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Tese

1. A tese examina a persistência do sincretismo no Serviço Social brasileiro após as reformas entre 1960-1980. 2. Ela analisa especificamente a vertente "Intenção de Ruptura" e sua interlocução com a teoria marxista. 3. A pesquisa estuda a tese do sincretismo de José Paulo Netto para analisar a reposição do sincretismo entre as vertentes da renovação profissional.

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1. A tese examina a persistência do sincretismo no Serviço Social brasileiro após as reformas entre 1960-1980. 2. Ela analisa especificamente a vertente "Intenção de Ruptura" e sua interlocução com a teoria marxista. 3. A pesquisa estuda a tese do sincretismo de José Paulo Netto para analisar a reposição do sincretismo entre as vertentes da renovação profissional.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS


ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

ESTRUTURA SINCRÉTICA DO SERVIÇO SOCIAL E


INTENÇÃO DE RUPTURA

Lúcia Maria da Silva Soares

Rio de Janeiro

2018
Lúcia Maria da Silva Soares

Estrutura Sincrética do Serviço Social e Intenção de


Ruptura

Tese de Doutorado, apresentada ao


Programa de Pós-Graduação da Escola
de Serviço Social do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Profª.Dra. Mavi Pacheco
Rodrigues

Rio de Janeiro
2018
Estrutura Sincrética do Serviço Social e Intenção de
Ruptura

Lúcia Maria da Silva Soares

Orientadora: Profª Dra. Mavi Pacheco Rodrigues

Tese de Doutorado submetida ao Programa de


Pós-graduação da Escola de Serviço Social do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Doutora em Serviço Social.

Aprovada em:

______________________________________
Presidente, Profª Dra. Mavi Pacheco Rodrigues

______________________________________
Prof. Dr. Luis Eduardo Acosta Acosta

______________________________________
Prof. Dr. Marcelo Braz Moraes dos Reis

______________________________________
Prof. Dr. Maurílio Castro de Matos

______________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Silva Lima
À minha mãe Zilma Valle da Silva, grande mulher trabalhadora,

que vibrou tão amorosamente para a conclusão deste doutorado

e que me ensinou desde muito cedo que a vida é luta com hombridade.
AGRADECIMENTOS

À minha companheira Fernanda Callado, pela partilha honrada e cotidiana de todas


as batalhas e sonhos da vida com tanto amor e cuidado.

Às minhas irmãs Patrícia Carneiro, Érika Schreider, Cláudia Fanelli, Jurema Pereira,
Valéria Bicudo e Camila Brandão e ao meu irmão Guilherme Almeida, pela amizade
em toda a sua substância bela e verdadeira.

À Sueli Nascimento, amiga que a turma de doutorado trouxe para uma troca bonita
na vida.

À Vanessa Coutinho, Maria Aché, Gabriel Sodré e Cristiane Gerolis, pela presença
luminosa essencial neste período.

Aos meus colegas do Departamento de Serviço Social de Niterói da Universidade


Federal Fluminense que aprovaram a licença fundamental para a concretização
deste estudo. A minha gratidão especial a Júlia de Paula, Luiz Marcos, Ana Cristina
Oliveira, Tathiana Gomes, Marcela Soares, Eliane Guimarães e Jacqueline Botelho
neste caminho trilhado.

À minha orientadora, Mavi Rodrigues, que me aceitou como sua primeira orientanda
de doutorado e me presenteou com uma dedicação repleta de brilho e
generosidade.

Aos integrantes do grupo de estudos do projeto de pesquisa integrada Capitalismo,


Sincretismo e Serviço Social ligado ao Núcleo de Pesquisa e Estudos Marxistas
(NEPEM) da Escola de Serviço Social da UFRJ que contribuíram para o despertar
da minha reflexão teórica. O meu agradecimento à Juliana Nascimento, pela doce
reciprocidade.

Aos colegas que compuseram as bancas constituintes do transcurso do doutorado


Marcelo Braz, Rodrigo Lima e Luís Acosta, pelas considerações de excelência e não
menos solidárias à minha produção.
Aos estudantes e assistentes sociais com os quais atuei, refleti e aprendi nesta
trajetória de quase vinte anos de docência. Fica a certeza de que sozinhos não
amadurecemos tampouco vamos bem a lugar nenhum.

À Abigail Gomes, pela competente e indispensável revisão ortográfica e normativa


de trabalhos acadêmicos nesta tese.
RESUMO

SOARES, Lúcia. Estrutura sincrética do Serviço Social e Intenção de Ruptura.


Rio de Janeiro, 2018. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Escola de Serviço
Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018

A tese examina a persistência do sincretismo no Serviço Social brasileiro após a


renovação profissional entre os anos 1960 e 1980, particularmente na trajetória da
vertente de Intenção de Ruptura. Esta deu início a uma interlocução com a tradição
marxista, fundamental ao enfrentamento do conservadorismo na reflexão teórica e
na ação dos assistentes sociais. Através de uma pesquisa bibliográfica e
documental, estudou-se a polêmica e ainda pouco estudada tese do sincretismo do
professor José Paulo Netto, exposta em sua obra Capitalismo Monopolista e Serviço
Social, mais exatamente suas considerações sobre o sincretismo da prática e suas
derivações ideológica e científica. A partir de uma análise da era dos monopólios,
inclusive de sua configuração contemporânea no mundo e no país, debruçou-se
sobre a reposição do sincretismo entre as vertentes da renovação profissional.
Nomeadas por Netto como Perspectiva Modernizadora, Renovação do
Conservadorismo, destaca-se neste estudo a Intenção de Ruptura, aquela que
cravou uma representação teórico-crítica alternativa a uma visão endógena e
tradicionalista da profissão por meio da construção do projeto ético-político. A
investigação revelou que se a profissão no Brasil logrou avanços inegáveis através
da consolidação da Intenção de Ruptura – na organização política da categoria, nos
parâmetros jurídico-profissionais e na produção de conhecimento –, o combate ao
conservadorismo não foi encerrado, tampouco houve a ultrapassagem dos
sincretismos ideológico e científico e de seu decorrente ecletismo. Observou-se
também que a combinação entre o passado profissional não ultrapassado por
completo e o caráter regressivo do desenvolvimento das forças produtivas na etapa
atual do capitalismo monopolista avolumam os desafios para os assistentes sociais
ao recrudescer o sincretismo da prática do Serviço Social. Tal cenário abala da
mesma forma as defesas edificadas pelas entidades representativas para
salvaguardar uma direção social estratégica na formação e no exercício
profissionais, direção esta que é colidente com os interesses do grande capital e
que tensiona a estrutura sincrética da profissão. O estudo assinala que os temas do
sincretismo e do seu decorrente ecletismo permanecem sendo úteis à reflexão
teórica acerca da natureza da profissão.

Palavras-chave: Capitalismo. Sincretismo. Serviço Social. Intenção de Ruptura.


Projeto ético-político.
ABSTRACT

SOARES, Lúcia. Syncretic structure of Social Service and Rupture Intension.


Rio de Janeiro 2018. Thesis (PHD in Social Service) – Social Service School,
Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

The thesis examines the persistence of syncretism in Brazilian Social Service after
the professional renovation between 1960’s and 1980’s, specifically in the trajectory
of Intension of Rupture strand. This strand has started an interlocution with Marxist
tradition, essential to facing the conservatism in theoretic reflexion and in Social
Assistants actuation. Using a bibliographical and documental research, the polemic
and still little studied José Paulo Netto syncretism thesis was studied, the one which
was exposed in his work untitled Monopolist Capitalism and Social Service, more
exactly his considerations about the syncretism in practice and its ideological and
scientific derivations. Starting from an analysis of the age of monopolies, including
about its contemporary configuration in world and in Brazil, the present study
dedicated attention to the reposition of syncretism among professional renovation
strands. Some strands were named by Netto as Modernizing Perspective and
Conservatism Renovation; however, the highlighted strand in his study was Rupture
Intension, the one which has firmed an alternative theoretic-critical representation
opposite to an endogenous and traditionalist view about the profession, through the
construction of the ethic-political project. The investigation has showed that the
profession in Brazil has undoubtedly advanced with the consolidation of Rupture
Intension – in category political organization, in juridical and professional standards,
in knowledge production as well –, the fight against conservatism was not ended,
neither there was an overcome of ideological and scientific syncretism and its
consequent eclecticism. It was also observed that the combination between the non-
totally overcome professional past and the regressive character of producing forces
development in the nowadays monopolist capitalism has increased the challenges to
Social Assistants while rebounding the syncretism in Social Service practice. Such
scenery affects the defences built by representative entities to save a strategic social
direction in professional formation and exercise, direction which is conflicting to the
great capital interests and which tensions the syncretic structure of the profession.
The study shows that the themes of syncretism and its consequent eclecticism are
still useful to theoretic reflection about the nature of the profession.
Key words: Capitalism; Syncretism; Social Service; Rupture Intension; Ethic-Political
Project.
RÉSUMÉ

SOARES, Lúcia. La Structure syncrétique du Service Social et l'Intention de


Rupture. Rio de Janeiro, 2018. Thèse (Doctorat en Service Social) – École de
Service Social, Université Fédérale de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018

La thèse examine la persistance du syncrétisme dans le Service Social brésilien


après la rénovation professionnel au cours des années 1960 et 1980,
particulièrement dans la trajectoire du volet de l’Intention de Rupture. Cela avait
ouvert une interlocution avec la tradition marxiste, fondamentale pour faire face au
conservatisme dans la réflexion théorique et dans l’action des assistants sociaux. En
utilisant une recherche bibliographique et documentaire, l’encore peu étudiée et
polémique thèse de syncrétisme de José Paulo Netto a été examinée, celle qui a été
exposée dans son travail intitulé Capitalisme Monopoliste et Service Social, plus
exactement ses considérations sur le syncrétisme en pratique et ses dérivations
idéologiques et scientifiques. À partir d’une analyse de l'ère des monopoles, y
compris sa configuration contemporaine dans le monde y au Brésil, la présente
étude a consacré attention au remplacement du syncrétisme entre les volets de la
rénovation professionnel. Nommés par Netto comme Perspective Modernisatrice,
Rénovation du Conservatisme, dans cette étude se démarque l’Intention de Rupture,
celle qui a affermi une représentation théorique-critique alternative à une vision
endogène et traditionaliste de la profession à l’aide de la construction du projet
éthico-politique. La recherche a révélé que si la profession au Brésil a réussi
indéniable progrès grâce à l’Intention de Rupture - dans l'organisation politique de la
catégorie, dans les paramètres juridiques-professionnels et dans la production de
connaissances -, la lutte contre le conservatisme n'a pas été fini, non plus il y avait le
dépassement des syncrétismes idéologique et scientifique et son éclectisme
conséquent. Il a aussi été observé que la combinaison entre le passé professionnel
qui n’est pas complètement dépassé et le caractère régressif du développement des
forces productives dans l’actuelle étape du capitalisme monopoliste a augmenté les
défis pour les assistants sociaux tandis que le syncrétisme dans la pratique du
service social prit de l’ampleur. Tel contexte ébranle également les défenses
construites par entités représentatives pour sauvegarder une direction social
stratégique dans la formation et dans l'exercice professionnels, direction qui est en
conflit avec le grand capital et qui met la structure syncrétique de la profession sur
tension. L'étude montre que les thèmes du syncrétisme et de l'éclectisme qui en
résulte restent utiles pour une réflexion théorique sur la nature de la profession.

Mots-clés: Capitalisme. Syncrétisme. Service Social. Intention de Rupture. Projet


éthico-politique.
Sumário
CAPÍTULO 1 – CAPITALISMO, SINCRETISMO E SERVIÇO SOCIAL ................... 14

1.1. Capitalismo Monopolista: as características principais da idade madura do


modo de produção capitalista.................................................................................... 15

1.2. Redimensionamento do papel Estado na era monopolista e a emergência do


Serviço Social............................................................................................................ 29

1.3. Capitalismo contemporâneo, formação social brasileira e intensificação do


sincretismo ................................................................................................................ 41

CAPÍTULO 2 – A ESTRUTURA SINCRÉTICA DO SERVIÇO SOCIAL: O


SIGNIFICADO DO SINCRETISMO DA PRÁTICA .................................................... 57

2.1. “Questão social” ........................................................................................ 60

2.2. Cotidiano ................................................................................................... 65

2.3. Manipulação de variáveis empíricas ......................................................... 72

2.4. O sincretismo da prática indiferenciada e suas derivações ideológica e ......

científica .................................................................................................................... 79

CAPÍTULO 3 – RENOVAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO E


SINCRETISMO ......................................................................................................... 99

3.1. Crise do Serviço Social tradicional e renovação profissional ........................... 100

3.2. A presença do sincretismo nas distintas perspectivas da Renovação no Brasil


................................................................................................................................ 113

4.1. Indícios da presença do sincretismo na produção teórica da Intenção de Ruptura


nos anos 1980 e 1990 ............................................................................................. 132

4.2. A guinada do projeto ético-político profissional ................................................ 150

4.3. Desafios do Serviço Social contemporâneo e sincretismo ............................... 164

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 176

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 181


9

INTRODUÇÃO

A presente tese intitulada Estrutura sincrética do Serviço Social e Intenção de


Ruptura dedica-se à análise da persistência do sincretismo na profissão após seu
contato com a tradição marxista, que levou à consolidação de um projeto profissional
de enfrentamento à influência do conservadorismo no discurso e na ação dos
assistentes sociais. Desta forma, através de uma pesquisa bibliográfica e
documental, buscou-se efetuar um balanço da vertente crítica partícipe da
renovação do Serviço Social e conhecida como Intenção de Ruptura pelo prisma da
tese do sincretismo do professor José Paulo Netto. Afinal, foi esta direção da
renovação profissional brasileira entre os anos 1960 e 1980, sob a ditadura do
grande capital, que cravou uma auto-compreensão profissional mais enriquecida do
ponto de vista do lugar do Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho e
das transformações gerais do capitalismo, isto é, uma representação teórico-crítica
alternativa a uma visão endógena e tradicionalista da profissão.

O alcance de tal objeto de investigação contou com um processo de


maturação derivado das orientações com a professora Mavi Rodrigues e da nossa
participação no grupo de estudos do projeto de pesquisa integrada Capitalismo,
Sincretismo e Serviço Social ligado ao Núcleo de Pesquisa e Estudos Marxistas
(NEPEM) da Escola de Serviço Social da UFRJ. Na verdade, quando da seleção
para o doutorado do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da referida
escola em 2012, inquietava-nos o motivo pelo qual os avanços na superação do
Serviço Social tradicional obtidos pelo projeto ético-político profissional, sob
inspiração na tradição marxista, não asseguravam clareza entre os próprios
assistentes sociais do que consistiam suas competências e atribuições privativas
nos espaços ocupacionais. Tal curiosidade emergiu no período de militância
profissional na diretoria do CRESS-7ª região, entre os anos de 2005 e 2011, quando
tivemos contato com distintas compreensões de Serviço Social no interior da
categoria profissional e também acompanhamos o enfrentamento do Conjunto
CFESS/CRESS contra o “Serviço Social clínico” sob um cenário nacional
recalcitrante de confusão entre a profissão, a política de assistência social e o
assistencialismo. A experiência docente desde o ano de 1999, sobretudo na
10

supervisão acadêmica em interação com colegas supervisores de campo,


evidentemente fortaleceu tal preocupação intelectual.

Foram as experiências acima citadas que oportunizaram uma


problematização teórica mais aprofundada desta curiosidade inicial, o que permitiu
identificar a tese do sincretismo do professor José Paulo Netto como eixo
fundamental para iluminar a inespecificidade operatória do Serviço Social que
angustia os assistentes sociais sobre seu papel técnico em todo o percurso da
profissionalização. Já no decurso da pesquisa, constatamos que a nossa
preocupação intelectual de partida com a efetividade das competências e atribuições
no cotidiano da atuação profissional, se desprovida dos elementos da tese da
estrutura sincrética, podia nos levar a uma visão meramente legalista acerca da
definição das mesmas, como se estas fossem resultantes apenas das disputas
legais e não dependessem de um intrincado “jogo” político que abrange a relação
das entidades representativas, porta-vozes da direção estratégica do Serviço Social,
com os assistentes sociais e outras categorias na disputa pelo mercado de trabalho.
Ademais, à época, nutríamos uma leitura simplória de que bastava a formação
adequada sobre as competências e atribuições privativas, assumida pela
universidade e pelas entidades representativas, para que os assistentes sociais se
assegurassem sobre seu papel profissional.

Considerando o título da tese – Estrutura sincrética do Serviço Social e


Intenção de Ruptura – e ante a bagagem do debruço teórico trilhado, é importante
frisar que, na nossa ótica, a ruptura com o conservadorismo não se consumou,
apesar do empenho consistente das vanguardas do projeto ético-político – como a
constância dos sincretismos ideológico e teórico e do ecletismo, durante e após o
processo de renovação da profissão no país, atestam. Ao mesmo tempo, é
imprescindível salientar que o sincretismo só pôde ser desvelado na medida em que
se aprofundou o conhecimento quanto ao fenômeno da reificação no capitalismo e
esta possibilidade, diga-se de passagem, foi garantida pelas iniciativas da Intenção
de Ruptura em sua aproximação com a tradição marxista.

A tese do sincretismo do professor José Paulo Netto - complexa, controversa


e não raro pouco conhecida e rejeitada, donde vale recuperar a leitura da professora
Marilda Iamamoto que a concebeu fatalista em relação às possibilidades
11

profissionais1 – tem sido examinada por uma nova geração de doutores em Serviço
Social e, provavelmente, este fato corresponda à sua reposição na realidade
concreta contemporânea, que irrompe no sincretismo da prática do Serviço Social.
Afinal, do ângulo de seus determinantes externos, hoje assistimos e sofremos a
cronificação da “questão social”, a tomada do cotidiano pela mercantilização irrestrita
e, finalmente, a deterioração da “manipulação das variáveis empíricas num contexto
determinado” em operações cada vez mais emergenciais.

Apesar de todos os limites que qualquer produção contém e aqui não seria
diferente, o caminho trilhado na investigação foi no sentido de uma aproximação
inicial à tese em questão, o que nos presenteou com uma visão de conjunto do
Serviço Social que não tínhamos até então. O resultado deste caminho está exposto
em quatro capítulos – Capitalismo, sincretismo e Serviço Social; A estrutura
sincrética do Serviço Social: o significado do sincretismo da prática; Renovação do
Serviço Social brasileiro e sincretismo e A presença do sincretismo na Intenção de
Ruptura.

No primeiro capítulo, estudam-se os traços da era dos monopólios que


determinaram a gênese do Serviço Social, considerando nesta reflexão, sobretudo,
as modificações na funcionalidade do Estado levadas a cabo nesta etapa de
desenvolvimento do modo de produção capitalista e, também, os vetores atinentes a
esta, que delineiam a estrutura sincrética da profissão. O capitalismo
contemporâneo, terceira fase do capitalismo monopolista, é igualmente retratado,
assim como a inserção periférica brasileira de longa data que acaba por apresentar
uma nova “conciliação pelo alto” entre as elites, após treze anos de administração
petista, em favor da acumulação do capital.

O capítulo 2, por sua vez, expõe os determinantes históricos do sincretismo


da prática inerente à profissão - a saber: “questão social”; cotidiano e “manipulação
de variáveis empíricas num contexto determinado” - que revelam tanto o lugar
intricado destinado a ela na divisão social e técnica do trabalho quanto os dilemas
práticos recorrentes nos distintos espaços ocupacionais. Em linhas mais gerais, as
derivações ideológica e teórica do sincretismo da prática também são examinadas.

1 Ver estas considerações no capítulo 3 de Iamamoto (2008) quando a autora versa sobre a tese do
sincretismo e da prática indiferenciada.
12

No terceiro capítulo, buscou-se identificar a reposição do sincretismo nas


diferentes direções da renovação profissional no Brasil, constituídas por diferentes
compreensões de sociedade e de Serviço Social, a começar pela subsunção do
tradicional ao moderno, cometida pela vertente da Perspectiva Modernizadora, e
incluindo o ecletismo particular da Reatualização do Conservadorismo, além do
primeiro momento da perspectiva de Intenção de Ruptura, quando da sua emersão
no “Método BH”.

Finalmente, o capítulo 4 pretendeu problematizar a persistência do


sincretismo após o processo de renovação do Serviço Social, particularmente no
complexo percurso da vertente da Intenção de Ruptura que ergueu, na virada da
década de 1970 para a década de 1980, o projeto ético-político, num esforço de
atualizar a tese do sincretismo formulada por Netto.

Vale dizer que a hipótese nutrida no início da investigação era de que o


sincretismo não compunha a estrutura do Serviço Social apenas até os anos 1960,
período limite considerado por Netto em sua análise da questão 2 e criticado por
Iamamoto como indicamos no capítulo 2. Contudo, nos faltava à ocasião um
domínio da tese do professor José Paulo Netto para ir além desta conjectura. O
crescimento teórico alcançado no desenvolvimento desta tese foi determinante para
que adquiríssemos uma visão bem mais enriquecida e ampliada da trajetória do
Serviço Social brasileiro, dos dilemas por ele enfrentados na sua instrumentalidade
e, sobretudo, da influência concreta do processo histórico sobre sua cultura
profissional. Seguramente, a presente tese contribuiu de modo especial para nossa
qualificação docente, uma vez que, ao produzi-la, tivemos a oportunidade (bastante
prazerosa apesar da “pressão” advinda dos prazos) de nos dedicar integralmente -
pela primeira vez desde a graduação - aos estudos e de amadurecer nosso ponto
de vista sobre a profissão que escolhemos para exercer.

2 Na apresentação de Capitalismo Monopolista e Serviço Social, primeira parte de sua tese de


doutorado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-São Paulo,
o autor esclarece que o objetivo dela era “fornecer um quadro da constituição do Serviço Social tal
como a profissão se articulou ‘tradicionalmente’ – ou seja, até os anos sessenta [grifo do autor].
Tratava-se de esboçar o tecido histórico-social e econômico no interior do qual se plasmou o Serviço
Social e, ao mesmo tempo, de identificar os substratos ídeo-culturais que se prestaram à sua
conformação, procurando reconstruir aquela configuração teórico-prática que, ao partir de meados da
década de sessenta, seria redefinida em todas as latitudes por um amplo movimento de contestação
e renovação” (NETTO, 2006, p.13).
13

É fundamental registrar que foi indispensável, para a conclusão do doutorado,


a aprovação de uma licença de dois anos junto ao Departamento de Serviço Social
de Niterói da UFF, onde atuamos como assistente social docente. As contribuições
da professora Mavi Rodrigues - que nos orientou tão firme e generosamente - e dos
professores Marcelo Braz, Rodrigo Lima e Luís Acosta também foram
imprescindíveis para o alargamento da nossa leitura sobre o tema estudado.
14

CAPÍTULO 1 – CAPITALISMO, SINCRETISMO E SERVIÇO SOCIAL

Dado que a presente tese busca analisar a persistência do sincretismo no


Serviço Social brasileiro após a sua renovação, mais precisamente ao longo da
trajetória da vertente conhecida como Intenção de Ruptura, é fundamental iniciar
nossa exposição aclarando a respeito da tese do professor José Paulo Netto que
afirma a estrutura sincrética da profissão. De acordo com o referido autor, tal
estrutura se expressa no Serviço Social em três níveis interligados: sincretismo da
prática, sincretismo científico e sincretismo ideológico, sendo o primeiro
determinante dos outros dois, considerando-se o lugar reservado à profissão pela
divisão social e técnica do trabalho. Como veremos mais à frente, o raciocínio de
Netto situa que este lugar do exercício profissional do assistente social, subalterno,
inespecífico e polivalente, é marcado externamente pela “questão social”, pelo
cotidiano e pela forma característica assumida pela atividade profissional,
denominada pelo autor como “manipulação de variáveis empíricas de um contexto
determinado”.

O autor assevera que, desde a sua emergência sob o capitalismo


monopolista, o exercício profissional do assistente social corrobora para a
manutenção da agudização das manifestações da “questão social”, visto que as
políticas sociais burguesas “não podem” ter como finalidade resolvê-las. Isto é, no
âmbito de sua intervenção, cujo papel é difuso em sintonia com seus condicionantes
externos já mencionados, este profissional atinge no máximo uma racionalização de
recursos e esforços voltados para o enfrentamento da “questão social”, o que
configura uma atuação bem próxima daquela típica de suas protoformas.

Ainda, para Netto, o exercício profissional sincrético, bastante identificado


com a ideia de “pronto socorro social” em que o assistente social “faz de tudo um
pouco” à luz de atribuições imprecisas, cria “elaborações formais abstratas”
igualmente sincréticas, ou seja, “contamina mediatamente os parâmetros teóricos e
culturais que o referenciam” (NETTO, 2006a, p.107). Em outras palavras, o
sincretismo da prática do Serviço Social se reflete nos seus sincretismo científico e
sincretismo ideológico.
15

Importa logo destacar aqui que, embora reconheça a magnitude das


formulações de Netto sobre a presença dos sincretismos científico e ideológico na
cultura profissional, a professora Marilda Villela Iamamoto em seu livro Serviço
Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social
critica a tese do ‘sincretismo da prática indiferenciada’, considerando-a insuficiente
do ponto de vista teórico-metodológico, uma vez que, de acordo com sua ótica, para
sua elaboração Netto não investigou o significado histórico do Serviço Social para
além das armadilhas da reificação. Trataremos desta divergência importante com
mais acuidade ao longo do texto.

O primeiro capítulo ora apresentado se dedica a estudar os traços da era dos


monopólios que determinaram a gênese do Serviço Social, considerando nesta
reflexão, sobretudo, as modificações na funcionalidade do Estado levadas a cabo
nesta etapa de desenvolvimento do modo de produção capitalista e, também, os
vetores atinentes a esta que delineiam a estrutura sincrética da profissão. São
também retratadas as nuances do capitalismo contemporâneo, terceira fase do
capitalismo monopolista, e a inserção periférica brasileira de longa data que acaba
de apresentar uma nova “conciliação pelo alto” entre as elites, após treze anos de
administração petista, em favor da acumulação do capital.

1.1. Capitalismo Monopolista: as características principais da idade madura do


modo de produção capitalista

Para além da constatação dos fatores que estabelecem a estrutura sincrética


do Serviço Social levantados por Netto, a saber: a “questão social”, o cotidiano e a
“manipulação de variáveis empíricas”3, faz-se mister resgatar as determinações
gerais do surgimento da profissão quando da era dos monopólios para uma
apreensão ampliada do processo histórico que levou ao seu desenvolvimento. Por
isso, primeiramente, trataremos do cerne do capitalismo como sistema econômico e
social e, em seguida, discorreremos sobre o erguimento de sua etapa monopolista
ancorada numa intervenção estatal inédita em relação à produção e à acumulação.

3
Discorreremos com mais profundidade sobre estes três fatores na seção 1.3 deste capítulo.
16

É sabido que o capitalismo diz respeito à ordem social engendrada pela


burguesia que, além de ser “a mais desenvolvida e diversificada organização
histórica da produção”4, produz uma individualidade particular em relação às
sociedades anteriores5, calcada num desenvolvimento universal dos sujeitos6,
contudo, com subordinação da produtividade social a uma troca global de atividades
e produtos onde o valor de troca7 das mercadorias transforma o poder pessoal em
poder coisificado:

Na relação monetária, no sistema de trocas desenvolvido (e essa aparência


seduz a democracia), são de fato rompidos, dilacerados, os laços de
dependência pessoal, as diferenças de sangue, as diferenças de cultura etc.
(todos os laços pessoais aparecem ao menos como relações pessoais); e
os indivíduos parecem independentes (essa independência que, aliás, não
passa de mera ilusão e, mais justamente, significa apatia – no sentido de
indiferença), livres para colidirem uns contra os outros e, nessa liberdade,
trocar; mas assim parecem apenas para aquele que abstrai das condições,
das condições de existência sob as quais esses indivíduos entram em
contato (e essas [condições], por sua vez, são independentes dos
indivíduos e aparecem, apesar de geradas pela sociedade, como condições
naturais, i.e., incontroláveis pelos indivíduos). (MARX, 2011, p.111).

Como a riqueza das sociedades onde vigora o modo de produção capitalista


emerge tal qual um grande acervo de mercadorias, de acordo com Marx (2013), o
cunho fetichista da mercadoria individual consiste na chave para desvelamento do
conjunto dessas novas relações sociais “coisificadas”, que é marcado pela
reificação8 e inaugura a positividade burguesa9:

4
Cf. Marx (2011, p.58).
5
Marx menciona os tipos de comunidade que conectavam os indivíduos uns aos outros antes do
amadurecimento da sociedade burguesa: relação patriarcal, comunidade antiga, feudalismo e sistema
corporativo (MARX, 2011, p.105-106).
6
Por desenvolvimento universal dos indivíduos, Marx se refere ao ineditismo do sistema social
capitalista, quando as necessidades podem se multiplicar e as capacidades podem ser ampliar dado,
sobretudo, o nível que alcança a força produtiva do trabalho neste momento histórico.
Aliás, no capítulo A mercadoria d´O capital, Marx expõe o seguinte sobre esta: “A força produtiva do
trabalho é determinada por meio de circunstâncias diversas, entre outras pelo grau médio de
habilidade dos trabalhadores, o nível de desenvolvimento da ciência e sua aplicabilidade tecnológica,
a combinação social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as
condições naturais” (MARX, 1996, p.169).
7
Numa produção mercantil avançada, o valor de troca de uma mercadoria expressa a quantidade de
tempo de trabalho socialmente necessário despendido na sua produção (NETTO e BRAZ, 2008).
8
Conforme Netto (1981, p.80), a reificação, posta pelo fetichismo, significa “a estrutura específica
[grifo do autor] da alienação que se engendra na sociedade burguesa constituída”. Vale, então,
iluminar o que este autor compreende por fetichismo e alienação, problemáticas correlatas à
problemática da reificação em sua perspectiva. Primeiramente, fetichismo consiste em mecanismo
próprio da produção mercantil que converte relações sociais entre pessoas em relações sociais entre
17

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente


no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como
propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social entre objetos, existente à margem dos produtores. É por meio
desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias,
coisas sensíveis, suprassensíveis ou sociais. A impressão luminosa de uma
coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo
subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa
que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um
objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se
de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a
relação do valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não
guardam, ao contrário, absolutamente nenhuma relação com sua natureza
física e com as relações materiais [dinglichen] que derivam desta última. É
apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui
assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.
Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na
região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano
parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam
relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no
mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de
fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são
produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de
mercadorias (MARX, 2013, p.147/148).

Com o avanço deste processo social de produção e reprodução -


fundamentado numa divisão de trabalho rigorosa que separa mãos de cérebros 10 e
voltado para o atendimento irrestrito ao mercado -, amadurece uma racionalidade

coisas, ou melhor, que converte relação social em relação objetual (idem, p.41-42). Alienação, por
sua vez e nas palavras do autor, refere-se ao “complexo simultaneamente de causalidades e
resultantes histórico-sociais, desenvolve-se quando os agentes sociais particulares não conseguem
discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo e o efeito da sua ação e intervenção; assim,
aquelas formas e, no limite, a sua própria motivação à ação aparecem-lhes como alheias e
estranhas” (idem, p.74).
9
Em sua obra Capitalismo e reificação, Netto esclarece que: “O vinco negativo do contraditório é
apagado neste modo de aparição do ser social: todas as suas manifestações são duras e opacas –
impõem-se pela aparente ausência de qualquer vestígio, de qualquer indício de negatividade. Tudo é
liso e raso, tudo aponta para uma só direção (ou falta de). O que se manifesta é a pura positividade.”
[grifo do autor] (idem, p.85). Mais à frente, o autor arremata sobre o assunto: “A positividade surge,
assim, como o padrão geral de emergência do ser social na sociedade burguesa constituída, como a
estrutura global da reificação. Mantê-la é a condição essencial para que os agentes sociais
particulares vivam o conjunto de reificações como se este fora a forma pela qual a objetivação
humana se realiza” (idem, p.87).
10 Referimo-nos à separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, um dos aspectos centrais

desta nova divisão de trabalho. Coutinho (2010, p.35) afirma o seguinte sobre a mesma: “A divisão
capitalista do trabalho é essencialmente contraditória. Assim, ao lado da contradição entre liberação
do trabalho e transformação do trabalhador em mercadoria, desenvolve-se também a contradição –
essencial ao modo de produção capitalista – entre socialização do trabalho e apropriação individual
dos seus produtos. Essas contradições – que representavam um estímulo ao progresso teórico na
fase ascendente do pensamento burguês – passam, no período de decadência, a constituírem um
limite intransponível à apreensão da verdade objetiva”.
18

manipulatória e instrumental dominante11 cuja expressão cabal encontra-se no


pensamento conservador e nos seus expoentes racionalistas formais – positivismo,
estruturalismo – e irracionalistas como o existencialismo12. Coutinho (2010)
ressalva, contudo, que o corte entre essência (´práxis criadora´) e existência (´vida
social´) dos homens, efetivado por esta ordem social, não advém exclusivamente de
uma intenção de classe, justifica-se principalmente pela lógica econômica capitalista
calcada exatamente na fetichização do real e, por consequência, no afastamento
entre indivíduo e comunidade13.

Ainda a respeito do cerne do capitalismo, faz-se mister salientar que sua


produção, sob um determinado processo de trabalho14, depende de uma relação de
exploração – do capital sobre o trabalho - para que se obtenha mais-valia15, fonte da
acumulação de capital propriamente dita. De acordo com Netto e Braz (2008,

11
Ao aprofundar a análise sobre o problema da razão na filosofia capitalista, Coutinho (2010, p.22)
assevera que a partir do momento que a burguesia se torna classe conservadora, sendo
emblemáticas para esta constatação histórica as revoluções proletárias na Europa entre 1830 e 1848,
“a razão é encarada com um ceticismo cada vez maior, ou renegada como instrumento de
conhecimento ou limitada a esferas progressivamente menores ou menos significativas da realidade”.
Sendo assim, progressivamente, segundo o autor, os três eixos fundamentais do pensamento
burguês revolucionário – humanismo, historicismo concreto e razão dialética – são substituídos: “Em
lugar do humanismo, surge ou um individualismo exacerbado que nega a sociabilidade do homem, ou
a afirmação de que o homem é uma ‘coisa’, ambas as posições levando a uma negação do momento
(relativamente) criador da práxis humana; em lugar do historicismo, surge uma pseudo-historicidade
subjetivista e abstrata, ou uma apologia da positividade, ambas transformando a história real (o
processo do surgimento do novo) em algo ‘superficial’ ou irracional; em lugar da razão dialética, que
afirma a cognoscibilidade da essência contraditória do real, vemos o nascimento de um irracionalismo
fundado na intuição arbitrária, ou um profundo agnosticismo decorrente da limitação da racionalidade
às suas formas puramente intelectivas (idem, p.30/31). Guerra (1997 e 2009) acrescenta que a
racionalidade instrumental imposta pelo capitalismo em progresso impede a compreensão da
ontologia do ser social. Conforme a autora, tal racionalidade é formal-abstrata e esta, além de fissurar
a unidade existente entre economia, política, filosofia, cultura etc., naturaliza a sociedade e, por
conseguinte, a possibilidade de os sujeitos alterarem a realidade.
12
Coutinho (2010) afirma que tanto a ´miséria da razão´ - termo criado pelo próprio autor para
designar o racionalismo formal - quanto a ´destruição da razão´ - termo utilizado por Lukács para se
referir ao irracionalismo - não vão além da simples descrição da imediaticidade, sendo, portanto,
incapazes de alcançar a essência do objeto.
13
Obviamente, isto restringe significativamente a apreensão da relação entre sujeito e objeto no
âmbito do conhecimento (GUERRA, 1997 e 2009).
14
Todo e qualquer processo de trabalho sob o capitalismo engloba três aspectos essenciais que
constituem juntos as forças produtivas: meios de trabalho (terra; instrumentos, instalações etc.),
objetos de trabalho (matérias-primas) e força de trabalho (energia física e mental humana utilizada
para criar valor e bens). É importante ressaltar que o processo de trabalho se submete às relações
técnicas e sociais de produção vigentes. (NETTO e BRAZ, 2008).
15
Ela diz respeito ao “valor produzido pelo trabalhador que é apropriado pelo capitalista sem que um
equivalente seja dado em troca” (BOTTOMORE, 2001, p.227). Se considerarmos a composição
orgânica do capital, ou seja, a relação entre capital constante (valor gasto com meios de produção e
transferido para o produto durante o processo de trabalho) e capital variável (valor gasto inicialmente
com a aquisição da força de trabalho que depois se torna valor excedente criado por ela durante a
produção), a mais-valia se refere à diferença entre esses dois valores. Ela é, em outras palavras, o
lucro do capitalista (NETTO e BRAZ, 2008; BOTTOMORE, 2001).
19

p.125), a acumulação de capital se dá por meio de uma reprodução ampliada assim


descrita:

Nela, apenas uma parte da mais-valia apropriada pelo capitalista é


empregada para cobrir gastos pessoais; outra parte é reconvertida em
capital, isto é, utilizada para ampliar a escala da sua produção de
mercadorias (aquisição de máquinas novas, contratação de mais força de
trabalho etc).

Neste raciocínio, sob a ótica do capital e tendo em conta que o lucro é o


grande intento da sua produção, conclui-se que “quanto maior a exploração da força
de trabalho, maior será a mais-valia e a acumulação” (NETTO E BRAZ, 2008,
p.127). Do lado do trabalho, é indispensável observar que o curso da acumulação
de capital produz um exército industrial de reserva 16, uma vez que o capital
constante vai se tornando bem maior do que o capital variável. Há que se prevenir,
entretanto, contra a conclusão fácil de que a introdução de tecnologias e o
desenvolvimento das forças produtivas acarretem o desemprego estrutural.
Segundo Netto e Braz (2008, p.134), a questão é mais intricada:

Como assinalaram Salama e Valier (1975:86-89), a demanda de força de


trabalho pelos capitalistas aumenta ou diminui conforme o nível da
acumulação; o que se pode afirmar é que, sendo a taxa de acumulação
inferior à taxa de crescimento da produtividade do trabalho, a demanda de
força de trabalho cairá. Numa palavra, o desemprego em massa não
resulta do desenvolvimento das forças produtivas [grifo dos autores],
mas sim do desenvolvimento das forças produtivas sob as relações
sociais de produção capitalistas [grifo dos autores].

16
É a reserva de força de trabalho desempregada e parcialmente empregada produzida e
reproduzida pela acumulação do capital. Além de pressionar os salários “para baixo”, o exército
industrial de reserva disponibiliza ao capital quantidade de força de trabalho que pode ser recrutada a
qualquer momento, em qualquer lugar e por curto espaço de tempo (BRAZ E NETTO, 2008).
Bottomore (2001, p.144) complementa que: “Quaisquer que fossem suas fronteiras históricas, o
sistema capitalista sempre criou e manteve um exército industrial de reserva. O capitalismo moderno
expandiu-se por todo o mundo, e o mesmo acontece com o seu exército industrial de reserva. As
massas famintas do Terceiro Mundo, a importação e a subsequente expulsão de ´trabalhadores
imigrados´ pelos países industrializados e a fuga do capital para as regiões onde são baixos os
salários são simplesmente manifestações desse fato”.
20

Considerando que o desemprego é apenas uma das manifestações da


“questão social”17, é imprescindível constatar que os efeitos nefastos da acumulação
capitalista sobre os trabalhadores superam-no em larga escala. Já que a lei geral
desta acumulação impõe o crescimento simultâneo e proporcional da riqueza e da
pobreza, verifica-se que desigualdade de toda ordem é fruto evidente desta
sociedade.

Os germes do modo de produção capitalista emergiram ainda na idade


feudal, com a acumulação primitiva entre fins do século XV e meados do século
XVIII, dividindo dois tipos de possuidores de mercadorias: de um lado os detentores
do dinheiro, dos meios de produção e dos meios de subsistência e, de outro, os
trabalhadores vendedores de sua força de trabalho. O capitalismo comercial ou
mercantil, primeiro momento da história do capitalismo, se desenvolveu a partir
desta “polarização do mercado”, nas palavras de Marx, quando a burguesia assume
as principais atividades econômicas em choque com as regalias da nobreza
fundiária. É deste período, portanto, a impressionante expansão marítima rumo ao
Oriente e às Américas gerida pelos mercadores da Península Ibérica (quando já se
verificava a materialização do desenvolvimento capitalista por meios bárbaros) bem
como o fervilhamento das revoluções burguesas na Europa e além-mar, a exemplo
da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Americana de 1776. O capitalismo
concorrencial ou clássico, por sua vez, é identificado entre a oitava metade do
século XVIII e o último terço do século XIX na Europa Ocidental já com a grande
indústria bem desenvolvida e através da criação de um mercado mundial. É nesta
fase do sistema que as lutas de classes ganham corpo e profundidade política até
que em 1848 ocorrem transformações de grande envergadura histórica: o
proletariado empreende várias revoluções democrático-populares na Europa
Ocidental e Central, tornando-se “classe para si”, uma vez que bem consciente da
subsunção do trabalho ao capital, enquanto a burguesia converte-se em classe
dominante, negando a herança ilustrada (e, portanto, ideais emancipadores) que
reivindicava anteriormente e passando para um novo período de decadência
ideológica (NETTO e BRAZ, 2008; HOBSBAWN, 1977 e 1982).

17 Ocupar-nos-emos mais a frente desta categoria indispensável à compreensão da profissão.


21

Foi durante a etapa concorrencial do sistema, mais exatamente por volta dos
anos 1840, que a generalização ímpar da produção de mercadorias, da propriedade
privada e da concorrência capitalista se deu sob uma determinada atuação estatal:

Como essas relações de troca em geral foram internalizadas pelos


produtores diretos, especialmente no período do capitalismo ascendente,
quanto mais desimpedidas a dominação econômica e a expansão do
capital, tanto mais a burguesia poderia abster-se do uso direto da coerção
das armas contra a classe operária e tanto era possível reduzir o poder do
Estado às funções mínimas de segurança (MANDEL, 1982, p.336).

Este cenário logo se altera uma vez que, conforme Sweezy (1983, p.198), “a
luta da concorrência é, assim, um agente de centralização” do capital 18. Em outras
palavras, quanto mais o processo de acumulação progredia com a finalidade de
multiplicação dos lucros19, mais a corrida entre os capitalistas se acirrava e mais os
capitais tendiam a se conglomerar sob o comando de um número cada vez menor
de proprietários. Nas disputas de mercado por meio do barateamento das
mercadorias, as empresas mais competitivas venciam suas concorrentes mais
fracas.

No desenvolvimento de seu raciocínio, o mesmo autor pontua que são três as


fundamentais implicações da centralização e, em menor escala, da concentração de
capital. Primeiramente, a centralização de capital conduz à socialização e
racionalização do processo de trabalho com novas combinações sociais e
administração científica. Em segundo lugar, ela leva ao aligeiramento das inovações
técnicas por conta do aumento dos efeitos da acumulação, liberando trabalho vivo.
Em terceiro e último lugar, ela acarreta a substituição gradativa da concorrência
entre vasto número de produtores pelo controle monopolista de mercado.

18
Sweezy (1983, p.197) destaca que a noção de centralização do capital difere da concentração e da
acumulação de capital: “Se os capitalistas individualmente acumulam, de forma a aumentar a
quantidade de capital controlada por cada um isoladamente, isso possibilita uma escala de produção
maior. Marx denomina esse processo de ´concentração de capital’. A concentração nesse sentido é
companheira normal da acumulação e obviamente não pode ocorrer sem ela. A recíproca, porém,
não é necessariamente verdadeira, pois é possível imaginar a acumulação ao mesmo tempo que os
capitais individuais diminuem de volume, talvez devido a repetidas subdivisões entre seus herdeiros”.
19
Como vimos há pouco em Netto e Braz (2008), a acumulação se refere ao reinvestimento
permanente da mais valia na produção, consistindo no tipo histórico específico da produção
capitalista conforme Sweezy (1983). Ademais, sua dinâmica impacta progressivamente a
composição orgânica do capital, em que o capital constante (edifícios, maquinaria e matéria prima)
tende a crescer em detrimento do capital variável (gastos com a compra da força de trabalho).
22

Bem antes de Sweezy, Lenin (2012, p.44) já lembrava a afirmação marxiana


de que a livre concorrência leva à concentração da produção e, consequentemente,
à constituição de monopólios. O autor clássico resume assim a evolução destes:

1)De 1860 a 1870, o grau superior, o ápice de desenvolvimento da livre


concorrência. Os monopólios não constituem mais do que germes quase
imperceptíveis; 2) depois da crise de 1873, longo período de
desenvolvimento dos cartéis, que ainda constituem apenas uma exceção,
ainda não sólidos, representando somente um fenômeno passageiro; 3) auge
de fins do século XIX e crise de 1900 a 1903: os cartéis passam a ser uma
das bases de toda a vida econômica. O capitalismo se transformou em
imperialismo.

Com base em exemplos históricos concretos de sua época, Lenin discute que
os grandes monopólios capitalistas crescem e se sustentam na junção dos capitais
industrial e bancário20, abrindo caminho irreversível para o capital financeiro21 e sua
oligarquia cujos rendimentos se apresentam cada vez mais ´lícitos e ilícitos´ e cujas
relações demonstram íntimas imbricações com o governo.

O capitalismo monopolista se refere exatamente a este novo estágio


imperialista do modo de produção em questão que, segundo Netto (2006a, p.19):

(...) recoloca, em patamar mais alto, o sistema totalizante de contradições


que confere à ordem burguesa os seus traços basilares de exploração,
alienação e transitoriedade histórica, todos eles desvelados pela crítica
marxiana. Repondo estes caracteres em nível econômico-social e histórico-

20
Lenin (2012, p.55) salientou que não era possível tratar da força dos monopólios sem o
entendimento da função primordial dos bancos, estes intermediários de pagamentos que se
transformam em “monopolistas onipotentes que dispõem de quase todo o capital-dinheiro do conjunto
dos capitalistas e de pequenos patrões, bem como da maior parte dos meios de produção e das
fontes de matérias-primas de um ou de muitos países”. Sweezy ressalta a importância dos bancos na
formação das sociedades anônimas e na fusão de empresas e confirma a influência ofensiva sobre
as políticas destas no sentido da eliminação da concorrência.
21
Faz-se mister aqui destacar as chamadas “sociedades anônimas” dentro do processo de
desenvolvimento do capitalismo monopolista. Para Sweezy, à luz de Marx, estas são as sociedades
por ações, meios cruciais de centralização de capital, cujo traço mais relevante é exatamente a
ruptura da vinculação entre a propriedade do capital e a direção da produção. Daí a emergência do
mercado de ações que se torna imperioso para garantia do destino da empresa em que se investiram
recursos. O autor detalha mais: “Quanto mais perfeito for o mercado de ações, tanto menos o
acionista se parece com o antiquado capitalista e administrador e tanto mais com o realizador de
empréstimos que pode recuperar imediatamente seu dinheiro. Sempre permanece, porém, uma
diferença, ou seja, a de que o acionista corre um risco maior de perda do que o emprestador puro e
simples e portanto a sua participação nos lucros deve ser maior do que os juros sobre o dinheiro,
através de um prêmio do risco variável. Com essa ressalva, a transformação do acionista de
capitalista industrial que recebe lucro num capitalista financeiro que recebe juros está, em princípio,
completa” (SWEEZY, 1983, p.200).
23

político distinto, porém, a idade do monopólio altera significativamente a


dinâmica inteira da sociedade burguesa: ao mesmo tempo em que potencia
as contradições fundamentais do capitalismo já explicitadas no estágio
concorrencial e as combina com novas contradições e antagonismos,
deflagra complexos processos que jogam no sentido de contrarrestar a
ponderação dos vetores negativos e críticos que detona.

Considerando tal particularidade da etapa mais madura do modo de produção


capitalista, faz-se mister recuperar as cinco características principais do
imperialismo levantadas por Lenin (2012, p.124):

1) a concentração da produção e do capital alcançou um grau tão elevado


de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um
papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o
capital industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro”, da
oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da
exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente
grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de
capitalistas, que partilham o mundo entre si; 5) conclusão da partilha
territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.

Sweezy (1983), por sua vez, afirma que o capital monopolista demonstra a
sua maturidade quando combinações22 se constituem com a finalidade expressa de
aumentar os lucros através do domínio da concorrência. O autor menciona os tipos
de fusões que se desenvolveram: “acordo tácito”, pool, cartel, truste e fusão
completa23. Nesta disputa encarniçada, “é necessária a transferência ou limitação da
independência de ação das empresas participantes, e sua coordenação sob uma
política unificada e definida”24 . Haja vista este novo panorama do modo de

22
Para Lenin (2012, p.39), por exemplo, combinação é “a reunião numa só empresa de diferentes
ramos da indústria que ou representam fases sucessivas da elaboração de uma matéria prima (por
exemplo, a fundição do minério de ferro, a transformação do ferro fundido em aço e, em certos casos,
a produção de determinados artigos de aço), ou desempenham papel auxiliar uns em relação aos
outros (por exemplo, a utilização dos resíduos ou dos produtos secundários, a produção de
embalagens etc.)”.
23
De acordo com o autor, “acordo tácito” corresponde a uma articulação de política comum entre os
concorrentes, sem qualquer compromisso de obrigação sobre quaisquer das partes. O pool envolve
distribuição dos negócios conforme decisão dos participantes e o cartel depende de uma comissão
“com a incumbência de fixar preços e quotas de produção, e o poder de punir os violadores com
multas ou outras sanções” (SWEEZY, 1983, p.204). No truste, por sua vez, “os donos de uma maioria
de ações de várias sociedades anônimas independentes passam suas ações para um grupo de
depositários, em troca de um certificado de depósito. Os depositários administram as companhias e
os portadores dos certificados recebem os dividendos. Dessa forma, a unificação completa de
políticas das companhias é realizada, ao passo que a identidade legal e comercial dos seus
constituintes não é prejudicada, como no cartel” (idem). No caso da fusão completa, cria-se uma
completa unidade orgânica sob um comando único. Uma grande empresa pode absorver menores ou
todas as empresas antigas podem desaparecer em prol de uma empresa maior.
24
ibid., p.203.
24

produção, não à toa Lenin levantava a tendência do monopólio para estagnação e


para decomposição ou parasitismo. Isto é, a fixação de preços pelos monopólios
contém o avanço do progresso técnico temporária e artificialmente. Contudo, a
eliminação definitiva ou por intervalo longo da concorrência no mercado
internacional não é compatível com a lógica de funcionamento do sistema. Por isso,
Lenin acrescenta:

Naturalmente, a possibilidade de diminuir os custos de produção e aumentar


os lucros, implantando aperfeiçoamentos técnicos, age em favor das
modificações. Mas a tendência para a estagnação e para a decomposição,
inerente ao monopólio, continua por sua vez a operar, e há períodos em que
consegue se impor em certos ramos da indústria e em certos países
(LENIN, 2012, p.138).

Netto (2006a, p.22-23) chama a atenção para dois elementos principais da


monopolização: a supercapitalização, ou seja, o fenômeno do aumento vertiginoso
de capitais excedentes com dificuldade de valorização a julgar pela tendência
descendente da taxa média de lucro25, e, exatamente, o parasitismo da vida social
decorrente da direção econômica assumida pela oligarquia financeira:

Trata-se de um parasitismo que deve ser tomado por dois ângulos. Por um,
ao engendrar a oligarquia financeira (Lênin, 1977, I:610 e ss.) e ao divorciar
a propriedade da gestão dos grupos monopolistas, o capitalismo
monopolista traz à tona a natureza parasitária da burguesia; por outro lado,
e só parcialmente em relação à “queima” do excedente acima mencionada,
a monopolização dá corpo a uma generalizada burocratização da vida
social, multiplicando ao extremo não só as atividades improdutivas stricto
sensu, mas todo um largo espectro de operações que, no “setor terciário”,
tão-somente, vinculam-se a formas de conservação e/ou de legitimação do
próprio monopólio.

25
Para Baran e Sweezy (1982, p.13), “el excedente económico, para definirlo brevemente, es la
diferencia entre lo que uma sociedad producey los costos de esta producción. La magnitud del
excedente es un índice de productividad y de riqueza, de la libertad que tiene una sociedade para
alcanzar las metas que se ha fijado a sí misma. La composición del excedente muestra como hace
uso de esta libertad: cuánto invierte en ampliar su capacidad productiva, cuánto consume em
diversas formas, cuánto desperdicia y de qué manera.” Segundo Netto (2006a, p.22), o fenômeno do
aumento vertiginoso de capitais excedentes é combatido pelo sistema por meio de estratégias: “As
dificuldades progressivas para a valorização são contornadas por inúmeros mecanismos, nenhum
dos quais apto para dar uma solução à supercapitalização: de um lado, a emergência da indústria
bélica, que se converte em ingrediente central da dinâmica imperialista; de outro, a contínua
migração dos capitais excedentes por cima dos marcos estatais e nacionais; e, enfim, a “queima” do
excedente em atividades que não criam valor(...)”. Quanto a esta última, Baran e Sweezy (1982) a
identificam como a estratégia da campanha de vendas incrementada pela publicidade e seu impacto
decisivo sobre a economia.
25

Braverman (1987) acrescenta a esta reflexão de Netto ao elucidar que o


capitalismo monopolista subordina o indivíduo, a família e as necessidades sociais
ao mercado, remodelando-os para servirem às requisições do capital. Este processo
é concretizado em primeiro lugar através da subordinação de toda a produção de
bens sob forma de mercadoria. Depois, através da subordinação de uma série de
serviços, também os convertendo em mercadorias. Finalmente, conforme o autor,
verifica-se a criação sistemática de novos produtos e serviços – o autor denomina
este fenômeno de “ciclo de produto” - que causa tanta dependência no cotidiano que
sem eles os sujeitos parecem abster-se da vida social. Deste modo, o mercado dita
cada vez mais as relações sociais, oferecendo um rol tão diversificado, interligado e
necessário de bens e serviços que parece favorecer a liberdade dos sujeitos
quando, na verdade, estes se tornam cada vez mais isolados e distantes uns dos
outros.

Na medida em que o capitalismo monopolista se solidifica, Braverman


salienta que a empresa capitalista se modifica radicalmente. Conforme seu
pensamento, se antes esta se limitava pela fortuna pessoal e pela capacidade de
gerenciamento do capitalista, agora estes limites são superados já que a empresa
desfaz o vínculo entre capital e proprietário individual. Dá-se a institucionalização
do capital e a empresa moderna cresce em razão de três fatores centrais: do
mercadejamento, da nova estrutura de gerência implantada e da função de
coordenação social assumida pela mesma. Em relação ao primeiro, o autor frisa que
se verifica o aumento da política de indução sobre a demanda de produtos na
direção da eliminação da incerteza. Quanto ao segundo, constata-se uma
importante modificação administrativa caracterizada pelo desmembramento de
papéis da chefia da empresa entre gerentes, assistentes de gerentes, supervisores
etc. que controlam, em divisão de autoridade, a organização dos trabalhadores. O
terceiro e último aspecto se refere ao enorme poder das empresas, grandes
empregadoras de força de trabalho, no que tange ao planejamento social. Isto é,
uma vez que as decisões de investimento em seu planejamento interno impactam
objetivamente a vida dos sujeitos, elas se tornam de fato coordenadoras da
sociedade e não os governos.
26

Uma outra característica marcante da nova fase capitalista, de acordo com


Lenin, é a exportação de capitais no lugar das mercadorias que eram exportadas no
período concorrencial anterior. Para Sweezy (1983), o capitalismo concorrencial
vigorou durante “aproximadamente as sete primeiras décadas do século XIX” e,
neste período, a exportação de capitais mostrava-se ainda incipiente porque o veloz
crescimento demográfico e o progresso da industrialização favoreciam a
acumulação internamente para aqueles países com desenvolvimento capitalista
estável. Depois, com o desenvolvimento do sistema pela economia mundial afora,
os movimentos de capital suplantaram as meras trocas de mercadorias numa
complexificação crescente do intercâmbio econômico universal.

Baran (1986, p.114) tratou deste modo quanto às exportações de capitais


durante o capitalismo monopolista:

A firma monopolista e oligopolista, que opera em condições de rápida


diminuição de custos, anseia mais que sua predecessora competitiva por
expandir suas vendas no exterior. De fato, mesmo que os preços vigentes
no mercado externo sejam inferiores aos do mercado nacional, ela pode
julgar lucrativo aumentar suas exportações e efetuar uma discriminação de
preços, desde que essas reduções discriminatórias não venham a afetar
sua posição no mercado nacional. Encontrando-se também empenhada na
produção em série e sendo uma compradora em grande escala de
matérias-primas, ela precisa ter interesse, não apenas ocasional, na oferta e
no preço das importações que podem ser indispensáveis à condução de
seu negócio. Ela deve procurar conservar e desenvolver fontes estrangeiras
de suprimento e se esforçar em assegurar, tanto quanto possível, uma
posição monopolista com a ajuda de investimentos nos “países de produção
primária” – investimentos que pode realizar rapidamente dadas as enormes
quantidades de capital à sua disposição.

Este processo de internacionalização de capital gerou uma divisão


econômico-política do mundo que provocou, consequentemente, uma partilha
territorial do globo substanciada pela colonização26. Por isso, no capitalismo

26
Lenin (2012, p.116) esclarece as vantagens da colonização na corrida imperialista do capitalismo:
“A posse de colônias por si só traz aos monopólios garantia completa de êxito contra todas as
contingências da luta com o adversário, mesmo quando este procura defender-se mediante uma lei
que implante o monopólio do Estado. Quanto mais desenvolvido está o capitalismo, quanto mais
sensível se torna a falta de matérias primas, quanto mais dura é a concorrência e a procura de fontes
de matérias-primas em todo o mundo, tanto mais encarniçada é a luta pela aquisição de colônias”.
Netto e Braz (2008, p.183) acrescentam sobre o tema, elucidando a relação entre esta corrida
imperialista e as duas grandes guerras: “Essa partilha territorial do mundo foi posta em questão em
1914: como já não existiam mais territórios ´livres´, qualquer nova expansão haveria de fazer-se
mediante o confronto entre os Estados imperialistas – é assim que explode a Primeira Guerra
Mundial, expressão de conflitos interimperialistas, conflitos que também responderiam pela Segunda
27

monopolista, a exportação de capitais ganhou um significado determinado. De


acordo com Sweezy (1983), o objetivo com ela é de adiar o recrudescimento das
contradições da dinâmica de acumulação nos países exportadores de capitais e
agilizar seu surgimento nos países importadores dos mesmos. Desta forma, o
movimento de capitais é que geriria o desenvolvimento capitalista na economia
mundial segundo o autor. Aliás, Netto e Braz (2008) ressaltam que o caráter desse é
desigual e combinado, isto é, desigual em virtude de seu compasso diferenciado nas
várias nações e combinado porque as nações mais atrasadas combinam utilização
de técnicas modernas com relações sociais e econômicas antiquadas.

