0%(1)0% acharam este documento útil (1 voto) 853 visualizações9 páginasColi, J. Como Estudar A Arte Brasileira Do Século XIX PDF
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Jorge Coli
COMO ESTUDAR A
ARTE BRASILEIRA DO
SECULO KIX?
BitiogabiaApresentacdo
AUTORITARISMO MODERNO E RENOVACAO CRITICA
As questbes vinculadas aos estudos das artes brasilei-
rase, dentro delas, mais especificamente, as do século passa-
do, surgem num tecido histérico internacional, do qual, em
-onsciéncia,
primeiro lugar, é preciso ter
Vivemo:
, como todo o Ocidente, 0 triunfe da mode:
nidade que se imps no correr dos Gltimos cem anos.
no somente trouxe uma profunda modificagio nos produ
tos artisticos, no papel des criadores ¢ na postura dos criti
cos, Acarretou também a eliminagao de tudo aquilo que nao
parecia estar dentro dos parametros que esses modernos s-
tabeleciam,
intransigentes em seus critérios, para impor algo semelhan-
te: um autoritarismo eliminando tudo aquilo que parecia
diverso dela propria. A historia das artes, tal como foi entio
A histéria das artes, tal como foi enti
concebida, promovia a exclusio dz alteridade. Num manual,
Lionello Venturi ensinava como um Bouguereau estava fora
odlernidade venceu os chamados “académicos”, 30
do campo das artes, se comparado com a verdadeira boa
pintura, clevada, indiscutivelmente ‘artistica”, Num ontro
scompéndio, Francastel demonstrava que mesmo Delacroix
‘ou Courbet eram imperfeitos porque insuficientemente“mo-
dernos". Tornava-se, entio, impossivel amar casas artes con-
denadas que, na maioria dos museus, ia, com vergonha, paraas reservas, quando néo dessparecia fisicamente, aponto de,
hoje, se ter perdido o rastro de muitas dels,
Don um exemple pessoal destas tiranias das gostos
eritérios: no final da década de 1960, apreadiamos, na uni-
versidade, nos livros, a distinguir a “boa arte da “ruim”
Morando nfo longe da Pinacoteca do Estado, em Sao Paulo,
eu nao resistia em subi
aquelas escadas, fascinado por um
quadvo de Oscar Pereira da Silva, de Almeida Minior ou de
Weingartner, dispostos ainda nas nostélgicas salas, de corti-
nas pesadas, que'Tlio Mugnaini havia concebido. Ora, era
impossivel entrar nesses recintos sem um profundo senti-
mento de culpa, como diante de um prazer proibida. O ado-
escente muito ingénuo encontrava entio uma escusa diante
da tentagdo sedutora: ele estava ali para aprender o que “era
pintura ruim”. © alibi, esté bem caro, no explicava 0 es-
tranho deleite que aquelas telas magnificas provocayam
Porém, a0 desdém com que, hd alpuns anos, os quadros
ditos académicos cram ighorados, seguiu-se uma atengio ca-
Finhosa cinteresiada, Varios extudorse sucedarsm nar ancede
1970 a 1980, até que Jacques Thuillier — significstivamente
um historiador do século XVII, portanto livre dos preconcei:
tos que os especialistas do campo especifice nutriam — publi-
couums espécie de admirivel manifesto intitulado Pex
a pailer
jada aca.
démica era disposta com agudeza e novidades, abrindo 0 cam-
po efetivo para uma séria reflexio sobre 0 sssunto,
June peinsize “pompicr’?,' onde aquestiio da arte cha
Tal mudanca de posiedies ¢ fato consumada: o Musée
d'Orsay, em Paris, surgiu como a brilhante afirmagao dessa
revirayolta, ¢ 0 cuidadoso trabalho de restaurayio das sober
bas hatalhas de Vitor Mefreles e Pedra América, realizado na
‘Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, hd alguns
anos, se inscreveu naturalmente nesse empenho renovedo,
PUR, 1984),
‘ud
Fssas obras, nao perechidas © desprezadas duwante um
longo periods de olvido, nose entregam, porém, tio f
mente, Como os critérios formals e seletivos que educaram
geragSes mostram-se suficientes para uma compreensio
larga dos fenémenos artisticos e culturais do século XIX, &
indispenadvel proceder a uma ampliagSo ne inteligénela do
olhar contemporneo. Trata-se de um desafio e de uma liso:
decifra-me ou tens tudo a perder.
