cotidianamente,
como no telejornal. Essa preparacio simultinea da cena (os
movimentos na tealidade) e do enquadramento (os movimentos no
plano ¢ na composi¢io da imagem) faz com que, na maioria dos
casos, nao seja mais possivel diferenciar, em um primeiro olhar,
uma transmissio direta (niio se pode agradar a todo 0 mundo)
de uma emissio gravada (tudo é ensaiado). Se, na primeira,
abreviam-se os tempos mortos para fazer com que a emissio tenha
a dutagio combinada; na segunda, hé igualmente montagem: nela
como na outra, todos os movimentos de camera foram previstos €
os enquadramentos transmitidos a cada um dos operadores de
camera para serem selecionados, certamente em tempos teais, mas
segundo um encadeamento ja estabelecido.
O direto nao é, portanto, index sui, signo dele mesmo; ele
nao se designa como tal. Acontece, em certos casos, que os
programas inscrevem em um canto da tela a expressao direfo (ao
vivo), mesmo que a emissfo seja gravada, ao menos em patte.
O telespectadot sé se da conta ao verificar a presenca de um mesmo
cantor, no mesmo momento, em duas emissoras diferentes ou em
uma emissora e em um teatro (¢/ capitulo 4). Se uma tal promessa
pfagmatica é benéfica para a emissora, é porque ela é portadora de
uma promessa ontoldgica de autenticidade — 0 telespectador cré
que o direto é a mais auténtica das maneiras de restituir o real —
porque sao necessatias numerosas verificacdes exteriores & emissio,
imtiltiplos saberes laterais, para colocar em questao essa promessa.
Se as imagens em directo veiculam informagdes preciosas
para o telespectador, como ele pode duvidar dos comentarios
jornalisticos? Mas os recentes acontecimentos histéricos,
transmitidos nessas condigées, permitem que sejam colocadas
duvidas a esse respeito. Os mais velhos recordam-se das referidas
Francoss Josr 97
reportagens em direto da revolugao romena'®, nas quais 0 jornalista
nfio chegava a ultrapassat 0 estigio da descrigio (bd wm tangue, um
caminbéo... uma situacao de atentadoy; os mais jovens recordam-se da
incompreensio provocada pelo choque do primeiro aviio nas torres
de Manhattan: acidente? catastrofe? Nesse estagio, ninguém sabia
como interpretar as imagens, a ponto de certos pensadores chegarem
aafirmar que ela s6 informa a partir de uma segunda leitura. Téy-se
exemplos cada vex que se revisam as alualidades ¢ se veem as imagens falvear os
discursos que se enquadram (Dayan, 2004, p. 177). Em que medida se
pode dizer que a imagem informa? Essa é uma questio preliminar a
qualquer anilise do telejornal.
5.2 TELEJORNAL
e Em que sentido falar de informagao?
Se, neste 16 de dezembro (petiodo de inverno na Franca),
no momento em que estas linhas sao esctitas, o telejornal das 13
horas da ‘TF1, que tradicionalmente comega pela meteorologia,
declara que 0 tempo sera nublado e frio nas proximas horas, essa
previsio nfo diz muita coisa: é suficiente levantar os olhos, olhar
pela janela de onde mal se vé o edificio da frente, pata cret nas
palavras do apresentador. Em outros termos, a informagao € muito
pobre, assim como provavel. Em contrapartida, se o mesmo amincio
interviesse nos meses de verio, haveria alguma raz4o para prestar
atencio e esperar, com uma ligeira inquictude, as explicagées
dos experts de todos os tipos (meteorologistas, climatologistas,
gedgrafos etc.) sobre a razio de haver uma mudanga climitica
tio incompreensivel.
Esse simples exemplo atesta que informacio ¢ significacio
sio duas realidades proporcionais: quanto mais um enunciado é
\ Supostamente porque, embora ctiquetadas com o direto, as imagens eram
reportadas 4 televisio romena que as difundia com uma diferenga de tempo em
relagao 20 acontecimento.98 COMPREENDER A TELEVISAO
compteensivel, isto é, quanto mais a significacao é clara, menos ele
informa; quanto menos um enunciado tem significacio, mais ele
informa, Como escreve o teérico da cibernética Wiener (In Eco,
1965, p. 145): wm elemento de informagdo, para contribuir com a informagdo
geral da comunidade, deve diger alguma coisa de substancialmente diferente do
patriminio da informatio, jé colocado & disposigéo da comunidade, M esse
respeito, fildsofos ¢ linguistas estio de acordo, quer se trate de J. R.
