SANTIROCCHI, Italo Domingos. Padroado e Regalismo PDF
SANTIROCCHI, Italo Domingos. Padroado e Regalismo PDF
Departamento de Historia de
la Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, 2013.
Padroado e Regalismo no
Brasil Independente.
Cita:
Ítalo Domingos Santirocchi (2013). Padroado e Regalismo no Brasil
Independente. XIV Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia.
Departamento de Historia de la Facultad de Filosofía y Letras.
Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza.
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PADROADO E REGALISMO NO BRASIL INDEPENDENTE.
1 – Introdução
Durante o século XIX a história do Brasil seguiu um percurso diverso daquele dos
países hispano-americanos. Enquanto estes adotaram a forma republicana de governo
após a independência, a “América Portuguesa” se converteu num Império, governado
pela dinastia dos Bragança por 67 anos. Essa continuidade dinástica com a ex-metrópole
manteve, no Brasil, uma pequena elite de magistrados de formação praticamente
homogênea e bem treinada na burocracia estatal, pronta a assumir a direção do novo
Estado. Conservou também o padroado e a tradição de intervencionismo regalista do
poder secular em âmbito eclesiástico, que prevaleceu, com significativas inovações, por
todo o período monárquico (1822-1889).
Tal política possuía longínquos precedentes históricos. Recorda-se que o
catolicismo foi um elemento constitutivo tanto da nacionalidade lusa quanto da
brasileira, pois o reino português surgiu e se desenvolveu nas lutas pela expulsão dos
mouros da Península Ibérica, principalmente a partir do século X, sendo a fé cristã um
dos elementos plasmadores da sua identidade cultural. Daí aquele sentimento do ser
católico como elemento essencial do ser português, o que, por extensão, também se
tornou uma característica do Estado. Não de pode esquecer que com a expansão
ultramarina a resistência dos povos dominados também passou pela resistência ao
catolicismo (SOUZA, 2009; VAINFAS, 1995).
A propósito, no Estado confessional, a religião era o centro aglutinador da
sociedade; mas, as ingerências recíprocas entre os poderes espiritual e secular criavam
delicados conflitos de competência (Azevedo, 1978: 107). A situação se degenerou a
partir do século XVIII, quando a coroa portuguesa, num momento de forte centralização
e fortalecimento do aparato estatal, influenciada também por idéias iluministas, usou a
legislação vigente para cercear a atividade eclesial. Essa tendência também foi
particularmente sentida no Brasil independente.
No entanto, a influência do regalismo português no Brasil, principalmente aquele
colocado em ato pelo Marquês de Pombal, acabou levando os historiadores que
pesquisam essa problemática a ressaltarem somente a continuidade entre a política
eclesiástica pombalina e aquela do Império do Brasil, como se esta fosse praticamente
uma extensão daquela. O principal objetivo desta comunicação é chamar a atenção para
as descontinuidades, as diferenças, que mesmo sendo por vezes sutis, criaram no Brasil
uma situação nova, adaptada a nova nação nascente.
2 – Padroado Lusitano
Nos séculos XV e XVI foram se desenvolvendo as relações e conflitos entre a
Coroa e a Igreja, enquanto se constituía o Estado português. Nesse ambiente se
formaram as práticas e legislações regalistas de intervenção na ambiência eclesiásticas,
mas também foi o período em que os reis portugueses, por meio de acordos com o
papado, conseguiram o direito de padroado, que seguiu um percurso constitutivo
diferenciado em relação ao espanhol. Em Portugal esse direito provinha de duas fontes:
o Padroado Real e o da Ordem de Cristo. Os dois foram centralizados nas mãos dos reis
quando o mestrado da referida Ordem foi ligado perpetuamente ao monarca lusitano
(Kuhnen, 2005: 25-101).
A existência das Ordens Militares nos Estados cristãos era uma consequência da
sua constituição mista, das lutas contra os mulçumanos e do caráter religioso que tanto
caracterizou os reinos cristãos medievais (Almeida, 1866: v. I, p. I, 250). Na primeira
metade do século XIV, existiam em Portugal três Ordens religioso-militares: São Bento
ou Avis, fundada pelo Rei D. Afonso I em 1145; a de Santiago da Espada, criada em
1288; e por fim a Ordem de Cristo, herdeira dos Templários e a mais importante das
três, principalmente para o entendimento do padroado lusitano. Esta foi reconhecida
pelo Papa João XXII (1249-1334) no dia 14 de março de 1319, por meio da bula Ad ea
ex quibus cultus (BuR: t.IV, 277-284; Camargo, 1955: 39, 267; Almeida, 1866: v. I, p.
