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184 Raquel Gazolla Pensar Mitico 217

filosofia

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SEGUNDA PARTE © PARA NAO LER INGENURMENTE UMA TRAGEDIA GREGA’' INTRODUCAD A TRAGEDIA 3 EQUESTAO DE METODO “E depressa transitério tudo 0 que é celeste, mas nao vao. Sempre conhecedor da medida, com mao moderada, toca um deus as moradas dos homens, um momento apenas.” HOLDERLIN Ha mais de vinte e cinco anos, quando pela primeira vez tentei escrever sobre uma tragedia grega, ainda estudante universitaria, foi-me dito sobre a pouca expansdo de minhas colocagées, uma ve7 que esse género literario era de tal modo abrangente que se formava dificil falar devidamente sobre ele em todos os seus as- Pectos. Com o tempo, percebi a extensao da dificuldade. E bem verdade que nossos dias nao conseguem apanhar o que foi a tragecia grega em toda a sua amplitude, nao sé porque a estru- Cura culcural que temos é outra, como porque ela esta bastante Sastanciada no tempo, ao menos uma parte dela, uma vez que Imente, publicada como volume au- slo, por Edigdes Loyola em 2001 1 Fora segunda parte foi, origi Snomo, com o mesme 1187 outra parte persiste na memoria moderna. Ainda experimentamos encena-la, fazé-la paradigma para novos dramas, pensé-la. Somos modernos, com fortes raizes medievais mais que gre- co-romanas. Pelo solo iluminista que temos, pelos fundamentos do cristianismo e de sua leitura especifica do mundo de que somos herdeiros, a tragédia grega sé nos fala de perto naquelas coloca- gdes que consideramos universais, ou seja, quanto a fragilidade humana exposta no que nos ultrapassa, e quanto ao desconhe- cimento de nos préprios e das determinag6es incompreensiveis a que estamos sujeitos. Ao adentrarmos nos textos classicos, temos a tentacao de trata-los como producgao de um passado distante, e acreditamos dogmaticamente que nossa medida do tempo é indiscutivel. Cronologicamente, temos razdo, pois inventamos nosso proprio calendario, mas sé cronologicamente. Em virtude disso, o drama tragico pode impor-se como um texto de época para uns, ou como criacao que aprofunda a psicologia huma- na, para outros, ou, ainda, como rica fonte filolégico-literdria. Alguns pesquisadores leem a poesia tragica como uma excelente ocasido para seus estudos antropoldgicos e filoséfi- cos. Provavelmente, todas essas posturas tém boas razées para se estabelecer. Creio, porém, que o drama tragico, nascido de contingéncias historicas gregas especificas, dificilmente seré inceligivel para nds com alguma profundidade, ou traré algu- ma novidade que possa ser importante para nossos dias, se nao houver a seu respeito um exercicio de distanciamento e aproximagdo constante por parte do leitor estudioso. Quando sobre ele escrevemos, sao ensaios 0 que fazemos, como este que pretendo agora expor, tentativas de tocar algo de essencial do tragico como se estivéssemos proximos a um grego e a seu modo de compreensao. Se assim nao fizermos, nenhum conhecimento inesperado nos trar4 um texto antigo, bem ao contrario, vamos conhecé-lo como se estivéssemos diante de um espelho, refle- tindo sobre nosso modo actual de ler o mundo. Em que pesem dificuldades ao tentar nao refletir totalmente a propria época do leitor actual do texto tragico antigo, deve-se 188 | Pare nae ler ingenuamente uma tragedia grega a buscar esse jogo de distanciamento necessario e proximidade estorcada: a historia grega da época e a lingua grega sao os paramecros fundamentais para isso. Pode-se argumentar que nao ha razao para deixar de ler os gregos com nossos proprios olhos, transportando os textos classicos para nosso proprio ideario. Por que nao? Sim, é uma postura metodolégica possivel. Ha outras, todavia. Trata-se, afinal, de interpretagdes, marca da nossa época. Nao é 0 caso de contrapor, aqui, as hermenéuticas, pois adentrariamos na extensa problematica das filosofias da historia, mas é importante assinalar essa abertura para muitos caminhos aos estudiosos-intérpretes. Esta investigacao, este caminho aqui proposto, é um exer- cicio intelectual dificil que, certamente, nao conseguira muito mais dos textos estudados que proyecdes de nosso proprio ideario, mas € possivel encontrar alguns pontos que atinjam © texto antigo naquilo que ele é, e néo no que cada época diz que ele é, ao tomar-se como paradigma o texto datado. Dizer sso € afirmar que um texto antigo encerra algo de atemporal. Sim, pois ele pode falar Por si mesmo e trazer a época em que foi escrito, para o espanto daquele investigador que se posta na fixidez das estruturas de seu Proprio tempo. Por crer que seja viavel esse método agora sugerido, por aceitar essa abercura é que passado tanto tempo ouso escrever sobre a tragédia, uma vez mais. A sensacao de estar limitando 0 que é 0 tragico grego a0 estuda-lo persiste, ndo propriamente por tentar indicar algo distance e dificil de apreender — de fato, assim é —, mas porque 9 tragico esta idealizado entre nds como producao humana tao v igorosa, que se torna quase inefavel, dada sua transcendente grandiosidade. Assim representamos as tragédias gregas, assim fos afastamos ou nao delas. Tendo a discordar dessa representacao que intérpretes acei- tam. A imagem de imponéncia e abrangéncia da cragédia grega difculea a aproximacao dela em tal grau, que acreditamos ser unpossivel tocar o simples nela presente. Ora, o simples € sempre dificu, sabemos. Mas nao parece impossivel apanhar algo do “ser” jnlroducae a Wagedia e@ questao de metodo | 189 tragico mesmo assumindo nossas Proprias Tepresentagées, e nag me persuadem as teses da impossibilidade da busca atemporal de algo que se possa doar nele mesmo. Negar a persisténcia de uma