DISSERTAO Thayana de Oliveira Santos
DISSERTAO Thayana de Oliveira Santos
Recife,
2016
THAYANA DE OLIVEIRA SANTOS
Recife,
agosto de 2016
Thayana de Oliveira Santos
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de
Pernambuco, como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em
História.
BANCA EXAMINADORA
ESTE DOCUMENTO NÃO SUBSTITUI A ATA DE DEFESA, NÃO TENDO VALIDADE PARA FINS DE COMPROVAÇÃO DE TITULAÇÃO.
Para as três Marias Oliveiras
José, pela ausência mais presente em nossas vidas;
Elizete, por tudo;
E Luiza, por trazer mais amor às nossas vidas.
No período anterior ao golpe militar de 1964, o Brasil vivia uma incipiente experiência
democrática, que foi rapidamente interrompida quando os setores conservadores da sociedade,
articulados com o capital internacional e o empresariado, empreenderam uma campanha de
desestabilização do governo de João Goulart, dando início a um período da História
Republicana Brasileira de forte repressão e autoritarismo aos diversos movimentos sociais e a
quem se opusesse à ditadura então instaurada. Esta dissertação tem por objetivo analisar como
se deu a repressão às mulheres militantes de esquerda que foram presas na Casa de Detenção
do Recife (CDR), logo após o golpe militar. Procuramos entender como se desenvolveu a
atuação política dessas mulheres e as circunstâncias que levaram às suas prisões, bem como a
utilização dos recursos jurídicos da Lei de Segurança Nacional (LSN), entre 1964 e 1967,
para justificar as prisões políticas. Investigamos o cenário de repressão, de violência
indiscriminada e institucionalizada, para compreendermos como se deu o recrudescimento das
forças opressoras sobre essas mulheres que tiveram alguma participação nas lutas políticas
desencadeadas em Pernambuco nesse período, observando que a política do terror não foi
uma marca registrada da ditadura militar só a partir de 1968, com o Ato Institucional nº 5,
mas que esta era uma prática comum àquele regime desde o seu início.
Palavras-chave: Ditadura militar. Presas políticas. Violência. Repressão às mulheres.
ABSTRACT:
In the period preceding the military coup of 1964, Brazil lived a fledgling democratic
experience, which was rapidly interrupted when the conservative sectors of society,
articulated with the international capital and the entrepreneurial, they embarked on a
destabilization campaign of the government of João Goulart, starting a period of the Brazilian
Republican history of strong repression and authoritarianism to the various social movements
and to those who opposed the dictatorship then established. This dissertation aims to analyze
how has the repression of leftists women who were arrested in Recife Detention House, soon
after the military coup. We seek to understand how it developed the political activities of
these women and the circumstances that led to their arrests, and the use of legal resources of
the National Security Law between 1964 and 1967 to justify political arrests. We investigate
the scene of repression, indiscriminate and institutionalized violence, to understand how was
the resurgence of opression forces against these women who have had some involvement in
political struggles triggered in Pernambuco at that period, noting that the terror policy wasn't a
trademark of the military dictatorship only from 1968, with the Institutional Act nº. 5, but it
was a common practice to that regime from its inception.
Keywords: military dictatorship; arrested activists; violence; repression of women.
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 15
CAPÍTULO I:
DISPUTAS POLÍTICAS E MOVIMENTOS SOCIAIS NO PRÉ-GOLPE ........................ 21
CAPÍTULO II:
AS PRIMEIRAS DETENTAS... “AS MULHERES DO TEMPO DE ARRAES” ............... 56
2.1. Maria Augusta Oliveira: “Sempre há algum lapso com relação às mulheres!” .................. 56
2.2. Naíde Teodósio: Uma “intelectual de esquerda” ................................................................. 65
2.3. Maria Celeste e a tomada de uma rádio para convocar a resistência .................................... 70
2.4. Célia Lima: “É preferível morrer de pé do que viver de joelhos” ........................................ 77
2.5. Graziela Cavalcanti de Melo: “Essencialmente democrática” ............................................. 83
2.6. Luiza Arcoverde Cavalcanti: “A fome e a sede é de justiça” ............................................... 90
2.7. Os indícios de violência ......................................................................................................... 93
CAPÍTULO III:
OS JULGAMENTOS DOS PROCESSOS POR SUBVERSÃO: NAÍDE TEODÓSIO E
MARIA CELESTE ..................................................................................................................... 106
CAPÍTULO IV:
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 160
INTRODUÇÃO:
Assim,
a evolução do processo revolucionário em Cuba, vitorioso em 1959 e
autoproclamado socialista em 1961, acrescentou ao anticomunismo da América do
Sul tonalidades da vizinhança caribenha. O impacto que a revolução cubana teve
sobre o pensamento revolucionário latino-americano, apontando-lhe novos caminhos
para a tomada do poder, enriqueceu o argumento anticomunista continental com os
espectros da substituição das forças armadas regulares por milícias populares e da
execução dos inimigos de classe.2
1
LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência política e anistia. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23.,
2005, Londrina. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: guerra e paz. Londrina: ANPUH, 2005.
CD-ROM.
2
LEMOS, Renato. Ditadura militar, violência política e anistia. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23.,
2005, Londrina. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: guerra e paz. Londrina: ANPUH, 2005.
CD-ROM.
17
Fizemos essa análise tentando entender como se dava, naquele contexto, a atuação
política das mulheres militantes de esquerda em suas organizações políticas. Bem como,
refletimos sobre a aplicação do golpe e da ditadura militar e as análises existentes atualmente
na Historiografia acerca da denominação do caráter do golpe e da ditadura o que, por sua vez,
também implica na definição da responsabilidade direta com a sua execução.
No segundo capítulo buscamos trabalhar quem são algumas dessas mulheres
presas em Pernambuco logo nos primeiros dias da ditadura militar, tendo como objeto de
análise seis mulheres ligadas de alguma forma ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que
atuaram em frentes variadas, como as Ligas Camponesas, o Serviço Social Contra o
Mocambo (SSCM), o Movimento de Cultura Popular (MCP). São elas: Maria Celeste Vidal
Bastos, Naíde Regueira Teodósio, Graziela de Moura Cavalcanti de Melo, Eva Laci Camargo
Martins (Célia Lima), Maria Augusta Oliveira e Luiza Arcoverde Cavalcanti.
A análise que fizemos da militância, prisão e processo de julgamento dessas
mulheres esteve apoiada nos arquivos da repressão, entendendo que estes são o “conjuntos
documentais produzidos pelos órgãos de informação e segurança do aparato estatal em ações
repressivas, durante período não-democrático.”3 Desta forma, buscamos apoio nos arquivos
constantes no acervo do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e da Casa de
Detenção do Recife (CDR), locais em que, já presas, produziu-se vasta documentação sobre
suas vidas no cárcere, para que pudéssemos detectar o grau de violência e de ruptura de
direitos que se instaurou, sob o teto de órgãos estatais, desde as primeiras horas do golpe e
que foi sendo intensificado na medida em que a ditadura militar aprofundava o uso da força,
do arbítrio e da censura como meios para se consolidar.
Sobre a utilização de acervos de fontes ligados à repressão, vale ressaltar que
o contínuo questionamento em relação a até que ponto as fontes oriundas da
repressão nos podem revelar algo sobre a experiência daqueles que interrogam, para
além da lógica dos interrogadores, tem produzido análises progressivamente menos
ingênuas e mais criativas.4
3
BAUER, Caroline Silveira; GERTZ, René E. Arquivos de regimes repressivos: Fontes sensíveis da história
recente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCCA, Tania Regina. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2013, p. 177.
4
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo: Uma Antologia e Suas Implicações. In: A micro-história e
outros ensaios. Apud: CASTRO, Hebe. CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 51-52.
18
sutilezas que essas fontes possuem, e às evidências que trazem subentendidas”, 5 como os
requerimentos e solicitações de encaminhamento médico feitas por aqueles profissionais ou
pelas próprias detentas, como podemos observar no caso de Maria Celeste.
No terceiro capítulo analisamos os processos de julgamento de Maria Celeste
Vidal e Naíde Teodósio. Ambas foram indiciadas pela Lei de Segurança do Estado, sendo a
primeira condenada à revelia e a segunda absolvida das acusações. A partir da análise dos
processos, buscamos compreender as mudanças da Lei de Segurança Nacional e suas
adequações às necessidades que os órgãos de repressão tinham para tentar criar respaldo legal
à ampliação e acirramento da violência contra o que denominavam, em um amplo conceito,
de “subversivo”.
Procuramos fazer essa análise tentando identificar as diferenças de tratamento dos
agentes do Estado quanto às presas políticas e sua condição social e de classe, considerando
também a cobertura de suas prisões na imprensa. Desta forma, utilizamos, além dos
documentos referentes ao processo das presas nos arquivos do DOPS, processos do Tribunal
de Justiça de Pernambuco (TJPE), bem como a cobertura dada pela grande imprensa,
principalmente os jornais Diário de Pernambuco (DP) e Correio da Manhã (CM), do Rio de
Janeiro.
Sobre a utilização de jornais como fonte de pesquisa, cabem algumas
considerações. Segundo o historiador José Honório Rodrigues, citado por Luca, ao considerar
o jornal como uma das principais fontes, o mesmo “ponderava que ‘nem sempre a
independência e exatidão dominam o conteúdo editorial’, caracterizado como ‘mistura do
imparcial e do tendencioso, do certo e do falso’” 6.
Ademais, como alerta a mesma autora, “a imprensa periódica seleciona, ordena,
estrutura e narra, de uma determinada forma, aquilo que elegeu como digno de chegar até o
público”, o que exige dos historiadores um olhar crítico sobre o conteúdo da informação, uma
vez que, de acordo com a mesma autora, é necessário que os pesquisadores atentem, também,
sobre o grupo responsável pela linha editorial, assim como é importante interrogar-se sobre
sua ligação com “poderes e interesses financeiros”, pois
jornais e revistas não são, no mais das vezes, obras solitárias, mas empreendimentos
que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos coletivos, por
5
BAUER, Caroline Silveira; GERTZ, René E. Arquivos de regimes repressivos: Fontes sensíveis da história
recente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCCA, Tania Regina. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2013, p. 190.
6
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: Pinsky, Carla Bassanezi. (org.) Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 115-116.
19
No caso dos jornais que circularam no país durante a ditadura militar, a autora
afirma que:
Em vários momentos, a imprensa foi silenciada, ainda que por vezes sua própria voz
tenha colaborado para criar as condições que levaram o amordaçamento. O papel
desempenhado por jornais e revistas em regimes autoritários, como o Estado Novo e
a ditadura militar, seja na condição de difusor de propaganda política favorável ao
regime ou espaço que abrigou formas sutis de contestação, resistência e mesmo
projetos alternativos, tem encontrado eco nas preocupações contemporâneas,
inspiradas na renovação da abordagem do político.8
7
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: Pinsky, Carla Bassanezi. (org.) Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 140.
8
Idem, p. 129.
9
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínio da História: ensaios de teoria e metodologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 377.
20
1955, quando Jango obteve 3,5 milhões de votos, superando a votação de Juscelino
Kubitscheck, que obteve pouco mais de 3 milhões.10
Jânio Quadros era sustentado pela oligarquia financeira e pelas forças que
derrubaram Vargas em 1954 e na eleição “apelou para os anseios populares de mudança,
confundiu as massas com a sua duplicidade demagógica e obteve esmagadora vitória sobre o
marechal Henrique Lott”11, que representava a coligação PSD-PTB, tendo conquistado seis
milhões de votos. Na presidência, segundo Moniz Bandeira (2010), implementou uma política
de combate à inflação com base na compressão dos salários e contenções de créditos que, por
sua vez, “sacrificavam os trabalhadores, as classes médias e os setores mais débeis do
empresariado.”
Ainda segundo o autor, Quadros percebeu que não atingiria seus objetivos dentro
de um quadro democrático, haja vista a impopularidade de seu governo em decorrência da
elevação do custo de vida, acelerada pela instrução 204 da SUMOC que resultou na liberação
do câmbio. Se a política econômica era de arrocho para as classes trabalhadoras, a política
externa independente, com a aproximação junto ao bloco socialista e adotando o que Bandeira
chamou de “posturas antiamericanas” tinha um duplo sentido: acalmar as esquerdas e
barganhar com os Estados Unidos da América (EUA) mais assistência financeira para seu
governo, reforçando assim o seu prestígio no país. Conforme Bandeira,
Desta forma, Jânio Quadros tentou superar a crise política mediante um golpe de
Estado não convencional, “arrimado nas Forças Armadas”, mas um golpe “aceito pelo
consenso nacional, que lhe permitisse dirigir o país acima das classes sociais e dos partidos
políticos”.13 Esse era o motivo da sua política econômica nociva à classe trabalhadora e da
adoção de uma política externa que afagasse as esquerdas. Quadros argumentava com os EUA
que não tinha maioria no Congresso devido a não simultaneidade das eleições. Desta forma,
como analisou Moniz Bandeira, ele
10
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 14.
11
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). São Paulo:
Unesp, 2010, p. 117.
12
Idem, p. 119.
13
Idem, p. 118.
22
Todo esse movimento tinha o objetivo de conquistar o apoio dos EUA e das
forças conservadoras nacionais para o seu projeto golpista.15 Aos EUA interessava apoiar o
governo de Jânio Quadros e ter o apoio do Brasil naquela fase da disputa internacional
promovida pela Guerra Fria entre àquela potência capitalista e a potência socialista, a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ainda mais quando a América Latina vivia a
turbulência provocada pela Revolução Cubana que alinhava-se à URSS declarando-se
socialista.
Quando da renúncia de Jânio Quadros, João Goulart estava em viagem oficial à
China Comunista, o que tornou-se o estopim para parte da direita conservadora, que já nutria
uma rejeição a Goulart e ao sofrer forte influência da campanha anticomunista16 promovida
pelos EUA, no contexto da Guerra Fria, passou a considerar sua volta um risco à Segurança
Nacional e tentar impedir o seu retorno ao país. Com a sua renúncia, Jânio Quadros esperava
que os Ministros militares e o “clamor popular” garantissem a sua volta. Os militares, de fato,
não estavam dispostos a aceitar a posse de Goulart e a população foi às ruas defender, isto
sim, a posse legal do então vice-Presidente eleito com expressiva votação, João Goulart.
Segundo Caio Navarro de Toledo, “as manifestações populares, associadas com as
de políticos democráticos e de militares nacionalistas, conseguiram impedir o golpe militar
que se configurava em agosto de 1961.”17 Desta forma, Quadros e seu projeto de poder foi
utilizado como um “inocente útil” para as Forças Armadas tentarem, enfim, concretizar seu
projeto golpista, barrado em 1955 após a eleição de JK-Jango e a intervenção do Marechal
Lott e setores nacionalistas das Forças Armadas.
14
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1-64). Op. Cit., p.
121.
15
Além de Moniz Bandeira, Caio Navarro de Toledo também defende esta tese a respeito de Jânio Quadros.
16
Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
17
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 08.
23
18
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 08.
19
FICO, Carlos. O golpe de 1964... Op. Cit., p. 17.
20
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 14.
21
Idem.
24
controle do Estado burguês e não o colocava em risco, como insistiam em afirmar seus
opositores.22
A campanha pela posse constitucional de João Goulart ganhou fôlego com a
atuação de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e seu cunhado, que, em 27 de
agosto, iniciou a campanha que ficou conhecida como “Rede da Legalidade”. A partir da
adesão do Comandante do III Exército à “cadeia da legalidade” – fato que provocou um racha
na corporação – o movimento ganhou mais força, tornando-se um marco importante para o
sucesso da ‘Rede’, como destaca Carlos Fico (2014). Os governadores Carvalho Pinto (SP),
Ney Braga (PR) e Mauro Borges (GO), apoiaram a posse legal de Jango. Este último,
juntamente com Leonel Brizola, empenhou-se mais na luta pela legalidade. Uma greve geral
de trabalhadores(as), organizados em diversos segmentos por todo o país, também foi
convocada para apoiar a posse de Jango.
A UDN e o PSD, vendo a dimensão da mobilização popular pró-Jango, articulam
a “solução de compromisso” para o impasse, tal seja, o Parlamentarismo. A proposta foi
imediatamente aceita por Jango que, sutilmente, foi impedido de conversar com seus aliados
do Brasil antes da firmar o acordo, a fim de que ele não tivesse ciência do amplo apoio
popular que obtinha para a sua posse através do Presidencialismo, como garantia a
Constituição.23
Como destacou Toledo (2004), o golpe militar foi derrubado e em seu lugar foi
dado um golpe político, com a instauração do sistema Parlamentarista, que obteve 236 votos a
favor contra 55, destes, 40 de políticos do PTB, partido de João Goulart. Desta forma, Goulart
tomou posse em 07 de setembro de 1961, sob um novo sistema de governo que diminuía
substancialmente seus poderes no Executivo garantidos pela Constituição de 1946.
O fato é que, a partir daquele momento, o sistema mudou. A permanência ou não
do Parlamentarismo seria decidida nove meses antes do término do mandato de Jango através
de um Plebiscito. Em seu discurso em 07 de setembro – data bastante simbólica, Goulart
enalteceu sua posse como sendo a consagração do respeito à ordem Constitucional. Embora
esse respeito só tivesse se tornado possível após alteração do dispositivo constitucional para a
mudança do sistema de governo Presidencialista para Parlamentarista com a diminuição dos
poderes do Presidente.
Destacou, ainda, seu papel diante da crise “político-militar” com a sua posse e
enalteceu a sua firmeza para evitar “a luta entre irmãos” com o objetivo de “não marcar com
22
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 16.
23
Cf. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1-64). Op. Cit.
25
o sangue generoso do povo brasileiro o caminho” que o levou até Brasília. Atitude bem
semelhante a que tomou poucos anos depois, diante da conspiração exitosa que o tirou da
presidência em 1964.
Todo argumento, jamais comprovado, de que João Goulart planejava um “golpe”
que visava implementar o que seus opositores denominavam de “república sindicalista” é
posto abaixo diante de sua postura conciliadora, ao abrir mão de seus poderes para garantir a
sua posse. Neste mesmo discurso fica claro, mais uma vez, seu caráter conciliador quando o
mesmo afirmou que inclinava-se “mais a unir do que a dividir” preferindo “pacificar a acirrar
ódios”. Foi isso que Goulart fez ao articular sua posse legítima com quem estava articulando
um golpe contra ele.
24
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 25.
26
vez que na reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Brasil se absteve na
votação que propôs a expulsão de Cuba – que havia se declarado socialista – da
organização.25
Segundo Toledo, por diversas vezes Goulart se pronunciou em defesa das
reformas estruturais necessárias para a superação dos entraves econômicos e sociais do País.
Contudo, as concepções sobre o sentido social e político das reformas, sobretudo a Agrária,
eram muito conflitantes. Em seu discurso por ocasião do 1º de maio, em Volta Redonda,
25
Cf. TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit.
26
Idem, p. 30-31.
27
centro com orientação reformista. Sua principal proposta era antecipar o plebiscito para
dezembro de 1962.
Segundo Carlos Fico (2014), a partir de agosto os ministros militares começaram
a apoiar a antecipação do plebiscito e o Ministro da Guerra reconheceu que a mudança do
sistema de governo só serviu para alimentar a crise. Brochado da Rocha não encontrou apoio
no Congresso para as suas medidas reformistas. Mas sua postura ao se colocar favorável à
pauta, foi importante para a aprovação da antecipação do Plebiscito.
Para Caio Navarro de Toledo (2004), duas medidas desse gabinete foram
importantes para o desencadeamento dos fatos que culminou com a aprovação do plebiscito
para o ano seguinte. Além de solicitar a antecipação do plebiscito para outubro de 1962,
quando ocorreriam eleições para a renovação do Congresso e para governadores de alguns
estados, entre estes o de Pernambuco, Brochado enviou mensagem ao Congresso solicitando,
também, autorização para que o Conselho de Ministros pudesse legislar através de decretos
sobre temas como Reformas de Base, remessa de lucros, regulamentação do direito de greve,
etc. Com a recusa do Congresso, ele renunciou em 14 de agosto de 1962. O Comando Geral
dos Trabalhadores (CGT) marcou greve geral para o dia 15 e na madrugada deste dia o
Congresso aprovou a antecipação do Plebiscito.
A greve, por sua vez, foi mantida uma vez que suas pautas estavam para além do
plebiscito, exigindo a regulamentação da remessa de lucros e o aumento do salário mínimo.
Sob promessa de estudo técnico para o atendimento das reivindicações, a greve foi suspensa.
Apesar de ser considerado um comando atrelado a Goulart, o CGT cumpria um papel
importante de pressão popular no governo de Jango, ao mesmo tempo em que promovia a
politização das classes trabalhadoras, embora a solidariedade de classe seja considerada
insuficiente para Navarro de Toledo, uma vez que as greves decretadas pelo CGT somente
atingiam as empresas públicas, ficando os(as) trabalhadores(as) dos setores privados,
alheios(as) ao movimento grevista.
Com a aprovação da antecipação do plebiscito, o Congresso, ao mesmo tempo em
que cedia a uma proposta de Jango e seus aliados, deixava claro a sua “condição de
intransigente defensor dos interesses das classes proprietárias e dos setores politicamente
conservadores e de direita”.27 Esta análise somada à declaração de Brizola de que o Congresso
era constituído “em sua maioria, de latifundiários, financistas, ricos comerciantes e industriais
representantes da indústria automobilística, empreiteiros e integrantes da velha oligarquia
27
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 35.
28
brasileira”,28 fazia com que a população não esperasse outra postura de um Congresso
composto por esses setores, além de nos dar uma boa dimensão do caráter classista das ações
no Congresso, onde os opositores de Jango nada mais eram do que representantes das classes
mais abastadas e que tudo fariam para defender seus interesses econômicos em detrimento dos
interesses das classes trabalhadoras.
O terceiro e último gabinete da fase parlamentarista, presidido por Hermes Lima,
esteve comprometido, tão somente, com a restituição do presidencialismo que, a esta altura, já
contava também com o apoio de políticos como Magalhães Pinto, governador de Minas
Gerais, Carlos Lacerda, da Guanabara - que pretendiam candidatar-se nas eleições
presidenciais de 1965 – e Juracy Magalhães, governador da Bahia, que, embora fossem
representantes da UDN, que se colocava contra a restituição do presidencialismo, se
envolveram na campanha do ‘sim’, em virtude dos projetos eleitorais em jogo.29
O presidencialismo venceu por larga maioria, conquistando 9.457.448 de votos,
contra 2.073.582 favoráveis à manutenção do sistema. Mais de 11 milhões de pessoas
compareceram às urnas e restituíram, através do voto, o mandato legal que fora usurpado de
João Goulart pelas forças conservadoras que, ao verem frustrada a tentativa golpista,
articularam um “golpe político”, como bem definiu Navarro de Toledo, diminuindo os
poderes do Presidente tentando, assim, fazer dele mero coadjuvante do jogo político. Jango,
enfim, reassumiu a presidência com os plenos poderes constitucionais em 23 de janeiro de
1963.
A vitória de João Goulart no plebiscito fez com que as forças populares, que se
engajaram na campanha, desempenhassem uma pressão em cima do Presidente da República
com o objetivo de que ele se definisse mais claramente a favor das Reformas. Estas, por sua
vez, segundo Fico (2014) eram metas que incorporavam tanto o ideário trabalhista, como os
objetivos do PCB e
28
Idem, p. 36.
29
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 35.
30
FICO, Carlos. O golpe de 1964... Op. Cit., p. 37.
29
Para Carlos Fico (2014), a conspiração visando tirar Jango do poder começou em
1963, ao passo que a campanha de desestabilização iniciou-se ainda em 1962 e contou com o
apoio fundamental do complexo IPES/IBAD, que financiou a campanha de políticos que
estavam no campo oposto ao de Goulart. Segundo este autor, a conspiração e a
desestabilização são coisas distintas e merecem uma análise diferenciada, embora considere
que ambas foram fruto de uma grande campanha contra João Goulart, patrocinada por grupos
31
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 54.
32
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart... Op. Cit., p. 174.
30
nacionais e pelos EUA, entre 1961-1964,33 cujas ações contaram com muita propaganda e
investimento financeiro. De acordo com o embaixador norte-americano à época, Lincoln
Gordon, além de US$5 milhões enviados pelos EUA, recursos foram enviados aos
governadores opositores. Os estados que não se alinhavam à política federal eram
considerados pelos EUA como “ilhas de sanidade administrativa” e cumpriam importante
papel na desestabilização de Goulart.34
Moniz Bandeira (2010) também destaca o papel do complexo IPES/IBAD na
campanha de desestabilização e posterior deposição de Goulart. Segundo este autor, iniciando
as atividades em 1962, o IPES se autoproclamou “contra a radicalização da política brasileira
entre a esquerda e a direita”. Esta declaração foi dada por João Batista Leopoldo Figueiredo,
banqueiro e presidente do IPES, ao jornal Diário de Notícia em 08 de fevereiro de 1962. João
Leopoldo Figueiredo era tio do General João Batista Figueiredo, que também pertencia aos
quadros do IPES, tendo sido levado pelo General Golbery de Couto e Silva.35 Ainda segundo
Moniz Bandeira (2010), o IPES
33
FICO, Carlos. O golpe de 1964... Op. Cit., p. 31.
34
Cf. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart... Op. Cit.
35
Ver: DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis:
Vozes, 1981.
36
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart... Op. Cit., p. 174.
37
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart... Op. Cit., p. 175.
31
não tendo acesso aos meios massivos de comunicação [...] buscaram difundir as
propostas reformistas do nacional-desenvolvimentismo – ou mesmo da revolução
38
Idem, p. 177.
39
TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. Op. Cit., p. 69.
40
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS FILHO, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004).
Bauru: Edusc, 2004, p. 69.
32
41
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS FILHO, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004).
Bauru: Edusc, 2004, p. 70.
42
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o Sindicalismo Rural: Lutas, Partidos, Projetos. Recife: Ed.
Universitária/Ed. Oito de Março, 2005, p. 67.
43
In: FICO, Carlos. O golpe de 1964... Op., Cit., p. 41.
33
Perante uma multidão de 200 mil pessoas, arregimentada pelos sindicatos e outras
organizações para o comício de 13 de março, na praça em frente à estação de trem,
Central do Brasil, Goulart proclamou, sem temer que o chamassem de subversivo, a
necessidade de mudanças na Constituição, que legalizava uma “estrutura econômica
superada, injusta e desumana”.44
44
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart... Op. Cit., p. 313.
