0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 141 visualizações22 páginasCULT, 202. Dossiê Ditadura Heteronormativa
CULT, 202. Dossiê Ditadura Heteronormativa
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DOSSIE
DITADURA
HETERONORMATIVA
yaad QUE PERDEMOS
COM OS PRECONCEITOS?
26 PALO BUSSEY
KIO Resour
EO TRANSFEMINICIDIO
NO BRASIL
RL Maro SUNN
TEOLOGICAS
tater
DO ARMARIOOSSIE | OITADURA HETERONORMATIVA
O QUE PERDEMOS COM OS
PRECONCEITOS?
Tomada como padrao na sociedade, a heterossexualidade
promove nao apenas a violéncia fisica, mas também a
violéncia simbélica contra os que se desviam dessa norma
LEANDRO COLLING
roposta do dossié desta edigao 6
pensar sobre como os preconcei-
tos para com as sexualidades e
.géneros dissidentes impactaram e
ainda impactam o desenvolvimento cultural
de nossa sociedade. Como e em que medida
esses preconceitos impedem 0 nosso desen-
volvimento cultural? Como é posstvel perce-
ber isso em diversas areas? O que perdemos
ao recusar 0 aprendizado possivel com as
diversidades e dissidéncias sexuais e de gé-
nero existentes a0 nosso redor? Que colabo-
ragdes essas diversidades e dissidéncias ofe-
recem para pensarmos, de uma forma ampla,
nossa cultura?
‘Tendo essas perguntas em mente, convida-
‘mos quatro pessoas com reconhecida producio
na drea para escrever os textos que integram
este dossié, Denilson Lopes escreveu sobre a
recente produgio cinematogratica brasileira ¢
de como, através dos afetos, encontros ¢ de
‘outros lagos, é possivel aprender sobre o que as
pessoas preconceituosas perdem em suas vidas,
a exemplo de outras formas de estarmos jun:
tos, outros encontros e outras subjetividades.
Berenice Bento, «partir do caso da travesti
Verdnica Bolina, defende que a transfobia,
22 BS N-202
além de matar, nos revela sobre as mortes pe-
las quais nés choramos e prope a tipificacao
do crime de transfeminicidio em didlogo com
0s elementos estruturantes do feminicidio.
Mostra também como exigimos que todas as
pessoas sigam plenamente uma suposta coe-
réncia entre genitalia (Sexo) e género,
‘Enquanto isso, André Musskopf reflete sobre
religiio de uma forma diferente da que temos
visto nos iltimos tempos. Em vez de se concen-
‘rar em crticas aos fundamentalistas, ele prope
‘uma teologia indecente a partir de experiéncias,
«que jé existem, analisadas e descrtas em seu i
vyro Via(da)gens teol6gicas. Por fim, Rogério
Junqueira dissecaaescola, essa fibrica produtora
deuma cultura que insiste em nao reconhecer e
aprender com as diferencas.
Neste dossi, os preconceitos em torno da
diversidade sexual e de género serio escruti-
rnados para além do conceito de homofobia,
que nao da conta de entender as especificida-
des da lesbo-transfobia e de como opera a he-
terossexualidade compuls6ria e a heteronor-
matividade. Homofobia € um conceito criado
para pensar a repulsa geral is pessoas homos-
sexuais, ou fobia aos homossexuais. Daniel
Borrillo, no livro Homofobia, diz que o termoparece pertencer a KT. Smith, que, em um artigo publicado em 1971,
tentou analisar as caracteristicas de uma personalidade homofbica.
‘Um ano depois, G. Weinberg teria definido a homofobia como “o temor
de estar com um homossexual em um espago fechado e, no que con-
cerne aos homossexuais, 0 ddio até a si mesmos”.
Em geral, usamos 0 conceito de homofobia para descrever qualquer
atitude e/ou comportamento de repulsa, medo ou preconceito contra
0s homossexuais. A homofobia nao se restringe apenas as violéncias
fisicas, mas também as variadas violéncias simbélicas. E cla também
pode atingir os heterossexuais que, porventura, parecam aos ollios
homofébicos como homossexuais
O conceito de homofobia é controverso e, ainda que muitas pessoas
defendam o seu uso, em fungao dele jé ter sido incorporado por boa
parte da sociedade, ou que o ampliem para além de aspectos de ordem
sicol6gica, como faz Rogério Junqueira, no artigo Homofobia: limites
possibilidades de um conceito em meio a disputas, publicado na revista,
Bagoas, a ideia de fobia esta, queiramos ou nao, dentro do campo das
patologias. Enquanto isso, sabemos que aprendemos no dia a dia quem
deve ser respeitado e quem pode ser injuriado, portanto, nio estamos
falando de uma patologia em sentido estritofinato, mas de um problema
social/cultural.
vo do cineste Sébastien Lisi, que durante mutes anos comprou
fotos enénimas sobre relagdes hmoafethas nos meados do séealo 2,
Outro problema tem a ver com como 0
prefixo “homo” ¢ decodificado no Brasil. Os
ctiadores do conceito de homofobia agrupa-
ram dois radicais gregos para formar a pala.
vra: “homo” (semelhante)e “fobia” (medo). No
entanto, para nés, “homo” significa homosse-
xual ¢, por isso, o conceito de homofobia fica
reduzido a uma identidade, isto é, aos homos-
sexuais masculinos, e invisibiliza a multipli-
cidade de outros sujeitos e suas identidades.
Isso fez surgir novos conceitos,tais como les-
bofobia, bifobia, travestifobia, transfobia.
Borrillo reconhece esse problema, dizend que
homofobia pode se confundir como gayfobia,
‘mas ainda assim decide usar apenas a nocio
de homofobia alegando “razées de economia
de linguagem’.