cultura que chegou até nés por meio da linguagem de muitos recolhedores, ou criar uma instransponivel barreira (idealizada) sobre ela, ja é, de antemao, fixar o desenho rigido do campo de onde se fala e como se deve falar por adequacao. A idealizacao da culcura grega, no caso, é datada, Pertence aos intérpretes que a leram e a aceitaram como a “infancia dourada do Ocidente” (penso nos romnticos alemes e nas interpretacées deles herdei- tas). Podemos divergir sobre os valores “infancia” e “dourada” e nem por isso desconsiderar 0 enorme valor que a cultura grega antiga teve ou tem para nés, ocidentais, ainda. Por vezes, o que temos a buscar nessa cultura é claramente mais complexo do que pode alcangar nossa atual racionalida- de, principalmente se pensarmos nos textos filos6ficos. Quem sabe, a cronologia progressiva dos historiadores (e filésofos da historia) enquadrem demasiadamente as express6es culturais antigas, ndo sé a grega, em paradigmas que facilitam a herme- néutica mas deixam escapar muito do essencial dessas culturas que facilmente se oculta, como se sabe. Ou nao aceitem, tais historiadores, o que nomeamos “essencial”, por nao acreditarem na possibilidade de uniao do ser, do dizer e do pensar, passi- vel de sinalizar-se em leituras atentas de uma época, mesmo que de modo limitado. Realmente, tal possibilidade nao esta bem acomodada em nossos dias, apesar de existir. O tragico pode estar muito perto de nds se consideramos que, enquanco humanos, vivenciamos — e nao necessariamente teorizamos — as emocées e parte dos valores que perpassam esse drama, como se féssemos assistentes do teatro grego do século V aC. Basta que nao nos fixemos no tempo “crono-logico” e° lembremos que os grandes temas mitico-tragicos ainda nos dizem respeito de modo muito préximo: afinal, a alma humana tem um légos tao profundo que nada impede pensar que o tem- po das vivéncias légico-psiquicas seja marginal aos calendarios 190 | Para nado jer ingenuamente uma tragédia grega inventados, de modo que o tragico da Grécia classica nao é um rempo passado, mas presence continuo em nos, em muitos de seus aspectos, e que reconhecemos na alma. E preciso, ademais, apontar que ao escrever este ensaio nao precendo seguir os estudos académicos quanto ao modo atual de incerpretar o que foi uma tragédia grega. Nao me seria possivel, ja que sao muitos os académicos de literatura grega — uma area bem delineada nas universidades — que tém estudos detalhados sobre a poesia cragica, abordagens especificas 4 prépria area, rigorosas € pertinentes ao que nomeamos estudos literarios. Tais perspectivas nao foram necessariamente aqui consideradas. O tragico interessa-me bem além dos campos universitarios, apesar de neste ensaio ele ter sido focalizado também a partir de meu principal campo investigativo, a filosofia, como nao poderia deixar de ser. Entao, falemos sobre o tragico, introdutoriamente. Mas nao ingenuamente. 1. O que @ 0 drama tragico? Os dias de hoje nao sao lidos como sagrados, bem ao contrario. Nossos estudos sao muito mais informativos que reflexivos, e as interpretagdes que fazemos passam, inevitavelmente, por excessivas representagdes que outros fizeram dos textos classi- cos que nos chegaram. Apesar desses limites, ha uma espécie de “porto seguro” que se deve ter em mente, no que concerne a Grécia das tragédias: ela nos deixou um legado escrito, e, mesmo ao levar em conta os possiveis acréscimos e decréscimos a ele impostos, deve ser sobre esse legado o exercicio de com- preensao, bem como sobre as noticias mais proximas a época das encenacoes tragicas. A Grecia Antiga, é preciso repetir, nao © a [dade Media, nao € a Modernidade. Nossos olhos tém de ginariamente, na medida do possivel, no exercicio bus de distanciamento e apr oximagao de nés mesmos, de nossos a-la ori Introducdo & tragedia e questao de metodo | 19] significados e valores. Nao ha como substituir esse barco que somos nés, nesse porto que sao os textos em outra lingua que : nomeamos “morta”. Somos intérpretes, sim. Por isso, estudar os textos tragicos é sempre fazer um “ensaio”. ‘ Obvio o que esta sendo dito? Nao tanto. Nao raras vezes, lemos e ouvimos estudiosos afirmarem, por exemplo, o “cien- tificismo” e o “empirismo” de um Aristételes, o “cristianismo” e€ o “reencarnacionismo” de um Platao, a “ingenuidade fisica” dos primeiros sabios gregos, a “irracionalidade” do mito, Ou, ao revés, 0 “dionisismo” de um Nietzsche, o “tragico” de um s Shakespeare, o “aristotelismo” de um Tomas de Aquino, O — que querem dizer exatamente tais expressdes aplicadas ana- cronicamente? Nao se sabe, nao se explicam bem aqueles que as usam, dando como assentado que sao, por todos, plena- mente inteligiveis. Sao, se adotarmos uma chave significativa retirada de nosso proprio idedrio ao elegermos uma ou duas caracteristicas de um Aristételes, de um Platdo ou do que os poetas falaram dos deuses e que nos seja mais compreensivel, Estaremos, evidentemente, tomando a parte pelo todo, erigin- do um sentido de época e expandindo-o a toda nossa histéria. © Parece ser de nossos dias, afinal, buscar grandes sinteses e criar Palavras com sufixo em “ismo” que as acompanhem, O fato é que esse legado — os textos gregos — esta ainda entre nés, ain- da o consideramos importante na medida em que dele falamos € em que nos trazem um sentido que nos importa. Por qué? Estudemos a tragédia grega para tencar responder. © primeiro drama tragico* foi encenado provavelmente por volta de 530 a.C., na tirania de Pisistrato, durante as Grandes 2. Sobre a palavra “drama”, diz Aristéreles, na Poética (cap. II, 4, 1448a): “Os dois (S6focles e Arist6fanes) apresentaram sua imitaso por personagens '92 | Para nao ter