Oliveira e Rodrigues - Panorama Do Conto e Romance Dos Negros
Oliveira e Rodrigues - Panorama Do Conto e Romance Dos Negros
RESUMO: Este trabalho propõe-se a analisar as dinâmicas edi- ABSTRACT: This work proposes to analyze the editorial and so-
toriais e sociais que viabilizaram o surgimento, a produção e a cial dynamics that enabled the emergence, production and cir-
circulação de livros de contos e romances escritos por autores culation of tales and novels written by Afro-Brazilian authors. To
afro-brasileiros. Para isso, procuramos resgatar as publicações make this possible, we search the individual publications of these
individuais destes autores. Posteriormente, tecemos reflexões authors. Subsequently, we made reflections on: the relationship
sobre: a relação entre autoria e quantidade de publicações indi- between authorship and the number of individual publications;
viduais; os períodos e a frequência destas publicações; a quan- The periods and the frequency of these publications; The num-
tidade de publicações autorais por casas editoriais; e a distribui- ber of copyrighted publications by publishing houses; And the
ção espacial de tais publicações pelo Brasil. spatial distribution of such publications by Brazil.
PALAVRAS CHAVE: produção editorial; literatura afro-brasileira; KEYWORDS: editorial production; afro-Brazilian literature; tale;
conto; romance. novel.
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nacional, iniciamos o levantamento dos contistas e roman- cados com a afrodescendência, como fim e começo”.5 Estes
cistas negros e suas obras individuais no intervalo temporal autores optam por um trabalho cuidadoso e específico com 5. DUARTE. Literatura afro-brasileira:
um conceito em construção, p. 12.
de 1859 até o primeiro semestre de 2016. A escolha por este a linguagem, entendida como matéria literária e veículo de
intervalo de tempo levou em consideração o ano da primeira determinadas imagens. E, além disso, os artistas preocupam- 6. DUARTE. Literatura afro-brasileira:
um conceito em construção, p. 12.
obra, dentre os gêneros aqui abordados, publicada por um -se com a formação de um público leitor sensível às questões
autor negro no Brasil. Trata-se do romance Úrsula, escrito de ordem étnica e racial. 7. Propõe-se chamar de negrismo
a abordagem do universo
pela maranhense Maria Firmina dos Reis. Já o primeiro se- Duarte6 destaca aspectos que diferenciam a literatura afro- afrodescendente como mero
mestre de 2016 corresponde ao período de atualização dos -brasileira daquela que apenas trata do tema negro.7 Para o
horizonte temático, como objeto.
A este respeito, conferir OLIVEIRA,
bancos de dados utilizados na composição deste inventário crítico, a temática tem o negro como elemento central, não Luiz Henrique Silva de. Negrismo:
de produção literária. como mero objeto ou acessório, mas com todo o universo
percursos e configurações em
romances brasileiros do século XX
que o cerca e o caracteriza como indivíduo. Evidentemente, (1928-1984). Belo Horizonte: Mazza,
2014.
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a temática negra não reduz a criatividade do autor, tampouco a mulher canibal: um conto africano (2000), Histórias africanas
lhe impõe a autocensura. A autoria leva em conta a experiên- para contar e recontar (2001), Contos africanos para crianças bra-
cia existencial do sujeito negro. Soma-se a ela o ponto de vista, sileiras (2004), Três contos da sabedoria popular (2005), Contos de
já que não basta apenas que o produtor do texto seja negro encantos, seduções e outros quebrantos (2005), Outros contos afri-
ou afrodescendente: ele deve se afirmar e posicionar a par- canos (2007), Contos africanos de adivinhação (2009), Histórias
tir deste lugar de fala, compreendendo aspectos históricos e que nos contavam em Angola (2009), Contos de Itaparica (2010)
culturais comuns a esse segmento social. Já o trabalho com e Contos da terra do Gelo (2012).
a linguagem torna-se relevante pois é construída a partir de
Em seguida, a lista traz Machado de Assis, com sete pu-
uma discursividade própria e que ressalta ritmos, entonações,
blicações: Contos fluminenses (1872), Histórias da meia-noite
opções vocabulares e, mesmo, toda uma semântica singular,
(1873), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias
empenhada muitas vezes na ressignificação de sentidos he-
histórias (1896), Páginas recolhidas (1899) e Relíquias de casa
gemônicos na língua. E, por fim, a formação de determinado 9. Sobre a faceta afro-brasileira
velha (1906).9 na literatura de Machado
público leitor, marcado pela diferença cultural e pelo anseio de de Assis, consultar ASSIS,
afirmação identitária que compõe a faceta política do projeto Mestre Didi publicou cinco livros: Contos negros da Bahia Machado de; DUARTE, Eduardo
de Assis. Machado de Assis
literário afro-brasileiro. (1961), Contos de nagô (1962), Contos crioulos da Bahia, narra- afrodescendente: escritos de
dos por Mestre Didi (1976), Contos de Mestre Didi (1981) e uma caramujo (antologia). Rio de
A partir dessas noções, partimos para a apresentação e as Janeiro: Pallas; Belo Horizonte:
reedição dos dois primeiros: Contos negros da Bahia e contos
análises dos dados referentes às publicações individuais de Crisálida, 2007.
de nagô (2003).
contos e romances afro-brasileiros.
Os autores Francisco de Paula Brito, Conceição Evaristo,
8. Nesta seção optamos por dispor 1. RELAÇÃO DE LIVROS POR AUTOR8 Cuti, Fábio Mandingo, Muniz Sodré e Nei Lopes, por sua vez,
os autores em ordem alfabética de
Os 88 livros autorais de contos afro-brasileiros, publica- tiveram, cada um, três livros publicados, sendo eles: Revelação
seus nomes a partir da planilha de
levantamento de dados utilizada dos entre 1839 e 2016, são de autoria de 42 escritores, sendo póstuma (1839), A mãe-irmã (1839) e O enjeitado (1839), de
neste estudo.
