RESEARCH CENTRE
FOR THE FUTURE OF LAW
LISBOA
www.uceditora.ucp.pt
ISBN: 9789725405710
JUSTIÇA
ENTRE
GERAÇÕES
Título Justiça entre Gerações
Perspetivas Interdisciplinares
Coodenadores Jorge Pereira da Silva
Gonçalo de Almeida Ribeiro
Coleção Investigação
© Universidade Católica Editora
Revisão Editorial António Brás
Capa Ana Luísa Bolsa | 4 ELEMENTOS
Conceção gráfica Sersilito-Empresa Gráfica, Lda.
Depósito Legal 432262/17
Data outubro 2017
Tiragem 500 exemplares
ISBN 9789725405710
Universidade Católica Editora
Palma de Cima 1649‑023 Lisboa
Tel. (351) 217 214 020 | Fax. (351) 217 214 029
[email protected] | www.uceditora.ucp.pt
JUSTIÇA ENTRE GERAÇÕES
Justiça entre gerações : perspetivas interdisciplinares / coord. [de]
Jorge Pereira da Silva e Gonçalo de Almeida Ribeiro. – Lisboa
: Universidade Católica Editora, 2017. – 564 p. ; 23 cm. –
(Investigação).
– ISBN 9789725405710
I – SILVA, Jorge Pereira da, coord. II – RIBEIRO, Gonçalo de
Almeida, coord. III – Col.
CDU 342.7
JUSTIÇA
ENTRE
GERAÇÕES
Perspetivas interdisciplinares
COORDENADORES
Jorge Pereira da Silva | Gonçalo de Almeida Ribeiro
UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA
Lisboa 2017
Índice
7 Pedro Pita Barros
Prefácio
9 Jorge Pereira da Silva | Gonçalo de Almeida Ribeiro
Introdução
I. Fundamentos Jurídico-Filosóficos da Justiça
Intergeracional
19 Elsa Vaz de Sequeira
Direitos sem sujeito?
41 André Santos Campos
Teorias da Justiça Intergeracional
70 Miguel Morgado
A Comunidade Política e o Futuro
II. Teoria Constitucional
93 Jorge Pereira da Silva
Justiça Intergeracional:
Entre a Política e o Direito Constitucional
138 Gonçalo de Almeida Ribeiro
O Problema da Tutela Constitucional das Gerações Futuras
161 Miguel Nogueira de Brito
Democracia e Revisão Constitucional
187 Catarina Santos Botelho
A Tutela Constitucional das Gerações Futuras:
Profilaxia Jurídica ou Saudades do Futuro?
6 ÍNDICE
III. Políticas Públicas
221 J. Albano Santos
A Dívida Pública como Problema Intergeracional
261 Maria d’Oliveira Martins
Ensaio sobre a Solidariedade Intergeracional e sua Incidência
na Despesa Pública
290 Bruno Pinto
Breves Noções de Sustentabilidade Ecológica
323 Carla Amado Gomes
Precaução e Proteção do Ambiente: Da Incerteza
à Condicionalidade
352 Nazaré Costa Cabral
A Sustentabilidade da Segurança Social
397 Gonçalo Saraiva Matias
Demografia, Migrações e Sustentabilidade Intergeracional
420 António Nunes de Carvalho
Justiça Intergeracional e Mercado de Trabalho:
Apontamentos para uma Aproximação Juslaboral
IV. Política Empresarial
469 Evaristo Mendes
Governança Societária e Justiça Intergeracional
Prefácio
Pedro Pita Barros
A Fundação Francisco Manuel dos Santos tem como um dos seus
princípios fundacionais contribuir para uma sociedade mais informada.
E por ser mais informada, uma sociedade mais livre e melhores polí‑
ticas públicas.
Numa sociedade envelhecida, e crescentemente envelhecida, com
um crescimento económico anémico, a distribuição de recursos entre
gerações assume igualmente uma maior visibilidade.
As políticas públicas e o próprio enquadramento constitucional afetam
essa distribuição de recursos, seja entre diferentes gerações num mesmo
momento do tempo ou entre gerações presentes e gerações futuras.
O primeiro tipo de problemas de distribuição de recursos surge, por
exemplo, com sistemas de pensões mais generosos em regime de repar‑
tição, onde as pensões de hoje são pagas por contribuições ou pensões
dos atuais trabalhadores.
O segundo tipo de problemas de distribuição de recursos está presente
quando se utilizam recursos hoje que deixam de estar disponíveis para
as gerações futuras.
Em ambas as situações se colocam questões de direitos e deveres,
questões de quadros legais que reflitam os valores da sociedade quanto
a estas relações entre gerações.
Os textos constantes deste volume trazem alguma ordem à discussão,
nalguns pontos, e uma saudável desordem noutros, obrigando a uma
reflexão que se pretende útil. São apresentadas posições e colocados
dilemas para a definição da ordem constitucional, começando pelos fun‑
damentos do que possam ser noções de justiça intergeracional e passando
pelas suas implicações para o quadro mais geral (constitucional). Por
exemplo, existe um sujeito futuro (geração vindoura) que possa e deva
ser considerado com direitos no momento presente? E quem deve intervir
na definição desse quadro? Como é que a sociedade pode conhecer os
seus valores e refletir no seu quadro global de direitos e obrigações?
Há posteriormente a visita a diversas políticas públicas com fortes
implicações na distribuição de recursos entre gerações – a dívida e a
8 PEDRO PITA BARROS
despesa pública, a dimensão ambiental, a dimensão de um mercado de
trabalho em mutação e a dimensão da proteção em idade avançada, a
segurança social e as pensões.
Não são discussões que encerram os temas. São antes discussões
que iniciam um percurso de debate que deverá interessar a todos os
cidadãos, qualquer que seja a geração a que pertençam.
Lisboa, 17 de julho de 2017
Introdução
Jorge Pereira da Silva | Gonçalo de Almeida Ribeiro
Há inúmeras ações ou omissões presentes que se repercutem no
futuro: consumo de recursos não renováveis, investimento de retorno
a muito longo prazo, inovação que provoca efeitos tendencialmente
irreversíveis na sociedade, antecipação de ganhos futuros, entre muitos
outros. Esta dependência das gerações futuras em relação às escolhas
e comportamentos da geração presente intensificou-se desde meados
do século xx, em virtude de desenvolvimentos sem precedentes nos
domínios tecnológico, demográfico e social. A questão que estes factos
suscitam é a de saber se as gerações presentes têm agido com justiça ou
cumprido as suas obrigações em relação às gerações futuras.
Esta questão é particularmente relevante na sociedade portuguesa
contemporânea, confrontada com graves problemas demográficos e
económicos, em cujo espaço público tem vindo a ser gradualmente
introduzido, em especial nos últimos anos, o debate sobre a equidade
intergeracional e a sustentabilidade social. Todavia, tal debate não
repousa no lastro de informação rigorosa e reflexão crítica adequado à
complexidade da matéria. Ora, a cidadania democrática não se esgota no
exercício periódico do direito de voto ou no gozo passivo de informação
e de opiniões oficiais ou prestigiadas. Ela pressupõe a possibilidade e
disponibilidade dos cidadãos para participarem na formação da opinião
pública e exercerem uma vigilância livre, exigente e responsável sobre
o comportamento das autoridades. Esta obra coletiva é um pequeno
contributo para mitigar a escassez de recursos intelectuais para se fazer
o debate público neste domínio, com vista, não apenas a melhorar a
qualidade das políticas, mas sobretudo a promover a consciência cívica
da sua natureza e relevância.
A obra está dividida em quatro partes: fundamentos filosóficos, teoria
constitucional, políticas públicas e empresariais. Os autores são distintos
cultores de várias disciplinas relacionadas com as temáticas em causa, da
filosofia política à história ambiental, passando pela economia e finanças,
mas sem prejuízo da prevalência de contributos assegurados por juristas
10 JORGE PEREIRA DA SILVA | GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
de diferentes áreas, dada a formação académica dos coordenadores e a
vocação da unidade de investigação de que são membros
*
Um dos argumentos mais utilizados para negar a possibilidade de
direitos das gerações vindouras, e dessa forma recusar a eventual res‑
ponsabilidade da geração presente relativamente às gerações futuras,
é o da inexistência dos respetivos sujeitos. Segundo este raciocínio, a
falta do sujeito impede a constituição do direito e a inexistência deste
determina a ausência de um correlativo dever de respeito. No primeiro
capítulo deste volume, Elsa Vaz de Sequeira procura determinar, por
um lado, se efetivamente não podem existir direitos sem sujeito e, por
outro, se não é possível haver um dever genérico de respeito ainda que
não se tenha constituído qualquer correlativo direito subjetivo concreto.
Embora a justiça seja assunto explorado pela filosofia desde os seus
primórdios, apenas recentemente o problema do prolongamento temporal
do valor por várias gerações foi reconhecido como merecedor de maior
atenção. Nascida das discussões sobre as exigências de estabilidade dos
constitucionalismos modernos e sobre os ditames da economia pública
quanto à extensão da dívida contraída, a temática da justiça intergeracional
acabou por desenvolver-se como resposta a desafios históricos emer‑
gentes, para os quais as tradicionais teorias da justiça não encontraram
soluções adequadas. Com o alargamento do alcance da ação humana ao
ponto da entrada numa era do antropoceno, cujas consequências mais
significativas se repercutirão em gerações ainda não nascidas, a reflexão
sobre a justiça nas relações entre diferentes gerações reveste-se da maior
importância teórica e prática. No seu texto, André Santos Campos pro‑
cura delinear um breve panorama das teorias da justiça intergeracional
que se foram desenvolvendo nas últimas décadas. Numa primeira parte,
delimita o que se deva entender por teorias da justiça intergeracional.
Numa segunda parte, identifica e articula as características específicas
destas teorias. Por fim, procura resumir o que defendem algumas das
principais teorias da justiça intergeracional, dando particular atenção
à teoria da reciprocidade indireta, ao utilitarismo intergeracional e às
diversas conceções de igualitarismo, nomeadamente o comunitarista, o
libertarista e o de inspiração ralwsiana.
A temporalidade é constitutiva de qualquer comunidade política.
Na medida em que ela se determina por um «projeto», há uma relação
da comunidade política com o futuro que é decisiva, quer para a sua
INTRODUÇÃO 11
autointerpretação quer para as possibilidades que se abrem e fecham à
coletividade e aos membros que a compõem. No apogeu da moderni‑
dade, essa discussão ficou resumida à questão do «progresso», o que
se veio a revelar redutor. Importa, pois, tentar perceber como o futuro
é estruturante do passado e do presente da comunidade política, e, do
ponto de vista prático, como pode a comunidade política preparar-se para
esse futuro. Esse é o tema do capítulo de Miguel Morgado nesta obra.
São diversas as políticas públicas que, nos tempos mais recentes, têm
surgido no espaço mediático sob o escrutínio de uma ideia de justiça
entre gerações. Endividamento público, parcerias público-privadas,
segurança social, mercado de trabalho, ambiente e energia são ape‑
nas algumas das áreas temáticas a respeito das quais se receia que as
gerações futuras – abrangendo nesta noção tanto as gerações que ainda
não existem, quanto as que ainda não acederam a certo direito, como
inclusivamente as gerações mais jovens – não terão as mesmas opor‑
tunidades das suas antecessoras. É naturalmente sobre a Constituição,
enquanto texto normativo destinado a impedir o abuso do poder e a
garantir os direitos fundamentais, que recai a expectativa de limitar a
possibilidade de as gerações presentes transferirem para o futuro alguns
dos encargos decorrentes das políticas que desenvolvem hoje no seu
interesse, reduzindo a autonomia das gerações futuras para tomarem as
suas próprias opções e o próprio acervo de direitos que poderão exercer.
No capítulo da sua autoria, Jorge Pereira da Silva argumenta que,
independentemente dos afloramentos concretos do princípio da justiça
entre gerações nos textos constitucionais, os direitos fundamentais que
integram a essência do constitucionalismo moderno parecem incorpo‑
rar uma dimensão intergeracional a se: subjetivamente, eles fluem de
forma contínua entre gerações, sem ruturas ou descontinuidades; mas
numa perspetiva objetiva eles coexistem no tempo, em termos tais que
os direitos das gerações futuras interagem hoje mesmo com os direitos
da geração presente, limitando o seu alcance e o seu exercício.
A proteção constitucional das gerações futuras é geralmente
apresentada como uma resposta natural à tendência crónica da democra‑
cia representativa para o imediatismo. Dada a incapacidade do processo
político, controlado pela geração presente, de salvaguardar os interesses
das gerações vindouras – tanto mais quanto mais distante o futuro –,
justifica-se a imposição de limites constitucionais neste domínio. O pro‑
blema é geralmente visto a partir do ângulo da autovinculação: o povo
encarnado no processo político ordinário é como Ulisses encantado
12 JORGE PEREIRA DA SILVA | GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
pelas sereias – incapaz de agir racionalmente –, pelo que é sensato que
o povo encarnado no processo constituinte, lúcido e sereno, proceda
como Ulisses quando pede à sua tripulação que o prenda ao mastro
do navio. Porém, na sua contribuição para este volume, Gonçalo de
Almeida Ribeiro procura demonstrar que esta analogia sedutora não é
isenta de defeitos substanciais. Os problemas da justiça intergeracional
são complexos e controvertidos, pelo que se coloca a questão de saber
se é prudente e legítimo que a sua resolução seja avocada pelo legislador
constituinte – elevada para o plano constitucional –, em vez de decorrer
do regular funcionamento dos mecanismos de formação e renovação da
vontade coletiva próprios do processo político democrático.
O capítulo da autoria de Miguel Nogueira de Brito visa questionar
a ideia de que exista um direito dos cidadãos a reunir em assembleias
populares com o propósito de rever a Constituição, mesmo à margem
das disposições que regulam o procedimento de revisão constitucional,
ou que a conceção moderna da democracia envolva necessariamente
um elemento «populista» expresso na participação necessária de todos
os eleitores em certas decisões fundamentais da comunidade política.
A tese de que deve permanecer aberta a possibilidade de o povo ser
chamado a pronunciar-se diretamente sobre as questões mais relevantes
da vida política, não pode ser defendida, segundo o Autor, com base
na sua pretensa proximidade da ideia moderna de democracia, tendo na
sua raiz uma visão deturpada das origens desta última. Acresce que essa
tese pode enfraquecer a força das normas constitucionais destinadas a
salvaguardar os direitos das gerações futuras.
Catarina Santos Botelho defende que, independentemente das
premissas éticas, morais, filosóficas, sociológicas, mundividenciais,
entre outras, que possam justificar a tutela das gerações futuras, a ordem
jurídica não pode assentar numa lógica exclusivamente sincrónica. Seja
qual for a estratégia de proteção adotada, o importante será não cair
nos extremos do excesso de tutela, que possa manietar a liberdade das
gerações futuras, ou do défice de tutela, que deixe as gerações vindouras
inteiramente à sua sorte. Numa perspetiva de jure condendo, a Autora
defende ser pertinente alterar o texto constitucional português e nele
consagrar, de forma cristalina, a tutela das gerações futuras.
O modo como, em cada momento, uma sociedade decide usar os seus
meios disponíveis tem, regra geral, reflexos na qualidade de vida das
gerações futuras. Daí que a equidade intergeracional seja uma antiga
exigência que reclama dos decisores políticos uma afetação de recursos
INTRODUÇÃO 13
que pondere devidamente os interesses dos vindouros. Ora, a dívida
pública é um tópico crucial nesta matéria, na medida em que aquela
representa o instrumento básico para a distribuição do custo do capital
coletivo da nação pelas várias gerações que dele beneficiam. De há muito,
porém, que a dívida pública está envolta numa viva controvérsia onde
mitos e realidades se cruzam com igual firmeza, quantas vezes ao sabor
de meras conveniências ideológicas. O texto de José Albano Santos
passa em revista os principais argumentos com que, de ambos os lados,
se alimenta essa polémica, no intuito de contribuir para a formação de
um juízo criterioso neste domínio.
