AmricoSommerman OOBJETOOMTODOEAFINALIDADEdaINTERDISCIPLINARIDADE
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EDITORES
ARLINDO PHILIPPI JR
VALDIR FERNANDES
1 O OBJETO , O MÉTODO E A FINALIDADE
2 DA INTERDISCIPLINARIDADE
3
4 Américo Sommerman
5
6
7 INTRODUÇÃO
1
APOSTEL, Leo e col. L’interdisciplinarité: problemes d’enseignement et de recherche dans les
universités. Paris: OCDE, 1973.
2
A OCDE foi criada em 30 de setembro de 1961, sucedendo à Organização para a Cooperação
Económica Europeia, criada em 16 de abril de 1948. Sua sede é na França e reúne atualmente 34 países,
quase todos países economicamente desenvolvidos, de modo que produzem, juntos, mais da metade de
toda a riqueza do mundo e influenciam-se mutuamente quanto à sua política econômica e social.
3
A lista completa dos 57 participantes deste Seminário de Nice, delegados de 21 países membros da
OCDE, pode ser encontrada na publicação que resultou do Seminário: APOSTEL e col., 1973, p. 327-
332.
4 APOSTEL, L. e col. (orgs.) L´interdisciplinarité - problemes d´enseignement et de recherche dans les
universités. Rapport du Séminaraire sur l´Interdisciplinarite, Nice, 1970 - CERI - Centre pour da
Recherche et l´Innovations das l´ Enseignement/ OCDE - Organisation de Coopération et de
Développement Économiques, Paris, 1973. A OCDE publicou esta obra em inglês em 1972:
Interdisciplinarity: Problems of Teaching and Research in Universities.
62 moderna; 2) clarificar os conceitos de pluridisciplinaridade, de interdisciplinaridade e mesmo de
63 transdisciplinaridade à luz de uma reflexão epistemológica; 3) analisar os objetivos de uma
64 formação pluri e interdisciplinar; 4) estudar os meios para isso; 5) confrontar e emular as
65 experiências dos diversos países membros da OCDE; 6) organizar a coleta, a triagem e a difusão
66 da informação sobre a interdisciplinaridade; 7) prever colóquios futuros sobre a
67 interdisciplinaridade; 8) avaliar experiências interdisciplinares; 9) propor novos modelos
68 universitários; 10) produzir relatórios e publicações sobre a interdisciplinaridade e sobre os
69 problemas que esse conceito levanta.
70 Vale ressaltar aqui, para o prosseguimento de nossas reflexões, que duas reuniões
71 preparatórias desse Seminário de Nice (realizadas em dezembro de 1969 e fevereiro de 1970)
72 deram origem a dois documentos, cujas constatações foram (APOSTEL e col., 1973, p. 9-13):
5
Ver a lista com os nomes e instituições dos sete professores que foram convidados pelo CERI e a OCDE
para constituir esse grupo de experts sobre esta temática na p. 25 da publicação que resultou desse
seminário: APOSTEL e col., 1973 ou no Anexo A da nossa pesquisa (SOMMERMAN, 2012, p. 1271).
96 relatadas; 4º a dificuldade que os professores e pesquisadores que participaram da pesquisa
97 tiveram para distinguir os conceitos de multi, pluri, inter e transdisciplinaridade (APOSTEL e
98 col., 1973, p. 25-26). Esse primeiro balanço foi responsável pela realização da segunda pesquisa
99 (“Estudo sob a forma de um questionário, destinado a coletar as informações e as opiniões
100 concernentes às diversas atividades interdisciplinares”), cuja finalidade era trazer subsídios
101 ainda mais consistentes para as reflexões a serem realizadas alguns meses mais tarde, durante o
102 Seminário de Nice. Essa pesquisa era maior do que a primeira (cf. ibid., p. 26) e trazia na página
103 de rosto de suas 43 páginas o glossário com definições iniciais distinguindo esses quatro termos.
104 Esse segundo questionário foi respondido por 230 grupos, de diversas universidades e de vários
105 países. Três foram os grandes temas que emergiram como resposta quanto à relevância das
106 atividades interdisciplinares: 1) a Unidade do Saber, 2) a Unidade da Prática, 3) a Unidade da
107 Pessoa ou do Sujeito (cf. APOSTEL e col., 1973, p. 73).
108 O maior grau de consenso entre os participantes do Seminário de Nice foi que “a
109 crescente complexidade dos problemas enfrentados pelas sociedades modernas” e a grande
110 velocidade das mudanças “exigem políticas científicas que fomentem o trabalho e a pesquisa
111 interdisciplinar” (BERGER, 1973, p. 74). Isso fez com que, a partir de então, a UNESCO e a
112 OCDE passassem a apoiar e a promover debates, seminários e colóquios de caráter internacional
113 para suscitar mais reflexões a respeito da pluridisciplinaridade, da interdisciplinaridade e da
114 transdisciplinaridade.
115
116 Como afirmamos em Alvarenga e col. (2005), além da proposta de aprofundamento da
117 discussão teórica e de aplicação dos dois termos que estão no seu título – pluri e
118 interdisciplinaridade – esse Seminário sugeriu também a reflexão sobre o termo
119 “transdisciplinaridade”. Na página de rosto do segundo e grande questionário que seus
120 organizadores enviaram a professores e pesquisadores responsáveis por atividades
121 interdisciplinares das universidades dos países membros da OCDE 6 (APOSTEL e col., 1973, p.
122 26) foi colocado um glossário com os seguintes conceitos (ibid, p. 23-24): Disciplina,
123 Multidisciplinar, Pluridisciplinar, Interdisciplinar, Transdisciplinar. Eis a tradução desse
124 glossário e das frases que o antecedem na publicação citada:
125
126 Precisemos simplesmente que se trata aqui de proposições provisórias e de um
127 esforço de clarificação terminológica e conceitual. Essas distinções e essas
128 definições foram estabelecidas por G. Michaud. C.C. Abt as reformulou para poder
129 colocá-las no início do questionário que nós analisamos:
130
6 Naquele momento, os países membros eram: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá,
Dinamarca, Espanha, Estados Unidos da América, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália,
Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça e
Turquia. Em 2007, passaram a ser membros: Chile, Eslovênia, Estônia, Israel, Rússia.
131 Disciplina: Conjunto específico de conhecimentos que têm suas características
132 próprias no plano do ensino, da formação, dos mecanismos, dos métodos e das
133 matérias.
134
135 Multidisciplinar: Justaposição de disciplinas diversas, às vezes sem relação
136 aparente entre si. Ex.: música + matemática + história.
137
138 Pluridisciplinar: Justaposição de disciplinas mais ou menos vizinhas em áreas do
139 conhecimento. Ex.: área científica: matemática + física, ou área das letras: francês
140 + latim + grego.
141
142 Interdisciplinar: Interação existente entre duas ou mais disciplinas: essa interação
143 podendo ir da simples comunicação de idéias até a integração mútua dos conceitos
144 diretores, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos,
145 dos dados e da organização da pesquisa e do ensino a elas relacionados. Um grupo
146 interdisciplinar se compõe de pessoas que receberam uma formação em diferentes
147 áreas dos conhecimentos (disciplinas) tendo cada uma conceitos, métodos, dados e
148 termos próprios.
149
150 Transdisciplinar: Colocação em ação de uma axiomática comum a um conjunto de
151 disciplinas (ex.: a antropologia considerada como ‘a ciência do homem e de suas
152 obras’ conforme a definição de Linton). (Ibid, p. 23-24)
153
154 Esses três últimos termos (cf. ALVARENGA e col., 2011) de “pluridisciplinaridade”,
155 “interdisciplinaridade” e “transdisciplinaridade” passam, de modo articulado, a partir de então e
156 até o presente momento, a representar um novo horizonte de possibilidades para o tratamento
157 diferenciado de problemas complexos e de busca de superação dos limites do conhecimento
158 centrado, de maneira exclusiva, no paradigma da separação entre as disciplinas.
159 As definições de multidisciplinaridade (“Justaposição de disciplinas diversas, às vezes
160 sem relação aparente entre si”) e de pluridisciplinaridade (“Justaposição de disciplinas mais ou
161 menos vizinhas em áreas do conhecimento”) estabelecidas nesse glossário por G. Michaud e
162 C.C. Abt a pedido da OCDE continuam muito semelhantes às que pudemos encontrar entre a
163 maioria dos autores que têm tratado deste tema (cf. SOMMMERMAN, 2006, p. 61). Portanto,
164 há certo consenso na comunidade acadêmica a respeito desses dois conceitos.
165 No que diz respeito aos conceitos de interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade, na
166 pesquisa que realizamos recentemente (SOMMERMAN, 2012) pudemos constatar que nas
167 áreas da Educação, da Saúde e do Ambiente as definições de ambos avançaram durante as
168 décadas de 1990 e 2000 em relação às que foram propostas nesse Seminário de Nice em 1970
169 por Piaget, por Jantsch, e por G. Michaud e C.C. Abt. Retornaremos a esta questão no final do
170 capítulo.
171 Durante esse seminário, vários conferencistas, como Jean Piaget, Erich Jantsch, André
172 Lichnerowicz, Marcel Boisot e Heinz Heckhausen propuseram diferentes definições desses três
173 conceitos. Apresentaremos, em seguida, as que foram propostas por Piaget e Jantsch, que se
174 tornaram as mais influentes até o início dos anos de 1990.
175 Voltemos agora à definição de interdisciplinaridade que Guy Michaud e C. C. Abt
176 elaboraram para o cabeçalho do 2º grande questionário que a OECD enviou aos professores e
177 pesquisadores responsáveis por atividades interdisciplinares nas universidades dos países
178 membros da OECD em maio e junho de 1970, com a finalidade de dar subsídios ao Seminário
179 na Universidade de Nice em setembro de 1970:
180
181 Interdisciplinar: Interação existente entre duas ou mais disciplinas: essa interação
182 pode ir da simples comunicação das idéias até a integração mútua dos conceitos
183 diretores, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos,
184 dos dados e da organização da pesquisa e do ensino a ela relacionado. Um grupo
185 interdisciplinar se compõe de pessoas que receberam uma formação nos diferentes
186 campos do conhecimento (disciplinas), cada um deles tendo conceitos, métodos,
187 dados e termos próprios (APOSTEL, 1973, p. 23-24).
188
189 Partiremos desta definição “clássica” e a compararemos com as definições dadas por
190 diversos autores naquele Seminário e nas décadas seguintes, a fim de verificarmos também aí o
191 avanço das reflexões sobre esse conceito e termos repostas mais claras do “quê”, do “como” e
192 do “porquê” da interdisciplinaridade.
193
194
195 A definição de interdisciplinaridade dada por Jean Piaget em 1970
196
197 Como primeiro autor para este contraponto e para este aprofundamento, tomaremos o
198 biólogo, psicólogo, geneticista, epistemólogo e educador suíço Jean Piaget (1896-1980). Ele
199 começou o artigo da sua conferência em Nice (no qual propôs pela primeira vez suas definições
200 para os conceitos de multidisciplinar, interdisciplinaridade e transdisciplinar 7) fazendo uma
201 análise atual das ciências experimentais. Segundo ele, elas suscitam o problema geral que dá
202 sentido à interdisciplinaridade. Observa que, com o positivismo, a realidade foi inevitavelmente
203 fragmentada em muitos territórios mais ou menos separados ou em estágios superpostos
204 correspondentes a campos bem delimitados das disciplinas científicas. Nesse âmbito do
205 positivismo, as disciplinas apenas analisam os fenômenos observáveis, os descrevem, os
206 mensuram e os relacionam, levando à descoberta de leis mais ou menos especiais ou gerais, mas
207 recusando-se a buscar as causas dos fenômenos. Observemos que esse tipo de finalidade para a
208 ciência moderna corresponde exatamente à que foi proposta por Galileu e por Newton. A partir
209 dessa perspectiva, as disciplinas mais complexas se apoiam nas descrições e nas leis das
210 ciências mais fundamentais, mantêm algumas características próprias que não podem ser
211 reduzidas às disciplinas de base, mas que dependem totalmente das leis das disciplinas
7
PIAGET, Jean. “L’epistemologie des relations interdisciplinaires”. In.: APOSTEL, Leo et al.
L’interdisciplinarité: problemes d’enseignement et de recherche dans les universités. Paris: OCDE, 1973.