Mas como o capitalismo não pode escapar das suas contradições, se a


apropriação dos superlucros é finalidade expressa dos monopólios, através da
busca da eliminação da concorrência por meio do controle dos preços, os limites
para a consecução desta eliminação não são transponíveis – mesmo com o socorro
de vetores “extraeconômicos” - já que “em última instância, o controle do mercado é
determinado pelo que acontece no domínio da produção” (MANDEL,1982, p.371)
submetida à lei do valor27:

A função de um monopólio é evitar (ou adiar indefinidamente) a equiparação


da taxa de lucro, dificultando o fluxo do capital para dentro e para fora de
certos ramos da produção. Os monopólios alcançam seus limites no
momento em que essa equiparação não pode ser evitada a longo prazo, no
momento em que os métodos destinados a impedir essa equiparação não
conseguem atingir seu objetivo (ibid.).

Ou seja, a concorrência ressurge com pujança se não há crescimento das


vendas de mercadorias; e mesmo a diversificação de produtos, com investimentos

Guerra Mundial. De fato, a guerra, no estágio do capitalismo dos monopólios, constitui a forma
extrema de partilhas do mundo pelas potências imperialistas”.
27
Para Mandel (1982, p.370): “Numa sociedade que produz mercadorias, a lei do valor desempenha
duplo papel: 1) proporciona um modelo objetivo que regula a distribuição de recursos econômicos
(forças de produção) pelos diversos setores da economia capitalista, de maneira a poder assegurar
um equilíbrio periódico e uma produção e reprodução mais ou menos contínuas; 2) garante que essa
distribuição corresponda ao menos aproximadamente à estrutura da demanda (estrutura de
consumo) dos “consumidores finais” (demanda de indivíduos, famílias e unidades de consumo
maiores – com unidades locais, regionais, nacionais e já, marginalmente, internacionais – pelos
chamados “serviços sociais”). Netto e Braz (2008, p.90) informam que “a lei do valor passou a regular
as relações econômicas quando a produção mercantil, sob o capitalismo, se universalizou”.
Conforme os autores, ela condiciona a troca de mercadorias de acordo com a quantidade de trabalho
socialmente necessário nelas investido, independentemente do controle dos homens.
28

em pesquisa e tecnologia, não consegue livrar os monopólios da queda da taxa


média de lucro. Tais limites que foram administrados com certo êxito na “era de
ouro” entre os anos 1940 e 1970, quando da mundialização do capital e em virtude
da onda duradoura de expansão econômica, transformaram-se em barreiras
gigantescas quando a taxa de lucro passou a cair rapidamente junto com o
crescimento econômico em fins dos anos 1960.

A ilusão do “capitalismo democrático” pautado no binômio taylorismo-fordismo


e no keynesianismo era desmanchada fatalmente entre 1974-1975, dada a
recessão generalizada estabelecida28. Baran (1986, p.126) já assinalava os
problemas do capitalismo dos monopólios:

A estabilidade do capitalismo monopolista é, por conseguinte, altamente


precária. Incapaz de realizar uma política de verdadeiro pleno emprego e de
tal progresso econômico, tendo que se abster do investimento produtivo
bem como da expansão sistemática de consumo, ele deve basear-se
fundamentalmente em dispêndios militares para a preservação da
prosperidade e do alto nível de emprego de que dependem os lucros e o
apoio popular de que goza o sistema (BARAN, 1986, p.126).

Diante deste quadro, um conjunto de respostas – econômicas, sociais,


políticas e culturais - foi indispensável para garantir a restauração do capital.
Segundo Netto e Braz (2008), estas respostas são erguidas nos anos 1970 e
sintetizadas no seguinte tripé: reestruturação produtiva, financeirização e ideologia
neoliberal. No item 1.3 deste capítulo, abordaremos estes aspectos quando do
estudo sobre o capitalismo contemporâneo, terceira fase do estágio imperialista 29.

28 Tal recessão se consolidou após “o colapso do ordenamento financeiro mundial [grifo dos autores],
com a decisão norte-americana de desvincular o dólar do ouro (rompendo, pois, com os acordos de
Breton Woods que, após a Segunda Guerra Mundial, convencionaram o padrão ouro como lastro
para o comércio internacional e a conversibilidade do dólar em ouro) e o choque do petróleo [grifo
dos autores],com a alta dos preços determinada pela Organização dos Países Exportadores de
Petróleo/OPEP (NETTO e BRAZ, 2008, p.213).
29
Para Netto e Braz (2008), o imperialismo se desdobra em três momentos: “clássico”, entre 1890 e
1940; os “anos dourados” no intervalo entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos 1970; e,
finalmente, o capitalismo contemporâneo, de meados dos anos 1970 à atualidade. Abordaremos esta
última fase no item 1.3 deste capítulo.
29

1.2. Redimensionamento do papel Estado na era monopolista e a emergência do


Serviço Social

O surgimento do Serviço Social como profissão resulta da idade dos


monopólios quando o Estado assume um papel intervencionista na economia e na
reprodução social, o que implicou se ocupar (com contornos particulares) com a
força de trabalho em prol da produção e da acumulação capitalistas. Este papel é
inédito em relação ao capitalismo concorrencial e, por isso, exige contextualização
histórica mais aprofundada para que abarquemos os seus rebatimentos na gênese
profissional.

É digno de nota que os impactos do imperialismo sobre as classes sociais


são decisivos: os ”grandes donos de propriedade”, industriais e donos de terra agora
próximos “num regime de sociedades anônimas”, tendem a ser liderados pelo
capital monopolista; os trabalhadores tendem a unificar seus interesses, constituindo
uma oposição socialista e, por último, as “novas classes médias” – burocratas
industriais e governamentais, vendedores, publicitários etc. - emergem “criadas
pelos melhores padrões de vida, centralização do capital e crescimento do
monopólio”30. Além disso, o nacionalismo, o militarismo e o racismo ganham peculiar
projeção31 e um novo Estado se faz necessário. Se no capitalismo concorrencial, a
burguesia demandava do Estado garantia das condições externas da produção e da
acumulação com atuação esporádica sobre questões econômicas pontuais
(BARAN, 1986), na era dos monopólios o Estado torna-se esfera de intervenção
extraeconômica indispensável e permanente para garantir, desta forma, as
condições gerais de produção e acumulação de capitais (NETTO e BRAZ, 2008).

30
Sweezy (1983. p.239).
31
Sweezy (1983, p.236) explica que, desde os primórdios do capitalismo, o nacionalismo e o
militarismo cumpriram funções essenciais: o primeiro consistiu na expressão de expectativa da
classe média com a unidade econômica e a liberdade cultural que o feudalismo não proporcionava e
o segundo significou o meio para alcançar tal objetivo. Durante o estágio imperialista do capitalismo,
o autor ressalta que ambos se tornaram “armas na luta mundial contra grupos capitalistas rivais” nos
países centrais, preservando os antigos papéis nas nações mais atrasadas. O racismo, por sua vez,
diz respeito a uma justificativa “pseudocientífica” para a política de expansão imperialista e a
discriminação auxilia na direção em que “os empregos e oportunidades de investimentos podem ser
recusados aos grupos em posição desvantajosa, seus salários e lucros podem ser reduzidos a níveis
inferiores aos predominantes, e as camadas favorecidas da população podem colher recompensas
materiais substanciais” (ibid, p.238).
30

Braverman (1987, p.242) ratifica que o Estado, desde os primeiros tempos


deste sistema, foi “o penhor das condições, das relações sociais do capitalismo, e o
protetor da distribuição cada vez mais desigual da propriedade que esse sistema
enseja”. O autor afirma que as atividades estatais se ampliaram significativamente
sob o capitalismo monopolista e que esta realidade pode ser observada em quatro
perspectivas.

Primeiramente, a produção de excedente econômico – ou seja, a


supercapitalização – que não pode ser absorvida põe o capitalismo monopolista
bastante suscetível a crises, daí a demanda pelo aumento dos gastos estatais. Em
segundo lugar, a internacionalização do capital gerou a aguçada concorrência
econômica e, consequentemente, uma “mobilização permanente para a guerra” e
conflitos militares entre os países, o que definiu a indústria bélica como estratégia
essencial de absorção do excedente econômico e o Estado, sob pressão dos
monopólios, como importante estimulador do “clima de belicismo e militarismo”,
identificando “inimigos externos” que justificassem uma durável corrida
armamentista de acordo com Netto e Braz (2008).

Em terceiro lugar, dada a miséria e a insegurança contínuas na vida social e


os limites de atendimento da filantropia privada, sobretudo nas grandes cidades, o
Estado atua para evitar um colapso da estrutura social sob discordâncias políticas
várias entre capitalistas e entre trabalhadores quanto à “escala, escopo e patrocínio
das medidas para o bem-estar a serem adotadas”32. E em quarto e último lugar,
Braverman sinaliza que a demanda pelos serviços governamentais cresceu
significativamente em virtude da frenética urbanização e da aceleração do ritmo da
vida econômica e social. Dentre estes serviços, ele destaca o da educação que lhe
parece assumir uma função ampliada na era dos monopólios33.

32 Ibid., p.244.
33O autor polemiza a informação generalizada de que é sob o capitalismo monopolista que se dá o
aumento da “média” de qualificação dos trabalhadores. Embora reconheça as cobranças tipicamente
urbanas por alfabetização e familiaridade com o sistema numérico para todos, Braverman (idem,
p.369) ressalta que: “A massa de trabalhadores nada ganha com o fato de que o declínio de seu
comando sobre o processo de trabalho está mais que compensado pelo comando crescente por
parte dos gerentes e engenheiros. Pelo contrário, não apenas sua qualificação cai em sentido
absoluto (naquilo que perdem o ofício e as capacitações tradicionais sem ganhar novas capacidades
adequadas para compensar a perda), como cai ainda mais num sentido relativo [grifo do autor].
Quanto mais a ciência é incorporada no processo de trabalho, tanto menos o trabalhador
compreende o processo; quanto mais um complicado produto intelectual se torne a máquina, tanto
31

Em seus estudos sobre o capitalismo tardio34, fase entre 1945 e 1970 quando
transcorrem os conhecidos “anos dourados”35, Mandel (1982) alertava da mesma
forma para mudanças na “atitude subjetiva” da burguesia monopolista em relação ao
Estado e para a “função objetiva” assumida por este no cumprimento dos seus
interesses principais. Considerada a dupla necessidade de evitar as crises e de
proporcionar garantias econômicas à valorização e à acumulação capitalistas, o
autor explica o motivo das pressões – tanto direta do capital quanto indireta do
Estado – para a gerência de todos os cantos das vidas pública e privada 36.

menos controle e compreensão da máquina tem o trabalhador. Em outras palavras, quanto mais o
trabalhador precisa de saber a fim de continuar sendo um ser humano no trabalho, menos ele ou ela
conhece. Este é o abismo que a noção de ́qualificação média ́oculta”. Ao criticar o conteúdo vazio
das escolas, apesar do lugar reconhecido que ocupam na socialização coletiva, o autor avalia a
educação como negócio lucrativo para o capital: “Não podemos desdenhar o impacto econômico
imediato do sistema escolar ampliado. Não apenas o dilatamento do limite de escolaridade limita o
aumento de desemprego reconhecido, como também fornece emprego para uma considerável massa
de professores, administradores, trabalhadores em construção e serviços etc. Ademais, a educação
tornou-se uma área imensamente lucrativa de acumulação do capital para a indústria de construção,
para os fornecedores de todos os tipos, e para uma multidão de empresas subsidiárias” (idem,
p.372). Finalmente, o autor versa sobre os contornos limitados da educação para o trabalho na ordem
vigente: “No modo capitalista de produção, a extensão de uma e ́ scolaridade ́ cada vez mais vazia
combinada com a redução do trabalho a tarefas simples e fáceis representa um desperdício de anos
na escola e uma desumanização nos anos seguintes. Esse sistema é compreendido por seus
apologistas como exemplificando a eficiência elevada ao máximo grau; onde um engenheiro pode
dirigir cinquenta trabalhadores, argumentam eles, não há necessidade de ́desperdiçar ́ os recursos
da sociedade em educar a todos nos padrões da Engenharia. Esta é a lógica do modo capitalista de
produção que, em vez de denunciar as relações sociais hierárquicas pelas quais acumula riqueza nas
mãos dos proprietários da sociedade, prefere deixar o trabalhador ignorante a despeito dos anos de
escolaridade, e roubar a humanidade no seu direito inato de trabalho consciente e magistral” (idem,
p.377).
34. Mandel (1982, p.5) frisa que a expressão “capitalismo tardio” não denota mudança de essência do

sistema ou uma nova fase do desenvolvimento capitalista, mas sim “um desenvolvimento ulterior da
época imperialista, de capitalismo monopolista. Por implicação, as características da era do
imperialismo enunciadas por Lenin permanecem, assim, plenamente válidas para o capitalismo
tardio”. Aliás, Mandel prefere este termo a “capitalismo monopolista de Estado”, pois, sob seu ponto
de vista, este “enfatiza de forma exagerada a autonomia relativa do Estado, enquanto os traços
essenciais do presente estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista deveriam ser
explicados pela lógica interna do próprio capital e não pelo papel do Estado” (MANDEL, 1982, p.361).
A justificativa de sua crítica se apoia no exame de três interpretações – soviética, alemã e francesa -
sobre esta noção.
35 Netto e Braz (2008, p.213) registram que a chamada “era de ouro” do capitalismo para Mandel se

ancorava em períodos cíclicos prósperos mais longos, o que jamais excluiu crises cíclicas episódicas:
“Os ´anos dourados´ expressam exatamente esta onda longa de expansão econômica[grifo dos
autores] (que não foi a primeira a registrar-se na história do capitalismo), durante a qual crescimento
econômico e taxas de lucro mantiveram-se ascendentes entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a
segunda metade dos anos sessenta”. Para os autores, os “anos dourados” correspondem à segunda
fase do imperialismo.
36 Netto (2006a, p.38) esmiúça esta questão no seguinte trecho: “Na idade do imperialismo, a

organização monopólica da vida social tende a preencher todos os interstícios da vida pública e da
vida privada; a subordinação ao movimento do capital deixa de ter como limites imediatos os
territórios da produção: a tendência manipuladora e controladora que lhe é própria desborda os
campos que até então ocupara (no capitalismo concorrencial), domina estrategicamente a circulação
32

Deste modo, o Estado passa a desempenhar múltiplas funções econômicas


diretas e indiretas em prol da produção e da acumulação, o que demonstra a sua
“captura” pelo capital monopolista e seu novo significado como administrador dos
ciclos de crise. Dentre as funções diretas, temos: a atuação como empresário nos
setores básicos não rentáveis como energia e matérias primas, o controle de
empresas capitalistas em dificuldades, a entrega aos monopólios de empresas
estatais etc. As funções indiretas correspondem a compras e encomendas aos
monopólios, investimentos em meios de transporte e infraestrutura, preparação da
força de trabalho, gastos com pesquisa etc. (NETTO, 2006a).

Netto (2006a, p.20-21), inspirado em Sweezy e em Mandel, traduz assim o


novo ordenamento econômico estabelecido que, ao lado da ascensão do movimento
operário e das necessidades de legitimação política estatal, determinará a
estruturação das políticas sociais pelo Estado num novo enfrentamento da “questão
social”:

Na prossecução da sua finalidade central, a organização monopólica


introduz na dinâmica da economia capitalista um leque de fenômenos que
deve ser sumariado: a) os preços das mercadorias (e serviços) produzidas
pelos monopólios tendem a crescer progressivamente; b) as taxas de lucro
tendem a ser mais altas nos setores monopolizados; c) a taxa de
acumulação se eleva, acentuando a tendência descendente da taxa média
[grifo do autor] de lucro (Mandel, 1969, 3:99-103) e a tendência ao
subconsumo; d) o investimento se concentra nos setores de maior
concorrência, uma vez que a inversão nos monopolizados torna-se
progressivamente mais difícil (logo, a taxa de lucro que determina a opção
do investimento se reduz); e) cresce a tendência a economizar trabalho
“vivo”, com a introdução de novas tecnologias; f) os custos de venda [grifo
do autor] sobem, com um sistema de distribuição e apoio hipertrofiado – o
que, por outra parte, diminui os lucros adicionais dos monopólios e aumenta
o contingente de consumidores improdutivos (contrarrestando, pois, a
tendência ao subconsumo).

e o consumo e articula uma indução comportamental para penetrar a totalidade da existência dos
agentes sociais particulares. Aqui é o inteiro cotidiano dos indivíduos que tende a ser administrado
[grifo do autor], um difuso terrorismo psicossocial se destila pelos poros da vida (Lefebvre, 1968) e se
instila em todas as manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia
reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização doméstica, a fruição
estética, o erotismo, a criação dos imaginários, a gratuidade do ócio etc.) convertem-se em limbos
programáveis como áreas de valorização potencial do capital monopolista.”
33

Ou seja, mesmo assumindo uma posição explícita de “comitê executivo” da


burguesia monopolista, o Estado não deixou de considerar as demandas dos
trabalhadores em luta através da institucionalização de direitos, o que garantiu um
consenso importante para o exercício do poder político 37. É indispensável observar,
entretanto, que as respostas a tais demandas apenas foram positivas quando
puderam ser canalizadas para os interesses lucrativos do sistema 38. Em nome da
valorização do capital na era monopolista, a preservação e o controle da força de
trabalho ocupada e sobrante converte-se em encargo primordial do Estado que
executa esta atividade por meio das políticas sociais no sentido, principalmente, de:

regular a sua pertinência a níveis determinados de consumo e a sua


disponibilidade para a ocupação sazonal, bem como a instrumentalizar
mecanismos gerais que garantam a sua mobilização e alocação em função
das necessidades e projetos do monopólio (NETTO, 2006a, p.27).

Para além da preservação e do controle da força de trabalho ocupada e


sobrante, Netto (2006a, p.31) descreve as demais funções da política social do
Estado na era monopolista:

Os sistemas de previdência social (aposentadoria e pensões), por seu turno,


não atendem apenas a estas exigências: são instrumentos para
contrarrestar a tendência ao subconsumo, para oferecer ao Estado massas
de recursos que doutra forma estariam pulverizados (os fundos que o
Estado administra e investe) e para redistribuir pelo conjunto da sociedade
os custos da exploração capitalista-monopolista da vida ´útil´ dos
trabalhadores, desonerando os seus únicos beneficiários, os monopolistas
(Faleiros, 1980; Galper, 1975 e 1986). As políticas educacionais (muito
especialmente as dirigidas para o trabalho, de cunho ´profissionalizante´) e
os programas de qualificação técnico-científica (vinculados aos grandes

37
É por esta razão que Netto salienta que o Estado igualmente empreende funções políticas
essenciais no capitalismo dos monopólios em prol do objetivo da maximização dos lucros. De acordo
com o autor, a articulação entre as funções econômicas e políticas deste Estado é que solidifica a
sua legitimação através do reconhecimento de novos sujeitos. O trecho a seguir esclarece esta
reflexão: “É a política social do Estado burguês no capitalismo monopolista (...), configurando a sua
intervenção contínua, sistemática, estratégica sobre as sequelas da “questão social”, que oferece o
mais canônico paradigma dessa indissociabilidade de funções econômicas e políticas que é própria
do sistema estatal da sociedade burguesa madura e consolidada. Através da política social, o Estado
burguês no capitalismo monopolista procura administrar as expressões da “questão social” de forma
a atender às demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de categorias e
setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas operantes” (idem, p.30).
38
Netto exemplifica em nota de rodapé a sincronia entre as previdências pública e privada além dos
ganhos com a indústria da saúde por meio de serviços, medicamentos, instrumental etc (idem, p.29).
34

projetos de investigação e pesquisa) oferecem ao capital monopolista


recursos humanos cuja socialização elementar é feita à custa do conjunto
da sociedade (Carnoy e Levin, 1987). As políticas setoriais que implicam
investimentos em grande escala (reformas urbanas, habitação, obras
viárias, saneamento básico etc.) abrem espaços para reduzir as dificuldades
de valorização sobrevindas com a supercapitalização (Mandel, 1976, p.3).

Quer dizer, a “questão social” somente é posta como alvo das políticas
sociais criadas pelo Estado em virtude: da nova dinâmica econômica monopolista,
que leva os trabalhadores ao desemprego, ao subemprego, ao subconsumo – e
consequentemente a uma série de tragédias sociais decorrentes destes; do
fortalecimento do movimento operário que pressiona o capital e o Estado por
melhores condições de trabalho e de vida; e, por último, das necessidades de
legitimação política do próprio Estado junto à sociedade, buscando atender parte
das demandas dos trabalhadores, sem deixar de reter entre os sujeitos a visão
menos mistificada do real. Há que se salientar, contudo, que o enfrentamento da
“questão social” é efetuado sem reconhecimento do conflito entre capital e trabalho,
fragmentando seu grave conteúdo em problemáticas particulares como se fossem
desconexas entre si. Ao fim e ao cabo, é o proletariado, através do movimento
operário, que situa a “questão social” na luta entre classes39 enquanto a burguesia a
retira da política a todo o momento numa estratégia claramente reformista
conservadora. Sendo assim, faz-se mister constatar que a institucionalização da
política social pública não deriva simplesmente da captura do Estado pelos
monopólios, ela advém, principalmente, das pressões dos trabalhadores
mobilizados que o Estado responde a certa altura. Tanto a sua formulação quanto a
sua implementação se localizam num jogo de tensões e alianças que demonstram
nexos bem mais complexos do que os interesses classistas particulares, envolvendo
inclusive categorias profissionais e organizações da sociedade civil (NETTO,
2006a).

Há que se constatar que, sob o capitalismo monopolista, o Estado transmuta


as manifestações da “questão social” em problemas sociais - de aparência individual

39
Foi a Revolução de 1848 na Europa, com germes significativos desde 1830, que demonstrou
categoricamente o esgotamento das bandeiras progressistas da burguesia assim como a passagem
histórica do proletariado da condição de classe em si para classe para si. No processo desta última
que aprimora indelevelmente a consciência política, os trabalhadores puderam chegar à
compreensão de que a “questão social” é intimamente ligada à sociedade burguesa (NETTO, 2006b
e COUTINHO, 2010).
35

- dignos de atenção pública40, delimitando assim, de outra maneira, as esferas do


público e do privado. Se, de um lado, os direitos sociais passam a ser considerados
num rompimento com o liberalismo anterior, nesta fase madura do sistema, por
outro lado, este mesmo liberalismo é resgatado através da responsabilização
individual quando da continuidade das sequelas da “questão social”. Se, de um lado,
o destino pessoal é função do indivíduo – em que êxito e fracasso a ele são
creditados -, por outro lado, a criação pública de condições sociais para seu
desenvolvimento não exclui sua responsabilização social pelo aproveitamento final
ou não das supostas possibilidades que lhe são ofertadas. Tal ótica político-cultural
impingida pela dinâmica social em si acarreta um processo de psicologização das
relações sociais em nítida recuperação do ethos individualista. Conforme Netto
(2006a, p.43), o pensamento conservador, apesar da sua heterogeneidade 41,
consistiu na tradição intelectual que se incumbiu da atribuição de “subsidiar a
unidade estratégica entre as perspectivas ‘pública’ e ‘privada’ no confronto do
Estado burguês no capitalismo monopolista com as refrações da ‘questão social’”. O
positivismo cumpriu com magnitude esta tarefa. Ao equalizar sociedade e natureza
na investigação científica, esta teoria, especialmente com seus representantes
Comte e Durkheim, torna o ser social impotente na história, o reduz às suas
dimensões ético-morais e, por consequência, individualiza as manifestações da
“questão social” que passam a ser compreendidas como “desvios” merecedores de
reintegração.

O reconhecimento do caráter de “corolário [grifo do autor] (necessário) do


desenvolvimento capitalista em todos seus estágios [grifo do autor]” (NETTO, 2006b,
p.157) da “questão social” é fundamental para pensarmos a gênese e a trajetória
profissionais, já que o Serviço Social constituiu-se como profissão no bojo de um
outro enfrentamento a ela engendrado. Aliás, para amadurecermos a relação entre o

40
Nas palavras de Netto (2006a, p.36): “Na verdade, o que se passa é que a incorporação do caráter
público da ´questão social´ vem acompanhada de um reforço da aparência da natureza privada das
suas manifestações individuais”. Em seu texto Cinco notas a propósito da “questão social”, o autor
ainda reforça que: “a ‘questão social’ (...) não tem nada a ver com o desdobramento de problemas
sociais [grifo do autor] que a ordem burguesa herdou ou com traços invariáveis da sociedade
humana [grifo do autor]; tem a ver, exclusivamente, com a sociabilidade erguida sob o comando do
capital” (NETTO, 2006b, p.158).
41
Consideremos as diferenças filosóficas entre a doutrina social da Igreja e a teoria racionalista do
positivismo, por exemplo (NETTO, 2006a).
36

capitalismo e a profissão, faz-se mister partir do raciocínio de Netto (2006a), de que


a emergência profissional só pode ser ricamente captada se estudarmos os
meandros do capitalismo monopolista, sendo para ele insuficiente se debruçar sobre
o vínculo entre Serviço Social e a “questão social”.

O autor destaca que existem duas concepções distintas quanto à emergência


profissional: uma, a-histórica, que a compreende como resultante do aprimoramento
da filantropia; e outra, com a qual ele se coaduna, que a perfila à criação externa –
pelo Estado – de um espaço ocupacional, a política social pulverizada em várias
políticas sociais que se dirigem a expressões particulares da “questão social” no
capitalismo monopolista. Além disso, Netto afirma que a emergência do Serviço
Social apresenta uma relação de continuidade e de ruptura quanto às práticas
anteriores de apostolado social. No que se refere à relação de continuidade, o autor
assinala que o assalariamento não nos livrou da influência conservadora, tampouco
do tipo caritativista de atuação. Já a relação de ruptura é retratada pelas atividades
nas quais se inserem os assistentes sociais cuja organização, recursos e finalidades
lhes são estipulados extrinsecamente, sem falar das instituições assistenciais em
que se empregam, alheias às protoformas guiadas por preocupações ético-morais
em atividades exteriores à lógica de mercado42.

De acordo com o pensamento de Iamamoto e Carvalho (1993, p.16), o


Serviço Social torna-se instituição quando passa a responder necessidades sociais
“derivadas da prática histórica das classes sociais na produção e reprodução dos
meios de vida e de trabalho de forma socialmente determinada”. Considerando que
a satisfação de tais necessidades sociais é assumida pela divisão social do trabalho
burguesa, focada na produção de mercadorias e substanciada pelo trabalho
alienado, e tomando ainda como pressuposto que a força de trabalho do assistente
social passa a ser mercantilizada, vejamos o lugar destinado ao Serviço Social:

O Serviço Social surge como um dos mecanismos utilizados pelas classes


dominantes como meio de exercício de seu poder na sociedade,
instrumento esse que deve modificar-se constantemente, em função das
características diferenciadas da luta de classes e/ou das formas como são

42
A institucionalização da profissão altera a condição do agente social das protoformas e o
significado social de sua intervenção. Da boa vontade individual da militância religiosa, migra-se para
o assalariamento e para a participação na divisão social e técnica do trabalho (NETTO, 2006a).
37

percebidas as sequelas derivadas do aprofundamento do capitalismo. Estas


sequelas se manifestam, também, por uma série de comportamentos
“desviantes” que desafiam a Ordem. Face ao crescimento da miséria
relativa de contingentes importantes da classe trabalhadora urbana, o
Serviço Social aparece como uma das alternativas às ações caritativas
tradicionais, dispersas e sem solução de continuidade, a partir da busca de
uma nova “racionalidade” no enfrentamento da questão social. A procura de
maior eficiência no tratamento dessa questão consubstancia-se, também,
na solidificação do Serviço Social como instituição, intimamente vinculado
ao crescimento do aparelho de Estado, no sentido da criação de “braços
que avançam para dentro da sociedade civil” (IAMAMOTO e CARVALHO,
1993, p.19).

Aliás, a “questão social” constituiu ponto de partida da análise de 198243 de


Iamamoto, quando a autora reconhece, como vimos acima, a forma inédita de
enfrentamento a ela empreendida pelo Estado e demandada pela classe burguesa
numa nova fase do regime capitalista. Não à-toa, a autora elucida que a atuação do
Serviço Social acaba tanto por contribuir para o controle social e para a difusão da
ideologia dominante quanto para responder às necessidades de sobrevivência dos
trabalhadores:

O Serviço Social se gesta e se desenvolve como profissão reconhecida na


divisão social do trabalho, tendo por pano de fundo o desenvolvimento
capitalista industrial e a expansão urbana, processos esses aqui
apreendidos sob o ângulo das novas classes emergentes – a constituição e
expansão do proletariado e da burguesia industrial – e das modificações
verificadas na composição de grupos e frações de classes que
compartilham o poder do Estado em conjunturas históricas específicas. É
nesse contexto, em que se afirma a hegemonia do capital industrial e

43
Em sua obra mais recente Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e
questão social, a autora efetua um balanço crítico de sua produção do ano de 1982 e salienta a
originalidade dela visto que Relações Sociais e Serviço Social no Brasil supera a visão endógena
corrente da época (esta diz respeito à compreensão equivocada de que os dilemas profissionais têm
origem dentro do próprio desenvolvimento do Serviço Social sem relação com a totalidade histórica),
enfatiza o significado social da profissão, constata o caráter contraditório do exercício profissional e
inaugura a polêmica identificação entre Serviço Social e trabalho [Sérgio Lessa e Gilmaísa Macedo
da Costa debateram e discordaram de Marilda Villela Iamamoto sobre tal identificação à luz das
teorias marxiana e luckasiana. Os primeiros afirmam que o Serviço Social se trata de práxis social e
não trabalho, concepção esta com a qual nos afinamos. Faz-se mister ressaltar que a interpretação
de Iamamoto se alterou entre os anos 1980 e 1990. Se nos primeiros anos, a autora compreendia o
Serviço Social como tecnologia social participante do controle social e da divulgação da ideologia
dominante, na década seguinte a autora entende a profissão como trabalho, situando a “questão
social” como matéria prima, suas bases teórico-metodológicas como meios do trabalho e, finalmente,
a interferência na reprodução material da força de trabalho e no processo de reprodução ideopolítica
dos sujeitos como produto, conforme sua obra O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e
formação profissional. Ou seja, se inicialmente Iamamoto situava a profissão na esfera da
reprodução social, depois a autora passou a situar o Serviço Social na esfera da produção. Esta
leitura da autora de que Serviço Social é trabalho foi incorporada nas Diretrizes Curriculares de 1996
organizadas pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social.
38

financeiro, que emerge sob novas formas a chamada “questão social”, a


qual se torna a base de justificação desse tipo de profissional especializado.
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da
contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros
tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão. O Estado passa a
intervir diretamente nas relações entre o empresariado e a classe
trabalhadora, estabelecendo não só uma regulamentação jurídica do
mercado de trabalho, através da legislação social e trabalhista específicas,
mas gerindo a organização e prestação dos serviços sociais, como um novo
tipo de enfrentamento da questão social (IAMAMOTO e CARVALHO, 1993,
p.77).

Neste contexto, é crucial lembrar o cunho político-ideológico das ações


profissionais, útil à manutenção da ordem, junto aos usuários dos serviços sociais 44.
Netto (2006a, p.77) expressa bem esta realidade ao enaltecer que:

(...) é supérfluo observar que a profissão emerge com o privilégio das suas
potencialidades legitimadoras em face da sociedade burguesa - não é
apenas o seu enraizamento na vertente do pensamento conservador que a
torna extremamente funcional para conceber (e tratar) as manifestações da
“questão social” como problemas [grifo do autor] autonomizados, para
operar no sentido de promover a psicologização da socialidade e para jogar
nos vetores da coesão social [grifo do autor] pelos condutos da
‘reintegração’ dos acometidos pelas sociopatias [grifo do autor]. Mais que
este lastro (...), conta na sua dimensão e funcionalidade simbólicas o
investimento estratégico do projeto de classe predominante e decisivo no
interior da burguesia quando da emersão do monopólio (cf. seção 1.3) –
enquanto profissão, o Serviço Social não é uma possibilidade posta
somente pela lógica econômico-social da ordem monopólica: é dinamizada
pelo projeto conservador que contempla as reformas dentro desta ordem
[grifo do autor]. Seu travejamento ídeo-político original, portanto, não deixa
lugar a dúvidas: numa apreciação macroscópica, ele tende ao ‘reforço dos
mecanismos do poder econômico, político e ideológico, no sentido de
subordinar a população trabalhadora às diretrizes das classes dominantes
em contraposição à sua organização livre e independente’ (IAMAMOTO in
IAMAMOTO e CARVALHO, 1983:97). Está clara, nesta determinação, a
conexão entre o Serviço Social e o protagonismo proletário que já
indicamos (seção 1.3) – uma conexão reativa [grifo do autor].

Considerando estas peculiaridades historicamente construídas do Serviço


Social, os assistentes sociais tornam-se ainda mais profissionais “da coerção e do
consenso” do que os demais através do exercício de funções de caráter “educativo”,
“moralizador” e “disciplinador” junto aos usuários dos programas assistenciais. Além

44
Evidentemente que o Serviço Social receberá outras influências ao longo de sua trajetória como a
Intenção de Ruptura comprovará. Por isso, “à medida que sua profissionalização se afirma, os
assistentes sociais tornam-se permeáveis a outros projetos sócio-politicos – especialmente na escala
em que estes rebatem nas próprias políticas sociais” (NETTO, 2006a, p.81).
39

disso, ainda que sua atividade seja secundária do ponto de vista da produção direta
de mercadorias, ela significa “suporte da ampliação da produtividade do trabalho
requerida pelo processo de acumulação” (IAMAMOTO, 1992, p.42). Em sua obra
Renovação e conservadorismo no Serviço Social, a autora resume as
características do exercício profissional:

O Assistente Social vinculado, no exercício profissional, a organismos


estatais, paraestatais ou privados, dedica-se ao planejamento,
operacionalização e viabilização dos serviços sociais à população. Exerce
funções tanto de suporte à racionalização do funcionamento dessas
entidades, como funções técnicas propriamente ditas. Do ponto de vista da
demanda, o Assistente Social é chamado a constituir-se no agente
intelectual de “linha de frente” nas relações entre instituição e população,
entre os serviços prestados e a solicitação desses mesmos serviços pelos
interessados. Dispõe do poder, atribuído institucionalmente, de selecionar
entre os que têm ou não direito de participar dos programas propostos,
discriminando, entre os elegíveis, os mais necessitados, devido à
incapacidade da rede de equipamentos sociais de atender a todo o público
que, teoricamente, tem direito a eles. Deriva daí a existência e exigência da
“triagem” ou “seleção sócio-econômica” e das “visitas domiciliares”, em que
o Assistente Social é chamado a exercer a função de “fiscalizador da
pobreza”, comparando-a com dados objetivos, evitando que a instituição
caia nas “armadilhas” da conduta popular de “encenação da miséria”. A sua
atuação se dirigirá no sentido de uma ação esclarecedora à população
quanto aos direitos e serviços propiciados pelas instituições, e dos
mecanismos necessários à sua realização. Assim, ao esclarecimento dos
direitos, acrescenta-se a explicitação dos deveres da população em relação
à instituição, à aceitação de algo imposto sobre o que não lhe foi dado
opinar, numa linha de integração da população aos organismos
institucionais, através dos quais se exerce o controle social. Por outro lado,
à medida que as instituições assistenciais são palco da luta de classes, da
resistência da população às suas condições de vida, o Assistente Social é
chamado a colocar-se como anteparo entre a instituição e a revolta ou o
inconformismo da população. A estas atividades vem juntar-se outra
característica da demanda: a ação de persuadir, mobilizando o mínimo de
coerção explícita para o máximo de adesão, ou seja, ele deve levar o
usuário a aceitar as exigências normativas da Instituição, ao que se soma a
ação “educativa” que incide sobre valores, comportamentos e atitudes da
população: sobre o seu modo de ser, de agir e de compreender a vida
cotidiana. Por outro lado, a estratégia de individualização dos atendimentos
possibilita aliviar tensões e insatisfações, submetendo-as ao controle
institucional. Não se pode negligenciar, ainda, a distribuição de auxílios
materiais; nessa esfera, as solicitações da população tendem a não ser
vistas como direitos, mas como manifestação de carência (IAMAMOTO,
1992, p.100-101).

No que se refere ao nexo entre a institucionalização do Serviço Social e a


busca de legitimação política estatal com estruturação de políticas sociais que
conferirão respostas fragmentadas à “questão social” num momento histórico de
nova dinâmica econômica e de ascensão do movimento operário (NETTO, 2006a), é
40

inegável a importância da profissão ao fomento de bases para “o exercício do poder


de classe, que tem sua expressão máxima no Estado” (IAMAMOTO e CARVALHO,
1993, p.87). O Estado, inclusive, é o maior empregador de assistentes sociais
nestes oitenta anos de história da profissão no país e isto se refere à criação
externa de espaço ocupacional que empreendeu para esta categoria através das
políticas sociais como já foi aqui explicitado (NETTO, 2006a). No que tange à
inserção inicial no mercado de trabalho que particulariza o exercício profissional nos
idos de 1930 e 1940, cujo destaque é mesmo ele, a referida autora expõe o
seguinte:

O Serviço Social no Brasil afirma-se como profissão, estreitamente


integrado ao setor público em especial, face à progressiva ampliação do
controle e do âmbito da ação do Estado junto à sociedade civil. Vincula-se,
também, a organizações patronais privadas, de caráter empresarial,
dedicadas às atividades produtivas propriamente ditas e à prestação de
serviços sociais à população. A profissão se consolida, então, como parte
integrante do aparato estatal e de empresas privadas, e o profissional, como
um assalariado a serviço das mesmas. Dessa forma, não se pode pensar a
profissão no processo de reprodução das relações sociais, independente
das organizações institucionais a que se vincula [grifo da autora], como se a
atividade profissional se encerrasse em si mesma e seus efeitos sociais
derivassem, exclusivamente, da atuação do profissional. Ora, sendo
integrante dos aparatos do poder, como uma das categorias profissionais
envolvidas na implementação de políticas sociais, seu significado social só
pode ser compreendido ao levar em consideração tal característica
(IAMAMOTO e CARVALHO, 1993, p.79-80).

A autora destaca que outras profissões também participam desta tarefa de


dominação de classe com chancela estatal:

Sua razão de ser é dada pela contribuição que possam oferecer, à medida
que se encontram vinculadas a estruturas do poder, à criação de condições
político-ideológicas favoráveis à manutenção das relações sociais,
configurando-as como harmônicas, naturais, destituídas das tensões que
lhe são inerentes. Tratam, ainda, de reduzir as arestas da realização
problemática da expansão do capital, determinada pela lei geral da
acumulação: a reprodução ampliada da riqueza, apropriada privadamente e
a miséria coletiva dos produtores diretos. Em outros termos: tratam de
centrar esforços na busca de um equilíbrio tenso entre capital e trabalho, na
árdua tarefa de conciliar o inconciliável [grifos nossos]. Assim, à
proporção que encetam esforços no sentido de manter a continuidade da
organização social dentro da ordem do capital, contribuem, inevitavelmente,
para reproduzir as contradições fundamentais que conformam as relações
sob as quais se baseia essa sociedade. É dentro desse quadro geral que se
pretende situar o Serviço Social (IAMAMOTO e CARVALHO, 1993, p.87).
41

Como já foi mencionado no início deste capítulo, a intervenção do Estado nas


expressões da “questão social” sob o capitalismo monopolista não pode ter como
objetivo solucioná-las, posta “sua natureza de partícipe do jogo econômico, conatural
à sua essência de classe”45. Resta, então, ao Serviço Social a racionalização dos
recursos e esforços dirigidos para o enfrentamento das manifestações da “questão
social” através de uma atuação pouco diversa daquela típica de suas protoformas
que, de acordo com Netto (2006a), é o anel de ferro que condiciona a profissão. Na
interpretação do autor, o que confere legitimação decisiva ao exercício profissional
do assistente social – independentemente do juízo que ele faz deste seu papel - é a
execução “terminal”46 das políticas sociais que ele empreende na direção da
preservação e controle da força de trabalho conforme o projeto monopolista47. Sua
conclusão é de que cabe, por fim, ao Serviço Social a reprodução das expressões da
“questão social”.

1.3. Capitalismo contemporâneo, formação social brasileira e intensificação do


sincretismo

Como indicamos anteriormente neste capítulo, para Netto e Braz (2008), o


imperialismo apresenta três fases: a primeira, “clássica”, vai de 1890 a 1940, os
“anos dourados” entre o fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970 e,

45
Netto (2006a, p.102).
46
O autor ressalta que o nível terminal da ação executiva diz respeito ao “ponto em que os diversos
vulnerabilizados pelas sequelas e refrações da ‘questão social’ recebem a direta e imediata resposta
articulada nas políticas sociais setoriais” (NETTO, 2006a, p.74).
47 Em sua obra mais recente, Iamamoto (2008, p.207) se refere assim a esta incumbência

profissional: “Historicamente, os assistentes sociais dedicaram-se à implementação de políticas


públicas, localizando-se na linha de frente das relações entre população e instituição ou, nos termos
de Netto (1992), sendo ‘executores terminais de políticas sociais’. Embora esse seja ainda o perfil
predominante, não é mais o exclusivo, sendo abertas outras oportunidades. O processo de
descentralização das políticas sociais públicas, com ênfase na sua municipalização, requer dos
assistentes sociais – como de outros profissionais – novas funções e competências [grifo da autora].
Os assistentes sociais estão sendo chamados a atuar na esfera da formulação e avaliação de
políticas e do planejamento, gestão e monitoramento, inscritos em equipes multiprofissionais [grifo da
autora]. Ampliam seu espaço ocupacional para atividades relacionadas ao controle social, à
implantação e orientação de conselhos de políticas públicas, à capacitação de conselheiros, à
elaboração de planos e projetos sociais, ao acompanhamento e avaliação de políticas, programas e
projetos”. A nosso ver, estes chamamentos ao Serviço Social que cresceram a partir dos anos 1990,
no rastro da promulgação da Constituição Federal de 1988, tendem a regredir nestes dias dado o
quadro conjuntural seriamente regressivo marcado pelo trinômio neoliberal flexibilização-
desregulamentação-privatização mencionado por Netto (2010). Aliás, recorremos a este texto do
autor no item 1.3 deste capítulo.
42

finalmente, o capitalismo contemporâneo, de meados dos anos 1970 aos dias de


hoje. De acordo com os autores, a fase “clássica” foi marcada pela crise de 1929
que atestou a necessidade imperiosa da intervenção estatal nas condições gerais da
produção e da acumulação. Tanto a ofensiva do movimento operário europeu
quanto a Revolução Russa de 1917 compuseram o cenário histórico de sacrifício da
democracia em nome do controle monopolista da economia, com a burguesia em
estado de alerta contra o comunismo. Não à toa a vigência das experiências
fascistas naqueles países com tradições democráticas mais fracas48.

Os “anos dourados” representam as “três décadas gloriosas”, quando a


expansão econômica foi espetacular mesmo com as crises cíclicas, já que o Estado
se mostrava intervencionista à luz do pensamento de Keynes. Nesta segunda fase,
os Estados Unidos passam a comandar o imperialismo militar, política e
economicamente no lugar da Europa, liderando o combate ao comunismo no
mundo, haja vista a Guerra Fria e demais confrontos como na Coréia (1950-1953),
no Vietnã (1963-1975) etc. É neste intervalo também que a organização taylorista-
fordista do trabalho se torna modelo nas indústrias e que o crédito ao consumidor, a
inflação e o setor de serviços ou terciário49 se exponenciam.

O capitalismo contemporâneo, terceira fase do estágio imperialista, se


configura num movimento de reação do capital, quando do esgotamento da “era de
ouro”, sustentado no tripé reestruturação produtiva-financeirização-ideologia
neoliberal já citado. Este é assim distinguido a partir da crise dos anos 1970. Para
reagir a ela, no sentido de reverter a queda da taxa de lucro e de criar outras
condições para a exploração da força de trabalho, o movimento sindical foi o
primeiro a ser vitimado por meio de medidas legais restritivas ao seu poder de
atuação e depois por ameaças concretas aos direitos trabalhistas e sociais.
Paralelamente, a acumulação passa de rígida a flexível, com desterritorialização e
terceirização da produção, além da adoção de novas tecnologias como a

48 O fascismo é uma alternativa política efetiva na idade dos monopólios: “A modalidade fascista de
intervir na economia para garantir as condições gerais [grifo dos autores] da produção e da
acumulação capitalistas é conhecida: o terrorismo de Estado imobiliza e/ou destrói as organizações
dos trabalhadores, regula a massa salarial conforme o interesse dos monopólios, favorece
descaradamente o grande capital, militariza a vida social e investe forte na indústria bélica” (NETTO e
BRAZ, 2008, p.194).
49 Segundo Netto e Braz (2008, p.201), este setor, caracterizado pelo trabalho improdutivo, engloba

“atividades financeiras e securitárias, comerciais, publicitárias, médicas, educacionais, hoteleiras,


turísticas, de lazer, de vigilância privada etc.”
43

microeletrônica e a robótica. Isso tem impacto na força de trabalho em vários níveis,


com exigências de qualificação, polivalência e “envolvimento” dos trabalhadores. A
precarização do emprego, o crescimento do desemprego e a agudização da
“questão social” são também reflexos desta virada, que nada mais significa do que
uma robusta ofensiva do capital sobre o trabalho, que nos leva a uma regressão
social impressionante há quarenta anos.

Neste trabalho, o exame do capitalismo recente consiste em tarefa


indispensável, posto que é no seu avanço que os três fatores propulsores da
estrutura sincrética do Serviço Social considerados por Netto – a “questão social”, o
cotidiano, e a “manipulação de variáveis empíricas num contexto determinado” –
demonstram um tal agravamento que a profissão não pode ser refletida à revelia
destas transformações macroscópicas que a impactam redondamente. Isto é, no
presente, como foi desde a emergência profissional, a realidade sincrética 50 repõe o
sincretismo do Serviço Social brasileiro; entretanto, de uma maneira bem mais
imponente, dado o poder destrutivo do grande capital levado à máxima potência.

Aliás, são antigas as evidências do sincretismo ao longo da história brasileira,


visto que, no plano político, a frequente ‘conciliação pelo alto’ entre as elites contra a
participação popular nas decisões nacionais51 acabou por marcar as ideias de
nossos intelectuais, fossem eles liberais ou progressistas. Por aqui, o
amadurecimento da sociedade civil consistiu num longo e complexo processo, posto
que antes da introdução do modo de produção capitalista in loco, houve uma

50 Fundamental resgatar o caráter reificado da sociedade burguesa posto pelo fetichismo que nos
aliena a todos. Ver nota de rodapé 6 da seção 1.1.
51 Coutinho (2011, p.45/46) afirma que a modernização conservadora que se efetuou no Brasil

conduzida por um Estado inflado assumiu o caráter de uma “via prussiana” na concepção de Lenin ou
de uma “revolução passiva” no entendimento de Gramsci: “É evidente que o fenômeno da ‘via
prussiana’ – tal como Lenin o formula – tem sua expressão central na questão da passagem para o
capitalismo, no modo de adequar a estrutura agrária às necessidades do capital. Mas, generalizando
o conceito, pode-se dizer que – na base de uma solução ‘prussiana’ global para a questão da
transição ao capitalismo – todas as grandes alternativas concretas vividas pelo nosso país, direta ou
indiretamente ligadas àquela transição (Independência, Abolição, República, modificação do bloco do
poder em 1930 e 1937, passagem para um novo patamar de acumulação em 1964), encontraram
uma resposta ‘à prussiana’; uma resposta na qual a conciliação ‘pelo alto’ jamais escondeu a
intenção explícita de manter marginalizadas ou reprimidas – de qualquer modo, fora do âmbito das
decisões – as classes e camadas sociais ‘de baixo’. Portanto a transição do Brasil para o capitalismo
(e cada fase do capitalismo para a fase subsequente) não se deu apenas [grifo do autor] no quadro
da reprodução ampliada da dependência, ou seja, com a passagem da subordinação formal à
subordinação real em face do capital mundial: em estreita relação com isso (já que uma solução não
prussiana da questão agrária asseguraria as condições para o desenvolvimento de um capitalismo
nacional não dependente), essa transição se processou também [grifo do autor] segundo o modelo
da ‘modernização conservadora’ prussiana”.
44

colonização portuguesa caracterizada pela exploração devastadora do território


quando do capitalismo comercial na Europa52. Considerando que as passagens para
a Monarquia e para a República e seus cursos – que incluíram golpes e duas
ditaduras – reforçaram a subordinação ideológica e cultural ao estrangeiro e não
liquidaram com o traço do favor, bem representado no exercício autoritário da
cooptação, para os intelectuais restaria um trabalho bastante difícil: de ruptura com a
cultura “elitista, aristocratizante, ornamental” que se desenvolvia; e de resistência ao
confusionismo ideológico e ao ecletismo teórico decorrentes de tal formação
histórica:

Escapar da ‘via prussiana’ e de suas sequelas anticulturais não é um


movimento que dependa apenas da disposição pessoal dos intelectuais. A
coragem e a retidão moral são certamente necessárias, mas não
suficientes. Dado que na raiz do ‘intimismo’ está a separação entre os
intelectuais e a realidade nacional-popular, uma separação posta e reposta
pela ‘via prussiana’, o antídoto contra tal veneno não pode ser produzido
simplesmente no laboratório imanente da própria cultura: a superação do
‘intimismo’, tanto no nível pessoal quanto social, passa pela orgânica
integração dos intelectuais com a luta das classes subalternas para se
afirmarem como sujeitos efetivos de nossa evolução social e política. Uma
luta que tem por meta a destruição do elitismo implícito na ‘via prussiana’,
com a consequente abertura de um processo de renovação democrática
que envolva todas as esferas do ser social brasileiro (COUTINHO, 2011,
p.52).

A transição não-clássica para o capitalismo que ocorreu no Brasil republicano,


até então de economia agroexportadora e de relações de trabalho escravistas,
marcou o porvir da nação com uma miscelânea entre “progresso” e conservação. A
dependência ao colonialismo e ao imperialismo nos reservou uma inserção periférica
na dinâmica de desenvolvimento desigual e combinado, garantida por um Estado
hipertrofiado, e definiu uma postura agressiva da burguesia nacional em relação ao
proletariado e ao socialismo por conta de sua clara rejeição à ampliação da
cidadania53. Inspirada no pensamento de Florestan Fernandes, Behring (2008)
aponta como o “crescimento a partir de dentro” foi impedido pela “visão estreita do

52 De acordo com Santos (2012, p.56), Caio Prado Júnior salienta que existe outra forma de
colonização que foi “a realizada por emigrantes ingleses ao norte da América que objetivou a
construção de um novo mundo, cuja semelhança com as sociedades europeias iam para além de
afinidades climáticas e fosse, para eles, mais seguro (tanto econômica quanto religiosamente) que
suas sociedades de origem”.
53 Este perfil da burguesia brasileira, que parece equivale-la a um estamento de privilegiados, como

Santos (2012) demonstra, denuncia a herança senhorial e autoritária do país.


45

dinamismo do mercado interno” que seguia favorecendo os interesses da oligarquia


agrária como se não houvesse outra alternativa para o desenvolvimento econômico
no país54. Não por acaso, o trabalho livre se desenvolveu entre nós como se fosse
reflexo do trabalho escravo e a democracia se ergueu com severas restrições.

No cenário monopolista internacional, o capitalismo brasileiro evoluiu


desprovido de reformas estruturais e sob a marca da heteronomia. Ademais, ao que
parece, na visão de Juarez Guimarães55, temos vivido ciclos de modernização
conservadora (como durante a era Vargas e a ditadura do grande capital) que
acentuaram a adaptação do país aos fluxos do imperialismo. Vejamos como estes
liames se concretizam atualmente para compreendermos a reposição do sincretismo
entre nós bem como seus desdobramentos para o sincretismo profissional.

Segundo Mészáros (2011), o capitalismo – “totalizador irrecusável e


irresistível”, que não pode combinar com o princípio da democracia já que abarca
perda de controle sobre os processos de tomada de decisão, numa articulação
incomum entre economia e política – alcançou seu ponto máximo de contradição
entre maturação e saturação. Para o próprio sistema e para a humanidade, com
destaque para a força de trabalho necessária à produção capitalista mas ameaçada
pelo desemprego estrutural, os riscos são incontáveis visto que o Estado, como
protetor das condições gerais da extração da mais valia e estruturador político do
capital, é incapaz de responder à totalização exigida pela sua dinâmica 56. Como a
progressiva conexão entre concentração de capital e socialização do trabalho
ameaça a divisão do trabalho, de acordo com o autor, o controle social no mundo

54 Santos (2012) demonstra como a indústria de bens de produção não foi priorizada no Brasil
justamente porque, sob o capitalismo monopolista, o país assumiu o lugar de receptor de capitais que
os países centrais exportavam e isto guarda vínculo direto com a funcionalidade do padrão produtivo
interno ancorado no latifúndio (produção a baixo custo de matérias primas que podiam ser vendidas a
preços razoáveis) e na importância política dos grandes latifundiários junto ao Estado (o que custou
ao país imenso retardo em reformas capitalistas). Ou seja, mesmo a industrialização pesada que
ganhou terreno durante o governo JK entre os anos 1956 e 1961 - quando a política de substituição
de importações determinou um mercado interno de bens de capital e de consumo duráveis um pouco
mais autossuficiente - não acarretou qualquer mudança na estrutura fundiária nacional porquanto não
se investiu seriamente em inovação tecnológica aqui tampouco se dignou alterar a posição
subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho.
55 Cf. Behring (2008).
56 Até porque, segundo Mészáros, foi o intervencionismo do Estado na economia que acelerou a

maturação das contradições do sistema.


46

assumido pelo capital apresenta uma crise extraordinária57. Mais do que nunca, a
expansão sem freios do sistema pressiona a simples sobrevivência, exigindo, sob o
ponto de vista de Mészáros, uma análise dos limites da existência humana nos
campos militar e ecológico. Mais do que nunca, a contradição fundamental entre
aumento de expectativas e colapso da capacidade em atendê-las fica exposta e as
formas e meios de comunicação alternativos divulgam a sua limpidez. Não à toa, a
tendência do capitalismo contemporâneo tem sido a de substituir o “Estado de Bem
Estar” originado no segundo pós-guerra por uma “previdência social dirigida” focada
nos “pobres merecedores” dada a taxa de lucro em queda e o sufocamento da
proliferação do valor de troca. Do mesmo modo, não por acaso, há o aumento
progressivo do autoritarismo nos Estados e a frustração com o funcionamento da
democracia representativa58.

Ao se referir ao capitalismo contemporâneo como “novo imperialismo”


norteado pelos Estados Unidos, Harvey (2005) expressa que o imperialismo encerra
exploração de condições geográficas desiguais bem como de “assimetrias” oriundas
das relações de troca, nas quais os Estados cumprem um papel político-econômico
central que é justamente disputar a melhor posição para si próprios no fluxo da
acumulação do capital59. Como é sabido, os Estados Unidos regem a economia
internacional há mais de cinquenta anos, entretanto tal hegemonia não excluiu uma
participação destacada da Europa e do Leste e do Sudeste asiáticos nos tratados
financeiros60. No exercício de seu comando imperialista, a coerção e o consenso
foram dosados conforme os períodos históricos e os governantes; todavia, o autor
concorda com Mészáros que o uso da violência se pronunciou tanto externa quanto

57 Conforme Mészáros, o estado da religião no Ocidente, da educação e da desintegração da família


(considerado o impacto cultural dos movimentos em favor do uso de drogas, pela libertação feminina,
por outra vida comunitária) atestam o nível crítico das instituições da sociedade hoje.
58 O autor também indica que cada vez mais postos políticos do Executivo vêm sendo assumidos por

representantes de grandes empresas e grupos financeiros. Na política brasileira atual, existem vários
exemplos, como o professor Marcelo Braz mencionou na banca de avanço desta tese: é o caso dos
atuais ministro da Fazenda Henrique Meirelles, ex-presidente internacional do BankBoston, ex-
presidente do Conselho de Administração da J&F Investimentos e hoje membro do Conselho de
Administração da Azul Linhas Aéreas Brasileiras; do presidente do Banco Central Ilan Goldfajn,
economista-chefe e sócio do banco Itaú; e do ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
Blairo Borges Maggi, cuja família, através do Grupo Amaggi, foi líder na produção da soja nos anos
1990, tendo sido reconhecida a sétima mais rica do país.
59 Esta característica do imperialismo, de ser atravessado pelas lógicas do território e do capital

simultaneamente, é discutida por Harvey.


60 Vale recordar as regras neoliberais do Consenso de Washington, que se tornaram política

institucional do Fundo Monetário Internacional nos anos 1990. Dentre elas: diminuição dos gastos
públicos, abertura comercial, privatização e desregulamentação.
47

internamente61, com austera intolerância no primeiro caso, como o patrocínio de


golpes62 e apoio ao terrorismo de Estado mundialmente revelam.

Apesar da divulgação de uma autoimagem benevolente, bastante


fundamentada na promoção da segurança das democracias na Europa e do apoio à
reconstrução das economias do Japão e da Alemanha Ocidental durante a Guerra
Fria, fato é que os Estados Unidos não deixaram de priorizar seus interesses ao
longo de sua dominação até hoje63 quando, na interpretação de Harvey, utilizam
desiquilibradamente o capital “fictício” para sustentar seu poder. No raciocínio do
autor, o século XXI atesta que a financeirização não resolveu o problema recorrente
dos capitais excedentes64 e que o livre mercado, em vez de proporcionar qualidade
de vida melhor para todos, proporcionou graus de desigualdade social ainda mais
profundos65.

61 Após a Segunda Guerra Mundial, de acordo com Harvey (2005), dois princípios básicos passaram
a nortear a política interna norte-americana, independentemente do desempenho no exterior: a ordem
deve manter-se estável e a acumulação do capital e o consumo doméstico devem crescer
permanentemente em prol da paz e da prosperidade.
62 Harvey menciona Irã, Iraque, Guatemala, Chile, Indonésia e Vietnã como alguns dos países que

experimentaram esta atuação norte-americana com chancela da CIA e de outras agências. Cumpre
recordar o patrocínio de golpes na América Latina entre os anos 1960 e 1980 também no Brasil,
Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Peru. Mais recentemente, verifica-se o apoio de Washington aos
golpes em Honduras no ano de 2009, no Paraguai em 2012 e no Brasil em 2016.