(a, trata-se de um argumento muito ques-
tionével, pois sabemos, hé muito tempo, em es-
pecial nos estudos das sexualidades e dos géne-
10s, via Michael Foucault e Judith Butler, por
exemplo, que linguagem esta carregada de re-
lagdes de poder e marcada pelas normas que
sgeram preconceitos.E, além disso, esses e tantos
‘outros estudos evidenciam que a linguagem mu-
dacomo decorrer do tempo, em especial quando
existe uma politica para nela interfer, . mp
e202 BHR 23DOSSIE | DITADURA HETERONORMATIVA
HETEROSSEXUALIDADE COMO NORMA
O conceito de heterossexualidade compulsdria
comegou a aparecer por volta de 1980. Nesse
ano, dois textos importantes foram publicados
sobre o tema, Um deles é da feminista Adrienne
Rich, autora de Heterossexualidade compulsé-
ria ea exsténcia lésbica, Para Rich, a experién-
cia lésbica é percebida através de uma escala
que vai do desviante ao odioso ou até mesmo
invisivel. Além disso, as mulheres sio conven-
cidas de que o casamento e orientagéo sexu-
al, voltadas para os homens, sio inevitaveis,
As mulheres so doutrinadas pela ideologia
do romance heterossexual através de contos
de fadas, da televisio, do cinema etc, isto &
todos esses mecanismos fazem propagandas
coercitivas da heterossexualidade e do casa-
mento como padrio.
‘Também pensando a heterossexualidade
especialmente em relagao as Iésbicas, Monique
Wittig publica O pensamento heterossexual e
‘Nao se nasce mulher. Para ela, o que constitui
‘uma mulher é uma relagio social especifica
‘com um homem, chamada por ela de servidao
‘ow até escravidéo, que implica varias obrigagées
(trabalho doméstico, deveres conjugais e pro-
ugdo ilimitada de filhos) que dariam susten-
tagdo & sociedade heterossexual. As Iésbicas
escapariam dessa relagdo quando rejeitam ser
heterossexuais e, por isso, Wittig conclu: “as
Lsbicas nao sdo mulheres”. Para ela, a heteros-
sexualidade nao é uma orientagio sexual, mas
‘um regime politico que se baseia na submissdo
ena apropriagdo das mulheres. O feminismo,
ao nao questionar esse regime, diz Wittig, ajuda
a consolidé-lo.
A heterossexualidade compuls6ria consis-
tena exigtncia de que todos 0s sujeitos sejam_
heterossexuais, isto 6, se apresenta como tinica
forma considerada normal de vivencia da se-
xualidade, Essa ordem social/sexual se estru-
tura através do dualismo heterossexualidade
versus homossexualidade, sendo que a hete-
rossexualidade é naturalizada ¢ se torna com-
pulséria. Isso ocorre, por exemplo, quando
buscamos as causas da homossexualidade, um
fetiche vigente ainda hoje inclusive entre mi-
litantes e pesquisadores que se dizem pré-
-LGBT. Ao tentar identificar o que torna uma
24 BE N-202
AHETEROSSEXUALIDADE NAO
E APENAS UMA ORIENTACAO
SEXUAL, MAS UM MODELO
POLITICO QUE ORGANIZA AS
NOSSAS VIDAS
pessoa homossexual, colocamos a heterossexualidade como padrio,
‘como um principio na vida humana, do qual, por algum motivo, alguns
se desviam,
‘Mesmo que nao consideremos que a homossexualidade seja anor-
mal ou patol6gica, cada vez que tentamos achar um momento ou oca-
sido que a origina, nds naturalizamos a heterossexualidade e ocultamos
uum dos mecanismos de producio da anormalidade, isto é, a naturali-
zagdo da sexualidade, Para nao incorrer nesse erro conceitual e politico,
teriamos que substituir a questéo de uma causa da sexualidade para
problematizar que mecanismos tornam alguns sujeitos aceitaveis, nor-
malizados, coerentes, inteligiveis e outros desajustados, abjetos.
Sairiamos de uma busca pela causa para uma problematizacio dos
‘mecanismos de produgao das abjegdes.
Com a retirada da homossexualidade da categoria de crime ea sua
posterior despatologizacao, a partir de 1973, a heterossexualidade com-
pulsdria perde um pouco de forga em alguns paises. Is0 porque a pato-
Togizacao sustentava a heterossexualidade como tinica forma sadia de
vivenciar a sexualidade. A partir de entio, heterossexualidade e homos-
sexualidade sio consideradas formas possiveis de vivéncia da sexualida-
de, a0 menos em tese, em muitos lugares do planeta (mas ndo em todos).
‘Mesmo que a “citncia”tenha retirado a homossexualidade (e mantido a
transexualidade) na lista das doencas, no senso comum as pessoas ainda
acreditam que ser normal e sadio é ser hétero. Além disso, algumas con-
ccepgées“cientifcas” partem ainda da heterossexualidade como natureza
humana ese apoiam no dualismo hétero versus homo.
Jéo conceito de heteronormatividade, criado em 1991 por Michael
‘Warner, busca dar conta de uma nova ordem social. Isto & se antes essa
cordem exigia que todos fossem heterossexuais, hoje a ordem sexual
cexige que todos, heterossexvais ou néo, organizem suas vidas conforme
‘o modelo “supostamente coerente” da heterossexualidade.
