O Fabuloso Livro Vermelho - Andrew Lang
O Fabuloso Livro Vermelho - Andrew Lang
Tradução:
Márcia Xavier de Brito
Evandro Ferreira e Silva
Hugo Langone
Marcela Saint Martin
William Campos da Cruz
O Fabuloso Livro Vermelho, Andrew Lang
© Editora Concreta, 2017
Editor:
Renan Martins dos Santos
Coordenadora editorial:
Camila Abadie
Tradutores:
Márcia Xavier de Brito (coord.)
Evandro Ferreira e Silva
Hugo Langone
Marcela Saint Martin
William Campos da Cruz
Revisão:
Márcio Scansani
Ilustrações:
Carolina Pontes
Capa & Editoração:
Hugo de Santa Cruz
Ficha Catalográfica
Lang, Andrew, 1844-1912
L2691o O Fabuloso Livro Vermelho [livro eletrônico] / edição de Renan
Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017.
– 440p.
ISBN 978-85-68962-24-4
CDD-808.899282
www.editoraconcreta.com.br
Q uem acompanha os dados referentes ao sistema educacional bra-
sileiro tem visto, ano após ano, uma nítida e acentuada deca-
dência. Pesquisas recentes indicam que estamos na penúltima
posição entre os 36 países investigados pela OCDE para o ranking in-
ternacional de educação. Agravando ainda mais o quadro nacional, me-
tade dos nossos universitários são analfabetos funcionais. As trágicas re-
percussões disso fazem-se sentir de muitas formas em toda a sociedade.
Enquanto os governantes repetem infinitamente as soluções de sem-
pre à situação, seja propondo aumento da carga horária de aulas, aumen-
to do número de anos de frequência obrigatória, melhor remuneração
aos professores, (a clássica) “mais investimentos em educação”, ou ainda
uma combinação de todas as opções anteriores, pouco ou nada revelan-
do, contudo, sobre o que de fato têm em mente ao falar em educação,
acredito que grande parte da solução do problema passa por uma distin-
ção entre educação e escolarização.
Em termos gerais, pode-se dizer que a primeira envolve a totalidade
do sujeito, conduzindo-o de maneira autoconsciente para além de si
mesmo em direção aos outros, ao mundo e à realidade; já a segunda diz
respeito basicamente a um conjunto de habilidades que têm por objetivo
a preparação da pessoa para o mundo do trabalho. Assim, compreen-
der que educação e escolarização são coisas diferentes, sendo a primeira
muito mais ampla, profunda e podendo ou não abarcar a segunda, gera
então a pergunta sobre quem seriam os responsáveis por este processo
que extrapola em muito o âmbito da escola.
A resposta contempla duas possibilidades: em se tratando de indi-
víduos adultos, eles próprios são os responsáveis pela promoção de seu
crescimento; por outro lado, no entanto, em se tratando de crianças, os
pais são os responsáveis por conduzi-las neste caminho para além de
si mesmas, ampliando seus horizontes e possibilitando sua inserção no
mundo de modo muito mais pleno. E é pensando nelas, nas crianças,
que o selo Homebooks vem a público.
Ao contrário do que afirmam os especialistas, acredito que os pais
têm condições de educar seus filhos, adotando ou não, paralelamente,
o apoio da escola. Baseada nessa convicção, confirmada pela realidade
de um incontável número de famílias brasileiras que praticam o homes-
chooling, o selo Homebooks pretende oferecer aos leitores conteúdos de
qualidade que contribuam para a restauração do protagonismo familiar
na educação dos filhos. Para isso, estão entre os alvos contos de fadas em
suas versões originais, manuais de homeschooling, apostilas de diferentes
disciplinas e muito mais.
Espero que esta iniciativa, empreendida por uma simples dona de
casa e mãe homeschooler, e acolhida tão calorosamente por um jovem
e entusiasmado editor, encoraje você, leitor, a não esperar pelas velhas
“soluções” governamentais, mas a assumir o seu quinhão de responsa-
bilidade pela conquista de uma formação melhor para suas crianças e,
consequentemente, de um futuro melhor para o nosso país. Quiçá a
longo prazo consigamos auxiliar na reversão do triste cenário atual.
Com um abraço,
Camila Abadie
Coordenadora do selo Homebooks
Agradecimentos aos colaboradores
1 C. S. Lewis, “On Three Ways to Write for Children”, in: Of This and Other Worlds, Londres,
Collins, 1982, pp. 64-5. Também disponível em: As Crônicas de Nárnia: Volume único, trad.
Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel, São Paulo, wmf Martins Fontes, 2009, p. 741 ss.
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Ícones morais
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Deus criou o mundo por sua Palavra. Ele falou, e o mundo se fez.
E não só isso. A terra sem forma e vazia foi ordenada a preenchida por
sua Palavra. O que era caos tornou-se jardim. Pensar no mundo secun-
dário, no Belo Reino, como o chama Tolkien, é também uma maneira
de pensar no poder ordenador das palavras. Se o mundo contempo-
râneo é caótico – e vemos evidência disso todos os dias nos jornais –,
voltar-nos para a literatura, e para os contos de fadas em particular,
nos dá um vislumbre da ordem. O Belo Reino é feito de palavras. As
palavras vencem o caos. Um passeio pelo reino das fadas, por esse
mundo feito de palavras, é também uma profissão de fé no poder da
linguagem.
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2 Cecília Meireles, Problemas da literatura infantil, São Paulo, Global, 2016, pp. 18-20.
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3 Viktor Frankl, Sede de sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 2003, p. 14.
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4 J. R. R. Tolkien, The Letters of J.R.R. Tolkien, Londres, Houghton Mifflin, 2000, pp. 298-8
[trad. do editor].
5 L. M. Montgomery, Anne of Green Gables, Boston, The Colonial Press, 1915, p. 23 [trad.
do editor].
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6 C. S. Lewis, “On Reading of old books”, in: God in the dock, Grand Rapids, Michigan,
William B. Eerdmans Publishing Company, 2014.
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7 Russel Kirk, “The Perversity of Recent Fiction”, in: Redeeming the Time, Wilmington,
Delaware, Intercollegiate Studies Institute, 1996, pp. 83-5.
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Desceram muitos e muitos degraus até que, por fim, chegaram a uma
passagem com uma porta no fundo, que só estava trancada por um trin-
co. A princesa mais velha a abriu e viram-se imediatamente em um
bosque adorável, onde as folhas eram salpicadas de gotas de prata que
cintilavam à luz brilhante da lua.
A seguir, atravessaram outro bosque onde as folhas eram polvilhadas
de ouro, e depois desse, ainda passaram por um outro bosque, cujas fo-
lhas reluziam como diamantes.
Finalmente, o Mira-Estrelas percebeu um grande lago e, nas mar-
gens do lago, doze barquinhos com toldos em que se sentavam doze
príncipes de remos em punho a aguardar as princesas.
Cada princesa entrou em um dos barcos e Miguel entrou furtiva-
mente naquele que levava a princesa mais nova. Os barcos deslizaram
pela água rapidamente, mas o barco de Lina, por estar mais pesado,
ficava sempre atrás do restante.
— Nunca fomos tão devagar antes – disse a princesa –; qual será o
motivo?
— Não sei – respondeu o príncipe. – Asseguro-te que estou remando
o mais que posso.
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VIII
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XII
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XIV
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XV
Ao final, a mais velha das irmãs fez um sinal e um dos pajens negros
trouxe uma grande taça dourada.
— O castelo encantado guarda mais segredos para ti – disse ao Mira-
-Estrelas. – Bebamos ao teu triunfo!
Lançou um olhar prolongado para a princesinha e, sem hesitar, le-
vantou a taça.
— Não beba! – gritou, de repente, a princesinha –; preferiria casar
com um jardineiro.
E irrompeu em lágrimas.
Miguel lançou o conteúdo da taça para trás, saltou sobre a mesa e
atirou-se aos pés de Lina. O restante dos príncipes fez o mesmo e todos
caíram de joelhos diante das princesas, cada uma escolheu um marido e
ergueu-o, colocando-o ao lado. O feitiço foi quebrado.
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Os doze casais entraram nos barcos, que cruzaram o lago muitas ve-
zes para carregar os outros príncipes. Todos atravessaram os três bos-
ques e, quando cruzaram a porta da passagem subterrânea, ouviram um
grande barulho, como se o castelo encantado estivesse ruindo por terra.
Foram direto ao quarto do duque de Beloeil, que acabara de acordar. Mi-
guel tinha nas mãos a taça dourada e revelou o segredo dos sapatos furados.
— Escolha, então – disse o duque –, a que preferir.
— Minha escolha já foi feita –, respondeu o ajudante de jardineiro,
e ofereceu a mão à princesa mais jovem, que corou e abaixou os olhos.
XVI
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A Princesa
Flor-de-Maio
uma que era de pele escura e feia, e falava uma língua estranha que
ninguém entendia. A rainha perguntava-se como ela ousava oferecer-se, e
mandaram-na embora, uma vez que certamente não seria a escolhida. Ao
passar, ela resmungou alguma coisa e prosseguiu, mas escondeu-se num
buraco numa árvore, de onde podia ver tudo que acontecia. A rainha, sem
pensar duas vezes, escolheu uma aia de rosto rosado. Tão logo a escolha
foi feita, uma cobra, que estava escondida na grama, mordeu exatamente
o pé daquela aia, e esta caiu como morta. A rainha ficou perplexa com o
acidente, mas logo escolheu outra, que mal deu um passo à frente, quando
uma águia voou e derrubou uma tartaruga enorme na cabeça dela, a qual
se partiu em pedaços como a casca de um ovo. Neste momento, a rainha
ficou horrorizada; mesmo assim, escolheu uma terceira vez, mas não teve
melhor fortuna, pois a aia, correndo, esbarrou no galho de uma árvore e
cegou-se num espinho. Então a rainha, tomada de desgosto, gritou que de-
veria haver alguma influência maligna em ação, e que não escolheria mais
naquele dia; tinha acabado de levantar-se para voltar ao palácio quando
ouviu às suas costas o estrépito de uma gargalhada malévola. Ao virar-se,
viu a estranha horrenda que dispensara, a qual estava se divertindo com
os desastres e zombando de todos, sobretudo da rainha. Isso incomodou
muito Sua Majestade, que estava prestes a ordenar sua prisão, quando a
bruxa – pois ela era uma bruxa –, com duas pancadas de sua varinha, in-
vocou uma biga de fogo movida por dragões alados e disparou pelos ares
proferindo gritos e ameaças. Quando o rei viu o que se passara, exclamou:
— Pobres de nós! Estamos perdidos, pois aquela não era outra senão
a Fada Carabosse, que guarda rancor de mim desde que eu era garoto e
um dia pus enxofre em seu mingau só por diversão.
A rainha, então, começou a chorar.
— Se tão somente eu soubesse de quem se tratava – disse –, teria
dado o melhor de mim para fazer as pazes com ela; agora imagino que
tudo está perdido.
O rei lamentou tê-la assustado tanto e propôs que reunissem um
conselho para averiguar o melhor a ser feito a fim de evitar os infor-
túnios que Carabosse certamente pretendia lançar sobre a princesinha.
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fadas que a rainha conhecia, somente cinco puderam vir no dia marcado,
mas começaram imediatamente a dar presentes à princesa. Uma prometeu
que ela seria perfeitamente linda; a segunda, que compreenderia qualquer
coisa – não importa o quê – na primeira vez em que lhe fosse explicado; a
terceira, que ela cantaria como um rouxinol; a quarta, que ela seria bem-
-sucedida em todos os seus empreendimentos. A quinta estava abrindo
a boca para falar quando se ouviu um tremendo estrondo na chaminé, e
Carabosse, toda coberta de fuligem, desceu rolando:
— Digo que ela será a mais azarada das azaradas até que tenha
vinte anos!
Então a rainha e todas as fadas começaram a suplicar e implorar que
pensasse melhor e não fosse tão cruel com a princesinha, que nunca
lhe tinha feito nenhum mal. A fada velha e medonha apenas grunhiu
e nada respondeu. Então, a última fada, que ainda não tinha dado seu
presente, tentou ajeitar as coisas prometendo à princesa uma vida longa
e feliz depois que o período agourento tivesse findado. Neste momento,
Carabosse riu malignamente, e saiu pela chaminé, deixando a todos em
grande consternação, em especial a rainha. Ainda assim, ela recebeu as
fadas esplendidamente e deu-lhes lindas fitas, das quais gostaram muito,
além de outros presentes.
Quando estavam indo embora, a fada mais velha disse que eram da
opinião de que seria melhor encerrar a princesa em algum lugar, com
sua dama de companhia, de modo que não pudesse ver ninguém até que
tivesse vinte anos. Sendo assim, o rei mandou construir uma torre com
este propósito. A torre não tinha janelas, logo era iluminada por velas de
cera, e o único caminho até aquele lugar era uma passagem subterrânea,
com portas de ferro a apenas seis pés de distância uma da outra, e guar-
das por toda parte.
A princesa chamava-se Flor-de-Maio, porque era viçosa e radiante
como a própria primavera.* Ela cresceu em estatura e beleza, e tudo
que fazia e dizia era encantador. Sempre que o rei e a rainha iam vê-la,
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que ele fez imediatamente, trazendo consigo todos os seus homens, até
mesmo o Marinheiro-Tagarela, que, passando pelo espeto em que o jantar
do almirante estava assando, arrebatou-o e trouxe-o consigo.
O almirante Tricórnio estava muitíssimo surpreso quando chegou à
biga de ouro, e ainda mais em ver duas moças encantadoras caminhando
sob as árvores um pouco à frente. Quando chegou até elas, é claro que re-
conheceu a princesa e prostrou-se a seus pés e beijou-lhe a mão com gran-
de alegria. Então ela apresentou-lhe a fada e contou-lhe como Carabosse
finalmente fora derrotada, e ele agradeceu e parabenizou a fada, a qual lhe
foi muito amável. Enquanto estavam conversando, ela gritou de repente:
— Sinto o cheiro de um saboroso jantar!
— Sim, madame, ei-lo aqui – disse o Marinheiro-Tagarela, segu-
rando o espeto em que faisões e perdizes crepitavam. – Queres provar
algum deles, Alteza?
— Sem dúvida – disse a fada –, especialmente porque a princesa
certamente ficará feliz em ter uma boa refeição.
Então o almirante mandou providenciar tudo que era necessário, e
festejaram alegremente sob as árvores. Quando acabaram, o pavão tinha
voltado com um manto para a princesa, em que a fada a vestiu. Era verde
brocado de ouro, adornado com pérolas e rubis, e seus longos cabelos
dourados estavam amarrados com fitas de diamantes e esmeraldas, e
traziam uma coroa de flores. A fada fê-la montar ao seu lado na biga
de ouro e levou-a a bordo do navio do almirante, onde se despediram.
A fada mandou lembranças à rainha e pediu à princesa que lhe con-
tasse que foi a quinta fada que comparecera ao batismo. Saudaram-se,
a esquadra içou âncoras e logo chegaram ao porto. Ali o rei e a rainha
esperavam, e receberam a princesa com tanta alegria e bondade que ela
não tinha palavras para dizer o quanto estava arrependida de ter fugido
com um embaixador tão pobre de espírito. Mas, no final das contas, isso
também deve ter sido culpa de Carabosse. Nesse momento auspicioso,
quem estava para chegar era o filho do rei Merlin, que ficara preocupa-
do por não receber notícias de seu embaixador e começara ele mesmo,
com uma escolta de mil cavaleiros e trinta guarda-costas em uniformes
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Soria Moria
à calmaria, eles não sabiam onde estavam, pois tinham sido levados a uma
costa estranha, da qual ninguém tinha conhecimento algum.
Como não havia vento, todos simplesmente ficaram imóveis, ao que
Halvor pediu autorização ao comandante para descer à costa e observar
em derredor, pois preferia fazer isso a ficar ali deitado e dormir.
— Porventura te julgas em condição de ir aonde possam ver-te? – disse
o comandante. – Não tens traje além destes trapos com que andas por aí.
Halvor continuou a implorar por sua permissão, conseguindo-a en-
fim; no entanto, deveria retornar tão logo o vento começasse a soprar.
Ele foi então à costa. Tratava-se de região encantadora; onde quer
que estivesse, encontrava planícies amplas, com campos e prados, mas
não via ninguém. O vento começou a soprar em seguida, porém Halvor
achava que ainda não tinha visto o bastante e quis caminhar um pou-
co mais, a fim de tentar encontrar alguém. Então, após breve período,
deparou-se com uma grande estrada, tão aplanada que seria possível
rolar por ali um ovo sem quebrá-lo. Halvor caminhou e, quando a noite
se aproximou, viu à distância um enorme castelo em que havia luzes.
Como estivera andando o dia todo e não trouxera nada consigo para
comer, sentia-se terrivelmente faminto. Não obstante, quanto mais che-
gava perto do castelo, mais seu medo crescia.
Ali estava acesa uma lareira. Halvor adentrou a cozinha, que era mais
suntuosa do que qualquer outra que ele jamais contemplara e onde havia
vasilhames de ouro e prata, mas nenhum ser humano. Estando Halvor
no local já há certo tempo, sem que, porém, ninguém aparecesse, ele se
introduziu e abriu uma porta. Do lado de dentro, uma princesa estava
sentada à sua roda de fiar.
— Mas quê!? – gritou ela. – Porventura um cristãozinho pode vir
até aqui?! O melhor que podes fazer é retornar; caso contrário, o troll
chegará para devorar-te! Um troll com três cabeças mora aqui.
— A mim, seria igualmente agradável se tivesse outras quatro, pois
me divertiria muito ao vê-lo – declarou o jovem. – Tampouco partirei,
pois mal nenhum cometi. Deves, porém, dar-me algo para comer, pois
estou terrivelmente faminto.
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que eu mesma cheguei, mas durante todo esse tempo jamais vi cristão.
Melhor será se partires o quanto antes, pois mora aqui um troll de seis
cabeças.
— Não partirei de modo algum – disse Halvor. – Não o faria nem se
ele tivesse outras seis.
— Mas ele te engolirá vivo! – decretou a princesa.
As palavras dela, porém, foram em vão, pois Halvor não partiria. Não
temia o troll, mas desejava um pouco de carne e algo para beber, pois
a viagem lhe fizera faminto. Ela então lhe deu tanto quanto bastava e
tentou, mais uma vez, convencê-lo a partir.
— De modo algum – disse Halvor. – Não partirei porque nada fiz de
errado, e não tenho motivos para ter medo.
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noite caía, e quando seus pais viram entrar um estranho tão sublime e al-
tivo, ficaram de tal modo espantados que passaram a fazer-lhe reverências.
Halvor perguntou-lhes se poderia passar a noite ali. De modo algum:
— Não temos condições de vos oferecer abrigo –, disseram, – uma
vez que não possuímos nada do que é necessário quando se recebe um
grande lorde como o senhor. Melhor será que subais até a fazenda. Ela
não fica longe; é possível ver as chaminés daqui. Lá o senhor terá tudo
em abundância.
Halvor não deu ouvidos a nada daquilo. Estava determinado a per-
manecer onde estava. Os dois, porém, não arredaram o pé e lhe disseram
que deveria seguir até a fazenda, onde poderia conseguir carne e bebidas,
ao passo que eles não possuíam sequer uma cadeira para lhe oferecer.
— Nada disso – disse Halvor. – Não irei para lá até que amanheça;
deixai-me passar aqui a noite. Posso me sentar pela lareira.
Não havia como se opor àquilo, e assim Halvor se sentou perto da la-
reira e começou a cavoucar as cinzas como costumava fazer no passado,
quando ficava ali a passar o tempo.
Os dois falaram muito e sobre muitas coisas, contando-lhe ora isto,
ora aquilo... Por fim, Halvor quis saber se haviam tido filhos.
— Sim – responderam-lhe. Tinham um menino chamado Halvor,
mas não sabiam para onde fora e sequer eram capazes de dizer se estava
morto ou vivo.
— Mas... porventura não seria eu? – perguntou Halvor.
— Eu o conheço muito bem – disse a senhora, pondo-se de pé. –
Nosso Halvor era tão desocupado e preguiçoso que nada fazia! Além
disso, era tão maltrapilho que um furo se ligava a outro em toda a sua
roupa. Alguém como ele jamais se tornaria um homem como o senhor.
Logo em seguida, a senhora teve de ir à lareira a fim de atiçar o fogo;
e, assim que a labareda iluminou Halvor, como costumava fazer quando
ele permanecia em casa cavoucando as cinzas, ela o reconheceu.
— Deus do céu! Halvor, és tu? – disse, e os dois foram tomados
de uma felicidade tão grande que não havia limites para ela. O jovem
teve então de contar tudo o que lhe havia ocorrido, e a senhora ficou
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tão contente que quis levá-lo até a fazenda a fim de exibi-lo às garotas
que outrora o tinham desdenhado. Ela foi na frente e Halvor a seguia.
Quando chegou lá, contou-lhes como Halvor retornara para casa e que
agora veriam o quão deslumbrante estava.
— Parece um príncipe! – declarou ela.
— Veremos que se trata do mesmo maltrapilho de sempre! – disse-
ram as garotas, meneando a cabeça.
Nesse mesmo instante entrou Halvor, e as garotas ficaram tão des-
concertadas que deixaram suas túnicas aos pés da chaminé e fugiram
trajando tão somente as anáguas. Quando retornaram, estavam tão
constrangidas que mal ousavam olhar para o rapaz, diante de quem ha-
viam sempre se mostrado orgulhosas e arrogantes.
— Mas, ah!, vos julgáveis tão belas e tão delicadas que ninguém vos
poderia igualar – disse Halvor. – No entanto, deveríeis ver a princesa
mais velha que libertei. Pareceis meras pastoras se comparadas a ela, e a
segunda também é muito mais bela que vós. A mais nova, porém, que é a
dona do meu coração, supera em beleza tanto o sol quanto a lua... Como
gostaria que estivessem aqui, para que pudésseis contemplá-la!
Mal ele havia dito isso, estavam elas a seu lado. Halvor, no entanto,
ficou profundamente triste, pois as palavras que as três lhe haviam dito
vieram-lhe à cabeça.
Na fazenda, um grande banquete foi logo preparado para as prince-
sas, a quem muitas reverências eram prestadas; elas, porém, não queriam
ficar por ali.
— Desejamos descer até a casa dos teus pais – disseram a Halvor. –
Sairemos e contemplaremos o que há ao redor.
Ele as acompanhou até o lado de fora, e todos chegaram a um gran-
de lago próximo à casa da fazenda. Muito perto da água havia um belo
banco de cor verde, no qual as princesas quiseram se sentar durante uma
hora, pois acreditavam que seria aprazível ficar ali e observar a água.
Elas ali se sentaram. Passado pouco tempo, a princesa mais nova
declarou:
— Gostaria também de pentear um pouco teu cabelo, Halvor.
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* P. C. Asbjornsen.
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A Morte de
Koschei, o Imortal
— Salve, príncipe Ivã! Antes vim como convidado, mas agora venho
como pretendente! Desejo propor casamento à vossa irmã, a princesa Maria.
— Se encontrardes favor aos olhos de minha irmã, não interferirei
nos seus desejos. Por Deus, deixai que ela se case convosco!
A princesa Maria consentiu. O falcão casou-se com ela e levou-a
consigo para longe, para o próprio reino.
Os dias se seguiram, hora após hora; transcorreu todo um ano. Um
dia, o príncipe Ivã e as duas irmãs foram passear no jardim verdejante.
Novamente, surgiu uma nuvem negra, com redemoinhos e trovões.
— Vamos para casa, irmãs! – gritou o príncipe.
Mal entraram no palácio quando ressoou o trovão, o teto rompeu-se
em chamas, abriu-se em dois e uma águia entrou a voar. A águia pousou
no chão e tornou-se um belo jovem.
— Salve, príncipe Ivã! Antes vim como convidado, mas agora venho
como pretendente! – e pediu a mão da princesa Olga. O príncipe Ivã
respondeu:
— Se encontrardes favor aos olhos da princesa Olga, então, deixarei
que ela se case convosco. Não interferirei na sua liberdade de escolha.
A princesa Olga deu consentimento e casou-se com a águia. A águia
a arrebatou e levou-a consigo para o próprio reino.
Outro ano se passou. O príncipe Ivã disse para a irmã mais jovem:
— Vamos sair e passear no jardim verdejante!
Caminharam por algum tempo. Mais uma vez surgiu uma nuvem de
tempestade, com redemoinhos e relâmpagos.
— Voltemos para casa, irmã! – disse ele.
Voltaram para casa, mas não tiveram nem tempo de sentar quando o
trovão caiu, o teto se abriu e entrou um corvo. O corvo pousou no chão
e tornou-se um jovem elegante. Os rapazes anteriores eram belos, mas
este era ainda mais formoso.
— Bem, príncipe Ivã! Antes vim como convidado, mas agora venho
como pretendente! Dá-me a princesa Anna por mulher.
— Não interferirei na liberdade de minha irmã! Se ganhardes os seus
afetos, deixarei que se case convosco.
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A Morte de Koschei, o Imortal
Assim a princesa Anna casou com o corvo e ele a levou consigo para
o próprio reino. O príncipe Ivã ficou sozinho. Um ano inteiro viveu sem
as irmãs. Então, ficou entediado e disse:
— Sairei em busca de minhas irmãs.
Preparou-se para a jornada, cavalgou e cavalgou. Um dia, viu um
exército inteiro morto na planície. Gritou alto:
— Se houver um só homem vivo, responda! Quem assassinou esta
tropa valorosa?
Respondeu-lhe um homem vivo:
— Toda esta tropa valorosa foi morta pela princesa Maria Morevna.
O príncipe Ivã cavalgou um pouco mais e chegou a uma barraca
branca. Dela saiu ao seu encontro a bela princesa Maria Morevna.
— Salve, príncipe! – disse ela. – Para onde Deus vos envia? Vindes de
livre escolha ou contra a vossa vontade?
O príncipe Ivã respondeu:
— Não é contra a própria vontade que jovens bravos viajam!
— Bem, se vossos negócios não têm pressa, aguardai um bocado em
minha barraca.
Ali o príncipe Ivã ficou contente. Passou duas noites na barraca, en-
controu graça aos olhos de Maria Morevna e ela casou-se com ele. A
bela princesa, Maria Morevna, o levou consigo para o seu reino.
Passaram um tempo juntos, então a princesa pôs na cabeça de guer-
rear. Passou todos os afazeres domésticos para o príncipe Ivã e deixou-
-lhe com as seguintes instruções:
— Ide a todos os lugares, tomai conta de tudo. Só não ouseis olhar
dentro daquele armário ali.
Ele não pôde deixar de fazê-lo. No momento que Maria Morevna
partiu, correu para o armário, abriu a porta e olhou dentro – lá estava,
suspenso, Koschei, o Imortal, acorrentado por doze cadeias. Em seguida,
Koschei suplicou ao príncipe Ivã:
— Tem piedade de mim e dá-me de beber! Dez longos anos estou
aqui em tormento, sem comer ou beber, minha garganta está terrivel-
mente seca!
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chegou ao local onde estava Maria Morevna. Ela avistou o amado, lançou
os braços ao redor do pescoço dele, irrompeu em lágrimas e exclamou:
— Ó, príncipe Ivã! Por que me desobedecestes e espiastes dentro do
armário, deixando sair Koschei, o Imortal?
— Perdoai-me, Maria Morevna! Não vos recordeis do passado. Mui-
to melhor será partir comigo enquanto não avistamos Koschei, o Imor-
tal. Talvez ele não nos capture.
Aprontaram-se e partiram. Ora, Koschei estava a caçar. Ao cair da
noite, voltava para casa quando seu bom corcel tropeçou.
