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Livro Crônicas Ambientais - Ricardo Braga

Ricardo Braga é um mestre e doutor em Ecologia que exerce a graduação e pesquisa na área de Ecologia. Ele é membro de várias instituições ambientais como a Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Pernambuco e o Conselho Estadual de Meio Ambiente.

Enviado por

Isla Bastos
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Livro Crônicas Ambientais - Ricardo Braga

Ricardo Braga é um mestre e doutor em Ecologia que exerce a graduação e pesquisa na área de Ecologia. Ele é membro de várias instituições ambientais como a Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Pernambuco e o Conselho Estadual de Meio Ambiente.

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Ricard

Braga
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Admin
Assoc
Irmão
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
Profª. Maria José de Sena — Reitora
Prof. Marcelo Brito Carneiro Leão — Vice-Reitor

Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas


Profa. Betânia Cristina Guilherme - Coordenadora
Profa. Karine Matos Magalhães - Vice-coordenadora
Departamento de Biologia
Profa. Maria de Mascena Diniz Maia - Diretora Pró-Têmpore

Capa: Cristovam Antonio Araujo Segundo

Ficha catalográfica

B813c Braga, Ricardo Augusto Pessoa


Crônicas ambientais para a disciplina prática de
Ecologia / Ricardo Augusto Pessoa Braga; organizadora
Carmen Roselaine de Oliveira Farias. – Recife : EDUFRPE, 2013.
80 p.
Material paradidático.

1. Crônicas 2. Ecologia 3. Educação ambiental I. Farias,


Carmen Roselaine de Oliveira, org. II. Título

CDD 574.5

ISBN 978-85-7946-136-1
Sumário

5 Apresentação
7 Introdução

As crônicas
13 A convergência dos paralelos
15 Carnaval do caranguejo-uçá
17 Florestas urbanas I: o diálogo com a vizinhança
19 Florestas urbanas II: conhecer para conservar
21 Poluição sonora I: incômodo de vizinhança
23 Poluição sonora II: dá pra acabar com ela
25 Discutindo a biopirataria
27 Dengue: doença socioambiental
29 Alagamentos e inundações
31 Parque dos Manguezais
33 Uma festa para licenciar
35 Vasconcelos Sobrinho: a dimensão de um homem
38 (Re) naturalizar o Recife?
40 Renaturalizando o riacho Parnamirim
42 A árvore de Júlia
44 Biologia, meio ambiente e cidadania
46 A termodinâmica na natureza
48 A termodinâmica na ecologia industrial
50 Está faltando água
52 O ecólogo Darwin
54 Jardins botânicos
57 Cidadania ecológica nas compras
59 Veneno na boca
61 Capibaribe, o rio das capivaras e
da integração pernambucana
63 Capibaribe das águas limpas, por que não?
65 Embates ecológicos sobre Suape
69 O manejo da caatinga
71 Meio ambiente do Nordeste
na visão de Gilberto Freyre
73 O papel das florestas na vazão dos rios
75 Implicações do Novo Código Florestal
para Pernambuco
77 Nascentes de vida
79 Cai, cai, tanajura...
81 Natureza e cultura
84 Não pise nas formigas
86 Esclerose das artérias urbanas
88 Água de comer
90 Gestão ambiental de Aldeia
94 A diversidade é base da estabilidade
96 Capibaribe navegável
99 Água em leito seco do Capibaribe

Sugestão de Atividade
105 Atividade: Nossas Crônicas Ambientais
Apresentação

O que Literatura tem a ver com Ecologia? Entre muitos ar-


gumentos que poderia utilizar, escolho um que considera a
obra literária uma forma de conhecimento e de encontro com
o mundo, capaz de abrir inumeráveis possibilidades de inter-
pretar a realidade e a nós próprios. Por sua vez, constituída
pela junção dos vocábulos gregos oikos que significa mora-
da, casa, e logos que significa tratamento sistemático de um
tema, a palavra ecologia evoca, em um sentido abrangente, a
força do modo humano de compreender e habitar o mundo.
No plano da subjetividade, ela articula ética e estética, que
permitem a própria reinvenção do sujeito como “sujeito eco-
lógico”, ou seja, orientado por ideais de harmonização pesso-
al, da sociedade e das relações com seus ambientes.
Trazida para o campo da criação literária, a ecologia eclo-
de em múltiplos sentidos, visto que provém de algo que nun-
ca se esgota: a linguagem e a imaginação. No texto literário é
liberada energia para o leitor, ouvinte ou aluno ampliar seu
conhecimento e percepção do mundo. Por meio da literatu-
ra são ativadas habilidades, estabelecem-se diálogos, produ-
zem-se interpretações e sentimentos que contribuem para
percebermos mais a vida fora e dentro de nós mesmos.
É com o intuito de compartilhar a experiência de unir eco-
logia e literatura que organizo para a disciplina de Prática
de Ecologia, oferecida ao Curso de Licenciatura Plena em Ci-
ências Biológicas da UFRPE, este livro de crônicas que foram
publicadas na coluna Foco Ambiental do Portal NE10, do Sis-
tema de Comunicação Jornal do Commercio. As crônicas, de
autoria do professor e ambientalista pernambucano Ricardo
Braga, foram publicadas ao longo dos últimos cinco anos e
expressam seu olhar pessoal e as experiências vividas de en-
trelaçamento com as temáticas ambientais. A ele um agrade-
cimento muito especial, pela sua gentileza em concordar com
esta publicação para uso acadêmico.
5
Na sala de aula, no entretenimento ou na busca de infor-
mações, podemos encontrar nessas crônicas uma produção
literária sensível às relações da sociedade com o ambiente e
que destacam as sutilezas da percepção do autor. Na abor-
dagem do cotidiano, quem escreve nos convida com doçura
a enfrentar temas desafiadores como a poluição, o licencia-
mento de atividades potencialmente degradantes do am-
biente, a conservação das florestas, a biopirataria, os agro-
tóxicos, a esclerose das artérias urbanas, entre outros temas
que mesclam ecologia e cotidiano.
Com esta coleção de crônicas, que são textos curtos, leves
e diretos, convido os professores a desfrutarem de seu poten-
cial educativo em suas aulas, sublinhando que a relação en-
tre literatura e ecologia constitui uma alternativa inovadora
e valiosa para a formação do cidadão que lê, interpreta e atua
no ambiente em que vive.

Recife, julho de 2013.


Carmen Farias

6
Introdução

O que acontece quando uma fala, uma conversa, um olhar


ou um sentimento se transforma em texto? À primeira vista,
a escrita introduz apenas um fator externo e material: ela
converte algo que era passageiro em perene. A escrita faz a
mágica de fixar o evento falado e sentido no papel. Mas ou-
tras coisas acontecem depois disso. Com Paul Ricoeur (2008)
aprendemos que a escrita torna o texto autônomo relativa-
mente à intenção do autor. Depois de tomado pelo público, o
que o texto significa não coincidirá necessariamente com o
que o autor quis dizer e transmitir.
Da mesma forma que a obra literária ganha essa autono-
mia em relação às condições psicológicas do autor, também
transcende às condições sociológicas da produção do texto.
Ou seja, a obra se abre a uma sequência ilimitada de leituras,
se descontextualiza para deixar-se recontextualizar em uma
nova situação, agora colocada pela presença e a interpreta-
ção do leitor.
Por essas razões podemos considerar que a literatura abre
portas para o mundo. Sejam mitos, estórias, contos, poesias,
crônicas, ou outro gênero, a literatura é uma das vias mais
surpreendentes para nos colocar em contato com sentidos e
significados ainda por nós não experimentados. A literatura,
assim, pode nos despertar a curiosidade, a possibilidade das
descobertas, da imaginação e do encantamento, o que geral-
mente acontece quando o leitor se identifica e interage com
a obra. É através da interpretação que o leitor compreende o
texto, recontextualiza-o no seu mundo e, por fim, apropria-
-se dele.
Com efeito, a linguagem integra a experiência de compre-
ensão do mundo, porém, não a linguagem objetificadora e ex-
plicativa, onde os sentidos são fixados previamente (como na
“educação bancária” tão criticada desde Paulo Freire), mas sim
7
a linguagem como possibilidade de conferir significação ao
mundo e por meio da qual a produção de sentidos se expressa
como diálogo e interpretação.
Assim é que a linguagem na educação deve ser mais do que
veículo de difusão e explicação de informações corretas e o
professor mais que um leitor literal do “livro da natureza”.
Em uma perspectiva mais alargada, o saber ambiental não
pode ser contido em gavetas, e emerge, justamente, das limi-
tações do nosso conhecimento na direção da compreensão de
processos complexos que escapam à explicação das discipli-
nas (LEFF, 1998). Por esse motivo podemos dizer que o saber
ambiental nasce da crise de um modo de conhecer e, assim,
nos provoca a pensar e a buscar alternativas na produção do
conhecimento e na educação.
No mundo da vida, nos diz Isabel Carvalho:

(...) os aspectos tomados isoladamente pelas disciplinas


estão permanentemente relacionados, como fios de um só te-
cido. Ao puxar apenas um fio, tratando-o como fato único e
isolado, cada área especializada do conhecimento não apenas
perde a visão do conjunto, como pode esgarçar irremedia-
velmente essa trama onde tudo está entrelaçado. Com isso, a
multiplicidade das ‘camadas’ de significados que constituem
a realidade é traduzida em fatos chapados, vistos de uma úni-
ca perspectiva (CARVALHO, 1998, p.8).

O papel do professor diante disso, é o de ir além do tra-


balho isolado das disciplinas ou do olhar objetificador da ci-
ência. Pode ser, por exemplo, o do interlocutor que motiva
o aluno ao oferecer-lhe obras que proporcionem o contato
com vários mundos e perspectivas possíveis. O universo da
literatura é muito vasto e a partir dele são possíveis muitas e
diferentes ações educativas que promovam a inserção desses
textos em contextos escolares.
No caso da ecologia, temática para a qual estão voltadas
todas as crônicas reunidas neste livro, há diferentes pro-

8
postas que podem ser criadas por professores e educadores
que queiram incluir no seu repertório de atividades este gê-
nero literário.
Além da interdisciplinaridade e pluralidade semântica
própria da ecologia, as crônicas trazem transversalmente
questões ambientais através de diversos enfoques: social, po-
lítico, econômico e cultural. Eis um exemplo de crônica que
aborda, sob um ponto de vista bem particular, um assunto
comumente tratado em aulas de ecologia: o texto “Carnaval
do caranguejo-uçá” pode complementar o estudo do ecossis-
tema manguezal ao enfocar o caranguejo, seu habitat, nicho e
ciclo reprodutivo, bem como a ameaça que paira sobre este e
outros animais em face da erradicação das áreas de mangue-
zais, um problema real no estado de Pernambuco. A crônica
aborda ainda os conhecimentos populares de pescadores e
apanhadores de caranguejo, muitos dos quais contribuem e
se somam à ecologia científica. E, por fim, a festa do carnaval
aparece como um elemento que motiva e torna lúdico o en-
volvimento do aprendiz com o tema.
Ao lado da diversidade de temáticas, as crônicas aqui reu-
nidas também podem servir à inovação metodológica no en-
sino básico. Além da leitura e interpretação dos textos, os
estudantes podem ser motivados a produzir suas próprias
crônicas e a desenvolver por escrito temáticas ambientais do
seu dia a dia. Uma sugestão de atividade assim foi inserida
no final do livro para o professor interessado em articular
ecologia e produção textual. A partir das crônicas se apos-
ta que muitas práticas educativas são possíveis. Em termos
metodológicos, o mais importante, a nosso ver, é que a ação
educativa promova engajamento, criação e reflexão sobre as-
pectos da ecologia na sua relação com a sociedade e a cultura
contemporâneas.
Espera-se que o livro possa servir como estímulo ao de-
bate, à prática e à vivência dos múltiplos sentidos da ecolo-
gia hoje.

9
Referências
RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.
CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Em direção ao mundo da vida: inter-
disciplinaridade e educação ambiental / Conceitos para se fazer educa-
ção ambiental. Brasília: IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, 1998.
LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, comple-
xidade, poder. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

10
As crônicas
A convergência dos paralelos

Após 3,5 bilhões de anos da vida em nosso planeta, a Terra


possui pelo menos 5 milhões de espécies, sendo 1,7 milhão
efetivamente catalogadas. Uma delas é a Homo sapiens, única
do gênero que não foi extinta, lutando pela sobrevivência há
pelo menos 200 mil anos. 
No seu processo de evolução biológica, o gênero Homo le-
vou grande vantagem quando exercitou o uso das mãos, cujo
dedo polegar tem a fantástica capacidade de tocar todos os
outros. Isso permitiu a manipulação de objetos e estimulou a
especialização do cérebro. A nova adaptação levou à seleção
dos indivíduos mais aptos, que usavam a inteligência para
enfrentar as condições adversas e competitivas, ainda no
modelo darwiniano da seleção natural. 
O Homo seguiu sua escalada evolutiva contínua, com o uso
da pedra lascada para caça e defesa, a descoberta do fogo e a
confecção de ferramentas. Já como Homo sapiens, confeccio-
nou roupas e armas, domesticou animais selvagens e praticou
a agricultura e o artesanato. Muito mais tarde veio a Revolu-
ção Industrial, que por meio das máquinas a vapor queima-
va carvão fóssil e fundia o aço. Com ela, vieram a poluição
e os primeiros movimentos organizados de trabalhadores
por melhores condições de trabalho e de vida. Mais recente-
mente, surgiu a chamada Revolução Verde - que nada teve de
ecológica - com o uso intensivo da mecanização agrícola, de
fertilizantes químicos e de agrotóxicos.
Verifica-se nesta fase, um trajeto linear do homem tecno-
lógico, em paralelo e em detrimento do homem ecológico. O
uso intensivo de recursos naturais, o alto consumo energé-
tico em processos urbanos e industriais, a crescente escala
de produção, a destruição de ecossistemas e o aumento da
poluição ambiental passaram a ser a tônica nesse caminho. 
Ainda, a comunicação de massas, dirigida a almas hu-
manas ávidas por fórmulas prontas, que cria necessidades e
13
orienta para o envelhecimento precoce das novidades, con-
tribuiu decisivamente para estabelecer o padrão estereotipa-
do da sociedade de consumo contemporânea. 
A essa altura, pode-se considerar que o homem deixou o
conjunto das espécies condicionadas pela evolução natural
e passou a ter a sua existência pautada pelos seus próprios
erros ou acertos. Tal situação levou a um paralelismo de ca-
minhos entre o homem e a natureza, como se ele não fosse
parte dela. 
Porém, as evidentes mudanças climáticas decorrentes do
efeito estufa, o risco de extinção maciça de espécies, o peri-
go de migrações humanas calamitosas e as prováveis guerras
por água exigem um repensar rápido. Demandam um outro
olhar para a natureza, como parceira na busca da salvação
comum. 
Isso não significa que é preciso negar a tecnologia. Salien-
te-se que ela é fruto da evolução humana, sendo, portanto
intrinsecamente legítima. É necessário, porém, reconhecer
que não é neutra, porque ela sempre está acompanhada da
intenção de quem a usa: depende dos interesses econômicos,
culturais ou religiosos e, sobretudo, das diferentes visões so-
bre a natureza e os homens (se vistos como diferenciados). 
Assim, o seu uso precisa ser guiado pela responsabilidade
ética, social e ecológica. Ou seja, se a tecnologia estiver a ser-
viço simultâneo do homem e da natureza, levará à necessária
convergência dos então paralelos, possibilitando a almejada
sustentabilidade do planeta.

Publicado em 16 de janeiro de 2008

14
Carnaval do caranguejo-uçá

Para muitos, o Carnaval começa com um gole de cachaça


ou de cerveja, caranguejo, um dengo de namoro e as ruas in-
teiras para brincar. Depois vêm os blocos Caranguejo no ca-
çuá, Guaiamum treloso, Siri na lata..., parece que nunca vai
acabar.
O caranguejo-uçá também tem o seu Carnaval, mesmo
longe das goladas de cachaça. A maré alta de fevereiro, o re-
buliço na toca de lama, o alvoroço pra namorar e a andada
solta, ganhando o apicum nas bordas do manguezal. É o Car-
naval, no dito dos pescadores do mangue, dos apanhadores
de caranguejo.
O caranguejo-uçá, da espécie Ucides cordata, é um conheci-
do da nossa cultura litorânea. Às vezes se diz que alguém só
anda pra trás, como caranguejo, numa injusta alusão a quem
anda mesmo é de lado. Ele vive nos manguezais da Flórida, da
América Central e do Brasil, indo até Santa Catarina. Mas é no
Nordeste que é prato símbolo, cozinhado com sal, verdura de
cheiro e às vezes leite de coco.
Costuma-se dizer que caranguejo só está gordo nos meses
que tem r. Tem lógica. De maio a agosto ele entoca na lama e
cobre a entrada, quando se diz que está tapado. Aí se alimen-
ta e engorda, para enfrentar a próxima etapa. Nessa fase, é
apanhado na toca pelo homem do mangue ou pelo guaxinim.
Mas de setembro a novembro já está em muda, ou ecdise,
substituindo a carapaça para crescer. Em dezembro faz “es-
puma” e no início do ano aparece de andada, para acasalar,
em carnaval.
Vê-se que a festa dos humanos tem semelhanças com a do
uçá. Mas, enquanto a nossa se expande, os seres do mangue
diminuem em população e poucos chegam a experimentar as
delícias prosaicas e profanas. A pesca predatória e a degrada-
ção dos mangues levaram a uma crise de produção em vários
Estados, entre eles Pernambuco. Além disso, a doença do ca-
15
ranguejo letárgico, que apareceu por aqui em 1997 e chegou
ao Espírito Santo há dois anos, está dizimando os carangue-
jos brasileiros, sobretudo em ambientes mais agredidos pela
poluição.
Hoje, ainda existe grande produção no Pará, Maranhão e
Piauí. Na foz do rio Parnaíba, que se expande no mar em fan-
tástico delta com mais de 70 ilhas e de dunas com lagunas de
água doce, vi centenas de homens trabalhando pesado, na
apanha dos milhões de caranguejos por ano. Vendem cada
corda por valor irrisório, para consumo nas capitais por pre-
ço infinitamente maior. São, simultaneamente, cúmplices da
dizimação dos estoques e vítimas da exploração pelos atra-
vessadores.
Foliões ou não, precisamos salvar o Carnaval do carangue-
jo-uçá. Para isso é necessário, pelo menos, não capturar ou
comprar: fêmeas (principalmente ovadas), caranguejos de
andada e adultos menores que 5 cm. É fundamental também
preservar o manguezal da ganância dos criadores de cama-
rão e da poluição industrial e doméstica. Ou seja, lutar para
que esse ecossistema se mantenha protegido e na sua condi-
ção produtiva.
Só assim os próximos carnavais poderão começar com um
gole de cachaça, um caranguejo e um dengo de namoro..., de
andada até à Quarta de Cinzas, que não tarda a chegar.

Publicado em 23 de janeiro de 2008

16
Florestas urbanas I: o diálogo com a vizinhança

A Mata Atlântica nordestina é a mais ameaçada do Brasil.


