SRIE ANTROPOLOGIA
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ENFOQUES FEMINISTAS E
ANTROPOLOGIA
Mireya Surez
Braslia
1995
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Enfoques Feministas e Antropologia
Mireya Surez
Apresentao.
Este trabalho resultou das reflexes que venho fazendo por ocasio do ensino das
disciplinas sobre mulher e relaes de gnero ofertadas para alunos e, principalmente,
alunas do Programa de Ps-graduao em Antropologia e do Curso de Graduao em
Cincias Sociais da UnB. Portanto, mais do que um trabalho terminado, trata-se de um
conjunto de afirmaes que ainda devem ser melhor articuladas e fundamentadas com base
num exame mais amplo da literatura antropolgica e feminista.
1. A Construo do Feminino pela Antropologia Clssica.
Nada mais recorrente no estudo da organizao social e do parentesco, recorte
disciplinar fundamental da Antropologia, do que a distino de gnero, entendida como
classificador elementar e por tanto universal. Neste tipo de estudo, a diferena homem/mu-
lher e as suas relaes esto sempre presentes, porm, no como objeto de estudo ou
assunto a ser problematizado mas como fatos que substantivam a problematizao da
organizao social e do parentesco. Possivelmente por essa razo que os estudiosos da
organizao social e do parentesco, grandes mestres do estranhamento da idia de que o
parentesco natural, nunca enfrentaram a necessidade de tambm estranhar as idias
ocidentais a respeito da diferena homem/mulher e das relaoes entre eles.
Na mudana da descendncia pela linha feminina para a linha masculina, por
exemplo, Morgan encontra os fatos que abriram o caminho para a emergncia da "civiliza-
o", a nova ordem social. A esse respeito ele afirma que:
"El proceso fue simple y natural, dado que el motivo del cambio era
general, urgente e imperioso. Cuando se efectu, en un momento
dado y por resolucin preconcertada, slo fue necesario convenir
que todos los actuales miembros de "gens" quedasen como
miembros pero, en adelante, nicamente las criaturas cuyos padres
1. Este trabalho foi apresentado no I Encontro Nacional Enfoques Feministas e as Tradsies Disciplinares nas
Cincias e na Academia: Desafios e Perspectivas, realizado na Universidade Federal Fluminense, em agosto de
1994.
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pertenecan a la "gens" perteneceran a ella y llevaran su nombre
gentilicio, mientras que los hijos de los descendientes femeninos
quedaban excluidos ... desde entonces, se retuvieron en la "gens"
todas las criaturas que, hasta ese momento, haban estado excluidas,
y se excluyeron las que antes se retenan." (1970, p. 295).
A leitura do subtexto, que a leitura dos valores veiculados pelo texto por designio
dos ordenamentos culturais do autor e no das culturas que descreve--neste caso, a dos
povos "gentilicios"--mostra que a descendncia pela linha materna foi uma organizao
eficiente nos estgios menos avanados do progresso, porm incompatvel com a ordem
civilizada. A civilizao somente pode ser alcanada quando os membros da "gens"
passaram a ser definidos atravs da descendncia masculina, ficando excluda toda criatura
que at esse momento havia sido includa atravs da descendncia feminina.