45
Idem, p. 319.
34
Essa tese de “falta de coordenação” por parte dos militares do movimento golpista
é rebatida pela análise de René Armand Dreifuss (1981) sobre a atuação do IPES/IBAD na
trama do movimento que culminou com a deposição de Goulart através de um golpe de
Estado. Segundo este autor,
Ademais, afirma Dreifuss que o IPES formou um grupo de ação que operou nas
Forças Armadas, sendo este grupo o responsável pela preparação estratégica da elite orgânica.
Quem comandava as ações das Operações Militares e de Informações do IPES era o general
Golbery do Couto e Silva, que somente era
Desta forma, a tese da “falta de articulação” e “comando” por parte dos militares é, no
mínimo, questionável.
Ainda segundo Carlos Fico (2014), três atitudes de Goulart foram cruciais para o
desenrolar dos acontecimentos que culminaram com o golpe de 1964. Foram elas a) a
mensagem enviada ao Congresso, solicitando maiores poderes contra a “morosidade que
caracterizava o Congresso Nacional” e sustentando a proposta de Brizola acerca da realização
de um plebiscito sobre as Reformas de Base; b) a atitude tomada mediante a “Revolta dos
Marinheiros”, em 25 de março de 1964, ato pela Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais que não contava com o apoio da Marinha, que proibiu os marinheiros de realizarem a
assembleia. O ato aconteceu e contou com a presença de três mil marinheiros. Foi decretada a
prisão dos mesmos e um conflito foi instaurado. Jango, ao negociar o conflito, decidiu
substituir o Ministro da Marinha Silvio Mota pelo Almirante Paulo Mário Cunha Rodrigues
que, considerado de esquerda, não obtinha apoio. Ao final do conflito os marinheiros não
foram punidos, o que causou a fúria dos oficiais do Exército que não admitiam a quebra da
hierarquia militar.
46
DREIFUSS, René Armand. 1964... Op. Cit., p. 361.
47
Idem, p. 363. Grifos nossos.
35
Mesmo após esse conflito, Jango se envolveu em mais uma situação delicada com
a oficialidade ao c) confirmar presença no Automóvel Club do Brasil para prestigiar a festa
pelos 40 anos da Associação dos Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar, mesmo sendo
alertado por seus aliados, inclusive Tancredo Neves. Os militares entenderam como
provocação a presença de Jango em mais um ato de quebra da hierarquia. Na ocasião, Jango
proferiu um discurso em que acusava a Igreja Católica pelo golpe que estava sendo armado e
disse aos militares que respeitassem a hierarquia legal e as instituições.
Também anunciou, em tom de crítica a quem acusava-lhe de não dizer qual a
reforma que queria, que havia enviado mensagem ao Congresso solicitando as reformas que o
povo conclamava, sendo estas “legítimas e sentidas pelo povo brasileiro”, considerando-as
indispensáveis ao desenvolvimento do país. Também deu um recado aos conspiradores
golpistas, afirmando que seu mandato “conferido pelo povo” e “reafirmado” por ele uma
segunda vez, seria exercido em sua plenitude, “em nome do povo e na defesa dos interesses
populares”, enganando-se, portanto, quem imaginava que as forças da reação seriam capazes
de destruir um “mandato que é do povo brasileiro”.
A “profecia” de Jango não se concretizou e, no dia seguinte, iniciou-se a
movimentação das tropas para depor o Presidente. Segundo Moniz Bandeira (2010), o plano
era tomar o poder no dia 02 de abril, data marcada para mais uma “Marcha da Família com
Deus pela liberdade”, e só seria deflagrado antes, caso Jango tomasse uma atitude mais
“radical” na visão dos conservadores. Contudo, o General Olympio Mourão Filho antecipou a
movimentação das tropas para o dia 31 de março, segundo Carlos Fico, numa “atitude
pessoal”.48
Consideramos, entretanto, que a atitude de alguém que fala e age como um
General de uma corporação militar não pode ser considerada como meramente “pessoal”.
Fazer uma análise dessas é não considerar todo o trabalho de René Armand Dreifuss que traz,
exaustivamente, toda a articulação dos militares e ipesianos para a concretização do golpe
militar. Ademais, o próprio Fico (2014) afirma ser Mourão Filho um “conspirador de longa
trajetória”, sendo, inclusive, autor do Plano Cohen de 1937, um suposto plano comunista para
derrubar o governo de Vargas e tomar o poder. Hoje sabe-se que tal plano nunca passou de
uma farsa para justificar a instauração da ditadura do Estado Novo. Vê-se que as táticas não
mudaram muito, também em 1964 a população era alardeada por um suposto plano golpista
48
FICO, Carlos. O golpe de 1964... Op. Cit., p. 72.
36
de Jango e no documento oficial escrito pelos militares após a vitória do golpe, os mesmos
justificaram sua ação em cima de um suposto “plano comunista” de Jango.
49
A tese que indica uma “falta de apego à democracia” está presente em diversos artigos do historiador Daniel
Aarão Reis Filho e Jorge Luiz Ferreira. Ver: FERREIRA, Jorge; GOMES; Ângela de Castro. 1964: O golpe que
derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014 & REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1990.
50
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e Democracia. As falácias do revisionismo. Crítica Marxista. Rio de
Janeiro, n° 19, 2004, p. 34.
37
militar de 1964. Mais do que isso: contribui para legitimar a ação golpista vitoriosa
ou, na melhor das hipóteses, atenua as responsabilidades dos militares e da direita
civil pela supressão da democracia política em 1964. A direita golpista não pode
senão aplaudir esta “revisão” historiográfica proposta por alguns intelectuais
51
progressistas e de esquerda.
Um dos autores que integram a vertente revisionista é Daniel Aarão Reis Filho.
Este, juntamente com Jorge Ferreira e Ângela Gomes,52 além de defenderem o caráter golpista
das esquerdas pré-64, que não teriam compromisso com a democracia, fazem um grande
esforço em suas análises para demonstrar o suposto apoio da sociedade brasileira aos golpistas
verde-oliva. Em livro recente, Reis Filho defende que o movimento que derrubou João
Goulart e instaurou a ditadura no país, aconteceu amparado em “amplos movimentos
sociais”.53 Contudo, não traz nenhum dado empírico que fundamente sua teoria, o que nos
remete à crítica de Demian Melo no que tange a ausência de critérios metodológicos de alguns
historiadores revisionistas.54
Aqui, cabe também a reflexão feita por Vladimir Safatle, sobre a violência contra
o Estado Ilegal.55 De acordo com este autor, este argumento de “falta de apego às instituições
democráticas” são utilizados, até hoje, por quem busca justificar a violência institucional
contra quem se opunha à ditadura. Assim, o golpe seria, na verdade, um ato preventivo,
“contra um Estado comunista que estava sendo posto em marcha com a complacência do
governo Goulart”. O que deixa evidente um “claro revisionismo histórico delirante”, pois,
como bem lembrou Caio Toledo, passados 50 anos do golpe, não foi encontrada nenhuma
evidência que comprove que algum golpe por parte das esquerdas estivesse em marcha ou que
João Goulart estivesse disposto a dar um golpe.56
Em artigo que tem como objetivo tratar dos movimentos de resistência e de
oposição aos regimes militares na América Latina, particularmente, da radicalidade política da
juventude que compunha as organizações e partidos de esquerda latino-americanos, Maria
Paula Araújo trabalha com o conceito de “violência revolucionária”, compreendendo a ação
51
Idem, p. 44-45.
52
FERREIRA, Jorge; GOMES; Ângela de Castro. 1964: O golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime
democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2014.
53
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
54
MELO, Demian Bezerra de. Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político
brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, M. Cândido Rondon (PR), v.27, p.39-53,
2012, p. 46.
55
SAFATLE, Vladimir. Do uso da violência contra o Estado Ilegal. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que
resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 248-249.
56
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e Democracia. As falácias do revisionismo. Crítica Marxista. Rio de
Janeiro, n° 19, 2004.
38
no movimento golpista. Para ele, as análises que privilegiam a ação dos militares é que são
responsáveis por demarcar o fim da ditadura em 1985, quando o país foi governado pelo
último General. Em diversos artigos, como o publicado na Revista de História da Biblioteca
Nacional, Reis Filho classifica as análises que vão neste sentido como “preguiça
intelectual”.62
Identificamos, antes da elaboração de Reis Filho, no trabalho de Ana Maria
Colling,63 a mesma redefinição da ditadura, enquanto Estado autoritário, até 1979, entrando o
país, a partir desta data, em um longo processo de transição democrática. Contudo, para nós, a
difusão desta concepção cronológica nada mais é do que a reprodução do discurso dos
Generais que tomaram o poder que, a partir da “eleição” de Ernesto Geisel, anunciaram que o
país entraria em abertura “lenta e gradual”, quando, na verdade, estávamos, ainda,
mergulhados em um Estado ditatorial que continuou cerceando a liberdade e utilizando forte
repressão.
Sobre a natureza do golpe dado em 1964, contra a democracia e a classe
trabalhadora, numa linha interpretativa de golpe de classes, em uma concepção marxista,
referenciamos o trabalho clássico do cientista político uruguaio René Armand Dreifuss, onde
o autor analisou a relação dos militares com o complexo IPES/IBAD na campanha de
desestabilização do governo João Goulart, entendendo que essas organizações atuaram como
um partido político no sentido gramsciano. Para Antonio Gramsci, o papel do partido é
preparar seus intelectuais orgânicos transformando-os em dirigentes. Assim, os intelectuais
tornam-se os responsáveis pela organização dos partidos, sendo estes considerados entidades
que se dedicam à formação de dirigentes para atuar na sociedade civil e política.
A ação direta dos empresários na formulação da doutrina social do IPES,
evidenciada por Dreifuss, demonstra o sentido do golpe de Estado dado em 1964, que o autor
deixa evidente já no título do seu trabalho “1964: a conquista do Estado: Ação política,
poder e golpe de classe”.64 Em outro momento da obra, Dreifuss apresenta a nomenclatura
“civil-militar”, para classificar a ditadura, mas também aponta o “empresarial-militar” como
forma mais precisa, tendo em vista a ação dessa “elite orgânica” no movimento político que
culminou com o golpe.
62
REIS FILHO, Daniel Aarão. O sol sem peneira. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro,
agosto de 2012, p-p, 31-35.
63
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos,
1997.
64
Grifos nossos.
40
um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria esmagadora dos
principais técnicos em cargos burocráticos deveria (em decorrência de suas fortes
ligações industriais e bancárias) ser chamada mais precisamente de empresários ou,
na melhor das hipóteses, tecno-empresários.66
65
A interpretação que classifica a análise de René Dreifuss como conspiratória é feita por Lucília Delgado. Esta,
além de Dreifuss, enquadra nesta mesma perspectiva Moniz Bandeira e Heloísa Starling. Ver: DELGADO, Lucília
de Almeida Neves. “1964: Temporalidades e interpretações”. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc, 2004.
66
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro:
Vozes, 1981, p. 417.
67
Ver: ARRAES, Miguel. O Brasil, o povo e o poder. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008; BANDEIRA, Luiz Alberto
Moniz. O Governo João Goulart... Op. Cit. & DREIFUSS, René Armand. 1964... Op. Cit.
68
MELO, Demian Bezerra de. “Ditadura “civil-militar”?: controvérsias historiográficas sobre o processo político
brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente”. Espaço Plural, M. Cândido Rondon (PR), v.27, p.39-
53, 2012.
41
69
DREIFUSS, René Armand. “Posfácio”. In: MORAES, Denis. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão
Popular, 2011, p. 363.
70
Idem.
71
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto,
2008, p. 174.
72
Idem, p. 175. Grifos nossos.
73
HOBSBAWM, Eric. Mundos do Trabalhos: Novos Estudos sobre a História Operária. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000, p. 33.
42
categoria histórica, derivando de processos sociais através do tempo, sendo falso pensá-la
como uma “categoria estática, tanto sociológica quanto heuristicamente”. 74 Assim,
considerando, numa perspectiva marxista, que a sociedade é dividida em classes, entendemos
que o golpe foi dado pelos militares em favor, e com o apoio, de uma classe: a burguesia. Sem
os militares, braço armado do Estado, o golpe não se concretizaria. Contudo, consideramos
que se há necessidade de especificar a atuação de civis no movimento golpista, a forma mais
adequada é denominá-lo de ‘empresarial-militar’, conforme propõe René Dreifuss.
74
THOMPSON, E. P. “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’”. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA
Sérgio (orgs). E.P. Thompson: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo: Ed. Unicamp, 2002, p.
270.
75
PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães: consolidação e crise de uma elite política.
Recife: Massangana, 1984, p. 175.
76
Idem, p. 177.
43
Como prefeito, Arraes fez uma administração renovadora apesar das divergências
com o governo do estado e da oposição dos setores mais conservadores de Recife.
77
PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães. Op. Cit., p. 177.
78
Idem, p. 194.
79
Idem, p. 201.
80
ROZOWIKWIAT, Maria Tereza Gondim. Arraes: duas mãos e o sentimento do mundo. In: CLIO. Revista de
Pesquisa Histórica. N. 22, 2004/ Programa de Pós-graduação em História/ Universidade Federal de
Pernambuco. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004 Clio.
44
De acordo com Rozowikwiat, o MCP agregou intelectuais, artistas, educadores e pessoas das
mais diversas tendências políticas, de liberais e representantes da Igreja, à integrantes da Ação
Popular (AP) e PCB. O seu modelo de educação ia na contramão do modelo tradicional,
“privilegiando as necessidades reais da população, valorizando o universo cotidiano e a
criação de uma consciência política.”85
Um grupo do Diretório Municipal de Recife do Partido Comunista Brasileiro
participava do MCP, onde criaram um grupo de poesia que, “acompanhados pela orquestra do
maestro Geraldo Menutti”, subia aos morros da cidade. O grupo era formado por Graziela
Moura Cavalcanti - que como veremos adiante, após o golpe de 1964 foi presa e levada à
Casa de Detenção do Recife (CDR) com seu marido e também militante do PCB, Gilvan
Cavalcanti de Melo -, Moema e Magnólia Cavalcanti, filhas de Paulo Cavalcanti, Rivadávia
81
ANDRADE, Manuel Correia de. O golpe de 64 e a trajetória política de Arraes. In: CLIO. Revista de Pesquisa
Histórica. N. 22, 2004/ Programa de Pós-graduação em História/ Universidade Federal de Pernambuco. Centro
de Filosofia e Ciências Humanas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004 Clio.
82
A visão de que o governo de Miguel Arraes era popular não é consenso na historiografia. Há interpretações
de que aquele era um governo populista. Ver: SOARES, José Arlindo. A Frente do Recife e o governo Arraes:
nacionalismo em crise (1955-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
83
ANDRADE, Manuel Correia de. O golpe de 64 e a trajetória política de Arraes. Op. Cit.
84
Idem, p. 40.
85
ROZOWIKWIAT, Maria Tereza Gondim. Arraes: duas mãos e o sentimento do mundo. Op. Cit., p. 71.
45
Correia, Liana Aureliano, Joacir de Castro, David Hulack, Marcelo Mário de Melo, Oswaldo
Coelho, entre outros.86
A política habitacional também foi inovada durante a gestão de Arraes na
Prefeitura do Recife. Para ele “as casas populares deviam ser construídas pelos seus futuros
habitantes” e não “aquelas casas planejadas em gabinetes fechados por pessoas de classe
social mais abastada”. Desta forma, o governo chamava os(as) trabalhadores(as) para
decidirem em questões do seu interesse, isso tinha uma dimensão política e simbólica
gigantesca. Até então eles não só não tinham seus direitos plenamente garantidos, como não
eram chamados a participar das decisões políticas. Estava em curso, sem sombra de dúvidas,
uma nova forma de enxergar a participação dos(as) trabalhadores(as) no projeto da cidade.
As eleições presidenciais de 1960 e o apoio de Arraes à chapa encabeçada pelo
Marechal Lott tendo como vice João Goulart, afastou ainda mais Arraes de Cid Sampaio, que
estava ao lado de Jânio Quadros. Mesmo após a derrota de Lott, Arraes não teve seu prestígio
político abalado. Segundo Manuel Correia, “a administração de Arraes na Prefeitura
credenciou-o a ser o candidato a governador em 1962, enfrentando mais uma vez o
engenheiro João Cleofas, apoiado pelo governador Cid Sampaio”.87
Após a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, Arraes passou a
buscar respaldo político deste e de seu partido, o PTB, tendo em vista que os projetos de
ambos convergiam mais do que divergiam. Segundo Rozowikwiat (2006), Arraes teve seu
apoio conquistado quando dois mil trabalhadores enviaram um documento a João Goulart
referendando o seu nome para disputar o governo de Pernambuco nas eleições de 1962.
Nesta eleição, muito disputada, Miguel Arraes foi eleito governador de
Pernambuco. Segundo Dulce Pandolfi (1984), a campanha se deu em um clima de muita
agitação e polarização entre Arraes e João Cleofas. Miguel Arraes venceu a disputa com uma
margem muito pequena de votos, pouco mais de dez mil, que garantiram sua vitória diante do
representante da UDN. O PSD após longo debate interno, acabou adotando três direções no
processo eleitoral. O grupo liderado por Etelvino Lins apoiou João Cleofas; o setor liderado
por Paulo Guerra, candidato a vice-governador na chapa de Arraes, se dedicou ao projeto
político representado por Arraes e um terceiro grupo apoiou a candidatura de Armando
Monteiro Filho.
A campanha da situação, encabeçada por João Cleofas, recebeu financiamento dos
setores mais conservadores da sociedade. Vale lembrar que Arraes estava alinhado com João
86
MELO, Graziela. Crônica, contos e poemas. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2008.
87
ANDRADE, Manuel Correia de. O golpe de 64 e a trajetória política de Arraes. Op. Cit., p. 41.
46
Goulart, que sofria uma forte campanha de desestabilização por parte dos mesmos setores
situacionistas de Pernambuco. Assim, nessas eleições, João Cleofas foi beneficiado pelo apoio
do complexo IPES/IBAD, que repassava recursos para candidatos que não se alinhavam com
o governo Federal.88
Durante seu curto governo, Miguel Arraes tratou a questão social com uma
atenção especial. Já em seu discurso de posse tornou-se clara a sua predisposição ao diálogo e
à participação popular, fato que a população recifense já havia experimentado quando da sua
passagem no executivo municipal. O seu governo foi composto pelas forças políticas que o
apoiaram e buscou desenvolver um programa avançado e modernizador.89
Como destacou Dulce Pandolfi (1984), Miguel Arraes, que havia desempenhado à
frente da Prefeitura do Recife um governo voltado para as camadas populares, no governo do
estado “fez da massa camponesa a principal beneficiária do seu curto período de governo”.90
Desta forma, conforme Andrade, o governador decidiu “apoiar as reivindicações dos
trabalhadores do campo que exigiam a aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural,
promulgado em 1963 graças ao projeto de lei do deputado gaúcho Fernando Ferrari”, 91 que
garantia aos(as) trabalhadores(as) rurais os mesmos direitos conquistados pelos(as)
trabalhadores(as) urbanos(as). Além de assegurar o direito à greve, assegurou, também, o
pagamento do salário mínimo aos(as) assalariados(as) agrícolas.
Além disso, Arraes buscou, ainda, resolver os conflitos de classe neutralizando a
ação do aparato policial do Estado. Desta forma, a questão social que, historicamente, era
tratada como questão de polícia, passou a ter outro tipo de tratamento e a polícia deixou de ser
acionada para reprimir os movimentos sociais no campo, a serviço dos patrões. Segundo Júlio
Barros (2013),
88
Cf. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart... Op. Cit.
89
ANDRADE, Manuel Correia de. O golpe de 64 e a trajetória política de Arraes. Op. Cit., p. 41.
90
PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães. Op. Cit., p. 208.
91
ANDRADE, Manuel Correia de. O golpe de 64 e a trajetória política de Arraes. Op. Cit.
92
BARROS, Júlio César Pessoa de. Conflitos e negociações no campo durante o primeiro governo de Miguel
Arraes em Pernambuco (1963-1964). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da UFPE. Recife, 2013, p. 87.
47
93
ABREU E LIMA. Maria do Socorro de. Sindicalismo Rural em Pernambuco nos anos 60: Lutas e repressão. In:
CLIO. Revista de Pesquisa Histórica. N. 22, 2004/ Programa de Pós-graduação em História/ Universidade
Federal de Pernambuco. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2004, p.
194.
94
Idem, p. 194.
48
início dos anos 1960.95 Contudo, a sua participação na frente de mobilização popular ainda é
pouco destacada pela historiografia, que se dedica ao estudo dos movimentos sociais no
período imediatamente anterior ao golpe militar. Esta ausência na historiografia, de acordo
com Andréa Bandeira (2012),
95
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços: mulheres nos movimentos sociais dos
anos 50. Recife: Oito de Março, 2004.
96
BANDEIRA, Andréa. Resistência Cor-de-rosa-choque: militância feminina no Recife, nos anos 1960. Tese de
doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFBA. Salvador, 2012, p. 11.
97
MONTENEGRO, Ana. Ser ou não ser feminista. Recife: Guararapes, 1981, p. 65.
98
Idem.
99
Até 1960, o PCB intitulava-se Partido Comunista do Brasil (PCB), a partir da crise instaurada do seio do
Partido, com as denúncias dos chamados “crimes de Stálin”, em 1956 a organização mergulha em uma crise
interna que culmina com a orientação de adequação jurídica perante a legislação eleitoral brasileira, passando
a denominar-se Partido Comunista Brasileiro, mantendo-se a sigla PCB. Em 1962, um grupo dissidente da
organização fundou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e passou a reivindicar a tradição histórica do PC
fundado em 1922. Neste trabalho, utilizaremos a nomenclatura do PC adotada a partir da década de 1960,
mesmo quando nos referirmos ao período em que o mesmo denominava-se Partido Comunista do Brasil.
49
buscando campos mais amplos, onde sempre houve pouco êxito, o Partido marchou
para a criação da Frente Feminina. Era a necessidade de atrair a mulher jovem, solteira
ainda, mãe de amanhã, para as suas fileiras, ou a mulher casada, que sugestionaria o
marido (ou o acompanharia sem restrições se ele já fosse extremista) e, sobretudo,
educaria os filhos nas bases da doutrina leninista, stalinista ou do dirigente dominante.
Explorando-lhe a boa fé, acenando-lhe com a concessão de direitos civis,
especulando-lhe a natural vaidade, a mulher tornou-se alvo preferido dos
comunistas.100
100
COSTA LIMA, Álvaro Gonçalves da; SAMICO, Armando Hermes Ribeiro; Lima, Francisco Assis. Aspecto da
Atividade do Comunismo em Pernambuco. Recife: Secretaria de Segurança Pública/ Delegacia Auxuliar, 1975,
2ª Ed., p. 58.
101
Idem.
102
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços... Op. Cit., p. 97.
50
Jornal, contudo, esses concursos assumiram um caráter mais político, na tentativa de associar
o concurso com pautas da organização, por exemplo, coletar assinaturas pela Paz mundial, ou
com a venda de votos, contribuindo, assim, para a manutenção da imprensa comunista, além
de “levar as candidatas a se interessarem pelos problemas e necessidades de seu bairro,
encaminhando para a divulgação as reclamações da população.”103
A legislação trabalhista brasileira, elaborada por representantes das classes
dominantes, também expressava a concepção de mulher como ser tutelado. Desta forma, a
mulher era situada de acordo com seu papel no lar: mãe, esposa, filha. Embora fosse
apresentando alguns aspectos avançados, como o entendimento de que esta trabalhasse sem
precisar de autorização do esposo, pela legislação vigente ela podia ser impedida se o mesmo
considerasse a atividade desempenhada por ela prejudicial aos vínculos familiares ou
constituísse em perigo para a sua condição de mulher. Desta forma, prevalecia a visão
subalterna e tutelada da mulher.104
A legislação transcrita e comentada nos jornais sindicais, segundo Abreu e Lima
(2004), não questionavam a ‘igualdade de gênero’, pelo contrário, “o jornal Folha do Povo,
reforçava os estereótipos sobre a mulher, quando fazia comentários” em que explicavam as
normas específicas sobre o trabalho feminino em “virtude da natureza frágil da mulher”.105
As reivindicações femininas estavam em torno de questões mais imediatas, como
o custo de vida, os problemas nos bairros, no caso das donas de casa, e em torno de salário,
diminuição da jornada de trabalho, entre as mulheres que trabalhavam fora de casa. Assim,
suas pautas eram mais pelo direito à sobrevivência, do que por “uma cidadania igualitária ou
pelo direito à representação política”.106 Não obstante, não deixam de ser reivindicações
importantes, que estão relacionadas às lutas gerais dos trabalhadores, servindo, também, para
a formação política das mulheres.
Durante a década de 1940, diversas entidades femininas foram fundadas nos
bairros e em 19 de março de 1949, foi fundada a União Feminina de Pernambuco (UFP),
presidida por Alexina Crespo. A UFP pretendia defender os direitos da mulher e da criança. O
jornal Folha do Povo anuncia a fundação da UFP como resultado de antiga aspiração do
movimento feminino pernambucano, fundada em virtude do Congresso de Mulheres pela Paz,
103
Idem.
104
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços... Op. Cit.
105
Idem, p. 100.
106
PENA, Maria Valéria Junho. Mulheres e Movimento Operário: Uma perspectiva histórica. In: Mulher,
Trabalho e Sindicato. São Paulo: Conselho Estadual da Condição Feminina, 1984 APUD: ABREU E LIMA, Maria
do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços. Op. Cit., p. 62.
51
realizado em Recife nos dias 19 e 20 de março de 1949. Segundo Alexina Crespo, para a
fundação da entidade, era preciso uma “parte legal”, já que o PCB estava na ilegalidade.