A sua distribuição no passado deu origem ao nome de uma
enorme região úmida e verde, chamada Zona da Mata. Isso
porque as condições de solo e clima resultaram na formação
florestal que marcou a paisagem, a dinâmica hidrológica, os
ciclos biológicos e o próprio processo de ocupação socioeco-
nômica, do qual terminou sendo vítima.
Na mudança da paisagem natural por espaços construí-
dos, a floresta perdeu a sua hegemonia, geográfica e funcio-
nal, submetendo-se às pressões da cidade, em conflitos su-
cessivos com bairros consolidados e invasões de periferia.
Neste embate, na maioria das vezes silencioso, os maci-
ços florestais transformaram-se em fragmentos. As espécies
madeireiras escassearam ou sumiram, e os animais de maior
porte perderam a condição de sobrevivência, seja pela caça,
seja pelo exíguo território que não lhes permitia perambular
em busca de alimento ou de procriação.
Os grandes maciços florestais transformaram-se em um
plasma de bairros residenciais, vias, comércios, indústrias e
resíduos, ou, em raras exceções, em florestas urbanas, ilhas
de vegetação nativa.
Qual o destino dessas florestas remanescentes? O que elas
têm a ver com a cidade que as engole, às vezes sem perceber,
consumindo-as para depois ocupar o seu solo? O que restará
da sapucaia, angelim e camaçari, ou do sabiá, saíra e sanha-
çu? Isso para não falar das espécies já ameaçadas de extinção.
Em uma visão de futuro, só enxergo dois destinos: o de-
saparecimento desses fragmentos, substituídos por mais ci-
mento, gente, esgoto, lixo e impermeabilização do solo; ou a
inserção dessas preciosidades despercebidas na realidade da
metrópole, tornando-as florestas visíveis aos moradores do
entorno e desfrutadas pelas comunidades.
Acredito no diálogo entre a floresta e a sua vizinhança ur-
17
bana, em decorrência da necessidade sentida pela população,
de espaços para lazer e educação dos jovens e crianças vindos
das escolas e dos bairros, do convívio com a natureza e até de
um turismo local, que tenha o olhar na diversidade de for-
mas, cores e espécies da mata tropical.
Acredito no exercício da sensibilidade humana diante do
som do silêncio, do piado de uma ave ou das brincadeiras de
saguins; no saudável caminhar do homem urbano em trilhas
na floresta, em que ele pare diante de sinais da natureza, para
que passem carreiras de formigas ou simplesmente para ob-
servar uma toca de tatu, sem querer persegui-lo para matar.
Mas, para sobreviver, as florestas urbanas não podem es-
tar em redomas fechadas, mesmo porque nunca estiveram.
Precisam ser vistas, se oferecer à interação com seus vizi-
nhos humanos, que ainda não estão culturalmente acostu-
mados a enxergá-las. É preciso apostar no diálogo entre a
floresta e o homem, ambos urbanos e natureza. Como fazer é
que é o desafio.

Publicado em 13 de fevereiro de 2008

18
Florestas urbanas II: conhecer para conservar

Em outro artigo sobre florestas urbanas, comentei sobre


a necessidade de serem conhecidas pela sociedade, especial-
mente por sua vizinhança, para que sobrevivam. Defendi o
diálogo da floresta com a cidade, na qual ambas se benefi-
ciem.
Para isso, essas florestas “invisíveis” precisam ser desco-
bertas pelos olhos e sentimentos dos habitantes urbanos, que
historicamente passaram a ignorá-las e substituí-las por cons-
truções e lixo. Nessa condição, estão pelo menos 38 remanes-
centes de Mata Atlântica espalhados pela Região Metropoli-
tana do Recife, que desde 1987 foram considerados Reservas
Ecológicas, por lei estadual. Foram criadas com o objetivo de
proteger os já então fragmentos de floresta nativa e, ao mesmo
tempo, salvaguardar os serviços ambientais por elas presta-
dos, como proteção de mananciais hídricos, controle da erosão
do solo, amenização do clima, entre outros.
Costuma-se dizer que não se defende aquilo que não se co-
nhece. Tomando como verdadeiro, posso dizer: as florestas
urbanas não são defendidas porque não foram apresentadas
àqueles que poderiam defendê-las, os seus vizinhos.
Diferentemente dessas, o Parque Estadual de Dois Irmãos e
a Estação Ecológica de Caetés, anteriormente também reser-
vas ecológicas, foram recategorizadas pelo governo estadual
em 1998 e contam com administração específica. Quase todas
as demais continuam sem qualquer proteção ou estratégia de
curto, médio ou longo prazo, para a sua conservação.
Hoje o Parque de Dois Irmãos não se traduz apenas no zo-
ológico, que mantém os animais em cativeiro, muitos deles
exóticos. É um espaço mais contextualizado, para contem-
plação da paisagem, recreação de crianças, jovens e adultos,
e realização de caminhadas em trilhas na mata. Essas cami-
nhadas, carinhosas e atentas, permitem não só a percepção
dos movimentos de uma folha caindo ou a audição do estalar
19
das asas de uma borboleta em dança nupcial, mas também a
observação de plantas e animais nativos, em seu meio natu-
ral. É, por isso, um espaço para educação escolar e das comu-
nidades do entorno e para pesquisas científicas de estudan-
tes e professores das universidades federais, que também são
seus vizinhos.
Nessa mesma linha, a Estação Ecológica de Caetés não mais
significa para a população do seu entorno - de Abreu e Lima
e Paulista - a mata que ia virar aterro de lixo na década de
1980. Hoje é um espaço aberto para a comunidade, que pratica
esportes, leva suas crianças miúdas para brincar e desenvolve
atividades culturais e artísticas, desde que compatíveis com
uma unidade de conservação da natureza. É lá que populações
carentes ou de classe média têm a chance de observar a Mata
Atlântica e conhecer alguns dos seus moradores nativos, após
serem recebidos no Centro de Visitantes.
Nesse contexto, é fundamental que cada floresta se mos-
tre à comunidade vizinha como útil e interessante para ser
preservada, valorizando-se inclusive os serviços ambientais
por ela prestados. Assim, se terá o envolvimento da socieda-
de na proteção e gestão desses ecossistemas, incorporando-
-os à realidade do bairro e da cidade.
É um jogo de ganha-ganha. Quem quer apostar?

Publicado em 20 de fevereiro de 2008

20
Poluição sonora I: incômodo de vizinhança

A poluição sonora está em quase toda parte. É provocada


pelo ruído acima de 70 decibéis, um poluente que não se vê,
nem se pega. Muitos nem sequer percebem a sua intensidade
porque já consideram normal viver no barulho.
Mas, convenhamos, você está numa praia, só imaginando
a oportunidade de relaxar, comer peixe frito com cerveja e
escutar o som do mar. De repente, chega um carro de porta-
-malas aberto, com uns caras donos do mundo distribuindo
o ruído bate-estaca para quem nem sonhava com isso, redu-
zindo o domingo à cruel realidade do dia a dia.
Ou, então, o companheiro está recolhido ao seu aparta-
mento de todo dia, porém vulnerável à estressante imprevi-
sibilidade de que, sem aviso prévio, o vizinho ligue o rádio
nas alturas. Nesse momento, o espaço aéreo da sua trincheira
doméstica é invadido pela narração de um jogo entre times
que você nem conhece.
Mais: uma igreja que promete salvar almas já na Terra, da-
quelas que proliferam na medida da ignorância e na relação
direta do potencial em arrecadar dízimos, ocupa silenciosa-
mente o cinema fechado, a loja falida ou o terreno esquecido
na vizinhança. A partir daí, pregações e discursos inflama-
dos lhe alcançam no meio da novela ou da música escolhida.
E você, crente ou não, sem ter nada a ver com isso, é obrigado
a engolir pelos ouvidos os argumentos com os quais nem con-
corda. No caso, a poluição é também pelo conteúdo da pala-
vra, seja ela ideológica ou religiosa.
O que existe em comum nessas situações fictícias, mas
tão reais? A negação do direito da vizinhança, ao silêncio e à
tranquilidade. Se a poluição não deixa resíduos materiais, es-
tabelece as marcas negativas nas pessoas pela insônia, agres-
sividade, queda de rendimento, perda de audição e sequelas
cardíacas. É também razão para mortes entre vizinhos, que
atordoados, supliciados pelo barulho, aniquilam pelo gesto
21
mais radical o seu torturador. São vítimas que fazem vítimas,
numa catarse urbana que não liberta, mas aprisiona.
Mas e a legislação para coibir esse mal? Está prontinha
para ser usada. E por que não resolve?

Publicado em 18 de março de 2008

22
Poluição sonora II: dá pra acabar com ela

Na semana passada, vimos que o drama dos vizinhos se


mede pela intensidade do ruído, e que a poluição sonora é um
típico caso de incômodo de vizinhança. Mas como resolver o
problema?
A Constituição Federal de 1988 garantiu o direito ao sos-
sego público, e o Conselho Nacional do Meio Ambiente já tra-
tou do assunto em 1990. Pernambuco também tem lei própria
desde 2005, baseada nos padrões da Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT), estabelecendo limites de ruído
em função do horário diurno ou noturno e, ainda, da zona
urbana ser exclusivamente residencial, de uso misto ou pre-
dominantemente comercial ou industrial. Mesmo antes, des-
de 1996, o Recife já possuía o seu Código do Meio Ambiente,
que considera incômodo de vizinhança a emissão de sons al-
tos em decorrência de quaisquer atividades industriais, co-
merciais, sociais ou recreativas, devendo-se obedecer ao in-
teresse da saúde, da segurança e do sossego da população.
A punição prevista para o poluidor sonoro varia de multa,
de R$ 500 a R$ 5 mil, à interdição da atividade, fechamento
do estabelecimento, embargo da obra e apreensão da fonte
ou do veículo.
Mesmo assim, persiste o drama de quem tem vizinhos rui-
dosamente inconvenientes. Razões para a recalcitrância não
faltam: a persistência do conceito deturpado de que “até dez
da noite pode tudo”, a opinião de que “se eu gosto, possivel-
mente os outros também devem gostar”, a ilusão de que “na
minha casa mando eu” e, sobretudo, a certeza da impunida-
de.
Então, como acabar com este incômodo de vizinhança?
Considerando que a questão não é técnica e, sim, cultural,
acredito que a saída seria induzir a mudança de percepção da
população sobre o silêncio, de que este é saudável e um direi-
to de cada cidadão. Isto levaria a um comportamento social
23
semelhante ao de populações mais esclarecidas e responsá-
veis.
No caso, proponho dois níveis de tratamento, ambos em-
basados na legislação acima. Para os mais receptivos, sugiro
as campanhas de esclarecimento pela mídia, de que a po-
luição sonora é maléfica e ilegal. Já conseguimos muito em
outras áreas, levando o potencial infrator a se sentir enver-
gonhado de praticar a ilegalidade. Lembrem-se do mico de
quem pára na faixa de pedestres ou é flagrado fumando em
ambiente fechado.
Já para os insensíveis, defendo ação enérgica e exemplar,
com o poder de polícia paralisando a atividade poluidora e
confiscando sumária e definitivamente o aparelho de som.
Ainda a abertura simultânea de ação civil pública pelo Minis-
tério Público de acordo com a Lei de Crimes Ambientais, que
não perdoa quem cause poluição de qualquer natureza em
níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde
humana. Tudo isso bem divulgado pela imprensa e expondo
os agressores à censura pública, induzida pela campanha de
mídia.
O tratamento de choque poderia ser aplicado por seis me-
ses em doses diárias, com avaliações periódicas dos resulta-
dos. Que tal?

Publicado em 25 de março de 2008

24
Discutindo a biopirataria

Pirataria é coisa dos tempos da Grécia Antiga. Os piratas


pilhavam navios e cidades costeiras, apropriando-se do que
pertencia às instituições e pessoas.
Também corria solta nos territórios “recém-descobertos”,
com a extração não permitida dos recursos naturais que ti-
vessem valor de uso ou venda. Darcy Ribeiro, no seu extraor-
dinário livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, diz
que numerosíssimas eram as naus que aportavam, mandadas
por armadores de diversos países europeus, principalmente
Holanda e Alemanha. A carga que levavam não era pequena.
Podia alcançar 3 mil toras de pau-brasil, 3 mil peles de onça,
muita cera e até 600 papagaios falantes.
Embora a pirataria moderna seja diferente, guarda o mes-
mo sentido. Refere-se à cópia, venda ou distribuição de ma-
terial sem o pagamento dos direitos autorais, portanto com
apropriação indébita. Ela não se relaciona apenas a CDs, pro-
gramas de computador ou a letras de música. Tem a ver tam-
bém com nossos recursos genéticos, caso da biopirataria.
A biopirataria caracteriza-se pela apropriação de recursos
biológicos e de conhecimentos tradicionais indígenas ou de
comunidades locais, por empresas multinacionais ou insti-
tuições científicas internacionais, que passam a se beneficiar,
sem pagamento, dos direitos patrimoniais ou autorização do
país de onde foram extraídos.
Isso é grave porque temos a maior biodiversidade do mun-
do. No mercado mundial de medicamentos, cerca de 30% dos
remédios são de origem vegetal e 10%, de origem animal. Do
Brasil, foram patenteados no exterior, entre outros, produtos
de espinheira-santa, cupuaçu, açaí, andiroba e copaíba. Até o
ayahuasca, alucinógeno utilizado em cerimônias indígenas e
de seitas na Amazônia, foi patenteado.
Depois de assinar a Convenção sobre Diversidade Biológi-
ca na Rio-92, que reconhece a soberania dos países sobre os
25
recursos genéticos existentes em seus territórios, o governo
brasileiro procurou estabelecer o controle no seu próprio
território, editando em 2000 uma Medida Provisória, sobre
a proteção e acesso ao patrimônio genético.
Porém, na prática, a medida gerou enormes restrições à
pesquisa científica com espécies nativas, provocando buro-
cratização, demora e até interpretações pessoais erradas no
parecer de casos analisados, devido à centralização de deci-
sões pelo Ibama. A coleta biológica para fins de pesquisa deve
ser considerada essencial ao conhecimento e à conservação
da biodiversidade, particularmente em unidades de conser-
vação, sendo o cientista, em princípio, um aliado. Enquanto
isso, os verdadeiros piratas não são adequadamente monito-
rados e punidos.
Recentemente fiz parte de um grupo de trabalho criado
pelo Conselho Federal de Biologia para analisar um projeto
de lei posto em discussão pela Casa Civil da Presidência da
República, com a intenção de aperfeiçoar a MP em vigor. Uma
das novidades é a criação de regras mais claras e a obriga-
toriedade de registro no Cadastro Nacional de Pesquisa, das
pessoas e instituições que trabalham com a biota nativa. O
registro dispensa a autorização do Ibama e o cadastro deve
ser de acesso livre para consulta pública e, portanto, trans-
parente. O projeto de lei ainda trata da agrobiodiversidade
nativa e da repartição de benefícios de sua exploração co-
mercial com as populações tradicionais.

Publicado em 1º de abril de 2008

26
Dengue: doença socioambiental

A dengue, que foi trazida da África pelos colonizadores,


já havia desaparecido do Brasil na década de 1930, quando
também se fez a erradicação da febre amarela. Isso porque
o transmissor é o mesmo mosquito, o Aedes aegypti. Mas, em
1981, a doença voltou, na Amazônia, e já se alastrou por pra-
ticamente todo o Brasil, particularmente em regiões de clima
tropical.
Distintamente de outras doenças chamadas “da pobreza”,
a dengue é democrática, atingindo todas as camadas sociais.
É diferente da cólera, disenteria amebiana e verminose, que
são contraídas pelas populações pobres e miseráveis que es-
tão em contato diário com a água suja, poluída por esgotos
domésticos.
A dengue pode ser considerada uma doença de caráter
socioambiental. Ocorre no período chuvoso ou logo após as
chuvas e em clima quente. Por outro lado, exige a cumpli-
cidade do homem no acúmulo de água limpa e parada, pos-
sibilitando o meio ideal para reprodução e crescimento do
mosquito transmissor que, depois de adulto, pica o próprio
homem e o faz de hospedeiro do vírus. Sem essas duas condi-
ções, não haveria a epidemia, já que a doença não é transmi-
tida diretamente, pessoa a pessoa.
Em uma página do site do Ministério da Saúde encontra-
-se o desenho de uma habitação e seu entorno, onde, com
o mouse, você vai descobrindo 10 formas de atrair os mos-
quitos para desova e multiplicação em áreas urbanas. Nele,
estão desde a piscina não cuidada a entulhos espalhados pelo
quintal ou área de serviço, sempre com água limpa e para-
da, como o mosquitinho tanto gosta.
Portanto, está claro que, sem a conjunção socioambiental
(o desleixo dos humanos associado às condições ecológicas), a
doença não iria tão longe. Aliás, já foi longe demais.
Não podemos aceitar, impassíveis, que em plena luz do dia
27
fêmeas de bichinhos tão pequenos nos piquem para sugar
sangue, procurem parceiros machos e se acasalem sossega-
das, em nossas próprias casas. Depois ponham seus ovos nos
pratinhos encharcados de nossas singelas plantinhas para,
em dois dias, se transformarem em novas larvas, e em mais
oito tornarem-se mosquitos adultos. Pior, em voos alegres,
recomecem o ciclo da vida de inseto transmissor.
Dar receita de como lidar com a situação é chover no mo-
lhado porque a mídia tem mostrado o caminho todos os dias.
O que falta é a consciência coletiva para que a ação de cada
um resulte novamente em erradicação da doença. Já se sabe
que o “fumacê” governamental para aplicação de inseticida,
além de ser tóxico, não tem a eficácia que se gostaria, por só
matar os adultos que estão por perto, deixando ovos e larvas
livres para se tornarem novos adultos.
Daí ser fundamental eliminar os criadouros do Aedes, e
isto quem pode fazer é a própria população. Senão teremos
que esperar a chuva passar. Mesmo assim, no próximo ano
virão as águas de março, facilitando o recrudescimento da
doença. E, com ela, quem sabe, também a febre amarela.

Publicado em 8 de abril 2008

28
Alagamentos e inundações

Se olharmos o mapa de relevo, veremos que Recife, Olinda


e Jaboatão possuem uma planície costeira muito baixa, quase
ao nível do mar, rodeada de morros de 60 a 100 metros de
altura, em semicírculo. Podemos dizer que essas cidades for-
mam um grande anfiteatro, onde os morros são as arquiban-
cadas, a planície é o palco, e céu e mar compõem o cenário.
Originalmente as matas cobriam os morros e garantiam
a infiltração das águas de chuva, retendo-as para liberá-las
devagarzinho, atenuando as enxurradas e, em consequência,
o pico das enchentes. Na planície, mesmo assim os riachos
enchiam, mas podiam se espalhar em seu leito natural ex-
pandido, que eram as várzeas. Depois dezenas de riachos dre-
navam facilmente águas para os rios Beberibe, Capibaribe,
Tejipió e Jaboatão.
Hoje, quando chove forte, casas que ocuparam o morro
desmatado, escorregam pela barreira levando sonhos de seus
moradores. Outras, na planície, são inundadas de maneira
implacável pelas águas apressadas. Que destino caótico de
nossa gente, particularmente a de menor renda!
Mas foi a história da ocupação dos espaços que determi-
nou o caos. A cidade impermeabilizou o solo com as edifi-
cações e pavimentações, fazendo com que a vazão gerada
pelo escoamento das águas se multiplicasse por até seis ve-
zes quando chove; a erosão dos morros traz junto com as en-
xurradas a lama de barro e areia; os riachos passaram a ser
canais, considerados pela população como local de despejo
de esgoto e lixo, dificultando dramaticamente a passagem da
água; a carência de áreas de habitação levou à ocupação das
margens dos cursos d´água, não deixando alternativa para as
águas apressadas, de recuperar a sua várzea à força.
Resultado: alagamentos, pela dificuldade de drenagem
nos lugares onde a chuva cai; e inundações, pelo transborda-
mento de riachos e canais.
29
Mesmo que todas as causas sejam explicáveis, não é fácil
mudar o cenário, que se repete a cada ano. Vê-se que o esfor-
ço das prefeituras em limpar os canais e coletar regularmen-
te o lixo é indispensável, mas insuficiente.
Por parte da população, é preciso uma tomada de cons-
ciência de que cada um contribui para o caos quando corta
e ocupa a barreira em lugares de risco de desmoronamento,
espalha lixo como se o espaço fosse de ninguém, obstrui a
microdrenagem com a construção de casas, muros e passa-
gens de pedestres, e ocupa as margens dos riachos e canais,
não deixando espaço sequer para a sua limpeza.
Por parte do poder público, parece ser necessária uma pos-
tura mais determinada e menos paliativa, exigindo a elabo-
ração do Plano Diretor Metropolitano de Drenagem Urbana,
integrando os municípios na mesma estratégia de solução.
Esta, por sua vez, implica medidas estruturais inovadoras,
como reservatórios de amortecimento de cheias em algumas
descidas de morros. Ao mesmo tempo, são fundamentais me-
didas de educação que possibilitem o reconhecimento, pela
sociedade que vive nas áreas afetadas, da importância da ati-
tude preventiva, antes que o afogamento seja inevitável.

