0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 303 visualizações12 páginas31 - Paulo Herkenhoff - Brasil Brasis PDF
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu,
reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF ou leia on-line no Scribd
BRASIL/BRASIS
Paulo Herkenhoff
HA um Brasil. Ha muitos Brasis. Ha dois Brasis.
E nesse territério — UNITARIO e mil-ti-plo — que se faz(em) uma/ varias
arte(s), Un “Brasil” acaba sendo um ponto de vista, do qual se olha o mundo.
“Antes de os portugueses terem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descober-
toa felicidade” (Oswald de Andrade, 1928). A cultura que se faria no Brasil —
veremos — seria obra de artistas antropdfagos,
Nada mais simples que explicar 0 Brasil (ou talvez mais complexe).
Quase como uma tautologia, pode-se dizer que o Brasil existe porque ha no
Brasil um certo desejo de Brasil, como se unificado por alguma dimensio
consensual desse pais miltiplo, Talvez por isso, no catalogo da mostra
“Information” no MOMA em 1970 (mas também porque era o apogeu da
ditadura militar de 1964), nao havia no comportamento de artistas de alta
envergadura uma necessidade de representar o Brasil (simbélica ou ins-
titucionalmente), como declararam, I Iélio Oiticica (“Fam not here representing
Brazil; or representing anything else”) ¢ Cildo Meireles ¢“Tam here, in this exhibition, to
defend neither career nor any nationality”). E por ai que a escritora Clarice Lispector,
numa crénica, escreve “I belong to Brazil in the sense that I am Brazilian”, Nisso,
Lispector quase se inscreve naquela categoria de “explicadores do Brasil”
(Sérgio Buarque de Holanda, Lévi-Strauss ou Gilberto Preyre, e, na mitsi-
ca, Cactano Veloso). Ja se disse que 0 Brasil adquire coesio através da lin
gua, da religido, da psicologia social ou da capacidade de miscigenagao do
colonizador portugués, da misica ou até mesmo do futebol.A moeda é um
espaco de coesao social com o qual trabalharam os artistas Cildo Mcireles
(operando no proprio sistema de circulag3o como um circuito ideolégico),
Waltercio Caldas e Jac Leirner (numa séric, a artista joga com a homofonia
das palavras“cem” = 100 e“sem” = falta, despossuido), Meireles criou uma
cédula de Zero Cruzeiro (entio o padrdo monetério do Brasil), ostentando
imagens de um indio ¢ de um interno em hospital psiquidtrico naqueles
espagos onde as cédulas exibem imagens de reis, presidentes ¢ herdis. Reu-
nindo 0 Blogiod loucura de Erasmo € 0 elogio ao bom selvagem de J. J. Rousseau,
359,
adMeireles fala de um grau zero da razao, que no Brasil sao também grupos
aos quais a sociedade parece negar qualquer valor.
Em 1924, 0 poeta Oswald de Andrade afirmava-se “contra a copia, pela
invengio e pela surpresa”, A arte brasileira talvez seja como 0 brasileiro é:
Macunaima (o personagem do romance raps6dico de Mario de Andrade), isto
6, talvez seja daquela classe dos herdis sem nenhum caréter, que aqui diriamos
ser uma forma criticamente problematizadora de discutir sua especificidade a
partir do grau zero da formacio de sua identidade cultural. Num jogo de
palayras cm que o dilema shakespeareano se confunde com o nome de im-
portante grupo indigena do Brasil, Oswald de Andrade declara sinteticamen-
te cm scu Manifesto de 1928: “So a antropofagia nos unc. Socialmente, Eco-
nomicamente, Filosoficamente. Tupi, or not tupi, that is the question”.