que o que conta com a maior quantidade de livros, Rogério Paula Brito; Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Olhos
Andrade Barbosa, autor predominantemente infantojuvenil, d’água (2014) e Histórias de leves enganos e parecenças (2016),
publicou 11 obras: Contos ao redor da fogueira (1990), Duula, de Conceição Evaristo; Quizila (1987), Negros em contos (1996)
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e Contos crespos (2009), de Cuti; Salvador negro rancor (2011), No entanto, 20 destes 42 escritores contam com apenas
Morte e vida virgulina (2013) e Muito como um rei (2016) de uma publicação autoral, sendo: Enterro (1982), de Abelardo
Fábio Mandingo; Santugri: histórias de mandinga e capoeiragem Rodrigues; Fogo do olhar (1989), de Abílio Ferreira; Contos
(1988), Rio, Rio (1995) e A lei do santo (2000), de Muniz Sodré; para nossos filhos (1896), de Antônio Gonçalves Crespo; Sertão
Casos crioulos (1987), 171, Lapa-Irajá – casos e enredos do samba Sinistro (s.d.), de Aristides Teodoro; Você me deixe, viu? Eu vou
(1999) e 20 contos e uns trocados (2006), de Nei Lopes. bater meu tambor! (2008), de Cidinha da Silva; Espelhos, mira-
douros, dialéticas da percepção (2011), de Cristiane Sobral; 106
Com duas publicações, podemos apontar: de Ademiro
falas de amor (2005), de Cyana Leahy-Dios; Só as mulheres san-
Alves (Sacolinha): 85 letras e um disparo (2006) e Manteiga de
gram (2011), de Eliana Vieira (Lia Vieira); Malungos e milon-
cacau (2012); de Alzira dos Santos Rufino: Qual o quê! (2006)
gas (1988), de Esmeralda Ribeiro; A cor errada de Shakespeare
e Alzira Rufino uma ativista feminegra (2008); de Bahia (José
(2006), de José Endoença Martins; Sikulume & outros contos
Ailton Ferreira): Trajetória cotidiana (1993) e Paradoxo do
africanos (2005), de Júlio Emílio Braz; Sete: diásporas íntimas
P.Q.P (1986); de Eustáquio José Rodrigues: Cauterizai o meu
(2011), de Landê Onawalê; Desencontros (2007), de Michel
umbigo (1986) e Flor de sangue (1990); de Geni Guimarães:
Yakini; Mulher mat(r)iz (2011), de Miriam Alves; Contos de
Leite do peito (1988) e A cor da ternura (1989); de Henrique
Valério Santiago (1972), de Nascimento Moraes; O carro do
Cunha Jr.: Negros na noite (1987) e Tear africano (2004); de
êxito (1972), de Oswaldo de Camargo; Fogo cruzado (1980),
Jussara Santos: De flores artificiais (2002) e Com afagos e mar-
de Paulo Colina; As pulgas e outros contos de horror (1997),
garidas (2006); de Lima Barreto: Histórias e sonhos (1920) e
de Ramatis Jacino; Contos de cidadezinha (1996), de Ruth
Contos reunidos (2005); de Mãe Beata de Yemanjá: Caroço de
Guimarães; e Achados (2004), de Waldemar Euzébio Pereira.
dendê: a sabedoria dos terreiros (2002) e Histórias que a minha
avó contava (2004); de Mãe Stella de Oxóssi: Meu tempo é agora Já os 61 romances afro-brasileiros, publicados entre 1859
(1993) e Òsòsi: o caçador de alegrias (2006); de Maria Helena e 2016, são de autoria de 29 escritores, sendo Machado de
Vargas (M. Helena Vargas da Silveira): O encontro (2000) e Assis o autor que publicou a maior quantidade de obras deste
As filhas das lavadeiras (2002); de Raul Astolfo Marques: A gênero: nove. São elas: Ressurreição (1872), A mão e a luva
vida Maranhense (1905) e Natal (1908); e de Ubiratan Castro (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias Póstumas
de Araújo: Sete histórias de negro (2006) e Histórias de negro de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro
(2009). (1899), Esaú Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
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Em seguida, temos Nei Lopes, com cinco publicações: defeito de cor (2006); Arlindo Veiga dos Santos, com As filhas
Mandingas da mulata velha na cidade nova (2009), Oiobomé da cabana (ou No fundo dos portões) (1921) e As filhas da cabana
(2010), Esta árvore dourada que supomos (2012), A lua triste (ou No fundo dos portões) parte II (1923); Conceição Evaristo,
descamba (2012) e Rio Negro, 50 (2015). com Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006); Muniz
Sodré, com O bicho que chegou à feira (1991) e Bola da vez
O autor Lima Barreto conta com quatro romances publi-
(1994); Oswaldo Faustino, com A legião negra (2011) e A luz
10. Seu primeiro romance cados em casas editoriais brasileiras10: Triste fim de Policarpo
Recordações do escrivão Isaías de Luiz: por uma terra sem reis e sem escravos; Paulo Lins, com
Caminha, foi publicado em 1909 Quaresma (1915), Numa e Ninfa (1915), Os bruzundungas
Cidade de Deus (1997) e Desde que o samba é samba (2012);
pela editora Clássica, na cidade de (1922) e Clara dos Anjos (1948).
Lisboa, motivo pelo qual não foi Raymundo de Souza Dantas, com Sete palmos de terra (1944)
incluído neste levantamento. Com três publicações, podemos apontar Joel Rufino e Solidão nos campos (1949).
dos Santos, José do Patrocínio, José Endoença Martins e
Dos 29 autores de romances afro-brasileiros, 13 contam
Martinho da Vila, com os romances: Crônicas de indomáveis
com apenas um romance publicado, sendo eles: de Alzira
delírios (1991), Bichos da terra tão pequenos (2010) e Claros sus-
dos Santos Rufino, A mulata do sapato lilás (2007); de Anajá
surros de celestes ventos (2012), de Joel Rufino dos Santos; Mota
Caetano, Negra Efigênia, paixão do senhor branco (1966); de
Coqueiro ou A pena de Morte (1877), Os retirantes (1879) e Pedro
Carolina Maria de Jesus, Pedaços de fome (1963); de Eustáquio
Espanhol (1884), de José do Patrocínio; Enquanto isso em Dom
José Rodrigues, Além das águas de cor (2014); de Fausto
Casmurro (1993), Legbas, Exus e jararacumbah blues (2012) e O
Antônio, Exumos (1995); de Francisco Maciel, O primeiro dia
dom de Casmurro (2012), de José Endoença Martins; Joana e
do ano da peste (2001); de Márcio Barbosa, Paixões crioulas
Joanes – um romance fluminense (1999), Os lusófonos (2006) e
(1987); de Maria Firmina dos Reis, Úrsula (1859); de Mirian
Serra do Rola Moça (2009), de Martinho da Vila.