Searle, definindo a asserciio por uma regra de cortesia, segundo a
qual @ verdade da proposicdo expressa ndo deve parecer evidente nem ao
anditério nem ao locutor no contexto da enunciagéo (1982, p. 105), ou de
Sperber e Wilson, que consideram que « informagéo pertinente 6
aguela que melbora 0 conhecimenta do mundo dagueles que comunicam (1989).
Essa proporcionalidade entre informagio e significagio pode set
formulada também em termos de probabilidade: quanto mais uma
informagio é provavel, mais cla é previsivel — como 0 antincio de
um tempo frio no inverno —, mais cla é compreensivel, mas
menos ela informa no verdadeito ¢ prdptio sentido (ela reitera 0
que se ja se pensava); quanto menos ela é provavel, maior é seu
valor informativo.
A esse tespeito, cabe lembrar 0 caso de uma jornalista da
RIBF que sustentava que o fato de um pequeno grupo de pessoas
ter encontrado trabalho depois do antincio de uma queda do
desemprego era uma informagio. O principio muito simples aqui
exposto vai evidentemente ao encontro de uma tal afirmagio: o
que a imagem traz a respeito das estatisticas sobre a situagao do
trabalho? Nada que elas jé nao contenham: se o desemprego baixou,
duvida-se que se encontrem casos particulares pata ilustrar esse
propésito geral. Trata-se do que Kant tetia chamado de julgamento
analitico, ou seja, um julgamento que resulta de uma tinica andlise
da proposicao inicial. Nesse caso, a imagem nao informa, porque
sua mensagem ja € conhecida anteriormente. Se, em contrapartida,
no momento em que se acaba de assistit a uma série americana, o
programa é interrompido pelo plano de um aviio que cai em uma
torte, a imagem € tio improvavel que ela transmite um maximo de
Francots Jost 99
informagées"". ‘Tanto no se compreende a significacio que se
é levado a levantar hipdteses ou a escutar aquelas apresentadas
pelos experts... Se, entretanto, é reapresentada varias vezes, cla
perde seu valor informativo; se o telespectador fica colado 8 tela,
nfo é mais por razOes informativas, mas, sem diivida, pela emocio
que experimenta.
© Lugar do saber na interpretagao do visivel
Fala-se tanto do 11 de setembro, que se acaba por esquecer
como os fatos chegam pelo canal televisual. Nao obstante, trata-se,
para o tedrico da imagem, de um verdadeito laboratério semistico,
que merece uma visita. Frente a essa realidade demasiado plena de
informacio, como reagem as testemunhas oculates? Muito
curiosamente, elas nao tiveram consciéncia de ter visto os avides
comertciais. Alguns referiram um jato privado (France 2, 15h43);
outras, um Falcio (TF1, 15h43). Essa dificuldade de determinar o
tamanho do aviao era mais patente para o telespectador ao qual
chegava apenas uma imagem, Nao é senfio de um outto lugar que
esse aspecto da imagem foi retido por David Pujadas, o apresentador
da France 2: a primeira hipétese explicativa que lhe vem a cabega, as
15h37min, apoiou-se na evocagao de um outro meio de transporte,
uma caminhonete, que teria explodido no estacionamento das torres,
por ocasiao do atentado de 1993 (a retransmissio comega as
15h33min). Quer se tratasse de testemunhas ou de jornalistas, as
pessoas presentes no lugat ou os espectadores profissionais, todos
testemunharam a dificuldade de sintetizar as informagées visuais,
de conferir-lhes uma significacao univoca; alguns prefeririam até se
: do ousamas
refugiar no imagindrio para sair desse impasse semantic
imaginar que é a bolsa. Imaginemos a Bolsa com dois avibes (..). Pode-se
imaginar que se contam com foridos as dezenas (Daniel Bilalian). Ou ainda:
‘Tem-se dificuldade em imaginar que essas imagens sejam bem reais, que elas
"A TEI exibiu, em 11 de setembro, exatamente antes do em diteto, Le mari d'un
autre ea France 2; Commissaire Lea Sommer,