— Por que tropeças, pobre Jade? Farejaste algum mal? – o cavalo
respondeu:
— O príncipe Ivã veio e capturou Maria Morevna.
— É possível capturá-los?
— É possível semear o trigo, esperar até que cresça, colhê-lo e de-
bulhá-lo, moê-lo até virar farinha e, com ela, fazer cinco tortas, comer
essas tortas e, então, começar a busca – e mesmo assim estar em tempo.
Koschei galopou e capturou o príncipe Ivã.
— Ora, – disse ele, – dessa vez perdoar-te-ei em troca de tua bon-
dade ao dar-me água para beber. Uma segunda vez perdoarei, mas na
terceira, cuidado! Cortar-te-ei em pedaços.
Em seguida, tomou Maria Morevna e a carregou consigo. O príncipe
Ivã, todavia, sentou em uma pedra e caiu em prantos. Chorou muito – e,
depois, voltou para buscar Maria Morevna. Ora, Koschei, o Imortal, não
estava em casa.
— Escapemos, Maria Morevna!
— Ah, príncipe Ivã... ele nos alcançará!
— Suponha que ele nos alcance. Em todo caso, teremos passado uma
ou duas horas juntos.
Dito isso, aprontaram-se e partiram. Ao retornar para casa, o bom
corcel de Koschei, o Imortal, tropeçou.
— Por que tropeças, pobre Jade? Farejas algum mal?
— O príncipe Ivã veio e capturou Maria Morevna.
— É possível capturá-los?
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
— Teríeis dormido por muito mais tempo não fosse por nós – res-
ponderam os cunhados. Agora vinde nos visitar.
— Não, cunhados, devo ir e procurar Maria Morevna.
E, quando Ivã a encontrou, disse-lhe:
— Descubra com Koschei, o Imortal, onde ele conseguiu um cavalo
tão bom.
Assim, Maria Morevna escolheu um momento favorável e começou
a perguntar a respeito disso. Koschei respondeu:
— Três vezes além de nove terras, no trigésimo reino, do outro
lado do rio flamejante, vive uma Baba-Yagá. * Ela tem uma égua e
todo dia voa nela ao redor do mundo. Ela possui outras éguas tão
esplêndidas quanto essa. Tomei conta das tropas de cavalos dela por
três dias sem perder uma só, e como recompensa, a Baba-Yagá deu-
-me um potro.
— No entanto, como cruzaste o rio flamejante?
— Ora, tenho este tipo de lenço. Quando o sacudo três vezes na mão
direita, eis que surge uma ponte muito alta, que o fogo não alcança.
Maria Morevna escutou tudo e repetiu para o príncipe Ivã. Ela rou-
bou o lenço e deu-o ao príncipe. Assim, ele conseguiu transpor o rio
flamejante e seguiu para a casa da Baba-Yagá. Seguiu um longo caminho
sem nada comer ou beber. Por fim, deparou-se com um pássaro estranho
e seus filhotes. Príncipe Ivã disse:
— Comerei um destes pintinhos.
— Não comais, príncipe Ivã! – implorou o pássaro estranho – mais
cedo ou mais tarde dar-vos-ei uma boa recompensa.
Ele seguiu adiante e viu uma colmeia na floresta.
— Pegarei um favo de mel – disse ele.
— Não mexais no meu mel, príncipe Ivã! – exclamou a abelha-rainha
– mais cedo ou mais tarde dar-vos-ei uma boa recompensa.
Dito isso, ele não a perturbou e seguiu adiante. Logo em seguida,
encontrou uma leoa com filhotes.
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O príncipe Ivã dormiu a noite toda. Pela manhã, a Baba-Yagá lhe disse:
— Ânimo, príncipe! Se não tomares conta das éguas, se perderes uma
sequer, espetarei tua cabeça no alto daquele poste!
Conduziu as éguas pelos campos. Imediatamente, elas ergueram as
caudas e se dispersaram pela floresta fechada. Mais uma vez o príncipe
sentou em uma pedra, chorou, chorou e depois caiu no sono. O sol se
pôs por trás da floresta. E a leoa veio correndo.
— Acordai, príncipe Ivã! As éguas já estão reunidas.
Príncipe Ivã levantou-se e foi para casa. Mais do que nunca a Baba-
-Yagá brigava com as éguas e berrava:
— Para que voltastes para casa?
— Como não voltar? As feras vieram correndo em nossa direção de
todas as partes do mundo e só faltaram nos fazer em pedacinhos.
— Bem, amanhã correi para o mar azul.
Novamente, o príncipe Ivã dormiu a noite toda. Na manhã seguinte,
a Baba-Yagá o mandou pastorear as éguas.
— Se não tomardes conta delas muito bem – afirmou, – espetarei tua
cabeça bem no alto daquele poste!
Ele pastoreou as éguas pelo campo. Em seguida, ergueram as caudas
e desapareceram de vista e correram para o mar azul. Lá ficaram, com
água até os pescoços. O príncipe Ivã sentou-se numa pedra, chorou e
caiu no sono. Entretanto, quando o sol se pôs por detrás da floresta, veio
uma abelha e disse:
— Acordai, príncipe Ivã! As éguas já foram reunidas. Quando chegar-
des em casa, todavia, não deixeis a Baba-Yagá pôr os olhos em vós, mas
ide ao estábulo e escondei-vos atrás das manjedouras. Lá encontrareis um
potrinho triste rolando na lama. Roubai-o, e na calada da noite saí da casa.
O príncipe Ivã levantou-se, esgueirou-se pelo estábulo e deitou-se
embaixo das manjedouras, enquanto a Baba-Yagá brigava com as éguas
e berrava:
— Por que voltastes?
— Como não voltar? Inúmeras abelhas vieram voando de todas as par-
tes do mundo e começaram a nos picar por todos os lados até sair sangue!
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* Ralston.
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e o Cavaleiro
do Vale Estreito
sejam capazes de olhar por si. Desse modo, nenhuma outra mulher terá
jurisdição sobre eles. Não deixeis faltar-lhes a educação condizente com
sua estirpe e cuideis para que aprendam todos os exercícios e passatem-
pos que é mister que aprendam os filhos de um rei. Eis tudo que tenho
a dizer. Adeus, querido esposo.
Ao rei, pouco tempo lhe sobrou para que, vertendo lágrimas dos
olhos, garantisse à esposa que se cumpririam todos os seus desejos,
porque logo depois a rainha virou-se na cama e, com um sorriso nos
lábios, entregou a alma a Deus. Nunca se viu maior luto do que aquele
que se espalhou pela corte e por todo o reino, pois não havia no mundo
mulher mais bondosa que a rainha, tanto para os ricos quanto para os
pobres. A monarca foi sepultada com grande pompa e circunstância.
O rei, embora se encontrasse inconsolável com a perda da consorte,
não se esqueceu da promessa e ordenou que se construísse a torre e
que seus filhos fossem levados para lá, onde viveriam sob a custódia de
valorosos guardiões.
Com o passar do tempo, os lordes e cavaleiros do reino aconselha-
ram o rei – que ainda era jovem – a contrair matrimônio novamen-
te, abandonando a condição de solteiro. Até que o soberano consentiu.
Escolheu-se, então, para ele, a filha de um rei vizinho, uma princesa rica
e formosa cuja companhia muito lhe agradava. Pouco tempo depois, a
rainha teve um filho perfeitamente saudável, o que foi motivo de tão
grande celebração e alegria que a memória da antiga rainha, de certa
forma, apagou-se da lembrança de todos. Assim sucedeu, pois, e o rei e
a rainha viveram felizes juntos por muitos anos.
Um dia, a rainha foi ver a mulher que cuidava dos galinheiros, pois
tinha assuntos a tratar com ela. Depois de muito conversarem, quando
a monarca já se preparava para ir embora, a mulher lhe disse que, se
ela a procurasse de novo algum dia, lhe quebraria o pescoço. A rainha,
enfurecida perante tamanho atrevimento da parte de uma súdita tão
desimportante, exigiu-lhe de imediato uma explicação, ou do contrário
ordenaria que a executassem.
A mulher, então, disse o seguinte:
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não sei onde a encontrou, e me ordenou que dela fizesse uma torta. Por
isso não consigo deixar de chorar.”
— Disse-lhe então que, se ela soubesse de algum lugar seguro para
onde eu pudesse levar a criança, assim o faria, para não deixá-la morrer
nas mãos de semelhante criatura. Em resposta, ela me disse que havia
uma casa, bem longe dali, onde morava uma mulher que tomaria conta
de tudo. Porém, perguntou-me desesperada:
— “Mas o que hei de fazer a respeito da torta?”
— “Cortai um dedo à criança” – foi o que eu disse – “e eu vos trarei
da floresta um leitãozinho selvagem, que cozinhareis como se a ela esti-
vésseis cozinhando, e poreis o dedo em um canto da torta, que marcareis
de algum modo. Assim, se o gigante duvidar de alguma coisa, sabereis
por onde começar a fatiá-la para que a criatura, ao vê-lo, convença-se de
que o prato foi feito com a carne da criança.”
— A moça concordou com o plano que lhe propus e cortou, então, o
dedo à criança. Com base nas orientações que ela me deu, logo encon-
trei a dita casa, e levei-lhe também o porquinho suplente, com que de
imediato se pôs a fazer a torta. Quanto a mim, depois de comer e beber
copiosamente, já estava por partir dali, quando vimos o gigante atraves-
sar o portão do castelo.
— “Valha-me Deus! O que fareis agora? Correi e escondei-vos dei-
tado entre os cadáveres que ele guarda na sala” – disse ela, indicando-me
o lugar – “e tirai vossa roupa, para que ele não vos distinga dos demais
corpos, se por acaso for naquela direção.”
— Segui o conselho dela e me deitei entre os cadáveres, como se es-
tivesse morto, para ver o que o gigante faria. A primeira coisa que fez foi
perguntar pela torta. Quando a moça pôs o prato na sua frente, ele jurou
que cheirava a carne suína. Mas, como sabia onde encontrar o dedo da
criança, ela o revelou de imediato, o que o deixou bastante convencido
de que equivocara-se. A torta, porém, serviu-lhe apenas de aperitivo; e
escutei-o afiando a faca e dizendo que necessitava comer uns nacos de
carne, pois não estava satisfeito. Qual não foi meu terror quando ouvi o
gigante apalpando os cadáveres e, mais ainda, quando cortou uma fatia
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
de carne das minhas ancas, levando-a consigo para assá-la! Podeis estar
certo de que a dor que eu sentia era lancinante, mas o medo de ser morto
me impedia de emitir o mais mínimo ruído. Quando, no entanto, ele
terminou de comer toda a carne que arrancara do meu quadril, começou
a ingerir bebidas alcoólicas copiosamente, de maneira que, em pouco
tempo, não conseguia nem suster a cabeça sobre o pescoço e se deixou
cair em um grande cesto que fabricara para esse propósito, mergulhan-
do de pronto no sono. Assim que o ouvi roncar, levantei-me no estado
mesmo em que me achava e fiz a mulher enfaixar minha ferida com um
lenço. Depois, tomei nas mãos o espeto de ferro do gigante, levei-o ao
fogo até fazê-lo arder em vermelho escarlate e atravessei-o no olho da
criatura. Mas não consegui matá-la. Por isso, deixei o espeto enfiado
em sua cabeça e zarpei dali. Logo, porém, percebi que ele me perseguia,
apesar de estar cego; e, ademais, atirou em minha direção um anel en-
cantado, que se encaixou no dedão do meu pé e lá permaneceu.
— De onde estava, então, o gigante chamou pelo anel e, para minha
grande admiração, este lhe respondeu desde o meu pé. Guiado pela joia,
a criatura deu um salto para cima de mim, mas tive a sorte de perceber
o movimento e me esquivei, felizmente escapando do perigo. Assim, me
dei conta de que era inútil correr para salvar-me, ao menos enquanto le-
vasse no pé aquele anel. Portanto, desembainhei a espada, com ela cortei
fora o dedão em que ele estava encaixado e joguei ambos em um açude
que havia ali perto. Nisso, o gigante chamou novamente pelo anel, que
sempre lhe respondia devido ao poder do feitiço. Mas a criatura, por não
saber o que eu tinha feito, imaginava que a joia ainda se encontrava em
alguma parte do meu corpo e, portanto, deu outro salto violento para
me agarrar, indo cair na água, onde se afogou, porque o açude era fundo
demais.
— Agora, senhor cavaleiro, vedes por que perigos passei e a que, no
entanto, escapei. Não obstante, sou de fato aleijado porque falta-me o
dedão de um dos pés, desde então.
— Meu senhor e amo – disse, então, uma senhora anciã que estivera
escutando todo o tempo – a história que acabas de escutar é absoluta-
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mente verídica, como bem o sei, pois sou eu a mulher que vivia no cas-
telo do gigante e o senhor, meu amo, era a criança que quase transformei
em torta; e este, o homem que salvou tua vida, fato que podes comprovar
por te faltar um dedo, arrancado de ti, conforme ficaste sabendo, a fim
de enganar o gigante.
O Cavaleiro do Vale estreito, tremendamente surpreso ante as pa-
lavras da anciã e ciente de que lhe faltava um dos dedos desde a tenra
infância, compreendeu que a história era bem real.
— Pois então é este o meu salvador? – disse o cavaleiro. – Ó, bravo
amigo, não apenas perdoo a todos vós, como vos manterei junto a mim
enquanto viverdes. Aqui neste castelo, vos fartareis em banquetes como
príncipes e recebereis as mesmas atenções que eu recebo.
Ouvindo isso, todos lhe agradeceram de joelhos, e o Ladrão Negro
lhe contou a razão por que tentaram roubar o Guizo de Cascavel, bem
como a necessidade que tinham de regressar para casa.
— Muito bem – respondeu o Cavaleiro do Vale Estreito. – Nesse
caso, meu corcel é vosso e, assim, poupa-se a vida a este bravo compa-
nheiro. Podeis ir quando quiserdes. Só vos peço que me chameis ou que
venhais me ver de quando em quando, para que nos conheçamos melhor.
Os príncipes prometeram que o fariam e, com grande alegria, par-
tiram para o palácio do rei, seu pai, levando com eles o Ladrão Negro.
A rainha má passara todo esse tempo de pé em sua torre e, quando
ouviu os guizos ressoando a grande distância, soube logo que os prínci-
pes voltavam para casa trazendo consigo o corcel. Então, em um feroz
ataque de ódio e raiva, precipitou-se do alto de seu cativeiro, estatelan-
do-se no chão.
Os três príncipes viveram felizes e contentes durante o reinado do
pai, sempre na companhia do Ladrão Negro. Não se sabe, entretanto, o
que aconteceu com eles após a morte do monarca.*
* De Os Contos da Hibérnia.
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O Ladrão-Mestre
finalmente a alcançou. Era uma casa grande, em que uma lareira flame-
java tão forte, que as pessoas só poderiam estar acordadas. Então entrou;
lá dentro deparou-se com uma velha, muito ocupada em seus afazeres.
— Boa noite, minha senhora! – disse ele.
— Boa noite! – respondeu a velha.
— Hutetu! Está uma tremenda tempestade lá fora!
— É verdade – replicou a velha.
— Posso dormir aqui e abrigar-me durante a noite?
— Isso não seria bom – respondeu a velha bruxa –, pois, se os morado-
res da casa retornam e se deparam contigo, matam a ti e a mim também.
— Mas que tipo de gente mora aqui, afinal?
— Oh! Ladrões e malfeitores – respondeu a velha –; sequestraram-
-me quando eu era pequena, e desde então tive de trabalhar para eles.
— Bem, ainda acho que é melhor dormir por aqui – disse o jovem. –
Não sairei em um temporal desses, haja o que houver.
— Bem, será pior para ti.
O rapaz deitou-se em uma cama que ficava ali perto, mas não teve
coragem de pegar no sono; e foi melhor assim, pois os ladrões chegaram,
e a velha contou-lhes que um rapaz desconhecido aparecera e, por mais
que tentasse, não conseguira livrar-se dele.
— Viste se possuía algum dinheiro? – perguntaram os ladrões.
— Ele não é do tipo que tem dinheiro; é um vagabundo! Tem no
máximo os farrapos que traz sobre o corpo.
Os ladrões começaram a cochichar entre si sobre o que fariam com
o rapaz – se o matariam ou lhe dariam outro fim. O jovem então levan-
tou-se e travou com eles uma conversa, perguntando se não precisavam
de um ajudante, pois teria muito gosto em servi-los.
— Sim – responderam. – Se tiveres jeito para o negócio que fazemos,
pode ser que tenhas um lugar entre nós.
— É a mim indiferente o tipo de negócio – disse o jovem –, pois,
quando saí de casa, meu pai deu-me licença para que trabalhasse no que
bem entendesse.
— Desejas roubar, então?
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e descobriu que seu animal já não estava ali. Chorou, bramiu aos céus,
mas por fim consolou-se com a ideia de que o melhor seria voltar à casa e
levar consigo o terceiro boi, sem que a mulher percebesse, negociando-o
na cidade e fazendo um bom dinheiro. Então, sorrateiramente e sem cha-
mar a atenção, voltou à casa e levou a terceira rês. Os ladrões, todavia, que
tinham conhecimento disso, disseram ao jovem que, se ele conseguisse
surrupiar o terceiro boi como havia feito com os outros dois, tornar-se-ia
o mestre do bando. O rapaz partiu pela floresta e, quando percebeu que o
homem aproximava-se conduzindo o animal, começou a mugir a plenos
pulmões, igualzinho a um novilho no meio da mata. O rosto do homem
iluminou-se, pois acreditou reconhecer a voz do seu animal, e pensou que
agora poderia recuperá-los. Amarrou o terceiro boi a uma árvore e deixou
a estrada, embrenhando-se na floresta à procura dos animais extraviados.
Enquanto isso, o rapaz fugiu levando consigo o terceiro novilho. Quando
o homem voltou e viu que seu terceiro animal também se fora, teve um
acesso de fúria que nada podia conter. Chorou amargamente, em um la-
mento sem fim, e por muitos dias não teve coragem de regressar à casa,
temendo que a esposa o exterminasse sem nenhum remorso. Tampouco
os ladrões estavam contentes, pois eram obrigados a admitir que o jovem
agora os comandava. Então, um dia, decidiram unir esforços a fim de pro-
por ao jovem um desafio deveras impossível, e nesse intento tomaram
juntos a estrada, deixando-o sozinho em casa. Ao ver-se só, sua primeira
reação foi soltar os novilhos, que correram imediatamente de volta para
o dono, o qual, ao vê-los, mal coube em si de alegria. Conduziu, a seguir,
para fora do estábulo todos os cavalos que os ladrões possuíam e carregou-
-os das coisas mais valiosas que pôde encontrar – vasos de ouro e de prata,
indumentárias e outros objetos magníficos. Pediu à velha que transmitisse
aos ladrões seus cumprimentos e agradecimentos, e que lhes dissesse que
ele se fora, e que não seria fácil encontrá-lo. Tendo dito isso, conduziu os
cavalos para fora do pátio. Depois de caminhar por muito, muito tempo,
achou-se na mesma estrada por onde viajara na noite em que fora parar na
casa dos ladrões. Quando se aproximou da casa paterna a ponto de con-
seguir avistá-la, tratou de vestir um uniforme que encontrou em meio aos
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bastante para roubar os cavalos de debaixo deles, verei o que posso fazer
por ti.
— O que me pedis pode ser feito – disse o Ladrão-Mestre –, mas
tenho vossa palavra de que, ao fazê-lo, terei a mão de vossa filha?
— Sim; se conseguires isso, farei por ti o melhor que puder – disse o
governador.
Então o Ladrão-Mestre dirigiu-se a uma venda e comprou conha-
que para encher dois cantis de bolso, colocando sonífero em um deles e
deixando o outro apenas com conhaque. Arranjou depois onze homens
para se esconderem atrás do estábulo do governador. Em seguida, con-
venceu uma velha, com palavras gentis e uma boa paga, a ceder-lhe as
vestes esfarrapadas e o casaco, e, assim, de bengala em punho e uma
corcunda, foi coxeando ao cair da noite rumo ao estábulo do governador.
Quando ali chegou, os tratadores estavam dando água aos cavalos para
passar a noite.
— Que queres aqui? – disse um deles, rudemente, à velha.
— Deus do céu! Como faz frio! – disse ela, a soluçar e tremer. – Céus!
Esse frio acaba congelando uma pobre carcaça velha como a minha! –
Tremendo novamente e chacoalhando-se, suplicou: – Por Deus, deixai-
-me passar aqui esta noite.
— Nada disso! Vai-te daqui agora mesmo! Se o governador te desco-
bre neste estábulo, estamos encrencados – disse um deles.
— Pobre criatura! – disse outro, que sentiu pena da velha. – Ela não
pode fazer mal a ninguém; podia ficar sentada ali.
Os demais eram da opinião de que ela devia ir embora, mas, en-
quanto debatiam e tratavam dos cavalos, ela esgueirou-se mais e mais
pelo estábulo e, por fim, sentou-se atrás da porta, e, uma vez lá dentro,
ninguém mais deu por ela.
Conforme a noite se arrastava, mais difícil era permanecer montado
nos cavalos.
— Cruzes! Que frio medonho! – disse um dos tratadores, e começou
a bater no peito com os braços, para cima e para baixo.
— Estou tiritando de tanto frio – disse o outro.
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* P. C. Asbjornsen.
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E ela suplicou:
— Ah, irmão! Não bebas ainda ou te tornarás uma corça e fugirás
de mim.
Entretanto, o irmão já estava ajoelhando na beira do riacho e incli-
nando-se para beber a água e, como era certo, tão logo seus lábios toca-
ram a água, ele caiu no gramado, transformado em uma pequena corça.
A irmã chorou amargamente pelo pobre irmão enfeitiçado, e a peque-
na corça chorou também e sentou-se ao lado dela. Por fim, a menina disse:
— Não te preocupes, querida corcinha, nunca te abandonarei.
E tirou sua liga dourada e amarrou ao redor do pescoço da corça.
Depois, colheu juncos e trançou uma corda muito macia, que amarrou
à coleira. Após fazer isso, levou a corça para muito longe, direto para as
profundezas da floresta.
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Por fim, quando a irmã entendeu que nada mais podia fazer, abriu a por-
ta com o coração pesado, e a corça disparou pela floresta, jubilosa e saudável.
Assim que o rei viu a corça, disse aos caçadores:
— Ora, persegui-na por todo o dia até a noite, mas prestai atenção e
cuidai para não machucá-la.
Quando o sol se pôs, o rei disse ao seu caçador:
— Agora, vem e mostra a casinha na floresta.
E, quando chegou à casa, o rei bateu na porta e disse:
— Querida irmã, abre; estou aqui.
Então, a porta se abriu e o rei entrou, e lá estava a donzela mais ado-
rável que jamais vira.
A moça estava muito surpresa, pois em vez da corça que esperava, viu
entrar um homem com uma coroa de ouro na cabeça. No entanto, o rei
a olhou com ternura, tomou a mão da moça e disse:
— Virias comigo ao meu castelo e serias minha querida esposa?
— Ah, sim! – respondeu a donzela – mas tens de deixar a minha
corça vir também. Não poderia abandoná-la.
— Ela ficará contigo enquanto viveres e nada lhe faltará. – prome-
teu o rei.
Nesse ínterim, a corça veio saltitando e a irmã, mais uma vez, amar-
rou a corda de juncos à sua coleira, tomou a corda nas mãos e, assim,
partiram, juntos, da casinha da floresta.
O rei ergueu a donzela solitária até seu cavalo e a levou para o castelo,
onde foi celebrado o casamento no maior esplendor. A corça era bem
cuidada, acariciada e corria à vontade pelos jardins do palácio.
Ora, durante todo esse tempo, a madrasta malvada, que fora a causa
dos infortúnios e fatigantes aventuras dessas crianças, estava totalmente
convencida de que a irmã fora feita em pedacinhos por feras selvagens
e o irmão, abatido e morto, na forma de corça. Quando ela ouviu como
eles estavam felizes e prósperos, seu coração encheu-se de inveja e ódio
e não conseguia pensar em mais nada senão num jeito de causar-lhes
novos infortúnios. A filha dela, que era horrenda como a noite e tinha
um olho só, a repreendeu, ao afirmar:
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* Irmãos Grimm.
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dela. Isso é tudo que somos capazes de prever sobre vossa querida filhi-
nha. Lamentamos muito não podermos vos contar nada melhor.
Depois disso, partiram, deixando a rainha muito triste, tão triste que
o rei percebeu e perguntou-lhe qual era o problema.
A rainha contou que estava sentada muito perto do fogo e que quei-
mara todo o linho de sua roca de fiar.
— Oh, foi só isso? – perguntou o rei, e subiu até o sótão e lhe trouxe
mais linho do que ela poderia fiar em cem anos. Entretanto, a rainha
ainda parecia triste, e o rei perguntou-lhe novamente qual era o proble-
ma. Ela respondeu que estivera andando ao longo do rio e deixara cair
um de seus sapatinhos verdes de cetim na água.
— Oh, foi só isso? – perguntou o rei, e mandou ordens a todos os
sapateiros do reino que, em pouco tempo, fizeram dez mil sapatinhos
verdes de cetim para a rainha, mas ainda assim ela parecia triste.
Nessa altura, o rei perguntou-lhe de novo qual era o problema e, des-
ta vez, ela respondeu que ao comer apressadamente o mingau, engolira
sua aliança de casamento. Acontece que o rei estava bem informado,
pois ele mesmo estava com a aliança, e disse:
— Oh! Não estás a contar-me a verdade, pois tenho a aliança em
minha bolsa.
Então, a rainha ficou muito envergonhada e viu que o rei estava
aborrecido com ela, de modo que lhe contou o que as fadas previram a
respeito de Rosette, implorando-lhe que pensasse como os infortúnios
poderiam ser evitados.
Dessa vez foi o rei quem ficou triste e, por fim, disse:
— Não vejo maneira de salvar nossos filhos, a não ser cortando a
cabeça de Rosette enquanto ela ainda é criança.
Entretanto, a rainha gritou que preferia ter a própria cabeça cortada e
que ele tinha de pensar em algo melhor, pois ela nunca consentiria com
aquilo. Pensaram, pensaram, mas não sabiam o que fazer até que, final-
mente, a rainha ouviu que em uma grande floresta perto do castelo havia
um velho ermitão que vivia em uma árvore oca e as pessoas vinham de
longe para pedir-lhe conselhos; então, disse:
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— Oh! Onde quer que queirais, senhor – ela respondeu, – mas nunca
me casarei com nenhum outro.
Depois disso, levaram Rosette ao belo palácio, e, junto com ela, foi
levado o pavão. Ela disse ao pavão que andasse pelo terraço, debaixo de
suas janelas, de modo que pudesse sempre vê-lo. Quando as senhoras da
corte iam visitar a princesa, trazendo presentes belíssimos: vestidos, fitas
e doces, diamantes e pérolas, bonecas e sapatos bordados, era muitíssimo
bem educada e lindamente dizia: “Obrigada!”. A princesa era tão gracio-
sa que todos sempre saíam encantados com ela.
Entrementes, o rei e o príncipe refletiam sobre como iriam encontrar
o rei dos pavões, e se existia no mundo tal pessoa. Primeiro, mandaram
pintar um retrato da princesa, que ficou tão parecido com ela que não
ficaríeis surpresos se ele vos dirigisse a palavra. Então, disseram a ela:
— Já que não te casarás com ninguém senão com o Rei dos Pavões,
vamos sair juntos pelo mundo em busca dele. Se o encontrarmos para
ti, ficaremos muito felizes. Nesse meio tempo, toma conta muito bem
de nosso reino.