Alves, Bará – na trilha do vento (2016); de Nascimento Moraes,
Com dois romances publicados podemos apontar: Ademiro Vencidos e degenerados (1915); de Ramatis Jacinto, O justiceiro
Alves (Sacolinha), com Graduado em marginalidade (2005) (1992); de Romeu Crusoé, A maldição de Canaan (1951); e de
e Estação Terminal (2010); Aline França, com A mulher de Ruth Guimarães, Água funda (1946).
Aleduma (1981) e Negrão Dony (1978); Ana Maria Gonçalves,
Em resumo, dos 42 contistas, apenas três possuem pelo me-
com Ao lado e à margem do que sentes por mim (2002) e Um
nos cinco livros de contos publicados e, dos 29 romancistas,
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apenas dois possuem pelo menos cinco obras publicadas. A escrita carece de leitores e interlocutores. Os lugares de
Considerando que “os discursos (todos) passam pelo po- enunciação do escritor e os sujeitos de recepção da escrita, a
der dizê-lo” e que “o silêncio pertence à maioria que ouve e, maior ou menor mobilidade social e econômica dos brancos,
quando muito, repete [...], falar e ser ouvido é um ato de po- mestiços e negros, na sociedade em geral e nos meios letra-
11. CUTI. Literatura negro-brasileira, der”,11 e levando em conta ainda que se pode dizer o mesmo dos em particular; o acesso à formação escolar e aos meios
p. 47.
sobre escrever e ser lido, tais dados sugerem um silenciamen- de produção, os preconceitos, discriminações e exclusões do
to velado em relação ao autor negro na cena editorial. Este sistema são alguns dos fatores que não podem ser relevados
silenciamento nem sempre está explícito, contudo, pode ser quando analisamos, diacronicamente, a produção literária 13. MARTINS. Literatura e afro-
percebido tanto pela ausência de obras autorais disponíveis afro-brasileira.13 descendência, p. 109.
para o público leitor, quanto pela uniformidade do discurso
que é veiculado por esta literatura quando o assunto é a cir- As dificuldades de criação de uma tradição brasileira de
12. Vale conferir os depoimentos culação de livros.12 Indício deste cenário é a promulgação, em contistas ou romancistas negros remontam, invariavelmen-
de Cristiane Sobral, Mel Adún,
Conceição Evaristo, Débora de 2002, da Lei n. 10.639, a qual nasce justamente da necessida- te, ao regime escravista que vigorou no Brasil por mais de
Almeida, Esmeralda Ribeiro e de de visibilidade da produção cultural da produção cultural 300 anos, submetendo a população negra a um processo de
Miriam Alves dados à pesquisadora
estadunidense Dawn Duke. Neles, afro-brasileira. desumanização e total privação de direitos, e às formas como
as autoras são categóricas quanto se deu a “abolição” deste regime. Cabe ressaltar as proibições
à dificuldade de acesso do escritor A partir dos gêneros estudados, é possível observar certa
impostas aos negros escravizados de se alfabetizarem e fre-
negro às grandes casas editoriais. predominância de autores bissextos, ou seja, aqueles autores
Ver DUKE, Dawn. A escritora afro- quentarem as escolas implantadas no Brasil até as vésperas da
brasileira: ativismo e arte literária. que publicam poucas obras, sem regularidade. Este fenôme-
abolição, além das perseguições sofridas pelos negros que já 14. Só recentemente a produção
Belo Horizonte: Nandyala, 2016. no pode ser explicado a partir das condições destacas por escrita de escravizados no Brasil
eram alfabetizados.14 Indagamos se as perseguições sofridas
Martins para o surgimento e a manutenção de uma tradição começa a ser estudada. Conferir,
pelos negros durante e após a abolição resultaram modifica- por exemplo, “A Carta da escrava
letrada especificamente negra no Brasil: Esperança Garcia do Piauí: uma
ções profundas nas condições deste coletivo. Segundo Silva narrativa precursora da literatura
e Araújo, afro-brasileira”. In Anais do
a tradição letrada exige certas condições específicas de pro- XIV Congresso Internacional
dução e de recepção para o seu exercício, condições essas da ABRALIC. Disponível em:
apesar de a Reforma de Benjamin Constant ter como mérito http://www.abralic.org.br/anais/
também desfavoráveis ao negro africano e seus descendentes. arquivos/2015_1455937376.pdf,
o rompimento com a antiga tradição do ensino humanístico, acesso em 08 de jun. de 2016.
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o Decreto Nacional nº 981/1890 estabeleceu, entre outras avaliar o que, de fato, merece o status de produção cultural ou,
medidas centralizadoras, a ênfase na introdução da disciplina neste caso específico, produção literária, que merece ser lida,
“Moral e Cívica”, nítida tentativa de “normalizar” a conduta deixando o legado cultural negro às margens dos mecanismos
social e moral da sociedade após a libertação dos escravos. de prestígio e circulação simbólicos. De fato, para que seja
No decreto nº 982/1890 foram estabelecidas medidas proi- lido e sua obra circule e esteja acessível a seu público leitor,
bitivas (“não será permitido aos alunos ocupar-se na esco- o autor negro deve atravessar o primeiro “filtro”, aquele do
la com redação de periódicos”), punitivas (“se a agressão ou mercado editorial, como aponta Cuti:
violência se realizar, o culpado será imediatamente entregue
à autoridade policial e expulso da escola”), centralizadoras e as editoras, por exemplo, têm o que chamam de “linha edito-
elitistas, como por exemplo, a nomeação dos diretores das rial”, demarcadora dos parâmetros de suas exigências para os
15. SILVA; ARAÚJO. Da interdição escolas públicas pelo próprio Governo.15 que nela procuram a publicação de seus escritos. Essa “linha”
escolar às ações educacionais de
sucesso: escolas dos movimentos norteia a(s) mensagem(ns) a ser(em) veiculada(s) de forma
negros e escolas profissionais, A forma como o negro teve acesso à educação reforça o impressa e em determinados formatos. Assim como existe
técnicas e tecnológicas, p. 70.