212 “inferiores” − como se as leis específicas encontradas pelas disciplinas mais complexas ou
213 superiores pudessem ser explicadas simplesmente pela sua redução pelas leis mais gerais das
214 disciplinas fundamentais (um exemplo disso foi o esforço de Maxwell para reduzir o
215 eletromagnetismo ao mecanicismo). Piaget afirmou que essa posição positivista excluía
216 qualquer pesquisa interdisciplinar, pois o princípio desta pesquisa é contrário à ideia positivista
217 de que há fronteiras naturais que separam as diversas categorias observáveis e, portanto, as
218 disciplinas. As teorias contemporâneas relativas às experiências em escalas cosmológicas, em
219 escalas microfísicas e relativas às conquistas cada vez maiores da dedução matemática
220 “conduziram à descoberta fundamental das estruturas”, e estas estruturas mostram, ao contrário,
221 como tais fronteiras são subjetivas. Pois se por um lado é possível explicar as estruturas pelas
222 suas manifestações observáveis, por outro lado, enquanto sistema, elas só podem ser explicadas
223 por dedução, porque as ligações no interior do sistema não são observáveis em si mesmas. Para
224 ele, as consequências disso eram claras:
225
226 (...) nada nos obriga mais a fragmentar o real em compartimentos estanques ou em
227 estados simplesmente superpostos correspondentes às fronteiras aparentes das
228 nossas disciplinas científicas e tudo nos obriga, ao contrário, a nos engajar na
229 investigação a respeito das interações e dos mecanismos comuns. A
230 interdisciplinaridade deixa assim de ser um luxo ou um produto de ocasião para
231 tornar-se a condição mesma do progresso das pesquisas. A fortuna relativamente
232 recente das tentativas interdisciplinares não nos parece, portanto, devida ao acaso
233 das modas nem (ou não apenas) às imposições sociais, que colocam problemas
234 cada vez mais complexos, mas a uma evolução interna das ciências sob a dupla
235 influência das necessidades de explicação, ou seja, do esforço para completar
236 mediante ‘modelos’ causais a simples legalidade, e do caráter cada vez mais
237 estrutural (no sentido matemático do termo) que tais modelos assumem (PIAGET,
238 1973, p. 133)
239
240 Na sequência do artigo, Piaget mostrou como todas as ciências, com esses dados novos,
241 passavam a comportar diferentes níveis de conceitualização ou de estruturação, de modo que
242 todas as disciplinas precisavam elaborar sua própria epistemologia, a fim de caracterizar essas
243 relações entre os modelos utilizados e os diferentes níveis dos fenômenos observados. Por isso e
244 também devido às necessárias comparações das relações entre o sujeito e os objetos, a
245 epistemologia de uma disciplina se mostraria solidária daquelas das disciplinas vizinhas. Em
246 seguida, mostrou as considerações interdisciplinares que decorrem mesmo das relações
247 epistemológicas entre as ciências dedutivas (lógica e matemática) e as outras disciplinas; depois,
248 das considerações interdisciplinares entre as Ciências Humanas e Sociais; e, destas, com as
249 Ciências da Natureza. Concluiu dizendo que, se no final dos argumentos apresentados, alguém
250 quisesse extrair “algumas conclusões sobre a natureza da interdisciplinaridade”, seria levado a
251 distinguir três níveis, conforme o nível de interação entre os componentes das disciplinas: “O
252 patamar inferior poderia ser chamado ‘multidisciplinar’ e é encontrado quando a solução de um
253 problema requer informações tomadas de duas ou mais ciências ou setores do conhecimento,
254 mas sem que as disciplinas que dão sua contribuição para aquela que as utiliza sejam
255 modificadas ou enriquecidas”. Esse patamar constituiria muitas vezes o ponto de partida dos
256 trabalhos de uma equipe de pesquisadores que tem um objetivo interdisciplinar. Eles
257 normalmente começariam com uma troca de informações mútuas e simplesmente cumulativas
258 (mas sem verdadeiras interações), antes de ultrapassarem esse primeiro patamar. Entretanto
259 Piaget observou também que há tipos de problemas em determinados campos que sempre se
260 manterão no patamar multidisciplinar. É nesse ponto que Piaget propõe sua definição de
261 interdisciplinaridade: “Nós reservamos, ao contrário, o termo interdisciplinaridade para
262 caracterizar um segundo nível, no qual a colaboração entre disciplinas diversas ou entre setores
263 heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações propriamente ditas, isto é, a certa
264 reciprocidade nas trocas, de tal modo que haja um total enriquecimento mútuo” (PIAGET,
265 1973, p. 142). E, para o epistemólogo suíço, a forma mais simples de estabelecer essa ligação
266 interdisciplinar é a percepção do isomorfismo, a correspondência de forma, entre as estruturas
267 das diferentes disciplinas em diálogo, ou seja, “quando especialistas de dois campos diferentes
268 percebem que suas análises acabam por revelar estruturas semelhantes, o detalhe dessas análises
269 num desses campos sendo então suscetível de esclarecer a outra” (ibid.). Veremos adiante que,
270 para todos esses autores de referência, a busca desses isomorfismos ou de um fundamento
271 comum que atravessa as diferentes disciplinas em diálogo é um dos instrumentos metodológicos
272 mais fortes da interdisciplinaridade.
273
274
275 A definição de interdisciplinaridade dada por Erich Jantsch em 1970
276
277 Outro autor que influenciou fortemente as definições do conceito de interdisciplinaridade
278 e de transdisciplinaridade desde a década de 1970 foi o astrofísico austríaco Erich Jantsch. No
279 artigo “Vers l’interdisciplinarité et la transdisciplinarité dans l’enseignement et l’inovation” [“Em
280 direção à interdisciplinaridade e à transdisciplinaridade no ensino e na inovação”], publicado por
281 Apostel e col. (1973) no livro que resultou do Seminário de Nice em 1970, Jantsch começou se
282 colocando ao lado de Piaget na posição de combater o positivismo ainda reinante na ciência
283 universitária e na estrutura universitária. Em seguida, partindo da ampliação extensão do conceito
284 de “sistema” (mais geral do que o de “estruturas”) do campo biológico e do campo social à ciência
285 em geral – extensão esta que foi indicada por Piaget − bem como da noção nova de que as
286 interações estruturais é que devem ser o novo centro das atividades científicas (como preconiza a
287 Teoria Geral dos Sistemas), ele se posicionou entre aqueles que consideram que a ciência, o
288 ensino e a inovação constituem um sistema integrado, com objetivos sociais claros. Nesse sentido,
289 a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, que são conceitos de interação, tornam-se noções-
290 chave para a estruturação de uma universidade nova, muito mais adequada para um mundo em
291 mutação e para fazer face aos efeitos degradantes da tecnologia sobre a vida da cidade e sobre o
292 meio ambiente, e que são decorrentes justamente dos processos de decisão de um pensamento
293 linear, de curto prazo, fragmentador e passivo dos “homens de ciência”.
294 É nesse sentido que, para Jantsch, o sistema ciência-ensino-inovação deveria ajudar a
295 construir uma sociedade nova, com instituições novas, e a universidade deveria interagir mais
296 com outras instâncias do sistema social, tornando-se um centro estratégico para essas
297 transformações. Por isso, as disciplinas não deviam ser organizadas como um sistema a priori,
298 mas para atender a uma finalidade. Assim, a interdisciplinaridade constituiria um princípio de
299 organização e coordenação para que dois níveis diferentes do sistema ensino-inovação
300 tendessem para essa finalidade, e extrairia uma axiomática comum dos conceitos e
301 configurações distintos das diferentes disciplinas em interação nesses dois níveis. Jantsch
302 definiu um sistema ciência-ensino-inovação estruturado em quatro níveis, tendo na base as
303 ciências da natureza ou explicativas e no topo as Ciências Humanas ou compreensivas. A
304 interdisciplinaridade coordenaria as interações entre dois níveis contíguos do sistema e a
305 transdisciplinaridade coordenaria todos os quatro níveis. Vamos concluir o resumo deste seu
306 influente artigo, com a definição que ele propôs para o conceito de interdisciplinaridade:
307
308 Axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas, definida no nível ou sub-nível
309 hierárquico imediatamente superior, o que introduz uma noção de finalidade; a
310 interdisciplinaridade teleológica se coloca entre o nível empírico e o nível pragmático;
311 a interdisciplinaridade normativa se coloca entre o nível pragmático e o nível
312 normativo; a interdisciplinaridade objetivizada se coloca entre o nível normativo e o
313 nível dos objetivos. (Jantsch, 1973, p. 108)
314
315 No esquema de Jantsch, o nível empírico é constituído pelas ciências explicativas:
316 ciências físicas, ciências da vida, ciências psicológicas; o nível pragmático é constituído pelas
317 tecnologias da física, as tecnologias da biologia e as tecnologias provenientes de outras ciências;
318 o nível normativo é constituído pelo direito, pelas ciências ecossistêmicas e pela ciência
319 macroeconômica; o nível dos objetivos é constituído pela filosofia, pelas artes, pela religião.
320 Cada um destes níveis, segundo Jantsch, tem uma linguagem de organização. No nível
321 empírico, essa linguagem é a lógica; no nível pragmático, é a cibernética; no nível normativo, é
322 a planificação; no nível dos objetivos, é a antropologia. Por isso, a interdisciplinaridade
323 teleológica procuraria extrair uma linguagem comum e princípios comuns entre a linguagem
324 lógica do nível empírico e a linguagem cibernética do nível pragmático; a interdisciplinaridade
325 normativa procuraria fazer o mesmo entre a linguagem cibernética do nível pragmático e a
326 linguagem da planificação do nível normativo; e a interdisciplinaridade objetivizada, buscaria
327 fazer o mesmo entre a linguagem da planificação do nível normativo e a linguagem
328 antropológica do nível dos objetivos.
329 Além das definições para a interdisciplinaridade e para a transdisciplinaridade, Jantsch
330 propôs definições para a multidisciplinaridade, para a pluridisciplinaridade e para o que ele
331 chamou de “disciplinaridade cruzada”. Resolvemos enunciá-las aqui porque serão úteis para a
332 sequência das nossas reflexões para a clarificação do “quê”, do “como” e do “porquê” da
333 interdisciplinaridade:
334
335 Multidisciplinaridade: Gama de disciplinas que são propostas simultaneamente,
336 mas sem fazer aparecer explicitamente as relações que podem existir entre elas.
337 Pluridisciplinaridade: Justaposição de disciplinas diversas, situando-se
338 normalmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de maneira a destacar as
339 relações existentes entre elas.
340 Disciplinaridade cruzada: Axiomática de uma única disciplina imposta a outras
341 disciplinas do mesmo nível hierárquico, o que cria uma polarização rígida das
342 disciplinas em direção à axiomática própria a uma disciplina. (JANTSCH, 1973,
343 p.108)
344 Vemos que as definições de Jantsch foram próximas daquelas propostas por G. Michaud
345 e C.C. Abt para o segundo questionário elaborado pela OCDE.
346
347
348 As contribuições de Julie Thompson Klein na década de 1990 para a compreensão da
349 história, da teoria, do conceito e do método da interdisciplinaridade
350
351 Outra referência para o aprofundamento da temática deste capítulo: a clarificação do
352 objeto (o “quê”), do método (o “como”) e da finalidade (o “porquê”) da interdisciplinaridade, é
353 Julie Thompson Klein, professora do Departamento de Ciências Humanas da Wayne State
354 University, ex-presidente da Association for Integrative Studies (AIS) ex-editora da revista
355 Issues in Integrative Studies. Klein publicou algumas obras fundamentais sobre a
356 interdisciplinaridade, entre as quais Interdisciplinarity: History, Theory & Pratice (1990). Nessa
357 obra, aprofundou o histórico do surgimento desse conceito, das várias teorias e contextos que
358 levaram à sua emergência e os mais diversos campos da sua prática. Klein apontou para duas
359 correntes dominantes a respeito do conceito de interdisciplinaridade: aqueles que o consideram
360 um conceito teórico, e aqueles que o consideram muito mais um conceito prático ou
361 instrumental. Porém, ambas dão as mesmas duas justificativas para a utilização desse conceito:
362 a necessidade ou a complexidade. É interessante citar aqui, mas apenas de passagem, que Allen
363 F. Repko (2008, p. 17-18) propõe a existência não de duas, mas de três formas principais de
364 interdisciplinaridade: instrumental, conceitual e crítica, às quais voltaremos, pois estas três
365 formas principais indicadas por Repko mostram-se bastante heurísticas para nossa reflexão.
366 Antes de propor, no final deste seu livro, sua própria definição de interdisciplinaridade (que
367 apresentaremos em seguida), Klein fez uma recapitulação breve das definições de
368 multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade (1990, p. 56-73). Quanto
369 ao conceito de multidisciplinaridade, Klein observou que a maioria dos autores concordava que
370 se trata de uma “simples justaposição de disciplinas”, havendo adição e não integração. Quando
371 surge um “início de integração” entre disciplinas próximas, muitos teóricos chamam isso de
372 pluridisciplinaridade. Ao começar sua reflexão sobre o conceito de interdisciplinaridade, Klein
373 fez uma pequena crítica à definição que a OCDE deu para este conceito no glossário que
374 colocou no cabeçário do grande questionário elaborado para subsidiar o Seminário de Nice. Ela
375 observou que a primeira parte da frase de tal definição (“Interação existente entre duas ou mais
376 disciplinas: essa interação pode ir da simples comunicação das idéias até a integração mútua
377 dos conceitos diretores, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos,
378 dos dados e da organização da pesquisa e do ensino a ela relacionado” [grifo nosso]) não se
379 enquadra numa definição de interdisciplinaridade, mas sim de multidisciplinaridade ou de
380 pluridisciplinaridade. Lembrou que Piaget considerava que a interdisciplinaridade só ocorre
381 quando há assimilação entre as disciplinas, e que Gusdorf afirmava que um verdadeiro trabalho
382 em equipe era fundamental para a interdisciplinaridade. Klein apresentou várias outras
383 definições menos influentes, como as de Heiz Heckhausen e de Marcel Boisot (que propõem
384 categorizações demasiadamente complexas e pouco claras para o conceito de
385 interdisciplinaridade), e, antes de concluir o livro, Klein tentou descrever: 1) as características
386 de um indivíduo interdisciplinar, 2) a natureza do processo interdisciplinar e 3) seu próprio
387 conceito de interdisciplinaridade.
388 1) Segundo Klein, apoiando-se em outros autores, algumas das características do indivíduo
389 interdisciplinar são: confiabilidade, flexibilidade, resiliência, sensibilidade aos outros,
390 disposição para correr risco, pele grossa ou ego forte, tolerância à ambiguidade, iniciativa e
391 criatividade, educação ampla, preferência por diversidade e por novas funções sociais, e
392 sentido de insatisfação com os limites disciplinares.
393 2) Citando William Twining (1973), Klein observou que o sucesso de um trabalho
394 interdisciplinar depende de personalidades compatíveis, interesses comuns e um vocabulário
395 comum (KLEIN, 1990, p. 185). E, logo depois de dar sua própria definição de
396 interdisciplinaridade como “um processo para realizar uma síntese integradora”, sugeriu
397 certos passos (o método) para realizá-lo:
398
399 1a. definir o problema [questão, tópico, tema];
400 b. determinar os conhecimentos necessários, inclusive os representantes e
401 consultores disciplinares apropriados, bem como modelos, tradições e literaturas
402 relevantes;
403 c. desenvolver um quadro integrativo e questões apropriadas a serem investigadas;
404 2a. especificar determinados estudos a serem realizados;
405 b. engajar a ‘negociação dos papéis’ (no trabalho em equipe)
406 c. coletar todo o conhecimento disponível e buscar informações novas;
407 d. resolver os conflitos disciplinares trabalhando para a construção de um
408 vocabulário comum (e buscar uma aprendizagem recíproca no trabalho em equipe);
409 e. edificar e manter a comunicação mediante técnicas integrativas;
410 3a. cotejar todas as contribuições e avaliar sua adequação, relevância e
411 adaptabilidade;
412 b. integrar as peças individuais para determinar um padrão para o relacionamento e
413 a relevância mútuas;
414 c. confirmar ou não confirmar a solução [resposta] proposta; e
415 d. decidir sobre a gestão ou disposição da tarefa/projeto/cliente/currículo futuro.”
416 (KLEIN, 1990, p., 188-189)
417
418 Em relação a esses passos, sugeriu várias técnicas integrativas úteis: encontros
419 regulares, apresentações internas e externas ao grupo, organização e planejamento em
420 grupo, seminários internos e externos, normas de trabalho conjuntas, educação continuada
421 conjunta, dados comuns, coleta e analise comum dos dados, relatórios comuns dos dados,
422 rodadas de ensino conjunto, articulação das diferenças entre os membros do time, treino em
423 habilidade de interação em grupo, edificação da interdependência na análise de um
424 objeto/objetivo comum, foco num “inimigo comum” ou num “alvo” comum, relatórios e
425 comentários periódicos, apresentações ou artigos e publicações comuns, patentes comuns de
426 projetos, equipamentos comuns, facilidades comuns, objetivos comuns, envolvimento do
427 cliente/usuário/paciente/estudante, repetição de ações, utilização de técnicas estabelecidas
428 (Cenário, Delphi), encontros informais entre os membros da equipe, ambientes virtuais
429 comuns e comunicações eletrônicas partilhadas.
