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Indeterminação Da Tradução, Pragmatismo e Holismo Semântico em Willard Quine PDF

Este documento discute três pontos principais da filosofia de Willard Van Orman Quine: (1) A tese da indeterminação da tradução, que afirma que as traduções entre línguas são indeterminadas devido aos múltiplos esquemas conceituais possíveis; (2) A concepção pragmática da semântica, segundo a qual critérios pragmáticos devem ser usados para decidir entre traduções concorrentes; (3) A tese do holismo semântico, que defende que o significado

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Este documento discute três pontos principais da filosofia de Willard Van Orman Quine: (1) A tese da indeterminação da tradução, que afirma que as traduções entre línguas são indeterminadas devido aos múltiplos esquemas conceituais possíveis; (2) A concepção pragmática da semântica, segundo a qual critérios pragmáticos devem ser usados para decidir entre traduções concorrentes; (3) A tese do holismo semântico, que defende que o significado

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INDETERMINAÇÃO DA TRADUÇÃO, PRAGMATISMO E

HOLISMO SEMÂNTICO EM WILLARD QUINE

Daniel Ramos dos Santos1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar a tese da indeterminação


da tradução, a concepção pragmática da semântica e a tese do holismo semântico na
filosofia de Willard Van Orman Quine. Primeiro, apresentarei a análise feita por Quine
de dois casos paradigmáticos em seus escritos: (1) o processo de aprendizagem de uma
língua nativa totalmente desconhecida por parte de linguistas e (2) o processo de
aprendizagem da língua mãe pelas crianças. Em seguida, mostrarei como através da
análise destes dois casos Quine chega aos três pontos acima enunciados. E finalmente,
mostrarei que para Quine, o único critério seguro, viável e aceitável para se decidir
entre a verdade ou falsidade de uma sentença é o critério de evidência empírica, mas
que, no entanto, as teorias produzidas por nós para explicar o mundo vão muito além
da evidência empírica dos sentidos, levando assim a uma indeterminação da tradução,
exigindo critérios pragmáticos e um holismo semântico.

Palavras-chaves: Willard Quine. Indeterminação da tradução. Pragmatismo e holismo


semântico.

Abstract: The present paper have how aim presenting the thesis of indeterminacy of
translation, the pragmatic conception of the semantic and thesis of the semantic holism
in Willard Van Orman Quine’s philosophy. First, i will present analysis made by Quine
of two cases paradigmatic in his writings: (1) the process of learning a native language
totally unknown by linguists and (2) the process learning of the mother language by
children. In then, i will to show how through the analysis of these two cases Quine
reaches to the three points set out above. Finally, i will to show that for Quine the only
criterion safe, feasible and acceptable to if decide between the truth or falsity of a
sentence is the criterion of empirical evidence, but which, however, the theories
produced by we to explain the world go much beyond of the empirical evidence of the
senses, leading so to a indeterminacy of translation, requiring criterions pragmatic and
a semantic holism.

Keywords: Willard Quine. Indeterminacy of translation. Pragmatic and semantic


holism.

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como principal base teórica o ensaio Falando de Objetos de
Willard Van Orman Quine, e a pretensão aqui, em um primeiro instante, será mostrar a
posição de Quine segundo a qual as traduções são indeterminadas, e que estamos
limitados em nosso próprio esquema conceitual. Tal limitação não se dá apenas nos

1
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe. Mestrando em Ética e Epistemologia pela Universidade
Federal do Piauí. Membro do Grupo de Estudos em Ciência e Conhecimento (Ge2C).