controle imposto ao que poderia ou não ser dito, bem como a tal “linha” orientando o crivo (a escolha) entre os títulos a
evidencia as tentativas de impedir a organização negra e as serem publicados ou não, também, posteriormente, haverá a
formas de manter a hegemonia e o poder aos brancos pelo seleção do que, estando disponível no mercado, deve receber
domínio dos discursos produzidos por parte da sociedade. O o aval da publicidade ou da cumplicidade dos meios de comu- 16. CUTI. Literatura negro-brasileira, p.
negro deveria saber o suficiente para ser útil como mão de nicação e do Estado para redundar em leitura.16 48-49.
obra, aprendendo a lidar com as novas tecnologias de pro-
dução, mas não deveria ter autonomia sobre o próprio pen- Apesar da grande importância de antologias e grupos edi-
samento ou questionar a organização social vigente. toriais criados e mantidos por e para negros, é inegável o
Em uma sociedade na qual o negro nunca foi, de fato, inse- impacto que grandes editoras possuem no mercado edito- 17. A este respeito, consultar a quarta
rido, é extremamente arriscado discutir uma tradição de auto- rial brasileiro,17 impacto esse que não se resume apenas à edição da pesquisa Retratos da
leitura no Brasil (2016).
res negros, principalmente se forem considerados os moldes possibilidade de publicação, que pode se dar de outras ma-
que esta sociedade excludente definiu como parâmetros para neiras, mas também reflete na visibilidade e circulação das
obras e, consequentemente, dos discursos que carregam. O
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atual panorama, realçado pela relativa escassez de publicações individuais de contos afro-brasileiros e 10 romances afro-
autorais de contos e romances afro-brasileiros, demonstra -brasileiros publicados, contudo, por cinco autores: Francisco
as dificuldades de absorção que o produtor desta literatura de Paula Brito, José do Patrocínio, Machado de Assis, Maria
encontra diante do nosso mercado editorial. Para publicar Firmina dos Reis e Antônio Gonçalves Crespo. Nesse perío-
e ser visível, o autor negro, muitas vezes, precisa também do, faz-se necessário lembrar que as publicações de contos e
construir seus circuitos editorais: romances ocorriam, majoritariamente, em jornais.
Citar dados biográficos dos autores negros que publicaram
a possibilidade da perspectiva negro-brasileira na literatura
obras autorais de conto e romance durante o século XIX
tinha, assim, seu limite na recepção. Como um dado da rea-
torna-se relevante visto o pioneirismo na construção de uma
lidade, a recepção que se estabelecia impunha, previamente,
tradição de contistas afro-brasileiros. Este pioneirismo tam-
seu código de aceitabilidade. [...] Ameaçar a predominan-
bém se estende aos espaços de publicação que tiveram de
te concepção de hierarquia das raças seria uma ousadia não
ser criados pelos próprios autores, uma vez que muitos não
18. CUTI. Literatura negro-brasileira, p. admissível.18
27-28. encontravam espaço nas casas e veículos editoriais existentes.
Não é possível dissociar, neste caso, os produtores, os seus
Apesar de a afirmação de Cuti se referir aos processos de
produtos e o contexto histórico no qual estavam inseridos.
produção e circulação literária do século XIX, o mercado edi-
Francisco de Paula Brito, por exemplo, ajudante de farmá-
torial não sofreu mudanças profundas no que se refere à aceita-
cia, tornou-se aprendiz de tipógrafo e trabalhou no Jornal do
bilidade de um discurso que afronte a hierarquia discursiva en-
Comércio, sendo considerado o primeiro ativista a inserir no
19. A este respeito, conferir SOVIK, raizada.19 A veiculação de um discurso afro-centrado encontra
Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de debate político-editorial a questão racial. Por isso, muitos o
restrições no filtro ideológico do mercado editorial brasileiro,
Janeiro: Aeroplano, 2009. consideram o precursor da imprensa negra. Paula Brito foi
o que praticamente obriga os autores negros a se organizarem
ainda o primeiro editor de Machado de Assis.
em coletivos editoriais que fomentem seus ideais.
Machado de Assis, por sua vez, trabalhou como aprendiz
2. PERÍODOS DE PUBLICAÇÃO de tipógrafo na Imprensa Nacional e foi revisor e colabora-
No século XIX, momento em que a ideia de literatu- dor no Correio Mercantil, além de ser um dos fundadores da
ra brasileira começa a tomar forma, houve 11 publicações Academia Brasileira de Letras. Entre Paula Brito e Machado
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de Assis é possível perceber uma relação de proximidade que Maria Firmina conseguiu obter espaço para publicar o con-
permitiu que seus discursos tivessem certa projeção, além de to autobiográfico “A escrava”. Quanto a Antônio Gonçalves
terem vivido no Rio de Janeiro, local onde se concentrava a Crespo, apesar de ter nascido em terras brasileiras, viveu e
maior parte da imprensa brasileira do século XIX. publicou em Portugal.
José do Patrocínio era filho de Justina do Espírito Santo, No século XIX, talvez seja adequado afirmar que a litera-
negra escravizada, e João Carlos Monteiro, vigário da pa- tura afro-brasileira deu-se enquanto manifestações esparsas e
róquia de Campos dos Goytacazes e orador sacro de repu- em estreita ligação com o jornalismo. Segundo Roger Bastide
tação na Capela Imperial. Apesar de nunca ter reconhecido (1973), os jornais publicados a partir das décadas finais do
a paternidade, João Carlos Monteiro encaminhou José do oitocento brasileiro procuravam, primeiramente, agrupar os
Patrocínio para sua fazenda em Lagoa de Cima, onde ele homens de cor, dar-lhes senso de solidariedade, encaminhá-
passou a infância como liberto, tendo obtido, aos 14 anos, -los, educá-los a lutar contra o complexo de inferioridade, su-
autorização do pai para ir morar no Rio de Janeiro, onde perestimando seus valores, além de exaltarem a importância
ingressou, em 1874, na Faculdade de Medicina. Além de sua de seus eventos e agremiações sociais. Esta tendência pros-
atuação no campo da saúde, José do Patrocínio dedicou-se à segue até as duas primeiras décadas do século XX, quando a
carreira de jornalista, participando de importantes periódicos chamada Imprensa Negra paulista se solidifica.
