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2 4 | ago 2012
Tacita Dean: o cinema nas artes visuais
Ana Tereza Prado Lopes
cinema arte contemporânea
Tacita Dean tempo espectador
O artigo explora as relações entre a arte contemporânea e o cinema, tendo
como referência principal a poética da artista inglesa Tacita Dean. São analisados
trabalhos seus que lidam com o tempo e o espectador como criadores nas artes
visuais contemporâneas.
A chegada da linguagem cinematográfica nas Tacita Dean: The cinema in visual arts
instituições de arte através dos usos de gêneros | The article explores the relations between
cinematográficos, da montagem e da projeção contemporary art and cinema, the main
reference being the poetics of the British
é indício do fenômeno de contaminação mútua
artist, Tacita Dean. This paper analyses this
de cinema e arte contemporânea que reinventa artist’s works that address time and the
a noção do que é o trabalho de arte, um produ- viewer as creators in contemporary visual art.
to híbrido de formas e conceitos variados. Ain- | Cinema, contemporary art, Tacita Dean,
time, viewer.
da nos anos 60, artistas como Bruce Nauman e
Andy Warhol trouxeram o cinema para as galerias e os museus usando, além da película, a fotografia e
o vídeo. Artistas da land art, entre eles, Michael Heizer e Robert Smithson, registraram seus trabalhos,
tornando esses registros parte ou mesmo o trabalho sem si. A relação entre arte e vida e as experimen-
tações realizadas com as diferentes linguagens nesse período foram fundamentais para a hibridização
de formas e conceitos estéticos. Antes disso, artistas das vanguardas do início do século 20 usaram o
cinema a fim de trazer novos elementos para as artes visuais, numa tentativa de reinventá-la.
Hoje, artistas usam diversos métodos e técnicas produzindo trocas entre as artes, criando um trabalho
pluriforme em que as categorias cinema e artes visuais se encontram justapostas. Chantal Akerman,
Tacita Dean, Maurício Dias e Walter Riedweg, Douglas Gordon, Harun Farocki, entre outros, usam
diferentes estratégias e se apropriam de gêneros e procedimentos da linguagem cinematográfica. O
cinema participa na construção de pensamento no circuito da arte contemporânea, e importantes
autores têm teorizado sobre o assunto, criando conceitos − como “efeito cinema” de Philippe Du-
bois, “entre-imagens” de Raymond Bellour e “cinema de exposição” de Jean-Christophe Royoux − e
refletindo sobre procedimentos e estratégias, bem como sobre o trânsito de imagens e de gestos que
Detalhe projeção Film na Tate Modern,2011-2012
Fonte: http://yesbuts.wordpress.com
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inventam novos limites das linguagens visuais e produzindo, assim, pensamento e experiência.
cinematográficas. Dentre esses autores, destaca- As heterotopias, segundo Michel Foucault, são
mos Gilles Deleuze, cujos textos sobre a presença espaços opostos à utopia cuja função é a de criar
do cinema no pensamento e sua relação com as um espaço real. Trata-se de lugar sem lugar, lu-
demais artes, e também o conceito de “imagem gar em que estou e não estou ao mesmo tempo.
cristal” são importantes para se pensar a relação Lugar de possibilidades reais e imaginadas, em
entre imagem e tempo. que elementos contraditórios se justapõem. As
Práticas artísticas que utilizam o pensamento ci- heterotopias de Foucault são espaços de liber-
nema − sobretudo aquelas com a preocupação dade e de possibilidades de ser nos quais há a
de usar o tempo e a montagem como disposi- produção de novas subjetividades.
tivos de criação e que pensam o trabalho artís- O cinema é linguagem generosa para articular
tico cada vez menos como objeto ou imagem, diversos elementos, relacionando diferentes es-
e sim como articulação de diferentes elementos paços e tempos, e dessa forma criar espaços he-
− criam novas formas de narrativas e novas rela- terotópicos como nos trabalhos de Tacita Dean.
