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A Influência dos Fatores Filosóficos no Estudo das Psicopatologias
GVSchlatter
Neste ensaio se faz uma breve análise de como a filosofia pode desempenhar um papel
relevante, tanto no estudo das psicopatologias quanto nos processos de diagnóstico e
intervenção clínica. Após uma definição formal do aspecto filosófico que se deseja explorar,
duas áreas de influência da filosofia são analisadas: o seu papel como referência de valor para
os pacientes, assim como a base para os processos clínicos de análise e intervenção
conduzidos pelo psicólogo.
Introdução
A história da psicologia e dos seus principais autores detalha amplamente a influência
da filosofia nas concepções das escolas de pensamento, englobando tanto os modelos que
descrevem a psique humana quanto as formas de agir para reduzir o seu desconforto mental.
Fulgencio (2001), por exemplo, sugere uma relação direta entre Kant e Freud,
propondo que "o paradigma freudiano seria devedor do sistema kantiano, inclusive no que se
refere aos elementos metafísicos de sua base disciplinar, tal qual acontece noutros ramos das
ciências naturais". Para exemplificar, o autor compara diretamente as "formulações kantianas
(lei moral, ação moral, faculdade de julgar, formas a priori, coisa em si, etc.)" com as
"formulações da psicologia freudiana (super-eu e complexo de Édipo, desenvolvimento
infantil, inconsciente)" (Fulgêncio, 2001).
Entretanto, o que se deseja destacar aqui trata do papel da filosofia como referência de
valor para os indivíduos, em particular no que diz respeito à moral e à felicidade. Deseja-se
usar o conceito primordial da filosofia quanto a sua finalidade, isto é, aquela proposta por
Sócrates e pelos que o sucederam que sugerem que "as investigações éticas de Sócrates
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levaram diversas escolas filosóficas da antiguidade a compreender a filosofia como um
caminho para a felicidade" (Marcondes e Franco, 2011, p.9). Ou seja, valer-se da filosofia
como guia para a concretização das aspirações pessoais e, consequentemente, o atingir da
felicidade. Em outras palavras, "a felicidade seria, assim, consequência da tranquilidade que
provém de uma realização pessoal, e esse seria o objetivo último da filosofia" (Marcondes e
Franco, 2011, p.10).
A filosofia, uma vez reconhecida como caminho para a felicidade, deve prover então
um conjunto de valores que, se respeitados, permitirão ao indivíduo a tranquilidade da sua
existência. Assim sendo, se uma corrente filosófica passa a afirmar que determinado valor
deve ser praticado, a eventual incapacidade de um indivíduo em fazer cumprir essa meta
acaba por lhe trazer infelicidade, a qual poderá ser reconhecida como um transtorno mental.
Os valores filosóficos como referência para o indivíduo
Compreender como uma dada corrente filosófica, aceita e adotada pelo indivíduo,
torna-se sua referência de valor permite ao clínico uma interpretação de como o paciente se
define e se autorregula. Isto é, a base de valores filosóficos é que definirá como o paciente
difere o bem do mal e define sua completude enquanto sujeito. Suas condutas perante esses
valores, portanto, é que irão fazer surgir os sentimentos de culpa, euforia ou depressão.
Filosofias existencialistas, como aquelas ensaiadas por Kierkegaard, Husserls,
Heidegger e Sartre, por exemplo, "compartilham a ideia central da análise do modo de ser do
homem no mundo, em determinada situação" e o avaliam "em termos de possibilidades"
(Hutz, Bandeira & Trentini, 2016, p.191). Portanto, a abordagem existencialista acaba por
elaborar possíveis aspectos traumáticos da experiência humana, tais como a dor, o fracasso, a
doença ou a morte.
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Uma intervenção com base nas concepções da filosofia seria, então, "uma via de
acesso para chegar ao mundo vivido por cada indivíduo, compreendendo homem e mundo
sempre a partir de sua facticidade" (Moreira, 2010). Em termos psicanalíticos, a filosofia
serviria como base moral de referência para o superego, sendo que a compreensão dos seus
princípios – ou uma releitura dos mesmos, no caso das terapias cognitivas - , permite lidar
melhor com o sofrimento ou transtorno mental.