ingenuamente uma tragedia gresa : sia Hee Dionisiacas (ou nas Dionisias), festas realtzadas durante os meses de marco e abril em homenagem a Dioniso Eleutério. Tal inicio, sob o governo de um trano, tem levado a cre que teria havido uma intengao de Pisistrato na popularizagao de seu governo, que antecedeu a polis isonémica. E possivel, pois ha noticias de que nao so os homens iam ao teatro, mas tam- bem as mulheres, os escravos e as criangas. Segundo alguns helenistas, os pobres recebiam algum pagamento para assistir as encenacées tragicas, dai inferindo-se que a assisténcia era numerosa. A primeira entre as tragédias que chegaram até nés foi Os persas, de Esquilo, mas nao foi ele o primeiro tragico’. Alguns documentos indicam Téspis como o primeiro tragico, e houve outros que a ele se seguiram, como Quérilo e Frinico*. A tradicao helenista considera que a tragédia tem seu apogeu, como expressao cultural da Grécia isonémica, no sé- culo V a.C., e ajudou a firmar o novo éthos exposto nas novas formas institucionais da cidade. Suas raizes, acredita-se, sio geradas nos arcaicos rituais ao deus Dioniso. Um sinal disto €0 faco de o nome “tragédia” guardar a raiz de trdgos (= bode; trago + aoidé = canto do bode), em referéncia a um antigo ritual de sacriticio de um bode ao deus nas antigas comunidades*. No em acio diante de nos. Dai vem que alguns chamam as obras de dramas (drdnnita) porque fazem aparecer ¢ agir os “préprios personayens” 3. Epigenes, de Sicion, talvez tenha sido 0 primeito, mas seu sucessor te- tia sido Téspis, Sua tragédia teria sido encenada na 61° Olimpiada ($36/335/ 533,523), durante as grandes reformas de Pisiscrato, jd como parte dos cultos da polis. Dos outros tragicos que se seguiram a Téspis, Esquilo foi, segundo listas recuiperadas dos vencedores, 0 décimo poeta eragico (in A. Lesky, Historia dle Li literatura iega, p. 254 ss.) 4. A palavra ethos significa primariamente cas; Nao sera rraduida neste trabalho a palavra logos, que signi- fica palavra, argumento, pensamento exposto articuladamente © que pode ser recolludo pelos que onvem (ou leem) porque tem sentido, , morada; dai, costumes. como N20 os A referencia a essa raiz acha-se nas obras da maioria dos intérpretes; porém. seyundo alguns, nao ¢ indiscutivel tal origem. Vid . principalmente, as obras de J -P. Veasane a resperto (ct. bibliografia ao final). introducao a tragedia e questan de método | 193 entanto, no se deve pressupor que tal Heel tivesse persistido na Grécia das péleis, e a ligagdo da poesia tragica com os rituais de sacrificios est4 no campo da simbolizacao, assinalado pela escolha do periodo em que é encenada: nas fai dionisiacas, quando a danca, a festa, 0 riso, os jogos e 0 delirio ruidoso que o coro de satiros se empenha em mimetizar nas ruas sao indicadores das antigas orgias do culco dionisiaco. E claro que, ao falar em orgia, nao se esta indicando o significado assentado entre nos dessa nogdo, mas o sentido grego antigo da palavra, ou seja, de celebracao dos mistérios. Uma festa dionisiaca 6, portanto, uma forma de celebrar os mistérios, e quando isso ocorre na pdlis como mimetiza¢io é uma espécie de laicizagao dos baqueumas®. Os cidadaos mimetizam nas ruas a celebragao especifica dos ini- ciados nos templos, para aproximar-se do deus. A poesia tragica nado mantém na Modernidade seu signifi- cado mais profundo, de festa religiosa. Seus temas, sim, foram preservados na literatura, indicativos dos grandes sofrimentos e da fragilidade dos homens, mas a celebrac4o a Dioniso nao pode persistir, dada sua especificidade mitico-religiosa. Tratando-se de uma festa ao deus, por que a referéncia continua ao sofrimento dos homens, aos seus limites dolorosos sempre apontados no género tragico? O que a figura de Dioniso e seus rituais libatérios, suas festas e prociss6es tém a ver com tais aspectos emocionais do homem? A. Lesky’, intérprete cuidadoso das tragédias, nota sobre essa questao: Por mais elementos dionisiacos que contenha a tragédia, ha um que quase nunca o é, seu tema. “Isto nada tem a ver com Dioniso” ja era um provérbio comum entre os antigos, e as fre- 6, Baqueumas sao os atos ritualisticos exigidos dos iniciados para a celebragio dos mistérios de Dioniso ou Baco. 7. Op. cit, p. 253. 194 | Para nao ler ingenuamente uma tragédia arega quentes intengdes para explicd-lo mostram quanto estava vivo neles nosso problema. Mesmo que compreendamos que a festa a Dioniso nao im- plica divertimento e que é um ritual sagrado, nao sao também compreensiveis os temas tragicos que seguidamente misturam crimes de sangue e mortes terriveis dos heréis-personagens. Assim, é preciso atentar para o facto de a tragédia grega nao ter a conotacdo que, em geral, lhe damos, de um drama que pretende mergulhar no sofrimento, conotagao que se estruturou historica- mente e que aponta para a criacao do adjetivo “tragico”. Tragédia é um substantivo, é um ritual religioso-politico apresentado na forma da encena¢ao, num espaco de grande visdo — 0 teatro — para os homens que vivem nas poleis, e faz parte de uma série de outros eventos em homenagem ao deus Dioniso. Nessa encena¢ao, os gregos ja sabem sobre as histérias miticas que serdo repetidas pelos poetas — esses seres criadores de novas palavras e ritmo, capazes de trazer o ja conhecido na forma do novo, que conseguem surpreender e comover todos os presentes. O conteudo do drama tragico sao os temas miticos passados de geragao em geracao e mantenedores da memoria da raga grega. Sao eles parte formadora da propria representagdo que essa raga tem de si mesma. O sentido que hoje temos de tragédia e que se vincula ao adjetivo “tragico” — uma qualifi- cacao direcionada ao triste, aos grandes