O conerrro #0 onan
Importa nao atribuir &s pelavras mais poderes do que
elas realmente poste, nem carregi-las de uma afetividade
cexcessiva, sobretudo no que concerne aps conceitos classifi
catérios. Eles seriam muito titeis se apenas agrupassem abje-
tos por meio de algumas afinidades, mas tornam-se perigosos
porque rapidamente tendem a exprimir umasuposta esstneia
daquilo que recabrem ¢ substituir-se ao que nomeiam, como
falsos semblantes escondendo os verdadeiros,
Essa atitude no ¢ “ing&nt”, ou culturalmente desar-
mada, Ao contrério, ela pressupde uma revisio no saber.
Sao — caso se quaira ~ precaugSes metodoldgicas em um
momento de mudangas de posigSes. Sejacomo for, diante de,
qualquer obra, o olhar que interroga é sempre mais fe
doqueo conceito que
Vale mais, portanto, colocar de lado
terrogar as obras, E evidentemente mais d
“Vitor Meireles éromantico” ou “Pedro Amtrico é académi-
co", projeto sobre eles conhecimentos, eritérios ¢ precon-
nde
esitos que dio seguranga ao meu espirito. Se me dirij
diretamente &s telas, de modo henesto e euidadoso, percebo
{que elas escapam continuamente Aquilo que cu supunha ser'a
propria natureza delas ¢, 0 que é pior, fogem para regides
ignotes, nfo submetidas ao controle do meu sober. Assim,
a0 invés de discutir se Meircles ou América so ou nls soclissicos, s8o ou nie aio roménticos, 20 ow no sao pré
modemos — 0 que me coloca em pardmetros seguros e con-
fortaveis, mas profundamente limitados —, épreferivel tomar
esses quadros como projetos complexos, com exigéncias es-
pecificas muitas yezes inesperadas
“Quem é maior: Gongalves Dias ou Castro Alves?
Nunca soube responder &
cbmoda pergunts. Mas entre
Pedro Américo © Vitor Meireles nfo hesito.”? Manuel Ban-
deira toma claro partido pelo pintor de Santa Catarina, num
texto despretensioso, mas notavél pelaacuidade inteligente
do olhar. & compreensfvel: o poeta possuiaafinidade frater-
nacom tudo que forse contido, que expressarse uma sinceri
dade intima, uma certa ingenuidade luminosa, sem grande
habilidade aparente, ou asticias, ou efeitos. Bandeira gosta
do fazer dificultoso que descobre nas telas de Meireles:*[...]
© pincel resistin, mas © artista duvidaya, refletia, teimava, €
6 pincel acabava obedecendo damesma mani
mitindo tela 0 calor da luta, Em quase todos os quadros do
pintor se notao mesmo cuidado que ele punha nos pequeninos
estudos de trajos’,?
A crénica de Bandeira, tio solta ¢ sem pretenses,
sobressai dentre os textos que foram: escrites sobre nossa
prépria pintura, Porque, justamente, seu instrumento & oda
observac:
evitando as categorias, as classificagdes que, em
Ultima anilise, sempre sio determinadas pelas escolhas do
momento — estéticas, culturais, ideolégicas,
Ao debrugar-se sobre as obras, 0 poeta oferece uma
excelente ligio a9 historiador, Ele olla e interroga as ima-
gens. Ble busca e percebe as caracter{sticas exsenciais.
‘As coisas mudaram tanto que, felizmente, a nio ser
num meio muito desinformado e provincimo, a expressio
* Manuel Bandein, “Pedio América « Victor Mekellet, em Fou de papal, Obras
CComplatar (Rode rer: Agar, 19673, pp. S59 <=
> bs
“arte académics” deixou de ser empregads. Nao é mais util,
pois surgiu, em verdade, com um sentido pejorative, fruto
da luta teavada entre “modernos” e “tradicionsis”. Era, antes,
um insulto, e como os objetos que denominaya deixaram de
ser insultados, ela perdeu seus poderes.