As idias de Morgan estimularam a imaginao de Engels e serviram-lhe de base
cientfica para reanimar o mito do matriarcado primitivo. Examinando este matriarcado, o
mito tucano dos juruparis e o ritual da kina dos terrafoguinos, Bamberger escreve que:
"Os mitos e os rituais tem sido interpretados como lembretes
constantes de que as mulheres possuram e perderam o poder ... Os mitos
repetem constantemente que as mulheres no sabem como administrar o
poder quando o possuem ... Ao invs de transmitir um futuro promissor, o
Governo Feminino retorna a um passado obscurecido pelos repetidos
fracassos. De fato, se as mulheres algum dia iro a governar, elas precisam
desvencilhar-se do mito que determina que elas foram consideradas
incapazes de desempenhar papis de liderana." (1979, p. 252)
Muito posteriormente e dentro de uma tradio acadmica bem diferente de
Morgan, Lvi-Strauss encontra na diferena homem/mulher e, mais especificamente na
troca de mulheres (que, em termos formais, nada impede de ser vista tambm como troca
de homens) atravs do casamento, a inveno mais bsica para garantir a aliana dos
grupos de parentesco e constituir a sociedade. A esse respeito, ele afirma que qualquer que
seja a forma assumida pela troca:
" ... a troca, sempre a troca, que aparece como base fundamental e comum
de todas as modalidades de instituio matrimonial ... A troca, e por
conseguinte a regra de exogamia que a exprime, tem por si mesma um valor
social. Fornece o meio de ligar os homens entre si e de superpor aos laos
naturais do parentesco os laos da em diante artificiais, porque libertados
do acaso dos encontros ou da promiscuidade da existncia familiar." (1976,
p. 519-520)
Sem retirar a pertinncia do pensamento de Lvi-Strauss no que se refere
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importncia das trocas matrimoniais (de homens e de mulheres) para garantir a aliana
social, importante notar que tanto texto quanto subtexto revelam uma celebrao
entusiasmada da funo comunicativa e ludica desempenhada pelas mulheres nos mundos
dos homens. Nesses mundos, afirma ele, as mulheres so
"...um dos presentes, o presente supremo, entre aqueles que podem ser
obtidos somente em forma de dons recprocos. No devemos portanto nos
espantar ao ver as mulheres compreendidas entre as alocaes recprocas,
pois tm esse carter em grau mximo, ao mesmo tempo que outros bens,
materiais e espirituais." (1976, p. 105)
Como Morgan e Lvi-Strauss, a maior parte dos antroplogos clssicos observaram
e descreveram cuidadosamente o comportamento dos homens e das mulheres nas diversas
esferas de atividade, seus desempenhos no ritual e sua presencia no imaginrio mtico.
Porm, sem a inteno de problematizar os fatos que acreditavam observar, um vis
etnocntrico marca a descrio etnogrfica referente s distines de gnero e relao
homem/mulher.
Levando em conta que as mulheres estiveram sempre presentes nos relatos
etnogrficos e outros textos antropolgicos, o problema que se coloca crtica feminista
no sua invisibilidade mas o modo como foram representadas nesses textos. Referindo-se
subjetividade, ao individuo e histria, Cardoso de Oliveira (1986) afirma que sempre
estiveram presentes, domesticados, nos paradigmas da ordem atravs de sua negao.
Nessa linha de raciocnio pode se pensar que a integridade social, psquica e emocional das
mulheres sempre esteve presente no pensamento antropolgico clssico, porm, atravs de
sua negao sistemtica e persistente. A integridade feminina foi, parafraseando o autor,
domesticada, com a idia de que a mulher (em singular) um sujeito subordinado ou, como
prefere Dumont, englobado.
Na passagem do sculo 18 para o 19, reagindo aos movimentos revolucionrio,
surge a noo de que a desigualdade humana o fundamento de toda sociedade adequada.
As sociedades, afirma Saint-Simon, so conjuntos associativo e cooperativo de homens
essencialmente desiguais (Manuel, 1991). Este pensamento conservador nutre, modificado,
a abordagem antropolgica das diferenas de gnero do sculo XX, exposta com brilho e
sem ambigidades na obra de Louis Dumont: Sendo a hierarquia (no mais considerada
natural mas construida ideologicamente) uma pr-condio social, todas as sociedades
produzem idias/valor com as quais incorporam ou englobam os elementos diferenciados
(tais como gneros, raas, castas, classes, etc.) dentro do conjunto social. O elemento
incorporado , por um lado, idntico ao todo e, por outro, ope-se a ele. Para ilustrar o
princpio da hierarquia, Dumont recorre ao mito cristiano da criao:
"Deus criou primeiro Ado, ou seja, o homem indiferenciado, prottipo da
espcie humana. Depois, numa segunda etapa, extraiu de algum modo desse
ser indiferenciado um ser de sexo diferente. Eis, face a face, Ado e Eva,
agora como macho e fmea da espcie humana. Nessa curiosa operao,
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Ado, em suma, mudou de identidade, ao mesmo tempo que aparecia um
ser que membro da espcie humana e diferente do representante principal
dessa espcie. Ado ou, em nossa linguagem, o homem, duas coisas ao
mesmo tempo: o representante da espcie humana e o prottipo masculino
dessa espcie. Num primeiro nvel, homem e mulher so idnticos; num
segundo nvel, a mulher o oposto ou o contrrio do homem. Essas duas
relaes, tomadas em conjunto, caracterizam a relao hierrquica, a qual
no pode ser melhor simbolizada do que pelo englobamento material da
futura Eva no corpo do primeiro Ado." (1985, p. 129)
O pensamento de Dumont tm a virtude de desvendar o fato de que a existncia das
mulheres enquanto sujeitos sociais completos sempre foi "domesticada" pelo pensamento
antropolgico clssico atravs da idia de que o homem engloba, representa ou incorpora a
mulher. Ele a totalidade suficiente, ela a parte insuficiente. Mas, curiosamente, nem
mesmo ele inteligivel isoladamente.