No capítulo da sua autoria, Maria d’Oliveira Martins debruça-se
sobre o impacto que a solidariedade entre gerações tem no plano jurídico‑
-financeiro, dando resposta, essencialmente, a duas questões. A primeira
é a de saber se as gerações presentes devem sacrificar o seu bem-estar
em benefício do porvir. A segunda é a de saber que gerações presentes
e futuras são aquelas a que a Constituição oferece proteção: serão ape‑
nas as nacionais ou também as estrangeiras? A partir destas questões,
ensaiam-se os contornos da prioridade ao presente e estabelecem-se as
prioridades entre as diferentes gerações nacionais e estrangeiras, tal
como se desenham no plano constitucional.
O texto de Bruno Pinto procura definir sustentabilidade ecológica
ou ambiental, ilustrando a importância de serviços de ecossistema como
a reciclagem de ar e água, a polinização ou a produção de alimento, e
pôr em evidência a sua atual degradação. Assim, são incluídos estudos
globais que apontam para a degradação de alguns valores naturais,
havendo referência a ameaças específicas como a destruição do habitat,
as alterações climáticas ou a escassez de água. Tendo em conta que a
nossa economia é baseada no uso sustentável desses valores naturais,
o texto reforça a ideia de que devemos assegurar a sua viabilidade a
médio prazo para evitar consequências negativas no futuro.
Carla Amado Gomes apresenta uma análise das fragilidades e virtudes
da ideia de precaução. Por um lado, sublinha a imprecisão da noção nos
textos normativos, nacionais e internacionais, que gera posicionamentos
erráticos dos tribunais e utilizações abusivas da parte dos responsáveis
políticos. Por outro lado, o facto de a precaução entroncar no conceito
de risco tecnológico alerta para a necessidade de o avaliar e gerir dina‑
micamente no contexto de decisões tomadas em cenários de incerteza.
Agir de acordo com uma lógica de precaução constitui, no entender da
Autora, um importante penhor de paz social no presente e de testamento
14 JORGE PEREIRA DA SILVA | GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
político ante os vindouros. A metodologia de ponderação de interes‑
ses em que se traduz reveste uma inarredável dimensão prospetiva, que
sustenta a responsabilidade (ética) por escolhas que podem hipotecar
irreversivelmente as opções das gerações futuras.
Na sua contribuição para este volume, Nazaré Costa Cabral
começa por relacionar as noções de sustentabilidade da segurança
social e de justiça entre gerações. De seguida, articula o problema da
sustentabilidade dos Estados de bem-estar contemporâneos com a neces‑
sidade de respeitar os direitos sociais (fundamentais), em função da sua
densidade, evidenciando as tensões que hoje se descortinam nessa arti-
culação. Analisa depois, especialmente, o desafio da sustentabilidade da
segurança social (e em particular do seu sistema de pensões), à luz das
várias propostas de reforma e de modelos alternativos que nas últimas
décadas têm vindo a ser concretizados. Finalmente, a Autora assinala
que, nos últimos anos, muito por força da influência do modelo sueco
de contas «nocionais», os sistemas de pensões – mesmo que mantendo
a técnica de repartição (pay-as-you-go) – têm evoluído no sentido de
acomodar automaticamente os efeitos da demografia e da economia
no comportamento das variáveis da segurança social, seja do lado da
receita seja do lado da despesa, assim procurando, em cada momento e
para futuro, garantir o respetivo equilíbrio
A sustentabilidade intergeracional das sociedades europeias e do seu
Estado social dependem, em larga medida, da capacidade de impor uma
correta política migratória. Essa imposição é cada vez mais difícil em
face das reações populistas e xenófobas de muitos países. Segundo Gon‑
çalo Matias, numa sociedade envelhecida, só a atração de imigrantes
permite essa sustentabilidade, seja no plano das relações familiares, no
cuidado aos idosos dependentes ou, no plano mais geral, na sustenta‑
bilidade das finanças públicas, dos sistemas de segurança social e do
próprio Estado social.
O texto de António Nunes de Carvalho articula o tema da justiça
intergeracional com uma reflexão sobre os impasses atuais do Direito
do Trabalho. Parte da construção do paradigma juslaboral clássico e da
sua crise, passando, depois, ao tratamento genérico das circunstâncias
que suscitaram, nas últimas décadas, a eclosão (ou a recuperação) do
debate sobre a justiça intergeracional, relacionando-as com as vicissi‑
tudes específicas do ordenamento laboral e aferindo o seu impacto no
projeto regulativo do Direito do Trabalho. A partir daqui, deixam-se
bases para a discussão da questão da justiça intergeracional numa pers‑
INTRODUÇÃO 15
petiva juslaboral, tomando-a como vetor de política legislativa e como
tópico argumentativo.
A governança societária (corporate governance) é, genericamente, um
conjunto articulado de estruturas, regras de competência e funcionamento,
normas de comportamento, princípios, recomendações, incentivos e boas
práticas, aplicáveis a uma sociedade comercial ou nela observáveis, tendo
como objetivo contribuir para otimizar o seu funcionamento e o exercí‑
cio do seu objeto, de forma sustentável e, no longo prazo, levando em
consideração a respetiva função económico-social geral. Os instrumentos
de «governança societária» não estão, em geral, pensados para promover
a justiça intergeracional. Porém, como argumenta Evaristo Mendes
no seu texto, deles podem resultar benefícios ou efeitos positivos neste
domínio e um papel coadjuvante na efetividade do sistema de proteção
jurídica existente. Esta conclusão, segundo o autor, é secundada por
uma análise baseada no texto constitucional.
*
Esta obra é o primeiro passo de um ambicioso e inovador programa de
investigação dedicado à justiça intergeracional, desenvolvido no âmbito
do Católica Research Centre for the Future of Law. A sua execução foi
integralmente financiada e apoiada de diversas formas pela Fundação
Francisco Manuel dos Santos, sem prejuízo da liberdade dos autores e
da independência da coordenação.
Os coordenadores agradecem à Fundação, nas pessoas de Pedro
Pita Barros, coordenador dos projetos na área de Política Social, e de
Pedro Magalhães, o diretor científico da FFMS, o patrocínio que deu
a este projeto.
Um justo agradecimento é ainda devido a todos os autores pelo con‑
tributo imprescindível que deram, através da sua participação nesta obra,
para a realização do programa de investigação que com ela se iniciou.
Por último, agradecemos ao nosso colega Armando Rocha pela
competente colaboração prestada na fase final deste projeto.
I.
Fundamentos Jurídico-Filosóficos
da Justiça Intergeracional
Direitos sem sujeito?
Elsa Vaz de Sequeira
Teorias da Justiça Intergeracional
André Santos Campos
A Comunidade Política e o Futuro
Miguel Morgado
Direitos Sem Sujeito?
Elsa Vaz de Sequeira*
1. Colocação do problema
I. Não raro questiona-se se as atuações levadas a cabo pela geração
presente não poderão constituir em certas circunstâncias uma violação
ilícita dos direitos da geração vindoura. Em causa estão os atos ou as
decisões cujos efeitos negativos irão ser sentidos por pessoas que ainda
não existem, ameaçando ou limitando as suas possibilidades de futuro,
mormente no que respeita à integridade física, ao livre desenvolvimento
da personalidade, ao ambiente, à saúde e à liberdade de decidir sobre o
destino das suas vidas.
Numa ótica de responsabilidade, dir-se-á que o dano é futuro, mas o
facto ilícito e culposo é presente. Para que este raciocínio esteja correto,
é necessário demonstrar desde logo a ilicitude da ação. Ora é aqui que
surge o problema objeto deste artigo.
II. Discute-se se a ilicitude se traduz na violação de um direito
subjetivo ou de um interesse juridicamente protegido – como parece
decorrer da letra do artigo 483.º do Código Civil – ou, pelo contrário, no
incumprimento de um dever – seja um dever genérico de respeito seja um
dever especial de prestar –, como se afigura ser a solução mais rigorosa
do ponto de vista dogmático, sobretudo por um imperativo de coerência
entre responsabilidade por ação e responsabilidade por omissão, por um
lado, e entre ilicitude civil e ilicitude penal, por outro.
Independentemente da visão preconizada sobre esta querela concep‑
tual, a verdade é que amiúde se recusa qualificar os factos que estão na
base das chamadas “violações dos direitos das gerações futuras” como
ilícitos, dada a alegada inexistência em tais casos de um direito violado
* Professora Auxiliar da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade
Católica Portuguesa, instituição onde se licenciou (1996), obteve o grau de Mestre (2004)
e de Doutor (2014). Coordenadora do Católica Research Centre for the Future of Law.
Tem publicado e desenvolvido investigação nas áreas do Direito Civil e do Direito
Penal, em particular no domínio da colisão de direitos e da contitularidade de direitos.
20 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
ou, na perspetiva oposta, de um dever genérico de respeito incumprido.
Segundo este raciocínio, as condutas em apreço não são ilícitas porque,
pura e simplesmente, não vigora nenhuma situação jurídica – ativa ou
passiva, consoante a conceção – passível de ser transgredida.
III. Este pensamento assenta na interpenetração de dois silogismos.
O primeiro é comum a ambas as perspetivas, o segundo diverge consoante
a conceção de ilicitude que se perfilhe.
O primeiro silogismo vem dizer:
––Primeira premissa: Não há direitos sem sujeito;
––Segunda premissa: As gerações futuras, precisamente por serem
constituídas por pessoas futuras, não têm existência no presente;
––Conclusão: Não há direitos das gerações futuras.
O segundo silogismo, por seu turno, veste diferente roupagem con‑
forme se identifique a ilicitude com a violação de um direito subjetivo
ou com o incumprimento de um dever que, no caso em análise, pelas
suas características, seria necessariamente um dever genérico de respeito.
Assim, quando se compreende a ilicitude como a violação de uma
situação ativa, o silogismo assume a seguinte forma:
––Primeira premissa: A ilicitude consiste na violação de um direito
subjetivo;
––Segunda premissa: Não há direito subjetivo (violado);
––Conclusão: O facto não é ilícito.
Se, pelo contrário, se reconhece a ilicitude como a infração de um
dever, a configuração do silogismo nas situações em exame já será esta:
––Primeira premissa: A ilicitude consiste no incumprimento de um
dever genérico de respeito;
––Segunda premissa: Não há dever genérico de respeito, por não
existir um direito subjetivo a respeitar;
––Conclusão: O facto não é ilícito.
IV. No fundo, estes silogismos assentam na ideia de que não há
direitos sem sujeito. Por não haver sujeito, não há direito; por não haver
direito, não há ilicitude. Ou, de outro prisma, por não haver sujeito, não
DIREITOS SEM SUJEITO? 21
há direito; por não haver direito, não há dever genérico de respeito; por
não haver dever genérico de respeito, não há ilicitude.
Pois bem, aquilo que interessa descortinar é, por uma banda, se efe‑
tivamente não podem existir direitos sem sujeitos e, por outra banda, se
não é possível haver um dever genérico de respeito pese embora o direito
subjetivo a respeitar ainda não se ter constituído em concreto.
V. Antes de se examinar as questões enunciadas, apenas um brevís‑
simo apontamento de ordem semântica. Quando se refere os direitos das
gerações futuras ou se avalia os atos da geração presente em relação à
geração vindoura não se está evidentemente a erigir as gerações – atual
ou futura – à categoria de sujeito jurídico (coletivo). Razões de econo‑
mia terminológica e de simplicidade de linguagem justificam que, em
vez de se escrever “direitos ou deveres das pessoas atualmente vivas” e
“direitos das pessoas (ou tipos de pessoas) que irão nascer no futuro”,
normalmente se opte pela versão sincopada que tem estado a ser utilizada
neste texto. (Sobre a noção de geração futura, concretamente, se esta
expressão designa grupos futuros, indivíduos futuros ou tipos de pessoas
futuras, cf. Herstein, 2009, pp. 1173 et seq.)
2. Direitos sem sujeito
2.1. Generalidades
I. O problema dos direitos sem sujeito é algo que remonta ao Direito
romano, mais concretamente à figura da herança jacente. Com efeito,
resulta do Corpus Iuris Civilis, mais concretamente do Digesto – §§ 1
D 1, 8; 3 pr D 15, 1 e 13, 5 D 43, 24 –, que os juristas da época enten‑
diam que, durante o período que mediava entre a morte do de cuius e a
aceitação da herança por parte dos herdeiros, os direitos integrados no
caudal relicto não tinham efetivamente sujeito. A julgar pelas fontes, era
juridicamente admissível a subsistência dos direitos do falecido enquanto
não surgisse um novo titular.
II. No Direito português, a questão coloca-se igualmente a propósito
da herança jacente, mas também dos títulos ao portador abandonados
enquanto não forem adquiridos por alguém e das doações ou suces‑
sões a favor de nascituros ou concepturos. É de frisar, no entanto, que,
contrariamente aos jurisconsultos romanos, a doutrina nacional tem-se
22 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
mostrado muito dividida quanto a este tema, havendo um esforço grande
por parte de alguns autores para explicar as situações em estima sem o
recurso à noção de direitos sem sujeito.
III. Particularmente sensível a este problema é o Direito alemão, o
qual se empenhou muito seriamente em impedir o surgimento de situa‑
ções desta natureza. Isto mesmo explica o sistema sucessório germânico,
em que vigora a regra da aceitação automática, de maneira a evitar a
jacência da herança (Karsten Schmidt, 1991, p. 497; Wolf & Neuner,
2012, p. 217; Brox & Walker, 2015, p. 268). Ainda assim, hipóteses
há em que a pergunta sobre a admissibilidade de direitos sem sujeito
se impõe. É o que acontece, nomeadamente, no caso de o herdeiro ser
um nascituro, pois a ficção estabelecida no § 1923, Abs. 2, em virtude
da qual o nascituro se tem por nascido antes da morte do de cuius, não
parece suficiente para afastar a dúvida sobre a existência de uma efetiva
titularidade dos direitos do falecido afetos ao nascituro durante o período
que medeia entre a morte daquele e o nascimento deste (cf., no mesmo
sentido, §§ 2043 e 2108, Abs. 1, do BGB). Tal-qualmente questiona-se
se, nas deixas testamentárias a concepturos, os direitos integrados nos
legados não permanecerão sem sujeito até ao nascimento do legatário (cf.
§ 2178 do BGB; cf. ainda § 1912 do BGB). Idêntica questão se coloca
nas situações de promessa a terceiros, sempre que o promissário morra
antes de o terceiro beneficiário da promessa nascer (cf. § 331, Abs. 2, do
BGB), assim como, a propósito da obrigação de indemnizar o titular do
direito a alimentos pela morte do obrigado a prestá-los, quando se admite
que essa obrigação de indemnização abrange os nascituros que iriam
ter direitos a alimentos frente ao falecido (cf. § 844, Abs. 2, do BGB).
IV. Importa, no entanto, não confundir este problema com as situa‑
ções de direitos com sujeito indeterminado. Enquanto ali – pelo menos
aparentemente – não existe um sujeito, aqui ele existe, embora ainda não
se conheça a sua identidade (Blomeyer, 1953, pp. 309 et seq.).