63 O autor aponta que não raro nos tratos internacionais os Estados Unidos articulam relações
comerciais privilegiadas, patronato, clientelismo e coerção encoberta, numa tentativa de
mascaramento do cunho nocivo da “globalização”.
64 Muito pelo contrário, os déficits subsequentes no mundo iluminam a gravidade de se separar

capital financeiro e produção, pois, conforme Harvey (2005, p.61/62): “No nível internacional, o capital
financeiro mostrou-se cada vez mais volátil e predatório. Vários surtos de desvalorização e destruição
do capital viviam a ocorrer (em geral, pelas boas graças dos programas de ajuste estrutural do FMI)
como antídoto para a incapacidade de manter a fluidez da acumulação do capital por meio da
reprodução expandida. Em alguns casos, na América Latina, nos anos 1980, por exemplo,
economias inteiras foram varridas e seus ativos recuperados pelo capital financeiro dos Estados
Unidos. O ataque dos fundos de derivativos [hedge] às moedas indonésia e thai em 1997, apoiado
pelas agressivas políticas deflacionárias exigidas pelo FMI, levou à falência mesmo empreendimentos
viáveis por todo o Leste e o Sudeste asiáticos. O resultado disso foram o desemprego e o
empobrecimento de milhões de pessoas. Do mesmo modo, essa crise também desencadeou
convenientemente uma fuga para o dólar, confirmando o domínio de Wall Street e gerando uma
incrível expansão dos ativos para os abastados dos Estados Unidos. As lutas de classes começaram
a se concentrar ao redor de questões como os ajustes estruturais impostos pelo FMI, as atividades
predatórias do capital financeiro e a perda de direitos gerada pela privatização. O tom do anti-
imperialismo começou a deslocar-se para o antagonismo aos principais agentes da ‘financeirização’ –
com o FMI e o Banco Mundial apontados diretamente”.
65 O autor pontua como o nacionalismo, o patriotismo e o racismo foram mobilizados entre as nações

para que a sobreacumulação pudesse ser resolvida. Mencionamos este caráter nefasto do
capitalismo no item 1.1 desta tese.
48

Além disso, Harvey admite que a explosão da especulação financeira a partir


de 1973, sob a ideologia neoliberal e com o protagonismo dos Estados, acarretou
numa cronificação dos processos típicos da acumulação primitiva, desde a sua
gênese comprometidos com fraude e roubo66, o que ele denomina “acumulação via
espoliação”. O autor esclarece que o objetivo deste tipo de acumulação consiste em
liberar ativos de capital e da força de trabalho a custo bem baixo, para que o capital
sobreacumulado possa dar-lhes um uso lucrativo o mais rápido possível. Neste
contexto, a função dos Estados e dos organismos internacionais é orquestrar tais
desvalorizações sem que um colapso absoluto ocorra, daí a necessidade de
manutenção de um “estado de guerra de baixa intensidade” com repressão dos
movimentos populares de resistência.

A reversão deste cenário pós-fordista sem mergulho na barbárie, nas palavras


de Chesnais (1996), é bastante difícil. Com a deterioração ou mesmo destruição das
três formas institucionais que garantiram a expansão da acumulação do capital entre
1950 e 1975 – a saber: trabalho assalariado como tipo principal de inserção social e
acesso a renda; taxas de câmbio fixas que através de instituições e mecanismos
modelavam um clima monetário internacional estável; e, por fim, Estados
contemplados com instituições habilidosas na condução do capital privado –, a
incontrolabilidade do capital ficou escancaradamente exposta tal como Mészáros e
Chesnais, de modo distinto, acentuam67. Conforme este último autor, a tendência é
que o mundo se divida entre os que poderão seguir utilizando os recursos e aqueles

66 Uma vez que a acumulação primitiva ou originária diz respeito à pré-história do capitalismo, quando
do estabelecimento do conflito entre capital e trabalho a partir dos “cercamentos” às terras
camponesas na Europa, que forçou o deslocamento para as cidades de grande quantidade de força
de trabalho; da exploração de ouro e prata na América; da escravidão do povo africano; da tomada e
saques da Ásia etc. (NETTO e BRAZ, 2008), Harvey (2005, p.121) ressalta o seguinte: “Todas as
características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na
geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a
formação de um proletariado sem terra têm se acelerado em países como o México e a Índia nas três
últimas décadas; muitos recursos antes partilhados, como a água, têm sido privatizados (com
frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas
alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricação caseira)
de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O
agronegócio substituiu a agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no
comércio sexual)”.
67 Se na nota 16 do item 1.1., apoiados em Lenin e Sweezy, tratamos da vigorosa atribuição dos

bancos na consolidação do capitalismo monopolista como intermediários de pagamentos, na


formação de sociedades anônimas e na fusão de empresas, em sua fase contemporânea, é nítido
como tal função perdeu sua força tal o quadro de liberalização que permitiu que os oligopólios
acessassem diretamente o mercado financeiro e passassem a direcionar parte de seus depósitos
para poupanças institucionais. Segundo Chesnais (1996, p.311): “A recessão foi tão mais severa
quanto pronunciada a fragilidade dos bancos”.
49

da periferia que serão contidos em guetos onde a luta pela sobrevivência


predominará sangrenta. Fora este “dualismo”, Chesnais indica que existem posições
a favor de um contrato social global68 ; contudo, ele não crê ser possível um aceite
por parte dos representantes do capital.

Na realidade, a hierarquização entre as nações foi violentamente acirrada no


capitalismo monopolista vigente, pois a efetivação de políticas de
desregulamentação, privatização e liberalização comercial abalou a capacidade de
desenvolvimento parcialmente independente da grande maioria 69. O autor assinala
que o assunto da administração da pobreza foi aparecendo nos relatórios do Banco
Mundial na medida em que se foi constatando que o desenvolvimento – no sentido
da extensão dos modos de produção e consumo dos países avançados – não seria
destino natural para todos os cantos do globo:

Mesmo levando em conta certas mudanças de consumo que vieram depois


das duas ‘crises do petróleo’ e o surgimento de novas tecnologias, a extensão
para todo o planeta, das formas de produção, de consumo, de transporte (por
automóvel individual) associadas ao capitalismo avançado é incompatível
com as possibilidades e limitações tecnológicas atualmente previsíveis. Os
fundamentos do modo de desenvolvimento do capitalismo monopolista
contemporâneo – a propriedade privada, o mercado, o lucro, o consumo
exacerbado pelo aguilhão da publicidade, mas também constantemente
buscado como base de retomada da atividade industrial (inclusive pelos
partidos ‘de esquerda’ e pelos sindicatos), o produtivismo a qualquer custo,
sem atenção aos recursos naturais e à repartição do trabalho e da renda –
estabelecem os seus limites sociais, políticos e geográficos (CHESNAIS,
1996, p.314).

A possibilidade do mergulho da sociedade atual na barbárie, na sua tensão


com a viabilidade do socialismo, também é trazida por Netto (2010). O autor salienta
o conjunto de impactos da restauração do capital, calcada no trinômio da
flexibilização70-desregulamentação71-privatização72, para a totalidade da vida social.

68 Importa destacar que Harvey (2005) considera a mesma saída temporária como um gênero novo
de “New Deal”. De acordo com seu raciocínio, este pacto coletivo poderia libertar a acumulação do
capital do neoliberalismo, tornar o Estado mais redistributivo e controlar de forma democrática a
ascendência irrestrita dos oligopólios.
69 No que tange o “Terceiro Mundo”, Chesnais (1996, p.313) afirma que as relações são restritas a

alguns de seus países:” Certos países ainda podem ser requeridos como fontes de matérias-primas
(...). Outros são procurados, sobretudo pelo capital comercial concentrado, como bases de
terceirização deslocalizada a custos salariais mais baixos (...). Mais uns poucos países, por fim, são
atrativos devido a seu enorme mercado interno potencial (por exemplo, a China)”.
70 Referente à produção e às relações de trabalho (Netto, 2010).
50

Em primeiro lugar, a estrutura de classes se altera: a classe operária e as camadas


médias sofrem as oscilações da divisão social e técnica do trabalho; o campesinato
se encolhe progressivamente; os segmentos desprotegidos proliferam-se enquanto
a oligarquia financeira global, detentora de imenso poder econômico e político,
disputa com as instituições formais dos Estados os rumos nacionais mais
estratégicos em apelação corriqueira à corrupção.

Em segundo lugar, a restauração do capital também modifica o perfil


demográfico das populações em virtude dos processos de urbanização, do
crescimento do setor terciário, do espraiamento da educação formal e da
propagação da cultura por meio dos veículos de comunicação social 73. No que diz
respeito à cultura propriamente dita sob o tardo-capitalismo, Netto aponta que todos
os seus momentos – produção, divulgação e consumo – estão hoje tomados pela
lógica do capital e, além disso, há o crescimento de formas culturais compartilháveis
através dos meios eletrônicos como televisão, vídeo e multimídia. Para o autor, o
movimento pós-moderno tem contribuído largamente não só para o afã coletivo ao
consumo de bens materiais e ideais, mas igualmente para a semiologização do
real74 e para o individualismo possessivo.

Em terceiro lugar, no contexto mundial presente, a sociedade civil tem


apresentado “novos sujeitos coletivos” emergentes em “novos movimentos sociais”
cujas pautas de reivindicações exigem “novos direitos” na perspectiva de ampliação
da cidadania. Há que se atentar para os limites do potencial emancipatório destes
grupos, inclusive com reincidência de corporativismos, alerta Netto, já que a
universalização da pluralidade de motivações que os alimentam depende de uma
intervenção política de instâncias competentes75. No Brasil, por exemplo, estão em

71 Referente às relações comerciais e às cirandas financeiras (Netto, 2010).


72 Referente ao patrimônio estatal (Netto, 2010).
73 Aqui o autor, baseado em Hobsbawn, ressalta os rebatimentos para a instituição da família, com

destaque para a atenção pública recentemente incrementada às mulheres e aos jovens,


considerando-se a transformação dos padrões de sociabilidade.
74 Netto explica que se trata de uma maneira de interpretar a realidade como se a sua representação

ou o seu imaginário a definissem inteiramente. Ou seja, a imediaticidade da vida social é comumente


encarada como a realidade em si, numa clara dissolução do que se concebia como aparência e
essência na Modernidade.
75 No nosso ponto de vista, a exploração do trabalho pelo capital constitui a determinação

fundamental de existência da maior parte dos sujeitos deste planeta a ser reconhecida, o que não
significa em absoluto desprezar suas demais condições de gênero, identidade de gênero, orientação
sexual, raça, etnia, cor, religião, nacionalidade, idade, de saúde física ou mental etc.
51

notoriedade atualmente o Movimento Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e


Transexuais(LGBT) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Em quarto lugar, no capitalismo contemporâneo, a atuação do Estado como


regulador da economia e da reprodução social se restringe em razão da ascensão
da ideologia neoliberal pregadora do antiestatismo, daí o discurso dominante de que
a sociedade civil passe a incorporar parte de suas obrigações, sem falar no
fenômeno de despolitização das demandas democráticas que conseguem se
manifestar. Neste país, novamente a título de exemplo, se disseminou a
denominação de “vândalo” para todo e qualquer manifestante contra a ordem
estabelecida.

Resumidamente, o grande capital obteve vitórias inquestionáveis e que,


evidentemente, custaram caríssimo aos trabalhadores76:

Do ponto de vista político, medidas de ‘ajuste’ e


‘flexibilização/desregulamentação/privatização, em muitos casos, foram
chanceladas por mecanismos eleitorais dotados de legitimidade formal. Do
ponto de vista ídeo-cultural, contando com a maré-montante pós-moderna,
os ganhos do capital não foram desprezíveis – contribuíram para conter e
reverter os avanços dos anos 1960 e inícios da década de 1970,
configurando o período aberto pelos anos 1980 como o de ‘um
conservadorismo cada vez mais beligerante’; a proposta socialista
revolucionária foi acantonada, no bivaque das velharias da Modernidade. E,
do ponto de vista econômico, a lucratividade das grandes corporações foi
recuperada (NETTO, 2010, p.18).

Com efeito, se revela cada vez mais árduo para os trabalhadores reagir ao
acirramento dos meios bárbaros de avanço do capital que, conforme Netto, em fins
do século XX comprova o esgotamento de suas possibilidades civilizatórias . No
pensamento do autor, a financeirização especulativa, a centralização monopolista da
biodiversidade e os crimes ambientais, a decadência ideológica, a piora da
manipulação das consciências pela mídia evidenciam o fim do potencial progressista
do modo de produção capitalista, sem falar nos modos atuais de enfrentamento da
“questão social” expressos na militarização da vida social – como o extermínio “em

76Melhor dizendo, vitórias do capital que custaram aos trabalhadores: seus postos de trabalho, a
mínima dignidade de seus salários, além da estrutura da seguridade social pública.
52

nome da lei” e o encarceramento massivo – e no novo assistencialismo que, através


das “parcerias público-privado”, foca suas ações no alívio da indigência77.

Se considerarmos tais traços do capitalismo contemporâneo na realidade


brasileira, veremos que, ao contrário de uma certa propaganda lulista , o governo
petista de Lula (2003-2011) confirmou a condução neoliberal do Estado brasileiro
que vinha sendo assumida desde 199078, com grandes ganhos para o sistema
bancário, para o agronegócio, para a Bolsa de Valores, sem contar com o apoio
novo e abundante dos segmentos populares em função da recuperação do salário
mínimo, da ampliação do crédito vantajosa para o mercado e da política voltada para
diminuição da pobreza bem representada pelo Programa Bolsa Família. Entretanto,
nas gestões de Lula, a desigualdade social decresceu muito pouco, posto que as
concentrações de propriedade e de poder político sequer foram tocadas79.

De acordo com Braz (2017), o governo Dilma (2011-2016) – que deu


prosseguimento à política econômica anterior voltada para o grande capital e seus
representantes nacionais80 – foi deposto em mais uma solução “pelo alto” tramada
pelas elites, com participação ativa do Legislativo, Judiciário, Polícia Federal, mídia e
grandes empresas. Conforme o autor, neste momento a democracia burguesa expôs
mais uma vez seus limites intransponíveis, a estratégia petista de conciliação de
classes acabou por ser enterrada e, com ela a concepção de “esquerda” que se

77 Quanto a estas novas e regressivas respostas à “questão social”, vale resgatar uma afirmação do
autor comprobatória de que o avanço civilizatório do capitalismo se estabelece na barbárie como
Marx compreendia: “A articulação orgânica de repressão às ‘classes perigosas’ e assistencialização
minimalista das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da ‘questão social’ constitui uma face
contemporânea da barbárie” (NETTO, 2010, p.21).
78 Com exceção do tratamento conferido aos movimentos sociais que desta vez não foram

criminalizados. Netto (2010) salienta, todavia, o esforço deste governo em cooptá-los.


79 Mota (2017, p.42) opina o seguinte: “Evidentemente que não podemos menosprezar o peso

material e social das políticas de redução da pobreza implementadas na última década, a despeito de
terem sido tímidas e de não afetarem a reprodução da desigualdade social no Brasil. Embora
atendam necessidades reais das classes subalternas, elas também contemplaram interesses de
importantes setores econômicos, como foi o caso da construção civil, das obras de infraestrutura, da
criação de vagas em universidades privadas, da expansão dos planos de saúde, do crédito ao
consumidor, da bancarização [grifo da autora]dos cartões magnéticos do Bolsa Família etc., sem
esquecer os nichos de acumulação sob os auspícios da renúncia fiscal e dos recursos do BNDES
que ativaram o mercado interno, ampliaram o consumo e expandiram os empregos”.
80 Segundo Iasi (2017), o governo Dilma, diante da crise econômica e da radicalização da luta de

classe, particularmente após as manifestações de junho de 2013, rompeu com o pacto de classes
que caracterizava até então a estratégia petista e partiu para a garantia franca da ordem com
criminalização dos movimentos sociais como a Lei Antiterrorismo sancionada em março de 2016
ratificou. Na interpretação do autor, o enfraquecimento do governo, cujo vice-presidente
peemedebista teve papel central, abriu o campo para que segmentos de direita do Parlamento
aproveitassem o ensejo para liquidar a era petista por meio de um golpe.
53

difundiu entre nós81. Para Braz, a busca de uma nova hegemonia pelas classes
dominantes – mesmo com lutas internas que não maculam o consenso burguês – se
reveste de conservadorismo reacionário e se exprime na aceleração de
contrarreformas extremamente regressivas para os trabalhadores com quatro
objetivos principais82:

- recolocar o Brasil (e a América Latina) na área de influência prioritária dos


Estados Unidos no sentido de retomada, em condições ótimas[grifo do
autor], da sua dominância imperialista em nosso subcontinente;
- reduzir os custos do trabalho no país e aumentar a produtividade média do
trabalho com base em novas formas de combinação de mais-valia relativa
(incremento tecnológico para reduzir trabalho necessário e baratear a
reprodução social da força de trabalho) e mais-valia absoluta (sobretudo via
flexibilização das relações trabalhistas com vistas a atacar as formas de
proteção social do trabalhador);
- implementar uma cruzada conservadora e reacionária contra os avanços
sociais no campo das “minorias” como forma de promover um retrocesso
cultural e ideológico no país;
- readequar as políticas sociais a um novo programa neoliberal mais radical
de modo a criar condições para um ciclo profundo de políticas de
austeridade fiscal que pesarão sobre os trabalhadores (BRAZ, 2017, p.95).

Trata-se, efetivamente, para além dos interesses do PMDB de Temer e


daqueles partidos que dão suporte ao seu governo ilegítimo, de uma agenda política
e econômica do imperialismo para a América Latina em prol da acumulação
capitalista em tempos de crise nos países centrais, desaquecimento econômico da
China, sem contar com as guerras na Ásia e no Oriente Médio que atravancam o
movimento do grande capital. Deveras, no continente latino-americano, a economia
brasileira significa um polo vantajoso para a avidez imperialista.

81 A derrocada ética do Partido dos Trabalhadores não consiste em qualquer acontecimento, já que
este foi o maior partido de esquerda da América Latina, tendo emergido do novo sindicalismo nos
anos 1970 que alavancou a reabertura democrática no Brasil. Há que se reconhecer, no entanto, que
houve e há no Brasil resistência “dos de baixo” – através dos movimentos sociais – e da esquerda – a
história do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado
(PSTU) e do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) assim o demonstram – para além da estratégia
democrático-popular consagrada pelo PT. Aliás, Iasi (2017) salienta que o PT padeceu de dois
grandes equívocos: subestimou o poder do Estado burguês (otimista com as mudanças recentes na
sociedade civil como se ela não fosse um campo de luta de classes) e acreditou que a burguesia não
recorreria à força se os trabalhadores “se mostrassem confiáveis e abrissem mão da revolução”
(p.81) (ignorando o jogo da hegemonia que necessariamente engloba coerção e consenso).
82 O autor afirma que o documento Uma ponte para o futuro lançado pelo PMDB em 29 de outubro de

2015, portanto antes do impeachment, expõe esta agenda de maior austeridade sobre os
trabalhadores combinada com condições mais favoráveis para a acumulação capitalista.
54

A promulgação da Emenda Constitucional n°95/2016 (que congela por vinte


anos investimentos públicos, sobretudo em saúde e em educação); da Reforma
Trabalhista (que autoriza a flexibilização das relações de trabalho, a redução dos
salários e o aumento da jornada de trabalho num desmonte da CLT); da nova
regulamentação para fiscalização do trabalho escravo (que condiciona o
reconhecimento deste tipo de trabalho apenas com privação do direito de ir e vir e
centraliza nas mãos do Ministro do Trabalho a inclusão dos nomes das empresas
em violação); da lei de regulamentação da terceirização irrestrita; do Programa de
Parcerias de Investimentos (PPI) (que permite intensificar a privatização do
patrimônio público), entre outros projetos que vêm rapidamente sendo homologados,
comprovam a desfaçatez da agenda neoliberal a que se refere83. Mais do que isso, a
recessão em que o país mergulha hoje, sob um ataque brutal às conquistas sociais
garantidas na Constituição Federal de 1988, atesta a submissão nacional à
reconfiguração do capital financeiro cuja conta quem paga são os trabalhadores.
Neste cenário, como ressalta Castilho et al. (2017), a Seguridade Social pública
sofre a agudização de um processo que a professora Ana Elizabeth Mota já indicava
nos anos 1990: a privatização das políticas da previdência social e da saúde
articulada com o alargamento da política da assistência social em sintonia com as
orientações dos organismos financeiros internacionais – defensores de medidas e
programas de combate à pobreza, a exemplo dos programas de transferência de
renda84. Outrossim, sabe-se como o fundo público – não sem sentido –
,especialmente os recursos destinados à Seguridade Social através do mecanismo
da Desvinculação de Receitas da União (DRU), é usurpado para qualquer outra
despesa julgada necessária, composição do superávit primário ou pagamento de
juros de dívida pública85.

83 Está para ocorrer a aprovação da contrarreforma da Previdência Social (que abarca desvinculação
das pensões do salário mínimo, aumento da idade mínima e do tempo de contribuição) e ainda estão
para decisão em Brasília, o que confirma a escalada do conservadorismo reacionário no país:
PEC33/2012 de redução da maioridade penal; PEC 181/2015 que proíbe o aborto em todos os casos,
inclusive o de estupro; PL6583/2013 do Estatuto da Família (que exclui as famílias homoafetivas).
84 Netto (2010) denuncia o minimalismo desta compreensão da política social na contemporaneidade,

cujo alvo se torna a miséria.


85 Sobre a condução neoliberal do país, que atinge o orçamento público e acentua nossos problemas

históricos, Iasi (2017, p.73) assinala que: “Ainda somos um país que tem sangrado seus recursos
pelos mecanismos financeiros da dívida interna e externa que em fevereiro de 2016 somava R$ 2,81
trilhões e a previsão é que chegará aos R$ 3,3 trilhões até o final do ano, representando em 2015
cerca de 66,2% do PIB. A presença dos grandes monopólios transnacionais não apenas cresceu,
mas é incentivada. O estoque de investimentos diretos de empresas estrangeiras, entre 1995 e 2000,
55

Na opinião de Braz (2017), todo este retrocesso chancelado pelas classes


dominantes brasileiras se calca numa intolerância a avanços sociais, mesmo
aqueles que não atingem diretamente seus interesses econômicos. Tal intolerância
de longa data – que o autor denomina como racista e classista – guarda relação com
a herança da escravidão mas anuncia, neste momento, articulação com
componentes culturais fascistas graves:

Se o fascismo é uma forma política sempre possível desde quando os


monopólios constituíram-se como dominantes na economia capitalista, no
Brasil ele se amalgama com os elementos históricos de uma cultura de
classe dominante que se alimenta do racismo. Junta-se a isso uma cultura
política que, mesmo nos períodos republicanos, pouco avançou em relação
à laicidade e que se alimenta também da intolerância religiosa. O avanço de
elementos fascistas entre nós faz recrudescer ainda a misoginia que
também foi usada contra a ex-presidente Dilma, ainda que não tenha sido a
questão determinante [grifo do autor] para sua queda. Em todos os casos
estamos diante de traços profundamente antidemocráticos que promovem
no Brasil uma ascensão preocupante de forças conservadoras reacionárias.
A chamada lei da mordaça (“Escola sem Partido”) é talvez o melhor
exemplo dessa ascensão (BRAZ, 2017, p.102).

Isto posto, está nítido que vivemos uma conjuntura de intensificação do


sincretismo no país, típica da “via prussiana” e seus complexos desdobramentos
para o discernimento da realidade, distinguida pelo pós-fordismo e pela pós-
modernidade com a constituição de uma nova sociabilidade “empreendedora” e
“empoderada” na qual cada um, sujeito, grupo ou instituição, pode e deve resolver
suas necessidades no mercado. Nada mais (neo)liberal.

As consequências desta conjuntura para o Serviço Social são profundamente


sérias, a começar pelo seu impacto no retrato atual dos vetores da estrutura
sincrética profissional que independem da vontade e da ação dos assistentes
sociais:

A ´questão social´ assume feições hoje dramáticas e ainda mais


heterogêneas e difusas. O cotidiano tem aprofundado os processos
alienantes, como o fetichismo da mercadoria e a cultura do individualismo,

registrou um aumento de 147%, chegando a US$ 103 bilhões, com ativos da ordem de US$ 467
bilhões correspondendo a 80% do PIB. A concentração de terras em nosso país cresceu 2,5% entre
2010 e 2014, segundo dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural, com as grandes propriedades
saltando de 238 milhões para 244 milhões de hectares. De acordo com dados divulgados pelo MST,
haveria no Brasil em 2016 cerca de 175,9 milhões de hectares de terras improdutivas”.
56

que estão ligados ao hedonismo e à falta de perspectivas de futuro –


agravada pela crise estrutural do capital. Há, ainda, o avanço do racismo e
da xenofobia, intimamente relacionados com a questão do desemprego
estrutural; os índices de guerra civil provenientes das violências urbana,
racial e de gênero; a ofensiva reacionária que tem resultado na
criminalização da pobreza e na execução de políticas de ‘tolerância zero’; o
consumismo e a cultura do descartável.
Quanto ao terceiro traço do sincretismo – a manipulação de variáveis
empíricas, também se repõe maximizada frente às tendências de
hiperfocalização e assistencialização das ações de intervenção sobre a
reprodução da força de trabalho. Se cruzarmos as duas tendências:
cronificação da ‘questão social’ e focalização minimizadora das políticas
sociais, resta evidente que os limites institucionais para o exercício
profissional dificultam uma atuação que ultrapasse o horizonte da
intervenção microscópica, reiterativa e fragmentária – ainda que
referenciada por valores emancipatórios e comprometida com a qualidade
possível dos serviços prestados à população (SOUZA, 2016, p.138-139).

Se o fortalecimento da classe operária a partir dos anos 1970 – demonstrado


pela trajetória do novo sindicalismo e depois do próprio PT ao longo dos anos 1980
–, em conjunto com o processo de redemocratização brasileira, animou a maturação
da Intenção de Ruptura e a constituição do projeto ético-político profissional, hoje
estamos num momento histórico absolutamente tão diverso e nefasto que ameaça
severamente, não só as condições gerais de atuação dos assistentes sociais como
trabalhadores assalariados, mas igualmente as defesas edificadas pelas entidades
representativas para salvaguardar a formação e o exercício profissionais.
57

CAPÍTULO 2 – A ESTRUTURA SINCRÉTICA DO SERVIÇO SOCIAL: O


SIGNIFICADO DO SINCRETISMO DA PRÁTICA

Já vimos que o Serviço Social emergiu para responder a dadas demandas do


capitalismo dos monopólios em face de uma resistência operária, quando o Estado
assume um papel intervencionista novo na economia e na reprodução social. Tais
demandas têm origem na nova dinâmica econômica monopolista – caracterizada
por investimento em setores de maior concorrência, aumento de preços, tendência
ao subconsumo bem como economia de força de trabalho com inovações
tecnológicas –, o que leva à burguesia a “capturar” o Estado, esfera de intervenção
extra econômica por excelência, em prol de garantias na acumulação. Neste
processo histórico, várias são as funções sistemáticas que lhe são imputadas pela
burguesia monopolista em busca da multiplicação de lucros através do controle de
mercados. Dentre elas, temos a estruturação de políticas sociais para distinto
enfrentamento da “questão social”.

Entretanto, o raciocínio de Netto vai mais além. Ele aponta que, convocado
para intervir na “difusa” “questão social”, o profissional de Serviço Social se vê
diante de várias e heterogêneas situações do cotidiano que conjugam aspectos
econômicos, políticos, sociais, culturais etc. Estes aspectos que se referem à
totalidade da vida social só podem ser separados a partir de procedimentos
burocrático-administrativos deliberados pelas instituições e expressos em seus
fluxos de funcionamento86.

Assim sendo, para Netto, o desempenho aguardado do assistente social pela


ordem vigente é a de “manipulação de variáveis empíricas de um contexto
determinado”, ou seja, de interferência em circunstâncias de vida de sujeitos e
grupos com objetivo expresso de alteração das mesmas sem qualquer conotação
negativa precípua no uso do termo ‘manipulação’, como ressalta o autor. No lastro
de tal expectativa, o conhecimento necessário para este profissional deve
apresentar-se o mais instrumental possível, exigência apropriada para que

86
Quanto a este assunto, Maranhão (2009) reflete que o Serviço Social lida diretamente com a
burocratização da vida social, uma das tendências mais reificadoras do capitalismo, nos cotidianos
institucionais.
58

compreendamos o apelo do empirismo e do pragmatismo sem mencionar a


banalização do ecletismo teórico até os dias atuais no arcabouço cultural da
categoria.

Todo este contexto macroscópico impede o discernimento de uma


especificidade profissional para o assistente social, como demonstra a tese do
sincretismo87 defendida por Netto. Vejamos a apresentação desta tese em dois
trechos da sua obra Capitalismo monopolista e serviço social:

O sincretismo nos parece ser o fio condutor da afirmação e do


desenvolvimento do Serviço Social como profissão, seu núcleo organizativo
e sua norma de atuação. Expressa-se em todas as manifestações da
prática profissional e revela-se em todas as intervenções do agente
profissional como tal. O sincretismo foi um princípio constitutivo do Serviço
Social (NETTO, 2006a, p.92).

Na continuidade, Netto ainda acrescenta:

Três são os fundamentos objetivos da estrutura sincrética do Serviço Social:


o universo problemático original que se lhe apresentou como eixo de
demandas histórico-sociais, o horizonte do seu exercício profissional e a
sua modalidade específica de intervenção (idem, grifos nossos).

Em primeiro lugar, o “universo problemático original” diz respeito à “questão


social” com sua “multiplicidade quase infindável” de manifestações conexas que
desafiam a intervenção do assistente social. Durante a era dos monopólios, fase na
qual a tensão entre produção socializada e apropriação privada dos frutos do
trabalho atinge seu auge, exponenciam-se evidentemente as expressões da
“questão social”. Por esta razão, no raciocínio de Netto, o assistente social, nos
limites de seu escopo profissional nas instituições, acaba por remeter as demandas
de toda a ordem que lhe chegam, sem solução nesta sociedade, para outras
instâncias, inclusive do próprio Serviço Social, através das triagens e
encaminhamentos.

87
Souza (2016, p.114) concebe que a tese apresentada por Netto toma a inserção concreta do
Serviço Social na divisão social e técnica do trabalho, ou seja, o supõe convocado a assumir
determinado papel na administração da “questão social”: “’A tese do sincretismo’ ressalta a
articulação ontológica do Serviço Social com a estrutura administrativa, edificada na sociedade
burguesa consolidada, para intervenção na chamada ‘questão social’”.
59

O segundo fundamento do sincretismo da prática do Serviço Social


destacado pelo autor é o cotidiano, “horizonte real que baliza a intervenção
profissional do assistente social” (NETTO, 2006a, p.95). Como, para Netto, a
expectativa histórica é que o Serviço Social molde os hábitos dos trabalhadores em
favor dos interesses dominantes, mais uma vez o profissional se vê diante de um
emaranhado variado de ocorrências sobre as quais deve operar com vistas a
acomodar os comportamentos. Ainda conforme o seu pensamento e, na perspectiva
do projeto ético-político profissional, é de suma importância que o assistente social,
profissional do qual se espera a “programação” da cotidianidade, teça a análise
crítico-dialética desta não apenas para conhecer suas características
fundamentais88 mas, também, porque a reificação, alienação típica engendrada pelo
capitalismo, constitui obstáculo poderoso para sua apreensão (NETTO, 1981 e
2012).

Por último, a modalidade específica de intervenção que consiste na


“manipulação de variáveis empíricas de um contexto determinado” pelo assistente
social é, segundo o autor, o mais determinante dos fundamentos para esclarecer a
relação do Serviço Social com o sincretismo. Netto desenvolve que a ação
profissional só é valorizada quando condutas e situações individuais e grupais são
modificadas e, por isso, não à toa, a ideia de tratamento vingou tão marcante no
passado profissional. Neste sentido, são duas as implicações desta modalidade
interventiva para a profissão: o apelo do empirismo e pragmatismo inspirados na
teoria positivista – dada a necessidade do conhecimento do social ser o mais
instrumentalizável possível – e o ecletismo teórico a serviço da prática manipuladora
de contextos de vida, “instância decisiva da intervenção profissional”.

A seguir, nos debruçamos com mais atenção sobre cada um destes


determinantes históricos do sincretismo da prática inerente à profissão, que revelam
tanto o lugar intricado destinado a ela na divisão social e técnica do trabalho quanto
os dilemas práticos recorrentes nos distintos espaços ocupacionais.

88
De acordo com Netto (2012), a pesquisa sobre a ontologia do ser social de Lukács se dedicou
inicialmente ao desvelamento do cotidiano. O autor clássico afirmou que a heterogeneidade,
imediaticidade e superficialidade extensiva são suas determinações.
60

2.1. “Questão social”

Não à toa, a “questão social” constitui o vetor inicial do sincretismo da prática


do Serviço Social, de acordo com Netto. Afinal, é a sua permanência como produto
do desenvolvimento capitalista em sua etapa monopolista – expressa através de
correlatas e concretas desigualdades econômicas, sociais e políticas - que
impulsiona a profissionalização. Como é sabido, é exatamente na idade dos
monopólios que estas diversas expressões da “questão social” se cronificam, o que
contribuiu para o cenário histórico determinante do surgimento do Serviço Social.
Todavia, as suas origens são anteriores a esta fase, correspondem ao período
concorrencial do modo de produção capitalista.

Em seu desenvolvimento sobre a “lei geral da acumulação capitalista”, Marx


(2013) esclarece que quanto maior é a acumulação de capital, maior a acumulação
de miséria, já que o aumento dos meios de produção e da produtividade do trabalho
encerram necessariamente um dispêndio cada vez menor de força de trabalho,
gerando um exército industrial de reserva progressivamente mais abundante, que
impacta, com igual força, as condições gerais de trabalho e de vida dos
trabalhadores ativos. Este caráter antagônico da acumulação capitalista revela que a
“questão social” advém do avanço do capitalismo e que suas manifestações nesta
ordem nada se assemelham com as desigualdades sociais e o quadro de escassez
identificados nas sociedades anteriores. Segundo Netto (2006b), a novidade é que
sob o capitalismo a pobreza passou a se proliferar na razão direta do aumento da
capacidade social de produzir riquezas, isto é, passou a crescer num contexto
favorável à redução da situação de escassez.

A expressão “questão social” passou a ser utilizada a partir da terceira


década do século XIX por críticos da sociedade e filantropos de diferentes filiações
políticas para transmitir o fenômeno do pauperismo – a nova pobreza absoluta
diretamente proporcional à capacidade de produzir riquezas – que assolava a
Europa Ocidental, em particular, a Inglaterra e a França que experimentavam a
Primeira Revolução Industrial. Como é sabido, esta se alavancou com o suporte
61

técnico do tear e da máquina a vapor89, o emprego de trabalhos feminino e infantil90


e a extensão das jornadas de trabalho91 (NETTO, 2006b e SANTOS, 2012).

Logo depois, a partir da segunda metade do século XIX, a expressão


“questão social”92 passou a compor o vocabulário do pensamento conservador laico
e confessional. Segundo Netto (2006b), enquanto os pensadores laicos afirmavam
que as expressões da “questão social” nada mais eram do que resultantes
características de qualquer ordem social que mereciam atuação tópica reformista, os
pensadores confessionais pregavam para minorar seu vulto já que a “sua
exacerbação contraria a vontade divina [grifo do autor] (é emblemática, aqui, a lição
de Leão XIII, de 1891)”93. Ou seja, em ambas as visões que a naturalizam, a
“questão social” é entendida como objeto de ação moralizadora e seu enfrentamento
não deve perturbar a propriedade privada dos meios de produção, preservando,
portanto, os nexos centrais da sociedade capitalista.

Como foi salientado anteriormente, a Revolução de 1848 – organizada pelos


trabalhadores europeus em contraposição ao Antigo Regime que a burguesia
revolucionária ainda derrubava94 – consistiu o grande marco para a compreensão da
“questão social”. De acordo com Santos (2012), os primeiros seis meses desta
guerra civil se deram na França, onde a Liga dos Comunistas, cujas ideias se
consubstanciaram no Manifesto do Partido Comunista elaborado por Marx e

89
Inspirada em Hobsbawm, Santos (2012) elucida que a indústria têxtil foi a que se destacou na
revolução inglesa não só pela quantidade de trabalhadores empregados nela, mas também pela sua
expressão econômica no país àquela época.
90
Santos (2012, p.36) esclarece que: “(...) além de oferecerem menor resistência à disciplina própria
dos novos processos de trabalho, mulheres e crianças eram úteis também às necessidades
crescentes de superexploração da força de trabalho como forma de superar as pequenas crises que
resultavam na queda da taxa de lucro”.
91
Estas apresentavam em média 16 horas sob ritmo ditado pelas máquinas e vigilância contínua e
desumana, o que aumentava as taxas de mortalidade por exaustão de trabalho “quando as condições
materiais de progresso científico colocam, pela primeira vez na história da humanidade, a
possibilidade de diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário e, ao mesmo tempo, aumentar
o volume da produção” (SANTOS, 2012, p.37).
92
Santos lembra que, embora Marx não tenha se servido desta expressão propriamente em sua obra,
é indiscutível que sua crítica da economia política iluminou os elos entre a “questão social” e a lei
geral da acumulação capitalista.
93
Netto (2006b, p. 155).
94 Hobsbawn (1982) elucida que esta revolução heterogênea eclodiu particularmente na França, na

Confederação Alemã, no Império Austríaco e na Itália, regiões onde predominantemente regia uma
monarquia absoluta ou um principado, com exceção da França que já experimentava um “reino
constitucional burguês”, ou seja, uma república democrática burguesa que os trabalhadores tinham
auxiliado a constituir.
62

Engels95, existia desde 1847. A Revolução de 1848 consagrou a luta dos


trabalhadores contra a exploração capitalista que, desde o luddismo de1810 e o
cartismo entre 1839 e 184796, já denunciava suas cruéis manifestações como o
desemprego e a fome. Se da parte da burguesia, seus representantes ideológicos
passaram a impedir o entendimento da relação entre capitalismo e pauperização em
defesa da ordem estabelecida, o movimento revolucionário de 1848

(...) feriu substantivamente as bases da cultura política que calçava até


então o movimento dos trabalhadores: 1848, trazendo à luz o caráter
antagônico dos interesses sociais das classes fundamentais, acarretou a
dissolução do ideário formulado pelo utopismo [grifo do autor]. Dessa
dissolução resultou a clareza de que a resolução efetiva do conjunto
problemático designado pela expressão ´questão social´ seria função da
eversão completa da ordem burguesa, num processo do qual estaria
excluída qualquer colaboração de classes” (NETTO, 2006b, p.155-156).

Para além deste fundamental despertar político dos trabalhadores, Marx no


primeiro livro de O capital, publicado em 1867, comprovou teoricamente que não há
meios de se liquidar com a “questão social” sem liquidar com o capitalismo. Uma
vez que a “questão social” é gerada pela característica particular da subsunção do
trabalho ao capital, a exploração – esta que pode ser pela primeira vez abolida sem
afetar a produção da riqueza social (mas não é) –, verifica-se que suas expressões
procedem, conforme raciocínio de Netto (2006b, p.158):

(...) de uma escassez produzida socialmente [grifo do autor], de uma


escassez que resulta necessariamente da contradição entre as forças

95 Cf. Netto (1998).


96
O luddismo foi um movimento dos trabalhadores ingleses caracterizado pela destruição das
máquinas que não demonstrou uma consciência de classe “para si” justamente porque não
conseguia vislumbrar a classe capitalista como real adversária. O cartismo, por sua vez, consistiu
numa reação com várias manifestações massivas em favor da democracia política no Legislativo
inglês, tendo como eixo político a “Carta do Povo” que reivindicava sufrágio universal para todos os
homens, renovação anual do Parlamento, fixação de remuneração parlamentar e regulamentação da
jornada de trabalho de 10 horas. Para além destes movimentos mais conhecidos, Santos (2012,
p.39) trata de outras ações de resistência da classe do trabalho: “Foram muitas manifestações
espontâneas que podem ser mencionadas como parte do processo de resistência e luta social nas
novas condições que se estavam gestando. Eram frequentes, até então, os motins e protestos
desesperados, a rebelião sem liderança e a utilização da violência entre os próprios trabalhadores,
como foi o caso de inúmeras agressões a imigrantes, que eram vistos como inimigos por disputarem
os postos de trabalho disponíveis (HOBSBAWN, 2005). Sempre duramente reprimidas, essas
manifestações representavam, para as classes dominantes, apenas desordem e ameaças
episódicas, pois não chegavam a colocar o sistema social em questão”.
63

produtivas (crescentemente socializadas) e as relações de produção (que


garantem a apropriação privada do excedente e a decisão privada da sua
destinação).

Segundo Hobsbawn (1982), a Primavera dos Povos, como ficou conhecida a


Revolução de 1848, cujos integrantes foram essencialmente trabalhadores pobres,
se extinguiu por completo no ano seguinte de 1849 com a partida para o exílio de
suas lideranças e retomada do poder pelos monarcas ou príncipes anteriores do
continente (na França, a república resistiu mais dois anos até o golpe de estado de
Luís Bonaparte com a implantação do Segundo Império). A partir deste momento, o
desenvolvimento capitalista deslanchou significativamente – na atmosfera mais
propícia de liberalismo econômico97 e no ritmo veloz da industrialização, do
comércio e dos investimentos internacionais, inclusive com certa tolerância à
formação de sindicatos e ao direito à greve – até a depressão de 1857, que contou
com uma substantiva recuperação econômica em 1860, e daí a crise de
superprodução entre 1871-1873, que definiu uma nova ofensiva do capital, desta
vez através do fenômeno da monopolização aqui já discorrido98.

No que tange ainda à fase concorrencial capitalista, marcada pela ideologia


dominante liberal99, Behring e Boschetti (2008) sinalizam que as primeiras
expressões da “questão social” foram as lutas proletárias por redução da jornada de
trabalho e por salários dignos, bem como as soluções dadas pelas classes e pelo do
Estado a elas, o que garantiu, ao lado da repressão, o começo da regulamentação
da relação entre capital e trabalho, como atestou a legislação fabril.

97 O autor ressalta que a suspensão de barreiras à livre iniciativa em busca de lucros foi
surpreendente não apenas nos países onde o liberalismo político se estabilizava (Inglaterra, França e
Holanda) mas também naqueles onde a restauração da monarquia absoluta ou do principado havia
acontecido (Alemanha, Áustria, Suécia, Dinamarca e Rússia).
98 Todo este intervalo é marcado por um recuo da mobilização operária interrompido apenas pela

Comuna de Paris (1871), tomada de poder político local por dois meses no primeiro governo
proletário da história incentivada pela Associação Internacional de Trabalhadores. A esta altura,
mesmo com as perdas, a luta de classes estava evidente para os trabalhadores europeus e a sua
organização política com vistas a melhores condições de vida e de trabalho sobressaltava a Europa
(HOBSBAWN, 1982 e SANTOS, 2012).
99 Há que se recordar que o liberalismo apregoa que o bem estar coletivo decorre da busca individual

pelo próprio interesse econômico, por consequência, segundo o seu expoente clássico Adam Smith,
ao Estado cabe intervenção em momentos pontuais e específicos: defesa contra inimigos externos,
proteção na relação entre indivíduos e provimento de obras públicas (BEHRING e BOSCHETTI,
2008).
64

Como já tratado neste capítulo, a ascensão do movimento operário, a


monopolização do capital, além da Grande Depressão – a crise de 1929-1932 –
atingiram a legitimidade política do capitalismo e sua defesa da sociedade de
mercado pautada no liberalismo. Entretanto, é fato que sua influência não se
esgarçou, como comprova a vitória norte-americana após a Segunda Guerra
Mundial, cujo imperialismo não raro apoiou e subsidiou ditaduras ao redor do
mundo, sem falar no estabelecimento da Guerra Fria em seguida, numa oposição
terminante ao socialismo. Na saída capitalista, isto é, liberal-burguesa100, para mais
uma de suas crises, ganhou projeção o pensamento keynesiano em contraposição
ao ideário liberal anterior:

As proposições de Keynes estavam sintonizadas com a experiência do New


Deal americano, e inspiraram especialmente as saídas europeias da crise,
sendo que ambas têm um ponto em comum: a sustentação pública de um
conjunto de medidas anticrise ou anticíclicas, tendo em vista amortecer as
crises cíclicas de superprodução, superacumulação e subconsumo,
ensejadas a partir da lógica do capital. Mandel sinaliza que tais medidas,
nas quais se incluem as políticas sociais, objetivavam amortecer a crise. As
políticas sociais se generalizaram nesse contexto, compondo o rol de
medidas anticíclicas do período, e também foram o resultado de um pacto
social estabelecido nos anos subsequentes com segmentos do movimento
operário, sem o qual não podem ser compreendidas (BEHRING e
BOSCHETTI, 2008, p.71).

As autoras acima se referem exatamente ao painel histórico do Capitalismo


Monopolista marcado pelo binômio keynesianismo-fordismo101 e pelo espraiamento
das políticas sociais, com destaque para os seguros102, a educação e a saúde. A
aliança entre classes que se deu com atuação reformista dos partidos social-

100 O que, ratificamos, não abrange apenas vigência de democracia, mas também o recurso ao
fascismo a depender da processualidade histórica.
101
Trata-se da combinação entre keynesianismo – política defensora da intervenção estatal em
benefício da estabilidade econômica com recurso a amplas medidas fiscais, creditícias e de gastos –
e fordismo – inovação técnica (a exemplo da introdução da linha de montagem e da eletricidade) na
organização do processo de trabalho consubstanciada na ideia de produção de massa com consumo
de massa, que impactou significativamente as relações sociais – que aperfeiçoou o controle sobre a
reprodução da força de trabalho e sustentou a acumulação do capital após a Segunda Guerra
Mundial (BEHRING e BOSCHETTI, 2008).
102 Behring e Boschetti (2008, p.97) explicam que os seguros sociais, germes da previdência social,

correspondem à “garantia compulsória de prestações de substituição de renda em momentos de


riscos derivados da perda do trabalho assalariado pelo Estado”. Conforme as autoras, a era
bismarckiana na Alemanha inovou com tal implementação.
65

democratas durante os “anos dourados” capitalistas, compreendidos entre 1945 e


1975, não eliminou a “questão social”, apesar da melhoria inegável nas condições
de vida dos trabalhadores, sem falar no clima de estabilidade no emprego garantido
pela política keynesiana, que parecia materializar a expectativa de compatibilidade
entre acumulação e patamares reduzidos de desigualdade. Netto (2006b, p.159)
expõe o equívoco de tal suposição:

A construção do Welfare State na Europa nórdica e nalguns países da


Europa Ocidental, bem como o dinamismo da economia norteamericana
(desde a Segunda Guerra, o carro-chefe do capitalismo mundial), pareciam
remeter ao passado a ‘questão social’ e suas manifestações – elas eram um
quase privilégio da periferia capitalista, às voltas com os seus problemas de
´subdesenvolvimento´. Apenas os marxistas insistiam em assinalar que as
melhorias no conjunto das condições de vida das massas trabalhadoras não
alteravam a essência exploradora do capitalismo, continuando a revelar-se
por intensos processos de pauperização relativa [grifo do autor] – apenas os
marxistas e uns poucos críticos sociais, como Michael Harrington, que tinha
coragem de investigar ´a pobreza, o outro lado da América´.

Se recordarmos que é sob a idade dos monopólios que o globo foi cindido
entre exportadores e importadores de capitais103, o que levou inclusive à sua divisão
territorial entre os países “desenvolvidos” como a colonização mostrou, verificamos
que nada mais concreto do que a manutenção da “questão social” na fase
imperialista, com tradicionais e novas manifestações. No fluxo do desenvolvimento
capitalista desigual e combinado, as desigualdades não deixaram de se reproduzir.

2.2. Cotidiano

O cotidiano, “horizonte real que baliza a intervenção profissional do assistente


social”104, é o segundo fundamento da estrutura sincrética do Serviço Social
afiançado por Netto. Para ele, o assistente social se depara em seus atendimentos
com a vida cotidiana que aparece expressa num emaranhado diverso de
circunstâncias pessoais ou grupais. Como estas exigem alteração através de seu
exercício profissional – trataremos na próxima seção desta “manipulação das

103 Entre esses importadores de capitais, Netto (2006b) lembra do Terceiro Mundo, periferia da
sociedade capitalista que reúne os países considerados “subdesenvolvidos”.
104
Netto (2006a, p.95).
66

variáveis empíricas de um contexto determinado” –, daí a importância de se


desvelar as raias da cotidianidade encobertas pela reificação, alienação típica
engendrada pelo capitalismo (NETTO, 1981 e 2012).

Na ótica de Heller (2004), os sujeitos nascem já inseridos numa dada


cotidianidade e amadurecem quando apreendem todas as capacidades imperativas
para a vida cotidiana da sociedade vivida. Segundo a autora, a vida cotidiana possui
uma série de predicados importantes. O primeiro é que ela diz respeito à vida de
todos os sujeitos independentemente de suas posições na divisão de trabalho
burguesa. O segundo se refere ao fato de os sujeitos participarem dela com todos
os aspectos das suas individualidades, ou seja, com sentidos, capacidades
intelectuais, habilidades manipulativas, sentimentos, paixões, ideias etc. O terceiro
atributo da vida cotidiana, também reconhecida por Lefebvre, é a sua
heterogeneidade, ou seja, ela é composta por atividades ou partes diversas como
organização do trabalho e da vida privada; os lazeres e descanso; a atividade social
sistematizada etc. Outra qualidade sua é ser hierárquica, isto é, de acordo com as
diferentes estruturas econômico-sociais, a hierarquia de suas atividades se modifica.
Heller ressalta que estas duas últimas particularidades do cotidiano, a
heterogeneidade e a ordem hierárquica, se somam para uma “explicitação ‘normal’
da produção e da reprodução” sociais (p.18).

A vida cotidiana, então, é a vida dos sujeitos, seres particulares e humano-


genéricos ao mesmo tempo com duas peculiaridades ontológicas: a unicidade e a
irrepetibilidade. Em outras palavras, os indivíduos são pessoas singulares voltadas
para suas próprias necessidades; contudo, simultaneamente, expressam as suas
relações sociais uma vez que são herdeiros e preservadores do desenvolvimento
humano, de acordo com a autora. Consequentemente, a consciência de Eu e a
consciência de nós se retroalimentam. Heller (2004, p.22) acrescenta que os
sujeitos se desenvolvem por causa das suas possibilidades de liberdade:

A explicitação dessas possibilidades de liberdade origina, em maior ou


menor medida, a unidade do indivíduo, a “aliança” de particularidade e
genericidade para produzir uma individualidade unitária. (...) A condição
ontológico-social desse resultado é um relaxamento da relação entre a
comunidade portadora do humano-genérico e o próprio indivíduo, o qual – já
enquanto indivíduo – dispõe de um certo âmbito de movimento [grifo da
67

autora] no qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio modo
de vida [grifo da autora] no interior das possibilidades dadas. A
consequência disso é uma certa distância, graças à qual o homem pode
construir uma relação com sua própria comunidade, bem como uma relação
com sua própria particularidade vivida enquanto ‘dado’ relativo.

É evidente que existem conflitos entre particularidade e genericidade;


entretanto, conforme Heller, estes transcorrem “mudamente”, ou seja, sem serem
“elevados à consciência” e sem ruptura da unidade vital entre ambas.

Na moderna estrutura da vida cotidiana, no entanto, “aumentam as


possibilidades da particularidade submeter a si o humano-genérico e de colocar as
necessidades e interesses da integração social a serviço dos afetos, dos desejos, do
egoísmo do indivíduo” (p.23), daí a emergência da necessidade da ética para a
coletividade.

Ainda sobre a cotidianidade, como existe uma unidade imediata entre ação e
pensamento na cotidianidade que estipula que aquilo que é correto e
necessariamente verdadeiro, “as ideias necessárias à cotidianidade jamais se
elevam ao plano da teoria, do mesmo modo como a atividade cotidiana não é
práxis” (idem, p.31-32). Em outras palavras: se por um lado, o pensamento cotidiano
é fragmentário, pragmático e “ultrageneralizado”, fomentando juízos provisórios que
podem se tornar preconceitos, por outro, a atividade prática dos sujeitos se sustenta
em espécies de fé e de confiança na vida cotidiana e apenas pode ser considerada
práxis quando constitui atividade humano-genérica consciente.

A autora aponta, inspirada na obra Estética de Georg Lukács, que nem


mesmo a ciência e a arte, modos de elevação acima desta, conseguem se distinguir
tanto do pensamento cotidiano, apesar de ser exatamente este o sentido de ambas,
isto é, o rompimento com a tendência espontânea voltada ao “Eu individual-
particular” deste pensamento, promovendo “objetivações duradouras” aos
indivíduos:

A arte realiza tal processo porque, graças à sua essência, é autoconsciência


e memória da humanidade; a ciência da sociedade, na medida em que
desantropocentriza (ou seja, deixa de lado a teologia referida ao homem
singular); e a ciência da natureza, graças a seu caráter
desantropomorfizador (HELLER,2004, p.26).
68

Apesar de estarmos todos atados à vida cotidiana heterogênea e não


podermos nos livrar dela, podemos nos suspender de nossa particularidade
individual e nos elevar à esfera do humano-genérico quando nos concentramos
sobre um único assunto na realização de uma atividade especial, como da ciência e
da arte, que nos tome toda a atenção. Tal superação dialética parcial ou total da
particularidade chama-se homogeneização que, segundo Lukács, é o instante
quando nos transformamos em um “homem inteiramente”. Este momento é raro
para a maioria dos seres sociais e apenas deixa de ser excepcional para aqueles
sujeitos movidos por uma paixão dirigida ao humano-genérico e com condições de
exercê-la. Heller assinala que este é o caso de alguns estadistas, revolucionários,
artistas e cientistas memoráveis105.

Finalmente, faz-se mister destacar momentos principais da estrutura da vida


cotidiana levantados pela autora, a saber: espontaneidade, probabilidade,
economicismo e entonação. A espontaneidade significa a tendência de toda
atividade cotidiana e se fundamenta na apreensão do comportamento
consuetudinário106, bem como do ritmo da vida coletiva dinamizada por motivações
transitórias em contínua mudança. A probabilidade envolve a impossibilidade de se
precisar com “segurança científica” o efeito de uma ação corriqueira, como
atravessar a rua, o que denota que nos deparamos todos os dias com riscos
necessários para viver. O economicismo da vida cotidiana guarda relação com a sua
probabilidade: ou seja, qualquer ação e qualquer pensamento acontecem e se

105
Netto (2012) expõe de outra maneira quanto à homogeneização, ainda aclarando melhor sobre a
relação entre as categorias luckacsianas da singularidade, da particularidade e da universalidade.
Conforme o autor, o alcance da consciência humano-genérica “só se dá quando o indivíduo pode
superar a singularidade, quando ascende ao comportamento no qual joga não todas as suas forças
[grifo do autor], mas toda a sua força [grifo do autor] numa objetivação duradoura (menos
instrumental, menos imediata); trata-se, então, de uma mobilização anímica que suspende a
heterogeneidade da vida cotidiana – que homogeneiza [grifo do autor] todas as faculdades do
indivíduo e as direciona num projeto em que ele transcende a sua singularidade numa objetivação na
qual se reconhece como portador da consciência humano-genérica. Nesta suspensão (...) da
cotidianidade, o indivíduo se instaura como particularidade, espaço de mediação entre o singular e o
universal, e comporta-se como inteiramente homem” (NETTO, 2012, p.69-70).
106
Sobre este tema, Heller (2004., p.36) salienta que “não há vida cotidiana sem imitação. Na
assimilação do sistema consuetudinário, jamais procedemos meramente ‘segundo preceitos’, mas
imitamos os outros; sem mimese, nem o trabalho nem o intercâmbio seriam possíveis. Como
sempre, o problema reside em saber se somos capazes de produzir um campo de liberdade
individual de movimentos no interior da mimese, ou, em caso extremo, de deixar de lado
completamente os costumes miméticos e configurar novas atitudes”.
69

expressam somente enquanto forem indispensáveis para a reprodução da


cotidianidade. Por último, a entonação se refere à atmosfera que os sujeitos
constroem em torno de si mesmos ao participarem de um determinado meio social,
o que distingue as suas individualidades em relação às dos demais.

Para Heller, os momentos acima são conexos e não devem ser absolutos,
garantindo espaço de movimento para a expressão autônoma dos sujeitos, caso
contrário, experimentamos um sufocamento do desenvolvimento genérico da
humanidade e, consequentemente, uma alienação da vida cotidiana. De acordo com
a reflexão da autora, embora a vida cotidiana seja a esfera da realidade que mais se
presta à alienação já que nela parece “natural” a separação entre ser e essência, a
sua estrutura não é necessariamente alienada, disto dependendo a alienação
produzida pelo modo de produção da sociedade vivida. Não à toa, Heller arremata
que o capitalismo cronificou o abismo entre desenvolvimento humano-genérico e
alternativas de desenvolvimento dos indivíduos.

Num exame crítico do cotidiano, sob inspiração em Hegel e Marx, Lefebvre


(1968) salienta que a sociedade burguesa do pós-Segunda Guerra Mundial constitui
uma “sociedade burocrática do consumo dirigida”, dado o caráter racional mas
limitado desta, o objeto que ela organiza – o consumo em vez da produção – e o
plano em que incide o esforço para nele se apoiar – o cotidiano, isto é, a vida
organizada em repetições107 e em vários campos que se interligam, como a moda, a
cozinha, o turismo, a sexualidade e o erotismo etc. A tese do autor, aliás próxima da
análise de Braverman sobre a força da dominação da lógica mercantil no
capitalismo monopolista, é que não é suficiente compreender esta sociedade
conforme suas próprias representações, faz-se indispensável estudar a
cotidianidade porque neste sistema se busca prever as necessidades e controlar os
desejos através do aprimoramento do cotidiano. Em sua reflexão, Lefebvre afirma
que a cotidianidade seria o principal resultado da sociedade de consumo dirigida,
calcada na Modernidade.