Podemos aborrecer-nos pelo fato de Dumont, fazendo uso da autoridade da cincia,
contribuir com o aperfeioamento da idia de que "o feminino englobado pelo
masculino". Porm, se o nosso objetivo produzir conhecimento atravs da deconstruo,
seria perigoso ignorar que o imaginrio revelado por Dumont povoa realmente tanto o
entendimento sociolgico quanto o de senso comum2.
A representao das mulheres como sujeitos incompletos tambm tem repercues
na conduo da pesquisa e na produo dos textos etnogrficos. Os antropolgos tem
preferido examinar os modelos sociais masculinos ou exprimidos pelos homens, os sujeitos
completos socialmente e portanto autorizados para se explicarem, evitando examinar as
expreses das mulheres. Harrys e Young (1979), comentam que os textos no prestam
ateno aos modelos sociais exprimidos pelas mulheres porque os antroplogos, mesmo
podendo e desejando assim o fazer, sentem-se obrigados a observar o comportamento
correto. Tambm Moore (1988) sublinha que as mulheres so, para os etngrafos, "mute
groups" pelo fato deles partirem do suposto de que os homens controlam a informao em
outras culturas (como nos acreditamos que acontece na nossa) e de que, em toda parte, as
diferenas de gnero tornam-se desigualdades e conseqentemente subordinao feminina.
2. Desvios Significativos na Antropologia Clssica.
2. Ocorre com a obra de Dumont o que ocorre com a de Freud: elas so etnografias competentes da cultura
ocidental que, entretanto, carecem de apreciao crtica sobre a mesma. Freud (1986: p. 31-32) aponta
sensatamente que as mulheres representam " ... os interesses da famlia, da vida sexual, enquanto a obra cultural
torna-se cada vez mais uma tarefa masculina ...". Entretanto, naturalizando as diferenas apontadas, prossegue
dizendo que a obra cultural impe "... aos homens dificuldades crescentes, obrigando-os a sublimar seus instintos;
sublimao para a qual as mulheres esto escassamente dotadas."
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Afirmei que a diferena homem/mulher e as suas relaes no foram
problematizadas pelos antroplogos clssicos, mas que sempre foram (e ainda so) os fatos
privilegiados para se construirem outros problemas como a organizao social e o
parentesco. Entretanto, existem algumas excees altamente significativas. Trata-se de trs
clssicos cujos desvios temticos merecem ateno especial porque estabelecem uma certa
continuidade entre a Antropologia dos anos 30 e os enfoques de gnero da atualidade.
Bronislaw Malinowsky e Gregory Bateson, na Inglaterra, e Margaret Mead, nos Estados
Unidos, foram pioneiros no desenvolvimento de temticas privilegiadas na atualidade pelo
pensamento feminista acadmico tais como a sexualidade e a construo do feminino e do
masculino.
Malinowski define seu objeto de pesquisa como sendo a sexualidade. Entretanto,
em A Vida Sexual dos Selvagens, ao examinar a sexualidade como uma fora sociolgica e
cultural que, entre outras coisas, fundamenta o amor, o namoro, o casamento e a famlia,
ele alonga seu tema, incorporando as relaes de gnero. A fase ertica, afirma Malinowski
(1983, p. 29), " ... no pode ser desligada do estatuto legal do homem e da mulher, de suas
relaes domsticas e da distribuio de suas funes econmicas."
Entretanto, a abordagem de gnero de Malinowski viu-se limitada conceitualmente.
Por um lado, sua concepo de gnero permite a incluso de apenas o par dicotmico
homem/mulher, deixando largamente de lado as relaes que se estabelecem entre homens
e entre mulheres. Essa concepo limitante no apenas no mbito da sexualidade como
tambm no das outras relaes sociais. Por outro lado, no tinha separado conceitualmente
o sexo do gnero. Desse modo, qualquer tipo de relao entre homens e mulheres era
considerada sexual, sendo a sexualidade a mais obvia.