Desta forma, a indicação do seu nome, bem como o de Ofélia Cavalcanti e Nise Duarte, se
deram em virtude de terem “respaldo político”, já que Ofélia era esposa do então deputado
Paulo Cavalcanti, Nise do vereador Carlos Duarte, e ela, Alexina, que era esposa de Francisco
Julião, entrou neste momento de “bucha de canhão”.107
Apesar de a UFP ser uma entidade que atuava na frente legal do PCB, sendo
influenciada por este Partido, as discussões não se davam somente pelas questões colocadas
pelo PCB, como destaca Abreu e Lima (2004), pois também diziam respeito a problemas
específicos e imediatos sentidos pelas mulheres porque estas, ao estarem às voltas com as
responsabilidades domésticas, eram quem melhor sentiam e sabiam da realidade e
necessidades dos seus bairros. Assim, procuravam reivindicar, por exemplo, a instalação de
telefone público, aterro para os alagados, transporte nas ruas principais, reivindicações
levadas por uma delegada de Casa Amarela; e protestavam contra a falta d’água em seus
bairros, luz e de assistência social, conforma indicado pela delegada de Campo Grande em um
de seus encontros. No Prontuário Funcional desta entidade no Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS), sob guarda do Arquivo Público Estadual de Pernambuco, não há
informações de até quando esta entidade atuou. Além da UFP, diversas Ligas Femininas
atuavam em distintos bairros da Região Metropolitana do Recife, entre os anos 1947 e 1950.
A partir de 1955, surgiu uma nova entidade, denominada Federação das Mulheres
de Pernambuco (FMP). Esta Federação, com sede no Edifício Duarte Coelho, sala 1006, no
centro do Recife, teve seu estatuto publicado no Diário Oficial em 03 de setembro de 1955.
Também consta a diretoria aprovada em Assembleia em 25 de fevereiro de 1955, composta
por Ida Marinho, Presidente; Naíde Teodósio, vice-Presidente; Doris Loureiro, 1ª secretária;
Alexina Crespo, 2º secretária e Zilpa Dubocq, Tesoureira. Em 24 de outubro do mesmo ano,
seu Estatuto foi registrado no 1ª Cartório de Registro de Títulos e Documentos do Recife.
107
APUD: ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços. Op. Cit., p. 50.
52
108
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços... Op. Cit., p. 45.
53
que tinha como um dos pontos centrais de sua campanha o incentivo à participação
popular particularmente através das associações de bairro, as mulheres passam a ter
também aí um meio de atuação. As entidades específicas de mulheres foram se
tornando secundárias.109
109
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços... Op. Cit., p. 61.
54
Esta Liga Feminina, sob orientação política do PCB, promovia palestras sobre alimentação,
saúde e cuidados com as crianças, nas associações de bairros. Tinha atuação destacada nesta
organização a médica Naíde Teodósio, que era do Comitê de Educação do PCB, atuando tanto
no MCP, quanto no Serviço Social Contra o Mocambo (SSCM) através do Departamento de
Reeducação e Assistência Social (DRAS), ambos ligados ao governo de Miguel Arraes.
Segundo Andréa Bandeira (2012),
110
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Tecendo lutas, abrindo espaços... Op. Cit., p. 62.
111
BANDEIRA, Andréa. Resistência Cor-de-rosa-choque... Op. Cit., p. 22.
55
2.1. Maria Augusta Oliveira: “Sempre há algum lapso com relação às mulheres!”113
Essa visão sobre o casamento expõe uma questão muito relevante e corriqueira no
seio do PCB: a situação da militante política após contrair matrimônio, mesmo com os
militantes do Partido. Zilda Xavier Pereira, também militante do PCB, afirmou que
112
Maria Augusta Oliveira ao referir-se às mulheres que estavam detidas na Secretaria de Segurança Pública de
Pernambuco após o golpe militar de 1964. Cf: Revista Teoria & Debate. Edição nº 23, dezembro de 1993.
113
Maria Augusta ao afirmar que participou da caravana de campanha dos candidatos comunistas em
Pernambuco, nas eleições de 1946, ao lado de Paulo Cavalcanti, mas que este não registrou em seu livro a sua
presença: “Participei dessa campanha junto com Paulo Cavalcanti — que escreveu um livro e não disse que eu
estava na caravana com ele. Sempre há algum lapso com relação às mulheres! Participei dessa campanha
grávida.” In: Revista Teoria & Debate. Edição nº 23, dezembro de 1993.
114
Entrevista de Maria Augusta Oliveira. In: Revista Teoria & Debate. Edição nº 23, dezembro de 1993.
Disponível em: http://www.teoriaedebate.org.br/materias/politica/maria-augusta-capistrano?page=full.
Acessado em 25 de maio de 2015.
56
“geralmente, as jovens do Partido se casavam e iam ser dona de casa, deixavam o Partido
porque seus próprios companheiros não as incentivaram a isso, em grande parte”.115
Tais afirmações, tanto de Zilda Xavier, como de Maria Augusta, demonstram as
contradições e os limites desta organização de esquerda que, embora cumprisse um papel
importante de formação política das mulheres, incorporando-as em suas fileiras e frentes de
luta, não conseguiu romper totalmente com as fronteiras do machismo, o que fez com que
seus militantes, após casaram-se com as companheiras de Partido, não incentivassem ou
dificultassem a continuação da militância política delas, demonstrando que mesmo entre os
comunistas brasileiros, apesar de estes considerarem-se a vanguarda das classes trabalhadoras,
a visão sobre o casamento e o papel da mulher na sociedade ainda encontrava limites difíceis
de serem superados, assim, o casamento se apresentava de maneira diferente para homens e
mulheres, conforme destacou Simone de Beauvoir. 116
Após um período na clandestinidade, a família Capistrano retornou ao Recife em
1955, e na capital pernambucana David ficou responsável pelo Jornal A Hora117 que, segundo
Maria Augusta, ficou sob influência dos dois. Quando, no início da década de 1960, o Partido
informou que a determinação era acabar com a imprensa partidária, sob o argumento de que
“a imprensa no Brasil tinha evoluído muito, estava moderna e a nossa imprensa não podia
acompanhar essa evolução”, Maria Augusta, que considerou a determinação fruto de uma
“posição liquidacionista”, uma vez que sempre existiu imprensa alternativa, argumentou que a
medida para acabar com o jornal era mergulhar a organização na ilegalidade total, já que o
periódico era “o porta-voz legal do partido”. Ela teria dito ao seu companheiro que se o jornal
fosse fechado, ela iria embora com os filhos, mas o jornal foi mantido.118
Sobre os acontecimentos que desfecharam no golpe de Estado em 01 de abril de
1964, Maria Augusta relatou que acompanhava as matérias dos principais jornais de
Pernambuco e não tinha dúvida de que um golpe estava sendo gestado. Sempre procurou
conversar com o seu companheiro e dirigente do PC no estado sobre a eminência do golpe e
se preocupava em constatar o despreparo da organização, que não considerava possível a
tomada do poder pelos militares de direita. Para ela, bastava uma leitura atenta dos jornais da
grande imprensa para constatar a iminência do golpe de direita.
115
Entrevista concedida a Eliane Moury Fernandes, em 04 de agosto de 1988. FUNDAJ/CEHIBRA.
116
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 547.
117
Durante a década de 1950, o PCB editava o jornal Folha do Povo. O jornal A Hora só começa a circular
durante a década de 1960. Possivelmente, Maria Augusta se equivocou quanto aos nomes dos jornais,
lembrando-se do mais recente.
118
Entrevista de Maria Augusta Oliveira. In: Revista Teoria & Debate.
57
Ela afirmou ter tido tanta certeza de que o golpe estava nas ruas que já deixava as
suas roupas e as dos seus três filhos arrumadas e no dia primeiro de abril, antes de sair de
casa, distribuiu uma porção de roupas a cada um dos filhos e saíram, dirigindo-se ao Sindicato
dos Feirantes, no centro da cidade do Recife. O despreparo do Partido diante do golpe foi
relatado por ela através da postura de seu companheiro. No dia do golpe, particularmente, ela
afirmou que o encontrou dirigindo o jipe “na maior placidez”. Ela seguiu para o Sindicato
com os filhos, onde diversas pessoas debatiam a situação, inclusive um petebista do Rio de
Janeiro. Para discutir a passeata em defesa da democracia e do governo,
119
Entrevista com Maria Augusta de Oliveira. In: Revista Teoria & Debate. Op. Cit.
120
Idem.
58
Os meninos haviam levado outro rádio, que ouviam na sala. De repente, ouço um
grito que nunca mais saiu dos meus ouvidos. O grito mais sofrido que já ouvi.
Corremos para a sala, e o Davizinho disse: ‘Mamãe, mataram Jonas e Ivan.’ Eram os
dois amigos mais ligados a ele. Eram duas crianças. Se o David não tivesse a mãe
121
que tem, teria morrido também.
121
Entrevista com Maria Augusta de Oliveira. In: Revista Teoria & Debate. Op. Cit.
122
ALVES, Márcio Moreira. Torturas e Torturados. Rio de Janeiro: 1996, p. 63.
123
GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e de guerra. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 85.
59
violento, o mito de que o golpe de Estado desfechado pelos militares não foi violento, a partir
desse mito, muitos dos que foram assassinados e estão desaparecidos são sistematicamente
esquecidos.
Após voltarem ao bairro em que moravam, Maria Augusta e seus filhos ficaram
na casa de uma vizinha sem poder sair. Seu companheiro teve que se esconder. Sua residência
havia sido invadida pelo Exército, livros e documentos foram levados e assim que eles saíram,
seus vizinhos arriscaram-se entrando em sua casa e retirando alguns pertences que julgaram
importantes. Posteriormente, a polícia chegou para fazer a guarda do local, além de levarem o
restante dos pertences da família deixando, apenas, dois colchões. Essa atitude dos vizinhos
serve para que reflitamos acerca do papel do cidadão comum diante da violência e
perseguição que se abateu contra quem desenvolvia alguma militância política progressista
antes do golpe.
Alguns estudiosos destacam a atitude daqueles que entregaram seus vizinhos,
conhecidos ou parentes às autoridades, sendo a denúncia verdadeira ou não. Muitos se
aproveitaram da situação para acertarem contas passadas e fazerem denúncias contra antigos
desafetos. Isso de fato existiu. Houve quem o fez por convicção ideológica, por não concordar
com a militância de quem estava denunciando e achar, realmente, que ali residia um perigo e
um crime passível de punição; como houve os que fizeram a denúncia por sentirem-se
coagidos a fazê-las. Como afirma Enrique Serra Padrós (2014), o terror de Estado (TDE), que
seria um terrorismo de grande escala, dirigido a partir do centro do poder estatal, e que esteve
presente não somente a partir da implementação da ditadura militar, atuava no sentido de
impor, em médio prazo, formas de convivência a partir da “‘cultura do medo’, da censura e de
meios de cooptação, enquanto que a persistência do temor e a retomada do recurso sistemático
da força condicionou um clima político de apatia.”124
A semeação do temor e da autocensura, a partir das ações do TDE, cumpriu uma
função educativa, pois, por um lado impunha a “adaptação da população ao novo padrão de
comportamento político desejado e à obediência aos setores que possuem o controle do poder.
A outra, ideológica: molda as instituições a fim de obter , mediante mecanismos de cooptação,
a conformação de novos sujeitos políticos” (CORRADI, 1996, p. 89 Apud, PADRÓS, 2014,
p. 17). Desta forma, “ao cidadão comum o TDE permitiu a possibilidade de sobrevivência
sempre e quando não fosse transformado em ‘inimigo interno’ da vez”, a aplicação da
124
PADRÓS, Enrique Serra. Terrorismo de Estado: reflexões a partir das experiências das Ditaduras de
Segurança Nacional. In: GALLO, Carlos Artur; RUBERT, Silvania. Entre a memória e o esquecimento: estudos
sobre os 50 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil. Porto Alegre: Editora Deriva, 2014, p. 16.
60
“pedagogia do medo”, de que fala Padrós, produziu a cultura do medo e resultou tanto no
isolamento dos indivíduos, na forma do ‘autossilêncio’, como também a formação de uma
população temerosa, com um comportamento passivo e submisso e, de preferência,
colaboracionista.125 Contudo não podemos generalizar.
Assim como os vizinhos de Maria Augusta se arriscaram para ajudá-la a se
proteger e proteger seus filhos, muitos outros militantes contaram com a ajuda de diversas
outras pessoas com o mesmo objetivo. Generalizar a atitude de cidadãos que mantiveram uma
postura colaboracionista é incorrer no mesmo erro, ao nosso ver, de considerar o apoio da
“sociedade civil” ao golpe a partir das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Houve
quem apoiou o golpe, houve quem delatou militantes de esquerda, mas isso não quer dizer que
a maioria da população estava satisfeita com os rumos políticos do país.
Também Eduardo Galeano (2001) falou da cultura do medo através das “jaulas
invisíveis”. Questionou o escritor uruguaio, refletindo acerca da ditadura em seu país:
Em que relatório oficial ou denuncia da oposição figuram os prisioneiros do medo?
Medo de perder o trabalho, medo de não encontrá-lo; medo de falar, de escutar, de
ler. No país do silêncio, pode-se terminar em um campo de concentração por culpa
do brilho no olhar. Não é necessário despedir um funcionário: basta fazer com que
ele saiba que pode ser demitido sem sumário, e que ninguém lhe dará nunca outro
emprego. A censura triunfa de verdade quando cada cidadão se converte no
126
implacável censor de seus próprios atos e palavras.
De acordo com Maria Augusta, a sua prisão ocorreu cerca de 20 dias após o golpe
e se deu após a mesma ir para a casa de outra amiga. Os policiais que efetuaram a prisão
foram os mesmos que três meses antes foram até sua casa se dizendo representantes do jornal
O Estado de São Paulo, e que gostariam de entrevistar David Capistrano. Maria Augusta foi
presa juntamente com o seu filho mais velho, David Capistrano Filho e relatou que foi
colocada numa sala com outras mulheres na Delegacia de Ordem Política e Social.
Entre elas estavam a doutora Naíde Teodósio, as secretárias de Habitação e de
Educação do governo Arraes, enfim todas as mulheres do tempo de Arraes e
também de outras linhas políticas. A Célia Lima... E a cada dia o grupo aumentava:
a Maria Celeste, que era do grupo de Julião (Francisco Julião, líder das Ligas
Camponesas), foi uma das mais torturadas. Passei cinco dias nessa sala. E o
Davizinho no meio dessa mulherada. Eram mulheres da Liga Camponesa, mulheres
de orientação de base, algumas lideranças populares. Depois de cinco dias, pegaram
todo o grupo e levaram para a cadeia pública. Foi aí que me separaram do meu filho
127
e eu fiquei incomunicável.
125
PADRÓS, Enrique Serra. Terrorismo de Estado: reflexões a partir das experiências das Ditaduras de
Segurança Nacional. In: GALLO, Carlos Artur; RUBERT, Silvania. Entre a memória e o esquecimento... Op. Cit., p.
24.
126
GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e de guerra. Op. Cit., p. 90.
127
Entrevista com Maria Augusta de Oliveira. In: Revista Teoria & Debate. Op. Cit.
61
Ela e todas essas “mulheres do tempo de Arraes” foram levadas para a Casa de
Detenção do Recife (CDR), um presídio masculino localizando no centro da cidade, onde hoje
funciona a Casa da Cultura. Não há, nos arquivos da CDR, registro oficial da presença de
Maria Augusta nas dependências do presídio. No ofício que apresenta as primeiras presas
políticas da CDR no período, está grifado de caneta o número dos respectivos prontuários das
detentas, prática que pudemos observar ser comum na burocracia institucional: escrevia-se o
número do prontuário do detento no ofício que o apresentava.
instituição, Maria Augusta nunca passou por lá. Não fosse o fato de o ofício que apresenta
Maria Celeste e Naíde Teodósio denunciar que ela, também, foi encaminhada àquele presídio
com as demais presas políticas.
Nos Arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), localizamos
a pasta de Maria Augusta,128 nela há um depoimento concedido em 15 de maio de 1964, na
CDR, em que a mesma declarou não exercer nenhuma função pública, negou que tenha
participado de campanha política, nem de nenhuma “sociedade”, ou ter assinado algum
manifesto em solidariedade a Miguel Arraes ou à União das Repúblicas Socialistas Soviética
(URSS). Também declarou não ter participado de greves ou do Partido Comunista, não saber
nada acerca das associações de bairro, nem ter feito comentários sobre qualquer tema,
publicamente ou não. Confirmou, ainda, que mantinha amizade com pessoas “ditas
comunistas”.
Chama atenção no depoimento transcrito pelos órgãos de repressão um trecho
sobre a relação de Maria Augusta com David Capistrano, a quem Maria Augusta, para os
policiais, “considera esposo.”129 Morar com o companheiro e não oficializar a relação não era
visto com bons olhos, isso fica evidente com esta consideração sobre a relação de Maria
Augusta com David Capistrano. Ao mesmo tempo, demonstra como esta mulher estava à
frente de seu tempo e, consequentemente, duplamente desviante, por não ser casada
oficialmente e rejeitar o “destino”130 que a sociedade tradicionalmente lhe impõe, e romper
com as fronteiras da atuação privada com a pública.
Como esclareceu Maria Augusta, em entrevista concedida à Revista Teoria &
Debate, em dezembro de 1993, a sua concepção de mundo e influências teóricas, como
Simone de Beauvoir, a fizeram rejeitar o papel tradicional da mulher na sociedade e, em uma
sociedade extremamente hierarquizada, à mulher não era permitida uma participação ativa,
cabendo a ela assumir, apenas, seu papel privado, no espaço a ela destinado: o lar. Assim,
como bem definiu Joan Scott, o gênero seria “uma forma primeira de significar as relações de
poder.”131
Pela documentação oficial, não dá para precisarmos quando Maria Augusta foi
posta em liberdade, uma vez que não há registro sobre sua permanência na CDR, a não ser um
documento que a coloca naquele presídio a partir de 23 de abril de 1964 até 15 de maio do
mesmo ano, data de seu depoimento prestado nas dependências da CDR, localizado nos
128
Fundo: SSP/ DOPS/ APEJE. Prontuário individual nº 2443.
129
Fundo: SSP/ DOPS/ APEJE. Prontuário individual nº 2443.
130
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Op. Cit.
131
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Recife: SOS Corpo, 1991.
63
arquivos do DOPS. De acordo com a mesma, ela permaneceu cerca de um mês presa e, após
ser solta, começou a sua peregrinação em busca da localização de seu filho mais velho,
considerado um “subversivo perigoso” com apenas 15 anos de idade.
Após ser separado da mãe, David Capistrano Filho foi levado ao Juizado de
Menores, e lá começou a dar aulas para os menores infratores. Este ato foi suficiente para
classificá-lo como “subversivo”, pois o conhecimento é uma arma perigosa para quem é
mantenedor do status quo. Não por acaso, todos os envolvidos com o MCP foram
considerados “subversivos”, como Abelardo da Hora, Germano Coelho e Paulo Freire, alguns
dos coordenadores do Movimento. Por considerar que Davizinho estava “perturbando” o
Juizado, foi concedido a ele a permissão de seguir para o Ceará com sua tia paterna, que veio
buscar os sobrinhos. Entretanto, o Exército não concordou e, ao chegarem ao Aeroporto de
Fortaleza, ele foi trazido de volta para o Recife e levado à 7ª Região Militar (7ª RM), onde
ficou preso com os militantes políticos adultos.
Foi por intermédio da esposa do general Antonio Carlos Muricy, um dos líderes
do golpe, que Maria Augusta conseguiu localizar o paradeiro de seu filho. Virgínia Muricy a
recebeu e intermediou a libertação de Davizinho, pressionando o marido, o general Muricy,
para que este localizasse e pusesse em liberdade o garoto. De acordo com ela, quando foi
visitar o seu filho foi pedido que a mesma levasse uma ficha para preencher com os dados
dele, devendo entregá-la posteriormente, o que foi atendido. Contudo, ao chegar à 7ª RM, ela
foi abordada por um oficial que solicitou a ficha para rasgá-la logo em seguida e informar que
a mesma não poderia visitar seu filho por este ser um insubordinado. Da mesma forma como
“sumiu” a ficha de Maria Augusta da CDR, os militares destruíram a ficha que comprovava a
prisão de um menor entre adultos nas dependências da 7ª RM em Pernambuco. O objetivo era
um só: não produzir provas e aumentar o número dos presos políticos invisíveis.132 Foi
preciso, mais uma vez, a intermediação de Virginia Muricy para que a liberdade de seu filho
fosse concedida de fato.
Talvez a veemência com que a esposa do general Muricy exigiu dele providências
para dar conta do paradeiro do filho do casal de comunistas, possa ser compreendida pelo
olhar da solidariedade feminina, por certa empatia comum às mães. O fato é que este
episódio, aparentemente paradoxal, contribui também para refletirmos sobre a
responsabilidade direta dos militares envolvidos com o golpe e com as arbitrariedades, prisões
e todo tipo de violência praticadas àqueles identificados como “inimigos”, responsabilidade
132
ALMEIDA, Débora Duque. Mulheres do Bom Pastor: histórias das presas políticas que passaram pelo
presídio pernambucano durante o regime militar.
64
essa logo cobrada ao general pela sua esposa e confirmada pela agilidade com que o militar
procurou resolver o problema.
Naíde Regueira Teodósio foi uma médica, professora e militante comunista, tinha
48 anos quando foi presa. Durante o primeiro governo de Miguel Arraes foi convidada a
dirigir o Departamento de Reeducação e Assistência Social (DRAS), do Serviço Social Contra
o Mocambo (SSCM) e por isso respondeu a um processo na Justiça. Uma das acusações a
qual fora vítima foi a de manter relações com David Capistrano e demais comunistas “do
quilate de Gregório Bezerra”.133
Denunciada formalmente ao Juiz da 5ª Vara em 14 de agosto de 1964, pelo
Promotor da 5ª Vara, José Maria Jatobá, Naíde Teodósio relatou em seu depoimento no
Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), em 17 de agosto de 1964, que sua prisão se deu
em 12 de abril. Segundo o Promotor José Maria Jatobá, que assinou a denúncia formal ao Juiz
de Direito da 5ª Vara, desde a década de 1940 que Naíde Teodósio mantinha relações com
Partido Comunista, tendo, inicialmente, assinado os manifestos comunistas e, posteriormente,
passando a colaborar através de “uma ação mais positiva”,134 que tinha como finalidade a
“mudança do regime democrático, regime este que se instaurou no Brasil desde o ano de
133
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
134
Idem.
65
1889”. Ainda segundo o Promotor de Justiça, a sua nomeação para o cargo de diretora do
DRAS, feita pelo governo “não menos subversivo” de Miguel Arraes, teria propiciado à
acusada um
135
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
136
BICUDO, Hélio. Segurança Nacional ou Submissão? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 176.
137
Idem.
66
todos eles Naíde Teodósio confirmou que sua atuação no referido departamento se deu através
de nomeação do então Governador Miguel Arraes de Alencar, onde permaneceu até fevereiro
de 1964. Sobre o DRAS, afirmou que sob sua direção, dispunha de “vinte e seis ambulatórios
médico-dentários, catorze escolas profissionais e catorze escolas de alfabetização de adultos”,
negou que o órgão tivesse desenvolvido ou fomentado a luta de classes.
Em todos os depoimentos foi questionada a sua relação com comunistas
conhecidos, fato observado, também, nos depoimentos das demais presas. Buscava-se
mencionar demais militantes na tentativa de se obter uma declaração afirmativa sobre sua
participação nos quadros do PC ou de qualquer outro movimento popular que fosse passível
de um enquadramento na Lei de Segurança do Estado. Sobre sua relação com David
Capistrano, Naíde afirmou que sua relação com aquele dirigente comunista se deu pelo fato de
ser médica da sua esposa, Maria Augusta Oliveira.
Também foi inquirida sobre a circulação dos funcionários do DRAS nas
dependências dos Edifício Vieira da Cunha, sede do jornal A Hora, editado pelos comunistas,
e Edifício Sagrada Família, onde funcionava o escritório político do Partido Comunista. No
primeiro depoimento prestado, em 21 de abril de 1964, Naíde Teodósio afirmou que assinou
manifestos da campanha do Petróleo, pela Paz e em solidariedade a Cuba, e confirmou ter
participado da diretoria da Federação de Mulheres de Pernambuco, entidade extinta em 1957,
que tinha como objetivo reunir as mulheres em torno de um programa de reivindicações
visando melhores condições de vida para elas e seus filhos, como dito anteriormente. Também
confirmou ter escrito o Manifesto em Solidariedade a Miguel Arraes, posteriormente
publicado na imprensa.
De acordo com ela a sua nomeação para o SSCM deu-se a partir do convite de
Miguel Arraes, com quem afirmou ter colaborado ao fazer uma
Ficou presa na CDR até 30 de outubro de 1964, quando foi posta em liberdade por
força de um habeas corpus. Seu processo foi julgado ainda em 1964, quando ela foi absolvida
das acusações, tendo a Promotoria recorrido da decisão.139 Em diversos depoimentos foi
questionada sobre sua atuação política, ao que afirmou “ser a sua maneira de atuar, como
nacionalista de esquerda, a de contribuir para o progresso social, dentro das delimitações das
funções públicas”, e também afirmou que “é intelectual de esquerda, todavia [...] nunca usou
suas cátedras nem o departamento que dirigiu no Serviço Social Contra o Mocambo, para
fazer proselitismo ou procurar subverter a ordem pública ou afetar a segurança nacional”.
Afirmou, ainda, ter conversado com pessoas de seu convívio social sobre os problemas
“doutrinários”, mas esclareceu que este era um “direito consagrado na Carta Magna do País”.
Este depoimento, especificamente, foi prestado em 30 de junho de 1964 nas
dependências da CDR. Nele há uma folha anexa com as ratificações de Naíde acerca do
depoimento, o que atesta que foi dado a ela o direito de ler o mesmo antes de assinar.
Infelizmente nem sempre este direito foi respeitado. Na ânsia de obter um depoimento que
corroborasse com a sua intenção de acusar o depoente e demais militantes, diversas vezes os
agentes do Estado não só falsificaram como fizeram os presos prestarem os referidos
depoimentos após longas sessões de tortura, seja ela física ou psicológica.
Chamou nossa atenção o fato de algumas das declarações prestadas pelas detentas
terminarem com o esclarecimento de ter sido prestado sem qualquer forma de
constrangimento ou violência. Isso se verificou nos depoimentos de Naíde Teodósio, Graziela
138
Entrevista concedida à pesquisadora Eliane Moury Fernandes da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), em
27 de outubro de 1983.