‘Vale a pena voltar aos exemplos augeriitos por Bandelra,
Fle partiu das dus enormes batalhas, Avaf © Guararapes,
que ee encontram expartas na grande galeria do Museu N:
nal de Belas Artes do Rio de Janeiro, Duas telas comparsveis
pelas dimensdes pelo tema, mas absolutamente diversas do
ponto de vista do estilo, da execugio, das escolhas artisticas,
enfim, Provocaram, em 1879, no momento em que foram
exposta: pela primeira vez, um profundo debate: o piblico
0s criticos as sentiam como nitidamente distintss, melhor,
como excludentes, Porém, imensas ¢ opostas, elas eram co-
locadas sob amesma rubrica pelo historiador moderno: “aca-
démicas”
claro, como jf fol dito, que se tratava de um insul-
f
{, refletirmos: que valor possui um
to. Mat vinha disfargado em categoria snalitics ©
catéria, Basta, port
conceito classificatério ou analitico que pde, sob o mesmo
r6tulo, duas obras.tio absoluuta e completamente distintas?
Qs modernos simplesmente no as viam. Eles ndo pousa-
fronteira, uma muralha, Dagui para ci, moderno, Daqui para
1k, “académico”, B basta, para uma atitude que favia uma
étima economia do olhar, da andlise suténtica e da reflexdo
fecunda,
O ottiaR pEscomre
Afastando o vév das tiranias classificatérias, as telas
se Fevelam ricas, sutis, fascinantes — 0 oposta do dever esco-
Jar sem inspiragio ao qual a idéia de “académico” esti com
freqiiéncia ligada, E em pinturas que se espraiam sobre tioenormes superficies, achados solugdes sedutores multipli-
camsie, permitinde que © percuro do olhar se torne ume
extraordinéria aventura, Tomemosum pequeno detalhe de
batalha do Aval: no limite esquerdo da tela, portrés do oficial
que, sabre na mio, empina seu eavalo, héum grupo de so
dados envolvidos pela fumaga, baionetas ern riste, As que
cate proximas so definidas por seu volume e pela sua cor
cinza; atrds, clas sobressaem na fumarada, adquirindo um
reflexo Iongilinco, de tom creme. Ainda mais longe, o que
era palpavel desaparece e resta apenas o brilho, através de
Jonge trage claro; do mais s6lido a0 mais imaterial, o objeto
persiste como visualidade
A atengao & bastante para observagses deste género.
Mas cla nao é suficiente se tentarmos aprofundar as inter
relagéies culturais intrincadas que es
acesso 305 quais perdemos porque as obras nio nos interes-
savam mais. As razies delas se foram, esquecidas'durante 0
quadros possuern,
longo periode de desafeigSo,
PENSAR POR IMAGENS
Assim, desaprendemos que 08 pressupostes culturais
sobre 03 quais repousam as telas de Meircles ¢ Américo— ou
de qualquer outro pintor da época— s3o tio constitutiyes da
imagem quanto as cores ¢ as pinceladas. Um _dos pontos
antes ¢ que a pintura do século pasado — ¢ nio ape-
— mantinha um didiogo denso com a hi:
is antiga ou mais recente.
(Os pintores jovens se inspiravam, citavam os mes-
tres que os precederatn, Mesme squeles que parecem rom.
per de modo radical, como Manet, se no forem percebidos
‘aa perspectiva da historia das imagens, recorrente nas telas
por eles criadas, perdem, em muito, seu sentide, Foi a par-
tir do impressionimo que a idéia de originalidade se modi.
ficoa, © que realizar uma grende obra ndo significou mais
orquestrar umamultiplicidade de imagensharmoniosamente
orgmnizadasnuma grande superficie, fazando apelo a um pas-
cado visual que nelas se insere, atualizado.