Publicado em 15 de abril de 2008

30
Parque dos Manguezais

Os manguezais são importantes ecossistemas litorâneos,


situando-se na transição dos rios para o mar. Funcionam
como atenuadores de erosão e de inundação, além de de-
sempenhar o reconhecido papel de produtor orgânico para
o oceano e de local para reprodução de peixes, crustáceos e
moluscos, que muitas vezes migram para o mar aberto, onde
podem ser pescados.
O Recife tem um dos maiores manguezais em área urbana
do mundo, encravado entre os adensados bairros do Pina e
de Boa Viagem e o bairro da Imbiribeira, localizando-se es-
pecificamente no complexo estuarino dos rios Pina, Jordão e
Tejipió. No centro dele, em terra firme, estão edificações da
antiga Estação Rádio Pina, desativada pela Marinha em 1992.
A vegetação de mangue é de preservação permanente,
pelo Código Florestal, e as zonas de estuários são considera-
das áreas de proteção ambiental por lei estadual desde 1986.
Também a Lei de Uso do Solo do Recife estabelece que aquela
área é Zona Especial de Proteção Ambiental (Zepa), abrindo
a possibilidade de o município instituí-la como unidade de
conservação, por ato legal específico.
Por isso, em novembro de 2007 sugeri ao vereador Luiz
Helvécio que apresentasse um projeto de lei para a criação do
Parque Natural Municipal dos Manguezais, e, a seu pedido,
elaborei a minuta e justificativa. O PL n°186/2007 já está ade-
quado ao modelo do Sistema Nacional de Unidades de Con-
servação e, no momento, encontra-se em tramitação na Câ-
mara dos Vereadores.
Vale salientar que, em 2004, a Prefeitura do Recife conce-
beu, embrionariamente, um projeto de criação do “Parque
Ecológico Estação Rádio Pina”. Mas isso não foi o bastante,
e a área continua sofrendo permanente pressão, sobretudo
provocada por poluição hídrica, implantação de novos vivei-
ros de camarão e invasões urbanas que, a partir de aterros,
31
ocuparam partes do manguezal, seja pela população de baixa
renda sem teto ou mesmo pelo setor formal da economia.
Além disso, novos projetos governamentais estão se deli-
neando no entorno ou incidem sobre a própria área, sendo
fundamental entender a tempo as implicações e interfaces
geradas pelas intervenções urbanísticas previstas.
Nesse contexto surgiu o Movimento pela Criação do Par-
que dos Manguezais, formado por uma dezena de entidades
que atuam sistematicamente em defesa do meio ambiente
e pela urbanização social e ambientalmente responsável do
Recife.
Para subsidiar o conhecimento da importância ecológi-
ca e social daquele manguezal e a criação e implementação
do Parque Municipal, o Mestrado em Gestão e Políticas Am-
bientais da UFPE está realizando um seminário aberto so-
bre Estratégias para Conservação e Gestão do Manguezal do
Pina, nos dias 23 e 24 de abril. No dia seguinte, estaremos
trabalhando em uma oficina com 40  especialistas, gestores
públicos e pessoas que vivenciam a realidade local, para sis-
tematizar e discutir as propostas apresentadas.

Publicado em 22 de abril de 2008

32
Uma festa para licenciar

Na entrada da cidade, estão dispostos estrategicamente


carros da Polícia Rodoviária e Militar, com aparato de segu-
rança que inclui armas pesadas, como metralhadoras. Próxi-
mo ao evento, mais policiamento ostensivo, com a Companhia
de Polícia Ambiental dando cobertura aos participantes da
festa. Lá dentro, sob aplausos magnetizados por um possível
emprego, o governador, o ministro e o prefeito, acompanha-
dos da direção da empresa, anunciam os grandes benefícios
do empreendimento para a região. Marcam até a data da sua
inauguração.
Do lado de fora, faixas enaltecem o acontecimento e ban-
deiras tremulam, festejando a iniciativa pelo desenvolvimen-
to. Moças fardadas e alegres recebem em estande da em-
presa o currículo das pessoas que há muito tempo esperam
por uma oportunidade de assinar carteira de trabalho. Para
garantir a motivação de todos, lanche reforçado é servido a
quem quiser. O povo está em estado de graça.
Seria este um legítimo ato político, não fosse uma audiên-
cia pública convocada pela Agência Pernambucana de Meio
Ambiente (CPRH), cumprindo disposições legais como etapa
do licenciamento ambiental do empreendimento.
Não ponho dúvida sobre a importância da Sadia em Vitória
de Santo Antão, nem questiono o fato de o governador bus-
car ampliar o arco de crescimento econômico do Estado. Até
porque votei em Eduardo Campos e tive o prazer em servir ao
seu governo. Mas é prudente perguntar se é correto espetacu-
larizar um ato administrativo e processual de licenciamento
ambiental que, de acordo com a Lei Federal nº 6.938/81 e a Re-
solução Conama nº 237/97, deve ocorrer antes da emissão da Li-
cença Prévia, sem evidentemente fazer juízo antecipado sobre
a licença, para garantir a necessária isenção.
Se não bastasse, quem passa pelo local do empreendi-
mento, situado próximo ao rio Tapacurá, tem a sensação de
33
que as obras já foram autorizadas, dado ao avançado está-
gio de construção da estrutura.
Segundo norma da CPRH, o “relatório ambiental é um
estudo técnico para a análise de viabilidade ambiental do
empreendimento” e que a “audiência pública serve para
apresentar informações, tirar dúvidas e recolher críticas e
sugestões”. Porém, com que ânimus alguém vai formular um
questionamento mais incisivo sobre riscos de poluição ou
insuficiência de tratamento de efluentes diante de tamanho
aparato? Qual a imparcialidade presumida em processo mar-
cado por tão escandalosa declaração de endosso prévio?
Há de se pensar na necessidade de restaurar a tradicional
liturgia das audiências públicas de empreendimentos poten-
cialmente poluidores, cumprindo com tranquilidade e isen-
ção esta etapa tão importante, que requer menos holofotes e
mais reflexão. Um megaevento está mais para palanque do
que para avaliação ambiental, crítica e construtiva.
É até aceitável que governos, na transitoriedade do man-
dato, promovam pirotecnia dos seus atos. Mas é perigoso que
a CPRH incorra nessa prática, uma vez que cumpre função
permanente de Estado, obrigada pela Constituição Estadual e
pela legislação de controle ambiental.
Vale lembrar o que afirma o Tribunal de Contas da União,
em sua cartilha sobre licenciamento ambiental: “Esse proce-
dimento, que é conduzido no âmbito do Poder Executivo na
figura do órgão ambiental, advém do regular exercício de seu
poder de polícia administrativa.”

Publicado em 27 de maio de 2008

34
Vasconcelos Sobrinho: a dimensão de um homem

Costuma-se dizer que, ao morrer, todos viram bons, pelo


menos no curto prazo. Porém se alguém se foi há 20 anos e
ainda é lembrado com carinho, reconhecimento e saudade,
é porque de fato fez muito bem em vida. É o caso do pro-
fessor Vasconcelos Sobrinho (como o chamávamos). Nesses
100 anos, desde o seu nascimento, muita coisa mudou, mas
as questões com as quais trabalhou continuam válidas e atu-
ais. São indicadores da aguda visão deste homem, pensador
e formulador.
Mas Vasconcelos Sobrinho não apenas formulou cenários
e propostas, também foi realizador. Quando se fala em seu
nome, é frequente a associação com o Jardim Zoobotânico de
Dois Irmãos, a Estação Ecológica do Tapacurá e com estudos
sobre desertificação no Nordeste.
Sua visão de mundo e da responsabilidade socioambiental
diante dele vem de pelo menos 1949, quando publicou o livro
As regiões naturais de Pernambuco, o meio e a civilização. Mais
tarde, escreveu outro, expandido, focando todo o Nordeste,
que editou com a colaboração de vários cientistas. Outros li-
vros de sua autoria também se reportam a essa visão pessoal
de mundo que, por vezes, transcendia ao seu tempo, como
Ciência religião sem dogmas e A arte de morrer.
As minhas experiências com Vasconcelos Sobrinho, já no
fim da sua vida, foram sempre encantadoras. Uma delas foi
quando me “intimou” a voltar do mestrado sem mesmo ter
defendido a dissertação para ajuda-lo a estruturar o primei-
ro curso de especialização em ecologia de Pernambuco, na
UFRPE. Outra se deu quando fui seu assistente em viagens
pelo Sertão, para identificar o que ele já chamava de núcleos
de desertificação, tendo como companhia a arquiteta Liana
Mesquita, sua amiga de fé e de prática.
Numa dessas viagens, subi um morro alto tentando seguir
os seus passos rápidos, apesar dos mais de 70 anos de ida-
35
de. Lá em cima, parou, sem fôlego e pálido, parecendo sentir
tontura. Não teve dúvida, deitou-se no solo pedregoso e ali
permaneceu por minutos, sem querer ajuda. Depois levantou
as pernas na vertical, apoiando a cintura com as mãos, indu-
zindo o sangue a descer por gravidade para o cérebro. Pouco
mais, não se falava mais nisso, já pulando cerca que o bode
não atravessa e desviando de gravetos espinhosos de uma
caatinga sem folhas, na estiagem. Lembro-me de que, dessa
viagem, eu trouxe uma cabrinha no colo, dentro da caminho-
nete da Sudene, à qual dei o nome de Serra Branca, município
da Paraíba de onde ela veio para o Recife.
José Rafael de Menezes, que escreveu sobre ele, chamou-o
de ecologista místico. De fato, o seu livro Catecismo da ecolo-
gia trata de fé, enumera mandamentos da ecologia e chama
os animais de irmãos. Mais: quem conviveu com Vasconcelos
Sobrinho e não o ouviu falar sobre o curupira, aquele que pro-
tege os animais nativos dos caçadores, por iludi-los com suas
pegadas de pés invertidos? O próprio professor me contou, um
dia, que escreveu os Dez ensinamentos do Padre Cícero e difundiu
em calendário pelo povo da Caatinga. “Em mim podem não
crer, mas em Padre Cícero eles acreditam”.
Outro viés diferenciador para o seu tempo era a disponibi-
lidade em tratar com a imprensa, o que levou alguns acadêmi-
cos a discordar da sua fala aberta e, às vezes, pouco “científi-
ca”. Para responder tinha um forte argumento: “Prefiro errar
algumas vezes ou ser mal entendido a me omitir de contribuir
para a ampliação da consciência ambiental”. Nesse momento,
ele estava gerando as primeiras discussões locais sobre o papel
do cientista diante da sociedade.
Foi com esse ímpeto que nos ajudou a criar a Associação
Pernambucana de Defesa da Natureza (Aspan), uma das pri-
meiras do Brasil, da qual tenho a satisfação de ter sido um dos
fundadores e primeiro presidente. Foi com esse ímpeto que
denunciou o desmatamento da Mata do Engenho Uchoa e da
Mata de Caetés, sendo as duas depois transformadas em uni-
dades de conservação.

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Fui testemunha de sua pressa e ansiedade no final da vida,
vendo que tinha o Mal de Parkinson e que iria parar. Parou,
mas nós continuamos.

Publicado em 27 de junho de 2008

37
(Re) naturalizar o Recife?

O Recife tem cerca de 1,5 milhão de habitantes em 220


km², apresentando a quarta maior densidade demográfica
das capitais brasileiras. Oficialmente a área rural já desa-
pareceu no município e, por isso, o chamamos Cidade do
Recife. Como em quase toda cidade, as áreas construídas
avançam sobre as naturais, até que tudo se transforma na
mesma paisagem: um enredado de ruas calçadas, prédios e
favelas, misturando-se ao comércio e aos escritórios.
Porém ainda temos chance de resguardar áreas natu-
rais que, mesmo alteradas, dão expressão a uma paisagem
diferenciada, na ótica de quem a enxerga atentamente.
Ainda estão aí os rios Capibaribe e Beberibe, algumas ma-
tas como as de Dois Irmãos e Engenho Uchoa, manguezais
como os do Pina e Tejipió, além dos poucos quintais e das
praças e parques plantados pelo homem.
Mas o recifense pouco enxerga este patrimônio, portan-
to quase não o valoriza. Exceção é a praia de Boa Viagem,
ambiente natural ainda protegido de bares e carros, que já
está incorporada ao imaginário das pessoas como um bem
inalienável.
De resto, são afluentes de rios transformados em ca-
nais e afluentes desses convertidos em galerias pluviais.
Se a cidade fez-se sobre o mangue salgado, ampliou-se
sobre a água doce dos riachos e as folhas e frutos da Mata
Atlântica.
Como então resgatar esses bens naturais sem deixar de
ser cidade? Como inserir na percepção coletiva o entendi-
mento de que a vegetação e os cursos d`água determinam
a personalidade do Recife, diferenciando-a, justamente
por isso, de outras capitais? Qual cidade tem um corredor
natural de leste a oeste, como o formado pelo Rio Capiba-
ribe e sua várzea? Um corredor ecológico que liga as matas
da Várzea e de Dois Irmãos ao manguezal do Pina. Também
38
um corredor de águas, que condiciona as pontes, e de ven-
tos, que leva frescor ao urbano em pleno clima equatorial.
Para isso, por vezes é necessário até mesmo desconstruir.
Na realidade, a prefeitura já o faz, quando retira ocupações
de baixa renda das margens de rios e canais, mas as substitui
por novas estruturas, agora em concreto: calçamentos, enro-
camentos e pontes. Porém muitas vezes a renaturalização é
possível e necessária. Desafoga, restaura o diálogo do mora-
dor com a natureza, melhora o microclima, reduz o ruído e
dá chance à infância que cresce.
Mas no contexto urbano renaturalizar não implica, ne-
cessariamente, plantar novas matas ou fazer com que os ria-
chos voltem ao seu meandro original. Significa conservar e
recuperar as matas que existem, despoluir os cursos d´água,
revegetar as suas margens e, por vezes, abrandar estruturas
em concreto, que não sejam imprescindíveis à segurança da
drenagem ou à acessibilidade do cidadão.
Assim teremos, naturalmente, um Recife melhor.

Publicado em 19 de agosto de 2008

39
Renaturalizando o riacho Parnamirim

O riacho Parnamirim, visto por quem passa pelo Shop-


ping Plaza, pode ser um canal fétido e retificado, que já po-
deria ser esquecido por todos se hoje estivesse coberto com
placas de asfalto ou cimento. Seria apenas mais um dos 66
canais do Recife.
Mas para o morador antigo e atento dos bairros de Casa
Forte e Parnamirim, o riacho tem mais significado. Foi lugar
de travessias bucólicas, banhos de água limpa e apanha de
peixinhos para criar em aquário. Foi caminho para encur-
tar distâncias quando se queria atravessar da praça de Casa
Forte à antiga Rádio Jornal do Commercio, já próxima ao rio
Capibaribe. Lá, hoje, está o Hiper Bompreço.
Tem mais. O Parnamirim, que na língua tupi significa rio
pequeno, foi um dos motivos para a localização do forte Real
do Bom Jesus, no atual Sítio da Trindade, quando no século 17
os portugueses tentavam barrar as investidas dos holandeses
para o interior. Isso porque o local “ficava muito perto do rio
Capibaribe e ainda mais do riacho Parnamirim”, no dizer do
historiador Pereira da Costa.
Foi ainda por ele que os holandeses, em 1634, tentaram
atacar aquela fortificação, subindo com barcos pelo seu leito,
sendo rechaçados e mortos uns cem, depois de sangrenta ba-
talha de um dia inteiro.
Como se vê, este canal fétido guarda mais do que excremen-
tos in natura, de recentes habitantes que lhe estrangulam as
margens e canalizam fezes. Guarda história e paisagens que
precisam ser resgatadas. Por isso a ideia de renaturalizá-lo.
Ou seja, resgatá-lo em seu leito e margens, para que os mo-
radores desfrutem de espaço público mais natural, em que
a água e a vegetação sejam valores da paisagem e a história,
ingrediente da cidadania.
Porém toda reconquista tem seu preço: de aterro em ater-
ro, o riacho diminuiu de tamanho e agora tem 1.170 metros.
40
Em seu trecho final, da Avenida 17 de Agosto à desembocadu-
ra no rio Capibaribe, já apresenta laterais revestidas e o seu
leito é condicionado pelo sistema viário local. No médio, que
vai até pertinho da Rua da Harmonia, acolhe a favela Ilha das
Cobras, que percorre a rua Lemos Torres. No trecho superior,
iniciado na rua Jerônimo de Albuquerque, já em Casa Forte, as
casas de classe média lhes dão as costas e esticam os muros
sobre as áreas públicas de suas margens.
Mas mudanças se fazem a partir de oportunidades: a Pre-
feitura do Recife vai implantar o Projeto Capibaribe Melhor,
que contempla na área saneamento e realocação de moradias
irregulares, para “ordenamento urbano”. Para isso, conta
com dinheiro suficiente que, se bem usado, vai melhorar as
condições do ambiente. Podemos, com o aporte deste projeto,
fazer uma releitura deste ordenamento urbano.
Para serem aceitas, no entanto, as mudanças precisam ser
entendidas e assumidas por gestores e beneficiários. Eis o de-
safio: gerar uma proposta realista, clara, factível e inovadora,
para viabilizar a primeira renaturalização de curso d´água ur-
bano da Região Metropolitana do Recife. Uma proposta que,
acho, interessa a todos. Para isso aceito contribuições de ideias
e testemunhos.
Quem sabe, em mais alguns anos refaremos a pé o caminho
dos holandeses até o histórico Sítio da Trindade, e cruzaremos
o bairro do Parnamirim em via própria de contemplação por
um parque linear, corredor de vegetação e de águas, sem com-
petir com os carros.

Publicado em 2 de setembro de 2008

41
A árvore de Júlia

Assisti recentemente à peça A árvore de Júlia no Teatro de


Santa Isabel, com texto do espanhol Luís Matilla e direção da
pernambucana Lívia Falcão. De início, senti uma linearidade
frustrante, lembrando um espetáculo infantil, geralmente
cartesiano. Mas a insistência no estilo me levou a esquecer que
era noite e que, em princípio, o texto foi escrito para adultos.
A garota Júlia assume, com seu ato de subir no baobá e de-
fendê-lo do corte pelas serras de um empresário, o risco de
ser odiada pela sociedade local, capitaneada pelo prefeito, ge-
ralmente escudeiro do “progresso” e aliado dos poderes mais
superiores do que os dele.
Mas, por consequência do interesse da mídia, a atitude da
criança cai nas graças do povo, que agora se orgulha de ter
uma heroína, projetando-se nela. Eis que uma consulta é lan-
çada à plateia por uma apresentadora de TV, personagem da
peça, recebendo do público no teatro total apoio à atitude
idealista e corajosa da pequena. Foi uma unanimidade aca-
chapante, evidenciando que no imaginário coletivo a árvore
é um bem e que deve ser defendida e preservada.
Lembra-me o ato de Dayrell, um jovem mineiro que nos
primórdios do ambientalismo militante no Brasil subiu em
uma árvore em Porto Alegre e ficou lá até que o poder local
desistisse de derrubar esta e outras acácias, apenas desvian-
do um pouco o meio-fio da saída de um novo viaduto. Como
esse ato repercutiu na consciência cidadã de uma geração
gaúcha no final da ditadura militar! Hoje elas estão lá, mais
frondosas do que antes.
Vê-se que a indignação e o radicalismo são ingredien-
tes muitas vezes necessários, mesmo que aos olhos conser-
vadores seja um risco à estabilidade social. Assim como na
peça, o que parecia delírio passou a ser razoável (afastar a
indústria para local adequado), no momento em que foram
criadas as condições para se pensar diferente.
42
Portanto, salve os radicais que, com aparente rompante
infantil, oferecem a oportunidade para que moderados, inse-
ridos e legitimados pelo poder, façam mudanças necessárias
a uma relação mais justa do homem com a natureza. Assim,
passo a passo, podemos construir uma outra realidade.
Mas, mesmo sem radicalismo, é possível e necessário pen-
sar ideias novas que gerem soluções alternativas aos hábitos
e decisões tradicionais de encarar o meio ambiente, na cida-
de ou no campo. Soluções que, por vezes, parecem impraticá-
veis, são depois aceitas pela sociedade desde que sensibiliza-
da pela informação.
Neste caso, a mídia de rádio e televisão comercial, que às
vezes tem papel tão aviltante na formação de uma cidadania
distorcida, é uma aliada fundamental. Daí uma outra lição:
em decorrência da pluralidade social, com incríveis dife-
renças de visões e de estratégias simultâneas na sociedade,
muitas vezes precisamos nos aliar com diferentes segmentos
políticos, sociais e econômicos para viabilizar o que defende-
mos, desde que haja convergência de princípios pelo que se
luta e possibilidade de vitória.