2.2. Inadmissibilidade de direitos sem sujeito
I. Afirma-se com frequência que direito sem sujeito é uma contradi‑
ção em si mesma [inter alia, Andrade, 1960, pp. 34-5; Cunha, 1971-2,
ponto 32 b); Mota Pinto, 2012, pp. 196 e 198; Gierke, 1895, p. 257;
Crome, 1900, p. 163; Von Tuhr, 1998, pp. 81-2]. O próprio nome desta
DIREITOS SEM SUJEITO? 23
situação jurídica o denúncia, porquanto direito subjetivo quer dizer direito
do sujeito. Todos os direitos servem para satisfazer os interesses dos
seus titulares. O fundamento material para a concessão de semelhante
posição reside justamente na atribuição de um âmbito de liberdade a uma
pessoa. Assim sendo, não se consegue compreender como seria possível
a subsistência de um direito sem o seu suporte subjetivo. De acordo com
esta visão, o sujeito precede o direito e é condição indispensável para o
seu surgimento e manutenção.
II. Não obstante, certo é que nos casos supra referidos a ordem jurídica
parece considerar a viabilidade de um direito pese embora a ausência
temporária de um sujeito. Várias foram as explicações propostas no
sentido de demonstrar que esses casos não consubstanciam uma exceção
àquele dogma, sustentando a ideia de que aí se verifica:
a) Uma obnubilação do sujeito, por mor da qual se dá o congela‑
mento da relação jurídica até ao aparecimento de um novo sujeito
[Cunha, 1971-2, ponto 32 c)];
b) Um simples estado de vinculação, não havendo verdadeiros direitos
subjetivos, mas antes “estados de vinculação de certos bens, em
vista da possível superveniência de um titular para eles e portanto
de um direito que lhes corresponda” (Andrade, 1960, p. 35). Cada
um desses bens “não seria o objeto de um direito subjetivo, mas
também não seria livre”, sendo alvo de tutela jurídica adequada
com vista ao direito e titular futuros (Mota Pinto, 2012, pp. 197
e 198) (Ihering, 1871, pp. 392 et seq., refere a existência de
um estado de vinculação ou a presença do lado passivo em dois
momentos: no período intermédio em que falta o sujeito e durante
o processo de constituição do direito);
c) A extinção do direito e posterior renascimento, assim que surja
um novo sujeito (Stammler, 1907, p. 463);
d) A personificação do próprio direito ou acervo patrimonial. Em
causa está, por exemplo, a atribuição de personalidade judiciária
(e tributária) à herança jacente.
III. Qualquer das soluções apontadas acaba, contudo, por não con‑
seguir explicar cabalmente as situações em análise.
A obnubilação do sujeito não passa de uma forma mais elegante de
afirmar a indeterminação do sujeito. Acontece, porém, que essa explicação
24 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
não colhe, pois o que aqui está em questão é justamente a existência de
um sujeito. A pessoa que um dia encabeçará o direito até já pode existir,
mas não é titular do direito, não podendo, por isso, dizer-se que o sujeito
existe, embora seja indeterminado. A verdade é que o sujeito enquanto
tal ainda não existe. Isto torna-se mais evidente naquelas hipóteses em
que ocorre a inexistência não apenas do sujeito, mas da própria pessoa
que virá a assumir esse título, de que constitui exemplo emblemático
a doação ou sucessão a favor de um concepturo (Oliveira Ascensão,
2000, p. 398, & 2002, p. 83; Carvalho Fernandes, 2012b, p. 263).
A noção de estado de vinculação dos bens também não parece pro‑
ceder, visto não esclarecer qual o destino do direito até então incidente
sobre tais bens. Extingue-se? Fica latente? Na primeira hipótese, isso
implicaria, por um lado, que as coisas se tornariam nullius, com todas as
consequências inerentes, e, por outro lado, que o surgimento do sujeito
teria por efeito o nascimento do direito subjetivo e consequente aquisição
originária do mesmo por parte daquele. Ora tal não se coaduna com o
regime jurídico vigente (Pereira Coelho, 1992, p. 191; Carvalho, 2012,
pp. 156-7). Na segunda hipótese, isso equivaleria, no fundo, a aceitar a
possibilidade de um direito subsistir sem sujeito.
A ideia de que o direito se extingue, renascendo mal surja o sujeito
correspondente, no fundo não difere muito da visão anterior, quando
se entenda que o direito até então vigente desaparece para dar lugar ao
surgimento de um estado de vinculação de bens, merecendo deste modo
iguais reparos.
Sem negar que em certas circunstâncias a lei personifica a herança
jacente – falando-se então de pessoa rudimentar –, afigura-se inegável
que o alcance dessa personificação é claramente limitado, restringindo‑
-se à possibilidade de propor ações ou de responder em juízo, ou ainda
de ser tributada. Acresce que nas demais situações enumeradas – v.g.,
doação ou sucessão de nascituros ou concepturos ou títulos ao portador
abandonados – não acontece semelhante personificação, permanecendo
assim em aberto a questão sobre se em tais casos não haverá realmente
direitos sem sujeito.
IV. Por vezes, trilham-se outros caminhos com vista ao mesmo
resultado, isto é, obviar à impossibilidade lógica da existência de um
direito sem sujeito.
Um desses caminhos, partindo da conceção de que um dos elementos
constitutivos do direito é justamente o sujeito e que, por isso, a falta
DIREITOS SEM SUJEITO? 25
deste obsta inevitavelmente a existência ou manutenção daquele, vem,
no entanto, defender a possibilidade de se encontrarem preenchidas todas
as circunstâncias necessárias para a aquisição do direito antes do nasci‑
mento do sujeito. Neste caso, a carência de sujeito impede a constituição
efetiva do direito, mas já não impede o surgimento de uma expectativa
jurídica. A esta luz, as “pessoas futuras não podem ter direitos, embora
possam existir expectativas jurídicas a seu favor”. Tais expectativas, que
durante a sua vigência conferem faculdades passíveis de ser exercidas por
via da representação, transformam-se em verdadeiros direitos subjetivos
mal surja o correspondente sujeito (Von Tuhr, 1998, pp. 81-2 e 194-7).
Outro caminho frequente, percorrido normalmente pelo próprio legisla‑
dor, é o recurso à figura da retroatividade. Por mor desta, o aparecimento
do sujeito teria sempre eficácia retroativa, tudo se passando como se o
direito tivesse titular desde o momento em que o facto atributivo daquele
se produziu. A retroatividade é vista assim como um meio eficaz de
apagar da ordem jurídica qualquer resquício de acefalia.
V. Se se reparar, os caminhos indicados acabam por admitir a via‑
bilidade jurídica (e lógica) de situações ativas desprovidas de sujeito.
O primeiro caminho arreda de forma perentória a possibilidade de
direitos sem sujeito. Paradoxalmente, porém, admite expectativas jurídicas
sem sujeito. Ou seja, direitos sem sujeitos são intoleráveis, expectativas
jurídicas sem sujeito, pelo contrário, já seriam perfeitamente sustentáveis.
Ora, não se afigura compreensível semelhante visão. A diferença entre
uma expectativa jurídica e um direito subjetivo não reside no facto de
ali haver um sujeito e aqui não. Qualquer uma destas situações ativas é
pensada e criada tendo em vista os interesses de uma determinada pessoa
ou conjunto de pessoas. Qualquer uma delas é atribuída ao destinatário
da norma que as estabelece, mal ocorra o preenchimento da respetiva
previsão. O que as distingue – se é que são verdadeiramente diversas – é
o respetivo conteúdo e a tutela que lhes é conferida pelo ordenamento
jurídico. Numa palavra, a diferença é objetiva e não subjetiva. Neste
aspeto, elas são idênticas. Por isso mesmo, a admissão de expectativas
jurídicas desprovidas de sujeito denuncia a aceitação da dita impossibi‑
lidade lógica que se quer a todo o custo enjeitar. Isto é, a viabilidade de
uma situação subjetiva carecida de sujeito (Oliveira Ascensão, 2000,
p. 400).
Idêntica confissão subjaz no recurso à figura da retroatividade. Como
é sabido, a retroatividade é assumidamente uma ficção jurídica, por mor
26 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
da qual se finge que a realidade é uma, quando efetivamente é outra.
A simples circunstância de se necessitar de recorrer a esta ficção equivale
a admitir publicamente que a verdadeira realidade é outra (como diz
Regelsberger, 1893, pp. 78-9, “A ficção não consegue realidade, mas
assenta justamente na sua falta”. Cf. ainda Windscheid, 1856, p. 236).
A simples circunstância de se necessitar de ficcionar que o sujeito já
existia à data da verificação do facto atributivo do direito equivale
a admitir publicamente que, na realidade, o sujeito ainda não existia
àquela data. A isto acresce que a retroatividade é uma ficção que atua a
posteriori. Isto é, não se finge que a realidade é outra no presente, mas
unicamente em momento posterior. O que significa que, enquanto não
se verificar o facto determinante da produção dos efeitos retroativos, a
realidade aparece nas suas vestes puras, sem qualquer tipo de artifício ou
fingimento. Na questão ora em exame, isto vale por dizer que, enquanto
não surgir o sujeito, o direito existe sem sujeito.
2.3. Admissibilidade de direitos sem sujeito
I. Apesar de todas as tentativas, quer por parte da doutrina quer
inclusivamente por parte do legislador, afigura-se indiscutível que, pelo
menos em determinadas situações, a nossa ordem jurídica reconhece
existência e validade a direitos desprovidos de titular.
Assim acontece, desde logo, na herança jacente, que se caracteriza
justamente por um estado de pendência na titularidade das situações
jurídicas integradas no acervo patrimonial até então pertencente ao de
cuius. Estas situações não são do falecido, precisamente porque a sua
personalidade jurídica se extinguiu por morte, nem são dos sucessíveis,
porquanto ainda não ocorreu o ato de aceitação do qual a lei faz depender
a transmissão efetiva dos direitos. Nem se diga que a atribuição de perso‑
nalidade judiciária e tributária à herança jacente evita semelhante cenário,
dado o caráter claramente limitado dessa atribuição. Ainda que se admita
que nas hipóteses previstas nos artigos 12.º do Código do Processo Civil
e 2.º do Código do IRC se está perante uma pessoa jurídica (de índole
rudimentar), o certo é que fora desse âmbito não se assiste à personi‑
ficação do caudal relicto. A eficácia retroativa reconhecida à aceitação
da herança também não consegue apagar o período que mediou entre a
abertura da sucessão e a aceitação. O que significa que até à aceitação
só “a afirmação de um direito sem sujeito retrata fielmente a realidade”
(Oliveira Ascensão, 2000, p. 399. Cf. ainda Castro Mendes, 1978,
DIREITOS SEM SUJEITO? 27
p. 80; Galvão Telles, 2004, p. 33; Carvalho Fernandes, 2012a, p. 264;
Pamplona Corte-Real, 2012, p. 268; Windscheid, 1853, pp. 186, 191
e 203; 1865, p. 233; & 1887, p. 133; Gomes da Silva, 1955, p. 282,
prefere ver aí direitos à espera de sujeito, em vez de direitos sem sujeito.
Em sentido diverso, Capelo de Sousa, 2002, p. 10, sustenta que em tal
situação se verifica um estado de vinculação juridicamente tutelado de
uma universalidade).
De igual modo se passa na doação e na sucessão a favor de nascituro
ou concepturo, por meio das quais o direito deixa de pertencer ao doador,
embora também ainda não caiba ao donatário, ou, no campo sucessó‑
rio, o direito ou a própria herança ficam necessariamente em estado de
jacência até ao nascimento do sucessível ou até ao momento em que se
tem a certeza do seu não nascimento [Oliveira Ascensão, 2000, p. 105;
Carvalho Fernandes, 2012a, p. 161; Pamplona Corte-Real, 2012,
pp. 197 e 269. Pereira Coelho, 1992, p. 191, aceita a existência de
direitos sem sujeito apenas no caso de sucessão (ou doação) a concepturo.
Se o beneficiário for um nascituro, então será este, justamente por já se
encontrar concebido, o sujeito do direito em questão].
À mesma conclusão conduz o caso do abandono de título ao portador.
É claro que sempre se poderia tentar sustentar a extinção por abandono
do direito ali titulado. Não parece, contudo, que seja essa a solução
mais rigorosa e consonante com o regime legal, desde logo porque
implicaria a produção de idêntica consequência no correspondente lado
passivo. Ou seja, o abandono teria por efeito a extinção do direito de
crédito materializado no título e a extinção do correspetivo dever. Numa
palavra, a extinção da própria relação obrigacional. Ora, não se afigura
que tal corresponda à realidade. Pense-se, por exemplo, num bilhete de
cinema. Se o seu titular o abandonar, perde naturalmente a titularidade
do direito de crédito corporizado no referido bilhete. Mas isso não quer
dizer que o empresário que explora a sala de cinema fique desobrigado
de permitir a entrada na sala e de projetar a película a um indivíduo
que se apresente com o bilhete em questão. O que demonstra que, pese
embora o abandono, o dever do sujeito passivo subsistiu. E se o dever
subsistiu, então inevitavelmente o direito de crédito que lhe corresponde
também persistiu. Resulta da natureza das situações relativas que uma
situação “consubstancia-se na medida em que, frente a ela, se equacione
uma outra, de teor inverso” (Menezes Cordeiro, 2011, I, p. 306). Por
isso, só faz sentido falar da adstrição a um dever especial de prestar
exatamente porque simultaneamente existe um direito de crédito a essa
28 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
prestação (Hohner, 1969, pp. 48 e 54. Cf., ainda, Dölle, 1952, pp. 27-9;
Larenz, 1977, p. 142).
Em todas estas situações, ainda que as faculdades e poderes positi‑
vos contidos no direito se encontrem sustados enquanto não adquiridos
pelo sujeito, o efeito negativo de exclusão dos não titulares produz-se
imediatamente (Hohner, 1969, pp. 41 e 75).
II. O dogma da impossibilidade de vigorarem direitos desprovidos
de sujeito assenta num alicerce que se julga incorreto. A saber: o de
que o sujeito é elemento essencial do próprio direito ou, numa versão
menos ambiciosa, que o sujeito constitui um elemento identificativo ou
individualizador do direito.
Começando pela primeira perspetiva, está-se em crer que a trans‑
missibilidade do direito demonstra que o sujeito não pode ser elemento
constitutivo deste. Se assim fosse, não se compreenderia como um direito
poderia sair da esfera jurídica de uma pessoa e ingressar na esfera de
outra. Mais, não se compreenderia que a morte do sujeito não determinasse
a imediata extinção dos direitos até então encabeçados pelo de cuius.
Se o sujeito fosse um elemento constitutivo do direito, os fenómenos
da aquisição derivada translativa e da perda relativa seriam letra morta.
Apenas a aquisição originária e a perda absoluta fariam sentido. Ora, não
é isto que ocorre no nosso sistema jurídico, em que, salvo raras exceções,
impera a regra da livre transmissibilidade das situações jurídicas.
Importa, no entanto, esclarecer o verdadeiro alcance da transmissibi‑
lidade neste âmbito, pois não raro ela é vista como a derradeira prova da
viabilidade de direitos acéfalos. Afigura-se inegável que a transmissibili‑
dade é suficiente para mostrar o caráter exógeno do sujeito relativamente
ao direito subjetivo. O sujeito é o titular do direito, mas não integra o
direito em si mesmo. Não demonstra, contudo, que pode haver direitos
sem sujeitos, como muitas vezes se considera. O facto de a identidade
do sujeito não constituir um elemento essencial do direito não vale por
afirmar que o sujeito enquanto tal é irrelevante para a existência ou
subsistência desse direito. É perfeitamente possível, à luz da transmis‑
sibilidade, concluir-se pela inadmissibilidade de direitos desprovidos
de sujeito. O fundamento para tal é que certamente não poderá ser o
reconhecimento do sujeito como elemento constitutivo do direito. Numa
palavra, a transmissibilidade clarifica o problema, mas não o resolve.