ções de tempo e espaço. A artista mistura ficção e fatos, fazendo apro-
priações do mundo e assim construindo narra-
Tacita Dean tivas que aproximam arte e cotidiano. Trabalha
Tacita Dean usa o cinema como um reservató- com imagens capturadas do real, muitas vezes
rio poético de operações, dinâmicas e procedi- registros de lugares por onde esteve e de pessoas
mentos, provocando um esmorecimento nas que encontrou, que reinsere em diferentes tem-
fronteiras entre as linguagens visuais e cinema- pos e espaços, dando-lhes novos significados.
tográficas. A artista utiliza procedimentos de A estrutura do trabalho é a de uma narrativa
apropriação e montagem em sua prática, reve- ficcional que possivelmente leva o espectador a
lando o tempo como um dispositivo de criação, estabelecer um espaço mental em que possa, ele
um produtor de espaços e de subjetividades, de também, criar sua própria narrativa.
formas de se relacionar e criar mundo. Dean se
apropria de tempos e espaços que coleciona ao Pontos de partida
pesquisar personagens e acontecimentos para
seus filmes; formas e conteúdos, originários de O ponto de partida de Dean na realização de
diversos contextos e que, uma vez relacionados, um trabalho pode ser, por exemplo, uma estória,
criam fluxos espaciais e temporais. Apresentados uma foto, um monumento ou algum tipo de do-
muitas vezes sob o formato de instalação, seus cumento. Algo ou alguém que lhe seja da ordem
filmes misturam ficção e realidade. Ao fazer uso do afetivo. A artista usa diferentes fontes, loca-
da montagem, ao editar e projetar suas imagens, lizadas em diversas camadas temporais e espa-
a artista desloca o saber cinematográfico para o ciais, elegendo seus objets trouvés e construindo
saber da arte contemporânea em suas instalações uma poética em que sua vida e sua arte estão
nos museus e galerias, criando espaços heterotó- em constante diálogo; o fluxo da vida, a imersão
picos nos quais o espectador transita entre o real no real, a ideia de jogo e de acaso são motores
e o imaginário, justapondo espaços e tempos, e artístico-poéticos para a sua prática artística.
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Detalhe montagem
Film, 2011-2012
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Dean pesquisa estórias de personagens esqueci- etapa de seu trabalho. Ao pesquisar pessoas e
dos, lugares em ruínas, algo ou alguém que se construções em suas viagens, a artista trabalha
torna o motor de sua jornada, entrando no ter- com o desconhecido e com o acaso − desconhe-
ritório da fabulação. O uso do cinema é propício ce o que e quem vai encontrar, e onde chegará.
para montar e organizar textos e imagens sobre- Como um explorador, usa diferentes métodos
pondo camadas de significados e assim criar uma para suas narrativas, que transitam entre o real e
plataforma, para a qual espaços e tempos serão o imaginário, e nas quais o tempo é trabalhado
transferidos − tanto aqueles criados pela artista como um dispositivo que deflagra experiências
quanto os que o espectador vier a criar. Como no campo da arte.
espectadores, não sabemos se o que está sendo
Após merecer da Academia alemã bolsa de um
narrado aconteceu ou não. Se de fato aconteceu,
ano em Berlim, a artista decide aí permanecer.
talvez não tenha sido daquela maneira, pouco im-
Sua relação com essa cidade, que escolheu para
porta. Muitas vezes o acontecimento é um artifí-
morar, e suas camadas de história estão presentes
cio para deflagrar gestos e ações que permitam a
em Palast (2004). Nesse trabalho a artista regis-
Dean criar para sua prática um método no qual
tra em 16mm o palácio da antiga Berlim Oriental,
utiliza diferentes procedimentos. Ela não está in-
demolido em 2006. O título do trabalho nos re-
teressada em reportar eventos, mas sim em recu-
mete ao prédio, construção em que não entra-
perar a poesia da realidade cotidiana.