O publico de hoje, acostumado com a genislidade mais
imediata, formalmente originalissimac com referéncias cul-
tureis estritamente focadas numa subjetividade, como no
caso de Monet, Van Gogh ou Piessio, nfo sabe que até Manct
as dimensdes do quadro,eram algo de essencial — s6 numa
tele vasta podia eclodir a grande obya. E certamente tam-
bém ignora.as ambigées da “pintura de historia”, enero en-
tao considerado como hierarquicamente superior aos outros
yetrato, natureza morts, palsagem — porque os engloba
codos, numa articulagio compleaa, imposta pelo principio
de narragio, ¢ arduamente obtide.
Assim, sinovacio ea especificidade do fazer no eram
tides, naqueles tempos, como valeres to fundamentals como
para o piblico de hoje. O que importava era dar conta de
um programa ambieloso: menos contava a novidade indivi-
dual do que a felicidade em vencer os escolhos inerentes a0
projeto, Nesse contexto, a citagao e a referncia ao pasado
no so, de modo algum, pastichos originados pela falta de
imaginago, mas um modo de mostrar como aquele cle-
mento preexistente resuurge numa outra inter-relagio.
Em Mocidade morta, Gonzaga Duque far uma critics
“moderna” ao pintor Telésforo — muito moldado em Pedro
Américo —, ¢ 0 quadio aque se refere slude ad beralho do
Avai, E interessante transcrever alguns excertos aqui:
[oa diga o senbor que originalidade ele desenvelves ¢
apresentox na tia abra, qual a escola que ele cheliai Tudo
que vemos neswe quadio, tudo, sem exeogSo de wan pon
19, |A foi feite, ja foi produxide, & comporto de regrat
tstias © cedigar. (..J Pedianies, no entanto, wina mancira
nova de pintar, o modelado seguro, palpitinte, dos anes
tres contemporinees, um anvaje de eor ou de pince, al
es essa res asa eee sore reas serepavdatinmente, fasciaade, ¢ mos cbrigase 9 nm
emacierado ‘
aqui estd um ardstal[,..] 0 que exigianios
dlese vencedor era a sun vitdris... Onde eth cli? Ele
cerfou algnma coisa’... Modificans at Viahas dls orabeeeo
acad2mizo?,.. Alaugot alguma perleicSona expressivismo
fdas sae gw
Descabriu processor de pintara que
nos desstm efeitos novos?.. Fundos a sete nacional? [
[© grupo douinante] nZo passa de fagrante reproduc da
Dowell de drovers, de Gérard oF demats grupos so cdpioe
Magrantes das composigées de Horécia Vernet, deYvon, de
Philipporcaus!*
No que concerne as “cépias flagrantes", as obser
es so injustas, ¢ as verdadeiras referéncias vio bem mals
Jonge do que os quatro pintores citados, Interessa-nos, ago-
ya, essa exigtncia de originalidade, de novidade: Gonzaga
Dune, precocemente no que diz respeito as luzes brasilei-
ras, se posta num excelente ponto de vista: o da pintura do
futuro, aquela que vingard. Tem, portanto,a mesma posicio.