II: 336).
O poder espiritual da Ordem de Cristo e o direito de padroado da Coroa
portuguesa estão intimamente ligados, pois ambos tiveram origem no processo de
expansão ultramarina e na luta contra os mouros. O Infante D. Henrique (1394-1460), o
Navegador, e a Ordem de Cristo prestaram eminentes serviços à coroa portuguesa: as
conquistas africanas, as viagens e descobertas no Atlântico. Em agradecimento a tais
conquistas os reis e os papas deram a Ordem de Cristo o padroado das terras
ultramarinas conquistadas e por conquistar. (Kuhnen, 2005: 45-65; Oliveira, 1964: 42;
Witte, 1953: 715-718; Almeida, 1866, v. I, p. II, 362). O Papa Calisto III (1378-1458),
em 13 de março de 1455, pela bula Inter caetera quae,1 atendendo aos pedidos feitos
pelos reis D. Duarte, D. Afonso V e pelo Infante D. Henrique, concedeu ao Grão-Mestre
jurisdição ordinária episcopal sobre todo o domínio ultramarino, como prelado “nullius
dioecesis”, com sede no convento de Tomar (Kuhnen, 2005: 61-65; Oliveira, 1964: 46-
47; Almeida, 1866: v. I, p. II, 401).
Segundo Kuhnen, com essa bula:
1
Bullarium Patronatus Portugalliae Regum (a partir de agora: BPPR), I, 36. Existem divergências entre
os vários autores que analisam as datas das bulas relacionadas ao padroado português. Isso acontece
devido em grande parte às diferenças dos diversos calendários usados nos períodos em que foram
redigidas. As datas aqui apresentadas são aquelas que constam no Bullarium Romanum (a partir de agora:
BuR) ou no Bullarium Patronatus Portugalliae Regum [ndr.].
direito de apresentar os bispos a serem confirmados pelos Papas e pela Ordem de Cristo
receber os dízimos e nomear outras autoridades eclesiásticas. Eles teriam também
obrigações, como construir igrejas, manter o culto, expandir e defender a fé, zelar pela
observância dos seus cânones. Obrigações muitas vezes não compridas, como foi o caso
de construir Igrejas que, no Brasil, foram na sua grande maioria construídas pelos
esforços dos fiéis (Camargo, 1955: 269).
3 – Regalismo Lusitano
Zília Osório de Castro, pesquisadora portuguesa, num artigo intitulado
Antecedentes do Regalismo Pombalino, explica que as tensões entre a Igreja e o Estado,
“consubstanciadas no confronto entre o poder papal e o poder régio, foram, durante
séculos, uma constante na Europa, com vicissitudes diferentes para cada um dos
poderes, dando origem a doutrinas e práticas regalistas e curialistas”. Segundo a referida
autora, entende-se por regalismo: “a supremacia do poder civil sobre o poder
eclesiástico, decorrente da alteração de uma prática jurisdicional comumente seguida ou
de princípios geralmente aceitos, sem que haja uma uniformidade na argumentação com
que se pretende legitimá-lo”. Ou seja, o regalismo era uma prática corrente na Europa,
sendo depois transplantada nas colônias portuguesas e espanholas, na qual o Estado
unilateralmente alterava princípios jurídicos que eram tradicionalmente seguidos,
sempre com o intuito de aumentar o seu controle sobre a Igreja. Essas diferentes
práticas nos diferentes estados europeus receberam nomes diversos, como galicanismo,
febronianismo, josefismo, ou simplesmente regalismo (Castro, 2002: 323).
Apesar de a autora apontar a falta de unidade na argumentação com que os
diferentes regalismos pretendiam legitimar-se, existiram alguns pontos comuns em
todas as correntes, entre os quais a tendência a valorizar a autoridade dos príncipes e
restringir a do romano pontífice nas coisas sagradas. Isso se manifestou em fórmulas
inspiradas em doutrinas conciliaristas e episcopalistas, que deram ocasião a contínuas
intervenções do Estado na ambiência eclesiástica.