Rosette agradeceu a todos por todo o transtorno que estavam ten-
do por causa dela e prometeu tomar conta muito bem do reino. Para
divertir-se, observaria o pavão e faria seu cão Faísca dar pinotes para ela
enquanto estivessem fora.
Assim partiram e perguntavam a todos que encontravam:
— Conheces o Rei dos Pavões?
Mas a resposta sempre era:
— Não, não.
E seguiram adiante, tão longe que ninguém jamais estivera tão dis-
tante. Por fim, chegaram ao Reino dos Besouros.
Nunca haviam visto antes tantos besouros, e o zumbido era tão alto
que o rei temeu ficar surdo. Perguntou ao besouro de aparência mais
distinta que encontrou se sabia onde poderia achar o Rei dos Pavões.
— Senhor – respondeu o besouro –, esse reino fica a trinta mil léguas
daqui, viestes pelo caminho mais longo.
— Como sabes disso? – perguntou o rei.
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acordou Faísca, o qual, com seu bom faro, começara a sentir o cheiro
dos linguados e dos arenques tão próximos que se pôs a latir. Latiu por
tempo suficiente para acordar todos os outros peixes, os quais vieram a
nadar ao redor da cama da princesa e a empurrar a cama com suas gran-
des cabeças. Quanto a ela, disse a si mesma: “Como nosso barco sacoleja
na água! Fico feliz de nem sempre me sentir tão desconfortável quanto
me senti esta noite”.
A ama má e o barqueiro, que nessa altura já estavam bem distantes,
ouviram Faísca latindo e disseram um ao outro:
— Esse animal horrendo e sua dona agora bebem à nossa saúde nas
águas do mar. Apressemo-nos para aportar, pois devemos estar bem
próximos à cidade do Rei dos Pavões.
O rei enviara centenas de carruagens para buscá-los, guiadas por to-
dos os tipos de animais estranhos. Havia leões, ursos, lobos, veados, ca-
valos, búfalos, águias e pavões. A carruagem selecionada para a princesa
Rosette tinha seis macacos azuis, que podiam das cambalhotas, dançar
na corda-bamba e fazer muitos truques. Seus arreios eram de veludo
carmim com fivelas douradas, e atrás da carruagem caminhavam sessen-
ta belas moças escolhidas pelo rei para esperar por Rosette e entretê-la.
A ama fizera todos os esforços imagináveis para embelezar a filha.
Vestiu a moça no traje mais bonito de Rosette e a cobriu de diamantes
da cabeça aos pés, mas ela era tão feia que nada poderia lhe conferir boa
aparência, e o pior, a moça era emburrada e tinha péssimo humor, e nada
fazia senão resmungar o tempo todo.
Quando saíram do barco e o séquito enviado pelo rei a viu, ficaram
tão surpresos que não podiam dizer uma palavra sequer.
— Ora, agora ficai alerta! – gritou a falsa princesa. – Se não me trou-
xerdes algo para comer, mandarei cortar todas as vossas cabeças!
Então, sussurraram entre si:
— Mas que bela situação! Ela é tão má quanto feia. Que noiva para nos-
so pobre rei! Certamente não valia a pena trazê-la do outro lado do mundo!
Mas ela prosseguiu dando-lhes ordens por todos os lados e, por ab-
solutamente nada, dava tapas e beliscões em todos que pudesse alcançar.
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criatura horrenda?! Que ela seja trancada na grande torre, com a ama e
com aqueles que a trouxeram aqui! Quanto aos irmãos, que tenham as
cabeças cortadas!
Nesse ínterim, o rei e o príncipe, que sabiam que a irmã deveria ter
chegado, aprumaram-se e sentaram-se a esperar, a qualquer minuto,
para serem chamados a saudá-la. Assim, quando veio o carcereiro com
os soldados e os levaram para baixo, até a masmorra escura, repleta de
sapos e morcegos e onde ficaram com água até o pescoço, ninguém po-
deria ter ficado mais surpreso e consternado do que eles.
— Eis um tipo funesto de casamento – disseram –; o que pode ter acon-
tecido para que devamos ser tratados assim? Eles pretendem nos matar.
E essa ideia os perturbou muito. Passaram-se três dias antes que ou-
vissem qualquer notícia, e o Rei dos Pavões veio e os repreendeu por um
buraco na parede.
— Vós dissestes que éreis rei e príncipe – bradou –, para tentar casar-
-me com vossa irmã, mas não sois nada senão mendigos, não valeis a
água que bebeis. Farei convosco um trabalho ligeiro e a espada que cor-
tará vossas cabeças já está sendo afiada!
— Rei dos Pavões – respondeu o rei, irado. – É melhor que tenhais
cuidado no que estais prestes a fazer. Sou tão rei quanto vós e tenho um
reino, trajes e coroas esplêndidos e muito ouro para fazer o que quiser.
Estais satisfeitos com essa galhofa de cortar nossas cabeças; talvez pen-
sais que vos roubamos algo?
De início o Rei dos Pavões ficou confuso com esse discurso corajoso
e ficou inclinado a mandá-los de volta todos juntos, mas seu primeiro-
-ministro afirmou que tal ardil nunca deveria ficar impune, que todos
iriam rir dele. Portanto, acusaram-nos de impostores, pois prometeram
ao rei uma bela princesa em casamento, que, ao chegar, provou ser uma
camponesa feiosa.
Essa acusação foi lida aos prisioneiros, que clamaram ter dito a ver-
dade, que a irmã, de fato, era uma princesa mais linda que o dia, e que
havia algum mistério a respeito disso que não podiam entender. Portan-
to, exigiram sete dias para provar a inocência. O Rei dos Pavões estava
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tão irado que dificilmente lhes concederia esse favor, mas, por fim foi
persuadido a concedê-lo.
Enquanto tudo isso acontecia na corte, vejamos o que estava acon-
tecendo à verdadeira princesa. Quando o dia raiou, ela e Faísca ficaram
atônitos ao se descobrirem sozinhos no mar, sem barco e sem ninguém
para os ajudar. A princesa chorou, chorou, até que os peixes sentiram
pena dela.
— Pobre de mim! – disse a princesa. – O Rei dos Pavões deve ter
ordenado que me lançassem ao mar porque mudou de ideia e não quer
casar comigo. Mas como isso é estranho, justo quando eu o amava tanto
e o poderíamos ter sido tão felizes juntos!
Então, ela chorou mais do que nunca, pois não conseguia deixar de
amá-lo. Boiaram por dois dias no mar, para lá e para cá, molhados e
tremendo de frio, tão famintos que, quando a princesa viu umas ostras,
ela as pegou e comeu algumas com Faísca, embora não gostassem nem
um pouco de ostras. Ao cair a noite, a princesa estava tão amedrontada
que disse a Faísca:
— Ah, por favor, continua a latir, pois temo que os linguados venham
nos engolir!
Ora, eles haviam boiado até bem perto da costa, onde vivia um velho
pobre, sozinho em sua cabana. Ao ouvir Faísca latir, o velho pensou
consigo:
— Deve ter havido um naufrágio! ( Já que os cães nunca cruzavam
aquele caminho de modo algum).
Então, saiu para ver se podia ajudar de algum modo. Logo, viu a
princesa e Faísca boiando, para lá e para cá, e Rosette, esticando as mãos
na direção do velho, gritou:
— Ah! Bom velhinho! Salva-me ou morrerei de frio e de fome!
Ao ouvi-la gritar tão lamentosa, sentiu pena e correu à casa para
pegar um gancho longo de puxar barcos. Então, entrou na água até que
ficasse na altura do queixo e, depois de quase se afogar uma ou duas
vezes, finalmente, teve sorte em enganchar a cama da princesa e levá-la
até a margem.
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* Madame d’Aulnoy.
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Devo deixar-te de uma vez, e não nos veremos de novo até que tenhas
calçado três pares de sapatos de ferro e gasto suas solas à minha procura.
Ao dizer isso, desapareceu.
Quando ficou sozinha, a princesa começou a chorar e a gemer tanto, que
dava pena ouvir; no entanto, quando viu que lágrimas e gemidos de nada
serviam, levantou-se determinada a ir onde quer que o destino a levasse.
Chegando à cidade, a primeira coisa que fez foi encomendar três pares
de sandálias de ferro e uma vara de aço. Tendo feito esses preparativos
para sua jornada, saiu à procura do marido. Sem parar, viajou por nove
mares e cruzou nove continentes; passou por florestas com árvores cujos
troncos eram largos como barris de cerveja; tropeçava e batia-se contra
galhos caídos, recompunha-se e prosseguia; os galhos das árvores batiam-
-lhe no rosto e arbustos feriam-lhe as mãos, mas ela prosseguia sem nunca
olhar para trás. Enfim, exausta da longa viagem, esgotada e vencida pela
tristeza, mas ainda com esperança no coração, chegou a uma casa.
Quem pensais que vivia ali? A Lua!
A princesa bateu à porta e implorou que a deixassem entrar e descan-
sar um pouco. A mãe da Lua, quando viu a moça em apuros, compade-
ceu-se dela, a fez entrar, alimentou-a e cuidou dela. Enquanto estava aí,
a princesa teve um bebê.
Um dia, a mãe da Lua perguntou:
— Como é possível para ti, uma mortal, vires até aqui, a morada da Lua?
Então a pobre moça contou tudo que lhe acontecera e acrescentou:
— Sempre serei grata aos céus por ter-me trazido até aqui, e grata a
ti, que tiveste piedade de mim e de meu bebê, e não nos deixaste à espera
da morte. Agora, rogo-te um favor. Acaso tua filha, a Lua, pode dizer-
-me onde está meu marido?
— Ela não pode contar-te, minha filha – respondeu a deusa –, mas
se viajares rumo ao oriente até chegar à morada do Sol, ele poderá
dizer-te algo.
Então, deu à princesa frango assado para comer e advertiu-a que
fosse muito cuidadosa para não perder nenhum dos ossos, porque lhe
poderiam ser muito úteis.
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bravo e triste, pois se põe nos portões da morte. É o seu curso natural.
De lá ele volta para cá.
Ela então contou à princesa que perguntara acerca do marido, e que
o filho respondera que nada sabia sobre ele e que a única esperança era
perguntar ao Vento. Antes que a princesa partisse, a mãe do Sol deu-lhe
um frango assado para comer e advertiu-a que tivesse muito cuidado
com os ossos, o que ela teve, juntando-os numa trouxa. Então a princesa
jogou fora o segundo par de sapatos, que estavam gastos, e com o bebê
nos braços e a vara na mão, partiu em direção ao Vento.
Nessas idas e vindas, ela encontrou dificuldades ainda maiores que
antes, pois passava por uma montanha de pedregulhos atrás da outra,
das quais surgiriam línguas de fogo. Passou por florestas que nunca ti-
nham sido pisadas por pés humanos e teve de cruzar campos de gelo e
avalanches de neve. A pobre mulher quase morreu nessas adversidades,
mas manteve um coração valente e, por fim, chegou a uma enorme ca-
verna ao lado de uma montanha. Era a morada do Vento. Havia uma
portinha na grade em frente à caverna, e ali a princesa bateu e pediu
autorização para entrar. A mãe do Vento compadeceu-se dela e deixou-a
entrar, então ela descansou um pouco. Aqui também ela foi escondida, a
fim de que o Vento não a pudesse notar.
Na manhã seguinte, a mãe do Vento contou-lhe que o marido vivia
numa mata fechada, tão fechada que nenhum machado poderia abrir
uma picada por ali. Ele construíra uma espécie de casa, juntando tron-
cos de árvore e amarrando-os com varas de salgueiro e ali vivia sozinho,
afastado da humanidade.
Depois de dar à princesa frango para comer e de adverti-la que
guardasse os ossos, a mãe do Vento aconselhou-a a ir pela Via Láctea,
que à noite atravessa os céus, e a seguir sempre em frente até alcançar
seu objetivo.
Tendo agradecido à velha senhora com lágrimas nos olhos pela hos-
pitalidade e pelas boas novas que lhe dera, a princesa partiu em sua
jornada sem descansar nem de dia nem de noite, tamanha era sua ânsia
de ver o marido de novo. Avante, avante, ela andou até que o último par
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de sapatos estivesse caindo aos pedaços. Então, jogou-os fora e saiu com
os pés descalços, sem se importar com a lama, nem com os espinhos que
a machucavam, nem com as pedras que a arranhavam. Chegou enfim a
uma campina verde às margens da floresta. O coração ficou acelerado ao
ver as flores e a grama macia, e ela sentou-se para descansar um pouco.
Mas ouvir o chilro dos pássaros para seus companheiros entre as árvores
a fez pensar com saudade no marido, e chorou amargamente. Tomando
o bebê nos braços e sua trouxa de ossos de frango no ombro, avançou
mata adentro.
Por três dias e três noites enfrentou a mata, mas nada pôde achar.
Estava completamente esgotada pelo cansaço e pela fome, e sua vara já
não podia ajudá-la, pois ficara sem ponta na viagem. Quase cedeu ao
desespero, mas fez um último grande esforço e, de repente, numa moita,
chegou ao tipo de casa que a mãe do Vento descrevera. A casa não tinha
janelas e a porta estava em cima do teto. A princesa rodeou a casa, em
busca de pegadas, mas nada encontrou. O que tinha de fazer? Como
entrar? Pensou, pensou e tentou em vão escalar até a porta. Então, de
repente, lembrou-se dos ossos de frango que trouxera consigo em todo
o caminho exasperante e disse a si mesma:
— Elas não me teriam dito para ter tanto cuidado com esses ossos se
não tivessem uma boa razão para fazê-lo. Talvez agora, neste momento
de necessidade, eles me possam ser úteis.
Tirou os ossos da trouxa e, depois de pensar um pouco, uniu as
pontas. Para sua surpresa, os ossos ficaram firmemente unidos; então
acrescentou os outros ossos, até que tivesse duas longas hastes da altura
da casa. Estas foram apoiadas contra a parede, à distância de uma jar-
da uma da outra. Entre elas, a princesa colocou os demais ossos, um a
um, como os degraus de uma escada. Tão logo um degrau estava pron-
to, subia nele e fazia o seguinte, e depois o outro, e mais um, até que
chegou bem perto da porta. Quando estava quase no topo, percebeu
que já não restavam mais ossos para o último lance da escada. O que
haveria de fazer? Sem o último degrau, a escada inteira teria sido inú-
til. Será que tinha perdido um dos ossos? Então, repentinamente uma
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ideia lhe ocorreu. Com uma faca em punho, cortou o próprio dedinho
e, colocando-o no lugar do último degrau, este se firmou, assim como
ocorrera aos ossos. A escada estava completa e, com o filho nos braços,
ela entrou pela porta da casa. Ali encontrou tudo em perfeita ordem.
Depois de comer um pouco, pôs o bebê para dormir num cocho que
estava no chão e sentou-se para descansar.
Quando o marido, o porco, voltou para casa, ficou surpreso com o que
viu. Em primeiro lugar, ele não podia acreditar em seus olhos e fitou a
escada de ossos com o dedinho no topo. Sentiu que alguma magia des-
conhecida estava em ação e, aterrorizado, quase voltou as costas para a
casa; mas acabou tendo uma ideia melhor e transformou-se em pombo, de
maneira que nenhum feitiço podia ter poder sobre ele, e voou para dentro
do quarto sem tocar na escada. Ali, encontrou uma mulher embalando
uma criança. Quando a viu, com aparência tão transformada por tudo que
sofrera por causa dele, seu coração foi tocado por tanto amor e saudade e
por tão grande compaixão que de repente tornou-se um homem.
A princesa levantou-se quando o viu, e o coração pulsava com temor,
pois não o conhecia. Quando ele lhe contou quem era, com grande rego-
zijo, ela esqueceu-se de todos os sofrimentos, que agora eram-lhe como
nada. Ele era um homem belíssimo, alto igual um pinheiro. Sentaram-se
juntos e ela contou-lhe todas as suas aventuras; ele chorou de pena com
a história. Depois disso, ele também contou a ela sua própria história.
— Sou filho de um rei. Uma vez, quando meu pai estava lutando
contra alguns dragões, que eram o flagelo de meu povo, eu matei um
dragãozinho. A mãe dele, que era bruxa, lançou-me um feitiço e trans-
formou-me em porco. Foi ela que, disfarçada de velha senhora, deu-te a
corda para amarrar em volta de meu pé. Assim, em vez dos três dias que
faltavam para que o feitiço se quebrasse, fui forçado a continuar porco
por mais três anos. Agora que sofremos um pelo outro e reencontramos
um ao outro, esqueçamos o passado.
E beijaram-se tomados de júbilo.
Na manhã seguinte, saíram cedo para voltar ao reino do pai dele.
Era grande o gozo de todo o povo quando viu a ele e à esposa; o pai e
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O Norka
Pois bem, no terceiro dia foi a vez de o filho mais novo tomar para si
o encargo. Todos riram dele em sinal de desdém, uma vez que era extre-
mamente estúpido; estavam certos de que nada faria. O rapaz, entretan-
to, recolheu suas armas e logo partiu para o campo, sentando-se sobre a
grama em posição tal que, caso adormecesse, suas armas o espetariam e
o fariam acordar.
Bateu então a meia-noite. O solo começou a tremer e o Norka se
aproximou às pressas; tão grande era que arrebentou a cerca ao invadir
o campo. O príncipe se recompôs, pôs-se de pé, fez o sinal da cruz e
saiu em direção à besta, que recuou apressadamente. O príncipe correu
ao seu encalço, mas logo percebeu que não poderia alcançá-la a pé. Por
essa razão, precipitou-se na direção do estábulo, botou as mãos sobre
o melhor cavalo que havia ali e continuou a perseguição. Logo então
alcançou a besta, com quem começou a lutar. Ambos lutaram e lutaram,
e o príncipe infligiu no monstro três ferimentos. Acabaram ambos, to-
davia, extremamente cansados, ao que se deitaram para um breve des-
canso. Só que, no momento em que o rapaz fechou os olhos, a besta se
ergueu e se colocou a fugir. O cavalo do príncipe o despertou, e num
instante o rapaz se pôs de pé para reiniciar a perseguição. Alcançada a
besta, voltou a lutar com ela, infligindo-lhe, como antes, três ferimentos,
e então ambos se deitaram para novo repouso. Em seguida, a exemplo
do que já ocorrera, a besta partiu em fuga. O príncipe a alcançou e lhe
infligiu três ferimentos novamente, mas de súbito, à medida que o rapaz
a perseguia pela quarta vez, a besta em fuga alcançou uma grande rocha
branca, ergueu-a e escapou para o outro mundo, bradando em direção
ao príncipe:
— Eis que só me hás de superar se aqui entrares!
O príncipe foi para casa, relatou ao pai tudo o que havia ocorrido e
pediu que lhe deixassem preparada e trançada uma corda de couro longa
o bastante para que chegasse ao outro mundo. Seu pai, então, ordenou
que fosse feito tudo quanto ele pedia.
Uma vez preparada a corda, o príncipe convocou seus irmãos e, na
companhia deles, dos servos que levavam consigo de tudo o que se fa-
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O Norka
zia necessário para um ano inteiro, partiu rumo ao local em que, sob a
pedra, a besta desaparecera. Ao chegarem lá, construíram no lugar um
palácio, onde residiram por certo tempo. Tudo pronto, contudo, o irmão
mais novo perguntou aos outros:
— E agora, meus irmãos, quem erguerá esta rocha?
Nenhum dos dois irmãos conseguiu sequer movê-la; mas, tão logo o
jovem a tocou, e não obstante fosse ela enorme como um monte, a rocha
voou para longe. Tendo-a assim arremessado, ele se dirigiu pela segunda
vez aos seus irmãos para perguntar-lhes:
— Quem irá ao outro mundo a fim de subjugar o Norka?
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— Vê bem, meu velho, deves realmente matar essa ovelha para que
ela não fuja de novo para o bosque.
O homem, que era um camarada pacífico, não objetou, mas apenas disse:
— Bom, façamos assim!
A filha, no entanto, escutara casualmente a conversa e correu para o
rebanho, a lamentar em voz alta:
— Oh, mamãezinha! Vão abater-te!
— Bem, então, se me abaterem – respondeu a ovelha negra –, não co-
mas a carne nem o caldo que fizerem de mim, mas junta todos os meus
ossos e enterra-os na borda do campo.
Pouco depois disso, tiraram a ovelha negra do rebanho e abateram-
-na. A bruxa fez sopa de ervilhas com o caldo da carne e o serviu à filha.
A moça, todavia, recordou a advertência da mãe. Não tocou na sopa, mas
levou os ossos para a borda do campo e os enterrou lá. No local, brotou
uma bétula – uma árvore muito adorável. Passado algum tempo – quem
poderia dizer quanto tempo viveram lá? – a bruxa, que nesse ínterim ti-
vera uma criança, começou a ficar de má vontade com a filha do homem
e a atormentá-la de todas as maneiras possíveis.
Ora, um grande festival estava para acontecer no palácio, e o rei or-
denara que todas as pessoas fossem convidadas e que fosse proclamado
o convite do seguinte modo:
— Vinde, vinde todos! Pobres e miseráveis, todos vós! Ainda que
cegos e aleijados, montai vossos corcéis ou vinde pelo mar.
E assim dirigiram-se para o banquete do rei todos os proscritos, os
aleijados, os coxos e os cegos. Na casa do bom homem, também, foram
feitos os preparativos para ir ao palácio. A bruxa disse ao homem:
— Vai na frente, meu velho, com a mais nova. Darei tarefas para que
a mais velha não fique entediada na nossa ausência.
Então, o homem pegou a filha mais nova e saiu. A bruxa, contudo,
acendeu o fogão, lançou um pote de grãos de cevada entre as cinzas e
disse à moça:
— Se não retirares a cevada das cinzas e colocá-las no pote nova-
mente antes do cair da noite, eu te devorarei!
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para além dos muros do palácio, mais rápida que uma flecha. Ao chegar
em casa, despiu-se perto do pé de bétula, deixou o cavalo nas cercanias
e apressou-se em tomar seu lugar perto do fogo. Pouco tempo depois o
homem e a mulher voltaram para casa, e a bruxa disse à moça:
— Ah! Pobrezinha, aqui estás, com certeza! Não sabes que bons mo-
mentos tivemos no palácio! O filho do rei desfilou com a minha filha,
mas a coitadinha caiu e quebrou o braço.
A moça sabia muito bem o que realmente tinha acontecido, mas fin-
giu nada saber a esse respeito e ficou muda, atrás do fogão.
No dia seguinte, foram convidados de novo para o banquete do rei.
— Ei, meu velho – disse a bruxa –, veste-te o mais rápido que pude-
res, fomos chamados para a festa. Leva a mais nova, darei à outra uma
tarefa para que não fique fatigada.
Acendeu o fogo, lançou um pote de sementes de cânhamo entre as
cinzas e disse à moça:
— Se não separares isso e todas as sementes não estiverem de volta
no pote, matar-te-ei!
A moça chorou amargamente. Em seguida, foi ao pé de bétula, la-
vou-se em um dos lados e secou-se no outro. Dessa vez, recebeu um traje
ainda mais esplêndido e um belíssimo ginete. Quebrou um galho da
bétula, bateu com ele no fogão de modo que as sementes voassem para
o pote e rumou apressada para o palácio.
Mais uma vez, o filho do rei foi encontrá-la, amarrou o cavalo ao pi-
lar e a conduziu ao salão do banquete. Durante a festa, a moça sentou-se
ao lado dele no lugar de honra, como fizera no dia anterior. Entretanto,
a filha da bruxa roía os ossos debaixo da mesa e o príncipe, por engano,
deu-lhe um safanão que a fez quebrar a perna – ele nunca notara que a
moça rastejava por entre os pés das pessoas. Ela era MUITO azarada!
Novamente, a filha do bom homem correu para casa cedo, mas o
filho do rei besuntara os batentes das portas com breu e a tiara de ouro
da moça ficou grudada. Ela não tinha tempo para procurá-la, pulou na
sela e cavalgou como uma flecha para o pé de bétula. Lá deixou o cavalo,
os belos trajes e disse à mãe:
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Nessa altura, a moça correu para casa e, quando o pai chegou da festa
com a bruxa, ela estava no lugar de costume, atrás do fogão. Então, a
bruxa dirigiu-se à moça:
— Pobrezinha! O que há para ver aqui comparado ao que NÓS vi-
mos no palácio? O filho do rei passeou com minha filha por todos os
cômodos, deixou-a cair, é verdade, e a menina quebrou o pé.
A filha do homem manteve a calma o tempo todo e ocupou-se do
fogo. Passou a noite, e quando o dia começou a raiar, a bruxa, chorando,
acordou o marido:
— Ei, acorda, meu velho! Fomos chamados para o banquete real.
Assim, o velho acordou e a bruxa, então, deu-lhe a filha mais nova,
ordenando:
— Leva a mais nova; darei à outra um trabalho, caso contrário, ficará
enfastiada de ficar em casa sozinha.
Fez como de costume. Dessa vez, lançou um pires de leite nas cinzas
do fogão e disse:
— Se não despejares o leite novamente no pires antes que volte para
casa, sofrerás por isso.
Como a moça ficou apavorada dessa vez! Correu para o pé de bétu-
la e com os poderes mágicos a tarefa foi realizada. Em seguida, partiu
para o palácio como nas outras vezes. Chegando ao pátio, encontrou
o príncipe a esperá-la. Ele a conduziu pelo saguão, onde recebeu altas
honrarias, mas a filha da bruxa, que chupava os ossos debaixo da mesa e
ficava agachada aos pés das pessoas, teve um olho golpeado, pobrezinha!
Ora, ninguém sabia nada além do que antes a respeito da filha do bom
homem, ninguém sabia de onde vinha, mas o príncipe besuntou a soleira
da porta com breu e, ao partir, os sapatinhos dourados ficaram grudados.
A moça chegou à bétula e, ao despir-se dos trajes finos, falou:
— Ai de mim, querida mãezinha! Perdi meus sapatinhos dourados!
— Deixa estar – foi a resposta da mãe –, se precisares deles, dar-te-ei
outros ainda mais belos.
Mal chegara ao seu posto habitual atrás do fogão, quando o pai chegou
em casa com a bruxa. Imediatamente a bruxa começou a zombar da moça:
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A Bétula Maravilhosa
— Ah! Pobrezinha, não há nada aqui para veres, e nós – Ah! Que
coisas grandiosas vimos no palácio! Minha filhinha foi mais uma vez
conduzida por todos os lados, mas teve a má-sorte de cair e ter o olho
machucado. E tu, estúpida, o que sabes das coisas?
— Verdade, o que posso saber? – respondeu a moça. – Tive muito o
que fazer para limpar o borralho do fogão.
Ora, o príncipe guardou todas as coisas que a moça perdera e logo se
pôs a procurar a dona dos objetos. Para isso, propôs um grande banquete
no quarto dia e todas as pessoas foram convidadas ao palácio. A bruxa
também se aprontou para ir. Amarrou um macete de madeira no lugar
do pé da filha, uma tora de madeira no lugar do braço, enfiou um pu-
nhado de pó na cavidade do olho e levou a filha consigo para o palácio.
Quando todas as pessoas estavam reunidas, o filho do rei postou-se no
meio da multidão e bradou:
— A donzela cujo dedo perdeu este anel, cuja cabeça foi circundada
por este aro dourado e cujos pés couberem nestes sapatos, será minha
noiva.
Como todos tentaram experimentar! No entanto, os objetos não
couberam em ninguém.
— A borralheira não está aqui – afirmou o príncipe, por fim. – Ide e
a trazei. Deixarei que prove esses objetos.