Bateson, contemporneo de Malinowski e bem menos sucedido que este no seu
tempo, realiza um trabalho verdadeiramente pioneiro ao examinar a construo simblica
da femininilidade e da masculinidade entre o povo Iatmul de Nova Guin. Ele apresenta
seu trabalho dizendo que trata-se de uma descrio do naven, cerimnia na qual homens
vestem-se de mulheres e mulheres vestem-se de homens, para relacionar essa conduta com
a estrutura e o ethos da cultura Iatmul. Categorias e relaes de gnero tornam-se, desse
modo, o objeto de estudo e o foco da observao. Indo alm da prpria cerimnia, Batson
escreve que:
"De qualquer angulo que se veja, a partir de qualquer instituio que
estudemos, encontramos o mesmo tipo de contraste entre a vida dos homens
e a das mulheres. Generalizando, podemos dizer que os homens ocupam-se
em atividades espetaculares, dramticas e violentas que tem seu centro na
casa cerimonial, enquanto as mulheres se ocupam das rotinas necessrias e
teis de coleta de alimentos, cozinha e criao dos filhos--atividades centra-
das em torno das moradias e das hortas. O contraste entre a casa cerimonial
e a casa de moradia fundamental para a cultura" (1965, p. 124).
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Bateson entende, entretanto, que essa extrema diferenciao na construo
simblica e na conduta dos homens e das mulheres deve-se a que se trata de uma sociedade
simples. Desse modo, ele prprio limitou as possibilidades de fazer da construo do
gnero um tema de amplo escopo antropolgico, como o so so temas da organizao
social ou da hierarquia.
Como Bateson, Margaret Mead tambm fez da construo social do gnero um
objeto de estudo. Mas, contrariamente a Bateson, entendeu claramente que no apenas os
povos primitivos que ela estudou, mas tambm seus concidados norteamericanos,
marcavam fortemente a diferena entre homem e mulher e levavam a masculinidade e a
feminilidade para muito alm de sua aparincia biologica.
Coming of Age in Samoa, publicado em 1928, no apenas um relato sobre um
povo diferente mas tambm uma crtica moralidade do povo americano. Mead usou
declaradamente a etnografia para dirigir mensagens aos norteamericanos e produzir novas
idias no que se refere construo de gnero e sexualidade. Por essa razo seu trabalho
foi largamente ignorado pelos seus pares e tornou-se um best-sellers. A respeito de Mead (e
tambm de Ruth Benedict), Clifford (1986) observa que foi considerada construtora de
"fbulas de identidade" porque seus textos tinham um propsito pedaggico e tico explci-
to.
Apresentando Sexo e Temperamento, Mead afirma que no est interessada na
existncia ou no de diferenas universais entre os sexos nem nas bases do feminino, mas
em comparar como trs sociedades primitivas desenvolveram diferentes atitudes sociais em
relao ao temperamento baseando-se nas diferenas sexuais:
"Estudei essa questo nos plcidos montanheses Arapesh, nos ferozes
canibais Mundugumor e nos elegantes caadores de cabea de Tchambuli.
Cada uma dessas tribos dispunha, como toda sociedade humana, do ponto
de diferena de sexo para empregar como tema na trama da vida social, que
cada um desses trs povos desenvolveu de forma diferente. Comparando o
modo como dramatizaram a diferena de sexo, possvel perceber melhor
que elementos so construes sociais, originalmente irrelevantes aos fatos
biolgicos do gnero de sexo." (1988, p. 22)
Inventando ou no fbulas de identidade, a obra de Mead vincula-se estreitamente
com a antropologia do gnero desenvolvida a partir da dcada de 70. Juntamente com
Malinowski e Bateson, Mead pode ser considerada precursora dos estudos que
problematizam a construo do gnero e as relaes que se estabelecem com base nessa
construo.
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3. Critica e Novas Perspectivas.