Publicado em 9 de setembro de 2008

43
Biologia, meio ambiente e cidadania

Recentemente fui convidado a fazer a conferência de


abertura do III Encontro Regional de Ensino de Biologia,
ocorrido na Universidade Federal Rural de Pernambuco. O
tema solicitado era “Ensino de biologia, meio ambiente e ci-
dadania: olhares que se cruzam”.
Ao aceitar um tema para falar, costumo centrar meu foco
no que foi solicitado, para não frustrar quem atenciosamen-
te me convidou, e ao público, que já espera pela abordagem.
Isso parece uma questão óbvia, mas nem sempre ocorre. As-
sim, apesar da dificuldade inicial de encontrar âncoras para
uma fala tão diversificada, resolvi recorrer a outra prática
que frequentemente utilizo: começar destrinchando o senti-
do das palavras do título da palestra que, juntas, traduzem o
tema esperado. Neste caso: ensino de biologia, meio ambiente
e cidadania. Daí é que me propus a refletir sobre elas.
Ensinar é possibilitar a aprendizagem por outra pessoa,
ajudando-a a desenvolver habilidades e valores, a descobrir
novidades e a entender diferentes lógicas de abordagem. É
muito mais do que apenas instruir, condicionar ou treinar,
como muitos afeiçoados a doutrinas pétreas acreditam.
Para isso a relação entre professor e aluno necessita de
uma atmosfera de confiança e respeito mútuo, numa pers-
pectiva de construção compartilhada de um outro patamar
de conhecimento. É claro que o saber do professor é pré-
-condição para a atividade de ensinar. Sem ele o docente não
passaria de um papagaio, a repetir o que está nos livros didá-
ticos, sem a condição de interpretar e criar. Mas o bom pro-
fessor também aprende ao ensinar.
Neste mesmo contexto, o aluno não é mera tábua de im-
pressão do conhecimento, fazendo-se um espelho do profes-
sor. Na realidade o aluno possui, naturalmente, um filtro de
percepção dos valores e informações recebidos, que lhe per-
mite captá-los em determinado nível, a depender de alguns
44
fatores, como a maneira de transmissão, o seu grau de inte-
resse pelo assunto e a sua inteligência. Saliente-se, porém,
que hoje o professor é um canal entre vários, para o acesso
do aluno ao conhecimento, mas continua sendo um cami-
nho privilegiado para a formação de valores e da lógica no
raciocínio.
O aluno que aprende é o aluno que pensa. Se ele souber
pensar de maneira consequente será capaz de compreender
não só aspectos físicos e biológicos, mas também de cidada-
nia. Esta, por sua vez, resulta do exercício da liberdade em
sociedade. Se o cidadão tem direitos e deveres, e se esses va-
lores precisam ser socializados, o comportamento cidadão é
também um ato de ensinar e aprender.
Nesta perspectiva a atenção com o meio ambiente e a qua-
lidade de vida, dos humanos e dos outros seres da biosfera, é
condição para uma cidadania plena, ecológica e socialmente
responsável.
É aí que os olhares se cruzam na abordagem do meio am-
biente, da cidadania e do ensino de biologia. A cidadania
ecológica se insere como aparentemente natural em cursos
como o de Ciências Biológicas, pela própria natureza do que
se estuda e aprende. Mas em outras áreas, como as das enge-
nharias, das ciências humanas ou das ciências exatas, a eco-
logização dos conteúdos e abordagens é também indispen-
sável, porque faz parte da raiz do comportamento humano
integrado com a casa, aqui vista como o meio ambiente, onde
se vive e se produz.

Publicado em 16 de setembro de 2008

45
A termodinâmica na natureza
Nada é tão prático como uma boa teoria. Pois é, se as coisas
são bem explicadas no campo teórico, fica mais fácil entender
os fenômenos que acontecem à nossa frente. É o caso das leis
da termodinâmica.
Este tema, cuja conexão com os processos ambientais do
dia a dia é muito direta, é geralmente visto como de difícil
entendimento, talvez por se encontrar no limite entre a física
e a biologia. Mas aceite o desafio de entendê-lo nos próximos
parágrafos.
A primeira lei da termodinâmica diz que “matéria e ener-
gia não podem ser criadas ou destruídas, somente trans-
formadas”. Significa que uma substância se transforma em
outra, através de processos físicos, químicos ou biológicos,
assumindo inclusive diferentes funções, mas não pode sim-
plesmente desaparecer. O mesmo é dito para a energia, que
se transforma de uma forma em outra, mas não desaparece,
pelo menos no universo. Esta é também chamada “lei da con-
servação de massa e energia”.
Já a segunda lei da termodinâmica assegura que “a entro-
pia do universo cresce na direção de um máximo”. Entende-
-se aqui como entropia a quantidade de energia que não é
mais capaz de realizar trabalho em um sistema, sendo um
indicativo de desordem da natureza. Também é chamada “lei
da entropia”.
Agora analisemos a primeira lei da termodinâmica em
termos práticos. Na natureza, existem as substâncias simples
como água, gás carbônico e sais minerais, que, se absorvidas
pela planta, transformam-se em matéria orgânica vegetal,
sob a forma de moléculas complexas como açúcares, prote-
ínas e gorduras.
O herbívoro, ao comer folhas e frutos, ingere e digere
esse material, absorvendo-o e metabolizando-o em outras
substâncias, como as proteínas animais. Se um carnívoro
come o herbívoro, ingere seus músculos e demais tecidos,
46
incorporando a proteína e utilizando-a em seu metabolis-
mo. Até que um dia o carnívoro morre e as bactérias se en-
carregarão de transformar matéria em substâncias simples
outra vez, como em água, gás carbônico e sais minerais.
Observe que, no processo, se fechou o ciclo da matéria,
garantindo continuamente a retroalimentação, desde que o
ecossistema permaneça equilibrado. Se fizermos um balanço
de massa, controlando todas as entradas e saídas, ele será zero.
Em relação à energia, há uma diferença. Em cada etapa
desse processo existem saídas do ecossistema quando, por
exemplo, pela respiração, a energia química das ligações de
moléculas orgânicas é transformada em energia calorífica,
dissipando-se o calor na atmosfera. Assim, em termos ener-
géticos, embora não ocorra desaparecimento de energia,
existe dispersão de parte dela, que se dissipa e não volta para
o ciclo da vida.
É aí que entra a segunda lei da termodinâmica. De acor-
do com ela, as transformações de energia se dão em direção
às formas menos concentradas. É o que vemos na cadeia ali-
mentar, em que os fenômenos da respiração bioquímica nas
células e da decomposição microbiana levam a reações exoe-
nergéticas, para disponibilizar a energia de movimento, seja
para transporte da seiva nas plantas, seja para o andar dos
animais. Depois de realizar trabalho, esta energia liberada
desorganiza-se ainda mais, sob a forma de calor. Esta é a for-
ma usual em que é dispersa na atmosfera.
Assim, pode-se dizer que a morte resulta da vitória da en-
tropia. E a vida? Essa busca permanentemente reusar e re-
ciclar a matéria e valorizar a energia que ainda é capaz de
realizar trabalho, buscando o que chamamos de equilíbrio
homeostático, ou seja, fazer com que a variação da energia
interna no ecossistema seja a menor possível. Portanto, a
vida é um eterno desafio à entropia, porque busca a comple-
xidade e a estabilidade, no seu processo de evolução.

Publicado em 4 de fevereiro de 2009

47
A termodinâmica na ecologia industrial

Em artigo anterior, vimos como funcionam as leis da ter-


modinâmica na natureza. A primeira lei trata da conserva-
ção de massa e de energia nos processos que ocorrem no
ambiente natural, enquanto a segunda se refere à tendência
de desorganização do sistema, ou do aumento da entropia, à
medida que as transformações acontecem.
Observamos, também, que a vida é a negação da entropia
e a morte resulta da vitória da desorganização e da disper-
são de matéria e energia, sobre a organização da vida. Quer
confirmar? Basta observar um pequeno animal moribundo e
acompanhá-lo após a morte, em sua desestruturação a olhos
vistos pelos dias seguintes.
Na realidade, nos sistemas vivos o metabolismo resulta de
dois processos opostos, mas complementares: anabolismo e
catabolismo. O primeiro corresponde à síntese de matéria or-
gânica e o segundo, à degradação, ou decomposição. Portan-
to, enquanto existir vida, o anabolismo será maior que o ca-
tabolismo. Essa é uma base importante para o conhecimento
da ecologia nos ambientes naturais.
E como isso funciona na ecologia, digamos, industrial? O
termo ecologia industrial vem sendo usado desde o final da
década de 1970, mas se tornou mais conhecido depois de um
artigo publicado na revista Scientific American, escrito por Ro-
bert Frosh e Nicholas Galloupoulos, em 1989. Eles tratam do
metabolismo industrial aplicando balanços de massa à circu-
lação de materiais e balanços de energia ao longo dos proces-
sos industriais.
Na indústria tradicional, temos alguns elementos-chave
a serem considerados: matérias-primas, fontes energéticas,
mecanismos de transformação industrial, resíduos e calor.
Cada etapa sequencial é linear, gastando-se os insumos e ge-
rando-se os produtos, com muitas perdas.
Se aplicarmos os balanços de massa e de energia ao siste-
48
ma industrial, iremos contabilizá-los como negativos, porque
no produto teremos menos massa e energia do que o que foi
necessário para produzi-lo. Poderemos, então, concluir que
os poluentes nada mais são do que matéria e energia jogados
fora, sendo uma medida da ineficiência das transformações
físico-químicas adotadas.
Assim, os processos industriais tradicionais levam a um
estado de máxima entropia, onde materiais são explorados,
atravessam o sistema e são dissipados no ambiente de forma
degradada e de pouco ou nenhum uso para melhorar o pró-
prio sistema.
O desafio é transformar o caráter linear dos processos in-
dustriais em cíclico e com conservação de energia, no qual
matérias-primas e resíduos sejam sistematicamente utiliza-
dos e reutilizados em todo o seu potencial, e que se perca o
menos possível de calor. Ou seja, a ecologia industrial consi-
dera que os resíduos devem ser reciclados dentro do sistema
e que a energia deve cumprir um papel de máxima utiliza-
ção, evitando a sua dissipação prematura.
Isso pode acontecer em uma indústria, onde sejam ado-
tadas medidas de reuso da água, reciclagem de materiais e
geração de subprodutos. Mas pode se estabelecer, também,
na integração de indústrias complementares, como em um
cluster, em que resíduos de umas são matérias-primas ou
fontes energéticas de outras. Com a crescente adoção dessa
estratégia pelas indústrias, os sistemas naturais estão dando
mais uma lição à tecnologia humana, que, a rigor, começou
imitando-a.

Publicado em 10 de fevereiro de 2009

49
Está faltando água

A vida nasceu na água, há 3,5 bilhões de anos. Da água


se fizeram micróbios, plantas e animais. Dela depende o ho-
mem, que suporta dez dias de fome mas não passa dois sem
bebê-la. Sem ela, nada feito.
Se no deserto vivem seres que se mexem e procriam, é
porque de alguma forma conseguem reter água do ar, da
umidade do solo ou de um veio perdido entre rochas. Nas re-
giões úmidas a água condiciona a exuberância da floresta,
enquanto nas áridas a vegetação é raquítica, característica
indicadora do estresse por que passa, com as grandes secas.
Bom seria que esse líquido, simples e mágico, estivesse dis-
ponível a todo tempo, em todos os lugares e na qualidade que
se quer! Mas, infelizmente, não é assim. Os recursos hídricos
se distribuem heterogeneamente no Planeta, no Brasil, no
Nordeste e, logicamente, em Pernambuco.
Em termos espaciais, se verifica que na Região Amazôni-
ca estão 70% de toda a vazão dos rios brasileiros, enquanto
que no Nordeste encontram-se apenas 3%. Por ironia, inver-
samente, lá vivem apenas 7% da população nacional, e aqui
30%. Na escala de Pernambuco o fato se repete, sendo que no
Litoral Sul chove cerca de 2.000 mm por ano, enquanto no
Sertão a média cai para 700 mm.
Por outro lado, ao longo do ano ocorrem grandes dispa-
ridades pluviométricas, provocando os chamados períodos
chuvosos e de estiagem. No semiárido pernambucano, por
exemplo, normalmente chove durante três meses, de dezem-
bro a fevereiro, enquanto próximo ao mar as chuvas come-
çam em março e avançam até agosto, cobrindo um semestre.
Se pensarmos em qualidade, ela é também heterogênea.
Nem sempre a água é adequada para uso pelo homem, seja
para beber, irrigar ou mesmo para uso na indústria. Basta ci-
tar que 97,3% das águas do Planeta são salgadas, e das águas
doces apenas 0,01% está na forma líquida, em rios. Para pio-
50
rar, a crescente poluição reduz a disponibilidade da água
doce de superfície, enquanto a demanda avança no ritmo
do crescimento da população e das múltiplas atividades
econômicas.
Podemos estimar que para atender aos 7,5 milhões de per-
nambucanos, precisaríamos de 1,5 bilhão de litros de água
por dia, considerando o consumo médio diário de 200 litros
por habitante (estes valores variam de 70 litros em áreas ru-
rais a até 450 litros em áreas urbanas).
Porém, de acordo com o Plano Estadual de Recursos Hí-
dricos, publicado em 1998, o atendimento das necessidades
domésticas correspondia em Pernambuco, naquela ocasião,
a apenas 22,6% da demanda de água, sendo necessários mais
66,1% para irrigação, 6,8% para indústrias e os outros 4,5%
para os demais usos. Isso exigiria uma disponibilidade de
aproximadamente 6,6 bilhões de litros diários, o equivalente
ao volume de 70 reservatórios da barragem de Tapacurá.
Na mesma ocasião, a disponibilidade hídrica era de 5,8
bilhões de litros por dia, incluindo as águas subterrâneas.
Portanto, está faltando água! A situação tende a se agravar,
conforme projeções de disponibilidade e demanda até 2.025,
feitas pela Agência Nacional de Águas (ANA), publicada no
Atlas Nordeste.
Assim, não há dúvida de que é preciso otimizar o uso dos
recursos hídricos. Isso exige uma gestão da escassez, com com-
partilhamento de usos múltiplos, corte radical do desperdício,
reuso da água e conservação dos mananciais hídricos.

Publicado em 13 de maio de 2009

51
O ecólogo Darwin

Há 150 anos, a teoria da evolução era lançada por Charles


Darwin, no seu livro A origem das espécies. Iniciava-se o
rompimento com a doutrina criacionista e a mudança radical
da visão sobre a própria origem do homem.
Para isso, com apenas 22 anos, Darwin faria uma viagem ao
redor do mundo, considerada a mais importante expedição
científica de todos os tempos. Nessa época, já havia iniciado
e abandonado a medicina, estudado geologia e desenvolvido,
como naturalista, uma enorme atração pela diversidade bio-
lógica, com acuradas observações sobre fauna e flora.
Durante cinco anos, a bordo do Beagle, atravessou os oce-
anos. Saindo da Inglaterra, tangenciou a África e chegou à
América do Sul, aportando em Salvador e Rio de Janeiro, no
Brasil. Foi aí que, espantado, afirmou que “a vista de florestas
selvagens vai levar todo e qualquer naturalista a lamber o
pó dos pés de um brasileiro”! Mesmo assim, não se atreveu a
colecionar nossas plantas e animais, preferindo descer para
Buenos Aires e Ilhas Falklands, onde, contornando o Cabo
Horn, subiu pela costa chilena e peruana, até chegar às ilhas
Galápagos, no Equador.
A sua visão multidisciplinar e integrada dos processos na-
turais permitiu-lhe entender os mecanismos da seleção na-
tural e a ser um dos precursores da ecologia, que ainda não
existia como termo ou ciência. Mas inúmeros casos eviden-
ciam Darwin já como ecólogo!
Convicto da transmutação das espécies, concluiu que, ape-
sar de cada ilha do arquipélago de Galápagos ter sua própria
espécie de tartaruga, todas elas eram originárias de uma úni-
ca população. Imaginou, corretamente, que a variabilidade
genética permitia que certos indivíduos dessas populações
da mesma espécie sobrevivessem em ambientes diferentes,
por serem mais aptos, transmitindo aos descendentes a nova
qualidade e consolidando uma nova espécie.
52
Foi como ecólogo que estudou a coevolução entre orquíde-
as e pássaros, em adaptações convergentes que facilitavam,
simultaneamente, a polinização cruzada das flores e a ali-
mentação energética dos pássaros beija-flores.
Na minha compreensão, foi como ecólogo que explicou a
formação dos atóis de coral na Ilhas Cocos, os quais foram se
formando gradualmente sobre as bordas de extintos vulcões
no Oceano Índico, à medida que se elevava o nível do mar no
último período pós-glacial. Hoje são praias circulares, com
areias de conchas quebradas pelo agito das águas do mar e
cobertas por coqueiros.
Mas, na ecologia, por ser uma ciência interdisciplinar,
ninguém trabalha sozinho. Por isso Darwin contou com im-
portantes contribuições de cientistas de diferentes áreas do
conhecimento, permitindo-lhe formular as hipóteses que de-
pois se transformariam em teorias universalmente aceitas.
Já de volta para a Inglaterra, passou rapidamente por Re-
cife e Olinda, fazendo do Brasil o único país a ser visitado
duas vezes pela expedição. Infelizmente a sua percepção da
nossa capital não foi das melhores, quando considerou “as
ruas estreitas, mal-calçadas e imundas” enquanto as casas,
“altas e lúgubres...”. Quem sabe, mais uma vez ele teria razão!

Publicado em 1º de junho de 2009

53
Jardins botânicos

Recentemente voltei ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro


e lá visitei a mesma bela e viva paisagem. De palmeiras impe-
riais que nos esperam no canteiro central, da fonte de águas
que formam a cascata, ou do laguinho que as recebe, povoa-
do por espécies amazônicas. Reencontrei alamedas que con-
duzem a coleções vivas, como o orquidário e o bromeliário,
que também levam a destinos de infinita cultura biológica,
conservando testemunhos da imensa biodiversidade da Mata
Atlântica, como o herbário, a carpoteca e a xiloteca.
Continua lá o Jardim Botânico de braços abertos, para mim
e para todos os habitantes do mundo, cumprindo o seu papel
de conservar ex situ espécies nativas e exóticas, com carinho
e respeito pelas suas existências. É sua vocação produzir co-
nhecimento pelas pesquisas que desenvolve, de oferecer in-
formações a públicos diversificados, como crianças, idosos,
estudantes universitários e turistas, estrangeiros curiosos
em ler naquele espaço a pujança da nossa flora e um pouco
da nossa história.
A conservação ex situ das espécies consiste na manutenção
de organismos fora do seu habitat natural, em forma de pó-
len, sementes, plântulas e plantas adultas, sejam elas árvores
ou pequenos musgos. Essa estratégia busca conservar, mes-
mo fora do seu centro de origem ou de vida em estado nativo,
a variabilidade produzida no processo evolutivo ou mesmo
associada a processos de domesticação. Muitas vezes essa es-
tratégia tem sido útil na salvação de espécies ameaçadas de
extinção, no acolhimento de espécies oriundas de ecossiste-
mas destruídos ou até na sua reintrodução em ambientes em
recuperação.
Inicialmente os jardins botânicos foram criados para man-
ter próximas aos seus colecionadores ou usuários espécies
coletadas em lugares distantes. Essas plantas eram aí culti-
vadas com o objetivo medicinal, de paisagismo e de produ-
54
ção futura de alimentos. Depois dos chineses, considerados
precursores dos jardins botânicos, os europeus os utilizaram
para cultivar espécies trazidas de países tropicais por eles
colonizados, sendo os primeiros de Pisa, Pádua e Florença,
ainda no século 16. Mais tarde, criaram nesses países novos
jardins, agora para aclimatar espécies trazidas da Europa e
de outras partes do mundo, para uso e difusão local.
Hoje os jardins botânicos se espalham pelo mundo, em
uma rede com cerca de 700 membros em 118 países, filiados
ao Botanic Gardens Conservation International. Dela fazem
parte o New York Botanic Garden, o Kew Garden, o próprio JB
do Rio de Janeiro e o nosso pequeno Jardim Botânico do Re-
cife. No País, a Rede Brasileira de Jardins Botânicos já conta
com 34 filiados, dentre eles cinco no Nordeste.
O JB do Recife tem apenas dez hectares e localiza-se no
Curado, próximo a outras matas, pertencentes ao Exército.
Criado em 1960, recentemente passou por restauração da sua
estrutura, pela Prefeitura do Recife, com sinalização de tri-
lhas e instalação do centro de visitação, orquidário, melipo-
nário e até de um jardim sensorial.
No Curado, além desses ambientes para a educação cientí-
fica e ambiental, criados para os visitantes, ainda é possível
admirar silenciosamente um pé de sapucaia, com seus galhos
colonizados por bromélias, orquídeas, musgos, líquens, co-
gumelos, pássaros, abelhas, borboletas e formigas. Enquanto
se constituem em habitats para outras espécies, suas flores
atraem morcegos e seus frutos, grandes e em forma de cabe-
ça de macaco, abrem o opérculo para despejar sementes em
forma de castanha, à espera de roedores ou da germinação.
Tudo isso ocorre indiferente aos que passam pelas suas raízes
e sentem a rugosidade do seu tronco.
É possível também admirar o visgueiro, a árvore símbo-
lo daquele parque, com a copa emergente sobre as demais
e seus galhos maternais, debruçados sobre árvores menores
e sustentando vagens pendulares, que lhe deram o nome de
Parkia pendula.

