O Povo e Tudo Clara Nunes (Silvia Brugger)
O Povo e Tudo Clara Nunes (Silvia Brugger)
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eles em rodas, ensaios de es-
transformá-la em um “Altemar Dutra de saias”2. Em seu segundo LP, de colas, como a Mangueira,
1968, passa a gravar sambas, a partir de sugestão de Ataulpho Alves3, e além de ouvir o gênero em sua
casa. A partir daí, Alaíde te-
emplaca seu primeiro sucesso com a música “Você passa, eu acho gra- ria percebido que Clara se
ça”, que dá título ao disco. No entanto, ainda assim, sua carreira não adequaria muito mais a esse
atinge maior projeção. Ela iria deslanchar de fato a partir de 1970, quan- estilo musical, passando a in-
terceder dentro da Gravadora
do a gravadora convida para produzi-la o radialista Adelzon Alves. pela mudança de seu reper-
Apresentador de um programa na Rádio Globo, “O Amigo da Madru- tório. Cf. Entrevista concedi-
da por Alaíde Araújo a
gada”, dedicado, principalmente, ao samba, ele condiciona a aceitação Josemir Teixeira e Silvia
do convite à total liberdade para dirigir a carreira de Clara. Daí em dian- Brügger, no Rio de Janeiro, em
te, passa a conferir um direcionamento, uma linha de atuação para a 06/05/2007.
cantora. Não bastava, para ele, que ela gravasse sambas4. Era preciso
4
O que, diga-se de passagem,
Clara já fazia desde, pelo
que construísse uma imagem de cantora ligada às raízes da cultura bra- menos, o carnaval de 1967,
sileira. Assim, não apenas ela passa a gravar diferentes gêneros da tradi- quando fez sucesso com a
marcha “Carnaval na Onda”,
ção musical brasileira, como sambas, frevos, forrós e jongos, mas sua de José Messias e com o sam-
forma de interpretar as músicas vai se modificando, deixando de lado ba “Porta Aberta”, de Jair
impostações e vibratos presentes em suas primeiras gravações. Os arran- Amorim e Benedito Reis. Cf. ,
entre outras matérias jornalís-
jos também sofrem alterações, incorporando progressivamente os ins- ticas, “Vida de Clara Nunes é
trumentos de percussão típicos dos ritmos populares. Adelzon produz um Carnaval”. Revista Inter-
valo, no. 204, 1966, p. 48; “Cla-
seus LPs de 1971, 1972, 1973 e 1974, deixando de fazê-lo por ocasião do ra Nunes: Chega de Marme-
rompimento do relacionamento afetivo que também os unia. Clara se lada”. Revista Intervalo, no.
casa, em 1975, com o poeta e compositor Paulo César Pinheiro, que pas- 256, 1968.
5
O Lp “Claridade”, de 1975,
sa, a partir de 19765, a produzir seus discos. A marca fundamental de que quebrou a marca de 500
sua carreira estava construída: a relação com os gêneros populares e a mil cópias vendidas foi pro-
busca de ser uma “cantora popular brasileira”. duzido pelo violonista Hélio
Delmiro, que trabalhava com
O objetivo deste artigo é o de procurar entender como se deu a Clara e Adelzon nos discos
construção desta carreira vinculada ao popular. Clara afirmava que não anteriores.
queria ser reconhecida como uma sambista, mas sim como uma “canto- 6
Mesmo antes da gravação de
seu primeiro LP, sob a pro-
ra popular brasileira”6. Por isso, cabe perguntar: o que ela entendia por dução de Adelzon Alves, Cla-
popular? Como este popular aparece em sua obra? São estas questões ra já afirmava que não queria
ser rotulada de sambista. Em
que procurarei abordar neste texto.