430 3) E propôs sua própria definição: “A interdisciplinaridade não é uma temática nem um
431 conteúdo. É um processo para realizar uma síntese integradora, um processo que
432 normalmente começa com um problema, uma questão, um tópico ou um tema. Indivíduos
433 devem trabalhar para superar problemas criados pelas diferenças entre as linguagens e as
434 visões de mundo disciplinares” (KLEIN, 1990, p. 188).
435 Essa definição de Klein é muito importante, pois mostra o avanço do conceito em relação às
436 definições de interdisciplinaridade dadas no início da década de 1970. Assim, a
437 interdisciplinaridade deixa de poder ser apenas uma troca ou interação (que se constitui, a partir
438 de então, como o campo específico da pluridisciplinaridade) e passa a ser um processo para a
439 realização de uma síntese integradora entre saberes de duas ou mais disciplinas. Voltaremos a
440 esta questão quando analisarmos a obra de Allen F. Repko.
441 A proposta que Klein fez no final do livro (sobre os passos ou do método para realizar essa
442 síntese integradora interdisciplinar) também é da maior importância. A partir de então, o
443 “como” da interdisciplinaridade, que ainda estava pouco claro nos anos de 1970, passou a ter
444 contornos mais bem definidos. Veremos logo em seguida um avanço maior que a metodologia
445 interdisciplinar conquistou a partir das contribuições dadas por Repko, no fim da década de
446 2000.
447
448
449 As contribuições de Allen F. Repko no fim da década de 2000 para o desenvolvimento da
450 metodologia da interdisciplinaridade
451
452 Uma obra nos parece fundamental para as questões metodológicas (o “como”) da
453 interdisciplinaridade: Interdisciplinary research: process and theory de Allen F. Repko (2008),
454 diretor do Programa de Estudos Interdisciplinares da Escola de Assuntos Urbanos e Públicos da
455 Universidade do Texas. De toda a bibliografia que pudemos consultar no campo da
456 interdisciplinaridade, esta obra de Repko é a única que, de fato, propõe uma reflexão
457 aprofundada sobre uma metodologia para o ensino, a pesquisa e a prática interdisciplinares.
458 Repko inicia sua obra destacando que se os programas interdisciplinares de graduação
459 que começaram a ser criados ao longo das primeiras décadas do século XX eram absolutamente
460 experimentais, desde a metade da década de 1990 eles se tornaram cada vez mais consagrados.
461 Assim, na década de 2000 as graduações em estudos multi-interdisciplinares estavam em 13º
462 lugar em popularidade entre as 33 áreas listadas pelo Centro Nacional de Estatísticas da
463 Educação dos EUA, e, entre 1992 e 2002, aproximadamente 26.000 estudantes por ano
464 receberam bacharelados em estudos multi-interdisciplinares nos EUA (cf. REPKO, 2008, p. ix).
465 A constituição de estudos interdisciplinares apoiou-se em quatro tipos diferentes de
466 crítica à disciplinarização cada vez maior da universidade desde o fim do século XIX: a crítica
467 de que as disciplinas passaram a ser instrumentos de poder e de regulação das condutas
468 humanas e das relações sociais (Michael Foucault); a crítica que apontava um isolamento cada
469 vez maior das disciplinas entre si, que acabaram por constituir como que tribos diferentes, com
470 culturas e línguas diferentes, incapazes de se compreenderem umas às outras; a crítica
471 proveniente das diversas teorias cujos conceitos centrais atravessavam todas as disciplinas
472 (estruturalismo, teoria geral dos sistemas, marxismo, neomarxismo etc.); e a crítica, forte nas
473 décadas de 1970 e 1980, proveniente dos movimentos feministas, pós-estruturalistas e pós-
474 modernistas, que consideravam as disciplinas meras construções sociais (cf. REPKO, 2008, p.
475 xi-xii). No entanto, segundo Repko, desde a década de 1990 tem emergido uma nova retórica da
476 interdisciplinaridade e “os estudos interdisciplinares normalmente se baseiam na hipótese
477 geralmente aceita de que as disciplinas são fundantes para a interdisciplinaridade”, de que a
478 integração dos saberes das disciplinas é uma característica central do trabalho interdisciplinar e
479 de que os estudos interdisciplinares só são úteis para compreender problemas complexos (cf.
480 REPKO, 2008, p. xii-xiii).
481 Atualmente, segundo Repko, “a aprendizagem interdisciplinar é cada vez mais comum
482 em todos os níveis acadêmicos” e os envolvidos nesses processos tem, a cada dia, maior
483 compreensão do que ela é, pois se as definições anteriores de interdisciplinaridade e de estudos
484 interdisciplinares eram muito genéricas, seus sentidos se precisaram muito nas últimas décadas,
485 mesmo não havendo ainda um consenso total a respeito do conceito (cf. REPKO, 2008, p. xi).
486 Há um número crescente de professores e pesquisadores que reconhecem que a
487 interdisciplinaridade é necessária para responder perguntas complexas, resolver determinados
488 tipos de problemas complexos e adquirir uma compreensão de temas complexos que são cada
489 vez mais comuns e estão além da competência de uma única disciplina.
490 No primeiro capítulo desta obra, Repko define o que são “estudos interdisciplinares”.
491 Para isso, define os conceitos de disciplina, define as áreas ou campos disciplinares acadêmicos
492 atuais, define o conceito de interdisciplinaridade e os conceitos vizinhos de
493 multidisciplinaridade e de transdisciplinaridade.
494 Ele parte da definição de disciplina como “um ramo particular de ensino ou um corpo
495 de conhecimento cujos elementos definidores ― ou seja, fenômenos, hipóteses, epistemologia,
496 conceitos, teorias e métodos ― o distinguem de outros campos do conhecimento” (REPKO,
497 2008, p. 4). E explicita as categorias tradicionais das disciplinas, que normalmente dividem as
498 disciplinas em quatro grandes áreas: as Ciências Naturais (biologia ou ciências da vida, química,
499 ciências da terra, matemática e física), as Ciências Sociais (antropologia, economia, ciência
500 política, psicologia e sociologia), as Humanidades (arte, história da arte, história 8, literatura,
501 música, filosofia e estudos religiosos), Profissões Aplicadas (educação, engenharia e seus vários
502 sub-campos, medicina, enfermagem, assistência social, direito, administração e áreas afins,
503 comunicação e áreas afins) (cf. REPKO, 2008, p. 4).
504 Ele relembra que “inter” significa “entre, através, no meio”, de modo que se
505 “disciplinar” significa um campo específico de estudo ou de especialização, “interdisciplinar”
506 significa “entre dois ou mais campos de estudo”, significa “algo proveniente de campos de
507 estudo”. E ele pergunta o que é esse “algo”? São os insights “a respeito de um problema
508 específico gerado pelas disciplinas por ele interessadas” (REPKO, 2008, p. 6), de modo que a
509 ação que os educadores, pesquisadores ou práticos interdisciplinares realizam a partir desses
510 insights diferentes é chamada de “integração”, que “é a parte do processo de pesquisa
511 interdisciplinar que busca reconciliar os insights disciplinares conflitantes” (ibid.). Conforme
512 Repko, o resultado dessa integração “é algo totalmente novo, distinto, à parte e além dos limites
513 de qualquer disciplina e, assim, aditiva para o conhecimento” (ibid.) [o destaque é do autor].
514 Portanto, segundo Repko, os processos de pesquisa interdisciplinar integram os insights das
515 diferentes disciplinas envolvidas e geram um conhecimento totalmente novo. Foi justamente
516 uma definição próxima a esta que apareceu como amplamente predominante na pesquisa
517 qualitativa que realizamos em artigos científicos publicados durante a década de 2000 nas áreas
518 da Educação, da Saúde e do Meio Ambiente (SOMMERMAN, 2012). Ela parece sustentar a
8
Que também faz parte das Ciências Sociais, quando se apoia numa teoria e verifica hipóteses.
519 assertiva de Repko de que, nas últimas duas décadas, o sentido de interdisciplinaridade está se
520 tornado mais preciso. E Repko propõe uma definição atual para o conceito de “estudos
521 interdisciplinares”, apoiando-se nas e sintetizando as definições anteriores de Klein e Newell
522 (1997), da National Academy of Sciences (2005) e de Mansilla (2005):
523
524 Estudos interdisciplinares são processos desenvolvidos para responder a uma
525 questão, resolver um problema ou abordar um tema que é muito amplo ou
526 complexo para ser tratado adequadamente por uma única disciplina e baseiam-se
527 nas perspectivas disciplinares e integram seus insights para produzir uma
528 compreensão mais abrangente ou um avanço cognitivo. (REPKO, 2008, p. 12)
529
530 É importante a observação de Repko de que os pesquisadores interdisciplinares têm concordado
531 que a pesquisa interdisciplinar é um “processo” e não um método, “pois processo permite uma
532 flexibilidade metodológica maior”. Repko define “insight” como uma “contribuição acadêmica
533 para a compreensão clara de um problema”, podendo ele ser produzido por um especialista
534 disciplinar ou pelo desenrolar do processo de pesquisa interdisciplinar, que normalmente acaba
535 produzindo um “insight interdisciplinar”: “uma compreensão integrada e intencional do
536 problema” (REPKO, 2008, p. 12).
537 Em seguida, Repko define os conceitos vizinhos. Multidisciplinaridade: quando as
538 disciplinas ou os insights das disciplinas são colocados lado a lado, sem real integração entre
539 elas. Esta é, de fato, a definição praticamente consensual de multidisciplinaridade.
540 Transdisciplinaridade: “aplicação de teorias, conceitos ou métodos através das disciplinas, com
541 o interesse de desenvolver uma síntese abrangente” (REPKO, 2008, p. 15), mas incluindo
542 também nas equipes de estudo, pesquisa e prática − diferentemente da interdisciplinaridade −
543 atores sociais não universitários.
544 No que diz respeito ao conceito de interdisciplinaridade, Repko também afirma ele
545 sofreu uma metamorfose desde que foi definido pela OCDE nas pesquisas coordenadas por ela
546 para o Seminário de Nice em 1970.
547 Julie T. Klein (1990) havia se referido a duas formas de interdisciplinaridade:
548 instrumental e conceitual. Mas Repko, apoiando-se nos trabalhos de sua precursora, acrescenta
549 uma terceira: crítica. A interdisciplinaridade instrumental é uma abordagem pragmática que
550 prioriza: a pesquisa; o empréstimo metodológico; e a integração de saberes provenientes de duas
551 ou mais disciplinas, para a solução de problemas práticos em resposta a demandas externas da
552 sociedade. A principal distinção entre a interdisciplinaridade instrumental ou pragmática e a
553 crítica não é a metodologia (integração), mas sim a finalidade: a primeira tem por finalidade
554 resolver problemas do mundo real e a segunda prioriza iluminar e criticar as hipóteses das
555 perspectivas disciplinares nas quais a interdisciplinaridade se apoia. “A interdisciplinaridade
556 crítica, cujo objetivo é interrogar as estruturas existentes do conhecimento e da educação,
557 coloca questões de valor e de objetivo” [o destaque é do autor] (REPKO, 2008, p. 18) e ela
558 culpa a pragmática por simplesmente se apoiar nas abordagens disciplinares existentes sem
559 defender a transformação delas. “A interdisciplinaridade conceitual, também pragmática,
560 enfatiza a integração de conhecimento e a importância de colocar questões que não têm uma
561 base disciplinar única” [o destaque é do autor], normalmente criticando a compreensão
562 disciplinar do problema, “como no caso dos estudos culturais, do feminismo e das abordagens
563 pós-modernas” (ibid.). Repko destaca que a grande distinção entre essas três formas de
564 interdisciplinaridade é maior entre as duas primeiras e a terceira, pois esta última muitas vezes
565 tem por fundamento correntes do pensamento que desvalorizam completamente as disciplinas,
566 considerando-as um mero jogo de linguagem ou uma mera construção social. “A definição
567 integrada de estudos interdisciplinares apontada anteriormente reflete uma abordagem
568 consensual para este campo: ele é pragmático, no entanto tem lugar para a crítica e a
569 interrogação tanto das disciplinas quanto da economia, da política e das estruturas sociais.”
570 (REPKO, 2008, p. 18)
571 Já está claro e há quase um consenso de que o principal trabalho dos estudos e pesquisas
572 interdisciplinares é o processo de integração dos conhecimentos ou das epistemologias e
573 metodologias de duas ou mais disciplinas para produzir uma compreensão interdisciplinar para
574 um problema ou tema que não pode ser respondido por uma disciplina sozinha. Portanto, uma
575 vez que o conceito está de certo modo definido, a questão mais importante que se coloca agora
576 é: Como realizar essa integração?
577 Conforme observa Repko, identificar e misturar informações de várias disciplinas sobre
578 um problema é difícil; mais difícil ainda é aprender como cada disciplina pensa, aborda um
579 problema, conduz sua pesquisa e cria um conhecimento novo. Por isso, realizar a dimensão
580 integrativa do processo de pesquisa interdisciplinar “envolve identificar os insights relevantes
581 para o problema; avaliar caminhos nos quais eles podem gerar conflito; criar ou descobrir o
582 conceito, a teoria ou a hipótese que é o fundamento comum mediante o qual os insights podem
583 ser reconciliados, e com isso produzir uma compreensão interdisciplinar do problema”
584 (REPKO, 2008, p. 20-21). Portanto, o processo de pesquisa interdisciplinar tem três etapas
585 principais: 1º identificar os insights relevantes das disciplinas para o problema, 2º integrar os
586 insights, 3º produzir uma compreensão interdisciplinar.
587 No caso da interdisciplinaridade, a prioridade é mais integrar conhecimentos para
588 produzir um conhecimento novo do que produzir um conhecimento unificado. Já para a
589 transdisciplinaridade, segundo Klein e Repko, a prioridade seria a unificação do conhecimento
590 (cf. REPKO, 2008, p. 20). No entanto, em nossas pesquisas (SOMMERMAN, 2012)
591 percebemos que, assim como o conceito de interdisciplinaridade se transformou nas últimas
592 duas décadas em relação às definições clássicas do início da década de 1970, o mesmo se deu
593 em relação à transdisciplinaridade. Para ela, também, já há certo consenso e duas correntes
594 principais para a definição atual: uma transdisciplinaridade mais pragmática, que Gaston Pineau
595 denominou de “sóciointerativa” e de “metodológico co-participativa” ou “reflexiva” (PINEAU,
596 2005); e, outra, mais teórica, crítica e epistemológica, que o mesmo autor denominou de
597 “transdisciplinaridade epistemológico-paradigmática”. No caso da primeira (sociointerativa), a
598 prioridade também é mais integrar conhecimentos para produzir um conhecimento novo do que
599 produzir um conhecimento unificado. Ela difere da interdisciplinaridade apenas no tipo de
600 conhecimento que é integrado, pois inclui, diferentemente daquela, conhecimentos ou insights
601 provenientes de saberes produzidos pelos sujeitos fora das disciplinas acadêmicas. Portanto, ela
602 se diferencia da interdisciplinaridade muito mais quanto ao “quê” (objeto) do que ao “como”
603 (método). No caso da segunda (epistemológico-paradigmática), Klein e Repko têm certa razão;
604 porém, não se trata de produzir um conhecimento unificado, mas sim de reencontrar uma
605 unidade do conhecimento (o que é diferente).