139
Traremos, em outro momento, uma análise mais detalhada do seu processo, associando-o às posteriores
mudanças na Lei de Segurança Nacional, bem como à nova Constituição, por considerarmos que a ditadura foi
preenchendo as lacunas na legislação a partir das brechas encontradas pelos advogados que se dispuseram a
defender os presos políticos.
68
no que se refere ao direito dos presos em condição especial, tentou limitar o direito de visita
do seu advogado e somente autorizá-lo mediante presença do investigador responsável pela
guarda da presa, infringindo não somente a Constituição como, também, o Estatuto da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB). Após protesto do advogado junto ao Juiz responsável,
foram restabelecidas as visitas dos familiares, bem como as visitas reservadas, sempre que
fosse necessário, dela com seu advogado. Em 25 de junho de 1965, por força de um habeas
corpus, Naíde Regueira Teodósio foi, novamente, posta em liberdade e não localizamos mais
nenhum outro registro de prisão, porém, ainda foi chamada para prestar depoimentos durante
a década de 1970.
A terceira mulher deste primeiro grupo de presas políticas é Maria Celeste Vidal
Bastos, professora, poetisa e líder das Ligas Camponesas de Vitória de Santo Antão, tinha 35
anos quando foi presa. Natural do estado da Paraíba, residia com a família em Tabira, sertão
de Pernambuco, onde já exercia o magistério. Mudou-se para Vitória de Santo Antão após
casar-se. Maria Celeste foi uma das responsáveis por tentar organizar a resistência contra o
golpe de 1964 e a prisão de Miguel Arraes em Vitória de Santo Antão. Cinco anos antes de
Carlos Marighela, no auge da ditadura, tomar a Rádio Nacional de São Paulo para a leitura de
um Manifesto, Maria Celeste Vidal, Luiz Serafim e o Tenente Edvaldo Cavalcanti fizeram o
mesmo no interior de Pernambuco. Queriam, com este ato, conclamar o povo a marchar até
70
Recife para defender o governo Miguel Arraes, eleito democraticamente e que estava sendo
deposto e preso pelo Exército.
De acordo com os depoimentos prestados ao DOPS, o chamado feito pelos líderes
das Ligas na Rádio era para que os camponeses se dirigissem ao Engenho Bento Velho, local
onde receberiam as instruções para a resistência. Após o chamado, diversos camponeses em
tratores seguiam para o referido Engenho, conforme depoimento da professora Florianita
Barreto.144 A cidade passou a tarde do dia primeiro de abril de 1964 sob o alerta da resistência
dos líderes das Ligas Camponesas, somente a noite o Exército chegou e investiu na busca aos
líderes do movimento.
Segundo Clodomir Morais,145 um dos responsáveis pelo dispositivo militar das
Ligas Camponesas, Maria Celeste, que era uma importante líder das Ligas, tomou a Rádio
com o objetivo de solicitar armas para efetuar a resistência ao golpe. Atendendo ao seu
chamado, cerca de mil camponeses, que haviam ocupado o Engenho Serra, na região de
Vitória de Santo Antão, quinze dias antes, ocuparam a cidade à espera das armas para
seguirem em marcha para o Recife e
deu ordem de prisão aos vinte e seis soldados que estavam lá, foi dada a ordem de
prisão, e então meteram num ônibus os soldados e mandaram pro Recife e ficaram
com as armas, os fuzis, e etc., etc... Enquanto isso, Maria Celeste, que era uma líder
importante lá em Vitória de Santo Antão, ficou o dia todo rouca, pedindo [...] a
Escola de Marinheiro, cujo Comandante da Marinha aqui era a favor de João
Goulart, pediram armas, pediram armas... [...] Passaram o dia todo, vinte e quatro
146
horas depois chegou o Exército e aí foi todo mundo embora...
Após ser presa, Maria Celeste foi levada para a Delegacia Auxiliar de onde foi
encaminhada à Casa de Detenção do Recife, juntamente com Maria Augusta e Naíde
Teodósio, e permaneceu neste presídio até 13 de maio de 1965, quando foi transferida para a
Colônia Penal do Bom Pastor, presídio feminino dirigido por freiras beneditinas, de onde só
saiu após cumprir a pena imposta pela justiça.
Diversos depoimentos de comerciantes, proprietário, trabalhador rural, jornalista e
até de uma professora que lecionava na mesma escola que ela, denunciam a suposta atuação
subversiva da “professora Maria Celeste Vidal”. De acordo com esses depoimentos, ela era a
responsável pela intranquilidade do Município ao “concitar os camponeses” a lutarem pela
“reforma agrária radical, mesmo com derramamento de sangue” e pregar abertamente a
“revolução”. Para os delatores, tais atos “subversivos” eram praticados com o consentimento
144
Depoimento de Florianita de Oliveira Barreto, em 02 de julho de 1964. Fonte: Brasil Nunca Mais/BNM_266.
Disponível em http://bnmdigital.mpf.mp.br/.
145
Entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=lZ-pue5WBpk.
146
Idem.
71
150
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
73
151
Fonte: BNM_266.
152
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
74
depoimento ajudam a entender, por exemplo, o fato de Maria Celeste ter iniciado a militância
atuando na fundação de sindicatos no início da década de 1960. Como se sabe, havia uma
divergência de orientação entre as Ligas Camponesas, que centravam suas reivindicações na
luta pela terra, e o Partido Comunista, que se dedicava à fundação de sindicatos e às
reivindicações por melhores salários e condições de trabalho, especialmente a partir da década
de 1960, após o I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil,153
realizado na cidade de Belo Horizonte, quando os comunistas romperam de vez com as Ligas,
que passam a defender a tese da “reforma agrária radical”, apresentada por estas no referido
congresso e, apesar de serem minoria numérica, conseguiram sua aprovação.
O comerciante Joaquim Bosco Tenório Medeiros,154 afirmou que no primeiro
semestre de 1963, iniciou-se a articulação para a fundação do Sindicato dos Comerciantes,
fato que, segundo ele, foi bem recebido pelos comerciantes locais, inclusive ele próprio, que
apoiou por acreditar que tal entidade beneficiaria seus funcionários. Contudo, ao se informar
acerca da orientação política da referida entidade e constatar que há “certos anos iam se
levantando contra o patrão, dando lugar até a certas indisciplinas da parte de certos
empregados” e que Maria Celeste estaria “infiltrada” no movimento, fizeram com que a
tentativa fracassasse. De acordo com ele, a mesma coisa ocorreu em relação à fundação do
sindicato das empregadas domésticas.
Assim, após as tentativas frustradas de organizações urbanas, Maria Celeste teria
se dedicado inteiramente às Ligas Camponesas, liderando todos os movimentos em relação
aos camponeses, “pregando em público a revolução” e insuflando os camponeses a “tomarem
a terra”, chegando a dar “vivas a Cuba, a Rússia e a revolução brasileira” em uma passeata de
camponeses, sempre ao lado de Luiz Serafim e demais dirigentes das Ligas.
Condenada em 10 de março de 1965 a seis anos e três meses de prisão, Maria
Celeste ficou recolhida à CDR até 13 de maio de 1965, quando foi transferida para o Presídio
Bom Pastor. Em 28 de dezembro de 1966, foi solta, em virtude de o Tribunal Superior
Federal (STF) não ter reconhecido a condenação imposta pelo Juiz de Vitória de Santo Antão
e ter desclassificado o crime, condenando-a a um ano e três meses de prisão. Desta forma,
Maria Celeste foi solta por cumprimento de pena.155 Após conquistar a liberdade do cárcere,
continuou sendo monitorada pelos militares, que produziram inúmeros relatórios de campanas
e fizeram circular, entre o centro de informação do IV Exército e ao Departamento de Ordem
153
Ver: AZEVEDO, Fernando. As Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. & BASTOS, Elide Rugai. As
Ligas Camponesas. Petrópolis: Vozes, 1984.
154
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
155
Fundo: APEJE/Hemeroteca. Jornal do Commercio (JC) - 06/01/1967.
75
Social, ofícios acerca de sua militância política, como por exemplo, uma carta que teria
escrito ao Movimento Internacional pela Anistia dizendo-se a favor da liberdade de opinião e
religião.
Os relatórios de campanas, produzidos quando da sua visita a familiares no Sertão
do estado informam que ela “não teria poupado esforços no sentido de propagar suas ideias
subversivas”, proferindo ataques contra os oficiais encarregados dos Inquéritos Policiais
Militares (IPM’s), bem como propondo a derrubada do ditador Castelo Branco. Fazendo com
que “alguns de seus familiares, anticomunistas, censurassem as autoridades constituídas do
STF, por terem concedido a liberdade de tão virulenta agitadora”. Sua conversa com os
sertanejos versavam sobre o elevado custo de vida que teria declarado ser um dos principais
“benefícios deste governo podre, desumano e sanguinário”156.
Em 1968, os relatórios tentam fazer crer que ela teria ingressado na luta armada,
tendo sido vista em Goiana, em 07 de dezembro de 1968, acompanhada do Padre Crespo,
informando, ainda, que estaria havendo treinamentos de guerrilha em Ponta de Pedra, um
distrito daquele município. Todos esses relatórios cumprem o objetivo de comprovar o
retorno às atividades políticas de Maria Celeste fazendo-se necessário, portanto, a sua
vigilância para, novamente, encarcerá-la. Não há, contudo, registro de uma nova prisão sua.
Em sua ficha no DOPS constam intensas atividades em que ela participou, durante
a década de 1970, e que foram acompanhadas pelos agentes do Estado. Em 1979, afirmaram
os investigadores que ela estava ligada à Convergência Socialista, sendo articuladora do
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Teria participado do ato que marcou o retorno de
Miguel Arraes, realizado em Santo Amaro, bairro central do Recife, em 16 de setembro de
1979. Também teria participado de ato contra a carestia e sido uma das oradoras de uma
atividade realizada pelos Bancários, na Praça da Independência, em 27 de setembro do mesmo
ano. Afirmam, ainda, que ela fora identificada na recepção a Francisco Julião, no Aeroporto
dos Guararapes, em 03 de novembro de 1979. E em 23 de novembro do mesmo ano, uma das
oradoras de um Ato Público, realizado na Praça da Independência, no centro do Recife, em
repúdio à extinção do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), à Reforma Partidária e em
solidariedade ao ex-deputado Jarbas Vasconcelos.
Em 22 de janeiro de 1980, participou de ato promovido pela Ordem dos
Advogados do Brasil, seção Pernambuco (OAB-PE), em solidariedade aos presos políticos
que estavam em greve de fome. Também informou o documento, que Maria Celeste
156
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
76
participava, ativamente, de campanhas contra o regime, bem como que ela mantinha contato
com camponeses de Vitória de Santo Antão, Água Preta e Tapera. Em 09 de março de 1980,
teria participado do I Encontro do Partido dos Trabalhadores no Centro de Trabalho e Cultura,
no Recife. E, segundo os investigadores, Maria Celeste seria a responsável pelos contatos da
Ação Operária Católica (ACO), no meio rural, sendo a responsável pela “arrecadação de
meios para o fundo de greve”.157
Maria Celeste ainda participou das eleições de 1986, sendo candidata a deputada
estadual, pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Mesmo ano em que Francisco Julião
candidatou-se, pela mesma legenda, a deputado federal. Não foram eleitos. Celeste obteve
1.399 votos, destes 775 no Recife, 224 em Tabira, terra de sua família, e apenas 17 em Vitória
de Santo Antão. Faleceu em 04 de outubro de 1998, em virtude de uma parada cardíaca.
Eva Laci Camargo Martins, ou Célia Lima, tinha 22 anos quando chegou à Casa
de Detenção do Recife em 30 de abril de 1964,158 também procedente da Delegacia Auxiliar.
Sua prisão preventiva foi comunicada em 11 de junho. De acordo com sua ficha na CDR, de
lá ela saiu oficialmente, duas vezes, sendo uma para ser apresentada à Delegacia Auxiliar, em
06 de outubro de 1964 e outra em 08 de janeiro de 1965, quando foi apresentada à Segunda
157
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
158
Fundo: SSP/CDR/APEJE. Prontuário nº17143.
77
Companhia de Guardas, onde prestou um breve depoimento. Contudo, de acordo com a sua
documentação no DOPS, ela prestou um depoimento em 12 de junho de 1964 também na
Delegacia Auxiliar.
Ela já havia sido presa em 1962 no estado da Guanabara, em virtude de ter sido
acusada de transportar armas de guerra, juntamente com Clodomir Morais e o motorista João
Francisco da Silva. Embora esta prisão tenha ocorrido durante o período democrático, Eva
Laci - que fora presa usando o nome de Célia Lima -, foi muito torturada pela polícia de
Carlos Lacerda, então governador da Guanabara. A prisão e as denúncias de tortura foram
fartamente noticiadas pela imprensa carioca e culminaram com uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI), instaurada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, com a finalidade de
apurar os fatos.
Tratada pelo jornal Ultima Hora como a “mulher-mártir da Olaria”, Célia Lima
não só denunciou as torturas, como reconheceu seus algozes. Suas declarações nas audiências
da CPI culminaram com o seu isolamento na prisão. Apesar da alegação dos policiais de que
as lesões constatadas nela e nos demais presos eram resultado de “autoflagelo”, o que foi
rebatido pela perícia, a CPI terminou com a demissão de 11 “carrascos da invernada”. 159
Sobre seus algozes, afirmou Célia:
São monstros de duas faces. Diante do juiz, dos deputados, se transformam em
bonzinhos. Mas na Invernada, mostram o que realmente são. Lembro-me bem da
expressão medonha de Neto, Felipão, Rosalvo – o dos choques elétricos – e de um
tipo miúdo, com cara de santo. Nem que eu viva 200 anos, jamais me esquecerei
dêles, que, aliás, quando estive no depósito de presos, na Polícia Central, alí
compareciam diariamente, ameaçando-me para que eu nada falasse.160
Afirmou, ainda, que enquanto era torturada, os seus torturadores cantavam para abafar seus
gritos. Chama atenção na sua denúncia a dissimulação e o sadismo dos policiais, bem como
os limites da democracia burguesa. Célia foi presa durante o período chamado de democrático
e foi barbaramente torturada.
Durante a ditadura, as forças de repressão aprimoraram a tortura, fazendo desta
uma prática corriqueira nas prisões, uma vez que passou a ser uma política de Estado. “O
exército permanente e a polícia são os instrumentos fundamentais da força do poder estatal”,
conforme destacou Vladimir Lenin, citando Friedrich Engels, ao tratar da força do poder
159
UH-RJ, 18/02/1964. Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional.
160
UH-RJ, 04/09/1963. Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional.
78
estatal, que é superior à sociedade e que tem “destacamentos especiais de homens armados
tendo à sua disposição prisões etc.”161
Após cumprir pena de um ano de detenção e ser solta, em 12 de dezembro de
1963, Célia Lima retornou à sua cidade natal, Porto Alegre, a fim de visitar a família, e depois
regressou ao Rio de Janeiro para encontrar-se com Clodomir Morais que, segundo conta a
conheceu no Teatro São Pedro, em Porto Alegre, em novembro de 1962.
Em janeiro de 1964, após solicitar uma passagem aérea para o Recife no escritório
das Ligas Camponesas no Rio de Janeiro, viajou para a capital pernambucana em companhia
de Alexina Crespo, esposa do deputado e líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Célia
teria passado duas semanas na casa dos pais de Alexina tendo, posteriormente, regressado a
Porto Alegre. Sua volta definitiva ao Recife se deu em 22 de março do mesmo ano, em
companhia de Francisco Julião, quando passou a residir na casa de Jonas de Souza.
Em 31 de dezembro de 1963, o Ultima Hora, noticiou que a mesma participaria -
juntamente com Clodomir Morais e José Francisco - de um comício no Recife, em 04 de
janeiro de 1964, onde seriam denunciadas as torturas que sofreram pela polícia do governador
Carlos Lacerda, que se apresentava, no momento, como candidato à presidência da República.
Também participariam do ato, o Padre Alípio de Freitas, Francisco Julião, deputados da
Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), bem como demais lideranças camponesas. A ideia era
que fossem realizados diversos comício nas demais regiões do país.
De acordo com o depoimento prestado em 12 de junho de 1964, na Delegacia
Auxiliar, Célia Lima deveria ocupar a vaga de padre Alípio de Freitas no Conselho Nacional
das Ligas Camponesas. Ela seria apresentada aos demais membros em 02 de abril de1964,
fato que não se concretizou em virtude do golpe militar de 1964. Antes de ser presa em 28 de
abril na Delegacia Auxiliar, onde permaneceu até ser enviada à Casa de Detenção, Célia Lima
já havia sido detida em 1º de abril de 1964. Neste dia, segundo depoimento prestado em 30 de
abril na Delegacia Auxiliar, ela havia saído de casa, por volta das catorze horas, na companhia
de Clodomir Morais e de um motorista de nome desconhecido, em um jipe com destino a
Ipojuca, Zona da Mata Sul de Pernambuco. Clodomir a deixaria em Serinhaém para que ela
voltasse de ônibus para Recife.
Em Ipojuca, contudo, o carro foi parado pela polícia e o tenente Veras prendeu
todos os ocupantes do veículo, que além dela, Clodomir e o motorista, contava, também, com
um camponês que havia pedido carona. Todos foram detidos em Ipojuca por volta das 23h,
161
LENIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do
proletariado na revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 29.
79
Célia foi liberada no dia seguinte e voltou para Recife no primeiro ônibus da manhã do dia 02
de abril. Chegando ao Recife, se dirigiu para a casa de Jonas Souza, onde estava hospedada,
em virtude de não ter dinheiro para regressar a Porto Alegre.
Segundo Clodomir Morais, em depoimento prestado à pesquisadora Eliane Moury
Fernandes, no dia 31 de março eles estavam participando de um curso de formação das Ligas,
no Recife, quando recebeu a informação de que Arraes queria falar com ele. Ao chegar ao
Palácio do Campo das Princesas, o governador informou-lhe que a situação era insustentável
e que só teria dois ou três homens no Exército, ao que ele respondeu que se o povo tivesse as
armas, talvez conseguisse reverter o quadro. Terminada a conversa, seguiu para o Engenho
Tiriri, no Cabo de Santo Agostinho, para dar continuidade ao curso. Posteriormente chegou
um rapaz, que se apresentou a mando de Nelson Rosas, que o esperava em Ipojuca, na casa de
um Tenente que, segundo Nelson, era do Partido. Assim, após terminar o curso, por volta das
18h, e esvaziar o Centro de Capacitação, seguiram para Ipojuca e, ao chegarem, “o carro foi
parado pelo Tenente Veras que imediatamente nos deu ordem de prisão. E nós caímos como
um pato, fomos presos. Logo depois enviados ao IV Exército. Minha mulher conseguiu
escapar do cerco, mas, vinte dias depois, foi presa”.162
Em seu depoimento, Célia negou ter participado de atividades políticas em Porto
Alegre e afirmou ter usado o nome de Célia Lima, quando da prisão na Guanabara, para evitar
constrangimentos à sua família.163 Teria vindo para o Recife, em virtude de não poder ficar
em Porto Alegre, diante da situação da família, e por não se sentir segura no Rio de Janeiro.
De acordo com anotações da advogada Mércia de Albuquerque, 164 Célia Lima foi mais
torturada que o próprio Clodomir Morais, também posteriormente recolhido à CDR. Não
bastassem todas as torturas sofridas durante a prisão em 1962 na Guanabara, onde a polícia de
Carlos Lacerda a submeteu à choques elétricos, pau de arara e torturas em seus órgãos
genitais, também na sua prisão em 1964, Célia sofreu mais uma vez com a violência do
Estado de exceção instaurado a partir de 01 de abril de 1964.
Em 30 de julho a polícia de Porto Alegre enviou seus antecedentes criminais,
onde constava que Célia era uma “comunista militante”, que usava os nomes de “Lacy
Martins, Eva Lacy Camargo Martins e Lacy Martins Pereira”, casada com Moisés Amaro
162
Entrevista concedida a Eliane Moury Fernandes, em 25 de novembro de 1982. FUNDAJ/CEHIBRA.
163
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14456. Depoimento prestado em 30 de abril de 1964.
164
Disponível em:
www.dhnet.org.br/memoria/mercia/ditadura/combatentes_404/clodomir_morais/index.htm.
Acessado em 16 de maio de 2015, às 21h13min.
80
165
Em 26 de julho de 1953, aconteceu o assalto ao Quartel Moncada, ato que deu início ao processo
revolucionário em Cuba. A data é celebrada naquele país como o dia da Rebeldia Nacional.
166
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Individual nº 14456.
81
Sendo apologista de esquerda e diante dos fatos que culminaram com sua prisão e
consequente condenação, decidiu-se trabalhar com mais afinco, dando uma
assistência mais acentuada no movimento camponês e para isso solicitou ao doutor
167
Ver anexo 07.
82
168
Destacado no original.
169
DP, 09/05/1965. Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional.
170
Projeto de Lei Nº 099/04, de autoria do vereador João Bosco Vaz (PDT-RS), que teve como objetivo
homenageá-la dando o seu nome a uma Rua de Porto Alegre. O projeto foi apresentado em 22 de abril de 2004
e sancionado em 16 de novembro do mesmo ano.
83
Seu prontuário individual no DOPS171 contém apenas três documentos: uma ficha
com dados pessoais, tendo apenas o seu nome preenchido, uma folha datilografada
informando que a mesma figura como indiciada em inquérito instaurado contra Gildo Mário
Porto e demais funcionários do Serviço Social Contra o Mocambo (SSCM), que foi remetido
em 14 de janeiro de 1965 ao Juiz de Direito do Crime e um documento informando que ela
havia sido processada pela Comissão de Investigação Sumária. Ambos os documentos são
datilografados em folhas simples, sem nenhuma informação sobre qual órgão está remetendo
a informação, como geralmente é feito pelo referido órgão. À CDR ela foi apresentada através
de ofício remetido pelo Secretário de Segurança Pública, Álvaro da Costa Lima, datado de 04
de maio de 1964. Sua prisão preventiva só foi decretada em 11 de maio do mesmo ano.
De acordo com Graziela Melo, o dia 31 de março foi de inquietação na cidade e os
boatos eram muitos. Na redação do Jornal A Hora, onde ela trabalhava, havia uma
movimentação intensa e muita gente temia voltar para casa e ser presa. À noite houve uma
assembleia na sede do Sindicato dos Bancários e as notícias eram contraditórias. Ao falar
sobre o dia primeiro de abril de 1964, dia do golpe e de seu aniversário de 26 anos, ela o
classifica como um “dia fatídico para nossas vidas e especialmente para a história do nosso
país”.172 Neste “fatídico dia” o governador foi preso, as entidades de classes invadidas pelos
militares golpistas e os líderes populares foram levados aos quartéis, os boatos
transformaram-se em realidade.
Encontrei-me com Gilvan e fomos para casa juntos. Foi a última noite que
dormimos em nossa casa e junto com nosso então único filho. Arraes fora deposto e
preso. [...] Na casa onde depois me escondi com Gilvan, minha mãe mandou-me um
bolo de aniversário. Começou aí nossa peregrinação por algumas casas. Era
prudente. Muita gente fazia o mesmo. Diante da dura realidade, minha mãe e minha
sogra tomaram a iniciativa que cabia então: promover a liquidação do que fora
“nosso lar”. Gilvan Filho, com apenas 18 meses, junto com seus pertences, foi para
173
casa de minha mãe. O resto dos móveis para a casa de minha sogra.
171
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 16602.
172
MELO, Graziela. Crônica, contos e poemas. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2008, p. 88.
173
Idem.
84
pelo crivo de uma polícia que em tudo via “elemento de subversão”. Livros eram objetos
rotineiramente apresentados como prova para justificar a prisão e abertura de inquéritos.
Segundo Graziela Melo, os únicos bens de valor que possuíam era uma modesta
biblioteca com diversos livros de literatura, filosofia e história. Os livros foram levados por
um carroceiro até a beira de um rio. A prisão do casal fora efetuada em 02 de maio de 1964 e
muitos dos livros que foram jogados no rio, estavam na mesa do delegado como prova de
culpa dos indiciados. Afinal, “a conclusão necessária para os homens da ditadura prenderem
um cidadão era a capacidade de pensar. Pensa, então é perigoso. Prende.” 174 Neste sentido, os
livros constituíam, assim, a prova do principal crime cometido por todos que se levantaram
contra a instauração da ditadura em 1964.
O casal procurou abrigo em um chalé pertencente à tia de Gilvan, estavam
na sala vendo e ouvindo Cid Sampaio falar na televisão quando o gato que até então
estivera quieto, pulou de um extremo a outro da sala. Então, pela grade da porta da
frente, se assombrou um cano de metralhadora. Vários outros apareceram nas
175
demais portas e janelas. Parecia até que iam prender a quadrilha de Lampião.
174
MELO, Graziela. Crônica, contos e poemas. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2008, p. 45.
175
Idem, p. 89.
176
A “freira” a quem Graziela se refere é Luiza Arcoverde Cavalcanti, da cidade de Pesqueira. Luiza não era
freira, mas sim, uma pessoa atuante na Igreja e que foi acusada de “subversão”. Trataremos de sua prisão mais
adiante.
85
dirigente do Partido e, a partir daí, passou a conviver com diversos comunistas, citando os
nomes de Amaro Valentim do Nascimento, José Leite Filho, Adalgisa Cavalcanti, Irineu José
Ferreira, David Capistrano da Costa, Gregório Bezerra, Hiram de Lima Pereira, Júlia
Santiago, “além de outros que não se recorda”.
Ainda neste depoimento, Graziela disse que foi informada por Amaro Valentim
que havia sido escolhida para a suplência do Comitê Municipal de Recife, fato que não
chegou a se concretizar, uma vez que a diretoria do referido Comitê já estava completa. Em
julho de 1963, após participar de uma reunião do Comitê Municipal, ela recebeu a tarefa de
melhorar o nível intelectual do jornal A Hora. Sobre o governo de Miguel Arraes,
supostamente informou que a orientação do Partido era de “adotar uma posição de
independência e críticas quando praticados atos que viessem de encontro aos interesses do
POVO”177. Sobre o seu afastamento das atividades do Partido, informou que se deu em
virtude de estar grávida e que se reaproximou “devido ao fato de seu marido estar na União
Soviética em tratamento de saúde” e por ela estar passando por dificuldades financeiras,
motivo pelo qual começou a trabalhar junto ao SSCM, exercendo atividades com a Naíde
Teodósio até fevereiro de 1964. Este depoimento também finda com a declaração de que foi
prestado “sem qualquer coação ou violência”.