Os estudos de gnero apresentam uma longa descontinuidade entre a dcada de 30
e 60. Sua ampliao dentro da comunidade antropolgica recente, iniciando-se como uma
resposta ao desafio colocado pelo forte movimento feminista da dcada de 70 e fortale-
cendos-se poco depois pela sua contribuio crtica cincia. Dentro deste cenrio
controvertido, muitas pesquisadoras e alguns pesquisadores esforam-se em repensar os
supostos dos paradigmas tradicionais e em encontrar linhas de indagao capaces de
responder novas perguntas. Mencionarei, a seguir, alguns dos problemas que se colocam.
A comunidade antropolgica, mais acostumada a lidar com as diferenas de gnero
do que a de qualquer outra cincia social, enfrenta vrias dificuldades para assimilar a
problematizao do gnero. A primeira delas, j mencionada aqui, tem a ver com o lugar
que largamente ainda ocupam os estudos do gnero no recorte da realidade feito pela
Antropologia. Enquanto a Antropologia encare as diferenas e relaes de gnero como
campo de dados para estudar realidades tais como o parentesco, o casamento, a mudana e
continuidade da ordem social, etc., ser bastante difcil escapar da ideologia que entende o
masculino e o feminino como categorias essenciais. A tematizao do gnero e o
estranhamento da ideologia dominante parecem caminhar juntos, mas muito lentamente.
Nos termos de Kuhn (1989), entendo que a problematizao do gnero requer o abandono
(ou reviso?) dos paradigmas clssicos, porque a partir do seu recorte particular da
realidade, assuntos tais como a desigualdade de gnero, a violncia contra a mulher, e a
deconstruo das concepes vigentes a respeito do masculino e do feminino so ainda
vistos como anomalias.
Referindo-se as dificuldades de fazer uma antropologia feminista, Moore (1988, p.
188) escreve que o equacionamento do feminismo com o principio antropolgico de
entender o outro a partir de seu prprio ponto de vista, torna-se difcil devido a que aquele
"pressupe que h uma perspectiva ou ponto de vista de mulher que sendo nico, pode ser
considerado como evidncia de que existe uma inequvoca categoria sociolgica de
mulher." Esta dificuldade, entretanto, somente enfrentada por aquelas tradies
antropolgicas que, como o interpretativismo e o ps-modernismo norteamericano,
privilegiam o estudo das realidades locais e vm nas culturas fenmenos radicalmente
inconmensurveis. A mesma dificuldade no se coloca para aquelas tradies que, ao
procurarem universais ou elementos que transcendem as culturas locais, como o caso da
tradio francesa, partem do principio de que existe uma essncia feminina (e masculina?)
e pressupostos sociais que, como a hierarquia, situa e valoriza mulheres e homens de modo
diferente. Nesta tradio, a idia de que a realidade construida aceita, mas, dentro de
limites.
O pensamento essencialista concebe as diferena de gnero como sendo fixas e no
se limita fixidez determinada biologicamente, mas inclui tambm a fixidez concebida
ontologicamente, como no mito cristo da criao de Ado e Eva ou como no
universalismo sociolgico de Lvi-Strauss e Dumont, onde aparece uma fixidez
supostamente descoberta na recorrncia dos mesmos fatos no tempo e no espao.
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A crtica ao essencialismo um dos problemas mais centrais e de mais difcil
resoluo no apenas porque deve enfrentar a razo da fixidez descoberta mas,
principalmente, porque deve passar pelo melhor entendimento da relao entre o
significado e o referente.
Existe algm tipo de conjuno entre os fatos sexuais (externos, de natureza biolgica,
fisiolgica e reprodutiva) e os fatos simblico que constroem a mulher e o homem?
Entretanto, manter a tenso de conhecimento de que, por um lado, o gnero uma
construo exclusivamente simblica (local e mutvel) e, por outro, de que trata-se de um
fenmeno recorrente (universal e imutvel em algm nvel de compreenso ) no nada
aleio ao pensamento antropolgico. Esta tenso , na realidade, parte da tenso mais ampla
que a disciplina conserva entre o particular e o universal.
Outro problema que se coloca na atualidade o etnocentrismo do relato
etnogrfico. Como os textos antropolgicos clssicos representam as mulheres das "outras
culturas" de uma maneira que sempre parece-nos inesperadamente familiar, est sendo
necessrio indagar at que ponto esses textos descrevem essas mulheres e/ou constroem o
feminino entre e para os seus leitores ocidentais. Essa preocupao, exprimida pelo
feminismo acadmico, vem sendo importante para substantivar a crtica mais geral
pretenso antropolgica de entender "a alteridade" nos seus prprios termos e de poder
comunicar esse entendimento em texto etnogrficos objetivos.