606 Outro aspecto a destacar é a observação de Kotter e Balsiger de que a pesquisa que
607 implica duas mais disciplinas e está voltada para a resolução de um problema normalmente
608 levará à interdisciplinaridade, enquanto que se ela está orientada para o tratamento de um tema
609 tenderá para a multidisciplinaridade:
610
611 Pela formulação de um tema o quando conceitual é estabelecido, no interior do
612 qual os cientistas que lidam com esse tema estão livres para formular seu próprio
613 problema científico. Então, todas as contribuições serão tomadas como elementos
614 de um conjunto, que é delimitado pelo tema, mas eles não precisam mostrar
615 nenhuma relação próxima uns com os outros. Eles podem trabalhar sobre temas,
616 mas não precisam resolvê-los. Um problema precisa de uma solução e a colocação
617 de um problema apresenta as expectativas e os critérios que uma boa solução tem
618 de cumprir. Cada passo numa pesquisa orientada por problema considerando seu
619 conteúdo e seu quadro organizacional tem de contribuir para a solução do
620 problema. (KÖTTER e BALSIGER, 1999)
621
622 Antes de abordar a questão “Como realizar a integração dos insights de diferentes
623 disciplinas para a resolução de determinado problema complexo?”, Repko explicita, a partir de
624 uma pesquisa extensa da literatura existente sobre a interdisciplinaridade, alguns dos
625 pressupostos nos quais a interdisciplinaridade se apoia e cita diversas características e
626 habilidades importantes para os sujeitos na equipes interdisciplinares (REPKO, 2008, p. 38-47).
627 Os cinco pressupostos que, segundo Repko, embasam a abordagem atual da
628 interdisciplinaridade no ensino, na pesquisa e na produção de conhecimento são: 1) a realidade
629 que está além da academia requer uma abordagem interdisciplinar, 2) as disciplinas são
630 fundamentais para os estudos interdisciplinares, 3) as disciplinas por si mesmas são inadequadas
631 para tratar problemas complexos 9, 4) as perspectivas disciplinares revelam apenas uma parcela
9
Este pressuposto é apenas parcialmente correto, pois há, por exemplo, certos tipos de problemas
complexos que podem ser tratados apenas pela matemática e pela física.
632 da realidade, 5) a integração de insights das disciplinas produzirão um avanço cognitivo que não
633 seria possível quando são utilizados apenas os meios de uma única disciplina.
634 Ao apresentar as características e habilidades requeridas para os sujeitos na
635 interdisciplinaridade, Repko observa que “Estudos interdisciplinares não são apenas um meio
636 para obter um diploma; são um método sistemático para desenvolver nossa mente e nosso
637 caráter” (REPKO, 2008, p. 41), pois modificam a maneira segundo a qual pensamos. As
638 características comuns aos sujeitos interdisciplinares que ele encontrou em sua ampla pesquisa
639 da literatura interdisciplinar são: iniciativa; amor pela aprendizagem; reflexão; tolerância à
640 ambigüidade e ao paradoxo em meio à complexidade; receptividade a outras disciplinas e as
641 perspectivas das outras disciplinas; desejo de alcançar um conhecimento adequado ou uma
642 percepção geral em muitas disciplinas; apreciação da diversidade; desejo de trabalhar com
643 outros; humildade 10. Vimos que Klein também apresentou algumas características do sujeito
644 interdisciplinar, que Repko ampliou a partir de sua própria pesquisa. E ele não só aponta tais
645 características, como também explica cada uma delas. No entanto, não traremos aqui tais
646 explicações.
647 As habilidades comuns aos sujeitos interdisciplinares que ele também encontrou em sua
648 ampla pesquisa da literatura interdisciplinar são: habilidade para comunicação competente;
649 habilidade para pensar abstratamente; habilidade para pensar dialeticamente; habilidade para
650 desenvolver um pensamento não-linear 11; habilidade para pensar criativamente; habilidade para
651 pensar holisticamente. Não apresentaremos aqui a descrição que Repko oferece para cada uma
652 dessas habilidades, mas remeteremos os interessados diretamente à obra deste autor.
653 Tentaremos, no entanto, estabelecer uma relação entre essas características e essas
654 habilidades comuns aos sujeitos interdisciplinares encontradas por Repko e as cinco categorias
655 identificadas para o sujeito na interdisciplinaridade em nossa própria pesquisa nos artigos
656 selecionados na área da Educação, das Ciências da Saúde e do Meio Ambiente.
10
“Humildade é um comportamento que todos os acadêmicos, incluindo os interdisciplinares, sem dúvida
necessitam quando estão diante de um problema complexo que expõe os limites do seu aprendizado e de
sua expertise (NEWELL, 2001, p. 22). Embora os disciplinares possam conformar-se em conhecer tudo o
que há para conhecer sobre uma fração da realidade que é a sua especialidade, os interdisciplinares não
podem ter a esperança de realizar esse nível de maestria a respeito de cada faceta de um problema
complexo. Ao invés de sentir orgulho por sua maestria, o interdisciplinar é humilde por saber o quanto ele
não sabe a respeito de áreas do conhecimento relacionadas a esse problema complexo. Os praticantes de
estudos interdisciplinares trazem a seu ofício uma humildade que vem de saberem o que eles não sabem.
Estudantes e professores envolvidos em pesquisas interdisciplinares logo descobrem que eles não sabem
nem podem saber tudo a respeito de um tema. No entanto, utilizando o processo interdisciplinar, são
levados no mínimo a saberem mais a respeito desse tema do que seriam capazes de aprender utilizando
uma abordagem disciplinar. ‘Através desse processo os estudantes descobrem a necessidade de estudos
mais amplos e desenvolvem um respeito pelas diversas perspectivas’ (WENTWORTH e DAVIS, 2002, p.
17)”. (REPKO, 2008. p. 44)
11
Que é a habilidade para “se aproximar de um problema criativamente, pensar sobre ele ‘fora da caixa’”
(REPKO, ibid., p. 46).
657 As cinco categorias que nós identificamos (SOMMERMAN, 2012, p. 509-530) foram:
658 valores e atitudes sociais e humanas; abertura para a multirreferencialidade e para um olhar
659 mais global; pensamento crítico; formação mais ampla da pessoa humana; autoconhecimento
660 ou conhecimento de várias dimensões da própria subjetividade e da pessoa humana como um
661 todo. À nossa categoria do sujeito interdisciplinar “valores e atitudes sociais e humanas”
662 podemos associar às seguintes características encontradas por Repko: iniciativa; amor pela
663 aprendizagem; desejo de trabalhar com outros; apreciação da diversidade; humildade. À nossa
664 categoria do sujeito “abertura para a multirreferencialidade e para um olhar mais global”
665 podemos associar às seguintes características encontradas por Repko: receptividade a outras
666 disciplinas e as perspectivas das outras disciplinas; desejo de alcançar um conhecimento
667 adequado ou uma percepção geral em muitas disciplinas; tolerância à ambiguidade e ao
668 paradoxo em meio à complexidade. À nossa categoria do sujeito “pensamento crítico”
669 podemos associar as seguintes habilidades encontradas por Repko: reflexão; habilidade para
670 pensar dialeticamente; habilidade para pensar criativamente. À nossa quarta categoria do sujeito
671 “formação mais ampla da pessoa humana” podemos relacionar habilidade para comunicação
672 competente; habilidade para pensar abstratamente. Mas nossa quarta categoria abarca
673 características mais amplas do que estas (cf. ibid, p. 606). Apenas para a quinta categoria que
674 identificamos para o sujeito na interdisciplinaridade: “autoconhecimento ou conhecimento de
675 várias dimensões da própria subjetividade e da pessoa humana” (que apareceu especialmente
676 nos artigos selecionados na área da Saúde) não é possível estabelecer uma relação clara com
677 características e habilidades encontradas por Repko para o sujeito interdisciplinary.
678 Todas as características encontradas por Repko puderam, portanto, ser relacionadas com
679 as categorias que nós encontramos na nossa pesquisa qualitativa, mas duas das seis habilidades
680 encontradas por Repko: “habilidade para desenvolver um pensamento não-linear” e
681 “habilidade para pensar holisticamente” apareceram na nossa pesquisa muito mais relacionadas
682 ao sujeito na transdisciplinaridade do que para o sujeito na interdisciplinaridade, posto que elas
683 correspondem muito mais à categoria “pensamento complexo”, fortemente presente, na nossa
684 pesquisa (cf. ibid., p. 618), para o sujeito na transdisciplinaridade.
685 Após apresentar as características e habilidades requeridas para os sujeitos na
686 interdisciplinaridade, Repko traz uma extensa reflexão sobre as áreas e as disciplinas
687 acadêmicas, suas diferentes perspectivas, objetos, pressupostos, epistemologias e métodos (cf.
688 REPKO, 2008, p. 51-114), no entanto, também não trataremos aqui deste tema. Porém,
689 retornaremos à questão metodológica fundamental da interdisciplinaridade (que também é
690 central para a transdisciplinaridade): “Como integrar saberes ou insights de diferentes
691 disciplinas para a resolução de determinado problema complexo que não pode ser tratado
692 adequadamente por uma única disciplina?”.
693 Segundo Repko, se há atualmente quase um consenso entre os pesquisadores
694 interdisciplinares de que a integração é central para a interdisciplinaridade, há um movimento
695 em direção ao consenso a respeito daquilo que a integração deve envolver: “O verbo integrar
696 significa ‘unir ou misturar num todo funcional’. Então, a integração interdisciplinar é a
697 atividade de avaliar criticamente e combinar criativamente ideias e conhecimentos para formar
698 um novo todo ou um avanço cognitivo” (REPKO, 2008, p. 116). Nesse contexto, “integração” é
699 sinônimo de síntese, que é alcançada em pesquisas e estudos interdisciplinares mediante uma
700 série de ações integradoras. O novo todo que é alcançado por essas integrações e essa síntese
701 final é maior do que a soma de suas partes, produzindo, portanto, um avanço cognitivo ou um
702 conhecimento mais amplo. Ao menos duas atividades cognitivas devem estar envolvidas nesse
703 processo 12 de integração: tomada de perspectiva e pensamento holístico. Tomada de perspectiva
704 significa a análise dos diversos pontos-de-vista das disciplinas que podem trazer respostas para
705 o problema em questão e identificar as diferenças entre eles. E pensamento holístico significa a
706 habilidade para compreender como as ideias e informações provenientes das disciplinas
707 relevantes para o problema em questão estão relacionadas umas com as outras e com o
708 problema (cf. REPKO, 2008, p. 122).
709 Os pré-requisitos para o processo de integração são: 1) conhecimento disciplinar, 2)
710 habilidades integrativas, 3) conhecimento integrativo 13 e 4) mentalidade integrativa 14. E três são
711 as tendências que jogam contra o processo de pesquisa interdisciplinar: o viés disciplinar, o
712 jargão disciplinar e o viés pessoal (cf. ibid., p. 145).
713 O conhecimento disciplinar para o processo de integração deve ser a) profundo:
714 identificar os insights relevantes das disciplinas para o problema e adquirir um conhecimento
715 suficiente de cada disciplina envolvida no problema (profundidade disciplinar); b) amplo: deve
716 recorrer a conhecimentos de disciplinas que são epistemologicamente distantes. Se o
717 conhecimento disciplinar envolvido for apenas profundo, isso significará que se trata de uma
718 “interdisciplinaridade restrita”, pois integra saberes provenientes apenas de disciplinas que são
719 próximas epistemologicamente (cf. REPKO, 2008, p. 125).
720 As habilidades para o processo de integração, segundo Repko, são: “1) familiaridade
721 com modelos de integração, 2) familiaridade com técnicas de integração, 3) conscientização
12
Repko observa que a integração interdisciplinar é muito mais um processo do que uma atividade, pois a
primeira traz a noção de fazer mudanças graduais que conduzem de maneira muitas vezes não-linear a um
determinado resultado, enquanto a segunda traz muito mais a idéia de uma ação vigorosa e enérgica para
realizar algo.
13
Ser capaz de identificar os elementos disciplinares relevantes para o problema, identificar os conflitos
entre eles e a causa dos conflitos, aplicar a técnica integrativa apropriada para criar ou descobrir um
fundamento comum, produzir um conhecimento novo (cf. REPKO, 2008, p. 130).
14
Segundo Repko, isto implica cultivar cinco qualidades mentais: saber o que é útil, mesmo que
problemático; pensar de maneira inclusiva e integradora e não exclusiva; ser aberto para cada perspectiva,
mas não se apegar a nenhuma delas; buscar um equilíbrio entre as perspectivas disciplinares; manter uma
flexibilidade intelectual (cf. REPKO, 2008, p. 130).
722 autoconsciente do processo de pesquisa interdisciplinar 15 e 4) avaliar criticamente os insights
723 disciplinares” (REPKO, 2008, p. 126).
724 Repko apresenta três modelos de integração: Modelo 1 ― integração como um quadro
725 conceitual abrangente, Modelo 2 ― integração como uma perspectiva compreensiva, Modelo 3
726 ― integração como interpenetração. No Modelo 1, um conceito, princípio ou lei explica
727 fenômenos estudados por um leque amplo de disciplinas, mas, embora isso não seja difícil
728 quando apenas disciplinas das Ciências da Natureza estão envolvidas, é uma tarefa muito difícil
729 quando disciplinas das Ciências Sociais e das Humanidades também estão implicadas. No
730 Modelo 2, um conhecimento suficiente das diferentes perspectivas disciplinares fundamenta o
731 diálogo entre os pesquisadores envolvidos e os ajuda a selecionar as disciplinas que devem estar
732 implicadas para a solução de determinado problema complexo. No Modelo 3, as diferenças
733 entre as disciplinas envolvidas são questionadas mediante uma “renegociação das fronteiras
734 disciplinares”, e não mediante uma articulação entre elas.
735 Segundo Repko, o Modelo 1 é aquele no qual se baseiam os processos de integração
736 transdisciplinar; o Modelo 2 é aquele no qual se baseiam os processos de integração
737 interdisciplinar de maneira quase consensual atualmente; o Modelo 3 é aquele no qual se
738 baseiam as correntes interdisciplinares e transdisciplinares que têm como perspectiva filosófica
739 o desconstrucionismo 16 pós-moderno.
740 Portanto, para concluirmos esta nossa descrição de partes centrais desta obra de Repko
741 para a clarificação da metodologia da interdisciplinaridade, vamos para a parte final, na qual,
742 depois dar indicações de como identificar as disciplinas relevantes, de como adquirir um
743 conhecimento suficiente dessas disciplinas e de como avaliar cada insight que elas trazem como
744 resposta o problema em questão, ele desenvolve o processo de integração.