Enquanto na heterossexualidace compulsoria todas as pessoas devem
ser heterossexuais para serem consideradas normais, na heteronormativi-
dade todas devem organizar suas vidas conforme o modelo heterossexual,
tenham elas priticassexuais heterossexuais ou no. Com isso entendemos
que a heterossexualidade nao é apenas uma orientacio sexual, mas um
‘modelo politico que organiza as nossas vidas.
|rere
Ctva”
aa
Consdera a primaire grande ftografanorte- americana, lie Austen irre &esquore
‘eghsrou,no nal do seule 19,0 amblent esbeo, como em "The Damned Cub
Sena heterossexualidade compulsdria todas as pessoas que nio so
heterossexuais sdo consideradas doentes e precisam ser explicadas,
estudadas e tratadas, na heteronormatividade elas tornatn-se coerentes
desde que se identifiquem com a heterossexualidade como modelo, isto
6 mantenham a linearidade entre sexo e género: as pessoas com geni-
‘lia masculina devem se comportar como machos, mésculos, eas com
genitalia ferninina devem ser femininas, delicadas.
Enquanto a heterossexualidade compulsoria se sustenta na crenga,
cde que a heterossexualidade é um padréo da natureza, a heteronorma-
tividade advoga que ter um pénis significa ser obrigatoriamente més-
culo, isto & 0 genero faz parte ou depende da “natureza’; existe uma
relagio mimética do género com a materialidade do corpo.
Os impactos disso tudo em nossa cultura so muito bem analisados
ros textos que integram este dossi.
Boa leitura. @
202 BEB 258 | OITADURA HETERONORMATIVA
DE VOLTA A FESTA
Filmes da nova safra do cinema brasileiro trazem histérias de
possibilidades de outros futuros e outras formas de estar juntos
DENILSON LOPES
‘m 2014, me chamon a atenglo a pre-
senga de trés filmes brasileiros no
festival de Berlim e um recorde de
inscrigdo de longas metragens bras
leiros no festival Mix de Diversidade Sexual,
segundo seus organizadores, Ainda durante
todo o ano de 2014, paralelamente aos mov
mentos sociais associados & Copa Mundial e
as eleiges, com 0 aumento de tensio entre
discursos religiosos fundamentalistas e mil
tantes LGBT, varios filmes despertaram um
debate critco intenso, como Tatuagem (2013)
de Hilton Lacerda, ou Doce amianto (2013), de
Gato Parente e Uiré dos Reis, Praia do futuro
(2014), de Karim Ainouz, Hoje eu quero voltar
sozinho (2014), de Daniel Ribeiro, apenas para
‘mencionar os mais conhecidos. Ha ainda toda
uma geragio de jovens cineastas, varios deles
sem terem ainda realizado longas, para quem wm
olhar queer, para além das formas normativas
das héteto e das homossexualidades, poderia
trazer uma forma distinta de compreensio
sobre as sexualidades. Esta é a minha aposta
neste artigo.
enso no curta Mauro er Caiena (2012), de
Leonardo Mouramateus. Ao supostamente es-
ctever uma carta ao to que moraem Caiena, na
Guiana Francesa, 0 dretor refaz os dilemas do
presente entre ficar ou partir de Fortaleza, cidade
‘onde mora num bairro de periferia estabelece
‘uma genealogia, a principio, masculina e dentro
da familia, que remete a0 tio e ao primo mais
novo. Genealogia que chamarel de queer, esta
nha, Estranheza presente nfo $6 na partida do
26 BIN N202
Ni
2rianto 2013), de Guro Pareto Ur dos Rae,
fm Pra do futuro 2014, de Karen Anotio para Caiena, mas, sobretudo, naidentificaco
do narrador com Godzilla e do primo com um.
cachorro, A abertura para a cidade e parao mun-
do se da pelo mundo da midia e pela festa como
formas de pertencimento.
Se, no curta do jovem realizador Leonardo
Mouramateus, éa ansiedade da partida que
predomina, é a busca do encontro que faz
Donato (Wagner Moura), protagonista de
Praia do futuro, de Karim Ainouz, se mover,
deixar o lugar onde nasceu, abandonar familia
e trabalho estiveis e ir em busca de onde possa
pertencer, O que pode um encontro? O encon-
tro € dos corpos mas também com 0s espacos.
Entre Berlim ¢ Fortaleza, atravessando mares,
‘ase estradas, os personagens, por fim, con-
tinuam nas suas motos, sem nostalgia, sem
grandes lamentos, até desaparecerem. O que
fazer quando nao mais se pertence, quando
no se pertence a nenhum lugar? Talvez as
coisas sejam tio simples como deixar de pegar
tum aviio quando se deveria voltar. Tio sim-
ples, mas talvez por isso mais difices de serem
percebidas como importantes. Mais do que
aprender a deixat‘o passado, a abandonar pes-
soas, éem saber ao certo aonde isso possa nos
levara nio ser talvez atum momento a mais, a
uum dia a mais. Momento apés momento, dia
apés dia, até que, se olharmos para tris, no
reconheceremos aquele que fomos. Mas talvez,
pudéssemos dizer que foi ali que tudo mudou.
‘Nio foi, mas talvezisso nos desse nao um pas-
sado, mas a sensagéo de que houve um gesto,
‘um momento especial a partir do qual tudo
mudou. Talvez nao saibamos onde estamos.
‘Mas continuamos, momento apés momento,
dia pds dia. Talvezseja essa a praia do futuro.
Nio 0 momento, mas o continuar. Quando
do somos mais criangas, nfo somos mais he-
ris de ninguém, nem de nés mesmos, Se, em
(CE de Suely (2006), Hermila partia s6, 4
xando sua familia de mutheres, Donato inven-
ta na deriva uma familia de homens com 0
irmdo € 0 amante. Sem grandes sonhos, nem
"utopias, o encontro precério e instivel & que
0s faz mover, ir para frente.