A segunda perspetiva, por seu turno, aceitando o caráter extrínseco
do sujeito em face do direito subjetivo, entende que a identificação ou
DIREITOS SEM SUJEITO? 29
individualização desse direito opera-se através da identidade do respetivo
sujeito. Isto é, que a identidade do sujeito contribui de forma decisiva
para a identidade do próprio direito. Se é verdade que frequentemente se
procede a uma assimilação entre o direito e o respetivo titular, particu‑
larizando o direito em função da pessoa que o encabeça – v.g., o direito
do A ou o direito do B –, não é menos verdade que a individualização
jurídica da situação ativa em si mesma considerada não se baseia em
aspetos subjetivos, mas objetivos. Mormente, no objeto e no conteúdo
do direito, tal como resulta da aplicação da norma permissiva que o
prevê ao facto constitutivo e demais factos modificativos que entretanto
ocorram. Pense-se, por exemplo, nas seguintes hipóteses. Se A for titular
de dois direitos, isso não quer dizer que os direitos sejam idênticos. Não
só um pode ser um direito real e o outro um direito de crédito, como,
ainda que comunguem de igual natureza, incidem sobre objetos distintos,
procedendo as mais das vezes de factos jurídicos diversos. A unidade de
sujeito não determina a identidade (e muito menos a unidade) da situação
jurídica. Se A vender um desses direitos a B, verifica-se uma alteração
da pessoa titular do direito, mas nem por isso se pode afirmar sem mais
que simultaneamente se operou uma modificação no próprio direito. Pelo
contrário, regra geral, a transmissão de um direito não implica nenhuma
transformação no direito alienado. Apenas a titularidade se altera. Estes
dois exemplos tão simples expressam bem o caráter acessório da iden‑
tidade do sujeito no tocante à individualização do direito (Thal, 1905,
pp. 116-9. No sentido que o essencial é o direito e o acidental o sujeito,
cf. Savigny, 1840, III, pp. 10-1. Cf. ainda Windscheid, 1856, p. 235;
Fischer, 1923, p. 54; Oliveira Ascensão, 2002, p. 81).
III. Muitas das reservas à aceitação de direitos sem sujeito alicerçam-se
quer na assimilação do direito subjetivo a um poder de vontade reco‑
nhecido pela ordem jurídica quer na ideia de que a pessoa – humana ou
coletiva – constitui simultaneamente o fundamento e o fim desta espécie
de situação ativa.
Como é sabido, o conceito de direito subjetivo é das matérias mais
controversas na ciência jurídica. A variedade e a complexidade deste tipo
de posição contribuem de maneira decisiva para semelhante dificuldade.
Uma das propostas que goza de maior acolhimento é justamente aquela
que o define como um poder de vontade concedido pela ordem jurídica.
Importa, no entanto, salientar desde já que esta expressão nem sempre
foi compreendida da mesma forma. Se inicialmente ela foi tida como
30 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
sinónimo da concessão de um espaço de liberdade, assentando assim
numa conceção de índole filosófica, mais tarde passou a ser entendida
como o reconhecimento do domínio de uma vontade em face de outra,
agora vista em sentido puramente psicológico, para finalmente ser con‑
siderada como um poder exclusivamente normativo, isto é, a vontade da
própria ordem jurídica (Savigny, 1840, I, pp. 7 et seq.; Puchta, 1865,
pp. 9-12; Windscheid, 1862, p. 81; 1879, pp. 92-3; 1887, pp. 98-9; &
1906, pp. 156-8; Von Tuhr, 1998, pp. 57 et seq.).
Pois bem, não raro quando se perfilha uma visão deste género rejeita‑
-se a possibilidade de vigorar um direito desprovido de sujeito, por tal
equivaler a admitir um direito – que, como se viu, mais não seria do
que um poder de vontade – onde não existiria vontade. Não deixa, no
entanto, de ser curioso que na base das conceções ora em apreço não se
encontre semelhante repulsa por tal figura.
É certo que na sua versão original se negava a existência de direi‑
tos sem sujeitos. A razão para tal residia, contudo, não numa pretensa
impossibilidade jurídica, mas antes na ideia de que nas situações então
estudadas – relacionadas como o fenómeno sucessório, em especial a
jacência da herança – havia um sujeito, que simplesmente não estava
determinado. Por outras palavras, na versão inicial desta conceção
enjeitava-se a figura dos direitos sem sujeito, não porque isso fosse
inviável, mas unicamente porque não se conheciam situações em que
tal acontecesse. Aparentemente, tal não repugnaria ao Direito – dado,
sobretudo, o caráter acessório do sujeito frente ao direito –, apenas a
realidade não oferecia casos em que a questão se levantasse (Savigny,
1840, II, pp. 363 et seq.; & 1840, III, pp. 9-11).
Diferentemente, nas suas versões posteriores, incluindo a perspetiva
de caráter psicológico, aceita-se de forma expressa a figura dos direitos
sem sujeito. Segundo essas, o que aqui está em causa não é o reconhe‑
cimento do poder decorrente da vontade de uma certa pessoa, mas antes
um verdadeiro poder de vontade, concretamente “de um poder-querer
de determinada espécie” (Windscheid, 1856, p. 235; Carvalho, 2012,
p. 156). Advindo a individualidade do direito quer do seu conteúdo, quer
do respetivo facto constitutivo – e não da pessoa do seu sujeito –, nada
obsta a que temporariamente o ordenamento jurídico reconheça um poder‑
-querer, pese embora a ausência de titular (Windscheid, 1853, pp. 186,
191 e 203; 1856, p. 235; & 1887, pp. 132-4). Neste caso, “os direitos
servem um fim impessoal ou são conservados para servir no futuro os
interesses de uma pessoa” (Windscheid, 1887, p. 134).
DIREITOS SEM SUJEITO? 31
No tocante à segunda reserva, não se nega que a pessoa constitui o
fundamento e o fim último do direito subjetivo e que não faz sentido
falar de direitos definitivamente carecidos de sujeito. Mas isso não quer
dizer que sejam lógica ou ontologicamente impossíveis direitos tempo‑
rariamente sem titular. Pelo contrário, a realidade demonstra, como se
viu, que casos há em que o ordenamento jurídico aceita e convive bem
com situações desta natureza.
IV. O nascimento do direito subjetivo depende exclusivamente do
preenchimento da norma permissiva. Se esta não demanda a existência
de um sujeito, nada obsta a que o direito surja. De igual forma, a extin‑
ção do direito depende tão-só da produção de um facto extintivo. Se
este não se verificar, o direito perdura. Se a ordem jurídica, em certas
circunstâncias, não associa à falta de titular o fim do direito, então ele
persiste. O direito subjetivo, por mais paradoxal que possa parecer, é uma
realidade objetiva (cf. Hohner, 1969, p. 73, apresenta como argumentos
a favor desta objetivação do direito subjetivo, por exemplo, o facto de
o direito poder inclusivamente constituir o objeto de outro direito. Cf.
ainda Fischer, 1919, pp. 177-80). Ou seja, é uma realidade a se, dotada
de autonomia e que resulta da simples aplicação da estatuição da norma
ao caso concreto. conceptualmente, nada há que se oponha a direitos sem
sujeito. “O direito é antes de mais uma organização objetiva, assente em
meios jurídicos; essa organização subsiste, ainda que transitoriamente
esteja destituída de sujeito, até que a atribuição subjetiva opere de novo”
(Oliveira Ascensão, 2002, p. 83).
Na generalidade das situações, o preenchimento da norma permis‑
siva implica a preexistência de um sujeito. Pense-se, por exemplo, no
direito a receber o preço na compra e venda, cuja constituição se acha
na estrita dependência da existência de um vendedor. Mas curiosamente
a sua manutenção já não exige a presença do vendedor. Se este morrer,
o direito ao preço integrará a respetiva herança e, enquanto esta não for
aceite pelo sucessível ou sucessíveis, subsistirá, ainda que desprovido
de titular.
Não obstante, por vezes, é possível verificar-se o preenchimento da
previsão normativa e consequente aplicação da correspondente estatuição,
pese embora a privação de sujeito. Assim acontece, designadamente, no
caso de alguém emitir um título ao portador e, sem o entregar a alguém,
o abandonar. Quem emitiu o título encontra-se, em razão da emissão e
da subsequente colocação em circulação, imediatamente vinculado à
32 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
prestação, nascendo em simultâneo o correspondente direito de crédito.
Neste caso, a ausência de um credor não é impedimento bastante para
o nascimento do direito de crédito. O mesmo em relação a direitos
constituídos a favor de concepturos – ou nascituros, quando não se lhes
reconheça personalidade jurídica –, em que o direito se forma plenamente,
apesar da inexistência do titular (Carvalho, 2012, pp. 156-7).
3. Direitos das gerações futuras
I. Da admissibilidade jurídica de direitos sem sujeito não resulta, porém,
a conclusão de que gerações futuras possam ser titulares de direitos hoje.
E isto por duas razões principais. A primeira prende-se com a pretensa
preexistência do direito relativamente ao sujeito. A segunda, mais difícil
de ultrapassar, diz respeito à possibilidade de um direito preexistir ao
respetivo objeto.
II. Assim, no que tange à primeira dificuldade, a questão que se coloca
é a da viabilidade de um direito se constituir antes do nascimento do
correspondente sujeito. Ou seja, até que ponto é possível os direitos de
uma pessoa à vida, à integridade física, à saúde ou ao ambiente nasce‑
rem antes dessa mesma pessoa. Como se teve oportunidade de observar,
na generalidade das situações em que se acolhe a figura dos direitos
desprovidos de titular, a acefalia ocorre em momento posterior à cons‑
tituição do direito. A pergunta que em tais casos se impõe é se a perda
do sujeito deve ou não determinar a extinção do direito. Nas hipóteses
ora em análise, a pergunta é outra. Concretamente, se a falta de titular
impede o nascimento do direito. Enquanto ali o que está em causa são
os eventuais efeitos extintivos da perda do sujeito, aqui o que está em
causa são os eventuais efeitos impeditivos da falta de titular.
É certo que no ponto anterior se declarou aceitar a possibilidade de
um direito nascer antes do próprio sujeito, tendo para tal recorrido ao
exemplo do título de crédito abandonado logo após a sua criação. Só por
si, isto talvez fosse suficiente para fundamentar uma resposta afirmativa à
questão colocada. Contudo não o é. A razão para tal é simples: ali vigora
a regra da abstração, ao passo que aqui se cai no âmbito da causalidade.
E pode acontecer que a solução a dar ao problema difira justamente em
razão disso. É perfeitamente lógico que o grau de exigência relativamente
aos factos constitutivos de um direito sujeito ao regime da abstração
DIREITOS SEM SUJEITO? 33
seja menor do que o grau de exigência imposto ao facto constitutivo de
direitos subordinados à regra da causalidade.
Poderia argumentar-se com as doações e a sucessão a favor de nas‑
cituros e concepturos. Convém, porém, não esquecer que na maior parte
destes casos o direito doado ou a suceder, que obviamente é preexistente
relativamente ao seu futuro sujeito, não se achava desprovido de titular
quando surgiu. Por outras palavras, importa não olvidar que a doação
e a sucessão normalmente andam associadas a fenómenos de aquisição
derivada translativa e perda relativa. Nada impede, no entanto, que atra‑
vés de doação ou testamento se constitua um direito em benefício de
um nascituro ou concepturo, ou seja, que através desses atos se proceda
a uma aquisição derivada constitutiva. Basta pensar, por exemplo, na
hipótese de se criar um usufruto a favor do nascituro ou concepturo.
Em tal cenário, o direito precederia o seu titular. O que aparentemente
testemunha em prol da admissibilidade jurídica da preexistência do direito
relativamente à pessoa que o encabeçará.
Ainda a propósito do nascituro, cumpre não descartar a eventualidade
de se considerar que, em rigor, não se está perante uma situação de direito
sem sujeito, visto este já existir. Se se entender, como alguma jurispru‑
dência e doutrina o faz (Pereira Coelho, 1992, pp. 175-6; Menezes
Cordeiro, 2011, IV, p. 365; & Pais de Vasconcelos, 2015, p. 78.
Cf. ainda Ac. STJ de 03-04-2013, proc. n. 436/07.6TBVRL.P1.S1., in
www.dgsi.pt), que a personalidade jurídica se inicia com a conceção e
que do nascimento apenas depende a aquisição de capacidade genérica
de gozo, então deixaria de fazer sentido lançar mão das doações ou
sucessão em benefício do nascituro para tentar demonstrar a viabilidade
da precedência do direitos relativamente ao correspetivo titular. Apenas
a doação ou a sucessão a concepturos teriam relevância.
III. No fundo, o que aqui se questiona é se a constituição originária de
um direito pode ocorrer sem que simultaneamente se produza a aquisição
originária do mesmo, havendo, portanto, uma dilação temporal entre o
momento em que aquela se dá e o momento em que esta acontece. Numa
palavra, a admissibilidade da assincronia entre o data da constituição do
direito e a data da sua aquisição.
Apesar de não ser a regra, está-se em crer que este desfasamento
cronológico é juridicamente possível. Neste sentido depõe, como se viu,
quer a situação da criação e subsequente abandono do título ao portador
quer a doação ou sucessão em proveito de um nascituro ou concepturo.
34 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
Em qualquer uma destas hipóteses o direito está plenamente formado,
verificando-se uma quiescência da situação jurídica derivada da falta
temporária de sujeito (Carvalho, 2012, pp. 156-7. Cf., ainda, Regels‑
berger, 1893, pp. 78-9; Hohner, 1969, pp. 79-80; & Wolf & Neuner,
2012, p. 217).
Cumpre, aliás, salientar que por vezes a justificação material invocada
para fundamentar a admissibilidade da preexistência do direito reside
precisamente na ideia de concessão de tutela a uma pessoa futura. Sob
este prisma, apenas nos casos em que estiver em causa a proteção de
uma pessoa futura faz sentido a prévia constituição do direito. Aqui se
enquadrariam, naturalmente, os chamados direitos das gerações futuras
(Hohner, 1969, pp. 79-80).
IV. Se a primeira razão apontada aparentemente não encerra em si
um obstáculo intransponível para a eventual admissibilidade dos direitos
da geração vindoura, a segunda – ainda para mais quando conjugada
com a primeira – pode conduzir a um desfecho diametralmente oposto.
Pese embora o direito não se confundir com o seu objeto, a verdade é
que este lhe serve de esteio. Todas as permissões contidas naquela posi‑
ção jurídica têm por referência o respetivo objeto. Com exceção talvez
dos direitos potestativos, que, devido à sua estrutura peculiar, justificam
a questão sobre a autonomia do objeto relativamente ao conteúdo, nos
direitos subjetivos gerais ou comuns o objeto é sempre uma realidade a
se, sobre a qual incidem as faculdades ou poderes agregados no conteúdo
do direito. O objeto é tão importante que não raro as classificações – dou‑
trinais ou legais – dos direitos o têm por base. Ele possibilita, em certa
medida, a diferenciação dos direitos reais relativamente aos direitos de
crédito, bem como a autonomização dos direitos de personalidade, cuja
principal característica identificadora reside precisamente no seu objeto:
os bens de personalidade.
“Quando se fala de direitos das gerações futuras fala-se em especial
dos direitos fundamentais que correspondem aos pressupostos físicos da
vida e da autonomia humana no futuro, de uma vida humana na terra
tal como a conhecemos, com dignidade e com direitos” (J. Pereira da
Silva, 2015, p. 434). O mesmo é dizer que a expressão “direitos das
gerações futuras” designa os direitos fundamentais que são simultanea‑
mente direitos de personalidade, isto é, “direitos que constituem atributo
da própria pessoa e que têm por objeto bens da sua personalidade física,
moral e jurídica, enquanto emanações ou manifestações da personalidade”
DIREITOS SEM SUJEITO? 35
(Carvalho Fernandes, 2012b, p. 223). Ora, é precisamente aqui que
reside o problema. Se as pessoas ainda não nasceram, isso significa não
apenas a ausência de sujeito, mas sobretudo a falta de objeto.