Uma das características gerais do regalismo é a afirmação de direitos religiosos
por parte dos príncipes, que, segundo Silveira Camargo, podem ser reduzidos a dois:
a) Ius in sacra, ius circa sacra. Trata-se do “direito nas coisas sagradas” como uma
atribuição do poder civil. O principio aplicava-se inteiramente na antiguidade, como em
Roma, onde a Religião e o Estado se confundiam. A religião era um departamento da
administração e os sacerdotes meros funcionários. Esse princípio foi recuperado pelos
juristas, sendo o primeiro entre eles Marcilio Patavino, Reitor da Universidade
Parisiense, e defendido também pelos protestantes depois da Reforma. Para eles
competia ao príncipe civil um “duplo gênero de direitos na religião: a) majestáticos,
anexos ao império; b) colegiais, derivados da comunidade eclesiástica. Após a Paz de
Augsburgo em 1555, a aplicação moderna desse sistema foi cunhada no princípio:
Cuius regio, illius et religio” (A quem pertence à região sua seja a religião).
b) Ius cavendi (“Direito de precaução e de inspeção”). O esforço de protestantes e
regalistas, para justificar a intervenção dos príncipes nas coisas sagradas, forjou um
motivo jurídico: o do direito de precaver e de inspecionar. O Estado o pretendia exercê-
lo com intuito de preservar a ordem, defendendo a competência dos poderes civis para
disporem de todas as coisas que “conduzem ou afastem do bem da comunidade
pública”. O direito de precaver desdobrava-se em muitos outros como, por exemplo, no
Beneplácito e no Recurso à Coroa (Camargo, 1955: 263-265).
O Beneplácito régio ou placet era o direito de aceitar ou não, no próprio território,
as bulas, breves e as leis canônicas promulgadas pelos Papas. O Recurso à Coroa era
usado quando os beneficiados (aqueles que receberam funções eclesiásticas) se sentiam
usurpados nos seus direitos ou devido ao cancelamento dos seus cargos pelas
autoridades religiosas, pois julgavam que estas só deviam confirmar as apresentações
régias. Porém, segundo Silveira Camargo, “o veto a qualquer nomeação era um direito
de que a Igreja não abriu mão, e as credenciais dos candidatos e sua perseverança
benéfica na execução de suas funções eclesiásticas podiam ser examinadas pela Igreja e
seus representantes legítimos” (Camargo, 1955: 268-269).
O objetivo do regalismo era diminuir o poder da Igreja, limitando a autoridade do
pontífice nos negócios temporais conexos com os espirituais ou negando a plenitude do
poder dos papas nos assuntos eclesiásticos de cada nação, alegando que esta plenitude
de poder lesava os direitos episcopais. Com efeito, diminuída a autoridade do Sumo
Pontífice, seria mais fácil submeter os superiores eclesiásticos existentes dentro do
território daquela autoridade civil aos seus pretendidos direitos. O alvo a atingir era
sempre a supremacia do poder espiritual, que o poder temporal queria dominar (Talassi,
1954: 3-6).
Os defensores do regalismo começaram, então, a atuar minando e enfraquecendo a
autoridade do papa, por meio da defesa do episcopalismo e de uma maior autonomia das
igrejas nacionais. Uma menor influência romana, uma menor centralização do poder na
cúria, dava ao Estado um maior poder sobre a hierarquia eclesiástica nacional, já que na
maioria dos países católicos europeus os bispos eram indicados pelos chefes de Estado.
Esse comportamento se fortaleceu com o absolutismo, pois, em tal sistema o governante
desejava ter o máximo de controle sobre o Estado e sua população.
Quanto ao liberalismo, ele rejeitou completamente a Igreja como sociedade
juridicamente perfeita e independente, consentindo a ela o status de sociedade privada e
com seus direitos derivados das concessões do Estado, sendo que somente deste devia
depender a organização e o controle da sociedade. Consequentemente, ao invés de
defender a submissão da Igreja nacional ao Estado, o liberalismo propunha uma total
separação entre os dois poderes.
