Bucólica, Monteiro Lobato
Tanta chuva ontem!... O cedrão do pasto fendido pelo raio - e hoje, que manhã!
A natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinha ao deixar o banho. Inda
há rolos de cerração vadia nas grotas. O sol já nado a ela com tanta preguiça de
recolher os véus de neblina... A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante de gotas
que caem e tremelicam, sorri como em êxtase. Há em cada vergôntea folhinhas de
esmeralda tenra brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste: colhe-as
de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhe a polpa macia.
Meu Deus! O que vai de aranhóis pela relva - nos galhinhos de joveva, nas
flechas de capim, grandes e pequeninos, todos mimosos de desenho, tecidos a fio de
seda...
Compraz-se a noite em agrumar neles milhões de diamantezinhos que a luz da
manhã irisa. Malmequeres por toda a parte - amarelos, brancos. E tanta flor sem
nome...
Flor à-toa, diz a gente roceira.
São, coitadinhas, a plebe humílima. A nobreza floral mora nos jardins,
esplendendo cores de dança serpentina sob formas luxuriosas de odaliscas. A
duquesa Dália, sua majestade a Rosa, o samurai Crisântemo - que fidalguia. Bem
longe estão destas aqui, azuleguinhas, um pouco maiores do que uma conta de
rosário.
Não obstante, veio nestas mais alma. Leio mil coisas sua modéstia. Lutaram
sem tréguas contra o solo tramado de raízes concorrentes, contra as lagartas, contra
os bichos que pastam. Que tenacidade, que prodígio de economia não representam
estas iscas de pétalas, e o perfume agreste que as oloriza, e a cor - tentativa de azul -
com que enfeitam, as feiticeirinhas!
São belas, sim - da sua beleza, a beleza selvática de coisas que jamais sofreram
a domesticação do homem.
As flores de jardim: escravas de harém... Adubo farto, terra livre, tutores para a
haste, cuidados mil - cuidado do homem para com a rês na ceva... As agrestes
morrem livres no hastil materno; as fidalgas, na guilhotina da tesoura. Fábula do lobo
e do cão...
Que ar! A gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito de pó em
suspensão num misto de mau azoto a pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é
sentir pulmões borbulhantes deste fluido vital em estado de virgindade. O oxigênio
fresquinho foi elaborado naquele momento pela vegetação viçosa. Respirá-lo é
sorver vida nascente.
Ali, o rio. Ingazeiros desgalhados pendem sobre ele franças, cujas pontas lhe
arrepiam o espelho das águas;
Caem na corrente flores mortas. O movediço esquife cc dulas com mimo até a
barulhenta corredeira próxima; irritado, amarfanha-as, fá-las pedaços - e as
coitadinhas viram babugem.
Margeia o rio a estrada, ora d’ocre amarelo, ora roxa terra; aqui, túnel sob a
verdura picada no alto de nesga de luz; além, escampa. Nos barrancos há tocos de
raízes decepadas pelo enxadão e covas de formigueiros mortos onde as corruíras
armam ninho.
Surgem casebres de palha.
Lá na aguada bate roupa uma mulher.
Rumor no mato... Sai dele, de lenha ao ombro, uma cabocla.
Sinh’Ana, bom dia! Que é do Luiz?
No eito, coitado.
Sarou bem?
Ché que esperança! Melhorzinho. Panarício é uma festa!...
Baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se num capão d’anjico. Borboletas
amarelas nos úmidos. Parece um debulho de flores de ipé.
Uma preá que corta o caminho.
Pega, Vinagre!
Outra casinha, lá longe. É a toca do Urunduva, caboclo maleiteiro. Este diabo
tem no sítio a coisa mais bela da zona - a paineira grande. Dirijo-me para lá. Um
carreirinho entre roças, a pinguela, um valo a saltar... Ei-la! Que maravilha!
Derreada de flores cor-de-rosa, parece uma só imensa rosa crespa. Beija-flores
como ali ninguém jamais viu tantos. Milheiros não digo - mas centenas, uma centena
pelo menos lá está zunindo. Chegam de longe todas as manhãs enquanto dura a festa
floral da paineira mãe. Voejam rápidos como o pensamento, ora librados no ar,
sugando uma corola, ora riscando curvas velocíssimas, em trabalhos de amor.
Que lindo amor - alado, rutilante de pedrarias!...
Respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em enlevo a ver as flores que
caem regirantes. Se afla mais forte a brisa, despegam-se em bando e recamam o
chão. Devem ser assim as árvores do país das fadas...
O Urunduva? É ele mesmo. Amarelo, inchado a arrastar a perna...
Então, meu velho, na mesma?
Melhorzinho. A quina sempre é remédio.
Isso mesmo, quina, quina.
É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três cruzados. Estou vendo que
tenho de vender a paineira.
Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por ela - e inda um capadinho
de choro. Como este ano ca you demais, vem paina p’r’arrobas. Ele quer
aproveitar
derruba e...
Derruba!...
Derruba e...
Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus
Não vê que é mais fácil de derrubar...
Derruba!...
- Derruba!...
Aquela maleita ambulante é “dona” da árvore. O Urunduva está classificado no
gênero “Homo”. Goza de direitos. rei da criação e dizem que feito à imagem e
semelhança de Deus.
- Adeus, Sicorax!
Para alguma coisa sirva a literatura...