745 Para realizar esse processo, quatro passos são necessários (cf. REPKO, 2008, p. 247):
746 1) Identificar os conflitos entre os saberes das disciplinas envolvidas e localizar o motivo
747 desses conflitos;
748 2) Criar um fundamento comum entre esses saberes ou insights;
749 3) Utilizar este fundamento comum para integrar os saberes ou insights conflitivos;
750 4) Produzir uma compreensão interdisciplinar do problema e testá-la.
751
752 Repko destaca a importância do primeiro passo: identificar os conflitos e suas causas (ibid.,
753 p. 248-270) e, em seguida, descreve o processo para a realização do segundo passo (a criação de
754 um fundamento comum), que, segundo ele, é a tarefa mais difícil. Ele lembra que a necessidade
15
Ou seja, conhecer e compreender o processo segundo o qual os estudos e pesquisas interdisciplinares
são desenvolvidos.
16
Conceito criado a partir dos trabalhos publicados pelo filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004)
nos anos 60 e que questionam a possibilidade de construção de significados linguísticos coerentes em
qualquer área do conhecimento acadêmico ou não-acadêmico.
755 de um fundamento comum ou de uma linguagem comum já fazia parte de definições mais
756 antigas de interdisciplinaridade e que o filósofo americano e pesquisador interdisciplinar Joseph
757 J. Kockelmans (1923-2008) foi o primeiro a usar o termo “common ground” (fundamento
758 comum): “Um fundamento comum é o elemento fundamental de uma investigação
759 interdisciplinar, pois sem ele, uma comunicação genuína entre aqueles que participam da
760 discussão seria impossível” (KOCKELMANS, 1979, p. 141). Portanto, segundo Kockelmans,
761 mas também segundo Newell, Klein, Repko e outros pesquisadores interdisciplinares, “O
762 fundamento comum interdisciplinar é uma ou mais teorias, conceitos e pressupostos pelos quais
763 insights conflitivos podem ser reconciliados e integrados” (Repko, 2008, 272):
764
765 “1. Um fundamento comum é algo que deve ser criado, exceto entre as Ciências da
766 Natureza, onde ele normalmente pode ser descoberto.
767 “2. Criar ou descobrir um fundamento comum requer (idealmente) identificar uma
768 teoria, um conceito ou um pressuposto para servir como o ‘fundamento comum
769 integrador’ que se aplica apenas ao problema em questão.
770 “3. Integrar os insights das disciplinas e de suas teorias de base geralmente envolve
771 a utilização de uma ou mais técnicas de integração”. (ibid.)
772
773 Repko apresenta a teoria sobre o fundamento comum desenvolvida pela psicologia
774 cognitiva (cf. ibid.) e, em seguida, indica cinco técnicas para criar o fundamento comum: 1. a
775 técnica integrativa da Teoria da Expansão, 2. a técnica integrativa da redefinição, 3. a técnica
776 integrativa da extensão, 4. a técnica integrativa da organização, 5. a técnica integrativa da
777 transformação.
778 1. A técnica integrativa da Teoria da Expansão é utilizada para modificar uma teoria
779 para que ela possa tratar todos os fatores causais relacionados ao problema em foco. Repko dá
780 um exemplo de utilização desta técnica integrativa.
781 2. A técnica integrativa da redefinição envolve a modificação ou redefinição de
782 conceitos e pressupostos utilizados pelas disciplinas implicadas, a fim de fazer emergir um
783 sentido comum. Para isso, é preciso descobrir como os mesmos conceitos são utilizados
784 diferentemente por disciplinas diferentes no contexto do problema em foco e como conceitos
785 disciplinares diferentes são utilizados para descrever idéias semelhantes. Por exemplo:
786 “eficiência” tem um sentido muito diferente para um economista, para um biólogo e para um
787 cientista político. Depois, é preciso redefinir cuidadosamente alguns conceitos específicos, a fim
788 de criar com eles um fundamento comum, evitando utilizar a terminologia que favorece
789 tacitamente uma abordagem disciplinar em detrimento de outra. Repko dá alguns exemplos da
790 aplicação dessa técnica.
791 3. A técnica integrativa da extensão trata conflitos entre conceitos ou pressupostos
792 disciplinares ampliando o sentido de uma idéia para além do campo de uma disciplina para o
793 campo de outra disciplina, por exemplo: o conceito de comportamento altruísta, que pode
794 incluir disciplinas como sociologia, biologia evolutiva e economia − e esse conceito pode servir
795 de fundamento comum entre elas, desde que seu sentido seja ampliado. O autor também dá
796 alguns exemplos que ilustram como esta técnica de integração é utilizada.
797 4. A técnica integrativa da organização faz duas coisas: identifica semelhanças de
798 sentido entre conceitos ou pressupostos de diferentes disciplinas, redefine-os de acordo com
799 estas semelhanças e organiza os conceitos ou pressupostos redefinidos para fazer emergir uma
800 relação entre eles. Por ser mais difícil do que as outras três esta técnica é pouco utilizada. Repko
801 também apresenta um exemplo do emprego desta técnica.
802 5. A técnica integrativa da transformação utiliza variáveis contínuas em contextos nos
803 quais os conceitos ou pressupostos não são apenas diferentes, mas contrários. Como exemplo,
804 Repko dá o tratamento do problema de como superar pressupostos disciplinares contrários sobre
805 a racionalidade (na economia) ou irracionalidade (sociologia) dos seres humanos colocando-os
806 em extremidades opostas de uma variável contínua chamada “grau de racionalidade”, que torna
807 possível determinar o grau de racionalidade em determinadas situações. “O valor de utilizar
808 variáveis contínuas como uma técnica integrativa é que influências determinantes podem ser
809 exploradas e estimadas em qualquer contexto particular em vez do pressuposto dicotômico de
810 aceitar ou rejeitar” (REPKO, 2008, p. 290) e isso permite resolver quase qualquer dicotomia.
811 Todas essas cinco técnicas provaram oferecer caminhos para a criação de um
812 fundamento comum entre saberes e insights de disciplinas. E elas substituem o “pensamento
813 exclusivo”, baseado na lógica clássica, do isso ou aquilo, pelo “pensamento inclusivo” do isso e
814 aquilo, fundamental (cf. ibid., p. 292) para esta parte integrativa do processo interdisciplinar. A
815 lógica clássica do isso ou aquilo, verdadeiro ou falso, quando é considerada como a única
816 lógica, impede os processos interdisciplinares e transdisciplinares.
817
818
819 Joseph J. Kockelmans e a importância das disciplinas das Humanidades (Humanities)
820 para a interdisciplinaridade
821
822 O filósofo americano Joseph J. Kockelmans, especialista em Husserl e Heidegger,
823 citado por Repko, publicou um livro sobre a interdisciplinaridade no fim da década de 1970 que
824 se tornou referência para os pesquisadores posteriores deste campo: Interdisciplinarity and
825 higher education (Lexington: Pennsylvania State University Press, 1979). Embora seja bastante
826 anterior aos trabalhos de Julie T. Klein e de Allen F. Repko, traremos algumas de suas
827 contribuições aqui, pois elas destacam alguns aspectos não abordados por outros autores e que
828 são muito relevantes para um aprofundamento da compreensão do “quê”, do “como” e do
829 “porquê” da interdisciplinaridade no ensino em geral e na pós-graduação em particular.
830 No artigo que abre esse livro, Kockelmans destaca que a “discussão sobre
831 interdisciplinaridade é parte integral da discussão contemporânea de todos os nossos esforços
832 sistemáticos e teóricos, de suas possíveis aplicações, seus efeitos sobre o homem e seu meio
833 ambiente, suas implicações educacionais e administrativas, e seu sentido e sua função
834 sociopolítica” (1979, p. 11). Começa com um histórico da definição do conceito de ciência (em
835 Platão, Aristóteles, na Ciência Moderna), que atualmente é quase sempre tomada como
836 sinônimo de conhecimento (e este é aquele tipo de conhecimento produzido pelo método da
837 Ciência Moderna). Depois, busca uma definição para o conceito de disciplina, do latim
838 disciplina: instrução de discípulos, que ao longo dos séculos foi considerado sinônimo de arte,
839 de ciência, de matérias ensinadas na universidade. Mas esta última é considerada como a ciência
840 que resulta de uma atividade pedagógica ou escolar realizada metodologicamente e com rigor.
841 Em seguida, apresenta uma descrição detalhada das três áreas nas quais a maioria das pessoas
842 têm dividido as ciências: as ciências puramente formais de um lado (matemática e lógica
843 formal) e, de outro, as ciências empíricas (naturais e sociais). Ele também descreve as
844 discussões sobre o status epistemológico das ciências sociais, divididas em quatro perspectivas
845 principais: funcionalista (inspirada em Comte e Durkheim), fenomenológica (inspirada em
846 Dilthey e Edmund Husserl), hermenêutica (inspirada em Heidegger e Gadamer) e a sociologia
847 crítica (inspirada na Escola de Frankfurt). Apenas a primeira destas quatro correntes adota o
848 método da Ciência Moderna, mais apropriado para as ciências da natureza; as outras utilizam
849 métodos compreensivos e interpretativos. Por fim, Kockelmans trata das disciplinas que
850 constituem uma terceira grande área acadêmica: as Humanities (filosofia, literatura, artes,
851 história da arte, música, teatro, teologia, estudos das religiões, religiões comparadas) e, segundo
852 ele, conforme determinada concepção de interdisciplinaridade “as Humanities são centrais para
853 um esforço genuinamente interdisciplinar” (KOCKELMANS, 1979, p. 31).
854 Na língua latina, designava as qualidades, disposições e modos de comportamento que
855 uma pessoa deveria desenvolver para comportar-se de maneira humana, de modo que durante
856 vários séculos as Humanidades foram consideradas por muitos autores como tendo a função de
857 desenvolver a humanidade nos seres humanos (cf. ibid.). Na alta Idade Média, elas priorizavam
858 o ensino da literatura latina e grega e da filosofia. Atualmente, a maioria dos autores não mais as
859 definem nestes termos, não as correlacionam com o humanismo nem com as letras clássicas, e
860 muitos consideram que sua manutenção no currículo universitário está ameaçado, posto que a
861 função das Humanidades poderia ser substituída pelas Ciências Sociais e Humanas (sociologia,
862 antropologia, economia, ciência política e psicologia). No entanto, muitos pesquisadores e
863 professores das áreas das Humanidades consideram que tal opinião é equivocada.
864 Kockelmans lembra que o termo latino humanitas, utilizado por Cícero para descrever
865 seu programa educacional, foi utilizado muitas vezes por outros educadores romanos como
866 correspondente à concepção grega de Paidéia − a educação que tinha por finalidade formar
867 homens livres para a humanidade e para a cidadania. No início do século XX, com as profundas
868 mudanças pelas quais passou o sistema de ensino do Ocidente, as Humanidades foram
869 questionadas e perderam muito do seu espaço. O conhecimento científico avançou, demandou
870 uma especialização crescente, as disciplinas proliferaram, as universidade passaram a orientar-
871 se predominantemente na direção da formação profissional apenas, e as Ciências Sociais (que
872 num olhar superficial parecem tratar dos mesmos temas e objetos que as Humanidades) se
873 desenvolveram. No entanto, embora o objeto das Humanidades e das Ciências Sociais pareça o
874 mesmo, seu objeto é distinto, posto que a maneira segundo a qual ele é problematizado é
875 distinta, o método é distinto e a finalidade destas duas áreas é distinta. Como observou
876 Kockelmans, as Humanidades abarcam disciplinas cuja finalidade é conduzir a um
877 amadurecimento da pessoa tanto como indivíduo quanto como cidadão, e elas têm em comum o
878 fato “de que elas buscam familiarizar o estudante com sua herança cultural e ajudá-lo a
879 encontrar uma resposta ou atitude apropriada em relação a ela” (KOCKELMANS, 1979, p. 37).
880 Como bem definem Japiassu e Marcondes: “humanidades designa ‘as disciplinas que
881 contribuem para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade
882 utilitária imediata, isto é, que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber
883 científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo certa paideia,
884 vale dizer, um ideal civilizatório (...)” (JAPIASSU e MARCONDES 1991, p. 123).
885 Diferentemente das Ciências Sociais e Humanas (sociologia, antropologia, psicologia,
886 economia, administração, ciência política, linguística, etc.), que têm uma finalidade imediata de
887 transmitir um saber científico ou uma competência prática. Portanto, as Humanidades permitem
888 que os estudantes tenham um contato mais profundo com a tradição cultural da qual eles fazem
889 parte, ajudam-nos a encontrar “uma instância autêntica diante dessa tradição mediante uma
890 reflexão crítica e a ampliar sua capacidade de expressão e de resposta” (KOCKELMANS, 1979,
891 p. 38). Pensar criticamente é uma das finalidades da filosofia; comunicar-se bem é uma
892 finalidade das línguas e da literatura, de modo que as Humanidades não tratam primeiramente
893 seus temas com uma abordagem científica da tradição cultural que ela retransmite, mas antes
894 facilitam “uma experiência genuína com essa tradição” (cf. ibid., p. 39). E Kockelmans conclui
895 afirmando:
896 Parece-me que a universidade deve preparar seus estudantes para essa busca pela
897 integração e pela unidade. Isso pode ser feito assegurando-se de que todos os
898 estudantes são introduzidos de maneira apropriada tanto nas ciências quanto nas
899 humanidades. Quando, mais tarde, na vida real da sociedade, sérios problemas
900 sociais tiverem de ser resolvidos, nossos graduados deverão estar preparados para
901 sugerir soluções cientificamente realizáveis e humanisticamente respeitáveis. (ibid.,
902 p. 44)
903
904 Essas reflexões de Kockelmans sobre a importância das Humanidades constituem um
905 aspecto fundamental da interdisciplinaridade que aparece em alguns dos artigos da pesquisa
906 qualitativa que realizamos em artigos científicos nas áreas da Educação, Saúde e Ambiente
907 (SOMMERMAN, 2012) e corresponde claramente a algumas categorias identificadas por nós
908 para o sujeito na interdisciplinaridade: “valores e atitudes sociais e humanas”, “formação mais
909 ampla da pessoa”, “abertura para a multirreferencialidade e para um olhar mais global”,
910 “pensamento crítico”. As Humanidades (filosofia, literatura, artes, história da arte, música,
911 teatro, teologia, estudos das religiões ou religiões comparadas) trazem, portanto, uma
912 contribuição fundamental para a formação do sujeito numa perspectiva da “interdisciplinaridade
913 ampla”, cujo espectro epistemológico amplo é capaz de por em diálogo todas as disciplinas
914 presentes no ambiente acadêmico. Por outro lado, as Humanidades podem ser menos
915 importantes para a formação do sujeito na perspectiva da “interdisciplinaridade restrita”, cujo
916 espectro epistemológico menos amplo coloca em diálogo disciplinas mais próximas, das
917 Ciências da Natureza, ou das Ciências da Natureza e das Ciências Formais, por exemplo.
918 No caso da Saúde, por exemplo, as disciplinas das Humanidades se mostraram
919 fundamentais na nossa pesquisa qualitativa em questões ligadas à Humanização em Saúde, à
920 Bioética, ao conceito de cuidado, ao conceito de Educação Terapêutica do paciente e também às
921 questões ligadas à necessidade de o profissional da área da Saúde engajar-se num processo de
922 conhecimento das diferentes dimensões de sua própria subjetividade, a fim de poder acolher as
923 diferentes dimensões da subjetividade do outro. Na área da Educação, mostraram-se
924 fundamentais para que a pedagogia centrada nos alunos ajude o desenvolvimento da pessoa
925 dotada de um pensamento crítico e de valores sociais e humanos. Na área do Meio Ambiente, as
926 Humanidades se mostraram ligadas à necessidade de uma formação mais ampla da pessoa, no
927 seu contato com o ambiente, com outras culturas e com o desenvolvimento de valores e atitudes
928 sociais e humanas.