2
Jansenismo – Doutrina cujo nome deriva de Cornelis Jansen, dito Cornelius Jansenius (1563-1638),
bispo de Ypres, na província belga de Flandres. O jansenismo surgiu dos conflitos sobre a graça,
ganhando notoriedade no século XVII. Jansênio elaborou um resumo das ideias de Santo Agostinho,
segundo a sua interpretação, na obra Augustinus (1640). Essa obra teve cinco proposições condenadas por
Roma (1642,1653), e posteriormente pelo rei da França, as quais permitiram intuir que Jansênio teria
negado o livre arbítrio, limitando a redenção (graça) apenas aos predestinados. Após esse fato o
jansenismo foi assumindo cada vez mais o comportamento de um partido político-religioso de oposição,
febronianistas,3 josefinistas4 e galicanas,5 oriundos de países católicos como a França,
Bélgica, Áustria e certos reinos do sul da Alemanha. Outra característica típica do
regalismo pombalino foi o antijesuítismo, que resultou no processo de difamação e
expulsão desses religiosos dos territórios portugueses no século XVIII, com o objetivo,
entre outros, de tirá-los do controle que exerciam sobre a educação e sobre os
aldeamentos indígenas no Brasil (Wernet, 1987: 31; Beal, 1969: 25).
A principal instituição portuguesa na divulgação da cultura iluminista lusitana foi
a Universidade de Coimbra, após as reformas pombalinas de 1772. Entretanto, era um
iluminismo adaptado à realidade nacional, não trazendo no seu seio germes
revolucionários, como no caso da França. Essas reformas tiveram também, como é
natural, repercussões no Brasil, principalmente nas Academias e nos cursos de filosofia
para o clero regular e secular. Um exemplo disso foi a formação ministrada nas
comunidades dos beneditinos e franciscanos no Rio de Janeiro e no Seminário de
Olinda, denominado por Muniz Tavares de “Nova Coimbra”. No entanto, os seminários
e as escolas coloniais permitiram o contato direto com idéias revolucionárias francesas,
o que ajuda a compreender a grande participação do clero em revoltas sociais e
emancipatórias (Wernet, 1987: 29-31, 37).
Os padres influenciados pelo iluminismo lusitano ou colonial tentavam conciliar o
pensamento filosófico da ilustração com a doutrina definida pelo Magistério. Por isso,
os padres que se alinhavam aos seus postulados não se opunham ao modelo visto em
precedência: de que à religião católica cabia a tarefa de promover a educação moral
“iluminada”. De outra feita, esses mesmos padres “ilustrados” acumulavam às funções
sobretudo a partir de 1684, sob a direção do Oratoriano Pascásio Quesnel. A bula Unigenitus (1713), que
condenou cento e uma proposições extraídas das Reflexiones Morales de Quesnel não conseguiu abrandar
o conflito e numerosos membros do clero pediram ao Papa a convocação de um concilio geral. Pouco a
pouco, o jansenismo, no século XVIII, ligou-se ao galicanismo, conseguindo penetrar na Itália, na
Holanda, e em Portugal (Martina, 2001: v. II, 209-251,111-113; Vieira, 1980: 29-32; Schatz, 1995: V. III,
7-8).
3
Doutrina exposta por Justinus Febronius (pseudônimo de Johann Nikolaus Von Honthein), prelado
católico alemão (1701-1790). Tornou-se conhecido por sua obra de direito eclesiástico De Statu Ecclesiae
et de potestate legitima Romani Pontificis (Sobre o estado da Igreja e o legítimo poder do Pontífice
Romano – 1763), na qual defendia a volta aos princípios do Concílio de Basiléia (século XV), isto é, a
superioridade do concílio geral sobre o Papa. Ou seja, pregou o episcopalismo, uma maior autonomia das
igrejas nacionais, e colocou em questão a identidade entre primado eclesiástico e bispado romano. O livro
mereceu condenação pontifícia por Clemente XIII (1764) (Martina, 2001: v. II, 268-270; Schatz, 1995: v.
III, 10).
4
Política religiosa inaugurada pelo Imperador germânico José II e praticada por certos príncipes católicos
do século XVIII, adeptos do despotismo esclarecido. Caracterizou-se pela intervenção do príncipe na
disciplina interna da Igreja nacional. (Schatz, 1995: v. III, 8-9; Martina 2001: v. II, 193).