sofrimentos — faz que esquegamos sua conotagao civica e mitica enquanto substantivo, como sera abordado adiante. Comenta, ainda, Lesky* que a tragédia grega converteu-se em truwersprel, em uma pega triste, expressdo ao gosto do roman- tismo alemao, a quem tanto a tragédia grega falou de perto. O estudioso da culcura classica lé, nos textos tragicos, que nao é hecessariamente assim. soley, A trugedia grega (Die grieschische tragodie), p. 37. Intradugao a tragedia e questao de meétoda | 195 2. Nietzsche e sua ~~ pels do edadacauat Do sécilo. XIX, hendanies sobie a tragédia e seas: sche com 6 dionisismo as colocagées firmadas por Rohde e Nietzsche’, - bem-aceitas em nosso século pelo vigor que ainda Persiste do pensamento romantico alem4o quanto ao “redescobrimento” -. do brilho da cultura grega’® — ou de certa interpretacao des- sa cultura. Acravés das leituras nietzschianas da Grécia, por exemplo, foram assentados certos significados peculiares do F, | par Dioniso-Apolo, o que nos acostuma a uma visao especifica * “do tragico como sendo dionisiaco. Eo dionisismo sui ‘generis de: Nietzsche que nos leva a assim pensar, pois nao ha, necessa- viamente, esse par divino e quase antinémico nas tragédias, ao menos ao modo como o filésofo o estruturou. Nietzsche quis ver nas tragédias a polaridade entre essas divin- dades, Apolo e Dioniso, em fungo de sua prépria interpretagio de “dionisiaco” e de “apolineo”, fundamental para'a boa compree! sdo de suas reflexdes. Ele lé a tragédia, em 1871, como expressao dessas duas divindades: quer pela bela forma e pela medida, no caso de Apolo, quer pelas mascaras e pela desmedida, no caso de Dioniso. Este, sendo a propria expressio do teatro tragico, é também 0 cerne do tragico propriamente dito, segundo pensa 0 filésofo, e é ele, o Dioniso tragico, quem transporta os helenos “ao -fundo das coisas”, como diz, a esse chnimtegtrest que Eee ¥ » 9. Erwin Rohde, Reais, e, Friedrich waucne O nascimento da gi 0 espirito da miisica. ‘ 10, Nao é 0 caso de analisarmos as colocagies de F. W. Hegel =um “estudioso das tragédias gregas e do brilho dessa cultura —, pois sua reflexao “Se insere em seu prdprio sistema reflexivo, advindo dai que suas incterpre~ tacdes, por vezes de extremo inceresse, estao, entretanto, mergulhadas em sua filosofia: Nieczsche By @.Mesmoy 60 ernie que escolhemos para filosofia € 0 dionisiaco enquanto pura atemporalidade, “vir-a-ser”, nstante, saida da medida de tempo que o coridiano carrega. O eotidiano éo tempo medido, categorial, compreendido, valorad éa bistoricidade que sufoca o fluxo. Diz 0 filésofo: {.]o consolo metafisico — em que nos deixa, como ja indico aqui, toda verdadeira tragédia ~ de que a vida no fundo das coisas, a despeito de toda mudanga de fenémenos, é indestru- tivelmente poderosa e alegre. O consolo aparece com nitidez corporal como coro de satiros, como coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente como que por tras de toda civilizagao e,a despeito da mudanga das geragdes e da histéria dos Ppovos, permanecem eternamente os mesmos!', Evidentemente, nenhum poeta grego esta Pensando, ao esctever um poema tragico e encend-lo, que esta levando os gregos ao “fundo das coisas”, nem Nietzsche imagina isso. Ele fala aos leitores modernos, e em sua interpretagao a tragédia € expressao privilegiada para que os espiricos histéricos que somos nds — iluministas que edificamos em pedra a nossa ra- cionalidade — afirmemos a poténcia originaria quase perdida. Essa poténcia apresenta-se na hiscoricidade humana, sim, nao Se perdeu, porém esta excessivamente estruturada pelas masca- fas cwilizatonias, esquecida da propria origem. A Modernidade ‘anstormou profundamente essa forca dionisiaca primaria em *, em grau de que nenhum dos homens € capaz, ao matar 9 pak 4 - -edormir com a mie. Por isso ele é Edipo, é o heréi que decifra o que nenhum homem consegue, ao mesmo tempo em que é a fera que rompe as regras basicas da ordem da physis,. es Esse exemplo demonstra que é Preciso atentar para os aspectos da cultura grega que se expdem nas figuras heroi- cas, do contrario leremos Edipo como um Hamlet romantico, ou, na pior das hipoteses, um homem com gtaves problemas F Psicoldgicos (0 que nem Sigmund Freud pretendeu)"*, Edipo © nao € culpado, ele nao é uma interioridade moderna respon: _ «>. Savel por seus atos, ele nao é 0 individuo moderno: é um heréi "__ mitico redimensionado na Poesia tragica da pélis, que cometeu © pior dos erros e esta sujeito a expiagdo necessdria por sua’ tertivel hamartia, expiacao que tera de ser comunitdria. Nao se pode esquecer que 0 poeta tragico tem o sentido forte do que € comum na pélis do século V a.C., e 0 mito ressurgido no teatro nao deixa o cidadao esquecer o sentido do comunitario. Tal sentido manifesta-se na nocao de hémoios — semelhante Ee fundamento da cidadania, ree Sabe Edipo que, para retirar a mancha que trouxe a Tebas, a somente o fara pela expiagao, pela purgacdo — no seu caso, a ce- a gueira e 0 exilio sem sandalias, com os pés inchados e descalcos, dai seu nome Edipo. A kdtharsis como purificacao relaciona-se, indissoluvelmente, a hamartia, que, por seu lado, pode ter assento _ na bybris, na aco excessiva. Esse feixe de significados nao se pode se ‘ perder de vista quando se lé uma tragédia. Ele esta sempreonde . © her6i esta e é sempre vivenciado pelos assistenres como forma de aprender sobre si mesmos € a propria comunidade. sia Sarena pee 4g CT ie. Bark ‘expandir esse assunto, hd um inceressante artigo de J. Vennant, Ocedipe sans complexe, in Mythe et tragédie en Grice ancienne, Paris, Maspero, 1972. ikea . ¢ Og “206 | Para nao ter ingenuamante uma tregedia grega £ & if es Bar o pee at teow s + Bey A