107
Nas palavras do autor: “O quotidiano na sua trivialidade compõe-se de repetições: gestos no
trabalho e fora do trabalho, movimentos mecânicos (...), horas, dias, semanas, meses, anos;
repetições lineares e repetições cíclicas, tempo da natureza e tempo da racionalidade etc.”
(LEFEBVRE, 1968, p.31).
70

De acordo com o autor, o objetivo desta sociedade é a satisfação no sentido


de uma saturação praticamente instantânea de uma dada necessidade. Sendo
assim, quando uma necessidade é “satisfeita”, estimula-se outra sucessivamente.
Por esta razão,

a satisfação generalizada – em princípio – acompanha-se de uma crise


generalizada dos ‘valores’, das ideias, da filosofia, da arte e da cultura. O
sentido desaparece, mas reaparece de outra forma: existe um vazio
enorme, o vazio de sentido, que somente consegue substituir a retórica,
mas essa situação tem um ou diversos sentidos. O primeiro dentre eles não
será que a ‘saturação’ (das necessidades, dos ‘meios’, dos tempos e dos
espaços) não pode fornecer um objetivo, que ela possui qualquer finalidade,
está desprovida de significação? Não será necessário distinguir nitidamente
satisfação, prazer e felicidade?” (idem, p.114)

Lefebvre conclui que esta sociedade caminha para a autodestruição,


considerando-se que a estratégia de classe consubstanciada no crescimento
econômico não acarreta desenvolvimento social. Por isso, o que se identifica é uma
crise da cidade paralela a todas as outras em função da obsolescência das coisas e
do culto ao efêmero. O autor salienta, então, que o irracionalismo se agudiza dada a
tônica dirigida ao economicismo e ao tecnicismo pelo sistema. Haja vista o
sufocamento dos sujeitos advindo deste cotidiano particular, a religiosidade e o lazer
são assim ardorosamente buscados sem mencionar o papel central da publicidade –
ideologia da mercadoria em substituição à filosofia, à moral, à religião e à estética –
em alimentar o imaginário que orienta, ao final, o consumo.

Com base no estudo da ontologia do ser social de Lukács, Netto (2012)


acrescenta que o cotidiano é um dos planos constitutivos da história, no qual a
reprodução social se efetua através da reprodução dos indivíduos enquanto tais. O
autor recupera da obra luckacsiana que a heterogeneidade, a imediaticidade e a
superficialidade extensiva são distinções centrais do cotidiano. A primeira, como já
visto, relaciona-se com o conjunto mais díspar de atividades, fenômenos e
processos, que estabelece o universo de objetivações dos sujeitos; a segunda alude
à ligação direta e imediata entre pensamento e ação, que alimenta a
espontaneidade também já tratada; e a terceira, no que lhe concerne, demonstra
que os sujeitos respondem às demandas do cotidiano, desprezando as imbricações
entre os fenômenos correlatos a cada situação.
71

O autor indica uma postura teórico-metodológica definida, a marxiana108, para


o adequado conhecimento da vida cotidiana a partir de três ponderações.
Primeiramente, ele chama a atenção para a importância de rompimento com a
facticidade empírica, daí sua crítica às interpretações positivista e neopositivista da
cotidianidade109. Em seguida, Netto alerta para os limites das abordagens
sociológicas e antropológicas da vida cotidiana, uma vez que estas ficam restritas à
epiderme da mesma. Por fim, o autor informa a relevância da fonte teórica escolhida
para inspirar a investigação, mais do que o ponto de vista de classe, por si só frágil
diante de um debate de ideias.

Eis uma significativa contribuição para os assistentes sociais em exercício


nas instituições porque, embora o cotidiano signifique o “horizonte real que baliza a
intervenção profissional do assistente social” (NETTO, 2006a, p.95), ele não é de
evidente compreensão, dado o fenômeno social da reificação e dada à
complexidade da totalidade da vida social. Todo o esforço crítico-analítico é
pertinente, pois estes profissionais são incumbidos a “programar” a cotidianidade
dos usuários dos serviços a partir do acesso às suas formas de ser, pensar e agir e
por meio de uma atuação usualmente emergencial e, em menor frequência,
mediata, dada sua composição sincrética. Historicamente, tal intervenção
profissional não raro significou expressão conservadora de tutela social revestida de
problemática vigilância moral:

É precisamente esta a função do serviço social: assegurar a adaptação à


ordem estabelecida, completar a coerção econômica através de uma
pressão moral destinada a fazer interiorizar a ausência de alternativa. E,
acima da resignação, a adesão à ordem dos dominadores (...) (VERDÈS-
LEROUX, 1986, p.42)

Obviamente, o controle do cotidiano dos trabalhadores está entre as


requisições postas para o Serviço Social. Em resgate da história da assistência

108
Uma vez que, à luz da teoria social de Marx, o marxismo adota a razão crítico-dialética, ele
apresenta um método que preconiza o desvelamento da ontologia do ser social, daí ser sua
característica superar a imediaticidade para compreensão do movimento genuíno dos fatos
(COUTINHO, 2010 e GUERRA, 1997 e 2009).
109
Importante recordar aqui as considerações de Coutinho (2010) e Guerra (1997 e 2009) sobre a
fetichização da vida social no capitalismo, que instrumentaliza a razão e, desta forma, a aprisiona à
aparência dos fenômenos.
72

social implementada pelo Estado e empreendida pelo trabalho social francês –


incluindo o exercício profissional do assistente social, mas também da enfermeira-
visitadora, superintendente de fábrica, assistente familiar polivalente etc. –, Verdès-
Leroux (1986, p.20) situa que a multiplicação dos locais de intervenção, ou melhor,
que a expansão do mercado de trabalho das “profissões do social” entre os idos de
1920 e 1936 intentava exatamente uma “dominação generalizada sobre a vida
cotidiana das classes populares”.

2.3. Manipulação de variáveis empíricas

De acordo com Netto, o terceiro e o mais decisivo fundamento da estrutura


sincrética do Serviço Social é a sua modalidade específica de intervenção, mais
precisamente a “manipulação de variáveis empíricas de um contexto determinado”,
exercida pelo assistente social em seus atendimentos nas instituições. Esta
manipulação abrange exatamente a modificação de comportamentos e de situações
individuais e grupais durante a ação profissional numa dada direção política 110 e
acarreta dois desafios para os assistentes sociais: o apelo do empirismo e
pragmatismo considerada a razão instrumental que impera na sociedade e,
sobretudo, sobre as “profissões do social”; e o ecletismo teórico, que mistura as
fontes de conhecimento já que, comumente, a manipulação de variáveis empíricas
implica a incorporação instrumental das teorias.

Como explicitado anteriormente, o assistente social é um dos profissionais


executores das políticas sociais e esta execução se circunscreve a um quadro
bastante peculiar, que requisita a “manipulação de variáveis empíricas”:

110
Visto que não há ação profissional neutra, Netto (2006a, p.76-77) assinala a dimensão político-
ideológica presente nesta modalidade de intervenção: “(...) a ação profissional se move entre a
manipulação prático-empírica de variáveis [grifo do autor] que afetam imediatamente os problemas
sociais (...) e a articulação simbólica [grifo do autor] que pode ser constelada nela e a partir dela.
Realmente, a ação profissional se desdobra nestes dois níveis, imbricados mas não
necessariamente sincronizados. De uma parte, a natureza interventiva que é própria do Serviço
Social se revela na escala em que a implementação de políticas sociais implica a alteração prático-
imediata de situações determinadas; de outra, é componente desta intervenção uma representação
ideal que tanto orienta a ação alteradora quanto a situação em causa. Vale dizer: a intervenção
profissional reproduz, na sua consecução, as dimensões da resposta integradora [grifo do autor]
pertinentes à essência das políticas sociais”.
73

Os loci [grifo do autor] que passa a ocupar na estrutura sócio-ocupacional


circunscrevem-se no marco das ações executivas, marco que, ele mesmo,
contempla procedimentos diferenciados (da administração microscópica de
recursos à implementação de ‘serviços’). O campo para o desenvolvimento
das atribuições profissionais, a partir dos loci [grifo do autor] então criados,
é verdadeiramente muito amplo. Por um lado, a natureza inclusiva da
política social (v.g., a tendência a ser formularem políticas setoriais num
leque cada vez maior) e o caráter tendencialmente tentacular dos ‘serviços’
(dada a sua funcionalidade para obviar os óbices à valorização monopólica
e para gerir as demandas das massas trabalhadoras) põem como objeto de
intervenção um progressivamente maior elenco de situações. Por outro, a
alternância e/ou coexistência dos enfrentamentos ‘público’ e ‘privado’ das
manifestações da ‘questão social’ oferecem a possibilidade da
‘especialização’ dos profissionais neles envolvidos (NETTO, 2006a, p.74-
75).

Tal manipulação projetada dos cotidianos caracteriza de modo especial o


sincretismo da prática porque ela transcorre através de uma dupla inespecificidade
operatória – isto é, tanto em relação às protoformas do Serviço Social, considerado
o “anel de ferro” mencionado por Netto, que restringe uma legitimação social distinta
na profissionalização quanto às demais profissões “do social” que parecem
apresentar procedimentos técnicos mais claros e objetos de intervenção mais
simples (recordemos aqui a complexidade da “questão social” com suas diversas
manifestações)111 – que inquieta os assistentes sociais e os faz estranhar sua
atividade profissional. Considerando o peso decisivo da primeira inespecificidade
operatória na conformação da tese do sincretismo de Netto, vale o resgate de
registros na literatura que comprovam o universo desta modalidade típica de
atuação dos assistentes sociais que demonstraremos a seguir.

Vèrdes-Leroux (1986, p.84), por exemplo, atesta os limites da “manipulação


das variáveis empíricas”, antecipando a ideia de Netto (2006a) de que a atuação
profissional não soluciona a “questão social” e sim “no máximo” alcança
racionalização dos recursos e esforços dirigidos para o enfrentamento da mesma:

Compreende-se, igualmente, a ausência aparente de critérios objetivos, ou


de qualquer sanção, no plano da eficácia: pois o essencial não consiste em
trazer remédio aos males sociais – o que, em última instância, levaria o
trabalho social ao desaparecimento – e, sim, em detectar a tempo esses
males. E em propor medidas de enquadramento capazes de evita-los,
como, por exemplo, a prevenção. Percebe-se, enfim, a lógica da

111A professora Mavi Rodrigues que orientou a tese ora apresentada defende esta compreensão com
a qual concordamos.
74

especialização das profissões e do fracionamento do mercado, à luz de


critérios arbitrários e heterogêneos (idem, p.84).

A autora esclarece que a prevenção especializada consistiu na alternativa


encontrada pela assistência social francesa nos anos 1970, depois de uma
constatação objetiva de que o intuito aberto de “domesticação dos dominados” não
funcionou, aparecendo como caminho promissor o conhecimento das “classes
inferiores” para controlá-las. Conforme o seu raciocínio, a prevenção apresenta
vantagens não só porque pode ser amplamente estendida, mas também porque seu
custo é bem menor do que uma intervenção personalizada.

Também nos anos 1970, mas desta vez na Grã-Bretanha, Corrigan e Leonard
(1979, p.7) confirmam a indiferenciação operatória que angustia os assistentes
sociais e os faz estranhar o caráter de sua atividade – lembremos mais uma vez da
pouca diferenciação entre os resultados da intervenção profissional e da prática
filantrópica anterior –, ilustrando a realidade do sincretismo na rotina profissional:

Os assistentes sociais experimentam, frequentemente, uma pressão


esmagadora de seus clientes e de suas próprias e outras organizações;
experimentam tanto falta de recursos quanto a aparente irrelevância do que
aprenderam a fazer com relação às circunstâncias reais, materiais e sociais
de seus clientes. Com muita frequência, experimentam a intensa pressão de
trabalhar em situações de emergência e tentar enfrentar mais trabalho do
que pode ser realizado adequadamente, no tempo disponível.

Nos idos de 1980, apoiado em abrangente pesquisa realizada com


assistentes sociais do Nordeste do país, Weisshaupt (1985) apontava a dificuldade
destes profissionais em identificar a natureza da sua atividade, inclusive o objeto e o
produto de sua intervenção. O autor já refletia sobre a contribuição ideopolítica do
exercício profissional, contextualizada pela expectativa institucional de neutralização
política dos usuários e pelo processo que ele denomina desprofissionalização dos
assistentes sociais, em claro acordo com a ideia de Netto de que, na realidade, a
profissão não logrou uma intervenção diferente daquela executada em suas
75

protoformas112. Eis as palavras do autor sobre o âmbito da relação do assistente


social com o usuário e a instituição:

A estratégia consiste em jogar a relação entre o cliente e a instituição para o


espaço interpessoal do assistente social e do cliente (relacionamento).
Quando bem sucedida, leva a uma identificação do cliente com o assistente
social (‘confiança, amizade’) e, além da interpretação e do controle das
representações do cliente, facilita a aceitação dos programas ou até da
impossibilidade de resposta às suas demandas. Ocorre então o
deslocamento do problema situado na relação entre a população e o
contexto institucional – um problema essencialmente político, pois é nessa
relação que se constitui o caráter democrático efetivo do modelo de
organização social vigente. Transposto para o campo da relação
interpessoal, leva à neutralização política da clientela e à
desprofissionalização do agente que, mesmo se ´nada resolve´, é ‘pessoa
que ouve, sabe do problema, entende das coisas, orienta e ajuda mais [grifo
nosso] (WEISSHAUPT, 1985, p.113).

Em relevante investigação junto aos assistentes sociais da área da saúde


pública de Natal/RN em fins dos anos 1990, Costa (2009, p.304) identifica que
enquanto estes profissionais se inquietavam julgando que a “imprecisão da
profissão” – bem como seus “traços voluntaristas e empiristas” – contribuía “para
fragilização e consequente desqualificação técnica do Serviço Social”, cresciam,
paradoxalmente, as contratações. Aliás, Iamamoto (1992, p.42) já chamava a
atenção para esta realidade:

Apesar do caráter aparentemente difuso e heterogêneo das tarefas


exercidas pelo Assistente Social, este continua a ser necessário na
organização social, como o demonstra o crescimento do mercado de
trabalho nos últimos anos e a expansão quantitativa da categoria
profissional.

Em outras palavras, não obstante a inespecificidade operatória do Serviço


Social, a profissão responde a demandas definidas da sociedade e, mais
exatamente, da divisão de trabalho burguesa, que ainda emergem pouco precisas
para a categoria profissional até a atualidade. No desenvolvimento de seu
raciocínio, Costa assinala que existe um produto claro do exercício profissional,

O que Weisshaupt denomina “desprofissionalização” corresponde exatamente à difícil constatação


112

de que o assistente social “faz de tudo um pouco”, ou seja, de que sua atividade envolve
“manipulação de variáveis empíricas de um contexto determinado” como demarca Netto (2006a).
76

ainda “estranho” aos próprios assistentes sociais, importante ao funcionamento do


SUS:

(...) o assistente social se insere, no interior do processo de trabalho em


saúde, como agente de interação ou como um elo orgânico entre os
diversos níveis do SUS e entre este e as demais políticas sociais setoriais, o
que nos leva a concluir que o seu principal produto parece ser assegurar –
pelos caminhos mais tortuosos – a integralidade das ações” (idem, p.341)

Para Costa, tendo como finalidade encontrar o elo ‘perdido’, estilhaçado pela
burocratização das políticas sociais, o exercício profissional dos assistentes sociais
se objetiva essencial para garantir o desempenho das instituições. Afinal, cabe a
estes profissionais responder por tudo aquilo – “limitação ou impedimento de ordem
socioeconômica, cultural ou institucional” (idem,p.345-346) - que dificulta a qualidade
do atendimento ao usuário dos serviços. Sendo assim, a intervenção do Serviço
Social ratifica, nas palavras da autora (idem, p.345) “a prática do emergencial, do
atípico e do ocasional. Aqui, na prática, o ocasional é o permanente” [grifo nosso]113.

A autora destaca ainda o quanto o desprezo pelos reais processos de


trabalho coletivos que garantem o SUS atrapalha o discernimento da categoria
sobre seus papéis na divisão de trabalho:

Pressionados pela cultura da produtividade e em face do restrito acúmulo de


discussões sobre o assunto, a maioria dos profissionais decodifica tais
exigências sob a égide de algumas indagações tradicionais, tais como: O
que é Serviço Social? Qual a especificidade da profissão? O que faz esse
profissional na área da saúde? Qual o nível de cientificidade da profissão?
Essas indagações, no nosso entendimento, revelam não apenas o grau de
estranhamento (Antunes, 1995) dos trabalhadores assistentes sociais em

113
Obviamente, esta reflexão significativa de Costa endossa a tese do sincretismo da “prática
indiferenciada” esboçada por Netto; entretanto, diferentemente dele que não cogita a possibilidade
da atuação profissional escapar dos limiares da “emergência social” conforme sua análise aqui
reproduzida, a autora pensa que “(...)a incorporação das necessidades não atendidas, ou não
previstas, pode ser um meio de geração de novos direitos e de normas de funcionamento adequadas
à realidade. A rigor, esse movimento permitiria que atividades como as dos assistentes sociais
protagonizassem a transformação das modalidades de atendimento das demandas e necessidades
emergenciais, através da criação de programas e propostas de ordem permanente. Por sua vez,
esse fato tornaria possível aos profissionais construírem uma nova modalidade de inserção no
processo coletivo de trabalho na saúde em prol da superação das contradições que marcam o
funcionamento do sistema” (idem, p.346). Considerando a estrondosa contrarreforma do Estado no
Brasil atual, a nossa posição é de que este movimento vislumbrado por Costa encontra importantes
limites.
77

relação ao conteúdo e dimensão do seu trabalho na conformação do


trabalho e trabalhador coletivo em saúde, como a naturalização,
banalização, simplificação e invisibilidade política e institucional das
contradições do SUS (idem,p.350) .

No trecho acima, confirmamos a convicção de Netto de que o ‘sincretismo da


prática indiferenciada’ gera a grande maioria senão todas as “crises de identidade
profissional” que ficam sem solução, haja vista as fronteiras aqui repetidas da
divisão de trabalho burguesa. Para Iamamoto (1992, p.89), ao seu turno, a “crise
profissional” expressa a consciência dos assistentes sociais quanto à temporalidade
dos tipos de exercício profissional empreendidos e, consequentemente, da
“necessidade de redefinições” quanto a ele, de acordo com o processo histórico. A
autora salienta que, ao longo da trajetória do Serviço Social, quando se experimenta
a “crise”, duas alternativas principais são buscadas: aprimoramento teórico-
profissional, conforme as exigências da acumulação e da modernização do Estado,
quando não há questionamento das “bases políticas de legitimação de seu fazer”; ou
reorientação da atuação na perspectiva dos efetivos interesses das classes sociais
subalternas (p.90). A autora arremata seu pensamento com o desafio profissional
fundamental posto:

Como é possível, a partir do mercado de trabalho, construir um novo projeto


profissional, voltado para a ruptura teórico-prática com a tradição tutelar e
manipuladora das classes subalternas segundo interesses que lhe são
estranhos; um projeto que supere a demanda institucional profissional
patronal e busque construir outras bases de legitimidade do Serviço Social
entre as classes trabalhadoras, ampliando, inclusive, sua demanda para
organizações de outro caráter de classe: sindicatos, organismos populares
etc.? (idem, p.91).

Finalmente, cumpre recordar que durante os anos 1990, período de pesquisa


de Costa, sofremos no Brasil a hostil implantação da ideologia neoliberal nas
relações entre Estado e sociedade, o que tornou as políticas sociais ainda mais
focalizadas e fragmentadas, apesar das conquistas promulgadas na Constituição
Federal de 1988, e impactou as condições gerais de trabalho dos assistentes
sociais. Este cenário histórico parece que somente repôs os traços sincréticos do
exercício profissional apontados por Netto, pois, conforme a autora, as precárias
condições de atendimento “(...) terminam imputando aos assistentes sociais ´a
78

função, quase sempre silenciosa, de administrar o que é impossível de ser


administrado’ [grifo nosso] (ABESS, 1996:34)” (COSTA, 2009, p.344-345)114.

Ainda que a vida cotidiana nesta sociedade seja atravessada pela alienação e
que do exercício profissional sejam esperados a difusão da ideologia dominante e o
controle social dos trabalhadores, mesmo quando o assistente social apresenta-se
crítico e defensor da transformação social, é possível, evidentemente,– e se espera
conforme inspiração no projeto ético-político do Serviço Social brasileiro – buscar a
via contrária da neutralização política dos usuários no desenvolvimento das ações
profissionais em conjunto com a população, uma vez que, na dinâmica da luta de
classes, o assistente social pode demonstrar escolhas teórico-metodológicas
distantes do lastro conservador. Sobre o cerne do Serviço Social na divisão do
trabalho, que nos eleva de uma interpretação fatalista do exercício profissional,
Netto (2006, p.79) pontua o seguinte:

Em sua profissionalidade, revela-se congruente com as exigências


econômico-sociais da ordem monopólica; sua intervenção desenha um
aporte ao desempenho do Estado burguês e do comando do capital
monopolista para a reprodução das condições mais compatíveis com a
lógica da valorização que se põe neste marco. A estrutura mesma dessa
profissionalidade, todavia, contém possibilidades que oferecem efetivas
margens para movimentos alternativos no seu interior: nas mediações que o
Estado vê-se compelido, pela ação de classes e frações de classes, a
introduzir no trato sistemático das refrações da ‘questão social’, o Serviço
Social pode desincumbir-se das suas tarefas contemplando
diferencialmente os vários protagonistas sócio-históricos em presença. A
opção por um tratamento privilegiado de qualquer um deles, porém, não é
função de uma escolha pessoal dos profissionais – ainda que a suponha, é
variável da ponderação social e da força polarizadora dos protagonistas
mesmos.

Vê-se que o trecho acima aprofunda a constatação do autor quanto ao anel


de ferro que retém a profissão, ou seja, a ideia de que “cortando com as práticas das
suas protoformas, [o Serviço Social] não se legitima socialmente por resultantes
muito diversas” (idem, p.103). A reflexão de Netto, realista (e não fatalista) na nossa
concepção, ilustra que o assistente social pode se identificar politicamente com um
projeto societário revolucionário. Contudo, dois pressupostos parecem essenciais no

114
Tal reflexão repõe a constatação de Verdès-Leroux (1986), também salientada por Iamamoto
(1992), sobre a inexistência quase total de uma demanda solvável pelos profissionais da área social
considerada a divisão de trabalho burguesa.
79

vislumbre das direções possíveis de sua instrumentalidade: primeiramente, o


reconhecimento de que a estrutura sincrética do Serviço Social impõe uma “prática
indiferenciada”, ainda que o profissional tenha consciência desta característica
interna e comprometimento com sua atribuição na sociedade; e, em segundo lugar,
o reconhecimento de que o panorama da luta de classes delineia os momentos
conjunturais, portanto, o fortalecimento de sua orientação política, sem cair no
voluntarismo, depende da força concreta que demonstra a classe à qual pertence.

2.4. O sincretismo da prática indiferenciada e suas derivações ideológica e


científica

A análise da estrutura sincrética115 do Serviço Social efetuada por Netto


intenta iluminar a inquietação tradicional entre os assistentes sociais quanto à
“natureza” da profissão. Tal preocupação recorrente nos debates da categoria e
também na interlocução com representantes de outras áreas parecia expressar
apenas uma reação defensiva a críticas externas que questionavam o estatuto de
profissão do Serviço Social, mas igualmente seu suposto estatuto científico.
Entretanto, Netto alerta sobre a importância de se esclarecer a respeito da relação
do Serviço Social com a teoria, bem como de se desmistificar quanto à sua
“especificidade” profissional, constantemente perseguida pelos assistentes sociais, a
partir de uma leitura crítica e objetiva das possibilidades dos projetos profissionais
no campo do conhecimento do social da sociedade burguesa. Sendo assim, o autor
ressalta que, desde a institucionalização do Serviço Social, o debate acerca da
‘natureza’ da profissão bem como de seus papéis sócio-ocupacionais dentro da
categoria de fato

115
Esta estrutura sincrética guarda vínculo com a gestão conservadora das políticas sociais e com a
influência da tradição intelectual positivista, como discorre Souza (2016, p.122): “Conferindo
substância à estrutura sincrética (prática e teórica) do Serviço Social, estão, de um lado, os
processos de formalização operativa presentes nas políticas sociais setoriais, que segmentam e
abstraem a raiz problemática da ´questão social’, e, de outro, o padrão de racionalidade formal-
abstrata derivado da matriz positivista, ambos atributos do Estado burguês. Impulsionando essas
determinações, encontram-se a expansão e a diversificação dos processos de valorização do capital,
bem como a recomposição da sociabilidade burguesa que decorre da passagem ao estágio
monopolista da produção capitalista”.
80

sinaliza a conexão entre uma problemática substantivamente teórico-cultural


e um conjunto de dilemas medularmente histórico-social – vale dizer: a
clarificação do estatuto teórico do Serviço Social e a localização da sua
especificidade como prática profissional (NETTO, 2006a, p.86).

Ou seja, o autor traz à luz dois problemas remotos entre nós: o primeiro de se
afirmar a profissão impondo-lhe fundamentos científicos sem a devida consideração
da divisão do trabalho burguesa116 e do “rigor teórico possível no conhecimento do
social” (p.86) nesta sociedade117; e o segundo de se buscar ciclicamente precisar
com exatidão a especificidade do nosso fazer técnico em relação à atuação das
demais áreas sociais, para assim discernirmos com alívio o nosso “pedaço”
exclusivo na divisão do trabalho.

Inspirado na produção de conhecimento da categoria, Netto conclui que é


possível que o conjunto destas concepções pretenda, sobretudo, nos distanciar das
chamadas protoformas e nos elevar da subalternidade técnica relacionada com o
gênero feminino de seus profissionais:

Não é infundado supor que, nestas condições, a inversão operada – isto é,


a definição do estatuto profissional do Serviço Social fazendo apelo às suas
pretensas bases ‘científicas – parecia desobstruir o conduto para deslocar
essa subalternidade. No limite, é pertinente a inferência de que estas
tensões, visíveis no terreno da profissão, podem ser relacionadas às lutas
femininas ocorrentes em outras esferas sociais (p.88).

Como consequência deste processo, o trato da teoria pelo Serviço Social


ficou comprometido, levando a categoria a um “ilusionismo ideológico”, ou seja, a
uma visão limitada de que a legitimidade profissional dependeria de bases científicas
ou de inspiração em novas teorias. Conforme o autor, são exemplos deste último nó,

116
Para o autor, o lugar de toda profissão na divisão social e técnica do trabalho na sociedade
burguesa é função da resultante de dois vetores ou, ainda em suas palavras, de um duplo
dinamismo: de um lado, aquele relativo às demandas socialmente postas e, de outro, aquele posto
em movimento pelas suas próprias forças – de cunho teórico e prático – para responder às primeiras
demandas macroscópicas. O autor salienta que este último vetor é “o campo em que incide o seu –
da profissão - sistema de saber” (NETTO, 2006a, p.89).
117
Em seu texto publicado nos Cadernos Abess n⁰1, Teoria, método e história na formação
profissional, Netto (1993, p.55) já tratava desta questão: “É evidente que o que está por trás da noção
de uma teoria do Serviço Social e de uma metodologia do Serviço Social é algo muito preciso. É a
ideia de que o objeto do conhecimento é posto pelo sujeito. Ou seja, o sujeito estabelece o objeto
sobre o qual vai elaborar” (NETTO, 1993, p.55).
81

em especial, o período psicologista respectivo ao final dos anos 1920, bem marcado
pela técnica de Serviço Social de Caso, e o período de Desenvolvimento de
Comunidade durante o segundo pós-guerra. Em ambos os momentos, não foram
reconhecidas as conexões particulares entre o processo histórico e a influência de
certos conhecimentos em detrimento de outros.

Ao se dedicarem às possibilidades do exercício profissional sob a inspiração


do marxismo na Inglaterra, Corrigan e Leonard (1979, p.11-12) tratam desta difícil
relação dos assistentes sociais com a teoria:

Entre os assistentes sociais, há duas queixas quanto à teoria com a qual


têm de trabalhar. Em primeiro lugar, a teoria não se relaciona à sua prática,
uma vez que vem de fontes distantes demais dessa prática para conseguir
compreender as suas complexidades.
Consequentemente, a teoria é vista como idealista; (...) A segunda reação à
teoria é resumida pela reação: ‘E daí’. Há ocasiões em que o teórico tenta
relacionar sua teoria à prática de forma muito sensível. Ele elabora a teoria
mantendo-a tão perto dos exemplos práticos do mundo que a teoria se
relaciona diretamente a cada complexidade de comportamento.

Considerada a estrutura sincrética do Serviço Social, que favorece a


instrumentalização do conhecimento em prol de uma ação profissional em frequente
caráter de emergência, torna-se bastante interessante a conclusão dos autores nos
idos dos anos 1970:

Desse modo, os assistentes sociais exigem da teoria duas coisas


contraditórias: querem uma visão teórica de seu trabalho, que lhes
prometa alguma forma de ultrapassagem de sua prática, emanando de
sua situação atual; ao mesmo tempo, esperam que a teoria da qual resulta
essa prática seja abrangida por sua própria prática. Essa teoria não pode
existir, pois ou a teoria tem origem, ao menos em parte, na prática externa,
ou provém inteiramente de dentro dessa prática (idem, p.12).

A partir da hipótese de que “o problema relativo aos instrumentos e técnicas


na formação profissional dos assistentes sociais fundamentam-se em uma
compreensão inadequada sobre teoria e prática no materialismo histórico-dialético”,
Santos (2010, p.13) apresenta três visões equivocadas sobre esta relação,
reforçando, assim, a problematização de Corrigan e Leonard:
82

O primeiro é o de que a ´teoria se transforma em prática´, ou seja, espera-


se que uma teoria, que tem por orientação a ruptura com um referencial
teórico conservador, ofereça de imediato, uma prática de ruptura com a
ordem conservadora. A associação é direta: teoria de ruptura igual à prática
de ruptura. Como essa transposição não é verdadeira, afirma-se ´na prática
a teoria é outra’.
O segundo entendimento vai na contramão do primeiro. Defende-se que a
prática fala por si só, ou seja, a ação prática oferece, também de imediato, a
teoria, a qual seria, portanto, apenas a sistematização da prática. Com isso,
consagra-se a afirmativa na prática a teoria é outra, mas não de forma
´acusativa´ e sim com um tom de ´conformação´, em que a prática seria
mais importante que a teoria.
Em ambas as assertivas, há redução não só dos tipos de conhecimento a
um único – o teórico, o conhecimento seria sinônimo de conhecimento
teórico -, mas também entre prática social e prática profissional – prática
profissional é igual à prática social.
O terceiro entendimento – que remete ao primeiro – é o de que a teoria
social de Marx não instrumentaliza para a ação. (...)

Novamente em Teoria, método e história na formação profissional,


transcrição de sua palestra ministrada na XXIV Convenção da ABESS, Netto ilumina
a controversa afinidade do Serviço Social com a teoria, desvelando a curiosa caça
pelo imaginário “gato preto”118 , alertando para o problema de se confundir teoria
com sistematização da prática119 e frisando que a legitimidade profissional efetiva
vem da divisão social do trabalho:

E por que é que nós estamos sempre atolados nesta discussão? Porque o
nosso ranço positivista nos leva a só conferir fundamento de legitimidade a
nossa profissão se tivermos estrutura científica e método próprio, ou uma
metodologia da qual nós nos apropriamos. Imaginamos que o que dá
legitimidade à profissão seria uma hipotética teoria ou uma hipotética
estrutura científica e metodológica. Evidente que isto rebate em nós como
consequência da sociologia, num primeiro momento – quando os sociólogos
precisavam afirmar que a sua era uma ciência, e o fizeram, eles
conquistaram o reconhecimento público. (...) O que tem legitimado a nossa
profissão, primeiro, é uma consagrada divisão social do trabalho. Sem
pensar a divisão social do trabalho, não se pensa profissão nenhuma, muito
menos a nossa. É aí que nós podemos localizar a fonte de legitimação e,
sobretudo, no atendimento a demandas, sejam elas institucionais ou não.
(NETTO, 1993, p.56-57).

118
A “teoria do Serviço Social” que mesmo após a ebulição do Movimento de Reconceituação, vigente
entre os anos 1960 e 1970, assombrava as mentes profissionais (NETTO, 1993).
83

O autor assinala que não é apenas a costumeira construção da


autoimagem do Serviço Social marcada pela inversão já mencionada – busca da
legitimidade profissional através de imposição de fundamentos científicos – que nos
conduz ao “ilusionismo ideológico” mas, notadamente, sua própria composição
sincrética que guarda uma função histórica precisa “de organização do cotidiano
como manipulação planejada” (p.96, grifos do autor) , ao lado de outras
especialidades similares na divisão do trabalho burguesa120. Isto é, Netto afirma que
o sincretismo da prática “contamina mediatamente os parâmetros teóricos e culturais
que o referenciam” (p.107, grifos do autor)121. Esta é uma consideração fundamental
da tese de Netto e, por isso, a aprofundaremos a seguir.

O sincretismo da prática diz respeito à inespecificidade ou indiferenciação


operatória do Serviço Social, caracterizada pela manipulação dos cotidianos dos
usuários dos serviços prestados, cuja expressão mais completa é a polivalência. O
que Netto constata é que, apesar de a profissão de Serviço Social se distinguir das
suas protoformas em quatro níveis – a saber: procura do pensamento das Ciências
Sociais para inspiração do discurso; dedicação ao erguimento de uma formação
profissional integrada; empenho para produção de uma documentação própria; e,
finalmente, vinculação progressiva da atuação a instituições privadas e públicas –,
ela pouco se distinguiu das práticas filantrópicas no que tange aos resultados da
intervenção. Vejamos as palavras do autor sobre isto:

Se, idealmente, a profissão colocou as bases para uma peculiar intervenção


sobre as refrações da questão social, faticamente esta intervenção não se
ergueu como distinta. Noutros termos: a forma da prática profissional, nas
suas resultantes, não obteve um coeficiente de eficácia capaz de diferenciá-
la de outras práticas, profissionais ou não, incidentes sobre a mesma
problemática (idem, p.100, grifos do autor).

Netto sinaliza que somente podemos decifrar tal paradoxo examinando o trato
conferido aos fenômenos sociais no capitalismo maduro, assim como o
120
Netto considera os demais ‘trabalhadores sociais’ mas enfatiza que é esperado especialmente do
assistente social, dada sua modalidade específica de intervenção, a alteração efetiva de variáveis
empíricas, caso contrário, sua atuação é vista como “inconclusa” (p.97). Já mencionamos este
aspecto quando lembramos que, não é à toa a tônica do tratamento na cultura profissional
tradicional.
121
Desenvolveremos mais à frente a respeito dos sincretismos ideológico e científico, igualmente à
luz de Netto.
84

desempenho do Estado no enfrentamento da “questão social”. Em relação ao


primeiro ponto, o autor frisa que é peculiar da sociedade burguesa, conforme sua
base fetichista mercantil, instaurar uma pseudo-objetividade que fere gravemente a
razão teórica122. Quanto ao segundo, é sabido que o Estado não pode ter como
objetivo a resolução da “questão social” através das políticas sociais e de outros
meios, tendo em conta sua natureza de classe. Neste sentido, segundo Netto, o
desempenho estatal “tende a conformar uma cronificação das refrações da ‘questão
social’” (idem, p.102).

Sendo assim, considerando que o Serviço Social envolve um tipo de exercício


profissional subalterno, voltado à execução de programas definidos em instâncias
deliberativas maiores e, ainda, que lhe cabe uma manipulação de variáveis sem
abalo da lógica da reprodução das relações sociais, o autor chega a uma conclusão
polêmica:

à prática profissional do Serviço Social é creditada a continuidade das


reproduções (ou da cronificação) das refrações da ‘questão social’ que, em
verdade, dizem respeito à lógica dominante (mas não única) de todas as
intervenções institucionais (idem, p.103).

E Netto ainda prossegue em seu raciocínio:

o máximo que se obtém com seu desempenho profissional é uma


racionalização dos recursos e esforços dirigidos para o enfrentamento das
refrações da ‘questão social’. Cria-se, então, o anel de ferro que aprisiona a
profissão: cortando com as práticas das suas protoformas, não se legitima
socialmente por resultantes muito diversas. A sua prática, orientada por um
sistema de saber e inserida institucionalmente no espectro da divisão social
(e técnica) do trabalho, não vai muito além de práticas sem estes atributos
(idem, grifo do autor).

Tal conclusão, afirmativa da tese do ‘sincretismo da prática indiferenciada’,


dirige-se não apenas ao Serviço Social, mas às “profissões do social” em geral, visto
que, como bem salientado há pouco, qualquer intervenção social na sociedade

122
Para esta afirmação, o autor se inspira na obra Dialética do concreto de Kosic, de 1969 e
menciona os polos da “destruição da razão” (LUKÁCS, 1968) e da “miséria da razão” (COUTINHO,
1972), abrangidos no irracionalismo e na racionalidade formal abstrata que capitulam à dinâmica da
realidade.
85

burguesa apenas pode ratificar a exponenciação da “questão social”. Para além


disso, tal tese, quando conhecida pelos profissionais, se torna polêmica, basta ver a
conclusão representada pelo “anel de ferro”, sem mencionar o fato de que, segundo
Netto, o sincretismo da prática gera a maior parte das crises entre os assistentes
sociais123. O incômodo advém da constatação de que “a profissionalização
permanece um circuito ideal, que não se traduz operacionalmente” (idem, p.104,
grifos do autor). Em outras palavras, esta

teria representado apenas a sanção social e institucional de formas de


intervenção (por isso mesmo, agora implicando preparação formal prévia
para o seu exercício e remuneração monetizada) pré-existentes, sem
derivar numa diferenciação operatória, mesmo que implicando em efeitos
sociais delas diversos (idem, p.104, grifos do autor).

Como mencionamos antes, o sincretismo da prática diz respeito exatamente


a esta inespecificidade ou indiferenciação operatória do Serviço Social,
caracterizada pela manipulação de variáveis empíricas da cotidianidade dos
usuários dos serviços prestados, cuja expressão mais completa é a polivalência. É
crucial tratar sobre a polivalência nesta reflexão não só porque ela se tornou tão
habitual no exercício profissional, mas porque é ela que, não raro, causa o
desconforto ou o estranhamento dos assistentes sociais com seu fazer. Vale
recuperar as considerações de Netto sobre ela:

Efetivamente, a polivalência aparente e típica do Serviço Social não se


configurou como uma opção profissional (ainda que o tenha sido, para
alguns assistentes sociais, em momentos precisos da evolução da

123
Netto ressalta que os componentes mais permanentes que alimentam as recorrentes “crises de
identidade profissional” são: “Do lado da sua clientela imediata, toda a validação profissional tende a
ser promovida no interior de uma moldura que derroga a base própria da profissionalização – a
moldura das suas protoformas filantrópicas. Do ângulo dos seus financiadores diretos, a sua
legitimação torna-se variável da sua funcionalidade em relação aos objetivos particulares que
colimam. Do ponto de vista da estrutura institucional, é tanto mais requisitado quanto mais as
refrações da ‘questão social’ se tornam objeto de administração, independentemente da sua
modalidade de intervenção. Da parte dos outros tecnólogos sociais, aparece situado como o vetor do
jogo multiprofissional mais próximo à clientela imediata. E, na perspectiva dos teóricos (‘cientistas’)
sociais, surge como profissão da prática” (2006a, p.104). Souza (2016, p.121), por sua vez,
demonstra uma posição que não chega a se chocar com a de Netto, creditando à divisão de trabalho
burguesa a causa original das crises profissionais: “O sincretismo da prática não pode ser
identificado como a raiz primordial das pelejas profissionais, ainda que alguns impasses derivem
dele, mas como uma consequência da divisão social do trabalho na sociedade burguesa madura”.
86

profissão). Antes, ela plasmou como um padrão prático-empírico de


procedimento dos profissionais, sob a pressão, fundamentalmente, de duas
ordens de condicionantes: a expectativa social envolvente que rebatia
sobre os primeiros encaminhamentos profissionais (herdada das suas
protoformas) e o leque de recursos (materiais e técnicos) que havia que
mobilizar para dar cumprimento à intervenção. Por outra parte, não são
alheios a ela seja a inserção institucional dos assistentes sociais em
estruturas burocrático-administrativas que lhes reservavam atribuições
residuais e pouco claras, seja o fato de se referenciarem por um sistema de
saber em cuja composição compareciam elementos heteróclitos (cf.infra).

O autor arremata seus apontamentos sobre o sincretismo da prática,


confirmando que ele decorre do cenário histórico particular da gênese profissional e
também que ele influencia significativamente “o sincretismo de suas
representações”, isto é, o sincretismo ideológico e o sincretismo teórico que
trataremos a seguir.

O sincretismo ideológico do Serviço Social demonstra a relação tradicional da


profissão com o pensamento conservador, o que não se atém ao alcance da
doutrina humanista cristã da Igreja Católica, considerando-se a tradição protestante
de alguns países como os Estados Unidos. Cumpre salientar as particularidades das
culturas europeia e norte-americana124 que o calcam. Nas palavras do autor,

Se o rompimento com o evolucionismo e a voga psicologista desobstruíram


as vias, na tradição norte-americana, para a interação com a tradição
europeia, nesta o componente que favoreceu o processo foi a afirmação
neotomista. A década de trinta já registra, na América do Norte, os primeiros
resultados da interação: novos valores e nova fundamentação se
apresentam para a prática profissional do Serviço Social, extraídos do
arcabouço neotomista. E os influxos, naturalmente, foram de mão dupla: a
tradição europeia abriu-se às técnicas e aos procedimentos já
desenvolvidos pelos norte-americanos (idem, p.126).

Netto esclarece que as protoformas do Serviço Social na Europa Ocidental


são marcadas por três fenômenos, a saber: herança revolucionária com ápice no
intervalo entre 1789-1848; presença de cultura social restauradora ligada às elites
burguesas que acarretará o desenvolvimento do neotradicionalismo, do catolicismo
social e do anticapitalismo romântico; e, finalmente, o significado propriamente dito

124
Estas culturas passam a interagir reunidas sob o pensamento conservador a partir dos anos 1930,
contudo com características bem distintas daquelas de antes deste período no que se refere às
protoformas profissionais.
87

da tradição católica. Quanto às protoformas profissionais norte-americanas, Netto


pontua que estas foram condicionadas pelo pós-guerra civil numa fase histórica sem
marcas revolucionárias, entretanto, com um desenvolvimento capitalista em franco
avanço, o que levará à consolidação de um movimento reformista.

O autor resume assim as diferenças entre ambas as culturas:

nas fontes ideológicas das protoformas e da afirmação inicial do Serviço


Social europeu, dado o anticapitalismo romântico, há um vigoroso
componente de apologia indireta [grifo do autor] do capitalismo; nas fontes
norte-americanas, nem desta forma a ordem capitalista era objeto de
questionamento (NETTO, 2006a, p.115).

As consequências de tais diferenças para o surgimento e amadurecimento do


Serviço Social são identificadas, conforme Netto, no projeto de intervenção
profissional reformista; na moldura ético-moral desta intervenção, que torna o
agente profissional um restaurador da ordem ou um promotor de integração social;
e, em último lugar, na consideração da res publica: a tradição europeia
desqualificando a capacidade das instituições modernas de atendimento coletivo e a
tradição norte-americana valorizando as mesmas como “necessidades autênticas do
desenvolvimento social” (p.118).

Deste modo, o sincretismo ideológico da profissão trata da influência da


imbricação das tradições europeia e norte-americana na emergência e consolidação
do Serviço Social em que, segundo o autor, “deu-se por suposto que os referenciais
axiológicos, independentemente do arsenal heurístico e dos procedimentos
operatórios [grifo do autor], é que garantiam a legitimidade, a orientação e o sentido
da intervenção” (idem, p.126/127). Não à toa, para Netto, o resultado foi “a baixa
qualificação teórico-técnica ou uma idiossincrasia ideológica dos protagonistas deste
momento histórico da afirmação profissional” (idem, p.127).

Sendo o sincretismo menos analisado de acordo com o autor125, o


sincretismo ideológico se apresenta desde as protoformas, demonstrando força nos

125Esta carência de análise guarda raízes no escamoteamento histórico do caráter de classe do


exercício profissional pela categoria. É largamente sabido que a trajetória do Serviço Social se
88

períodos históricos do Desenvolvimento de Comunidade – quando os assistentes


sociais se compreenderam como agentes das ‘mudanças sociais’ sob a inauguração
da “ideologia do promocionalismo”, cujas procedências são encontradas no
neotomismo e no desenvolvimentismo – e do Movimento de Reconceituação latino-
americano126.

De acordo com Netto, o exame do sincretismo teórico ou “científico”, por sua


vez, envolve o estudo: das possibilidades do conhecimento do ser social na
sociedade burguesa127; das já abordadas aspirações profissionais de erguer um
saber particular; como também o debruço sobre o sistema de saber de segundo
grau sincrético, obtido pela profissão128 com a acumulação seletiva dos subsídios
das ciências sociais. Quanto a este último, o autor afirma o seguinte:

As elaborações formal-abstratas do Serviço Social profissional (a sua


chamada teorização), portanto, são medularmente ecléticas – e este traço

conecta com o projeto de classe burguês e este tema é tratado tanto por Netto (2006) quanto por
Iamamoto (1992). O primeiro sinaliza que o disfarce ideológico se dá através do apelo aos
‘valores universais’ presentes no projeto profissional ou com o discurso neotomista e o renovado mito
do ‘bem comum”. A segunda, por sua vez, demarca o seguinte: “A demanda profissional tem, pois,
um nítido caráter de classe. Este cunho impositivo, que marca grande parte da atuação profissional,
não aparece limpidamente no discurso do Serviço Social: tende a expressar-se ao inverso, como
reforço à ideologia do desinteresse, do dom de si, do princípio da não-ingerência, do respeito à livre
iniciativa do cliente, da neutralidade etc.” (idem, p.94/95).
126
Na obra Capitalismo Monopolista e serviço social que fundamenta nosso desenvolvimento, Netto
não aprofundou sobre o momento histórico do movimento de reconceptualização, tendo priorizado
discorrer em relação ao Desenvolvimento de Comunidade.
127
Neste campo, o autor tece a respeito das antinomias entre as ciências sociais e a teoria social de
Marx, esclarecendo como as primeiras foram tomadas pelo positivismo e suas derivações
funcionalista, estrutural-funcionalista e estruturalista, e a segunda, a partir da perspectiva de classe
do proletariado e dada sua postura ontológica comprometida com a historicidade, desvela a
socialidade da sociedade burguesa. Netto denuncia também a contradição da socialização da
sociedade no capitalismo, ou seja, quando se instaura historicamente a possibilidade objetiva de um
conhecimento teórico do ser social, prolifera-se a mistificação da processualidade da objetividade
social. Este tema será aprofundado nesta tese em seus capítulos posteriores. De acordo com
Coutinho (1994), a rígida divisão científica do trabalho capitalista, reforçada pela nova visão de
universidade encetada depois que a burguesia torna-se classe dominante no pós-1848, estimula a
constituição de um pensamento fragmentário sintonizado com os seus interesses particulares.
Portanto, o surgimento das ciências sociais diz respeito a um dos momentos organizativos da
ideologia burguesa e estas apresentam tendência ao positivismo, ao imediatismo e à aceitação do
real como agregado de “dados” insuperáveis. Em outras palavras, a constituição das ciências sociais
expressa cabalmente a decadência ideológica da burguesia que trataremos com maior profundidade
mais à frente. Em seu raciocínio, Coutinho ressalta que Lukács denunciou a decadência ideológica
da burguesia motivada pelo abandono do princípio da totalidade, característica importante da cultura
burguesa revolucionária. Para este autor clássico, a emergência da Sociologia relaciona-se com tal
fase decadente.
128
Conforme Netto, “(...) na elaboração do saber, o sincretismo é a face visível do ecletismo [grifo do
autor]; ou, se se quiser, o ecletismo é o sincretismo do Serviço Social no nível do seu [grifo do autor]
(de segundo grau) sistema de saber” (idem, p.147).
89

básico não pode ser creditado a características episódicas ou a condições


biográficas dos protagonistas profissionais. Ele decorre da filiação teórica
do Serviço Social (o sistema de saber a que se prende) e,
simultaneamente, da resposta que articula para orientar-se com um sistema
de saber (de segundo grau) que tenha pertinência direta com a sua prática
profissional. Assim é que a massa crítica acumulada em mais de meio
século de institucionalização profissional, malgrado as inflexões, os giros,
as mudanças etc., apresenta-se com uma estrutura reiterativa: o apelo a
diferentes ciências sociais, com o recurso a componentes nem sempre
compatíveis com a moldura em que são inseridos, para subsidiar práticas e
representações que desbordam o limite de cada uma. Desta forma, a
psicologia do ego se imbrica com uma teoria do equilíbrio social, a
psiquiatria se engrena com uma teoria dos microssistemas sociais, a
psicanálise se articula com a dinâmica dos pequenos grupos, a teoria
funcionalista da mudança social se sintoniza com os esquemas dualistas
em economia etc. (NETTO, 2006a, p.147-148).

Neste trecho, averiguamos o vínculo íntimo entre sincretismo da prática e


sincretismo teórico levantado por Netto ou, em outras palavras, o sincretismo da
prática caracterizado pela manipulação polivalente de variáveis distintas
alimentando o sincretismo teórico substanciado na saída corriqueira para o
empirismo, para o pragmatismo e para o ecletismo na cultura profissional. Embora a
produção do conhecimento não espelhe instantaneamente o sincretismo da prática,
encerrando uma maior autonomia do pesquisador, Souza (2016, p.122) situa que
ela colabora para o enfrentamento do ecletismo mas não para a sua supressão, já
que este “mantém-se, como tendência limiar do pluralismo e do sincretismo da
prática, a tensionar o sentido e a direção social na produção de conhecimento”129.
Aliás, como o autor aponta, o próprio modo segmentado de operacionalização das
políticas sociais setoriais e a racionalidade formal- abstrata que caracterizam as
respostas do Estado burguês às expressões da “questão social” sustentam a
estrutura sincrética do Serviço Social.

No que tange às inspirações teóricas à profissão, de modo preponderante, o


Serviço Social europeu mostrou-se mais refratário à influência das ciências sociais
até se dar uma permeabilidade às ideias de Durkheim. Segundo Netto (2006a), é
apenas após o segundo pós-guerra que se identifica rebatimentos mais efetivos das

129
Souza (2016) ainda acrescenta que a mercantilização da educação superior, as requisições
quantitativas das agências de fomento à pesquisa e a ingerência do mercado na pesquisa científica
contribuem para a tendência de reposição do ecletismo.
90

ciências sociais, conforme a interação com a vertente americana e o próprio


florescimento destas no continente.

O Serviço Social norte-americano, por sua vez, desde o princípio esteve bem
próximo das ciências sociais, destacando-se a emergência da Sociologia.
Entretanto, tal aproximação se configurou mais como uma recepção dos produtos
destes saberes especializados:

Situando-se desde então como uma espécie de desaguadouro das


produções das ciências sociais, o Serviço Social se vulnerabilizava
duplamente: primeiro, porque se lhe atrofiava a capacidade crítica para
sopesar a natureza, a funcionalidade e o sentido daquelas produções, cujo
processamento se lhe escapava; segundo, porque ficava à mercê dos
movimentos institucionais que conferiam ou não àquelas produções a
chancela da ‘cientificidade’ (idem, p.145).

Netto prossegue seu raciocínio mencionando três outras consequências


pouco examinadas relativas à posição receptora do Serviço Social no que tange às
teorias: a primeira, já explorada neste capítulo, seria a compreensão equivocada de
que a legitimação profissional viria da “valoração científico-acadêmica”
experimentada pela ciência social “do momento”; a segunda seria a tendência de
desaparecimento da verificação da validez dos subsídios desta ciência social, o que
justifica, segundo o autor, o pouco debruço à pesquisa e à investigação; e, por
último, a terceira seria a confirmação do praticismo na atuação profissional.

Até os anos 1960, as elaborações do Serviço Social se restringiam à


composição do “saber de segundo grau” e à sistematização da prática profissional.
Foi durante o processo de renovação que as ligações do Serviço Social ao
positivismo e ao ecletismo passaram a ser bastante criticadas. Entretanto,
diferentemente de certas posições que emergiram naquele período, para Netto, se é
possível superarmos nossa influência no pensamento conservador, não são
possíveis uma teoria e uma metodologia próprias do Serviço Social, como já se
tratou antes, tampouco um tipo de atuação livre de “manipulação de variáveis
empíricas de um contexto determinado”. Esta compreensão é de suma importância
para a categoria dos assistentes sociais porque responde a um longo percurso de
preocupação com a “natureza profissional” do Serviço Social:
91

A alternativa de um Serviço Social liberado da tradição positivista e do


pensamento conservador não lhe retirará o seu estatuto fundamental: o de
uma atividade que responde, no quadro da divisão social (e técnica) do
trabalho da sociedade burguesa consolidada e madura, a demandas
sociais prático-empíricas. Ou seja: em qualquer hipótese, o Serviço Social
não se instaurará como núcleo produtor teórico específico – permanecerá
profissão, e seu objeto será um complexo heteróclito de situações que
demandam intervenções sobre variáveis empíricas (idem, p.149).

Como já anunciamos na abertura deste capítulo, a tese do ‘sincretismo da


prática indiferenciada’ defendida por Netto é criticada por outra interpretação, a de
Iamamoto, que afirma que “(...) as determinações sócio-históricas das respostas
profissionais e suas distintas possibilidades de configuração ficam obscurecidas
nessa construção teórica” (2008, p.274). Em seu livro Serviço Social em tempo de
capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social, a autora se dedica a
examinar teses – da identidade alienada, da correlação de forças etc. – que
ganharam relevância na produção de conhecimento profissional no período pós-
1980, já iniciada nossa aproximação com a tradição marxista. Quanto à tese
propriamente dita, em primeiro lugar, Iamamoto sustenta que a construção do
raciocínio de Netto apresenta um problema de ordem teórico-metodológica:

Refere-se ao procedimento utilizado pelo autor para indicar a natureza de


uma especialização do trabalho a partir da aparência em que se manifesta
sem antes decifrar o que se oculta por trás da forma reificada em que se
mostra e que determina e efetiva sua natureza sócio-histórica (idem,
p.267).

Ao conceber restrito o entendimento de Netto sobre a profissão ao fenômeno


da ‘reificação’, Iamamoto não faz jus à totalidade do empenho do autor no
desvelamento do processo histórico que levou à gênese do Serviço Social em suas
produções – em particular destacamos Capitalismo monopolista e serviço social de
1992, e o artigo “Transformações societárias e serviço social – notas para uma
análise prospectiva da profissão no Brasil” publicado na Revista Serviço Social &
Sociedade n˚50 no ano de 1996, já que a referida autora afirma identificar uma
inflexão no pensamento de Netto entre ambas.
92

Para Iamamoto, na obra de 1992 Netto não esclarece quanto à natureza


sócio-histórica da profissão “para além do universo alienado” (p.268). Segundo ela,
seu posicionamento se ratifica em relação ao pensamento de Netto sobre cotidiano
à luz de Lukács - desta vez no texto “Para a crítica da vida cotidiana” do livro
Cotidiano: conhecimento e crítica de 1987 -, levando-a a confirmar que o autor
apresenta

uma visão cerrada da reificação – forma assumida pela alienação na ‘idade


dos monopólios’ – e a alienação tende a ser compreendida como um
estado e menos como um processo que comporta contratendências,
porque as contradições das relações sociais são obscurecidas na lógica de
sua exposição. Essa característica também se encontra presente no texto
de sua autoria, de maior fôlego sobre o tema, Capitalismo e Reificação
(Netto, 1981) (idem, p.269; grifos da autora).

A autora conclui que a posição de Netto alimenta o fatalismo,

pois não permite vislumbrar nem a presença dos movimentos


revolucionários na história e nem horizontes de ruptura da positividade, em
uma análise aprisionada num ‘pessimismo da razão’, que não dá lugar ao
‘otimismo da vontade política, parafraseando Gramsci (idem, p.271).

Já se debruçando sobre o texto de 1996 de Netto, mesmo salientando que


este finalmente situa o exercício profissional pressionado por projetos de classe
distintos e aberto a possibilidades contrárias à herança conservadora, Iamamoto
(idem, p.277) novamente demonstra divergência:

A hipótese central, que preside o referido ensaio, é que a ruptura com o


conservadorismo no Serviço Social foi superdimensionada na sua
magnitude, visto que a ‘dinâmica das vanguardas altamente politizadas
ofuscou a efetividade da persistência conservadora’ (Netto, 1996:112), que
dispõe de profundas raízes na categoria. Em outros termos, a credibilidade
da vertente crítica abafou a expressão de resistências à tradição marxista,
presente e arraigada em expressivos segmentos da categoria.

Ou seja, fica claro que a autora concebe como fatalista a posição de Netto
tanto em face da realidade quanto da profissão. Em sua visão, Netto subtrai de suas
93

análises a totalidade e a contradição da política. No entanto, em Renovação e


conservadorismo no serviço social, a autora traz a seguinte reflexão bastante
alusiva ao que Netto denomina prática indiferenciada, ao tratar do sincretismo da
prática:

O profissional vivencia e representa de maneira confusa essa prática


diversificada, resultado das áreas diferenciadas de trabalho a que se
dedica: almeja ter um campo ‘próprio’ de trabalho enquanto área
‘específica’ que lhe atribua status e facilite o seu reconhecimento
profissional. Como tende a recusar a atividade assistencial, pelos estigmas
que esta, muitas vezes erroneamente identificada com a simples caridade,
traz consigo, ele se vê ‘perdido’ diante da definição de suas atribuições,
diante de outras profissões correlatas cujas frentes de trabalho são mais
precisas, seja pelo caráter técnico mais marcado, seja pela herança
científica mais solidificada. Incorporando, frequentemente, a ótica da
compartimentalização das disciplinas como um dado não-questionável, o
Assistente Social tem a sensação de estar presente em segmentos da
realidade particulares e particularizados, ‘apropriados’ pelas várias
disciplinas, sem ter reconhecido o ‘seu’ lugar. Sente a profissão diluída,
difícil de ser definida e qualificada (idem, 1992, p.41).

Por último, embora reconheça o tamanho dos avanços de Netto a respeito do


‘sincretismo ideológico’ e do ‘sincretismo científico’ e ressalte que o ‘sincretismo da
prática indiferenciada’ é que “requer observações mais cuidadosas” (idem, p.273),
Iamamoto critica a concepção de Netto de 1992, que parece indicar a característica
permanente da estrutura sincrética do Serviço Social:

Apesar da ressalva de que se trata da caracterização da profissão até os


anos 60 – no reino da prevalência do tradicionalismo profissional – a
análise extrapola aquele lapso temporal. Ela incide sobre a própria natureza
do Serviço Social na sociedade burguesa, visto que a problemática, que
subjaz ao sincretismo, é a da reificação, que se irradia em todos os
elementos privilegiados para análise da estrutura sincrética, atribuindo uma
dimensão de universalidade à análise (idem, p.266-267).