mos. O tempo ganha visibilidade nas imagens de
Dean. O que vemos são fragmentos da fachada
Roteiros
do palácio, pouco reconhecível na imagem em
Sem roteiro definido para seus filmes, Tacita Dean zoom, cujas paredes de vidro refletem o sol que
parte para os lugares de onde seus personagens se põe e a cidade. Não vemos o interior do pré-
vieram, indo ao encontro de traços que serão dio, apenas seu exterior, as cores e a luz mutantes
coletados, registrados e depois levados para a no fim de tarde, e ouvimos o som da rua, vozes
mesa de montagem, em que inauguram outra de transeuntes que não vemos e que contrastam
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com as imagens da arquitetura. Imagens que, se- pire (1964), de Andy Warhol. O artista filma
1
gundo Dean, se aproximam de Two-way mirror, um plano-sequência do prédio em 24 frames
de Dan Graham, na relação com o reflexo da ci- por segundo, num entardecer (20:06-2:42) em
dade na superfície de vidro, de um espaço cujo Nova York, durante aproximadamente seis horas
exterior podemos ver, mas não o interior, como e meia, e o projeta em 16 frames por segundo,
no sistema comunista. Dean filma da rua o topo obtendo a duração de quase oito horas. Esse
do prédio trazendo verticalidade à imagem. A câ- procedimento faz com que quase não perceba-
mera fixa, estática, filma frames de forma quase mos a mudança da luz do dia para a noite. So-
fotográfica, e o filme, como um lento stop mo- mos tomados pela potência da imagem. O piscar
tion, nos mostra o claro e o escuro, o vermelho, o das luzes de prédios vizinhos ao Empire State
azul e o amarelo como elementos plásticos parti- Building, ícone do capitalismo americano, marca
cipantes de um entardecer berlinense. a passagem do tempo. Warhol quer registrar o
tempo, como o fez em outros filmes. Em Empi-
Outra referência na qual podemos relacionar
re não há a presença de narrativa tradicional; o
Palast é o filme mudo, em preto e branco, Em-
que está na imagem é a passagem do dia para a
noite e a verticalidade imponente do prédio que
se destaca na paisagem. O tempo é o principal
personagem. Nos dois filmes, o de Dean e o de
Warhol, a materialidade da película, a mudança
de luz, a beleza plástica da imagem, a câmera
estática e o enquadramento fixo participam da
criação da noção de tempo, embora possamos
notar diferenças − em Empire, a longa duração
promove a sensação de hipnose e de produção
de um tempo vazio; em Palast, os diferentes fra-
mes do prédio e o som ambiente fazem surgir o
tempo presente da imagem querendo despertar
a vida que existe nas paredes de vidro do palácio.
Dean, como Warhol, apropriando-se do mo-
numento, atualiza a noção de readymade de
Duchamp. Muda a linguagem mantendo a es-
tratégia. Muda o objeto mantendo o gesto. Ao
deslocar os elementos de seu contexto específi-
co, a artista cria camadas de significados quando
traduz esses elementos em linguagens visuais.
Dean junta, exclui, edita, monta elementos de
diversos campos do saber na realização do traba-
lho. Apropriações e transferências são exercícios
de pensar e construir o mundo hoje que trazem
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para a prática da arte a possibilidade de provocar desenho, a pintura e a fotografia, mas elege o
pequenos deslocamentos que nos tiram do lugar cinema como sua linguagem favorita. O uso da
do conhecido e que criam rupturas no cotidiano. montagem estende a experiência da artista até
nós, espectadores, quando é produzido um es-
O crítico de arte germano-americano Benjamin
paço psicológico, em que diferentes concepções
Buchloh reflete sobre a apropriação e a monta-
gem como procedimentos alegóricos na produ- do tempo participam deste todo aberto que é o
ção artística. Baseando-se na teoria da alegoria trabalho. Ao deslocar os elementos de seu con-
e da montagem de Walter Benjamin, Buchloh texto, a artista retira significados originários e
cunha os conceitos de “dispositivo de enqua- os adiciona a outros, subjetivos, e então traduz
dramento” e “princípio de apropriação” para esses elementos em linguagens visuais e cria
assim refletir sobre questões como autoria e imagens e textos, aproximando realidade e ficção.