suas palavras: “Eu não tenho
nada contra o samba, pelo
Clara Nunes e a cultura popular contrário, gosto muito. Mas
detesto ser rotulada e é preci-
so que entendam que sou ca-
Adelzon Alves, em entrevista concedida para esta pesquisa, afir- paz de cantar tudo, do soul
ao baião.” Cf. “Após dez anos
ma que sua intenção ao planejar a produção da carreira de Clara foi a
de luta e muito sucesso na vi-
de construir uma “imagem audio-visual afro-brasileira”, que, segundo da, surge uma nova Clara Nu-
ele, nenhuma cantora havia assumido depois de Carmem Miranda7. A nes”. Reportagem de Léa Pen-
teado. Revista Amiga, 8/12/
vinculação com a cultura popular brasileira é explicitada também no 1970. Essa idéia reaparece em
encarte do primeiro disco de Clara produzido por ele, em 1971: outras matérias jornalísticas,
entre elas, “Clara Nunes: -
Não sou uma sambista. Can-
(...) Clara Nunes toma uma posição bem definida dentro das raízes da cultura popu- to músicas brasileiras de to-
lar brasileira. dos os gêneros”. Jornal Cinco
de Março, Goiânia, 07 a 13/
Neste LP o Sabiá num “brinca em serviço”. Dá seu recado com músicas, sons e os 08/1972. Entrevista concedi-
refrões do candomblé e da “Puxada de Rede do Xaréu”, estes últimos ligados à vida da a Anatole Ramos.
econômica, religiosa e artística da Bahia (folclore), que fazem parte da nova imagem 7
Entrevista concedida por
Adelzon Alves a Josemir Tei-
que a cantora vem mostrando ao público nos seus shows, apresentações de televisão xeira e Silvia Brügger, na Rá-
etc. Essa imagem é o aproveitamento das formas, cores, sons, ritmos etc. e tal da dio MEC-RJ, em 16/04/2004.
cultura popular brasileira.8 8
Texto de Adelzon Alves,
publicado no encarte do LP
“Clara Nunes”, de 1971, lan-
A busca de aproximação com o universo popular fica explicita in- çado pela gravadora Odeon.
Eu venho de Angola
Sou rei da magia
Minha terra é muito longe
Meu gongá é na Bahia
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estrutura semelhante à responsorial típica do universo musical afro-bra-
sileiro11. No entanto, apesar do ritmo do samba enredo e dos instrumen-
tos percussivos, como o tamborim, o repinique e o agogô, presentes no
arranjo, fica nítida a busca de uma harmonia com violão, contrabaixo e
a presença de naipes de cordas e metais, dando um efeito menos marcante
à força da percussão 12. Por exemplo, a letra evoca os tambores e os
atabaques, mas eles não se fazem presentes no arranjo. Coincidentemente
ou não, no início deste ano de 1971, Clara havia viajado à África, pas-
sando pela África do Sul, Moçambique e Angola, onde juntamente com
Ivon Cury, participou do primeiro concurso de Miss desse país. Nesta
viagem, segundo afirmou, em uma matéria publicada na Revista Ro- 11
O responsório caracteriza-
mântica, assistiu danças populares de Angola, em uma quadra seme- se pelo diálogo e, muitas ve-
zes, o desafio entre os canta-
lhante à da Escola de Samba Mangueira. Além disso, declarou ter trazi- dores. Não é o que se observa
do de lá não só souvenirs, mas roupas, colares e peças de artesanato13. na gravação de Clara. Mas ela
inicia o samba-enredo com
Iniciava, portanto, o seu conhecimento daquela cultura, bem como a uma introdução declamada,
perceber sua relação com o universo popular brasileiro, que passaria a parecendo dialogar com o
entoar em suas gravações e performances. coro que a chama para a mú-
sica. A estrutura responsorial
A música de sucesso desse LP é “Ê Baiana”, composição de Fabrí- está presente, por exemplo, no
cio da Silva, Baianinho, Ênio dos Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio, que jongo e no partido-alto. Segun-
do Robert Farris Thompson,
consolida a imagem de Clara Nunes ligada ao universo afro-brasileiro, “o canto responsório imbrica-