Desta feita, a moça foi levada ao palácio e o príncipe estava prestes a
entregar-lhe os ornamentos, quando a bruxa o deteve, suplicando:
— Não os dês a ela. Sujará tudo de cinzas! Em vez disso, dá-lhes à
minha filha.
Bem, o príncipe então deu à filha da bruxa o anel e a mulher limou e
afastou os dedos da moça até caber o anel. O mesmo se deu com a tiara e
com os sapatinhos de ouro. A bruxa não permitiu que fossem entregues
à borralheira. Forçou a cabeça e os pés da filha até que coubessem. O que
havia de se fazer agora? O príncipe teve de tomar a filha da bruxa por
noiva, quisesse ou não. Contudo, esgueirara-se para a casa do pai dela,
pois estava com vergonha de ter de dar uma festa de noivado no palácio
com uma noiva tão esquisita. Passados alguns dias, teve, por fim, de levar
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a noiva ao palácio e estava prestes a fazê-lo. Assim que estavam para par,
a moça mais velha deixou seu posto ao lado do fogão com o pretexto de
pegar alguma coisa no estábulo. Ao sair, sussurrou no ouvido do príncipe
que estava no quintal:
— Pobre de mim, querido príncipe! Não roubes o meu ouro e mi-
nha prata.
Logo depois disso o filho do rei reconheceu a borralheira. Levou
ambas as moças consigo e partiu. Após trilharem uma pequena parte do
caminho, chegaram à beira de um rio e o príncipe pôs a filha da bruxa
atravessada de uma margem a outra para servir de ponte e acabou fican-
do com a borralheira. Lá ficou desde então a filha da bruxa, como uma
ponte sobre o rio e não podia se mexer, embora estivesse com o coração
pesaroso. Como não havia quem a ajudasse nas proximidades, finalmen-
te, gritou angustiada:
— Que brote um pinheiro dourado do meu corpo! Talvez minha
mãe me reconheça por esse sinal!
Mal acabou de pronunciar tais palavras e um pinheiro dourado bro-
tou de seu corpo, ereto, no meio da ponte.
Ora, logo que o príncipe se livrou da filha da bruxa, tomou a bor-
ralheira como noiva e caminharam até o pé de bétula que nascera no
túmulo da mãe da moça. Lá receberam toda sorte de tesouros e rique-
zas, três sacos cheios de ouro, muita prata, e um corcel esplêndido que
os levou para o palácio. Aí viveram por muito tempo juntos e a jovem
princesa deu um filho ao príncipe. Imediatamente foi dito à bruxa que
sua filha dera à luz uma criança – pois todos acreditavam que a jovem
esposa do novo rei era a filha da bruxa.
— Então – disse a bruxa para si mesma, – é melhor levar meu pre-
sente para a criança.
Ao dizer isso, saiu. Aconteceu de ela chegar à beira do rio e ver o belo
pinheiro dourado erguido no meio da ponte. Quando começou a cortá-
-lo para levar ao neto, ouviu uma voz lamuriosa:
— Ai de mim, mãe querida, não me cortes assim!
— Estás aí? – perguntou a bruxa.
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para olhá-las, o açougueiro lhe disse que eram muito valiosas e persua-
diu o tolinho a trocá-las pela vaca.
A mãe, ao ver o menino chegar em casa com as sementes de feijão em
vez do dinheiro que esperava receber por sua bela vaca, afligiu-se muito
e derramou copiosas lágrimas, repreendendo-o pela tolice que cometera.
João lhe disse que sentia muitíssimo, e os dois foram dormir muito tris-
tes naquela noite, pois sua última esperança parecia ter-se desvanecido.
Ao amanhecer, João se levantou e foi até o jardim.
— Ao menos – pensou – vou plantar essas maravilhosas sementes de
feijão. Mamãe disse que são apenas sementes comuns de feijão verme-
lho, e nada mais. Mesmo assim, vou plantá-las.
Então, pegou um pedaço de pau, fez alguns buracos no chão e neles
enterrou as sementes.
Naquele dia, os dois comeram muito pouco e foram para a cama
tristes, pois sabiam que, no dia seguinte, nada teriam para comer. João,
que não conseguia mais dormir de aflição e tristeza, levantou-se ao raiar
do dia e saiu para o jardim.
Qual não foi sua surpresa ao ver que os feijões haviam crescido du-
rante a noite, escalando muito alto, até ocultarem o alto rochedo que
abrigava a casinha, e desaparecendo acima dele! Os talos da planta se
haviam entrelaçado muitas vezes, até formarem uma bela de uma escada.
— Parece bem fácil subir por ali – pensou o menino.
Tão logo concebeu o projeto, João decidiu-se a pô-lo em prática, pois
era bom escalador. Entretanto, depois do erro que acabara de cometer
em relação à vaca, achou por bem consultar a mãe primeiro.
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João e o Pé de Feijão
A mãe não queria que ele se aventurasse em tão estranha escada, mas
João insistiu, com jeito, implorando-lhe que consentisse com a empresa,
seguro de que deveria haver algo de maravilhoso naquele pé de feijão.
Por fim, a mãe cedeu.
Assim que recebeu a autorização, o menino começou a subir e a subir
aquela espécie de escada que a planta formara, até que todas as coisas
deixadas para trás – o chalé, a vila e até a torre da igreja – parecessem
bem pequeninas. Mesmo assim, ainda não conseguia ver o topo do pé
de feijão.
João estava se sentindo um pouco cansado e, por um momento, pen-
sou em voltar. Mas era um garoto muito perseverante, e sabia que a
única maneira de conseguir as coisas é não desistindo nunca. Por isso,
depois de descansar um pouco, prosseguiu.
Depois de subir e subir tão alto que ficou com medo de olhar para
baixo, por receio de sentir vertigens, João enfim alcançou o topo do pé
de feijão, onde encontrou um lindo campo arborizado, com belas pra-
darias cobertas de ovelhas. Através das pastagens, passava um córrego
de águas cristalinas e, não muito longe do local onde descera do pé de
feijão, erguia-se um imponente castelo.
João muito admirou-se de jamais ter visto ou ouvido falar daquele
castelo antes. Depois, porém, de refletir um pouco mais sobre o assunto,
percebeu que a construção estava tão separada do vilarejo pela pedreira
perpendicular sobre a qual se assentava, que era como se estivesse em
outra terra.
Enquanto João, parado de pé, observava o castelo, uma mulher de
aspecto muito estranho saiu do bosque e caminhou em sua direção. Ela
usava um gorro pontudo e acolchoado de cetim vermelho, arrematado
com pele de arminho. Caminhava segurando um bastão e trazia os ca-
belos soltos correndo-lhe sobre os ombros. Ao vê-la se aproximar, João
tirou o chapéu e lhe fez sinal de reverência, inclinando-se.
— Desculpai-me, minha senhora – disse ele –, mas esta é a vossa casa?
— Não – respondeu a velha senhora. – Escuta, que eu te contarei a
história deste castelo.
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“Era uma vez um nobre cavaleiro, que morava neste castelo, na frontei-
ra com a Terra das Fadas. Ele tinha uma bela esposa, a quem muito amava,
e vários filhos adoráveis. Ademais, como seus vizinhos – a gente pequeni-
na – tinham-no em grande estima, davam-lhe muitos presentes valiosos.
“Logo se espalhou o rumor de que o cavaleiro possuía grandes te-
souros, e então um gigante monstruoso, criatura extremamente má que
morava não muito distante dali, decidiu apoderar-se de todos eles. Por
isso, subornou um criado desleal para que este lhe permitisse entrar no
castelo quando o cavaleiro estivesse na cama dormindo, e assim o matou
enquanto dormia. Depois, dirigiu-se à área do castelo onde era a mater-
nidade e também matou todas as crianças que encontrou ali. Por sorte,
a esposa não se encontrava em casa. Saíra com o filho recém-nascido
– que tinha apenas dois ou três meses de idade – para visitar sua antiga
babá, que vivia no vale, e fora obrigada a passar a noite lá devido a uma
tempestade.
“Na manhã seguinte, assim que o sol nasceu, um dos criados do cas-
telo, que conseguira escapar, foi contar à pobre dama o triste fim que
tiveram seu marido e seus belos filhinhos. No início, ela mal conseguiu
acreditar no que o servo dizia, e depois desejou voltar para o castelo
e compartilhar do destino de seus entes queridos. Mas a velha babá,
banhada em lágrimas, suplicou-lhe que se lembrasse de que ainda lhe
restara um filho e que tinha o dever de preservar a própria vida em prol
daquela pobre criança inocente.
“A dama cedeu aos argumentos da babá e consentiu em permane-
cer na casa desta, que era o melhor esconderijo de que dispunha; pois
o criado lhe disse que o gigante jurara matar a ela e ao bebê, caso os
encontrasse. E assim, muitos anos passaram. A velha babá morreu, dei-
xando à pobre dama seu chalé e os poucos móveis que possuía. A mulher
continuou vivendo ali, trabalhando como camponesa para ganhar o pão
de cada dia. Com uma roda de fiar e o leite extraído de uma vaca que
comprara com o pouco dinheiro que trazia consigo, garantia sua precária
subsistência e a do filho. Além disso, junto ao chalé, havia uma pequena
horta onde os dois cultivavam pêssegos, feijão e repolho; e em época de
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correu de volta para o pé de feijão, por onde desceu tão rápido quanto
o permitiam seus pés.
Quando a mãe o viu entrar no chalé, chorou de alegria, pois temia
que as fadas o tivessem levado ou que o gigante o houvesse encontrado.
Mas João, depositando a galinha marrom diante dela, contou que esti-
vera no castelo do gigante e narrou todas as aventuras por que passara.
A mulher muito se alegrou ao ver a galinha, pois esta os tornaria ricos
novamente.
Os sacos de moedas
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João e o Pé de Feijão
A harpa falante
Assim, ele subiu pelo pé de feijão mais uma vez e soou a trombeta ao
portão do castelo do gigante. A giganta logo veio abrir. Era muito burra,
por isso não o reconheceu de novo, mas se deteve um instante antes de
trazê-lo para dentro. Temia outro roubo. Mas a carinha de João parecia
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tão inocente que ela não conseguiu resistir; de modo que o fez entrar e,
outra vez, escondeu-o no armário.
Mais tarde, o gigante chegou em casa e, assim que transpôs o umbral,
bradou:
— Pi-ri-ri, pó-ró-ró! Sinto o cheiro da respiração de um homem no
recinto. Quer esteja vivo, quer morto se encontre já, trituro-lhe os ossos
todos, para então o devorar.
— Seu gigante velho e estúpido – disse-lhe a esposa –, o aroma que
sentes é simplesmente o de um carneiro que eu assei para o jantar.
O gigante sentou-se, então, e sua esposa trouxe-lhe um carneiro in-
teiro para o jantar. Quando terminou de comê-lo todo, ele disse:
— Agora, traze-me a minha harpa, que escutarei um pouco de mú-
sica enquanto fazes a tua caminhada.
A giganta obedeceu e lhe entregou uma linda harpa de cordas de
ouro, toda cravada de diamantes e rubis.
— Este é um dos objetos mais bonitos que tomei daquele cavaleiro
– disse o gigante. – Sou um grande apreciador de música, e esta harpa é
uma criada muito leal.
Nisso, aproximou de si o instrumento e ordenou:
— Toca!
E a harpa tocou uma ária muito suave e triste.
— Toca algo mais alegre! – disse o gigante.
E a harpa reproduziu uma canção alegre.
— Agora, toca uma canção de ninar – bradou a criatura, por fim.
A harpa, então, tocou uma canção de ninar, cujas doces notas fizeram
seu senhor cair no sono quase que de imediato.
Nisso, João saiu sorrateiramente do armário e foi até a cozinha, que
era enorme, para ver se a giganta tinha mesmo saído. Como não encon-
trou ninguém no recinto, foi até a porta e abriu-a com muito cuidado,
pois imaginou que não conseguiria fazê-lo com a harpa nas mãos.
Depois, entrou na sala do gigante, surrupiou a harpa e saiu correndo
com ela nas mãos. Mas, quando cruzou a ombreira da porta, o instru-
mento gritou:
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João e o Pé de Feijão
A mãe de João recuou alguns passos; e foi bom tê-lo feito, pois, no
momento em que o gigante se agarrou à última haste do pé de feijão, o
menino a cortou por completo e deu no pé.
Foi assim que o gigante despencou lá de cima e ouviu-se um enorme
estrondo. Como caiu de cabeça, a criatura teve o pescoço quebrado e, ao
fim, jazia morta aos pés da mulher a quem tanto mal fizera.
Antes mesmo de João e a mãe terem recuperado a calma e a sereni-
dade, uma linda dama apareceu na frente deles.
— João – disse ela –, em tudo te portaste como o legítimo filho de
um bravo cavaleiro, pelo que mereces recuperar toda a tua herança. Abre
no solo uma cova e enterra o gigante. Depois vai e mata a giganta.
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O Ratinho Bom
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por cima dos ombros, levando-a para fora do recinto como se fosse um
saco de farinha.
A pobre rainha apertava a princesinha nos braços e gritava por mi-
sericórdia, mas o perverso rei zombava de seu desespero e pedia que
gritasse mais, pois aquilo o divertia. Montando seu vistoso cavalo negro,
cavalgou de volta para o seu país. Ao lá chegar, declarou que a rainha
e a princesa seriam enforcadas na árvore mais próxima. Os cortesãos,
contudo, afirmaram que seria uma pena, pois, quando o bebê crescesse,
daria uma linda esposa para o filho do rei.
Como a ideia o agradasse, mandou prender a rainha no último
quarto de uma alta torre – um quartinho minúsculo e miseravelmente
mobiliado com apenas uma mesa e uma cama muito dura. Mandou
chamar uma fada que vivia nas proximidades do reino e, após recebê-
-la com mais cortesia do que lhe era habitual, e entretê-la com um
banquete suntuoso, levou-a até a rainha. Ao encontrá-la naquele es-
tado deplorável, a fada ficou tão comovida que, ao beijar-lhe a mão,
sussurrou-lhe:
— Coragem, senhora! Creio haver uma maneira de ajudar-te.
A rainha, um tanto confortada por essas palavras, recebeu-a educa-
damente e implorou que tivesse pena da princesinha, cujo destino en-
contrara tão súbito revés. O rei, irritando-se ao perceber que as duas
estavam aos cochichos, gritou asperamente:
— Vamos encurtando a conversa, senhora. Vieste até aqui pois desejo
saber se essa criança há de tornar-se uma jovem bela e prendada.
A fada respondeu que a princesa seria tão bela, inteligente e pren-
dada quanto se poderia imaginar. O rei, dirigindo-se à rainha, rosnou
que era melhor que assim fosse, pois, de outro modo, seriam ambas en-
forcadas. Retirou-se do quarto, levando consigo a fada; a rainha ficou a
desmanchar-se em lágrimas.
— Como posso desejar que minha filha venha a ser bela, se é para
se casar com aquele anãozinho horrendo, o filho do rei? – disse consigo
mesma. – Todavia, em não se tornando bela, ambas seremos mortas. Se ao
menos eu pudesse escondê-la, para que esse rei cruel jamais a encontrasse!
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— Ah, Delícia! Sou uma velha conhecida tua e não podes imaginar
minha felicidade por ter enfim te encontrado. Espera... esses trapos de
criada não são próprios para ti. Toma este belo vestido e vejamos como
ficarás diferente.
Delícia desfez-se de seu feio gorro e balançou os belos cabelos claros;
lavou as mãos e o rosto em uma fonte de águas cristalinas que havia ali
perto, até que suas bochechas resplandecessem como rosas. Uma vez
adornada de diamantes, no esplêndido vestido que a fada lhe dera, pare-
cia a mais bela princesa do mundo. A fadinha exclamou, extasiada:
— Agora tens a aparência que deverias ter, Delícia: que te parece?
Delícia respondeu:
— Sinto-me como se fosse a filha de um grande rei.
— E te agradarias se assim fosse? – indagou a fada.
— Na verdade, sim – respondeu.
— Ah, bem! Creio que amanhã terei boas notícias para ti.
Correu então de volta ao castelo, onde a rainha ocupava-se com seu
bordado, e exclamou:
— Bem, senhora! Apostarias teu dedal e tua agulha de ouro se não
trago as melhores notícias que poderias jamais ouvir?
— Ah! – suspirou a rainha. – Desde a morte do Rei do Júbilo e da
perda da pequena Delícia, todas as notícias do mundo não valem nada
para mim.
— Ora, ora, basta de melancolia – replicou a fada. – Garanto que a
princesa está muito bem, e que jamais vi beleza igual no mundo. Poderá
tornar-se rainha amanhã, se assim o desejar.
Contou então tudo que havia se passado. A rainha primeiro encheu-
-se de contentamento ao saber da beleza de Delícia, chorando a seguir o
fato de ser uma tratadora de perus.
— Não posso admitir que se case com o filho daquele rei perverso –
afirmou. – Vamos buscá-la imediatamente.
Enquanto isso, o malvado príncipe, furioso com Delícia, sentou-se
à sombra de uma árvore e chorou, aos berros, cheio de ódio e rancor.
Escutando-o, por fim, o rei chegou à janela e gritou:
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diamante de sua coroa brilhava mais que o sol. Por último vinha Delícia,
tão bela que a sua visão era nada menos que maravilhosa.
Caminharam pelas ruas, retribuindo as saudações de todos que en-
contravam, dos cidadãos mais ilustres aos menos destacados, e todo o
povo as seguia, perguntando-se quem seriam aquelas nobres senhoras.
Quando o pátio estava lotado, a fada contou aos súditos sobre o Rei
Perverso e disse-lhes que, se aceitassem Delícia, filha do Rei do Júbilo,
como sua rainha, ela arranjaria um bom esposo e prometeria que todo o
seu reinado seria somente alegrias e festividades, e todas as coisas som-
brias seriam banidas de uma vez para sempre. Ao ouvir isso, o povo
exclamou em uníssono: “Viva, viva nossa Rainha! Fomos infelizes e mi-
seráveis por tempo demais”. Todos deram as mãos e dançaram em volta
das três senhoras, cantando: “Viva! Viva nossa Rainha!”
Houve festividades e fogos de artifício em todas as ruas da cidade.
No dia seguinte, bem cedo, a fada, que havia percorrido o mundo todo
durante a noite, trouxe de volta consigo, em sua carruagem alada, o mais
belo e admirável príncipe que poderia existir. Era tão encantador que
Delícia amou-o no momento em que seus olhos se encontraram. Quan-
to a ele, sentia-se naturalmente o mais afortunado príncipe do mundo.
A rainha concluiu em seu íntimo que seus infortúnios haviam finalmen-
te chegado ao fim, e todos viveram felizes para sempre.*
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Graciosa e Percinet
que não era muito longe. E se alguém que fosse vê-la mencionasse a
encantadora Graciosa, ela bradava furiosamente:
— Não é verdade que ela é adorável. Tenho mais beleza em meu
mindinho do que ela no corpo inteiro!
Logo depois disso, para grande pesar da princesa, a rainha adoeceu e
morreu, e o rei ficou tão melancólico que por um ano inteiro permane-
ceu calado no palácio. Enfim, seus médicos, temendo que caísse doente,
ordenaram que saísse para divertir-se. Montaram, então, um grupo de
caça, mas, como estava muito calor, o rei logo se cansou e disse que ape-
aria e descansaria no castelo por que passavam.
Aconteceu de ser o castelo da duquesa Queixosa, e quando esta ouviu
que o rei estava chegando, saiu a seu encontro e disse que a adega era o lu-
gar mais fresco em todo o castelo, se ele aceitasse descer até ali. Desceram
juntos e o rei, vendo cerca de duzentos tonéis enfileirados um ao lado do
outro, perguntou se aquele estoque imenso de vinho era só para ela.
— Sim, senhor – respondeu ela. – É só para mim, mas ficaria feliz em
deixar-vos degustar um pouco. De qual deles gostais? Das Canárias, St.
Julien, Champagne, vinho branco seco, de uvas passas ou sidra?
— Bem – disse o rei –, uma vez que és gentil a ponto de perguntar-
-me, prefiro Champagne a qualquer outro.
Então a duquesa Queixosa tomou um martelinho e deu duas panca-
dinhas no tonel, e dali caíram pelo menos mil coroas.
— Que quer dizer isso? – perguntou ela, sorrindo.
Depois, bateu no tonel seguinte, e caiu um alqueire de moedas de ouro.
— Não entendo isso de jeito nenhum – disse a duquesa, rindo mais
que da primeira vez.
Voltou-se depois para o terceiro tonel, toc, toc, e saiu tal enxurrada de
diamantes e pérolas que forrou o chão.
— Oh! – ela exclamou. – Isso está além da minha compreensão, ma-
jestade. Alguém deve ter roubado meu bom vinho e colocou toda essa
tralha no lugar.
— Chamas isso de tralha, Madame Queixosa? – espantou-se o rei. –
Tralha! Há aqui o suficiente para comprar dez reinos.
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Graciosa e Percinet
— Deveis saber que todos estes tonéis estão cheios de ouro e joias e,
se quiserdes casar-vos comigo, tudo será vosso.
Aconteceu que o rei amava mais o dinheiro que qualquer outra coisa
no mundo, então exclamou entusiasmado:
— Casar-me contigo? De todo o meu coração! Amanhã, se quiseres.
— Mas tenho uma condição – disse a duquesa. – Tenho de ter total
controle sobre vossa filha para fazer com ela o que me aprouver.
— Oh, certamente, faça-se conforme tua vontade; apertemos as
mãos para firmar o acordo – disse o rei.
Apertaram as mãos e saíram da adega do tesouro juntos. A duquesa
trancou a porta e deu a chave ao rei.
Quando voltou a seu palácio, Graciosa correu a seu encontro e per-
guntou se tivera uma boa caçada.
— Peguei uma pombinha – respondeu ele.
— Ah, dá-ma – disse a princesa – e guardá-la-ei e cuidarei dela.
— Não posso fazê-lo – respondeu –, pois, para ser bem claro, quero dizer
que me encontrei com a duquesa Queixosa e prometi casar-me com ela.
— E a chamas pombinha? – gritou a princesa. – Eu a teria chamado
de coruja das torres.
— Segura essa língua – disse o rei, muito contrariado. – Espero que
te comportes bem com ela. Agora, arruma-te de modo apresentável, pois
estou indo visitá-la.
A princesa, então, foi para o quarto muito aflita, e sua aia, vendo-a
em lágrimas, perguntou o que a afligia.
— Ai de mim! Quem não se afligiria? – respondeu ela. – O rei pre-
tende casar-se de novo, e escolheu como noiva minha inimiga, a medo-
nha duquesa Queixosa.
— Puxa vida! – respondeu a aia. – Ainda assim, lembra-te de que
és uma princesa, e espera-se que dês bom exemplo em fazer o melhor
que podes, aconteça o que acontecer. Deves prometer-me não deixar a
duquesa ver o quanto te desagrada.
A princípio, a princesa não queria prometer, mas a aia mostrou-lhe
razões tão boas, ao fim, ela concordou em ser amável com a madrasta.
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Assim que a aia a deixou, quando a princesa virou-se, ali estava Percinet
ao seu lado. Ela agradeceu-lhe a ajuda tão sagaz, riram e se alegraram
com o modo como tinham enganado a duquesa e suas serviçais; mas
Percinet aconselhou-a a ainda fingir estar mal por mais alguns dias. De-
pois de prometer-lhe ajuda sempre que necessário, desapareceu tão de
repente como tinha aparecido.
A duquesa estava tão satisfeita com a ideia de que Graciosa estava
mesmo mal, que se recuperou duas vezes mais rápido do que se teria
recuperado normalmente, e o casamento foi mantido com grande mag-
nificência. Agora, uma vez que sabia que, acima de tudo, a rainha amava
ouvir que era linda, o rei ordenou que pintassem um retrato dela, e que
se fizesse um torneio no qual os mais valentes cavaleiros da corte deve-
riam sustentar, contra todos os visitantes, que Queixosa era a princesa
mais linda do mundo.
Inúmeros cavaleiros vieram de todos os lugares aceitar o desafio, e a
rainha medonha, vestida de ouro, sentou-se com pompa numa sacada
suspensa para assistir aos combates. Graciosa tinha de ficar em pé junto
dela, onde todo o seu encanto era tão visível que os combatentes não lhe
tiravam olhos. A rainha, entretanto, era tão vaidosa que julgou que todos
aqueles olhares de admiração dirigiam-se a ela, especialmente quando,
apesar da maldade de sua causa, os cavaleiros do rei eram tão valentes
que venciam cada combate.
Quando quase todos os estrangeiros haviam sido derrotados, apre-
sentou-se um jovem cavaleiro desconhecido. Trazia consigo um retrato,
fechado com um laço incrustado de diamantes, e declarou-se disposto a
sustentar contra todos eles que a rainha era a criatura mais feia do mun-
do, e que a princesa cujo retrato trazia era a mais linda.
Então um a um os cavaleiros avançaram contra ele, e um a um ele
subjugou a todos, e em seguida abriu a caixa, e disse que, para consolá-los,
mostrar-lhes-ia o retrato de sua rainha da beleza. Quando fez o que dis-
sera, todos reconheceram a princesa Graciosa. O cavaleiro desconhecido
saudou-a gentilmente e retirou-se, sem dizer seu nome a ninguém. Gra-
ciosa, no entanto, não teve dificuldade para adivinhar que era Percinet.
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Quanto à rainha, ela estava tomada por uma fúria tal que mal podia
falar; mas logo recuperou a voz e descarregou sobre Graciosa uma tor-
rente de acusações.
— O quê?! – disse ela. – Ousas disputar comigo o prêmio da beleza
e esperas que tolere este insulto a meus cavaleiros? Não o tolerarei, prin-
cesa orgulhosa. Terei a minha vingança!
— Eu juro, madame – disse a princesa –, que não tive nada que ver
com isso e estou de acordo com que sejas declarada a Rainha da Beleza.
— Ah! Gostas de fazer pilhérias, sua linguaruda! – disse a rainha. –
Logo irei à forra!
Contaram ao rei o que acontecera e como a princesa ficou aterroriza-
da com a rainha enfurecida, mas este disse apenas:
— A rainha deve fazer o que lhe apraz. Graciosa pertence a ela!
A rainha má esperou impacientemente até o cair da noite, e então
ordenou que lhe trouxessem uma carruagem. Graciosa, muito a con-
tragosto, foi forçada a entrar e partiram para longe, sem parar até que
tivessem chegado a uma grande floresta, a cem léguas do palácio. Esta
floresta era tão sombria e tão cheia de leões, e de tigres, e de ursos, e
de lobos, que ninguém ousava atravessá-la nem mesmo à luz do dia, e
ali fizeram desembarcar a pobre princesa, no meio da noite escura, e lá
a abandonaram, a despeito de todas as lágrimas e súplicas. A princesa
ficou bem quieta a princípio, por causa da total perplexidade, mas,
quando o último som da carruagem esvaiu-se à distância, ela começou
a correr sem rumo para lá e para cá, às vezes batendo-se contra uma
árvore, às vezes tropeçando numa pedra, temendo a cada minuto ser
comida pelos leões. Depois de algum tempo, estava tão cansada que
não aguentava dar mais nenhum passo, então se lançou ao chão e gri-
tou miseravelmente:
— Oh, Percinet! Onde estás? Esqueceste-me por completo?
Mal tinha dito essas palavras quando toda a floresta se iluminou com
um brilho repentino. Todas as árvores pareciam enviar uma espécie de
radiância agradável, que era mais clara que a luz da lua e mais doce que a
luz do sol, e ao fim de uma longa estrada de árvores à sua frente, a princesa
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
viu um palácio de cristal que luzia como o sol. Naquele momento, um leve
ruído atrás dela a fez se virar, e ali estava o próprio Percinet.