Olhando para as hipóteses mencionadas de preexistência do direito
frente ao respetivo titular poderia ser-se tentado a concluir pela irre‑
levância de tal dado. Se é certo que, na constituição de um usufruto a
favor de um concepturo, a coisa a usufruir já existe aquando da criação
do direito, não é menos correto afirmar que, na situação de emissão e
abandono de título ao portador, a prestação é futura. O que, só por si,
poderia indiciar a desnecessidade lógica e ontológica da preexistência
do objeto e do sujeito relativamente ao direito subjetivo.
Cumpre, no entanto, distinguir as duas hipóteses. Na primeira, o
que está em causa é o surgimento de um direito absoluto, ao passo que
na segunda já se trata de um direito relativo. Enquanto ali o objeto do
direito tem necessariamente de ser presente, sob pena de o direito não
se constituir; aqui o objeto é por natureza futuro. Enquanto ali o direito
não nasce sem a prévia existência da coisa que lhe serve de esteio; aqui
o direito refere-se sempre a uma prestação que mais não é do que uma
atividade futura por parte do devedor.
Quando se trata dos direitos das gerações vindouras tem-se em mente
os direitos fundamentais dessas gerações, mormente os seus direitos de
personalidade. Ou seja, direitos absolutos que se esgotam no vínculo
patente entre a pessoa e o objeto. A ausência simultânea de titular e de
bem impede o aparecimento do vínculo. É concebível um vínculo em que
somente uma das extremidades está preenchida, ficando-se a aguardar o
preenchimento da outra. Assim acontece no caso da constituição de usufruto
a favor de um concepturo. Não se consegue, contudo, vislumbrar como
seja viável a presença de um vínculo desprovido de polos de referência.
Numa palavra, afigura-se impossível a constituição de um vínculo entre
uma pessoa e um objeto, quando nem aquela nem este existem.
Se a materialização da coisa pode ser suficiente para fundamentar o
aparecimento do direito real, ainda que desprovido de sujeito, no que aos
direitos de personalidade concerne tal não se mostra factível. A razão
é simples. Naqueles, o objeto do direito é externo à pessoa do titular,
não estando a sua existência dependente da existência dessa pessoa.
Justamente por isso, a presença ou surgimento desse objeto não se acha
condicionada pelo nascimento do titular. No caso aqui em análise, isso
não sucede. A falta de independência do objeto face ao sujeito impede
a sua preexistência e com ela a do direito. “A ideia de direitos sem
36 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
sujeito torna-se menos estranha se se pensar que é temporário e que só
é possível relativamente a direitos que se relacionam imediatamente com
uma coisa fora dele. O direito à liberdade, à honra, à integridade física
são impensáveis sem sujeito” (Regelsberger, 1893, p. 79. Cf. ainda
Gierke, 1895, p. 257).
V. Tudo somado, isto parece indiciar que, de facto, não há no
presente direitos subjetivos das gerações vindouras. Não porque essa
figura seja juridicamente inadmissível – como não raro é afirmado nesta
sede –, mas porque o caráter futuro não apenas do sujeito, mas sobretudo
do objeto obstam à sua constituição. Isso não significa, contudo, a não
vinculação da geração presente aos direitos futuros da geração futura.
Como se verá, o direito da geração vindoura é futuro, mas a vinculação
da geração atual é presente.
4. Situação jurídica da geração presente relativamente à geração
futura
I. Neste momento, poderia ser-se levado a supor que a questão ini‑
cialmente colocada sobre a eventual ilicitude dos atos praticados pela
geração presente, que venham a afetar a geração futura, já se encontra
respondida em sentido negativo. Se não vigora um direito subjetivo, não
há violação nem deste nem de um hipotético dever de respeito derivado
daquele. Por qualquer caminho, portanto, se concluiria pela ausência de
ilicitude. Não se julga, porém, que essa conclusão esteja correta.
II. A norma jurídica não contém apenas permissões ou imposições,
encerrando em si valorações (Engisch, 1988, p. 46). No caso das nor‑
mas constitucionais que preveem direitos fundamentais – que é o que
interessa a esta análise – acresce ainda a circunstância de os valores ali
contidos terem uma “vocação de permanência” (J. Pereira da Silva,
2015, p. 431). Os direitos fundamentais caracterizam-se “medularmente
pela capacidade de continuamente atravessarem o tempo, incólumes na
sua essência à passagem de gerações”, encontrando-se “originariamente
marcados pela sua intemporalidade, que deflui da presença da dignidade
da pessoa humana no seu núcleo irredutível e no centro do próprio sistema
jusfundamental” (J. Pereira da Silva, 2015, p. 428).
De qualquer norma permissiva, e por maioria de razão das normas
jusfundamentais, resulta o dever de não impedir a constituição e futuro
DIREITOS SEM SUJEITO? 37
exercício dos direitos nela previstos. Enquanto vigorarem aquelas normas
atributivas de direitos, não se deve adotar comportamentos que venham
impossibilitar a sua aplicação. O direito fundamental da geração vindoura
é futuro, mas a norma que o prevê é presente, tal como o valor nela
consagrado. O que significa que a norma, pelo simples facto de vigorar
e de possuir conteúdo axiológico tido por intemporal, impõe à geração
atual o dever de se abster de praticar qualquer tipo de conduta que possa
obstar ao seu futuro preenchimento e concretização. Da simples vigência
da norma decorre, portanto, a proibição de inviabilizar o nascimento dos
direitos fundamentais da geração vindoura ou de os esvaziar por completo.
III. Por outro lado, importa também não esquecer a distinção latente
nas normas jusfundamentais entre domínio de tutela e domínio de garantia
efetiva ou, se se preferir, a separação entre o direito fundamental prima
facie e o direito fundamental definitivo. Os primeiros correspondem ao
desenho abstrato da situação jurídica, os segundos ao direito encabeçado
em concreto por uma determinada pessoa (Alexy, 1997, pp. 103, 130 et
seq.; Borowski, 1998, pp. 29 et seq.).
Quando se observa esta distinção na ótica do confronto entre gerações
atuais vs. gerações vindouras, facilmente se conclui pelo caráter presente
do direito prima facie da geração vindoura. A norma jusfundamental,
precisamente por ter uma vocação de permanência, traça o modelo do
direito não apenas tendo por referência os destinatários contemporâneos,
mas simultaneamente os seus destinatários futuros. Numa palavra, a
norma define o direito prima facie de qualquer pessoa, presente ou
futura. Apenas o direito definitivo se acha dependente do nascimento
do titular. O que vale por dizer que os bens futuros da geração futura
se acham a coberto pelo domínio de tutela da norma vigente. Somente
o domínio de garantia efetiva consagrado por tal norma fica dependente
do nascimento do sujeito.
Duas são as consequências da natureza presente dos direitos prima
facie da geração futura. A primeira traduz-se na imposição de um dever
genérico de respeito, que vincula a geração atual a não impedir a cons‑
tituição e o exercício futuro dos direitos definitivos da geração vindoura.
Não se pode inviabilizar a conversão no momento devido do direito
prima facie em direito definitivo. A segunda, estritamente interligada
com a primeira, prende-se com a delimitação dos direitos definitivos da
geração atual pelos direitos prima facie das gerações futuras. Por outras
palavras, os direitos prima facie da geração vindoura podem constituir
38 ELSA VAZ DE SEQUEIRA
limites extrínsecos ou restrições aos direitos definitivos da geração atual.
Em termos práticos, isto significa que no juízo de proporcionalidade
próprio da concretização dos direitos fundamentais devem ser sopesados
os direitos prima facie das gerações futuras. Estes fundamentam não só
a aplicação de restrições aos direitos das gerações presentes, como pos‑
síveis juízos de inconstitucionalidade de normas que ponham em causa,
sem justificação material atendível, os direitos das gerações vindouras.
IV. Em jeito de conclusão, tudo leva a crer que os direitos futuros
da geração vindoura desempenham hoje uma dupla função: instituem
um dever geral de respeito e balizam a extensão dos direitos da gera‑
ção presente. Qualquer ato, que não se ache justificado pelo âmbito de
garantia efetiva do direito fundamental e que impeça a constituição ou o
exercício do direito fundamental da geração futura, será por conseguinte
um ato ilícito.
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Teorias da Justiça Intergeracional
André Santos Campos*
Em cada ação é mister atentar, além de na própria ação, no
nosso estado presente, passado, futuro, assim como em tudo
aquilo que lhe seja relevante. E ao ver as ligações entre todas
essas coisas, ficaremos então deveras refreados.
Pascal, Pensées (L 927 / S 756)
1. O que são teorias da justiça intergeracional
Desde os seus primórdios que a filosofia se preocupa com a justiça e
se ocupa de refletir sobre os pressupostos correspondentes e conteúdos
possíveis. Quer o seu olhar deambulante se fixe na estrutura básica das
sociedades ou nos carateres e ações dos humanos, quer o seu entendi‑
mento da (re)partição social requeira uma igualdade absoluta no acesso
aos recursos disponíveis (ora enquanto sejam meios de produção, ora
enquanto sejam riqueza resultante da produção) ou um mero tratamento
equitativo entre indivíduos livres, quer a sua linguagem se explane
numa preferência por deveres ou numa predominância (hoje em dia
quase inebriante) dos direitos, quer as suas intenções sejam pedagógicas
e prescritivas ou apenas descritivas de valores, quer a sua intimidade
com o ideal implique uma utopia realizada (ou por realizar, mesmo que
impossível) ou um compromisso terra a terra com a práxis, sempre a
* André Santos Campos é investigador principal do Ifilnova, instituto de filosofia da
Universidade Nova de Lisboa, onde trabalha nas áreas da Filosofia Moderna, Filosofia
Política e Filosofia do Direito. É também professor auxiliar convidado na Faculdade de
Direito da Universidade Nova de Lisboa, onde leciona a disciplina de Teoria do Direito
no programa de doutoramento. Em 2014, recebeu o prémio do melhor ensaio filosófico da
Sociedade Portuguesa de Filosofia pelo seu trabalho sobre justiça intergeracional. Foi autor
de Jus sive Potentia (CFUL, 2010), de Spinoza’s Revolutions in Natural Law (Palgrave
MacMillan, 2012), e de Glosas Abertas de Filosofia do Direito (Quid Juris, 2013), assim
como editor de Spinoza: Basic Concepts (Imprint Academic, 2016), Spinoza and Law
(Ashgate, 2014) e de Challenges to Democratic Participation (Lexington Books, 2014).
42 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
sua procura por modelos de distribuição do bem e de comutação do mal
aspirou à universa(bi)lidade.
Num tal contexto, seria expectável que justiça entre gerações consistisse
na aplicação de diferentes teorias da justiça às relações entre indivíduos
de diferentes grupos etários, fossem eles contemporâneos entre si ou
não. Contudo, essas mesmas relações contêm uma especificidade que,
se não chega a tornar defunta a ambição de um universal axiológico,
pelo menos desafia-o: a suscetibilidade ao curso unidirecional do tempo.
O velho problema metafísico do contraste entre vivências simultâneas a
diferentes tempos – por exemplo, o tempo do humano tão curto perante
a espécie, o tempo do indivíduo tão curto perante a sociedade, o tempo
do planeta tão curto perante o cosmos, tudo num jogo de tensões entre
o desespero do curto-prazo próprio das partes e um esforço de longo‑
-prazo apenas possível aos todos – ressuscita então no respeitante à
justiça, dado que o alcance da ação humana estende-se muito para lá da
duração do agente e nessa extensão pode não haver reciprocidade entre
agentes sidos e agentes por ser.
Por isso, o apuramento da “geração” como destinatária de uma teoria
da justiça, ao invés dos habituais “indivíduo humano” e “sociedade”,
surge sobretudo como consequência da capacidade do tempo poder esta‑
belecer relações, porventura sujeitas a algum tipo de avaliação moral,
entre quem nunca chega a ser contemporâneo. Ora, o que vem a ser uma
geração neste contexto? O senso comum reconhece que os indivíduos
podem partilhar características com outros (ou divergir de outros nas
suas características) em função da semelhança (ou da diferença) de idade,
porém não consegue definir esses limites. A paternidade (ou a sua pos‑
sibilidade) pode ser vista como separadora de gerações, mas esse é um
critério muito incerto de identificação. Em rigor, não há uma fronteira
exata demarcando as gerações, um limiar quantitativo a partir do qual se
possa dizer que uma termina para se iniciar uma outra. Mas há um facto
que diferencia irremediavelmente em função do tempo: a simultaneidade.
E nesse sentido é fácil discriminar entre quem viveu antes, vive durante
ou viverá depois de um determinado tempo.
Haverá então que distinguir, debaixo dessa cobertura conceptual que
é a geração, entre aquelas relações em que os indivíduos partilham um
mesmo tempo embora se distingam mais ou menos na idade e aquelas
relações em que os indivíduos não partilham de todo o mesmo tempo.
Das primeiras, que se dizem intratemporais, pode haver juízos morais
em que a idade seja um fator a ter em conta (v.g., tem um indivíduo
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 43
adulto uma obrigação de justiça perante outro indivíduo apenas por este
último ser uma criança? ou ser um idoso?), mas nestes casos a diferença
justificativa da problemática reside não tanto na idade quanto no facto
de alguns indivíduos se encontrarem numa situação de fragilidade em
função da idade (como podiam assim estar em função de qualquer outra
circunstância, como a pobreza, a doença, etc.). Não há então motivo por
que as teorias da justiça mais gerais não possam dar resposta aos proble‑
mas que relações desta natureza suscitam. As segundas, porém, que se
podem chamar de intertemporais, apresentam algumas especificidades
dado não admitirem reciprocidade entre os indivíduos enquanto agentes
que afetam e agentes que são afetados, exclusivamente à luz do tempo
em que vivem – e aqui poderá falar-se então de justiça intergeracional
(sobretudo entre diferentes gerações não simultâneas), contraposta à
justiça intrageracional (sobretudo entre diferentes gerações simultâneas).
Para efeitos da justiça intergeracional, portanto, as crianças e os idosos
de hoje podem ser considerados membros da mesma geração, embora
não para efeitos da justiça intrageracional. É quanto à intergeracional,
cuja amplitude abrange relações entre diferentes gerações que podem não
ser contemporâneas, que se pode invocar uma insuficiência das teorias
gerais da justiça.
O cético pode negar a autonomia de uma conceção da justiça focada
em exclusivo nas relações entre gerações (e.g. Beckerman, 2006, p. 66),
e ao fazê-lo recupera o já ancestral parecer de Thomas Jefferson, para
quem “a terra pertence aos vivos, não aos mortos” e “cada geração tem
o usufruto da terra durante o período da sua permanência” (Jefferson,
2004, p. 599), pelo que a justiça entre gerações ou não existe ou reduz‑
-se a cada geração reconhecer às anteriores e às sucessivas o direito de
determinarem as suas próprias noções de justiça. As teses de Jefferson,
apresentadas em debates epistolares com James Madison ou John Wayles
Eppes e tendo ido ao encontro de algumas das pretensões originais da
Revolução Francesa (consoante o atestam, por um lado, a formulação que
viria a ser adotada pelo artigo 28.º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 1793, influenciada
pelo pensamento de Condorcet, segundo a qual “uma geração não pode
submeter às suas leis as gerações futuras”; e, por outro lado, também a
posição de Thomas Paine ao negar em The Rights of Man, de 1791, a
ideia segundo a qual um órgão de poder gozaria de um qualquer direito
de tornar obrigatórias as suas políticas até “ao fim do tempo” [Paine,
1995, p. 91), em resposta à crítica de Edmund Burke aos ideais revolu‑
44 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
cionários baseada numa conceção de sociedade enquanto parceria entre
vivos, mortos e por nascer (Burke, 1962, p. 140)] por secundarem um
ideal de homem transformador (homo faber) que acredita no progresso
e na sua capacidade de ser senhor do seu próprio destino, incidiram em
especial sobre as exigências de estabilidade do então emergente consti‑
tucionalismo norte-americano e sobre os ditames da economia pública
quanto à extensão da dívida contraída. E nestes âmbitos a recusa da
necessidade de uma noção de justiça intergeracional resultava do próprio
entendimento da natureza e do alcance de uma noção de justiça intra‑
geracional, uma vez que as leis e as dívidas poderiam ser constituídas
com um prazo determinado e propositadamente adstrito ao tempo de uma
geração (que Jefferson, seguindo os estudos demográficos de Buffon,
chegou a situar em 19 anos).