em especial, à Bahia, que parece sintetizar aquela cultura e aproximar a do [overlapping] fornece a es-
imagem de Clara a de Carmem, com suas roupas de baiana, seus tur- trutura formal das canções
centro-africanas”. THOMP-
bantes e seus balangandãs. Aliás, neste disco, são três as músicas com SON, Robert Farris. Tango: the
referência explícita a Bahia: além das duas já citadas, Aruandê... art history of love. New York:
Pantheon Books, 2005 Apud
aruandá14. Alessander Kerber, analisando as representações da identi- SLENES, Robert W. “Eu ve-
dade nacional e de identidades regionais em Carmem Miranda, apre- nho de muito longe, eu venho
senta a construção da imagem da baiana como uma alternativa à figura cavando”: Jongueiros Cumba
na Senzala Centro-Africana”
do malandro carioca, enquanto símbolo da nacionalidade. Segundo o In: LARA, Silvia H. e PACHE-
autor, a baiana representaria uma síntese do Brasil associada ao elogio CO, Gustavo (org.). Memórias
do Jongo: as gravações histó-
da miscigenação. Além disso, lembra que “foi em terras do atual estado ricas de Stanley Stein. Vas-
da Bahia que chegaram os primeiros portugueses ao Brasil. A Bahia já souras, 1949 (no prelo).
fazia parte do imaginário de amplos segmentos da população brasileira 12
A análise dos parâmetros
dos anos 30 como local da origem do Brasil, o mito fundador da nacio- musicais foi feita pelo músi-
co Edimar Ubirajara da Silva.
nalidade”15. Por fim, destaca que Salvador foi capital do Brasil durante a
maior parte do período colonial e, assim, enquanto o Rio de Janeiro re-
13
MARTIN, Paulo. “Clara
Nunes acha que apanhando é
presentaria o Brasil moderno, a Bahia seria associada ao passado históri- que se aprende”. Revista Ro-
co brasileiro16. mântica, no. 125.
Clara Nunes evoca esses elementos presentes em Carmem Miranda, 14
“Auandê... aruandá” (BRE-
MI0301242), Zé da Bahia, gra-
inclusive vestindo-se como baiana, mas parece revesti-la com uma busca
vada no LP “Clara Nunes”,
de autenticidade. A baiana de Carmem foi construída como uma gravadora Odeon, 1971.
estilização, a partir de seu gosto pessoal e das orientações passadas por Além disso, as duas faixas da
“Puxada de Rede do Xaréu”
Dorival Caymmi. Kerber entende que Carmem “abrasileirou” a imagem referem-se a um canto de tra-
da baiana. Para ele, balho de pescadores baianos.
15
KERBER, Alessander. Car-
Com uma natureza tão punjantemente colorida, não se deveria representar o Brasil mem Miranda entre represen-
tações da identidade nacional
com vestes brancas, como as baianas originais faziam. O colorido, associado às nos- e de identidades regionais.
sas belezas naturais, ao carnaval e a todas as nuances da diversidade étnica da nação, ArtCultura, v. 7, n. 10, Uberlân-
dia, jan.-jun., 2005, p. 130.
representava muito melhor o Brasil do que o branco. (...) O mesmo ocorre com as duas
cestinhas de frutas que Carmem colocou na cabeça, também associadas às riquezas
16
idem, ibidem.
naturais do Brasil.17 17
Idem, ibidem, p. 132.
– Clara Nunes quer deixar bem claro que tem a intenção de se fixar na imagem de
cantora brasileira. É também intenção de Clara acentuar a posição de pesquisa de
coisas brasileiras. Gravar Sabiá, de Zé Dantas, é importantíssimo, pois foi ele quem
desencadeou toda a evolução de Luiz Gonzaga. Para provar como este disco foi traba-
lhado, pesquisamos exaustivamente os cantos de trabalhos e descobrimos a beleza nos
cantos usados na pesca do xaréu na Bahia. No disco, são duas faixinhas de alguns
segundos apenas. É quase um ponto de ligação. A Odeon sugeriu que, pela beleza,
essas faixas poderiam ser ampliadas. Mostramos que sua beleza estava justamente na
inserção pura e simples entre as faixas maiores19.