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Porém na grande lista de jardins falta o Horto Del Rey,
considerado o primeiro jardim botânico do Brasil, tendo
sido criado no fim do século 18. Também conhecido como
Jardim Botânico de Olinda, situa-se próximo ao Alto da Sé,
tendo aclimatado espécies exóticas que chegavam ao Brasil
pelas mãos dos colonizadores. Foi assim com espécies asiáti-
cas como as árvores de fruta-pão, jaca e manga, hoje frutas
tão nossas, que muitos pensam ser nativas. Mas lá também
encontram-se espécies originárias da Mata Atlântica, que
parecem ser tão cosmopolitas quanto as anteriores, como os
pés de pitanga e de cajá.

Publicado em 8 de junho de 2009

56
Cidadania ecológica nas compras

As pequenas decisões, como nas compras do dia a dia, evi-


denciam nossa percepção de mundo e como nos inserimos
nele. Ao comprar um produto, mesmo sabendo que sua pro-
dução ou consumo degrada o meio ambiente, sinalizo o des-
prezo que tenho por mim e pelo futuro dos que ainda virão.
Por outro lado, se uso o meu dinheiro como um voto de-
positado em favor de um produto saudável, estarei contri-
buindo com um ato de cidadania ecológica e de valorização
da vida. Se a lógica é verdadeira para o indivíduo, posso
também imaginar que, se muitos pensarem assim, a cons-
ciência individual passará a ser coletiva, com muito maior
poder de influência.
Dessa maneira, o aumento da demanda pelo produto sau-
dável justifica a sua manutenção e até expansão no mercado,
estimulando, inclusive, que outros fabricantes ofereçam pro-
dutos semelhantes. Enquanto isso, os produtos que provocam
risco à saúde ou sérios impactos negativos ao meio ambiente
poderão sobrar nas prateleiras, induzindo os lojistas a não re-
novarem seus estoques. Nesse caso, não haveria quem se dis-
pusesse a continuar produzindo-os.
Claro como água! Um exemplo recente dessa experiência
é o que ocorreu nos Estados Unidos com os alimentos que
contêm gordura trans. Em 2001, o Instituto de Medicina ame-
ricano publicou um relatório associando a gordura trans, en-
contrada nos óleos nitrogenados, às doenças cardíacas, ao
aumento dos níveis de colesterol “ruim” (que obstrui as ar-
térias) e à redução do colesterol “bom” (que limpa os vasos).
Mesmo sem serem proibidos pelo governo, os alimentos com
óleos nitrogenados praticamente desapareceram porque os
consumidores deixaram de comprá-los.
Outro caso emblemático foi o resultado da campanha “co-
mendo a Amazônia”, desencadeada pelo Greenpeace em 2006,
contra a cadeia de lanchonetes McDonald`s e em defesa da
57
floresta em pé. Isso obrigou a rede de fast food a rever seus
contratos e a se aliar à entidade ambientalista para a so-
lução do impasse, gerando uma parceria até pouco tempo
inimaginável.
O mesmo ocorreu com a Nike, que foi contundentemente
acusada, em notícia no New York Times, de produzir seus
materiais esportivos em fábricas que não respeitam os di-
reitos humanos, contratando fornecedores que usam tra-
balho infantil e pagam salários aviltantes na Ásia. A infor-
mação disponibilizada alertou os consumidores. A empresa,
que no início desdenhou da denúncia, mudou sua prática
com receio de perder mercado. A partir daí, passou a condi-
cionar as suas compras ao cumprimento de normas sociais
e ambientais, gerando uma verdadeira mudança na cultura
da cadeia produtiva.
Por esses exemplos, vê-se que a cidadania ecológica tem
força quando potencializada pelo sentimento coletivo de ci-
dadãos conscientes de sua responsabilidade no mundo em
que vivem.

Publicado em 11 de agosto de 2009

58
Veneno na boca

Pela manhã costumo tomar café reforçado. Começo pelas


frutas: mamão, melancia e melão. Morango, quase não en-
tra neste cardápio. No almoço, priorizo uma salada colorida,
com alface, tomate e pimentão. Por vezes, a couve-flor.
É certo que quem come esses vegetais tem sempre uma
pontinha de preocupação com o veneno que pode estar en-
golindo junto. Afinal, não é de hoje que se fala no uso exces-
sivo de agrotóxicos no cultivo dessas plantas, inclusive em
Pernambuco. Não sem razão: o Brasil é campeão mundial no
consumo desses venenos, movimentando 7 bilhões de dóla-
res anuais e produzindo nada menos que 700 mil toneladas
deles, todo ano. Consumimos hoje, 16% de todo o veneno de
lavoura do mundo, e 84% do que se comercializa nos países
da América Latina.
Mas preocupação é uma coisa, apavoramento é outra. Foi
o que aconteceu comigo quando assisti a uma palestra da
dra. Susiane Lopes, da Agência Pernambucana de Vigilância
Sanitária, na última reunião do Conselho Estadual de Meio
Ambiente. Ali descobri a enorme quantidade de agrotóxicos
ainda usados nessas culturas, apesar de proibidos. Em outras
vezes, produtos usados em doses dez vezes superiores ao per-
mitido. São herbicidas, fungicidas, inseticidas e outros, com
nomes difíceis, que dá até abuso em pronunciar ou escrever.
O Programa de Monitoramento de Resíduos de Agrotóxi-
cos em Alimentos Comercializados em Pernambuco mostra,
por exemplo, que em nosso pimentão são encontrados com
frequência, pelo menos 18 agrotóxicos de uso não autorizado
em sua cultura, como profenofós, cipermetrina, dicofol, clor-
pirifós e endosulfan. Carrega também doses excessivas de
produtos tóxicos ao homem quando em concentrações não
permitidas, como ditiocarbanato e acefato.
Alface e couve-flor também não fogem à regra, ou melhor,
chegam a radicalizar na presença de proibidos, apresentan-
59
do-se quase todas as suas amostras positivas. Muitas vêm de
Vitória de Santo Antão e de Camocim de São Felix, pólos pro-
dutores de hortaliças.
Mas até as frutas como mamão, melancia e melão carre-
gam em sua suculência tropical os radicais químicos do en-
venenamento. Não só as produzidas em nosso Estado, mas
as que chegam de grandes centros produtores nacionais,
como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina e Es-
pírito Santo.
Na palestra, porém, eu só não entendia por que a dra.
Susiane falava alegre, sorridente, parecendo esbanjar um
certo sadismo sobre os conselheiros. No final, felizmente
compreendi. Ela mostrou que o esforço compartilhado das
vigilâncias sanitárias no Brasil está revertendo este qua-
dro, com recentes mudanças nos índices de contaminação,
inclusive em Pernambuco.
Para ilustrar, apresentou um caso emblemático, o do mo-
rango. Depois da fama de ser uma bomba de veneno, devido
ao uso indiscriminado de agrotóxicos em sua cultura, os ín-
dices no produto passaram a ser aceitáveis, criando-se até
um selo de compromisso com o consumidor, atestado pela
Apevisa. Isso graças a um programa de rastreabilidade da
produção e comercialização, iniciado em 2003, envolvendo
supermercados e a Ceasa, com a interveniência do Ministé-
rio Público.
Mas, como seguro morreu de velho, prefiro as verduras e
frutas das feiras de orgânicos. Nelas, o monitoramento ates-
ta: zero de agrotóxicos.

Publicado em 8 de dezembro de 2009

60
Capibaribe, o rio das capivaras e
da integração pernambucana

Se pedirmos ao recifense que cite cinco palavras que lem-


bre melhor Pernambuco, com certeza uma será Capibaribe.
No dizer do poeta Mauro Mota, é “o rio ninando o Recife, o
Recife criança em seus braços”.
A sensação que temos é de que o rio é nosso, sendo o reci-
fense e ele inseparáveis. O que levou Gilberto Freyre a dizer
que no bairro de Apipucos o Rio Capibaribe meandrava, se
contorcendo, resistindo a ir ao mar.
É também o “Cão sem plumas”, do poema de João Ca-
bral, que descreve o rio e o homem como entidades indis-
sociáveis, tão confundidos que não é possível saber onde
um começa e o outro termina.
Para mim, na ótica de quem nasceu no Recife, nada me-
lhor representa o Rio Capibaribe do que as suas várzeas, onde
primeiro se consolidou a cultura da cana-de-açúcar, sendo
ocupadas desde o século 16 por engenhos e povoadas por tra-
balhadores escravos e seus feitores. Depois escavadas pelas
olarias, para alimentar de tijolos e telhas a cidade que crescia
na planície e expulsava a pobreza para os morros e alaga-
dos. Por fim, invadidas pelos grandes edifícios da construção
massiva, engolindo as beiras de rio e ocupando o espaço pul-
sante das águas.
Mas, antes, o Capibaribe já foi o rio das capivaras (caa-
piuar-y-be, na língua tupi). Hoje ele simboliza Pernambuco e
por onde passa plasma sua presença na paisagem, sendo por
vezes redentor e, por outras vezes, algoz, a depender se é fon-
te de água para abastecimento ou se é enchente que inunda
as cidades.
Não é um rio pequeno; nasce em Poção e percorre 42 mu-
nicípios, drenando 7,6 % do território estadual até se encon-
trar com o Rio Beberibe, já no Porto do Recife.
Assim, parodiando o que se diz do São Francisco, podería-
61
mos afirmar que o Capibaribe é o rio da integração estadual?
Acredito que sim. Se observarmos direitinho, a bacia hidro-
gráfica do Capibaribe recapitula geograficamente o próprio
Estado de Pernambuco, com todas as suas zonas, de Sertão,
Agreste, Mata e Litoral.  Como no Estado, seus afluentes são
no início intermitentes, condicionados a poucas chuvas, pas-
sando a caudalosos quando se aproximam das massas de ar
úmidas vindas do oceano.
Ainda há outro motivo para ser o rio da integração. His-
toricamente, o Capibaribe é a ligação entre a cultura da
cana-de-açúcar da Zona da Mata e os currais do Agreste e
do Sertão.
Pena que o rio carregue consigo uma mágoa. Se antes era
balneário da classe abastada, hoje recebe o esgoto de todas as
classes. Se antes transportava canoas de comércio e passagei-
ros, hoje parece um depósito de achados e perdidos, pelo lixo
que acumula. Se há 100 anos fez nascer o Clube Náutico Capi-
baribe, hoje faz os remadores do Sport pensarem duas vezes
antes de caírem em suas águas.

Publicado em 6 de abril de 2010

62
Capibaribe das águas limpas, por que não?

Embora por onde passe se insinue na paisagem com seus


meandros de cobra, cor de argila e o verde das baronesas
desgarradas, o rio Capibaribe foi abandonado à própria sorte
pela maioria da sociedade, recebendo periódicas cargas in-
dustriais e permanentes despejos de esgotos domésticos e de
lixo ao longo de décadas, e mesmo séculos.
Embora isso seja verdade, é também certeiro que nem
todos aceitam esta situação terminal, absurda e autofágica,
porque com a morte do rio morre também um pouco de cada
cidade por onde ele passa.
Se antes apenas alguns brandiam contra a sua degrada-
ção, hoje se faz um coro mais audível, articulado e promissor,
com possibilidades de reversão deste quadro aviltante à na-
tureza e ao próprio homem, que dela faz parte.
Algumas iniciativas nas últimas décadas apontam nesta
direção. Por vezes são movimentos sociais espontâneos, em
outros casos são propostas que se consolidam em projetos da
sociedade civil organizada, e em outras ocasiões, ainda, são
projetos governamentais de investimento em infra-estrutura
e controle da poluição.
Assim, palavras de ordem que representam a ideia da re-
cuperação do rio se sucedem: Viva o Capibaribe, Vida ao Ca-
pibaribe, Salve o Capibaribe, Capibaribe Melhor, etc., e até a
pergunta que não se cala, motivo de uma campanha de co-
municadores locais: você quer nadar no Capibaribe? Afinal,
queremos um Capibaribe de águas limpas, por que não?
No contexto de nova ótica para enxergar o rio de dentro
para fora e de fora para dentro, valorizando as interfaces de
suas águas com os caminhos que elas percorrem, é que muitos
hoje se esforçam para ter uma visão mais completa e integrada
do Capibaribe, não apenas como um curso d`água, mas como
uma bacia hidrográfica, considerando a proteção das suas áre-
as de produção e drenagem da água desde as nascentes, pas-
63
sando pelos pequenos e grandes afluentes, até chegar ao leito
principal e se encontrar com o mar.
Diante deste novo cenário, surge uma figura institucio-
nal que congrega em torno da mesma causa a sociedade ci-
vil organizada, governos, empresários, agricultores e pes-
cadores. É o Comitê da Bacia Hidrográfica do Capibaribe,
também chamado de COBH Capibaribe.
Criado há três anos e com 45 instituições governamentais
e não governamentais, o COBH Capibaribe tem articulado
ações conjuntas, além de discutido e acompanhado projetos
estruturadores que levem à reversão do crítico estágio am-
biental da bacia.
É um vetor que pode fazer a diferença, como articulador e
indutor de novas práticas na bacia do rio Capibaribe. Aposto
e pago pra ver.

Publicado em 27 de abril de 2010

64
Embates ecológicos sobre Suape

Há pouco mais de 30 anos, homens e mulheres pescado-


res do mar e dos rios Massangana, Tatuoca, Ipojuca e Merepe
sustentavam suas famílias e moravam sossegados no litoral
de Suape, em Pernambuco. Na região, urbanos também bus-
cavam a paz e o convívio simples, assumindo aquele espaço
como patrimônio natural e histórico que deveria ser preser-
vado. Foi com essas pessoas que começou o movimento ecoló-
gico em defesa de Suape, no qual me incluo, antepondo-se ao
então projetado Complexo Industrial e Portuário de Suape.
No entanto, apesar do movimento, o projeto foi se tor-
nando inexorável. Tanto que, em 1986, quando foi aprovada
a lei para proteger os estuários de Pernambuco, excluiu-se da
proteção justamente a zona estuarina de Suape! Estava ali a
senha para a destruição paulatina.
De lá para cá, muita coisa aconteceu. Por um lado, agluti-
nando-se forças econômicas e de poder político para a viabi-
lização do Complexo; por outro, se dispersando os que acre-
ditavam em um destino diferente para aquele paraíso.
Nos 20 anos que se seguiram, a empresa Suape fez o que
quis. Sentiu-se em território outorgado para intervenções pe-
sadas e sem controle externo, pouco significando a existência
da CPRH ou do Ibama. A área foi considerada pelos gestores
locais como um território independente, definindo as próprias
regras, estabelecendo seu discurso ambiental de acordo com
as conveniências e remodelando os contornos das zonas de
ocupação sob a exclusiva ótica do próprio empreendimento.
Só a partir da década de 1990 é que o então governador
Miguel Arraes reconheceu o poder legal da CPRH para esta-
belecer o controle externo, ocasião em que o órgão exigiu a
elaboração do Estudo de Impactos Ambientais do Plano Di-
retor e a identificação do passivo ambiental do empreendi-
mento, gerando os chamados planos básicos ambientais por
ocasião do licenciamento.
65
Mesmo assim, nos últimos dez anos, a ação dos órgãos
ambientais tem sido precária, insuficiente na fiscalização
e em fazer cumprir adequadamente o que consta nos li-
cenciamentos ambientais. Menos eficaz ainda como indu-
tor de uma gestão ambiental que incorpore a conservação
e a recuperação de ambientes por Suape. Assim é que, dos
12 termos de compromisso assumidos pela empresa para
compensar as supressões de vegetação nativa autorizadas
pela Assembleia Legislativa, inexplicavelmente apenas um
foi cumprido, mesmo assim com um índice de recuperação
aquém do esperado.
Nesse contexto, surge o Projeto de Lei enviado pelo atual
governador à Assembleia Legislativa, que autoriza a supres-
são de 1.076 hectares de vegetação nativa, sendo 893 ha de
mangue, 166 ha de restinga e mais 17 ha de Mata Atlânti-
ca. Mas qual a efetiva necessidade de tamanha área? O que
garante a compensação correta do que será desmatado? Que
áreas efetivamente são essas? Com essas perguntas na cabe-
ça e querendo provocar a discussão sobre o assunto, é que,
na condição de conselheiro representante da UFPE, solicitei
a reunião extraordinária do Conselho Estadual do Meio Am-
biente, ocorrida em 9 de abril passado.
Para minha surpresa, 30 anos depois, as forças questiona-
doras dos desmatamentos previstos em Suape ressurgiram,
por meio de novos atores do movimento social, particular-
mente ambientalistas. As pressões - legítimas, necessárias e
oportunas – que se estabeleceram sobre a Alepe e sobre o
Consema possibilitaram alguns avanços em relação ao pró-
prio conteúdo da lei e do posicionamento do Conselho.
Após recuo parcial do Governo do Estado, a Lei Estadual nº
14.046/2010, recém-aprovada, autoriza a supressão de 691 hec-
tares de vegetação, sendo que a redução na área a ser suprimi-
da corresponde a 385 ha de mangue. Também como resultado
de pressão, a nova redação autoriza que o Consema defina as
formas de compensação ambiental, possibilitando, assim, a am-
pliação do nível de exigência em relação ao próprio corpo da lei.

66
No entanto, entendo que a conjuntura hoje é outra. Não se
trata de negar o Complexo Industrial Portuário, mas de fazê-lo
em bases legais e ambientais corretas, mesmo reconhecendo
que porto e indústrias possuem intrinsecamente grande po-
tencial de impacto ambiental.
Nesse processo, é necessário, antes de tudo, garantir a trans-
parência do que está acontecendo naquele território, sobretu-
do por meio do acesso às informações sobre o cumprimento
dos licenciamentos e dos termos de compromisso, assim como
sobre os monitoramentos existentes e a situação real das com-
pensações ambientais dos empreendimentos aprovados. Ainda
é pouco, é preciso também que a sociedade organizada tenha o
direito de acompanhar de perto o passo a passo dessa delicada
engenharia da gestão ambiental no Complexo de Suape e, com
isso, possa influenciá-la positivamente.
Nisso o Consema pode contribuir muito. Aliás, foi o que
fez quando incluiu na Resolução 03/2010 (aprovada no dia 28
de maio), entre outras deliberações, a decisão de: determinar
a atualização do Estudo de Impacto Ambiental do Plano Di-
retor de Suape, considerando que o anterior já tem dez anos;
exigir a elaboração de levantamento com mapeamento de to-
das as áreas de manguezal inseridas nos estuários dos rios
Jaboatão, Pirapama, Massangana, Ipojuca, Merepe e Maracaí-
pe, levando em conta o estágio atual de conservação, a situa-
ção fundiária e as áreas degradadas passíveis de recuperação
ambiental; condicionar as emissões das Autorizações de Su-
pressão da Vegetação pela CPRH, à anuência dos projetos de
compensação ambiental pelo Ibama, contendo alternativas
de recomposição florestal e de monitoramento da fauna que
incluam a recuperação de ambientes degradados e represen-
tem novas áreas dos ecossistemas e não apenas a conserva-
ção daqueles existentes.
Ficou também definido na mesma Resolução o acompa-
nhamento semestral pelo Consema do cumprimento dos ter-
mos de compromisso firmados por Suape quanto às autori-
zações de supressão de vegetação já concedidas e das novas,

67
decorrentes da recente lei; e a exigência de que as empresas
que venham a ocupar as áreas sejam corresponsáveis pelo
cumprimento da compensação ambiental. Além disso, a em-
presa deverá implantar e dar sustentação a uma nova Unida-
de de Conservação, que deve incluir o manguezal não afetado
no Rio Ipojuca, assim com o manguezal e matas de restinga
dos estuários dos rios Merepe e Maracaípe, incluindo toda a
lagoa de Porto de Galinhas.
Essas exigências não substituem as que deverão ser fei-
tas quando do licenciamento de cada empreendimento es-
pecífico, como estaleiro ou outro tipo de indústria, devendo
ser regidas por outra resolução do Consema, já discutida e
aguardando ser aprovada, que define os procedimentos para
cálculo do montante financeiro a ser desembolsado pelas
empresas para atender às compensações ambientais.
Finalmente, para monitorar essas deliberações, o Conse-
ma criou uma Comissão Técnica de Acompanhamento, que
deve ter composição paritária e que, depois de nomeada, de-
verá relatar periodicamente as suas informações e análises,
em reuniões específicas e abertas do Conselho, para discus-
são e deliberação.
Estamos, portanto, em uma fase importante no processo
democrático de discutir Suape, com a participação mais ativa
do Consema, esperando que ele consiga imprimir qualidade
no monitoramento das decisões agora tomadas. Para isso, o
ressurgimento das forças ambientalistas ajuda nesse proces-
so, questionando, acompanhando e contribuindo para seu
avanço e efetividade.