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casos de culturas distintas, mas também entre indivíduos de uma mesma cultura que
compartilham a mesma língua. Isto se dá devido ao grande ultrapassamento de nosso
discurso de mundo frente ao que Quine julga ser o único critério disponível e
confiável, o critério da evidência empírica.
Em seguida, tentaremos mostrar o ponto de vista quiniano de acordo com o
qual qualquer afirmação no sentido de que há alguma igualdade entre os esquemas
conceituais é mera conjectura. Desse modo, falar em compartilhar “mesma língua” não
passa de uma suposição arbitrária. Apesar da limitação, e consequentemente da
impossibilidade de contrastarmos nosso esquema conceitual com culturas diferentes
que serviriam como pano de fundo, podemos e devemos apreciar nossos esquemas de
uma perspectiva interna a eles, pois um ponto externo, de acordo com Quine, não é
possível.
Dada a indeterminação da tradução, será necessária, como mostraremos, a
adoção de critérios pragmáticos para o estabelecimento da comunicação. Será preciso a
assunção de uma relação de empatia entre as partes. Somente a partir dessa atitude
pode-se dar prosseguimento às traduções e ao desenvolvimento do aprendizado da
linguagem, muito embora tais processos jamais possam ser realizados de modo
absoluto, garantido. Teremos sempre que contar com a possibilidade de revisão, sendo
que jamais teremos como saber, por exemplo, qual a correta tradução, pois o mesmo
dado empírico pode sustentar traduções concorrentes. Decidiremos sempre
pragmaticamente observando aquela tradução que melhor servir a comunicação,
quando não mais servir a esse propósito a tradução será revisada ou abandonada.
Lembrando que o sentido de tradução aqui não se restringe apenas a casos de línguas
diferentes, mas a tradução em uma mesma língua, como no ato de consultar um
dicionário de português, por exemplo.
Por fim, tentarei mostrar o ponto de vista quiniano de que a linguagem pode
ser representada a partir da imagem de uma rede onde as sentenças formariam as
fibras que estariam intricadamente conectadas umas com as outras, e que em
consequência disso qualquer alteração em uma sentença individual é sentida em todo o
tecido linguístico de uma teoria, devido ao fato dos significados serem dados e
verificados somente no todo de uma teoria ou de uma linguagem. O seu holismo
semântico é caracterizado por essa imagem. Dentro desta perspectiva, Quine irá
defender que a menor unidade de significado é o todo de uma teoria. Uma sentença

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isolada, e menos ainda um terno, jamais poderá enfrentar o tribunal da experiência


sensível, daí a razão pela qual Quine defende um holismo semântico.

2 A INDETERMINAÇÃO DA TRADUÇÃO

2.1 O CASO DA TRADUÇÃO RADICAL


Para mostrar a indeterminação da tradução e que estamos limitados a adaptar
qualquer esquema conceitual alheio ao nosso próprio padrão de esquema conceitual,
vejamos o exemplo da tradução radical que Quine elabora. Esse exemplo é o caso de
linguistas que, para aprender a língua de uma tribo recém-descoberta, – língua esta
que não tem qualquer afinidade conhecida – contam eles apenas com dados
observacionais do comportamento das pessoas da tribo no momento em que estão
praticando a linguagem. Em um primeiro momento um dos linguistas reúne termos
nativos para designar objetos que são observados ao redor, pois é o único meio que
eles têm. Suponhamos que os membros da tribo utilizam um determinado termo
“gavagai” sempre que há um coelho presente. Um dos linguistas, então, decide
traduzir tal termo gentílico por coelho, no entanto, outro linguista, em tradução mais
cautelosa, poderia traduzir a dita expressão gentílica por “Eis aí um coelho, Aí temos
um coelho, Ei! Um coelho, Ei! Coelhice de novo” (QUINE, 1975, p. 123). Diante desse
leque de opções, como se chegar a uma decisão sobre qual a melhor ou a correta
tradução? O único critério, como vimos, é o da evidência empírica, visto que quando os
linguistas entram em contanto com os nativos a única ferramenta que têm a disposição
é a observação do comportamento dos mesmos, o problema é que esse mesmo critério
sustenta todas as traduções possíveis acima mencionadas, ao mesmo tempo em que
todas aquelas traduções possíveis acima mencionadas são logicamente incompatíveis
entre si, o que fazer, então?
Pode-se, em um segundo momento, considerar que essa diversidade de
traduções é tida como irrelevante para a língua dos nossos linguistas e decidir que o
termo nativo “gavagai” pode ser traduzido como uma sentença para anunciar coelhos,
mas isso somente é decidido em um sentido prático, ou em um sentido pragmático,
deixando margem para uma falibilidade. De acordo com Quine, desde o primeiro
momento, quando colecionam termos gentílicos para objetos circundantes, os
linguistas já estão impondo seus próprios padrões, e no segundo momento, quando se