Todavia, este contexto redimensionou-se a partir do momento em
que as atividades humanas começaram a surtir um impacto significa‑
tivo não apenas nas gerações não simultâneas mais próximas no tempo,
mas também naquelas distanciando-se numa duração histórica de difícil
mensuração. O homo faber, na sua ânsia de demiurgo insaciável, fez
incorrer o planeta numa era do antropoceno em que os efeitos da sua ação
transformam o clima e os ecossistemas numa escala global (Steffen et
al., 2011). Isso faz com que as suas ações não só afetem a qualidade de
vida de gerações não simultâneas longinquamente subsequentes, como
sejam ainda capazes de impedir o próprio nascimento de gerações futuras,
dessa maneira provocando num prazo alargado a aniquilação da espécie.
Por conseguinte, deixa de ser possível que uma conceção exclusivamente
intrageracional da justiça seja suficiente para enquadrar num só esquema
valorativo todas as (potenciais) consequências morais e físicas, quer das
ações humanas quer dos arranjos sociais de que estas emergem.
Como se isso não bastasse, a transformação rápida das sociedades
modernas parece proporcionar cada vez mais desafios transtemporais
a teorias da justiça minimamente exequíveis, desde o envelhecimento
progressivo das comunidades devido à melhoria dos cuidados de saúde
(o que exige reformulações dos sistemas públicos de proteção social),
passando pelas alterações demográficas que multiplicam sociedades em
desenvolvimento ou reduzem sociedades desenvolvidas (o que exige
novos modelos de distribuição dos recursos públicos disponíveis), pela
discrepância entre o número de jovens adultos em funções públicas de
decisão e a sua representatividade social, pela difícil mobilidade etária
do mercado de trabalho (por renovação ou por criação de novos empre‑
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 45
gos, resultando na persistência de taxas de desemprego jovem em muito
superiores à média geral dos trabalhadores), e culminando na presença
de alterações climáticas capazes de forçarem migrações em massa ou
de destruírem recursos naturais tidos por necessários à sobrevivência da
espécie humana (Tremmel, 2006, pp. 210-2).
Ao transformar o seu meio e a si mesmo com crescente velocidade, ao
alçar o seu braço causal cada vez mais longe na História, ao potenciar‑
-se ao ponto de ameaçar a sua própria persistência enquanto espécie,
esse agente moral partilhando a natureza de humanidade alterou a sua
relação com o tempo, e nessa alteração foi desafiado a incluir na sua
noção de justiça esse outro humano escondendo-se por detrás da cortina
do porvir, tomando-o (mesmo que ideal ou potencialmente) como um
humano-outro. Nesse sentido, não basta o aprofundamento de teorias da
justiça ao abstrato da relação intergeracional – é mister a especificidade
de teorias da justiça intergeracional.
2. Em que consistem as teorias da justiça intergeracional
A temática da justiça intergeracional envolve dois tipos de problemas.
O primeiro é o de indagar se existirá sequer uma conceção de justiça que
se aplique exclusivamente às relações entre gerações; o segundo é o de
identificar, em caso de resposta afirmativa ao primeiro problema, qual o
conteúdo de uma tal justiça. A partir destes problemas, as tentativas de
resposta estendem-se por distintas áreas de estudo, com preocupações e
metodologias autónomas, que vão desde a ética até à filosofia política,
à economia, à sociologia, ao direito e aos estudos ambientais.
Quanto ao primeiro problema, mesmo admitindo a existência de uma
específica justiça entre gerações, ela não deixará de ser também como que
uma subespécie da temática geral da justiça, e por isso estará submetida
aos mesmos desafios. Não bastará portanto questionar se existe justiça
entre gerações; será ainda necessário indagar o que se entende por jus‑
tiça (ou pelos critérios que a determinam) num contexto relacional entre
gerações. Só desta maneira se perceberá como as várias perspetivas da
existência de justiça intergeracional diferem não só nos motivos e nas
razões que justificam invocar uma dimensão axiológica entre gerações,
mas também nas próprias conceções de justiça, ao ponto de por vezes
a defesa de um determinado tipo de justiça intergeracional poder ser
considerada uma defesa da inexistência de justiça intergeracional à luz
de um outro tipo de justiça intergeracional.
46 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
Em geral, as posições a favor ou contra a justiça intergeracional
partilham as seguintes características:
1) Intertemporalidade geracional. A justiça entre gerações tende
a ser debatida no interior de um contexto temporal das relações
inter-humanas mensurável na não contemporaneidade. Por outras
palavras, as gerações em que se afere a existência e os conteúdos
de uma justiça comum não são necessariamente simultâneas. É isso
o que torna as sociedades em comunidades transgeracionais, isto
é, transtemporais ao ponto da não conectividade temporal entre
indivíduos de uma mesma sociedade. A visão do tempo usada
divide-se em três momentos: necessidade-atualidade-possibilidade.
Aquilo a que se chama “passado” é aquele momento da História
absolutamente inalterável; é necessário no sentido em que a relação
de causa e efeito é uma de necessidade e não pode ocorrer de outra
forma. Aquilo a que se chama “presente”, por seu turno, é a reali‑
dade do momento em que o potencial e o possível se convertem em
efetivo, em evento. E, por fim, aquilo a que se chama de “futuro” é,
do conjunto infinito de mundos possíveis, aqueles cuja expectativa
de conversão em atualidade é razoável. Em qualquer dos casos, a
intergeracionalidade é sempre uma intertemporalidade em que os
seus três momentos constitutivos não têm de se misturar. Mas é
ainda esta tripartição intertemporal que justifica um tratamento da
justiça não apenas na relação das gerações presentes com as gera‑
ções futuras, mas também na relação das gerações presentes com
as passadas, consoante o ilustram as reivindicações de reparação
de danos pretéritos por parte dos descendentes dos escravos norte‑
-americanos (cf., de entre uma vastíssima bibliografia, Horowitz,
2002, e Brophy, 2008) e das vítimas do Holocausto (Bazyler
& Alford, 2005), por exemplo, ou a contagem de emissões de
CO2 no passado para aferição das taxas de redução de emissões
devidas no presente (Gosseries, 2004).
2) Ausência de reciprocidade entre gerações de indivíduos não
contemporâneos. A discussão em torno da justiça intergeracional
pressupõe a impossibilidade de uma cooperação mútua entre
membros de uma mesma comunidade pertencentes a gerações
não simultâneas.
3) Assimetria nas relações de poder entre as gerações. Toda a
discussão axiológica intergeracional assume como preocupação
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 47
primordial um nivelar do desequilíbrio de poder entre presente e
passado ou futuro no qual se opõe a efetividade das forças hodiernas
à impotência e fragilidade dos humanos de ontem e de amanhã.
A motivação inerente à justiça intergeracional acaba por ser a
necessidade de uma proteção dos mais frágeis. Talvez por isso
mesmo, apesar de a temática da justiça intergeracional envolver
o apuramento de responsabilidades das gerações presentes face
às gerações passadas e às futuras, é na relação entre o presente e
o vindouro que ela mais se especifica, uma vez que não há afe‑
tação possível do passado por parte do presente salvo através da
memória ou da relação intrageracional entre descendentes de um
certo passado e não descendentes.
4) Transdisciplinaridade. O que começou por ser uma discussão em
torno dos tipos de constrangimentos oponíveis ao desenvolvimento
de políticas públicas, enquanto temática central da filosofia política,
depressa transbordou as margens do político e da instrumentalização
jurídica para se instalar no âmbito dos vários ramos da ética, desde
a meta-ética até à ética prática. Ilustram-no os debates em torno
da existência de direitos à existência ou não existência por parte
de indivíduos ainda por nascer, em conexão com a temática do
aborto, assim como os debates acerca da violabilidade dos direitos
de pessoas portadoras de deficiência, e sobretudo as preocupações
a nível de ética ambiental. Por conseguinte, mesmo a abordagem
de problemas de justiça intergeracional próprios da ordem dis‑
ciplinar do jurídico-político não pôde deixar de se focalizar em
argumentos e pressupostos herdados do âmbito moral.
Nos horizontes desta partilha serpenteiam porém diferentes caminhos
feitos de diferentes substâncias. Desde logo, e em primeiro lugar, os ins‑
trumentos conceptuais manipulados por teorias da justiça intergeracional
não são uniformes – enquanto aqui se coloca a ênfase argumentativa no
problema dos direitos das gerações futuras, ali prefere-se tratar de deveres
das gerações presentes para com as vindouras, e acolá de constrangimen‑
tos normativos não deônticos (como princípios, políticas, ou diretivas)
às gerações presentes por motivos que se não restrinjam exclusivamente
ao interesse ou aos direitos dos vindouros.
A distinção não é de somenos, dado que cada instrumento conceptual
enfrenta os seus problemas existenciais capazes de perigar a própria defesa
48 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
de uma justiça intergeracional. No que concerne ao respeito por direitos
de pessoas futuras, o recurso à terminologia dos direitos parece pressupor
que não é a sua titularidade concreta por indivíduos específicos do futuro
o que faz relevar a sua importância numa ponderação moral presente,
mas sim a consideração de que as pessoas futuras serão seres humanos,
partilhando com as pessoas do presente a mesma condição de humanidade
(Meyer, 2010). Porém, uma tal posição presume a possibilidade de se
conceberem como vinculativos direitos ainda sem titulares, e num certo
sentido a não titularidade de direitos pode ser entendida liminarmente
como razão suficiente para rejeitar a vinculação a direitos de pessoas
futuras uma vez que não haverá então poderes deônticos efetivos nem
capacidades subjetivas de reivindicação, mas apenas razões atendíveis
de justificação de alguns constrangimentos (deônticos ou não) às gera‑
ções presentes (De George, 1981; Macklin, 1981; Beckerman, 2003;
& 2004). Continua a impor-se, portanto, um esclarecimento do que se
entende por “direitos de pessoas futuras” quando se discute a existência
de justiça intergeracional.
Por outro lado, a eventual rejeição da existência de direitos de pes‑
soas futuras não acarreta necessariamente a não atribuição de deveres às
gerações presentes para com as gerações futuras, conquanto se considere
haver deveres válidos que não têm direitos como correlativos. Para os
defensores de uma justiça intergeracional explanável sobretudo em lingua‑
gem deôntica, esta superação justifica-se de maneira simples: as pessoas
presentes devem respeito a bens valiosos deixados pelos seus antepassados
e que transitarão para os seus sucessores, assim como devem respeito aos
projetos de longo prazo considerados valiosos pelos seus contemporâneos.
Um tal respeito origina um dever geral a que normalmente se chama de
proibição da despoupança (formulação mais exigente e impositiva do
“princípio da poupança” elaborado por John Rawls, do qual se falará
infra), segundo o qual as pessoas do presente não deverão esgotar ou
destruir os bens herdados e as condições constitutivas de prossecução
de projetos de longo prazo (Baier, 1981; Meyer, 2005). Porém, o que
justifica que esse respeito tenha a natureza forte de um imperativo? Com
efeito, a deontologia parece ser apenas uma das maneiras de interpretar
a justiça intergeracional. Porquê então restringir a discussão da justiça
intergeracional a uma linguagem deôntica que diminui a exigência axio‑
lógica de conceitos morais relevantes como a virtude, a responsabilidade,
o respeito, o interesse, a boa política? Por outras palavras, a escolha do
instrumento conceptual numa teoria da justiça intergeracional constitui
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 49
uma pedra-chave na argumentação a favor da existência dessa justiça
específica e da natureza dos seus conteúdos.
Em segundo lugar, os padrões de medida da justiça entre gerações
estão também longe de serem semelhantes. Mesmo naqueles casos em
que a discussão se cinge à determinação do bolo (o quê e o quanto dos
recursos disponíveis, isto é, do capital não apenas físico, mas também
tecnológico, institucional, ambiental, cultural, relacional, que esteja
acessível aos membros de uma comunidade) (Gosseries, 2008, p. 63) a
passar às gerações seguintes, o critério que o identifica difere de teoria
para teoria, podendo ser comutativo, agregativo, ou distributivo. Um
critério comutativo estabelece que, independentemente do tamanho do
bolo em questão, a justiça é atingida na medida em que haja um equilí‑
brio entre o que se recebe e o que se transmite. Há como que um padrão
de reciprocidade, o qual, não sendo possível em relações entre gerações
não simultâneas (a obrigação de devolver o que se recebeu não é direta
se já não existe a entidade de quem se recebeu), pode ainda assim ter
um papel proeminente se a ideia de devolução puder ser atualizada na
continuidade das gerações (indiretamente, portanto). Em sentido oposto,
um critério agregativo estabelece que, independentemente de como as
relações entre gerações se desenvolvem, a justiça é atingida levando em
conta apenas a grandeza total do bolo – o que importa é o agregado do
capital e do bem-estar do qual a sociedade como um todo beneficia, não
os tamanhos relativos das porções desse bem-estar que cada membro da
comunidade acabará por receber. Por fim, um critério distributivo atenta
nos meios de distribuição do bolo entre os destinatários de uma justiça
intergeracional, pelo que o relevo recai no padrão da repartição entre todos
do total do bolo disponível, mesmo que este não esteja maximizado na
sua grandeza e independentemente da afetação passada de recursos que
de algum modo haja que devolver ou comutar.
O critério da distribuição, por seu turno e em terceiro lugar, cria azo
a um outro desvio da uniformidade nas teorias da justiça intergeracional:
o da partição segundo um subcritério de igualdade em sentido estrito,
segundo um subcritério de prioridade ou segundo um subcritério de
suficiência.
À luz de um igualitarismo estrito, a mera permissão de exercícios
de liberdades individuais que deixem as gerações futuras numa situa‑
ção desigual será injusta, mesmo que todos os membros futuros vejam
reconhecidos os seus direitos mínimos de aceder aos mesmos recursos
que as gerações anteriores. Todavia, a adoção da igualdade como critério
50 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
de qualificação da justiça intergeracional não está isenta de problemas
e desafios. Um primeiro consiste na determinação de quais os agentes
comparáveis para avaliação de uma relação de igualdade. Igualdade, sim:
mas “igualdade entre quem?” De acordo com uma determinada inter‑
pretação, as gerações presentes estão vinculadas a exigências de justiça
na medida em que não poderão fazer com que determinados membros
de gerações futuras fiquem em condições de bem-estar abaixo daquelas
gozadas pela generalidade dos membros dessas mesmas gerações futuras.
Por outras palavras, a justiça (intergeracional) estabelece hoje um dever
de evitar que as gerações futuras vivam numa situação de desigualdade
(intrageracional) (Sher, 1979, p. 389). Uma outra interpretação sublinha
que a justiça dita a impossibilidade de fazer com que os membros de
gerações futuras fiquem em condições de bem-estar piores do que aquelas
gozadas pelas gerações anteriores. Assim, a justiça intergeracional impõe
hoje um dever de evitar que as gerações futuras fiquem numa situação
de desigualdade prejudicial perante as anteriores (Barry, 1999): o foco
incide não mais sobre a desigualdade intrageracional futura, mas sobre
a igualdade transgeracional.