Vê-se que a ideia da permanência do sincretismo da prática gera discordância


fundamental entre ambos os autores130.Todavia, nossa leitura é de que há que se
reconhecer a validade atual da tese do sincretismo para o Serviço Social porque,

130 Importa destacar que a tese do sincretismo de Netto parece seguir na direção contrária do
voluntarismo, consideravelmente presente entre as vanguardas profissionais do período pós-
renovação.
94

ainda que a vontade e ação dos assistentes sociais inspirados na teoria social de
Marx possam levá-los à superação dos sincretismos ideológico e teórico – e,
consequentemente, do ecletismo presente em seus formatos–, o sincretismo da
fenomenalidade do exercício profissional, isto é, o sincretismo “da prática
indiferenciada”, não é liquidado tendo em conta os elementos que o envolvem da
“questão social”, do cotidiano e da “manipulação de variáveis empíricas” sob o
quadro da divisão de trabalho burguesa131.

Por outro lado, é indispensável demonstrar também nesta exposição as


convergências de interpretação de Iamamoto com parte das defesas de Netto. No
que se refere aos fundamentos da “questão social” e do cotidiano atribuídos ao
sincretismo da prática, Iamamoto (1992) ratifica a leitura de Netto(2006a) ao
salientar que o exercício profissional engloba contato com necessidades sociais as
mais heterogêneas e, deste modo, acesso ao conjunto de esferas da vida cotidiana
dos trabalhadores. Diante de cenário interventivo tão diverso, a autora afirma a
dificuldade dos assistentes sociais em precisarem suas atribuições em comparação
a outras especialidades, bem como a reclamação destes agentes quanto à ‘ausência
de especificidade’ profissional.

Ao discorrer sobre o surgimento profissional dentro de um movimento


reformista-conservador, Iamamoto (1992) acrescenta à compreensão de Netto
quanto aos dilemas referentes à “natureza” do Serviço Social, chamando a atenção
para a mistura alcançada entre doutrina humanista cristã e ciência nas bases de
inspiração dos assistentes sociais. Isto levou o Serviço Social a preservar seu
caráter missionário e, ao mesmo tempo, a responder às exigências de tecnificação
impostas pela modernização da sociedade e do Estado. Daí, segundo a autora, há o
fomento de grande ambiguidade na consciência dos profissionais, já que a ação
técnica acaba por reforçar a ordem social reprodutora de desigualdades sociais,
parecendo negar a intenção humanista que a norteia. De acordo com Iamamoto, a
distância entre os objetivos profissionais e os efeitos concretos da intervenção torna-
se cada vez mais incômoda, levando a crises de identidade profissional cuja

131
Para Souza (2016, p.121): “É a reprodução da sociabilidade burguesa e suas expressões
contraditórias presentes nas estruturas da sociedade e do Estado que tendem a repor os
fundamentos do sincretismo no Serviço Social”. O autor destaca que outras profissões como o
Direito, a Pedagogia, as Ciências Sociais e a Psicologia também lidam com contradições e limites em
função de igual determinação macroscópica.
95

resolução foi buscada através de aprimoramento teórico e técnico. Essa busca se


deu conforme as exigências da acumulação e da modernização do Estado, quando
não havia questionamento das “bases políticas de legitimação de seu fazer” 132 , ou
através de reorientação da atuação na perspectiva dos efetivos interesses das
classes sociais subalternas.

Cumpre destacar, igualmente, as convergências analíticas entre


VerdèsLeroux e Netto, particularmente no que se refere às conclusões já expostas
sobre a indiferenciação operatória que a profissionalização não resolve. Ao se
debruçar sobre as finalidades do trabalho social na realidade francesa, Verdès-
Leroux (1986, p.83) já analisava que ele “deve sua estrutura particular à ausência
quase completa de uma demanda social solvável [grifo da autora] e,
correlativamente, ao curso forçado imposto aos serviços que ele dispensa”. A autora
identificava também a “ausência aparente de critérios objetivos” no que tange à
eficácia da intervenção, pois, conforme seu pensamento, o papel deste trabalho,
“fluido e pouco definido”, é distinguir com antecedência os problemas sociais (e não
resolvê-los), indicando providências de prevenção aos mesmos. Ao fim e ao cabo,
para Verdès-Leroux, a função do trabalhador social envolve um projeto defensivo da
classe dominante de conter os “excluídos”.

Em conclusão, vale recuperar o apontamento de Souza (2016) de que o


debate sobre o sincretismo ganhou força a partir da construção dos fundamentos
históricos, teóricos e metodológicos do Serviço Social brasileiro entre os anos 1980
e 1990, no compasso dos avanços renovados que a Intenção de Ruptura
oportunizou133. Conforme o autor, foi o estudo aprofundado das categorias da teoria
social de Marx que possibilitou situar a profissão nas relações sociais capitalistas,
assim como compreender o feixe contraditório das políticas sociais no
enquadramento da formação sócio-histórica brasileira.

132
Iamamoto (1992) esclarece que este aprimoramento teórico e técnico era comumente perseguido
conforme parâmetros de eficiência e racionalidade. A preocupação era de se modernizar a profissão
em sintonia com a conjuntura, aperfeiçoando o instrumental operativo de acordo com a
burocratização das instituições.
133
Conforme o autor, do ponto de vista da trajetória do Serviço Social brasileiro, foi o processo de
desenvolvimento da vertente “Intenção de Ruptura” que garantiu terreno para ultrapassagem do
ecletismo.
96

Preocupado com a apologia ao “saber prático” entre os assistentes sociais


atualmente, apesar do percurso do Serviço Social no sentido de adensar a
orientação crítico-dialética na formação profissional, Maranhão (2016) acrescenta
que são três os fatores que atrapalham a profissão no rompimento com o
conservadorismo e na superação de práticas pautadas pelo pragmatismo empírico,
pelo subjetivismo idealista ou pelo irracionalismo eclético: o seu cunho sincrético, a
aproximação problemática com a tradição marxista tendo em vista a insuficiente
incorporação dos fundamentos da teoria social marxiana e, finalmente, o
acirramento da ofensiva do capital neste momento da luta de classe, que dificulta a
produção de um conhecimento que extrapole a facticidade.

Após indagar-se sobre o aparente paradoxo entre o progresso da influência


marxista na academia entre os anos 1980 e 2000 e o exercício profissional dos
assistentes sociais desprovido de crítica ao sincretismo134, o autor recorre à obra
Ditadura e Serviço Social de Netto para elucidar que, em primeiro lugar, há uma
desarmonia entre o universo simbólico presente na produção das “vanguardas
acadêmicas” e aquele da maioria da categoria profissional. Para isto concorrem
tanto a elaboração por vezes hermética destas vanguardas quanto o
empobrecimento cultural cada vez maior entre os assistentes sociais. O autor
também indica que a ausência de participação política destes profissionais,
vinculada com o período histórico em curso de defensiva da organização dos
trabalhadores, compromete ainda mais o arcabouço político-cultural e ideológico dos
mesmos. Outro problema por ele salientado, com base no raciocínio de Netto, é a
falta de mais indicativos profissionais de operacionalização imediata no exercício
profissional, o que torna as reflexões teóricas das vanguardas por vezes muito
distantes dos desafios cotidianos enfrentados pelos assistentes sociais 135. Por fim,

134
Aliás, esta preocupação de Maranhão foi similar àquela que nos mobilizou para a candidatura à
seleção de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro em 2012. Á época, inquietava-nos como importantes avanços obtidos do ponto de
vista da superação do Serviço Social tradicional com a incorporação do marxismo ainda não se
consubstanciavam numa clareza do que é a própria profissão, especialmente no que tange às
competências e atribuições privativas dos assistentes sociais no desenvolvimento de sua intervenção
na divisão social e técnica do trabalho.
135
Em seu texto Transformações societárias e serviço social: notas para uma análise prospectiva da
profissão no Brasil, Netto (1996, p.109) volta a sinalizar o problema do distanciamento entre as
vanguardas e a massa da categoria profissional quando trata da importância da criação de novas
competências sociopolíticas e teórico-instrumentais diante do movimento da divisão de trabalho: “Os
avanços e o acúmulo realizados no Serviço Social, até a entrada dos anos noventa, foram, neste
97

Maranhão aponta a “cultura do imediato” pós-moderna como um fator decisivo que


corrobora com a persistência do conservadorismo entre nós.

Se o sincretismo da prática indiferenciada do Serviço Social não pode ser


suplantado por conta de sua conexão ontológica com o alicerce erguido pelo
Capitalismo Monopolista para o enfrentamento da “questão social”136, o alinhamento
entre sincretismo e conservadorismo pode sim ser ultrapassado nos campos
ideológico e teórico sem desconsiderar o panorama histórico gravemente adverso
que entrava esta resistência profissional. Conforme o autor, o rompimento com o
conservadorismo exige do Serviço Social uma tarefa importante que diz respeito a
assistentes sociais atuantes em todos os espaços ocupacionais:

Caso queira avançar em seu intento de ruptura com as práticas


profissionais conservadoras e tradicionais, o Serviço Social deve não
apenas procurar apreender a riqueza do método dialético, mas também
construir e intensificar ferramentas concretas que aprofundem a dimensão
investigativa da profissão na academia e nos institutos de pesquisa,
articulando o desenvolvimento teórico-metodológico intenso com os
processos de sistematização da prática realizados pelos profissionais. Só
com o fortalecimento contínuo e a articulação conjunta entre esses dois
espaços, preservando os limites e possibilidades de ambos, é que os
problemas cotidianos vividos pelos profissionais nas instituições podem
redundar em ricas temáticas de investigação e pesquisa que, ao
suspenderem e analisarem o cotidiano caótico e reificado do espaço
profissional, podem abrir caminho para a construção de alternativas críticas
à intervenção profissional, apesar dos estreitos limites institucionais. A
construção de tais condições materiais e teóricas pode portar uma
alternativa para a criação de um instrumental teórico e técnico operativo
que possibilite o acesso às múltiplas determinações que compõem a
realidade social, permitindo, com isso, a viabilidade do desenvolvimento de
estratégias de atuação crítica nas mais variadas instituições (idem, p.202-
203).

Faz-se mister, contudo, reconhecer que as conquistas do projeto ético-


político-profissional que sustentam a defesa do aprimoramento intelectual
permanente, necessário ao desvelamento do sincretismo, estão hoje ameaçadas

domínio, enormes, porém; são ainda flagrantemente débeis em face das novas realidades societárias
e mesmo da própria extensão das práticas profissionais. Além disso, a categoria profissional não
dispõe de suficientes canais e circuitos que operem uma efetiva socialização de tais avanços – o que
tem contribuído para alargar, numa escala preocupante, a distância entre as vanguardas acadêmicas
e a massa dos profissionais ‘de campo’”.
136
Ver Souza (2016).
98

uma vez que no capitalismo contemporâneo se recrudesce a face bárbara do capital


no mesmo passo que a organização política dos trabalhadores se reflui
dramaticamente137.

137No item 1.3, tratamos desta terceira fase do imperialismo e de suas configurações na realidade
brasileira que reestabelecem o sincretismo da prática.
99

CAPÍTULO 3 – RENOVAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL BRASILEIRO E


SINCRETISMO

Para adensar o presente estudo que pretende apresentar um balanço da


vertente conhecida como Intenção de Ruptura pelo prisma da tese do sincretismo de
Netto, é indispensável resgatar o processo de renovação do Serviço Social brasileiro
ocorrido durante os anos de 1960 a 1980, quando da vigência da ditadura.
Especialmente, pretende observar o fortalecimento desta vertente que logrou, pela
primeira vez na história da profissão e, na transição dos anos 1970 para os anos
1980, a construção de um Projeto Profissional de Ruptura com a influência do
conservadorismo no discurso e na ação dos assistentes sociais138. Afinal, foi ao
longo da renovação profissional que a categoria se empenhou em refletir os papéis
do Serviço Social na sociedade de então através de distintas interpretações
teóricas, ideológicas e práticas que, de acordo com Netto (1994), demonstraram a
presença do sincretismo e do seu decorrente ecletismo.

A propósito, para o referido autor (idem, p.131), o processo de renovação do


Serviço Social, que abrangeu o estabelecimento da laicização e do pluralismo além
de deixar seu legado de mudança, continuidade e Intenção de Ruptura no porvir da
profissão, se refere a um

conjunto de características novas que, no marco das constrições da


autocracia burguesa, o Serviço Social articulou, à base do rearranjo de
suas tradições e da assunção do contributo de tendência do pensamento
social contemporâneo, procurando investir-se como instituição de natureza
profissional dotada de legitimação prática, através de respostas a
demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica,
mediante a remissão às teorias e disciplinas sociais.

A revisão do sentido da profissão na história brasileira, que estimulou os


diversos grupos da categoria em debate durante os idos da ditadura, redundou num

138
Como é sabido, o Serviço Social teve sua gênese e grossa parte de seu percurso influenciados
pelo movimento reformista conservador, o que determinou naturalização da sociedade burguesa e
defesas morais e anticapitalistas românticas da pessoa humana e do bem comum. Logo em seguida,
à medida que a profissão é cada vez mais incorporada pelo Estado e pela burguesia industrial, esta
bagagem humanista combinou-se com os fundamentos positivista e funcionalista, a julgar pela
interação com as ciências sociais (IAMAMOTO, 2008).
100

avanço substantivo. Mesmo sem nos livrarmos da herança intelectual e política


conservadora calcada no arranjo teórico-doutrinário139 entre o humanismo cristão e
as teorias positivista e estrutural funcionalista bem representada pelo sincretismo140,
a renovação proporcionou a ultrapassagem do monolitismo ideal, a aproximação do
Serviço Social com o debate das ciências sociais (consequentemente com a
modernidade) – que o levou, em seguida, a tornar-se um interlocutor qualificado – e
a formação de uma vanguarda pesquisadora.

Assim sendo, neste terceiro capítulo, interessa-nos desvendar os meandros


da renovação profissional no Brasil composta por estas diferentes compreensões de
sociedade e de Serviço Social, caracterizadas pela reposição do sincretismo.
Começamos pela subsunção do tradicional ao moderno cometida pela vertente da
Perspectiva Modernizadora, incluindo o ecletismo particular da Reatualização do
Conservadorismo, além do primeiro momento da perspectiva de Intenção de
Ruptura, quando da sua emersão no “Método BH”141.

3.1. Crise do Serviço Social tradicional e renovação profissional

A crise do Serviço Social tradicional142 foi um fenômeno internacional em


consonância com a crise macroscópica do capitalismo monopolista, que despontou
durante os anos 1960. O tempo histórico em questão foi marcado pelo esgotamento
dos anos dourados capitalistas e pela abertura nas relações internacionais que
favoreceu a mobilização das classes sociais subalternas. É na quadra dos anos
1960 que a onda longa expansiva, iniciada nos pós Segunda Guerra, começa a dar

139
Este termo é utilizado por Iamamoto (2008).
140
Tanto Netto (1994) quanto Iamamoto (2008) assinalam que, ao longo da renovação do Serviço
Social, houve mistura de ideias sem compatibilidade teórico-metodológica original, o que torna difícil,
inclusive, o reconhecimento de leituras “puras” ou “integrais” entre as perspectivas desenvolvidas no
seu bojo. Este cenário guarda vínculo com a tradição intelectual recente da profissão.
141
Faz-se mister destacar que tais denominações para estas três direções da renovação do Serviço
Social brasileiro foram cunhadas por Netto (1994).
142
De acordo com Netto (1976, p.87), o Serviço Social tradicional de inspiração norteamericana
“puede ser fácilmente caracterizado por su desempeño profesional asistemático, intuitivo, carente de
procedimientos técnico-científicos bien determinados y rigurosos, informado por valores de sabor
liberal, volcado a la corrección (en una perspectiva claramente funcionalista) de las llamadas
‘disfunciones sociales’, y sustentado por una concepción (consciencializada o no) idealista y/o
mecanicista del universo social, sólo compreendido en cuanto universo social engendrado por el
modo de producción capitalista”.
101

sinais de sua exaustão, marcada pela queda da taxa de lucro e do ritmo do


crescimento econômico. Isso fez cair por terra a falsa ideia do “capitalismo
democrático” consensual, ou seja, a ilusão de que “a produção em larga escala
encontraria um mercado em expansão infinita e a intervenção reguladora do Estado
haveria de controlar as crises” (NETTO e BRAZ, 2008, p.213). Ademais, nestes
mesmos anos a cidadania ancorada na propriedade é questionada e as atividades
políticas se multiplicam com novos sujeitos e em novos espaços, a começar pelo
fortalecimento do movimento sindical nos países centrais, que pressionou por
melhores salários e rejeitou a organização taylorista-fordista do trabalho. Nas
palavras de Netto (1994, p.143), vemos que o “mundo da cultura” tampouco
permaneceria o mesmo e encontramos mais detalhes:

Registram-se então amplos movimentos para direcionar as cargas da


desaceleração do crescimento econômico, mediante as lutas de segmentos
trabalhadores e as táticas de reordenação dos recursos das políticas
sociais dos Estados burgueses. Em tais movimentos, o conteúdo das
demandas econômicas (...) entrecruza-se e conflui com outras demandas,
sociais e culturais: começam a cristalizar-se reivindicações referenciadas a
categorias específicas (negros, mulheres, jovens), à ambiência social e
natural (a cidade, o equipamento coletivo, a defesa dos ecossistemas), a
direitos emergentes (ao lazer, à educação permanente, ao prazer) etc. Nas
suas expressões menos consequentes, estes movimentos põem em
questão a racionalidade do Estado burguês e suas instituições; nas suas
expressões mais radicais, negam a ordem burguesa e o seu estilo de vida.

Indo mais além, os anos 1960 se situam no desenrolar da chamada guerra


fria, instalada no período pós-1945 com respaldo da doutrina Truman, que conferiu
aos Estados Unidos uma direção anticomunista, hegemonista e belicista apontada
ofensivamente contra a União Soviética – a outra nação que saiu vitoriosa da
Segunda Guerra Mundial, embora padecendo de grandes problemas econômicos e
políticos internos. Embora tenha resultado num cenário internacional estável, a
divisão do mundo nos blocos capitalista e socialista (sem desconsiderar os países
´não-alinhados´) sob a corrida armamentista, distinguida pela ameaça nuclear e a
divulgação norte-americana de um clima de “anticomunismo apocalíptico” 143, expôs
a tensão fundamental entre a ideia de que a sociedade liberal não estava garantida

143
Expressão utilizada por Hobsbawn (1995).
102

e o aumento da repercussão do socialismo através do apoio soviético aos


movimentos de libertação nacional e seus avanços aeroespaciais – sem falar na
Revolução Chinesa de 1949 liderada por Mao Tsé-Tung144. No que diz respeito
particularmente à América Latina, após a Revolução Cubana em 1959, é sabido que
os Estados Unidos intensificaram sua intervenção no continente tanto de modo lícito
– por meio dos “programas de ajuda” como a Aliança para o Progresso divulgado
por John F. Kennedy em 1961 – quanto clandestinamente, através das atuações da
Central Intelligence Agency (CIA) que incluíam espionagem, arranjo de campanhas
contra governos democráticos, financiamento encoberto a organizações de extrema-
direita e chancela de terrorismo e crime, como aconteceu no Brasil durante os anos
1960 e no Chile ao longo do governo de Salvador Allende, entre 1970 e 1973
(HOBSBAWN, 1995 e NETTO, 2014).

Se tal panorama mundial impactava frontalmente as realidades nacionais na


América Latina, a trajetória da profissão, por sua vez, não ficou incólume. O
consenso quanto ao esgotamento do Serviço Social tradicional – reforçado pelo
enfrentamento político coletivo contra o imperialismo e contra as dramáticas
desigualdades geradas pelo sistema no continente – não implicou, todavia, unidade
política no rompimento com suas bases, como atestou o curso da renovação
profissional no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile, núcleos principais do debate. Nos
três últimos países, o Serviço Social tradicional foi posto em cheque devido à forte e
histórica mobilização popular que pressionava a ruptura com o poder oligárquico e
apoiava a liberdade intelectual, partindo, inclusive, de um questionamento explícito
ao capitalismo alimentado por uma influência marxista mais densa. Contudo, no
Brasil, o enfrentamento do Serviço Social tradicional se deu preponderantemente
através de um discurso cooperativo com a ideologia dominante de desenvolvimento,
portanto, dentro dos marcos do Estado ditatorial vigente, que liquidava com qualquer
foco de objeção - também dentre as ciências sociais145 - em nome de uma

144 A Revolução Cultural Chinesa empreendida a partir de 1966 pelo líder do Partido Comunista
Chinês Mao Tsé Tung inspirou profundamente a intelectualidade ocidental e também influenciou
ideologicamente o processo de renovação profissional do Serviço Social brasileiro.
145
A crise das ciências sociais instalada após os anos 1960 no mundo revela não somente o
adestramento a elas impingido pelos governos autoritários, mas, principalmente, a formação sócio-
econômica que as constituiu. E aqui referimo-nos ao capitalismo e à racionalidade formal de que se
vale empobrecedora da razão. No capítulo 1, nos reportamos às antinomias entre a teoria social de
Marx e as ciências sociais ilustradoras da decadência ideológica da burguesia (NETTO, 1976;
COUTINHO,2010; GUERRA, 1997 e 2009).
103

modernização social vantajosa ao capital estrangeiro 146. Em outras palavras, se no


Brasil o Serviço Social tradicional perde força em decorrência de seu cariz
assistencialista, que não poderia atender o Estado cada vez mais burocratizado e
comprometido com os interesses empresariais, nos outros países ele sucumbia
diante dos efervescentes cenários nacionais de radicalização democrática que
abrangiam reivindicação de direitos e de transformação social (NETTO, 1976).

Em função do questionamento que se alastrou sobre o papel profissional na


superação do subdesenvolvimento latino-americano, deflagrou-se o Movimento de
Reconceituação do Serviço Social no decorrer do ano de 1965, que reuniu
assistentes sociais tanto defensores de atualização profissional em anuência com a
ordem estabelecida quanto defensores de ruptura com o passado 147. Mesmo sem
resultar na superação do voluntarismo profissional, este movimento foi responsável

146
O discurso em questão foi sustentado pela Perspectiva Modernizadora, a primeira que ganhou
vulto na renovação do Serviço Social brasileiro como veremos adiante. Contudo, há que se enfatizar
que, na contracorrente, o Método B.H. traçado nos idos de 1972 apresentou direção política
convergente com o processo de renovação que transcorria na Argentina, no Uruguai e no Chile.
147 De acordo com Iamamoto (2008, p.209), as principais inquietações da grande parte dos países de

língua espanhola participante do Movimento de Reconceituação são: “(...) em primeiro lugar, o


reconhecimento e a busca de compreensão dos rumos peculiares do desenvolvimento latino-
americano em sua relação de dependência com os países ´cêntricos´ [grifo da autora], para a
contextualização histórica da ação profissional, o que redundou em uma incorporação das produções
acadêmicas no vasto campo das ciências econômicas, sociais e políticas. Em segundo lugar,
verificam-se os esforços empreendidos para a reconstrução do próprio Serviço Social: da criação de
um projeto profissional abrangente [grifo da autora] e atento às características latino-americanas, em
contraposição ao tradicionalismo, envolvendo critérios teórico-metodológicos e prático-interventivos.
Em terceiro lugar, uma explícita politização da ação profissional [grifo da autora], solidária com a
‘libertação dos oprimidos’ e comprometida com a ´transformação social´, conforme a linguagem usual
da época. Em quarto lugar, a necessidade de se atribuir um ‘estatuto científico’ ao Serviço Social
lança-o no campo dos embates epistemológicos, metodológicos e das ideologias [grifo da autora].
Finalmente as preocupações anteriores se canalizam para a reestruturação da formação profissional
[grifo da autora], articulando ensino, pesquisa e prática profissional, exigindo da Universidade o
exercício da crítica, do debate, da produção criadora de conhecimentos no estreitamento de seus
vínculos com a sociedade”. Segundo Lopes (2016), o Movimento de Reconceituação latino-
americano apresentou dois momentos bem definidos: o primeiro entre 1965, quando da criação da
ALAESS - que em 1977 passou a ser denominada Asociación Latinoamericana de Escuelas de
Trabajo Social (ALAETS) e finalmente Asociación Latinoamericana de Enseñanza e Investigación en
Trabajo Social (ALAEITS) - e 1974, quando da instituição do Centro Latinoamericano de Trabajo
Social (CELATS); o segundo, por sua vez, é caracterizado pela solidificação do projeto de promoção
da profissão na América Latina, pela atuação do CELATS como organismo acadêmico e propulsor da
organização política crítica dos assistentes sociais. A autora enfatiza os seguintes intelectuais que se
mostraram ativos no movimento: “Herman Kruse, do Uruguai; Natálio Kisnerman, Ezequiel Ander-
Egg, Norberto Alayón, da Argentina; Leila Lima Santos, Consuelo Quiroga, Seno Cornely e Vicente
de Paula Faleiros, do Brasil; Tereza Quiroz, Diego Palma, Luiz Araneda e Raul Castillo, da Chile;
Boris Alexis, da Venezuela; Mirian Gamboa e Edy Jimenez, da Bolívia; Clemencia Sarmiento, do
Peru; Juan Mojica, Cecília Tobon e Jesus Mejia, da Colômbia; Beatriz de la Veja, do México” (idem,
p.320). Netto (2005), por sua vez, enaltece o papel assumido pelo CELATS de promoção de
investigações, eventos, publicações e educação à distância, inclusive com a colaboração de
sociólogos, psicólogos e educadores, afirmando que este proporcionou o trânsito do “Serviço Social
tradicional” ao “Serviço Social crítico” na América Latina.
104

por uma avaliação crítica incomum pelos assistentes sociais do sentido de sua
atividade. Aqui, contou a aproximação com a tradição marxista como fundamental
ingrediente deste processo na tendência que confrontou o conservadorismo e que
foi predominante nos países do Cone Sul, contudo, escassa no Brasil durante a
ditadura148.

Foi no desenrolar do Movimento de Reconceituação que se pensou pela


primeira vez o exercício profissional como promotor de mudança social ao lado da
visão corriqueira de providência de ‘estabilidade social’. Mais do que isso, ele
expressou, em última instância, o intento da categoria de alcance de uma nova
legitimidade social ligada aos interesses dos trabalhadores. O resgate crítico da
memória de seus rumos é compromisso impreterível concernente às últimas
gerações de assistentes sociais, para que os enganos cometidos no calor daquele
tempo histórico, a exemplo do militantismo e do messianismo, não sejam tão
facilmente reproduzidos (NETTO, 1994 e 2005; SANTOS, 1985). Uma vez que,
conforme Netto, o Movimento de Reconceituação latinoamericano integrou a
estratégia do projeto revolucionário no continente, a sua crise revela a crise deste
horizonte político. Segundo o autor, este movimento apresentou, através de seus
dois tipos excludentes de denúncia do Serviço Social tradicional – o brasileiro e o
dos países de tradição hispânica -149, as duas alternativas de revolução na América
Latina: a revolução pelo alto – que estrangula suas potencialidades e a reduz à
modernização reformista – e a revolução por baixo – única capaz de salvaguardar a
transformação.

O processo de renovação do Serviço Social brasileiro deslanchou,


fundamentalmente, em razão da reestruturação do Estado e das fortes mudanças

148
Para Netto (1994), a interlocução com o marxismo demonstra modernidade profissional, embora
as primeiras fontes tenham sido manuais de divulgação controversos fundamentados nas ideias de
Besse e Caveing, Harnecker, Mao Tse Tung, Althusser, sem mencionar o ecletismo com o
pensamento de Paulo Freire. Isto é, o Serviço Social se aproximou primeiro do marxismo vulgar,
sendo posterior, mais exatamente a partir dos anos 1980, sua interlocução com a teoria social
marxiana e a tradição marxista.
149
Diferentemente de posições divulgadas no período, Netto (1976) afirma que justamente porque a
reconceituação brasileira expõe a modernização da profissão de modo heterônomo, isto é, a reboque
do Estado ditatorial, e a reconceituação nos países de tradição hispânica exprime a reflexão
autônoma sobre o Serviço Social, num distanciamento crítico do Estado oligárquico, não é possível
transferir os procedimentos de uma à outra já que as raízes ideológicas, gnosiológicas e
metodológicas de ambos os processos são completamente distintas.
105

na sociedade levadas a cabo pela ditadura. A modernização conservadora150


empreendida sob seu comando garantiu o agravamento no país do desenvolvimento
capitalista dependente e associado, bem como serviu para apressar a concentração
e a centralização de capital, favorecendo exponencialmente os monopólios e
ampliando o agronegócio com reconcentração de propriedade e desmantelamento
do campesinato. Assim sendo, a condução da economia no período ditatorial,
regada politicamente pela defesa da doutrina de segurança nacional 151, contou com
características determinadas:

(...) a internalização e a territorialização do imperialismo; uma concentração


tal da propriedade e da renda que engendrou uma oligarquia financeira; um
padrão de industrialização na retaguarda tecnológica e vocacionado para
fomentar e atender demandas enormemente elitizadas no mercado interno
e direcionado desde e para o exterior; a constituição de uma estrutura de
classes fortemente polarizada, apesar de muito complexa; um processo de
pauperização relativa praticamente sem precedentes no mundo
contemporâneo; a acentuação vigorosa da concentração geopolítica das
riquezas sociais, aprofundando brutais desigualdades regionais (NETTO,
1994, p.32).

150
Expressão utilizada por vários autores e, inclusive, por Netto (1994) para dar conta das
funcionalidades econômica e política que o Estado pós-1964 antinacional e antidemocrático assumiu.
Em outra obra, Netto (2014) explicita, por exemplo, que a refuncionalização do latifúndio operada
durante a ditadura no Brasil sem abalo do “monopólio oligárquico da terra”, expressão mais
contundente do “milagre brasileiro”, fez com que estudiosos compreendessem a veloz expansão do
capitalismo entre nós como “modernização conservadora”.
151 Comblin (1978) destaca que a doutrina de segurança nacional tem suas raízes na Guerra Fria e se

reproduziu em inúmeras outras guerras, como as extensas da Coréia e do Vietnã, com protagonismo
civil-militar norte-americano. Tal ideologia, caracterizada pelo anticomunismo e pela defesa do
continente contra eventual ataque das forças militares soviéticas e aliadas, levou à criação de um
aparato burocrático-institucional particular, a exemplo da CIA e do Pentágono. Seu espraiamento na
América Latina – Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Peru e Equador – se materializou com venda de
armamentos e programas de formação militar, influenciando a irrupção de regimes militares
autoritários e a desnacionalização da vida social e política. No Brasil, a Escola Superior de Guerra
(ESG), criada em 1949, exerceu função central na irradiação desta doutrina entre os militares. Na
introdução de sua obra, o autor resume assim o seu conteúdo: “A Doutrina da Segurança Nacional é
uma extraordinária simplificação do homem e dos problemas humanos. Em sua concepção, a guerra
e a estratégia tornam-se a única realidade e a resposta a tudo” (p.17). Netto (2014), por sua vez,
acrescenta que a doutrina de segurança nacional consistiu na base ideológica comum a duas
tendências entre os militares brasileiros durante a ditadura: a dos representantes da ESG (apelidada
de “Sorbonne”) e a daqueles da “linha dura”. De acordo com o autor, os primeiros nutriam uma visão
de seu papel na sociedade e buscavam aproximação com seus segmentos conservadores em prol de
uma liderança para além das tarefas rotineiras profissionais, enquanto os segundos mostravam-se
pragmáticos e impositivos sem preocupações com a opinião pública. No que tange seu conteúdo,
adaptado por militares brasileiros da matriz norteamericana, acompanhemos as palavras do autor:
“Para a Doutrina de Segurança Nacional, a questão central é a garantia de segurança interna [grifo
do autor], que exige duas condições: a criação de um aparato repressivo [grifo do autor] , encimado
por uma rede de informações [grifo do autor] que permita detectar o ‘inimigo interno’ (os
‘subversivos’), capaz de neutralizá-lo/eliminá-lo, e a implementação de uma política de
desenvolvimento econômico [grifo do autor], eficiente e assentada no planejamento para assegurar a
força militar do Estado” (p.87).
106

Faz-se mister salientar que a ditadura do grande capital152 que se implantou


no Brasil com o golpe civil-militar de 1964 demonstrou nítidas conexões com a
contrarrevolução preventiva153, conduzida pelos Estados Unidos imperialista em
meio à guerra fria e às agudas modificações na divisão internacional do trabalho154.
O governo autoritário que sobreveio ao golpe significou a vitória da saída
reacionária para a crise capitalista no país, com apoio dos grandes empresários,
banqueiros, latifundiários e empresas estrangeiras. Tal “crise da forma da
dominação burguesa no Brasil”, conforme Netto (1994), se deu em virtude do
choque entre o padrão de acumulação impresso pelo desenvolvimento sustentado
na industrialização pesada155 e as aspirações democráticas e populares que
conseguiam se expressar no sistema político. À época, a deposição do presidente
João Goulart expressou, portanto, a derrubada da alternativa de reverter nossas
históricas dependência e tradição antidemocrática mesmo sem abalar de pronto as
raízes da propriedade privada e do mercado.

Neste sentido, para Netto (2014), durante a ditadura, o Estado brasileiro


apresentou-se antinacional e antipopular porque, a troco de aprovação na
comunidade internacional, favoreceu a liberdade dos capitais estrangeiros e

152 Termo utilizado por Netto (2014) com base na interpretação de Octavio Ianni.
153 Expressão utilizada por Netto (2014).
154
O trecho a seguir esclarece a respeito: “De fato, na entrada dos anos 1960, o sistema capitalista
experimentava transformações importantes; uma das causas decisivas dessas transformações residia
na superacumulação de capitais nos países centrais, que levava à internacionalização do processo
produtivo pelas empresas imperialistas, a fim de operar a valorização do capital diretamente nos
países dependentes (fora das suas fronteiras nacionais). Assim, países como o Brasil, que já
contavam com uma estrutura urbano-industrial mínima, grandes recursos naturais e força de trabalho
abundante, constituíam espaços ideais para a recepção de unidades produtivas daquelas empresas,
podendo inserir-se de um modo novo, desde que se submetendo às exigências imperialistas, na
dinâmica do capitalismo internacional” (NETTO, 2014, p.78).
155
Este tipo de industrialização demandava uma tomada de posição econômica que,
lamentavelmente, desembocou no golpe civil-militar de 1964: “A passagem da industrialização
substitutiva de importações [grifo do autor] (industrialização restringida) à industrialização pesada
[grifo do autor] (ou alargada), que vinha de meados da década anterior, colocava à mostra a sua
exigência: a rearticulação das modalidades de acumulação penalizando fortemente as camadas
trabalhadoras para permitir um novo arranjo entre o Estado, o capital privado nacional e o capital
estrangeiro, aprofundando a dependência em face dos centros imperialistas ou realizando as
reformas de base [grifo do autor] para reorientar a economia na direção de romper com aquela
dependência – contrapunham-se, pois, dois projetos econômico-políticos e sociais, um na
perspectiva de manter aquelas linhas de força da nossa história e outro no sentido de superá-las”
(NETTO, 2014, p.76).
107

restringiu a reação dos trabalhadores à exploração. Através do exercício desta dupla


função econômica e política, este Estado mostrou-se ineditamente intervencionista
conforme as requisições do capitalismo monopolista, como vimos no primeiro
capítulo desta tese. De acordo com Netto (1994), o ano de 1968, quando o Ato
Institucional n°5 (AI-5) é baixado em 13 de dezembro no governo Costa e Silva, é
aquele que abre o período efetivo da autocracia burguesa, uma vez que nele o
Estado é profundamente recaracterizado e refuncionalizado em prol dos interesses
do grande capital monopolista. Não à toa, o terrorismo de Estado ancorado numa
vigorosa tutela militar, que reprime qualquer dissenso, se articula harmoniosamente
com a lógica da modernização conservadora operada. Aliás, é digno de nota que
políticas sociais sejam configuradas a partir desta fase com finalidade de obtenção
de consenso junto à sociedade.

No que diz respeito ao Serviço Social brasileiro nesta conjuntura, embora o


perfil de assistente social tradicional preponderante até então parecesse
conveniente à execução passiva das políticas sociais, fato é que os feitos da
ditadura impactaram fortemente o cenário profissional e determinaram giros inéditos
em seu interior156. Nesta época, o exercício profissional sofreu profundas alterações
em virtude da expansão do mercado nacional de trabalho nas esferas pública e
privada – haja vista a expansão do parque industrial brasileiro em proveito dos
monopólios, sustentada por uma elevação exponencial da taxa de exploração no
país e um rígido controle da força de trabalho – bem como da reestruturação
organizacional e funcional das políticas setoriais, que requisitou o aumento
significativo da contratação de assistentes sociais. Uma postura “moderna” era
exigida destes profissionais, o que incluía adequação da atuação técnica às normas,
fluxos, rotinas e finalidades dos espaços ocupacionais. No que tange à formação
profissional, deve ser registrado que a política educacional da ditadura inaugurou
ruptura com o confessionalismo, o paroquialismo e o provincianismo nos
estabelecimentos de ensino157. Além disso, o Serviço Social ingressou na

156
Tal constatação leva Netto (1994) a afirmar que a autocracia burguesa foi determinante na
configuração de uma nova legitimidade profissional respaldada teórica e tecnicamente e cada vez
menos calcada numa (auto) representação humanista.
157
Tanto a política educacional quanto a política cultural da ditadura militar impactaram a renovação
profissional de forma significativa. Nas palavras de Netto (1994, p.163/164): “(...) cabe enfatizar a
indescartabilidade da malha de mediações que concretizam as específicas relações entre as políticas
108

universidade num lapso da vigência autoritária. A partir daí, a formação profissional


estrita será marcada pela interlocução com as ciências sociais 158 e também
distinguida por um corpo docente jovem, formado um pouco antes ou após o golpe
de abril de 1964 e cujos membros, parte deles, contribuíram para o erguimento de
uma massa crítica importante mais à frente (NETTO, 1994).

Como bem aponta Netto, a renovação do Serviço Social brasileiro significa


bem mais do que um simples desenvolvimento de tendências existentes dentro da
profissão antes da instauração do governo autoritário. Para o autor, mesmo sem
superação definitiva do passado, ela criou alicerces para um pluralismo profissional
inédito, uma aproximação do Serviço Social com o debate das ciências sociais, que
logo redundou num diálogo crítico, e também para a constituição de uma vanguarda
intelectual dedicada à pesquisa. Desta maneira, a renovação profissional que
transcorreu durante a vigência da ditadura, sob a tensão entre forças de
transformação e forças de permanência, consistiu num empenho global de
legitimação prática e de validação teórica do Serviço Social.

O autor esclarece que até a primeira metade dos anos 1960, o Serviço Social
tradicional ainda demonstrava sinais de persistência, atestados na relativa
uniformidade na intervenção centrada nas abordagens individual e grupal159, na

cultural e educacional da autocracia com o processo renovador que o Serviço Social experimenta no
Brasil nas duas décadas posteriores ao golpe de abril. Pelo que argumentamos aqui, (...), estas
relações são inegáveis: a perspectiva modernizadora, beneficiando-se da supressão política dos
suportes que sustentavam vetores eversivos da crítica (implícita) ao tradicionalismo, pôde
desenvolver-se com o subsequente aporte de uma universidade burocratizada e ideologicamente
neutralizada; a reatualização do conservadorismo seria bastante problematizada sem o contributo
que lhe forneceu a expansão dos veios irracionalistas, intimistas e psicologistas na cultura tolerada
pela autocracia. A Intenção de Ruptura seria impensável sem a tendencial hegemonia cultural das
correntes progressistas e de esquerda até 1968/1969, sem o desenvolvimento do “marxismo
acadêmico” e sem as marcas do novo irracionalismo que irrompe quando já ia avançada a crise da
ditadura. E o desenho global do processo renovador sequer seria visualizado se, ademais do
condicionalismo que já tangenciamos (cf. seção 2.1), o Serviço Social não experimentasse a sua
inserção acadêmica, com os eixos principais da renovação inscritos no movimento universitário como
um todo, principalmente quando as tensões imanentes à academia se direcionam,
contraditoriamente, para a oposição e mesmo a contestação à ditadura que a modelou”.
158 Netto (1994) informa que a sociologia, a psicologia social e a antropologia foram as disciplinas

mais influentes no Serviço Social da época, bem como assinala a tônica asséptica e tecnocrática
destas. Iamamoto (2008), por sua vez, acrescenta que neste intervalo histórico as ciências sociais
também se questionavam sobre seu compromisso com a realidade continental.
159
É essencial salientar, contudo, que o desgaste do Serviço Social tradicional tem início na segunda
metade dos anos 1950 quando da promoção da abordagem comunitária, conhecida como
Desenvolvimento de comunidade, no contexto histórico de ascensão da industrialização pesada e de
preocupação internacional com o tema do subdesenvolvimento. O Desenvolvimento de Comunidade
progressivamente foi considerado pelos assistentes sociais como o tipo de intervenção mais
109

formal participação político-partidária e ainda na elaboração teórica incipiente. Foi a


gestão econômica, política e social da nação, inaugurada pela ditadura, que agilizou
seu enfraquecimento, reforçando o seu anacronismo com as demandas
contemporâneas, a insuficiência de sua formação profissional e os limites da sua
subalternidade executiva de então. Todavia, antes disso, Netto identifica quatro
efeitos da conjuntura particular brasileira entre os anos 1960 e 1964 no meio
profissional: 1º) amadurecimento de setores da categoria profissional na interação
com outros profissionais, grupos da população organizada e instâncias como
núcleos administrativos e políticos do Estado; 2º) afastamento dos segmentos da
Igreja Católica em face do seu conservadorismo com surgimento de “católicos
progressistas” e de uma esquerda católica com ativa militância cívica e política; 3º)
fortalecimento do movimento estudantil; 4º) inspiração num referencial próprio de
parte das ciências sociais da época com tônica crítica e nacional-popular.

Assim sendo, a laicização profissional que se deu após duas décadas


intensas de (auto)reflexão – a partir da segunda metade dos anos 1960 até a
segunda metade dos anos 1980 – constitui um dos maiores marcos do processo de
renovação. Ela foi alimentada pela heterogeneização cada vez mais manifesta da
categoria e pela decorrente disputa interna à hegemonia nas várias instâncias da
profissão – projeto de formação, paradigmas de intervenção, órgãos de
representação etc. Neste sentido, a reflexão sobre o significado do Serviço Social na
realidade brasileira que se desenvolveu entre os anos 1960 e 1980 apresentou três
direções fundamentais reconhecidas por Netto (cujos conteúdos teóricos e políticos
distintos não raro se mesclaram): Perspectiva Modernizadora, Reatualização do
Conservadorismo e Intenção de Ruptura.

A Perspectiva Modernizadora, caracterizada pelo empenho para adequar a


profissão às requisições da ordem social pós-1964, foi a primeira que se destacou
no processo de renovação através das iniciativas do Centro Brasileiro de
Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais (CBCISS) e também a que mais
marcou o conjunto da categoria. Fundamentada no estrutural funcionalismo norte-
americano, consistiu na vertente que defendeu a função dinamizadora do Serviço

coadunado com as necessidades e características de uma sociedade como a brasileira (NETTO,


1994).
110

Social no desenvolvimento e enfatizou a importância do aprimoramento técnico para


responder às demandas das reformas operadas nas políticas sociais pelo Estado
autoritário. Os textos dos seminários de Araxá e Teresópolis, que obtiveram
repercussão latino-americana e influenciaram a “grande união” profissional inicial
entre os assistentes sociais destes países160, traduzem as propostas desta
perspectiva. Com o esgarçamento da ditadura a partir de meados dos anos 1970, a
sua hegemonia na categoria profissional é posta em cheque. Netto (1994,
p.156/157) aprofunda sobre este momento de declínio da Perspectiva
Modernizadora que definiu a construção das duas outras vertentes presentes no
debate profissional, Reatualização do Conservadorismo e Intenção de Ruptura:

De uma parte, seu conteúdo reformista [grifo do autor] (recorde-se que ela
incorpora o vetor do reformismo próprio ao conservantismo burguês) não
atende às expectativas do segmento profissional que, agarrado às mais
vetustas tradições do Serviço Social, resiste ao movimento de laicização
ocorrente e se recusa a romper com o estatuto e a funcionalidade
subalternos, historicamente assumidos pela profissão. Este segmento, de
extração e vinculação católica, privilegia os componentes mais
conservadores da tradição profissional e mostra-se refratário às inovações
introduzidas pela perspectiva modernizadora, com seu empenho de
legitimar-se assimilando decididamente os parâmetros e referências
teórico-ideológicas do pensamento estrutural- funcionalista. De outra, seu
traço conservador [grifo do autor] e sua colagem à ditadura [grifo do autor]
incompatibilizam-na com os segmentos profissionais críticos quer em face
da autocracia burguesa (vale dizer, que passam a comprometer-se, ou já
vinham comprometidos, com a resistência democrática), quer em face dos
seus substratos teóricos – segmentos cuja incidência acadêmica e na
categoria profissional ganha tanto mais densidade quanto mais a autocracia
burguesa experimenta o seu ocaso. A expressão ideal das concepções
teóricas e profissionais destes segmentos diferenciados, objetivando-se
especialmente (mas não exclusivamente) no segundo lustro dos anos
setenta, plasma as duas outras direções que compõem o processo de
renovação do Serviço Social no Brasil.

O grupo profissional que abraçou a direção da Reatualização do


Conservadorismo no processo de renovação resgatou em suas defesas a herança
conservadora do Serviço Social, com rejeição ao arcabouço teórico positivista e às

160
Os primeiros momentos do Movimento de Reconceituação latino-americano foram marcados por
uma “grande união” entre os profissionais, que acordavam no intuito de adequar a profissão às
mudanças sociais no continente. Logo em seguida, conforme Netto (1994), esta união se desfez por
duas razões: primeiramente, a “modernização” burguesa transcorreu por meio de ditaduras no
continente, aniquilando as alternativas democráticas, tanto reformistas quanto revolucionárias, e, em
segundo lugar, a própria composição heterogênea da união citada, que desde o início contou com
assistentes sociais conservadores e progressistas, fez acirrar as disputas internas.
111

contribuições da tradição marxista. Inspirada na fenomenologia, cujo método


compreensivo não contempla estudo crítico da realidade macroscópica, esta
perspectiva enalteceu a atenção à subjetividade e, assim, fortificou a concepção
tradicional de ajuda psicossocial, que fundamentava a cultura profissional até então.
Numa dedicação intelectual mais requintada de reatualização do passado e com
repercussão em universidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, tal vertente
reiterou a retórica abstrata da “humanização” (cristã tradicional ou de base
existencialista) e ainda se beneficiou do descrédito que as produções positivistas e
marxistas sofriam dentro da categoria na ocasião. Netto ressalta, todavia, que seus
influxos não alcançaram o êxito da Perspectiva Modernizadora no meio profissional,
tampouco a ressonância da Intenção de Ruptura em seguida.

Finalmente, a perspectiva da Intenção de Ruptura com o Serviço Social


tradicional e seus fundamentos conservadores contou com o protagonismo de
docentes e profissionais graduados entre às vésperas do golpe e a emissão do
decreto do Ato Institucional n⁰5 em dezembro de 1968. Alicerçada na tradição
marxista161, esta vertente atravessou dificuldades de consolidação devido à ofensiva
da ditadura, o que não impediu a influência nos seus rumos do pensamento latino-
americano, reconceituado entre final dos anos 1970 e começo dos anos 1980,
tampouco a sua conquista das vanguardas profissionais mais adiante, quando do
exaurimento da fase autocrática burguesa162.

161
É necessário considerar aqui as ressalvas de Netto (1994) quanto à frágil herança socialista no
Brasil até meados dos anos 1950, relacionada com a trajetória reprimida do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), sem mencionar os efeitos devastadores da Era Stalin. É somente a partir dos anos
1960 que pesquisadores sem vínculo partidário desenvolvem estudos marxistas, processo este
interrompido pelo golpe militar de 1964. Com a intervenção autoritária, não só a possibilidade de um
partido socialista revolucionário se tornou impraticável, como surgiu uma série de agrupamentos
políticos – dissidentes ou não do PCB – que reivindicavam a revolução, contudo, com nítidos limites:
“Dadas as circunstâncias em que surgiam esses grupamentos (gerais: o clima repressivo;
específicas: a sua intencionalidade política), compreende-se por que em quase nada contribuíram
para acrescer o acervo que vinha se gestando no pré-64. A frequente utilização de versões políticas
particulares da tradição marxista (v.g., o maoísmo) para legitimar uma prática determinada
(nomeadamente o confronto armado com a autocracia) fez do referencial teórico derivado de Marx
um repositório de citações e fórmulas rituais” (idem, p.110).
162 Para além da influência marxista ainda vulgar sobre este grupo profissional, Netto (1994) chama
a atenção para a presença do novo irracionalismo nas suas concepções políticas, em sintonia com o
tempo histórico de então. O autor assinala que o novo irracionalismo é um pensamento vinculado a
posicionamentos revolucionários de esquerda que resgata valores como o antielitismo, o
antiautoritarismo e o anticolonialismo cultural, entretanto, com um entendimento restrito da razão
como instrumento de dominação burguesa.
112

O Método Belo Horizonte, resultado das experiências e reflexões de grupo


docente da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais
entre 1972 e 1975, consistiu no produto intelectual pioneiro da perspectiva. Na
sequência, é notável sua projeção como modelo de análise teórica verificada nas
dissertações de mestrado na segunda metade dos anos 1970. É fato que, na
primeira metade dos anos 1980, as contribuições da perspectiva da Intenção de
Ruptura foram proeminentes no debate profissional e sedimentaram a retórica
politizada das vanguardas, a ponto de se verificar neste período um crescimento
expressivo de filiações partidárias entre seus membros163. Os fatores que
propiciaram a sua evidência no processo de renovação e que causaram a
impressão de que usufruía hegemonia no meio profissional são assim tratados por
Netto (1994, p.160):

(...) esta vertente tem muito de sua audiência contabilizada ao descrédito


político da perspectiva modernizadora e à generalizada crítica às ciências
sociais acadêmicas; no entanto, parecem-nos fundamentais, para explicar a
sua repercussão, as condições de trabalho da massa da categoria
profissional – com sua aproximação geral às camadas trabalhadoras –, o
novo público em que se recrutam os quadros técnicos (cf. nota 29), o clima
efervescente do circuito universitário quando da crise da ditadura
(envolvendo todos os intervenientes da arena acadêmica) e,
principalmente, o quadro sociopolítico e ideológico dos primeiros anos da
década, que conduziu à participação cívica amplos contingentes das novas
camadas médias urbanas, com destaque para seus setores técnicos.

Na sequência, aprofundaremos quanto às interpretações sócio-profissionais –


teóricas, ideológicas e práticas – das três direções da renovação do Serviço Social

163 Tanto Netto (1994) quanto Iamamoto (2008) concordam que a primeira aproximação do Serviço
Social com a tradição marxista – ou ao marxismo sem Marx de acordo com a segunda – aconteceu
por intermédio da militância política, sobretudo, partidária – há que se destacar aqui a adesão de
parte da vanguarda ao Partido dos Trabalhadores criado no ano de 1980 (NETTO, 2009) – através
de grupos de esquerda vinculados à Igreja Católica e distantes dos influxos do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Por isso, segundo Netto (1994), na fase de surgimento da perspectiva da Intenção
de Ruptura, seus expoentes absorveram o empirismo da tradição marxista tendo em vista o recurso
aos fragmentos maoístas de cunho epistemologista, ao pensamento de Althusser, além de materiais
do “marxismo soviético”. Iamamoto (2008) acrescenta que neste período esteve em voga o
compromisso político dos assistentes sociais a partir de uma determinada visão de classe, o que
levou a uma confusão entre militância política e exercício profissional e a uma supervalorização da
conduta político-moral em detrimento do mergulho teórico necessário para apreensão do real e de
suas alternativas de atuação. O ecletismo foi, obviamente, uma resultante deste processo, já que a
profissão não deixou de reproduzir seus laços antigos com o humanismo cristão e com o positivismo.
113

brasileiro, destacando os vestígios sincréticos em suas elaborações que interessam


a esta pesquisa. Como anunciamos na abertura do capítulo, trataremos em nossa
análise sobre o transformismo da Perspectiva Modernizadora; o ecletismo que a
Reatualização do Conservadorismo efetua entre neotomismo, personalismo e
fenomenologia; e, logo depois, nos debruçaremos sobre a presença do sincretismo
no Método BH, primeira produção da perspectiva da Intenção de Ruptura que, após
um percurso de continuidade e mudança, foi responsável pela construção do projeto
ético-político profissional.

3.2. A presença do sincretismo nas distintas perspectivas da Renovação no Brasil

Através de seus vários caminhos de interpretação sobre a sociedade e a


profissão, que se mesclaram com frequência sem fidelidade teórico-metodológica, a
renovação evidenciou distintas respostas para a crise do tradicionalismo
profissional, deixando um legado crucial para as futuras gerações de assistentes
sociais. Atrelada à modernização conservadora promovida pela ditadura num
período de avanço do grande capital monopolista, ela reforçou dilemas profissionais
recorrentes, a exemplo do sincretismo. Netto elucida, em importante conclusão na
sua obra Ditadura e Serviço Social:

Em todas as direções e perspectivas do processo de renovação profissional


levado a cabo no Brasil, constatamos as marcas do sincretismo (com seu
inevitável acólito, o ecletismo) que persegue historicamente as
(auto)representações do Serviço Social, sempre repostas quando a
profissão pretende fundar-se como campo específico do saber ou lastrear a
sua legitimidade numa base “científica”. Mesmo a análise da perspectiva da
intenção de ruptura mostra a enorme dificuldade para superar esta
problemática – o que só parece possível quando a especificidade
profissional é transladada para a sua inserção na reprodução das relações
sociais, compreendendo-se a profissão como tecnologia social (como o faz
Iamamoto) (NETTO, 1994, p.307).

A citação acima traz afirmações centrais que interessam aos intuitos deste
trabalho. O conteúdo delas já começou a ser problematizado desde o capítulo 1 e
continuará a ser objeto de aprofundamento teórico mais adiante. Em primeiro lugar,
o autor expressa que o sincretismo teórico acompanhou o Serviço Social ao longo
114

do processo de renovação. Em segundo lugar, Netto informa que a obra de


Iamamoto, no segundo momento de maturidade da Intenção de Ruptura, apresenta
elementos para superação deste mesmo sincretismo. Finalmente, Netto previne
quanto à importância de situar a profissão no movimento da sociedade burguesa
para ultrapassagem do fenômeno sincrético nos campos ideológico e teórico.

Como foi indicado no começo deste capítulo, a avaliação do sentido do


Serviço Social na história brasileira durante o processo de renovação alavancou a
cultura profissional de maneira ímpar, já que a busca por uma nova legitimidade da
ação, em consonância com um esforço de teorização, foi acompanhada de novas
inserções institucionais e demandas durante a ditadura, que alteraram o exercício e
a formação profissionais, a organização política da categoria, além dos
pressupostos ideo-teóricos e das auto representações como assistentes sociais. À
luz de Netto (1994), ressaltou-se também nas primeiras linhas a dificuldade de
constatar interpretações “puras” ou “integrais” entre as três direções dinamizadas no
processo de renovação.

Para além do Documento de Araxá e do Documento de Teresópolis164, as


defesas da Perspectiva Modernizadora, que concebem o Serviço Social brasileiro
como uma profissão de apoio a políticas de desenvolvimento, podem ser
encontradas em várias produções da categoria entre a segunda metade dos anos
1960 e o final dos anos 1970165. Em tais elaborações, o desenvolvimento, pensado
no contraponto com o subdesenvolvimento e na quase identificação com a
modernização que nos levaria à superação das zonas econômico-sociais arcaicas, é
tomado:

como um processo induzido de mudanças [grifo do autor] para erradicar,


mediante um gradativo aumento dos níveis de bem estar social [grifo do
autor], o quadro de causalidades potencialmente conversíveis em vetores
de alimentação de um caudal revolucionário (NETTO, 1994, p.166).

164
Ambos os documentos decorrem de dois eventos organizados pelo CBCISS, intitulados “Seminário
de Teorização do Serviço Social”. O primeiro aconteceu em Araxá/Minas Gerais entre 19 e 26 de
março de 1967 e o segundo transcorreu em Teresópolis/Rio de Janeiro entre 10 e 17 de janeiro de
1970 (NETTO, 1994).
165
Lucena Dantas foi o intelectual de referência no desenvolvimento desta vertente da renovação
brasileira, de acordo com Netto (1994).
115

Uma vez que esta interpretação do desenvolvimento, depois vinculada com a


concepção oficial de segurança, foi cara aos governos autoritários que se
sequenciaram, contemporâneos às reflexões desta perspectiva, Netto explica o
favorecimento de uma “colagem” dos assistentes sociais a esta visão, também
alimentada pelas influências ideológicas internacionais advindas das ciências
sociais, dos projetos “de ajuda” e de “assistência técnica” dos países centrais e do
Concílio do Vaticano II, chamado pelo Papa João XXIII em 1962 e que propunha
atualização dos princípios católicos ao tempo de então166.

Ao longo do exame minucioso realizado por Netto sobre as produções desta


vertente, o ecletismo, indicador do sincretismo em estudo, se explicita em diversos
momentos. No Documento de Araxá, a atuação do Serviço Social é entendida como
voltada para sujeitos com “desajustamentos familiares e sociais” resultantes de
“estruturas sociais inadequadas”, bem como colaboradora do desenvolvimento para
a “realização integral do homem”. Neste documento, o autor identifica a subsunção
do tradicional ao moderno, ou melhor, o resgate do tradicional em novos formatos167,
apesar do discurso pelo rompimento com o passado – já que as práticas
profissionais consagradas168 e o humanismo abstrato são reiterados. De acordo
com Netto (1994), as linhas do documento demonstram deslocamento da ética
neotomista – a julgar pelos postulados para a ação profissional que registram
“dignidade da pessoa humana”, “sociabilidade essencial da pessoa humana” e
“perfectibilidade humana” – para a teoria do estrutural funcionalismo – aqui são os
princípios operacionais arrolados que atestam tal inspiração através da defesa de
uma “atuação dentro de um perspectiva de globalidade na realidade social”, esta
aparecendo como a peculiaridade do Serviço Social em relação às demais
profissões169.