mantida ao longo do século XX pelo gosto ¢ pela erftica
esclarecidos. Mas ¢ ela, justamente, que oimpede de ver na,
Butatha do Avai um quadro admirdvel, brilhantemente inse-
rido num procedimento pictural caracter'stica do século XIX,
procedimento que, em 1900, quando livro foi publicado,
realmente se extinguia, dando lugar a uma nova arte, As
grandes batalhas de Meireles ¢ Américo nio ao, entretanto,
apenas res{ duos eaducosde umatradigao morta: nomomento
em que foram feitas, correspondiam a correntes culturais
ainda vigorosas,
Infelizmente, a inteligéncia de Gonzaga Duque e sua
cultura visual atualizada s80 qualidades que terminaram por
se perder bastante. Com freqiiéncia repetem-se de modo
mecinico, na critica ¢ na historiografia posterior, sem uma
correta compreensfo do que ocorre, asatitudes que os deba-
tes do passado faziam suscitar. Ainda hoje ~ mas, por sorte,
Lids Gena Duque Guradn, Mrs mory (SB Paulo TH, 1973), ype 1782129,
num nivel jornalistico nfo muito clevado—, retoma-se, por
exemplo, avelha histéria de 0 grito do Ipiranga, do Museu
ido uma cépia de A betalha de Friedland, de
somier, do Metropolitan Museum de NovaYork, qua-
se ref
rem muito mais a um modo protot{pico de tratar a que:
= pars oF quals, em todo caso, a nogao de cépia ou imitanio
servil ¢ inteiramente descabid:
Gonzaga Duque tem radio, do ponte de vista moder-
no, em seu ataque violento ~ ele toma partido por uma cer-
ta concepgio artistica nova, que vinha se afirmando. Durante
tempo vivemos dentro dessa mesina polémica, mas,
depois de a arte “académica” ter sido vencida, podemos nos
interrogar sobre ela e nos surpreender com a riqueza das
respostas, Basta colocar as questdes adequadas. E bobagem
acusar uma bananeira de nao produzir mangas.
Como vencer os escolhos de uma anilise que exige os
préprios meios me
ais la culeura na qual o’artista encon=
trava-se banhado? Buscando alimentar-se dessa cultura, Por
onde Meireles, Pedro Amético, Alexandrine ow Almeida
Janior passaram em sua formagao? Que tipo de leitura po-
diam ter? Que contatos intelectuais? Dentre os estudos bra-
sileiros — som querer esgotar a lista ¢ citando apenas dois
nomes muito elevados e muito caros—, Alexandre Euldlio ¢
Gilda de Mello ¢ Souza ofereceram alguns dos estudos mais
exemplares para compreendermos 9 maneira como a arte
do século XIX pode ser estudada com amplidao, pertinéncia
= profundidade.
Finatismo
Atentar, porém, para um outro tipo de reeuperagio
insidiosa que esta pintura pode sofrer é muito necessario: o de
ser considerada como “precursora”, Podemos ter, por exem-
plo, ums alta estima pele “moderismo”, ¢ julger baixos oseritérios estéticos do que chamamos “academisme”. A isto se
associa uma conoapgio teleolégicn da histéria da arte, mito
presente ainda, na qual se inse:
dia de progresso
Buscamos, entio, em Pedro Américo ou Vitor
Meireles, para recuperé-los, os sinals do futuro, as solugies
snanciadoras de uma pintura que vird, As obras encontram-
c, dean modo, valorizadas partir de aritérios que thes so
exteriores, aplicados de frente para trés,
Esta é uma forma ainda mais traigoeira, pois nos faz,
crer que estamos nos aproximando desses artistas, quando,
em verdade, estamos percebendo e nosreferindo 2 elemen-
tos projetados neles, isto &, nao aos critérios que presidiram
A criagio de suas ol , Masa um construto, um fantasma,
que os substitai. © antelixo gré, porexemplo, encerra arma.