recepção presentes nas práticas artísticas con- Os enquadramentos fixos e o ritmo das imagens
temporâneas. O autor chama de dispositivo de são alguns dos participantes operacionais no
enquadramento o gesto do artista de enquadrar revelar do tempo e do espaço nas imagens de
uma determinada situação e suas condições ou Dean. “Uma imagem nunca está só. O que con-
ainda uma estrutura do trabalho que acumula ta é a relação entre imagens”,3 escreve Deleuze.
diferentes significados. O princípio de apropria- A imagem torna-se pensamento. Novas relações
ção traz a ideia de uma superposição de textos e mentais são geradas, e o espectador é convidado
de momentos históricos, como um palimpsesto, a criar sua leitura do trabalho ao mesmo tempo
imagem adequada para pensarmos o trabalho em que participa de sua criação.
de Dean. Segundo Buchloh, a montagem, como
Segundo Deleuze, com a “imagem-tempo” − a
a apropriação, é procedimento encontrado nas
imagem que não está mais subordinada ao movi-
práticas artísticas contemporâneas que usam di-
mento, mas ao próprio tempo, aquela que nasce
versas linguagens e que pensam a questão da
com o cinema moderno −, o tempo torna-se a
autoria: o espectador é, ao mesmo tempo, leitor
questão maior, um criador de novas maneiras de
e produtor do trabalho de arte, descentralizando
conectar as imagens, fazendo do cinema um libe-
o autor. Escreve:
rador de seu poder. Interessa-nos pensar o regime
Ao estender o “espaçamento” dos elemen- cristalino da imagem desse filósofo, o das situações
tos, ao singularizar os elementos de apro- ópticas e sonoras, aquele da “imagem cristal”, para
priação e ao redirecionar a visão/leitura para pensar o tempo como invenção, que, diz ele,
a moldura, a nova prática de montagem
descentraliza o lugar do autor e do sujeito, é certamente o ponto de indiscernibilidade
permanecendo no interior da dialética dos de duas imagens distintas, a atual e a virtual,
objetos apropriados do discurso e do sujeito/ enquanto o que vemos no cristal é o tempo
autor, que, ao mesmo tempo, nega e se cons- em pessoa, um pouco de tempo em estado
titui no ato da citação. 2 puro, a distinção mesma entre as duas ima-
gens que nunca acaba de se reconstituir.4
No caso de Dean, o cinema é linguagem que rela-
ciona diferentes elementos ao deles se apropriar O atual é o que é dado, e o virtual, o que, não
e montá-los. A artista também trabalha com o sendo dado, é, entretanto, possível.5 A imagem
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cristal indica a coexistência de imagem atual, mudanças que a imagem apresenta na atualida-
imagem virtual e a formação de circuitos. Alain de, criando novas articulações no/do mundo e
Resnais (como em O ano passado em Marienbad, novos modos de existência.
de 1961) e Andrei Tarkovsky são cineastas que
Há na poética da artista a busca da experiência
usam esse tipo de imagem. Como em Dean, a
em si, a experiência do viajar, de não saber onde
presença de imagens e tempos, existentes e em
chegará e o que acontecerá. Há na recepção de
formação, que emergem forma circuitos que nos
seu trabalho, a sensação daquilo que não se fe-
remetem à imagem cristal deleuziana e de sua
cha, no que percebemos a presença da incom-
relação com a vida. “O que vemos no cristal é pletude e da abertura para leituras múltiplas a ser
sempre o jorro da vida, do tempo, em seu des- incorporadas ao trabalho, tornando o espectador
dobramento ou diferenciação”,6 escreve Deleu- participante de sua criação. Como espectadores,
ze. Para refletir sobre a imagem cristal, o autor reconhecemos a estrutura do trabalho que de-
escreve sobre o quarto comentário de Henri flagra em nós uma experiência de alteridade; do
Bergson para pensar o tempo como passado e passado retornamos ao presente e nos lançamos
presente que ocorrem simultaneamente. ao futuro, percebendo sinais de impermanência
Usando o cinema, Dean cria imagens cristais dos lugares cujos personagens passaram e deixa-
justapondo camadas de tempos, atualizando ram seus gestos impressos, e de tempos que já se
o passado no presente, fazendo-os coexistirem foram, mas que continuam presentes, notando a
na imagem, criando temporalidades múltiplas e afirmação do potencial poético-artístico das ima-
circuitos, como observa Deleuze: “Compete ao gens e da relação de arte e vida.