166
Daí a utilização do termo aggiornamento, que na língua italiana significa atualização.
167
Netto (1994) denomina transformismo tal ausência de ruptura efetiva com o tradicionalismo
profissional ou, em outras palavras, o restabelecimento deste tradicionalismo em nova roupagem.
168
No texto em questão, defende-se a superação do uso exclusivo do Serviço Social de Caso, Grupo
e Comunidade, mas também a sua reciclagem com incorporação de novos métodos que
incorporassem a conscientização dos problemas sociais para a “integração popular no
desenvolvimento do país” (NETTO, 1994).
169
O autor tece uma importante observação a este respeito: “O deslocamento é significativo porque,
no texto, ele interdita o questionamento da especificidade profissional. Permanece na mais nebulosa
semi-obscuridade este estranho privilégio da ´globalidade´, não se sabe por obra de que ou quem
conferido ao Serviço Social entre tantas profissões” (NETTO, 1994, p.170).
116

Fica evidenciado no Documento de Araxá o argumento de que os assistentes


sociais devem avançar para além da execução das políticas sociais, em nome da
inserção de suas funções na política e no planejamento para o desenvolvimento.
Neste sentido, a categoria profissional deveria se habilitar à formulação e gestão
das mesmas, numa clara manifestação de que o grupo alinhado com esta vertente
reconhecia o perfil técnico almejado pela ditadura em progresso 170. Netto também
identifica uma desqualificação do político no referido texto posto, em que,
coadunando com a análise estrutural funcionalista, o desenvolvimento é visto como
“(...) um processo de planejamento integrado de mudança nos aspectos
econômicos, tecnológicos, socioculturais e político-administrativos” (NETTO, 1994
apud CBCISS, 1986, p.41). Para o autor, tal concepção carrega uma visão
tecnocrática do poder sem exposição da realidade brasileira171, em que a economia
e a tecnologia são consideradas em primeiro lugar e as questões sociais e políticas
são atreladas à indução cultural e à administração.

Quanto ao tema do seminário – teorização do Serviço Social –, Netto


assegura que o Documento de Araxá encerra a teoria na operacionalidade técnica,
mas ainda assim se detecta uma dominância teórica do estrutural funcionalismo:

Mas só se trata mesmo de uma dominância [grifo do autor] teórica. Uma


vez que não se rompe profunda e consequentemente com o
tradicionalismo, seus traços rebatem e repicam na justificação da ação
interventiva, na delimitação dos meios e objetos de intervenção e na própria
representação da funcionalidade da profissão (NETTO, 1994, p.177).

170
Todavia, Netto (1994) ressalta que o texto não incluía qualquer debate ou questionamento quanto
ao conteúdo das políticas sociais e isto, para ele, também sinaliza a sintonia com a ordem instalada.
171
Sobre esta ausência, o autor afirma o seguinte: “Podem ser avançadas várias hipóteses para
explicar este fato surpreendente e tanto mais quanto, no interior do próprio Serviço Social
imediatamente antes e depois do golpe de abril (portanto no momento mesmo em que os assistentes
sociais reúnem-se em Araxá), a ‘realidade brasileira’ se colocava como pedra de toque em qualquer
discussão. Recorde-se, ainda, que no mesmo período a produção de conhecimentos sobre o país
registra um verdadeiro pico na sua divulgação (cf. capítulo 1, seção 1.6). A nós nos parece que o
mais plausível é debitar esta inusitada lacuna a razões políticas [grifo do autor]: o silencio diplomático
– forma objetiva de coonestação do status quo – aparece como uma estratégia adequada ao corpo
técnico que pretende ‘um amplo processo de conscientização dos centros de poder de decisão da
sociedade” (CBCISS, 1986:42; cf. as notas 89 e 116) (NETTO, 1994, p.175-176).
117

Segundo Netto, é o Documento de Teresópolis172 que exprime ao máximo o


empenho em adaptar a intervenção profissional às exigências das instituições e
organizações comandadas pela ditadura, enfeixando-a num ajuste técnico-
burocrático igualmente relacionado com a mistura de componentes teórico-
metodológicos e ideoculturais distintos. O autor indica que neste texto o
transformismo se consagra, com o “moderno” vencendo o “tradicional” e
instrumentalizando os intentos desenvolvimentistas do Documento de Araxá.

O texto A teoria metodológica do Serviço Social. Uma abordagem


sistemática, de José Lucena Dantas, um dos que foi disponibilizado para debate no
evento de janeiro de 1970, apresentou um conteúdo de relevo bastante sincronizado
com a Perspectiva Modernizadora. Chegou-se ao ponto de Netto reconhecê-lo como
um “perfeito produto da modernização do Serviço Social”. Ao analisar a produção do
referido expoente, Netto conclui que Dantas respondeu duas indagações de fundo,
que inquietavam os assistentes sociais ao longo da renovação: a reivindicação pela
cientificidade do Serviço Social173 e a demanda por inovações metodológicas no
exercício profissional174. Este feito, no entanto, se deu com inspiração
neopositivista, na medida em que Dantas problematiza a metodologia no sentido
estrito de contribuir para a operacionalização técnico-profissional. Daí se deduz a
sua compreensão asséptica da cientificidade que postulava para o Serviço Social.
Para além disto, comparece nas linhas do referido expoente uma mescla de
categorias do funcionalismo e do raciovitalismo, num nítido ecletismo.

172
Este resulta da composição de relatórios de dois grupos de estudo dos quais integraram os
participantes do evento. Ambos os grupos se debruçaram sobre os assuntos “Concepção científica da
prática do Serviço Social” e “Aplicação da metodologia do Serviço Social”. Netto (1994) acrescenta
que os participantes tiveram acesso a uma documentação prévia sobre metodologia do Serviço
Social, matéria do encontro, para embasamento das discussões. Suely Gomes da Costa, José
Lucena Dantas e Tecla Machado Soeiro estavam dentre os autores.
173
Conforme raciocínio de Netto (1994), através da correspondência direta que Dantas efetua entre
“método profissional” e “método cientifico”, o Serviço Social torna-se uma disciplina de “aplicação das
ciências” e desta forma, “(...) Dantas solucionava (ou melhor: parecia fazê-lo) de um só golpe tanto a
fundamentação epistemológica da profissão quanto a sua conexão com as ciências sociais” (idem,
p.184).
174
Neste âmbito, há uma defesa do resgate do Serviço Social de Caso, Grupo e Comunidade com
novas orientações. Dantas sustentava que as “situações sociais-problema”, objeto da atuação
profissional, deveriam ser enfrentadas com atividades de várias “áreas de prática” – “prática clínica”,
“administração dos serviços sociais” e “planejamento dos serviços sociais” – no enquadramento
fornecido pela relação profissional no campo do “sistema-cliente”, categoria trazida de Lippitt, um
representante estrutural-funcionalista (NETTO, 1994).
118

No que tange particularmente ao conteúdo do Documento de Teresópolis,


que estabelece o assistente social como “funcionário do desenvolvimento”, voltado
para uma eficácia manipuladora através da utilização de técnicas de intervenção
mais operativas, Netto (1994, p.192) pontua que:

As formulações constitutivas do Documento de Teresópolis [grifo do autor],


apreciadas globalmente, possuem um tríplice significado no processo de
renovação do Serviço Social no Brasil: apontam para a requalificação do
assistente social, definem nitidamente o perfil sociotécnico da profissão e a
inscrevem conclusivamente no circuito da ‘modernização conservadora’ –
e, com toda essa carga, repõem em nível mais complexo os vetores que
deram a tônica na elaboração de Araxá.

Os colóquios seguintes organizados pelo CBCISS no Rio de Janeiro – no


Centro de Estudos do Sumaré175 e no Alto da Boa Vista176, nos anos de 1978 e de
1984 – expressam o enfraquecimento do prestígio da Perspectiva Modernizadora
nas polêmicas profissionais. Sem alcance da projeção dos seminários anteriores,
chama a atenção de Netto o anacronismo das propostas em relação ao contexto
nacional de transição democrática, que politizava as novas vanguardas profissionais
e influenciava outras preocupações teóricas mais densas e críticas, inclusive já bem
irrigadas pela reconceituação latinoamericana.

O evento de Sumaré se pautou em dois documentos elaborados por grupos


de assistentes sociais do Rio de Janeiro e de São Paulo, para debruço quanto à
relação da profissão com a ciência – A cientificidade do Serviço Social e Reflexões
sobre o processo histórico-científico de construção do objeto do Serviço Social,
respectivamente. Neles se encontra inspiração implícita das ideias funcionalistas de
Goldstein (no primeiro) e referência eclética e vulgar ao pensamento dialético (no
segundo), com a historicidade vista sob a ótica de Dilthey e as leis da dialética
expressadas hermeticamente conforme a visão de Garaudy – apesar das menções
à Hegel e Marx. O seminário do Alto da Boa Vista, igualmente marcado pelo
simplismo nas conferências, ratificou o problema do anacronismo citado:

175
Aqui a relação do Serviço Social com a cientificidade, a fenomenologia e a dialética eram os
assuntos-alvo. Netto critica o reducionismo das conferências da professora Creusa Capalbo sobre
fenomenologia e o método dialético (NETTO, 2004).
176
De acordo com Netto (2004, p.195): “(...) nos dois seminários, notadamente no do Alto da Boa
Vista, é perceptível um movimento de abertura a referências distintas do caldo conservador”.
119

Ficam claras a defasagem e a pobreza teórica a que aludimos –


excetuados talvez os aportes de Donzelli, Velez Rodríguez e Ziviani
(CBCIS, 1988: 44-49, 53-58 e 59-69), as outras contribuições são
constrangedoras; estão absolutamente aquém [grifo do autor] do nível
alcançado pela bibliografia de uso generalizado nos cursos de pós-
graduação e, sobretudo, aquém da própria problematização operada no
bojo do Serviço Social e das suas instâncias profissionais [grifo do autor]
(NETTO, 1994, p.200) .

A vertente da Reatualização do Conservadorismo aparece nas contribuições


de Anna Augusta de Almeida, ainda nos eventos de Sumaré e do Alto da Boa Vista,
num franco período de laicização profissional e de influências anticapitalistas e
marxistas no movimento católico. Primando pela produção do conhecimento, os
profissionais alinhados com esta perspectiva renovadora declaram rejeição à
tradição intelectual positivista, em particular à “interpretação causalista (e fatorial) da
socialidade e a assepsia ideológica do conhecimento” (NETTO, 1994, p.205). Por
outro lado, se distinguem dos assistentes sociais que reivindicavam inspiração
crítico-dialética, uma vez que, para além das diferenças teóricas, metodológicas e
ideológicas em geral, eles não reconheciam a luta de classes – portanto nem a
categoria de classe social – como propulsora do movimento da sociedade.

A partir de uma leitura que circunscreve a intervenção profissional à ajuda


psicossocial177, esta perspectiva ao mesmo tempo que defende valores cristãos e
apresenta objetivos peculiares de “transformação social”, já que se concebe esta
como mera mudança no desenvolvimento individual. Ademais, há uma reclamação
de influência metodológica da fenomenologia quando esta teoria era bastante
desconhecida no Brasil. Netto aponta, contudo, que as elaborações dos
representantes da Reatualização do Conservadorismo não abarcam
esclarecimentos quanto a este referencial teórico, tampouco dialogam com as obras
de seus clássicos, como Husserl, Heidegger, Scheler, Hartmann ou Schutz. Ao
contrário, o autor ressalta que eles repõem uma “histórica tara do Serviço Social”:

177
Para Almeida (1978), a intervenção profissional, caracterizada como social, deve transcorrer por
meio de um diálogo fundamental entre assistente social e cliente(s) que conduza a transformações
inerentes às experiências dos sujeitos, grupos e comunidades (NETTO, 1994).
120

Efetivamente, na modalidade em que se realiza a invocação à


fenomenologia, não há aqui nenhum corte com a tradição da nossa
profissão: o recurso a matrizes teórico-metodológicas as apanha de
segunda ou terceira mãos, dilui as suas especificidades e as combina,
seletivamente, a componentes heteróclitos. O procedimento em face da
fenomenologia – e que não diz respeito apenas a esta matriz ou à
perspectiva que estamos considerando – é o procedimento canônico na
tradição histórica do Serviço Social: dado um quadro de referência
determinado (que aqui se toma sem qualquer contextualização
sóciohistórica e ideocultural e em relação ao qual é admitida explicitamente
a carência de um conhecimento aprofundado – cf. nota 209), dele se
extraem as categorias que interessam a uma operação particular; não
entram em linha de conta as mediações, extremamente complexas, entre a
articulação sistemática das categorias na elaboração de uma compreensão
filosófica da realidade (ou de aspectos seus) construída pelo sujeito sócio-
humano e a sua instrumentação parametrada por exigências sociotécnicas
e institucionais bem limitadas (NETTO, 1994, p.215/216).

Tal afirmação é de suma importância para este trabalho, pois não apenas
retrata exatamente o sincretismo teórico, expõe também como ele é utilizado
frequentemente dentre as produções profissionais, independentemente de direção
político-ideológica: através de um ecletismo que se satisfaz com “primeiras
impressões”, além do uso aleatório e empobrecedor de componentes de uma dada
teoria. Sendo assim, a bibliografia dos representantes da Reatualização do
Conservadorismo é exemplar no que tange ao tema da presente tese.

Sobre o sincretismo científico que comparece de forma límpida nessa


perspectiva, Netto tece três considerações que permitem atestar o quanto a
fenomenologia é aí apreendida de uma forma extremamente empobrecida. Em
primeiro lugar, os expoentes da Reatualização do Conservadorismo não recorrem às
fontes originais178 da escola do diverso e complexo pensamento fenomenológico,
preponderando o uso de fontes secundárias. Em segundo lugar, chama a sua
atenção a forma acrítica em que o método fenomenológico comparece na
bibliografia afinada com a Reatualização do Conservadorismo, posto que não há
nela qualquer remissão às polêmicas internas que constituem esse pensamento
nem à sua interlocução com outros referenciais teórico-metodológicos. Em terceiro e
último lugar, destaca-se a gravidade da simplificação teórica das categorias, que é
operada pelos autores vinculados a essa direção da renovação profissional. Nas

178
Netto (1994, p.212) sinaliza que apenas Anésia de Souza Carvalho em Metodologia da entrevista:
uma abordagem fenomenológica apreende de Merleau-Ponty “(...) o que lhe parece pertinente para
os seus objetivos, num procedimento seletivo conforme às tradições históricas do Serviço Social.
121

palavras de Netto (1994, p.214): “O que nas fontes originais é complexo, multívoco,
às vezes ambíguo, evanescente, obscuro, matizado, aparece nos textos de Serviço
Social com uma clareza suspeita”.

Embora o autor analise a obra O princípio de autodeterminação no Serviço


Social: uma visão fenomenológica de Ana Maria Braz Pavão, além daquela de
Carvalho já mencionada, é a tese de livre-docência intitulada Possibilidades e limites
da teoria do Serviço Social de Anna Augusta de Almeida que o autor avalia como a
contribuição mais fértil da vertente da Reatualização do Conservadorismo. Segundo
Netto, a originalidade desta repousa, a partir de uma visão conservadora coerente
às tradições profissionais de origem católica, no combate simultâneo às defesas da
modernização179 e às influências marxistas180 que recaíam no debate da categoria,
recorrendo a fundamentos teóricos e metodológicos inéditos no percurso do Serviço
Social brasileiro. Daí a reivindicação da fenomenologia que concretamente se
mostrou reduzida a uma repetição de jargões:

No caso de Almeida, este apelo tem uma característica particular: ele se


vincula a uma decidida escolha – que a autora não teme que se considere
exagerada (Almeida, 1978:11) – pelo personalismo cristão (mais
exatamente: católico); estritamente falando, a remissão de Almeida à
fenomenologia é filtrada pelo seu entusiástico resgate do legado de
Mounier. De fato, o que peculiariza a posição renovadora de Almeida no
marco da perspectiva em que se inscreve a sua proposta teórico-
profissional é justamente a sua dupla e simultânea invocação da
fenomenologia e do personalismo católico (NETTO, 1994, p.233).

179
O enfrentamento destas à luz da fenomenologia é problemático, como situa Netto (1994,
p.234/235): “Trata-se, porém, de um questionamento discreto e elíptico, centrado especialmente
numa preocupação com o ‘sujeito’ (pessoa) [grifo do autor], que não deve perder o seu privilégio na
rede de relações institucionais em que se insere a implementação prática do exercício profissional; e
é mesmo um questionamento parcial, pois, como se verá adiante, Almeida recupera – numa ótica
personalizante – o fundo desenvolvimentista que é o lastro da perspectiva modernizadora”.
180
O personalismo católico é alçado para confrontar as visões deturpadas do marxismo vulgar, para
que a vertente da Reatualização do Conservadorismo emerja como a defensora do trato mais
adequado dos problemas afetos aos indivíduos. Netto (1994, p.235) acrescenta que o personalismo
“(...) também é utilizado enquanto forma de travar a erosão do ranço integrista católico,
vulnerabilizado de dentro [grifo do autor] do bloco católico pelas correntes mais avançadas,
aparentadas com a Teologia da Libertação. Neste sentido, a revivescência das ideias de Mounier,
mais de um quarto de século depois da sua morte, igualmente não é uma causalidade: contra as
novas vertentes católicas que pretendem incorporar categorias analíticas extraídas do arsenal crítico-
dialético (sem, com isso, perder as suas características cristãs e católicas) para compreender e
transformar o mundo terrenal, já não é mais de recorrer abertamente apenas às fontes desgastadas
do mais puro neotomismo”.
122

A interpretação psicologizante da vida social é uma resultante natural desta


vertente que, através de uma evidente recuperação do tradicionalismo, valoriza a
atuação microscópica e subalterna dos assistentes sociais, num reforço da
tradicional identidade profissional ameaçada. Mais do que isso, encontra-se nesta
direção renovadora a presença do anticapitalismo romântico, traço característico da
cultura nacional enfronhada com o poder da Igreja Católica:

No Brasil, a transição ao capitalismo pela via prussiana deixou como


consequência a sobrevivência de elementos tradicionais, amalgamados
com os elementos propriamente modernos da ordem burguesa. Isto explica
o papel da Igreja Católica, em toda a história desta formação social. Assim,
por exemplo, esteve presente no golpe de estado de Getúlio Vargas, em
1937, quando se inicia o “Estado Novo”, formando parte de sua base social,
junto com o movimento “integralista” de inspiração fascista (com o qual
rompe mais tarde). Este movimento católico se fez presente também na
gênese do Serviço Social, como uma força político-cultural reacionária e/ou
conservadora. O que caracteriza esta força político-cultural é que ela
emerge de uma determinada matriz cultural, conhecida como “romantismo”
ou “anticapitalismo romântico”. A partir desta raiz romântica comum,
emergem diversas tendências: “passadista”, “conservadora”,
“resignada” e “revolucionária” ou “messiânica-utopista”. Todas têm
em comum a rejeição à situação vigente, própria do capitalista, em nome
de um passado valorizado que, por sua vez, alimenta um projeto
messiânico-utópico. Esta mesma raiz cultural subsiste, no Brasil, no
“utopismo revolucionário”, que nutre uma das vertentes mais importantes,
atuante no processo de reconstrução (e renovação) do movimento sindical,
a partir das comunidades eclesiais de base, e que logo depois dá lugar ao
surgimento do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980 e à criação da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983. A reconstrução do
movimento sindical sobre estas novas bases se faz acompanhar, também,
ao mesmo tempo, do enfraquecimento da influência do Partido Comunista
(ou seja, do socialismo revolucionário, de base marxista) até chegar a sua
autodissolução, em 1992. O processo de renovação profissional do Serviço
Social, nos anos 1960 e 1980, também, se nutre dessa matriz cultural, na
sua vertente “revolucionária” ou “messiânica-utópica”. Assim, a “ruptura” do
Serviço Social, com o conservadorismo, aconteceu sobre a base da mesma
matriz cultural: o anti-capitalismo romântico (ACOSTA, 2005, p.326).

Conforme Acosta, o romantismo anti-capitalista, procedente das trilhas do


movimento católico, constitui a “chave” na explicação da renovação do Serviço
Social brasileiro porque o rompimento com o conservadorismo profissional se deu
dentro desta raíz ideocultural. Isto é, para o autor, o Serviço Social brasileiro
transitou do anti-capitalismo romântico conservador e reacionário durante os anos
123

1930 para o anti-capitalismo romântico revolucionário dos anos 1960 em diante 181.
Neste sentido, se a Reatualização do Conservadorismo se espelhou no romantismo
anti-capitalista conservador, a direção renovadora da Intenção de Ruptura revela
inspiração no caldo ideológico do romantismo anti-capitalista revolucionário.

Cumpre recordar que, em fins dos anos 1970, a força do movimento operário
brasileiro, conhecido como novo sindicalismo, foi responsável pela construção de
uma contra-hegemonia que resistiu ao Estado autocrático burguês. Tal
protagonismo alimentou o percurso da Intenção de Ruptura, calcado no estudo
progressivo de fontes marxistas pelos assistentes sociais militantes em movimentos
sociais e partícipes dos programas de pós-graduação da época (ACOSTA, 2005).
Como já está explícito, o sincretismo igualmente demonstrou terreno nesta vertente,
que ergueu o projeto ético-político profissional. Considerando, todavia, que o
objetivo deste trabalho é analisar a persistência do sincretismo na produção teórica
da Intenção de Ruptura e que o responderemos com propriedade no próximo
capítulo, encerramos o capítulo 3 a seguir nos dedicando aos primeiros momentos
da referida direção renovadora inaugurados pelo Método Belo Horizonte.

3.3. Método BH: denúncia do conservadorismo e persistência do sincretismo

Como já foi salientado, o Método Belo Horizonte elaborado entre os anos


1972 e 1975 por docentes da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de
Minas Gerais marcou a emergência da perspectiva da Intenção de Ruptura. Santos
(1985) esclarece que ele foi concebido como ferramenta metodológica para
aproximar professores e estudantes à realidade da população mais explorada da
região (trabalhadores, mineiros e lavradores). Foi concebido também para qualificar
a formação profissional na fase reconceituada, tanto de rejeição das técnicas
americanas de caso, grupo e comunidade, quanto de preocupação em afinar o
exercício profissional às genuínas demandas da sociedade brasileira de então.

181
Apenas com este importante raciocínio, Acosta (2005) confirma de forma subjacente o vigor do
sincretismo na profissão, já que existem outras fontes teóricas e culturais, para além do humanismo
cristão, que inspiraram a ação e o discurso profissionais ao longo de sua trajetória no país, que nesta
tese expomos à luz de Netto (1994) e Iamamoto (2008).
124

O documento intitulado A relação “teoria-prática” no trabalho social: Método


B.H., que divulgou a proposta em questão, apresenta três partes: uma voltada para
explicitação dos fundamentos teóricos defendidos para um exercício profissional
comprometido com a transformação social; outra que resume a experiência concreta
levada a cabo junto à população do município mineiro de Itabira, onde foi
estabelecido um campo de estágio articulado com o Conselho Central Itabirano de
Obras Sociais (CONSCIOS), a Legião Brasileira de Assistência (LBA) e a própria
Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais; finalmente, uma
terceira contendo revisão crítica desta experiência (SANTOS, 1985). De acordo com
Netto (1994), trata-se da primeira produção do Serviço Social brasileiro de influência
marxista que exibe uma proposta alternativa ao tradicionalismo profissional
conectada com os interesses históricos das classes e camadas subalternas. Por
este motivo, para o autor, o Método Belo Horizonte materializa o alicerce do projeto
de ruptura, adensado em seguida com a contribuição de outros assistentes sociais,
na construção de um acúmulo intelectual que elevou o debate profissional a uma
posição de notoriedade entre os países capitalistas periféricos e além.

A perspectiva da Intenção de Ruptura surgia, assim, dentro da universidade


na primeira metade dos anos 1970. Contudo, sua interferência nos espaços da
categoria foi retardada para o início dos anos 1980, haja vista que seus argumentos
teóricos, profissionais e políticos colidiam com as diretrizes do governo autoritário 182.
É apenas com o esgotamento da ditadura que esta vertente consegue ir além dos
poucos círculos acadêmicos (isto é, após a segunda fase de consolidação
acadêmica identificada na perspectiva por Netto) e intervir nas discussões
profissionais, demonstrando suas diferenças em relação à Perspectiva
Modernizadora e à perspectiva de Reatualização do Conservadorismo de forma
criativa e produtiva. Netto (1994) salienta, e já o dissemos antes, que o desempenho
de suas vanguardas no período da abertura democrática foi tão veemente que
acarretou a impressão de hegemonia na representação profissional. Aliás, o autor
afirma a estreita relação entre o progresso da influência da Intenção de Ruptura no

182
É interessante observar que, apesar da marginalidade sofrida pela vertente da Intenção de
Ruptura no país ao longo dos anos 1970, as ideias belo-horizontinas foram difundidas na América
Latina e inclusive refletidas já em julho de 1971 no “Seminário Latinoamericano para Profesionales
em Trabajo Social” em Ambato, Equador, considerando-se a correspondência de seu conteúdo com
as vanguardas contestadoras da profissão na América Latina (NETTO, 1994).
125

meio profissional e a conjuntura nacional de redemocratização, tecendo uma


prospectiva de relevo:

Cabe anotar, en passant [grifo do autor], que o seu futuro está muito
hipotecado ao alargamento e ao aprofundamento da democracia na
sociedade e no Estado brasileiros – pelos seus enlaces teórico-culturais e
pelos seus compromissos cívico-políticos, a perspectiva da intenção de
ruptura depende, mais que as outras tendências operantes no Serviço
Social, de um clima de liberdades democráticas para avançar no seu
processamento (idem, p.249).

Cumpre ressaltar que tal sintonia não se inicia na passagem da década de


1970 para a década de 1980, quando da crise do Estado autoritário. Efetivamente, a
perspectiva da Intenção de Ruptura muniu-se do legado democrático do governo
João Goulart (1961-1964), que foi interrompido pelo golpe militar. Ou seja, antes da
implantação nefasta da ditadura no país e em virtude da aproximação do Serviço
Social com o movimento das classes sociais, o projeto societário ligado aos
interesses dos trabalhadores já alcançava pela primeira vez a profissão, inspirando
politicamente os jovens estudantes e docentes provenientes das camadas médias
urbanas183.

Mais tarde, quando a manifestação destas convicções políticas pode se dar,


houve uma revitalização desta vertente. Esta se favoreceu da massiva mobilização
das classes subalternas, com destaque para o operariado184, tendo em vista não
apenas a condição comum de trabalhador assalariado que unia a categoria de
assistentes sociais às demais, mas também a necessidade posta por esta nova

183
Ao enaltecer a resistência dos docentes, profissionais e estudantes alinhados com a perspectiva
da Intenção de Ruptura à repressão da ditadura militar, que acabou por salvaguardar a memória
profissional, Netto (1994, p.270/271) salienta mais uma vez o tamanho da contribuição da equipe de
Belo Horizonte: “Seu esforço, evidentemente, não foi capaz de superar a eficácia das políticas
educacional e cultural da autocracia (de que eles foram, também, vítimas). Se funcionaram como um
traço de união entre tempos e blocos culturais distintos, não puderam evitar que pelo menos um corte
se aprofundasse: entre as novas gerações que chegam às escolas em finais dos anos setenta e a
herança de que eram portadores. Nestas gerações, aqueles segmentos que se inclinam no sentido
da contestação, fazem-no sob o peso do novo irracionalismo já aludido; conquistados para a
perspectiva da Intenção de Ruptura, jogam-se nela com as hipotecas do AI-5 – donde a reiteração,
nestes segmentos, já profissionalizados ou não, de vieses e temáticas que foram ultrapassados na
consolidação da perspectiva da Intenção de Ruptura”.
184
Há que se recordar aqui das greves do ABC paulista ocorridas no ano de 1978, inflamadas por um
novo movimento sindical classista anticapitalista, e a deflagração dos ‘novos movimentos sociais’ com
influência ideológica da Revolução Cubana (1959) e dos insumos da Teologia da Libertação ligada à
Igreja Católica (ABREU, 2016).
126

realidade, de uma produção intelectual que a contemplasse à altura. Aquele tempo


de ares progressistas exigiu que os componentes da Intenção de Ruptura
declarassem com nitidez o cunho político da perspectiva que abraçavam,
diferentemente do que aconteceu com as outras duas vertentes, que disfarçavam
seus elos ideológicos com posições pretensamente neutras e prescrições técnicas,
de acordo com a visão de Netto (1994). Mediante a ausência de vínculo substantivo
com o movimento operário e o foco nos movimentos intelectual e estudantil da
segunda metade dos 1960, a politização da perspectiva de Intenção de Ruptura
rumou para partidarização vinte anos depois, como já foi mencionado, o que levou o
militantismo a se incidir entre os assistentes sociais no lugar da antiga vocação.

Muitas das críticas dirigidas à Intenção de Ruptura, dentre elas a acusação


do teoricismo, guardam vínculo com sua gênese na universidade. Netto (1994)
adverte que esta origem não foi acidental, na realidade ela foi necessária uma vez
que as exigências teóricas de rompimento com o passado profissional não poderiam
ser satisfeitas fora da universidade. De fato, considerando que até então o Serviço
Social não apresentava trajetória de dedicação à pesquisa, se fazia necessário um
estudo teórico-metodológico significativo que, ao mesmo tempo, criticasse o
tradicionalismo, avançasse no domínio de um referencial contra-hegemônico no país
e que ainda indicasse alternativas de intervenção coerentes com tal matriz de
pensamento. Além disso, o mercado profissional, cujos rebatimentos das demandas
práticas imediatas são mais fortes do que nas agencias formativas, mostrava-se
como ambiente pouco propício a experiências prático-profissionais inovadoras.

Sendo assim, através de seu tripé constitutivo – de ensino, pesquisa e


extensão –, a universidade não apenas garantiu as condições indispensáveis para o
desenvolvimento da perspectiva em questão como também serviu de campo
profissional através dos novos cursos de Serviço Social, particularmente para
aqueles seus representantes céticos quanto à possibilidade de uma atuação crítica
nos espaços ocupacionais ou convictos quanto ao efeito multiplicador da formação
de novos quadros. Contudo, o autor lembra que não raro o que se assistiu foi
parasitismo e burocratismo acadêmicos, inclusive a ilusão da resistência. Quando a
escolha pela academia englobava uma estratégia intelectual, profissional e/ou
política, os enfrentamentos eram duros, pois mesmo na universidade, remodelada
127

pela ditadura militar, o projeto da Intenção de Ruptura encontrava entraves


expressivos. Netto (1994, p.253) repete a importância do processo histórico para as
conquistas da perspectiva neste lugar:

A opção estratégica pelo espaço acadêmico só se revelou palpavelmente


produtiva quando se tornou possível – para além da vontade subjetiva dos
atores – contar também com conjunturas determinadas e particulares que,
aproveitadas com inteligência e coragem, operavam no contra-sentido das
orientações predominantes na universidade e na sociedade. E é forçoso
dizer que tais conjunturas não foram numerosas.

Para além disto, o autor reconhece o aporte que a Intenção de Ruptura trouxe
para a história do Serviço Social brasileiro – a contínua ampliação das referências
teóricas e ideoculturais para repensar a profissão. Todavia, aponta que há uma clara
distância entre a finalidade de rompimento com o passado e as suas
recomendações prático-interventivas para alcançá-la, polêmica que bastante
incomodou estudantes e profissionais ao longo dos anos 1980, ilustrada pela
repetição vazia de que “na prática, a teoria é outra”. Essa polêmica se agravou a
partir da década seguinte, com a implantação da ideologia neoliberal na gestão
pública brasileira e com o consequente revigoramento dos grupos mais
conservadores da categoria.

Iamamoto (2008, p.213) ratifica os limites identificados por Netto e


demonstrados pelo próprio desenvolvimento desta vertente, denunciando que a
bagagem teórica do Serviço Social, caracterizada pelo ecletismo, atrapalhou a
materialização do projeto de ruptura:

O movimento de reconceituação se viu, portanto, prisioneiro de uma antiga


contradição, já denunciada por Lukács: a coexistência de ‘uma ética de
esquerda e uma epistemologia de direita’, nos termos do autor. Subjacente
encontra-se ainda a ilusão de que a consciência teórica resultaria direta e
unilateralmente da luta de classes, movida pela vontade política. Origina-se
daí um duplo dilema até hoje presente na prática profissional: o fatalismo e
o messianismo, ambos criativos de uma análise da prática social esvaziada
de historicidade [grifo da autora].
128

Ao refletir sobre a literatura da área no período reconceituado, Santos (1985,


p.111) já defendia a necessidade de articulação entre ideologia e conhecimento
científico, em prol de um exercício profissional coerente185, e confirmava:

uma nítida ausência de análise da realidade e de sistematização teórica de


sua ação concreta, substituída por uma constante e rotineira repetição de
um serviço social liberador, transformador e revolucionário ou de uma
prática de investigar tão inflexível que acaba por enfraquecer a intenção
ideológica assumida.

A incorporação inicialmente estreita do marxismo pelo Serviço Social também


foi tratada de forma pertinente por Quiroga (1991) em sua dissertação de mestrado,
que aponta a importância de se resgatar a inteireza da teoria social de Marx para
enfrentamento da “invasão positivista” ao seu conteúdo, legatária da II Internacional
(1889-1914)186. Através de pesquisa efetuada junto de docentes dos cursos de
Serviço Social de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, dedicados ao
ensino da metodologia, a autora afirma que várias foram as restrições cometidas a
este pensamento nos conteúdos das disciplinas: o rompimento com a totalidade por
meio de abordagens unilaterais; a hipertrofia das forças produtivas, que encalçam
uma leitura fatalista da vida social; a redução da história à consciência dos homens,
que fundamentam a visão voluntarista do exercício profissional; a negação do

185
Sobre a supervalorização da ideologia em detrimento do debruço teórico que a Intenção de
Ruptura levou a cabo, Santos (1985, p.112) afirma o seguinte: “No decorrer do movimento
reconceitualizador, num primeiro momento a ideologia é entendida como motivadora para o
desenvolvimento profissional e, talvez mais do que isso, identificada com o conhecimento científico.
Para chegar a tal concepção, começou-se a condenar o caráter positivo e neutro da clássica prática
profissional, posição esta que, sendo em si mesma correta, despertou a conhecida rejeição pelo
trabalho institucional, visto que as instituições, como veículos reprodutores do sistema, cristalizam os
interesses das classes dominantes. A ‘fuga’ das instituições, por sua vez, gerou o ‘trabalho de base
em comunidades abertas’ dentro de uma perspectiva supostamente resguardada do ‘contágio’ da
ideologia dominante. Portanto, durante a Reconceituação, a rejeição às instituições foi assumida
como posição política decorrente de uma suposta compreensão científica das mesmas”.
186 A II Internacional foi uma organização de partidos socialistas e operários, instituída durante o

Congresso Internacional de Paris em 14 de julho de 1889, sobretudo por iniciativa de Friedrich


Engels. Em virtude das posições de expoentes como Plekhanov e Bernstein (além da força da obra
de Kaustsky sobre o movimento comunista da época), houve uma vulgarização do pensamento de
Marx, que impactou as ciências sociais desde então. Conforme Quiroga (1991), o primeiro foi um
grande defensor do materialismo determinista e o segundo um revisionista cientificista. Barroco
(2005) acrescenta que o marxismo vulgar começa ao longo da II Internacional e depois é
aprofundado pelo marxismo-leninismo de Stalin. Ou seja, no decurso da II Internacional inicia-se a
negação da organicidade entre teoria marxiana e práxis, a redução da dialética em leis científicas
aplicáveis, o entendimento da consciência como mero reflexo da base econômica, a dicotomia severa
entre mundo burguês e mundo proletário (sendo o primeiro concebido como representante do mal e o
segundo como representante do bem). Isso simplifica por demais o conhecimento, a moral e a
cultura, sem contar com a perigosa substituição da classe pelo partido que, mais tarde, leva à
substituição deste por um grupo burocrático.
129

vínculo entre ciência e transformação social, que inspiram uma compreensão


estática e justificadora da ordem estabelecida.

Para Quiroga, estas lacunas conceituais conduziram a profissão a um corte


político desacompanhado de uma corte teórico com a herança conservadora durante
o Movimento de Reconceituação brasileiro. Tais insuficiências reconhecidas no
trajeto da perspectiva de Intenção de Ruptura foram sendo ultrapassadas na medida
em que seus expoentes avaliaram suas experiências praticistas – institucionais,
acadêmicas ou políticas – e intensificaram seus estudos sobre a totalidade do real à
luz da tradição marxista.

Santos (1985), mais uma vez, alerta o verniz idealista com que os
representantes da vertente de Intenção de Ruptura revestiram frequentemente sua
interpretação da categoria dialética da “prática”. É fato que durante o Movimento de
Reconceituação passou-se a reconhecer a unidade entre teoria e prática.
Entretanto, alguns problemas ainda atravancavam a plena compreensão desta
realidade. Um deles é o problema do “fetiche dos metodologismos” – termo utilizado
por Iamamoto (2008) – que se refere à disseminação da adoção de “modelos de
intervenção” compostos por etapas estanques e lineares, como captação sensorial,
conhecimento racional etc., cujo fim seria a organização popular sem consideração
das mediações entre ciência e mobilização transformadora. Outro problema é a
restrição da prática à atividade política partidária, o que acarretou em negação do
exercício profissional nas instituições. Estas insuficiências de apreensão teórica
guardam vínculo com a parca herança doutrinário-teórica do Serviço Social e com
os reflexos do marxismo vulgar na nossa cultura profissional.
130

CAPÍTULO 4 – A PRESENÇA DO SINCRETISMO NA INTENÇÃO DE RUPTURA

Como vimos no capítulo anterior, desde o Método Belo Horizonte – elaborado


na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais, que se
pretendia um projeto de ruptura global com o conservadorismo nos âmbitos da
formação, intervenção e extensão –, o sincretismo já mostrava seus sinais na rota
da vertente da Intenção de Ruptura, marcada pela aproximação, inicialmente
bastante problemática, com a tradição marxista. Sobre a Intenção de Ruptura neste
primeiro momento, que expunha sinais mecanicistas e ecléticos, Netto (1991, p.89)
assinala o seguinte: “(...) quando de sua emersão, na experiência belo-horizontina,
ela caldeava o neopositivismo althusseriano com vieses maoístas, valendo-se
mesmo de impostações próprias da dogmática do marxismo-leninismo”.

É somente entre os anos 1970 e os anos 1980, diante da crise da ditadura e


das massivas mobilizações em prol da abertura democrática – e aqui se inclui o
protagonismo central da classe operária – que a Intenção de Ruptura se reflete
progressivamente nas pesquisas de pós-graduação da área, até adquirir maturidade
teórica e ganhar os debates profissionais. Foram seus desdobramentos, apoiados
na relação com a tradição marxista, que garantiram à profissão uma maioridade
intelectual reconhecida na produção de conhecimento, na organização política das
entidades representativas, no elenco dos referenciais ético políticos, no
reestabelecimento da formação profissional, nas escolhas prático-operativas, sem
mencionar a constituição de um novo perfil de assistente social, derivado de todos
estes avanços com proveito de uma conjuntura nacional efervescente de mudança
política. O trecho abaixo de Silva e Silva (2007, p.227/228) traduz os efeitos da
aproximação do Serviço Social com o marxismo que a perspectiva da Intenção de
Ruptura capitaneou:

(...) há que se ressaltar que o esforço recente de recolocação da


interlocução de setores, embora restritos, de assistentes sociais com a
tradição marxista é indicativo do amadurecimento reflexivo do Serviço
Social, o que se expressa em suas obras de referência (...). A contribuição
relevante, nesse sentido, é a compreensão que se passa a ter do
significado social da profissão e algum avanço, que já se pode registrar, na
compreensão de processos e elementos da realidade social, bem como um
131

esforço na busca de rigor teórico, com uma maior inserção de assistentes


sociais no campo da investigação social.

Para além da intenção de contribuir com a problematização do vigor da tese


do sincretismo elaborada por Netto no período histórico pós-1960, que vem
recentemente animando a reflexão de vários autores do Serviço Social brasileiro,
este quarto e último capítulo objetiva responder ainda com mais afinco a finalidade
desta investigação, que é examinar a persistência do sincretismo após o processo
de renovação do Serviço Social, particularmente no complexo percurso da vertente
da Intenção de Ruptura que ergueu, na virada da década de 1970 para a década de
1980, o projeto ético-político. Como é sabido, trata-se de um projeto profissional
ineditamente crítico ao conservadorismo predominante no discurso e na ação dos
assistentes sociais – desde as origens do Serviço Social brasileiro entre os anos
1930 e 1940187 –, cujas defesas passaram a ser fortemente desafiadas assim que
alcançou hegemonia no meio profissional, em decorrência da volta ofensiva do
conservadorismo no país durante os anos 1990.

187
Ao tratar da direção social do projeto ético-político que se confronta com o domínio do grande
capital, Netto (1996, p.117) enfatiza que a inspiração na tradição marxista não é exclusiva em suas
bases:“ O que, naquela compósita cultura profissional, sustenta essa direção são matrizes, não
apenas antagônicas ao conservadorismo, mas ainda, expressamente colidentes com as bases
epistemológicas do pensamento pós-moderno e conflitantes com o quadro de referência cultural da
pós-modernidade. Desenvolvidas sob a influência da tradição marxista, mas incorporando valores
hauridos noutras fontes e vertentes e, pois, sem vincos estreitos ou sectários, aquelas matrizes estão
diretamente conectadas ao ideal de socialidade posto pelo programa da modernidade – neste
sentido, tais matrizes não são ‘marxistas’ nem dizem respeito apenas aos marxistas, mas remetem a
um largo rol de conquistas civilizatórias e, do ponto de vista profissional, concretizam um avanço que
é pertinente a todos os profissionais que, na luta contra o conservadorismo, não abrem mão daquilo
a que o velho Lukács chamava de ‘herança cultural’”. Por sinal, Vasconcelos (2015, p.180) traz uma
necessária afirmação sobre o conteúdo do projeto ético-político divulgado nos documentos
profissionais. De acordo com a autora, ele chama os assistentes sociais a se oporem à ordem do
capital e à sua exploração do trabalho, que ecoa nas demais opressões de gênero, etnia, orientação
sexual, faixa etária etc., todavia: “(...)o que é essencial para o assistente social que opta pelo projeto
do Serviço Social numa perspectiva anticapitalista e emancipatória, não é afirmar ou provar que ‘o
projeto’ do Serviço Social é marxista ou tem como finalidade a emancipação humana. O que é
relevante e essencial, no contexto do capitalismo contemporâneo, é apreender as consequências
para os trabalhadores nos seus diferentes segmentos das atividades realizadas pelo conjunto dos
assistentes sociais brasileiros, particularmente, a realizada pelos assistentes sociais que tomam o
projeto do Serviço Social como referência, na perspectiva marxista e emancipatória, no
enfrentamento dos desafios e das exigências colocadas à categoria profissional. Isso porque é na
materialização das finalidades e objetivos contidos no projeto profissional que se torna fundamental
identificar e definir as tendências e as possibilidades presentes na profissão, tendo em vista,
dialeticamente, negar o que não favorece e conservar o que favorece o enfrentamento e a superação
de práticas conservadoras, para, aí, para além da petição de princípios, apreender na realidade a
direção social que os assistentes sociais vêm imprimindo ao seu cotidiano profissional e as
tendências presentes nesse movimento”.
132

4.1. Indícios da presença do sincretismo na produção teórica da Intenção de Ruptura


nos anos 1980 e 1990

O desencadeamento da vertente de Intenção de Ruptura extrapola os muros


da universidade, sobretudo a partir do III Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais, o conhecido “Congresso da Virada”188, realizado em São Paulo entre 23 e
28 de setembro de 1979. Este nuançou a alienação que se alastrava nos fóruns e
órgãos da categoria profissional189 em correspondência com o retorno do operariado
ao cenário político nacional, firmado no novo sindicalismo (NETTO, 1994 e 2009;
ABRAMIDES e CABRAL, 2009). Estas raízes se fortalecem durante toda a década
de 1980, alimentada pelas mudanças nacionais190, o que não livrou as vanguardas
da perspectiva de uma dupla dificuldade com a maior parte da categoria profissional:
De um lado, há um descompasso [grifo do autor] entre o universo simbólico
a que a produção teórico-metodológica e profissional das vanguardas
remete e aquele que parece pertinente à massa da categoria – e para este

188
Foi durante o III Encontro Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais, entre 21 e 23
setembro de 1979, que se denunciou a organização autoritária deste III Congresso que viria a seguir
e se rejeitou o convite de honra feito aos representantes oficiais do governo militar. As entidades
sindicais da categoria convocaram uma assembleia paralelamente à programação do evento, que
contou com 600 congressistas, redundando nos seguintes acontecimentos: “Por decisão unânime da
assembleia paralela, as lideranças sindicais tomaram a direção do Congresso na abertura da plenária
geral do segundo dia e, no início dos trabalhos, a Mesa Diretora propôs e foi aprovada a destituição
da Comissão de Honra do Congresso, composta, à revelia da categoria, pelo então presidente da
República, o general João Batista Figueiredo, pelo ministro do Trabalho, Murilo Macedo (que havia
cassado a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, cujo presidente era Luiz Inácio da Silva),
pelo ministro da Previdência, Jair Soares, pelo governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf, e pelo
prefeito da Capital, Antônio Salim Curiati. Também por decisão soberana da assembleia, a Comissão
de Honra passou a ser integrada por representantes dos dirigentes sindicais cassados: do Comitê
Brasileiro pela Anistia, do Movimento Contra a Carestia, da Associação Popular de Saúde e da Frente
Nacional do Trabalho (em homenagem aos trabalhadores brasileiros e a todos os que morreram na
luta em defesa da democracia)” (ERUNDINA, 2009). Importa enfatizar também que o Congresso da
Virada convidou o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva para o encerramento do evento e que
neste moções foram aprovadas, como a de repúdio à intervenção nos sindicatos e à prisão de seus
líderes, contra o projeto de Anistia restritiva e contra a devastação e ocupação amazônica.
189
Abramides e Cabral (2009) discutem a contribuição política da Comissão Executiva Nacional de
Entidades Sindicais de Assistentes Sociais (CENEAS), da Associação Nacional dos Assistentes
Sociais (ANAS) e das Associações Profissionais de Assistentes Sociais (APAS) na germinação do
rompimento da categoria com o conservadorismo que resultou na consolidação do projeto ético-
político profissional
190 Neste período dos anos 1980, é digno de destaque a constituição do Partido dos Trabalhadores

(PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). Internamente, assiste-se o reforço da organização sindical através da Associação
Nacional dos Assistentes Sociais (ANAS), o “redimensionamento sob a perspectiva de classe” da
ABESS e do Conjunto CFAS/CRAS, além do ressurgimento do movimento estudantil despedaçado
durante a ditadura militar (ABREU, 2016).
133

descompasso tanto contribui a formulação nem sempre límpida das


vanguardas (condicionada por exigências de comunicação teórica mais
rigorosa e/ou pelos vieses da academia) quanto o próprio empobrecimento
cultural recente do assistente social (determinado basicamente pela
degradação do nível da formação na universidade refuncionalizada pela
ditadura). É óbvio que cabe aos protagonistas da renovação a tarefa
principal na superação deste gargalo. A outra dificuldade relaciona-se à
pobreza de indicativos prático-profissionais [grifo do autor] de
operacionalização imediata que esta perspectiva tem oferecido aos
profissionais – mais precisamente, à inadequação [grifo do autor] entre
muitos dos seus indicativos e as condições objetivas do exercício
profissional pela massa da categoria. Esta segunda dificuldade reenvia
menos a uma eventual inépcia do potencial interventivo do projeto de
ruptura que à sua insuficiente experimentação de uma parte e, doutra, à
própria contextualização das práticas profissionais. Quanto ao primeiro
aspecto, ele faz referência a limitações teóricas e de pesquisa que,
gradualmente, vêm sendo superadas – ainda que esteja muito longe do
acúmulo mínimo necessário. No que diz respeito ao segundo, relaciona-se
ao marco institucional do desempenho profissional e à incidência que sobre
ele têm os seus usuários – envolvendo uma gama de variáveis que, no
limite, toca o próprio exercício da cidadania; neste caso, não há dúvidas de
que o papel das vanguardas profissionais, enquanto tais, dispõe de uma
gravitação menor que no anterior (NETTO, 1994, p.254-255)191.

Sem superação do ecletismo desde o Método Belo Horizonte, como já o


apontamos, e numa trajetória marcada pela continuidade e pela mudança, o
segundo momento da Intenção de Ruptura foi de consolidação acadêmica com a
gradativa constituição de uma massa crítica, particularmente no Rio de Janeiro, em
São Paulo e em Campina Grande, que se debruçavam sobre a teoria social
marxiana ou sobre referenciais próximos a ela para refletir a profissão nos anos
1980. Se inicialmente este “marxismo acadêmico” expôs uma interpretação por

191 Como apontamos no capítulo 1 deste trabalho à luz de Netto (1996 e 1999) e de Maranhão (2016),
esse duplo problema enfrentado pelas vanguardas da Intenção de Ruptura em relação à categoria
como um todo se estende e se agrava ao longo dos anos 1990 e 2000. Enquanto para o primeiro
autor, o acúmulo inegável do Serviço Social ainda se mostra aquém do movimento da sociedade,
sem falar na carência de círculos de socialização deste, o segundo enaltece a relevância de se
articular o aprofundamento teórico-metodológico exercido na academia com a sistematização da
prática efetuada nas instituições, em favor de uma atuação profissional embasada e crítica. Há que
se considerar os rebatimentos deletérios do neoliberalismo para as condições de vida do conjunto da
sociedade brasileira e igualmente para a materialização do projeto ético-político profissional, dado o
estrangulamento das políticas sociais que piora as condições de atendimento e trabalho nas
instituições onde são executadas. Mas não é apenas o mercado de trabalho dos assistentes sociais
bastante modificado neste período, a exemplo dos reflexos da instituição do Sistema Único da
Assistência Social (SUAS) e da assistencialização da seguridade social decorrente: também a
formação profissional. Para Rodrigues (2016), o considerável crescimento da distância entre as
vanguardas e o conjunto da categoria profissional advém justamente da contrarreforma universitária,
cuja estreia se deu nos governos de Fernando Henrique Cardoso com continuidades e inovações
pelos de Lula.
134

demais paradigmática da política e da história, mais adiante as elaborações


abrangeram a historicidade com recurso aos originais192. Aliás, de acordo com Netto
(1994), a maioridade intelectual do projeto de ruptura atingida neste segundo
momento é expressa pela produção de Iamamoto do ano de 1982, que demonstrou
rigoroso estudo da fonte marxiana para reflexão da profissão 193. Já num terceiro
momento, chegou-se a um amplo exame da atualidade do Serviço Social –
abarcando a formação profissional, as áreas de intervenção, os desafios da atuação
propriamente dita etc. –, o que ratificou a maturidade teórica da perspectiva e a
formação de uma intelectualidade ainda nos anos 1980.

Em outro texto, Netto (1991) acrescenta que na fase de afirmação acadêmica


da Intenção de Ruptura, caracterizada pelo aumento significativo de referências
teóricas, destacou-se uma preocupação epistemológica, isto é, um debruço crítico
sobre as relações entre sujeito e objeto e teoria e prática nas elaborações
profissionais. No que diz respeito a este debate em particular, faz-se mister
recuperar mais uma vez os argumentos pilares do autor sobre a compreensão de
teoria, método e história na formação em Serviço Social de então, durante a 24ª
Convenção da ABESS, realizada em Niterói /RJ em setembro de 1985 194. Tal
posicionamento partia do raciocínio de que o país, a universidade e o conhecimento
social atravessavam crises de vulto; esclarecia que o positivismo e a teoria inspirada
em Marx são as duas matrizes fundamentais de conhecimento do social com
interpenetração mútua nas suas trajetórias; e, finalmente, assinalava o ecletismo do
currículo mínimo de 1982, recém-implantado sob influência funcionalista:

192
As produções de Marilda Vilela Iamamoto - Legitmidade e crise do Serviço Social: um ensaio de
interpretação sociológica da profissão, do ano de 1982 - e Alba Maria Pinho de Carvalho – A questão
da transformação e o trabalho social: uma análise gramsciana, do ano de 1986 – são destacadas por
Netto (1994) como exemplos desta segunda fase da consolidação acadêmica, embora o autor
saliente que o subtítulo da primeira obra seja um equívoco, já que Iamamoto se debruça sobre os
originais marxianos.
193
Netto (1994) informa que o ensaio em questão apresenta quatro capítulos, a saber: Uma
concepção teórica da reprodução das relações sociais, A divisão social do trabalho, O Serviço Social
no processo de reprodução das relações sociais e Legitimidade e crise do Serviço Social. Conforme o
autor, quando da elaboração de sua tese - cuja parte é conhecida na obra aqui em estudo Ditadura e
Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64 - permaneciam inéditos em livro o
segundo e o último capítulos. Ou seja, o primeiro e o terceiro foram publicados no livro Relações
sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica, em autoria
conjunta com Raul de Carvalho, com primeira edição também no mesmo ano do ensaio, 1982. Mais à
frente, ainda neste capítulo, voltaremos às novidades que esta obra demonstra e que a destacam na
literatura reconhecida da Intenção de Ruptura.
194
Lembramos que esta fonte foi explorada no capítulo 1 da presente tese para aprofundamento
sobre a relação do Serviço Social com a teoria.
135

Pensar o social é impossível se nós o tratamos em bloco. São perfeitamente


legítimos os cortes na realidade social, as abstrações operadas no processo
social para trabalhar com mais cuidado, mais detidamente um determinado
nível do social. No entanto, esses cortes, essas teorias – que, à falta de
outro nome, chamo aqui de setoriais – estão subordinadas à matriz teórica
maior, que explica ou que procura explicar este modo de ser e este modo
de produzir-se do ser social. Assim postas as coisas, fica claro que a teoria
social não é uma matéria, uma disciplina ou uma ciência específica; ela
concerne à compreensão da totalidade social, dessa totalidade em
movimento que supõe objetividade, indivíduo, cultura, sociedade, economia,
constituindo a substância da história.
Se este encaminhamento é correto – (...) – a questão do método, a questão
do substrato metodológico não é algo que se possa escolher como quando
nós vamos ao supermercado. Eu não sei se vocês têm a seguinte pergunta:
você já escolheu a sua perspectiva metodológica?
Você já escolheu o método que vai aplicar? Isto é fantástico. Existem
métodos, as metodologias, a gosto do freguês – nós escolhemos e
aplicamos. Evidentemente, isto é uma contratação. O método não é um
componente aleatório, não é um objeto de eleição de escolha arbitrária. O
método, na verdade, é uma relação necessária entre o sujeito que investiga
e o objeto investigado [grifo do autor]. Quando eu digo necessária [grifo do
autor], quero usar toda força do termo; é uma relação necessária à medida
que, para abordar um fenômeno determinado, e abordá-lo na sua verdade
constituinte (...) só uma perspectiva metodológica é adequada. O método é
como que a equação da razão constituinte entre o sujeito e o objeto
(NETTO, 1993, p.52-53)

Nesta direção, o autor indicava o equívoco das conjecturas quanto à


metodologia e à teoria próprias do Serviço Social, que ainda resistiam no meio
profissional da época, após o Movimento de Reconceituação que já havia, na
expressão de Netto, “colocado em xeque o gato preto”195. Os problemas teóricos
que derivam desta ideia principal não são poucos e demonstram, como já
expressamos no capítulo anterior, a incipiente bagagem intelectual do Serviço Social
brasileiro e a apropriação do marxismo vulgar entre nós. O embaraço básico reside
no entendimento de que o objeto de conhecimento é definido pelo sujeito, o que
implica a suposição de que a teoria significa sistematização da prática; a confusão
entre método de investigação e método de exposição; a leitura de que método é
uma pauta de procedimentos a ser “aplicado”; e, finalmente, a confusão entre
método e estratégia de ação.

195
No capítulo 1, mencionamos a correspondência que o autor faz entre a suposta teoria do Serviço
Social com um gato preto numa sala escura, onde nós, os assistentes sociais, entraríamos de óculos
escuros para achá-lo. Esta associação foi feita pelo autor em meio à sua exposição, como está
registrado no Cadernos ABESS n⁰1.
136

Ao iluminar que o conceito de ciência abrange conhecimento sobre um dado


objeto com duas qualidades centrais – controle sobre este objeto e previsão de seu
desempenho –, o autor rechaça os artifícios de redução dos fenômenos sociais e de
equivalência entre ser social e ser natural, bem como arremata que conhecimento
teórico do social diz respeito a:

um complexo sistemático de proposições verificáveis (há que verificar, há


que testar, há que comprovar) concernentes à estrutura dinâmica, ao modo
de ser e de se reproduzir de um determinado ser social, especificamente o
ser social posto pela dominância do modo de produção capitalista, o ser
social burguês (NETTO, 1993, p.52).

No que concerne à necessária atualização do currículo, o autor sinaliza a


importância da autônoma análise política da sociedade pelo Serviço Social para que
não dependa de outras profissões para tal. Na sua visão, o vínculo com a realidade
nos permite: lidar com o pluralismo no meio profissional, reconhecer que a nossa
categoria não é a responsável pela transformação social e encarar o passado
conservador, até para renová-lo no terreno da disputa de ideias. Sob nosso ponto de
vista, tais lúcidas recomendações são até os dias atuais de relevante pertinência
para as novas gerações profissionais.

Antes do debruço atento às considerações de Silva e Silva (2007) sobre os


avanços e os limites das produções profissionais entre os anos 1980 e 1990,
quando da maturação do projeto ético-político profissional – numa análise da
presença do sincretismo nos rumos da Intenção de Ruptura –, faz-se mister realçar
a obra que apresentou sólidos elementos de superação do sincretismo teórico
segundo Netto (1994): Legitimidade e crise do Serviço Social: um ensaio de
interpretação sociológica da profissão, de Marilda Villela Iamamoto. Evidentemente
que a Intenção de Ruptura contou com um diverso “acervo de representações”, que
aproximou o Serviço Social dos debates mais inovadores das Ciências Sociais e da
modernidade, para além desta contribuição da autora do ano de 1982. Todavia, é
exatamente esta que, com base em O capital e nos Grundrisse de Marx, resgata a
lógica da ordem burguesa e situa o Serviço Social como tecnologia social neste
contexto histórico, sem desconsiderar a particularidade da formação social
137

brasileira, em apropriada tomada do método crítico dialético. Netto afirma que a


produção original de Iamamoto combate duas leituras aparentemente críticas da
profissão à época – a mecanicista do sociologismo vulgar, mais conhecida como
fatalista, e a voluntarista – e é a primeira que trata do vínculo entre o Serviço Social
e o pensamento conservador, embora construa tal análise a partir da Sociologia.
Ademais, mesmo o autor detectando a falta do exame de cabedal marxista mais
moderno e avaliando como insuficientes alguns momentos do raciocínio de
Iamamoto196, pontua claramente sua posição a respeito desta obra, que assenta a
Intenção de Ruptura teoricamente:

É nítida a originalidade de Iamamoto: reside na modalidade de


compreensão do Serviço Social erguida sobre a análise do processo de
produção (e reprodução) das relações sociais na ordem burguesa; mas
esta originalidade só é concebível a partir do seu posicionamento teórico-
metodológico – precisamente a angulação extraída com fidelidade de Marx.
Trata-se de uma chave compreensiva – ao que saibamos, levada a cabo,
com as notas pertinentes que vimos, pela primeira vez no marco
profissional por Iamamoto – que subverte [grifo do autor] o enquadramento
crítico-analítico do Serviço Social: com ela, as problemáticas internas
(intrínsecas) da profissão encontram a base para um equacionamento novo
e correto; a ótica da tecnologia social (tal como a fundamenta Iamamoto)
[grifo do autor] permite situar histórica e sistematicamente as questões de
teoria, método, objeto e objetivos profissionais no âmbito que lhes é
precípuo: o da profissionalidade que se constrói nos espaços da divisão
sociotécnica do trabalho [grifo do autor], tensionados mediatamente pelo
rebatimento das lutas de classes [grifo do autor].