dilhas por veres definitivas. Porque raramente designe aps-
nas uma anterioricade: ele faz'com que um conjunto de obras
€ de acontecimentos deixem de adquirir sentido em si pro-
prios para definirem-se através do futuro, ele f
que 03 critérios culturais presentes & criagio existi
eoerénciaespecifica, numa complexidade ondleo pensamen-
toe osensivel se misturaram de maneira singular,
E legitimo buscar nas obras © nos momentos artisticos
© seu pasado: os eriadores dos quais eles derivaram Ihes ser-
vem de ratzes, E, a0 contrétio, engaioso construir para cles
um fururo, adivinhar neles aquilo que no podiam prever,
GERAL E PARTICULAR
Hi outro ponto que se insere no elenco das atitudes
mais fecundas para 0 estude de nose patriménio artistica
do século XIX, Desde o inicio deste texto insistimos sobre a
importéncia do olhar. Ele ¢ essencial para aarte de qualquer
perlodo ede qualquer pats, em particular para o séeulo XTX,
diante do qual os velhos preconceites ainda nfo desaparece-
ram dé.tode.No caso do Brasil, entretanto, adquire um pa:
pelainda mais pertinente e, no atual estado das coisas, eu
diria mesmo, subversivo,
Aqui, devo arricear uma generalizagio que me pare-
ce, no entanto, importante. O saber brasileiro, n
Snica predominantemente “intelectus}”
amente ealtural, E 0
clando-se mengse menos ciéncias, menos e menos
hhumanas. Mas esse formago, trazida em grande parte pela
universidade modems, acreditava-se mais que rigorosa: ela
se tomava por verdadeira
Avene eaeet eset ea escey US a
Kao com a cultura, vais pessoal, qi
Atéhoje, no Brasil, fals-se, por exemaplo, numa criti-
ca “tedrica” ¢ numa outra “impressionista” — divisSes que 56
se justificam pela separagio teita que evoguei acima,
clima de preconceitos em relagSo & cultura valorizou a‘teo-
via’; na verdade, a leitura de alguns poucos livros nos quais
se scredita encontrar as chaves para a compreensio do mun-
do.Tenho a impressio, por exemplo, que as teorias sobre as
artes acalsaram Fleando, nos meios académicos, mais impor-
tantes do que as prdprias obras. © trabalho longo, paciente, |
por yezes desordenado, mas prazeroto, deer romances, ver
quadros, ouvir misica, torna-se secundério em relaglo a es-
quemas interpretativos, necessariamente muito pobres
ciolégis
‘gbes entre os seres humanos c os objetos artisticos,Hi uina evidence scduyao em métodos aparentemen-
te objetivas, em estatist
em levantamentos numéricos.
‘Qu nas conviegdes do que imaginamos serem os determi-
nismos de classe, ou de ideologias — “gosto burgués”, “erité-
rics oficisis”, Eles oferecem uma agradavel impressio de
segurangae de certeza, © hic est no fato de ela
mente [alacioss,
© impacto de uma obra, sua forga intern
a capac
dade de agir sobre outros criadores, que multiplicarao, de
mancira muitas vezes indiveta ¢ nfo explicita, a forgs dos
prototipos, éimpossivel de medir por nimeros ou pelas for-
mas simplificadas daquilo que se imagina ser uma compre
ensio ideolégica, Quando muito, alguns desses estudos
“cientificamente” sociolégicos podem servir como apoio,
secundério, para a compreensio das obras. No entanto, eles
nao funcionam de maneira primordial para o que de mais
importante a histéria das artes pode trazer
© quehé de mais dificil é fazer a jungiio entre © par:
ticular eo geral. Nossa histéria mental tem uma tradigao de
ensaios com resultados falgurantes — basta pensar em Os ser~
tes ou em Casa grande ¢ senzala ~, mas que é pobre na busca
sistematica € paciente do particular, Essas intuigdes,
iluminadoras, nio podem sera regra. Urge um trabalho
motédico, indutivo, que saiba organizar os detalhes para deles
extrair, pouco a pouco, o geral, Isto viria enriquece:
nds — como acontece nas culturas de grande tradigio analiti-
ca—as percepges, controlaria os insights dos ensaios, intro-
duziria um debate seguro.
entre
Atendéncia de muitos des nossos estudes scbrea arte
—e particularmente os que s¢ referem ao século XIX ~ a
da generalizagao, Nao é fdcil, 2 no ser em certas publica-
ges universitérias brasileiras mais especificas (felizmente
clas vém aumentando em mimero), encontrar um lagar onde
publicar o resultado de pesquisa especifica sobre uma obra,
sobre uma questio. Falando por experitncia pessoal: 08 con-
vites para conferéncias, para artiges, para cursos solicitam,
na esmagadora maioria, “visSes panordmicas", como se 0
geral no pudesse ser pensado partindo do particular, como
se, por exemplo, o estudo de uma obra trouxesse uma visio
estreita das coises.