como Os Ferrões, Gazeta de Notícias e A cidade do Rio. Fundou,
No período que compreende o início do século XX ao ano
ainda, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão e articulou
de 1945, foram publicados quatro livros de contos, sendo dois
a Confederação Abolicionista, sendo importante figura em
de autoria de Raul Astolfo Marques, maranhense, nascido du-
movimentos abolicionistas e republicanos.
rante a vigência do regime escravocrata. Marques ingressou
Maria Firmina dos Reis nasceu e viveu no estado do como servente na Biblioteca Pública do Estado do Maranhão
Maranhão, tendo trabalhado como professora de primeiras e só conseguiu se estabelecer nos meios literários locais após
letras. Redigiu Úrsula, primeiro romance abolicionista bra- colaborar em publicações nos diversos órgãos da imprensa.
sileiro e um dos primeiros romances produzidos por uma
O período conta, também, com uma publicação de autoria
mulher no Brasil. Por colaborar em jornais literários, sendo
de Machado de Assis e uma publicação de Lima Barreto, cujo
provavelmente sócia-colaboradora da Revista Maranhense,
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texto denuncia de forma contundente a corrupção da elite e de “imigrante desejável” almejado pelo governo, conforme
o preconceito racial e social que também o atingiu. aponta Hagg, em “Os indesejáveis”. O desejo de branquea-
mento da população brasileira não estava, contudo, ligado
Quanto aos romances publicados, temos 10publicações,
apenas ao clareamento da pele, mas também à afirmação de
duas de Machado de Assis, quatro de Lima Barreto, duas de
uma identidade o mais próxima possível dos padrões euro-
Arlindo Veiga dos Santos, uma de Nascimento Moraes e uma 20. A este respeito, sugere-se
peus, tanto estéticos quanto culturais.20 consultar CAPELATO, Maria
de Raymundo de Souza Dantas. Helena. O Estado Novo: o que
Exemplo de golpe duro no desenvolvimento literário trouxe de novo? Rio de Janeiro:
É preciso reafirmar que a produção literária afro-brasileira Civilização Brasileira, 2007.
dos negros no Brasil foi a dissolução, em 1937, da Frente
foi afetada em grande medida pela implementação do Estado
Negra Brasileira, maior organização de negros no período,
Novo, embora seja possível dizer que todos os anos em que
com caráter nacional e de reivindicação de direitos sociais e
Vargas esteve no poder foram terríveis para este coletivo
políticos (iguais) para todos, independentemente da cor da
populacional. 21. Ver BARBOSA, Marcio. Frente
pele.21 A organização viu extinto o seu periódico, A Voz da Negra Brasileira (depoimentos).
Durante 15 anos seguidos, Getúlio Vargas governou o país Raça, cujo conteúdo abrangia aspectos sociais, debates sobre São Paulo-SP: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2012.
de forma contínua (1930-1945), provocando inúmeras alte- identidade e condição econômica da população negra e li-
rações sociais e econômicas, as quais se agravaram no Estado teratura.22 Pode-se dizer que, ao garantir o branqueamento 22. A este respeito, conferir FERRARA,
Miriam Nicolau. A imprensa negra
Novo (1937-1945), como a suspensão da Constituição em idealizado, o governo tentou sufocar os discursos de resis- paulista (1915-1963). São Paulo:
vigor, o fechamento do Congresso Nacional, a nomeação tência, perseguindo as organizações negras e apagando seus FFLCH/USP, 1986.
de interventores estaduais e a criação de um Departamento traços identitários.
de Imprensa e Propaganda (DIP) para censurar os meios de
Entre os anos de 1946 e 1978, houve a publicação de cin-
comunicação e construir uma imagem positiva do governo,
co livros de contos e seis romances, o que se explica pelo
manipulando a opinião pública.
esvaziamento das condições de produção literária da popu-
Durante a Era Vargas, também foram colocadas em prática lação negra brasileira e pelo início da ditadura militar, em
diversas estratégias para alcançar o branqueamento progres- 1964, a qual também perseguiu com veemência iniciativas
sivo da população brasileira, como a recusa de imigrantes culturais desta população. Assim como a imprensa, todo
negros, japoneses e judeus, que se distanciavam do perfil e qualquer discurso artístico estava sujeito à censura. Foi
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criada a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), a ditadura militar não inventou a perseguição ao movimen-
que analisava e liberava (ou não) a circulação ou execução to negro, tampouco a censura – oficial ou não. Lembremos
de obras. Os parâmetros utilizados pelos censores basea- do Teatro Experimental do Negro (TEN), criado por Abdias
vam-se nos “valores morais e bons costumes”, uma espécie do Nascimento em 1945, dissolvido em 1961, que foi im-
de eufemismo para designar qualquer discurso contrário ao pedido pelo governo brasileiro de participar de festivais
regime estabelecido. internacionais de teatro, e sofreu censura em 1951, com a
peça “Sortilégio – o mistério negro”, do próprio Abdias do
De acordo com o Relatório da Comissão da Verdade re- 24. RELATÓRIO da Comissão da
Nascimento.24 Verdade referente à perseguição à
ferente à perseguição à população e ao Movimento Negro, população e ao Movimento Negro,
[s.p.].