929
930
931 As contribuições precursoras de Georges Gusdorf para a interdisciplinaridade na década
932 de 1960
933
934 Nessa mesma direção apontada por Kockelmans, num trabalho anterior (ALVARENGA
935 e col, 2005) fizemos referência ao trabalho do filósofo e humanista francês Georges Gusdorf
936 (1912-200). Como destacamos naquele trabalho (ALVARENGA e col., 2005, p. 12-13),
937 Gusdorf, em sua vasta obra, propôs-se a integrar o conhecimento e a humanizar a ciência tendo
938 como princípio básico considerar o homem como ponto de partida e ponto de chegada do
939 conhecimento científico, por entender que a fragmentação do conhecimento desnaturaliza a
940 natureza, por um lado, e desumaniza a humanidade, por outro − isto por promover as rupturas
941 entre o conhecimento da natureza e do mundo social. Portanto, a problemática central da
942 interdisciplinaridade, para Gusdorf, é a mesma daquela apontada por Kockelmans. Porém, essa
943 necessária articulação dos saberes encontraria quatro obstáculos principais: epistemológicos,
944 institucionais, psicossociológicos e culturais. Epistemológico: resistências impostas pelos
945 especialistas. Institucional: inércia das instituições e a fragmentação das disciplinas. E Gusdorf
946 também considera que é “indispensável que a interdisciplinaridade esteja fundada sobre a
947 competência de cada especialista”, mas que cada especialista reconheça o caráter parcial e
948 relativo de sua disciplina e de seu ponto de vista; que ela deve se voltar para pesquisas teóricas e
949 aplicadas relacionadas a problemas que para serem tratados requerem o saber de várias
950 disciplinas; que os especialistas devem buscar adquirir certo conhecimento dos conceitos das
951 outras disciplinas; e que esse trabalho interdisciplinar deve levar à integração desses saberes.
952 Deste modo, a perspectiva de interdisciplinaridade de Gusdorf, na década de 1960, já apontava
953 para as de Klein e de Repko, nas décadas de 1990 e 2000, ― que também são as mais
954 encontradas na nossa pesquisa qualitativa citada anteriormente (SOMMERMAN, 2012) 17.
955 Porém, enfatizando mais do que eles a relação entre a interdisciplinaridade e a humanização da
956 ciência e da educação, concorda com Kockelmans e com vários dos artigos da nossa pesquisa
957 qualitativa 18.
958
959
960 Hilton Japiassu, introdutor das reflexões sobre a interdisciplinaridade no Brasil
961
962 O pensamento de Gusdorf pode ser considerado fundador para as reflexões
963 interdisciplinares no Brasil, pois ele foi professor daquele que introduziu tais reflexões em
964 nosso país: o filósofo Hilton Japiassu (1934- ), cuja tese de doutorado, orientada por Gusdorf,
965 intitula-se L’épistémologie des relations interdisciplinaires dans les sciences humaines (1975).
966 Japiassu publicou diversas obras sobre esta temática e é, no Brasil, um dos autores mais citados
967 sobre o tema. Suas obras de referência para esta temática são Interdisciplinaridade e patologia
968 do saber (Rio de Janeiro: Imago, 1976) e O sonho transdisciplinar (Rio de Janeiro: Imago,
969 2006). No primeiro livro, Japiassu, inspirado nas obras de Gusdorf, apontava a
970 interdisciplinaridade como um remédio para o esfacelamento do saber, e apoiava-se nas
971 definições clássicas de interdisciplinaridade propostas no Seminário sobre a Pluri e a
972 Interdisciplinaridade (Nice, 1970). Como observa nesse seu livro mais recente: “Muita gente
17
Dentre os 25 artigos que nessa nossa pesquisa qualitativa trouxeram definições do conceito de
interdisciplinaridade, vinte e quatro continham definições do conceito de interdisciplinaridade
semelhantes às de Kockelmans, Klein e Repko.
18
Dentre os 14 artigos que na nossa pesquisa qualitativa trouxeram indicações do sujeito na
interdisciplinaridade, nove remetiam à questão dos valores humanos e sociais.
973 passa a tomar consciência de que, no domínio das ciências humanas e do meio ambiente, por
974 exemplo, os objetos de pesquisa revelam-se tão complexos que só podem ser tratados e
975 solucionados por uma abordagem multi-, inter- ou transdisciplinar” (JAPIASSU, 2006, p. 26),
976 pois já não é suficiente o encontro entre as disciplinas ou sua justaposição, mas é necessária
977 uma comunicação de fato fecunda e profunda entre os saberes. Japiassu defende a instauração
978 de um novo espírito científico, no qual “os especialistas deixem de apegar-se às suas ‘verdades’
979 congeladas, a seus dogmas estabelecidos e não resistam às novas teorias exteriores a seus
980 domínios de competência” (ibid., p. 27) e cita Gusdorf, Palmade e Morin quando diz que a
981 interdisciplinaridade deve ser entendida muito mais como uma atitude do que como uma
982 operação de síntese, pois requer um trabalho perseverante e de sínteses sucessivas, para o qual
983 não basta o simples contato e a colaboração entre pesquisadores. Consequentemente, define a
984 interdisciplinaridade não como uma categoria de conhecimento, mas como uma categoria de
985 ação, que se apóia no desenvolvimento das próprias disciplinas (cf. JAPIASSU, 2006, p. 27-28).
986 Portanto, Japiassu, em sua obra mais recente sobre o tema, concorda com as definições de Klein
987 e de Repko, que vêem a interdisciplinaridade como um processo, que implica os sujeitos numa
988 troca intersubjetiva forte e prolongada. Além disso, concorda com a definição atual quase
989 consensual da interdisciplinaridade − de que ela busca uma integração dos saberes das
990 disciplinas implicadas para a solução de determinado problema complexo, mas sem negar as
991 disciplinas: ao contrário, elas são seu fundamento principal. Ao mesmo tempo, continua
992 destacando a condição patológica do saber atual, devida a uma especialização sem limites que
993 tem fragmentado cada vez mais o horizonte epistemológico, que faz com que se saiba cada vez
994 mais sobre cada vez menos, o que pede uma razão entendida como axiomática da inteligência
995 (citando Piaget), uma razão aberta que se oponha à concepção cientificista, a qual sacraliza o
996 reducionismo e o dedutivismo, “acreditando que somente o cálculo e a medida constituem os
997 únicos métodos cientificamente legítimos para adquirirmos conhecimentos sobre as coisas”
998 (JAPIASSU, 2006, p. 30-31), e que acredita que é possível “considerar a realidade objetiva sem
999 levar em conta seu observador e seu contexto”.
1000 Japiassu destaca, a nosso ver acertadamente, que esse tipo de racionalidade cientificista,
1001 que fragmenta e reduz a realidade de maneira desmesurada, molda um ensino esfacelado, que é
1002 um fator de cegueira intelectual e, muitas vezes, revela uma razão irracional (cf. JAPIASSU,
1003 2006, p. 32-33). Com isso, a educação passa a ser um mero investimento instrumental em vista
1004 de um possível emprego futuro, esquecendo sua missão, que é fornecer as bases de
1005 conhecimentos da cultura, não bastando para isso o adestramento das mentes num pensamento
1006 analítico, mas também uma educação para a compreensão (cf. JAPIASSU, 2006, p. 36-37) e
1007 para o pensamento analógico (cf. ibid. p. 29). E, nesta mesma obra, Japiassu relaciona essas
1008 definições mais atuais da interdisciplinaridade com definições também mais atuais da
1009 transdisciplinaridade. Afirma que o objetivo utópico da interdisciplinaridade é a unidade do
1010 saber, que seria objeto não da inter, mas da transdisciplinaridade.
1011
1012
1013 Ivani Fazenda e sua perspectiva fenomenológica da interdisciplinaridade no Brasil
1014
1015 Outro nome que, no Brasil, introduziu as reflexões interdisciplinares foi a filósofa da
1016 educação e antropóloga Ivani Catarina Arantes Fazenda. Enquanto Japiassu enfatizou a
1017 dimensão epistemológica, Fazenda ressaltou a pedagógica. A perspectiva de Fazenda é
1018 fortemente inspirada nas de Gusdorf, de Japiassu e do educador e filósofo brasileiro Paulo
1019 Freire (1921-1997), mas toda a ênfase dos trabalhos dessa autora é colocada na interação entre
1020 sujeitos, entre subjetividades, e destaca muito mais as atitudes interdisciplinares do que os
1021 métodos:
1022
1023 A primeira das evidências, constatadas após múltiplas observações, descrições e
1024 análises de projetos Interdisciplinares em ação, é de que a premissa que mais
1025 fundamentalmente predomina é a do respeito do modo de ser de cada um, ao
1026 caminho que cada um empreende em busca de sua própria autonomia ― portanto,
1027 concluímos que a interdisciplinaridade decorre mais do encontro entre indivíduos
1028 do que entre disciplinas (...) (FAZENDA, 2003, p.71)
1029
1030 Pois, como ela ressalta: “as disciplinas dialogam quando as pessoas se dispõem a isto”
1031 (FAZENDA, 2003, p. 50). E enuncia várias das atitudes que associa a este tipo de perspectiva
1032 interdisciplinar que coloca toda a sua ênfase no sujeito e na subjetividade (cf. ibid., p. 75):
1033 abertura para outros modos de conhecimento; reciprocidade que impele à troca e ao diálogo
1034 (com pares idênticos, anônimos ou consigo mesmo); humildade ante a limitação do próprio
1035 saber; perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes; desafio ante o novo e em
1036 redimensionar o velho; envolvimento e comprometimento com os projetos e as pessoas neles
1037 envolvidas; construir sempre da melhor forma possível; responsabilidade; e destaca, de maneira
1038 especial, alegria, revelação, encontro, vida. Como vemos, estas atitudes da interdisciplinaridade
1039 apontadas por Fazenda se aproximam, em parte, das apontadas por Klein e por Repko, mas se
1040 aproximam ainda mais das categorias que nós mesmos identificamos em nossa pesquisa já
1041 citada (SOMMERMAN, 2012): “desenvolvimento de valores e atitudes sociais e humanas”,
1042 “abertura para outros pontos de vista e para um olhar global”; “formação mais ampla da
1043 pessoa”; “pensamento crítico”; “autoconhecimento ou conhecimento de várias dimensões da
1044 própria subjetividade e da pessoa humana”.
1045 Fazenda busca “construir uma metodologia do trabalho interdisciplinar que se apóia na
1046 análise introspectiva pelo docente de suas práticas, de maneira a permitir-lhe reconhecer
1047 aspectos de seu ser (seu “eu”) que lhe são desconhecidos e, a partir daí, tomar consciência de
1048 sua abordagem interdisciplinar” (LENOIR, 2005, p. 15), numa abordagem da
1049 interdisciplinaridade que Lenoir chama de “fenomenológica”, pois nesta perspectiva defendida
1050 por Fazenda na área da Educação, a questão que se coloca não é nem questionar o saber
1051 (perspectiva conceitual da interdisciplinaridade) nem questionar os processos de aprendizagem
1052 do aluno e o seu fazer no mundo (perspectiva pragmática da interdisciplinaridade na Educação).
1053 A questão é o sujeito docente voltar-se para si mesmo e para sua experiência humana, numa
1054 abordagem influenciada pela fenomenologia e dirigida para a subjetividade, a
1055 intersubjetividade, a intencionalidade e o autoconhecimento – e ela entende
1056 “autoconhecimento” como descoberta de si mediante uma consciência reflexiva sobre o próprio
1057 agir. Como veremos adiante, no final da análise de algumas das contribuições de Lenoir para as
1058 reflexões sobre a interdisciplinaridade na área da Educação, essas três perspectivas distintas de
1059 interdisciplinaridade: a conceitual, a pragmática e a fenomenológica, não devem ser vistas na
1060 pesquisa, no ensino e na prática interdisciplinar na Educação como definitivamente opostas. Ao
1061 contrário, devem ser consideradas como complementares, enriquecendo muito a formação
1062 docente:
1063
1064 No quadro da formação docente, a perspectiva fenomenológica não pode ser
1065 negligenciada, porque ela obriga o futuro professor (ou professor em exercício) a
1066 melhor se conhecer e a melhor conhecer suas práticas, analisando-se
1067 introspectivamente. Tomada isoladamente ao contrário, cada perspectiva pode
1068 conduzir a desvios. Se a abordagem instrumental pode ser um coadjuvante
1069 poderoso para resolver problemas sociais de diversas ordens, ela pode também
1070 reduzir a atividade intelectual a preocupações de viabilidade comercial e submeter
1071 à formação universitária – ensino e pesquisa – às exigências políticas ou
1072 econômicas. Por sua parte, a abordagem epistemológica pode ajudar a compreender
1073 a complexidade, os fundamentos e os desafios das relações disciplinares; ela pode
1074 também favorecer uma acentuação da fragmentação disciplinar ou eliminar a
1075 perspectiva social. Enfim, a perspectiva fenomenológica, que pode favorecer
1076 enormemente a tomada de consciência pelo docente de suas funções profissionais,
1077 senão sociais, pode também induzir condutas humanas que negligenciam, entre
1078 outras, a relação com o saber. Eis porque o ensino interdisciplinar e a formação
1079 para e pela interdisciplinaridade devem se manter indissociáveis dessas três
1080 dimensões, do sentido, da funcionalidade e da intencionalidade fenomenológica, a
1081 fim de se preservar de toda abordagem exclusivamente fundada na prática ou na
1082 teoria.” (LENOIR, 2005, p. 17)
1083
1084 Consideramos perfeitas essas observações de Lenoir. E, a nosso ver, as importantes
1085 contribuições que Fazenda trouxe durante mais de duas décadas para a perspectiva
1086 fenomenológica da interdisciplinaridade têm perdido sua força nos últimos anos. Sua influência
1087 vem se reduzindo nos ambientes de pesquisa e de ensino interdisciplinar por ter negligenciado
1088 um pouco as duas outras perspectivas fundamentais da interdisciplinaridade citadas por Lenoir:
1089 a conceitual e a pragmática. No entanto, as contribuições de Fazenda enriquecem as definições
1090 do método e da finalidade da interdisciplinaridade, acrescentando ao primeiro a perspectiva
1091 fenomenológica e, à segunda, a inclusão forte do sujeito pesquisador, professor, aluno, etc.