Silva e Silva (2007) fornece rica contribuição a esta pesquisa, uma vez que
levanta as referências teóricas e as defesas metodológicas mais utilizadas na
produção do conhecimento em Serviço Social ao longo da maturação do projeto

196
Primeiramente, quanto ao segundo capítulo da obra da autora sobre a divisão social do trabalho,
Netto identifica que nesta parte faltou um aprofundamento teórico referente aos vários e recentes
repartimentos do trabalho coletivo no capitalismo contemporâneo. Em segundo lugar, no que tange
ao último capítulo intitulado Legitimidade e crise do Serviço Social, o autor considera insatisfatório o
raciocínio de Iamamoto sobre o surgimento do Serviço Social no país, uma vez que a mesma se vale
da lente sociológica para compreensão do conservadorismo com base em Mannheim e Nisbet. Além
disso, Netto concebe como sucintas as discussões da autora sobre a Perspectiva Modernizadora e a
vertente de Intenção de Ruptura da renovação profissional. Por fim, o autor informa duas reservas
essenciais à produção de Iamamoto por ele considerada primorosa: “A primeira diz respeito ao
tratamento extremamente parcimonioso que Iamamoto confere às projeções e lutas sociopolíticas
[grifo do autor] enquanto tais na dinâmica capitalista; ainda que as refira com correção, a ausência de
uma explícita ênfase na sua relevância pode abrir a via a interpretações do seu pensamento que
apontem para o risco de impostações economicistas – que em nosso juízo, são infirmadas pela
articulação interna da reflexão da autora. A segunda é relativa ao deslocamento dos referenciais
teórico-metodológicos quando Iamamoto centra a sua atenção sobre configurações ideoculturais
significativas na ordem burguesa (cf. nota 400); aí, as mais profícuas sugestões da tradição marxista
são substituídas pelo sociologismo” (NETTO, 1994, p.301).
138

ético-político profissional197. A seguir, discorreremos sobre este conteúdo, com o


qual podemos refletir o segundo e terceiro momentos da vertente de Intenção de
Ruptura, tendo em conta que ele apresenta mostras significativas do sincretismo.
Melhor dizendo, o sincretismo persiste no percurso da Intenção de Ruptura, como
atesta a sua literatura entre os anos 1980 (com destaque para a segunda metade) e
início dos anos 1990. Nesta, verifica-se que a parca tradição intelectual do Serviço
Social, combinada com a inspiração em materiais marxistas vulgares (excetuando o
recurso a Gramsci, a Lukács e a outros autores clássicos, sem falar no próprio
Marx198), levou-nos a uma apropriação limitada das categorias da teoria social
marxiana; a uma categorização problemática do “popular” e da “transformação
social”; ao uso falho do método dialético, além da ausência de consideração das
mediações que também comprometeram o discernimento sobre a relação entre
teoria e prática e mesmo sobre o significado social da profissão.

No que tange às bases teóricas que ganharam vulto na consolidação do novo


projeto profissional, a autora resgata que as categorias Estado, instituição e política
social, em razão da forte influência gramsciana199, são tratadas no movimento
contraditório da luta de classes, em que há campo para uma atuação profissional
comprometida com os interesses dos trabalhadores. Mesmo superando a
interpretação de que o Estado consistia em comitê executivo exclusivo da burguesia

197
Através da metodologia da análise de conteúdo, a autora coordenou uma investigação que reuniu
assistentes sociais pesquisadores e estudantes bolsistas da Universidade Federal do Maranhão, da
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, da Universidade Federal do Espírito Santo, da
Universidade Federal do Ceará e da Universidade Estadual do Ceará. O objetivo foi recuperar o
esforço da construção de ruptura com o conservadorismo a partir da revisão da vasta literatura do
Serviço Social: livros da área; publicações do CBCISS; números da Revista Serviço Social &
Sociedade; anais, relatórios e teses de congressos das entidades nacionais da profissão (ANAS,
CFAS, ABESS e SESSUNE) e dissertações e teses defendidas nos programas de pós-graduação em
Serviço Social no país.
198 É fundamental frisar aqui que a inspiração nestes pensadores não resultou necessariamente numa

apreensão adequada e enriquecida de suas ideias pelos assistentes sociais tampouco que as
interpretações destes célebres intelectuais eram detentoras de uma “verdade” absoluta ou portadoras
de um “bem”.
199 Da obra de Antonio Gramsci, o Serviço Social brasileiro se apropriou significativamente de sua

teoria ampliada do Estado, de seu debate sobre hegemonia (que pressupõe o pluralismo sobre o qual
discorremos em futura nota) e de suas considerações sobre o papel do intelectual orgânico. Com a
influência deste autor clássico, os conceitos de totalidade social, bloco histórico e ideologia
igualmente subsidiaram os raciocínios profissionais em defesa da práxis transformadora. E, segundo
Silva e Silva (2007, p.156), “essa é concebida enquanto processo histórico decorrente da luta política
dos grupos sociais organizados, numa relação dialética entre infra-estrutura e superestrutura, na
perspectiva de construção de um novo bloco histórico, onde a modificação das relações de produção
implica a criação de uma nova ideologia que passará a constituir a hegemonia da classe dominada”.
139

e de que as instituições e as políticas sociais também compunham espaços


monolíticos de exercício do poder capitalista200, os textos profissionais exprimem
ênfase na face autoritária do Estado brasileiro e, como Silva e Silva sublinha, este
destaque tem ligação com a vigência da ditadura em tempos de franco avanço do
capitalismo monopolista no país.
Há também um resgate da política social da assistência social que a autora
afirma aparecer como “elemento de identidade profissional para o Serviço Social”
nas obras de Marilda Iamamoto, Aldaíza Sposati, Maria Carmelita Yazbek e Potyara
Pereira já que, na sua interpretação, esta área passa a ser encarada como
incumbência da categoria (embora não exclusiva) nas instituições. Além disso, a
busca pela legitimidade do Serviço Social passa a ser orientada não mais para os
empregadores, mas, para os usuários dos serviços prestados pela profissão. Deve-
se considerar que a assistência social não raro é vista como ajuda paliativa dirigida
aos mais pobres, que sua tradição não supera as raízes do clientelismo e da
filantropia e, além disso, que ela foi negada ao longo do Movimento de
Reconceituação no afã do rompimento com práticas assistencialistas. Desta feita, o
novo debruço profissional sobre esta política setorial, a partir do método dialético e
do prisma da luta de classes, contribuiu para sua disseminação, inclusive no Estado
e nos movimentos sociais “como mecanismo de enfrentamento da questão social,
devendo ser entendida na trama das relações sociais e numa perspectiva de direito”
(SILVA E SILVA, 2007, p.91)201.

As categorias ‘classes sociais’, ‘classes populares’ e ‘movimentos populares’,


por sua vez, são utilizadas no bojo da reflexão sobre este compromisso com os
usuários dos serviços prestados, numa valorização da dimensão política da
profissão, que afasta o conservadorismo tradicional. A autora ressalta, contudo, a
ausência de aprofundamento teórico nas produções profissionais sobre a
constituição das classes sociais no Brasil, com uma predominância da leitura da
sociedade entre dominantes e dominados. Falta também, de acordo com Silva e
Silva, a explicitação da concepção de “popular”, da sua composição, do seu projeto

200
A leitura estruturalista de Estado emergiu na França durante os anos 1960 e foi defendida por
Louis Althusser e por Nicos Poulantzas que depois ampliou sua visão, concebendo o Estado no
cerne da luta de classes (SILVA E SILVA, 2007).
201 Interessante efetuar um contraponto com os dias atuais, quando assistimos, desde os anos 1990,

a assistencialização crescente das políticas públicas em correspondência com a administração


neoliberal do país.
140

político, o que justifica o problema frequente de se conceber o “povo” como um


conjunto homogêneo e progressista, assim como a necessidade de se analisar
criticamente a interpretação animada dos autores quanto aos movimentos sociais
populares e seu potencial de estabelecimento da cidadania e da transformação
social202.

A autora esclarece que as características comuns aos segmentos reunidos na


categoria “povo” são a subordinação política e a exploração econômica, porque as
posições destes na produção e na circulação variam significativamente:

Os interesses fundamentais desse conjunto social decorrem, portanto, da


reação à subordinação, o que os transforma nos protagonistas do que
poderia se denominar de bloco popular, sendo que, na América Latina, esse
bloco inclui o proletariado, o campesinato, a pequena burguesia, as camadas
médias, o variado contingente dos que constituem o setor ‘informal’ da
economia (denominados por alguns autores de subproletariado), os
desempregados etc. (SILVA E SILVA, 2007, p.130).

Entretanto, apoiada em Diego Palma, a autora frisa que o “popular” não se


restringe a “carências” materiais de toda ordem, ele também abarca, para além da
seara econômica, estratégias de sobrevivência, reivindicações por consumo coletivo
e culturas como folclore, medicina natural e tradições culinárias, sendo
imprescindível para apreensão do seu significado o desvelamento da formação
sócio-histórica do país em questão.

Ainda sob a influência primordial de Antonio Gramsci, transformação social é


a outra categoria bastante presente na produção de conhecimento profissional entre
os anos 1980 e os anos 1990 e, para Silva e Silva (2007, p.160), ela “representa a
mediação privilegiada de aproximação do Serviço Social com o marxismo”. Silva e
Silva informa que esta aparece em duas perspectivas distintas na literatura:

• uma que admite que a construção de uma sociedade de democracia de


massa, capaz de assegurar o pleno exercício dos direitos civis, políticos
e sociais, portanto, da cidadania, implica, necessariamente, a superação
do modo de produção capitalista;
• outra que admite que essa sociedade democrática pode decorrer da
transformação do próprio sistema de produção capitalista, ou seja,

202
Inspirada na obra La informalidade, lo popular y el cambio social de Diego Palma, a autora
assinala a relevância dos partidos políticos na condução de projetos societários transformadores.
141

decorreria da implantação de um ‘capitalismo social’ (SILVA E SILVA,


2007, p.159).

O uso desta categoria tampouco emerge sem inconvenientes nos textos, em


razão da ausência de reconhecimento das mediações inerentes à realidade social
complexa, mais particularmente àquelas entre o processo político de transformação
social e o exercício profissional propriamente dito203. Dentro deste debate e como já
anunciamos ao longo deste trabalho, é usual na literatura mencionada a
identificação do ofício do assistente social junto aos movimentos sociais com o
desempenho do intelectual orgânico junto às classes sociais refletido por Gramsci, o
que, evidentemente, acarretou confusão entre exercício profissional e militância
política.

A transformação social igualmente é concebida entre os autores como


resultante possível da produção de conhecimento a partir do reconhecimento da
unidade entre teoria e prática, na qual a práxis, processo de ação-reflexão sobre o
real, somente pode ser materializada com consciência da intencionalidade pelo
sujeito:

(...) verifica-se a preocupação com a produção de novos conhecimentos


que desvelem as relações sociais, e que possibilitem a construção de uma
nova ordem. Só se podem combater as ideias, os valores de uma dada
sociedade que aliena e explora o homem, com a construção de novas
ideias. Contudo, o conhecimento sem a ação dos homens não produz
transformação. É necessário, então, que haja comprometimento nas ações
com a construção dessa nova sociedade (SILVA E SILVA, 2007, p.161)

Na sua análise crítica sobre a fundamentação teórica do projeto ético-político,


encontrada especialmente nos livros derivados de dissertações de mestrado e teses
de doutorado, Silva e Silva admite o empenho de inspiração na tradição marxista

203
É importante destacar que a obra de Gramsci forneceu grande contribuição contra as visões
mecanicistas da totalidade social que fraturavam a infra-estrutura e a superestrutura, favorecendo os
equívocos do economicismo e do voluntarismo. Parece paradoxal tal constatação uma vez que os
autores se municiavam exatamente do pensamento gramsciano, no entanto, ela revela as
insuficiências do percurso intelectual do Serviço Social brasileiro. Segundo Silva e Silva (2007,
p.153): “O economicismo se expressa como a corrente que absolutiza a determinação da infra-
estrutura sobre a totalidade social, vendo a superestrutura como expressão meramente reflexa do
econômico, enquanto o voluntarismo enfatiza o poder da vontade no processo de intervenção na
realidade, por entender a superestrutura como capaz, por si só, de transformar a realidade. Ambas
as posições parcializam e dicotomizam os elementos constitutivos da totalidade social e,
consequentemente, do processo de transformação.”
142

pelos autores, com destaque para o pensamento gramsciano204. Contudo, a autora


ressalva a relevância do estudo dos clássicos – Marx e demais pensadores
marxistas contemporâneos – em suas fontes originais, iniciativa já observada na
pós-graduação da área entre fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, na
contramão da dedicação inicial a manuais como os de Marta Harnecker e Bóris
Alexis. Ademais, Silva e Silva sublinha o distanciamento desta aproximação do
Serviço Social com o marxismo em relação ao conjunto da categoria profissional,
daí a procedência das dificuldades metodológicas de concretização do projeto
profissional em vigor205. As suas palavras abaixo frisam como a qualificação teórica
dos futuros profissionais ainda merece grande investimento: “Ou seja, a debilidade
da formação profissional do assistente social não é simplesmente técnico-
instrumental, mas sobretudo teórico-conceitual, com implicações metodológicas”
(SILVA E SILVA, 2007, p.219).

Apesar da autora salientar que o Projeto Profissional de Ruptura apresenta


como traço fulcral o esforço de ultrapassagem do “antagonismo genético” entre
marxismo e Serviço Social apontado por Netto, ela denuncia a falta de clareza sobre
seus alicerces fundamentais – método crítico-dialético, teoria do valor trabalho e
horizonte da transformação social – entre os assistentes sociais. Isso acaba por atar
as suas elaborações a mera descrição ou sistematização de situações e por tornar o
rompimento com as orientações metodológicas tradicionais mais árduo,
particularmente no que se refere à necessária ligação entre os instrumentos e
técnicas e a teoria adotada conforme a finalidade profissional. Silva e Silva pontua
que o problema principal verificado na literatura a partir da primeira metade dos
anos 1980 até os anos 1990, em contínua expressão, é a falta de articulação entre
teoria e realidade “em termos do resgate segmentado e em nível de abstração
incapaz de captar o específico da formação econômico-social” (idem, p. 223). Isso
atrapalha o vislumbre das possibilidades teórico-metodológicas concretas do
Serviço Social na realidade brasileira. Aliás, a ideia de relacionamento orgânico dos
assistentes sociais com os setores populares, numa adoção mecânica do conceito
trazido por Gramsci, comprova tal questão. Segundo a autora, a dicotomia efetuada

204
Acosta (2005), por sua vez, sinaliza a influência de György Lukács, fundamentalmente da sua obra
“Ontologia do Ser Social”, na produção de conhecimento em Serviço Social ao longo dos anos 1990.
205
Já tratamos desta séria questão antes com Netto (1996 e 1999) e Maranhão (2016).
143

entre econômico e político consiste em outra evidência da cisão entre teoria e


realidade, o que alimentou visões economicista e voluntarista.

No que diz respeito às propostas metodológicas esboçadas na literatura da


área durante a consolidação do projeto ético-político, Silva e Silva situa que estas
envolvem as recomendações referentes ao “que” e “como” fazer profissional e se
apresentam em três dimensões componentes do Serviço Social: a acadêmica, a
organizativa e a de exercício profissional nas instituições e junto aos movimentos
sociais. Logo, a autora sinaliza os empecilhos para viabilizar as novas defesas em
torno da ação profissional: a tradicional fragilidade teórica do Serviço Social, os
requisitos do método dialético que ultrapassa modelos normativos e a distinção das
mediações integrantes à operacionalização do projeto profissional em afirmação.

Na recuperação destas propostas metodológicas entre os autores, Silva e


Silva discrimina estratégias e exigências básicas para viabilização operativa do
projeto ético-político, considerando o firmamento do compromisso profissional com
os interesses dos trabalhadores e a defesa da transformação social. Dentre as
estratégias encontradas, que a autora denomina também eixos articuladores, estão:
formação de alianças, educação popular, investigação-ação, assessoria aos setores
populares e redefinição da prática da assistência social. As exigências básicas
referem-se a: articulação entre teoria e prática, definição do objeto de intervenção,
relação entre sujeito e objeto, articulação da prática profissional com a realidade
social, pesquisa, organização da categoria profissional e redefinição da formação
profissional.

No que se refere às estratégias para materialização operativa do Projeto


Profissional de Ruptura, a formação de alianças – com os usuários, com
profissionais de outras áreas, com movimentos sociais etc. – emerge na literatura
como um expediente central para organização dos assistentes sociais em prol de
uma intervenção coerente com seus princípios, assim como para superação da
fragmentação das políticas sociais, no sentido da composição de uma contra-
hegemonia nas relações institucionais e sociais. A educação popular, por sua vez, é
um recurso para reflexão do cotidiano dos trabalhadores e visa contribuir para a
sistematização do seu saber como forma de resistência, na qual os assistentes
sociais co-participam do processo como educadores e através da socialização do
144

conhecimento e do apoio às reivindicações. Já na investigação-ação, prática


bastante próxima da educação popular, os profissionais atuam como pesquisadores
ao lado da população por meio de metodologia coletivamente definida e com a
finalidade de produzir um conhecimento que subsidie transformação efetiva da
realidade. A quarta estratégia levantada por Silva e Silva é a assessoria aos setores
populares. Nela, esperam-se dos assistentes sociais indicações para enfrentamento
de conflitos com base no cotidiano da população acessado pelos profissionais.
Tratamos há pouco do quinto eixo articulador das recomendações de ação, a
redefinição da prática da assistência social, vista por algumas autoras como
necessária na reconstrução da identidade profissional do Serviço Social a partir da
segunda metade dos anos 1980, uma vez que ela, na contramão da visão
tradicional que a caracterizava como ajuda ou benesse, “se coloca como
reivindicação básica na luta pela construção da cidadania, configurando-se como
expressão da relação de classes” (SILVA E SILVA, 2007, p.189)206.

No que diz respeito às exigências básicas para viabilização operativa do


projeto ético-político, a articulação entre teoria e prática, concebida como uma
relação dialética entre conhecimento e ação, sobressai desde a aproximação do
Serviço Social com o marxismo. Todavia, apoiada na obra Serviço Social crítico:
problemas e perspectivas do CELATS e no artigo O projeto da formação profissional
na conjuntura brasileira de Alba Maria Pinho Carvalho, que integra o Cadernos
Abess n⁰1, Silva e Silva traz implicitamente o problema do sincretismo teórico ao
discutir que a formação em Serviço Social, nos idos de 1985, contava com
extrações das Ciências Sociais que se justapunham, sem uma clareza da lógica das
teorias que iluminam caminhos metodológicos, tanto para a investigação quanto
para a intervenção na realidade.

O reconhecimento da unidade entre teoria e prática foi acompanhado na


literatura profissional pela defesa da importância da definição do objeto de
intervenção. Embora esta se dê com consideração da historicidade e da contradição

206
Citando o artigo Trabalho social com hansenianos de Vicente de Paula Faleiros e Edna Gomes de
Barros publicado na Revista Serviço Social e Sociedade n⁰17, a autora faz referência à noção de
“brecha” utilizada na produção de conhecimento em Serviço Social filiada à Intenção de Ruptura,
quando o assunto era a intervenção profissional nas instituições. Progressivamente, esta ideia de
que “os descuidos da classe dominante” deveriam ser aproveitados pelos assistentes sociais na
correlação de forças foi sendo superado, mas Silva e Silva não desenvolve além sobre isto.
145

inerente às relações sociais que condicionam o Serviço Social, a ideia equivocada


de “aplicação de métodos científicos” – como se fossem itens fortuitos e desconexos
da teoria – para obtenção de conhecimento foi frequente, como Netto (1993)
também demonstra. Na sequência, a relação entre sujeito e objeto como exigência
básica para materialização operativa do Projeto Profissional de Ruptura não é
exibida atinente apenas à relação entre assistente social e objeto de intervenção;
engloba o vínculo das classes populares com o seu cotidiano de vida que pode por
eles ser transformado.

A articulação da prática profissional com a realidade social, por sua vez,


externa “a questão da construção das mediações, enquanto um desafio teórico-
metodológico do Projeto Profissional de Ruptura, que aponta para a necessidade de
reelaboração de categorias a partir da realidade concreta” (SILVA E SILVA, 2007,
p.195). Isto é, o domínio da realidade, complexa e antagônica, faz-se indispensável
dentro das instituições empregadoras, na construção de uma proposta de ação
profissional comprometida com os anseios populares. Aliás, à luz do projeto ético-
político, a pesquisa é considerada outra requisição fundamental para o exercício
qualificado dos assistentes sociais, docentes ou não, no sentido da ultrapassagem
do empirismo e do pragmatismo. Tal convicção posta em andamento elevou o
Serviço Social ao status de produtor de conhecimento e, por esta razão, interlocutor
junto às Ciências Sociais que atravessaram, desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, a chamada crise dos paradigmas, da qual o marxismo tampouco saiu
incólume. Evidentemente que este contexto epistemológico, intimamente
relacionado com o movimento do real, exige do Serviço Social uma comunicação
atenta e exigente com as Ciências Sociais, para se evitar o dogmatismo e o
ecletismo207.

Outra condição valorizada como importante para ações profissionais


sintonizadas com a Intenção de Ruptura é a organização política da categoria e o
seu ingresso nas lutas mais amplas da sociedade brasileira. Não à toa, entre o
término dos anos 1970 e a primeira metade dos anos 1980, juntamente com a
ascensão do movimento dos trabalhadores, várias associações profissionais e
sindicatos de assistentes sociais são criados em todos os estados do país, até a

207
Ver Carvalho (1992), citada por Silva e Silva, e também Ianni (2017).
146

fundação da ANAS no ano de 1983. A ABESS, o CFAS e a SESSUNE


acompanham a guinada progressista, alinhada com o projeto societário da classe do
trabalho, que entra em refluxo em fins dos anos 1980 e começo dos anos 1990, num
momento histórico marcado pela consolidação do neoliberalismo e pelas crises do
Welfare State, do socialismo real e dos modelos analíticos, como mencionado
acima. Há que se recordar, contudo, que o cenário político dos anos 1990
igualmente foi marcado pelos desdobramentos da promulgação da Constituição
Federal de 1988 que, conforme Acosta (2005, p.333), levou à Intenção de Ruptura a
relegitimar o espaço ocupacional tradicional do Serviço Social, representado pelo
Estado e pelas suas políticas sociais, bem como a enfrentar à conjuntura regressiva
através da defesa da cidadania:

Esta reconciliação, por assim dizer, do Serviço Social com o Estado, como
seu espaço sócio-ocupacional, resulta do pacto constituinte, que ensejou a
aprovação da ‘constituição cidadã’ de 1988. Emerge deste pacto
democrático um Estado legítimo, que inaugura a possibilidade objetiva de
interromper o processo, de longa duração, de desenvolvimento reacionário
do capitalismo no Brasil (...). Assim, aquele espaço de trabalho, que a
‘intenção de ruptura’ tinha rejeitado, agora retorna relegitimado pelo pacto
constituinte de 1988, passando a ser valorizado como um espaço de
construção de ‘cidadania’. Pareceria que com esta nova constituição seria
possível finalizar o ciclo de longa duração de desenvolvimento ‘reacionário’
do capitalismo (e suas sequelas político-sociais e culturais), e iniciar um
caminho de desenvolvimento social ‘democrático’, o pressuposto
necessário, nesta formação social, rumo ao longo caminho para o
socialismo. Este pacto democrático, de 1988, leva, também, a uma
reorientação da crítica marxista no Serviço Social, que deixa de ter como
alvo o Estado e suas políticas sociais, para tornar-se reivindicador dos
direitos sociais e da cidadania, nos marcos deste novo Estado (reivindica-se
agora uma ‘cidadania regulada pelo Estado’). A crítica marxista passa a
relegitimar o espaço funcional-ocupacional das políticas sociais, a partir do
qual seria possível desenvolver uma prática profissional numa perspectiva
cidadã. Esta nova orientação se fortalece no curso dos confrontos com o
vendaval neoliberal dos anos noventa, que procura (e conseguia
parcialmente fazê-lo) reformar a constituição de 1988, para adaptar a
institucionalidade democrática do Brasil às novas exigências de integração
da economia nacional ao capitalismo globalizado, em particular, à fração
rentista do capitalismo monopolista, dominante, especialmente, no
continente latino-americano.

Finalmente, faz-se mister salientar que a redefinição da formação profissional


foi entendida como imperativa para o avanço do projeto ético-político. Isso se dá
porque, mesmo que o currículo mínimo de 1982 tenha buscado expressar os
progressos teóricos e políticos do Movimento de Reconceituação – numa superação
147

da fundamentação neotomista que vigorou até os anos 1960 na cultura profissional


–, ainda se detectavam lacunas graves como: ausência de tradição em pesquisa na
história do Serviço Social; precariedade das condições de trabalho docente no
ensino, na pesquisa e na extensão conforme a crise universitária; fragmentação da
estrutura curricular; falta de debruço sobre a origem de classe e o gênero feminino
predominante da categoria; e insuficiências no trato da relação entre formação
profissional e mercado de trabalho. Nesta direção, Carvalho (1993) levanta as
requisições necessárias para que a formação profissional em Serviço Social de
então se atualizasse a contento: fomento de condições objetivas para preparo de
assistentes sociais críticos, comprometidos e conscientes; elaboração de proposta
profissional que assegure intervenção na realidade brasileira; valorização da
investigação como estratégia primordial; utilização das teorias como instrumental de
análise da conjuntura nacional, considerando as características regionais e locais;
garantia de qualificação teórico-metodológica sólida em prol de um exercício
profissional autônomo; desenvolvimento de política de capacitação docente para
responder à altura a nova formação profissional; e, por último, desenvolvimento de
política de extensão que inclua a categoria na nova formação profissional em
aliança com as entidades representativas.

No esboço de sua crítica sobre as orientações metodológicas defendidas na


literatura profissional, fundamentada numa pesquisa realizada pela antiga ABESS
que resultou na publicação do Cadernos ABESS n⁰3, Silva e Silva lembra que não
obstante o currículo mínimo de 1982 ter estabelecido a disciplina de Metodologia do
Serviço Social – no lugar das disciplinas tradicionais de Serviço Social de caso, de
grupo e de comunidade –, os dualismos profissionais clássicos, como “Serviço
Social tradicional versus Serviço Social reconceituado; teoria versus metodologia”
(idem, p.229), se mantêm, como veremos, sedimentando determinadas tendências
no ensino da nova disciplina. A primeira delas é a sobreposição segmentada dos
conteúdos que resulta em confirmação do ecletismo – em vez de ratificar o
pluralismo208 – visto que o marxismo é transmitido mais como um metodologismo

208
Quando o assunto é formação profissional, é recorrente na literatura a preocupação em distinguir
pluralismo e ecletismo. Coutinho (1991, p.14) alerta que, no campo epistemológico, há que se
atentar para não forçar a reunião de pontos de vista inconciliáveis – e aqui, para além da ciência, se
incluem as visões de mundo e seus valores –, atributo do ecletismo, porque pluralismo é “sinônimo
de abertura para o diferente, de respeito pela posição alheia, considerando que essa posição, ao nos
148

(ao lado dos referenciais positivista e fenomenológico) do que uma teoria social. A
segunda tendência diz respeito à dificuldade de se ensinar a proposta metodológica
de ruptura, que acaba se atendo a um compromisso com a conscientização e a
mobilização dos usuários, inclusive através de uma compreensão maniqueísta sobre
os currículos antigo e novo – como se o primeiro fosse mau e o segundo bom – que
compromete a formação profissional:

A oposição do velho e do novo, nesses termos, pode confundir proposições


meramente modernizadoras com o novo, bem como estabelecer a relação
dos conteúdos tradicionais com os novos conteúdos de forma mecanicista,
justaposta e fragmentada. Os novos conteúdos são trabalhados sem
aprofundar o significado da ruptura com os velhos procedimentos
metodológicos, e as metodologias se configuram de forma justaposta e
etapista, indo do tradicional ao reconceituado, sem que sejam explicitadas
as matrizes que informam as diferentes perspectivas (SILVA E SILVA,
2007, p.230).

A terceira tendência no ensino da Metodologia do Serviço Social se refere à


restrição do conteúdo da metodologia a uma única disciplina, sem o devido
alinhamento com o currículo na sua totalidade. Isso gera, por exemplo,
preponderância do discurso teórico com prejuízo da unidade entre teoria e prática,
além do hiato entre metodologia de ação e metodologia de conhecimento. A quarta
tendência identificada na pesquisa nacional da ABEPSS envolve o intuito de
superação do tecnicismo, mas ainda com vários limites nas estratégias de ação

advertir para os nossos erros e limites, e ao fornecer sugestões , é necessária ao próprio


desenvolvimento da nossa posição e, de modo geral, da ciência”. No Caderno ABESS n⁰3, voltado
para o debate sobre a metodologia na profissão, por exemplo, se acrescenta que o ecletismo resulta
da tradição de conciliação política da história política brasileira, como estudamos no capítulo 2.
Adverte-se também que o rompimento com ele e com o conservadorismo tradicional do Serviço
Social, que prende os profissionais à condição de técnicos limitados ao êxito imediato de suas ações,
depende de aprimoramento intelectual. Finalmente, trata-se da importância do pluralismo para a
maturidade da profissão: “O que a investigação mostra é que recuperar o pluralismo é ter claro que
no interior do Serviço Social existem diferentes maneiras de compreender a sociedade, de interpretar
a sociedade matizada pelas concepções de corte positivista e histórico com suas variadas
diferenças. Não era só um marxismo, como dentro do veio da corrente positivista há diferentes
expressões. Não se trata de colocar uma vertente como a verdade. Mas de mostrar a necessidade
do debate para recuperar as diferenças. Não se trata de instalar um confronto como briga, mas o
confronto do debate intelectual. É necessário sair de uma apreciação moralizadora das concepções
da teoria do Serviço Social, inclusive do tradicional. É necessário o debate intelectual sobre as
diferentes concepções que estão amarrando e presidindo a questão da Metodologia. Os assistentes
sociais têm pouca tradição do debate intelectual, talvez pela visão doméstica da profissão, como se
fosse uma grande família onde todos deveriam pensar igualmente” (ABESS,1995, p.75).
149

profissional para apreensão intelectual do lugar do instrumental e,


consequentemente, do significado deste na formação profissional. Constatamos,
deste modo, dificuldades no currículo claramente decorrentes do sincretismo teórico,
expressão do sincretismo da prática indiferenciada, de acordo com Netto (2006a):

Nas escolas em que se reconhece o estatuto do Serviço Social como


dependente de uma teoria social, sem prejuízo da sua especificidade
profissional (posta a partir da divisão social do trabalho e referenciada pela
sua dimensão interventora), verificam-se frequentemente situações
embaraçosas: admite-se que o referencial teórico-metodológico, crítico-
dialético seja um substrato necessário, mas insuficiente, e que é preciso
uma metodologia que dê conta da prática profissional. Então, pesquisa-se, a
partir da sistematização desta, o que seria a ‘metodologia profissional’ – e,
muitas vezes, retorna-se ao enfoque tradicional (tripartite: Caso, Grupo e
Comunidade) numa abordagem ‘crítica’. Daí decorre que as estratégias de
intervenção são tomadas como a Metodologia do Serviço Social (com
frequência, esta postura está conectada à concepção de uma especificidade
profissional que se supõe fundada num objeto próprio). Considera ainda
que, o traço embaraçoso desta situação é flagrante: expulso pela porta da
frente o procedimento tipicamente neopositivista (a teoria própria e
específica), ele retorna pela entrada de serviço (a ‘metodologia profissional’
que, de fato, leva a identificar sistematização da prática com elaboração
teórica).
As confusões daí derivadas já assinaladas em outros momentos deste
relatório são graves. Por exemplo, das grandes matrizes da teoria social
(marxismo, positivismo, neopositivismo e, subsidiariamente, as impostações
compreensiva e fenomenológica) se deduzem ‘metodologias’ profissionais,
com todas as suas consequências na instrumentalização técnica (por
exemplo, direcionamentos ‘dialéticos’, ‘funcionalistas’ ou ‘fenomenológicos
da entrevista) (ABESS, 1995, p.88-89).

A seguir, resgataremos os diversos avanços do projeto ético-político


profissional que conquistou hegemonia durante os anos 1990, tanto na organização
política da categoria, quanto nos parâmetros jurídico-profissionais e na produção do
conhecimento em Serviço Social. Sem dúvida, tais progressos apontaram para o
enfrentamento do conservadorismo, mas não para a superação dos sincretismos
científico e ideológico, incluso aqui o ecletismo. Deve-se também considerar os
esforços que ainda são necessários para que os assistentes sociais discirnam com
mais acerto, não apenas a relação entre teoria e realidade, mas também os
caminhos teórico-metodológicos para o exercício profissional nesta última,
reconhecendo, de partida, os três grandes determinantes históricos do sincretismo
da prática profissional: a “questão social”, o cotidiano e o tipo de intervenção,
150

caracterizado pela “manipulação de variáveis empíricas de um contexto


determinado”.

4.2. A guinada do projeto ético-político profissional

Antes da retomada dos momentos e frutos da trajetória do projeto profissional


crítico, faz-se mister elucidar que o termo “ético-político” é utilizado porque tal projeto
diz respeito a uma projeção coletiva que agrega sujeitos em torno de uma dada
valoração ética, estreitamente ligada a um projeto societário em disputa com outros
desta magnitude (BRAZ, 2008). Netto (1999) é quem introduz o debate sobre
projetos individuais, coletivos e societários para aclarar o que seja um projeto
profissional. De acordo com seu raciocínio, projetos individuais e coletivos são
antecipações ideais de uma finalidade que se quer alcançar, com invocação de
valores que as legitimam e a escolha de meios para atingi-las. Os projetos
societários, por sua vez, são projetos coletivos macroscópicos e de classe que
reivindicam um tipo de sociedade a ser erguido. Quanto aos projetos profissionais, o
autor explica que estes são projetos coletivos constituídos por uma categoria através
de suas entidades profissionais e indicam: a auto-imagem de uma profissão, com
elenco de valores, objetivos e funções; requisitos teóricos, institucionais e práticos
para o exercício; normas para o comportamento dos profissionais; e balizas para
relação com usuários, outras profissões e organizações de toda ordem.

Como é sabido, os empenhos consubstanciados pela perspectiva de Intenção


de Ruptura geraram frutos extremamente relevantes para o Serviço Social brasileiro.
Dentre estes, os documentos profissionais do Código de Ética Profissional de 1993,
da nova Lei de Regulamentação da Profissão do mesmo ano 209 e das Diretrizes
Curriculares de 1996 coordenadas pela ABEPSS exprimem de maneira consistente

209
O sítio eletrônico do Conselho Federal de Serviço Social esclarece que a primeira lei de
regulamentação profissional – Lei 3252, uma das primeiras da área social no país – foi aprovada em
27 de agosto de 1957, tendo sido regulamentada em 15 de maio de 1962 através do Decreto 994,
que postulava a fiscalização do exercício profissional a cargo do Conselho Federal de Assistentes
Sociais (CFAS) e dos Conselhos Regionais de Assistentes Sociais (CRAS). Foi no I Encontro
Nacional CFESS/CRESS no ano de 1966 que se passou a reconhecer os limites desta legislação,
particularmente no que se referia às atribuições profissionais. Todavia, os trâmites legislativos se
deram morosamente até a aprovação da Lei 8862 em 7 de junho de 1993 (CFESS, 2016a).
151

a essência do chamado projeto ético-político profissional. Como foi visto


anteriormente, tal projeto possui raízes na perspectiva de Intenção de Ruptura da
renovação profissional210, bem como estruturação efetiva na transição dos anos
1970 para os anos 1980. Vale lembrar que se trata do período do esgarçamento da
ditadura e concomitante reação do movimento sindical e de demais grupos da
sociedade brasileira, como associações de moradores, estudantes, mulheres,
intelectuais e de instituições – a exemplo da Ordem de Advogados do Brasil (OAB) e
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) - em prol da redemocratização no país
(NETTO, 1999).

Sob esta conjuntura nacional, o fortalecimento da organização política da


categoria profissional foi alavancada por suas entidades sindicais, sob direção da
Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais
(CENEAS) e, a partir de 1983, da Associação Nacional dos Assistentes Sociais
(ANAS). Isso significou um dos primeiros desdobramentos explícitos do projeto de
ruptura. Para além do papel aglutinador interno na articulação com a Associação
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), o Conselho Federal
de Serviço Social (CFESS) e a Subsecretaria de Serviço Social na UNE
(SESSUNE), hoje Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO), a
CENEAS/ANAS, filiada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), fez parte de todo
o processo de construção do novo sindicalismo. Este empreendeu lutas gerais, nos
planos econômico e sindical, por direitos e políticas sociais. Os rebatimentos para a
categoria profissional são consideráveis: aprofunda-se a consciência da condição de
trabalhador assalariado e do compromisso com os trabalhadores, além do
envolvimento com as greves coletivas (ABRAMIDES e CABRAL, 2009).

No ano de 1989 a ANAS é extinta por unanimidade na IV Assembleia


Nacional Sindical na cidade de Campinas, após amadurecimento nos espaços
deliberativos da CUT de que a organização por ramo de atividade econômica (e não
mais por categoria) seria a melhor alternativa para a luta do movimento sindical.

210Embora afirme que o Projeto Profissional de Ruptura se eleva entre os anos intensos de 1960 e
1964 no Brasil, Silva e Silva (2007, p.101) pondera que neste intervalo “(...) não se identifica, ainda, o
que se possa denominar de um esforço de sistematização teórico-metodológica de um novo projeto
profissional para o Serviço Social”. É nos anos 1970, de acordo com Netto (1994), que tal esforço se
deslinda, como já foi desenvolvido aqui, e o Método Belo Horizonte torna-se uma primeira central
expressão.
152

Abramides e Cabral (2009, p.75) tratam sobre os fatores que definiram a


transitoriedade inconclusa que transcorreu em seguida e a criação da Federação
Nacional dos Assistentes Sociais (FENAS) no ano 2000:

De um lado, no plano das entidades da categoria, posto que: algumas


tiveram um esvaziamento, outras não fizeram o debate necessário com a
categoria para implementar a deliberação e cinco sindicatos se mantiveram
em funcionamento, passando por cima da deliberação. De outro lado, a
CUT recuou na implementação da estrutura sindical por ramos, limitando-
se essa construção a nível das confederações. Acrescentam-se, ainda, os
ataques a partir de 1989, com a reestruturação produtiva que coloca os
trabalhadores na defensiva, assim como a CUT vai perdendo seu vigor de
lutas, limitando-se aos processos de negociação, abdicando da ação direta.
Prevalece ainda uma concepção sindical majoritária, no âmbito social
democrata, sob a hegemonia da articulação sindical (expressão sindical da
corrente unidade na luta hegemônica do Partido dos Trabalhadores), que
adere a um sindicalismo cidadão [grifo das autoras], atado à
institucionalidade no período de FHC. Essa tendência hegemônica
estabelece um novo giro a partir do governo Lula em 2002, tornando-se
estadista e governista, no polo oposto a que foi concebida e consolidada
nos anos 80.

De acordo com Barroco (2005), a participação política foi decisiva para o


erguimento de uma nova moralidade profissional, apesar das insuficiências
representadas pelo militantismo. Este, a partir dos idos de 1960, empolgou
inicialmente os protagonistas da Intenção de Ruptura voltados para a educação
popular em favor da libertação dos “oprimidos”211. Ramos e Santos (2016, p.216)
reforçam o lugar da participação política, estimulada com vigor desde a década de
1980 pelas entidades da categoria, para o amadurecimento da profissão:

A participação política constitui-se um legado grandioso do Serviço Social


no Brasil. Aqui nos referimos diretamente, mas não exclusivamente, ao
protagonismo das entidades representativas da categoria (conjunto
CFESS/CRESS/ABEPSS/ENESSO) e a instituição de eventos, destinados
à reflexão crítica sobre a formação e o trabalho profissional, que reúnem a
base da categoria profissional. Torna-se relevante destacar que este
protagonismo político, seja de entidades, seja de alguns assistentes
sociais, não foi produzido de forma endógena à profissão. Destaca-se,
nesse processo, a interlocução com diferentes sujeitos políticos (segmentos
de outras profissões, movimentos sociais e partidos políticos), unificados
por um ideário de esquerda.

211
A inspiração na obra de Paulo Freire é emblemática neste quesito, conforme Quiroga (1991) e a
própria Barroco (2005).
153

Tal legado impresso no percurso do Serviço Social brasileiro – de atenção às


necessidades concretas dos sujeitos, com recurso à transmissão democrática e
revolucionária da humanidade212 e sem perda de autonomia –, concerne às
vanguardas da perspectiva de Intenção de Ruptura, que estabeleciam o pluralismo
político213 na categoria, conforme divulgavam o enfileiramento de seu projeto
profissional ao projeto societário – vinculado aos interesses das classes
trabalhadoras (RAMOS e SANTOS, 2016; NETTO, 1999).

Netto (2009, p.34) assevera que foram os avanços organizativos no âmbito


sindical que impactaram as demais entidades e fóruns da categoria, produto da
articulação política da vanguarda profissional que atuava em distintos espaços
ocupacionais. A antiga ABESS foi a primeira a demonstrar tais rebatimentos:

Assim é que, já na entrada dos anos 1980, na antiga ABESS foi possível
desalojar o conservadorismo (político e acadêmico), dar curso à elaboração
de consistentes projetos de formação profissional, redimensionando
efetivamente a qualificação acadêmica dos assistentes sociais e
procurando – é verdade que sem o mesmo êxito que no plano da formação
– a formulação de uma política de pesquisa (com a criação, na segunda
metade dos anos 1980, do CEDEPSS). Mais difícil foi a batalha para
sintonizar os conselhos profissionais (os antigos CFASS e CRASS) com as
mudanças emergentes a partir do III Congresso – entretanto, já na
transição dos anos 1980/1990, também neles o conservadorismo estava
deslocado.

No que tange especificamente às contribuições da ABESS/ABEPSS 214 para a


maturação do projeto ético-político do ângulo da formação profissional, é

212
Para mencionar esta herança progressista coletiva, que evidentemente se inspira no marxismo e
no socialismo, Ramos e Santos (2016) recuperam citação de Lúcia Barroco em seu artigo Barbárie e
neoconservadorismo: os desafios do projeto ético-político, publicado na Revista Serviço Social &
Sociedade n⁰ 106 de abril/ junho de 2011.
213
Ao versar sobre a possibilidade de posições políticas contestadoras que a Intenção de Ruptura
passou a garantir nos anos 1980, o que não representou ultrapassagem do conservadorismo dentro
da categoria profissional, Netto (1996, p.111) expressa o seguinte: “É correto afirmar-se que, ao final
dos anos oitenta, a categoria profissional refletia o largo espectro das tendências ídeo-políticas que
tencionam e animam a vida social brasileira. Numa palavra, democratizou-se [grifo do autor] a relação
no interior da categoria e legitimou-se o direito à diferença ídeo-política [grifo do autor]. Nunca será
exagerada a significação dessa conquista, num corpo profissional em que o doutrinarismo católico
inseriu, originariamente, uma refinada e duradoura intolerância”.
214
A Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social (ABESS) foi criada em 1946, dez anos após
a constituição do primeiro curso de Serviço Social brasileiro em São Paulo. No ano de 1998 é
154

indispensável, em primeiro lugar, recuperar a aprovação do novo currículo mínimo 215


na sua XXI Convenção. Esta contou com o envolvimento estudantil e expressou o
empenho inaugural, alicerçado no movimento da realidade brasileira, para
ultrapassagem da formação tecnicista tradicional, inspirada no Serviço Social norte-
americano216 e voltada para a integração social.

Por determinação do Conselho Federal de Educação, o novo currículo


mínimo deveria ser executado em dois anos, 1983/1984, e a entidade elencou como
estratégia a condução de uma pesquisa coordenada pelas professoras Alba Maria
Pinho de Carvalho(UFMA), Dilséa Adeodata Bonetti (PUC-SP) e Marilda Vilela
Iamamoto (PUC-SP) no intervalo entre 1983 e 1985, intitulada A formação
profissional do assistente social no Brasil: determinantes históricos e perspectivas.
Pretendia-se assegurar unidade na ordenação dos currículos plenos dos cursos do
Serviço Social brasileiro. A consolidação do projeto pedagógico crítico transcorreu
durante os anos 1980, particularizada pela busca continuada de resolução das
lacunas históricas, teórico-metodológicas e éticas. Como resultado, houve o
amadurecimento do significado social da profissão, como especialidade inserida na
divisão social e técnica do trabalho (ABREU, 2016; CARDOSO et al, 1997;
ABESS/CEDEPSS, 1997).

As diretrizes curriculares de 1996 partem deste acúmulo intelectual da


década de 1980 e avançam ainda mais. Vão na contramão do recrudescimento do
pensamento pós-moderno, de caráter pragmático e conservador, entre as ciências
humanas e sociais217, com a defesa de uma formação generalista promotora de três

reconfigurada e se torna Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS),


incorporando assim o Centro de Documentação e Pesquisa em Políticas Sociais e Serviço Social
(CEDEPSS), instituído em 1987 com o objetivo de articulação da graduação e pós-graduação, bem
como de estímulo à pesquisa e à produção do conhecimento (ABREU, 2016).
215
Este ficou conhecido como o currículo de 1982, em virtude da aprovação pelo Conselho Federal de
Educação naquele ano, de acordo com o esclarecimento de Abreu (2016).
216 Importante recordar aqui as técnicas de Serviço Social de Caso, Serviço Social de Grupo e

Serviço Social de Comunidade (ABREU, 2016 e AGUIAR,1982).


217
Ramos e Santos (2016, p.214) tratam do ethos pragmático que impera nos círculos acadêmicos
dos dias atuais e que no Serviço Social apresenta determinadas nuances: “Este tipo de pragmatismo
presente no universo profissional se vale de um discurso facilmente absorvido, sob as condições
objetivas vigentes, de que se perde muito tempo com fundamentos teórico-metodológicos e ético-
políticos nos cursos de graduação em Serviço Social. E, ainda, de que há visível distanciamento entre
o conteúdo programático do curso e a realidade do trabalho profissional. Dissemina-se, com força
ideológica, a noção de que os fundamentos instituídos no processo de renovação do Serviço Social e
aprofundados na trajetória da profissão são insuficientes ou mesmo incapazes de atender às
demandas do cotidiano profissional. Ademais, nas particularidades do trabalho do(a) assistente
155

competências interligadas: teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa. À


luz de precisos princípios218, as diretrizes curriculares em questão postulam que a
nova capacitação deve garantir:

1. apreensão crítica do processo histórico como totalidade;


2. investigação sobre a formação histórica e os processos sociais
contemporâneos que conformam a sociedade brasileira, no sentido de
apreender as particularidades da constituição e desenvolvimento do
capitalismo e do Serviço Social no país;
3. apreensão do significado social da profissão desvelando as
possibilidades de ação contidas na realidade;
4. apreensão das demandas – consolidadas e emergentes – postas ao
Serviço Social via mercado de trabalho, visando a formular respostas
profissionais que potenciem o enfrentamento da questão social,
considerando as novas articulações entre público e privado;
5. exercício profissional cumprindo as competências e atribuições previstas
na legislação profissional em vigor (ABESS/CEDEPSS, 1997, p.62).

Há que se salientar, ainda, a nova lógica curricular correlata, que passa a se


pautar em conhecimentos interdependentes traduzidos em três núcleos de
fundamentação da formação profissional, a saber: núcleo de fundamentos teórico-
metodológicos da vida social; núcleo de fundamentos da formação sócio-histórica da
sociedade brasileira; e núcleo de fundamentos do trabalho profissional. O primeiro
núcleo visa a esclarecer quanto ao ser social inserido na sociedade burguesa,
superando a rejeição ideológica de pensamentos sem crítica fundamentada e
pressupondo o trabalho como centro da reprodução da vida coletiva. O segundo é
voltado para o desvelamento da composição econômica, social, política e cultural da
sociedade brasileira, considerando o desenvolvimento capitalista no país, as
relações entre Estado e sociedade e o significado do Serviço Social nesta dinâmica.
Por fim, o terceiro núcleo enfoca o desenvolvimento da profissão como
especialização do trabalho; os fundamentos geradores da cultura profissional que se

social, o pragmatismo intenciona desqualificar justamente o que de mais crítico e emancipatório foi
possível construir na cultura profissional e, no seu lugar, valorizar e reconhecer como suficiente para
a intervenção cotidiana as instruções, indicações e marcos legais específicos de determinadas
políticas sociais, elaborados fora do circuito de debates e de formulação coletiva da área (...)”. As
autoras assinalam que, não raro, o ethos pragmático é acompanhado de um pessimismo “de tipo
irônico e/ou subserviente” quanto às possibilidades de materialização do projeto ético-político
profissional na realidade contemporânea.
218
Entre estes estão: adoção de uma teoria social crítica para captação da totalidade social;
superação da fragmentação de conteúdos na organização curricular; estabelecimento da
investigação e da intervenção como princípios formativos; exercício do pluralismo
(ABESS/CEDEPSS, 1997).
156

irradiam em determinados discursos e ações; e, ainda, a importância da atitude


investigativa para subsídio da intervenção profissional (ABESS/CEDEPSS, 1997).

Como os anos 1990 chegam profundamente retrógrados no Brasil, a direção


social da ABESS/ABEPSS, calcada numa perspectiva emancipatória, é duramente
abalada e as diretrizes curriculares se tornam, desta forma, contemporâneas de
grandes transformações operadas na produção, bem como da vida social em função
da reestruturação produtiva, da reforma neoliberal do Estado brasileiro e dos novos
tipos de enfrentamento da “questão social” de cariz filantrópico, que impactam as
demandas postas ao Serviço Social. Este cenário se agrava quando o Conselho
Nacional de Educação (CNE) deforma o conteúdo original destas diretrizes,
reduzindo teórico-metodologicamente e alterando ético-politicamente a proposta
inicial no ano de 2001219. É fundamental acrescentar nesta reflexão o drama do
ensino superior à mercê dos interesses empresariais, desde o governo de Fernando
Collor de Mello (1990-1992) até os governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-
1998; 1999-2002) com suporte jurídico da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) promulgada em 1996, que chancela o ensino à distância. A partir da
década de 1990, então, o ensino em Serviço Social sofre o fenômeno de
exponenciação dos cursos privados presenciais – com a projeção daqueles à
distância a partir de 2006 quando dos governos Lula – e os consequentes
aligeiramento e empobrecimento crítico destes, o que diminui significativamente a
autoridade política e ideológica da ABESS/ABEPSS sobre a graduação e a pós-
graduação220 (ABESS/CEDEPSS, 1997; ABREU, 2016; BRAZ E RODRIGUES,
2013).

Quanto às contribuições da ABESS/ABEPSS para a maturação do projeto


ético-político profissional do ângulo da produção teórica, Mota (2009) afirma que os
progressos da ABESS/ABEPSS, que introduziram a produção do conhecimento no e
do Serviço Social no erguimento de uma cultura política e teórica de esquerda no

219
Braz e Rodrigues (2013) corroboram para o entendimento de que a raiz deste problema advém do
próprio texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor, que substituiu os
currículos mínimos por frouxas diretrizes curriculares.
220
De acordo com pesquisa de Cristiana Costa Lima em sua tese de doutorado de 2014, defendida
no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão, o
Censo da Educação Superior de 2012 divulgado pelo MEC revela que, à época, 81% dos cursos de
Serviço Social eram oferecidos pela rede privada. É preocupante também o fato de que somente 25%
dos cursos presenciais são filiados a ABEPSS atualmente (ABREU, 2016).
157

país, contaram bastante com os efeitos da consolidação dos programas de pós-


graduação na década de 1970 e da instituição da subárea do Serviço Social nas
agências de fomento: do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico221 (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). A autora ressalta o destaque do Serviço Social brasileiro no
cenário profissional internacional dada sua dedicação intelectual, que supera o
escopo da ação profissional e sua dimensão técnico-interventiva sem mencionar a
tônica terapêutica tão comum em outros países da América Latina, Estados Unidos,
Canadá e Europa Ocidental.

Ademais, entre as conquistas relacionadas com a produção intelectual do


Serviço Social brasileiro, a autora enfatiza o crescimento de referências aos autores
da área do Serviço Social entre as ciências sociais; o aumento da presença de
pesquisadores do Serviço Social em centros de excelência internacional de
pesquisa; a próspera recepção do mercado editorial às produções profissionais; a
participação de assistentes sociais em conselhos editoriais de revistas até fora da
área específica; e, ainda, a absorção de intelectuais da área como líderes em
movimentos sociais, populares e sindicais. Abreu (2016) complementa ao lembrar
três espaços criados pela ABESS/ABEPSS que denotam seu papel de articulação e
organização de pesquisadores da área do Serviço Social, assim como de incentivo
ao debate acadêmico e político: o Encontro Nacional de Pesquisadores (ENPESS)
desde 1983; Cadernos ABESS instituído em 1986 que depois se tornaram Revista
Temporalis; e Grupos Temáticos de Pesquisa (GTPs) desde 2009, cuja finalidade é
exatamente a aproximação entre os pesquisadores dos diversos estados em redes
de pesquisa. A autora também realça a busca de interlocução da ABESS/ABEPSS
com as outras entidades da categoria e estudantis, tanto nacional quanto
internacionalmente – destaque para o compromisso com a ALAETS/ALAEITS e para
o estreitamento com cursos da Comunidade Europeia – como também com demais
entidades sindicais e de organização dos trabalhadores, como Associação Nacional
de Docentes do Ensino Superior (ANDES), o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) e Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS).

221
Antigo Conselho Nacional de Pesquisas que deu origem à sigla preservada após a substituição do
nome.
158

Como vimos anteriormente em trecho de Netto (2009), é na virada dos anos


1980 para os anos 1990 que o conjunto CFESS/CRESS222 demonstra
distanciamento político do conservadorismo223, municiando-se do amadurecimento
intelectual alcançado pela profissão. Barroco (2005, p.173174) aponta como as
inspirações na fonte clássica de Marx e na obra gramsciana permitiram uma
releitura das alternativas de ruptura e, desta maneira, uma superação gradativa do
mecanicismo, do moralismo e do voluntarismo ético-moral:

No âmbito da reflexão teórica, dentre as vias pelas quais se avançou neste


esforço de concretização do projeto de ruptura, cabe destacar a análise de
Mota (1984) sobre o trabalho profissional na empresa capitalista e o debate
em torno das políticas sociais (Faleiros, 19802) que, dadas as condições
sócio-políticas e econômicas próprias à crise da ditadura, evoluiu para a
recuperação da assistência numa perspectiva antiassistencialista (Sposati
et alii, 1985), envolvendo a discussão dos movimentos sociais, da
cidadania e da democracia. É também na década de 80 que o Serviço
Social se aproxima da discussão sobre a vida cotidiana através de autores
como Lukács e Heller, Goldman, Lefévre.

A autora pondera, entretanto, que algumas simplificações resistiram, como,


por exemplo, a identificação mecanicista do assistente social tal e qual intelectual
orgânico do proletariado, numa apreensão problemática de Gramsci. Isso se
comprova com o Código de Ética de 1986 e, como já vimos anteriormente, à luz de
Silva e Silva (2007). Constata, ainda, a ausência de uma reflexão ética permanente
no início da década de 1980, o que revelou o processo de implantação do novo
currículo mínimo entre 1982 e 1984, que não incluiu revisão das disciplinas de
Filosofia e Ética. Barroco arremata seu raciocínio, ao afirmar que a desconsideração
dos fundamentos ontológicos da teoria social de Marx neste período determinou
referências abstratas aos valores universais, sem contemplação da história e das
classes sociais. Tais insuficiências somente foram sanadas mais adiante, a contar

222
O Conselho Federal de Serviço Social é uma autarquia pública federal que possui a função
precípua de orientar, disciplinar, normatizar, fiscalizar e defender o exercício profissional dos
assistentes sociais brasileiros juntamente com os Conselhos Regionais de Serviço Social distribuídos
pelos estados. Sua instituição se deu em 1957 como Conselho Federal de Assistentes Sociais, dez
anos depois da homologação do primeiro código de ética profissional (BOSCHETTI, 2009).
223
Os conselhos de fiscalização profissional emergem durante a década de 1950 no país, quando o
Estado passa a regulamentar profissões consideradas liberais. Pautados inicialmente numa ótica
corporativa, burocrática e controladora, não gozavam de autonomia e apresentavam atividades
restritas à fiscalização propriamente dita e ao pagamento de contribuição compulsória (CFESS,
2016a).
159

do alerta que assistentes sociais e filósofos docentes fazem em favor desta reflexão
na formação profissional224. Deste modo, é apenas nos idos de 1990 que a ética sob
a tradição marxista logra incorporação pelo Serviço Social, dados os estudos,
sobretudo, da obra de György Lukács, já anunciados por Netto desde o começo da
década de 1980225.