Publicado em 12 de junho de 2010

68
O manejo da caatinga

A caatinga é o único bioma exclusivamente nordestino,


não ocorrendo em qualquer outro lugar do mundo. Isso sig-
nifica que, se não cuidarmos dela, dificilmente outros cuida-
rão. A partir de estudos mais recentes, tem-se evidenciada a
sua importância em biodiversidade, não se constituindo me-
ramente em uma uniforme “mata branca”, mas de múltiplos
ecossistemas e fisionomias vegetacionais, que guardam espé-
cies endêmicas e muitas delas ameaçadas de extinção.
Mas, desde muito tempo, a vegetação de caatinga é conhe-
cida do sertanejo, sendo sua companheira e auxiliar na so-
brevivência no semiárido, produzindo alimentos, forragem
para o gado, produtos madeireiros e disponibilizando uma
vital fonte energética, tanto para consumo doméstico quanto
para atividades produtivas.
Mesmo diante do entendimento mais amplo da sua im-
portância, as pressões que a levam à destruição continuam
a ocorrer. São os fornos das olarias, casas de farinha, pada-
rias, churrascarias e calcinadoras de gesso, essas na região
do Araripe. O consumo de lenha e carvão continua a ter pre-
dominante participação na matriz energética do semiárido
nordestino. Para mudar esta base energética, será preciso
disponibilizar novas fontes de energia, necessariamente
mais limpas e que, ao mesmo tempo, não sejam socialmente
excludentes.
Porém, quando se pensa em exploração florestal, para fins
energéticos ou não, tem-se uma profunda desconfiança so-
bre os seus resultados ambientais, nada sustentáveis. Moti-
vos não faltam para essa descrença. Primeiro, o Brasil não
tem tradição de manejo florestal de vegetação nativa, sendo
comuns o desmate e a imediata substituição do uso da terra,
sem possibilitar a recomposição da vegetação original. Se-
gundo, as experiências vindas da Amazônia e da Mata Atlân-
tica ou são muito incipientes ou foram negativas.
69
Assim, é preciso vencer essa desconfiança e atuar em ba-
ses técnicas seguras e com monitoramento das novas experi-
ências que estão surgindo no semiárido, com manejo de caa-
tinga na região de beneficiamento da gipsita.
A vegetação de caatinga tem um porte geralmente baixo,
mas com uma grande quantidade de indivíduos arbóreos,
que apresentam enorme capacidade de rebrotar quando cor-
tados e reagem rapidamente às primeiras chuvas. Segundo os
especialistas, uma vegetação cortada leva de 9 a 14 anos para
voltar ao porte original, inclusive em biomassa. Isso eviden-
cia forte resiliência, ou capacidade de autoafirmação biológi-
ca, embora seja esperado um empobrecimento gradativo da
biodiversidade se não forem tomados cuidados que minimi-
zem esse efeito adverso.
Por isso, o manejo não deve ser realizado em áreas de
preservação e, sim, onde é legalmente aceitável se desmatar
para fazer agricultura ou pecuária. Nesse caso, o ganho com
o manejo é evidente porque manteria a vegetação de caatin-
ga, mesmo que em processo de explotação.
Além disso, essa vegetação é forte manancial de produtos
não madeireiros, como frutos para produção de polpa, geleia,
compota, doce ou mesmo in natura (umbu, caju e murici);
para fabrico de artesanato, como aqueles com fibra do ca-
ruá, em bolsas, cintos e jogos de mesa; para produção de bio-
joias, como brincos, colares, pulseiras, arranjos em sandálias
e chaveiros; e ainda, para uso medicinal, como em sabonetes,
xaropes naturais, hidratantes e cremes.
O segredo, portanto, é encontrar o ponto de equilíbrio,
que leve à sustentabilidade ecológica, econômica e social no
bioma caatinga. Isso não exclui sequer o plantio e manejo de
árvores exóticas, que também podem ser fonte energética,
desde que isso não implique mais desmatamentos de nativas.

Publicado em 19 de outubro de 2010

70
Meio ambiente do Nordeste
na visão de Gilberto Freyre

Recentemente, li um livro de Gilberto Freyre, publica-


do pela primeira vez em 1937, que me deu a dimensão do
seu pensamento sobre o meio ambiente do Nordeste bra-
sileiro e de sua percepção da ecologia. Um termo, aliás,
que, embora tenha sido cunhado em 1869, só começou a
ser usado no Brasil mais de 50 anos depois, ocasião em que
em Pernambuco estavam em plena atividade intelectual e
formuladora de cientistas como Dárdano de Andrade Lima
e Vasconcelos Sobrinho.
Do livro Nordeste – aspectos da influência da cana sobre a vida
e a paisagem, é possível fazer uma leitura sociológica, antro-
pológica e ecológica da região, mesmo que a sua abordagem
seja somente do Litoral e da Zona da Mata. De um Nordeste
agrário e do açúcar, em detrimento de uma visão também
do Sertão, considerado o “outro Nordeste” por Manuel Cor-
reia de Andrade, o do pastoreio pelo gado.
Mesmo não sendo um especialista na temática ambiental
e considerando a época em que o livro foi escrito, ele contex-
tualizou a mata, os bichos nativos e a água como personagens
vitimados pelo modo de apropriação da terra e dos homens.
É certo que Gilberto Freyre viu no canavial um caráter ci-
vilizador, mas reconheceu ao mesmo tempo a sua dimensão
devastadora do meio ambiente, desvirginando a floresta do
modo mais cruel, com as queimadas, substituindo a diversida-
de pela monocultura absoluta, só restando “os ossos da mata”.
Nesse livro, denuncia que a cultura da cana aristocratizou
o branco, degradou índios e negros e tornou desprezível a
floresta. Diferente do que poderia se esperar de uma socie-
dade tipicamente rural, dessas que ainda se veem em alguns
rincões na Europa, onde culturalmente ocorre uma relação
de reciprocidade entre o homem e a natureza, aqui o homem
e a mata sempre estiveram em estado de guerra.
71
Em sua visão, por isso os animais da mata eram encarados
como inimigos do canavial civilizador, “espécie de última de-
fesa da vegetação bruta contra a planta invasora”. Era tanta
a aversão e até medo deles, que nem se tentou domesticá-los,
sendo tangidos e mortos pelas queimadas e pela caça. Exce-
ção só se fez a alguns, como o “papagaio falador”.
Uma evidência de que os bichos nativos pouco ocupavam
o imaginário popular é que o jogo do bicho, tão popular no
Nordeste, reflete sonhos com animais europeus.
Melhor destino não receberam as águas, apesar de que,
de início, os rios tenham sido vistos como amigos a serem
visitados e reconhecidos, onde os banhos, como no Capiba-
ribe, curavam doenças e atraíam tanto moleques quanto si-
nhazinhas, num movimento de interação ao que chamou de
“poetização da água pela gente dos canaviais e das várzeas”.
Mas depois, salienta, vieram as usinas “com suas caldas, os
transformando em mictório”. Por fim, as casas já não davam
a frente para a água, “ficando de costas para o rio, com nojo”.
Quase cem anos depois, essa percepção parece ainda atu-
al, embora os matizes da devastação e do uso insustentável
dos recursos naturais já não se façam tanto pela cultura açu-
careira, mas por agentes muito mais diversificados.

Publicado em 28 de fevereiro de 2011

72
O papel das florestas na vazão dos rios
Geralmente, no período chuvoso, as pessoas ficam temero-
sas com inundações provocadas pela grande vazão dos rios. Já
durante a estiagem, a preocupação é com a escassez de água,
que reduz a disponibilidade de captação para abastecimento
doméstico e industrial e para irrigação. Nessas ocasiões costu-
ma-se lembrar a importância das florestas e dos riscos gerados
pelo desmatamento.
Embora a principal responsável pela presença ou ausên-
cia de água nos rios seja a própria chuva, pela sua precipi-
tação ou não, as florestas desempenham importante papel
no regime de vazão, tanto nos pequenos riachos, quanto nos
grandes rios.
Isto se deve a vários fatores, mas, principalmente, a dois:
infiltração e escoamento superficial da água. A formação
arbórea recebe a água das chuvas e facilita a sua infiltra-
ção no solo, que a armazena no lençol freático, para depois
liberá-la lentamente nas nascentes e margens dos cursos
d’água. Sem a floresta, a água cai diretamente no solo e es-
coa pela superfície, em enxurrada, arrastando terra e pro-
vocando enchentes.
Esta é a regra, embora não possa se aplicar inteiramente
em eventos climáticos extremos, como no caso de chuvas in-
tensas por vários dias ou secas prolongadas.
Assim, a relação floresta/infiltração reduz as enxurradas
nos períodos chuvosos e possibilita disponibilidade hídrica
durante as estiagens. Já a relação desmatamento/escoamento
superficial provoca, respectivamente, picos de cheias e fal-
ta de água. Em outras palavras, a floresta é uma reguladora
do regime de vazões, amortecendo os picos para cima e para
baixo, e, em consequência, reduzindo os riscos de inundação
e de escassez de água.
Um estudo hidrológico realizado de junho a outubro de
2010, na bacia hidrográfica do rio Natuba, afluente do rio
Tapacurá, comparou a vazão de três riachos (convertida em
73
vazão específica, correspondente a litros/segundo/km²) sob
o mesmo regime de chuvas, e cujas microbacias de drenagem
apresentam distintos usos de solo.
Durante as chuvas, a vazão do riacho que possui a sua área
de drenagem usada integralmente para agricultura de ci-
clo curto e pasto foi até sete vezes superior à do riacho
cuja microbacia é coberta por floresta nativa. Intermedia-
riamente se comportou a microbacia de uso misto, com ca-
poeiras em regeneração e agricultura.
Por outro lado, quando da suspensão das chuvas, a vazão
do riacho com cobertura florestal manteve-se sempre supe-
rior à do riacho com agricultura, atenuando assim os picos
de baixa vazão.
Isto significa que a floresta e o seu solo funcionaram como
uma esponja, retendo a água durante os picos de precipita-
ção, para liberá-la em seguida, cumprindo um importante
papel de regularização de vazões.
O trabalho de pesquisa, orientado por mim, foi desenvol-
vido por Felipe Alcântara para a conclusão do Mestrado em
Engenharia Civil, na área de Tecnologia Ambiental e Recur-
sos Hídricos da UFPE.
Esta reflexão é particularmente oportuna quando se têm
em pauta as alterações no Código Florestal, sendo importante
garantir as áreas de recarga de aquíferos e de proteção das
margens de cursos de água e nascentes com a presença de for-
mações florestais.

Publicado em 21 de junho de 2011

74
Implicações do Novo Código Florestal
para Pernambuco

Não é simples fazer uma avaliação mais detalhada das im-


plicações para Pernambuco do Projeto de Lei aprovado pela Câ-
mara dos Deputados, como sendo o novíssimo Código Florestal
Brasileiro, com seus 69 artigos, e mais uma emenda em plená-
rio. Até porque essa é uma versão que, com certeza, sofrerá al-
terações no Senado e terá que voltar à Câmara outra vez.
Mesmo assim, é possível arriscar algumas opiniões quan-
to às consequências do texto aprovado. Uma delas, mais ge-
ral, é a que trouxe para a grande mídia um tema que estava
adormecido, estimulando as pessoas a pensar e se posicionar
sobre a questão florestal no Brasil e, consequentemente, em
nosso Estado.
Posso afirmar, porém, que alguns pontos põem em risco
conquistas ambientais trazidas no Código ainda em vigor. Um
deles é a anistia aos desmatadores nas Áreas de Preservação
Permanente, sobretudo às margens de cursos de água. To-
dos aqueles que desmataram entre 1965 (ano da lei em vigor)
e 2008 em princípio não precisarão recompor essas áreas, a
não ser que os governos locais exijam, deixando nas mãos do
Estado ou do município essa vulnerável decisão.
Para nós, significa que as usinas e engenhos da Zona da
Mata, que estavam sendo pressionados pelo Ibama para recu-
perar as APPs, provavelmente não precisariam mais fazê-lo.
Se pensarmos em termos de Brasil, poderemos vivenciar algo
parecido com o que houve com as isenções fiscais dadas pelos
estados como benesse para que as empresas se instalassem
em seu território, gerando a chamada “guerra fiscal”, por fim
tão deletéria para o conjunto dos estados brasileiros.
Outra consequência negativa é a nova fórmula encontrada
para calcular a Reserva Legal, que embora tenha sido man-
tida no percentual de 20% da propriedade rural, permite-se
agora incluir nela todas as áreas de APP. Como em Pernambu-
75
co, essas áreas correspondem a cerca de 15% da propriedade;
assim, isso obrigaria o proprietário a manter apenas cerca de
5% de mata em outras áreas. Caso em que a perda é evidente.
Por outro lado, embora possa se considerar uma iniciativa
importante, para tirar da ilegalidade proprietários e recu-
perar o passivo ambiental existente, a instituição do Progra-
ma de Regularização Ambiental, como está no PL, gera riscos
graves, porque abre caminho para que os estados, ao sabor
de suas conveniências, estabeleçam quais atividades podem
permanecer em áreas de preservação permanente, o que
mais uma vez vulnerabiliza a conservação ambiental.
No entanto existem alguns pontos positivos que, no calor
da polarização ocorrida, ficaram mascarados. Um dos princi-
pais é a possibilidade de pagamento por serviços ambientais,
significando o uso de instrumentos econômicos como indu-
tores da melhoria ambiental, o que já está sendo utilizado em
muitas partes do mundo, e começa a ser embrionariamente
praticado no Brasil.

Publicado em 21 de setembro de 2011

76
Nascentes de vida
Em decorrência da água que produzem, as nascentes po-
dem ser consideradas símbolo de esperança e de possibili-
dades de vida, sendo a origem dos pequenos e grandes rios
que conhecemos.
Os também chamados olhos-d´água são locais onde a água
surge do solo, passando a contribuir para os pequenos ria-
chos, e esses para os maiores, até formarem o rio principal de
uma bacia hidrográfica. Para que haja uma nascente, é pre-
ciso que, em algum momento e lugar, a água da chuva tenha
se infiltrado no solo, em vez de escorrer livremente sobre ele.
Essa água vai sendo acumulada e transportada por pequenas
ou longas extensões, formando o chamado lençol freático,
até que aflora na superfície.
O solo mantém a água por um tempo e a libera aos poucos,
mesmo depois de passada a chuva. Se ele está protegido por
vegetação, a chance de infiltração aumenta e as nascentes
são melhor alimentadas. Isso significa que, protegido, o solo
funciona como um reservatório de água, liberando-a de ma-
neira contínua e regular, controlando os picos de vazão, seja
para mais ou para menos. Ao mesmo tempo, funciona como
um filtro da água de superfície que penetra no solo, liberan-
do-a com boa qualidade para ser usada. Assim, facilitando a
infiltração, é possível obter água boa por mais tempo e redu-
zir as enchentes.
Por isso, para conservar as nascentes é preciso proteger as
áreas de infiltração da água, que fazem a recarga do lençol
freático, o que significa manter o solo coberto com vegetação
permanente, preferencialmente com mata.
Mas, é lógico, só isso não é suficiente. É preciso também
proteger a própria nascente, onde a água surge em baixios,
formando brejos ou charcos que contribuem para a forma-
ção dos riachos; ou em encostas de morros, situação em que
a água mina e escorre diretamente pela força da gravidade,
para formar um pequeno veio.
77
Nesse sentido, considero sagrados esses pontos de nasci-
mento da água, porque alimentam os cursos hídricos e possi-
bilitam os usos múltiplos da água pelo homem. Por isso, deve-
-se evitar o uso direto da nascente, sendo necessário criar
condições para aproveitar a água que escoa delas, prevenin-
do assim a contaminação com fezes de animais ou humanas,
ou mesmo a poluição por sabões, agrotóxicos ou sedimentos
erodidos do solo.
Sabendo usá-las adequadamente, é possível ter água po-
tável para beber, fazer comida e para os demais usos domés-
ticos. E, em muitos casos, para a criação de animais e para a
agricultura.
Portanto, conservar as nascentes significa a chance de vida
para as nossas bacias hidrográficas e para as pessoas que vi-
vem nelas.

Publicado em 17 de outubro de 2011

78
Cai, cai, tanajura...

Quando menino, uma das minhas curtições mais ale-


gres era apanhar tanajuras, que voavam aos milhares logo
que ameaçava chover, em busca de acasalar. Vez ou outra
eu levava uma mordida braba, que fazia o sangue escorrer
pelo dedo.
As tanajuras são as fêmeas da formiga saúva, ou de roça,
do gênero Atta. Ao deixarem seus ninhos, saindo por entre ba-
naneiras e até de frestas da calçada, eram apanhadas por um
bando de crianças e adultos, que não poupavam nem aquelas
em voo, derrubadas com galhos de mato, em uma festa que
geralmente antecedia a noite.
Como era bom juntar centenas delas em uma lata, arran-
cando-lhes antes a cabeça e o tórax, só deixando o abdome. Pa-
recia ruindade de menino perverso, mas malvadeza de criança
é aprendizado. O que queríamos mesmo era a bunda da tanaju-
ra, que levávamos ao fogo em uma panela, derretendo sua gor-
dura para deixá-la assadinha.  Bastava acrescentar um pouco
de sal e estava pronta. Agora era comer pura, com farinha e, às
vezes, tomando café.
Depois descobri que esse era um hábito muito difundi-
do na zona rural, chegando ao ponto das tanajuras serem
vendidas na feira a quilo, sendo curtição comê-las com
cerveja ou cachaça, ou ainda dadas de presente para ami-
go do peito. Mais ainda, descobri que os índios já a con-
sumiam assim e que seu nome em tupi-guarani significa
“formiga que se come”.
Interessante é saber que aquelas formigas grandes, que
pareciam impotentes diante da nossa sanha, são as mesmas
saúvas que devoram plantações, cortando e transportando
as folhas e talos para o ninho debaixo da terra, enfileiradas
como adestrados soldados em campanha, levando cada qual
uma bandeira. Folhas que não são comidas, mas que servem
de substrato para crescimento do fungo que as alimenta.
79
Tamanha força, garantida por 100 milhões de anos de se-
leção natural, tornou o agricultor tão vulnerável que o natu-
ralista francês Auguste Saint-Hilaire achava que ou o Brasil
acabava com a saúva ou a saúva acabava com o Brasil. Praga
de tanta força que levou a métodos de controle com formici-
das, muitos deles mortais não só para as formigas. 
Observando pelo lado do controle natural, tem-se que
andorinhas, sabiás e tatus vivem atrás desses insetos para
comê-los, reduzindo suas populações.  E o que fazíamos como
crianças, se não isso? Depois de adulto, descobri que, ao nos-
so modo, praticávamos o controle biológico de populações de
pragas de formigas!
Por isso hoje, ao ver crianças pulando de um pé só, levando
mordida sem deixar de sorrir ao apanhar tanajuras, concluo
que empregam método menos radical do que os científicos
laboratórios de pesticidas. Elas só não cantam mais o nosso
mantra: Cai, cai, tanajura, tua bunda tem gordura.