épica e a lirica vistas pela tragédia 5 : ” % Enquanto género poético especifico, e quando comparada ‘ * outras expresses poétticas, a tragédia guarda, pelo menos; uma importante diferenga com a poesia lirica e épica, que pode auxiliar a compreensao do que seja 0 tragico. Do pon- to de vista do contetido poético, a poesia de Homero e a de Hesiodo demonstram a época da sociedade das fratrias, com seus mitos dos deuses e dos heréis, enquanto os poetas liricos.. como Arquiloco, Mimnermo, Safo e outros se inspiram nos © valores comportamentais dos homens das péleis, privilegiando a manifestacdo dos sentimentos e de seus significados, e nao suas aventuras, deixando a mostra uma compatacao entre os» atos valorados pelo civico e as emogées impulsionadoras de _ _- comportamentos mais proprios a cada um, quer singularmente, ~ quer enquanto totalidade humana. A morte, © amor, o prazer. - do vinho e dos amigos sao temas basicos na lirica) « O civico nem sempre estd em consonancia com os desejos © » mais intimos de uma pessoa, ea palavra “pessoa” exprime, aqui," aquele que se sabe diferente entre diferentes", mesmo que nao — WEP ST 19. Muitos intérpretes consideram possivel falar em “pessoa” na lirica, *, Mas ndo ainda em individuo. Outros acreditam que ha a individualidade emergente nesse periodo, tese particularmence aceita por B. Snell (cf. biblio- © grafia). Se a nogao de pessoa aproxima-se, hoje, da nocao de individuo, esta. 4, emerge na Modernidade fundada na significacao de “pessoa”, embrionaria _ © mente, Para Snell, na lirica ja € possivel detectar algumas das caracteristicas do que nomeamos “individuo”, isto é, do que diz respeito a pessoa como 3 Jugar de uma vontade minima expressa por uma parte de si mesma, ou de inima porque a totalidade onde se insere a pessoa é mais ampla ~ Que a possibilidade de fazer valer uma vontade livre, como hoje encendemos. ~ Nao se trata, portanco, da pessoa como “consciéncia de si” responsavel por « Seus atos, fundamento da propria vontade livre. A pessoa, apesar de saberse - diferente entre diferentes, tem dependéncia fundamental com 0 conjunto.. fm que vive, com a exterioridade. Ha uma interioridade nascente, porém nao apartada coralmente do politico. JA em Demécrito, na concepgio de drome; te i introduc go 2 tragédia e questao de métado | 20; the haja, ainda, plena consciéncia da propria individualidade e de sua extensdo como interioridade, como de fato nao ha. Nos fins do século VII a.C., a Grécia vivencia 0 inicio da formagio das poleis, com o gradual desaparecimento das fratrias, das antigas comunidades estruturadas como génos (tribo, grandes familias, fracrias). A lirica, nesse inicio, manifesta algo da forga do que ja podemos nomear, sem rigor, interioridade humana, isto é, adiferenciacao da pessoa como um ser que olha “para dentro” de Si, em suas possiveis partes diferenciadas. Essa expressdo poética pode focalizar em seus versos as proprias emogées, vasculhar parte dos mdbiles de nossas agdes, mesmo sem ter clareza quanto a uma unidade psiquica — ainda inexistente nos escritos da época —, como se pode depreender da leitura dos poemas liricos. Tal unidade da psyche, também ausente em Homeroe Hesiodo, surgira Mais tarde nos textos filos6ficos. Apesar do cuidado ao buscar os Cipos de emogées, descrevé-las e sobre elas cecer muitos comentanos, nada ha nos versos liricos essa forga esta expressa no modo de um ser indivisivel, nico (o écomo). Esse ser esta relacionado, todavia, 4 physis e depende dos outros atomos — e das articulagoes narurais ~ para a acracao ou repulsio entre eles mesmos (ndo hi, todavia, o pensamento sobre o tomo social moderno), Tal reflexdo atomista servird de amparo para a coneepyao moderna de individuo. Trata-se de uma questao nada simples, e no € caso de analisa-la aqui. Ha um recolhimento de textos efetuado por Jacqueline de Rossy (in Pacience, mon coeur, Paris, Belles Lettres) pelos quais ela procura demonstrar uma espécie de “redobro sobre si mesmo”, que assinalania uma espécie de “consciéncia interior” mas nao de uma independéncia da intimidade, que ja vé em Homero quando das palavras de Ulisses ao apontar para a vivéncia de seu proprio coragao como ourto ser que o habita (por exemplo, nos cantos XIX ¢ XX). Na obra Ja citada, B. Snell vé a emergéncia do individuo na lirica e na trageédia. E, no. Sntanto, um assunco longe de estar acordado entre os estudiosos classicos. Na andlise posterior que sera feita da tiayédia Medeia, tal questo reaparecerd, quando sera estudadaa Possibilidade dessa semente do individuo moderno ja > Ha tragédia, Acredito que, se ela emerge —- 0 que nao me parece —, isto seria Mats claro nas crayéedias que na lirica, principalmente em Euripides. 208 | Para nao ter ingenuamente uma tragedia grega que possa indicar a consciéncia de uma interioridade individua- lizada, dessa unidade psiquica que sera 0 solo da interioridade ~ como um saber sobre si que se separa da exterioridade, ao menos parcialmente. Claro esta que esse tema tem provocado muitas discusses entre os intérpretes e nada esta efetivamente assen- tado. Somence a filosofia no desenvolvimento de suas reflexdes éticas, politicas e epistemoldgicas tera a possibilidade de pensar e argumentar sobre uma interioridade unitdria, dando margem. ao nascimento do que sera nomeado, muito depois, “individuo”, Essa questao é relevante, pois, se aceitarmos que a lirica jé apre- senta a emergéncia de uma individualidade, os heréis tragicos poderao ser lidos como individuos que sabem de seus atos, sao responsdveis por eles e, portanto, podem ser “culpados” porque distanciados, de certo modo, da propria comunidade. Creio ser dificil fundamentar tal interpretagao, pois seu Pressuposto