Estética fenomenológica
A fenomenologia de E. Husserl exerceu profunda influência na estética do século XX,
originando correntes de investigação muito diversificadas, mas que, no entanto, concordam
em algumas opções fundamentais de ordem tanto fi-losófica como metodológica. A estética
aproximou-se da fenomenologia para encontrar um fundamento às suas ambições
epistemológicas, um remédio contra o risco de limitar as suas investigações a impressões
puramente subjectivas e a um estímulo para acompanhar de perto as práticas artísticas
contemporâneas, em relação às quais a fenomenologia se revelou instrumento teórico de
particular eficácia.
A base de confronto entre as duas disciplinas resulta da estreita analogia, ocasionalmente
evidenciada pelo próprio Husserl, que liga a perspectiva estética e a perspectiva
fenomenológica. Na primeira, de facto, parecem configurar-se de maneira espontânea os
mesmos requisi-tos teóricos que a fenomenologia exige como pressupostos metodológicos:
antes de mais, a «redução» dos conteúdos da experiência à dimensão de significado que se
apresentam à consciência como valores de uma objectividade ideal (ou eidética); depois, a
epokê , através da qual o observador se liberta das suas convicções habituais para descrever
sem preconceitos os conteúdos do objecto resultante da primeira redução (motivo que a
estética fenomenológica pôs em relação com o tema tradicional do DESINTERESSE estético);
por fim, o reconhecimento do papel constitutivo da subjectividade na génese e na
estruturação dos acontecimentos.
Em virtude destas analogias, foi possível interpretar o conjunto da fenomenologia como teoria
estética, fundamentando-a como ontologia que assume o fenómeno estético como seu
referente exemplar (O. Becker, F. Fellmann) ou instrumento privilegiado de investigação (M.
Merleau-Ponty).
De um modo geral, contudo, a estética fenomenológica seguiu o caminho oposto, aplicando
ao campo estético as análises e os procedimentos descritivos elaborados por Husserl em
contexto filosófico. Baseando-se na postura antipsicologista e antinaturalista que caracteriza
a globalidade da reflexão husserliana, a estética fenomenológica conheceu diferentes fases
de desenvolvimento consoante se referia à chamada fase «realista» do seu pensamento, que
se inspirava nas Investigações Lógicas (1900-1901), à fase resumidamente definida como
«idealista», inaugurada pela obra Ideias para uma Fenomenologia Pura (1913), ou ainda às
investigações sobre a correlativa função transcendental do binómio sujeito-objecto que
ocupam os últimos anos do seu trabalho.
Os primeiros discípulos de Husserl acentuam, sobretudo, o momento realista da EXPERIÊNCIA
ESTÉTICA e elaboram a teoria fenomenológica do OBJECTO ESTÉTICO considerado na sua
autonomia estrutural e de significado (W.. Conrad), ou então no específico valor ontológico
que assume enquanto OBRA DE ARTE (R. Ingarden). A estética fenomenológica desenvolve-se
assim de maneira sistemática como descrição do carácter artístico dos diferentes âmbitos da
criação estética (literatura, pintura, música, cinema, etc.) e influencia com os seus
contributos as estéticas emergentes do FORMALISMO e do estruturalismo.
Fenomenologia e estética
TAGS: filosofia
Para Merleau-Ponty, a arte possui um estatuto ontológico privilegiado ao dar
acesso a uma percepção primordial do mundo
Cristiano Perius
“Antes de tudo importa que neste instante o poeta não admita nada como
(pré-)concebido, que ele não parta de nenhum traço positivo, que a natureza e a
arte tais como conhece como lição não lhe falem nada, antes que uma língua
esteja lá para ele, isto é, antes do que isto que agora é desconhecido e sem nome
no mundo se torne conhecido e nominável por ter sido composto em concordância
com a sua Stimmung [disposição]”.