O reduzido número de publicações no período de 1901
a oposição ao golpe militar no Brasil não se limitou a setores
a 1978 é apenas um dos reflexos de uma política herdeira
da classe média urbana de maioria étnica branca; a presença
do pensamento colonial, segundo a qual, nas palavras de
negra no movimento de combate ao regime foi também ex-
Florentina Souza, “aos negros, africanos ou afrodescendentes
pressiva. Dentre os mortos e desaparecidos figuram nomes
[...] não caberia escrever, publicar ou mesmo falar de si ou
de militantes de origem negra. Afora isso, por serem maioria 25. SOUZA. Literatura Afro-Brasileira:
de seu grupo”.25 O resultado desta postura, segundo Souza, algumas reflexões, p. 65.
entre os mais pobres, os negros eram os maiores atingidos
é a intimidação de publicações literárias e demais produções
23. RELATÓRIO da Comissão da pelas políticas autoritárias do período.23
Verdade referente à perseguição à culturais a partir da dura perseguição e da censura.
população e ao Movimento Negro,
[s.p.]. Tais políticas autoritárias buscavam reprimir toda e qual- Percebemos, nestes dois últimos períodos citados, uma
quer organização que visasse à igualdade de direitos sociais e tentativa por parte do escritor negro de revogar aquilo que
políticos, independentemente da cor da pele. Estas políticas Cuti classifica como o maior privilégio, “o de poder mer-
escondiam-se, muitas vezes, sob o pretexto de que os discur- gulhar com a sua arte na medula do seu povo, redimi-lo, 26. CUTI. Literatura negra
sos de movimentos negros e intelectuais que denunciavam o consolá-lo e sobretudo lutar com ele”.26 Calar a voz do negro brasileira: notas a respeito de
racismo existente estavam, na verdade, incitando o socialismo brasileiro é uma estratégia eficaz para branquear o Brasil não condicionamentos, p. 22.
no país. Atores, autores, jornalistas e cantores negros sofreram apenas fisicamente, mas também cultural e editorialmente,
todo tipo de censura. Apesar de ter se intensificado nos anos,
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impondo o que será dito, como será dito e, principalmente, o modelo imposto e mantido pelo controle dos meios de pu-
por quem será dito. blicação que existiam até então e, de certa forma, “filtravam”
a criação artística.
Finalmente, entre 1979 e o primeiro semestre de 2016,
houve um significativo aumento de publicações autorais de Em seu primeiro número, a proposta do coletivo não deixa
contos afro-brasileiros, totalizando 67 livros, bem como das margem a questionamentos:
publicações de romances, que totalizaram 39 publicações.
Como destaca Cuti, “em 1978 surgiram os ‘Cadernos Negros’, Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África, vida
primeira tentativa de agrupamento, de literatos e aspirantes, nova, mais justa e mais livre e, inspirados por ela, renasce-
em torno de uma publicação coletiva [...] Os nomes aumen- mos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação.
27. CUTI. Literatura negra tam e a aproximação se efetua, e com ela os debates”.27 Desta Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos as-
brasileira: notas a respeito de
condicionamentos, p. 22. forma, o surgimento dos Cadernos Negros, série criada pelo sumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso
grupo Quilombhoje e que publica anualmente volumes de espírito das ideias que nos enfraquecem e que só servem aos 28. CUTI et al. (Org.). Cadernos negros
prosa ou poesia, foi fundamental para o agrupamento dos que querem nos dominar e explorar.28 1, [s.p.].
produtores da chamada literatura afro-brasileira, possibi-
litando críticas e discussões no intuito de romper com os Este novo movimento cultural literário não aceitava ou
valores estéticos vigentes, que tratavam a produção do negro buscava meramente reproduzir o discurso etnocêntrico vi-
brasileiro como algo menor, resultando no que o autor de- gente; ao contrário, deseja promover e revelar autores ne-
nomina como “autocensura”. A série possibilitou a abertura gros, que se assumem e escrevem como negros. Esta iniciati-
de espaço para que os contistas publicassem, posteriormente, va foi vital para o fortalecimento da literatura afro-brasileira,
livros individuais, com destaque para o romance e o conto. em especial no que diz respeito não só à poesia e ao conto,
mas também ao romance. Isso sem contar a contribuição
Mais uma vez, os negros brasileiros organizavam-se em
de iniciativas como as séries literárias para a formação de
quilombos, agora editoriais, para conseguir produzir, divulgar
um público leitor também negro. Autores como Abelardo
e ter acesso a elementos relativos à própria cultura e história.
Rodrigues, Abílio Ferreira, Ademiro Alves (Sacolinha),
Apenas o surgimento de editoras e grupos editoriais criados e
Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro,
compostos por e para negros permitiria o rompimento com
Geni Guimarães, Henrique Cunha Jr., Lande Onawale, Lia
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Vieira (Eliana Vieira), Miriam Alves, Paulo Colina, Ramatis Agir, Anima, Arte Risco, Bertrand, Blackitude, Bluhm,
Jacino e Waldemar Euzébio Pereira, após publicarem em an- CCM Editora, Centro Cultural “Teresa D’Ávila”, CL Edições,
tologias de contos da série Cadernos Negros, escreveram livros CODECRI, Corrupio, Crisálida, Dandara, Difusão Cultural
individuais de contos e/ou romances, reforçando a contribui- do Livro, Dulcina Editora, Edições Populares, EDICON,
ção dos meios de resistência literária negra para a formação Editora Malê, Editora SM, Folha Seca, Fundação Nestlé de
de uma geração de autores para além dos espaços coletivos. Cultura, Gianlorenzo Schettino, José Olympio, Laemmert &
Co. Editores, Livraria Lombaerts & C., Martins, Odorizzi,
3. CASAS EDITORIAIS Oduduwa, Quarto Setor Editorial, Quilombhoje, Record,
Mesmo tendo o levantamento apontado apenas 88 livros Relume-Dumará, Revista Maranhense, Scipione, Scortecci,
de contos publicados, estes ocorreram por meio de 55 casas Secretaria de Cultura da Bahia, Selo Negro, SIOGE, Sobá,
editoriais distintas, já os 61 romances foram publicados em Terceira Margem e Vozes foram responsáveis por publicar
56 editoras. uma obra de conto cada. Agir, Appris, Babel, Bertrand Brasil,
Biblioteca 24 horas, Borboletas, Centro Culturall Nascimento
Em cinco das publicações, a edição é do próprio autor. de Moraes, Companhia das Letras, Confraria do Vento
Pela Mazza Edições, saíram sete livros de contos e dois ro- Editora, Córrego, Dandara Gráfica Editora, Divine Edition,
mances. Cinco foram os livros de contos publicados pela Livraria do Globo, Edicel, Edifurb, Editora Globo, Editora
Editora Garnier e cinco os romances. As casas editoriais Ciclo Mulheres, Editora Vitória, Estação Liberdade, G. Viana & C,
Contínuo, Nandyala, Pallas e Paulinas lançaram três obras Gazeta de notícias, Irmão di Giorgio, Jacintho Ribeiro dos
autorais de contos, cada uma delas. O Jornal do Comércio Santos Editor, Língua Geral, Mérito, Nankim, Notrya, Nova
publicou três livros de contos, os quais haviam anteriormen- Letra, Officinas d’ A Noite, Ogum’s Toques Negros, Pallas,
te ocupado as páginas do periódico. Casas editoriais como Parelelo 27, Paris: Garnier, Planeta, Prefeitura de Salvador,
Editora do Brasil, EDUFBA, FTD, GRD, Grupo Editorial Quilombhoje, Scortecci, Selo Editorial RG, Selo Negro,
Rainha Ginga e Ilustra publicaram, individualmente, dois bem como as tipografias Editores Gomes de Oliveira & C.