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equaciona a expressão nativa ao termo coelho, ele está agindo da mesma forma, sem
qualquer garantia especial. Diz Quine:
Tal apelo a uma categoria de objetos não está garantida [...], pois
podemos argumentar com a indiferença. Dado que uma sentença
nativa diga que um tal e tal está presente e dado que a sentença seja
verdadeira quando e somente quando um coelho está presente, de
nenhum modo se segue que os tais e tais sejam coelhos. Eles poderiam
ser todos vários seguimentos de coelhos (QUINE, 1975, p. 123-124).

Para que possamos decidir sobre essas possibilidades de traduções precisamos,


segundo Quine, de um aparato de identidade e quantificação, pois não podemos se
quer decidir, por falta de evidência, que a expressão nativa tem a forma ‘um tal e tal
está presente’, visto que se poderia tranquilamente interpretar a dita expressão como
‘se manifesta coelhice no local’, um termo singular abstrato. Todavia se proceder de
modo tão cauteloso assim o linguista só conseguirá traduzir anunciações simplórias de
eventos correntes observáveis. Devemos requerer dele, dentro de uma escala de
razoabilidade, um manual de instrução que nos permita construir, aproximadamente,
uma sentença nativa que corresponda, também de modo aproximado, a qualquer nova
sentença de nossa língua. Cumprida esta tarefa, o linguista terá como decidir quais
expressões nativas faz referência a objetos, e dentro de um limite, a que espécie de
objetos elas se referem. No entanto, ele terá que decidir como acomodar expressões
idiomáticas de identidade e quantificação de sua língua na tradução de expressões
nativas de modo arbitrário. Em outros termos, terá que adaptar o esquema conceitual
gentílico ao seu.
Cessados os dados empíricos, o linguista poderá contar com sua criatividade,
estabelecendo conexões lógicas entre sentenças da língua nativa, como por exemplo,
descobrindo que alguém que está preparado para afirmar A está também preparado
para afirmar B e negar C, e assim sucessivamente. O que ele faz ao dar esse novo passo
é atribuir funções às palavras, e para testar essas atribuições pode-se verificar se elas
contribuem para a representabilidade, por exemplo, da sentença sobre coelhos de
acordo com as condições de verdade pré-detectadas, o que não foge de tomadas de
decisões arbitrárias sobre como acomodar as sentenças gentílicas a sua língua.

2.2 PRESOS EM NOSSOS ESQUEMAS CONCEITUAIS

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De acordo com Quine, não temos acesso ou não temos como determinar qual a
melhor tradução, já que são várias as possibilidades de se traduzir uma sentença, todas
sustentadas empiricamente, mas logicamente incompatíveis. Ele diz ainda que não
adianta o linguista se tornar bilíngue e vir a pensar como os membros da tribo, cuja
linguagem ele está pesquisando, pois, essa falta de acesso ao esquema conceitual alheio
se dá também entre pessoas de mesma língua,
mesmo nós que crescemos juntos e aprendemos português no mesmo
colo, ou em colos adjacentes, por nenhuma outra razão falamos de
modo semelhante senão porque a sociedade nos treinou de modo
semelhante num padrão de resposta verbal a indicações exteriores
observáveis (QUINE, 1975, p. 125).