cinema apreender o passado e o futuro que co-
existem com a imagem presente.”7 O conceito Pontos de chegada
de duração de Bergson seria a ideia de pensar Nas instalações de Dean, formato escolhido
o mundo em termos temporais, um tempo uni- para exibição de muitos de seus trabalhos, o
versal, não cronológico, que não é da ordem da espectador é convidado a criar outras realida-
sucessão, mas do devir, de um tempo que inclua des a partir de sua própria história. A presença
a distensão e a contração de tempos passados e de dispositivos, sejam operacionais e/ou visuais,
presentes. Bergson afirma que o mundo é ima- nesses trabalhos da artista produz diferentes
gem e que o tempo é invenção, e Deleuze esten- efeitos no indivíduo, explora os sentidos e a fisi-
de essas ideias para relacionar cinema, mundo, calidade do espectador, deflagrando operações
vida, percepção e imagem, e assim pensar o tem- mentais e processos de subjetivação, novas per-
po como criador. Segundo Deleuze, o fluxo de cepções do tempo e do espaço. A noção fou-
imagens e as conexões de conceitos abrirão bre- caultiana de dispositivo, que cria efeitos no in-
chas, criarão rupturas, produzindo em nós uma divíduo, é aqui importante para pensar a noção
experiência. A imagem cristal de Dean e sua rela- de subjetividade de Deleuze, que considera esse
ção com o tempo como criador nos fazem pen- conceito relacionado não à constituição de um
sar na produção de processos de subjetivação no sujeito, mas sim às maneiras de se relacionar
espectador, quando ela desloca o pensamento com a vida. Dessa forma, o cinema visto como
cinema para as artes visuais e reflete sobre as um dispositivo é um inventor de subjetividades,
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um criador de regimes da imagem e de novas co. Em Kodak (2006), ela trata da questão do de-
possibilidades de vida. saparecimento desse material, registrando o dia
a dia de uma fábrica da empresa que dá nome
As imagens apresentadas por Tacita Dean nos
ao trabalho e que estava prestes a ser fechada.
levam a um passado que está sendo experimen-
Não vemos os funcionários da fábrica, vemos e
tado no presente e que nos deixa brechas para
ouvimos as máquinas trabalhando, abandona-
o futuro, para um devir imaginário ou real, de-
das ao tempo e resistindo às mudanças, presen-
flagrando em nós uma experiência que se apro-
xima de alguma forma daquela vivida pela artista. tes no som ambiente e na repetição de seu fun-
O trânsito entre tempos e espaços colecionados cionamento nos planos fixos do filme.
por Dean, que monta, desmonta e remonta frag- Em Film (2011), exposto no ano de sua criação
mentos de estórias − não meros fatos, mas na Tate Modern, essa questão ganha mais visi-
fragmentos de mundo e também protagonistas bilidade, pois trata da desaparição dessa mídia/
de suas narrativas não lineares −, cria um cam- linguagem que se esvaece e persiste. No catálo-
po de forças no qual os elementos participantes go da exposição, quase um manifesto em defe-
do trabalho serão relacionados e diferenciados, sa dessa mídia/linguagem, artistas, curadores e
apresentando suas singularidades. outros profissionais, entre eles, Jean-Luc Godard,
As projeções das imagens, os percursos, a presen- Zoe Leonard e Jonas Mekas, escrevem sobre a
ça do som e da luz são alguns elementos partici- necessidade de sua permanência. Na introdução
pantes nas instalações de Dean. A mobilidade do é citado um trecho do livro de Rosalind Krauss8
espectador no espaço funciona como um ativador em que a crítica de arte americana menciona o
da percepção das imagens e, sobretudo, um cons- fato de a morte de certas mídias implicar a morte
trutor de narrativa. A experiên-
Detalhe projeção Film na Tate Modern, 2011-2012
cia da percepção do especta- Fonte: http://yesbuts.wordpress.com
dor do mundo, que é também
vivida no cinema, é transposta
para a galeria na forma de ins-
talação. As instalações de Dean
produzem um processo de des/
reterritorialização, uma deriva,
nas quais coincidências, acasos,
trânsitos e fluxos temporalizam
e espacializam as imagens na
experiência do percurso criado
pelo espectador, no qual os
tempos e os espaços são tam-
bém construídos por ele.