Hg nuitos Brasis, © Brasil & um pais de telespectadores analfabetos. O Brasil
inventa a discus
foi discutida em 1966 pelo critico Mario Pedrosa, com motivos, argumentos,
substrates filos6ficos semelhantes aos que ocupariam o pensamento europeu
io © o termo “arte pds-moderna” (a condigao pos-moderna
enorte-americano nos anos 1970 ¢ 1980). Pedrosa, no Rio de Janeiro, falava
no gueto — isso equivale a dizer que nao falava para o mundo, Estranhamente,
0 Brasil inicia e supera a discussao sobre o pés-moderno antes da Europa, mas
sobretudo antes que vastos
modernidade com a alfabetizagio.
egmentos de sua populagao atingissem a
Ha uma arte implicita do “Brasil, pais do futuro”. E uma arte de desenga-
nos, O século XX viu distintos fluxos da arte que traziam certa crenga no
progresso e antecipagao do futuro, Necessidade de realizagio quase messianica
do mito e das promessas de futuro: Futurismo, Descnvolvimentismo, Pri-
meiro Mundismo. A etapa inicial do Modernismo nesses trépicos, scm uma
adequada compreensio do programa dos movimentos europeus, ingenuamente
se autoproclamava “futurista” (enquanto em Buenos Aires, Borges ja falava da
inaclequagao desse movimento como modelo). Nos dois Brasis, 0 pals que
experimentava uma incipiente industrializagao ameacava o pais rural com
promessas estéticas e taticas de choque futurista ¢ escindalos dadafstas. E do
fundo do mato-virgem que nasce a Antropofagia, ndo como dieta alimentar
ou compensagio por falta de proteinas, mas como programa de absor¢ao ten-
sae criativa dos valores do Outro transformada em cnergia prépria, confron-
tada com os valores proprios e fundida em linguagem, O nosso futuro — ea
360 Arte contemporanca brasileiraidentidade que se constitufa simbolicamente — implicava inventar um passado
proprio que se projetasse na cultura, A maquina de guerra futurista se trans-
formava em tacape tapuia.
Depois, na Guerra Fria, 0 desenvolvimentismo tornou-se a nova promessa,
contraposta as investidas da utopia socialista. Nelson Rockefeller versus Stalin:
Bienal de Sdo Paulo e Museus de Arte Moderna no Rio e Sao Paulo (com pr
senga de obras de Pollock ou Rothko, {cones de individualidade em arte) versus
programas do partido comunista (como os Clubes de Gravura). Bauhaus e Ulm
ofereciam o modelo estético para a sociedade que prometia realizar uma
modernidade, A abstragao gcométrica, mais para o cilculo da arte conercta de
Max Bill do que os riscos ¢ sonhos da pequena utopia gréfica soviética, via Mé-
xico, Na justa medida e pressa, construiu-se Brasilia, a cidade ideal. O urbanis
mo ¢ a arquitetura monumental erigiriam a cidade justa, piedosa crenga no
estilo moderno como argamassa da utopia social. Haveria esperanga porque a
cidade cra moderna. FE 0 paradoxo de uma cidade nova sem arte abstrata ou
construtiva, por gosto de seu arquiteto, O Brasil vive novas dimensdes da rela-
Gao espago/ tempo. A aceleragao do tempo (a industrializagao e 0 Plano de Me-
tas do governo Juscelino Kubitschek: crescer cingiienta anos em cinco) ¢ o ores
cimento sem limite (“Sio Paulo nio pode parar” e a marcha brasileira para 0
Oeste com Brasilia). Nesse quadro, a crise do Coneretismo e sua solugo em
Neoconcretismo revelam os limites do modelo estético “progressista”, que 0
gramsciano Waldemar Cordeiro havia se dedicado a construir.
Com grande preciso, Barrio compreendeu que os materiais condi
cionavam a linguagem dos artistas dos paises mais pobres, Em manifesto, pro-
pSe um novo yocabulario de materiais (lixo, dejetos do corpo ete.) que pos-
sibilitasse potente expresso. Em plena ditadura, fez trouxas ensangiientadas,
que ambiguamente se pareciam com corpos mutilados, e as distribuiu em
lugares ermos, disparando reagies populares. Hoje, como ¢ tipico dos pafses
do'lerceiro Mundo ou de uma arte que busca pairar sobre as tensdes do teci-
do social, o ufanismo neoliberal proclama a realizagao de “padrécs do Primeiro
Mundo”, espelho ¢ rapido substituto do “Brasil Grande” da ditadura de 1964.
Arte, metas do governo ou discurso da publicidade convergem para o mesmo
simulacro. Agora, uma simples afluéncia, revelada no uso suntudrio dos ma-
teriais, csconde uma certa academia de materismos e¢ gestos simulando a
melancélica realizagao do programa estético de Greenberg.
Brasil/Brasis 361