esta na aceitac4o da individualidade j4 no século da lirica e no das tragédias, e nao ha textos que assinalem com clareza essa pos- tura. Ha, no maximo, leves tracos do que, posteriormente, sera denominado interioridade, solo da autonomia, da autarquia. Esse leves tracos sao, certamente, as raizes da individualidade. Sabemos que, enquanto os liricos cantam as emogées e os valores vitais como o amor, a vida, a morte, a amizade, os épicos cantam os deuses e as figuras heroicas em suas aventuras, sem privilegiar as emocées; discorrem sobre os grandes feitos e valores dos melhores homens gregos, Os aristot, e sobre os deuses, seus Poderes e suas relacdes com os homens. Em Hesiodo, por exemplo, lemos sobre o extremo sofrimento a que o homem esta sujeito Porque é mortal, porque depende do trabalho, das estacées, da _ possivel decadéncia ciclica dos valores, como explicita na obra Os — trabalhos e os dias. No entanto, seu canto nada manifesta sobre as . €mogdes de cada um, seu teor, suas consequéncias, eas Peeocupar® | Seo poeta em descrever as agruras dos homens em sua insistente ; labuta pela vida. Ele canta os deuses, seus ane Sn e an 3 na Teogonia, enquanto Homero narra os combates dos gr: eles Introducao @ tragédia e questao de métadg | 209 herdis”, suas relagGes com os deuses, marcando a identidade da raga grega, detalhando ricamente as guerras e os valores que as Permeiam sem apontar para possiveis pensamentos e sentimentos recénditos dos herdis, a nado ser em algumas poucas Passagens, quando ele ajuiza sobre suas acdes”!, Por outro lado, o exemplo da poesia lirica de Safo, de extre- ma beleza, ensina sobre o sentir amoroso — 0 que nao se encontra em nenhum épico — sem no entanto indicar 0 campo da indi- vidualidade como sendo o recéndito, o intimo e consciente de cada um. O que se lé é bem mais a exposi¢ao de uma emo¢io sabidamente intangivel — o amor — e a possibilidade de essa emogao expressar-se no corpo e nas palavras, mesmo se aquele que sente amor se apresente enquanto um “eu-amoroso” diferente daquele “eu” que nada sente. Ela canta e descreve esse “aconte- cimento” que nao pode ser chamado, rigorosamente, de psiquico — porque nao se tem a unidade do ser Psiquico na lirica —, mas que é fisico-emocional-perceptivo, é um “estado”: Sim, isso me atordoa 0 coracao no peito: tao logo te olho, nenhuma voz me vem mas calada a lingua se quebra, leve sob a pele um fogo me corre, com os olhos nada vejo, sobrezumbem os ouvidos [...] mas tudo é ousavel e sofrivel??. 20. Note-se, contudo, que a lliada move-se ao redor da célera de Aquiles, © a Odissera a0 redor da asticia de Odisseu, © que merece estudo a parte. 21. Nesse ajutzamento, como nao ha uma unidade psiquica em Homero, © herdi usa de seu nosis, expresso de uma forca vital ajuizadora, organica, que todos os homens tém, como tém o thymés (o impeto “cardiaco”), o phrén {as percepgdes das membranas, das entranhas em todo 0 corpo). O noiis ndo tem lugar exato no texto homérico. 22. Ode, in Lyrica Grueca Selecta, Oxford, fragmento 199 (tradugio do Prof, Jaa Torrano). 210 | Para nao ler ingenuamente uma tragédia arega A diferenca entre a epopeia e a lirica é marcante quanto go contetido. Quanto a tragédia, ela tem seu pathos especifico recolhido pelo poeta: as acdes dos personagens fazem brotar as vivencias humanas em toda a sua poténcia e em toda a sua fragilidade, em todos os seus contrarios, quer pensados como impressivos, quer como expressivos. Foi essa exuberancia que transcendeu a propria data¢ao do tragico. No entanto, a tragédia afasta-se ¢ aproxima-se da épica e da lirica. Em que medida? Afastando-se do épico e lirico no contetdo e na forma, ao _ mesmo tempo em que se aproxima parcialmente deles, a tragédia fala no teatro circular e ao ar livre, de modo que sua expressdo se da de modo completo, e resgata a oralidade e a escrita do aedo arcaico e lirico. Permanece como uma forma de canto que pretende expressar os valores de um conjunto civico e seus feitos, como faz a épica; é também pessoal (no sentido anteriormente apontado) como a lirica, na medida em que pretende manifestar, através dos personagens, as emocdes que possivelmente est3o Presentificadas em cada um dos assistentes. E uma forma, por- tanto, que quer preservar na meméria grega os ritos miméticos comunitarios, quer manter 0 mito no teatro, e, a0 mesmo tempo, Ja evidencia a singularidade que persiste em cada cidadao que, enquanto cidadao, deixa & sombra partes de sua pessoa. E a Pessoa que a tragédia enderega as emocées, e é ao cidadao que expde os valores comuns em conflito nos personagens, Com a visio larga das encostas da Acrépole, e aproveitando- se da sonoridade privilegiada, toca as emocées e as lembrangas, delineia a propria cidadania e seus fundamentos, Apesar de expor-se a um conjunto de assistentes, o fato de alcancar valo- res em tensao nas falas dos personagens faz que alimente, em cada um, interroga¢des quanto as préprias acées e seus valores, Tais particularidades sustentam 0 pdthos tragico como um feixe de afeccdes e acontecimentos que fez que Aristételes conside- /fasse esse género 0 melhor, porque educativo Por exceléncia, Introdugaa a tragédia e quest3o de métoda | I comparativamente a comédia®’. Os trgicos no narram gs heroicos ao modo épico, como foi dito, que ademais todos og! gregos sabem de memoria e devem servir-lhes de Paradigma © para o agir. Utilizando-se desses feitos, acrescem-lhes, porém, as indecisdes, os erros, as angistias dos heréis memoraveig ” reverenciados pelo éthos da tradigo, j4 em conflito com,» ! ‘éthos que se estrutura no momento histérico das péleis. Estas . . transformaram alguns dos valores arraigados na mentalidade _ Stega desde a época das fratrias, que se mostram, agora, sem, © mesmo vigor de antes, dadas as novas necessidades de uma * inédita estrutura politica de sobrevivéncia. Essa problematica especifica — 0 conflito dos valores novos e dos mais antigos — recorrente nas pecas tragicas. : 2 5. Kétharsis ee Quando 0 poeta tragico humaniza os her6is, com isso aproxima- 7 os dos cidadaos presentes no teatro. Estes sentem, também, as | paixées ea fragilidade desses homens incomuns, ao verem expos- tos os mobiles de suas acées titubeantes ou excessivas como se BI fossem as préprias. Todavia, de um lado o poeta faz questao de! Sustentar os personagens distantes dos espectadores porque sio.