Um quarto problema, de natureza mais moral do que terica, o da conciliao do
objetivo antropolgico de entender as "culturas nos seus prprios termos" e fazer narrativas
objetivas com a inteno feminista de deconstruir a desigualdade. Se os textos etnogrficos
tentam descrever um "outro" ao mesmo tempo que procuram construir um "n_", acredito
que essa dificuldade deve ser aceita como uma condio inerente ao modo como os
antroplogos podem conhecer.
Clifford (1986) entende a etnografia como sendo uma "performance" cuja trama
projeta estrias poderosas. Comunicadas em informes escritos, estas estrias, tanto
descrevem eventos culturais reais quanto fazem afirmaes morais, ideolgicas e
cosmolgicas. Para ilustrar essa afirmao, Clifford introduz, bem no inicio de seu texto,
um longo pargrafo de Nisa de Marjorie Shostak, com o fim de mostrar a necessidade de
assumir que a etnografia pode ser abertamente alegrica ao invs de procurar ser um
informe sobre os significados imediatos (ou colados) aos eventos observados, como preten-
diam os clssicos3.
Entretanto, o que me parece ser mais importante o fato de que se os textos
3. Publicado em 1981, Niza um texto que se prope descrever os eventos observados e tambm a experincia
pessoal e moral vivida pela autora. O texto apresenta trs tipos de narrativa: 1) a descrio de uma cultural
diferente, marcando fortemente suas particularidades, 2) a tematizao do gnero, desenvolvida atravs da histria
contada por Niza e interpretada por Marjorie Shostak de modo a produzir significados de gnero para o ocidente, e
3) o dialogo intimo entre duas pessoas como uma forma de fazer etnografia.
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etnogrficos somente podem descrever a situao observada atravs de imagens (ou padro
de idias e eventos) que no esto contidas nela mas na representao do etngrafo, ao
fazer etnografia estaremos sempre testando nossos prprios conceitos em outra realidade
cultural e produzindo significados de gnero para nos mesmos. A este respeito, Strathern
(1988) entende que o conceito "gnero", sendo exclusivamente ocidental, no pode ser
procurado em outras culturas sem reific-lo. A utilidade deste conceito (como de resto de
todos os outros conceitos antropolgicos) na pesquisa etnogrfica metafrica: possvel
conhecer como as idias das outras culturas aparecem quando pensadas com esse conceito.
Referindo-se a sua pesquisa na Melansia, Strathern escreve que:
"No apresentei as idias melansicas, mas uma anlise do que as idias
melansicas poderiam parecer no caso delas surgirem na forma das
preocupaes feministas e antropolgicas ocidentais. O relato, por tanto,
no foi fenomenolgico no sentido ordinrio, j que no pretendi elucidar
as coisas do modo como elas parecem aos atores." (1988, p. 309)
O ultimo problema ao qual quero me referir que o conceito de cultura minimiza
ou nega qualquer outra diferena que no seja cultural na medida em que no apenas
presupe a diferen_a entre os povos mas destaca a homogeneidade interna de cada um
deles. Desse modo, as diferenas de gnero e de raa, entre vrios outras, aparecem
desvanecidas ao nvel terico e largamente ignoradas ao nvel etnogrfico.
Os antroplogos vem respondendo de maneira bastante satisfatria pergunta
"como que a economia, o parentesco e o ritual so estruturados pelas diferenas de
gnero?". A resposta a essa pergunta resultou numa extensa bibliografia sobre os papeis
sexuais. Entretanto, a pergunta "como o gnero experienciado e estruturado pela cultura?"
raramente se coloca justamente porque, eu acredito, se parte do suposto de que a cultura
homogeniza. Assim, as diferenas de gnero, e tambm as de raa, so simplesmente
invisibilizadas.
A soluo deste problema parte da prpria experincia etnografica. precisso
observar e descrever o que as mulheres realmente fazem e pensam ao invs de escutar o
que outros dizem que elas fazem e pensam. Dito de outro modo, como a autoridade da fala
no igualmente distribuida, o etngrafo precissa abrir o espao de fala para aqueles que
no o possuem por designios culturais.
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