Publicado em 21 de dezembro de 2011

80
Natureza e cultura
Sempre vi tucano em zoológico, comendo elegantemente
frutas. Com a ponta do bico amplo e levemente arqueado, se-
gura o pedaço de mamão e joga-o para o ar, apanhando-o à
descida, com o bico já aberto. Simpático e bonito, este bicho,
apesar de um pouco desengonçado, talvez pelo bico tão gran-
de em relação ao corpo.
Porém, recentemente, observando tucanos livres na copa do
pinheiro araucária em um parque estadual do sul do Brasil, des-
cobri que eles também comem carne, quando vi um deles com
um filhote de passarinho no bico.
Compartilhando com a bióloga do parque a minha estra-
nheza, ela informou que bandos de tucanos costumam es-
pantar os pais de pássaros que alimentam os filhotes em seus
ninhos para atacar os recém-nascidos indefesos. Segundo dis-
se-me, ao assistir esta cena, os tucanos a constrangeram tanto
que passou a gostar menos deles, em seu sentimento de defen-
sora da natureza, dos bichinhos indefesos e dos oprimidos.
Neste sentimento um componente cultural se interpôs ao
natural, que é naturalmente o tucano fazer parte de uma cadeia
alimentar em que, na condição de onívoro, ocupa as posições de
herbívoro e carnívoro, sendo, portanto, consumidor primário
e secundário. Mas o nosso olhar ético, e até estético, gostaria
de não enxergar animal tão simpático e bonito, invadindo lares
alheios, roubando o que mais é valioso aos pais e dilacerando
presas que nem sequer compreendem o que está acontecendo. 
Já em relação a nós humanos civilizados, damos um descon-
to, aceitando mais facilmente comer um churrasco de boi, mes-
mo suspeitando que ele tenha sido sangrado vivo para não coa-
gular o sangue em sua carne saborosa, ou que, dias antes de ser
morto, fez jejum forçado, já que as últimas ingestões de capim e
farelo não mais se transformam em carne, para venda.
Mas, voltando ao ambiente que chamamos de natural, me
vem a pergunta: onde está a harmonia da natureza, na qual re-
conhecemos o equilíbrio e a justeza da vida, onde cada espécie
81
tem um lugar nobre e deve ser defendida em seu direito
intrínseco de existência? Com certeza está na relação das
abelhas com as flores, que trocam néctar por polinização,
mas também dentro da colmeia, quando todas as larvas
de pré-rainhas (inicialmente bem alimentadas no favo
com geleia real na potencialidade de vir a ser rainha) são
mortas após a primeira virar adulta, para substituir uma
rainha moribunda ou fundar uma nova colmeia. Está tam-
bém na relação entre o carcará e o mocó na Caatinga, apa-
rentemente negativa para a presa mocó e positiva para o
carcará predador.
Isso porque a simbiose, o comensalismo, o parasitismo e
o predatismo são faces do mesmo equilíbrio, em que a evo-
lução de uma espécie não se dá sozinha, mas na relação com
as outras. Em que os fluxos materiais e energéticos acon-
tecem por múltiplos caminhos, mesmo que um indivíduo
coma o outro, garantindo assim, o equilíbrio das popula-
ções e o ciclo biogeoquímico.
A natureza em si é desprovida de ética - porque esta é
cultural, humana -, mas se aperfeiçoa na evolução darwi-
niana, tendendo a formar sistemas naturais mais comple-
xos e estáveis, à medida que coevoluem.
Quanto a nós humanos, a questão se diferencia. Nós
quebramos o paradigma da evolução darwiniana, na qual
a domesticação das plantas e animais, o desenvolvimento
da medicina e o caráter preditivo dos eventos extremos nos
dão a oportunidade de não mais seguirmos os caminhos da
seleção natural.
Isto em consequência da cultura, entendida como
apropriação dos elementos naturais pelo poder da aná-
lise e da tecnologia, que nos situa como manipuladores
da natureza como um todo. O que nos coloca em outra
condição, reconhecidamente antropocêntrica, que nos
conduz a exigências éticas (individuais) e nos impõe re-
gras morais (pela sociedade). Sem falar nas implicações
estéticas e sentimentais.

82
Temos, portanto, a responsabilidade ética, moral, estética e
sentimental de respeitar os processos naturais como garanti-
dores da evolução dos outros seres vivos, e, ao mesmo tempo,
respeitar e valorizar a diversidade cultural, de pensamento e de
criação, desde que esta não implique em perdas dos valores an-
teriores.

Publicado em 24 de janeiro de 2012

83
Não pise nas formigas

Há alguns meses visitei um grande e importante templo


budista em Três Coroas, no Rio Grande do Sul. Ele foi erguido
sob a orientação do Guru Rimpoche, monge que viveu por vá-
rios anos no Brasil e ampliou o número de praticantes espiri-
tuais, seguidores do Guru Padmasambava, mestre que viveu
no século 8 e que levou a tradição Vajraiana do budismo para
o Tibete.
O lugar é maravilhoso, situado no alto de uma colina, com
visão ampla do horizonte para cada lado que se vire. Lá en-
contrei harmonia dos elementos que compõem a paisagem:
água em laguinhos e fontes, plantas instaladas com leveza,
próximas e longe dos caminhos, e edificações de acabamen-
to sofisticado, com cores que expressam significados e pureza.
Naquele dia, o tempo chuvoso com sol encoberto ajudou a criar
uma atmosfera de silêncio e um ambiente sem pressa. O que
acabava refletido no caminhar e no sorriso manso dos poucos
moradores da comunidade, que cheguei a ver.
Atravessando o pátio, às vezes com grama, outras com piso
de cimento, avistei sinalizações que tinham inscrição intri-
gante: não pise nas formigas. Se não posso pisar em formigas,
não devo matar uma galinha ou um boi, sequer o peixe deve
ser sacrificado para o meu alimento!
Para os budistas que optaram por viver na comunidade e
que não pisam em formigas a alimentação é vegetariana, sem
formigas ou porcos. O argumento é que o homem não deveria
provocar nenhum tipo de dor aos animais. As plantas, embo-
ra seres vivos, são consideradas em outro plano, admitindo-
-se que, não tendo células nervosas, não padecem de dor.
E para nós, visitantes, na maioria onívoros praticantes,
mas que acreditamos em valores éticos que nos levam a res-
peitar genericamente a natureza e a proteger a biodiversida-
de de seres vivos, seria necessário essa abstinência?
Ao sair do templo, fui almoçar em um restaurante tibeta-
84
no, alguns quilômetros dali. Para minha surpresa, o cardá-
pio, que oferecia pratos da cozinha especializada, continha
carnes! Pela estranheza, procurei o chef da cozinha, que era
justamente o dono, um simpático asiático, que evidentemen-
te não quis ser confundido com um chinês. Perguntei, então,
por que a alimentação servida não era vegetariana. Depois
de salientar que era budista, abriu um sorriso largo e disse:
“Não há problema, o importante é que a cabeça, que normal-
mente é pequena, abra-se para o mundo com amor. O que
está no coração é mais importante do que o que está no estô-
mago”. Os tibetanos em geral comem carne, até porque lá, o
boi iaque, que serve de transporte e de tração na agricultura,
no final da vida é comido até os ossos, devido à escassez de
alimento em terrenos e clima rigorosos.
Pensando eu, como biólogo, parto do entendimento de que
o homem evoluiu e se estabeleceu como comedor de vegetais
e de carne. Para isso, em nossa boca temos os dentes incisivos
(como os dos bois) para morder a maçã, e caninos (como os
das onças) para rasgar a carne. No estômago, temos enzimas
digestivas que atuam sobre açúcares e proteínas vegetais, as-
sim como outras que agem sobre as proteínas animais. Para
completar, o nosso intestino, comparado com o tamanho do
corpo, é intermediário ao dos carnívoros (mais curtos) e dos
herbívoros (mais longos).
Mas, abstraindo as razões biológicas, e valendo-nos de ra-
zões éticas (as morais não contam porque a nossa socieda-
de ocidental não rechaça o onivorismo), podemos entender
que, como a ética decorre da compreensão pessoal sincera
por cada ser humano, a partir dos seus próprios valores, ad-
mitamos que esta é uma questão em aberto, sem se poder
identificar honestamente se existe uma opção errada. Mas
pisar nas formigas... pode?

Publicado em 5 de março de 2012

85
Esclerose das artérias urbanas

Quando as artérias coronárias entopem por receber gran-


de quantidade de colesterol, o coração humano cria alterna-
tivas para fazer chegar sangue oxigenado aos seus incansá-
veis músculos, irrigando-os por novas ramificações.
Mas a capacidade de manter o indispensável movimento
de sístole e diástole tem limite, podendo a continuada con-
centração de mais colesterol resultar em um infarto fulmi-
nante do miocárdio, mesmo que a engenharia médica crie
pontes para auxiliar os fluxos, retardando o colapso. Antes
que isso aconteça, é fundamental reduzir a produção desse
colesterol.
O sistema circulatório urbano também obedece à mesma
lógica. As vias principais entupidas pela enorme quantidade
de carros e imobilizadas em sua função original de escoa-
douro do tráfego levam os veículos a invadir ruas menores,
mesmo que ameaçando pedestres e acabando o sossego de
tradicionais moradores.
Com a contínua chegada de novos carros injetados todos
os dias na malha urbana, são construídos mais viadutos e
pontes, apenas postergando o caos anunciado. Até que, ultra-
passada a capacidade de suporte da cidade, o trânsito venha
a parar totalmente, em colapso funcional. Não é para menos
- segundo estatísticas do Detran, a Região Metropolitana do
Recife já possui um milhão de veículos em circulação, e des-
ses, um pouco mais da metade está no Recife. Isso significou,
em 2011, um acréscimo mensal médio de 8 mil carros, cami-
nhões e ônibus na RMR.
Nestas condições, o carro atinge o auge de sua dimensão
perversa. Digo perversa não porque rejeite essa máquina mó-
vel, criada justamente para nos poupar tempo nos grandes
deslocamentos. Mas porque, ironicamente, tem nos imobili-
zado e roubado importantes horas de vida feliz, em ativida-
des mais saudáveis do que aguardar sentado o desfecho de
86
cada desencontro nas inúmeras esquinas que ainda nos se-
param de casa.
Assim como no infarto, o padecimento dos humanos mo-
torizados é um sinal do acometimento de esclerose irreversí-
vel das artérias no organismo urbano, já indicando o quadro
de estado terminal, com o colapso da mobilidade na cidade.
A não ser que a sociedade faça a opção remediadora pela
redução no ritmo da produção de carros, encontrando outras
formas de manter ativo o ciclo da economia. Não considerem
exagero; acho que, no futuro, a indústria automobilística vai
ser tratada como hoje fazemos com a indústria do cigarro. 
Se essa for a decisão, parece ser também indispensável a
adoção de outras medidas simultâneas, como a priorização
do transporte coletivo de qualidade, a desconcentração ha-
bitacional e a implantação de zonas de exclusão de carros,
sobretudo onde a velocidade de caminhar dos pedestres já
seja maior do que a dos próprios veículos.

Publicado em 19 de março de 2012

87
Água de comer

Conversando com um exportador de melão para Israel,


brinquei dizendo que o semiárido do Nordeste está na rea-
lidade exportando água-adocicada, é claro. São porções de
água em embalagem biodegradável, transportadas a grandes
distâncias para hidratar os israelenses que também vivem
em região seca. Nesse caso, o crescimento do melão decorre
da irrigação, já que de chuva o semiárido tem muito pouco,
sobretudo este ano.
Porém as plantas nativas são capazes de tirar água do solo
no curto período chuvoso e guardá-la para o ano inteiro,
mantendo-se em equilíbrio. Para isso, criam artifícios de pro-
teção contra perdas líquidas por evaporação ou transpiração,
como a transformação de folhas em espinhos pelos cactos da
caatinga, ou mesmo a perda das folhas, pelas plantas chama-
das caducifólias, como o mulungu e a imburana. 
Com a lembrança da conversa com o empresário, me veio a
ideia clara de que, ao comermos, bebemos. O melão tem 92%
de água, o mesmo que a melancia e parecido com a alface,
que contém 96 %. De matéria orgânica, não sobra quase nada.
Mesmo aqueles que parecem mais sequinhos, como a banana
e o milho, não possuem menos de 60% ao serem colhidos.
Não é para menos que tenhamos que beber água comendo.
O homem mantém-se hidricamente equilibrado quando seu
corpo apresenta valores de pelo menos 70% de água, ou seja,
56 kg de uma pessoa que pese 80 kg. Quando o corpo perde
líquido, aumenta a concentração de sódio que se encontra
dissolvido nas células, e, ao perceber esse aumento, o cérebro
induz a sensação de sede. Daí, ou se bebe ou se come água.
Se diariamente perdemos cerca de 3,5 litros desse líquido
por suor, respiração, urina e fezes, é preciso repô-los para
que os processos físicos, que levam à estabilidade térmica do
corpo, e os bioquímicos, que garantem a nutrição das células,
88
se façam. Portanto, se ingerirmos de 1 a 2 litros de água líqui-
da por dia, o resto tem que vir dos alimentos.
Mas existe uma segunda leitura para o termo água de
comer. Aqueles que trabalham com agricultura familiar no
Sertão nordestino, apoiando a sustentabilidade alimentar
dessas populações, costumam usar a ideia para estimular o
uso da água de chuva na produção de alimentos para auto-
-consumo, enriquecendo a dieta local.
Nessa direção, organizações não governamentais associa-
das à Articulação do Semiárido (ASA) já podem mostrar boas
práticas com tecnologias apropriadas utilizadas na monta-
gem de pequenas hortas, na plantação de feijão, jerimum e
mandioca para farinha, assim como na criação de pequenos
animais, sobretudo galinhas caipiras e cabras.
Assim, “coma água”, e boa saúde.

Publicado em 14 de maio de 2012

89
Gestão ambiental de Aldeia

Para mim, Aldeia representa o bucólico, a parte do Recife


que ainda tem jeito. Traz recordações da infância e adoles-
cência, dos banhos nas quedas-d´água quando fui escoteiro,
dos passeios de bicicleta quando pedalava solitário, experi-
mentando o contraste de sombra e sol, frescor e calor, nas
curvas da estrada ladeada de matas ou de cana.
Desse tempo, me lembro do coentro e da alface que eu
plantava na granja do meu pai, verduras que respondem rá-
pido a quem deseja ver o verde crescer e colhê-lo em pouco
tempo; dos pés de macaxeira-rosa, arrancados da terra fofa,
para depois quebrar a raiz com a mão e vender aos paren-
tes, mercado cativo daquele sobrinho ou neto querido. Mas
também recordo os bichos-preguiça que surgiam do mato e
das raposas reconhecidas pelo cheiro, que não se deixavam
chegar perto.
Pois no Dia do Meio Ambiente, a convite do Fórum So-
cioambiental de Aldeia, tive a oportunidade de fazer pales-
tra sobre este espaço que me marcou. Mas não falei sobre
as lembranças pessoais e, sim, sobre uma possível gestão
ambiental equilibrada, indispensável para que sua unidade,
enquanto paisagem e destino privilegiado de se viver, con-
tinue existindo.
Sabendo que, em princípio, os anfitriões eram mais co-
nhecedores do que eu - não morador da área - sobre os pro-
blemas e virtudes dessa zona que envolve parte ou o todo de
sete municípios, resolvi apenas ser facilitador de reflexões,
em uma espécie de oficina relâmpago, de duas horas, para
que apresentassem percepções, convicções e dúvidas, na ex-
pectativa de se construir um quadro orientador de ações fu-
turas. Se não isso, pelo menos que contribuísse para tal.
Estimulei então que o grupo presente exercitasse apresen-
tar as possíveis visões do território pelos diferentes atores
sociais e políticos que atuam sobre ele, e daí buscasse enten-
90
der os interesses, por vezes conflitantes, sobre a região. Para
isso, foi preciso que os participantes se assumissem na pele
de cada segmento, evitando contaminar essa percepção com
a sua própria, dando uma chance para reconhecer valores
e interesses de outros, que não coincidem necessariamente
com os seus, mas que não podem ser ignorados, por efetiva-
mente fazerem parte do jogo da gestão.
Assim, neste rico exercício, pudemos identificar aqui-
lo que seria a visão diferenciada do governo estadual, das
prefeituras municipais, dos empresários, dos moradores de
baixa renda e de classe média, dos ambientalistas e até da
criminalidade.
Na perspectiva da visão do governo estadual, constatou-se
que seu entendimento ainda não é sistêmico, enxergando-se
contradições entre o discurso conservacionista relacionado
à Área de Proteção Ambiental (APA) de Aldeia e as iniciativas
do anel viário e do presídio. Por parte dos governos munici-
pais, a compreensão é que as prefeituras não se motivam a ter
uma visão diferenciada para este território, a articular solu-
ções integradas com as demais prefeituras e com o governo
estadual. Elas, no máximo, atendem a insistentes demandas
de moradores em sua jurisdição. Talvez porque Aldeia, como
região de fronteiras municipais, represente espacialmente a
franja ou borda de alguns desses municípios.
Foi explicitada também uma ambivalência do setor empre-
sarial, em que alguns apostam na manutenção da paisagem
para o turismo sustentável, enquanto outros usam a imagem
de natureza para vender as terras parceladas por empreen-
dimentos imobiliários nem sempre compromissados com a
preservação.
Enquanto isso, os moradores, pelo menos aqueles de clas-
se média, optam por Aldeia atraídos pela liberdade de espa-
ço, pelo clima e pela tranquilidade. Mas, na percepção dos
presentes, muitos deles apenas idealizam um novo modo de
viver, trazendo consigo, no entanto, os hábitos de consumo
e de agitação da metrópole, induzindo inconscientemente a

91
mudança do perfil da área. Já os de baixa renda buscam Al-
deia como chance de emprego e de ocupação de pequenos
terrenos para moradia, escassos onde moravam, não enxer-
gando as matas com interesse, a não ser como oportunidade
de lenha e madeira.
E os ambientalistas, o que esperam de Aldeia? Conside-
ram-na o seu ponto de fuga, a possibilidade de viver os pró-
prios conceitos. Ainda encontram belos espaços de floresta
e água, esconderijos do silêncio e oportunidades de se man-
ter em uma economia paralela à de consumo, a da arte, da
formação pessoal e do exercício espiritual. Mas, aos poucos,
se sentem encurralados pelos sons eletrônicos das multipli-
cadas casas de festejos, pelos novos parcelamentos do solo e
eventuais assaltos.
Ainda bem que Aldeia não é o lugar ideal para a crimina-
lidade, personificada naqueles a quem chamei na ocasião de
almas sebosas. Embora existam algumas oportunidades, ainda
é mais fácil atuar em áreas urbanas, usando essa região mais
como rota de fuga.
Nas múltiplas visões, sente-se claramente uma diferença
entre a dos governos e a da sociedade. Em princípio, isso não
deveria acontecer, uma vez que, em uma democracia, os gover-
nos foram feitos para o povo e pelo povo, portanto com inte-
resses coincidentes. Porém é possível entender a discrepância
de olhares em relação à gestão ambiental do território.
O cidadão enxerga primeiramente os problemas ambien-
tais locais, à sua porta ou no seu entorno. Só quando busca
solucionar esses conflitos e se associa a vizinhos, descobre
que a questão é mais ampla e reconhece que a problemática
é, no mínimo, regional, o que lhe exige se associar em gru-
pos organizados e buscar influenciar as políticas públicas.
Ou seja, o olhar pela sociedade é do micro para o macro, na
perspectiva de se atingir uma gestão ambiental que atenda à
coletividade.
Já os governos enxergam as mesmas questões a partir do
macro, reconhecendo que é preciso compreender as grandes

92
questões para então formular políticas públicas, que depois
permitam a definição de diretrizes governamentais e a ela-
boração de programas (incluindo orçamento), que possam
viabilizar projetos locais. Esses, sim, de interesse final do ci-
dadão. Mas é certo que, muitas vezes, esse laborioso e longo
processo se perde no meio do caminho e o discurso das au-
toridades se dissolve nas entranhas da máquina pública ou
desaparece quando acabam os seus mandatos.
Portanto, o grande desafio da gestão do interesse público,
e nele se inclui a gestão ambiental, é de os governos enxerga-
rem no seu fazer a necessidade local e os grupos sociais or-
ganizados enxergarem a política pública como essencial para
gerar mudanças locais permanentes e sustentáveis.
Nesse contexto, se apresenta a Área de Proteção Ambien-
tal (APA) de Aldeia, recém-criada pelo Governo do Estado por
demanda do Fórum Socioambiental de Aldeia, como excelen-
te oportunidade da gestão ambiental compartilhada. Mas
esse assunto fica para outra crônica.