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autoria do folclorista Joaquim Ribeiro24, não localizei esta referência,
embora aborde, entre outros, o tema dos reisados. Provavelmente o com-
positor confundiu o livro com outro semelhante, que também utilizasse
em suas pesquisas para composição de músicas. Vale destacar, porém,
que este ponto continua a estar presente em festas de Nossa Senhora do
Rosário, no interior das Gerais, como tive oportunidade de constatar
pessoalmente na realizada no Bairro de São Geraldo, na cidade de São
João del Rei, no ano de 2004. Importa, porém, para o argumento que
venho desenvolvendo o fato dessa pesquisa sobre a cultura popular bra-
sileira ter envolvido não só a cantora e seu produtor, mas também aque-
les que compunham para ela e sabiam dos objetivos de seu trabalho.
Nos quatro LPs de Clara produzidos por Adelzon Alves, encon-
tram-se as seguintes músicas inspiradas nas ou que retratam tradições
populares, como: “Puxada da rede do xaréu (1ª. e 2ª. partes)”,
“Aruandê... aruandá”, “Ilu ayê (Terra da Vida)”, “Tributo aos Orixás”,
“Vendedor de Caranguejo”, “Homenagem a Olinda, Recife e Pai Edu”,
“Sindorere”, “O que é que a baiana tem”, “Nanaê, Nana Naiana” e
“Conto de Areia”. Depois de 1974: “A deusa dos orixás”, “Canto das
três raças”, “Fuzuê”, “Sagarana”, “Senhora das Candeias”, “Guerrei-
ra”, “Candongueiro”, “Jogo de Angola”, “Banho de Manjericão”, “Fei-
ra de Mangaio”, “Viola de Penedo”, “Brasil mestiço, santuário da fé”,
“Congada”, “Coroa de areia”, “Nação”, “Menino Velho”, “Ijexá”,
“Afoxé pra Logun”, “Mãe-África”.
Feita esta constatação da construção de uma carreira identificada
com a cultura popular e com o universo afro, cabe perguntar por que
este foi o caminho escolhido. Adelzon Alves, ao afirmar a construção de
uma carreira ligada ao samba de morro carioca, indica que se trata de
um direcionamento ideológico. Em suas palavras,
Bom, então esse grupo [sambistas de morro carioca] nunca tinha tido uma grande
cantora voltada para ele, para o trabalho desse grupo. Os sambas-enredo aconteciam,
Elizeth chegou a gravar Cartola, gravou Candeia, Elza chegou a gravar, Elza Soa-
res. Mas não era uma coisa ideologicamente dirigida no sentido de trazer a obra desse
núcleo, exclusivamente, entendeu? Trazer a obra desse grupo. Esse grupo, eu estou
dizendo a vocês, era meio mantido à parte, embora já fizesse, cantando, o maior
desfile audiovisual do mundo, embora alguns artistas esporadicamente os gravas-
sem. Mas alguém gravá-los sistematicamente...
23
Congada. Composição de
Romildo e Toninho, gravada
(...) O trabalho que eu fazia na rádio era dirigido nesse sentido porque eu fui, filoso- por Clara Nunes no disco Cla-
ficamente, socialista e com a visão artístico-cultural voltada para o cara que tem ra Nunes, de 1981.
valor, não é porque ele é negro, pequeno e marginalizado. É porque tem valor. O 24
RIBEIRO, Joaquim. Folclore
de Januária.RJ: Campanha de
problema é isso: é não reconhecerem o valor dele porque ele não faz parte do núcleo
Defesa do Folclore Brasileiro,
social e econômico que o cara pertence. E, nesse núcleo, já era a música do maior Ministério de Educação e Cul-
espetáculo audiovisual do mundo, como é que ela não tinha espaço no rádio? Poucas tura, 1970.
