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Fidêncio Bogo

O conto narra a história de um menino chamado Lúcio que deixa a escola após sofrer bullying por falar com sotaque caipira. Anos depois, o menino reencontra a professora e revela a vida difícil que teve, trabalhando como garimpeiro, boia-fria e presidiário. A professora se dá conta de que a ênfase excessiva na gramática na escola pode reprimir crianças e afastá-las dos estudos.

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O conto narra a história de um menino chamado Lúcio que deixa a escola após sofrer bullying por falar com sotaque caipira. Anos depois, o menino reencontra a professora e revela a vida difícil que teve, trabalhando como garimpeiro, boia-fria e presidiário. A professora se dá conta de que a ênfase excessiva na gramática na escola pode reprimir crianças e afastá-las dos estudos.

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Fidncio Bogo

Conto: "Nis Mudemo"

O nibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belm-Braslia rumo ao


Porto Nacional.

Era abril, ms das derradeiras chuvas. No cu, uma luazona enorme pra
namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante
era um prespio, todo poesia e misticismo.

As aulas tinham comeado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes


heterogneas, retardatrios. Entre eles, uma criana crescida, quase um
rapaz.

- Por que voc faltou esses dias todos?


- que nis mudemo onti, fessora. Nis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- No se diz nis mudemo menino! A gente deve dizer: ns mudamos, t?
- T fessora!
No recreio as chacotas dos colegas: Oi, nis mudemo! At amanh, nis
mudemo!
No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozaes.
- Pai, no v mais pra escola!
- Oxente! Mdi qu?
Ouvida a histria, o pai coou a cabea e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! No liga pras
gozaes da mininada!
Logo eles esquece.
No esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele no apareceu no resto da
semana, nem na segunda-feira seguinte. A me dei conta de que eu nem sabia
o nome dele. Procurei no dirio de classe e soube que se chamava Lcio
Lcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereo.
Longe, um dos ltimos casebres do bairro. Fui l, uma tarde. O rapaz tinha
partido no dia anterior para casa de um tio, no sul do Par.
-, professora, meu tio no aguentou as gozaes da mininada. Eu tentei faz
ele continu, mas no teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu
devia di t ficado na fazenda coa famia. Na cidade nis no tem veis. Nis
fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli em seco e me despedi.

O episdio ocorrera h dezessete anos e tinha cado em total esquecimento,


ao menos de minha parte.
Uma tarde, um povoado beira da Belm-Braslia, eu ia pegar o nibus,
quando algum me chamou.
Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com
aparncia doentia.
-O que , moo?
-A senhora no se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos bola. Reconstitui num momento meus longos anos
de sacerdcio, digo de magistrio. Tudo escuro.
-No me lembro no, moo. Voc me conhece? De onde? Foi meu aluno?
Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacnica:
-Eu sou Nis mudemo, lembra?
Comecei a tremer.
-Sim, moo. Agora lembro. Como era mesmo o seu nome?
-Lcio Lcio Rodrigues Barbosa.
- 0 que aconteceu? Ah! Fessora! mais fcil diz o que no aconteceu. Comi
o po que o diabo amasso. E ta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro. Fui
boia-fria, um gato me arrecadou e levou num caminho pruma fazenda no
meio da mata. L trabaiei como escravo, passei fome, fui baleado quando
conseguir fugi. Peguei tudo quando doena. At na cadeia j fui par. Nis
ignorante as veis fais coisa sem quer faz. A escola fais uma farta danada.
Eu no devia t sado daquele jeito, fessora, mais no aguentei as gozao
da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui fal direito. Ainda hoje no sei.
-Meu Deus!
Aquela revelao me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada,
comecei a soluar convulsivamente. Como eu podia ter sido to burra e m?
E abracei o rapaz, o que restava do rapaz que me olhava atarantado.
O nibus buzinou com insistncia.
- O rapaz afastou-me se si suavemente.
- Chora no, fessora! A senhora no tem cura.
Como? Eu no tenho culpa? Deus do cu!
Entrei no nibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras
apontadas para mim. O nibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era
uma assassina a caminho da guilhotina.

Hoje tenho raiva da gramtica. Eu mudo, tu mudas, ele muda, ns mudamos...


Super usada, mal usada, abusada, ela uma guilhotina dentro da escola. A
gramtica faz gato e sapato da lngua materna, a lngua que a criana
aprendeu com seus pais e irmos e colegas e se torna o terror dos alunos.
Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime,
cobrando centenas de regrinhas estpidas para aquela idade.
E os lcios da vida, os milhares lcios da periferia e do interior, barrados nas
salas de aula:
No assim que se diz, menino! Como se o professor quisesse dizer: Voc
est errado! Os seus pais esto errados! Seus irmos e amigos e vizinhos
esto errados! A certa sou eu! Imite-me!
Copie-me! Fale como eu! Voc no seja voc! Renegue suas razes! Diminua-
se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar!
Seja uma sombra!
E siga desarmado para o matadouro da vida...
"A mais triste das velhices a que encolhe os coraes."
(Fidncio Bogo)

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