1092
1093
1094 Lisa R. Lattuca e a interdisciplinaridade no ensino superior
1095
1096 Outra das referências da interdisciplinaridade presente em alguns artigos selecionados
1097 para a nossa pesquisa qualitativa citada (SOMMMERMAN, 2012) é Lisa R. Lattuca, professora
1098 Assistente do Depto de Liderança, Fundações e Aconselhamento Psicológico da University
1099 Loyola de Chicago. Sua obra Creating interdisciplinarity: interdisciplinary research and
1100 teaching among College and University Faculty (Nashville: Vanderbilt University Press, 2001),
1101 apresenta o resultado de uma pesquisa que realizou sobre o conceito de interdisciplinaridade
1102 com trinta e oito universitários que ou desenvolviam projetos interdisciplinares ou tinham
1103 participado de eventos a respeito do tema. Para introduzir essa pesquisa, a autora elaborou um
1104 histórico do surgimento do conceito, as definições mais adotadas, as dificuldades institucionais
1105 para sua implementação. E ela concluiu esse histórico apresentando uma categorização
1106 formulada por ela para definir a interdisciplinaridade não na pesquisa nem na resolução de
1107 problemas, mas no ensino.
1108 Embora afirme que a maioria das definições atuais para o conceito de
1109 interdisciplinaridade coloca a idéia de integração como a questão central, Latucca adota como
1110 definição orientadora desse seu trabalho a interdisciplinaridade como a interação entre
1111 diferentes disciplinas (cf. LATTUCA, 2001, p. 78). Explica que tal opção permite deixar aberta
1112 a questão da integração e que esse procedimento permitiu-lhe explorar as trinta e oito entrevistas
1113 que realizou sobre o tema sem o pressuposto da idéia de integração.
1114 Além do bom histórico da interdisciplinaridade que Lattuca apresenta nas páginas
1115 iniciais do livro, destacam-se como contribuições sua problematização da definição desse
1116 conceito e sua descrição das dificuldades institucionais para sua aplicação no ensino e na
1117 pesquisa.
1118 Lattuca cita muitos pesquisadores interdisciplinares que concordam com a ideia de que
1119 a integração é parte fundamental da definição atual do conceito: “A forma ‘pura’ de
1120 interdisciplinaridade na qual os elementos da tarefa são trazidos para uma organização simples
1121 das unidades consistindo dos praticantes das disciplinas necessárias para a tarefa. Os membros
1122 da unidade partilham a responsabilidade para integrar a contribuição de cada um num todo
1123 coerente” (EPTON, PAYNE e PEARSON, 1984, p. 70); “pesquisa (ou atividade)
1124 interdisciplinar requer uma interação diária entre pessoas provenientes de diferentes disciplinas.
1125 Requer, portanto, algum aprendizado da linguagem básica das outras disciplinas e o intercâmbio
1126 num modo interativo de modelos, idéias e resultados” (ROY, 1979, p. 170); a pesquisa
1127 interdisciplinar se “refere a equipes de pesquisa nas quais o esforço é integrado num todo
1128 unificado (BIRNBAUM, citado por EPTON, PAYNE E PARSON, 1984, p. 3). No entanto,
1129 apesar de um quase consenso, há uma corrente numericamente não desprezível de pensamento,
1130 constituída por feministas, pós-estruturalistas e pós-modernistas que negam qualquer
1131 possibilidade de conhecimento unificado e que, diferentemente de valorizarem os saberes das
1132 disciplinas (como a maioria dos interdisciplinares), criticam as disciplinas e buscam uma
1133 redefinição do conhecimento, não devido aos limites dos conhecimentos de cada disciplina e das
1134 disciplinas e dos saberes em geral, mas tendo por objetivo desmantelar as perspectivas
1135 disciplinares (cf. LATTUCA, 2001, p. 15). Lattuca observa que, numa perspectiva contrária, os
1136 teóricos da sistêmica e os estruturalistas buscam paralelos estruturais entre as disciplinas e
1137 procuram criar uma ciência unificada que integra todas as disciplinas.
1138 Lattuca também cita vários estudos que demonstram que a pouca comunicação entre os
1139 membros de uma equipe provenientes de diversas disciplinas inibe o sucesso das equipes de
1140 pesquisa (cf. LATTUCA, 2001, p. 30); que interação é um conceito mais forte para a
1141 interdisciplinaridade do que o de colaboração; e que a criação de uma linguagem comum é
1142 fundamental para equipes de pesquisa interdisciplinar. Portanto, podemos ver uma
1143 interdisciplinaridade que responde mais à definição atual desse conceito conforme ela passe da
1144 colaboração para a interação freqüente e, desta, para a integração.
1145 Nos artigos das três áreas, selecionados para nossa pesquisa qualitativa
1146 (SOMMERMAN, 2012) vimos aparecerem as idéias de colaboração, de interação e de
1147 integração: dos 25 artigos que trouxeram alguma definição do conceito de interdisciplinaridade,
1148 05 falavam apenas de cooperação, colaboração ou interação entre duas ou mais disciplinas, mas
1149 10 trouxeram explicitamente a idéia de que além de colaboração ou interação a integração de
1150 saberes é fundamental para a interdisciplinaridade. Além disso, alguns artigos fizeram
1151 referência a esse tipo de proposta interdisciplinar baseada no desmantelamento das perspectivas
1152 disciplinares – porém, para se contraporem a ela e afirmarem uma interdisciplinaridade que tem
1153 sim como fundamento as próprias disciplinas. Assim, realizam uma crítica dos limites das
1154 disciplinas, não para desmantelá-las, mas para integrar seus saberes num todo mais amplo.
1155
1156
1157 As reflexões de Yves Lenoir sobre a didática e a interdisciplinaridade
1158
1159 O cientista da educação canadense Yves Lenoir é outro pesquisador da
1160 interdisciplinaridade que prioriza a reflexão no contexto da Educação. Ele também destaca que a
1161 interdisciplinaridade tem seu sentido no contexto disciplinar, pois ela requer pelo menos duas
1162 disciplinas e a interação entre elas. Diante disso, há uma ligação clara entre interdisciplinaridade
1163 e didática. No entanto, Lenoir chama a atenção para uma questão que normalmente não é
1164 considerada pelos outros pesquisadores da interdisciplinaridade: as disciplinas científicas são
1165 distintas das disciplinas escolares − embora sejam similares, têm outros conteúdos, outra lógica,
1166 outros métodos e outras finalidades. Portanto, a interdisciplinaridade escolar (Ensino
1167 Fundamental e Ensino Médio) relaciona-se com as “matérias escolares” e não com as
1168 disciplinas científicas (cf. LENOIR, 2011, p. 47). Ele também destaca duas perspectivas de
1169 interdisciplinaridade: a conceitual, que busca uma unidade do conhecimento; e a instrumental,
1170 que busca resolver um problema concreto (cf. ibid, p. 48). A primeira, mais epistemológica, é
1171 mais presente na Europa; a segunda, mais pragmática, é mais forte nos países anglo-saxões. No
1172 entanto, ele destaca que embora a segunda seja atualmente a perspectiva predominante, as duas
1173 são complementares. Ambas são importantes, por exemplo, na interdisciplinaridade escolar, na
1174 qual as reflexões sobre a didática pedem o concurso de ambas (cf. ibid., p. 49). E elas articulam
1175 três campos de operacionalização – assim, a interdisciplinaridade pode ser investigada
1176 (pesquisa), professada (ensino), praticada (aplicação). Consequentemente, a
1177 interdisciplinaridade escolar pode ser pesquisada, ensinada ou aplicada. E, como as disciplinas
1178 científicas e as disciplinas escolares são distintas em seus objetos, seus métodos e suas
1179 finalidades, segue-se que os objetos, os métodos e as finalidades da interdisciplinaridade escolar
1180 e da interdisciplinaridade científica também são distintos. Para ilustrar essas diferenças, Lenoir
1181 apresenta o seguinte quadro:
1182
1183 Quadro 11 - Maiores distinções entre interdisciplinaridade científica e
1184 interdisciplinaridade escolar
Interdisciplinaridade científica
Interdisciplinaridade escolar
Finalidade Tem por finalidade a produção Tem por finalidade a difusão do
de novos conhecimentos e a conhecimento (favorecer a
resposta a necessidades sociais:
integração de aprendizagens e
● pelo estabelecimento de conhecimentos) e a formação de
ligações entre as ramificaçõesatores sociais:
da ciência; ● colocando-se em prática as
● pela hierarquização
condições mais apropriadas para
(organização das disciplinas suscitar e sustentar o
científicas); desenvolvimentos dos processo
● pela estrutura
integradores e a apropriação dos
epistemológica; conhecimentos como produtos
● pela compreensão de cognitivos com os alunos; isso
diferentes perspectivas
requer uma organização dos
disciplinares, restabelecendo as
conhecimentos escolares sobre os
conexões sobre o plano planos curriculares, didáticos e
comunicacional entre os
pedagógicos;
discursos ● pelo estabelecimento de
disciplinares
(Schülert e Frank 1994) ligações entre teoria e prática;
● pelo estabelecimento de
ligações entre os distintos
trabalhos de um segmento real de
estudo.
Objetos Tem por objeto as disciplinas Tem por objeto as disciplinas
científicas escolares
Modalidades de Implica a noção de pesquisa: Implica a noção de ensino, de
aplicação tem o conhecimento como formação: tem como sistema de
sistema de referência. referência o sujeito aprendiz e sua
relação com o conhecimento.
Sistema referencial Retorno à disciplina na Retorno à disciplina como
qualidade de ciência (saber matéria escolar (saber escolar),
sábio). para um sistema referencial que
não se restringe às ciências.
Conseqüência Conduz: à produção de novas Conduz ao estabelecimento de
disciplinas segundo diversos ligações de complementaridade
processos; às realizações entre as matérias escolares.
técnico-científicas.
1185
1186
1187 Lenoir também traz a reflexão sobre o conceito de integração (parte central da definição
1188 atual de interdisciplinaridade), para o campo dos saberes escolares. Nesse contexto, ela deve se
1189 dar em três diferentes polos: a integração dos saberes deve ser realizada pelo professor
1190 (integrative approach), em seu currículo, em sua didática e em seu planejamento; deve ser
1191 realizada pelos educandos (integrating process), em suas aprendizagens; deve resultar num
1192 conhecimento integrado (integrated knowledge), como resultado da aprendizagem. Portanto, “a
1193 integração é vista como um processo interno, de construção de produtos cognitivos, processo
1194 que interessa ao sujeito e que exige a ajuda apropriada de um terceiro, que age a título de
1195 mediador momentâneo (educador), colocando em prática as condições didáticas favoráveis às
1196 orientações de integração” (LENOIR, 2011, p. 54). Mas antes de pensar numa ação pedagógica
1197 escolar que tenha como uma de suas propostas a integração das matérias é preciso responder às
1198 seguintes perguntas (cf. ibid., p. 54-55): Por que integrar? O que integrar? Quem deve integrar?
1199 Como ou mediante que processos o sujeito realiza a integração? Que concepção do saber
1200 fundamenta a integração? Como favorecer a integração das aprendizagens e dos saberes (que
1201 modelos, situações didáticas, métodos etc.)?
1202 Por isso, a interdisciplinaridade escolar articula-se em: interdisciplinaridade curricular,
1203 interdisciplinaridade didática, interdisciplinaridade pedagógica (cf. LENOIR, 2011, p. 56). A
1204 ausência das duas primeiras dessas dimensões leva a quatro tipos de divagações: à mistura, à
1205 popularidade, às relações de dominância, à inexistência de ligações. No primeiro caso (mistura),
1206 o ensino baseia-se na transmissão de um estudo temático, que recorre a elementos
1207 diversificados, desarticulados e descontextualizados provenientes de diversas matérias. No
1208 segundo caso (popularidade), há a banalização de todas as referências conceituais ou sua
1209 simples exclusão e a valorização apenas das práticas corriqueiras da vida. No terceiro caso
1210 (relações de dominância), o ensino se apoia num modelo que dá maior importância a uma
1211 matéria, da qual as outras aparecem com servas. No quarto caso (inexistência de ligações), é
1212 escolhido um único tema como fio condutor do ensino das matérias. É para evitar tais equívocos
1213 que Lenoir destaca que, para se iniciar a terceira dimensão da interdisciplinaridade escolar (ou
1214 seja, a interdisciplinaridade pedagógica), é necessário antes refletir sobre a interdisciplinaridade
1215 curricular e a interdisciplinaridade didática. E ele apresenta suas definições (cf. LENOIR, 2011,
1216 p. 57-58):
1217 Interdisciplinaridade curricular: estabelecimento de ligações de interdependência, de
1218 convergência e de complementaridade entre as diferentes matérias escolares que formam o
1219 percurso de determinado grau de ensino (Básico, Fundamental ou Médio), a fim de que uma
1220 estrutura interdisciplinar tenha sua emergência favorecida por orientações integradoras. Para
1221 isso, é preciso manter a diferença entre as disciplinas e a tensão benéfica entre elas, a fim de
1222 assegurar sua complementaridade, favorecendo a troca e o enriquecimento mútuo entre elas. E,
1223 para realizá-lo, Lenoir cita a proposta de vários autores de procedimentos que podem ser
1224 adotados: estabelecimento de uma metodologia comum, de uma linguagem comum, de técnicas
1225 comuns, de objetivos específicos comuns ou da combinação de alguns ou de todos esses
1226 procedimentos, destacando que a interdisciplinaridade curricular exclui uma hierarquização,
1227 colocando, ao contrário, as matérias escolares em termos de igualdade, complementaridade e
1228 interdependência.
1229 Interdisciplinaridade didática: estabelecimento das dimensões conceituais,
1230 antecipativas, da planificação, da organização e da avaliação da interdisciplinaridade
1231 pedagógica, levando em conta a estruturação curricular e articulando-a com a aprendizagem,
1232 mas servindo apenas de guia para a interdisciplinaridade pedagógica ou para a prática, pois será
1233 reformulada constantemente ao longo do fazer pedagógico.
1234 Interdisciplinaridade pedagógica: atualização na sala de aula da interdisciplinaridade
1235 didática, ela assegura a inserção de modelos didáticos interdisciplinares nas situações concretas
1236 de ensino-aprendizagem, o que implica levar em conta a gestão da classe e do ambiente em
1237 geral, os conflitos internos e externos: concepções cognitivas e projetos dos alunos, estado
1238 psicológico do educador e seus próprios pressupostos.