a cidade toda aguardava o fim de ano para esse acontecimento, porque ele iniciava no
dia primeiro de janeiro e terminava no dia seis de janeiro. Então, no dia primeiro de
janeiro, meu pai já pedia licença lá no trabalho dele para ele e... Fora os ensaios que
aconteciam antes, não é? Já tinha a turma que participava. E eles... No dia primeiro,
ele já saía religiosamente para cumprir o dever dele. Ele tinha uma fé profunda. E
tudo... Esse trabalho que ele fazia durante seis dias, ele levava tudo para Igreja.
Entregava tudo para o padre como esmola. Era um compromisso dele. Então, no dia
seis, todo mundo já sabia que tinha uma festa na casa do Manoel Serrador que é o
arremate da folia de reis. E esse arremate da folia de reis, o importante dele era trazer
todo mundo. Ele sentia assim muito honrado, muito feliz de dar alimentação para
todo mundo que chegava lá. Ninguém pagava nada. Todo mundo comia aquelas
comidas bem gostosas, bem caipiras. E ficava... Minha mãe criava frango, seis meses
antes já estava o terreiro cheio de frango começando já a crescer para matar tudo em
janeiro, porque era a festa dele, não é?32
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uma familiaridade com estas manifestações populares. Em suas pala-
vras,
– A música que a gente ouvia era a das folias de reis e minha família, principalmente,
meu pai, participava tradicionalmente dessas festas. Desde cedo tomei conhecimento
de uma coisa que, mesmo depois de viver no Rio e em São Paulo, não abandonei mais:
o amor pelo popular, pela arte um tanto esquecida que vem realmente do povo. Esque-
cida porque, a não ser por uma minoria de intérpretes e músicos, ela não chega aos
veículos de divulgação. Ao invés de procurar um estilo como cantora, pretendo ligar
meu nome a essa busca pelas raízes de nossa música popular33.
Uma vez que ela deu uma entrevista [RISO] falou que ela herdou do meu pai... que
tudo que ela fez na vida foi herança do meu pai, que meu pai era realmente uma pessoa
muito especial, gostava muito da música. Ele era uma pessoa... Era repentista, gosta-
va de Folia de Reis, quer dizer, ele era tudo isso, de folclore, estava no sangue dele. E
a gente sente pela lei natural da vida que ela foi a que mais herdou todo esse potencial
dele. Então, uma vez ela deu uma entrevista e falou que ela... aliás, contou coisas dele
(...). Um dia a Clara veio passar o natal: “Clara você... porque que você mentiu? (...)
Por que você foi lá mentir?” Ela era muito certinha, então eu falei com ela. (...) “Ah,
Dindinha, imagina se eu menti! Claro que eu conheci meu pai através de vocês!”
[Você vê] ela tinha (...) nenhuma lembrança, quando ele morreu ela tinha dois anos,
mas ela sabia de toda a vida dele através da gente, não é? E ela sentiu no sangue [o que
ele fez]. Então ela se sentia a dona, realmente a herdeira dele, não é? Aí ela falava,
“Oh! Dindinha, conheci, sim! Imagina se eu não conheci através de vocês?!(...)35
O que eu acho que há de verdadeiro, o que há de mais puro, o que há de mais sincero
e mais espontâneo, sabe, que é a força, realmente, é o povo. Então, não adianta você
querer ir contra o povo, você tem que chegar a ele sabe, você tem que trazer o povo até
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Assim, explicita-se a realização do projeto de carreira: “o povo é
tudo”. Ou seja, é a fonte a partir da qual seu repertório é construído e é
para ele que se destina prioritariamente a sua mensagem. Esta idéia apa-
rece também no texto escrito por Paulo César Pinheiro para o LP “Canto
das Três Raças”:
Esta é a sua história. A história da música de um país feita pela união das três raças
que o constituíram. E, tendo sido feita pelo povo, só o próprio povo tem o direito de
julgar e consagrar a música popular, porque somente ele sabe os que melhor interpre-
tam seus sentimentos. Os grandes mestres saíram sempre do povo. Os grandes intér-
pretes foram, antes de ser grandes, anônimas criaturas do povo.