— Acaso te assustei, minha princesa? Vim para dar-te as boas-vindas
a nosso palácio encantado, em nome da rainha, minha mãe, que está
pronta para amar-te tanto quanto eu.
A princesa, tomada de júbilo, montou com ele num pequeno trenó,
puxado por duas renas, que saltavam e arrastavam-nos rapidamente para
o maravilhoso palácio, onde a rainha recebeu-a com a maior gentileza, e
um esplêndido banquete foi servido imediatamente. Graciosa estava tão
feliz por ter encontrado Percinet e por ter escapado da floresta sombria
e de todos os seus terrores, que estava com muita fome e muito feliz – e
tiveram um alegre festim. Depois do jantar, foram a um aposento ado-
rável, onde as paredes de cristal eram cobertas com quadros, e a princesa
viu com grande surpresa que sua própria história estava ali representada,
até o momento em que Percinet encontrou-a na floresta.
— Teus pintores decerto são muito diligentes – disse ela, apontando
o último quadro para o príncipe.
— Eles são obrigados a ser, pois não quero esquecer nada que te
aconteça – respondeu.
Quando a princesa começou a sentir sono, vinte e quatro donzelas
encantadoras puseram-na na cama no aposento mais lindo que já vira, e
então cantaram para ela com tanta doçura que os sonhos de Graciosa fo-
ram todos cheios de sereias, e ondas suaves do mar, e cavernas, em que ela
passeava com Percinet; mas, quando acordou, seu primeiro pensamento
foi que, por melhor que o palácio encantado lhe parecesse, ela não podia
permanecer ali, mas tinha de voltar para seu pai. Quando fora vestida
pelas vinte e quatro donzelas com um manto que a rainha lhe enviara e
em que ela parecia mais linda que nunca, o príncipe Percinet veio vê-la, e
ficou amargamente decepcionado quando ela lhe contou em que estivera
pensando. Ele implorou que pensasse novamente em quão infeliz a rai-
nha má a faria, e como, se ela se casasse com ele, todo o palácio encantado
seria dela, e seu único pensamento seria agradá-la. Apesar de tudo que
ele podia dizer, a princesa estava determinada a voltar, embora, enfim, ele
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Graciosa e Percinet
a convencesse a ficar ali por oito dias, que foram tão cheios de prazer e
alegria que passaram como poucas horas. No último dia, Graciosa, que
com frequência ficava ansiosa para saber o que estava acontecendo no
palácio de seu pai, disse a Percinet que tinha certeza de que, se quisesse,
ele conseguiria descobrir para ela qual motivo a rainha tinha dado ao pai
para seu desaparecimento repentino. Percinet, num primeiro momento,
ofereceu enviar seu mensageiro para descobrir, mas a princesa disse:
— Ah, não há um jeito mais rápido de descobrir do que este?
— Muito bem – disse Percinet –, descobrirás por ti mesma.
Então subiram juntos ao topo de uma torre muito alta, que, como
todo o castelo, era feito inteiramente de cristal.
Ali, o príncipe segurou a mão de Graciosa e a fez colocar a ponta de
seu dedinho na boca, e olhar na direção da cidade, e imediatamente ela
viu a rainha má dirigir-se ao rei dizendo:
— Aquela princesa infeliz está morta, mas não é uma grande perda.
Ordenei que fosse sepultada de uma vez.
Em seguida, a princesa viu como ela vestiu um tronco de árvore e
o enterrou, e como o velho rei chorou, e todo o povo murmurava que
a rainha tinha matado Graciosa com sua crueldade e que ela devia ter
a cabeça decepada! Quando viu que o rei estava tão pesaroso por essa
morte fingida que não conseguia comer nem beber, a princesa exclamou:
— Ah, Percinet. Se me amas, leva-me de volta!
E assim, embora não o quisesse nem um pouco, foi obrigado a pro-
meter que a deixaria ir.
— Não me faças arrepender-me, princesa – disse com tristeza –, pois
receio que não me ames o suficiente; prevejo que te arrependerás mais de
uma vez por teres deixado este palácio encantado onde fomos tão felizes.
Mas, apesar de tudo que podia dizer, ela deu adeus à rainha, mãe
dele, e preparou-se para partir; Percinet, muito relutante, trouxe-lhe o
trenozinho com as renas, e ela montou ao lado dele. Mal tinham percor-
rido vinte jardas, quando um barulho tremendo vindo de trás deles fez
Graciosa olhar para trás, e ver o palácio de cristal despedaçar-se em um
milhão de cacos, como o borrifo de um chafariz, e desvanecer-se.
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Graciosa e Percinet
— Deves encontrar para mim alguma tarefa que esta princesa deli-
cada não possa fazer, pois quero puni-la. Se ela não fizer o que ordeno,
não poderá dizer que sou injusta.
Então a velha fada disse que pensaria a respeito e voltaria no dia se-
guinte. Quando voltou, trouxe consigo um novelo de lã três vezes maior
que ela; era tão fino que um sopro de ar o quebraria, tão embaraçado que
era impossível ver seu início ou fim.
A rainha convocou Graciosa e disse-lhe:
— Vês este novelo? Põe teus dedinhos desajeitados para trabalhar
nele, porque devo tê-lo desembaraçado ao pôr do sol e, se quebrares um
único fio, será pior para ti.
Ao dizer isso, deixou-a, trancando a porta atrás de si com três chaves.
A princesa ficou estarrecida ao ver aquele novelo terrível. Se o virasse
para ver por onde começar, quebrá-lo-ia em mil pedaços. Ninguém po-
deria desembaraçá-lo. Enfim, jogou-o no chão, chorando:
— Oh, Percinet! Este novelo fatal será a minha morte se não me
perdoares e me ajudares mais uma vez.
E imediatamente Percinet entrou, tão facilmente como se tivesse em
sua posse todas as chaves.
— Aqui estou, princesa, como sempre a teu serviço – disse ele –,
embora realmente não tenhas sido muito amável comigo.
Percinet apenas tocou o novelo com sua varinha, e todos os fios que-
brados se juntaram, e todo o novelo desenrolou-se suave, do modo mais
surpreendente. Voltando-se para Graciosa, o príncipe perguntou se ha-
via alguma outra coisa que desejava que fizesse e se não chegaria o mo-
mento em que ela desejaria pura e simplesmente sua presença.
— Não te aborreças comigo, Percinet – disse ela. – Já estou infeliz o
bastante sem isso.
— Mas por que tens de ser infeliz, minha princesa? Apenas vem
comigo e nossa felicidade será tão certa quanto um dia segue a outro dia.
— E se te cansares de mim? – retorquiu Graciosa.
O príncipe ficou tão ofendido com esta falta de confiança que a dei-
xou sem uma palavra mais.
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
A rainha má estava com tanta pressa para punir Graciosa que pensou
que o sol jamais iria se pôr; na verdade, antes do horário marcado, ela foi
com as quatro fadas e, enquanto encaixava as três chaves na fechadura, disse:
— Arrisco dizer que essa imprestável não fez nada, pois prefere sen-
tar-se com as mãos no colo e conservá-las limpas.
Tão logo entrou, Graciosa apresentou-lhe o novelo de lã em perfeita
ordem, de modo que ela não conseguiu encontrar nenhum defeito, e
podia apenas fingir encontrar pequenas manchas, e por cada falta imagi-
nária deu um tapa nas bochechas de Graciosa, que fizeram que o branco
rosado de sua pele ficasse verde e amarelo. E então mandou trancarem-
-na no sótão uma vez mais.
A rainha convocou a fada novamente e repreendeu-a com severidade.
— Não cometas um erro destes de novo; encontra algo que seja im-
possível que ela faça.
Então, no dia seguinte, a fada apareceu com um grande barril, cheio
de penas de todos os tipos de pássaros. Havia rouxinóis, canários, pin-
tassilgos, pintarroxos, chapins, papagaios, corujas, pardais, pombos,
avestruzes, abetardas, pavões, cotovias, perdizes e tudo mais que podeis
imaginar. Essas penas estavam misturadas numa confusão tal que nem
os próprios pássaros poderiam encontrar as próprias penas.
— Aqui – disse a fada – está uma tarefinha que exigirá toda a habi-
lidade e paciência de tua prisioneira. Dize-lhe para separar e organizar
em pilhas diferentes as penas de cada pássaro. Teria de ser uma fada para
conseguir.
A rainha estava mais do que feliz em pensar no desespero que essa
tarefa causaria à princesa. Convocou-a e, com as mesmas ameaças de
antes, trancou-a a três chaves, ordenando que todas as penas estivessem
separadas ao pôr-do-sol. Graciosa pôs-se a trabalhar imediatamente,
mas antes que tivesse tomado uma dúzia de penas, julgou que seria per-
feitamente impossível diferenciar uma da outra.
— Ah! – suspirou. – A rainha quer me matar e, se tenho de morrer,
que assim seja. Não posso pedir a ajuda de Percinet de novo, pois, se
realmente me amasse, não esperaria até ser chamado. Ele viria sem isso.
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ainda fosse cruel com ela e tentasse outra vez pregar mais uma peça
vingativa, deixá-la-ia e iria com Percinet para sempre.
Quando a viu voltar, a rainha caiu sobre a fada, que mantivera con-
sigo, e puxou-lhe os cabelos, e arranhou-lhe o rosto, e realmente a teria
matado se se pudesse matar uma fada. Quando a princesa mostrou a
carta e a caixa, a rainha jogou ambas no fogo, sem abri-las, e parecia
muito que ela queria jogar a princesa também. Entretanto, o que de fato
ela fez foi abrir um buraco bem fundo e bem cavado no jardim e cobri-lo
com uma pedra chata. Em seguida, caminhou até perto da pedra e disse
a Graciosa e a todas as moças que estavam com ela:
— Dizem que um grande tesouro jaz sob aquela pedra; vejamos se
conseguimos erguê-la.
Então começaram a empurrá-la e a puxá-la, Graciosa entre elas, o que
era exatamente o que a rainha queria; pois, tão logo a pedra foi erguida o
suficiente, Queixosa empurrou a princesa, lançando-a no fundo do poço
e, em seguida, deixaram a pedra cair novamente, e ali foi feita prisioneira.
Graciosa sentiu que agora de fato estava desesperadamente perdida, de-
certo nem mesmo Percinet poderia encontrá-la no fundo da terra.
— É como ser enterrada viva – disse ela com um arrepio. – Oh, Per-
cinet! Se tão somente soubesses quanto estou sofrendo por minha falta
de confiança em ti! Mas como eu podia ter certeza de que não serias
como outros homens e te cansarias de mim a partir do momento em que
tivesses certeza de que te amo?
Enquanto falava, repentinamente viu uma pequena porta abrir-se, e a
luz do sol brilhou dentro daquele poço lamentável. Graciosa não hesitou
nem um instante e passou para um jardim encantador. Flores e frutos
cresciam por todos os lados, fontes jorravam, e pássaros cantavam nos ga-
lhos das árvores. Quando alcançou uma grande vereda de árvores e olhou
para cima para ver aonde levava, achou-se perto do palácio de cristal. Sim!
não era nenhum engano, e a rainha e Percinet vinham a seu encontro.
— Ah, princesa! – disse a rainha – não deixes Percinet na dúvida por
mais tempo. Podes imaginar a angústia que ele vem sofrendo enquanto
estavas em poder daquela rainha miserável.
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As Três Princesas
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mente desenterradas. Ele tomou a mais nova como sua rainha e viveram
felizes por um longo tempo.
Um dia, no entanto, ele pensou em ir para casa por um breve período,
a fim de ver seus pais. A rainha não gostou da ideia, mas a saudade au-
mentou tanto, que ele disse à mulher que iria. Ela respondeu-lhe:
— Tens de prometer-me uma coisa: fazer o que teu pai te ordenar,
mas não o que tua mãe mandar – e isso ele prometeu.
A rainha entregou-lhe um anel que dava a quem o usasse o direito a
dois desejos.
Ele desejou estar em casa e instantaneamente encontrou-se ali; seus
pais ficaram tão surpresos com o esplendor de suas vestes que parecia
que o espanto nunca cessava.
Depois de ter passado alguns dias em casa, sua mãe quis que fosse ao
palácio mostrar ao rei que grande homem se tornara.
O pai disse:
— Não. Ele não deve fazer isso, pois, se o fizer, não teremos mais a
alegria da presença dele por mais tempo – mas ele falou em vão, pois a
mãe implorou e insistiu até que, enfim, ele foi.
Quando chegou lá, estava mais magnificente que o rei, nos trajes e
em tudo o mais. Este não gostou nada daquilo e disse:
— Ora, ora, tu podes ver que tipo de rainha é a minha, mas não posso
ver a tua. Não creio que tenhas uma rainha tão bela quanto eu.
— Desejo que ela esteja aqui e então poderás vê-la – disse o rei, e
num instante ela estava lá.
Aflitíssima, ela lhe disse:
— Por que não te lembraste de minhas palavras e não deste ouvidos
apenas ao que teu pai dissera? Agora tenho de ir para casa de uma vez
por todas, e tu desperdiçaste teus dois desejos.
Então, ela amarrou no cabelo um anel, no qual estava inscrito seu
nome, e desejou estar em casa de novo.
A partir deste momento, o jovem rei ficou profundamente angustia-
do e, dia sim, dia não, saía sem pensar em nenhuma outra coisa senão em
como voltar para sua rainha.
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* J. Moe.
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foi visto novamente. Desse modo, ele também, como os outros, fora
forçado, contra sua vontade, a seguir a voz que o chamava.
O barbeiro, que voltou para casa assoviando e congratulando-se da
fuga que fizera, narrou o que acontecera, e ouviu-se por toda parte no
país que as pessoas que foram embora e nunca retornaram haviam caído
naquele abismo; até então nunca tinham tomado conhecimento do que
acontecera àqueles que tinham ouvido a voz e atendido a seu chamado.
Quando as multidões saíram da cidade para examinar o malfadado
abismo que a tantos tragara, embora nunca parecesse estar cheio, nada
podiam descobrir. Tudo que podiam ver era uma vasta planície, que pa-
recia estar ali desde o princípio do mundo. A partir daquele momento,
as pessoas do país começaram a morrer como todos os mortais comuns
de todo o mundo.*
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Os Seis Tolos
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Os Seis Tolos
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bolotas e que tentava, com toda a sua força, fazer com que o animal
escalasse o carvalho.
— Se porventura subisses tu na árvore e a agitasse, o porco recolheria
as bolotas.
— Er... Eu não havia pensado nisso.
— Eis o segundo idiota – disse o rapaz para si mesmo.
Um pouco adiante, ele se deparou com um homem que jamais vestira
calças e estava tentando colocar uma. Este homem a tinha atado a uma
árvore e saltava com todo o seu vigor, a fim de que, ao cair, acertasse as
duas pernas da calça.
— Muito mais fácil seria se a segurasses – disse o jovem – e colocas-
ses, uma após a outra, cada uma de suas pernas em cada buraco.
— Ah, sim, mas é claro! És mais esperto do que eu, pois jamais isso
me havia ocorrido.
Então, após ter encontrado três pessoas mais tolas do que sua noiva,
o pai da noiva e sua mãe, o namorado regressou a fim de se casar com a
jovem. E, com o passar do tempo, eles tiveram muitos filhos.*
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Kari Vestido-de-pau
campos. Nada ou quase nada tinha para comer, ficando pálida e magra e
quase sempre triste e chorosa. No rebanho havia um touro grande e azu-
lado que sempre era muito sábio e polido, e muitas vezes vinha à filha do
rei para que ela o acariciasse. Um dia, quando estava novamente sentada
a chorar e a lamentar, o touro aproximou-se e perguntou-lhe por que
estava tão preocupada. Ela não respondeu, mas continuou a chorar.
— Bem – disse o touro –, sei o que é isso, embora saiba que não me
dirás. Estás chorando porque a rainha é cruel contigo e porque ela quer
que morras de fome. Precisarás, todavia, que não te preocupes com o que
comer, pois tenho na orelha esquerda uma toalhinha, e se a pegar e abrir,
terás tantas refeições quanto desejares.
Assim ela o fez. Tomou a toalhinha e a abriu sobre a grama, logo, foi
recoberta das mais finas iguarias que qualquer um poderia desejar. Havia
vinho, hidromel e vários bolos. Imediatamente animou-se e ficou bem de
novo. A moça ficou tão corada, roliça e bela que a rainha e sua filha ma-
gricela ficaram sem palavras, de tão contrariadas. A rainha não imaginava
como a enteada poderia estar tão bem com tão pouca comida, e pensava
que alguns dos criados estariam dando-lhe de comer. Ordenou, portanto,
que uma de suas criadas a seguisse pelo bosque e a observasse. Ela viu
como a enteada pegava a toalhinha detrás da orelha do touro, a abria e
como logo se apresentavam os mais refinados manjares com os quais a
moça se regalava. Desta feita, a criada foi à rainha e contou-lhe o que vira.
Nessa ocasião o rei voltou para casa; conquistara o outro reino com
quem estivera em guerra. A alegria tomou conta do palácio, mas ninguém
estava mais feliz que a filha do rei. A rainha, no entanto, fingiu estar do-
ente e deu ao médico muito dinheiro para que dissesse que ela nunca mais
ficaria bem, a menos que comesse um naco da carne do touro azulado.
Tanto a filha do rei quanto as pessoas no palácio perguntaram ao
médico se não havia outro meio de salvá-la e imploraram pela vida do
touro, pois todos gostavam muito dele e afirmaram não existir outro
touro como aquele em todo o reino; mas foi em vão. Tinha de ser aba-
tido, deveria ser morto, pois nada mais serviria. Quando a filha do rei
ouviu isso ficou profundamente triste e foi até o estábulo do touro. Lá
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Kari Vestido-de-pau
estava ele, em pé, cabisbaixo, parecendo tão abatido que a moça sentiu
dó dele e chorou.
— Por que estás a chorar? – perguntou o touro.
Ela contou-lhe que o rei voltara para casa e que a rainha fingira estar
doente. Fizera com que o médico dissesse que nunca ficaria bem nova-
mente a não ser que comesse um naco da carne do touro azulado, e que
agora ele seria abatido.
— Quando eles me tirarem a vida, tu também serás morta – disse
o touro –, mas se estás pensando como eu, partirás nesta mesma noite.
A filha do rei pensou ser ruim deixar o palácio e o pai, mas era ainda
pior estar sob o mesmo teto da rainha, assim, prometeu ao touro que
partiria.
À noite, quando todos já haviam se recolhido, a filha do rei encami-
nhou-se sorrateiramente até o estábulo, montou o touro e partiu para
o campo o mais rápido que pôde. Então, ao raiar o sol, no dia seguinte,
quando as pessoas foram abater o touro, ele havia partido, e quando o rei
levantou e perguntou pela filha, ela também havia partido. Enviou men-
sageiros para todas as partes do reino em busca deles e fez proclamar sua
perda em todas as paróquias, mas não havia quem os tivesse visto.
Nesse ínterim, o touro cruzara muitas terras montado pela filha do
rei e, num desses dias, chegaram a um imenso bosque acobreado, onde
as árvores, os ramos, as folhas, as flores e tudo o mais era cor de cobre.
Antes de ingressarem no bosque, todavia, o touro disse à filha do rei:
— Quando adentrarmos este bosque, deverás tomar o maior cuidado
de não tocares nenhuma das folhas, ou será meu fim e o teu, pois um
troll de três cabeças, que é o dono do bosque, vive aqui.
Então, ela ficou em guarda, sem nada tocar. Foi muito cuidadosa
e curvou-se para desviar dos galhos, colocando-os para os lados com
as mãos, mas o bosque era tão denso que era quase impossível seguir
adiante e fazer o que devia. De uma maneira ou de outra, ela deixou cair
uma folha que pousou na sua mão.
— Oh! Oh! O que fizeste agora? – perguntou o touro. – Isso nos cus-
tará uma luta de vida ou morte, mas tenhas o cuidado de guardar a folha.
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De início, ela não quis seguir as ordens, mas quando o touro disse que
essa era a única recompensa que ele teria pelo que lhe fez, a moça não
pôde negar. Embora achasse muito cruel, ela trabalhou duro e cortou
o animal enorme com a faquinha até cortar-lhe a cabeça e a pele. Em
seguida, dobrou a pele e colocou-a embaixo da parede da montanha com
as folhas de cobre, de prata e a maçã de ouro juntas.
Após fazer isso, foi para o chiqueiro, mas chorou por todo o caminho
e estava muito pesarosa. Então, pôs o vestido de pau e foi até o palácio
do rei. Assim que chegou lá, foi à cozinha e pediu abrigo, dizendo que
seu nome era Kari vestido-de-pau.
O cozinheiro disse que poderia ter um emprego lá e deixou-a ficar ime-
diatamente e banhar-se, pois a moça que antes estivera lá acabara de partir.
— Assim que te cansares de ficar aqui, partirás também – afirmou.
— Não, certamente não o farei – disse a moça.
Ela, então, asseou-se e o fez com muito esmero.
No domingo, uns estrangeiros visitariam o palácio do rei, de modo
que Kari implorou para levar a água para a banheira do príncipe, mas os
demais empregados riram dela e disseram:
— O que queres aqui? Pensas que o príncipe algum dia olhará para
um espantalho como tu?
Entretanto, ela não desistiu, mas continuou pedindo por isso até que
ganhou permissão. Quando estava subindo as escadas, seu vestido de
pau fez tanto barulho que o príncipe saiu e disse:
— Que espécie de criatura és?
— Sou quem leva água para vosso banho – disse Kari.
— Crês que ficarei com a água que trazes? – perguntou o príncipe, e
esvaziou o balde em cima da moça.
Ela teve de suportar isso, mas depois pediu permissão para ir à igreja.
Conseguiu, pois a igreja era muito próxima. Antes, porém, foi até a ro-
cha e bateu nela com a vara que ficava ali de pé, como o touro lhe dissera.
Nesse momento surgiu um homem e perguntou-lhe o que desejaria. A
filha do rei disse que saíra para ir à igreja e queria ouvir o sacerdote, mas
não tinha uma roupa para ir. Logo, ele lhe trouxe um vestido tão vivo
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bos sofreriam por isso. Kari, entretanto, disse que ele tinha mais o que fazer
do que olhar para ela e não cessou de insistir até que deixaram-na partir.
E agora tudo acontecia como nas duas outras vezes. Foi até a rocha,
bateu com a vara e, em seguida, apareceu um homem que lhe deu um
vestido muito mais magnífico que os outros dois. Era quase todo feito
de ouro e diamantes. Ela também ganhou um nobre corcel com apetre-
chos bordados a fio de ouro e arreios dourados.
Quando a filha do rei chegou à igreja, o sacerdote e o povo estavam
todos de pé na colina esperando por ela. O príncipe correu e quis segurar
o cavalo, mas ela saltou, dizendo:
— Não, obrigada, não há necessidade. Meu cavalo é bem amestrado
e ficará quieto enquanto ordenar.
Assim, todos entraram juntos na igreja e o sacerdote foi para o púl-
pito, mas ninguém ouvia o que ele dizia, pois estavam olhando demasia-
damente para a moça, ponderando de onde ela vinha. O príncipe estava
mais apaixonado do que nunca estivera nas ocasiões anteriores e não se
preocupava com nada, a não ser em olhar para a moça.
Quando terminou o sermão e a filha do rei estava para deixar a igre-
ja, o príncipe fez com que um barrilete de alcatrão fosse despejado no
vestíbulo para que ele pudesse ajudá-la a sair. Ela, todavia, não se atra-
palhou em nada com o alcatrão. Pôs o pé em cima do barril e o saltou,
e nenhum dos sapatos de ouro ficou ali grudado. Ao montar o cavalo, o
príncipe veio correndo da igreja e perguntou de onde ela vinha.
— Da Terra das Escovas – respondeu Kari. Mas quando o príncipe
tentou agarrá-la pelo sapato de ouro, disse:
— Trevas atrás, Luz nesta via; que o príncipe não veja onde vou
neste dia!
O príncipe não soube o que foi feito dela, então, viajou por um lon-
go e tedioso tempo por todo o mundo a perguntar onde ficava a Terra
das Escovas, mas ninguém sabia dizer onde ficava esse reino. Fez com
que, em toda parte, todos soubessem que ele se casaria com qualquer
mulher que pudesse calçar o sapato de ouro. Assim, donzelas formosas
e horrendas chegaram de várias partes, mas nenhuma tinha um pé tão
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* P. C. Abjornsen.
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Rabo de Pato
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Rabo de Pato
Ainda não fora muito longe quando encontrou-se com um seu ami-
go, Raposo, que perambulava pelas redondezas.
— Bom dia, vizinho – disse-lhe o amigo. – Aonde vais tão cedo?
— Ao palácio do rei, pedir-lhe o que me deve.
— Oh, leva-me contigo!
Rabo de Pato pensou consigo: “Quanto mais amigos uma pessoa ti-
ver, melhor”.
— Muito bem – disse ele ao Raposo –, irás comigo. Como, no en-
tanto, logo te cansarás se fores a quatro patas, faze-te pequenino e entra
em minha garganta. Quando lá chegares, descansa em minha moela e
eu te levarei comigo.
— Muito bem pensado! – disse o amigo.
Eis então que o Raposo, de mala e cuia, zás! Desaparece pela goela
do amigo adentro, como uma carta pela caixa de correio; e Rabo de Pato
parte novamente, muito elegante e bem-disposto, cantando ainda:
— Quá-quá-quá, quando meu dinheiro voltará?
Um pouco mais adiante, encontrou uma amiga encostada num muro.
Era a Escada.
— Bom dia, meu patinho – disse a amiga. – Aonde vais tão galhardo?
— Ao palácio do rei, pedir-lhe o que me deve.
— Oh, leva-me contigo!
Rabo de Pato pensou consigo: “Quanto mais amigos uma pessoa ti-
ver, melhor”.
— Muito bem – disse ele –, irás comigo. Como, no entanto, logo
te cansarás com tuas pernas de madeira, faze-te pequenina e entra em
minha garganta. Quando lá chegares, descansa em minha moela e eu te
levarei comigo.
— Muito bem pensado! – disse a amiga.
Eis então que a Escada, de mala e cuia, zás! Desaparece pela goela do
amigo adentro e vai-se acomodar na companhia do Raposo.
E “quá-quá,quá”. Rabo de Pato zarpa novamente, cantante e elegante
como sempre. Um pouco mais à frente, encontra sua namorada, a queri-
da Água do Rio, correndo calmamente sob a luz do sol.
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não sobrava mais nenhum para contar a história. E Rabo de Pato, deve-
ras contente, começou a cantar de novo:
— Quá-quá-quá, quando meu dinheiro voltará?
Quando o rei, que ainda estava sentado à mesa, escutou o refrão e
a cuidadora do galinheiro lhe contou o que acontecera, enfureceu-se
como nunca.
Ordenou que lançassem esse maldito Rabo de Pato no fundo do
poço do palácio para acabar com ele de uma vez por todas. E, de fato,
fizeram o que ele ordenou.
Rabo de Pato, preso que se achava em tão profundo poço, desespera-
va-se já de sair, quando se lembrou de sua amiga Escada.
— Escada, sai de teu esconderijo, Escada, senão a vida do Rabo de
Pato será história contada.
A amiga Escada, que estava apenas esperando por essas palavras, saiu
de supetão de dentro da goela do amigo e apoiou seus dois braços na
borda do poço. Rabo de Pato, então, subiu ligeiro pelas costas da amiga
e – tchã-rã! – foi parar no jardim, onde começou de novo a cantar, agora
mais alto que nunca.
Quando o rei, que ainda estava à mesa rindo-se da peça que pregara
em seu credor, escutou-o novamente exigindo o pagamento da dívida,
empalideceu de raiva.