Um segundo desafio consiste na determinação dos termos de com‑
paração que permitem concluir que uma situação de igualdade ocorre
entre pelo menos duas entidades. Igualdade, sim: mas “igualdade do
quê?” (Sen, 1982, pp. 353-69; & Dworkin, 2000, p. 11) Assim, onde
algumas interpretações preferem comparar os níveis de bem-estar dos
vários membros de uma sociedade transgeracional (isto é, ao longo de
várias gerações não simultâneas) (Honderich, 1976, p. 4; Layard,
2005, p. 111; Dworkin, 2000, p. 12), outras incidem o seu foco sobre
a igualdade dos recursos estruturais e institucionais disponíveis às várias
gerações (Rawls, 1999, sec. 44), outras ainda sublinham a importância
da igualdade de capacidades individuais básicas na obtenção do estilo de
vida valorizado (Sen, 1999, p. 75) ou até a igualdade medida por uma
escala contendo uma mistura de critérios determinativos de oportunidades
livres de obstáculos e de padrões mínimos de bem-estar (Cohen, 2011,
pp. 44-60). Não parece bastante, para o estabelecimento de uma teoria da
justiça intergeracional, a procura por uma resposta satisfatória à dúvida
acerca de “porquê a igualdade como critério de justiça”, sendo necessária
ainda a especificação do tipo de igualdade adotado.
Ainda assim, pode haver uma preferência por algum tipo de desigual‑
dade aquando da distribuição dos recursos que constituem uma certa noção
de justiça intergeracional. A mera possibilidade de preocupações iguali‑
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 51
tárias virem a justificar exclusivamente que certos membros de gerações
futuras fiquem em condições piores que as dos membros presentes ou as
dos seus contemporâneos chega a ser suficiente para afastar a igualdade
como critério determinativo da justiça intergeracional, em detrimento de
um critério conferindo prioridade e privilégios aos que se encontrem em
pior condição. É o que chega a fazer a “perspetiva da prioridade” (ou
prioritarismo) (Parfit, 1997, p. 213), segundo a qual devem ser produzidos
mais benefícios sobre os mais desfavorecidos mesmo que daí resulte um
acréscimo nas diferenças sociais e económicas entre os membros de uma
comunidade transgeracional. O objetivo de um tal redimensionamento
do critério determinativo da distribuição consiste em evitar que a justiça
como igualdade seja invocada para permitir um nivelamento por baixo
das condições de todos os membros de uma mesma comunidade. O ideal
da prioridade entende a justiça sobretudo no sentido da universalização
dos benefícios produzidos como consequência de exigências morais.
Qualquer falha no cumprimento desta universalização corresponde a uma
injustiça, mesmo que resulte na produção de maior igualdade.
Contudo, mesmo uma tal pretensão de universalização de benefícios
pode ter os seus limites. Estes são identificados sobretudo pelas visões
defensoras da justiça como “suficiência” (ou suficientarismo), segundo
as quais há exigências axiológicas no sentido de providenciar ao maior
número possível de indivíduos os meios suficientes de procura e obten‑
ção do estilo de vida valorizado (Frankfurt, 1987). Logo, a justiça não
corresponde a uma noção estrita de igualdade uma vez que aceita como
justas situações de desigualdade; ela corresponde sim à “perspetiva da
prioridade” sempre que os mais desfavorecidos estejam abaixo de um
limiar de suficiência que lhes permita a procura desse estilo de vida
valorizado; contudo, uma vez atingido e superado esse limiar, nenhuma
outra exigência moral será imposta. A justiça como que se torna dever
de universalização de um grau mínimo de existência – uma vez atingida
essa universalização, a justiça silencia-se quanto às relações intergera‑
cionais (Crisp, 2003).
Num certo sentido, a disparidade entre os padrões de medida da jus‑
tiça nas variantes teóricas das relações entre gerações não simultâneas
deixa transparecer as mesmas diferenças que se encontram nas teorias da
justiça mais gerais. Mesmo os esforços para superar uma tal disparidade
[no que constitui, por exemplo, uma tentativa de fundir as perspetivas
igualitária em sentido amplo, de prioridade, e de suficiência, cf. Page
(2006); Casal (2007)] não evitam uma tentativa de encontrar uma teo‑
52 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
ria da justiça ampla o bastante para envolver e prever necessariamente
a verificação de responsabilidades morais entre gerações. Porém, isso
resulta da exigência inerente a uma teoria da justiça intergeracional: que
reconheça a especificidade das relações entre gerações não simultâneas em
matéria de justiça, sobretudo quando comparadas com as relações entre
gerações contemporâneas (as chamadas comunidades intrageracionais);
mas que, dentro dessa originalidade no enfoque, se desenvolva enquanto
inerência teórica de uma específica reflexão sobre a justiça.
3. O que dizem as teorias da justiça intergeracional
Uma teoria da justiça intergeracional resulta do pressuposto de que
há uma dimensão axiológica relevante no estabelecimento (mesmo que
apenas ideal) de relações entre diferentes gerações. Nesse pressuposto está
implícita a possibilidade de vigência de elementos normativos (deveres,
obrigações, direitos, responsabilidades, princípios, etc.) cuja contraparte
inexiste no presente, porém não contém ainda qualquer razão positiva
que demonstre a validade desses elementos normativos, nem qualquer
definição dos seus conteúdos – cabe às teorias substanciais da justiça
intergeracional o fornecimento de uma argumentação, a seu tempo expli‑
cativa e justificativa, a favor da sua existência e/ou do seu conteúdo.
Em tais exercícios de especificação persistem diferentes aceções
quer das relações dos destinatários desses elementos normativos (a
saber: os membros das gerações do presente) com os recursos que lhes
estão disponíveis, quer do enquadramento temporal da legitimidade da
posse e do usufruto desses mesmos recursos; isto é, diferentes atitudes
perante problemas tipicamente metafísicos acarretam diferentes perspe‑
tivas no âmbito da filosofia prática respeitante apenas às relações entre
gerações não simultâneas. Por exemplo, uma teoria comutativa simples
reproduz os modelos da herança e da reparação: as gerações presentes
herdam dos seus antepassados os recursos que estes lhes deixam e esse
benefício como que é constitutivo de um encargo de restituição de um
benefício a outra geração, se não a mesma (que a não pode já receber),
uma outra por via novamente do mecanismo da herança – a relação dos
agentes morais com os recursos é neste caso uma de disponibilidade
semelhante à propriedade, e a sua transmissão de geração para geração
espelha o curso do tempo histórico. Num sentido oposto expressa-se o
tradicional provérbio índio-americano: “Não herdamos a terra dos nossos
antepassados, recebemo-la por empréstimo dos nossos filhos.” Aqui, o
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 53
modelo é o do empréstimo, não mais o da herança, o que implica não só
um aligeiramento da legitimidade do usufruto dos recursos, na medida
em que não haverá propriedade mas sim posse de algo pertencente a
outrem, mas também uma perspetiva do tempo no sentido psicológico
mais do que histórico, pois o empréstimo espelha o curso da memória,
da frente para trás, por uma geração de proprietários que nunca chega a
existir (porque está sempre no futuro, mesmo para as gerações futuras
que se tornarão presentes).
Alternativa a estas posições será ainda a tese da responsabilidade
de Hans Jonas, a qual pretendeu redefinir os elementos-chave da ética
ao introduzir-lhe um cuidado especial com o futuro e ao adaptá-la às
condições proporcionadas pelo recém-imenso poderio do humano face à
natureza (Jonas, 1979). Segundo Jonas, a questão intergeracional é uma
de sobrevivência da própria humanidade, uma vez que a ação humana
se tornou capaz de perigar, pela tecnologia, a própria habitabilidade do
planeta. A solução proposta passa por uma redefinição da ética que a
desligue de um centramento excessivo no homem e a distenda ao ponto de
incluir a conservação do mundo físico, mormente através de um princípio
de responsabilidade que supere os constrangimentos antropocêntricos da
reciprocidade e que exija a cada indivíduo a assunção de ações e limites
correspondentes que contribuam para a existência da humanidade futura
e para a preservação da ideia de homem. Ora, segundo Jonas, há uma
conexão entre o poderio ilimitado da tecnologia humana sobre os recursos
disponíveis e o facto de a ética tradicional ser profundamente antropo‑
cêntrica na medida em que relaciona sempre e apenas diferentes gerações
de humanos, quer num sentido histórico quer num sentido psicológico do
tempo. Por isso, a perspetiva da duração que lhe interessa é a do tempo
cósmico pois só assim a espécie humana assimilará que a sua relação
com os recursos disponíveis é uma de identidade (não de propriedade,
posse ou usufruto), e que a sua sobrevivência no longo prazo depende
tanto de uma reciprocidade com a natureza quanto de uma autolimitação
moral na qual a noção de responsabilidade adota um papel central.
Não obstante, qualquer uma destas três facetas tem em comum com
as restantes um entendimento da relação das gerações presentes com os
recursos disponíveis e com as gerações não simultâneas que requer a
já mencionada “proibição da despoupança” (Gosseries, 2015, pp. 14-7
e 145). Os valores ínsitos na relação entre as gerações começam por
tomar a forma de constrangimentos morais à possibilidade de esgotar
(ou diminuir ao ponto do dano irreversível) os recursos gozados. Os fun‑
54 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
damentos da força vinculativa desses constrangimentos é que começam
por ser diferentes. Mesmo assim, será demasiado simplista reduzir todas
as teorias da justiça intergeracional a um tronco comum que proíba a
despoupança, sobretudo porque pode haver argumentos a favor de uma
obrigatoriedade de certas poupanças ou em desfavor de uma inércia de
investimentos cujos benefícios recaiam sobre outras gerações. Os tra‑
ços peculiares dessas teorias são discerníveis de maneira mais fácil no
seguinte elenco exemplificativo.
3.1. Teoria da reciprocidade indireta
O paradigma elementar de uma teoria comutativa da justiça interge‑
racional consiste no mecanismo da reciprocidade indireta. Num contexto
intrageracional, a clássica ideia de justiça enquanto suum cuique tribuere
(“dar a cada um o que é seu”) requer a operacionalização de um equilíbrio
social entre aquilo que cada um contribui para o bem-estar de outrem e
aquilo que cada contribuinte recebe de bem-estar de outrem. Os deveres
para com alguém nascem e justificam-se a partir do facto de esse alguém
haver beneficiado previamente de alguma maneira o agente – devolve-se
a quem deu o bem o mesmo bem que começou por ser dado (o “seu”), e
nessa reciprocidade cumpre-se a justiça. Esta perceção do justo teve uma
disseminação popular muito alargada nas sociedades contemporâneas, e
dela dependem várias construções de distribuição da riqueza, como por
exemplo se nota nos sistemas públicos de segurança social do modelo
social europeu do pós-guerra, em que as contribuições se justificam não
apenas num senso de solidariedade social entre gerações simultâneas mas
também na expectativa de que os contribuintes de hoje venham a ser
beneficiados enquanto recetores das contribuições do futuro.
Num contexto intergeracional alargado (intertemporal), porém, não é
possível essa reciprocidade. Mas isso não invalida forçosamente que a
necessidade de devolução de benefícios cedidos se extinga num enquadra‑
mento conceptual da justiça pois a ausência de reciprocidade direta resulta
da inexistência presente da geração credora, não da geração devedora.
Daí a salvaguarda de um princípio de reciprocidade intertemporal, o qual
faz transmitir os benefícios em crédito a outra geração ao jeito de uma
herança – os credores, porque já desaparecidos na fatalidade do passado,
transferem aos seus descendentes os seus créditos, mas para evitar que
a reciprocidade se extinga por devedor e credor serem a mesma enti‑
dade, os descendentes que herdam são afinal os descendentes indiretos,
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 55
isto é, os membros da geração subsequente à dos devedores. Por outras
palavras, opera então um princípio de reciprocidade indireta: cada gera‑
ção deve algo às gerações seguintes porque recebeu algo das gerações
precedentes (Barry, 1989, pp. 211-41; De-Shalit, 1995, pp. 96-9; &
Wade-Benzoni, 2002).
Avoluma-se assim um conjunto de deveres em cadeia conectando
todas as gerações não simultâneas. A geração do presente deve algo à
subsequente em razão de haver recebido algo da anterior, a qual por seu
turno devia à presente o que lhe deixou em razão de haver recebido algo da
anterior, e assim sucessivamente (ou melhor, “regressivamente”). Não só
há deveres para com as gerações futuras, como esses deveres se justificam
à luz de uma relação com o passado. O exato conteúdo desses deveres,
ainda assim, não é de fácil determinação, embora a mera formalidade
da justificação já indicie um mínimo substantivo de equiparação entre o
que se recebeu e o que se retribui, pelo que a geração do presente deverá
então à subsequente algo pelo menos equivalente àquilo que recebeu da
anterior, o que não invalida que não possa eventualmente dever mais.
O mais importante é que se mantenha válida a ideia de restituição dos
benefícios, mesmo que indiretamente, e sobretudo que as relações de
deveres entre as gerações permitam um equilíbrio intertemporal em que
cada geração recebe igualmente encargos e benefícios, deixando sempre
algo para o futuro.
3.2. Utilitarismo
Longe da ideia de reciprocidade, destaca-se um modelo teórico segundo
o qual uma justa organização da sociedade é aquela que maximiza o bem‑
-estar dos seus membros, sobretudo da perspetiva do agregado. Este é
o modelo típico das teorias utilitaristas. O utilitarismo clássico nasce da
necessidade de superar a insatisfação com uma teoria do bem assente num
referente moral (como a justiça ou o dever) cuja objetividade independe
dos resultados práticos suportados pelos agentes. Em alternativa, o valor
moral de uma ação ou regra passa a ser determinado em vista das suas
consequências, no que constitui uma teoria do bem para alguém. As
consequências de uma ação ou de uma regra determinam-na como boa
ou má consoante sejam capazes de efetivar o que a própria natureza dos
agentes assume como algo a ser buscado necessariamente.
Porém, a valoração moral da ação ou da regra não surge a poste-
riori da mera observação dos resultados obtidos. Ao invés, ocorre com
56 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
a conformação da ação ou regra a um princípio que vise a otimização
do resultado. Trata-se do “princípio da utilidade”, entendido no sentido
clássico como “princípio da maior felicidade” (ou bem-estar) ou num
sentido moderno de “princípio de maximização do capital”: algo é bom
porque é útil na promoção da felicidade, do bem-estar ou dos recursos
disponíveis. A moral torna-se relevante ao prescrever a maximização do
bem, isto é, o princípio da utilidade impõe a necessidade de se dar origem
às melhores situações e é então um princípio de otimização (não um
imperativo determinando o bom e o mau de maneira absoluta) segundo
o qual o atingir do estado melhor possível (aquele mais próximo de um
ideal máximo de bem-estar ou capital, mensurado ora quantitativamente
ora qualitativamente) constitui a meta principal.
Neste encadeamento, não é estritamente necessário que a esfera dos
valores morais se expresse por deveres, obrigações e direitos. Isso mesmo
conota-se na habitual distinção contemporânea entre utilitarismo dos atos
e utilitarismo das regras. Segundo o primeiro, a justificação moral de
uma determinada ação depende do valor das suas consequências, isto é,
do valor intrínseco das consequências às quais ela conduz diretamente
enquanto comparado com o valor intrínseco das consequências previsí‑
veis das respetivas alternativas; e, segundo o utilitarismo das regras, a
justificação moral de uma ação depende dela ser conforme a determinadas
regras cuja validade depende, por sua vez, das consequências de que deriva
a sua aceitação (consequências tão boas ou melhores do que aquelas a
que conduziria a aceitação de qualquer sistema de normas alternativo).