O bom intérprete sente um estranho afeto pela composição que interpreta. E, neste
instante, letra e melodia são suas. O autor é ele. Por isso, Clara Nunes tem o quilate de
uma grande intérprete. Porque, quando canta, se une ao povo num sentimento co-
mum. E o povo sente e gosta e canta com ela. Porque também do povo é o compositor
que ainda está por surgir, o mestre que ainda não apareceu.
O povo é simples nas suas origens. E entende melhor as coisas simples. Por isso,
Clara, porque também veio do povo e tem a mesma simplicidade, porque traz dentro
de si a força do talento, porque dedicou-se completamente à música de sua terra e ao
canto de seu povo que ela tanto ama, pode ser chamada por nós de Cantora das Três
Raças.
A brasileira Clara Nunes43.
Por fim, para concluir, entendo que cabe perguntar: se esta pro-
posta de aproximação com a cultura popular não era exclusiva de Clara
Nunes, mas esteve presente também em carreiras como, por exemplo, as
de Nara Leão e Elis Regina, o que diferenciava a primeira? Em primeiro
lugar, é preciso indicar que Clara manteve esta proposta em sua obra até
o final de sua carreira, em 1983. Não ficando, portanto, esta idéia restri- 43
Texto escrito por Paulo Cé-
ta a fins dos anos 60 e inícios dos 70. Mais do que isso, porém, entendo sar Pinheiro para o encarte do
que o que era, na proposta de Adelzon, um ideal político - e que desta LP “Canto das Três Raças”,
gravadora Odeon, 1976.
forma aparecia também em vozes como as de Nara e Elis - assumiu para
Clara um caráter de missão religiosa. 44
NAPOLITANO, Marcos.
“Seguindo a canção”: engaja-
Clara não foi a única nem a primeira a gravar músicas com evoca- mento político e indústria cultu-
ções da umbanda ou do candomblé. Segundo dados apresentados por ral na MPB (1959-1969). SP:
Annablume, 2001, p. 218.
Marcos Napolitano, em um temário geral das canções inscritas no III
Festival de MPB da Record, em 1967, 191 músicas traziam referência à
45
PRANDI, Reginaldo. Segre-
dos Guardados: Orixás na Alma
umbanda ou a Iemanjá44. Reginaldo Prandi lista cerca de mil músicas Brasileira. SP: Cia. das Letras,
com referências às religiões afro-brasileiras, gravadas no século XX45. Os 2005.
Quando eu canto
É para aliviar meu pranto
E o pranto de quem já tanto sofreu
Quando eu canto
Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando aos pés de Deus
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exemplo, com as amigas Dôia
Acendo no coração do povo e Elza Alabarce Gonçalves. A
A esperança de um mundo novo primeira trabalhou durante 11
anos na casa de Clara, era sua
E a luta para se viver em paz
comadre e amiga. A segunda
era amiga íntima de Clara,
Do poder da criação considerando-se como irmãs.
Segundo depoimento de Dôia,
Sou continuação ela escrevia bilhetes a Clara
E quero agradecer tratando-a por “Dona Cigar-
ra”. Em sua entrevista, Elza
Foi ouvida a minha súplica
Alabarce informou que Clara
Mensageiro sou da música se designava como cigarra,
O meu canto é uma missão citando, por exemplo, o mo-
mento em que esta adquiriu o
Tem força de oração teatro que leva seu nome e lhe
E eu cumpro o meu dever telefonou, um pouco insegu-
ra com a negociação, afirman-
do que “essa cigarra vai ter
Aos que vivem a chorar que cantar muito”, para hon-
Eu vivo pra cantar rar o compromisso assumido.