Em muitos de seus trabalhos
mais recentes, Dean defende a
permanência do filme analógi-
COLA B ORA ÇÕE S | A na Tereza P ra do Lopes 93
de um tipo de arte. Film é sobre essa morte. Com co, sinalizando que os primeiros trabalhos a tratar
11 minutos de duração, é um filme anamórfico, da “especificidade do sítio”9 surgem nas décadas
mudo, filmado em 35mm. A projeção vertical, de 1960 e 1970, época do aparecimento do mini-
em loop, assemelha-se a uma tira de negativo de malismo, trazendo questões relacionadas à fisica-
filme. Nas imagens, diferentes tempos colados lidade do lugar em que o trabalho era instalado,
de arquiteturas antigas, de fragmentos da Tate como altura e escala. A presença do espectador
Modern e de temas recorrentes no trabalho da no espaço e sua relação com o trabalho, como a
artista, como a paisagem. Vemos imagens feitas questão de sua mobilidade, lidavam não mais com
por Dean e também imagens de arquivo, sem uma observação contemplativa, mas sim com a
nenhum tipo de narração, fazendo de Film um observação participativa desse espectador.
filme abstrato, com características de filme expe-
Segundo Jean-Christophe Royoux, o cinema de
rimental devido a suas qualidades plásticas. É um exposição é uma forma particular de cinema que
trabalho site specific no qual a própria película, privilegia o tempo e que é exposto nas institui-
projetada sobre um monolito no Turbine Hall, ções das artes visuais sob a forma de instalações.
dialoga com a escala do espaço expositivo, tor- Um de seus precursores é Marcel Broodthaers,
nando-se também espaço. Sobreposição de tem- artista homenageado por Dean em Section Ciné-
pos e imagens, interferências visuais, como círcu- ma, exposto na 27a Bienal de São Paulo (2006),
los e filtros de cores, são justapostas às imagens com seus elementos fílmicos, sua forma exposi-
fílmicas de Dean, que usa técnicas tradicionais tiva pós-cinema. Ao escrever sobre o trabalho de
do cinema, como máscaras e exposições múl- Dean como “filme objeto”, uma forma específica
tiplas, sem pós-produção digital. Os trabalhos de cinema de exposição, Royoux se refere a um
de Stan Brakhage, Hans Richter, Gordon Matta espaço sem contornos definidos que pode ser
Clark, Derek Jarman, entre outros, são lembra- estendido para além das paredes das instituições
dos ao estar o espectador exposto às imagens de e de uma participação ativa do espectador em
Film. Na Tate, a tira de película ganha escala ao sua criação. Menciona o papel da memória no
se relacionar com sua arquitetura, e a imagem trabalho de Dean não como nostalgia, mas como
é espacializada. A frontalidade e a dimensão da elemento alegórico, onírico que busca tangibili-
imagem criam uma nova relação quando lida- dade, um fazer notar o que estava esquecido e
mos com a tira de celuloide − não a vemos so- reclama sua presença, gerando em Dean grande
mente com os olhos ou com as mãos, mas com o atração pelo que é obsoleto. Royoux adverte que
corpo todo. Somos contaminados pela imagem não é a memória de um lugar específico, mas
como o mundo contamina o trabalho da artista “mais um plano de imanência em que os obje-
inglesa e o que pertence ao cotidiano é exposto tos ressoam juntos e entram em correspondên-
no campo da arte, ganhando valor simbólico. cia”,10 um espaço no qual os elementos fílmicos
justapostos constituem a estrutura do trabalho,
Miwon Kwon estende a noção de site specific,
no qual seus “filmes objetos” relacionados criam
tornando o conceito de site aplicável não só a es-
uma multiplicidade de tempos.
paços físicos, mas também a espaços semânticos.