Ordenou, então, que se acendesse o forno e se atirasse o maldito pato
lá dentro, pois devia ser algum tipo de bruxo.
O forno não demorou a esquentar. Desta vez, porém, Rabo de Pato
não estava tão amedrontado, pois contava com sua amada Água do Rio.
— Água do Rio, escorre cá para fora, Água do Rio, senão teu pato
morrerá, e não de frio.
Nisso, a amiga Água saiu a toda velocidade e se lançou sobre o forno,
inundando-o por completo, e com ele todas as pessoas que o haviam
acendido; depois do que invadiu o salão de entrada do palácio e ali subiu
mais de um metro.
E Rabo de Pato, contente que só, começou a nadar cantando muito,
muito alto:
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Rabo de Pato
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O Apanhador de Ratos
Nem gatos, nem cães, nem venenos, nem armadilhas, nem rezas, nem
velas acendidas a todos os santos – nada surtia efeito algum. Quanto
mais matavam ratos, mais ratos apareciam. Os habitantes de Hamelin
começaram a recorrer aos cães (não que fossem de grande ajuda), quan-
do, em uma certa sexta-feira, chegou à cidade um homem de aparência
extravagante, que tocava uma gaita de foles e entoava este refrão:
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O Apanhador de Ratos
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* Ch. Marelles.
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A verdadeira história da
Chapeuzinho Dourado
Esse capuz lhe fora dado por sua avó, uma mulher tão velha que sequer
sabia revelar a própria idade; deveria trazer-lhe boa sorte, disse a avó à
neta, pois fora feito com um raio de sol. E, dado que aquela senhori-
nha era considerada uma espécie de bruxa, todos achavam que o capuz
estava enfeitiçado.
E, como vós mesmos vereis, isso de fato era verdade.
Certo dia, a mãe disse à filha:
— Vejamos, minha Chapeuzinho Dourado, se já és capaz de encon-
trar a sós o próprio caminho. Levarás, como regalo de domingo, este
grande pedaço de bolo para tua avó. Perguntarás como ela está e retor-
narás de imediato, sem entregar-se a conversinhas com desconhecidos
pelo caminho. Está claro?
— Muito claro – respondeu Blanchette alegremente.
A menina então partiu com o bolo, orgulhosa de seu encargo. Acon-
tece, porém, que a avó morava noutra aldeia e havia uma grande floresta
a ser atravessada antes de chegar até lá. Então, na estrada, sob as árvores
e após uma curva, de repente “Quem está aí”?
— O amigo Lobo.
O vilão vira a menina sair sozinha e só esperava o momento certo
para devorá-la. Todavia, naquele mesmo instante, notou ali alguns le-
nhadores que poderiam flagrá-lo e mudou de ideia. Em vez de se lançar
sobre Blanchette, pôs-se a traquinar perto dela como um bom cãozinho.
— Mas eis minha doce Chapeuzinho Dourado! – disse ele.
A garotinha se detém, então, para conversar com o Lobo, o qual ela,
não obstante tudo aquilo, desconhecia.
— Então sabes quem sou! – respondeu ela. – Como te chamas?
— Sou o amigo Lobo. Para onde vais, minha querida, com esta ces-
tinha nos braços?
— Devo visitar minha avó e entregar-lhe um grande pedaço de bolo
como regalo para amanhã, domingo.
— E onde moraria esta avó?
— Do outro lado da floresta, na primeira casa da aldeia, próximo ao
moinho de vento.
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A verdadeira história da Chapeuzinho Dourado
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A verdadeira história da Chapeuzinho Dourado
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
Chegando lá, quem foi que a censurou tão logo tomou conhecimento
de tudo o que lhe havia acontecido?
A mãe.
Blanchette, todavia, prometeu mais de uma vez que jamais se deteria
novamente para dar ouvidos a um lobo, e desse modo sua mãe enfim a
perdoou.
Ela, a Chapeuzinho Dourado, cumpriu sua promessa. E, em dias de
tempo é bom, ainda é possível vê-la pelos campos com seu belo capuzi-
nho da cor do sol.
Para contemplá-la, no entanto, é preciso acordar bem cedo.*
* Ch. Marelles.
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O Ramo de Ouro
não havia como esconder o fato de que era medonha e tão coxa que
sempre andava com uma muleta, de modo que as pessoas lhe chamavam
de princesa Talo de Couve.
O rei pedira e recebera um quadro da princesa e o colocara no saguão
de entrada, debaixo de um dossel. Em seguida, mandou buscar o prín-
cipe Tortuoso, a quem informou ser o retrato de sua futura esposa, na
esperança de que o príncipe a achasse encantadora.
O príncipe, depois de uma espiada, virou os olhos com um ar desde-
nhoso; o que ofendeu enormemente seu pai.
— Devo entender que não estás satisfeito? – perguntou bruscamente.
— Não, meu senhor – respondeu o príncipe. – Como poderia estar
contente por casar com uma princesa feia e coxa?
— Por certo, tu não deverias objetar – disse o rei Ranzinza –, visto
que és feio o bastante para amedrontar qualquer um.
— Eis exatamente o motivo – respondeu o príncipe –, desejo-me
casar com alguém que não seja feio, pois estou cansado de ver a minha
feiura.
— Digo-te que deves casar com ela – gritou o rei Ranzinza, irritado.
E o príncipe, ao ver que de nada adiantaria protestar, fez uma mesura
e retirou-se.
Como o rei Ranzinza não tinha o costume de ser contrariado em
nada, ficou muito incomodado com o filho e ordenou que deveria ser
preso na torre, mantida com o propósito de guardar príncipes rebeldes,
mas que não era utilizada há duzentos anos, pois não havia quem se
rebelasse. O príncipe achou que todos os cômodos pareciam estranha-
mente fora de moda, com mobília antiga, mas como havia uma boa
biblioteca, ficou satisfeito, visto que gostava muito de ler. Logo, obteve
permissão para ler tantos livros quantos desejasse, mas ao folheá-los,
descobriu que foram escritos em uma língua esquecida e não podia en-
tender uma palavra sequer, embora se divertisse ao tentar.
O rei Ranzinza estava convencido de que o príncipe Tortuoso logo
ficaria entediado de ficar na prisão e consentiria em casar-se com a prin-
cesa Talo de Couve, de modo que enviou embaixadores ao pai da moça
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O Ramo de Ouro
para propor que ela devesse viajar e casar-se com seu filho, o qual a faria
perfeitamente feliz.
O rei ficou muito alegre em receber tão excelente oferta para a des-
ditosa filha, embora, para dizer a verdade, achasse impossível admirar o
retrato do príncipe que lhe fora enviado. No entanto, pendurou-o sob a
luz mais favorável possível e mandou chamar a princesa. No momento
em que ela bateu os olhos no quadro, virou o rosto e começou a chorar.
O rei, que ficou muito aborrecido ao ver o tanto que ela desgostara, pe-
gou um espelho e segurando-o diante da princesa infeliz, disse:
— Vejo que não achas o príncipe belo, mas olha para ti mesma e vejas
se tens direito a reclamar a tal respeito.
— Senhor – ela respondeu –, não desejo reclamar, somente imploro
que não me faças casar. Preferiria ser a infeliz princesa Talo de Couve
por toda a vida a infligir a visão de minha feiura a alguém.
O rei, contudo, não a ouviu e mandou que partisse com os embaixadores.
Nesse ínterim, o príncipe era mantido trancado na torre, de modo
que ficasse bastante entediado. O rei ordenou que ninguém falasse com
ele, e que não deveriam dar-lhe quase nada de comer. Todos os guardas
do príncipe, todavia, gostavam tanto dele que se atreviam a fazer tudo,
apesar do rei, para tornar a passagem do tempo o mais agradável possível
para ele.
Um dia, quando o príncipe andava de uma ponta a outra na galeria
principal, refletindo como era horrível ser tão feioso e ser forçado a casar
com uma princesa igualmente tão malfeita, olhou para cima, e de súbito,
notou que os vitrais eram especialmente brilhantes e belos. Para fazer
algo que pudesse mudar seus pensamentos tristes, começou a analisá-
-los com atenção. Descobriu que as cenas pareciam retratar a vida de
um homem que aparecia em todas as vidraças, e o príncipe, ao crer que
via alguma semelhança desse homem consigo mesmo, começou a ficar
profundamente interessado. Na primeira janela, via retratado o homem
em um dos torreões, mas adiante ele buscava uma fenda na parede. Na
pintura seguinte, o homem abria um armário antigo com uma chave de
ouro e assim prosseguia por inúmeras cenas. Dentro em pouco, o príncipe
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— Devo dizer que Tortuoso é bastante feio, mas não creio que TU
devas pensar duas vezes antes de consentir casar-te com ele.
— Senhor – ela respondeu –, sei muito bem como aparento ser para
ficar magoada com o que dizeis, mas asseguro-vos de que não desejo
desposar vosso filho e prefiro ser chamada de princesa Talo de Couve a
ser a rainha Tortuosa.
Isso deixou o rei Ranzinza furioso.
— Teu pai mandou-te aqui para casar com o meu filho – respondeu
–, e estejas certa de que não o ofenderei, alterando nossos arranjos.
Assim, a pobre princesa foi mandada para os próprios aposentos
em desgraça, e as damas que a serviam foram encarregadas de fazê-la
pensar melhor.
Nessa conjuntura, os guardas, que temiam muitíssimo o príncipe não
ser encontrado, foram dizer ao rei que seu filho estava morto, o que o
aborreceu bastante. De imediato, convenceu-se de que tudo era culpa
da princesa e ordenou que ela fosse aprisionada na torre, no lugar do
príncipe Tortuoso. A princesa Talo de Couve ficou demasiado perplexa
com esse proceder tão injusto e mandou mensagens de protesto ao rei
Ranzinza, mas ele estava em um humor tão ruim que ninguém ousou
entregá-las ou enviar as cartas que a princesa escreveu ao pai. Ela, con-
tudo, não sabia disso, e vivia na esperança de voltar logo a seu país,
tentando entreter-se o tanto quanto podia até que chegasse o momento.
Todos os dias ela andava, para cima e para baixo, ao longo da grande
galeria, até que foi atraída e ficou fascinada pelas cenas nos vitrais que
sempre mudavam. Reconheceu-se em uma das figuras. “Parece que tive-
ram grande prazer em retratar-me desde que cheguei a este país”, disse
a si mesma. “Alguém poderia pensar que eu e minha muleta fomos colo-
cados na cena de propósito para que a jovem e esbelta pastora fascinante
ficasse mais bonita em comparação. Ah! Como seria bom ser tão bonita
como ela”. Olhou-se, então, no espelho, e virou o rosto, rapidamente,
com lágrimas nos olhos diante da triste visão. De repente tomou ciência
de que não estava só, pois atrás dela, de pé, encontrava-se uma velhinha
esmirrada com um capuz, que era tão horrenda quanto ela era coxa.
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O Ramo de Ouro
Logo, o jantar lhe foi servido embaixo de uma árvore umbrosa e ela
convidou o príncipe para compartilhar do creme de leite e do pão que
a senhora providenciara. Ele ficou muito satisfeito com o convite e, já
que havia colhido do próprio jardim todos os morangos, cerejas, nozes
e flores que encontrara, sentaram-se juntos e ficaram muito felizes. De-
pois disso, encontraram-se todos os dias enquanto tomavam conta de
seus rebanhos e estavam tão contentes que o Príncipe Inigualável pediu
a princesa em casamento, para que nunca mais tivessem de se separar.
Ora, embora a princesa Raio de Sol parecesse ser apenas uma pobre pas-
tora, nunca esqueceu que era uma princesa de verdade e não estava certa
de querer casar com um pastor humilde, embora soubesse que gostaria
muito de fazê-lo.
Assim, decidiu consultar um feiticeiro de quem ouvira falar bastante
desde que se tornara pastora e, sem dizer uma palavra para quem quer
que fosse, partiu para encontrar o castelo em que vivia com a irmã, a qual
era uma maga poderosa. O caminho era longo e passava por um bosque
fechado, onde a princesa ouviu vozes estranhas que a chamavam de to-
dos os lados. Ela, no entanto, estava com tamanha pressa que não parava
por nada. Por fim, chegou ao pátio do castelo do feiticeiro.
A grama e a roseira-brava estavam tão altas que parecia ter passado uns
cem anos desde que alguém colocara seus pés lá, mas a princesa acabou
conseguindo atravessar, o que lhe rendeu uns bons arranhões. Chegou, en-
tão, a um saguão escuro, sombrio que tinha na parede apenas um buraqui-
nho minúsculo por onde entrava a luz do dia. Os reposteiros eram todos
de asas de morcego e do teto pendiam doze gatos que enchiam o saguão
com seus miados de furar os ouvidos. Em uma mesa longa, doze camun-
dongos estavam amarrados pelas caudas e, exatamente em frente do nariz
de cada um, mas além do alcance, estava um tentador pedaço de toucinho
gordo. Desse modo, os gatos sempre podiam ver os camundongos, mas não
podiam tocá-los, e os ratinhos famintos eram atormentados pela visão e
perfume dos pedaços deliciosos de toucinho que nunca poderiam alcançar.
A princesa olhava consternada para as pobres criaturas quando o fei-
ticeiro, de repente, entrou, com um traje negro, comprido e com um
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lutar pela vida. Embora tivesse apenas uma adaga, defendeu-se tão bem
que escapou sem nenhum arranhão e, imediatamente, a velha maga fez
parar o combate e perguntou ao príncipe se insistia em manter a mesma
opinião. Ao responder com firmeza que ainda a mantinha, ela invocou a
aparição da princesa Raio de Sol na outra ponta da galeria e disse:
— Vês lá tua amada? Cuidado com o que estás prestes a fazer, pois
se mais uma vez te recusares a casar comigo, ela será feita em picadinho
por dois tigres.
O príncipe estava distraído, pois pensou ter ouvido sua querida pas-
tora chorar e implorar que a salvasse. Desesperado, exclamou:
— Oh, fada Dulcina, abandonaste-me depois de tantas promessas de
amizade? Ajuda, ajuda-nos agora!
Neste mesmo instante, uma voz doce soou no ouvido do príncipe:
— Fica firme, aconteça o que acontecer, e procura o ramo de ouro.
Assim encorajado, o príncipe perseverou na recusa e, ao final, a velha
maga, em fúria, bradou:
— Sai da minha frente, príncipe obstinado. Transforma-te em um grilo!
E, imediatamente, o garboso príncipe Inigualável tornou-se um po-
bre grilinho negro, cujo único pensamento seria encontrar uma fenda
aconchegante atrás de uma lareira ardente, caso não tivesse, por sorte,
sido lembrado pela ordem da fada Dulcina a procurar o ramo de ouro.
Assim, apressou-se em deixar o castelo fatal e procurou abrigo em
uma árvore oca, onde encontrou um gafanhotinho de aparência desola-
da, agachado em um canto, demasiado infeliz para cantar.
Sem esperar receber resposta alguma, o príncipe perguntou-lhe:
— E para onde estás indo, velha senhora gafanhoto?
— E para onde tu vais, grilo velho? – respondeu a senhora gafanhoto.
— O quê?! Podes falar?! – exclamou.
— Por que eu não falaria tão bem quanto tu? Um gafanhoto não é
tão bom quanto um grilo? – disse-lhe ela.
— Posso falar porque era um príncipe – respondeu o grilo.
— E eu pelo mesmo motivo devo ser capaz de falar mais do que tu
falas, pois era uma princesa – replicou a senhora gafanhoto.
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O Ramo de Ouro
— Então tiveste a mesma sina – disse ele. – Mas para onde vais ago-
ra? Não podemos viajar juntos?
— Pareci ouvir uma voz no ar, a dizer: “Fica firme, aconteça o que
acontecer, e procura o ramo de ouro” – respondeu a senhora gafanhoto
–, e pensei que a ordem devia ser para mim, então parti imediatamente,
embora não saiba o caminho!
Nesse ponto da conversa foram interrompidos por dois camundon-
gos, que, sem fôlego por tanto correr, atiraram-se de cabeça pelo buraco
da árvore, quase esmagando o gafanhoto e o grilo, embora tivessem saí-
do da frente o mais rápido que puderam e ficassem em um canto escuro.
— Ah, senhora! – disse o mais gordo dos dois – estou com tanta dor
nos flancos de correr tão rápido. Como está Vossa Alteza?
— Arranquei minha cauda – replicou o camundongo mais novo –,
mas, como ainda estaria na mesa do feiticeiro se não o fizesse, não me
arrependo. Pensai que somos perseguidos, não é? Como tivemos sorte
de escapar!
— Espero que possamos escapar dos gatos e das armadilhas e logo
alcançar o ramo de ouro – disse o camundongo gordo.
— Então, sabes o caminho? – perguntou a senhora gafanhoto.
— Oh, querida! Claro que sei! Tão bem quanto o caminho de casa, se-
nhora. Esse ramo de ouro é, de fato, uma maravilha, uma única folha torna
qualquer um rico para sempre. Quebra encantos e torna todos os que dele
se aproximam em pessoas jovens e belas. Devemos partir no raiar do dia.
— Podemos ter a honra de viajar convosco, este respeitável grilo e
eu? – disse a senhora gafanhoto, dando um passo à frente. – Também
peregrinamos em busca do ramo de ouro.
O rato assentiu com cortesia e, após muitos discursos polidos, todos
os participantes caíram no sono. Na alvorada, já estavam a caminho e,
embora os ratos estivessem constantemente com medo de serem apa-
nhados ou caírem em armadilhas, chegaram em segurança ao ramo de
ouro. Ele crescia em meio a um jardim maravilhoso, cujas trilhas todas
eram salpicadas de pérolas, grandes como ervilhas. As rosas eram dia-
mantes rubros, com folhas de esmeraldas. As romãs eram granadas, as
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Os Três Anões
A menina fez o que lhe fora ordenado, e a água fez que o buraco se
contraísse e a bota encheu-se até a boca. Então ela foi e contou ao pai
o resultado. Este se levantou e quis conferir pessoalmente. Quando viu
que era verdade e não um equívoco, aceitou o destino, propôs casamento
à viúva e casaram-se de uma vez.
Na manhã seguinte ao casamento, quando as duas meninas acorda-
ram, a filha do homem recebera leite para banhar-se e vinho para beber,
mas, para a filha da mulher, havia apenas água para banhar-se e também
para beber. Na segunda manhã, a filha do homem também recebeu água
para banhar-se e para beber. No terceiro dia, ofereceu-se à filha do ho-
mem água para banhar-se e também para beber, mas, para a filha da mu-
lher, havia leite para banhar-se e vinho para beber. E assim continuou
desde então. A mulher odiava a enteada do fundo do coração, e fazia de
tudo para tornar a vida dela um suplício. Era tão invejosa quanto se pode
imaginar, porque a menina era linda e encantadora, enquanto a própria
filha era feia e repulsiva.
Num dia de inverno, em que houve grande nevasca e montanha e
vale ficaram cobertos de neve, a mulher fez um vestido de papel e, cha-
mando a menina, disse-lhe:
— Toma, coloca este vestido e vai ao bosque colher uma cesta de
morangos!
— Deus me acuda! – respondeu a enteada. – Morangos não brotam
no inverno. A terra está toda congelada e a neve cobriu tudo. Por que
me mandar sair num vestido de papel? Está tão frio lá fora que até o ar
que respiramos se congela; o vento uivará ao passar por meu vestido, e
os espinhos o arrancarão de meu corpo.
— Como ousas enfrentar-me? – disse a madrasta. – Agora para de me
encher e não aparece aqui até que tenhas enchido a cesta com os morangos.
Em seguida, deu-lhe um naco de pão duro e disse:
— É o suficiente para hoje – e pensou consigo: “Decerto a menina
morrerá de fome e frio lá fora, e não serei mais incomodada por ela”.
A menina era tão obediente que pôs o vestido de papel e saiu com a
cestinha. Não havia nada senão neve, perto ou longe, e não se via nem
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Os Três Anões
a cada palavra mais moedas caíam-lhe da boca, de tal maneira que logo
a sala ficou coberta por elas.
— Ela decerto tem mais dinheiro do que juízo para desperdiçar ouro
desse jeito – disse a irmã postiça, mas no fundo estava mesmo era com
muita inveja e determinada a ir ao bosque procurar morangos. A mãe
recusou-se a deixá-la ir, dizendo:
— Minha querida, está frio demais. Congelarias até a morte.
A menina, no entanto, não a deixou em paz, até que a mãe fi-
nalmente desistiu de detê-la, mas insistiu que a filha pusesse um
lindo casaco de pele e deu-lhe pão, manteiga e bolos para comer no
caminho.
A menina foi direto à casinha no bosque e, como da outra vez, os ho-
menzinhos estavam espiando pela janela. Ela não tomou conhecimento
deles e, sem nem mesmo um “com licença” ou “com vossa permissão”,
precipitou-se para dentro da sala, sentou-se à lareira e começou a comer
o pão, a manteiga e os bolos.
— Dá-nos um pouco – pediram os anões.
Mas ela respondeu:
— Não! Mal dá para mim! Vós é que deveis dar-me algo.
Quando terminou de comer, eles disseram:
— Há uma vassoura para ti, vai limpar a porta dos fundos.
— Tenho mais o que fazer – respondeu rudemente. – Limpai vós
mesmos. Não sou vossa criada.
Quando viu que não lhe dariam nada, saiu da casa com cara de pou-
cos amigos. Então os três homenzinhos deliberaram entre si o que de-
veriam fazer a ela, porque agira tão mal e tinha um coração tão perverso
e avarento, que invejava a todos que tinham boa sorte.
O primeiro disse:
— Que fique cada dia mais feia.
O segundo:
— Que lhe salte da boca um sapo sempre que falar.
E o terceiro:
— Que morra a morte mais terrível.
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Os Três Anões
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— Nada melhor do que ser posta num barril forrado de pregos afia-
dos e rolar montanha abaixo até o rio.
— Pronunciaste tua própria sentença – disse o rei. E ordenou que
um barril fosse revestido de pregos afiados e que nele fossem colocadas
a velha má e sua filha. O barril foi cerrado com firmeza e rolaram-no
montanha abaixo até que caiu no rio.*
* Irmãos Grimm.
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Tordilho Terrível
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O jovem negou ter feito a declaração, mas em vão. O rei não deu
atenção a suas palavras, e, portanto, nada havia a ser dito além de
que tentaria.
Quando retornou ao estábulo, o rapaz estava tristíssimo e tomado
de preocupações. Grimsborken quis saber por que se encontrava tão
perturbado, ao que ele lhe contou tudo e declarou não saber o que fazer,
uma vez que “libertar a princesa era absolutamente impossível”.
— Ah, mas é possível, sim, fazê-lo – disse Grimsborken. – Eu te
ajudarei, mas deves antes calçar-me bem. Pede dez libras de ferro e doze
de aço para a ferradura, bem como um ferreiro que maneje o martelo e
outro que lhe dê apoio.
E assim fez o rapaz, sem que ninguém se opusesse: conseguiu tanto o
ferro quanto o aço e os ferreiros. Grimsborken foi muito bem ferrado e
de maneira firme, e quando o jovem saiu do palácio real uma nuvem de
poeira se ergueu às suas costas.
Todavia, quando deparou-se com a montanha a que a princesa fora
levada, difícil foi-lhe subir a íngreme parede rochosa que o conduziria
à montanha mais adiante, uma vez que a rocha se erguia qual a lateral
de uma casa e era tão lisa quanto uma folha de vidro. Na primeira vez
em que o rapaz cavalgou por ali, avançou pouquíssimo penhasco acima:
logo deslizaram as patas dianteiras de Grimsborken e levaram o cavalo
e seu condutor a desabarem, sob um som que mais parecia ao de um
trovão em meio às montanhas.
Na ocasião seguinte, ele foi capaz de subir um pouco mais, no entan-
to uma das patas dianteiras de Grimsborken deslizou e ambos desceram
novamente, agora sob o som de um deslizamento de terra. Da terceira
vez, Grimsborken decretou:
— A hora chegou de mostrarmos de que somos capazes.
Em seguida, arrojou-se mais uma vez contra a montanha, até que as
rochas voaram rumo ao céu e permitiram que pudessem subir. O jovem,
então, cavalgou a toda brida pelas ranhuras da elevação, colocou a prin-
cesa sobre o arco da sela e partiu antes mesmo que o troll se levantasse.
Desse modo, a princesa ficou livre.
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E o jovem assim o fez: abriu buracos nos sacos de cereal, de modo que
se viu cevada e centeio por toda parte. Os pássaros selvagens da floresta
acorriam em tal número que eclipsaram o sol, mas ao verem os cereais lhes
foi impossível não aterrissar e esgaravatar o milho e o centeio. Por fim,
começaram a brigar entre si e esqueceram por completo tanto do jovem
quanto de Grimsborken, sendo incapazes de lhes infligir mal algum.
O jovem se pôs, em seguida, a cavalgar por muito, muito tempo, pas-
sando por colinas e vales, trechos rochosos e lamaçais, quando então
Grimsborken começou a ouvir algo novamente, perguntando ao jovem
se também ele conseguia escutá-lo.
— Sim... Ouço agora um crepitar e um estrondo terríveis, em cada
parte da floresta, e de tal maneira que vou ficando muito assustado –
respondeu o rapaz.
— São os animais selvagens da floresta, todos eles – disse Grims-
borken. – Foram enviados para nos deter. Livra-te, porém, das doze
carcaças de boi. Eles ficarão tão ocupados com elas que acabarão por
esquecer-nos.
E assim fez o jovem: livrou-se das carcaças de boi. Chegaram então
os animais da floresta – ursos, lobos e leões, bem como toda sorte de bi-
chos cruéis –, mas, ao colocarem os olhos sobre as carcaças, começaram a
lutar por elas até o derramamento de sangue, esquecendo por completo
tanto de Grimsborken quanto do rapaz.
Mais uma vez, pôs-se ele a cavalgar. Muitos foram os cenários que
viu, pois, ao contrário do que se poderia pensar, nas costas de Grims-
borken a viagem não era nada lenta. Então, Grimsborken relinchou.
— Escutas algo?
— Sim... Ouço uma espécie de potro relinchando nitidamente a uma
enorme, enorme distância – respondeu o rapaz.
— Se o escutas tão claramente à distância – disse Grimsborken –, é
porque trata-se de um potro já crescido.
Eles então prosseguiram com a viagem durante um longo tempo,
contemplando um cenário, depois outro, depois outro... Mais uma vez,
Grimsborken relinchou.
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* J. Moe.
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podiam para que o príncipe se apaixonasse por elas, ele nada tinha a dizer
a nenhuma das moças e comunicou ao pai que não desejava se casar.
Em lugar de conversar com as moças na penumbra, vagava pelos
bosques, sussurrando ao luar. Não é de estranhar que as jovens o achas-
sem muito esquisito, mas gostavam dele tanto mais por isso. Como re-
cebera ao nascer o nome de Desejoso, todos o chamavam de Desejoso
de Amor.
— Qual o problema contigo? – o pai sempre perguntava. – Tens tudo
que possas querer: uma boa cama, boa comida e tonéis cheios de cerveja.
A única coisa que precisas, para tornar-te gordo como um porco, é uma
mulher que possa dotar-te de terras vastas e ricas. Portanto, casa-te e
serás perfeitamente feliz.
— Nada peço senão casar – respondeu Desejoso –, mas nunca vi uma
mulher que me agradasse. Todas as moças daqui são rosadas e brancas, e
estou cansadíssimo dessa eterna alvura e rubor.
— Pela minha fé! – exclamou Barrica. – Queres casar com estrangei-
ra e dar-me netos feios como monstros e estúpidos como corujas?