Friedrich Hölderlin
Essa frase de Hölderlin resume, em poucas palavras, o projeto estético merleau-
pontyano, mas também implica, ao bom entendedor, duas coisas. Em primeiro
lugar, que a arte conta, ao lado do saber positivo, com um estatuto ontológico
privilegiado, e, segundo, que não existe na filosofia de Merleau-Ponty um projeto
estético senão através de um projeto fenomenológico. A razão está no fato de que
Merleau-Ponty não tem uma obra de estética no sentido de uma “teoria do belo”
(como na Poética de Aristóteles) mas conceitos filosóficos desde sempre praticados
pela arte, em especial o conceito de “expressão”, adequado ao exercício artístico. Se
é assim, isto é, se a reflexão estética merleau-pontyana se espraia numa
“fenomenologia da percepção”, ou numa “ontologia do sensível”, como os manuais
de filosofia ensinam, como podemos trocar em miúdos esses nomes ou essas
rubricas? Ora, a fenomenologia tem por objetivo descobrir o mundo antes do saber
e do conceito – a partir do “ser bruto”, segundo o jargão merleau-pontyano –, e por
isso esse é um processo de “deslumbramento”, segundo o filósofo, pois o poeta
procura, mas nem sempre encontra, apoio na linguagem proferida. Razão pela qual
Merleau-Ponty define, na famosa introdução ao seu trabalho mais extenso,
aFenomenologia da percepção, que “a melhor fórmula da redução é um
espanto [étonnement]diante do mundo”.
Em outras palavras, se a fenomenologia é “o estudo das essências”, segundo a
herança de Husserl, em nenhum momento ela se afasta da existência, plano em que
as idéias não são “puras”, isto é, regradas do princípio cartesiano (idéias claras e
distintas) ou kantiano (formas da intuição e categorias do entendimento). Sabemos
que no “mundo vivido” (outra expressão da fenomenologia) as razões estão ocultas,
não manifestas, segundo a idéia de uma “filosofia da ambigüidade”, isto é, o
instante em que sujeito e o objeto se abraçam (num primeiro momento a partir do
“corpo próprio”: nem sujeito, nem objeto; posteriormente relançado pela idéia,
“sem nome na História da Filosofia”, de “carne”: raiz ontológica da experiência que
duplica, produzindo o duplo, o par, como fenômeno de diferença, tal como o sujeito
e o objeto, a matéria e o espírito, a consciência e a coisa etc.). Pois “procurar a
essência do mundo não é procurar o que ele é em idéia”, como se ele fosse um
objeto para o pensamento, mas a experiência pré-objetiva que, segundo Merleau-
Ponty, “eu não domino porque é inesgotável” – mais ou menos como nestes versos
de Drummond: “E nada basta / nada é de natureza assim tão casta / que não
macule ou perca sua essência / ao contato furioso da existência./ Nem existir é
mais que um exercício / de pesquisar de vida um vago indício” (do “Relógio do
rosário”). Ora, é exatamente esse contato, ambíguo e indiviso, entre o “corpo” e o
“mundo”, que não pode mais ser sublimado, da percepção ao entendimento, como
fez a metafísica clássica. No lugar dessa ascese — que Merleau-Ponty chamou de
filosofia reflexionante, por sobrevoar o mundo da percepção — está o lema
husserliano da “experiência muda, que é preciso conduzir à expressão pura do seu
próprio sentido”. Pois se a “verdadeira filosofia é re-aprender a ver o mundo”, deve
então “recolocá-lo sob o signo do olhar”, sem “substituir o mundo pela significação
do mundo”, segundo o filósofo, na Introdução da Fenomenologia. Isso significa
dizer que, como Marcel Proust, em “O tempo redescoberto”, “as idéias formadas
pela inteligência pura têm apenas uma verdade lógica”, quando precisamos
“reencontrar a verdade de nossa percepção”.
Tudo se passa como se estivéssemos cegos, acostumados ao mundo que nos
circunda, enquanto a verdadeira vida está ausente. Mas, se a verdadeira vida nos
escapa nas estradas da existência, ela poderá ser reencontrada sob o signo da
memória involuntária, e por isso, para Merleau-Ponty, “ninguém foi mais longe que
Proust ao fixar as relações entre o visível e o invisível, na descrição de uma idéia
que não é o contrário do sensível, mas o seu duplo e profundidade”. O problema da
percepção, que depois da obra de 1945 se incorporou ao “logos do mundo estético”,
nas filosofias da consciência, foi inteiramente ignorado. E é exatamente a volta ao
mundo da percepção que a arte esquematiza e re-coloca, re-aprendendo a ver o
mundo. Nela a vida não é representada sob o signo do entendimento, mas de
imagens ou metáforas que, mais do que estéticas, ou exatamente por isso, lançam
luzes (laterais e sub-reptícias) sobre o mundo – a ponto de Marcel Proust, no final
do Em busca do tempo perdido, dizer que “a verdadeira vida, a vida enfim
descoberta e esclarecida, a única vida por conseqüência realmente vivida, é a
literatura”. Mais ou menos como na canção de Madredeus sobre o rio Tejo: “E a
cidade, chamam-lhe Lisboa mas é só o rio que é verdade…” Pois nesse espaço
de procura, sugerido desde o título da obra proustiana, esses dois rios – escrever
(literatura) e descrever (fenomenologia) – desembocam no mesmo oceano: a
existência.