Ora, entender de verdade as artes & saber vé-las na ¢”
sua complexidade concreta, Isto, parao stoulo XIX, surge
como definitivamente essencial. Tentei mostrar como estamos
num proceso internacional de revisao dese perfodo, carre-
_gido de preconceitos, Para desenvolvermos os estudos que
pusquem dar a esse universo artistico sua plena significagio,
nio hi divvida, & preciso partir da obra.
Resta um ponto a considerar © que deriva de nossa
trajetria ideolégice. © século XIX inventou uma histéria
brasileira. Bla ergueu-se dentro de um clima cultural nacio-
nalista, que teve configuragSes diferentes, mes que perma-
neceu até o sbculo XX, reforgade pelo Estado Novo, So
mitologias que se pretendem, otttra vez, verdades.
uulo XX sobre a cultura do
perfedo que o antecedeu, seja ele “académico” ou “moderne”,
atravessava, quase sempre, éculos nacionalistas. Trata-se de
O olhar projetado pelo s
uma espécie de curto-circuito, ja que muito de arte de séeu-
lo XIX contribuiu para a formagio dessa mitalogia histGviea
Por exemplo, 0s histiriadores publicam,em 1817,
brasileir
acarta de Caminha, Nesse momento, ela adquire existéncia
—€s invenglo do verdadeiro, Viria legitimar, do ponto de
vista da histéria, o romantismo indianista, Fsse romantis.
mo, 2 skrio ou pela caricatura, pelo avecso ou pelo direito,
projetar-se-ia como esséncia de uma brasilidade no nosso
steulo, indo da moda marajoara—art déco a Mecund
Se eu me volto para uma obra do século passado, di
gemos, a Prinicira missa no Brasil, de Meireles, para me per-
guntar se ela é “brasileira” ou no, eu estarei dentro dessecampo nacionalista, seja qual for a resposta, Isto , eu esto
interrogando a obra por mei de uma fies3o que « propria
obra ajudon 2 forjar
‘© recuo diante das identidades, ou “vatzes”, iluséries
que nossa histérie criou torna-se, desse modo, fundamental
para acompreensio da arte desse perfado que nos interesss
Porque, a0 invés dle sermos moidos pelos proprios mecanis-
que cosa arte contribuiu para montor,
mos interpretati
podemos, ne contrario, nos perguntar quals sao esses meca-
rnismos, quals as pegas que os compdem, de que modo agi-
am er noss0 meio cultural, inventando tradigSes, fazendo
palpitar um sentimento de péeria, escondendo por al as dife-
rengas sociais ¢ humanas, tecendo os teiar de um imagindrio
to lindo ¢ canfortivel, E mais érduo, mas muito melhor,
sein divide, ao se deixar devorar pela aranke,
r
A invengéo, da descoberta
‘A descoberta do Brasil foi uma invengio do stculo
XIX. Ela resultou das solicitagées feitas pelo romantismo
nascente ¢ pelo projeto de construgio nacional que se com
inavam ent. Como ato findador, instaurow uma conti
nuidade necessdria, inscrita no yetor dos acontecimentos.
(Os responsdveis essenciais encontravam-se, de-um lado, no
trabalho dos historiadores, que fundamentava cientificamnente
uma “verdade” desejada; e, de outro, na atividade dos artis
tas, criadora de crengas que se encarnavara num corpo de
conviegies
coletivas,
A ciéncia ca arte, dentro de um procesto intrincado,
fabricavam “realidades” mitol6gicas que tiveram, e ainda tém,
vida prolongada e persistente.
© quadro de Vitor Meireles, retratando a primeira
‘missa no Brasil tal como foi descrita na carta de Pero Vaz de
‘Caminha, 6 um episédio muito expressive dentro desses pro-
cesios. Fle fez, em grande parte, com que o Descobrimento
tomasse corpo e se instalasse cle modo definitivo no interior
de nossa cultura. Assim, rerela.se um excelente objeto de
analise para a compreensio de procedimentos artisticos que
dependem, em sua propria génese, das contribuigdes origi
nadas no projeto mental mais genés
.0, fa propria natureza
de uma Histéria capar de engendrar o passado que se deseja,
© na relagio cdmplice entre as duas disciplinas no sentido de