livros autorais de contos; Ciência Moderna, Mazza, Record, Tipografia do Globo, Francisco Alves, Tipografia Nacional,
Rocco, Salesiana e ZFM Editora publicaram dois romances Tipografia Revistas Tribunais, Tipografia São Judas Tadeu,
no período analisado. Typografia da Gazeta da Tarde e Typographia do Progresso,
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foram responsáveis pela publicação de um romance cada uma publicados por casas editoriais, como a Garnier. Ou seja, foi
delas. necessário que os autores se inserissem em determinada es-
fera intelectual e social da época para, então, alcançarem o
Apenas duas casas editoriais publicaram ao menos cinco
direito à voz. Este cenário parece pouco modificado nos dias
livros de contos, enquanto 40 publicaram apenas um livro
atuais. Boa parte dos autores da chamada “geração Cadernos
autoral de conto e apenas uma publicou ao menos um roman-
Negros”, como Cuti, Conceição Evaristo, Mirian Alves,
29. Não foi possível precisar qual o ce, enquanto 48 publicaram apenas um romance.29
meio de publicação de sets obras: Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Oswaldo de Camargo,
Enterro, de Abelardo Rodrigues; Este cenário sugere três características desta linhagem lite- entre outros, seguiram os passos de seus precursores. A série
Sertão sinistro, de Aristides
Teodoro; Trajetória cotidiana, de rária. Em primeiro lugar, felizmente, a partir das décadas fi- literária abriu-lhes caminhos, ajudou-os a formar público
Bahia (José Ailton Ferreira); Os nais do século XX, surgem editoras cuja prioridade é a escrita leitor. Talvez por isso estes escritores tenham se arriscado a
retirantes, de José do Patrocínio;
Contos para nossos filhos, de afro-brasileira; em segundo, significativa maioria destas edi- publicar individualmente com alguma frequência.
Antônio Gonçalves Crespo e A vida toras publica autores negros, embora não se possa assegurar a
maranhense e Natal (quadros), Dentre as demais editoras que também publicaram mais de
ambas de Raul Astolfo Marques. predominância ou a preocupação com o desenvolvimento de
um livro destacam-se aquelas denominadas “editoras de ni-
catálogo capaz de garantir espaço a estes autores; em terceiro,
cho”, neste caso, voltadas para produtores de literatura afro-
a autopublicação é um fenômeno corrente e pouco estudado
-brasileira e leitores que desejam ter acesso a obras que abor-
neste segmento literário.
dem e valorizem aspectos da cultura afro-brasileira, como é o
Esses dados reforçam o cenário de dificuldades de absorção caso da Ciclo Contínuo Editorial, do Grupo Editorial Rainha
dos produtores de literatura afro-brasileira, uma vez que as Ginga, da Mazza Edições e da Nandyala. É neste sentido que
grandes editoras quase não publicaram autores negros, o que reiteramos a organização dos produtores culturais afro-brasi-
fez com que eles se tornassem, em grande medida, “editores” leiros por meio do que chamamos de “quilombos editoriais”,
que criam caminhos para a autopublicação. Autores como isto é, iniciativas organizadas com a finalidade de discutir,
Francisco de Paula Brito e Machado de Assis, pioneiros na produzir e fazer circular obras pautadas em uma estética afro-
publicação de contos afro-brasileiros, tiveram de se estabe- -brasileira, ao mesmo tempo que resistem à configuração dos
lecer nos meios de comunicação da época e, de certa forma, catálogos etnocêntricos que compõem o mercado editorial
“firmar” o próprio nome na imprensa local antes de serem brasileiro.
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Curioso é o fato de que mesmo nas casas editoriais especia- localizada a publicação de apenas um livro de conto em cada
lizadas em cultura afro-brasileira, como Pallas, Selo Negro, uma.
Quilombhoje, Mazza e Nandyala, a presença destes romances
Dos 61 romances publicados, 34 ocorreram na cidade do
no catálogo é baixa, talvez por questões mercadológicas, dada
Rio de Janeiro; 14 em São Paulo e quatro em Salvador. Em
a dificuldade de colocar em circulação grandes quantidades
Belo Horizonte, Blumenau, Florianópolis e São Luís, ocorre-
de narrativas desta natureza. Ainda há que se considerar a
ram duas publicações por cidade. Nas cidades de Campinas,
dificuldade de distribuição deste material. As demais editoras
Curitiba, Porto Alegre e Santos foi localizado apenas um ro-
pouco levam em conta um catálogo especificamente voltado 30. Não foi possível determinar a
mance publicado em cada uma delas.30 cidade onde se deu a publicação
ao romance afro-brasileiro, mesmo com a vigência da Lei de oito títulos, pois esta informação
n. 10.639, embora aqui e ali publiquem livros deste gênero. Observamos, nessa distribuição, a concentração de publi- não estava contida nas fichas
catalográficas.
cações no eixo RJ-SP, um provável reflexo da concentração
Nos casos em que uma casa editorial possui apenas uma
de renda no país, que não sofreu profundas modificações no
publicação, é provável se tratar de edições realizadas por meio
modelo distributivo, sobretudo de bens simbólicos, mesmo
de recursos do próprio autor, pois este tende a procurar nos
quando consideramos dados de trabalhos mais otimistas,
selos ou marcas editoriais uma forma de melhor aceitação de 31. BARROS; FOGUEL; ULYSSES.
como o de Barros, Foguel e Ulysses.31 Vivendo, atualmen- Desigualdade de renda no Brasil:
seu livro no mercado. Contudo, para confirmar tal hipótese,
te, o que Milton Santos denomina “globalização perversa”,32 uma análise da queda recente.
são necessárias pesquisas específicas, o que excederia os obje-
percebemos, ainda, que, mesmo após todo o período trans-
tivos deste trabalho e o tempo disponível para sua realização.
corrido desde o Brasil colônia até os dias atuais, a relação 32. SANTOS. Por uma outra
globalização.
entre dinheiro e informação permaneceu inabalada em seus
4. LOCAIS DE PUBLICAÇÃO
aspectos fundamentais.