- herdis lendarios, e nenhum cidadao é heréi; de outro, apresenta- 9s nessa humanizacao pelo viés passional e consegue a tensio s _ entre o imaginario do passado e o do presente, entre‘o que 0. . €idadao conhece como valor melhor no heréi paradigmaticoe — © que ele, enquanto pessoa, experimenta em sua vida cotidiana © ‘como problema. A tragédia langa as sementes no campo de um Saber nascente, um saber sobre o agir que, posteriormente, com “Aristételes, foi denominado “ética’ ER te sie As dores humanas, os erros e incertezas, bem como 4 arto gincia, a inveja, a vinganga, 0 medo, a piedade, a vergonha, as’ - expresses emocionais do ser vivo, enfim, estio presentes nas falas dos personagens. Enquanto assiste 4 encena¢ao tragica, . » ‘cada cidaddo movimenta seu pathos na direcio de uma hédtharsis, - t de uma purificagdo das emocées pelo “re-vivenciar através”, - ou seja, por um movimento perceptivo-emocional que ‘passa e ‘repassa valores e critérios durante todo o espetaculo; coteja-os, escolhe, volta atras, pondera. E esse o sentido de purificacdo. "© assistente esta exposto ao intenso. reconhecimento de sua |. identidade veiculada pelo éthos vigente, de modo perturbador, . k Nenhum condimento, no entanto —é preciso frisar —, do movimento purificatério no sentido de limpeza das proprias culpas (ou pecados), fixado pela tradicdo, que parece usar paras a catarse tragica um sentido ético propiciado pelo termo lati- no da medicina purgatio™. O purificatério tragico: é sagrado, S é educativo, ritualistico e civico. Ao mesmo tempo, é pessoal, — diz, respeito ao modo de sentir de cada um dos assistentes em: _ consonancia com o comunitario. Ele purifica no sentido de que, ao aproximar o homem da vivéncia de seus limites e deslimites, ~ Propicia-lhe a visio do sagrado interdito e do profano objeti- vados no teatro. Presenteia 0 assistente com a possibilidade de expandir seus julgamentos, sua capacidade de pensar sobre sua pessoa e suas relacdes com as outras pessoas. hs ee Sabe o espectador-participante que, como Edipo, também ele Pode tocar, ao menos potencialmente, o divino, ou estar aquém: dos animais. A catarse auxilia nesse conhecimento. O mesmo Sactificio carartico do bode mas comunidades primitivas -est4 24. Purgatio significa retirar algo doente, que precisa ser limpo, purifi- _ cado. Na ratte Oui técnica médica, um tipo ee procedimento, como ‘ é ito é um procedimento que retitaa mancha, No campo comercial, Peinmee ceeds de quitacdo de divida, por exemplo de retirada do que ¢ devido, aproximando-se do sentido médica... ne ‘ simbolizado na tragédia como revivescéncia potencializadora de - certas emocées de redengao; porém, se no antigo rito a redencig " &proveniente da retirada da mancha, na tragédia é 0 coroamento.. de um combate emotivo-teflexivo expresso em versos, ! ~. Ensina Ariscoteles que a tragédia é a imitacao de uma agio © "que nos traz experiéncias emocionais de tal vigor, que provos cam essa purificagao pela vivéncia delas (tén toiositén pathemdtin - * kdtharsin)*’, A kdtharsis tragica esta entranhada, portanto, no saber sobre a fraqueza e a forca humanas: por ela revivem-se as tensdes a mais dificeis a que se sujeita o homem, o que the da plena cons. — ciéncia da prépria fragilidade. Nem a épica, nem a lirica tém tal caracteristica. Todavia, se essa trilha catartica enfraquece aquele a que ja se vé tao fragil, também lhe da a abertura que o fortifica quanto a clareza de seu proprio motus. Por isso, a tragédia é um’ género o mais elevado. Trata-se de uma experiéncia emocional- perceptiva e ajuizadora préxima aos rituais religiosos, e quando- se entende katharsis como purifica¢4o no sentido assentado entre nés, de expurgo ou limpeza individualizados, nao se conserva‘ aprendizado que a tragédia quer veicular. x PE LY, A catarse na significagao que lhe deu o cristianismo, por. exemplo, mantém muitas das formas de culto ditas pagas, como » € 0 caso da crenga na purificacao pelo ritual da confissio, onde nao ha exatamente a repeticao das vivéncias emocionais, mas a descarga da culpa, uma vez que ja se tem, nessa época, a visi _» da propria interioridade como fonte parcial de responsabilidade s (pelo livre-arbitrio). Levando em conta que algo de purificatério todos os ritos sempre conservam, novos ricuais serao criados — _ na histéria para redimir as falhas humanas: utilizam-se ricuais Pata a purgacdo das dividas, institui-se o pagamento de dizimos, inauguram-se alguns momentos rituais dentro das institui- _, §6e8 civicas que sejam propicios ao homem para se purificar. " 25.4n Pottiea, 1449.27 _ 214 | Para nao jer ingenuamente uma tragédla grega '- © profano, pot Pateee ; Qs rituais, quaisquer que sejam suas formas e seus objetivos, propiciam ° moment catartico, Tais momentos sempre sio contemplados, sabiamente, pelas religides. Até mesmo a busca do saber, na filosofia, traz alguma espécie de purificagdo, de catarse, enquanto modo de ascese que repassa argumentos em direcio a algo novo. E algumas instituigées civicas apresentam- nos o poder de repetir