Nós apenas conjeturamos ou supomos a mesmidade de nossos esquemas


conceituais, baseados nas circunstâncias públicas nossas e de nossos interlocutores.
Quando correlacionamos, por meio da regra simples da correspondência fonética,
nossas sentenças com as de outras pessoas e percebemos que nossas circunstâncias
públicas concordam com as das outras pessoas, então “supomos” que estamos
compartilhando da mesma espécie de esquema conceitual, e isto é tudo o que podemos
fazer, pois que outro critério teríamos para decidir a mesmidade de esquema
conceitual? Pergunta Quine. O caso do linguista com o gentil só difere devido ao fato
de o pesquisador ter uma tarefa mais laboriosa por que tem de ir às apalpadelas
correlacionando sentença com sentença até chegar a uma correlação geral, de modo
que tal correlação faça com que as circunstâncias públicas das afirmações e negações
do gentil combinem ou concordem de modo “razoável” com as do linguista.
Quine fala aqui também sobre o que ele chama de “modos provincianos de pôr
objetos”, o que, ao que parece, – dentre as possibilidades de interpretações a seguinte
indica ser a mais adequada – seria os modos particulares de cada pessoa falar de
objetos. Sobre este ponto, ele diz que há a crença de que tais modos seriam mais bem
apreciados a partir de um ponto externo a eles, contrastando-os com um pano de
fundo de culturas diferentes. No entanto, não há um ponto externo, afirma. Não temos
como transcender nosso padrão de pensamento. Sendo assim, qualquer apreciação ou
reparo em nosso padrão de pensar objetos tem e pode ser feito – e ao que parece, só
pode ser feito – de dentro de nosso próprio esquema conceitual.

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2.3 O PROCESSO DE APRENDIZADO DA LINGUAGEM POR PARTE DA


CRIANÇA.
Para um exame interno de nosso padrão de pensamento sobre objetos, Quine
utiliza o exemplo da criança, o qual, segundo ele, não difere em nada do caso do gentil.
O fato de a criança balbuciar as suas primeiras palavras não nos dá o direito de dizer
que ela está utilizando termos para coisas, isso só irá acontecer quando ela passar a
utilizar termos individuadores. Por enquanto, nesta primeira fase de aprendizagem da
linguagem, ela está fazendo uso apenas de ‘termos de massa’. Tais termos são os que
utilizamos para falar de água, por exemplo. Esses são termos para se dirigir a
entidades de referência contínua. Quando a criança aprende a balbuciar as palavras
mamãe, vermelho e água, ela não faz qualquer distinção entre estas palavras. Para ela é
“uma questão de aprender quanto do que ocorre em redor dela conta como a mãe ou
como vermelho, ou como água” (QUINE, 1975, p.126). Cada coisa dessas, cada vez que
reaparece para a criança, conta apenas como mais uma parte daquilo que lhe ocorre.
Será para ela: mais mamãe, mais vermelho e mais água indistintamente toda vez que ao
pronunciar estes termos ela requeira a presença de tais coisas ou que os pronuncie
sempre que estiver em presença delas.
Para nós adultos – desde que tenhamos um funcionamento adequado de nosso
aparelho intelectual – que já fazemos uso dos termos individuadores, o processo é
outro. Para nós, os termos mamãe, vermelho e água são coisas completamente
diferentes. Sempre que estivermos em face de tais coisas diremos ou pensaremos:
‘outra vez mamãe’, ‘outra coisa vermelha’ e ‘mais água’. No caso do último termo, por
se tratar de um termo de massa, sempre que reaparecer, ou requisitarmos uma porção
de água, iremos falar e pensar como ‘mais água’ porque será um termo de referência
continuada, será mais uma parte da mesma coisa de antes, e não uma coisa distinta da
anterior, o que não ocorre com mamãe e vermelho. Sempre que a mãe reaparecer será,
obviamente, uma nova aparição, ou seja, aparecerá novamente, e sempre que aparecer
outra coisa de cor vermelha, será outra coisa, mas sempre que aparecer outra porção de
água, num copo, por exemplo, será mais água, ou mais uma ocorrência da mesma coisa
‘água’.
Os termos individuadores, por sua vez, têm a função de designar um
determinado objeto integrado no espaço e no tempo. “Objetos físicos duráveis móveis,
idênticos de um tempo a outro e de um lugar a outro” (QUINE, 1975, p.127). Ao que