1239 Lenoir observa que, nesse sentido, a interdisciplinaridade pedagógica pode ser
1240 qualificada também como transdisciplinar. Cita uma taxionomia de Tochon (1990), na qual a
1241 disciplina está mais ligada ao plano curricular; a interdisciplinaridade ao nível didático; e a
1242 transdisciplinaridade ao nível pedagógico. E explica: se as disciplinas correspondem aos
1243 conteúdos de aprendizagem de cada uma das matérias, a interdisciplinaridade corresponde a um
1244 cruzamento didático da estrutura dos conteúdos ensinados e a transdisciplinaridade engloba e
1245 ultrapassa a ambas no que diz respeito à globalidade da pessoa do estudante em sua “interação
1246 contextualizada de um funcionamento comportamental expressivo, às vezes cognitivo,
1247 socioafetivo e psicomotor” (LENOIR, 2011, p. 59), diretamente relacionado com a realidade.
1248 Para Lenoir, toda didática é intrinsecamente interdisciplinar, por suas características de
1249 sistema; mas pode ser tornada extrínseca quando se quer ensinar os conhecimentos escolares de
1250 maneira estritamente disciplinar − o que vai contra o funcionamento cognitivo da criança e de
1251 todo ser humano. Consequentemente, “um ensino que se obriga, apesar de tudo, a organizar de
1252 maneira estanque suas aprendizagens, mais deformará do que formará” (D’HAINUT, citado
1253 POR LENOIR, ibid., p. 64).
1254 Em suas pesquisas, Lenoir encontrou diferentes leituras da interdisciplinaridade em
1255 Educação, relacionadas às culturas nas quais essas leituras estavam alicerçadas. Como citamos
1256 anteriormente, ele também, assim como Julie T. Klein, aponta duas leituras ou perspectivas
1257 principais da interdisciplinaridade: a epistemológica, reflexiva e crítica, que busca uma síntese
1258 conceitual e uma unidade do conhecimento; e outra instrumental ou pragmática, que busca
1259 respostas para problemas que são colocados pela sociedade. Segundo as pesquisas de Lenoir, a
1260 primeira, que busca definir um quadro conceitual global, predomina nos países de cultura
1261 francesa, e a segunda, que está orientada principalmente na direção das interações externas e
1262 funcionais, predomina nos Estados Unidos e na parte anglo-saxã do Canadá.
1263
1264 Segundo diferentes trabalhos, estas diferenças são sócio-historicamente
1265 fundamentadas em duas lógicas distintas que remetem a duas concepções de
1266 educação, uma francófona, outra americana, buscando, todavia uma finalidade
1267 comum. Com efeito, tanto nos Eatados Unidos como na França, os sistemas
1268 educativos escolares têm como finalidade primeira o desenvolvimento integral da
1269 pessoa humana: uma pessoa autônoma, responsável, apta a agir na sociedade de
1270 maneira refletida e crítica. Em resumo, esses dois sistemas visam formar seres
1271 humanos livres, emancipados. A operacionalização desta visão repousa em
1272 tradições diferentes, alguns dirão em paradigmas diferentes. (LENOIR, 2005, p.
1273 12)
1274
1275 Na França, considera-se que, para alcançar a liberdade humana, é necessário passar pela
1276 instrução. E Lenoir cita a expressão de Condorcet, em 1971: “formar primeiro a razão, instruir
1277 para escutar somente a ela, para se defender do entusiasmo que poderia extraviar ou obscurecer
1278 (...); tal é a marcha que prescreve o interesse da humanidade, e o princípio no qual a instrução
1279 pública deve ser pautada” (Condorcet, citado por LENOIR, ibid., p. 13). Nesse contexto do
1280 racionalismo e do iluminismo, que lutavam contra o que consideravam ser o obscurantismo
1281 religioso e político, a relação com o novo saber (ou seja, com aquele da Ciência Moderna),
1282 parecia algo fundamental, pois libertaria a humanidade dos obscurecimentos e a conduziria à
1283 liberdade e à felicidade (o que logo demonstrou ser, em muitas dimensões, uma ilusão).
1284 Nos Estados Unidos, por outro lado, a liberdade humana passa muito mais pela
1285 socialização, e por um saber agir, sabendo fazer e sabendo ser. Ela não está diretamente ligada ao
1286 conhecimento, mas sim ao agir no mundo e sobre o mundo. Consequentemente, “educar é igual a
1287 instrumentalizar em um duplo sentido, o da prática e o das relações humanas e sociais” (ibid.).
1288 Além disso, pela presença fundadora do protestantismo, a importância do trabalho como
1289 realização de si e como meio de agradar a Deus foi colocada em evidência. E, o fato de se tratar de
1290 uma sociedade jovem, em comparação com a européia, fez com que procurasse romper com os
1291 modelos europeus que pareciam abusivos e obsoletos, a fim de edificar um “novo mundo”, que se
1292 apoiasse em finalidade e em valores sociais novos (cf. LENOIR, 2011, p. 14).
1293 Portanto, esse fundamento cultural de certo modo explicaria essas duas perspectivas
1294 principais da interdisciplinaridade na Educação. Mas Lenoir encontrou no Brasil, nos trabalhos
1295 de Ivani Fazenda, uma terceira perspectiva − que não é dirigida nem para o saber nem para o
1296 fazer, mas sim para a pessoa do docente em seu fazer pedagógico. Nesse caso, a
1297 “interdisciplinaridade centra-se na pessoa na qualidade de ser humano e procede, então, segundo
1298 uma abordagem fenomenológica” (LENOIR, 2011, p. 15). Ele aponta Ivani Fazenda como a
1299 representante por excelência dessa perspectiva fenomenológica da interdisciplinaridade na
1300 Educação, perspectiva essa que, como vimos, busca “construir uma metodologia do trabalho
1301 interdisciplinar que se apóia na análise introspectiva pelo docente de suas práticas, de maneira a
1302 permitir-lhe reconhecer aspectos de seu ser (seu “eu”) que lhe são desconhecidos e, a partir daí,
1303 tomar consciência de sua abordagem interdisciplinar” (ibid.). Portanto, nesta perspectiva
1304 defendida por Fazenda, a questão que se coloca não é nem questionar o saber (perspectiva
1305 conceitual da interdisciplinaridade) nem questionar os processos de aprendizagem do aluno e o
1306 seu fazer no mundo (perspectiva pragmática da interdisciplinaridade): a questão é o sujeito
1307 docente voltar-se para si mesmo e para sua experiência humana, numa abordagem influenciada
1308 pela fenomenologia e dirigida para a subjetividade, a intersubjetividade, a intencionalidade e o
1309 autoconhecimento. E mais: o autoconhecimento é entendido como descoberta de si mediante
1310 uma consciência reflexiva sobre o próprio agir.
1311 E Lenoir conclui estas reflexões sobre a relação entre três culturas e três perspectivas
1312 distintas de interdisciplinaridade afirmando, como vimos ― e com o que concordamos
1313 totalmente ―, que estas não devem ser vistas como irremediavelmente opostas. Ao contrário,
1314 devem ser consideradas como complementares, enriquecendo muito a formação docente, pois:
1315
1316 No quadro da formação docente, a perspectiva fenomenológica não pode ser
1317 negligenciada, porque ela obriga o futuro professor (ou professor em exercício) a
1318 melhor se conhecer e a melhor conhecer suas práticas, analisando-se
1319 introspectivamente. Tomada isoladamente ao contrário, cada perspectiva pode
1320 conduzir a desvios. Se a abordagem instrumental pode ser um coadjuvante
1321 poderoso para resolver problemas sociais de diversas ordens, ela pode também
1322 reduzir a atividade intelectual a preocupações de viabilidade comercial e submeter
1323 à formação universitária – ensino e pesquisa – às exigências políticas ou
1324 econômicas. Por sua parte, a abordagem epistemológica pode ajudar a compreender
1325 a complexidade, os fundamentos e os desafios das relações disciplinares; ela pode
1326 também favorecer uma acentuação da fragmentação disciplinar ou eliminar a
1327 perspectiva social. Enfim, a perspectiva fenomenológica, que pode favorecer
1328 enormemente a tomada de consciência pelo docente de suas funções profissionais,
1329 senão sociais, pode também induzir condutas humanas que negligenciam, entre
1330 outras, a relação com o saber. Eis porque o ensino interdisciplinar e a formação
1331 para e pela interdisciplinaridade devem se manter indissociáveis dessas três
1332 dimensões, do sentido, da funcionalidade e da intencionalidade fenomenológica, a
1333 fim de se preservar de toda abordagem exclusivamente fundada na prática ou na
1334 teoria. (LENOIR, 2005, p. 17)
1335
1336
1337
1338 CONCLUSÃO
1339
1340
1341 Como uma síntese da pesquisa qualitativa em artigos científicos que realizamos nas áreas da
1342 Educação, da Saúde e do Ambiente e da pesquisa conceitual em autores de referência no campo
1343 da interdisciplinaridade, tentaremos apresentar, para concluir o presente artigo, algumas
1344 definições atuais e, portanto, provisórias, para o conceito de interdisciplinaridade, seu objeto,
1345 seu método e sua finalidade.
1346 Uma definição consensual para o conceito de interdisciplinaridade que resulta dessas
1347 pesquisas é aproximadamente a seguinte:
1348 Interdisciplinaridade:
1349 Interação prolongada e coordenada entre disciplinas acadêmicas, para a resolução de
1350 determinado problema complexo que não pode ser resolvido por abordagens monodisciplinares,
1351 levando à:
1352 ● integração dos diferentes discursos;
1353 ● criação de uma terminologia comum ou um quadro conceitual comum (formando pontes
1354 as disciplinas);
1355 ● formulação de uma metodologia comum, transcendendo ou na interface das
1356 epistemologias de diferentes disciplinas;
1357 ● geração de um conhecimento novo.
1358 Portanto, a simples comunicação de ideias entre disciplinas constitui a
1359 multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, ou o início de um processo interdisciplinar, pois
1360 neste as trocas entre as disciplinas produzem, necessariamente, remanejamentos intersubjetivos,
1361 e geram novas linguagens e novos saberes. A criação de uma nova disciplina não é a finalidade,
1362 mas pode ser uma das consequências de uma integração interdisciplinar.
1363 A partir dos autores, pudemos diferenciar uma “pequena” e uma “grande”
1364 interdisciplinaridade: a “pequena interdisciplinaridade” ocorre entre categorias próximas, de
1365 uma mesma área do conhecimento acadêmico; a “grande interdisciplinaridade” é tipificada
1366 como relações entre categorias distantes, de áreas diferentes do conhecimento acadêmico.
1367 Como resultado da mesma pesquisa qualitativa e conceitual, também encontramos uma
1368 “pequena” e uma “grande” transdisciplinaridade.
1369 A “pequena transdisciplinaridade” (sóciointerativa e sóciorreflexiva), próxima da
1370 grande interdisciplinaridade, tem em comum com esta: a) articular e integrar saberes das
1371 disciplinas acadêmicas; b) integrar metodologias quantitativas e qualitativas; c) reconhecer
1372 algumas dimensões da subjetividade. No entanto, diferentemente da interdisciplinaridade: d)
1373 também integra e articula os conhecimentos não-acadêmicos.
1374 A “grande transdisciplinaridade” (epistemológico-paradigmática): a) articula e integra
1375 os saberes das disciplinas acadêmicas, os conhecimentos não-acadêmicos, e, além disso, os
1376 conhecimentos das culturas ancestrais e das tradições espirituais; b) abre-se para uma visão
1377 global do sujeito.
1378 Não nos aprofundaremos aqui nas semelhanças e diferenças entre a interdisciplinaridade
1379 e a transdisciplinaridade, que já apresentamos no trabalho anterior citado (SOMMERMAN,
1380 2012), mas concluiremos o presente artigo com definições provisórias para o objeto, o método e
1381 a finalidade da interdisciplinaridade:
1382 ● Objeto: os saberes das disciplinas das quatro grandes áreas do conhecimento
1383 acadêmico: das ciências da natureza, das ciências formais, das ciências sociais e das
1384 humanidades.
1385 ● Método: a valorização e articulação/integração dos saberes das diversas disciplinas
1386 acadêmicas. E, para realizar esse processo de integração, as etapas ou passos propostos por Julie
1387 Thompson Klein e por Alen F. Repko podem ser utilizados:
1388
1389 1a. definir o problema [questão, tópico, tema]; b. determinar os conhecimentos
1390 necessários, inclusive os representantes e consultores disciplinares apropriados,
1391 bem como modelos, tradições e literaturas relevantes; c. desenvolver um quadro
1392 integrativo e questões apropriadas a serem investigadas;
1393 2a. especificar determinados estudos a serem realizados; b. engajar a ‘negociação
1394 dos papéis’ (no trabalho em equipe) c. coletar todo o conhecimento disponível e
1395 buscar informações novas; d. resolver os conflitos disciplinares trabalhando para a
1396 construção de um vocabulário comum (e buscar uma aprendizagem recíproca no
1397 trabalho em equipe); e. edificar e manter a comunicação mediante técnicas
1398 integrativas;
1399 3a. cotejar todas as contribuições e avaliar sua adequação, relevância e
1400 adaptabilidade; b. integrar as peças individuais para determinar um padrão para o
1401 relacionamento e a relevância mútuas; c. confirmar ou não confirmar a solução
1402 [resposta] proposta; e d. decidir sobre a gestão ou disposição da
1403 tarefa/projeto/cliente/currículo futuro. (KLEIN, 1990, p., 188-189)
1404
1405 1) Identificar os conflitos entre os saberes das disciplinas envolvidas e localizar o
1406 motivo desses conflitos; 2) Criar um fundamento comum entre esses saberes ou
1407 insights; 3) Utilizar este fundamento comum para integrar os saberes ou insights
1408 conflitivos; 4) Produzir uma compreensão interdisciplinar do problema e testá-la.
1409 (REPKO, 2008, p. 247)
1410
1411 ● Finalidade: a) distinguir e articular os saberes das diversas disciplinas acadêmicas
1412 para o tratamento de determinados problemas complexos que não podem ser resolvidos por
1413 abordagens monodisciplinares, multidisciplinares nem pluridisciplinares; b) contribuir para uma
1414 formação mais global (Bildung) da pessoa e desenvolver a humanidade nos seres humanos,
1415 estruturando uma personalidade segundo uma certa paideia, ou seja, segundo um certo ideal
1416 civilizatório; c) incluir na pesquisa e no ensino as diferentes dimensões do sujeito pesquisador,
1417 professor, aluno; d) encontrar soluções cientificamente realizáveis e humanisticamente
1418 respeitáveis.
1419
1420
1421
1422
1423 REFERÊNCIAS
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