No depoimento em que a data está legível e coincidindo com a data da sua prisão,
02 de maio de 1964, o conteúdo geral das informações são os mesmos do depoimento
anterior: as conferências em que participou, sua atuação na campanha de Cid Sampaio e a
militância do PCB. Contudo, Graziela não cita os nomes dos companheiros constantes no
depoimento anterior. Sobre a sua indicação para o Comitê Municipal de Recife, afirmou que
“não pode atribuir” quem a indicou, como também não se recordava de quem a informou
sobre a indicação. Confirmou o endereço do Comitê, fato já conhecido pelos agentes do
Estado, bem como a sua participação em algumas reuniões.
Sobre o jornal A Hora, informou que este foi pauta de algumas reuniões, onde se
discutiu o melhoramento intelectual do periódico, bem como o aumento da vendagem, sem
mencionar sobre a sua indicação para realizar esta tarefa. Os nomes citados por Graziela neste
depoimento são os de David Capistrano, com quem afirmou ter participado de algumas
reuniões, José Leite Filho (ex-vereador comunista) e Amaro Valentim Nascimento, que
apenas afirmou conhecer. Neste depoimento, contudo, não há a afirmativa de que teria sido
concedido sem coação e violência.
177
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário Individual nº 16602. Destacado no original.
86
socialista convicta e defende com firmeza as suas ideias, porém nunca praticou atos
de subversão, nem atentou contra a segurança nacional; que a linha dos comunistas,
que ela declarante defende, é dentro dos princípios constitucionais, utilizando todos
178
os recursos constitucionais, inclusive, com relação a realização de eleições.
178
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964. Grifado no original.
179
PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.
87
Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido, ter afirmado, às vésperas do golpe militar de
1964, que “os comunistas já estavam no governo, só faltando o poder”.
Em 22 de setembro de 1964, oito dias antes de ser posta em liberdade, Graziela
prestou um novo depoimento na Segunda Companhia de Guardas, com o objetivo de
esclarecer sua atuação antes e depois do “movimento revolucionário de 31 de março de 1964”
[sic] e suas ligações com elementos ditos comunistas. Ao que ela esclareceu, novamente, que
nunca pregou subversão nem cometeu atos que colocassem em risco a segurança do Estado,
tampouco tentou subverter a ordem “com atos, nem com pensamentos”, afirmou, ainda, ser
“essencialmente democrática e considera que todos os problemas nacionais devem ser
resolvidos dentro da Constituição de 1946”.
As visitas aos presos políticos eram realizadas aos sábados e em uma dessas
visitas a sogra de Graziela levou seu filho para visitá-la. Neste mesmo dia, porém, os presos
políticos receberam Ernesto Geisel, Ministro da Casa Militar do General-ditador Castelo
Branco e do Secretário de Justiça de Pernambuco, João Roma, que autorizou que seu filho, de
um ano e seis meses, paraplégico, fosse recolhido à CDR junto com a mãe, uma vez que tanto
ela quanto seu marido encontravam-se presos.
Sobre este episódio, do encarceramento do filho junto à mãe, a advogada Mércia
Albuquerque diz que
Na época em que [Graziela] foi presa, o filho mais velho estava muito mal. Sei que
tratava-se de um problema sério. O garoto tinha uma das pernas em uma extensão.
Estava sempre febril. Certa vez a sogra de Graziela levou o doentinho para a visita, e
deixou-o no cárcere, o que provocou uma confusão no presídio, e apressou a
180
liberdade de Graziela. Mulher corajosa.
Possivelmente, esse fato apressou a libertação de Graziela e de seu filho, uma vez que as
denúncias de torturas já estavam sendo feitas pelo então jornalista Márcio Moreira Alves, que
visitou as instalações de diversos locais que estavam servindo de prisão para os presos
políticos, inclusive a Casa de Detenção do Recife.
A sua libertação, bem como de seu marido e de alguns outros presos, foi utilizada
como demonstração do humanismo dos militares, com direito à manchete de capa no Diario
de Pernambuco, informando que “Razões humanas determinaram suspensão de prisões
preventivas na auditoria”.181
180
Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/memoria/mercia/ditadura/combatentes_404/gilvancavalcantimelo/index.htm
Acessado em 16 de maio de 2015, às 21h13min.
181
DP, 01/10/1964. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
88
Informou, ainda, que outros presos tiveram suas prisões preventivas suspensas em virtude de
encontrarem-se com familiares com “sérios casos de doenças”.
Seu marido, assim como diversos integrantes do PCB, do governo do estado e o
próprio governador Miguel Arraes, responderam a diversos IPM’s. Graziela foi posta em
liberdade em 30 de setembro de 1964, em janeiro de 1965 a prisão de Gilvan Cavalcanti foi
convertida em prisão domiciliar. Após a decretação do Ato Institucional nº 2, Graziela e
Gilvan vão para o Rio de Janeiro deixando seus filhos, o mais novo com apenas 10 dias de
vida, com a avó materna. Em agosto do ano seguinte, seus filhos foram levados ao Rio de
Janeiro por militantes do Partido e em outubro nasceu a terceira filha do casal.
Com a família instalada no Rio de Janeiro, diversas foram as vezes que eles
tiveram que abandonar a casa e tudo que nela havia e seguir para outro lugar, por causa da
perseguição e do risco iminente de uma nova prisão de seu marido. Em dezembro de 1966,
após ser preso e passar oito dias desaparecido, a família teve que se separar novamente,
ficando o filho mais velho com o pai em um sítio, o do meio com Graziela em um
182
DP, 01/10/1964. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
89
apartamento de militantes políticos no bairro de Santa Tereza e sua filha recém-nascida aos
cuidados de um casal de amigos.
Para Graziela,
o golpe militar de 1964 interferiu, de maneira brutal, nos caminhos da minha vida,
como uma gigantesca rocha que rola de uma montanha e desvia o rio de seu leito
natural. Tirou-me a chance de trabalho, desestruturou minha família, e nos colocou
na cadeia. A mim, meu marido e por fim, também meu primeiro filho que, sendo
183
paraplégico não tinha quem lhe cuidasse como era devido.
A vida dessa família, como tantas outras, foi marcada pela violência com que os
militares atuaram na perseguição a seus opositores políticos, que eram vistos como seres
apátridas, merecedores, portanto, das prisões arbitrárias, das torturas e do expurgo, tudo em
nome da Segurança Nacional e com o objetivo de livrar o país de uma suposta “ameaça
comunista”.
Em maio de 1972, Graziela Melo exilou-se no Chile, permanecendo naquele país
até a queda de Salvador Allende, em setembro de 1973. Em janeiro de 1974 seguiram para
Cuba, onde ficaram até dezembro de 1978, quando os integrantes do PCB foram absolvidos
pela 2ª Auditoria da Marinha do Rio de Janeiro. Contudo, ao retornarem ao Rio de Janeiro
foram novamente presos, por ainda estar em vigor o AI-5, e terem retornado de Havana sem
passaporte.
183
MELO, Graziela. Crônicas, contos e poemas. Op. Cit., p. 198.
90
Consta que a referida senhora exerceu grande atividade naquele meio campestre,
agitando os camponeses e se integrando no programa subversivo do período que
passou. Pela atividade se tornou pessoa de confiança dos comunistas Francisco
Julião e Gregório Bezerra, a quem hospedava quando ali andavam. Foi a inspiradora
e responsável pela invasão na propriedade “Pedra D’água”, pertencente ao
Ministério da Agricultura, naquele município. E sua atuação já se estendia a São
bento do Una, também neste Estado. Estava assim, se tornando nefasta à Ordem
187
Pública a ação daquela mulher em apreço.
184
Art. 11. Fazer publicamente propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou
social; b) de ódio de raça, de religião ou de classe; c) de guerra. Pena: reclusão de 1 a 3 anos.
185
Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência. Pena: reclusão de
6 meses a 2 anos.
186
Art. 15. Incitar publicamente ou preparar atentado contra pessoa ou bens, por motivos políticos, sociais ou
religiosos. Pena: reclusão de 1 a 3 anos ou a pena cominada ao crime incitado ou preparado, se este se
consumar.
187
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14344.
91
sido informada por uma amiga que o viu comungando, logo, este também devia ser Católico
praticante.
Antes nunca pedi nada a ninguém, mesmo que passasse as maiores privações não
tinha coragem. Mas hoje que a fome a e sede é de justiça e liberdade, tenho que
pedir as autoridades que podem resolver o caso conscientemente. [...] É o pedido de
uma cristã, a uma autoridade Militar e cristã, que além de consciência cristã, tem
188
mais o podêr [sic] do alto comando revolucionário de resolver todo esse caso.
Segundo ela, a atitude de decretar a sua prisão, se deu não por parte do Exército,
mas do Juiz, que seria seu parente e que a responsabilizara pela invasão no Engenho Pedra
D’água. Esclareceu que foi ao Engenho para convencer os camponeses a saírem, mas ao não
obter êxito, lá ficou “rezando o terço e outras orações” com os camponeses. No dia seguinte,
seguiu para o Recife com o engenheiro para falar com o representante do Ministério da
Agricultura, que deu um prazo até o dia um de novembro para que os camponeses se
afastassem das terras, para a chegada da comissão com a decisão do Presidente da República.
Informou que não houve danos à propriedade e, após serem feitas as fichas de cadastro dos
camponeses, todos eles abandonaram a propriedade, com a promessa de que em trinta dias a
situação seria resolvida.
Ainda de acordo com a mesma, na segunda invasão, ela não se encontrava na
cidade, estando em São Paulo para tratamento de saúde, e que nesta segunda invasão houve
danos, mas que ela só se dirigiu ao Engenho em fins de março, acompanhando um casal que
foi levar remédio para uma criança em estado grave de saúde. Após o golpe, em 02 de abril, a
polícia esteve em sua residência à procura de seu irmão. No dia seguinte, o padre José Maria a
chamou demonstrando preocupação, uma vez que a polícia tinha expulsando um camponês da
serra, e solicitou-lhe que escrevesse uma carta responsabilizando-se pela invasão e quando a
mesma se recusou “ele se surpreendeu e disse que eu fizesse sem temer porque tinha sido o
cristianismo que venceu”.189 Segundo o padre, ele também se responsabilizaria e, por não ser,
Luiza, camponesa e nem fazer parte de nenhuma organização, nada lhe aconteceria.
A carta seria apresentada ao Secretário de Segurança Pública, para que fosse
permitido que os camponeses voltassem para fazer a colheita e evitar, assim, que mais filhos
de camponeses morressem de fome. “Os camponeses é que não merecem confiança para o
Secretário”, assim, o Secretário atenderia ao seu pedido, por não ser camponês. Alegou, ainda,
que só apresentaria a carta se necessário.
188
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14344.
189
Carta dirigida ao Coronel Hélio Ibiapina, em 28 de setembro de 1964. Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário
Individual nº 14344.
92
Segundo Ana Colling (1997), a tortura foi a principal relação estabelecida entre a
militante política e a repressão, “docilizar o corpo da mulher para sujeitá-lo, fragilizá-lo, para
que ela entendesse sua posição de inferioridade absoluta ao poder instituído, são os objetivos
fundamentais da tortura”. Fazê-las entender que eram desviantes, já que o espaço público era
“masculino por excelência”, assim, as mulheres incorriam em dois crimes: “o de lutar
190
Declaração da advogada Mércia de Albuquerque, sem data. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/memoria/mercia/juridica/declaracoes/09_mariaceleste.htm
93
militar, mas os(as) trabalhadores(as) não ficaram passivos(as) quanto aos acontecimentos e,
mesmo não conseguindo as armas necessárias, houve uma tentativa de articulação que não
deve ser desmerecida. Gregório Bezerra foi preso e arrastado pelas ruas de Casa Forte, bairro
de classe média do Recife, onde a população assistia às violências cometidas contra o
comunista.
Também na cidade de Caruaru, Agreste do estado, houve uma articulação para a
resistência ao golpe. Segundo Erinaldo Cavalcanti, na noite de 31 de março,
as principais lideranças políticas das esquerdas em Caruaru começaram a se contatar
após a chegada da informação de que um golpe de Estado se encontrava em marcha
no país. Decidiram se encontrar na delegacia local, por contarem com um telefone
em suas instalações e com o apoio do delegado Severino de Souza Ferraz.194
Sua execução não coube apenas às Forças Armadas, à Polícia Militar e à Polícia
Civil – como na maioria dos Estados. Ao lado delas, recebendo seu apoio mas
agindo de forma independente, bandos civis armados por adversários de Miguel
Arraes, alguns usineiros e senhores de engenho, ajudaram a espalhar o terror na zona
da mata – onde as mudanças haviam sido mais profundas e a radicalização atingiu
196
maior intensidade.
Colocar na mesma sala Gregório Bezerra e Maria Celeste, como relatou ter
acontecido Mércia de Albuquerque, tem um significado implícito que merece ser destacado.
Ambos representam a luta por melhores condições de vida das classes trabalhadoras,
principalmente dos(as) trabalhadores(as) rurais, que não tinham todos os seus direitos
assegurados pela Constituição e que, com a chegada de Miguel Arraes ao governo, este
194
CAVALCANTI, Erinaldo Vicente. O medo em cena: a ameaça comunista na ditadura militar (Caruaru, PE -
1960-1968). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Recife,
2015, p. 119.
195
COELHO, Fernando. Direita volver: O Golpe de 1964 em Pernambuco. Recife: Bagaço, 2004. Nota
explicativa nº 02, p. 189.
196
Idem.
95
passou a dar mais atenção ao campo. Se antes os proprietários tinham, além de seus jagunços,
a polícia a serviço de seus interesses, a partir de então, a polícia foi orientada a não intervir
nos problemas trabalhistas, atuando de maneira neutra, sendo a Secretaria Assistente 197 a
responsável por intermediar os conflitos na zona rural. O que explica a violência desmedida
acometida aos identificados como líderes dos camponeses, logo, responsáveis pela nova
ordem política no campo.
Mais do que atuarem politicamente no campo, Maria Celeste e Gregório Bezerra
tentaram organizar a resistência ao golpe. Portanto, a prisão destes dois líderes tinha um duplo
sentido, puni-los pela militância e pela tentativa de resistência a um golpe que era bradado
pelos seus executores como um ato conclamado pela população. Maria Celeste e Gregório
Bezerra desnudaram, com as suas ações, o pretenso “apoio” da sociedade ao golpe. Ela, que
tomou a rádio local de Vitória de Santo Antão para convocar os camponeses a defenderem
Miguel Arraes e conseguiu arregimentar algumas centenas, conforme vimos nos relatos
anteriormente, e ele, que foi a Palmares organizar a resistência junto aos camponeses da
região.
Desta forma, houve em Pernambuco uma parcela da população resistindo. Assim
como houve quem apoiou. Generalizar um pretenso apoio aos golpistas é, como definiu
Eduardo Galeano, uma tentativa da direita em se absolver de suas ações.198
As sequelas das torturas em Maria Celeste foram várias. Segundo seu filho,199 que
passou meses até conseguir visitá-la, o que se confirma através de um ofício da Delegacia
Auxiliar, datado de 07 de julho, autorizando a visita de seus familiares duas vezes por
semana, a magreza da mãe foi o que mais chamou sua atenção. Percebeu que a mesma usava
várias meias para esconder as marcas das torturas. Maria Celeste, segundo ele, foi torturada
pelo coronel do Exército Darcy Ursmar Villocq Vianna, o mesmo que torturou Gregório
Bezerra.
Quando trazida de Vitória de Santo Antão, foi levada à Secretaria de Segurança
Pública, onde este coronel teria perguntado se “esta era a rapariga de Arraes”, ao que Celeste
respondeu com um cuspe no rosto de seu algoz. Seu ato - mais um - de coragem lhe rendeu
uma passagem por um corredor polonês. A desqualificação moral de mulheres militantes
197
Sobre a criação e atuação da Secretaria Assistente durante o governo de Miguel Arraes, ver: BARROS, Júlio
César Pessoa de. Conflitos e negociações no campo durante o primeiro Governo Arraes em Pernambuco
(1963-1964). Dissertação de Mestrado em História apresentada à Universidade Federal de Pernambuco. Recife:
2013.
198
GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e de guerra. Op. Cit., p. 151.
199
Depoimento prestado ao Diário de Pernambuco. Edição Especial dos 50 anos do golpe, em 01/04/2014.
96
também foi observada por Ana Colling (1997). Segundo esta autora, “a constituição do sujeito
político feminino pelos órgãos de repressão é uma tentativa de desconstrução do sujeito
político autônomo, enquadrando a mulher militante como apêndice dos homens, incapaz de
decisão política”.
No caso de Maria Celeste, observamos algumas referências a ela como “o braço
direito de Julião”, minimizando a sua autonomia política, associando-a a uma figura
masculina, bem como a tentativa de sugerir que a mesma mantinha um caso extraconjugal
com Luiz Serafim. O que torna evidente que “para a repressão militar a mulher ‘subversiva’ é
um sujeito desviante que participa da política de oposição ao regime militar, acompanhando
homem ou à procura de homem”.200
Maria Celeste também foi levada, em uma jaula, para uma festa em Casa Forte, a
pedido da esposa de um militar, que gostaria de “conhecer uma comunista”. Seu filho contou
que a mesma escondia as violências que sofreu. Ela, que tocava violão e cantava muito bem,
ficou com problemas auditivos. Também tinha uma baixa no crânio, que disfarçava para que
seu filho não percebesse. Para ele, sua mãe só não morreu porque tinha um parente na polícia.
Durante o período em que ficou na Casa de Detenção, Maria Celeste foi
encaminhada ao serviço médico por três vezes, duas das quais juntamente com Célia Lima.
Em 06 de fevereiro de 1965, escreveu ao médico responsável pelo serviço médico da Casa:
200
COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Op. Cit., p. 111.
201
Idem, p. 111-112.
202
Fundo: SSP/CDR/APEJE. Prontuário nº 17117.
97
clínica no Hospital de Santo Amaro e que também atende clientes do sexo feminino.
Solicito urgência.
203
Em 10 de fevereiro de 1965.
Não há nenhum documento que indique que o atendimento tenha sido feito, embora o diretor
da Casa tenha solicitado que a informação fosse repassada para o Secretário do Interior e
Justiça.
Cerca de um mês depois da última prescrição médica, encontramos uma carta,
escrita pela própria Maria Celeste, com o seguinte teor:
203
Fundo: SSP/CDR/APEJE. Prontuário nº 17143.
204
Carta dirigida ao diretor da CDR, em 12/03/1965. Fundo: SSP/CDR/APEJE. Prontuário nº 17117. Ver anexo
09.
205
DUQUE, Débora. Mulheres do Bom Pastor: história das presas políticas que passaram pelo presídio
pernambucano durante o regime militar.
98
foi efetuada em condições de terrível coação, e durante a mesma prisão, sofreu [...]
inominável sequestro da casa de detenção do Recife, por parte da polícia civil, no
dia 04 de junho, tendo sido conduzida, não para a Delegacia Auxiliar, como rezava o
ofício encaminhado a Casa de Detenção, e sim ao comissariado da Caxangá, onde
sofreu os mais abomináveis insultos e ameaças de morte.
Sobre esse episódio, de acordo com Paulo Cavalcanti, Naíde Teodósio e Célia
Lima foram levadas juntas para o comissariado de Polícia da Caxangá, a mando do delegado
Álvaro de Costa Lima, sob ordem de mantê-las em “rigorosa incomunicabilidade”.207 Neste
ambiente, ela viveu o que Cavalcanti chamou de “uma das mais emocionantes páginas de
humanismo”: ao chegar uma mulher em trabalho de parto, pedindo socorro e sob a recusa do
soldado em deixá-la sair da cela para realizar o parto da gestante, Naíde Teodósio orientou o
policial a realizar o parto. “Nascia um filho do povo, nas masmorras da ditadura”,208 posto ao
mundo por uma ‘subversiva altamente perigosa’.
Os insultos que sofreu naquele comissariado, segundo Naíde Teodósio, foram
realizados pelo comissário de nome Moisés. Também na Casa de Detenção o clima era de
ameaça e medo. Em entrevista concedida a Eliane Moury Fernandes, ela contou que havia um
guarda da CDR que sempre a consultava sobre os problemas do filho, que era excepcional,
206
Fonte: http://200.238.101.22/docreader/docreader.aspx?bib=REPARA.
207
CAVACANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi: Memórias Políticas, vol. 2. Recife: Guararapes, 1980.
208
Idem, p. 56.
99
tratando-lhe, sempre com atenção e delicadeza. “Eu realmente achava que o meu papel era
ajudá-lo, como a qualquer outra pessoa que me procurasse”,209 afirmou.
Obtive muito êxito no sentido de que ao ouvir a minha orientação passava para a
esposa em casa e me trazia informações de que realmente as coisas melhoraram em
relação a essa criança excepcional. Inclusive orientei todo um estratagema para ele,
sem dizer que era uma sugestão minha, de que encaminhasse para uma escola de
excepcionais.210
209
Entrevista concedida a Eliane Moury Fernandes, em 27 de outubro de 1983. FUNDAJ/CEHIBRA.
210
Entrevista concedida a Eliane Moury Fernandes, em 27 de outubro de 1983. FUNDAJ/CEHIBRA. Grifos
nossos.
211
Idem.
212
ALVES, Mário Moreira. Torturas e Torturados. Rio de Janeiro, 1996, p. 30.
100
detentos em liberdade. Nesta circunstância, a maioria, embora lhe tenha confessado as torturas
a que foram submetidos, não concordavam em formalizar a denúncia, pois temiam pela sua
segurança e de seus familiares.213
As notícias concretas de denúncias de tortura foram publicadas em 17 de maio de
1964 e diziam respeito ao ex-delegado Gildo Hios, que estava internado “há três semanas no
Hospital do Exército de Recife com os tímpanos rompidos por golpes de telefone”.214
Ainda de acordo com o jornalista, o trabalho de denúncia realizado pelo Correio
da Manhã conseguiu cessar as torturas a partir de junho de 1964. Fato interessante, uma vez
que verificamos na documentação pesquisada, que foi a partir desse mês que foram emitidos
documentos oficializando, sob a denominação de prisões preventivas, o encarceramento dos
presos realizado desde o início da ditadura. Em virtude das denúncias e tendo em vista a visita
da comissão, os militares responsáveis pelo estado de horrores que vivia Pernambuco,
começaram a dar ares de legalidade ao arbítrio instalado desde abril de 1964. É, inclusive,
após a visita da comissão de investigação, que Graziela Cavalcanti de Melo, Luiza Arcoverde
e Naíde Teodósio são postas em liberdade. Esta última foi uma das que o jornalista denunciou
ao divulgar a “Denúncia coletiva dos presos políticos da Casa de Detenção do Recife”, onde
consta que
213
A reportagem contendo os relatos obtidos pelo jornalista foi publicada na capa do Correio da Manhã, em
20/09/1964. Nela, o jornalista relata que, como foi impedido pelo IV Exército de acompanhar os trabalhos da
Comissão de Investigação instaurada para apurar as denúncias de tortura, ele decidiu visitar a CDR em dia de
visita e conversar com as(os) presas(os).
214
ALVES, Mário Moreira. Torturas e Torturados. Rio de Janeiro, 1996, p. 33.
215
ALVES, Márcio Moreira. Torturas e Torturados. Op. Cit. p. 83 & COELHO, Fernando. Direita volver: o golpe
de 1964 em Pernambuco. Op. Cit., p. 443.
101
Nos fatos alegados pelos presos, quanto às violências sofridas anteriormente, há que
considerar, em sua apreciação, que a maioria delas ocorreu no dia mesmo, e nos
imediatamente subsequentes à Revolução. É de se observar, então, que os
acontecimentos sociais, políticos e militares estiveram sujeitos à própria
contingência dos movimentos revolucionários em geral. Sucede em momentos
assim, a total e imediata substituição das autoridades, o ciclo de rápida ação militar e
a eclosão de toda uma gama de emoções e mesmo, o desencadear de paixões e
represálias incoercíveis, quer dos diretamente empenhados nas operações
revolucionárias, quer de grupos sociais e políticos interessados na vitória do
movimento. Sem esquecer que os elementos afastados do poder, ou com suas
tendências político-sociais, contrariadas, propendem à posição de resistência, que o
movimento deflagrado porfia em debelar, para atingir seu objetivo. Nessa
conjuntura, parte dos acontecimentos foge ao controle das lideranças, e dos
comandos, resultando, por vezes, em atos e fatos discrepantes das linhas e normas
desejáveis. A cessação imediata ou retardada desses excessos, após a instauração de
217
uma nova ordem, é que serve para definir os propósitos reais do movimento.
Segundo Moreira Alves, as torturas foram cessadas até o ano seguinte. Pela
documentação da CDR, percebemos ser possível esta afirmativa, uma vez que todos os
depoimentos em que consta a observação de que fora prestado “sem coação ou violência”
datam de junho de 1964. A partir de 1965, localizamos os requerimentos médicos para as
presas políticas Célia Lima e Maria Celeste, o que pode indicar uma retomada nas práticas de
torturas físicas, sendo que a psicológica nunca teve fim.
Sobre as acomodações da CDR, o relatório afirmou que:
216
ALVES, Márcio Moreira. Torturas e Torturados. Op. Cit., p. 94 & COELHO, Fernando. Direita volver: o golpe
de 1964 em Pernambuco. Op. Cit., p. 443. Grifos nossos.
217
ALVES, Márcio Moreira. Torturas e Torturados. Op. Cit., p. 78- 79.
102
Graziela Melo, em seu livro de crônicas, relatou que a cela em que ficaram na
Casa de Detenção, tinha um espaço relativo e contava, ainda, com um quintal pequeno, onde
havia um pé de cana, cujos ratos escondiam-se. Em virtude disso, ela chegou a escrever um
poema, que fala de forma metafórica dos ratos produzidos por batalhões de ‘ratos’ que, para
nós, contribui para tentarmos perceber qual o sentimento daquelas mulheres quanto ao cárcere
e aos seus algozes:
E ratos
Diversos
Um batalhão
Produzem
Mais ratos
No pátio
Escuro
Desta prisão
Que
Uma prole
De ratos
Mais ratos
Semeia
Nos muros
Negros
Desta cadeia.”219
Também através da poesia, Maria Celeste relatou as violências que sofreu durante
o período que ficou presa. Em poema intitulado “Raio Leste”, em referência à parte do
presídio onde situava a cela em que ficou, conta-nos através dos versos:
Atenção!
cuidado companheiros
de justiça órfãos,
Mortas?