— Não, pai, nada disso. Mas devem existir mulheres em algum lugar
do mundo que não sejam rosadas e brancas, e vos digo, de uma vez por
todas, que nunca me casarei até que tenha encontrado uma que seja
exatamente do meu agrado.
II
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O Canário Encantado
III
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IV
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VI
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VIII
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O Canário Encantado
IX
Não muito longe da fonte vivia uma família de pedreiros. Ora, quin-
ze anos antes, o pai da família, ao caminhar pelo bosque, encontrou
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
uma menininha que fora abandonada pelos ciganos. Levou-a para casa
e apresentou-a a sua esposa. A boa mulher ficou com dó da menina e a
criou como um de seus filhos. Ao crescer, a ciganinha ficou muito mais
famosa pela força e astúcia do que por sua sensibilidade ou beleza. Ti-
nha uma testa curta, o nariz achatado, os lábios grossos, o cabelo crespo
e uma pele, não dourada como a de Zizi, mas da cor do barro.
Sempre faziam troça dela por sua compleição física, e ela ficava tão
barulhenta e brava como uma gralha. Por isso, chamavam-na de Gralhita.
O pedreiro sempre mandava Gralhita buscar água na fonte e, como
era orgulhosa e preguiçosa, a cigana detestava fazer isso.
Foi ela quem assustou Zizi ao aparecer com o jarro no ombro. Assim que
se reclinou para enchê-lo, viu, refletida na água, a bela imagem da princesa.
— Que rosto bonito! – exclamou. – Ora, deve ser o meu! Por que
cargas d’água dizem que sou feia? Certamente sou bela demais para ser
a carregadora de água deles!
Ao dizer isto, quebrou o jarro e voltou para casa.
— Onde está o jarro? – perguntou o pedreiro.
— Bem, o que achas? O jarro foi tantas vezes à fonte...
— Que finalmente quebrou. Bem, cá está um balde que não quebra.
A cigana voltou à fonte e, ao ver mais uma vez a imagem de Zizi, disse:
— Não quero mais ser um animal de carga. – E lançou o balde tão
alto pelos ares que bateu nos ramos de um carvalho.
— Deparei-me com um lobo – disse Gralhita ao pedreiro –, e que-
brei o balde no nariz dele.
O pedreiro não fez mais perguntas, mas pegou uma vassoura e deu-
-lhe uma surra que diminuiu um pouco o orgulho da menina.
Então, entregou-lhe um antigo latão de leite de cobre e disse:
— Se tu não trouxeres de volta cheio, teus ossos sofrerão por isso.
XI
Gralhita partiu, esfregando o corpo, mas dessa vez não ousou deso-
bedecer e, de muito mau-humor, reclinou-se sobre a fonte. Não foi fácil
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O Canário Encantado
encher o latão de leite, que era grande e arredondado. Não cabia bem na
fonte e a cigana teve de tentar enchê-lo muitas e muitas vezes.
Ao final, seus braços estavam tão cansados que, quando tentava afun-
dá-lo na água, não tinha forças para trazê-lo de volta e o latão descia até
o fundo.
Ao vê-lo desaparecer, Gralhita fez uma cara tão infeliz que Zizi, a
qual a estivera observando o tempo todo, teve uma síncope de riso.
Gralhita voltou-se para trás e percebeu o erro que cometera. Ficou
tão aborrecida que pôs na cabeça que se vingaria imediatamente.
— O que fazes aqui, criatura adorável? – disse ela a Zizi.
— Espero por meu amado –, respondeu Zizi e então, com a sim-
plicidade natural de uma moça que até há bem pouco tempo fora um
canário, contou-lhe toda a história.
A cigana muitas vezes vira passar o jovem príncipe, com a arma ao
ombro, ao ir caçar corvos. Ela era tão feia e esfarrapada que ele nunca
lhe notara, mas Gralhita, por sua vez, o admirara, embora pensasse que
ele pudesse ser um pouco mais gordo. Pensou consigo: “Ah, minha cara!
Então ele gosta de mulher morena! Ora, também sou morena, se ao
menos pudesse pensar em uma maneira de...”. E não custou muito até
que pensasse.
— O quê?! – exclamou a astuciosa Gralhita. – Vêm apanhar-te com
grande pompa e tu não estás com medo de mostrar-te a tantos senhores
e senhoras refinados com um cabelo destes? Desce já daí, pobre criança,
e deixa-me arrumar-te os cabelos!
A inocente Zizi desceu imediatamente e se postou perto de Gralhita.
A cigana começou a escovar as longas madeixas castanhas de seus cabe-
los quando, de repente, tirou um alfinete do espartilho e, assim como a
gralha enfia o bico nos lagartos e nas nozes, afundou o alfinete na cabeça
de Zizi. Tão logo Zizi sentiu a fisgada do alfinete, tornou-se novamente
um pássaro e, abrindo as asas, voou para longe.
— Isso foi muito bem feito – disse a cigana. – O príncipe terá de ser
esperto para encontrar sua noiva.
E, após ajeitar o vestido, sentou-se na grama para aguardar por Desejoso.
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
XII
Enquanto isso, o príncipe vinha tão rápido quanto seu cavalo pudesse
levá-lo, tão impaciente que sempre estava uns trinta metros à frente dos
nobres enviados por lorde Barrica para trazer Zizi ao palácio.
Ao ver a cigana horrenda, Desejoso emudeceu de surpresa e de
horror.
— Ah! Não reconheces tua pobre Zizi? – perguntou Gralhita. – En-
quanto estivestes fora, a bruxa má esteve aqui e transformou-me nisto.
Entretanto, se tiveres coragem de casar-te comigo, retomarei minha be-
leza – e começou a chorar amargamente.
Ora, Desejoso tinha boa índole e um coração tão mole quanto era
corajoso. Pensou consigo: “Pobrezinha! Não é culpa dela que tenha fica-
do tão feia, é minha culpa. Ah! Por que não segui os conselhos do velho?
Por que a deixei só? Ademais, depende de mim quebrar-lhe o encanto,
e a amo demais para deixá-la ficar dessa maneira”.
Assim, apresentou a cigana aos senhores e senhoras da corte, expli-
cando-lhes o terrível infortúnio que ocorrera à sua bela noiva.
Todos fingiram acreditar e as cortesãs imediatamente trajaram a falsa
princesa nos mais ricos vestidos que trouxeram para Zizi. Ela foi, então,
colocada no alto de um magnífico palafrém furta-passo e dirigiram-se
rumo ao castelo.
Infelizmente, os ricos trajes e joias só faziam Gralhita parecer ainda
mais feia e Desejoso não podia deixar de se sentir envergonhado e des-
confortável ao adentrar com ela a cidade. Os sinos repicavam, os carri-
lhões bimbalhavam, as pessoas lotavam as ruas e vinham às portas para
assistir ao cortejo. Quase não podiam acreditar no que viam assim que
notavam a noiva estranha que o príncipe escolhera.
Para prestar-lhe honras, lorde Barrica foi encontrá-la aos pés da
grande escadaria de mármore. Ao ver a criatura horrenda, quase caiu
de costas.
— O quê?! – exclamou. – Esta é a beldade maravilhosa?
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O Canário Encantado
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salão para pedir desculpas e implorar a seu senhor que tivesse paciência.
Lorde Barrica demonstrou sua paciência insultando o filho.
— Como se não bastasse – resmungou entre os dentes – esse meni-
no escolher uma feiosa sem um tostão, o ganso agora ainda tinha que
queimar! Não foi uma esposa o que ele me trouxe, mas a própria fome!
XIV
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XVI
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O Canário Encantado
Desde então sempre houve muito o que comer naquele país e, desde
essa época também, podemos ver, no meio das mulheres louras de olhos
azuis de Flandres, umas belas moças, cujos olhos são negros e a pele da
cor do ouro. Estas são as descendentes de Zizi.*
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Os Doze Irmãos
Mas o menino não a deixou em paz enquanto ela não abriu a porta
do quarto e lhe mostrou os doze ataúdes recheados de aparas de madei-
ra, cada um com seu travesseiro. E então ela disse:
— Meu querido Benjamin, teu pai mandou fazer estes caixões para ti
e para os teus onze irmãos, porque, se eu der à luz uma menina, devereis
todos morrer e neles sereis enterrados.
Chorava amargamente enquanto lhe dizia essas palavras, mas o filho
consolou-a, dizendo:
— Não chores, querida mãezinha. Haveremos de escapar de algum
modo, e então fugiremos para salvar nossas vidas.
— Sim – respondeu a mãe. – Eis o que deveis fazer: vai com teus onze
irmãos para a floresta e que um de vós esteja sempre sentado num galho da
árvore mais alta que conseguirdes encontrar, vigiando a torre do castelo. Se
eu der à luz um menino, hastearei uma bandeira branca e então podereis
regressar em segurança. Mas, se eu der à luz uma menina, hastearei uma
bandeira vermelha. Isso vos servirá de advertência para que fujais o mais
rápido possível, e que o bom Deus tenha piedade de vós. Todas as noites
me levantarei e rezarei por vós. No inverno, para que tenhais sempre uma
fogueira que vos aqueça. No verão, para que o calor não vos oprima.
Depois, a rainha deu sua bênção aos filhos e eles partiram para a flo-
resta. Lá, encontraram um carvalho muito alto e nele montaram guarda,
revezando-se em turnos e mantendo os olhos sempre fixos na torre do
castelo. No décimo segundo dia, durante o turno de Benjamin, o pe-
queno notou que hasteavam uma bandeira na torre. Mas eis que não era
branca, mas vermelha da cor do sangue, o sinal que anunciava que to-
dos eles deveriam morrer. Seus irmãos, quando se inteiraram da notícia,
encheram-se de raiva e exclamaram:
— É inacreditável que tenhamos de enfrentar a morte por causa de
uma maldita menina! Juremos vingança. Sempre que encontrarmos uma
menina, seja onde for, ela haverá de morrer por nossas mãos.
Depois, embrenharam-se na mata. Quando chegaram bem no meio
da floresta, no ponto mais escuro e de vegetação mais cerrada, depara-
ram-se com uma casinha encantada completamente vazia.
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Os Doze Irmãos
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encantado com sua beleza, com as vestes reais que envergava e com
a estrela dourada que exibia na testa, perguntou-lhe de onde vinha e
para onde ia.
— Sou uma princesa – respondeu a menina –, e estou procurando
meus doze irmãos. Estou disposta a peregrinar até onde o céu azul se
une à terra, em busca deles.
E mostrou ao jovem as doze camisas que trazia consigo. Benjamin
concluiu que aquela devia ser sua irmã, e lhe disse:
— Eu sou Benjamin, teu irmão mais novo.
Os dois choraram de alegria e se beijaram e se abraçaram vezes sem
conta. Depois de um tempo, Benjamin observou:
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Os Doze Irmãos
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nhavam para eles. Ela colhia ervas para cozinhar com as verduras, juntava
a lenha e vigiava as panelas no fogão. Desse modo, sempre que os onze
irmãos voltavam, a comida já estava pronta. Além disso, mantinha a casa
em ordem e limpava todos os cômodos. Era sempre tão prestativa que
seus irmãos viviam encantados com ela, e todos eram muito felizes juntos.
Um belo dia, os dois prepararam um grande banquete. Quando os
outros chegaram, todos se reuniram e, sentados à mesa, comeram e be-
beram e divertiram-se a valer.
Ora, em torno da casa encantada, havia um pequeno jardim onde
cresciam doze lírios bem altos. A menina, desejosa de agradar os irmãos,
foi colher as doze flores para dar-lhes de presente enquanto jantavam.
Porém, mal havia ela terminado de arrancá-las, os doze irmãos se trans-
formaram em doze corvos, que saíram voando pela floresta afora, e a
casa e o jardim também desapareceram.
Agora, a pobre menina estava completamente só na floresta. Olhan-
do em redor, porém, ela viu uma anciã, de pé, bem ao seu lado.
— O que foste fazer, menina? – disse a velha. – Por que não deixaste
as flores em paz? Elas eram teus doze irmãos. Agora, os coitados ficarão
para sempre transformados em corvos.
E aos prantos, a menina lhe perguntou:
— E não tem nenhum jeito de libertá-los?
— Não – disse a anciã. – Há apenas uma maneira em toda a face
da Terra, e é tão difícil que tu jamais conseguirás libertá-los assim, pois
terias de permanecer muda e sem rir durante sete anos; e se pronuncias-
ses uma só palavra, ainda que só faltasse uma hora para completar-se
o prazo, teu silêncio teria sido em vão e, ainda por cima, teus irmãos
morreriam por causa dessa palavra.
Mesmo assim, a menina pensou consigo:
— Se isso é tudo que preciso fazer, então tenho certeza de que sou
capaz de libertar meus irmãos.
E saiu em busca de uma árvore bem alta. Quando encontrou o que
procurava, subiu até o ramo mais elevado e ali ficou. Passava os dias lá
em cima, a fiar, sem nunca rir nem dizer palavra.
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Os Doze Irmãos
Ora, acontece que, um belo dia, passou por ali um rei a caçar e esse
rei possuía um grande galgo, que correu farejando até a árvore onde es-
tava a menina e ali se pôs a pular e latir furiosamente. O barulho atraiu
a atenção do monarca e, quando este olhou para cima e viu aquela linda
princesa com uma estrela dourada na testa, ficou tão encantado com ta-
manha beleza que lhe pediu em casamento ali mesmo. A mocinha nada
respondeu, mas fez um ligeiro aceno com a cabeça. O rei, então, escalou
a árvore em pessoa, desceu com ela, colocou-a sobre o cavalo e a levou
para o seu palácio.
O casamento celebrou-se com grande pompa e circunstância, mas a
noiva nada falou nem deu um sorriso sequer.
Passados alguns anos, os dois viviam felizes em união, mas a mãe do
rei, que era uma velha má, começou a espalhar calúnias contra a jovem
rainha, e disse ao rei:
— Não passa de uma criada plebeia e mendicante, essa com quem te
casaste. Sabe-se lá que maldades é capaz de fazer contra nós! Está certo
que é muda e não pode falar. Mas podia ao menos sorrir. Bem sabes que
quem não ri é porque tem a consciência pesada.
No início, o rei não dava bola para as palavras dela. A velha, porém,
persistia tanto no assunto e acusava a jovem rainha de tantas maldades
que, por fim, o rei deixou-se levar por suas palavras e condenou sua linda
esposa à morte.
Para tanto, acendeu-se uma grande fogueira no pátio do castelo para
queimar a moça, e o rei assistia aos preparativos debruçado em uma ja-
nela mais alta, com os olhos rasos d’água, pois ainda amava a esposa de
todo o coração. Contudo, no momento em que a jovem, já amarrada à
estaca, via as chamas beijarem-lhe as vestes com suas labaredas vermelhas,
os setes anos finalmente se completaram. Ouviu-se então um frêmito de
asas cruzando o ar e os dozes corvos apareceram voando lá no alto. Mas
logo as aves mergulharam pelo céu abaixo e, assim que tocaram o solo,
transformaram-se nos doze irmãos, que ela acabara de libertar.
Os varões, então, dissiparam as chamas, apagando a fogueira; e depois
de desatar sua querida irmã da estaca a que estava presa, beijaram-lhe e
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abraçaram-lhe vezes sem conta. E agora que podia abrir a boca e falar,
ela contou ao rei por que se mantivera sempre muda e não podia sorrir.
O monarca muito se regozijou ao saber que a esposa era inocente, e
todos eles viveram felizes para sempre.*
* Irmãos Grimm.
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Rapunzel
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Rapunzel
Rapunzel, Rapunzel,
Atira-me teus cabelos dourados.
Rapunzel, Rapunzel,
Atira-me teus cabelos dourados.
Rapunzel, Rapunzel,
Atira-me teus cabelos dourados.
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Rapunzel
falou-lhe com ternura e declarou francamente que seu canto lhe tocara
o coração, e que ele não viveria em paz enquanto não a conhecesse.
Não foi preciso muito tempo para aplacar o receio que Rapunzel a prin-
cípio sentira. Aceitou sem hesitar quando o príncipe pediu-lhe a mão em
casamento, pensando: “Ele é jovem e belo, e certamente serei mais feliz
com ele do que com a velha bruxa”. Pousando a mão sobre a dele, disse-lhe:
— Ficarei muito feliz em ir embora contigo, mas como hei de descer
da torre? Sempre que vieres me visitar, deve trazer-me uma meada de
seda, com a qual fiarei uma escada. Quando estiver pronta, descerei por
ela, e tu me levarás embora em teu cavalo.
Ficou acertado que ele a visitaria todos os dias até que a escada fi-
casse pronta. Viria à noitinha, pois durante o dia a velha estava sempre
com ela. A bruxa, é claro, não suspeitava do visitante secreto. Certo dia,
porém, sem pensar no que dizia, Rapunzel observou distraidamente:
— Mãezinha, por que demoras tanto a subir? O príncipe sobe tão
ligeiro e num instante está comigo.
— Ah, criança perversa! – gritou a bruxa. – Que significa isso? Jul-
guei esconder-te em segurança contra o mundo inteiro, mas deste um
jeito de me enganar.
Num surto de cólera, agarrou os belos cabelos de Rapunzel, enrolou-
-os na mão esquerda e, apanhando com a outra mão uma tesoura, rip,
rip, cortou as lindas tranças da menina. Mas o pior estaria por vir: tinha
a velha um coração tão duro, que levou Rapunzel para um local deserto
e isolado, onde abandonou-a para viver em miséria e solidão.
Porém, na noite em que levou a pobre Rapunzel embora, a bruxa
amarrou as tranças em um gancho da janela. Quando o príncipe apare-
ceu e chamou:
Rapunzel, Rapunzel,
Atira-me teus cabelos dourados,
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* Irmãos Grimm.
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A Fiandeira de Urtigas
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A Fiandeira de Urtigas
— Não.
— Deixa que morra.
— Mas o que dirá a condessa?
— A condessa compreenderá que não foi por tua culpa; só o conde é
culpado pela própria morte.
— Aguardemos um pouco. Talvez seu coração possa se enternecer.
Aguardaram, então, por um mês, por dois, por seis, por um ano. A
fiandeira não fiava mais. O conde deixara de persegui-la, mas ainda se
recusava a consentir com o casamento. Guilbert impacientou-se.
A pobre moça amava-o de todo o coração e estava mais infeliz do que ja-
mais estivera, mais do que quando Burchard atormentava apenas seu corpo.
— Terminemos com isso – disse Guilbert.
— Espera um pouco ainda – suplicou Renelde.
O rapaz, no entanto, foi ficando cansado. Mais raramente ia a Lo-
cquignol e, logo, não ia mais. Renelde sentia como se o coração fosse
partir-se, mas manteve-se firme.
Um dia, a moça encontrou o conde. Juntou as mãos, como que em
prece, e bradou:
— Meu senhor, tende piedade!
Burchard, o Lobo, virou a cara e seguiu adiante.
Ela poderia ter abrandado-lhe o orgulho, caso tivesse voltado nova-
mente para a roca de fiar, mas não fez nada do tipo.
Não muito tempo depois, soube que Guilbert deixara a província.
Ele nem mesmo apareceu para despedir-se dela; contudo, soube o dia e
a hora de sua partida e escondeu-se na estrada para vê-lo mais uma vez.
Quando voltou, pôs a roca de fiar parada em um canto e chorou por
três dias e três noites.
VII
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
Entretanto, o conde ficava cada vez pior, até que foi desenganado pe-
los médicos. Soaram o dobre de finados e, em repouso, esperava a morte
chegar. A morte, todavia, não estava tão próxima quanto pensavam os
médicos e ainda ficou doente por muito tempo.
Parecia estar em uma condição desesperadora, mas não ficava me-
lhor ou pior. Não vivia nem morria; sofria horrivelmente e clamava alto
pela morte para que pusesse fim às suas dores. Nesse ponto extremo,
recordou-se do que dissera à fiandeira havia muito tempo. Se a morte
tardava tanto, era porque ele não estava pronto para segui-la por não ter
mortalha para o funeral.
Mandou que trouxessem Renelde, colocou-a à cabeceira e ordenou-
-lhe que imediatamente fiasse sua mortalha.
Mal a fiandeira começara o trabalho, o conde começou a sentir as
dores diminuírem.
Nesse momento, finalmente, seu coração compadeceu-se; estava arre-
pendido de todo o mal que fizera por orgulho e implorou a Renelde que o
perdoasse. Então, Renelde perdoou-o e continuou a fiar dia e noite.
Quando o fio de urtigas estava pronto, fiou-o com a roca e depois
cortou a mortalha e começou a costurá-la.
E, como antes, quando ela costurava, o conde sentia menos dores e
a vida esvair-se. Quando a agulha deu o último ponto, ele deu o último
suspiro.
VIII
* Ch. Denlin.
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O Fazendeiro
Barbatempo
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convite, mas o que quer que ele te dê para beber e o que quer que ele
faça, não te esqueças de tirar-me o cabresto, ou nunca mais me verás
novamente.
E assim aconteceu. O homem pagou duzentos dinheiros pelo cavalo
e ganhou uma cortesia. Quando se separaram, esforçou-se por lembrar
de retirar o cabresto. No entanto, o comprador não fora muito longe
antes que o jovem recobrasse a forma mais uma vez e, quando o homem
chegou à casa, Jacó já estava sentado no banquinho ao lado do fogão.
No terceiro dia tudo aconteceu da mesma maneira. O jovem trans-
formou-se em um enorme corcel negro e disse ao pai que, se viesse um
homem e lhe oferecesse trezentos dinheiros, e o tratasse bem e fosse
muito generoso na negociação, que ele lhe vendesse, mas o que quer que
o comprador fizesse ou o quanto bebesse, que o pai não se esquecesse
de tirar o cabresto, caso contrário, ele nunca se libertaria do fazendeiro
Barbatempo enquanto vivesse.
— Não – respondeu o homem –, não esquecerei.
Quando chegou ao mercado, o homem recebeu trezentos dinheiros,
mas o fazendeiro Barbatempo o tratou tão bem que ele bem esqueceu de
tirar o cabresto, de modo que o fazendeiro partiu com o cavalo.
Ao chegar a certa altura, o fazendeiro teve de ir a uma estalagem para
comprar mais conhaque, de modo que amarrou um barril cheio de pre-
gos quentes debaixo das fuças do cavalo e um cocho cheio de aveia atrás
da cauda. Após amarrar bem o cabresto no gancho, entrou na estalagem.
Lá ficou o cavalo, batendo as patas, dando coices, bufando e empinando,
quando surgiu uma moça que achava ser um pecado e uma vergonha
tratar um cavalo tão mal assim.
— Ah, pobre criatura! Que dono deves ter para tratar-te assim! –
disse ela, retirando o cabresto do gancho, de modo que o cavalo pudesse
se virar e comer a aveia.
— Cá estou eu! – gritou de maneira estridente o fazendeiro Barba-
tempo, saindo apressadamente porta afora. O cavalo, contudo, já havia se
desvencilhado do cabresto e se arremessado em um laguinho de gansos,
onde transformou-se em peixinho. O fazendeiro Barbatempo foi atrás
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O Fazendeiro Barbatempo
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* P. C. Asbjornsen.
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Senhora Holle
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Senhora Holle
toda a tua gentileza para comigo. Já não posso continuar aqui. Tenho de
voltar para a minha gente.
— Agrada-me teu desejo de ires para casa – disse a Senhora Holle –
e, porque foste uma criada fiel, mostrar-te-ei o caminho de volta.
A Senhora Holle tomou-a pela mão e levou-a até uma porta aberta
e, enquanto a menina passava por ali, choveu ouro sobre ela até que es-
tivesse coberta da cabeça aos pés.
— Eis tua recompensa por ser tão boa criada – disse a Senhora Hol-
le, e deu-lhe também o fuso que caíra no poço. Ela então fechou a porta,
e a menina encontrou-se de novo em seu mundo, não muito longe de
casa. Quando chegou ao pátio da casa, o velho galo cantou:
— Cocoricó-cou! A menina de ouro voltou!
Em seguida, ela foi ter com sua madrasta e, como voltara coberta de
ouro, foi bem recebida em casa.
Contou tudo que lhe acontecera e, quando ouviu como consegui-
ra as riquezas, a mãe ficou ansiosa por garantir a mesma sorte à filha
feia e preguiçosa. Então, disse à filha que se sentasse à beira do poço e
fiasse. Para que o sangue sujasse o fuso, a menina colocou a mão num
espinheiro e espetou o dedo. Em seguida, jogou o fuso no poço e pulou
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atrás dele. Assim como a irmã, ela chegou a uma linda campina e seguiu
o mesmo caminho. Quando se aproximou do forno de padeiro, os pães
gritaram como da outra vez:
— Tira-nos daqui, tira-nos daqui ou queimaremos! Já estamos assa-
dos o suficiente!
Mas a menina imprestável respondeu:
— Que piada! Como se eu tivesse de sujar as mãos por vossa causa!
E seguiu seu caminho. Logo chegou à macieira, que exclamava:
— Oh, por favor, sacode-me, sacode-me. Minhas maçãs já estão bem
maduras.
— Se fizer isso – respondeu –, cairão na minha cabeça.
E assim prosseguiu a jornada. Quando chegou à casa da Senhora
Holle, não sentia o mais mínimo medo, pois tinha sido advertida dos
dentões, e prontamente aceitou tornar-se sua criada. No primeiro dia,
trabalhou duro e fez tudo que a ama lhe ordenara, pois pensava no ouro
que receberia. No segundo dia, no entanto, começou a esmorecer, e no
terceiro nem sequer se levantou da cama de manhã. Não arrumou a
cama da Senhora Holle como tinha de fazer e nunca a sacudiu o sufi-
ciente para fazer as penas voar. Assim, a ama logo se aborreceu com ela
e a demitiu, para alegria daquela criatura preguiçosa.
“A chuva de ouro deve ser agora”, pensou.
A Senhora Holle conduziu-a até a mesma porta, como fizera com a
irmã, mas, quando passou por ali, em vez de ouro, despejou-se sobre ela
um tacho de piche.
— Eis a recompensa de teu trabalho – disse a Senhora Holle, fe-
chando a porta.
A preguiçosa voltou para casa toda coberta de piche e, quando a viu
de cima do muro, o velho galo exclamou:
— Cocoricó-cou! A cadela suja voltou!
O piche continuou grudado nela, e a moça nunca mais conseguiu
livrar-se dele.*
* Irmãos Grimm.
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Minnikin
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Minnikin
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bruxa velha e corcunda, que tinha apenas um olho. Este olho, Minnikin
também o roubou; quando a velha começou a gritar e a lamentar-se,
perguntando que fora feito de seu olho, Minnikin indagou:
— Que me ofereces por teu olho?
— A arte de fabricar centenas de litros de cerveja de uma só vez.
Por ensiná-lo essa arte, a bruxa obteve o olho de volta, e cada um
tomou seu caminho.
Após percorrer curta distância, Minnikin achou por bem verificar de
que seu navio era capaz. Tirou-o do bolso e nele pisou com um dos pés,
e depois com o outro. O navio tornou-se muito maior, aumentando ain-
da mais quando Minnikin colocou o segundo pé, tomando as dimensões
de um navio comum, desses que navegam pelo mar.
Então, Minnikin disse:
— Vai e navega por água doce e por água salgada, por sobre colinas e
vales profundos, e não te detenhas até chegares ao palácio do rei.
Num instante, o navio começou a mover-se tão depressa quanto
um pássaro no ar, chegando então ao palácio do rei, onde estancou
imóvel.