Das 88 publicações de contos, 28 aconteceram na cida-
de do Rio de Janeiro; 24 na cidade de São Paulo; e 13 na Essa concentração de publicações, ao mesmo tempo que
cidade de Belo Horizonte. Em Salvador, foram publicados pode ser lida como locais em que houve a ruptura com o
cinco livros de contos. Em Porto Alegre e Santos, ocorre- silenciamento imposto de forma massiva, também pode ser
ram duas publicações em cada uma das cidades. Nas cida- lida como uma espécie de facilitador do controle daquilo que
des de Blumenau, Brasília, Lorena, Petrópolis e São Luís foi é produzido, pois, como explica Milton Santos, “é desse modo
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que a periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda do controle da informação e do dinheiro, bem como os seus
mais periférica, seja porque não dispõe totalmente dos novos reflexos na comunidade negra brasileira ao longo da história,
meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de é um dos caminhos para compreender o impacto provocado
33. SANTOS. Por uma outra controle”.33 pela organização negra, funcionando como elo entre produ-
globalização, p. 39.
tores e público.
A manutenção das zonas periféricas, numa relação de cau-
sa-efeito com a manutenção de um eixo central, propicia tal De modo geral, analisar qualitativamente os dados quan-
controle da informação, que é um dado imprescindível e es- titativos referentes às produções individuais de livros de
sencial para garantir certo grau de autonomia ao indivíduo. O contos e romances afro-brasileiros reforça a importância da
próprio critério para definir o que deve ou não ser lido, ou o resistência negra na literatura como forma de se opor ao et-
que pode ou não receber o status de “obra literária” passa pelas nocentrismo vigente também no campo editorial. Se por um
zonas metropolitanas, ou, neste caso, o eixo Rio-São Paulo, lado há poucos autores negros com publicações individuais
que dita os discursos preferenciais que devem ser ouvidos à nos dois gêneros, por outro lado é possível apontar para a
custa do esquecimento dos demais. Não que o histórico de dificuldade enfrentada pelo autor negro quando o assunto é
movimentos e organizações que lutaram pela igualdade de a publicação individual.
direitos sociais e políticos, independentemente da cor da pele,
O gênero conto é mais numeroso do que o romance. Isso
nestes estados, São Paulo e Rio de Janeiro, deva ser anulado,
se deve à maior facilidade de publicação e circulação daquele
apenas faz-se necessário questionar a distribuição de casas
em detrimento deste.
editoriais ao longo do espaço geopolítico brasileiro.
Houve concentração de publicações no sudeste do
CONSIDERAÇÕES FINAIS país, como esperado. O eixo RJ-SP concentra a maio par-
A palavra-chave para compreender as manifestações cul- te das editoras e, logo, das produções editoriais, ainda que
turais afro-brasileiras é resistência. Estudar quais e como independentes.
se tornaram possíveis as publicações individuais de contos Pudemos perceber que a maioria das casas editoriais estu-
afro-brasileiros, a despeito das tiranias estabelecidas pelas dadas não tem uma linha editorial voltada à literatura afro-
grandes mídias, que, de certo modo, mantêm grande parte -brasileira. Há, sim, editoras especializadas, como Pallas,
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Mazza, Selo Negro, Nandyala. Porém, o catálogo de roman- afro-brasileiros no nosso mercado editorial. Pensar a litera-
ces ainda está por se desenvolver, ao passo que o de contos tura afro-brasileira é pensar, antes de tudo, como se deu a
está em processo de ampliação. inserção do negro, enquanto indivíduo e sujeito, nos per-
cursos constituintes da sociedade brasileira. Desvendar as
Do ponto de vista cronológico, embora os dois gêneros
configurações editoriais de uma literatura na qual o negro
tenham se iniciado no século XIX, no Brasil, e ganhado noto-
enuncie sua vivência a partir de dentro é, acima de tudo, um
riedade no início do século XX, houve interrupções drásticas
ato “quilombola” de resistência.
durante os períodos ditatoriais vividos pelo país. Contudo,
a partir das décadas finais do século passado, os dois gêneros
REFERÊNCIAS
começaram um processo de amplo desenvolvimento. Pode-se
BARROS, Ricardo Paes de; FOGUEL, Miguel Nathan; ULYSSES,
dizer, portanto, que o romance e o conto afro-brasileiros re- Gabriel. Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda
sistem e persistem na nossa história literária, embora estejam recente. Brasília: IPEA, 2006.
ambos em processo de afirmação e consolidação no cenário
contemporâneo. BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo:
Perspectiva, 1973.
Escrever e ser lido constitui, antes de qualquer outra coisa,
CENTRO de Pesquisa e Documentação de História
um ato de poder, uma forma de atuar efetivamente na reali- Contemporânea do Brasil (CPDOC). Disponível em: <http://
dade e, dada a forte tradição escrita instituída no Brasil, um cpdoc.fgv.br/>. Acesso em: 04 mar. 2016.
instrumento para inscrever de forma perene a memória de
determinado grupo na história da nação. CUTI, Luiz Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo
Negro, 2010.
A história editorial do conto e do romance afro-brasileiro
CUTI, Luiz Silva. Literatura negra brasileira: notas a respeito de
não se esgota neste trabalho, que se dedicou apenas a traçar
condicionamentos. In: QUILOMBHOJE (Org.). Reflexões sobre
um panorama de tais publicações e, mais especificamente, das literatura afro-brasileira. São Paulo: Conselho de Participação e
iniciativas individuais. Esperamos ter obtido êxito na propos- Desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985. p. 15-24.
ta de abrir espaço para questionamentos acerca dos ecos e dos
CUTI, Luiz Silva et al. (Org.). Cadernos negros 1. São Paulo: Ed.
silêncios provocados pelas vozes dos contistas e romancistas dos autores, 1978.
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