Repito: o que pode um encontro? Marcelo
Caetano disse em uma entrevista que o que
interessa a ele € ctiar encontros. Mas 0 que é
criar encontros ndo s6 para fazer ou a0 ver
filmes, mas em um filme? Encontros que so
no presente mas também com as memérias e
desejos de outros tempos.
Em Baildo (2009), Marcelo Caetano talvez
buscasse um outro através de um registro qua-
se etnogréfico do centro de Sao Paulo, tendo
como ponto de partida o lugar de encontro de
homens mais velhos eas entrevistas de alguns
deles, Mas as narrativas retinem um passado
de marginalidade e exclusdo com uma velhice
presente nuum ambiente de maior liberalidade.
Os depoimentos parecem se encenar pela ci-
dade, estendem seus lagos e encontros por
bares e cinemas, transpondo tempos. Tudo,
enfim, para acabar numa danga a dois e num
espago que é maior do que a solidio individu-
al, maior do que os casais estaveis e institucio-
nalizados. O urinol, que encantou Duchamp
€ escandalizou o piblico expert quando >
202 BN 27DOSSIE | O:TADURA HETERONORMATIVA
foi primeiramente exposto, tem bem outros sentidos para quem 0 ba-
nheiro é um lugar de encontros que sé poderiam se dar ali. Os banhei-
ros galerias, ruase cinemas por onde perambulam os velhos senhores
sio saturados de lembrangas. Encontros andnimos, mas que refazem
uma outra historia, uma outra temporalidade, como os mais recentes
Tatuagem, de Hilton Lacerda, e Sao Paulo em Hi Fi (2013), de Lute
Steffen, nos quais o individual eo coletivo se misturam. Se no filme de
Lufe Steffen hi uma nostalgia de um mundo de festa, alegria, excen:
tricidade e glamour destruidos pela AIDS (como na imagem de Wilza
Carla, ex-vedete ¢ ex-atriz, descendo a rua Augusta montada num ele-
fante até a porta de uma boate),o filme de Hilton Lacerda resgata fic
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Mulheres artistas:
as pioneiras (1880-1930)
De 13 de junho a 06 de setembro de 2015
Ca eer
Pern
ere
oc
0 de SHo Paulosocialmiente performatizado, nesse momento
retorna-se ao esvaziamento de inteligibilidade
a ruptura se produz. Como é possivel um ho-
‘mem com nome de mulher? Essa é mais uma
evidéncia de que a violéncia contra as pessoas
trans é motivada pelo desejo do restabeleci-
‘mento das normas de género,
O processo de exclusio das pessoas trans
comega muito cedo, Quando as familias des
cobrem que o filho ou a filha esta se rebelando
contra a “natureza” e que desejam usar roupas
e brinquedos que no sdo apropriados para seu
‘nero, o caminho encontrado para “conserté-
-lo” 6a violencia, Geralmente, entre os 13 ¢ 16
‘anos as pessoas trans fogem de casa e encon-
tram na prostituicéo o espaco social para so-
brevivéncia financeira e construgao de redes
de sociabilidade.
Em uma tentativa de caracterizar 0 trans-
feminicidio, sugiro algumas caracteristicas
estruturantes desse tipo de violencia:
1) Oassassinato ¢ motivado pelo género, ¢
nio pela sexualidade da vitima. Conforme
sabemos, as priticas sexuais estio invisibili-
zadas, ocorrem na intimidade, na alcova. O
sénero, contudo, nao existe sem o reconheci-
‘mento social, Nao basta eu dizer “eu sou mu-
Iher”, é necessério que o outro reconhega esse
‘meu desejo como legitimo. O transfeminicidio
seria a expresso mais potente e trégica do
cardter politico das identidades de género. A
pessoa & assassinada porque além de romper
com os destinos naturais do seu corpo-gene-
tificado, o faz publicamente e demanda este
reconhecimento das instituigbes sociais,
2) A morte ritualizada. Nao basta um tiro
fatal, ou ume facada precisa ou um atropela-
mento definitivo. Os corpos das mulheres
trans sio mutilados por dezenas de facadas,
pot intimeros tiros,
3) Auséncia de processos criminais,
Considerando que se trata de uma absoluta
impunidade, pode-se inferir que a conivéncia
do Estado brasileiro revela um desejo social de
liminagdo da existéncia trans,
4) As familias das pessoas trans raramente
reclamam os corpos. Nao existe luto nem
melancolia.
AVIOLENCIA CONTRA AS PESSOAS
TRANS E MOTIVADA PELO DESEJO
DO RESTABELECIMENTO DAS
NORMAS DE GENERO
5) Suas identidades de género ndo so respeitadas no noticiério da
morte, na preparagio do corpo e no registro da morte. A pessoa assas-
sinada retorna ao género imposto, reiterando, assim, 0 poder do género
enquanto lei que organiza e distribui os corpos (vivos ou mortos) nas
estruturas sociais,
6) As moites acontecem em espagos pablicos, principalmente nas
ruas desertas e& noite.
Para cada um dos pontos assinalados ¢ possivel propor um didlogo
com os elementos estruturantes do feminicidio, As mulheres nio trans
sao majoritariamente assassinadas por pessoas conhecidas (ex-maridos,
maridos, amantes, namorados, ex-namorados);o assassinato acontece
Principalmente em espacos domésticos; nio hé o duplo assassinado,
Seria possivel continua esta aproximagao entre esses dois tipos de
violncia (tipos de arma, cuidado com o corpo assassinado, a producgo
do luto, destaque miditico e tratamento da imprensa, respeito iden:
tidade de género, entre outros), mas tal esforco comparativo fica para
outro momento.