218
ALVES, Márcio Moreira. Torturas e Torturados. Op. Cit., p. 71 & COELHO, Fernando. Direita volver: o golpe
de 1964 em Pernambuco. Op. Cit., p. 434. Grifos nossos. & DP, 09/10/1964, Primeiro Caderno, p. 03 e Segundo
Caderno, p. 02. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
219
MELO, Graziela. Crônica, contos e poemas. Op. Cit., p. 47.
103
A caneta desliza
ao som do toque marcial:
Direita, volver!
Estremeço,
o choque elétrico passeia
triturando minha carne,
os nervos.
Êxtase
A ideia sobrevive,
agride e
grava nos olhos dos tiranos,
por mil anos,
a imagem do meu corpo
em chagas vivas.
220
VIDAL, Maria Celeste. Metade Sol metade sombra. Recife: Ed. Bagaço, 1994, p. 52-53.
221
VIDAL, Maria Celeste. Metade Sol metade sombra. Op. Cit. Contracapa do livro.
222
VIDAL, Maria Celeste. Metade Sol metade sombra. Op. Cit., p. 05.
104
E foi o que Maria Celeste e tantas outras mulheres e homens fizeram: sofreram na
carne todas as dores do mundo em busca de um ideal. Muitas(os) não sobreviveram às sessões
de tortura, nem tiveram seus corpos entregues às suas famílias, figurando, até hoje, nas listas
dos “desaparecidos políticos”, como é o caso de David Capistrano, esposo de Maria Augusta
Oliveira, uma das presas da CDR.
105
223
UH-RJ, 29/04/1965. Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional.
224
Manteremos a grafia original.
225
Auto de Apreensão. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
106
226
Depoimento de Gualberto em 12/05/1965. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
227
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
107
volta “ao andar poucos metros, cruzou com um jeep de cor cinza, no qual viajava, sozinho,
GREGÓRIO BEZERRA, que se dirigiu para a casa onde tinha ficado a doutora Nailde [sic],
parecendo que era a residência mesmo do Gregório”.228 Também apontou o Sítio da Trindade
como sendo um dos diversos locais em que a médica pedia que o mesmo a levasse, onde se
reunia com Ana Paes Barreto, Miguel Newton Arraes e Bianor Teodósio, entre outros; e a
Escola de Belas Artes, onde a mesma se reunia com “grande número de mocinhas e rapazes,
tipo playboy”.
Outro depoimento importante para a abertura de inquérito contra Naíde Teodósio
foi o de Manoel Fernandes Lima, prestado em 11 de maio de 1964. Este afirmou que foi
tecelão nas fábricas de Rio Tinto e Cotonifício da Torre, foi associado ao Sindicato dos
Tecelões, onde teve a oportunidade de assistir algumas reuniões. Após deixar a Fábrica da
Torre, passou a trabalhar em uma oficina de carpintaria, onde se aperfeiçoou e,
posteriormente, abriu uma oficina de móveis em sociedade com mais duas pessoas,
posteriormente passou a trabalhar sozinho.
Em 1958 conheceu, em sua oficina, José Maria da Silva, que era proprietário de
uma oficina, próximo à sua, de consertos de rádio e por intermédio deste, passou a assistir aos
comícios da campanha de Cid Sampaio, que tinha José Maria como responsável pelos
autofalantes e instalações elétricas. Após o término da campanha, José Maria o convidou para
se organizar em uma base do PCB, instalada à Rua Ribeiro Roma. Também a convite de José
Maria, participou de um curso básico na sede do Comitê Municipal do Recife, com duração
de seis aulas, mas tendo o mesmo somente participado de quatro. E foi em uma dessas aulas
que ele, supostamente, conheceu Naíde Teodósio.
Esta afirmação de Manoel Fernandes vem confirmar, para os agentes do Estado, a
atuação política de Naíde Teodósio, bem como comprovar que os roteiros de aula,
supostamente apreendidos em sua residência, eram utilizados para a formação política do
PCB. Segundo o depoimento de Manoel Fernandes, as aulas assistidas por ele “versavam na
diferença entre o Capitalismo e o Socialismo e, ainda sobre a situação política do país”.229
Afirmou, também, que foi informado que Gildo Rios, Delegado de Ordem
Econômica, estava precisando de cinquenta pessoas para trabalhar com ele no serviço de
fiscalização da referida Delegacia, sendo o trabalho não remunerado, os que aceitassem
receberiam uma carteira de fiscal que concedia-lhes o direito à passe nos ônibus, tendo o
228
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964. Destacado no original.
229
Depoimento de Manoel Fernandes, 11/05/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de
1964.
108
Tal trecho demonstra quão frágil era a tentativa de comprovação das supostas
“atividades subversivas” da referida médica. Para o delegado, o fato de Naíde Teodósio ter
sob seu poder um manifesto do PCB constituía prova inquestionável do conteúdo das supostas
aulas que a mesma ministrava. Não foi apresentado nenhum documento que comprovasse que
a mesma fosse responsável por ministrar as aulas, mesmo assim, ela foi indiciada como
incursa na Lei de Segurança do Estado.
Para Costa Lima, não restava dúvidas de que Naíde Teodósio exercia atividades
subversivas e que a mesma “tornava-se nefasta e danosa aos interesses da estabilidade do
regime democrático”, pois desde a década de 1940 que “esta senhora” vinha “atrelada ao
movimento comunista”, tendo sido acusada de manter ligações com comunistas e
Graças ao movimento revolucionário de 31 de Março, veio apontá-la como
simplesmente uma infratora da lei, uma subversiva da ordem política, n’a[sic]
mulher, enfim que, na qualidade de médica, procurava curar os males físicos, mas
intoxicava o espírito dos seus outros clientes, impregnando-lhes ódio, despertando-
231
os para a revolução e a implantação de uma ditadura de classe.
230
Relatório de Álvaro da Costa Lima. 07/07/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de
1964.
231
Relatório de Álvaro da Costa Lima. 07/07/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de
1964.
109
Concluiu o ofício afirmando que não restavam dúvidas quanto às atividades da acusada e
solicitando, desta forma, a sua prisão preventiva.
que Amaro Wanderley, apontado pelo mesmo como um dos que Naíde Teodósio sempre
frequentava a residência, era Conselheiro do Conselho Deliberativo do SSCM, e José Ramos,
que a acompanhou em uma de suas visitas ao bairro do Cajueiro Seco, era enfermeiro do
SSCM, logo, a ligação de ambos com a denunciada estava nos limites de sua atuação
profissional, uma vez que eram subordinados dela.
O motorista também afirmou que quando deixava o carro na Praça Joaquim
Nabuco, permanecia dentro do veículo, o que torna questionável a afirmação, atribuída a ele,
constante no depoimento dado ao delegado, de que a denunciada se dirigia ao Edifício Vieira
da Cunha, bem como afirmou que em Cajueiro Seco havia um ambulatório do SSCM, o que
justificava a ida da denunciada ao local. Disse, também, que não aplicou o termo “play boy”
no seu depoimento anterior e que assinou o mesmo sem ler, tendo agido assim “porque quis”.
Naíde Teodósio contestou a declaração do motorista afirmando que o mesmo
nunca a levou a Jardim São Paulo e voltou só, bem como nunca disse a ele que ia ministrar
aulas no Edifício Sagrada Família, nem foi várias vezes a Prazeres, muito menos teria ficado
ele a esperando por horas.
Manoel Fernandes Lima, afirmou ter frequentado o curso na Rua da Palma, em
1963, tendo assistido somente a quatro aulas e que na primeira aula, tendo o professor faltado,
Naíde Teodósio deu uma explicação sobre guerra atômica, falando, também, sobre a
coexistência pacífica, explanação que durou cerca de cinco minutos. Negou que ela tenha
falado sobre o regime comunista ou que tenha feito pregação neste sentido.
Ao promotor, confirmou ter assistido à reuniões na sede do Sindicato dos
Bancários, bem como ter sido convidado por José Maria da Silva para fazer o curso básico na
sede do Comitê Municipal do Recife, onde assistiu a três aulas ministradas por Amaro
Valentim, José Leite e outros. Negou ter assistido aulas “de senhora alguma” e disse não
conhecer Naíde Teodósio, o que contradiz sua declaração anterior neste mesmo juízo.
Também afirmou ter assinado, sem ler, o seu depoimento prestado na Delegacia Auxiliar.
Ao ser questionado pelo advogado da acusada sobre não ter lido o seu depoimento
antes de assinar, informou que não lhe foi entregue para que o mesmo lesse, disse, ainda, que
estava preso quando prestou o depoimento, tendo permanecido no cárcere cerca de trinta dias,
chegando a ficar incomunicável durante muitos dias. Naíde Teodósio contestou seu
depoimento prestado em juízo, afirmando não conhecer o mesmo, desta forma, não teria feito
nenhuma explicação a ele sobre guerra nuclear.
Foram, ao todo, oito testemunhas apresentadas pela defesa de Naíde Teodósio.
Composta por médicos e médicas, ex-aluna, enfermeiras, funcionários públicos, professores e
111
Nunca utilizou a cátedra para fazer pregação comunista. [...] Sempre se manteve à
margem de atividades políticas, sendo desconhecido de todos sua orientação política
233
uma vez que nunca a externou no recinto escolar.
234
Nunca se manifestou politicamente, em aula ou fora dela.
Percebe-se que a preocupação com uma educação sem a influência de uma
ideologia progressista não é uma temática atual. A diferença do cenário atual, onde se discute
a necessidade de uma escola sem ideologia (a não ser a do dominante), é que no período
estudado vivíamos em uma Guerra Fria, com disputas ideológicas e um debate amplo acerca
da libertação dos povos e os caminhos a serem seguidos. Contudo, a preocupação, hoje e
ontem, com uma educação sem pluralidade ideológica consiste tão somente em negar uma
proposta de educação libertadora. Os dogmas liberais, conservadores, podem e devem, na
concepção dessas pessoas, permanecerem nas escolas e universidades. Por isso, o método de
alfabetização de Paulo Freire foi rapidamente substituído e em seu lugar desenvolveu-se o
Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), que consistia em uma proposta de
alfabetização funcional de jovens e adultos, em uma proposta diametralmente oposta a
desenvolvida por Paulo Freire, antes do golpe de Estado.
Como vimos, o auto de apreensão de Naíde Teodósio apresentou uma fotografia
em que ela aparecia entre pessoas “supostamente estrangeiras”, o que a transformava, aos
olhos dos seus acusadores, em uma suposta “subversiva”. Em tempos de Guerra Fria, com a
disputa pela hegemonia entre os Estados Unidos e a União Soviética, ser estrangeiro podia
232
Depoimento de Elza Carvalho de Alcântara, enfermeira e ex-aluna de Naíde Teodósio, em 08/09/1964.
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
233
Depoimento de Margareth Mirian da Costa, diretora da Escola de Enfermagem da Universidade do Recife,
em 08/09/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
234
Depoimento de Isabel dos Santos. Médica e professora da Escola de Enfermagem da Universidade do Recife,
em 08/09/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
112
facilmente significar ser cubano ou soviético, o que já seria motivo para ser acusado de
subversivo.
Desta forma, entre os depoimentos apresentados pela defesa da acusada, chamou
nossa atenção o depoimento do professor Nelson Ferreira de Castro Chaves da Universidade
do Recife que, ao ser questionado pelo advogado da acusada sobre a fotografia anexada no
processo em que a mesma aparecia com o suposto estrangeiro, o mesmo afirmou se tratar do
professor Bernardo Houssay, um fisiologista argentino, com quem Naíde Teodósio estagiou
na Argentina:
O professor Bernardo Houssay é o único possuidor do Prêmio Nobel na América
Latina, sendo o maior fisiologista atualmente vivo, e tendo a sua obra sendo
analisada e adotada nos Estados Unidos e Europa Ocidental; que o professor
Bernardo Houssay politicamente é um democrata, podendo mesmo ser considerado
235
um ferrenho anticomunista.
235
Depoimento de Nelson Ferreira de Castro Chaves, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do
Recife, em 16/09/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
236
“A Fundação Rockefeller foi criada em 1913, no contexto da remodelação dos códigos sanitários
internacionais vivenciada no início do século XX. Com o objetivo de implantar medidas sanitárias uniformes no
continente americano, consolidou-se nessa época uma ampla rede de organizações internacionais, cujo
financiamento provinha, em sua maior parte, dos Estados Unidos. Instituição filantrópica e de cunho científico,
ela atuou prioritariamente nas áreas de educação, medicina e sanitarismo. Estava associada a um grande grupo
industrial e comercial norte-americano, liderado pelo milionário John D. Rockefeller, e priorizou o campo da
saúde pública, atuando inicialmente no sul dos Estados Unidos, mas depois estendeu seus métodos de trabalho
a outros países que apresentassem necessidade de controle e erradicação de moléstias, tais como
ancilostomíase, febre amarela e malária. [...] Chegou ao Brasil em 1916 e logo entrou em contato com
importantes cientistas do país.” Fonte: http://arch.coc.fiocruz.br/index.php/fundacao-rockefeller-fundo-2.
113
contempladas com tal convênio que contava, ainda, com um curso sobre nutrição e saúde
pública do qual Naíde era uma das professoras, tendo ministrado aulas até 1963, não
ministrando no ano seguinte somente por estar detida.
Outro fato que nos chamou atenção, nos depoimentos, foi que em quatro deles
questionou-se sobre possíveis viagens a Natal, no Rio Grande do Norte, feitas por Naíde
Teodósio. Dois depoentes não souberam informar sobre as referidas viagens, ao passo que
dois, ambos de professores da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife, informaram
que tais viagens ocorreram em virtude de convênio estabelecido entre as universidades,
ficando a Universidade do Recife encarregada do curso de fisiologia da Universidade do Rio
Grande do Norte. Desta forma, as viagens ocorreram para fins acadêmicos e a acusada viajava
em companhia do professor Nelson Chaves e Paulo Saraiva.
O questionamento sobre possíveis viagens que Naíde Teodósio fizera ao Rio
Grande do Norte podem ser justificados em virtude de em 16 de setembro de 1964 o
Delegado Auxiliar ter enviado cópia de quatro depoimentos237 para serem anexados ao
processo da mesma. Nenhum dos depoimentos sequer cita Naíde, são depoimentos de ex-
ferroviários e referem-se às atividades na Rede Ferroviária do Nordeste. Contudo, tais
depoimentos, além de comprovarem que os Edifícios Vieira da Cunha e Sagrada Família eram
locais utilizados pelos militantes comunistas para se reunirem, são unânimes ao informar a
presença de uma jovem que se dizia dirigente do PCB no Rio Grande do Norte. Talvez o
objetivo em anexar tais depoimentos fosse o de caracterizar os locais frequentados por Naíde
Teodósio e fazer ligação entre a mesma e essa jovem potiguar, uma vez que nos depoimentos
de acusação questionou-se a sua ida ao referido estado.
Desta forma, seu advogado Antônio Carlos Palhares Moreira Reis238 solicitou, em
18 de setembro de 1964, que os depoimentos fossem retirados do processo uma vez que
Não há a menor referência, nem no citado ofício do Dr. Delegado Auxiliar, nem do
Despacho respeitável de V. Excia., nem no requerimento do Dr. Promotor Público,
nem referência nem alusão ao processo em que é acusada a Dra. Naíde Teodosio.
[...]
A Dra. Naíde Teodosio foi acusada de atividades subversivas no Departamento de
Reeducação e Assistência Social do Serviço Social contra o Mocambo.
237
São os depoimentos de Paulo Gomes da Silva, Joaquim Belarmino Tiné, Luiz Belo Soares e Adalberto Xavier
de Paula.
238
Antônio Carlos Palhares Moreira Reis formou-se bacharel em Direito pela Universidade do Recife (1953), em
Filosofia (1955), especialista em Direito Internacional pela Academie de Detroit International de La Haye, na
França (1968) e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE (1997). Foi professor de
Ciência Política, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFPE, entre 1954 e 1989. Na Faculdade
de Direito do Recife (FDR-UFPE), foi professor de Direito Constitcional, entre 1964 e 1998. Substituiu Joaquim
Correia de Carvalho Júnior, na defesa de Naíde Teodósio, em 08/09/1964.
114
239
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
240
Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
115
241
Art. 10. Filiar-se ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou clandestinamente, mas sempre de
maneira inequívoca, a qualquer das entidades reconstituídas ou em funcionamento na forma do artigo
anterior. Pena: reclusão de 1 a 4 anos.
242
Art. 11. Fazer publicamente propaganda: b) de ódio de raça, de religião ou de classe; Pena: reclusão de 1 a 3
anos.
116
243
Razões finais da defesa, em 20/11/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
117
244
Razões finais da acusação, em 20/11/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
245
Depoimento prestado ao Juiz da 5ª Vara em 17/08/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº
81 de 1964. Grifos nossos.
118
com outros, cuja autoria a acusada assume a inteira responsabilidade, por ser,
246
efetivamente, de sua letra.
246
Razões finais da defesa, em 20/11/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
247
Idem.
119
Além de demonstrar, sem deixar margem para dúvidas, de que os roteiros de aula
não são de autoria da acusada, bem como ela não os reconheceu, a defesa afirmou que,
mesmo que assim o fosse, não seria considerado crime uma vez que a Constituição de 1946
garantia a liberdade de cátedra. E sobre o uso de palavras não belas, “são palavras de uso
correntio na nossa língua e usadas mesmo na Constituição de 1946 e no Ato Institucional”.
Logo, não havia nada de subversivo em tais palavras.
Sobre os depoimentos, utilizou-se, o promotor, de fragmentos deles de forma a
induzir uma leitura equivocada. Isso ocorreu em ambos os depoimentos de acusação
utilizados pela Promotoria, tal seja o do motorista do SSCM e do ex-ferroviário. O
depoimento do motorista, particularmente, serviu de base para tentar provar que a acusada
frequentava a sede do Partido e andava em companhia de “comunistas notoriamente
conhecidos”.
No referido depoimento, o Promotor destacou os trechos em que o motorista
afirmou ter levado Naíde Teodósio algumas vezes à Praça Joaquim Nabuco e ao escritório de
Gildo Guerra, mas omitiu, na sequência, quando o mesmo afirmou que não era de
conhecimento dele que a acusada tivesse assinado manifestos comunistas, nem que ela fosse
248
Razões finais da acusação, em 20/11/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
120
Só com este trecho do depoimento de acusação, põe-se em xeque toda a acusação formulada
pela Promotoria e torna evidente a manipulação do depoimento, apenas, visando à
comprovação a denúncia.
Como vimos anteriormente, os depoentes apresentados pela acusação
contradisseram, em Juízo, o depoimento prestado na Delegacia Auxiliar. E mesmo em Juízo,
foi possível observar contradições, como no depoimento de Manoel Ferreira Lima que
inicialmente disse que viu Naíde Teodósio uma vez, quando do curso frequentado por ele no
Edifício Vieira da Cunha, onde a denunciada teria dado uma explicação sobre guerra atômica
e coexistência pacífica, para, em seguida, afirmar que não conhecia a denunciada, muito
menos que recebera aulas de “senhora nenhuma”. Não precisa dizer qual trecho o Promotor
escolheu para argumentar as suas “razões finais”, não sem antes omitir a declaração do
depoente que afirmou que na suposta aula assistida por ele, Naíde Teodósio “nada falou a
respeito do regime comunista, e nem fez pregação a este sentido.” Ou seja, mesmo que tivesse
acontecido tal aula, que ele negou em seguida, não houve “exaltação ao regime comunista”.
O depoimento prestado por Naíde Teodósio também foi escolhido a dedo pelo
Promotor Público. Nele, a acusada afirmou ter adotado o livro de leitura para adultos,
proveniente do Movimento de Cultura Popular, bem como ter participado de uma reunião
onde se “promoviam debates de natureza política”, tendo sido convidada pelo Professor
Eduardo Lima, permanecendo cerca de duas horas; também afirmou ter frequentando reuniões
no escritório do Jornal “A Hora”, onde foi algumas vezes adquirir exemplares deste jornal,
além do jornal “Novo Mundo” e folhetos. Também afirmou que visitou, a convite da diretoria
da Associação de bairro do Cajueiro Seco, aquela entidade, tendo proferido palestras.
Destacou o Promotor, após transcrever o trecho do depoimento que o mesmo foi prestado
“sem coação e de espontânea vontade”. Esta afirmativa, na verdade, também está no referido
249
Depoimento de José Gualberto da Silva em 26/08/1964. Grifos nossos. Memorial da Justiça de Pernambuco.
Processo nº 81 de 1964.
121
depoimento. Depoimento este, inclusive, que foi prestado sob ameaças e violência, como
vimos anteriormente.250 O que demonstra, de acordo com a sua defesa, “o inteiro desprezo da
nossa polícia pela pessoa humana e, em especial, pelos portadores de títulos universitários.”
Afirmou, ainda, que o interesse da promotoria em considerar um depoimento
fornecido mediante ameaça à polícia em detrimento ao prestado em Juízo, justificava-se pelo
fato de “desta maneira a Promotoria pode ajustar o depoimento extorquido com a
documentação pseudamente encontrada na residência da acusada.” Vale ressaltar, mais uma
vez, como destaca a defesa, que “o inquérito policial é meramente informativo e não
probante”, desta forma, “a Promotoria desprezou os outros depoimentos escolhendo este,
porque era o único que se ajustava à pretensa prova documental”.
Por fim, a Promotoria terminou a sua peça jurídica desqualificando as
testemunhas de defesa, pois
A acusada, como mulher inteligente, não procurou apresentar testemunhas de defesa
de nível inferior ao seu, e sim, testemunhas de alto gabarito pensando decerto, que
elas poderiam contrariar a prova existente nestes autos, da sua ajuda ao Partido
Comunista e o interesse em jogar uma classe contra a outra. Estas testemunhas que
se declararam suas amigas, apenas referem-se às suas atividades no campo
acadêmico.
Daí a não difusão da Dra. Naíde, de suas idéias nos meios intelectuais e científicos a
251
que pertence.
250
Ver o Capítulo II desta dissertação.
251
Razões finais da acusação, em 20/11/1964. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
122
Desta forma, solicitou que Naíde Teodósio fosse absolvida, uma vez que “ficou provado que a
mesma não é comunista, não fez conferências comunistas, não participou de atividades
subversivas, e por outro lado, não fomentou luta de classes”
Em sua sentença, o Juiz Alcebíades Medeiros de Siqueira Campos, Juiz da 6ª vara
Criminal, no Exercício da 5º, após a remoção do então Juiz Antônio Coreia de Araújo, ao
explicitar os trâmites do processo teceu esclarecimentos acerca da anexação, após
encerramento da instrução, dos depoimentos provenientes da Delegacia Auxiliar, ainda
quando o Juiz afastado estava à frente do processo. Segundo o juiz Alcebíades Campos, antes
que o então juiz responsável pela 5ª Vara Criminal despachasse o requerimento do advogado
da acusada, que protestou contra essa ação ilegal, haja vista que já havia encerrado os
depoimentos de defesa, “nova invasão de documentos, semelhante àquelas famigeradas
‘invasões de camponezes’[sic], nos Engenhos e Usinas deste Estado, anteriormente à
Revolução de 1º de abril deste ano.”253 Porém, considerando que não haveria prejuízo para
ambas as partes, determinou que permanecesse os documentos e que as respectivas
testemunhas fossem ouvidas.
Entretanto, não deixou o juiz, de maneira irônica, de destacar as ilegalidades do
processo, como fica claro nesta passagem:
Está claro que, mesmo fazendo o relatório deste processo, não pode o julgador
deixar de declarar que grande e profunda “subversão” ficou patenteada nos
autos: a subversão da ordem processual, o desrespeito à técnica da
254
formalística.
252
Razões finais da defesa, em 20/11/1965. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
253
Sentença do Juiz da 5ª Vara. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
254
Sentença do Juiz da 5ª Vara. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964. Grifos nossos.
123
255
Sentença do Juiz da 5ª Vara. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964. Destacado no
original.
124
256
Sentença do Juiz da 5ª Vara. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
257
Idem.
258
Idem. Grifos nossos.
259
Idem.
260
Idem.
125
3.1.4. A apelação
Apesar de ponderar que a acusada não podia ser filiada ao PCB, uma vez que este
se encontrava na ilegalidade, na sua acusação, em todo momento, afirmou que ela era filiada
ao Partido Comunista e ajudava-o com ações, o que justificava o seu enquadramento na Lei
de Segurança do Estado. Alegou, ainda, que o Juiz “foi bondoso, indulgente, misericordioso,
porém, ao julgar, não lhe era dado usar dessas virtudes, e sim, apreciando a prova na sua
frieza, aplicando afinal a lei.”262
A decisão do STF foi unânime: manteve-se a decisão do Juiz e a acusada foi
absolvida. Sobre a possível “incompetência do Juiz” alegada pela Promotoria, esclareceu o
STF que, “não tem razão a Promotoria”. Conforme se pode verificar nos autos, o juiz que
lavrou a sentença estava ainda como titular da Vara e só depois disso é que o titular a
assumiu.
Não há, aliás, nos autos qualquer fundamento probatório em sua alegação e é por
isso que o recurso alega a incompetência e fica, tão só, na alegação.
A sentença é longa, detendo-se, cuidadosamente, no exame dos autos.
Professora da Faculdade de Medicina, onde houve investigação em torno da
atividade subversiva dos professores, não constou, dessa investigação, siquer [sic]
seu nome.
263
Não há, pois como se possa dar provimento ao recurso.
Maria Celeste Vidal Bastos foi denunciada em 07 de abril de 1964, seis dias após
a sua prisão, através de relatório do inquérito policial de autoria do Delegado Especial Galba
de Almeida Matos. No referido relatório, o delegado afirmou que a
261
Razões de apelação. Memorial da Justiça de Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
262
Idem.
263
Apelação criminal nº 1.578 – Pernambuco. Relator Ministro Cândido Motta Filho. Memorial da Justiça de
Pernambuco. Processo nº 81 de 1964.