5
Doutrina católica francesa caracterizada por um predomínio do Estado sobre a Igreja Católica, com
marcado sentimento nacional, tendo por isso forte repercussão política. (Martina, 2001: v. II, 259-275;
Vieira, 1980: 28-29; Chat, 1995: V. III, 9,19-20,74-76).
sacerdotais, as de fazendeiros, de professores, de homens de negócios e de políticos, o
que, aliás, não era exclusividade deles, já que tais práticos também eram comuns entre o
clero “tradicional”.
O que Pombal queria com essas ações era realizar uma reforma na Igreja
portuguesa que, segundo Zília Osório de Castro, buscava instituir: “a plenitude do poder
régio face ao poder papal e eclesiástico pela denúncia da ilegalidade da jurisdição
temporal de ambos e, ao mesmo tempo, apoia-se à reforma da Igreja, como coadjuvante
no processo de tornar efetiva essa mesma jurisdição”. Esforça-se em descentralizar o
governo da Igreja, enfraquecer o poder papal e submeter as hierarquias eclesiásticas
nacionais. Pombal, usando os movimentos religiosos que tentaram descentralizar o
poder pontifício e dar maiores poderes aos bispos e as igrejas nacionais, como os
conciliaristas e episcopalistas, queria na verdade deslegitimar primeiro o poder
pontifício e depois aumentar o domínio do Estado sobre a igreja nacional, tornando esta
dependente (ou servil) do Governo. Para tanto, se empenhou na realização de uma
reforma eclesiástica e educacional. Mais que isso, ele gerou um movimento de pressão
tal sobre a Santa Sé, que levou o Papa Clemente XIV (1705-1774) a assinar o breve
Dominus ac Redemptor noster, decretando a supressão universal da Companhia de
Jesus em 1773 (Castro, 2002: 323). O Marques também restabeleceu, por lei de 6 de
maio de 1765, confirmada pelos avisos de 20 de abril e 23 de agosto de 1770, o
beneplácito régio para todos os rescritos da Santa Sé, tendo a lei efeito retroativo
(Almeida, 1967: v. IV, 227-228).
O maior teórico do regalismo ao serviço de Pombal foi Antônio Pereira de
Figueiredo (1725-1797). Para ele às duas esferas de poder independentes (secular e
espiritual) correspondiam duas comunidades sobrepostas, com igual dever de sujeição
ao poder régio, no âmbito das características que lhe eram especificas. No seu livro
Doctrina veteris ecclesiae atribuiu a Deus a distinção dos poderes régio e papal para que
cada um, nas respectivas ações e funções, seja supremo no seu gênero e independente
do outro. Desse modo, esse autor aceitava a “existência da sociedade civil enquanto
civil”, sem que isso eximisse os reis de se submeterem à autoridade divina na
administração das coisas temporais da religião. Tendo, segundo ele, o poder régio
origem em Deus, que o dotara de jurisdição própria, o Papa não poderia privar os reis da
titularidade do império e da posse e administração dos bens temporais. Daí resultaria a
legitimação do regalismo, enquanto doutrina de anulação de práticas tidas como injustas
que haviam trazido a submissão dos reis ao Papa, diretamente pela cessão da sua
soberania, e indiretamente por não assumirem o poder que lhes era próprio. Para os
regalistas isso era uma alteração da “ordem divina”, e por esse motivo se insurgiram,
considerando que “tinham sido atropelados os direitos ancestrais dos reis,
nomeadamente os direitos de soberania e de proteção”. Sobrepondo-se aos direitos de
soberania, obrigavam os soberanos a receberem os bispos nomeados pelo Papa;
ignorando os direitos de proteção esqueciam as queixas feitas pelos reis como protetores
dos cânones dos bispos (Castro, 2002: 326).
A Tentativa Teológica, composta em 1766 pelo mesmo autor, pode ser
considerada a obra maior do regalismo lusitano. Ela era dedicada aos bispos e já na
introdução o autor esclarecia que o título Tentativa significava que tal obra era uma
tentativa teológica de justificação do regalismo (Figueiredo, 1769: 11). O interessante é
que, depois de tecer duras críticas ao Papa, insistentemente indicado como inferior aos
concílios e acusado de haver “usurpado” as prerrogativas dos bispos, Pereira de
Figueiredo conferia ao soberano poderes quase ilimitados de interferência na vida
eclesial (Figueiredo, 1769: 195-199). Outro ponto de defesa de Pereira de Figueiredo
era o Recurso à Coroa, defendendo que os clérigos podiam recorrer dos tribunais
eclesiásticos para os tribunais régios, sempre que achassem que tinha havido abuso de
poder (Castro, 2002: 331).