Sugiro que a principal funcao social do transfeminicidio & a espe-
tacularizagao exemplar. Os corpos desfigurados importam na medida
em que contribuem para a coesio e reproducio da lei de généro que
define que somos o que nossas genitélias determinam. Da mesma forma
‘que a sociedade precisa de modelos exemplares, de herGis, os nio-
-exemplares, os paras, os seres abjetos também sio estruturantes para
© modelo de sujeitos que néo devem habitar a nacdo,
Ao considerar a violéncia contra as mulheres trans no ambito das
uestdes de género, considero que a aprovaslo da lei do feminicidio
pode representar uma importante brecha legal para se iniciar um pro-
cesso de demanda por justia. E, por outro lado, o reconhecimento (¢
© incentivo) de que todas as politicas voltadas para questies referentes
420 género em nosso pais dizem respeito diretamente & populagao trans,
‘-exemplo das delegacias de mulheres, o respeito& identidade de género
1nas prisdes ¢ em todos os servigos piblicos.
io estou certa de que essas sugestdes evitariam as violéncias sobre-
Dostas (de raca, género e classe social) e 0 quase dbito de Verdnica, mas
de uma coisa estou segura: nao ¢ possivel o Estado continuar impune-
‘mente assassinando, violando, torturando, amedrontando as pessoas
trans sem que haja a indignagaio necesséria para fazé-lo parar.
N-202 39DOSSIE | OITADURA HETERONORMATIVA
34 BI N-202POR MAIS VIADAGENS
TEOLOGICAS
As religiGes se tornam um entrave nas discusses
ena garantia de direitos no ambito da diversidade
sexual e de género
ANDRE S, MUSSKOPF
eligido € um dado da cultura. Seja
qual for a abordagem teérica que se
utilize para refletir sobre ela ~ in-
clusive no campo da teologia ~ nao
hd como pensar a cultura sem pensar na forma
como as diferentes expressées religiosas se
‘materializem como manifestaces culturais.
sonho - ou delirio ~ de um mundo “sem
religito”, ainda quando se admita e respeite o
direito & ndo-crenca religiosa, contradiz a
propria ideia de diversidade, inclusive na pers-
pectiva dos Direitos Hlumanos assim como hoje
so compreendidos e defendidos. O problema
parece estar na suposta impossibilidade de
(ce)conciliar diversidade religiosa ediversida-
de sexual e de género
Religido é um entrave nas discussées e na
gatantia de direitos no ambito da diversidade
sexual e de género, E possivel e provavel que em
todas as religiées (entendidas mais como insti-
tuigdes ou movimentos organizados-do que
como praticas particulares) haja correntes ¢
‘posicionamentos que valorem depreciativamen-
te alguma questdo que esteja relacionada as
dissidéncias de género e sexualidade, uma vez
que também sio conformadas pela cultura em.
seu formato heteronormativo padronizador e
compulsério. Umas mais do que outras, claro,
Em todas as religides, no entanto, ¢ possi
‘vel reconhecer discursos e praticas de resistén
cia aos padres normativos, Blas sio mais,
potosas efluidas do que admitem ser quando
entram na esfera piblica, Por mais que reivin-
diquem sua vinculagao com a tradicao (em
termos doutrindrios, organizativos ou em re-
lacio a suas fontes sagradas) como forma de
afirmar sua continuidade, todas elas apresen-
tam elementos de descontinuidade, As religides
‘mudam e a cultura (em seu sentido amplo)
interfere nesse processo ao mesmo tempo em
que é impactada por elas.
‘Os movimentos ¢ estudos LGBT (Iésbicas,
gays, bissexuais, cravests, transexuaise transg-
nero), queer, de diversidade sexual ede género,
carregam seus proprios fundamentalismos, Seja
nas perspectivasidentitérias assimilacionistas ou
no proprio abunguesamento do queer na sua ver
fo cult fashion, o dogmatismo em relacio &
religido talvez seja seu principal ponto de insu-
cesso, Avessosa qualquer discussio sobre o tema
a menos que seja para denunciar,jastamente,
a violéncia eo sofrimento causados ~ perdem a
‘oportunidade de dialogar crticamente e, deus-
-me4livre, articular-se com as formas de resis-
téncia em seu interior e construir perspectivas
libertadoras no campo da cultura ¢ da ==
N202 BAB 35DDOSSIE | DITADURA HETERONORMATVA
religido, Talver as feministas possam nos judar mais aqui, pois parece que
1 didlogo com as teologias feministas, como as de Ivone Gebara e Nancy
Cardoso, por exemplo tem sido mais frutifero, Talvez,
No ambito do cristianismo, ha reflexdes jd desde a década de 1950
«¢, com maior profusio, a partir da década de 1990, que prefiguram 0
que veio a ser conhecido como teologias homosexual, gay, ésbica,
queer. Alguns exemplos nessa linha sio J. Michael Clark (Beyond the
ghettos, Defying the darkness) David Comstock (Gay theology without
apology), Robert Goss (Jesus acted up, Queering Christ), Elizabeth
Stuart (Gay and lesbian theologies). Embora nao haja necessariamente
‘uma relacio direta e seja possivel tecer diversos questionamentos em
termos de teologia e organizacio, a emergéncia de grupos cristdos ou
igrejas com perspectivas diversas/dissidentes com relago a questoes
de género e diversidade sexual ~ bastante conhecidos como grupos e/
cu igrejas “inclusivas” - € também evidéncia de perspectivas nao he-
sgeménicas no campo da religido. Essasiniciativas tanto se alimentam
de movimentos politicos e culturais quanto subsidiam ou poderiam
subsidiar outras discussdes e agdes no campo da politica, da cultura e
da prépriareligido como a conhecemos.