127
Seguiu, ainda, informando que a referida professora, confessou que recebia uma
gratificação de vinte mil cruzeiros da Secretaria Assistente do governo. Tal acusação era uma
tentativa de criminalizar a transferência de Maria Celeste do Grupo Escolar onde lecionava,
para a Secretaria Assistente. A transferência nada teve de ilegal, como insinuou o delegado
em seu relatório. E a gratificação era um acréscimo em seu salário de professora, em virtude
da promoção. Mas, para os agentes do Estado que queriam, a todo custo, comprovar a má
gestão dos recursos públicos e a utilização de dinheiro público para o financiamento do
suposto processo revolucionário dirigido pelos comunistas, tal transferência e pagamento
transformou Maria Celeste em “uma subversiva gratificada pelo próprio govêrno.”
Ainda de acordo com o relatório, a presença de Maria Celeste era constante nas
diversas “greves, agitação e passeatas de camponêses com cartazes ameaçadores”, atuando de
frente e “dando vivas a Fidel Castro e sua grei”. Acompanhava a referida professora o “não
menos agitador Luiz Serafim, líder camponês que nunca plantou um pé de alface sequer”. De
acordo com a denúncia do delegado, baseada em depoimentos colhidos no inquérito, a sede
das Ligas Camponesas na cidade “era uma verdadeira célula comunista” e esta contava com o
apoio da Secretaria Assistente que estava “sempre solícita e pronta a proporcionar um
ambiente faustoso aos seus pupilos.”
Contudo, com a chegada das Forças Armadas, teria sido colocado “um ponto final
na baderna”. Maria Celeste, ao saber do movimento militar que eclodiu em Recife e no resto
do País,
ocupou o microfone da estação difusora local, na marra, segundo o seu estilo e
consoante o figurino da época, convocando os camponeses se agruparem e, de armas
à mão, marcharem para o Recife a fim de libertarem o sr. Miguel Arraes. E o
batalhão de Maria Celeste fez tal como a Conceição do nosso samba: se marchou,
ninguém sabe, ninguém viu.
265
E assim, melancolicamente, Maria Celeste deixou de brilhar.
Tais fatos, para o delegado Galba Matos, são a prova crucial de que a decretação
da prisão preventiva de Maria Celeste se fazia uma necessidade de ordem social e jurídica, a
fim de assegurar a manutenção da ordem pública e a garantia da ordem institucional. Para ele,
264
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
265
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042. Grifos nossos.
128
a prova produzida pela diligência policial foi suficiente para a decretação de sua incursão nos
artigos 9266, 11 – letras a e b267 – 12268 e 15269 da Lei 1.803 de 05 de janeiro de 1953, que
definia os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social e dava outras providências.
No auto de apreensão, apresentado em 14 de abril de 1964, na Delegacia de
Polícia de Vitória de Santo Antão, pelo Major da Polícia Militar, Rômulo Pereira Morais,
constava um documento em papel timbrado da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores
de Pernambuco, com assinatura de Luiz Serafim; uma declaração assinada por Luiz Serafim e
Hermenegildo José de Santana; um bilhete dirigido a Serafim e assinado por Freire; outro
manuscrito, dirigido a Serafim, assinado por Maria Celeste; um impresso intitulado “Greve
Geral pela liberdade”; uma carta manuscrita, em papel timbrado das Ligas Camponesas,
dirigido a Luiz Serafim, assinado por João Virgínio; uma carta manuscrita solicitando
remessas de obras, assinada por Maria Celeste e “um cartão de identificação de jornal “Liga”,
pertencente a Luiz Serafim, qualificando como repórter e assinado pelo diretor Francisco
Julião”. Tais documentos foram apreendidos na sede da Liga Camponesa de Vitória de Santo
Antão.
Em ofício remetido ao Promotor Público, datado de 25 de abril de 1964, o
Delegado Especial Galba Matos, remete os depoimentos prestados por Maria Celeste Vidal,
Joaquim Bosco Tenório Medeiros e Claudionor Ribeiro Tenório, que compuseram o inquérito
policial no qual, segundo o delegado, “ficaram positivadas as atividades subversivas que a
referida professôra vinha exercendo no município de Vitória de Santo Antão.”270 Além dos
depoimentos, constava uma fotografia tirada em um dos comícios realizados em Vitória,
onde, segundo o delegado, “se vê a professora Maria Celeste toda eufórica ao lado do ex-
deputado Francisco Julião, conhecido agitador da classe camponêsa.” Desta forma, solicitou a
sua prisão preventiva nos artigos 9, 11 – letras a e b -, 12 e 15 da Lei de Segurança do Estado.
266
Art. 9º Reorganizar ou tentar reorganizar, de fato ou de direito, pondo logo em funcionamento efetivo,
ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido político ou associação dissolvidos por força de disposição
legal ou fazê-lo funcionar nas mesmas condições quando legalmente suspenso. Pena: reclusão de 2 a 5 anos;
reduzida da metade, quando se tratar da segunda parte do artigo.
267
Art. 11. Fazer publicamente propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou
social; b) de ódio de raça, de religião ou de classe. Pena: reclusão de 1 a 3 anos.
268
Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência. Pena: reclusão de
6 meses a 2 anos.
269
Art. 15. Incitar publicamente ou preparar atentado contra pessoa ou bens, por motivos políticos, sociais ou
religiosos. Pena: reclusão de 1 a 3 anos ou a pena cominada ao crime incitado ou preparado, se este se
consumar.
270
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
129
Vale ressaltar que, segundo o mesmo documento, a prisão preventiva já havia sido acolhida
pelo Juiz de Vitória, em 08 de abril de 1964.
271
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
272
Art. 7º - Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e
estabilidade. § 1º - Mediante investigação sumária, no prazo fixado neste artigo, os titulares dessas garantias
poderão ser demitidos ou dispensados, ou ainda, com vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de
130
serviço, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, mediante atos do
Comando Supremo da Revolução até a posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto
presidencial ou, em se tratando de servidores estaduais, por decreto do governo do Estado, desde que tenham
tentado contra a segurança do Pais, o regime democrático e a probidade da administração pública, sem
prejuízo das sanções penais a que estejam sujeitos.
273
“Com pouco mais de 24 anos, graduou-se em direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Após, dedicou-se exclusivamente à advocacia penal. Com o Golpe Militar, foi indicado para atuar na defesa de
Maria Celeste Vidal, militante da Liga dos Camponeses, organização cujos membros vinham sendo
intensamente perseguidos pelas autoridades policiais. A partir daí, defendeu outros perseguidos políticos
perante a Justiça Militar, especialmente membros de organizações de esquerda da região Nordeste do país. Foi
Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil na Seção de Pernambuco, onde presidiu a Comissão de Defesa
do Exercício da Advocacia. Foi advogado de juízes do Poder Judiciário de Pernambuco e de Promotores de
Justiça que foram processados pela ditadura militar.” In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo.
(coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar (1964-1985). Curitiba: Edição do Autor, 2013, p. 188.
274
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042. Grifado no original.
131
Solicitou, ainda, que caso a Comissão não acatasse a suspensão do feito, que então
absolvesse a indiciada, por “questão de justiça” e, para isso, uma vez que não foi permitido
que ela apresentasse os documentos necessários à comprovação de sua defesa, em virtude de
sua detenção, solicitou que a Comissão expedisse ofício ao Juízo da Comarca de Vitória,
solicitando cópias dos depoimentos das duas testemunhas de acusação, bem como da defesa
prévia formulada pelo defensor nos autos da referida ação penal. Desta forma poderia a
Comissão constatar a inocência da acusada. Solicitou, ainda, que fosse ajuntada ao processo a
folha funcional da acusada, os atestados da supervisora de ensino da 2ª região e da diretora de
ensino Erotides Veras.
Na sua ficha funcional, constam todas as informações profissionais de Maria
Celeste. Nela é possível verificarmos que a mesma foi nomeada em 16 de setembro de 1947
para exercer o cargo de professora de Pré-Orientação Profissional, da cadeira nº 01 no Grupo
Escolar Dom Luiz de Brito, em Afogados da Ingazeira, Sertão do estado, tendo assumido em
13 de outubro de 1947. Consta, ainda, a informação de que a mesma nunca faltou ao
expediente.
A supervisora da 2ª Região, Targélia de Albuquerque Peixoto, informou que
Maria Celeste foi professora de Vitória entre 1959 e 1964, tendo cumprido “com os seus
deveres profissionais, nunca externando, para com os colegas e alunos, quaisquer idéias
políticas, nada constando que abonasse sua conduta.” Erotildes Pires Ferreira Véras, então
responsável pelo Grupo Escolar Carlota Brecknfeld, na cidade de Tabira, informou que
durante o período de 1954 a 1957, quando o grupo estava sob sua responsabilidade, cumpriu
“a referida professora com os seus deveres, inclusive ministrando aulas de catecismo e
desempenhando nas festas cívicas o papel de oradora, nunca externando ideias políticas
contrárias aos princípios cristãos, nada constando que desabonasse sua conduta”.
Em 30 de junho, o relator da Comissão, Francisco Evandro de Paiva Onofre, após
a análise do requerimento da defesa, negou cada solicitação do advogado de defesa, além de
ter considerado que a mesma não formulou “qualquer contradita às testemunhas [...],
limitando-se, apenas, a alegar que os depoimentos constantes destes autos não foram colhidos
para apurar as atividades subversivas por ela praticadas na sua função de professora ou dentro
do âmbito de seu magistério”. Sobre o pedido de “sobrestamento”, afirmou que “não encontra
fundamento em lei”, uma vez que o processo administrativo não tem vinculação com o
processo criminal, sendo “absolutamente autônomo”. Sobre o requerimento de cópias de
peças de ação criminal, não devia ser atendido porque já constava nos autos os depoimentos
132
O que foi acatado por unanimidade pela Comissão composta pelo Desembargador
Euclides Ferraz (Presidente), Francisco Evandro de Paiva Onofre (Relator) e Ten. Cel. João
Antônio Coimbra da Trindade (Membro).
275
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
276
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
133
277
Art. 2º, IV: Tentar subverter, por meios violentos, a ordem política e social, com o fim de estabelecer
ditadura de classe social, de grupo ou de indivíduo. Pena: no caso dos itens I a III, reclusão de 15 a 30 anos aos
cabeças, e de 10 a 20 anos ao demais agentes; no caso do item IV, reclusão de 5 a 12 anos aos cabeças, e de 3 a
5 anos aos demais agentes.
278
Art. 10. Filiar-se ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou clandestinamente, mas sempre de
maneira inequívoca, a qualquer das entidades reconstituídas ou em funcionamento na forma do artigo
anterior. Pena: reclusão de 1 a 4 anos.
279
Art. 11. Fazer publicamente propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou
social; b) de ódio de raça, de religião ou de classe. Pena: reclusão de 1 a 3 anos.
280
Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência. Pena: reclusão de
6 meses a 2 anos.
281
Art. 17. Instigar, publicamente, desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública. Pena:
detenção de seis meses a 2 anos.
282
Art. 34. É circunstância agravante, para os efeitos desta lei, quando não for elementar do crime: a) a
condição de funcionário público, civil ou militar, ou de funcionário de entidade autárquica ou paraestatal.
283
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042. Grifos nossos
134
uma pseudo incapacidade de reflexão crítica sobre as pautas políticas postas pelos
movimentos sociais do campo.
Segue, o Juiz José Albino de Aguiar, citando o Promotor em sua acusação:
E mais adiante diz ainda o dr. Promotor na sua acusação: “Assim é que, como se vê
da prova testemunhal, ‘tentou subverter, por meios violentos, a ordem política e
social, com o fim de estabelecer ditadura de classe ou grupo; fazendo publicamente
propaganda de processos violentos para subversão e de ódio de classe; instigou
publicamente, desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública e, por
fim, ajudou com serviços, ostensivamente, e de maneira inequívoca o
284
funcionamento de partido político dissolvido pela lei.”
284
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
285
Idem.
135
286
Fundo: SSP/DOPS/APEJE. Prontuário individual nº 14042.
287
Idem.
136
O teor dessa carta revela uma mulher com profundo sentimento de injustiça,
parecendo não demonstrar nenhuma confiança no processo conduzido por seus acusadores.
Revela, ainda, muita clareza da delicadeza do momento político e, por isso, não mais disposta
a envolver terceiros como suas testemunhas. É a carta de uma mulher corajosa, resignada e
consciente de que diante das circunstâncias cabia só a ela pagar, ainda que por um crime que
não cometeu.
Em 28 de dezembro de 1966, ela foi posta em liberdade por força de habeas-
corpus.289 A peleja jurídica também teve muita repercussão na imprensa local, assim como
repercutiu no Sudeste do país, especificamente, no Rio de Janeiro, tendo em vista, como
vimos, as denúncias feitas pelo jornal Correio da Manhã acerca das torturas cometidas contra
as(os) presas(os) políticas(os) no estado de Pernambuco e a consequente diligência ocorrida
para a apuração das denúncias. Deteremos, posteriormente, nossas análises nas notícias sobre
as prisões e andamento do processo das acusadas pela imprensa de Pernambuco e do Rio de
Janeiro.
288
Fonte: http://www.dhnet.org.br/memoria/mercia/ditadura/maria_celeste/mariaceleste_120966.html.
289
Fundo: APEJE/Hemeroteca. Jornal do Commercio (JC) - 06/01/1967.
290
Tentar: I - submeter o território da Nação, ou parte dêle, à soberania de Estado estrangeiro; II -
desmembrar, por meio de movimento armado ou tumultos planejados, o território nacional desde que para
impedi-lo seja necessário proceder a operações de guerra; III - mudar a ordem política ou social estabelecida na
Constituição, mediante ajuda ou subsídio de Estado estrangeiro ou de organização estrangeira ou de caráter
internacional.
137
291
Atentar contra a vida, a incolumidade e a liberdade: b) do Vice-Presidente da República, Ministros de
Estados, Chefes do Estado Maior Geral, Chefes do Estado Maior do Exército, da Marinha e da Aeronáutica,
Presidente do Supremo Tribunal Federal e da Câmara dos Deputados, Chefe do Departamento Federal de
Segurança Pública, Governadores de Estados ou de Territórios, comandantes de unidades militares, federais ou
estaduais, ou da Polícia Militar do Distrito Federal, bem como, no território nacional, de representante
diplomático, ou especial, de Estado estrangeiro com o fim de facilitar insurreição armada.
292
Ato Institucional promulgado em 09 de abril de 1964. In: FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões e
controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 339. Grifos nossos.
293
Idem, p. 340.
138
294
Lei de Segurança Nacional de 11 de março de 1967. In: FICO, Carlos. Além do Golpe. Op. Cit., p. 363.
139
públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É
assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos
independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de
295
guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe.”
A “livre manifestação” não podia ser motivada por “inconformismo político-social”, contra
quem exercesse a autoridade, pois agindo assim, estaria infringindo o artigo 29 da LSN. A
“liberdade” era limitada e vigiada.
Também surgiu, nesta nova lei, uma definição mais clara de “propaganda
subversiva” e “guerra revolucionária ou subversiva”. Em seu artigo 3º, afirmava que, “a
segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da
segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e
da guerra revolucionária ou subversiva”,296 compreendendo esta como “o conflito interno,
geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista
subversiva do poder pelo controle progressivo da Nação”,297 punindo tal crime em seu artigo
23 com pena 2 a 4 anos.
Sobre a propaganda subversiva, afirmava, em seu artigo 38, que constituía a
mesma: I. a publicação ou divulgação de notícias ou declaração; II. A distribuição de jornal,
boletim ou panfleto; III. O aliciamento de pessoas nos locais de trabalho ou de ensino; IV.
Comício, reunião de pessoas nos locais de trabalho ou de ensino; V. a greve proibida; VI. A
injúria, calúnia ou difamação, quando o ofendido for órgão ou entidade que exerça autoridade
pública, ou funcionário em razão de suas atribuições; VII. A manifestação de solidariedade a
qualquer dos atos previstos nos itens anteriores. Com pena de 6 meses a 2 anos de detenção.
Uma mudança significativa entre as duas legislações reside no artigo 44,
determinando que
Ficam sujeitos ao foro militar, tanto os militares como os civis, na forma do art. 122,
§§ 1º e 2º, da Constituição promulgada em 24 de janeiro de 1967, quanto ao
processo e julgamento dos crimes definidos neste decreto-lei, assim como os
perpetrados contra as instituições militares.
295
Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Art. 150, § 8º. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm
296
Lei de Segurança Nacional de 11 de março de 1967. In: FICO, Carlos. Além do Golpe. Op. Cit., p. 363.
297
Idem, p. 364.
140
Presidente da República e não mais na mão de juízes comuns que tinham a liberdade de
interpretar a lei, correndo-se o risco de que os “subversivos” fossem inocentados.
Presa desde o dia 01 de abril de 1964, a matéria que noticiou sua prisão foi
publicada no jornal Diario de Pernambuco em 04 de abril do mesmo ano. Com manchete
intitulada “Polícia desarticula células comunistas e apreende armas de Clodomir Morais”, 298 a
matéria informou que a Secretaria de Segurança Pública, continuava em “campanha rigorosa”
aos “ninhos comunistas”. Tais ações teriam sido responsáveis por
prisões em massa e apreensões de documentos que levam a crer que as forças
armadas chegou em tempo de evitar uma revolução em Pernambuco, com total
cobertura das autoridades estaduais.
A maior parte dos extremistas presos, denuncia, através de documentos ou armas
aprendidas em seu poder, que o programa revolucionário em Pernambuco estava em
299
sua fase final.
O objetivo desta matéria, como se vê, era justificar a ação das Forças Armadas e
criminalizar o governo deposto, bem como, as organizações sociais da época, genericamente
chamadas de “comunistas”. Cabe destacar que o porte de armas, neste período, não era
proibido, desta forma, a prisão de pessoas portando armas não necessariamente podia
caracterizar uma evidência de que tivesse sob o poder do acusado uma grande quantidade de
armas, a ponto de abastecer uma organização de guerrilha. Ademais, em nenhum dos
depoimentos lido por nós, consta a declaração de que o programa revolucionário em
Pernambuco estivesse em sua fase final. Quando havia alguma declaração que corroborasse,
de alguma forma, com as acusações da Delegacia Auxiliar, esta era transcrita nas notícias dos
jornais com amplo destaque, o que não foi feito nesta, dando-se, inclusive, o nome do
depoente.
A matéria seguiu informando que Clodomir Morais ainda não teria prestado
depoimento, contudo, não poderia negar a sua participação, tendo em vista as armas e
munições em seu poder. Ademais, este seria um “conhecido agitador e porta-voz de Julião”
tendo sido responsável, juntamente com Maria Celeste e auxiliares do governo Arraes, pela
298
DP, 04/04/1964, Primeiro Caderno, p. 07. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
299
Idem.
141
desordem no Engenho Serra, em Vitória de Santo Antão. Sobre Maria Celeste Vidal,
informou, ainda, que esta se encontrava detida na Delegacia Auxiliar, local onde eram
prestados os depoimentos, sem informar desde quando, e
De joelhos e chorando copiosamente, dizia que fora traída por Arraes e desconhecia
totalmente qual o fim da “embrulhada” em que havia se metido.
As alegações de Maria Celeste são falhas para a polícia, visto que suas atividades
vinham sendo acompanhadas pelo próprio Exército. Em Vitória de Santo Antão,
300
sublevou até as empregadas domésticas.
Nos depoimentos prestados por Maria Celeste, disponíveis nos arquivos do DOPS, não
localizamos o citado depoimento em que ela, supostamente, teria afirmado ter sido traída por
Miguel Arraes.
Em 07 de abril, em matéria intitulada “M.C.P. Gastava 56 Milhões Por Mês E
Pagava Apenas 10 Mil Às Professoras”301, o Diario de Pernambuco, informou que nesta
data os inquérito instaurado contra Maria Celeste seriam apresentado à Justiça, contendo uma
“farta documentação” e “robusta” prova testemunhal. Sobre isso, disse, ainda, que centenas de
pessoas teriam se deslocado até à Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão, com a
finalidade de falar sobre as atividades subversivas da acusada. O que chama atenção nesta
matéria, é que não há nenhuma relação entre Maria Celeste e o MCP, mas, ao informar, em
notícia que sugere o mau uso dos recursos desta instituição, tentou-se associar, também, uma
conduta ilícita da referida acusada.
Posteriormente, em 11 de abril do mesmo ano, novamente tentou-se associar
Maria Celeste ao desvio ou má gestão de recursos públicos. Com manchete intitulada:
“Professora Maria Celeste confessa: era paga pelo Estado para agitar em Vitória”, a
matéria seguia informando que os inquéritos iniciados em 01 de abril estavam sendo
concluídos e que Maria Celeste foi a primeira mulher a ser apresentada à justiça comum.
300
DP, 04/04/1964, Primeiro Caderno, p. 07. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
301
DP, 07/04/1964, Primeiro Caderno, p. 07. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
142
302
DP, 27/05/1964, Primeiro Caderno, p. 07. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
Grifos nossos.
303
Idem.
144
Amaro Silva, ex-funcionário da CRC, Aloisio de Oliveira Lins e o de Maria Celeste, que foi a
única a ser demitida sumariamente:
[...] A Comissão de Investigação opinou pela aposentadoria do Juiz João Batista
Neto e do funcionário José Amaro da Silva, com direito a vencimentos e vantagens
proporcionais ao tempo de serviço. Com relação à professora Maria Celeste Vidal,
que esteve envolvida em agitação no interior do Estado, conforme colheu a
304
reportagem, foi sugerida sua demissão sumária.
304
DP, 02/07/1964. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
145
entidade como um “chamariz para os estudiosos e campo são para os ‘agentes’ vermelhos”.
Segundo o relatório do Delegado, a escolha de Luiz Iglesias, médico, de “alto grau de cultura”
e “desconhecido” das autoridades policiais no que se refere a uma militância política, seria
uma forma de o PCB burlar a polícia.
Na diretoria, contudo, aparecem Maria Celeste Vidal, Adalgiza Cavalcanti, Djaci
Magalhães, Eliazer Machado, Geraldo Menucci, Gilvan Melo, Jarbas de Holanda, Miguel
Dalia, Miguel Batista, Paulo Loureiro, Vernier Macedo e outros “destacados agentes do
comunismo” que, segundo a reportagem, já teriam sido prontuariados na Delegacia Auxiliar.
A tentativa de criminalizar os movimentos e comprovar que em Pernambuco
havia uma revolução comunista em curso, foi uma tarefa bem empenhada pelo Diario de
Pernambuco. Em todas as matérias, especialmente as que noticiavam, ou transcreviam as
acusações feitas pela Delegacia Auxiliar contra os(as) presos(as) políticos(as) ligados às Ligas
Camponesas, buscou-se enaltecer o porte de arma, formação de guerrilha e viagens a Cuba
feitas por seus integrantes, bem como a atuação de membros da Polícia Militar que, com a
suposta conivência do governo de Miguel Arraes, articulou-se junto aos camponeses.
Foi o que ocorreu na matéria publicada em 14 de outubro de 1964. 305 Nela,
informou o periódico que o Cel. Silvio de Melo Cahu, comandante geral da Polícia Militar,
enviou à 7ª RM o inquérito que apurou as supostas atividades subversivas desenvolvidas
dentro do governo Arraes. Neste processo, 32 militares, incluindo o ex-comandante Hangho
Trench juntamente com nove civis, foram acusados de serem elementos que ligavam os
comunistas da PM aos setores das Ligas Camponesas. Também figurava neste grupo, o ex-
delegado de Vitória de Santo Antão, tenente Rodrigues da Cunha Cavalcanti que, juntamente
com Luiz Serafim e Maria Celeste Vidal, foram os responsáveis pela resistência, naquele
Município, ao golpe de 1964.
Em matéria publicada no ano seguinte, intitulada: “Camponês acompanhou, de
perto, as atividades subversivas do Tenente Edvaldo, da Polícia Militar”, mais uma vez o
Diario de Pernambuco se empenhou em associar o referido tenente à tomada da rádio e
confirmar, assim, o perigo que representava à sociedade pernambucana, esses “subversivos”.
Segundo o depoimento de João Francisco da Silva, ex-delegado do Sindicato Rural de
Vitória, no dia 01 de abril de 1964, atendendo ao pedido de Maria Celeste, do tenente Edvaldo
e de Luiz Serafim, mais de 200 camponeses se reuniram ao grupo no Engenho Velho, em
Vitória de Santo Antão, onde foram informados sobre a prisão de Miguel Arraes e que
305
DP, 14/10/1964 – Segundo Caderno, p. 04. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
146
306
Jornal Correio da Manhã, RJ-04/11/1964, p. 01. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
147
enunciava os crimes aos quais a ré foi acusada, sem, contudo, omitir os argumentos de sua
defesa.
Em 1965, ano em que Maria Celeste foi julgada e condenada, o referido jornal
trouxe duas matérias sobre o tema. A primeira, publicada em 23 de março, intitulada
“Subversão condena mulher em Recife”:
A ex-professôra do Estado e ex-líder das Ligas Camponesas em Vitória de Santo
Antão, Maria Celeste Vidal Bastos, converteu-se esta semana na primeira pessoa a
ser condenada por crime de subversão, neste Estado, e possivelmente em todo o
Brasil.
No processo, que ocorreu à sua revelia, apesar de ela estar recolhida à Casa de
Detenção do Recife, o juiz José Albino de Aguiar, da Comarca de Vitória de Santo
Antão, condenou-a a um total de seis anos e cinco meses de prisão, assim divididos:
quatro anos e sete meses por inclusão nos arts. 11 e 12 da Lei de Segurança
Nacional e mais um ano e oito meses de conformidade com o que preceitua o art. 17
da mesma lei.
É, ao lado do governador deposto Miguel Arraes de Alencar, a mais antiga
307
presa política existente em Pernambuco.
307
CM-RJ, 23/03/1965, p. 02. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional. Grifos nossos.
148
A reportagem trouxe, ainda, uma carta de Maria Celeste, onde a mesma respondeu
às perguntas formuladas pelo jornal. Afirmou ela que foi presa no dia 1º de abril de 1964 e
separada de seus três filhos menores que “encontram-se desassistidos” e, como ela, “passando
as piores privações”. Denunciou que estava praticamente incomunicável, uma vez que não
tinha familiares em Recife e seus parentes que aqui residiam não obtiveram autorização para
visitá-la, tendo visto os filhos apenas uma vez, durante todo o ano de 1964, uma vez que os
mesmos encontravam-se no alto Sertão do estado, em casa de parentes. Ainda segundo Maria
Celeste, nenhuma das acusações feitas contra ela foi provada.