O regalismo português, a exemplo dos demais jurisdicionalismos europeus,
encontrou nos bispos seus instrumentos fundamentais na implementação da reforma
eclesiástica. De fato, o poder dos prelados diocesanos, uma vez tornados
semiautônomos em relação ao Papa, se converteria em parte integrante de uma ordem
política centralizadora. Nesse sentido, “proteger” e “defender” seus bispos, constituía
para o poder político objetivo primordial. Do êxito de tal política dependia, em última
análise, o sucesso da intendência como Estado soberano (Castro, 2002: 328).
Desse modo, a reforma pombalina do Estado englobou uma reforma eclesiástica,
embora esta última se fizesse invocando a pureza da disciplina primitiva e aquela
encontrasse no futuro a justificação do presente. A linha guia foi o repúdio do poder
temporal da Igreja e da autoridade disciplinar pontifícia tal como era praticada,
mantendo, porém, o caráter inseparável entre Estado e Igreja, mesmo se em uma
perspectiva secularizante (Castro, 2002: 323). Tal discurso justificador do seu regalismo
pode ser percebido nos Estatutos da reformada Universidade de Coimbra.
Veja-se, por exemplo, os estatutos de Leis e Cânones. Eles defendiam a ideia de
que a Igreja recebera seu poder tanto dos apóstolos quanto dos imperadores, tendo os
segundos, logicamente, a faculdade de requerê-los de volta, para o bem da própria
Igreja. Também consideravam parte da autoridade temporal eclesiástica como um
privilégio recebido do Estado. Em prática, se defendia uma igreja nacional dependente
do poder temporal, mas sem separar-se da Igreja Universal (Almeida, 1866: v. I, p. I,
109; Beal, 1969: 89-93). Na analise de tais estatutos fica evidente que advogavam as
seguintes teses regalistas: 1 – a superioridade da igreja primitiva; 2 – que o Concílio
Geral tinha autoridade sobre o Papa; 3 – desprezo pelo Concílio de Trento; 4 – que
muitos poderes da Igreja são privilégios cedidos pelo Estado; 5 – a defesa de igrejas
nacionais ligadas ao poder civil quase como uma dependência da sua administração; 6 –
o direito de fiscalização e intervenção do Estado nas coisas sagradas; 7 – o Recurso a
Coroa; 8 – a negação de um poder coercitivo à Igreja, ou seja, fim do Foro Eclesiástico;
9 – a institucionalização do Beneplácito régio para os documentos pontifícios (Beal,
1969: 88-100; Almeida, 1866: v. I, p. I, 106-147).
Em suma, as bases onde se apoia o discurso justificador do regalismo português
são as referencias à igreja primitiva, aos direitos dos imperadores romanos, ao direito
divino dos reis, às antigas concessões pontifícias ou imperiais, aos antigos concílios e ao
direito de autonomia das igrejas nacionais. É no passado, na tradição, que o pombalismo
busca construir o seu discurso regalista e legitimar a sua prática.
6
Para os políticos da época «povo» eram os cidadãos ativos, ou seja, aqueles que tinham direito ao voto
[ndr.].
7
Coleção das Leis do Império do Brasil (a partir de agora: Brasil), 1824: p. I, 7.
de suma importância. Isto porque, para o autor, “continuará a ser” trazia consigo a
tradição do direito português, as instituições que permitiam ao Estado disciplinar e
governar a Igreja (Pereira, 1982: 60).
Cândido Mendes de Almeida, ainda no século XIX, havia seguido um raciocino
semelhante:
Essa Constituição foi, na opinião de João Dornas Filho, o “velho sestro que
sempre dificultou a nossa evolução política”. Para o autor, os legisladores “perfilharam
as idéias liberais jorradas da França, mas deixaram enquistada na Constituição a
anomalia do artigo 5º”. Sendo esse artigo representante da “velha mentalidade medieval
do Reino português, que não se adaptara aos novos horizontes abertos ao clarão
projetado pelos enciclopedistas franceses”. Concluía o mesmo autor que: “A
oficialização da Igreja católica, soube ser o motivo da sua própria escravidão, foi ainda
o núcleo de todas as discórdias conducentes aos sucessos que subverteram a
organização política do país” (Dornas Filho, 1938: 53). Dornas filho, apesar de perceber
o mal que essa união representou ao Estado e a Igreja, não consegue perceber as
diferenças entre os dois modelos de padroado. E tal fato também ocorre com a grande
maioria dos historiadores atuais (Boehrer, 1970; Neves, 1997 e 2011; Vieira, 2007,
entre outros).