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parece, Quine quer afirmar aqui que a criança só passa a usar termos individuadores, e
consequentemente a falar de objetos, quando ela começa a utilizar-se do aparato de
identidade e quantificação. Segundo ele, para saber se a criança pegou realmente o
truque da individuação devemos induzi-la ao discurso sofisticado de, por exemplo,
“aquela maçã, não aquela maçã, uma maçã, mesma maçã, uma outra maçã, essas
maçãs” (QUINE, 1975, p.127). A partir desse discurso parece ficar claro o uso da
identidade e da quantificação, e a partir daqui pode-se dizer que a criança está usando
termos como termos e falando de objetos.
Como afirma Vidal, a fase inicial do aprendizado da linguagem por parte da
criança está vinculada a presença de estímulos físicos, e constitui apenas uma pequena
parte do processo de aprendizado da linguagem. Tal processo só irá se desenvolver
quando for atingida uma etapa mais complexa que a da interanimação das sentenças.
Nesta etapa as próprias sentenças servem de estimulação para o surgimento de outras
sentenças. Aqui, perde-se o vínculo entre discurso e evidência empírica, não mais se
sabe, nem se tem como saber, qual era o estímulo físico que estava na origem do
processo. Diz Vidal: “O discurso se desvincula de sua relação direta com a evidência
empírica e passa a depender de fatores linguísticos, lógicos culturais, do conjunto da
teoria de mundo em que as sentenças se inserem, o qual lhes confere significado,
referência e valor de verdade”. (VIDAL, 2006, p. 91).
As sentenças de observação possuem maior grau de aproximação com os dados
imediatos dos sentidos, porém, também estas são adquiridas através de processos que
ultrapassam em muito a ligação imediata com os dados de observação. Estes
enunciados de observação por mais que estejam próximos da evidência empírica, e por
mais que queiramos, não é uma resposta dada diretamente as estimulações do mundo
físico sobre nossas terminações nervosas. O conjunto de nossos enunciados empíricos
para responder às estimulações do mundo físico sobre nossas terminações nervosas
depende e muito de postulados culturais que são transmitidos durante o processo de
aprendizado da linguagem, e estes ultrapassam bastante as informações dos dados da
observação. São postulados culturais como identidade e diferença e espaço e tempo,
que não são inferidos da experiência de uma forma direta. A partir da fase de
interanimação das sentenças, segundo Quine, não se tem como distinguir no discurso o
que é relato de fato e o que invenção da raça humana, quando fala sobre o mundo e
sobre si.

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O discurso mostra-se, assim, irredutível aos dados da evidência sensível. Isto


ocorre tanto neste caso do aprendizado da linguagem por parte da criança quanto no
caso do aprendizado de uma língua totalmente desconhecida por parte de adultos,
como no caso dos linguistas, no exemplo da tradução radical. A observação destes dois
processos de aprendizado da linguagem mostra que o discurso transcende o critério de
evidência empírica, e esse, em ambos os casos, é o único disponível, confiável e
considerado válido por Quine. Sendo assim, como indaga Vidal, “como justificar a
possibilidade de se chegar a verdades, a diálogos intersubjetivos, a relacionar discurso
e realidade?” (VIDAL, 2006, p. 94).

3 EMPATIA E TRANSCENDÊNCIA
Embora o quadro descrito acima se mostre bastante desfavorável ao cenário das
traduções e para as comunicações intersubjetivas, o fato é que podemos observar que
na prática, de um modo ou de outro, as traduções e comunicação entre os indivíduos
continuam acontecendo. Quine não defende que fiquemos inertes e abortemos todos os
projetos nestas áreas até que se tenha um critério certo, até porque não há critério
algum de certeza disponível para nós, pois o único confiável é o da evidência empírica
e este nosso discurso transcende e muito, o que ele defende é que se reconheça a
falibilidade destes processos. Que encaremos de frente as nossas limitações e façamos
como na imagem da metáfora do marinheiro de Neurath, na qual explica que nosso
conhecimento é análogo a imagem de um barco em alto mar que, precisando de
reparos, e não havendo qualquer lugar para ancorar, a única saída é, de seu interior,
concertá-lo enquanto se navega, pois é preciso seguir viagem.
Após a fase behaviorista do processo de aprendizado da linguagem, onde o
aprendiz internaliza os primeiros termos e sentenças impulsionados pelos estímulos
físicos com a presença de objetos, como vimos, chega-se a uma nova fase, a de
interanimação dos enunciados, na qual sentença estimula sentença. A primeira fase
constitui apenas uma parcela mínima de todo o processo, é na segunda fase que há um
desenvolvimento enorme na aprendizagem. Nesta fase perde-se completamente o
contanto com os estímulos físicos, tornando-se impossível identificar o que é relato de
fato e o que é pura invenção humana. No desenvolvimento dessa segunda fase o
diálogo é uma ferramenta que tem papel decisivo. Diz Vidal: “é o diálogo que porá à
prova a performance do aprendiz. É através da interação dos locutores – um princípio