Terminou a carta com um apelo:
149
Sendo possível, protestem por mim, pelos meus filhos, pois não suportamos mais
viver separados. Não perderei, porém, a visão das coisas e confio no futuro.
O apoio que peço é necessário não tanto por mim, mas pelas centenas de outros que
aguardam sentenças injustas como estas.
Agradeço e confio que em manchete será publicada essa sentença, para que a
308
“revolução” e as “machadeiras” corem de vergonha.
A carta de Maria Celeste, assim como ela pediu, teve o destaque merecido. Fora
publicada na segunda página do Primeiro Caderno do jornal Correio da Manhã. Suas palavras
chamam a atenção pela lucidez e força, mesmo diante das circunstâncias adversas. Pede que o
apelo seja, não somente para ela, mas por todos que estavam, assim como ela, submetidos ao
julgamento feito por um sistema judicial injusto e ilegal, uma vez que referendava uma
ditadura, instaurada sob as armas e imposta à força, dando ares de legalidade com seus
processos infundados e forjados. Ainda fez referência às “marchadeiras”, mulheres que foram
às ruas nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, bradando contra o pseudo “governo
comunista” de João Goulart.
Dois dias depois, em 25 de março, o mesmo jornal trouxe uma nota intitulada
“Revelia”, onde fez-se uma referência ao julgamento à revelia de Maria Celeste e do padre
Alípio de Freitas, que fora julgado e condenado mesmo estando fora do país. Segundo a
matéria, a condenação de padre Alípio de Freitas, o transformou no primeiro sacerdote
condenado por um Tribunal de Justiça Militar em tempos de paz e sem que tenha sido
declarado o Estado de sítio ou de guerra. Ele fora condenado a 24 anos de prisão no mesmo
dia em que Maria Celeste foi condenada “por sua liderança de um sindicato de camponeses
[que] tinha ou teria ameaçado a estrutura social existente na comarca de Vitória de Santo
Antão”.309
De acordo com o jornal, apesar de muito diferentes pela natureza dos crimes e
pela categoria das justiças, uma vez que o sacerdote fora condenado pela Justiça Militar e
Maria Celeste pela justiça comum, os processos de ambos possuiam semelhanças “aparentes
ou reais”. A natureza do crime de Maria Celeste, contudo, não ficou clara, uma vez que as
atividades do sindicato de camponeses baseavam-se na Lei Fernando Ferrari, que continuou
em vigor após o golpe de Estado, sendo sindicatos fundados pela lei para substituir as
atividades não legalizadas das Ligas Camponesas. No caso de Alípio de Freitas, a condenação
sem que fosse ouvido o réu e testemunhas de defesa não ficou esclarecido.
308
CM-RJ, 23/03/1965, p. 02. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional. Grifos nossos.
309
CM-RJ, 25/03/1965. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
150
Talvez o tribunal responda que não foi possível ouvir a principal testemunha de
defesa, isto é, o próprio réu, porque este se encontra asilado no México. Com efeito,
o padre foi julgado e condenado à revelia. Mas esse fato lembra, mais uma vez, o
processo da ex-professôra Maria Celeste Vidal Bastos: pois esta também foi julgada
à revelia, embora não se encontrando no estrangeiro; está prêsa na Casa de Detenção
do Recife, cuja direção não lhe permitiu defender-se no processo contra ela
movido.
A Justiça, no Brasil, julga “em nome do Povo”. Passou agora, em certos setores
310
militares, a julgar à revelia das leis.
310
CM-RJ, 25/03/1965. Segundo Caderno, p. 06. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
Grifos nossos.
311
DP-14/05/1965. Primeiro Caderno, p. 05. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
312
DP-25/05/1965. Segundo Caderno, p. 06. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
313
Última Hora-RJ, 01/10/1965, p. 06. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
314
Clodomir Alcoforado Leite nasceu em Vitória de Santo Antão-PE, bacharel pela Faculdade de Direito de
Recife. Atuou como jornalista, colaborando com a imprensa de Pernambuco e, posteriormente, assinou uma
coluna no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro. Em outubro de 1962, foi eleito deputado federal por
Pernambuco pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assumindo o mandato em fevereiro do ano seguinte.
Fonte: CPDOC.
151
Iniciou a carta afirmando ser presa política desde o dia 01 de abril de 1964 e
alegando que o que sofreu foi uma “história longa de torturas e vexames”, porém disse não se
importar com a crueldade com que foi tratada, mas sim, com relação aos seus filhos Max,
Mércia e Murilo “estupidamente arrancados” de seu “amor e assistência, jogados, por
caridade e por vezes passando toda sorte de privações”.
Informou que atuou como professora por quinze anos, tendo dirigido grupos
escolares por duas vezes, com uma ficha profissional limpa e que, mesmo assim, foi demitida
sumariamente, em 03 de julho de 1964, três meses após sua prisão, por força do Ato
Institucional, sem direito à defesa, enquanto encontrava-se presa e incomunicável. Sobre sua
sentença, afirmou que foi “condenada pelo juiz de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, José
152
Albino de Aguiar, a cumprir pena de seis anos e três meses de cadeia, juízo baseado em “ouvi
dizer”, e depois de quase um ano de prisão preventiva decretada”.
Afirmou, ainda, que “em nenhuma ocasião, perdi a dignidade, tive medo ou
acusei; não, assumi diante de todos tôda a responsabilidade dos meus atos, pois todos êles
foram fundamentados na verdade, no amor ao próximo e contra a injustiça”.315 Tal afirmação
demonstra, mais uma vez, a firmeza ideológica da militante política que, mesmo diante de
toda a tortura física e psicológica que sofreu, se mostrava fiel aos seus ideais de justiça e
dignidade diante de seus algozes.
A matéria finalizou informando que a mesma “foi uma das principais vítimas da
inquisição instalada na Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, tendo sido submetida
a tôda sorte de torturas e vexames”, após o julgamento sumário realizado em Vitória de Santo
Antão.
Em 17 de setembro de 1966, o Diario de Pernambuco novamente noticiou
matéria com o objetivo de reafirmar o perigo que representava Maria Celeste para a sociedade
pernambucana, em virtude de sua suposta atuação “subversiva”. Em manchete intitulada
“AUDITOR ACEITA NOVA DENÚNCIA CONTRA COMUNISTAS: AGITAVAM OS
MEIOS RURAIS”, informou que o Auditor Amilcar Cardosi de Menezes, aceitou “outra
denúncia contra 20 pessoas acusadas de subversão nas áreas rurais” e “entre os réus figuram a
professora Maria Celeste Vidal Bastos, acusada em mais de um processo. Era auxiliar do ex-
deputado Francisco Julião.”
Segundo a matéria, ela, juntamente com Luis Serafim e a conivência do delegado
de polícia de Vitória de Santo Antão, o tenente Edvaldo Rodrigues da Cunha Cavalcanti, foi a
“responsável pela tomada de uma emissora na cidade de Vitória de Santo Antão, no dia 01 de
abril, passando a estação a irradiar mensagens comunistas”.
A ocupação de uma emissora rádio, para denunciar o golpe de Estado, a prisão do
então governador Miguel Arraes e a convocação da resistência à ação militar, torna evidente
que a ação dos golpistas não foi aceita passivamente. Fica claro que uma parcela da população
resistiu ao golpe, o que põe em xeque a versão dos militares golpistas de que os mesmos
atenderam um “chamado da população”.
Em 10 de dezembro de 1967, o Diario de Pernambuco informou que a mesma
teve o habeas corpus concedido pelo STF, tendo sido solta em 28 de dezembro daquele
315
Última Hora-RJ, 01/10/1965, p. 06. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
153
mesmo ano, como vimos anteriormente. O STF não reconheceu a pena imposta pela Comarca
de Vitória e reduziu a sua pena para um ano de três meses de prisão.
A diferença de abordagem entre o periódico pernambucano e o carioca é muito
significativa. Em nenhuma das matérias publicadas pelo Diario de Pernambuco cita o fato de
Maria Celeste ser mãe de três filhos. Só merece destaque a interpretação do jornal sobre sua
atuação política perigosa. Uma mulher de conduta “desviante”, que rompeu com o pacto
social em todos os sentidos: o que se propõe a manter o status quo e o que define socialmente
o lugar da mulher. O jornal Correio da Manhã, por sua vez, informava a luta de uma mãe
afastada dos seus filhos que travava uma dupla batalha contra a injustiça: a injustiça que a
condenou sem o amplo direito de defesa e a que lhe afastou de seus filhos e os colocou em
uma situação de risco, longe da mãe, sofrendo com a ausência desta, espalhados em casas de
parentes, expostos a constrangimentos, impedidos de visitá-la e sofrendo privações materiais.
316
DP, 05/04/1964, Segundo Caderno, p. 06. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
317
DP, 10/04/1964, Primeiro Caderno, p. 05. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
154
criminosas. Eis a oportunidade que oferecermos para alguns recordar o passado:” E seguiu
transcrevendo a íntegra da mesma matéria publicada em 19 de março de 1964.318
As matérias do Diario de Pernambuco mostram, claramente, o compromisso deste
órgão da grande imprensa pernambucana com o status quo. Este jornal serviu de porta voz da
ditadura, publicando manchetes tendenciosas e com o objetivo claro de condenar
publicamente os(as) acusados(as) de “subversão” pela ditadura. Fica clara, assim, a atuação
dos grandes grupos empresariais no apoio e sustentação do Estado ilegal imposto à força a
partir de abril de 1964.
Contudo, com relação ao processo de Naíde Teodósio, percebemos que o
periódico ainda se deu ao trabalho de publicar informações oferecidas pelo seu advogado e,
até, trechos de depoimentos da acusada defendendo-se. Espaço esse que não foi dado a Maria
Celeste, como dito anteriormente. Talvez o fato de Naíde Teodósio gozar de posição
privilegiada, econômica e socialmente, por ser médica e professora de nível superior, tenha
inibido o jornal em tratá-la como tratou as(os) demais presas(os) políticas(os) que não
estavam na mesma posição social que ela.
Em matéria publicada em 18 de agosto de 1964,319 o jornal trouxe a seguinte
manchete: “Médica Naíde afirma ser nacionalista e pacifista, mas não agitadora
vermelha”. Já no título da matéria o jornal traz a voz de Naíde Teodósio em sua própria
defesa. No corpo do texto, informou que a mesma era “signatária de vários manifestos
subversivos” e teria passado a colaborar mais assiduamente junto aos comunistas. Assim
como em outras matérias, transcreve, na íntegra, o documento da Delegacia Auxiliar que
apresentava as razões de sua prisão preventiva.
318
DP, 19/03/1964, Primeiro Caderno, p. 03. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
319
DP, 18/08/1964, Primeiro Caderno, p. 07. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
155
Em seguida, trouxe a fala de Naíde Teodósio, que afirmou nunca ter assinado
manifestos comunistas, mas, sim, manifestos pela Paz Mundial e pela concórdia dos povos,
negou ter participado de Associações de Bairros, assim como negou conhecer Gildo Rios,
afirmou não ter achado justa a decisão das Forças Armadas em 31 de março e denunciou as
condições em que foi efetuada a sua prisão, tendo sido sequestrada da Casa de Detenção,
levada ao Comissariado da Caxangá, onde foi ameaçada pelo comissário Moisés. Negou ter
cometido qualquer atividade subversiva e declarou-se nacionalista, sendo a forma correta de
expressar tal nacionalismo, em sua visão, dentro de sua função enquanto professora e nos
serviços públicos, dando toda a sua energia para a realização do bem comum.
Informou, ainda, que a audiência da acusada foi acompanhada pela sua família e
advogado, que estava empenhado em conseguir garantias efetivas para que a mesma
respondesse ao processo em liberdade.
Em 03 de abril de 1965, após o julgamento e absolvição de Naíde Teodósio, o
jornal carioca Correio da Manhã publicou a seguinte manchete: “Juiz quer médica na
cadeia”, onde informou que o Juiz da 3ª Vara Criminal do Recife decretou a sua prisão
preventiva, mesmo após a sua absolvição em novembro de 1964, motivo pelo qual a mesma
encontrava-se detida na Delegacia Auxiliar.
Segundo o jornal, “a acusação que pesa contra a dra. Naíde é a mesma que
motivou o processo em que foi absolvida o ano passado, após passar detida seis meses e 18
dias: ‘organizar um esquema comunizante no âmbito dos Círculos educativos operários do
Recife.”320 A notícia sobre esse novo processo só foi veiculada na imprensa pernambucana
em 14 de abril de 1965, sob a manchete: “Interrogados na Justiça implicados em
Subversão”, em que informou que o juiz da 3ª Vara, Nelson Arruda, havia iniciado em 13 de
abril o interrogatório dos acusados de “subversão” no SSCM. Apesar de além de Naíde
Teodósio, Ivo Valença e mais 23 pessoas estarem respondendo ao processo para apurar o
suposto crime de subversão no SSCM, a matéria deu destaque, apenas, ao depoimento de
Naíde Teodósio, informando que a mesma, além de negar estar “integrada na linha
esquerdista”, teria tecido elogios a Miguel Arraes, classificando-o como “pessoa de bem a
toda prova, um idealista de valor”.
A matéria conclui com a transcrição do indeferimento do promotor Julio
Vasconcelos, da 4ª Vara, sobre o pedido de seu advogado para a exclusão de seu nome deste
novo processo, uma vez que a mesma havia sido absolvida. Segundo o promotor,
320
CM-RJ, 03/04/1965, Primeiro Caderno, p. 02. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
156
321
DP, 14/04/1965, Primeiro Caderno, p. 03. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
157
Tôda voltada para a pesquisa científica, a Drª Naíde nunca viveu em meios políticos.
Mas durante o Govêrno de Arraes, por tratar-se de profissional respeitabilíssima,
foi-lhe entregue o estudo dos problemas dos mocambos – problemas gravíssimos de
higiene, como sabem os leitores. Por isto – e porque, segundo a acusação uma
revista soviética transcreveu um artigo seu sobre fisiologia – a Drª. Naíde foi prêsa
em abril de 1964, junto com seu marido Dr. Bianor Teodósio, e dois dos seus quatro
filhos (um deles menor de 21 anos). Os outros filhos menores do casal foram postos
na rua, em plena noite, quando a casa da Drª Naíde foi interditada. Mais tarde
verificou-se que essa interdição era parcial, pois alguém encarregou-se de “limpar” a
casa: geladeira, ar condicionado, diversos objetos de uso doméstico e pessoal e um
microscópio que a Drª. Naíde Teodósio recebera numa homenagem médica foram
322
varridos por engano.
A outra presa que teve seu pedido de habeas-corpus julgado no mesmo dia que
Naíde Teodósio e que foi objeto de denúncia da jornalista em sua coluna, foi a militante do
Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), a jovem menor de idade Sylvia de
Montarroyos. Ela foi presa em novembro de 1964, brutalmente torturada e internada no
Manicômio Judiciário de Pernambuco, diagnosticada com esquizofrenia, em virtude das
torturas físicas e psicológicas a que foi submetida. Segundo a colunista Thereza Alvim,
A observação da paciente (obrigatoriamente feita pelo mesmo médico que assinou o
diagnóstico) seria modificada por interêsse dos seus carrascos. Não tenho acesso a
prova semelhante. Mas deve haver quem possa verificar a sua veracidade,
324
comparando a grafologia da observação e do diagnóstico.
Essa grave denúncia efetuada pela imprensa carioca, é mais uma prova da falsa aparência de
legalidade por trás dos trâmites burocráticos da ditadura militar instaurada no Brasil a partir
de abril de 1964.
Em 30 novembro de 1966, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, informou, em
matéria referente ao julgamento do habeas-corpus de Gregório Bezerra, que o Supremo
Tribunal Militar julgaria o pedido do advogado de Naíde Teodósio, para que a mesma fosse
excluída do processo a que respondia na 7ª Região Militar, em Pernambuco, uma vez que já
322
Última Hora, RJ. 29/04/1965, p. 03. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
323
Última Hora, RJ. 29/04/1965, p. 03. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional. Grifos
nossos.
324
Última Hora, RJ. 29/04/1965, p. 03. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
158
tinha sido julgada e absolvida. Com amplo espaço para os argumentos da defesa, trouxe
afirmação do advogado da mesma que informou que
segundo o promotor Francisco de Paula Acciolly, é acusada de ser comunista e ter
dirigido um grupo de trabalho do SSCM, tendo recuperado centenas de famílias
desajustadas. Este trabalho foi considerado como aliciamento para as suas ideias
325
subversivas.
325
CM, RJ, 30/11/1966, Primeiro Caderno, p. 08. Hemeroteca Digital Brasileira. Fundação Biblioteca Nacional.
326
Apud: LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.)
Fontes Históricas. Op. Cit., p. 118.
159
Considerações finais:
Segundo Eric Hobsbawm (1998), o que se quer com a história dos movimentos
populares “é explorar uma dimensão desconhecida do passado”.327 Desta forma procuramos,
neste trabalho, apresentar um aspecto praticamente não considerado nos estudos sobre o golpe
militar de 1964 e o período ditatorial que o sucedeu, qual seja, como se deu a repressão às
mulheres que estavam inseridas nos diversos movimentos sociais da época e, por conseguinte,
figuravam como opositoras ao governo golpista que se instalava.
A violência aplicada contra essas mulheres atingiu níveis absurdos, o que nos
permite considerar que foi a violência brutal quem garantiu a consolidação da ditadura já no
seu momento inicial, bem como que esta não se deu somente após o recrudescimento da
repressão em 1968. Contudo, a violência institucional, que estava na gênese do golpe, não
impediu que essas mulheres, inseridas nos diversos movimentos sociais em que atuavam,
assistissem passivamente ao movimento golpista. É assim que Maria Celeste não só resiste ao
golpe, como é uma das líderes que convoca os(as) trabalhadores(as) para a resistência.
Apesar de ter sido uma das líderes das Ligas Camponesas, gozando de prestígio
entre os camponeses e com capacidade de dirigir mais de quinhentas pessoas, tanto no
trabalho de organização, quando nas atividades práticas de divulgação e educação, conforme
destacou Clodomir Morais,328 Maria Celeste não é lembrada nos estudos acerca das Ligas
Camponesas.
Segundo Joseph Page,329 ela era a responsável por coordenar a agitação, junto
com um estudante de Direito, que consistia principalmente na invasão de engenhos. De
acordo com os documentos produzidos pelo aparelho de repressão do Estado, muitos dos
quais produzidos antes do golpe, Maria Celeste é apontada como o “braço direito” do então
Deputado Francisco Julião. Segundo jornalista do Jornal do Commercio, correspondente na
cidade, foi a partir do governo de Miguel Arraes que Maria Celeste passou a ter atuação mais
“eficiente”, pregando em seus discursos a reforma agrária radical, mesmo com derramamento
de sangue.
A historiografia, por sua vez, “esquece” Maria Celeste. Como destacou a
historiadora Michele Perrot, “no teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra”.330
327
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 216.
328
MORAIS, Clodomir Santos de. História das Ligas Camponesas do Brasil. Brasília: Iattermund, 1997.
329
PAGE, Joseph. A Revolução que nunca houve: o Nordeste do Brasil (1964-1985) Rio de Janeiro: Record,
1972, p. 194.
330
PERROT, Michele. Minha história das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2015, p. 22.
160
Assim, a atuação de Maria Celeste nas Ligas Camponesas, embora tenha sido,
exaustivamente, noticiada pela imprensa de Pernambuco para incriminá-la e comprovar a sua
periculosidade perante a sociedade, parecem não merecer o devido destaque na historiografia,
que a silencia em seus estudos acerca das Ligas Camponesas. Nem mesmo a sua atitude de
tomar a rádio local de Vitória de Santo Antão para convocar a resistência ao golpe militar, foi
tratado com relevância pela historiografia, apesar de ser uma ousada e incontestável ação de
resistência, ainda nas primeiras horas do golpe. Ousadia essa semelhante ao que fez Carlos
Marighela, cinco anos depois, em 15 agosto de 1969, ao tomar a Rádio Nacional para que
fosse realizada a leitura de um manifesto e que tem o devido reconhecimento histórico.
Ao traçarmos o perfil das mulheres que militavam antes do golpe e que tiveram
suas liberdades cerceadas tão logo se instaurou a ditadura, buscamos contribuir com a
historiografia especializada, preenchendo uma lacuna sobre a atuação política dessas
militantes. Bem como nas reflexões acerca da resistência ao golpe de Estado e a violência que
se abateu imediatamente após este, procurando fazer uma análise inserida na concepção de
uma “história dos movimentos populares” ou “história vista a partir de baixo”, na formulação
de Eric Hobsbawm.
Após a análise dos processos, fica claro que a justiça foi utilizada para dar
legitimidade ao golpe, para conferir ares de legalidade, de manutenção do direito de defesa.
Contudo, vimos que, na prática, não foi bem assim. Apesar de as denúncias serem facilmente
contestadas, sem que necessariamente fosse questionada a legitimidade da chamada
“Revolução”, como fez brilhantemente o advogado de Naíde Teodósio, esse processo foi uma
exceção que confirmou a regra. E a regra, neste período, foi a da ilegalidade, do autoritarismo
e do arbítrio.
Pela sentença do Juiz que julgou o processo de Naíde Teodósio, ficaram
comprovadas todas as ilegalidades do processo apresentadas por sua defesa; entretanto,
diversos outros seguiram os mesmos trâmites e suas sentenças reafirmaram a injustiça de suas
alegações. Como foi o caso do processo contra Maria Celeste Vidal. Ademais, cabe ressaltar
331
WOLFF, Cristina Scheibe. Em armas: Amazonas, soldadas, sertanejas, guerrilheiras. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. (orgs.) Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012, p. 423.
161
que gozava Naíde Teodósio, de muito prestígio e notoriedade tendo, inclusive, suas acusações
seguido um padrão diferente das demais: enaltecia-se a sua atuação política perigosa sem,
contudo, manchar sua imagem ou questionar a sua capacidade profissional. Buscou-se,
minimamente, robustecer as acusações e seguir as regras “legais”, dentro do marco possível
da ilegalidade instaurada com um golpe de Estado e a implementação de uma ditadura.
Permitiu-se, por exemplo, o direito à defesa, que não foi plenamente assegurado à Maria
Celeste e tantas(os) outras(os) presas(os) que tiverem seus processos julgados e condenados à
revelia.
Desta forma, a afirmativa de que durante o primeiro governo ditatorial -quando a
Constituição foi mantida e direitos básicos, como o habeas corpus, ainda não tinham sido
usurpados pela promulgação do Ato Institucional nº 05 (AI-5) -, não havia uma ditadura
propriamente dita, mas sim, um Estado autoritário, não se sustenta, uma vez que, como vimos,
a justiça foi utilizada ao bel-prazer dos generais e empresários, beneficiários do regime. A
aparente “legalidade” foi mantida até que não fosse mais suportável a manutenção da “face
legal” e, assim, partiram para a ilegalidade brutal, modificando a Constituição e decretando
uma nova Lei de Segurança Nacional, que não deixasse brechas para a abertura de
precedentes como o representado pelo processo de Naíde Teodósio.
Mais de cinquenta anos depois do golpe militar e mais de trinta anos do fim da
ditadura militar, com uma vasta literatura sobre o tema, escrita não apenas pela memória dos
que viveram o período, mas por jornalistas e, sobretudo, historiadores, é possível que alguém
defenda que não há mais o que se dizer, não há mais o que se pesquisar, não há mais o que, do
ponto de vista do papel do historiador, se problematizar e tentar contribuir para fazer vir à
tona novos elementos reveladores deste período tão relevante de nossa história.
No entanto, ao nos debruçarmos nesta pesquisa, fomos percebendo quanto ainda é
preciso estudar, debater, pesquisar e produzir trabalhos, no campo historiográfico, sobre esta
temática e, em especial, sobre a atuação das mulheres durante o período da ditadura militar.
Essa reflexão fica evidente ao nos depararmos com uma placa afixada nas dependências da
extinta Casa de Detenção do Recife, atual Casa da Cultura, cujo objetivo é fazer não apenas
uma homenagem, mas um registro histórico das prisões políticas dos “homens valorosos” que
ocorreram naquele lugar durante a ditadura, sem, contudo, contemplar a marca que deve ter na
memória histórica a existência das presas políticas do Raio Leste daquela prisão.
162
Placa do Projeto Marcas da Memória, do Governo Federal, em homenagem aos “homens” que
cumpriram pena na Casa de Detenção do Recife. Nota-se a completa ausência de menção às mulheres,
“lutadoras e valorosas” que, também engajadas na construção de uma sociedade mais justa e humana,
foram encarceradas e sofreram toda sorte de tortura nas dependências da extinta CDR.
163
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169
ANEXOS:
Anexo 03: Prontuário de Eva Laci Camargo Martins – “Célia Lima” na Casa de Detenção do Recife
Anexo 07: Ofício da Delegacia Auxiliar, solicitando que Naíde Teodósio e Eva Laci Camargo Martins – “Célia
Lima” – fossem entregues à escolta, mas sem dizer para onde seriam levadas. De acordo com o processo de
Naíde Teodósio, naquela mesma data, 04 de junho de 1964, ela foi sequestrada da CDR e enviada ao
Comissariado da Caxangá onde foi torturada. Tal afirmação também pode ser encontrada nas memórias de
Paulo Cavalcanti.
173
Anexo 08: Carta de Maria Celeste Vidal solicitando atendimento médico, em 23 de março de 1965.
Consta despacho informando que a solicitação foi atendida, mas o atendimento não foi realizado
porque a mesma recusou ser escoltada pelo soldado que foi designado para acompanhá-la.
Anexo 09: Fachada da cela 106 do Raio Leste Anexo 10: Área interna da cela 106
Consta na placa - ao lado da grade de entrada da cela - em homenagem aos 17 anos da Casa da Cultura, em 1993:
“Esta cela se encontra em seu estado original. Hoje, ela é apenas uma lembrança viva dos tempos em que suas paredes
limitavam a liberdade de muitos.
Os desenhos nela expostos, de autoria desconhecida, são como cicatrizes de um tempo que não deverá voltar.
Fernando Gomes F. Neto”