Os valores filosóficos como referência para o terapeuta
A compreensão dos princípios e crenças filosóficas do paciente é determinante para a
definição da forma e extensão da intervenção clínica. Dalgalarrondo (2019, p.76) destaca que
"a prática em saúde geral e mental, assim como nossas teorias, dialogam, dependem ou são
consideravelmente influenciadas por valores básicos e profundamente arraigados".
O autor também destaca a importância desse conhecimento pelo terapeuta desde as
fases iniciais de diagnóstico: "de modo geral, questões de valores se intensificam quando
relacionadas às intervenções médicas e psicológicas, mas estão profundamente presentes
também em relação às fases diagnósticas e de avaliação em saúde mental" (Dalgalarrondo,
2019, p.77).
Além disso, os referenciais filosóficos do paciente poderão determinar, por exemplo, o
sucesso de terapias cognitivas em que o grau de responsabilidade pelo sucesso do tratamento
é compartilhado entre terapeuta e paciente. Destaca-se aqui que é a contraposição das crenças
filosóficas do terapeuta com as do paciente que permitirá os ajustes nas autopercepções de
valor, capacidade e aceitação deste último.
As bases filosóficas do indivíduo acabam por ter o mesmo efeito que as diferenças
culturais exercem no que diz respeito à aceitação ou rejeição de um diagnóstico, à adesão ao
tratamento, à recuperação ou à conduta durante a consulta clínica, conforme proposto no
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DSM-5 (APA, 2014, p.14). Em particular, isto pode ocorrer no que diz respeito à explicação
cultural ou causa percebida como "...um modelo explanatório que fornece uma etiologia ou
causa concebida culturalmente para sintomas, doenças ou sofrimento" (APA, 2014, p.15).
Conclusão
Faz parte da entrevista de formulação cultural (EFC) a compreensão "dos valores que
os indivíduos obtêm da afiliação a grupos sociais diversos" (APA, 2014, p.750). Assim
sendo, muitos dos itens do DSM-5 referentes à entrevista têm ligação com aspectos
filosóficos, tais como a definição cultural do problema, estressores, apoio, self-coping e busca
de ajuda.
Da mesma forma, transtornos específicos podem ser diretamente influenciados pelas
concepções filosóficas do paciente como, por exemplo, os transtornos de adaptação, cujo
critério B1 avalia se há "sofrimento intenso desproporcional à gravidade ou intensidade do
estressor, considerando-se o contexto cultural e os fatores culturais..." (APA, 2014, p.287).
Por fim, todas as condições que podem ser foco da atenção clínica (APA, 2014, p.715)
podem ser influenciadas pelos aspectos filosóficos, incluindo-se aqui a educação familiar e os
problemas relacionados a grupo de apoio primário (p.716).
Propõe-se que a filosofia, em particular nos adultos, é uma dos componentes da
identidade cultural do indivíduo e, por esse caráter, influencia diretamente na interpretação e
análise das psicopatologias.
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Referências
American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais. Artmed Editora.
Dalgalarrondo, P. (2019). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais (3ª Ed.). Porto
Alegre, RS: Artmed Editora Ltda.
Fulgencio, Leopoldo. (2001). Comentários críticos das referências textuais de Freud a
Kant. Psicologia USP, 12(1), 49-87. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-
65642001000100004
Hutz, C. S., Bandeira, D. R., Trentini, C. M., & Krug, J. S. (2016). Psicodiagnostico:
Avaliacao Psicologica. Artmed Editora.
Marcondes, D., & Franco, I. (2011). A filosofia: O que é? Para que serve? Rio de Janeiro, RJ:
PUC Rio / Zahar.
Moreira, Virginia. (2010). Possíveis contribuições de Husserl e Heidegger para a clínica
fenomenológica. Psicologia em Estudo, 15(4), 723-731.
https://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722010000400008