Só para indicar mais algumas mudanças legislativas que transformaram as
práticas do padroado e do regalismo no Império do Brasil, cito a extinção do Tribunal
da Junta da Bula da Cruzada com a Lei de 20 de setembro de 1828, e, mais importante
ainda, a Lei de 22 de setembro de 1828, que extinguiu o Tribunal da Mesa da
Consciência e Ordens, deixando as principais questões eclesiásticas sob a direção do
Supremo Tribunal de Justiça (Brasil, 1828: p. I, 45, 47-50). Todas essas mudanças
refletiram nas futuras relações entre a Igreja e o Estado no Brasil, primeiro na intensa
participação de padres “liberais” na política imperial, comandados por Feijó, e
posteriormente na vitória dos ultramontanos que dominaram o episcopado imperial a
partir de meados do século XIX, levando a um conflito que culminou na Questão
Religiosa dos anos 1870.
8
Arquivo Secreto Vaticano, Negócios Eclesiásticos Extraordinários (a partir de agora NEE), fascículo
(F.) 171, posição (p.) 108, folha (f.) 24r. (r. rectus, v. versus).
De tudo conclui que as igrejas do Brasil nunca foram do padroado da Ordem
de Cristo e, por consequência que os Reis de Portugal nunca exerceram no
Brasil o direito de Padroeiros, como Grãos-Mestres, mas sim como Reis,
sendo então todos os benéficos do Padroado Real, assim como hoje o são do
Padroado Imperial, e essencialmente inerente à Soberania do atual Imperador
do Brasil e Seus Sucessores no Trono, pelo ato da Unânime Aclamação dos
Povos deste Império e Lei Fundamental do mesmo, artigo 1 e 2 §2º. Conclua-
se, portanto, que a bula é ociosa, porque tem por fim confirmar o Imperador
do Brasil no direito que o Mesmo Senhor tem por títulos mais nobres (NEE,
F. 171, p. 108, f. 28v.; Dornas Filho, 1938: 44-48).
Conclusão
São inegáveis as continuidades entre o padroado e o regalismo lusitano e aquele
que será implementado no Brasil, com já vem sendo apontando pelos historiadores a
mais de um século. Todavia as descontinuidades também são evidentes, mesmo se elas
não tenham sido objeto das analises historiográficas.
A independência do Brasil e a instauração de uma monarquia constitucional
criaram uma situação totalmente nova, que não se encaixava na tradição. Era um novo
país que se projetava para o futuro, que queria se construir como Estado e como nação.
O antigo discurso de legitimação do padroado e do regalismo não mais serviam para
legitimar tais práticas, ainda mais em um país que buscava a sua via de liberalismo no
século XIX, com características muito específicas, bastando citar o próprio sistema
monárquico em terras americanas e a escravidão. Por esse motivo criou um discurso
legitimador do Estado Confessional baseado na nação, na soberania e na constituição. O
entendimento dessas descontinuidades é essencial para se entender a formação do
Estado Imperial, o fortalecimento do ultramontanismo e o início da institucionalização
da Igreja romana no Brasil do século XIX.
Bibliografia
Fontes arquivísticas
NEE - Arquivo Secreto Vaticano, Negócios Eclesiásticos Extraordinários (Affari
Ecclesiastici Straordinari). Fascículo 171, posição 108.
Bibliografia Geral
ALMEIDA, Mendes de Almeida (1866). Direito Civil Eclesiástico Brasileiro Antigo e
Moderno em suas relações com o Direito Canônico. Rio de Janeiro: Garnier.
BRASIL (1824 e 1828). Coleção das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional.
BuR (1859-60). Bullarium Romanum. Vol. IV, V, VI. Roma: Tourinensis Editio.
CARRATO, José Ferreira (1968). Igreja, Iluminismo e Escolas Mineiras Coloniais. São
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