Kwon diferencia trabalhos de site specific segun- Hoje muitos artistas contemporâneos que lidam
do suas estratégias e contextos histórico e artísti- com o pensamento cinema, muitas vezes usam o
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site specific, utilizando projeções, espacializando como o cinema, que mistura, associa e dissocia,
imagens, com escalas, suportes e formatos va- e assim cria novos circuitos e ressonâncias nas
riados, em que o espectador constrói o trabalho práticas artísticas visuais contemporâneas.
ao se deslocar pelo espaço expositivo. Nas ins-
talações de Dean, o museu ou a galeria também
Ana Tereza Prado Lopes é artista, mestre em
é um reservatório de operações, como o cinema,
Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes
um produtor de realidade em que as imagens
da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
são diferenciadas e conectadas, criando fluxos
PPGAV-EBA/UFRJ.
espaciais e temporais.
Novas ressonâncias, novos circuitos NOTAS
Já não é de hoje que a arte, para se atualizar, 1 Informações extraídas da palestra organizada e vei-
precisou sair de seu campo do saber e questio- culada pela Tate Modern no site http://channel.tate.
org.uk/media/26649826001 acessado em fevereiro
nar seu lugar e sua função. Diferentes fontes e
de 2012.
aparências, por se apropriar de linguagens, sis-
temas e métodos, foram usadas nesse processo 2 Buchloh, Benjamin. Procedimentos alegóricos:
de crítica e de reinvenção da/pela arte, que se apropriação e montagem na arte contemporânea.
Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, n.7, 2000:.178-197.
apropria do mundo a sua volta para continua-
mente se reconstruir. O artista contemporâneo 3 Deleuze, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Bra-
usa métodos e estratégias disponíveis no mun- siliense, 2007: 69.
do, os quais, muitas vezes, não pertencem ori- 4 Deleuze, op.cit.:103.
ginariamente ao sistema da arte. Como observa 5 Zourabichvili, François. O vocabulário de Deleuze.
Deleuze, “Criar novos circuitos diz respeito ao Tradução André Telles. Rio de Janeiro. Versão eletrô-
cérebro e também à arte.”11 Esses deslocamen- nica IFCH-Unicamp. http://www.ufrgs.br/corpoarte-
tos de operações são incluídos como procedi- clinica/obra/voca.prn.pdf.
mentos nas práticas artísticas visuais que usam
6 Deleuze, op.cit.:113.
o cinema, tornando a arte ainda mais comple-
7 Deleuze, op.cit.:52.
xa, uma vez que diferentes significados são
justapostos funcionando como a estrutura de 8 Krauss, Rosalind Perpetual inventory. Cambridge:
produção do trabalho. Converter em potência MIT Press, 2010.
o que era só possibilidade, provocar o choque 9 Kwon, Miwon. One place after another: notes on
no pensamento, sair do automatismo, fazendo site specificity. October, Massachusetts, n.80, 1997:
a essência artística da imagem se efetuar e pro- 85-110.
duzindo novas subjetividades, como nos ensina 10 “... more a plane of immanence on which objects
Deleuze. A arte inventa formas de experiência, resonate together and enter into correspondences”.
a partir da qual formamos uma imagem de nós Royoux, Jean-Christophe. Tacita Dean. Londres:
mesmos e do mundo. O trânsito de linguagens Phaidon, 2006.
e operações permite a arte de criar relações 11 Deleuze, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora
externas com outras formas de pensamento, 34, 2008: 79.
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