Sendo assim, embora o Código de Ética de 1986 manifeste influência


marxista, seu conteúdo não ultrapassa o marxismo vulgar porque não considera as
mediações entre a economia e a moral, entre a política e a ética, entre a prática
política e o exercício profissional, reduzindo a ética aos interesses da classe
trabalhadora. Desta forma, em vez de o compromisso da categoria profissional ser
estabelecido com valores, o código se coloca como se a mesma fosse naturalmente
detentora de valores positivos, o que evidencia, de acordo com Barroco, uma
compreensão idealista e leiga do tema da alienação. Esta constatação essencial não
deprecia os progressos do documento na direção do rompimento com o
conservadorismo, tampouco exclui a clareza de que:

224 A autora menciona a importância das contribuições de Antônio Geraldo de Aguiar e Ivo Tonet
desde a implantação do novo currículo de 1982.
225 Barroco (2005, p.181) precisa a evolução do debate sobre a ética marxista no Serviço Social

brasileiro: “Desde os anos 80, a ontologia de Marx se apresenta na literatura profissional,


fundamentalmente através da obra de Netto e da interlocução com cientistas sociais e filósofos
estudiosos de Lukács, tais como Coutinho, Lessa, Antunes e Tonet. A assimilação da discussão
ontológica ocorre gradativamente, nos anos 80, orientada pelo tema do cotidiano, da reificação, do
método crítico-dialético. A partir dos anos 90 fica evidente uma ampliação dos recursos à filosofia
que, despontando em teses e artigos voltados à reflexão sobre o método crítico-dialético, a cultura, a
alienação, a práxis etc., aponta novas possibilidades para a discussão ética. Observa-se um esforço
na direção do resgate da herança filosófica de Marx através do recurso a Hegel, emergindo
produções apoiadas em Lukács, Heller, Mészáros, Habermas, entre outros”. Acosta (2005, p.335)
ainda acrescenta: “O Lukács, convocado pelo ‘projeto ético-político’, nos anos 1990, é o Lukács da
‘Ontologia do Ser Social’, lido contra [grifo do autor] Lukács da ‘História e Consciência de Classe’
(Lukács da fenomenologia do trabalho como mercadoria da sociedade burguesa), negligenciando a
relação de continuidade em relação à problemática da consciência na história [grifo do autor] e a
perspectiva da revolução social na totalidade da obra de Lukács. Com efeito, no Código de Ética de
1986 (uma ‘ruptura’ com os anteriores códigos de ética), estabeleceu-se o ‘compromisso com a
classe trabalhadora’, por parte dos assistentes sociais, que segundo Marilda V. Iamamoto (2003,
p.100) constitui uma ‘expressão tardia do debate da reconceitualização’ [grifo do autor] e, no código
de 1993, muda-se para uma perspectiva que tem como suporte uma ontologia do ser social (...), em
um movimento que parece transitar, num breve período de tempo, de uma perspectiva mais próxima
à ‘História e Consciência de Classe’ para uma outra, mais alinhada com a ‘Ontologia do Ser Social’.
Na concepção do ‘compromisso com a classe trabalhadora’, contida no Código de 1986, segundo
Iamamoto (ibidem), operava-se com uma concepção dualista (a ética proletária contra a ética
burguesa) e não com uma concepção de contradição social. No Código de Ética de 1993, a ética
funda-se sobre valores universais, sem, entretanto, definir o sujeito universal capaz de sustentar
esses valores. Contudo, está firmemente estabelecido nesse código, o reconhecimento do trabalho
como atividade que permite a superação da singularidade do indivíduo, ponto de partida no processo
de constituição da humanidade.”
160

(...) a insuficiente apreensão ética não equivale à ausência de


transformações ético-morais; tendo em vista as determinações que incidem
sobre o questionamento de valores e sobre a adoção de novos papéis e
princípios éticos, podemos considerar que, embora não sistematizados e
refletidos em sua significação, o ethos [grifo da autora] tradicional do
Serviço Social foi sendo negado na prática, através da vivência cotidiana
nas várias dimensões que rebatem na ação profissional, constituindo uma
nova moralidade profissional (BARROCO, 2005, p.178)

A atualização do Código de Ética de 1986 é cumprida com a aprovação do


Código em vigor de 1993, num cenário nacional de implantação da ideologia
neoliberal na administração pública; de convocação governamental da sociedade
civil para envolvimento no enfrentamento da “questão social” por meio da
“solidariedade” e da “responsabilidade social”; e, ainda, de reivindicação da ética na
política226. Os debates que nortearam a elaboração do novo código em 1992
assentaram o compromisso profissional com valores emancipadores, com a
competência derivada de aprimoramento intelectual permanente e com a qualidade
dos serviços prestados à população, ancorada na publicização dos recursos
institucionais e no estímulo à participação dos usuários nas decisões dos espaços
ocupacionais227. Tais discussões foram decisivas para que naquele mesmo ano o
assunto da ética passasse a integrar pela primeira vez as sessões temáticas dos
congressos nacionais da categoria profissional, no VII Congresso Brasileiro de
Assistentes Sociais (CBAS). Observa-se, também, que o número de artigos sobre
esta questão aumenta significativamente na Revista Serviço Social e Sociedade,
largamente legitimada no meio profissional pelas publicações do conhecimento
produzido na área (BARROCO, 2005 e NETTO, 1999).

O Código de Ética Profissional de 1993 explicita o acúmulo da reflexão


profissional dos anos 1980 e, mesmo constituindo resultado de discussões coletivas,
não tem o poder de homogeneizar as compreensões de Serviço Social da categoria.
Ao contrário, está sujeito a contradições e a reações antagônicas ao seu conteúdo.
Para Barroco (2005, p.204), o parâmetro ético vigente acaba como alvo dos setores

226
Em relação a este assunto, Barroco (2005) recorda o processo que levou ao impeachment do
presidente Fernando Collor de Mello no ano de 1992.
227
Quanto aos espaços ocupacionais dos assistentes sociais no Brasil, é importante mencionar as
áreas consagradas da saúde e da assistência social, mas também observar o crescimento das
demandas profissionais nas áreas sócio jurídica, sócio-ambiental, dos movimentos sociais, da
previdência social e da educação (BOSCHETTI, 2009).
161

conservadores tradicionais e igualmente dos setores pós-modernos, uma vez que


sua fundamentação – defensora de uma sociedade sem dominação e/ou exploração
de classe, etnia ou gênero, com o elenco da liberdade, equidade e justiça social
como valores fundamentais na perspectiva da democracia e da cidadania 228 – se
distancia tanto do liberalismo, quanto do humanismo cristão e do marxismo anti-
humanista:

Ao humanismo cristão porque não concebe uma ética essencialista, dada


por uma essência transcendental e predeterminada à história; ao
liberalismo porque não naturaliza os valores universais nem os concebe
como possibilidade objetiva universal na ordem burguesa. Supera o
marxismo anti-humanista porque repõe a ética no interior da práxis.

Na opinião de Netto (1999), o Código de 1993 representa o ponto mais


elevado da construção do projeto ético-político profissional. Assim, este adentra os
anos 1990 conquistando hegemonia na categoria profissional, tendo em conta o
desempenho proeminente de seus expoentes nos eventos profissionais e a
correspondência do conteúdo deste projeto com o processo histórico brasileiro de
direção democrática e popular, entre a derrocada da ditadura e a promulgação da
Constituição Federal de 1988229. Todavia, como já ressaltado neste capítulo, os
anos 1990 no Brasil – especialmente a partir do ano de 1995 - são caracterizados
pela introdução do neoliberalismo na cultura pública, cujos efeitos são devastadores
no campo da garantia dos direitos sociais. Aí, o Estado se desobriga
progressivamente de suas responsabilidades, conclamando a iniciativa privada e o
“terceiro setor” para assumir progressivamente o seu dever. Mesmo diante de
conjuntura tão ameaçadora às suas pretensões, o autor entende que este projeto
profissional crítico ao conservadorismo guarda uma incumbência central, que é
exatamente a de opor-se com qualidade teórica, política e social aos argumentos
neoliberais, baseado nos valores que propaga230.

228
Cf. Netto (1999) e Barroco (2005).
229
Boschetti (2009) enaltece a participação teórica e política da categoria profissional, tanto na
elaboração quanto na busca da concretização dos marcos legais democráticos – como a própria
Constituição Federal e as legislações sociais como Lei Orgânica da Saúde (LOS), Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS), Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto do Idoso.
230
Isto não quer dizer, entretanto, que outra direção social estratégica não possa substituir a atual,
dada a conjuntura política cada vez mais regressiva após os anos 2000. De acordo com Rodrigues
162

É patente a contribuição do conjunto CFESS/CRESS na maturação do novo


projeto profissional através das alterações efetuadas nos códigos de ética de
1975231 e de 1986. Contudo, ela vai além, como comprova o novo desenho da
fiscalização profissional fundamentado na Lei 8662/93 (que explicita mais
claramente as competências e atribuições privativas dos assistentes sociais
brasileiros) e no Código de Ética de 1993. Também se comprova em outros
instrumentos normativos, tais como: o Estatuto do Conjunto, os Regimentos
Internos, o Código Processual de Ética, Código Eleitoral, as resoluções do
CFESS232 e a Política Nacional de Fiscalização233 (CFESS, 2016a).

(2016), o neoliberalismo entre nós ganhou uma versão petista nos governos Lula de 2003-2006 e
2007-2010 bem como no governo Dilma entre 2011-2016, caracterizada simultaneamente pela
manutenção da política macroeconômica adotada por Fernando Henrique Cardoso e pela
preocupação “sistemática e intencional” com os mais pobres (o que não resultou em feitos
progressistas mais contundentes, como se observou em outros governos latino-americanos como os
de Chávez, Morales e Kirchner). Na realidade, para o Serviço Social brasileiro, a ascensão do PT ao
poder significou um grande desafio ético-político, com destaque para a área da assistência social, já
que no percurso de enfrentamento de seu passado conservador a história deste partido foi muito
próxima e inspiradora. A pesquisa realizada pela autora, fundamentada em documentos e conteúdos
de debate desde o ano de 2003, revelou que o desafio foi bem vencido pelas vanguardas
profissionais, uma vez que as entidades representativas não alteraram sua agenda de lutas em nome
de um “possibilismo político” (o que não quer dizer que seja consenso entre estas vanguardas a
defesa da seguridade social à luz do projeto ético-político, tampouco a concepção de assistência
social nem sempre compreendida como estruturalmente compensatória). Contudo, esta conclusão
importante não invalida a análise de “(...) o que a conjuntura aberta em 2003 vem demandando é um
Serviço Social que, funcionando como uma espécie de emergência social, opere com destreza os
indicadores de gestão e monitoramento da pobreza, mostrando-se, assim, funcional a um Estado
assistencial-penal (idem, p.47).
231
Os códigos de ética profissionais de 1947, 1965 e 1975 apresentam inspiração no humanismo
tradicional e, portanto, uma visão idealista da realidade e uma compreensão do assistente social
como técnico neutro, conforme as influências doutrinário-teóricas refletidas na profissão desde seu
surgimento no Brasil (BARROCO, 1996).
232
Dentre elas, destacamos: Resolução nº 627/2012 - Dispõe sobre a vedação de utilização de
símbolos, imagens e escritos religiosos nas dependências do Conselho Federal, dos Conselhos
Regionais e das Seccionais de Serviço Social; Resolução nº 615/2011 - Dispõe sobre a inclusão e
uso do nome social da assistente social travesti e do(a) assistente social transexual nos documentos
de identidade profissional; Resolução nº 572/2010 -Dispõe sobre a obrigatoriedade de registro nos
CRESS de assistentes sociais que exerçam funções ou atividades de atribuição da profissão, mesmo
que contratados sob a nomenclatura de "cargos genéricos"; Resolução nº 569/2010 -Dispõe sobre a
vedação da realização de terapias associadas ao título e/ou ao exercício profissional do assistente
social; Resolução nº 533/2008 – Dispõe sobre a regulamentação da supervisão direta de estágio e
Resolução nº 493/2006 - Dispõe sobre as condições éticas e técnicas do exercício profissional do
assistente social (CFESS, 2016c).
233
Esta foi instituída através da Resolução CFESS n⁰382/99, num novo entendimento da orientação e
da fiscalização profissionais como atuação política, pedagógica e disciplinadora relacionada à
afirmação dos princípios da profissão e das lutas democráticas. Foi depois revista e atualizada na
Resolução CFESS n⁰ 512/2007.
163

Com agentes fiscais e demais membros das Comissões de Orientação e


Fiscalização (COFIs)234 dos CRESSs capacitados técnica e politicamente, a
fiscalização profissional vigente intenta prevenir contra a violação da legislação
profissional através da afirmação dos princípios e compromissos conquistados,
implementando ações que, a contar da aproximação junto às particularidades
institucionais, permitam criar parâmetros normativo-jurídicos reguladores do
exercício profissional. Os seus objetivos principais conforme a Política Nacional de
Fiscalização (PNF) são os seguintes:

I. Direcionar a ação fiscalizadora dos CRESS, na perspectiva da


consolidação do projeto ético-político do Serviço Social, conforme os
princípios do Código de Ética Profissional;
II. Nortear o exercício da fiscalização da profissão de Serviço Social,
tendo em vista a garantia da qualidade dos serviços profissionais
prestados à população usuária;
III. Estabelecer estratégias que possibilitem a garantia da fiscalização
consoante às exigências da profissão e da sociedade;
IV. Articular a ação de fiscalização da COFI com as lutas políticas gerais
assumidas pela categoria e pelos movimentos sociais, na perspectiva
da defesa das políticas públicas e da garantia dos direitos sociais;
V. Sistematizar as ações que permitam a articulação da fiscalização do
exercício profissional ao processo de identificação e legitimação do
Serviço Social junto à sociedade;
VI. Potencializar o processo de publicização da direção social da
profissão a fim de permitir que a ação legitimadora e fiscalizadora do
Serviço Social possa ser ampliada também aos seus usuários e ao
conjunto da sociedade.

Segundo Boschetti (2009), o Serviço Social é a única profissão no Brasil que


possui uma estrutura institucional que une entidades de formação (ABEPSS e
ENESSO) e do exercício profissional (Conjunto CFESS/CRESS), o que permitiu o
alcance de uma unidade no projeto ético-político – verificada nas diretrizes
curriculares, na lei de regulamentação profissional e no código de ética em vigor.
Braz (2008) ratifica esta visão da autora ao identificar que o novo projeto profissional
se materializa em três dimensões articuladas: dimensão da produção do
conhecimento afinada com o pensamento social crítico; dimensão político-
organizativa da profissão representada pelos avanços resultantes dos fóruns do
Conjunto CFESS/CRESS, da ABEPSS e da ENESSO; e dimensão jurídico-política
da profissão relacionada com o aparato de leis, resoluções, documentos e textos

234
A composição mínima da COFI deve contar com um conselheiro coordenador, agentes fiscais
concursados e assistentes sociais de base inscritos no CRESS (CFESS, 2016b).
164

políticos, produzidos internamente e nacionalmente – a exemplo do capítulo da


Ordem Social da Constituição Federal de 1988 – que iluminam o exercício
profissional na viabilização de direitos por meio das políticas sociais.

4.3. Desafios do Serviço Social contemporâneo e sincretismo

Após o breve resgate do percurso do projeto profissional crítico no Serviço


Social brasileiro, cumpre identificar os grandes desafios postos à sua vitalidade na
contemporaneidade, bem como à persistência do sincretismo nos seus rumos. Para
Netto (1996), em primeiro lugar, a preocupação com a legitimidade social da
profissão mantém sua pertinência uma vez que, se ainda não a logramos junto à
população usuária como almejado nos anos 1980235, apesar dos passos relevantes
contra o conservadorismo, tampouco ela está assegurada nas áreas de intervenção
cada vez mais disputadas com outros profissionais conforme a lógica da divisão do
trabalho. Isso solicita o fomento de novas competências sociopolíticas e teórico-
instrumentais – que dependem de investigação, produção de conhecimento e
caminhos para sua instrumentalização - em prol de (re)legitimações profissionais.

Como indicamos no capítulo 1 e no início deste, no raciocínio do autor,


apesar de o acúmulo intelectual da profissão ser indiscutível nos anos 1990, este
ainda está aquém da velocidade das transformações societárias e da gama de
experiências no exercício profissional236. Netto aponta que ainda são escassos os
espaços para socialização destes avanços, o que tem incrementado seriamente a
distância entre as vanguardas acadêmicas e o conjunto da categoria profissional.

235
Sobre esta questão, o autor assinala o seguinte: “Já em 1981, Iamamoto demonstrava que a ‘crise
de legitimidade’ do Serviço Social consistia na assimetria da sua demanda por parte das classes
sociais fundamentais: a profissão, caucionada pelas classes dominantes em função do
conservadorismo (político, mas igualmente teórico e operativo), não contava com a mesma caução
por parte dos seus usuários, inseridos majoritariamente nas classes e camadas subalternas
(Iamamoto, 1992). Decorridos quinze anos dessa análise, os termos da questão foram alterados –
mas o problema permanece em aberto” (NETTO, 1996, p.108).
236
A respeito da importância do conhecimento atualizado sobre a realidade social para o Serviço
Social, Netto (idem, p.124) registra que: “as possibilidades objetivas de ampliação e enriquecimento
do espaço profissional, com a incorporação de novas questões ao seu âmbito de intervenção
institucional, só serão convertidas em ganhos profissionais (ou seja: convertidas em realidade) se o
Serviço Social puder antecipá-las, com a análise teórica de tendências sociais que extrapolam as
requisições imediatamente dadas no mercado de trabalho”.
165

Segundo tratamos antes, com Braz e Rodrigues (2013) e Rodrigues (2016), o


aprofundamento da cultura neoliberal ao longo dos anos 1990 e 2000 impactou
fortemente tanto o mercado de trabalho quanto a formação em Serviço Social, que
se proliferaram na contramão das defesas do projeto ético-político. E embora a
legitimidade da atuação profissional tenha sido ratificada neste contexto histórico, o
contato entre as vanguardas e a maioria da categoria profissional regrediu ainda
mais, em razão da explosão dos ensinos privado e à distância implementada pela
contrarreforma universitária.

Obviamente, novas competências que garantam respostas mais hábeis e


legitimadas dependem da qualidade da formação profissional, que é bastante
atravancada pelo sucateamento da universidade pública bem como pela reprodução
de costumes atrasados da ditadura – como o burocratismo – e dos anos 1980 –
como o ‘populismo acadêmico’ – em seu interior. Netto (1996) reconhece o papel
fundamental dos assistentes sociais docentes na condução da formação
profissional, mas levanta duas realidades que agravam consideravelmente o seu
cenário, justamente em tempos de chamado ao aprimoramento intelectual – em
consonância com a maioridade teórica atingida pelo Serviço Social: a modificação
no perfil socioeconômico dos estudantes, provenientes cada vez mais dos estratos
médios e baixos urbanos, e nítido empobrecimento da sua bagagem cultural.
Ademais, o autor expressa a ameaça sofrida pelo perfil generalista da graduação
contemporaneamente, o que pode levar a formação a se limitar a determinadas
áreas de atuação desde o seu início. Além disso, há problema de sua redução a
uma capacitação meramente técnico-operativa, que menospreze a maioridade
intelectual alcançada pelo Serviço Social, e da necessidade premente de inclusão
dos assistentes sociais graduados nas políticas da formação profissional.

A contrarreforma universitária principiada na era FHC e acentuada com


inovações237 pelos governos de Lula permitiu o empresariamento da educação
superior a níveis tão impressionantes que denota uma oligopolização em processo a

237
Recordemos do Programa Universidade para Todos (PROUNI) [2004] sustentado em isenção
tributária ao mercado educacional em detrimento do setor público; do Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE) [2007] quando a política de privatização do ensino superior atinge seu auge e do
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)
[2007] que ataca a qualidade da formação num evidente estímulo à restrição ao ensino.
166

partir dos anos 2000238. A crise sofrida pelo setor privado presencial - firmado em
organizações não universitárias alheias à extensão e à pesquisa - ao final da
primeira metade destes anos concorreu para a expansão dos cursos de ensino à
distância. Os impactos deste cenário para o Serviço Social são alarmantes, pois o
número de matrículas à distância sob seu registro é um dos mais altos. Conforme
Braz e Rodrigues (2013), as causas para esta “expansão desenfreada e
deteriorada” podem guardar relação com os custos (bem) menores de manutenção
para os cursos da área, inclusive com reconhecimento científico considerado
pequeno ou recente, e com a natureza interventiva da profissão, que parece indicar
uma aptidão natural a um ensino instrumental. Além disso, favorece a ilusão de
rápida empregabilidade dos alunos. Os autores salientam também que as
modificações implementadas no mercado de trabalho a partir de 2004, em função da
configuração da Política Nacional da Assistência Social (PNAS), corroboram para a
mercantilização desqualificada239 dos cursos de Serviço Social.

Aliás, no campo do exercício profissional, Netto (1996) detecta que, apesar


de o mercado nacional de trabalho permitir experiências arrojadas, como já dito
acima, a visibilidade destas permanece diminuta. Além disso, há a insatisfatória
relação entre as unidades de formação e os campos de intervenção, o que prejudica
o aprendizado com realidade e inovação, respectivamente. Pode-se mencionar
ainda as condições inadequadas de trabalho, que aumentam a insegurança na
atuação e favorecem uma postura defensiva e comprometedora de alargamento do
espaço profissional, tendo em vista os baixos salários, a competitividade com
demais profissionais e a própria herança conservadora.

238
Braz e Rodrigues (2013, p.268/269) trazem dados categóricos a respeito: “De acordo com
McCowan (2004 a e b), o Brasil já conta com três das seis principais empresas líderes de maior
proeminência na expansão mundial de ensino superior com fins notadamente lucrativos. São elas: a
Universidade Paulista (UNIP) que, ligada ao grupo Objetivo – uma cadeia de escolas de ensino
fundamental, médio e pré-vestibular – possuía, em 2004, 37 campi, 88.000 alunos de ensino superior
e - mesmo se autodenominando sem fins lucrativos, em sua personalidade jurídica - um movimento
anual de U$ 210 milhões; a Universidade Estácio de Sá, do fundador e proprietário João Uchoa
Cavalcanti Neto, que à época possuía 49 campi e 86.000 alunos e ambicionava expandir seus
negócios para África; e o Grupo Apollo, de origem norte-americana, com ramificações na China e no
Brasil – através da parceria com o Grupo Pitágoras – que dispunha, em 2004, de um movimento
financeiro anual de U$ 1,3 milhões e 200.000 alunos, somente na Universidade de Phoenix, nos
EUA”.
239
Neste quadro da formação profissional, é óbvio que a inspiração nas Diretrizes Curriculares da
ABEPSS, expressão do projeto ético-político, acaba significativamente ferida.
167

Em continuidade às suas observações sobre o mercado de trabalho, Netto


revela que está em curso a ênfase na especialização dos profissionais e o aumento
nas diferenças entre as condições de trabalho proporcionadas pelas instituições
públicas e privadas. O autor complementa que, sob seu ponto de vista, logo o
debate profissional seria parametrado pelas exigências imediatas do mercado de
trabalho porque: em razão das transformações societárias, os empregadores
tenderiam a pressionar por produtos mais palpáveis da intervenção profissional, em
sintonia com a reestruturação produtiva e a contrarreforma do Estado; os próprios
assistentes sociais acreditam que respostas prático-operativas, através da
manipulação de variáveis empíricas, resolvem melhor as dificuldades com a
legitimação social da profissão; e, por último, os progressos obtidos nos anos 1980
impelem o enfrentamento das “questões da prática”, uma vez que a ruptura com o
conservadorismo abarca também o desenvolvimento das novas competências
mencionadas. Aqui os desafios são enormes porque uma das dificuldades das
vanguardas da Intenção de Ruptura, desde os anos 1970, identificadas por Netto
(1994) é exatamente oferecer “indicações prático-profissionais de operacionalização
imediata”. Neste sentido, o autor tece uma projeção fundamental que demonstra que
o fortalecimento da cultura progressista no Serviço Social depende do erguimento
destas novas competências sem perda da criticidade:

imediatamente, as possibilidades objetivas de manutenção da demanda


social da profissão não se mostram ameaçadas, mas impõem ao Serviço
Social a necessidade de elaborar respostas mais qualificadas (do ponto de
vista operativo) e mais legitimidadas (do ponto de vista sociopolítico) para
as questões que caem no seu âmbito de intervenção institucional
(NETTO,1996, p.124).

Sob o ângulo da fundamentação teórica do projeto ético-político, bem


marcada pela aproximação com a tradição marxista, Netto indica que, a partir dos
anos 1990, se firma uma crítica indireta a ela no meio profissional em duas frentes
interdependentes: ou se reivindica “flexibilização” de sua influência a partir da
adoção de autores “da moda” que acarreta, com frequência, ecletismo com os pós-
modernos (crítica à “ortodoxia” – visto como dogmatismo - dos assistentes sociais
marxistas); ou se denuncia que a produção de conhecimento dos anos 1980 não se
168

ocupou das questões de gênero, de cultura, de “minorias” etc. (crítica às “lacunas” –


e não aos equívocos240 – das obras destes autores). A partir do reconhecimento da
direção social do projeto ético-político profissional contrária ao conservadorismo e
recém vinculada à modernidade, o autor afirmava, em fins dos anos 1990, que em
curto prazo a maior polêmica profissional se focalizaria no dilema entre “manter,
consolidar e aprofundar a atual direção estratégica ou contê-la, modificá-la e
revertê-la” (idem, p.117). Em seu desenvolvimento, Netto (idem, p.118) alerta que a
herança conservadora antimoderna do Serviço Social guarda potenciais
significativos para interlocução com a pós-modernidade nos dias atuais:

Talvez seja preciso recordar que a gênese e o desenvolvimento do Serviço


Social de origem católica (que, afinal, parametrou longamente o nosso
Serviço Social) foram decididamente antimodernos [grifo do autor]: a
profissão nasceu e se desenvolveu como parte do programa da
antimodernidade, reagindo à secularização, à laicização, à liberdade de
pensamento, à autonomia individual etc.; não por acaso, a direção social
estratégica dominante no seu interior vinculava-se a um projeto social e
político que recusava o liberalismo e o socialismo (projetos claramente
modernos [grifo do autor]; vinculava-se a um conservadorismo que, na
perspectiva do anticapitalismo romântico, jamais colidiu com engenharias
sociais ‘orgânicas’, de caráter corporativo.

Em conclusão de sua análise, Netto assinala que as vertentes profissionais


poderiam apresentar as seguintes configurações: a Intenção de Ruptura se manteria
na direção social da profissão; a antiga “Perspectiva Modernizadora” ganharia novos
ares com a influência neoliberal, reforçando seu traço tecnocrático; a perspectiva
denominada “Reatualização do Conservadorismo” pelo autor demonstraria sinais de
resistência na sua combinação eclética entre conservadorismo tradicional e
fenomenologia; o neoconservadorismo, calcado na pós-modernidade, validaria as
práticas tradicionais através de uma outra concepção de “cultura” e de defesas em
favor da refilantropização do social; e, por fim, se daria a emergência de grupos
filiados ao anticapitalismo romântico de inspiração católica e à rejeição das
bandeiras da modernidade por meio de um franco irracionalismo ou de um
240
Em nota de rodapé deste seu texto, que contém uma notável prospectiva para o Serviço Social
brasileiro, Netto (1996, p.114) tece um esclarecimento pertinente ao objetivo desta tese, que é
estudar a persistência do sincretismo após a renovação profissional, particularmente no percurso da
vertente da Intenção de Ruptura: “Não é esta a ocasião para avaliar a qualidade da produção dos
marxistas brasileiros no Serviço Social – ela também marcada por uma problemática que envolve
simplismos, ecletismos, interpretações vulgares etc.”
169

relativismo rudimentar. De acordo com o autor, ocorreria um combate teórico mais


ostensivo entre as ideias dos assistentes sociais alinhados com a Intenção de
Ruptura, com a antiga “Perspectiva Modernizadora” e com o neoconservadorismo,
para ele interessando vislumbrar se nesta disputa o Serviço Social acabaria mais
funcional ou não à sociedade burguesa.

Como se vem destacando nesta tese, durante a era Lula, numa segunda fase
do neoliberalismo no país, tanto o mercado de trabalho quanto a formação
profissional em Serviço Social experimentaram uma ampliação incontestável.
Todavia, este reforço de legitimação apresenta uma orientação política discrepante
do conteúdo do projeto ético-político, o que engrossa os obstáculos à sua
afirmação241. Mas os problemas não param por aí: a assistencialização da
seguridade social levada a cabo pela administração petista potencializou o aumento
fenomenal do contingente da categoria profissional sem alterar o padrão precarizado
de assalariamento dos assistentes sociais. Outrossim, as novas competências
exigidas neste contexto de gerenciamento do SUAS se revestem de um “caráter
coercitivo”, muito embora o discurso corrente negue a vigia da população usuária e
pregue a defesa do exercício do “empoderamento” dos sujeitos. Rodrigues (2012,
p.59) resume assim o peso destes tempos para a profissão:

O que interessa ressaltar aqui é o quanto o neoliberalismo de hoje parece


jogar, tal como a autocracia burguesa, para alterar a forma de ser e pensar
da profissão. Resguardadas as diferenças históricas entre os anos 1960 e
2000, que nos previne contra analogias indevidas – podemos asseverar
que as mudanças que se efetuam no âmbito da formação e do exercício
profissional a partir de 2003 sugerem um processo de alteração profissional
tão significativo quanto aquele ocorrido na conjuntura do pós-1964, quando,
ao modelar um país novo, o regime autocrático burguês impeliu o Serviço
Social a renovar-se.

Enfim, ratificamos a continuidade do sincretismo nos rumos do projeto


profissional ameaçado, com o resgate imprescindível das ideias de Costa (2009),
Souza (2016), Maranhão (2016) e Silva (2013). Preliminarmente, faz-se mister
reconhecer que o exercício profissional é atravessado por três grandes

241 Dentre as vanguardas profissionais, esta posição não é unânime, particularmente em meio
aqueles representantes que enaltecem os rebatimentos da estruturação do SUAS para o mercado de
trabalho e para a visibilidade da categoria de assistentes sociais.
170

determinantes históricos que lhe atestam uma estrutura sincrética: a “questão


social”, o cotidiano e o tipo de intervenção, caracterizado pela “manipulação de
variáveis empíricas de um contexto determinado”. A propósito, estes três elementos
que definem o sincretismo da prática se revelam durante toda a trajetória da
Intenção de Ruptura, inclusive quando do alcance da hegemonia pelo projeto ético-
político, com particular (e danoso) realce na gestão neoliberal do país em curso.

Uma vez que as políticas sociais integram o processo da rotação do capital242


e que recentemente foram conduzidas para a lógica do consumo através da
transferência de renda – em lugar da lógica dos direitos e serviços universais em
circunstâncias bastantes nocivas para os trabalhadores –, os desafios para o
Serviço Social se avolumam e tornam recorrentes impasses entre nós, como o
utilitarismo prático-teórico e a gestão da desigualdade social sob a acumulação
flexível estimulada por uma ideologia de “solidariedade cidadã”. Fica claro que a
resistência à “integração passiva e pragmática” às regras de mercado se subordina
a uma “desmistificação”, não só da reprodução da “questão social” e dos tipos de
enfrentamento/gestão da pobreza desencadeadas pelas políticas sociais na
atualidade, mas também do papel aguardado pelo Serviço Social neste cenário, que
não raro distoa da compreensão profissional individual e coletiva (BEHRING, 2012;
SILVA, 2013).

No fim das contas, o leque de possibilidades e limites do Serviço Social não


pode escapar da “prática do emergencial, do atípico e do ocasional”, nas palavras
de Costa, mesmo quando conseguimos como assistentes sociais desenredar o
“estranhamento social” engendrado pela ordem do capital. Aqui o estudo da teoria
social de Marx, bem como da tradição marxista, pode nos socorrer com autoridade,
como o percurso da Intenção de Ruptura demonstrou, de acordo com os
entendimentos de Silva (2013) e Souza (2016). Há que se confirmar que cabe a nós
um papel preciso - geneticamente ligado às formas de resposta à “questão social”
forjadas pelo Capitalismo Monopolista e atravessado pelo sincretismo da prática –

242
Behring (2012, p.177-178) esmiúça sobre esta participação: “Por meio da política social o Estado
realiza compras, contrata força de trabalho, pagando seus salários, transfere renda e até contrai
dívidas em seu nome, a exemplo de empréstimos internacionais brasileiros que são contraídos para
objetivos específicos da política social e que aparecem nas contas das políticas sociais brasileiras. A
política social, inclusive, transfere recursos para os bancos para gestão dos programas de
transferência de renda, como revela a pesquisa de Silva (2010 e 2012)”.
171

mas ainda pouco vislumbrado pela categoria profissional, que é a integralidade das
ações de uma dada política setorial243. Conforme Costa, o assistente social é,
assim, o principal “agente-trabalhador” do processo de saúde pública (a exemplo da
área onde efetuou sua investigação), considerando-se que a existência de seu
trabalho demonstra cabalmente como a população usuária não usufrui de acesso
aos serviços em igualdade.

Além disso, o trabalho do assistente social desnuda as determinações sociais


da doença e a tensão calamitosa entre condições de atendimento do serviço público
e efetivas necessidades de saúde dos sujeitos. Aguarda-se a intervenção do
assistente social em tudo que transtorne a qualidade do atendimento aos usuários e,
só por isto, seu papel já se confirma subalterno (porque impreciso, embora
indispensável) e polivalente dentro da instituição. Costa explicita também que tal
realidade de ofício causa constrangimentos quando o assistente social investe no
seu aprimoramento intelectual. Ele enfrenta inúmeras dificuldades de se municiar de
seus conhecimentos no cotidiano profissional, dada a multiplicidade e a gravidade
de contextos humano-sociais a que fica submetido, sem falar na sua própria
condição de trabalhador assalariado. Em relação a esta insuficiência de
sistematização crítica do exercício profissional, Maranhão (2016, p.196) expõe uma
opinião cara e convergente àquele pensamento de Netto sobre o quadro das
vertentes profissionais nos dias de hoje. O autor reflete como a ausência de debruço
teórico obscurece o desvelamento do significado social da profissão, aqui inclusa a
sua estrutura sincrética:

Essa característica tem impossibilitado a suspensão, mesmo que


temporária, dos elementos sincréticos da profissão e, por consequência,
também cria largos caminhos para a reposição contínua do
conservadorismo e do imediatismo presentes em amplos setores
profissionais. Paradoxalmente, o que se tem percebido é a ampliação do
pragmatismo profissional e a exaltação do ‘saber prático’ enquanto forma
de atuação mais eficaz e eficiente para a prática do assistente social. É
sempre bom lembrar que esse ‘saber prático’ frequentemente oscila entre

243
Costa (idem, p.348) esclarece esta função profissional, ao informar que: “(...) a participação dos
assistentes sociais nos processos de trabalho nas instituições de saúde tem a singularidade de
´repor´(ante a impossibilidade de recompor), com a sua ação, as lacunas de parcialização,
fragmentação, superespecialização e terceirização do trabalho”.
172

o racionalismo formal-abstrato, ancorado na divulgação do saber


puramente instrumental e técnico, e o puro irracionalismo, com sua
exaltação de um tipo de conhecimento que não tem nenhum compromisso
com a sistematização e a análise de dados da realidade social.

Como Souza (2016) elucida, malgrado os avanços substanciais do projeto


ético-político que oportunizaram o enfrentamento do ecletismo, as contradições do
exercício profissional – e aqui tratamos do sincretismo – não são passíveis de
liquidação, visto que é a manutenção da sociabilidade burguesa e de sua peculiar
divisão social e técnica do trabalho que animam tal escopo de atuação. Como a
produção do conhecimento envolve mais autonomia em relação ao sincretismo da
prática indiferenciada, pressionado pelas demandas imediatas do mercado de
trabalho, segundo o autor, pode ser através dela que distingamos com mais
acuidade o funcionamento das relações sociais capitalistas, assim como as
armadilhas do ecletismo daí derivadas. Esta tarefa – de superação dos sincretismos
teórico e ideológico sem resolução para o sincretismo da prática – exige disposição
e rigor, já que:

(...) a institucionalidade burguesa reforça, de maneira fetichizada, os


conhecimentos diretamente vinculados ao ‘fazer da prática’. Por essa via, a
prática sincrética tende a supervalorizar, como conhecimentos de fato
‘úteis’ para a prática, tão somente aqueles acumulados com a reiteração
dos padrões institucionais ou legais estabelecidos. Em equivalência, nota-
se certo menosprezo pela elaboração teórica dialética (idem, p.136).

Ou seja, novamente sob a ótica de Maranhão, o empenho teórico-


metodológico para desvelamento ontológico da realidade, a partir do enfrentamento
do conservadorismo, não pode ser banal244 se a intenção é descortinar
possibilidades interventivas que considerem, de antemão, a composição sincrética
do Serviço Social, indo além do burocracismo institucional.

Através de sua corajosa pesquisa junto aos assistentes sociais atuantes na


política de assistência social do estado de São Paulo e a cinco pesquisadores

244
O autor chega a demarcar que não basta substituir uma matriz teórica conservadora por outra
crítica ou mesmo mesclá-las ao gosto.
173

renomados da área, Silva (2016) confirma o quanto os laços entre ecletismo e


conservadorismo são densos e o quanto esta vinculação serve à razão instrumental,
além de se demonstrar no Serviço Social em várias dimensões, como temos visto
desde o capítulo 1 deste trabalho. O autor informa como na relação com a teoria –
que, ao não responder imediatamente aos profissionais, é considerada ‘fora da
realidade’ – já se percebe na profissão esta vinculação, que desnuda o sincretismo
e desafia a formação profissional, hoje bastante precarizada, nos seus intentos de
educação integral por meio do ensino, da pesquisa e da extensão. O autor alerta
para a deturpação do sentido generalista desta formação, pois o perfil de
profissional esperado não é o “faz tudo” ou o “teórico desnecessário”; é, sim, aquele
habilitado a identificar no real determinações que informam limites e possibilidades
objetivas para o exercício profissional. Vejamos as críticas categóricas de Silva
(2016, p.131) sobre o assunto:

A formação profissional generalista e particularizada em nível de Serviço


Social (tão necessária e cara aos intelectuais) torna-se uma capacitação
fragmentada, por temáticas, nada afeita e útil a uma abordagem sob o
ponto de vista da totalidade, de base ontológica, portanto incapaz de
apanhar as múltiplas e complexas determinações que explicam o exercício
profissional do assistente social e a ‘questão social’. A capacitação, nesses
termos, quando existe, serve para instrumentalizar primeiramente
demandas institucionais, hoje centradas nos núcleos familiares (em nome
da ‘emancipação’ das famílias e de seus membros) e nos programas
assistenciais (nas suas diversas formatações).

Ademais, Silva comprova como o sincretismo se faz presente não apenas nos
discursos dos profissionais. Ele se apresenta através de “confusões conceituais e
teóricas” – e, segundo ele, confusões estas “estimuladas pelo sincretismo que
compõe sua inserção no mercado de trabalho” (p.178) – mas igualmente na própria
PNAS, que revela mesclagem entre inspiração sistêmica e terminologias que
parecem denotar uma influência marxista, como “dialeticamente condicionadas”,
“mundo do trabalho” e “totalidade”; contudo, de fato não o faz.

A respeito, particularmente, do discurso dos assistentes sociais, que chegam


a diminuir o significado da profissão à assistência social, Silva (idem, p.183) traz
uma reflexão completamente necessária:
174

Além do manejo indiscriminado de tendências genericamente


caracterizadas como ‘sistêmicas’, inclusive sem o cuidado merecido por
essa tradição (vulgarizada em diversos cursinhos preparatórios de ‘terapia
familiar’ para atuar com núcleos familiares e seus indivíduos), o que impera
é um discurso genérico a favor da cidadania e da ‘inclusão socioeducativa
(?)’ dos usuários (tudo isso ‘abençoado’ – discursivamente – pelo Projeto
Ético-Político Profissional do Serviço Social!), proposta essa que se mostra
absolutamente incapaz de viabilizar os próprios pressupostos sistêmicos
idealmente comprometidos com a comunicação-interação entre as partes e
a sólida articulação entre elas visando um ‘equilíbrio dinâmico’. As
confusões se completam à medida que os profissionais acreditam que
estão viabilizando direitos sociais e emancipando socialmente os usuários
(sem terem muito claro do que se trata isso) e que a ‘questão social’ –
causada por um ‘desarranjo sistêmico’ – pode ser, enfim, equacionada por
meio de uma eficiente rede de atendimento.

Uma das preocupações do autor em sua obra é com a repetição inadequada


da ideia de emancipação humana pelos assistentes sociais quando o assunto é o
produto do exercício profissional. Com suas próprias palavras, o Serviço Social é
uma profissão “centrada no gerenciamento de programas e de projetos sociais
vinculados à administração da pobreza” (p.16)245. Por isso, Silva adverte para as
armadilhas clássicas do idealismo e do messianismo entre nós246 e ressalta o
significado dos governos Lula no aguçamento de tensões dentro da categoria
profissional, o que estimulou a crença de alguns de que era possível humanizar o
capital247:

O aprofundamento do paradigma monopolista-flexível no Brasil e sua


intensa objetivação a partir da segunda metade dos anos 1990, adensado
por sua face financeira, impactaram a materialidade do Serviço Social,
impuseram profundas alterações nas condições da classe trabalhadora,
nas suas organizações e no próprio mercado de trabalho do assistente
social (...). O ‘golpe de misericórdia’ viria em 2003 com a eleição de Lula

245
Na citação que se segue, Silva (idem, p.261), se explica: “Em claras palavras, não há como um
assistente social dizer que seu trabalho profissional não opera a política em curso e a gestão do
pauperismo no mundo burguês (por mais que o profissional não queira fazer isso), simplesmente
porque é exatamente por isso que a profissão existe e foi socialmente legitimidada como tal nesta
sociabilidade [grifo do autor] ”.
246
O autor traz uma indagação crucial em referência ao projeto ético-político que confere direção
social à profissão: “quais as condições objetivas para manter a proposta construída pelo Serviço
Social brasileiro nas três últimas décadas, radicalizando-a sem ceder às armadilhas messiânicas ou a
qualquer forma de abstração? Estaria essa “direção estratégica” condenada a esvaziar-se sob o
discurso genérico da cidadania e da emancipação política burguesa?” (idem, p.116).
247
Tanto Silva (2016) quanto Vasconcelos (2015) tratam da transformação de parte das vanguardas
profissionais em gestores do PT, o que significou para o Serviço Social um grande desafio ético-
político, como consideramos antes neste trabalho.
175

para presidente do Brasil e a captura definitiva de vários quadros de


vanguarda do Serviço Social para a esfera governamental, tendência que já
vinha em curso em diversas prefeituras petistas conquistadas com base no
novo arco de alianças nacionalmente expresso, em junho de 2002, na
conhecida ‘Carta ao Povo Brasileiro’.

Mesmo considerando o conjunto de contestações internas direcionadas ao


projeto ético-político profissional na contemporaneidade, marcada pela recuperação
das forças conservadoras, é inconcebível ignorar os feitos do projeto de ruptura
emergente ao longo da renovação profissional para o Serviço Social brasileiro. A
maioridade intelectual atingida pela profissão, em virtude da investigação marxista
cada vez mais rigorosa que se dedicou ao esclarecimento da inserção histórica do
Serviço Social no país – consideradas suas conexões com as políticas sociais
públicas e os movimentos sociais, num enfrentamento dos temas da democracia, da
cidadania e dos direitos (IAMAMOTO, 2008) –, garantiu um patrimônio combativo de
relevo do ponto de vista acadêmico e social, reconhecido na produção de
conhecimento, na organização política das entidades representativas, no elenco dos
referenciais ético políticos, no reestabelecimento da formação profissional e nas
escolhas prático-operativas dos assistentes sociais, como afirmamos no começo
deste capítulo.

Entretanto, é deveras preocupante como o novo perfil profissional construído


está ameaçado pelo contexto regressivo. Além disso, apesar de Ramos e Santos
(2016) alertarem para se evitar a capitulação fácil às pressões para simplificação
dos fundamentos teórico-metodológicos e ético-políticos conquistados pela
profissão248, bem como evitar versões atualizadas do Serviço Social tradicional –
como a moralização da “questão social” e o metodologismo ou o tecnicismo –, fato é
que o neoconservadorismo bateu forte às portas do Serviço Social brasileiro. Isso
trouxe uma conjuntura totalmente contrária àquela que permitiu a ascensão do
projeto ético-político profissional. Sendo assim, concordamos com Netto (2016) de
que urge um exame objetivo dos raios de penetração deste projeto na categoria, à
luz dos novos tempos, sob pena do afloramento de uma inflexão na vigente direção
estratégica.

248 Como demonstram certas visões economicistas, politicistas e eticistas.


176

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Importa resgatar neste momento que o objetivo da tese apresentada foi


examinar a persistência do sincretismo no Serviço Social após a sua renovação,
mais exatamente durante a trajetória da vertente Intenção de Ruptura, e que a nossa
hipótese era de que o sincretismo seguia como “fio condutor da afirmação e do
desenvolvimento do Serviço Social como profissão” (NETTO, 2006a, p.92) após os
anos 1960249, dado o reconhecimento de que a indiferenciação operatória
acompanha a história profissional no mundo. Finda a investigação , cumpre
manifestar que, se a profissão no Brasil logrou avanços inegáveis através da
consolidação do projeto ético-político profissional – na organização política da
categoria, nos parâmetros jurídico-profissionais e na produção de conhecimento –
que inclusive conferiram a ela visibilidade incomum em relação a outros países, por
seu turno o combate ao conservadorismo, transcorrido gradativamente, não foi
encerrado, tampouco houve a ultrapassagem do sincretismo – nas suas derivações
ideológica e científica – e de seu decorrente ecletismo250.

Uma primeira aproximação crítica à tese do sincretismo do professor


José Paulo Netto foi aqui desenvolvida na perspectiva de descobrir os meandros da
indiferenciação operatória do Serviço Social, que angustia os assistentes sociais em
sua atuação cotidiana. Diante disso, a pesquisa bibliográfica e documental apontou
que, apesar do salto representado pelo projeto ético-político no enfrentamento do
conservadorismo, os sincretismos científico e ideológico ainda marcam presença
entre os discursos e elaborações da categoria profissional, inclusas as suas
vanguardas.

249 Período-limite de análise considerado pelo autor em sua tese de doutorado, que pretendeu
oferecer “um quadro da constituição do Serviço Social tal como a profissão se articulou
‘tradicionalmente” (NETTO, 2006a, p.13).
250 Em nota de rodapé no capítulo 2, expusemos uma importante ideia de Netto a respeito: “(...) na

elaboração do saber, o sincretismo é a face visível do ecletismo [grifo do autor]; ou, se se quiser, o
ecletismo é o sincretismo do Serviço Social no nível do seu [grifo do autor] (de segundo grau) sistema
de saber” (NETTO, 2006a, p.147).
177

Tal raciocínio, possibilitado pela pesquisa empreendida, guarda vínculo com a


constatação de que a determinação ontológica do sincretismo da prática,
relacionada com o sincretismo operado na realidade macroscópica pela reificação
burguesa251, não é de simples decifração para os assistentes sociais. Sua parca
herança intelectual, mesmo após o início da interlocução com a tradição marxista
(lembremos que o primeiro contato foi com o marxismo vulgar), não se resolveu
plenamente252. Isto não significa desvalorizar o respeitável patrimônio erguido pelo
projeto ético-político, bem consubstanciado na apreensão enriquecida do significado
social da profissão e da realidade social assim como no afinco pelo rigor teórico que
traz (SILVA e SILVA, 2007). Mas, significa reconhecer os seus limites e obstáculos
postos por um passado profissional não ultrapassado por completo 253 e, ainda,
reforçados por elementos da contemporaneidade da dinâmica capitalista 254,
particularmente na conjuntura brasileira sob o governo ilegítimo de Temer – que está
aprofundando a contrarreforma do Estado brasileiro e satisfazendo praticamente
todos os interesses do capital financeiro.

Como foi explicitado no capítulo 1255, o fortalecimento da classe operária a


partir dos anos 1970 - demonstrado pela trajetória do novo sindicalismo - e depois
do próprio PT ao longo dos anos 1980, em conjunto com o processo de
redemocratização brasileira, animou a construção do projeto ético-político

251 Na seção 1.1, nos referimos em nota de rodapé, ao raciocínio de Netto (1981) que aclara que a
reificação diz respeito ao tipo de alienação tracejada pela sociedade burguesa através do fetichismo.
Já em Capitalismo Monopolista e Serviço Social, como expusemos no capítulo 2, o autor salienta que
é peculiar desta sociedade, conforme sua base fetichista mercantil, instaurar uma pseudo-
objetividade que fere gravemente a razão teórica.
252 Lembremos do pensamento de Netto (2006a) quando, na abordagem do sincretismo científico,

afirma que o sistema de saber de segundo grau sincrético do Serviço Social é caracterizado pelo
ecletismo numa acumulação seletiva dos subsídios das Ciências Sociais e guarda vínculo com as
possibilidades do conhecimento do social no capitalismo.
253 Como a continuidade das dificuldades de articulação entre teoria e realidade (com implicações de

ordem metodológica), do voluntarismo/messianismo profissional, do ecletismo, do dogmatismo, do


pragmatismo, da confusão entre Serviço Social e política de assistência social etc. atestam.
254 Como o trinômio flexibilização-desregulamentação-privatização decorrente desta fase de

restauração do capital (NETTO,2010) e seus inúmeros e complexos rebatimentos de cunho


neoconservador asseveram: cultura pós-moderna254 e suas políticas de empreendedorismo e
empoderamento; refilantropização do social combinada com criminalização da classe trabalhadora;
piora generalizada das condições de trabalho que abarca os assistentes sociais; aprofundamento da
relação insuficiente entre unidades de formação e campos de intervenção; rebaixamento do perfil
socioeconômico e empobrecimento da bagagem cultural dos estudantes; sucateamento da
universidade pública combinado com a proliferação do ensino à distância; aumento do
distanciamento entre as vanguardas e a maioria da categoria profissional, sem falar na consolidação
política desta direção estratégica que transcorreu bastante alinhada com o desenvolvimento do PT
nestes dias em ruínas.
255 Exatamente na seção 1.3.
178

profissional. Entretanto, hoje se recrudesce a face bárbara do capital no mesmo


passo que a organização política dos trabalhadores se reflui dramaticamente, numa
defensiva que há muito não experimentava. Evidentemente que tal realidade
impacta o rol de possibilidades e limites do projeto ético-político profissional. Isso se
observa tanto no que tange às defesas edificadas pelas entidades representativas
para salvaguardar a formação e o exercício profissionais, quanto além de ferir as
perspectivas de superação dos sincretismos científico e ideológico assinalados pelo
ecletismo.

Foi evidente o fôlego deste projeto profissional crítico sintonizado com as


lutas democráticas em torno da defesa de uma política social pública e universal.
Através dele, o Serviço Social pôde combater o imediatismo, o praticismo e o
assistencialismo num esforço de ultrapassagem das suas protoformas e de distinção
de suas atribuições em relação às demais “profissões do social”256. Porém, faz-se
mister verificar que o capitalismo contemporâneo, sob a égide financeira, altera este
cenário de sustentação. Na verdade, o esforço de confronto ao conservadorismo
iniciado na renovação, sob seu prisma crítico, não está terminado257. Mais do que
isso, está na atualidade altamente desafiado. Por este motivo, e também porque não
se pode negar a íntima ligação do Serviço Social com o pensamento conservador e
com a razão instrumental (SILVA, 2016), os temas do sincretismo e do seu
decorrente ecletismo permanecem sendo úteis à reflexão teórica acerca da natureza
da profissão.

A tese do sincretismo do professor José Paulo Netto – polêmica e pouco


estudada como indicamos na Introdução– permite uma visão ampliada do Serviço
Social na sua relação com o capitalismo monopolista. Ainda mais, anuncia que não
é possível escapar da “prática indiferenciada”. Esse anúncio se dá porque é a
manutenção da sociabilidade burguesa, e de sua peculiar divisão social e técnica do
trabalho, que animam tal escopo de atuação no campo da administração

256 Tratamos, no segundo capítulo, mais exatamente na seção 2.3, conforme reflexão da professora
Mavi Rodrigues, que o exercício profissional se traduz numa dupla inespecificidade operatória – ou
seja, tanto em relação às protoformas do Serviço Social, haja vista o “anel de ferro” que restringe uma
legitimação social distinta na profissionalização, quanto às demais profissões do social, que parecem
apresentar procedimentos técnicos mais claros e objetos de intervenção mais simples.
257 Importa recordar que os primeiros momentos da renovação do Serviço Social brasileiro foram

assumidos pela Perspectiva Modernizadora, em contraposição aos ares radicalmente democrático-


populares presentes naquela assistida na Argentina, Uruguai e Chile como versa Netto (1976).
179

conservadora da “questão social”, através da política social fragmentada e da


racionalidade positivista (SOUZA, 2016)258. Em outras palavras, os determinantes
históricos do sincretismo da prática – a “questão social”, o cotidiano e a
“manipulação de variáveis empíricas num contexto determinado” – independem da
vontade ou da ação dos assistentes sociais. O que é possível, perante
aprimoramento intelectual marxista, é a superação dos sincretismos científico e
ideológico e aqui entram as reflexões, diálogos e produções sobre a sociedade e a
profissão. Contudo, tal tarefa não é em si mesma descomplicada, dado que sob o
Serviço Social pesa constantemente o sincretismo da prática que não deixa de
requisitar um conhecimento o mais instrumentalizável possível sobre o ser social na
sociedade burguesa (NETTO, 2006a e SOUZA, 2016).

Indispensável salientar nestas últimas considerações que a problematização


do sincretismo só pôde vir à tona em função das conquistas obtidas pelo projeto
ético-político profissional, mais exatamente aquelas que envolveram a busca pelo
rigor teórico inspirada na tradição marxista, mas não só259. A este respeito, Souza
(2016) informa que o debate sobre o sincretismo ganhou força a partir da construção
dos fundamentos históricos, teóricos e metodológicos do Serviço Social brasileiro,
entre os anos 1980 e 1990, no compasso dos avanços renovados que a Intenção de
Ruptura oportunizou. Conforme o autor, foi o estudo aprofundado das categorias da
teoria social de Marx que possibilitou situar a profissão nas relações sociais
capitalistas, assim como compreender o feixe contraditório das políticas sociais no
enquadramento da formação sócio-histórica brasileira.

258 Vale a pena repetir, de acordo com Souza (2016), que outras profissões como o Direito, a
Pedagogia, as Ciências Sociais e a Psicologia também lidam com contradições e limites em função
de igual determinação macroscópica.
259 Reproduzimos aqui parte de nota de rodapé do capítulo 4, quando Netto (1996, p.117) trata da

mescla de influências modernas neste projeto que não se atêm ao marxismo:“ O que, naquela
compósita cultura profissional, sustenta essa direção são matrizes, não apenas antagônicas ao
conservadorismo, mas ainda, expressamente colidentes com as bases epistemológicas do
pensamento pós-moderno e conflitantes com o quadro de referência cultural da pós-modernidade.
Desenvolvidas sob a influência da tradição marxista, mas incorporando valores hauridos noutras
fontes e vertentes e, pois, sem vincos estreitos ou sectários, aquelas matrizes estão diretamente
conectadas ao ideal de socialidade posto pelo programa da modernidade – neste sentido, tais
matrizes não são ‘marxistas’ nem dizem respeito apenas aos marxistas, mas remetem a um largo rol
de conquistas civilizatórias e, do ponto de vista profissional, concretizam um avanço que é pertinente
a todos os profissionais que, na luta contra o conservadorismo, não abrem mão daquilo a que o velho
Lukács chamava de ‘herança cultural’”.
180

Os tempos estão ostensivamente perversos com um nível tão agudo de


criminalização da classe trabalhadora e de liquidação do conjunto de seus direitos 260
que se tornam palpáveis as conclusões de Mészáros (2011), Harvey (2005) e
Chesnais (1996). Segundo os autores, vivemos ante um “estado de guerra de baixa
intensidade”, atrelado a uma “previdência social dirigida” aos “pobres merecedores”,
sem mencionar na incontrolabilidade do capital que o Estado, protetor das condições
gerais da extração da mais valia e seu estruturador político por excelência, é incapaz
de arrefecer, o que põe em elevado risco a simples sobrevivência de todos nós.

Tal panorama contemporâneo é marcado pelo retrocesso do “Estado mínimo


de Bem Estar”261 e pelo refluxo drástico do movimento operário. Isso afeta
diretamente o Serviço Social, profissão reconhecidamente voltada para execução da
política social - terreno de preservação e controle da força de trabalho ocupada e
sobrante operado pelo Estado. Vale lembrar que o passado conservador apenas
pôde ser enfrentado perante uma conjuntura favorável à ampliação da democracia
no Brasil. Fica a indagação sobre o seu porvir, haja vista os ataques à Seguridade
Social postulada pela Constituição Federal de 1988, bem como às defesas de
formação e exercício profissionais (e aqui entra a inspiração na tradição marxista
duramente perseguida) levantadas pelo projeto ético-político. Embora esmeradas e
aguerridas, essas defesas não possuem condições sozinhas ou isoladas de vencer
o neoconservadorismo.

Entendemos a presente pesquisa como um primeiro passo na incorporação


da tese do sincretismo do professor José Paulo Netto. Também, na rota das sendas
que abre para o estudo largo e realista da história do Serviço Social brasileiro, em
correspondência com a história da sociedade brasileira, não menos complexa e
sincrética. Decerto, conforme o próprio professor sublinha, urge nestes dias uma
análise objetiva dos raios de penetração do projeto ético-político na categoria
profissional, no sentido de um enfrentamento efetivo do neoconservadorismo262 e
sob pena do afloramento de uma inflexão na vigente direção estratégica.

260 Como as recentes e rápidas decisões do governo Temer e do Congresso Nacional, em aliança
com as elites, têm comprovado no Brasil.
261 A contrarreforma trabalhista com o fim da CLT e a contrarreforma da Previdência em curso no país

são exemplos do desmonte da frágil seguridade social brasileira.


262 No texto Para uma história nova do Serviço Social no Brasil, participante do livro organizado por

Maria Liduína de Oliveira e Silva, Netto assinala que nos anos recentes a produção teórica tem
181

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exposto o ecletismo como cânone metodológico, o relativismo como postura científica além da
reintronização do empirismo. Não podemos nos furtar de aqui também registrar sua posição crítica
sobre a auto-proclamação do projeto ético-político: “Não tive provas, nos últimos anos, de nenhum
questionamento direto [grifo do autor] significativo a esse projeto; o que tenho constatado é que a
forma de pô-lo em causa não tem consistido em enfrentá-lo abertamente: consiste em proclamá-lo e
em invocá-lo como se fora um projeto cujo pluralismo [grifo do autor] não tem fronteiras e que,
portanto, comporta ilimitadas possibilidades de concretização teórica e prática. Ora, se a ingenuidade
ou a mistificação podem conceber um ‘pluralismo’ sem fronteiras, um tal ‘pluralismo’ é, de fato, um
liberalismo [grifo do autor] sem limites – e, até que se afirme e se (com)prove o contrário, o pluralismo
de que o projeto ético-político se nutre, sendo radicamente democrático, nada tem de liberal. Como
até agora, ao que sei, tais afirmação e comprovação ainda não foram publicizadas, reina um
consenso segundo o qual a hegemonia do projeto ético-político está assegurada” (NETTO, 2016,
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