TEOLOGIA INDECENTE
© que todas elas parecem ter em comum é utilizagdo da experiéncia
de dissidéncia de género e sexualidade como ponto de partida para
stuas construges no campo da teologia e da pritica eclesidstica. Essa
forma de pensar e praticar religido emergiu no contexto de amplos
questionamentos sobre a relexao teoldgica ea vida da igreja nas iltimas
décadas, particularmente no que se tornou conhecido como teologias
da libertacdo (incluindo as teologias feminista, negra, indigena, cam-
pponesa). Na América Latina, entre varios outros elementos, destaca-se
a importancia que assume a religiosidade popular nas reflexes de
tedlogos e tedlogas e nas propostas de renovacdo de muitas igtejas.
final, a experiéncia religiosa nao ¢ propriedade das instituigdes reli-
siosas, mes se constrdi no cotidiano das priticas comunitérias de in-
dividuos e grupos diversos.
36 BI N202
No livro Via(da)gens teolégicas, procuro
explora justamente essa relagao partindo da
forma como se constroem historicamente 0 que
se tem chamado de religiosidade e sexvalidade
brasileiras. A constatacio é de que nenhuma
compreensio da cultura brasileira (em sua di-
versidade) pode ser construda sem considerar
essas duas dimensdes da experiéncia humana
que determinam definitivamente essa cultura
a partir de conjunturas historicas especiticas,
no passado e no presente. Autores e autoras
como Roberto da Matta, Marilena Chau e
Richard Parker que néo me deixem mentir
Tanto uma como a outra, ¢ relagio entre elas,€ marcada, enquanto fendmeno da cultura e
experitncia de f&, por aquilo que chamo de am-
biguidade, Nao como um elemento de confusio
‘ou impreciséo, mas precisamente como formas
de negociacéo, mistura e inter-relagio que
criam e recriam crengas e priticas na vida con-
creta das pessoas. Jesus f*cking Christ
Marcella Althaus-Reid, a principal refe-
réncia no campo das teologias queer e pos-
coloniais, partindo da realidade latino-ame-
ricana e da teologia produzida no continente,
colocou as bases para uma teologia que leve
a sério essas experiéncias através de sua pro-
posta de uma teologia indecente. Afirmou que
toda teologia ¢ um discurso e uma prética
sexual e demonstrou os pressupostos hetero.
céntricos e heteronormativos das teologias
cristés tradicionais. Assim, segundo ela,
“uma teologia indecente questionaré o tradi-
ional campo da decéncia e ordem latino-
-americanas enquanto permeiam e apoiam
as muiltiplas estruturas eclesiolégicas, teol6-
gicas, politicas e amorosas) de vida em meu
pais, Argentina, e em meu continente”
(Althaus-Retd, Indecent theology).
Na trilha da indecéncia, as narrativas de vida
(Gomadas como histirias sexuais) de trés pessoas
trans, um slogan do MST (“ocupar,resistir e pro
duzin!") e um pouco de pegagéo com uma pin.
tura de Frida Kahlo podem ajudar a construir
uma reflexio teol6gica a partir da realidade bra-
sileira que afirme as dissidéncias de género e
sexualidade no campo da cultura desde uma
perspectiva religiosa. As narrativase os corpos
das pessoas trans explcitam as ambiguidades da
( mario de So Sabostif, pinta de Guido Rei
cde 1815, tomou-ea um silo gay
‘vida e propdem uma outra epistemologia orga
nizada como ocupagdo dos corpos dissidentes
ue sio 0 que quiserem ser, resisténcia aos cAno-
nes culturais ¢ linguisticos nas linguas afiadas
«que subvertem a ldgica dominante e producio
cde uma outra teologia que nasce da pegacio. A
pegaco & elevada & rigorosidade de uma fecra-
‘menta hermenéutica, um modo deinterpretar €
produzir conhecimento que leva a sétio (ou se
diverte com) 0 erotismo dos cotpos vividos. Se
learealidade, a Biblia ea tradicio como exercicio
sensual de revelagio do divino.
© Veado ferido (pintura de Frida Kahlo)
materializa de diversas formas uma teologia
‘que se faz.como via(da)gem. Revela as marcas
da violéncia homofébica na pele rasgada de
‘um Sao Sebastiao “patrono dos viados”.
Mistura as religiosidades dos povos originé-
tos, o catolicismo popular, as religides orien-
tais. Traz as ambiguidades ~ sexuais, politicas,
religiosas, culturais - da prépria autora que se
mistura & realidade criada a ponto de ser ela
‘mesma o personagem de sua representagao de
Vida e de crenga ~ antorretrato. E viagem por-
que se faz como proceso e ¢ viadagem porque
‘prope uma nova relagao entre cultura e reli
slo a partir das dissidéncias sexuais e de gé-
nero em forma de teologia.
Enfim, uma sociedade sem preconceitos
em relagao as sexualidades e ao género aliada
‘4 uma outra perspectiva analitica em relacio
as religides poderia fazer emergir, com mais
intensidade e escala, as praticas religiosas ja
existentes que constituem as nossas viada-
gens teolégicas.
A EXPERIENCIA RELIGIOSA NAO E PROPRIEDADE DAS INSTITUICOES.