Das janelas do palácio, muitas pessoas viram Minnikin aproximar-
-se navegando no ar e pararam para admirar aquela maravilha. Fi-
caram tão impressionadas, que correram para fora a fim de ver que
homem seria aquele, navegando em um navio pelos céus. Porém, en-
quanto se precipitavam para fora do palácio, Minnikin saiu do navio
e guardou-o novamente no bolso – pois, ao retirar-lhe o pé de cima, o
navio tornou-se tão pequeno quanto antes, e os cortesãos depararam-
-se com nada mais do que um garoto maltrapilho, de pé, à beira-mar.
O rei indagou-lhe de onde vinha, mas o garoto disse que não sabia,
nem conseguia explicar como fora parar ali. Contudo, implorou do
fundo de seu coração que o rei o acolhesse em seu palácio. Se não
houvesse trabalho para ele, apanharia lenha e água para a cozinheira, e
isso foi-lhe permitido fazer.
Ao adentrar o palácio, Minnikin notou que tudo estava coberto de
negro, de cima a baixo. Perguntou à cozinheira o que significava aquilo.
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Então o troll mirou-lhe um golpe com sua clava de ferro – que era
ainda maior do que a do primeiro troll –, mas atingiu o solo, e a relva
voou dez metros acima do chão.
— É isto o melhor que consegues? – disse Minnikin. – Não é lá mui-
to impressionante. Agora, conhecerás um de meus golpes.
Então, empunhou a espada e atingiu o troll, arrancando suas dez ca-
beças, que rolaram pela areia da praia.
Mais uma vez, a filha do rei lhe disse: “Dorme um pouco no meu
colo”, e, enquanto Minnikin dormia, ela cobriu-o com vestes de prata.
Assim que Ritter Red percebeu que já não havia mais perigo, desceu
da árvore e ameaçou a princesa, até que finalmente ela prometeu dizer
a todos ter sido ele o responsável por seu resgate. Ele então arrancou a
língua e os pulmões ao troll, guardou-os no lenço de seu bolso e condu-
ziu a princesa de volta ao palácio. Foram recebidos com muita alegria e
regozijo, como se pode imaginar, e o rei não se cansava de prestar honras
e reverências a Ritter Red.
Minnikin, por sua vez, voltou carregado de argolas de ouro e prata,
que pilhara ao navio do troll. Ao adentrar o palácio, a cozinheira bateu
palmas de contentamento e indagou onde ele poderia ter obtido tanto
ouro e tanta prata, mas Minnikin respondeu que estivera em casa, e que
aquelas argolas haviam caído de alguns baldes, e que ele as trouxera para
a cozinheira.
Na terceira quinta-feira, à noitinha, tudo se passou exatamente como
das outras duas vezes. No palácio real, cobriram-se de preto todas as coi-
sas, e todos estavam aflitos e consternados. Contudo, Ritter Red disse-
-lhes que não temessem – ele resgatara a filha do Rei de dois trolls, e
poderia facilmente fazê-lo uma terceira vez.
Conduziu-a até a praia, mas, chegada a hora de o troll aproximar-se,
escalou a árvore e escondeu-se.
A princesa chorou e instou-o a permanecer junto dela, mas em vão.
Fiel ao que dissera antes, ele respondeu:
— Antes perder-se uma vida do que duas.
Também nessa noite, Minnikin implorou permissão para ir à praia.
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prata e os bens preciosos que pilhara aos navios dos trolls, e cada qual
apresentou suas provas diante do rei.
— O que possui os bens preciosos de ouro, prata e diamantes – disse
o rei – deve ser aquele que matou o troll, pois tais coisas não se encon-
tram em nenhum outro lugar. Então, Ritter Red foi atirado no poço de
serpentes, e Minnikin obteve a mão da princesa e metade do reino.
Certo dia, o rei saiu para um passeio com Minnikin, e este pergun-
tou-lhe se alguma vez tivera outros filhos.
— Sim – disse o rei –, tive outra filha, mas o troll levou-a embo-
ra, pois não havia ninguém para salvá-la. Haverás de desposar uma de
minhas filhas, mas, se puderes libertar a outra, que foi levada pelo troll,
consentirei em que também a tenhas, e a outra metade do reino.
— Tentarei minha sorte – respondeu Minnikin –, mas para isso preci-
so de um cabo de aço de quinhentos metros, e quinhentos homens que me
acompanhem, e provisões para cinco semanas, pois a viagem será longa.
O rei garantiu-lhe que teria tudo isso, mas receava não possuir um
navio grande o bastante para transportar a todos.
— Tenho o meu próprio navio – disse Minnikin, tirando do bolso
o navio que a bruxa lhe dera. O rei começou a rir e pensou tratar-se
de mais um de seus gracejos, mas Minnikin insistiu que seus pedidos
fossem atendidos, dizendo que o rei teria uma surpresa. O rei mandou
trazer tudo que Minnikin pedira e ordenou que o cabo de aço fosse co-
locado no navio, mas ninguém era capaz de erguê-lo. Além disso, só ha-
via espaço bastante para um ou dois homens por vez naquele navio tão
pequeno. Então, Minnikin agarrou o cabo e colocou uma parte dele no
navio; à medida que puxava o cabo a bordo, o navio aumentava de tama-
nho, tornando-se cada vez maior, até que atingiu proporções descomu-
nais, acomodando com folga o cabo, os quinhentos homens e Minnikin.
— Vai e navega por água doce e por água salgada, por sobre colinas e
vales profundos, e não te detenhas até chegares ao lugar onde está a filha
do rei – ordenou Minnikin ao navio, que no momento seguinte navega-
va por sobre terra e água, cortando os ventos que sopravam, assoviavam
e gemiam ao chocarem-se contra o casco.
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Minnikin
princesa. – Apressei-me em enxotá-lo, mas pode ser isso que está recen-
dendo a sangue de cristão...
— Sim, deve ser isso – disse o troll.
A princesa então perguntou se ele arranjara alguém capaz de fabricar
centenas de litros de cerveja de uma só vez.
— Não, ninguém sabe fazê-lo – respondeu o troll.
— Há pouco entrou aqui um homem dizendo que sabia... – disse a
filha do rei.
— Esperta, como sempre! – disse o troll. – Como pudeste deixá-lo ir
embora? Devias saber que eu estava justamente à procura de um homem
assim.
— Bem, mas não o deixei partir, afinal – respondeu a princesa. – Po-
rém, o senhor é tão raivoso, que o escondi no armário. Se o senhor não
tiver encontrado ninguém mais, o homem ainda está lá dentro.
— Deixa-o sair – ordenou o troll.
Quando Minnikin apareceu, o troll perguntou-lhe se era verdade que
podia fabricar centenas de litros de cerveja de uma só vez.
— Sim – respondeu Minnikin –, é verdade.
— Foi bom ter te encontrado – afirmou o troll. – Põe-te agora mes-
mo ao trabalho. Mas, se falhares em fermentar a cerveja bem forte, que
os céus te ajudem!
— Ah, ficará saborosa – disse Minnikin, pondo-se imediatamente ao
trabalho. – Porém, preciso de mais trolls para carregar o que é necessário
– emendou. – Esses aqui não servem para nada.
Vieram mais trolls, e eram tantos, que logo havia uma multidão deles,
e a fabricação prosseguiu. Quando o mosto ficou pronto, naturalmente
todos quiseram prová-lo – primeiro o troll, depois os outros. Mas Min-
nikin fizera-o tão extraordinariamente forte, que, ao tomar uma só gota,
todos caíram mortos, bem como as moscas que tocaram na bebida. Por
fim, já não restava ninguém, exceto uma velha bruxa que estava sentada
atrás do fogão.
— Ah, pobre criatura! – disse Minnikin. – Mereces provar um pouco
de mosto, como os outros. Minnikin então mergulhou uma concha no
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* J. Moe.
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— Abre a porta!
— Abre tu mesma, querida filha! – respondeu a mãe.
— Não consigo aproximar-me por causa do meu nariz – replicou a filha.
Quando a mãe chegou à porta e viu sua filha, podeis imaginar como
ficou e como gritou e lamentou; porém, o nariz e o queixo não diminu-
íram nem um pouquinho por causa disso.
Ora, o irmão, que estava a trabalhar no palácio do rei, fizera um re-
trato da irmã e o levara consigo. Todas as manhãs e noites, ajoelhava-se
diante dele e rezava pela irmã, tamanho ardor com que a amava.
Os outros cocheiros ouviram-no fazer isso, então, olharam pelo buraco
da fechadura do quarto do rapaz e viram-no ajoelhado diante da gravura,
de modo que contaram a todos que todas as manhãs e noites o rapaz ajoe-
lhava-se e rezava a um ídolo. Por fim, chegaram ao próprio rei e suplicaram
que ele também espiasse pelo buraco da fechadura e visse com os próprios
olhos o que fazia o jovem. No início, o rei não acreditara, mas depois de
muito, muito tempo, os rapazes levaram a melhor e o rei encaminhou-se,
na pontinha dos pés, para a porta. Espiou pela fechadura e viu o rapaz de
joelhos, com as mãos postas, diante de uma gravura pendurada na parede.
— Abre a porta! – bradou o rei, mas o jovem não escutou.
Então, o rei chamou-lhe novamente, mas o jovem rezava com tanto
fervor que também não o ouviu dessa vez.
— Abre a porta, ordeno-te! – vociferou o rei novamente. – Sou eu!
Desejo entrar!
Desse modo, o rapaz correu até a porta e a destrancou, mas, na pressa,
esqueceu-se de esconder a gravura.
Quando o rei entrou e viu a gravura, ficou paralisado, como se esti-
vesse com grilhões e não pudesse sair do lugar, pois a pintura parecia-lhe
demasiado bela.
— Não há em lugar algum da Terra mulher tão bela quanto esta! –
afirmou o rei.
O jovem, no entanto, disse-lhe que era sua irmã e que ele a pintara, e
caso não fosse ainda mais bela que na gravura, não era, de modo algum,
mais feia.
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Ao dizer isso, virou-se para sair, mas os dois homens que seguravam
o rei pelos braços agarraram e puseram uma faca nas mãos do rei e
fizeram-no dar um pequeno corte no dedinho da moça, o bastante para
fazê-lo sangrar.
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* J. Moe.
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rainha como prova de que Branca de Neve estava mesmo morta. A mal-
vada mandou que cozinhassem os órgãos com sal e comeu-os, julgando
que assim se tinha livrado da menina para sempre.
Ora, quando a pobre criança se viu sozinha naquela grande floresta,
onde até mesmo as árvores à sua volta lhe pareciam assumir formas
estranhas, sentiu-se tão assustada que não sabia o que fazer. Desatou
então a correr por sobre as pedras afiadas e os arbustos de espinheiros, e
os animais selvagens cruzavam-lhe o caminho disparados, mas não lhe
faziam mal. Correu tão longe quanto seus pés a podiam levar, e quando
a noite já se aproximava, viu uma casinha e nela entrou para descansar.
Lá dentro, tudo era bem pequeno, porém mais limpo e arrumado
do que qualquer casa que podeis imaginar. No meio da sala havia uma
mesinha. Estava coberta com uma toalha de mesa branca e sobre ela se
dispunham sete pratinhos e, ao lado de cada pratinho, um garfinho, uma
colherzinha, uma faquinha e um copinho. Junto à parede, alinhavam-
-se sete caminhas cobertas com lençóis brancos como a neve. Branca
de Neve estava tão faminta e tinha tanta sede que acabou comendo um
pedacinho de pão e um pouco de mingau de cada prato e bebendo um
gole de vinho de cada copinho. Depois, sentindo-se cansada e sono-
lenta, deitou-se em uma das camas, mas não estava confortável; então
experimentou todas as outras, uma a uma, porém nenhuma lhe servia.
Umas eram longas demais, outras, demasiado curtas. Até que, por fim,
a sétima lhe serviu perfeitamente. Nela, portanto, deitou-se, disse suas
preces como uma boa menina e dormiu quase de imediato.
Quando já era noite escura, os donos da casinha regressaram. Eram
sete anões e trabalhavam nas minas que ficavam bem lá embaixo, no
coração da montanha. Acenderam suas sete pequenas lamparinas e, as-
sim que seus olhos se acostumaram com a claridade, viram que alguém
estivera ali, pois as coisas não estavam todas arrumadas como eles as
haviam deixado.
— Quem se sentou na minha cadeirinha? – disse o primeiro anão.
— Quem comeu do meu pãozinho? – disse o segundo.
— Quem provou do meu mingau? – disse o terceiro.
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atravessou as sete colinas até a casa dos sete anões. Lá chegando, bateu
à porta, como sempre, mas Branca de Neve pôs a cabeça do lado de fora
da janela e exclamou:
— Não posso deixar ninguém entrar. Os sete anões mo proibiram.
— Estás com medo de veneno? – perguntou a anciã. – Olha, vou cor-
tar esta maçã ao meio. Eu como a metade branca e tu comes a vermelha.
Mas a maçã fora feita com tanta arte que apenas a metade vermelha
era venenosa. Branca de Neve queria muito prová-la, e quando viu que
a camponesa a estava comendo, não conseguiu mais resistir à tentação:
esticou o braço e pegou a metade envenenada. Mas, assim que o primei-
ro pedaço da fruta passou por seus lábios, ela caiu morta no chão. Bri-
lharam de júbilo, então, os olhos da rainha, que soltou uma gargalhada
sinistra e exclamou:
— Branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o
ébano! Desta vez, os anões não conseguirão trazer-te de volta à vida.
E quando chegou a sua casa, perguntou ao espelho:
— Espelho, espelho meu, há no mundo mulher mais bela do que eu?
E o espelho enfim respondeu:
— Bela senhora, rainha preciosa, sois neste mundo a mais bela e
formosa.
Então, finalmente, seu coração invejoso encontrou a paz – ao menos,
tanta paz quanto é possível a um coração envenenado pela inveja.
Quando os anõezinhos voltaram para casa à noite, encontraram
Branca de Neve estendida no chão, e ela não respirava nem se mexia no
mais mínimo que fosse. Então, ergueram-na e olharam em volta à pro-
cura de qualquer coisa que pudesse estar envenenada. Desapertaram-lhe
o espartilho, pentearam-lhe o cabelo, lavaram-na com água e vinho, mas
de nada serviu: a menina estava morta e morta seguiu. Depois, deita-
ram-na num ataúde, sentaram-se em torno – todos os sete anões – e
choraram desconsolados por três dias a fio. Por fim, convenceram-se
de que deveriam enterrá-la, mas sua aparência ainda era viçosa, como
se estivesse viva, e tinha as bochechas ainda rosadas. Por isso, disseram:
— Não podemos ocultá-la nas profundezas da terra escura.
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* Irmãos Grimm.
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O Ganso de Ouro
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O Ganso de Ouro
E o homenzinho partiu.
João Bobo pôs-se imediatamente ao trabalho e, quando derrubou a
árvore, encontrou entre as raízes um ganso cujas penas eram feitas do
mais puro ouro. Tomou-o nas mãos e levou-o consigo até a hospedaria
onde tencionava passar a noite.
O estalajadeiro tinha três filhas, que, ao verem o ganso de ouro, fica-
ram muito intrigadas com o fabuloso pássaro e desejaram possuir uma
de suas penas douradas.
A mais velha pensou consigo: “Darei logo um jeito de arrancar uma
dessas penas”. Assim, na primeira oportunidade, tendo João Bobo saído
do quarto, a moça atirou-se sobre ganso e agarrou uma de suas asas.
Mas, vejam só: seus dedos ficaram colados e, por mais que tentasse, não
conseguia remover a mão!
Logo depois, a segunda filha apareceu e quis arrancar uma pena do
ganso, mas bastou tocar na irmã para ficar pegada a ela, sem conseguir se
soltar. Por fim, veio a terceira irmã com o mesmo intento, mas as outras
duas gritaram: “Afasta-te! Por Deus, afasta-te!”
A irmã mais nova não fazia ideia de por que deveria obedecer, pen-
sando consigo: “Ora, se ambas estão aqui, por que eu não posso estar?”
Tocou em uma das irmãs e imediatamente ficou presa. Tiveram as
três, assim, de passar a noite toda junto ao ganso.
Na manhã seguinte, João Bobo meteu o animal debaixo do braço
e foi-se embora, sem se incomodar no mínimo que fosse com as três
moças que o seguiam, agarradas umas às outras e ao ganso. Pois se não
havia remédio senão acompanhar-lhe os passos, para a direita ou para a
esquerda, o melhor que pudessem! No meio do caminho, cruzaram com
o vigário, que, ao ver a procissão, exclamou:
— É muita falta de decoro das senhoritas, correr atrás de um jovem
desta maneira! Julgais que isso são modos?
Tendo dito isso, agarrou a irmã mais nova pela mão e tentou arrastá-
-la, no que ficou ele mesmo preso, tendo de acompanhá-las na carreira.
Dali a pouco, o sacristão apareceu e ficou muito surpreso ao ver o
vigário correndo com as moças.
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O Ganso de Ouro
— Não sei como saciar a terrível sede que me consome, pois de nada
me vale água pura. Esvaziei um barril inteiro de vinho, mas o que é uma
gota em pedra escaldante?
— Creio que posso ajudar-te – disse João Bobo. – Vem comigo, e hás
de beber à vontade.
Conduziu-o assim até a adega do rei. O homem sentou-se diante dos
enormes barris e bebeu, bebeu, até esgotar todo o conteúdo da adega
antes que a noite caísse.
Então João Bobo pediu novamente a noiva, mas o rei ficou muito
aborrecido com a ideia de um sujeito estúpido, que as pessoas cha-
mavam de “João Bobo”, desposar-lhe a filha, e começou a inventar
novas condições. Pediu que encontrasse um homem capaz de comer
uma montanha de pães. João Bobo não hesitou: foi direto à floresta e,
no mesmo local de antes, encontrou um homem apertando uma faixa
bem justa em torno da cintura, com uma expressão pungente de dor,
que então disse:
— Comi uma fornada inteira de pães, mas que vantagem é isso para
alguém com a minha fome? Pois digo: meu estômago está vazio! E devo
apertar bastante o cinto para não morrer de inanição.
Muito contente, João Bobo falou:
— Levanta e vem comigo. Terás muito o que comer – e conduziu-o
até a corte.
O rei ordenara que buscassem toda a farinha do reino, e que se pre-
parasse uma montanha de pães. Mas o homem da floresta simplesmente
sentou-se e começou a comer, e em um único dia tudo foi consumido.
João Bobo pediu então a noiva pela terceira vez, mas o rei novamente
recorreu a evasivas e exigiu que lhe trouxesse um navio “capaz de nave-
gar por água e por terra! Quando vieres navegando em tal navio”, disse,
“terás minha filha sem mais demora”.
Mais uma vez, João Bobo tomou o caminho da floresta, e lá encon-
trou o velhinho com quem repartira o pão, que lhe disse:
— Comi e bebi por ti, e agora terás o navio. Fiz tudo isso pois foste
bom e misericordioso comigo.
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
Deu a João Bobo um navio capaz de navegar por água e por terra.
Quando o rei viu o navio, concluiu que não mais poderia recusar-se a
entregar-lhe a filha.
Então celebraram o casamento com muitas festividades. Depois da
morte do rei, João Bobo sucedeu-o no trono, e viveu feliz com sua espo-
sa pelos muitos anos que se seguiram.*
* Irmãos Grimm.
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Os Sete Potrinhos
O rapaz julgou que pastorear os potros seria bastante fácil, e que não
encontraria nisso a menor dificuldade.
No dia seguinte, ao nascer do sol, o chefe da cavalaria real deixou
saírem os sete potros, que dispararam – o jovem em seu encalço – por
sobre montes e vales, por entre bosques e pântanos. Depois de acom-
panhá-los nesse ritmo por muito tempo, o rapaz começou a sentir-se
cansado; dentro em pouco, estava francamente exausto de pastorear
os animais. Próximo dali havia uma gruta em um rochedo, onde uma
velha, sentada a uma roda de fiar, ocupava-se no trabalho de tecer. Tão
logo avistou o rapaz correndo atrás dos potros, o suor a ensopar-lhe o
rosto, ela o chamou:
— Vem cá, vem cá, meu menino, e deixa-me pentear teus cabelos.
Como a oferta o agradasse, sentou-se aos pés da velha bruxa, repou-
sando a cabeça em seus joelhos. Rendeu-se inteiramente à indolência,
enquanto ela penteava seus cabelos. E assim transcorreu todo o dia.
Quando começou a anoitecer, o rapaz quis ir embora.
— É melhor voltar direto para casa – disse ele –, pois de nada adianta
apresentar-me diante do rei.
— Aguarda a noite cair – disse a velha bruxa. – Os potros do rei
passarão por aqui novamente, e então poderás conduzi-los até o palácio.
Ninguém jamais desconfiará de que passaste o dia todo deitado aqui, em
vez de pastoreá-los.
Quando os potros voltaram, a velha entregou-lhe uma garrafa d’água
e um bocado de musgo, dizendo que, ao ser indagado pelo rei sobre o
que os potros haviam comido e bebido, era isso que devia apresentar.
— Pastoreaste fielmente os potros durante todo o dia? – perguntou o
rei, quando o rapaz apresentou-se à noitinha.
— Sim, Alteza! – respondeu.
— Então podes dizer-me o que meus sete potros comeram e bebe-
ram – replicou o rei.
O rapaz mostrou a garrafa d’água e o bocado de musgo que recebera
da velha, dizendo:
— Tendes aqui o que comeram, e aqui o que beberam.
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Os Sete Potrinhos
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rochedo. Iam tão rápido, que Cinzento não pôde sequer compreender
os guinchos da velha atrás deles, mas percebeu que ela estava extrema-
mente irritada.
Era noitinha quando se apresentaram ao rei, que os esperava no pátio.
— Pastoreaste fielmente durante todo o dia? – o rei perguntou a
Cinzento.
— Fiz o melhor que pude – respondeu.
— És então capaz de dizer-me o que meus sete potros comeram e
beberam? – indagou.
Cinzento apresentou-lhe o pão consagrado e o frasco de vinho.
— Eis aqui o que comeram, e aqui o que beberam – respondeu.
— Sim, pastoreaste fielmente e com zelo – disse o rei –, e terás a mão
da princesa e metade de meu reino.
Fizeram-se então os preparativos para o casamento, e o rei ordenou
que o acontecimento fosse tão festejado com tamanha pompa e im-
ponência, que todo o mundo ouviria falar dele, e todos indagariam a
respeito.
Mas, durante o banquete do casamento, o noivo levantou-se e foi até
o estábulo, alegando que precisava buscar qualquer coisa. Ao chegar lá, fez
conforme os potros haviam pedido, cortando-lhes a cabeça. Começou pelo
potro mais velho, depois passou ao segundo, e assim por diante, conforme
suas idades. Posicionou cuidadosamente as cabeças sobre as caudas e, assim
que terminou, os potros transformaram-se em príncipes novamente.
Quando voltou ao banquete acompanhado dos sete príncipes, o rei
ficou tão feliz, que abraçou e beijou Cinzento. A noiva, por sua vez, es-
tava mais satisfeita do que nunca com seu esposo.
— Metade do meu reino já é teu – disse o rei –, e a outra metade
será tua depois de minha morte, pois meus filhos podem arranjar terras
e reinos por si próprios, agora que voltaram a ser príncipes.
E assim, como os senhores podem imaginar, o casamento transcorreu
repleto de júbilo e contentamento.*
* J. Moe.
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O Músico Prodigioso
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* Irmãos Grimm.
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A História de Sigurd
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— Quem quer que tenha me matado, este ouro será a tua ruína e a
ruína de todos que o possuírem.
Sigurd disse:
— Não tocarei em nada se, ao abrir mão de tudo, jamais morrer.
Contudo, todos os homens morrem e não há homem valente que deixe
a morte intimidar seu desejo. Morre, Fáfnir! – e logo Fáfnir morreu.
Depois disso, Sigurd foi chamado de “a perdição de Fáfnir” e de o
matador de dragão.
Nessa altura, Sigurd voltou e encontrou-se com Regin, e Regin pediu
que assasse o coração de Fáfnir e o deixasse prová-lo.
Assim, Sigurd colocou o coração de Fáfnir em um espeto e assou-o,
mas aconteceu de tocá-lo com o dedo e se queimar. Então, pôs o dedo
na boca e acabou por provar o coração de Fáfnir.
Aí, imediatamente, compreendeu a língua dos pássaros e ouviu os
pica-paus falarem:
— Lá está Sigurd assando o coração de Fáfnir para outra pessoa,
quando ele mesmo deveria experimentá-lo e sorver toda a sabedoria.
O outro pássaro disse:
— Lá está Regin, pronto para trair Sigurd, que nele confia.
O terceiro pássaro declarou:
— Deixemos que corte a cabeça de Regin e fique com todo o ouro
para si.
O quarto pássaro afirmou:
— Deixemos que o faça e, aí, vá até Hindarfell, o lugar onde dorme
Brynhild.
Quando Sigurd ouviu isso e como Regin conspirava para traí-lo, cor-
tou a cabeça de Regin com um só golpe da espada Gram.
Nessa altura, todos os pássaros começaram a cantar:
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A História de Sigurd
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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Vermelho
feiticeira. Ora, Gudrun apaixonou-se por Sigurd, mas este sempre falava
de Brynhild, de como era bela e querida. Assim, um dia, a mãe-feiticeira
de Gudrun pôs papoula e drogas de esquecimento em uma taça mágica
e mandou Sigurd brindar à sua saúde. Instantaneamente esqueceu-se da
pobre Brynhild, amou Gudrun, e casaram-se com muitos festejos.
Ora, a feiticeira, mãe de Gudrun, queria que seu filho Gunnar se
casasse com Brynhild, e ordenou que saísse a cavalo com Sigurd, fosse
até lá e a cortejasse. Então, dirigiram-se até a casa do pai da moça. Bry-
nhild já havia saído dos pensamentos de Sigurd por causa do vinho da
feiticeira, mas ela ainda se lembrava dele e ainda o amava. Nessa altura,
o pai de Brynhild contou a Gunnar que ela não se casaria com ninguém,
senão com aquele que pudesse cruzar a cavalo as chamas diante da tor-
re encantada, e para lá galoparam. Gunnar lançou o cavalo às chamas,
mas o animal não as enfrentou. Em seguida Gunnar testou o cavalo de
Sigurd, Grani, mas, montado por Gunnar, ele não se moveu. Foi aí que
Gunnar recordou o feitiço que a mãe lhe ensinara e fez, por mágica, que
Sigurd ficasse com a sua aparência e ele ficou exatamente como Gunnar.
Nesse momento, Sigurd, com a forma de Gunnar e com a sua armadura,
montou em Grani e o cavalo saltou o cerco de fogo. Sigurd entrou e
encontrou Brynhild, mas ainda não se lembrava dela por conta da poção
do esquecimento na taça de vinho da feiticeira.
Agora Brynhild não tinha saída senão prometer que seria sua mulher,
a esposa de Gunnar, como supunha, pois Sigurd trazia a forma de Gun-
nar e ela prometera casar-se com quem quer que cavalgasse por entre as
chamas. Ele lhe deu um anel e ela devolveu o anel que lhe fora oferecido
antes, quando trazia a forma de Sigurd, o último anel do pobre anão
Andvari. Sigurd saiu, mudou de forma com Gunnar e cada um voltou a
ser quem era. Foram para casa, para a rainha-feiticeira, e Sigurd deu o
anel do anão para sua mulher, Gudrun.
Brynhild foi até o pai e disse que um rei chamado Gunnar fora até
ela, cruzara o fogo e ela teria de casar-se com ele.
— Acredito, porém – ela afirmou –, que homem algum, a não ser
Sigurd, “a perdição de Fáfnir”, poderia realizar esse feito; ele que é o meu
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* A saga de Völsung.
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