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pragmático – que vai muito além do mecanismo estímulo-resposta behaviorista, que o


processo de aprendizado da linguagem evolui” (VIDAL, 2006, p. 213).
Para que se dê o diálogo entre aprendiz e preceptor instala-se uma relação de
empatia entre ambos. A isto é acrescentado uma criatividade e poder de invenção que
levará o aprendiz ao ultrapassamento do cenário limitado dos dados sensíveis
produzidos pelas estimulações do início do processo. A interação dos locutores no
processo de aprendizado de qualquer linguagem é imprescindível. A radical
indeterminação dos discursos pela experiência é compensada por essa relação de
empatia entre os locutores. O aprendiz põe-se no lugar de seu preceptor e supõe que
este percebe o mundo do mesmo jeito que ele, mesmo não tendo acesso perfeito, em
nível de conhecimento, ao mecanismo fisiológico de percepção de nossos interlocutores
é necessário, para que o diálogo ocorra e, obviamente antes disso, o aprendizado da
linguagem, aderir a tal hipótese, no entanto, isso ultrapassa e muito os dados
empíricos. O mesmo acontece com o linguista, este, segundo Vidal,
é guiado pela empatia quando projeta, graças as suas hipóteses
analíticas, associações e esquemas gramaticais sobre o povo
desconhecido que observa, assumindo uma semelhança de percepções
e comportamentos entre e o nativo, convicção esta que transcende
suas observações empíricas. (VIDAL, 2006, p. 217).

Desse modo, parece seguro afirmar que Quine é partidário de um pragmatismo


semântico, uma vez que o processo de aprendizado da linguagem, tanto no caso de
adultos frente a uma língua totalmente desconhecida, como no caso de crianças, é
pressuposto o critério de empatia, que é, como vimos, um critério pragmático.

4 HOLISMO: A LINGUAGEM COMO UMA REDE E OS ENUNCIADOS COMO


FIBRAS DESTA REDE
Quine afirma que o conhecimento das condições estimulatórias adequadas de
uma determinada sentença não nos diz como entender a sentença no que toca a
existência de objetos, todavia, nos mostra o que deve contar como evidência empírica
pró ou contra a verdade da sentença. Não obstante, a evidência empírica que conta a
favor ou contra a verdade da sentença, vem também, consequentemente, contar como
evidência empírica a favor ou contra a existência dos objetos – quando falamos deles.
É especificamente neste ponto que reside uma das principais defesas de Quine,
a saber, a de que todo e qualquer enunciado está implicado ou é sustentado por dados

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empíricos, embora não direto e imediatamente. Quine entende que a linguagem é uma
enorme rede e que a infinidade de sentenças são as fibras dessa rede, as quais estão
intricadamente conectadas. Toda a periferia desta rede está em contato com os dados
empíricos. Como estão interligados dentro de um tecido de associações
intralinguísticas, qualquer mudança que ocorra em algum enunciado que esteja em
algum grau diretamente ligado a estimulações extralinguísticas, provocará alterações
em vários outros enunciados, ou seja, as alterações acontecerão na rede em conjunto, e
não em um enunciado isolado. Nesses casos se dá o que Quine chama de reverberações
através do tecido.
Os enunciados abstratos ou as suposições de objetos abstratos também entram
neste bojo. Eles estariam, segundo Quine, na parte central da rede. Nesta posição, eles
ficam no ponto mais distante das estimulações extralinguísticas. Formam o que Quine
chama de enunciados altamente teóricos. Todavia eles estão conectados a outros
enunciados que estão mais distantes do centro da rede, que, por sua vez, estão
conectados a outros mais distantes ainda do centro, e assim sucessivamente, até os
enunciados que estarão mais próximos das estimulações extralinguísticas,
os enunciados, existenciais ou outros, variam no modo mais ou menos
direto de que estão condicionados à estimulação não verbal.
Comumente, uma estimulação somente acionará nosso veredicto
sobre um enunciado porque o enunciado é uma fibra na rede verbal
de alguma teoria complexa de que outras fibras estão mais
diretamente condicionadas àquela estimulação. A maioria de nossos
enunciados corresponde assim a reverberações através do tecido de
associações intralinguísticas, mesmo quando também condicionados
diretamente, em algum grau, a estímulos extralinguísticos.
Enunciados altamente teóricos são enunciados cuja conexão com a
estimulação extralinguística consiste de modo praticamente exclusivo
nas reverberações através do tecido. (QUINE, 1975, p.131-132).