Cf. Entrevista concedida por
E canto pra viver Maria Dorvalina Teixeira da
Costa a Josemir Teixeira e Sil-
via Brügger, em Caetanópolis,
Quando eu canto
em 04/09/2004; entrevista
A morte me percorre concedida por Elza Alabarce
E eu solto um canto da garganta Gonçalves a Josemir Teixeira
e Silvia Brügger, em Brasília,
Que a cigarra quando canta morre em 30/09/2007.
E a madeira quando morre canta [grifos meus]50 53
Em linhas gerais, pode-se
dizer que Krishnamurti criti-
O canto é uma arma na luta contra o açoite e a tirania. É uma ca, em seus escritos, as religi-
ões institucionalizadas e de-
fonte de alento e esperança para aliviar a dor da intérprete e do povo. fende o auto-conhecimento. A
Sentimentos que não devem, no entanto, levá-lo a uma atitude de con- referência à leitura de suas
obras por Clara foi feita, em
formismo. Antes pelo contrário, ele é impelido a lutar por um mundo entrevista, por Paulo César
novo e pela paz. O sentido político da letra da música é explícito. Mas Pinheiro. Cf. Entrevista con-
esta não é vista, apenas, como uma mensagem produzida pelos compo- cedida por Paulo César Pi-
nheiro a Josemir Teixeira e Sil-
sitores e pela intérprete. Ao invés disso, estes é que são mensageiros da via Brügger, no Rio de Janei-
música, pois cantar é uma missão. ro, em 22/03/2005.
A referência à cigarra identifica a cantora, para aqueles que lhe 54
Entre outras, entrevista con-
eram íntimos. Clara, de tantos codinomes públicos51, se auto-designava cedida por Maria Dorvalina
Teixeira da Costa a Josemir
como cigarra para amigos próximos52. Entendo, portanto, que a citação Teixeira e Silvia Brügger, em
reforça a intenção de uma letra composta a partir dos princípios e idéias Caetanópolis, em 04/09/
2004.
da própria intérprete. O inseto, conhecido por seu canto, é citado na
música como aquele que, ao realizar sua missão, – cantar – morre. Mor-
55
Várias de suas imagens reli-
giosas integram, hoje, o acer-
re porque cumpriu aquilo que lhe cabia como missão: foi mensageiro da vo do Instituto Clara Nunes,
música. que se encontra em fase de
organização, em Caetanó-
Clara era uma pessoa extremamente religiosa. Cresceu em uma polis.
família católica, juntamente com seus irmãos se converteu ao kardecismo, 56
Clara afirmou isso em vári-
aderiu posteriormente à umbanda e ao candomblé. Simultaneamente, os momentos. Em um deles,
lia obras kardecistas e do indiano Krishnamurti53, comungava esporadi- reproduzido no especial “Cla-
ra Guerreira”, exibido pela
camente54 e mantinha um gongá em casa55. Isso ajuda a entender por- Rede Globo, após sua morte
que o seu canto é entendido por ela como uma oração. Cantar é a sua em 1983, afirma sua convic-
ção de que ninguém “veio a
missão56. Mas não cantar qualquer coisa, cantar músicas ligadas às tra-
esse mundo a passeio”. To-
dições da cultura brasileira. Isto distingue as evocações da cultura popu- dos, para ela, tinham uma
lar e das religiões afro-brasileiras na interpretação de Clara, das de ou- missão. A sua, cantar. Nessa
postura, nota-se a influência
tros cantores. Isso confere à sua carreira um significado de sacerdócio, da doutrina kardecista em
que extrapola o sentido meramente político, embora ambos estejam in- sua formação.
℘
Artigo recebido em setembro de 2007. Aprovado em fevereiro de 2008.