RELIGIOSAS, MAS SE CONSTROI NO COTIDIANO DAS PRATICAS
COMUNITARIAS DE INDIVIDUOS E GRUPOS DIVERSOS
+202 BI 37DOSSIE | DITADURA HETERONORMATVA
sides pelo cast fancte
‘surge uma ht ive de
ma século 20
PEDAGOGIA
DO ARMARIO
A heteronormatividade esta na ordem.
dos curriculos escolares instaurando
um regime de controle e vigilancia
da conduta sexual, do género e das
identidades raciais
ROGERIO DINIZ JUNQUEIRA
‘os iltimos anos, no Brasil, a escola passou a estar no centro
das disputas politicas em torno da diversidade sexual e de
sgénero, A sala de aula & um espaco legitimo para se discutir
sgénero e sexualidade? F importante assegurar politicas edu-
cacionais que promovam a cultura dos direitos humanos ¢ 0 reconheci-
mento das diferengas nessa érea? Existe homofobia na escola? Se sim, ela
representa um problema educacional?
Aheteronormatividade est na ordem do curriculo escolar e, desse
modo, tende a estar presente em seus espagos, normas, ritos, rotinas,
contetidos e priticas pedagégicas. A instituigao normativa e normaliza-
dora da heterossexualidade como tinica possibilidade naturale legitima
de expressdo sexual e de género envolve toda a escola ¢ 0s sujeitos que a
animam ao sabor de um processo que Guacira Lopes Louro, em O corpo
educado, chama de pedagogia da sexualidade. Nao raro, nas escolas,
pessoas identificadas como dissonantes em relagio as normas de gener
¢& matriz heterossexual sfo postas sob a mira preferencial de um sistema
de controle vigilancia que, de modo sutil e profundo, produz efeitos
sobre todos os sujeitos ¢ os processos de ensino-aprendizagem,
‘Também informada por outros preconceitos ¢ discriminades, aes-
cola ndo apenas consente, mas também cultiva e ensina heterossexismo¢ homo-lesbo-transfobia. A escola se mostra,
assim, como instituigao empenhada na reafir-
‘ago e no éxito dos processos de incorporacéo
das normas de género e da heterossexualizagao
compulséria. Histérica e culturalmente trans-
formada em norma, produzida e reiterada, a
heterossexualidade obrigatéria torna-se o ba-
Iuarte da heteronormatividade. E, nao por aca-
50, heterossexismo e homofobia instauram na
escola um regime de controle e vigilincia da
conduta sexual, do género e das identidades
raciais. Heterossexismo e homofobia so ma-
nifestagbes de sexismo associadas a diversos
regimes e arsenais normatives, normalizadores
cestruturantes de corpos, sujeitos,identidades,
hierarquiase insttuigées.
© termo homofobia é comumente empre-
gado em referéncia a um conjunto de emogdes
negativas em relagio a homossexuais, Porém,
relacionar a homofobia apenas a um conjunto
que as distintasformulages da matriz heteros-
sexual, ao imporem a heterossexualidade como
obrigatéria, também controlam o género.
Assim, parece mais adequado entender a ho-
‘mofobia como um fendmeno social relacionado
4 preconceitos, discriminagao e violencia volta-
dos contra quaisquer sujits, espressdeseestilos
de vida que indiquemt transgressao ou dissinto-
nia em relagao as normas de género, dé hetero-
normatividade, a matriz heterossexual. Seus
dispositivos atuam capilarmente em processos
heteronormalizadores de vigilancia, controle,
classificagdo, corre¢do, austamento e margina-
lizagdo com os quais fodos se confrontam.
Dizer que a homofobia e o heterossexismo
pairam sobre todos néo implica afirmar que
afetem individuos e grupos de maneira idénti-
2.04 indistinta. Embora a norma diga respeito
4 todos, seus dispositivos de controle e vigi-
lincia possam revelar-se implacaveis contra
qualquer um, a homofobia tem alvos preferen-
ciais. Contra eles, a pedagogia da sexualidade
pode ser traduzida em uma pedagogia do in-
sulto, que se expressa, por exemplo, por meio
de piadas, ridicularizagdes, insinuagées que,
ppor sta vez, agem como mecanismos heteror-
reguladores de objetivacio, silenciamento,
:
é
a
i
8
8
ajustamento, marginalizagdo e exclusio. Como
Iembra Didier Eribon em Reflexes sobre a
questio gay, injarias e insultos sio jogos de
poder que marcam a consciéncia,inscrevem-se
no corpo e na memoria e moldam as relagdes
dos sujeitos com 0 mundo. Mas, mais do que
{sso, o insulto opera como uns dos elementos
dos processos de normalizacio.
Ora, por meio de processos de normaliza-
‘0, uma identidade especifica€ arbitrariamen-
te eleita ¢ naturalizada, ¢ passa a funcionar
como parametto na avaliagéo e na hierarqui-
zagdo das demais: ela recebe todos os atributos
ppositivos, a0 passo que as outras s6 poderlo ser
avaliadas de forma negativa e ocupar um status
inferior. A normalizacio se conjuga a processos
de hierarquizacio e marginalizagdo, implican-
do todos 05 sujeitos. Normais e anormais estio
ambos situados no interior do critério que es-
tabelece a sua separagio: a norma. Esta, a
Ne202 BS 39DTADURA HETERONORMATIVA
PROCESSOS DISCIPLINARES
VOLTADOS A NORMALIZACAO
DE INDIVIDUOS TENDEM
A IMPOSSIBILITA-LOS DE
SE CONSTITUIREM COMO.
SUJEITOS AUTONOMOS
para poder operar, deve ser naturalizada e
tornar-se imperceptivel. Suas verdades deve
ser evidentes, inquestionéves;e suas determt-
ages, nao percebidas como obrigatérias. 550
dependeré da eficécia dos mecanismos de im-
posigdo e persuasio de sua propaganda, que
deve levar 0s envolvidos a internalizar princi-
pos de visio e de divisto de seus regimes de
verdade e excluir alternativas.