Dessa forma, todo e qualquer enunciado tem sustentação empírica, seja


próximo às estimulações não verbais ou indiretamente por meio das reverberações ou
interanimação das sentenças dentro do tecido linguístico.

5 CONCLUSÃO
Vimos, portanto, que Quine defende uma indeterminação da tradução. Esta tese
tem sustentação a partir da análise do processo de aprendizado da linguagem. Essa
análise é feita a partir de dois casos: (1) o caso dos linguistas que tentam fazer a

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tradução de uma língua completamente desconhecida e (2) o caso da criança que tenta
aprender a sua língua materna.
Em ambos os casos, na fase inicial o aprendizado se dá à custa de um processo
behaviorista. Tanto em (1) como em (2) o aprendizado tem início através de
estímulo/resposta. Os linguistas quando estabelecem os primeiros contatos com os
nativos contam eles apenas com o comportamento linguístico dos mesmos em
circunstâncias publicamente observáveis, após essa fase entra em cena a criatividade
dos linguistas para preencher as lacunas deixadas pelos dados empíricos. Desse modo,
para realizar a tradução, são obrigados a fazerem uma suposição que ultrapassa e
muito o critério de evidência empírica, o único que Quine considera confiável. Tal
suposição é a de que os nativos percebem o mundo da mesma forma que eles, e isso é
feito por meio de uma relação de empatia entre ambas as partes. No caso da criança ela
contará, em um primeiro momento, apenas com os estímulos da presença dos objetos e
de sons produzidos por seu preceptor. Em um segundo momento, para que o processo
de aprendizado se desenvolva, ela também será obrigada a fazer a mesma suposição
do caso anterior que, por sua vez, irá pressupor uma relação de empatia entre ela (a
criança) e seu preceptor.
Dada a transcendência do único critério seguro, o de evidência empírica, ocorre
que a tradução é indeterminada, pois, os mesmos dados empíricos, como vimos no
caso da tradução do termo “gavagai’, podem sustentar sentenças distintas e
logicamente incompatíveis. Só chegamos a uma decisão por meio de critérios
pragmáticos, pela empatia entre os falantes.
Por fim, as sentenças, por sua vez, ganham significado dentro de uma rede
linguística, na qual elas estão interconectadas e são dependentes uma da outra. Sendo
assim, segundo Quine, a menor partícula significativa é o todo de uma teoria, eis,
então, a sua tese do holismo semântico. De acordo com essa perspectiva os esquemas
conceituais são como uma rede onde as sentenças seriam as fibras dessa rede.
Qualquer alteração no sentido de uma sentença isolada ocasionaria uma mudança, se
não em toda a rede, pelo menos em boa parte dela.

REFERÊNCIAS
QUINE, W. V. O. Relatividade ontológica e outros ensaios. São Paulo: Abril Cultural,
1975.

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VIDAL, Vera L. C. O papel da empatia para a teoria da verdade de Quine. In: VIDAL,
Vera L. C.; CASTRO, Susana (orgs.). A questão da Verdade: da metafísica moderna ao
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Interdisciplinar Ano 5, v. 10, n. especial 2010 – ISSN 1980-8879 | p. 151-162

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