Mas não é só isso que define o acontecimento estético (a descrição do mundo vivido
através do imaginário). “Estamos instalados no meio de um visível de que não
temos a chave”, diria Merleau-Ponty, com o sotaque de Drummond. Não ter a chave
do visível significa a impossibilidade de visão por transparência, iluminação frontal,
sem interstícios. Pois a não ser no caso divino, no ponto de vista de Sirius, ou no
epiciclo de Mercúrio, que lembra Montaigne, ver significa ver em parte, de algum
lugar, em algum tempo humano e de feições humanas, ao menos por enquanto…
Mas é essa incapacidade de iluminação total que produz o fenômeno do visível: as
coisas não estão simplesmente aí, o que quer dizer que precisam ser vistas para que
apareçam como objetos deste mundo. Ora, é essa idéia que pavimenta o texto
inacabado, devido à morte prematura, de O visível e o invisível. Há um gradiente de
invisibilidade que alimenta o visível na impossibilidade de passagem para o reino
do “em si”. Uma pedra, em si, não é nada, perto do edifício poético de Drummond,
tanto quanto um rio, em si, não é nada, junto ao fluxo de imagens de O cão sem
plumas, de João Cabral de Melo Neto. Não ter a chave do meio visível significa a
possibilidade de contar, apesar do “dogmatismo do senso comum e do dogmatismo
da ciência”, com o grande enigma da existência. Deles a arte presta conta, não com
a precisão da matemática, nesses tempos de técnica, mas com a força das imagens
que “barram o caminho e meditam, obscuras, contra a tentativa de decifração” (do
poema “O enigma”, de Drummond). Afinal de contas, se “a descrição de uma
história pode significar o mundo com a mesma profundidade do que um tratado de
filosofia”, como diz Merleau-Ponty, então arte e filosofia, estética e fenomenologia
não estão aí para explicar, mas compreender o mundo constituído e como as coisas
são nomeadas.
Ultrapassando a objetividade do mundo, que é derrisória, não era a concordância
com a Stimmung do poeta o ponto de partida da reflexão fenomenológica sobre a
obra de arte em Merleau-Ponty? Mas atenção: a subjetividade do poeta, as tão
famosas “vivências”, em sentido psicológico, eis aí o mais derrisório ainda. Só resta
a pedra do caminho, o rio Capibaribe, as obras primas, desafiando o tempo cada dia
mais e mais perdido.
Cristiano Perius é doutor em Filosofia pela UFSCar, com especialização na
Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne)
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COMENTÁRIOS (2)
Terezinha Costa |
23/05/2011
Prezado,
Cristiano Perius
Achei seu artigo relevante versando sobre a Estética de Ponty, me ajudará na
realização do trabalho que irei apresentar na Faculdade em breve. Estou
iniciando FILOSOFIA na UFT, este é o tema proposto pelo meu professor para
apresentação do SEMINÁRIO. Caso você tenha outros materiais(poesia,figuras,
outros autores) relacionado a este Filosofo envie-me, por favor e muito
obrigada.
Aguardo resposta.
abraços!
Terezinha
Jeffferson Silva Queiroz |
25/01/2012
Prezado,
Cristiano Perius
Ao ler seu artigo fiquei interessado em pesquisar sobre Merlau-Ponty. Estou
lendo sobre a estética francesa e me interessei pela estética pontiana. Sou
professor de filosofia e trabalho com filmes, músicas e charges nas aulas e
acredito que a leitura pontiana do mundo pode ajudar muito, tanto adolescente
nível médio quanto jovens e adultos nível superior a entender e a gostar da
filosofia.
Tenho interesse em pesquisar a estética francesa e fiquei sabendo que esta
aberto o programa de mestrado na UEM. Estou elaborando um projeto sobre o
entrelaçamento das artes com a filosofia e sua contribuição para a formação do
ser humano.
Gostaria de saber se você pesquisa sobre este assunto?