‘A ORDEM HETEROSSEXISTA
A marginalizagio a que sto submetidos os indi
viduos que destoam da heteronormatividade
contribu para definir 0 dominio do sujeito “nor
mal”, Como ensina Mary Douglas em Pureza e
‘perigo, medida que se procura consubstanciar
¢ legitimar a marginalizacao do individuo “di-
ferente”, “andmalo”, termina-se por conferit
ulterior nitidez as fronteiras do conjunto dos
“normais”. A existéncia do “nés-normais” nao
depende apenas da exsténcia da “alteridade
normal’ indispensivel naturalizar pedagogi-
camente a condigdo de marginalizado vivida
pelo “outro” para afirmar, confirmar e aprofun-
dar o fosso entre uns ¢ outros.
Assim, por meio da tradugdo da pedagogia.
do insulto em pedagogia do armario, estudan-
tes sfo levados a aprender cedo a mover as
alavancas do heterossexismo. As operagies da
heterossexualizacao compulséria implicam
processos classificat6rios e hierarquizantes,
em que sujeitos muito jovens podem ser alvos
de sentencas que agem como dispositivos de
objetivagzo, em um cendrio caracterizado por
variadas formas de violéncia que a pedagogia
do armério pressupse e dispée, enquanto con-
trolae interpela cada pessoa
Em A epistemologia do armario, Eve
Kosofaky Sedgwick nota que, enquanto regime
40 BR 1202
de ordenagao de corpos, sexualidades e género,
0 “armério® constitui um processo de ocultagao
da posigio de dissidéncia em relagio & matriz
heterossexual e que faz mais do que simples-
‘mente regular a vida social de pessoas que se
relacionam sexualmente com outras do mesmo
sexo, submetendo-as a0 segredo, 20 siléncio ou
expondo-as ao desprezo publico. Ele implica
‘uma gestio das fronteiras da heteronormalida
dee atua como um regime de controle de todo
o dispositivo da sexualidade. Assim, reforgam-
-se insttuigdes e valores heteronormativos €
privilegia-se quem se mostra conformado &
ordem heterossexista,
Nao por acaso, a vigilaneia das normas
de genero cumpre papel central na pedagogia
do armério, constituida de dispositivos pré-
ticas curriculares de controle, silenciamento,
invisibilizagAo, ocultagao e néo-nomeagio
que agem como forgas heterorreguladoras deNum mand mercado pelo preconcsto, a ftéeate al-sficanaZanele Muhol mest
abeleza @rguho das pessoes ane da Anise Sul na sre "Faces end Pho
F simon
J scrwanrzman
dominagio simbélica, (des)legitimagao de corpos, saberes, priticas e
identidades, subalternizacao, marginalizagao e excluséo. Por forca da
pedagogia do armério, nas palavras de Deborah Britzman, a escola,
ugar do conhecimento, mantém-se, em relacio & sexualidade, a0
géneto ¢ a0 corpo, como um lugar de censura, desconhecimento,
ignorancia, violencia, medo e vergonha. Além disso, a pedagogia do
armdrio, ao ensejar 0 enquadramento, a desumanizacao, a margina-
lizaglo, opera no cerceamento da autonomia, Afinal, como diz Marcio
Fonseca em Foucault e a constituicdo do sujeito, processos discipli-
nares voltados & normalizacao de individuos tendem a impossibilité-
-los de se constituirem como sujeitos auténomos. Se a educacio de
qualidade pressupde a busca do sujeito auténomo, a pedagogia do
armério & um dos seus obstaculos.
‘Uma pessoa que afirma considerar “propaganda de homossexuali-
dade” ages voltadas a enfrentar a homo-lesbo-transfobia na escola
ignora os processos de heterossexualizag4o compulséria, a artificiali-
dade e a imposicao socioinstitucional das normas de género, nos quais
pedagogia do armério esté implicada. Ao fazé-lo, ela se coloca a ser-
vigo de uma visio segundo a qual o enfrentamento & heteronormati-
Vidade seria uma agenda contréria & natureza, qual a escola néo po-
deria se dedicat. Ela negligencia a centralidade que assume a escola nos
processos de normalizagio ¢ ajustamento heterorreguladores de
marginalizagio de sujeitos, saberes e priticas dissidentes em relagao a
matriz heterosexual, Ela desconhece que a educagio nao-racista, nio-
-sexistae nio-homofébice é um diteito de todos.
E insuficiente denunciar o preconceito e apregoar maior liberdade
sem desafiat a norma, Vale investir na desconstrucio de processos s0-
ciais, politicos e epistemolégicos da pedagogia do armério por meio dos
quais alguns individuos so normalizados enquanto outros sao margi-
nalizados, Em vez de buscar um respeito vago, importa desafiar cdigos
dominantes de signticagio, desestabilizarrelagbes de poder, fender hie-
deere (osoletargenlojg
deyeciat at Ze)
simon
SCHWARTZMAN
Hf rete ereo) evar ve loeers.
rarquizagdes, perturbar clasificagdes e questionar a producio de iden- Wrens ec
tidades reificadas, hierarquizacies e segregacies. Sone atria
Mesmo com todas as dificuldades, a escola € um espago onde podem
ser construidos e experimentados novos padroes de aprendizado, con: Rivencnt cain
vivencia, produgo e transmissio de conhecimento. Mas ela néo pode
ser convocada a fazer isso sozinha, O Estado e a sociedade precisam oe en
envolver-se nisso para que, em vez de fracassos educacionais, dor e
violencia, passemos a vislumbrar cenérios de dignificagio da vida.
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ieee shies