normativamente o ritual sagrado, como é o caso do modo ritualistico de o aparelho judiciario exercer-se, com seus procedimentos fixos e hierarquicos. Mas nem sempre elas podem mostrar sua face educativa. Temos, assim, que o rito purificatério, em qualquer de suas figuracdes, é sempre contemplado nas religides, apesar de desprezado na vida civica moderna que, quer saiba, quer nao, ainda os mantém dentro de si. Pelo rito garante-se uma especie de “limpeza” dos erros, ou ameniza-se o sentimento do individuo quanto a sua “culpa interiorizada” — como é 0 caso do cristianismo em relacao aos pecados. Enquanto purificagao dos erros para aliviar as agruras de uma comunidade, nao ha como haver tangéncia do rito mitico arcaico com outros modos Tituais mais recentes, ou mesmo aquele de conotagio crista. A kdtharsis tragica nao pretende purgar a culpa de alguém, e o que nela ha de ritual catartico é civico-educativo e civico-religioso de uma sé vez. Nés, modernos, nao podemos alcangé-la em sua completude significativa, pois separamos 0 civico do religioso € este do educativo. Fundamentalmente formadora do espirito Srego, nao se espera que a tragédia, em seu movment carartico; venha a expressar qualquer tipo de redengao. Como foi dito, isto nao lhe cabe. A catarse nao redime, ela ensina, Lembremos que a palavra katharsis signi! fica, rigorosamente, limpeza — de katharés, limpo, puro, no sentido do que ee esta misturado a, como 0 joio ja separado do trigo. E purificagao necessaria em virtude do cont4gio impuro, de algo que se misturou ao que nao devia ser misturado — o sagrado com 1 exemplo. E 0 caso das mulheres no perfodo \ntrodugao 4 tragedia e questo de método | 21S menstrual, que para muitos povos antigos nao podem exercer © plantio pois misturariam 0 que nao pode ser misturado, Necessitam da kdtharsis posterior a esse periodo Para exercer seus trabalhos comunitarios; ou, ainda, ha a kdtharsis de uma habitag4o que se tornou impura por algum motivo e deve Passar por um ritual de purificagao. Sempre é mantido, nesses casos, 0 sentido da purgacao de um erro, de uma falha, contraido pela comunidade através de um de seus membros, nfo relacionado a culpa no sentido pessoal. No caso da encenacao tragica, adivinha-se que ha mistura de valores que se apresentam conflitivos nas acdes dos heréis, titubeantes quanto ao que desejam, ao que determinam os deuses € ao que eles mesmos se impdem como heréis e que a comuni- dade deles espera. Por estarem em situagdo de tensao de valores quanto ao agir, é necessario 0 ajuizamento diante dessa falta de clareza, dessa mistura de tendéncias que devem estar manifestas claramente para que a acao se efetive de modo excelente. Os textos tragicos oferecem a necessidade da ponderacao antes do agir, sendo exatamente esse o ensinamento principal que o final da situa¢do catartica anuncia: 0 Passar e repassar a questao que apanha © herdi (e os cidadaos) na rede dos acontecimentos e que nao se apresenta pura, nao se da de modo claro, sem mistura. Bem ao contrario. Assim, podemos dizer que a encenacao tragica é, também, uma catarse ético-politica que a cidade faz, expandindo a vivéncia de si mesma e de suas potencialidades. 5. Dioniso na pdlis dos concursos Aristételes’”*, como foi dito, é uma das fontes mais importantes € mais proximas da cradigdo cragica. Segundo ele, a tragédia 26. In Poética, 1449 a, 11, 216 | Para pao ier ingenuarnente uma tragedia 9fega “A ae . * & i Z ? |. yem' dos que conduziam o ditirambo, as vezes para Dioniso, é . gnas nem sempre. Para a danca dos seguidores-satiros, sem bom f . sitmo, a tragédia utiliza para a criacdo dos seus versos aharmo- . nia da métrica jambica. Essa métrica éa mais adequada a forma - dialogada. Quanto ao som que acompanha a movimentacao dos personagens, a tragédia prefere a monotonia do ditirambo, o '> . que demonstra outra de suas caracteristicas diferenciadoras em |) “relago aos outros géneros poéticos (0 épico eo lirico)... «5 _ Sea procissao satirica nas ruas mostra a danga e 0 som mo- : ‘noténico e ruidoso dos instrumentos, a tragédia sustenta os - gestos cénicos e o ritmo cadenciado do ditirambo, aliados as Palavras dialogadas. O ditirambo, as procissées e os sacrificios ’ fituais sio mimetizados no palco, e no uso de uma coreografia minima dos atores mascarados as Possiveis emogées so indica= ; das pela entonacio das falas, uma vez que as mascaras, sendo- Sempre vazias quanto as expressdes, nada podem sinalizar sem. a manifestacao corporal e a forga da voz do ator. eps O cidaddo grego tem a Procissdo de mascaras sob seus fF olhos, 0 drama no centro do teatro, que, necessariamente; ele | @sSocia em seu imagindrio ao hierés”, ao lugar sagrado do trono do sacerdote dos antigos ritos. Arcaicamente — ou seria melhor dizet arquetipicamente? — havia a articulacao das mais primiti- vas festas dionisiacas, quando 0 sacrificio de um bode era um _ Momento ritual entre outros rituais realmente efetivados, como. ~ (" j4 foi apontado. Para J.-P.Vernant®, um refinado estudioso da _ (s tragédia, ela “é a cidade que faz reatro”. Segundo esse autor, no ‘ Xe ee EA Che i 27, Hier’s tem uma significaco mais primitiva que o sagrado. L. Genwey : “Uleginie grec dans la religion, cap. 1) afirma que hieros, antes um substantivo que Um adjetivo, é o lugar que indica © sagrado, isto é, 0 sancudrio, e somente | "Com 0 tempo torna-se um adjetivo, Para E. Benveniste, hierds é primeiramente adjetivo; indica rapidex, ligeiresa, forya, vivacidade (maiores detalhes em Le 2, Mocabulasre des instinuinons mulo-européennes, Paris, Minuit, v. U), ’ ey . 28, In Mito ragédia If, Séo Paulo, Brasiliense, p. 24. 4503 y apie shes ze #8

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