Publicado em 12 de junho de 2012

93
A diversidade é base da estabilidade
Se toda unanimidade é burra, como na expressão plas-
mada por Nelson Rodrigues, é de se supor que a diversidade
é inteligente.
Podemos concordar, então, que toda tentativa de unani-
midade é perigosa, porque dispensa o contraditório, ou a se-
gunda via. Sabemos disso no campo político, quando as di-
taduras levaram a brutalidades descomunais, pelas mãos de
sanguinários como Mobutu, Hitler, Pinochet e Suharto, para
só ficar no século 20. Sabemos disso também no plano econô-
mico, quando os oligopólios controlam os mercados e depois
ditam os preços. Entendemos ainda no campo social, quando
a manipulação do povo vem pela concentração da informa-
ção nas mãos de poucos.
Em corolário, podemos dizer que a diversidade aumenta
as chances do acerto e reduz os riscos de fracasso. Basta ver a
criatividade multicultural no exercício das artes em Pernam-
buco. Ou os caminhos alternativos criados pela informalida-
de nas relações econômico-sociais, para enfrentar as ainda
reduzidas oportunidades no campo formal.
É assim na sociedade humana e é assim na natureza. Até
porque este homem social-econômico-cultural, também é
natureza. Com a espécie humana ou sem ela, os processos na-
turais em ambientes com ampla biodiversidade possibilitam
a multiplicidade de expressões de vida, nas formas de inte-
ração com o solo, o ar e a água, ou nas relações das espécies
entre si, seja em competição ou em cooperação. Ao olharmos
atentamente para esta natureza, veremos que é tanto mais
estável quanto mais diversificada.
Os ciclos biogeoquímicos dos gases, da água e dos sais mine-
rais evidenciam a necessidade desses múltiplos caminhos para
não se inviabilizarem. Mais ainda, as cadeias alimentares line-
ares não se sustentam facilmente na natureza. Por isso, uma
mesma espécie compartilha diferentes cadeias, formando as
teias alimentares, que permitem que a falta de um alimento
possa ser compensada por outro. Isso traz estabilidade.

94
No entanto, esta estabilidade na diversidade não significa
imobilismo ou equilíbrio estático. Pelo contrário, reflete uma
dialética permanente, já explicada por Darwin há 150 anos e
corroborada com maiores requintes teóricos e experimentais
pelos ecólogos de hoje. Nesta visão, diversidade implica com-
plexidade e esta, sustentabilidade. Ou seja, sistemas comple-
xos são mais estáveis, por serem menos lineares, baseando-se
em redes de relações. Na linearidade, quando algo não fun-
ciona interrompe-se o fluxo, e as coisas não mais acontecem.
Em rede, quando o fluxo é dificultado em uma linha, surgem
caminhos alternativos.
Mais ainda, nos ecossistemas complexos existem sistemas
menores aninhados em outros maiores, como se fossem re-
des dentro de redes, aumentando a capacidade de resistir a
eventuais adversidades. É o que chamamos de resiliência. Em
florestas tropicais úmidas, por exemplo, um mesmo ecossis-
tema comporta múltiplos habitats, cada um com sua flora e
fauna próprias e suas teias alimentares.
Como diz Fritjof Capra, quanto mais complexos forem os pa-
drões de interconexão da rede, mais rapidamente os sistemas
poderão se recuperar. Ele acrescenta que nas comunidades hu-
manas a diversidade étnica e cultural pode exercer o mesmo
papel que a biodiversidade exerce num ecossistema.
É fácil compreender esta lógica mesmo em ambientes alte-
rados pelo homem, como quando comparamos a monocultura
agrícola com o policultivo ou o cultivo agroflorestal. No pri-
meiro, uma só espécie é valorizada e tudo converge para que
ela cresça e produza. Porém, a eventual deficiência de um ele-
mento nutricional no solo ou a ocorrência de uma praga ani-
quila com o esperado sucesso do plantio.
Por outro lado, no cultivo diversificado, outras espécies po-
dem incorporar ao solo o nutriente necessário, enquanto sa-
pos e pássaros combatem a praga de insetos que por ventura
queira se instalar. Ou seja, a diversidade é base da estabilidade.

Publicado em 31 de julho de 2012

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Capibaribe navegável

A navegação no Rio Capibaribe não é de hoje. A entrada


dos portugueses para ocupar as áreas de Mata Atlântica e
transformá-las em canaviais se deu em grande parte pelo rio.
Em seguida, os holandeses usaram a mesma rota para tentar
assumir o comando do território. Mais tarde, estabelecida a
raça brasileira, a navegação se fez corriqueira para levar im-
portados e trazer madeira, tijolos e açúcar, ou ainda, para
chegar ao Agreste pernambucano, onde se desenvolveu a pe-
cuária. Com os barcos, também iam e vinham pessoas.
Em busca dessa história, descobri que, já no final do sé-
culo 19, foi criada a primeira empresa de transporte fluvial
no Capibaribe, com barcos a vapor. Atendiam aos engenhos,
como os de Casa Forte, Monteiro, Caxangá, Várzea e Apipu-
cos – todos hoje bairros -, além das olarias das várzeas do
Capibaribe.
A última iniciativa de navegação se deu no início da déca-
da de 1970, com a lancha Garcia D´ávila, operada pela Prefei-
tura do Recife. Portanto, a priori, nada mais consequente do
que voltar a pensar na navegabilidade do Capibaribe.
No miudinho, em barcos pequenos, de até cinco passagei-
ros, ainda temos navegando os remadores do Sport, Náutico
e Barroso. Vemos também pescadores a remo ou com vara, ti-
radores de areia e raros barcos a motor, de pequena potência
e velocidade. Na boca do rio, circulam os catamarãs e até um
barco-escola da prefeitura, que, por serem maiores, enfren-
tam a falta de calado pelo assoreamento contínuo do leito.
Posso até dar meu testemunho pessoal de navegação neste
rio. Por alguns anos, remei de Casa Forte à Várzea, aprovei-
tando o movimento das marés, usando meu caiaque verme-
lho e branco, das cores do meu Náutico... Capibaribe. Desisti
porque tinha que desviar frequentemente dos sobrenadan-
tes, do lixo e porqueiras que flutuam na água densa de esgo-
tos. Pois é, o mau cheiro que eu sentia e os pingos que saíam
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do remo e pousavam no rosto me fizeram voltar às margens,
olhando o rio de fora para dentro.
Aliás, um remador do Sport, íntimo e amigo do rio Ca-
pibaribe, uma vez emborcou inesperadamente sua canoa e
mergulhou próximo à ponte da Capunga. Após um imediato
banho de chuveiro, correu para o médico para se prevenir de
doenças!
Portanto, o estuário do Rio Capibaribe tem vocação para
barcos, pequenos e até maiores, desde que limpo da poluição
e desassoreado. Daí para assumir o rio como um corredor de
transporte de massa há uma grande diferença.
Entendo que, em princípio, o projeto do governo para a na-
vegabilidade tem fundamento e está de acordo com a vocação
do estuário do Rio Capibaribe. Prevê uma mobilidade fluvial
integrada ao Sistema Estrutural Integrado (SEI) de transportes
urbanos, acrescentando 10 barcos transportando no máximo
86 pessoas, em viagens que duram cerca de uma hora da Esta-
ção do Metrô do Recife a Apipucos, numa rota de 11 km e cinco
estações de atracação. Outra rota menor, de 2,5 km para norte,
deverá funcionar com dois barcos. Esses, digamos 12 ônibus
fluviais, se incorporariam aos previstos 1576 que circularão
diariamente pelas ruas no Recife.
Mas, se permanecer a concepção governamental de uti-
lizar o bilhete único, como ocorre no atual SEI, os custos de
uma viagem confortável, com todos sentados, em barco cli-
matizado e sem enfrentar engarrafamentos, serão cobertos
pelos passageiros mais pobres que, por morarem distantes do
rio, continuarão a utilizar os ônibus lotados e sem acesso aos
cobiçados barcos. Mais, a forma de divulgação tem levado ao
entendimento da maioria de que os barcos serão uma solução
para o nosso trânsito, o que redondamente não é verdade.
Isto porque ele representará no máximo meio por cento do
transporte público.
Por outro lado, considerando que precisam ser retiradas
cerca de 860 mil toneladas de sedimentos, entre contamina-
dos e não perigosos, é preciso avaliar cuidadosamente quais

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as implicações ambientais na deposição e transporte do ma-
terial dragado, seja no mar ou em aterro. Além disso, é in-
dispensável projetar as estações de atracação de maneira a
retirar o mínimo da vegetação de mangue, que em si compõe
a própria paisagem estuarina.
Ah, não vejo como os passageiros com música ambiente e
fechados em ar condicionado vão monitorar a qualidade da
água do rio. Por isso, sugiro se buscar o resgate dos pequenos
barcos a remo, não motorizados, estimulando o lazer de es-
porte náutico e pequenos deslocamentos. Esses navegantes,
sim, poderão cheirar e tocar as águas do rio, utilizando seus
sensores biológicos para o monitoramento da saúde do nosso
Capibaribe. Com certeza, a marola criada pelos barcos maio-
res não os inviabilizarão desde que regras claras de trânsito
nas águas sejam respeitadas.

Publicado em 15 de agosto de 2012

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Água em leito seco do Capibaribe

Neste agosto de 2012 a algarobeira apareceu frutificando


como se fora final de estiagem. Mas foi só uma pegadinha do
clima no calendário biológico da planta, acostumada passar
quatro meses sem chuva para depois florar e já no período
brabo de seca espalhar suas sementes. Pudera, no primeiro
semestre quase não choveu, embora fosse o período em que
normalmente as águas molham a terra e as plantas da caa-
tinga se vestem de verde.
A seis quilômetros do rio, encontrei um morador chegan-
do em casa com a carroça cheia de capim para o gado e água
para beber. Vinha do Capibaribe. Pergunto pela água do bar-
reiro no sítio. Responde que é a primeira que acaba e que,
enquanto ela dura, não vai buscar tão longe. Mas agora “até
a água que eu guardava na cisterna construída pelo governo
acabou e os caminhões do Exército nem passaram por aqui
ainda”. Daí, para ele só resta buscar onde tem, com a convic-
ção de que “abaixo de Deus só o Capibaribe é quem salva”.
Mas como, se lá já não tem água? “É que o senhor não vê;
ela está dentro da areia”. Mesmo seco, sem vazão, aquele leito
sustenta o homem da região porque debaixo dele estão guar-
dadas chuvas passadas, como numa enorme cisterna natural,
com a água protegida da evaporação e sem fugir para o mar.
Volto ao rio e caminho quilômetros por suas margens e
leito. Na aluvião, o capim ainda cresce e é cortado para o
gado, e a cada propriedade ribeirinha se vê pelo menos um
poço redondo em alvenaria, escavado a pá. Por essas cacim-
bas na zona rural de Santa Cruz do Capibaribe, o rio salva o
homem do campo e, por vezes, o da cidade, que se abastece
delas mobilizando carros pipa. Afinal, neste município chove
bem menos do que a média anual do semiárido nordestino.
Mas existe um outro incômodo na população, que não é
climático. Ao longo do trecho acima da cidade até a barragem
de Poço Fundo, que já está seca, a exploração de areia tem
99
tirado o sossego de muita gente. Para uma moradora vizinha
à extração, a narrativa do trauma chega a ser poética porque
pode haver poesia até na dramaticidade se ela for carregada
do sentimento de natureza.
Perguntei o que significavam para ela aquelas máquinas
comedoras de areia e o transtorno decorrente: “Veja, há pou-
cos meses meu marido curtia olhar os canários ao sol que
pousavam próximo à nossa casa enquanto eu gostava de
acompanhar os saguins do outro lado da estrada, na beira
do rio, onde existem fruteiras e árvores nativas cuidadas por
nós com sacrifício. Com o barulho das máquinas, os saguins
assustados atravessaram a estrada e passaram a destruir os
ninhos e comer os filhotes dos pássaros. Hoje já não temos
canários por perto!”.
Que simplicidade de argumento, que poderia convencer
sem a necessidade de racionalidades técnicas sobre disponi-
bilidade e demanda hídrica! Mas sei que nem todos seguem
essa lógica.
Por isso, caminho, com outros mais, buscando entender a
importância daquele leito seco, silencioso, mais importante
para a vida do que para a construção civil. Até porque exis-
tem outras jazidas e materiais em alternativa àquela areia,
disposta por centenas de anos de aluvião, sendo quase co-
vardia explorá-la assim, de forma tão rude, diante da própria
inocência da sua disposição, desprotegida. Em leito aberto,
não resiste à exploração apressada e desestruturadora do
ambiente pela mineração mecanizada, que afronta a relação
homem-natureza do lugar.
Da mesma maneira que no Sertão as plantas da caatinga
deixam cair suas folhas para não perder água enquanto trans-
piram, o leito do rio imita a vida no limite crítico da sobrevi-
vência, deixando-se nu de água por fora, para retê-la o quanto
pode por dentro. 
Imaginando o seu perfil por baixo da areia, a rocha dura
forma uma bacia de acumulação de grande extensão, aflo-
rando em determinados trechos do leito justo quando as pe-

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dras aparecem e funcionam como impedimento à passagem
da água rio abaixo, ficando acumulada nos poros do solo are-
noso.
A escavação e a retirada da areia na mineração descobrem
a água, deixando-a exposta à evaporação, que na região é
de aproximadamente 2.500 mm/ano. Ou seja, um espelho de
água com 1m2 perde 2.500 litros de água para a atmosfera em
um ano. E se isso ocorrer em 1 km de rio com seus 80 m de
largura? Significam 200 milhões l/ano, o que corresponde ao
consumo doméstico anual de uma população rural de 8 mil
moradores.
Mas não é só isso. O espelho d´água, exposto ao sol, favo-
rece a reprodução de microalgas, algumas tóxicas, que, ao
morrerem por falta de oxigênio durante a noite, terminam
por estragar a água e inviabilizá-la para consumo. Por isso é
que a sabedoria popular diz que água parada por muito tem-
po não é boa.
Sem água, sem rio, sem pássaros, sem o verde sobre a areia.
Destruída a grande cisterna natural, a razão de permanência
no campo se esvai. E a cidade espera novos migrantes para
consumir mais água, de onde?

Publicado em 29 de agosto de 2012

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Sugestão de Atividade
Atividade: Nossas Crônicas Ambientais
Esta é uma proposta de atividade para introduzir o uso de
crônicas no processo formativo e a criar oportunidades de
relacionar temáticas ambientais à vida cotidiana.
Por ocasião do planejamento, os professores podem esta-
belecer parcerias e desenvolver um trabalho integrado e in-
terdisciplinar, envolvendo diferentes disciplinas, com intuito
de potencializar a ação educativa. Uma ação bem planejada e
coordenada por várias disciplinas resulta em melhor apren-
dizado para o aluno, experiência para o professor e ressoa
positivamente na organização da própria escola. Chama-se
sinergia o efeito resultante da ação de vários agentes que
atuam de forma coordenada para um objetivo comum. E é a
sinergia da interdisciplinaridade que se espera obter com o
desenvolvimento de ações de educação ambiental na escola.
Vale sublinhar que a experiência do professor e o conhe-
cimento que ele tem de seus alunos, deverão orientar a adap-
tação da atividade sugerida para as condições reais de cada
escola, nível e modalidade de ensino, disciplina e objetivos de
aprendizagem. Podem ser realizadas boas experiências com o
uso de crônicas ambientais no ensino fundamental, no ensino
médio, na educação de jovens, adultos e idosos, na educação
superior e na formação continuada. E por que não pensar tam-
bém em outros espaços-tempos educativos?
Em contextos não formais de educação, é perfeitamente
possível sua adaptação para atender ao público em seu espa-
ço-tempo de aprendizagem. Este pode ser o caso da educação
popular que acontece em uma associação de moradores ou
na formação de lideranças por uma comunidade ribeirinha.
O uso da palavra e do cotidiano é a matéria prima para inter-
pretar o mundo e buscar sua transformação.
Então, que tal propor uma atividade que envolva leitura,
interpretação e escrita de textos, produções artísticas, tais
como desenhos e pinturas, e a socialização do conhecimento
por meio da produção coletiva de um livro?
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Uma atividade assim pode: despertar o interesse do alu-
no por questões ambientais do cotidiano; interpretar am-
biente através de uma leitura interdisciplinar da realidade;
produzir conhecimentos ecológicos e relacionais por meio
de crônicas; aprimorar o hábito da leitura e da escrita; e
produzir uma obra coletiva.
Alguns materiais que podem ser necessários: revistas,
jornais ou livros com crônicas com temáticas ambientais,
papel, caneta, papelão, tesoura, guache, pincel, linha grossa
e agulha grande.

Primeiro passo: Apresentando a crônica


Apresente à classe as características da crônica: ela é pu-
blicada inicialmente em jornais ou revistas; relata de forma
artística e pessoal fatos colhidos no noticiário jornalístico e
no cotidiano; e consiste em um texto curto e leve, que tem por
objetivo divertir e/ou fazer refletir criticamente sobre a vida e
os comportamentos humanos. A crônica pode apresentar ele-
mentos básicos da narrativa - fatos, tempo, personagens e lu-
gar; o narrador pode ser observador ou se constituir em perso-
nagem; e geralmente emprega a variedade informal da língua.
Enfatize como o cronista expõe seu ponto de vista, seus
comentários, ironias e interpretações a respeito de fatos da
vida comum. Proponha a leitura de alguns trechos de crôni-
cas extraídas de livros, jornais ou revistas, mostrando como
os cronistas transformam o cotidiano em literatura. Com-
plete destacando que a crônica nem sempre apresenta uma
narrativa. Ela pode fazer comentários, analisar, descrever,
sugerir, exemplificar, de maneira leve e curta, o cotidiano.

Segundo passo: Leitura e interpretação em grupo


Proponha o trabalho com as crônicas em grupos. Cada gru-
po recebe uma crônica diferente, devendo lê-la e discuti-la.
Depois peça que cada grupo manifeste seus comentários prin-
cipais sobre a crônica recebida, fazendo a leitura em voz alta e
destacando os trechos que considere mais significativos.

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Para o momento seguinte, encomende a produção de uma
crônica com tema ambiental, usando os textos estudados
como referência. Peça que cada grupo escolha um tema am-
biental relacionado com seu cotidiano e construa um texto
coletivo. É adequado que cada crônica seja ilustrada com uma
fotografia ou um desenho escolhido pelo grupo.

Terceiro passo: Apresentando as produções


Cada grupo escolhe um relator que fará a leitura em voz
alta da crônica, explicando logo depois como foi escolhido
o assunto, como o desenvolveu e que dificuldades foram en-
contradas. Todos discutem e compartilham a experiência e
avaliam a qualidade dos textos desenvolvidos. Este deve ser o
momento também de se tirar dúvidas e aperfeiçoar os textos.

Quarto passo: A produção do livro coletivo


Depois de concluídas as crônicas, as mesmas podem ser
organizadas para editoração e impressão. Cada grupo deverá
se encarregar de revisar o seu texto para compor o livro co-
letivo. O título do livro deverá ser escolhido pela turma. Su-
gere-se que seja feita a impressão de vários exemplares para
deixá-los disponíveis na biblioteca da escola.
Com papelão, lápis, guache e pincel cada grupo faz uma
capa diferente para o livro, usando a criatividade. Outras téc-
nicas poderão ser agregadas à confecção das capas, que po-
dem ser costuradas ao livro com a agulha e linha.

Quinto passo: O lançamento do livro


Depois de pronto o livro, é hora de preparar o lançamento
na escola. Momento de definir dia, horário e local para o lan-
çamento, fazer convites, elaborar cartazes convidando ou-
tras turmas para participar do evento. No lançamento, cada
grupo deve preparar a leitura da sua crônica, devendo haver
espaço para perguntas e interação com o público.
Você poderá ver o crescimento do interesse dos alunos em
ler as suas próprias produções, e confirmar que as crônicas

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são um ótimo instrumento a ser usado para estimular a lei-
tura de textos e a escrita, assim como a interpretação da re-
alidade socioambiental.

Avaliação
A avaliação deve ser qualitativa e visar o aperfeiçoa-
mento da ação educativa por meio da compreensão de seus
processos e resultados. É essencial que seja participativa e
incentive os participantes a compartilharem suas opiniões
e juízos. Alguns critérios podem ajudar a avaliar a ativida-
de, tais como: as relações entre professores, estudantes e
comunidade escolar; as atitudes e valores desenvolvidos no
processo; as estratégias educacionais empregadas. Destaca-
-se que avaliar uma ação de educação ambiental requer su-
perar visões quantitativas da aprendizagem, mas propor
formas criativas e dialógicas de melhorar nossas relações
sociais com as pessoas e os ambientes.

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