Roças de milho. A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo aguaceiro da
véspera, inça-se de tocos carbonizados, e árvores enegrecidas até meia altura, a
paulama a carvão. Entremeio, covas de milho já espontando folk’
Adiante, feijão. O terreno varrido, cor de sépia, pontilhado pelo verde das
plantas recém-vindas, lembra chita de velha: as velhas gostam de chitas escuras com
pintas verdes.
É aqui o sítio da Maria Veva. Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até ali,
dizem.
O marido - coitado - um bobo que anda pelo cabresto - Pedro Suã. Ganhou este
apelido desde o célebre dia que a mulher o surrou com um suã de porco. Lá vem ele
de espingardinha...
Vai caçar?
Antes fosse. Vou cuidar do enterro.
Enterro?...
Pois morreu lá a menina, a Anica. Antes morrer de fome...
- Que coisa houve?
- Mas de que morreu a menina, criatura?
Pobrezinha! De quê?
A gente sabe? Morreu de morte...
Estúpido!
Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto da Veva. É horrenda, beiço
rachado, olhar mau - e aquele papo!
- Então, Nhá, morreu a menina? Soube-o inda agora pelo Suã...
- É.
Que resposta seca!
- E de que morreu?
- Deus é que sabe.
Peste! E como a atrevidaça me olha duro! Sinto-me mal. Fujo dali com este
horrível som a azoinar-me a cabeça em sua presença.
Arrepio caminho, entristecido. A manhã vai alta, já crua de luz. O sol,
estúpido; o azul, de irritar. Que é dos aranhóis? Sumiram-se com o orvalho que os
visibiliza. Estão agora invisíveis, a apanhar insetinhos incautos que
Nhá Veva Aranha devora. A paisagem perdeu o encanto da frescura e da bruma.
Está um lugar comum. Não vejo flores tenras nem pássaros. O excesso de luz dilui as
flores, o calor esconde as aves. Só um caracará resiste ao
mormaço, empoleirado num tronco seco de peroba. Está de tocaia aos pintos
do Urunduva, o rapinante.
Um vulto... É mulher... Será a Inácia? Vem de trouxa à cabeça. É ela mesma, a
preta agregada aos Suãs.
- Então, rapariga?
- Ai, seu moço, vou-me embora. Alguém há de ter dó da velha. Na casa da
peste papuda, nem mais um dia!
- Não sabe que morreu a aleijadinha? Pois é, morreu.
Morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi no bairro do Libório e a
chuva me prendeu lá. Se eu pudesse adivinhar...
Mas de que morreu a menina, criatura?
- Sabe do que morreu? Morreu... de sede! Morreu, sim, eu juro, um raio me
parta pelo meio se a coitadinha não morreu...
Aqui soluços de choro cortaram-lhe a voz.
... de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gente não vê neste mundo!
A menina era entrevada e a mãe, má como a irara. Dizia sempre: Pestinha, por
que não morre? Boca à-toa, a com a comer. Estica o cambito, diabo! Isto dizia a mãe
- m hein? A Inácia, entretanto, morava lá só para zelar da a1eijadinha. Era quem a
vestia, e a lavava, a arrumava o prí nho daquele passarico enfermo. Sete anos assim.
Excelente negra!
Coisa de três dias ‘garrou uma doencinha, dor cabeça, febre. Dei chá de
hortelã; nada. Dei cidreira; nao Sempre a quentura da febre. Disse comigo: “Vou
lá bairro e trago uma dose.” Fui, é longinho, três quartos de légua. O curador me deu
a dose, mas quem disse de poder voltar? Uma chuvarada... Pousei no Libório. Hoje,
manhãzinha, vim.
Entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. Eu que pisei na alcova, dou
com a menina espichada na esteira fria. Anica! Anica! Quando vi bem que estava
morta verdade, ah, seu moço, berrei como nunca na minha vida. - “Nhá Veva, de que
jeito morreu Anica, come, conti Nhá Veva quieta, repuxando a boca. Uma pedra!
em circa da menina, beijei, chorei. Nisto, uma cutucada era o Zico, aquele
negrinho, sabe? Olhei p’ra ele: fez jeito de me falar longe da taturana. Lá fora me
contou tudo.
menina, des’que eu saí piorou. Mas quietinha sempre. Noite alta, gemeu.
“Cala a boca, peste!”, gritou do outro quarto a nhá mãe, veja!
“Quero água, nhá mãe.”
“Cala a boca, peste!”
A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez, baixinho
“Quero água! Quero água!”
Ninguém se mexeu.
“E tu, negrinho safado, por que não acudiu a menina, “Não vê! Eu conheço
Nhá Veva!...”
Seu Pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de todo dia. Ninguém na casa
para chegar uma caneca d’água à boca da doentinha. Ela, um chorinho ainda; depois,
mais nada. De manhã...
Lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e soluços de dor cortavam-lhe as
palavras.
De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao pote d’água.
Arrastou-se até lá, o anjinho que nem se mexer na cama podia - e morreu de sede
diante da água!...
Quem sabe se...
Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava alto, e a caneca estava tal a
qual no lugarzinho do costume.
Não bebeu, não! Morreu de sede, o anjo!
Enxugou as lágrimas na manga.
Agora vou no Libório. Se ele me quiser, fico. Se não, sou bem capaz de me
pinchar nesse rio. Este mundo não paga a pena...
Sol a pino. Desânimo, lassidão infinita...