Não obstante, esta é uma simplificação exagerada. É verdade que o
sentido clássico do princípio da utilidade cabe dentro da descrição lata
do chamado utilitarismo dos atos; mas será importante notar que ele se
aplica tanto aos atos individuais quanto às decisões políticas, sobretudo
se legislativas. O princípio de maximização do bem-estar ou da eficiên‑
cia que orienta o político não se dirige apenas ao ato de aprovação de
legislação, mas ao próprio funcionamento do sistema jurídico como um
todo. Por conseguinte, o princípio de utilidade, mesmo na versão mais
clássica, constitui um utilitarismo dos atos na sua dimensão individual;
mas constitui também um utilitarismo das regras na sua dimensão de
otimização pública. Os dois tipos de utilitarismo não são necessariamente
incompatíveis se entendidos como diferentes faces de um princípio gra‑
dativo de utilidade.
Esta diluição da dicotomia é importante, uma vez que as teses utili‑
taristas dificilmente se confinam ao simplismo com que são tantas vezes
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 57
descritas. Por exemplo, ao contrário do que frequentemente se lê, não
há uma necessária conexão conceptual entre o princípio da utilidade e
um agregacionismo simples dos valores, isto é, o utilitarismo não exige
necessariamente que a avaliação das situações deva ser indiferente à
distribuição do bem, consistindo no mero apuramento do bem total ou
médio através da soma dos custos e benefícios para todos os indivíduos
afetados. Esta assimilação do utilitarismo ao agregacionismo conduz
em último caso à tolerância do sacrifício de inocentes para benefício
da maioria conquanto isso produza um agregado (total ou médio) de
bem-estar ou capital superior àquele que proteja as minorias. Ora, tal
interpretação assenta tão-só na versão mais simples do princípio da uti‑
lidade. Na verdade, é concebível que o utilitarismo coloque a ênfase dos
critérios morais não no princípio determinativo dos meios para obter um
resultado, mas no princípio determinativo do fim a atingir.
Nesta formulação, a justificação moral de ações e políticas depende
do valor relativo das suas consequências dentro de um contexto geral
em que a maneira de distribuição do bem-estar ou do capital seja mais
ou menos igual. Não há aqui em rigor um problema de encontrar um
critério de comensuração de dois valores heterogéneos como o bem‑
-estar e a igualdade com base no qual seja possível estabelecer a qual
deles se deva atribuir precedência em caso de conflito, isto porque a
igualdade não surge como valor comensurável ao bem-estar mas sim
como elemento da otimização do bem-estar. A igualdade (de meios, de
poder, de riqueza, de felicidade) é aqui um meio de garantia da maior
eficiência do bem-estar – a distribuição geral não é apenas agregativa
(total ou média) mas sobretudo equitativa da maior agregação possível.
Neste sentido, todos os índices de bem-estar individual contam, no que
está longe de ser uma promoção do sacrifício de inocentes.
Tudo isto é transportável para o contexto intergeracional na medida
em que o justo será então determinado a partir de um princípio de maxi‑
mização do tamanho do bolo dos recursos disponíveis (incluindo bem‑
-estar e capital) numa mesma comunidade durando indefinidamente (e
portanto perpassando várias gerações não simultâneas). Torna-se então
viável uma versão utilitarista da proibição da despoupança conquanto o
adiamento do consumo de uma parte dos recursos disponíveis para um
momento temporal ulterior da vida de uma comunidade permita no longo
prazo aumentar o bem-estar ou o capital agregado de uma maneira que
não seria possível sem essa proibição (Liedekerke & Lauwers, 1997;
Asheim & Buchholz, 2007).
58 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
À luz de uma perspetiva igualitarista, a ideia de que as gerações
supostamente mais desfavorecidas (por se encontrarem ainda numa fase
inicial do processo de acumulação do agregado) terão de fazer os maio‑
res sacrifícios para aumentarem um bolo cujos benefícios consequentes
serão gozados por outras gerações constitui uma atualização de injustiça,
nunca de justiça (Gosseries, 2015, p. 150). Porém, tamanho contraste
advém da confusão conceptual entre utilitarismo e agregacionismo. É que
o agregado de bem-estar e capital medido ao longo das várias gerações
nunca está quantitativamente fechado, uma vez que a vida da comunidade
se prolonga no tempo, e cada nova geração supõe a existência futura de
uma outra geração que integrará esse mesmo agregado. Neste sentido,
o utilitarismo aplicado às relações entre gerações não simultâneas não
exige um despropósito da taxa de poupança (um sacrifício de gerações
mais desfavorecidas) porque o agregado provisoriamente contabilizado
num momento (presente) inclui elementos fixos (o número de membros
das gerações do presente e do passado) e elementos apenas possíveis
(a estimativa indefinida de membros das gerações futuras), sendo então
concebível que haja uma primazia dos elementos fixos em detrimento
dos elementos possíveis (indefinidos ao ponto da possível infinitude) na
aferição do bem-estar e do capital do todo. Uma vez mais, o cerne das
teorias utilitaristas reside num princípio de otimização que leva em conta
todos os membros do agregado, e tratando-se neste caso de um “agregado
aberto” (que então nunca chega verdadeiramente a estar “agregado”), a
proibição da despoupança não pode ser absoluta ao ponto de prejudicar
a maximização do bem-estar e do capital disponíveis, quer às gerações
presentes quer às gerações futuras. Existe aqui um elemento mínimo de
equidade atendível, embora mais qualificativo da aferição do agregado
do que propriamente classificativo da justiça entre as gerações.
3.3. A multiplicidade de igualitarismos
A par das conceções comutativa e agregativa da justiça entre as gera‑
ções, a preferência por distribuições igualitárias dos recursos disponíveis
a cada geração dá azo a diferentes tipos de igualitarismos consoante a
noção de igualdade acolhida.
De uma perspetiva comunitarista – a qual coloca a ênfase da con‑
vivência inter-humana na preexistência de uma comunidade em que se
inserem os indivíduos, ao invés de serem estes a constituí-la a partir de
uma condição de individualidades isoladas –, a consideração de que as
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 59
sociedades políticas precedem o indivíduo e são por definição transge‑
racionais permite que os elementos normativos nelas vigentes tenham
em conta os interesses e os direitos de indivíduos pertencentes a grupos
sociais com uma existência estendendo-se desde o passado até ao futuro.
Desta maneira, é a própria transgeracionalidade das comunidades já
existentes que garante a necessidade de qualquer teoria da justiça ter já
de contemplar a sua inserção ao longo de um período temporal equiva‑
lente ao da duração dessas comunidades. As relações de justiça não se
estabelecem assim entre indivíduos de diferentes gerações mas sim entre
indivíduos e as suas comunidades transtemporais.
A inserção dos indivíduos numa comunidade com uma duração superior
à humana, e por isso necessariamente transgeracional, importa no âmbito
da justiça na medida em que a sociabilidade se funda em “interesses indi‑
viduais transcendendo o tempo de vida” (Thompson, 2009a). Trata-se de
interesses comuns aos indivíduos membros de uma mesma comunidade
ao longo do tempo, referentes ao próprio tempo da comunidade, como
por exemplo as preocupações com o futuro dos descendentes, o cuidado
com as reputações póstumas, o respeito pelos antepassados ou o destino
de projetos deixados pendentes no momento da morte (v.g., testamento).
A comunhão desses interesses, que se repetem ao longo das gerações,
justifica quer a ideia de pertença a uma comunidade, quer as exigências
entre gerações. Por conseguinte, será expectável que cada membro da
comunidade esteja vinculado a um princípio de respeito pelos “interesses
individuais transcendendo o tempo de vida” quanto a todos os membros
dessa comunidade ao da duração (efetiva e por efetivar) do coletivo.
O próprio interesse presente de cada membro da comunidade tenderá a
expressar-se pela manutenção de hábitos e instituições que produzam e
permitam a reivindicação e a satisfação de “interesses individuais trans‑
cendendo o tempo de vida” por parte de membros futuros, uma vez que
isso garantirá a permanência de uma identidade comunitária ao longo
do tempo, no que constituirá um reforço da possibilidade de satisfação
dos “interesses individuais transcendendo o tempo de vida” do presente
(Thompson, 2009b). A justiça intergeracional não é apenas uma dimensão
axiológica entre gerações – é sobretudo, neste contexto comunitarista,
uma característica da coesão cultural de uma comunidade.
O que há de igualitário à luz do comunitarismo é precisamente a
ausência de primazia de qualquer geração no tempo histórico da comu‑
nidade; mesmo as gerações do presente constituem apenas a atualização
da vida da comunidade, pelo que os próprios recursos estão disponíveis
60 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
enquanto pertencem à comunidade como um todo ao longo do tempo.
A igualdade aqui invocada na distribuição do gozo desses recursos é
então uma consequência de uma rejeição de prioridades ou privilégios
medidos tão-só em função do tempo.
Completamente distinta é a versão de igualdade da perspetiva liber-
tarista, a qual parte de pressupostos contrários aos do comunitarismo.
O foco de referência não é mais o indivíduo na comunidade, mas o
indivíduo diante da comunidade, aquele que assume a liberdade pessoal
como um valor absoluto oposto à autoridade mais do que dependente
dela. Nas palavras de Roderick Long, libertarismo é “qualquer posição
política que advogue uma radical redistribuição do poder do Estado
coercitivo para associações voluntárias de indivíduos livres” (Long,
1998, p. 304). Daí a autonomia do indivíduo preceder conceptual e
cronologicamente a existência da comunidade, quer nas versões liber‑
taristas mais conservadoras e adeptas de um poder político mínimo
(“minarquistas”), quer nas versões mais radicais e adeptas de um poder
político ausente (“anarquistas”). O que mais caracteriza o libertarismo
(distinguindo-o de outras formas de individualismo) será porventura a
conceção da autoridade mais como obstáculo ao desenvolvimento das
liberdades pessoais do que auxiliador eficaz na produção das mesmas,
uma vez que a própria autoridade é desde logo entendida como um coartar
dessas liberdades. O indivíduo é-o enquanto livre, isto é, dotado de um
domínio de si próprio, com direitos morais e os poderes conexos de se
apropriar de recursos exteriores (ainda) não possuídos.
Num tal contexto, será expectável que o estabelecimento de deveres
nas relações entre gerações não seja um fácil expediente. A proibição
da despoupança em prol de gerações futuras será justificada tão-só em
circunstâncias tais que direitos morais da liberdade de outrem sejam
violados caso inexistam tais responsabilidades intergeracionais. No
fundo, quaisquer deveres limitativos de ações no presente com vista ao
benefício de gerações futuras acarretariam um sacrifício de liberdades
individuais presentes em favor de liberdades individuais futuras, ainda
apenas possíveis e contingentes. Daí a cautela com que vozes libertaris‑
tas abordam a temática da justiça intergeracional. Não obstante, o facto
de serem estabelecidas relações entre direitos morais efetivos e direitos
morais possíveis, se bem que insuficiente para impor uma noção de
justiça transtemporal que coarte substancialmente o exercício das liber‑
dades individuais das gerações presentes, é no entanto bastante para não
permitir uma satisfação tamanha de direitos presentes que invalide sequer
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 61
a possibilidade de indivíduos por existir virem a gozar dos seus próprios
direitos. Daí a adoção de um limite preciso às liberdades individuais das
gerações presentes que, pela sua amplitude e necessidade intrínseca à
própria natureza da liberdade com outros, opere como regulador das rela‑
ções intrageracionais e, consequentemente, também das transgeracionais.
Assim, a igualdade determinativa da justiça neste contexto é, como o
léxico bem o indicia, apenas referente à liberdade dos indivíduos – uma
igualdade de direitos face aos recursos, uma igualdade de tratamento dos
indivíduos no respeitante ao gozo e ao exercício dos seus direitos, nunca
uma igualdade dos próprios recursos nem uma partição equitativa dos
referentes da propriedade. Todavia, para que essa igualdade da liberdade
seja assegurada, é necessária uma espécie de provisão normativa que
chegue a vincular os indivíduos ao ponto de os submeter a uma limi‑
tação das suas capacidades de despoupança – e essa mesma provisão é
inspirada pelo pensamento de Locke, para quem a propriedade faz com
que “nenhum homem exceto ele [o proprietário] tenha um direito sobre
aquilo a que se associou, pelo menos onde haja o bastante e o satisfatório
deixado em comum a outros” (Locke, 1988, p. 288).
Esta “provisão de Locke” consiste no conteúdo da expressão “pelo
menos onde haja o bastante e o satisfatório deixado em comum a
outros”, ou seja, a sua aplicação ao cenário intergeracional dependerá
do modo como se entende o que haja de ser considerado “bastante” e
“satisfatório” (cf. Elliot, 1986; Arneson, 1991; Mack, 1995; & Wolf,
1995). Tendencialmente, o “pelo menos” é mensurado em termos de
equivalência, com formulações várias consoante as características do
quinhão de recursos deixado. Por exemplo: “A legitimidade persistente
da propriedade privada, do ponto de vista da propriedade de si, depende
do facto de cada geração sucessiva beneficiar do equivalente de uma fatia
por cabeça da terra não melhorada e não degradada” (Arnerson, 1991,
p. 53). Nesta formulação, a ênfase recai sobre as gerações ao invés de
sobre os indivíduos, e os limites implícitos não contemplam a possibili‑
dade de terem de ser violados por motivos supervenientes. Daí uma outra
formulação: “Nenhum indivíduo poderá deteriorar ou esgotar mais do
que a sua parcela per capita de recursos naturais sem uma compensação
adequada.” (Steiner & Vallentyne, 2009, p. 63). Porém, neste caso,
é deixada em aberto a natureza concreta dos recursos disponíveis aos
indivíduos de cada geração, o que não permite compreender o “quê”
cuja despoupança a provisão de Locke é suposto proibir. Numa formu‑
lação mais abrangente, uma visão libertarista da justiça intergeracional
62 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
poderá expressar-se do seguinte modo: cada indivíduo de uma geração
“deve deixar à seguinte pelo menos tanto quanto aquilo de que a geração
seguinte poderia ter-se apropriado no caso em que a geração atual não
tivesse existido, ou melhor, no caso em que a geração atual não tivesse,
pela sua ação, conduzido a qualquer melhoria ou degradação clara do
que a geração subsequente teria herdado” (Gosseries, 2015, p. 143).
O modelo em questão não é tanto o da herança por respeito aos
direitos dos indivíduos de um pretérito que se transferem para os direitos
dos indivíduos do presente, senão uma igualdade das condições formais
de todos os direitos de todos os indivíduos no acesso aos recursos não
necessariamente transformados (para melhor ou para pior) cujo gozo esteja
disponível. Em última análise, a reposição das condições de originalidade
resume-se ao quesito de cada indivíduo deixar ao porvir uma condição
de liberdade pelo menos idêntica àquela que existiria se ele não houvesse
existido. É afinal uma exigência de tornar igual (num sentido formal)
a liberdade entendida como ausência de restrições ilegítimas à ação
potencial dos indivíduos. Um entendimento da liberdade neste sentido
conduz ao reconhecimento de uma tal provisão enquanto elemento de uma
justiça que não pode deixar de ser também transgeracional, sempre com
a temática da escassez dos recursos naturais como ponto de referência.
Já diferente será uma teoria da justiça em moldes contratualistas com
espaço para princípios de justiça intergeracional, como ocorre com o
igualitarismo liberal de John Rawls, o qual aborda a questão das condi‑
ções em que um conjunto de indivíduos elegeria princípios e instituições
justos, isto é, as condições em que eles escolheriam o que conduzisse a
uma sociedade bem ordenada. A sua teoria da justiça é pensada sobretudo
num contexto intrageracional em que o conceito de contrato social tem
um papel preponderante. Os princípios de justiça são então concebidos
como resultados de um contrato (hipotético e a-histórico) elaborado
a partir de uma “posição original” dos indivíduos, em que as partes
contratantes se encontram numa situação que exige a fundação de um
conjunto de princípios vinculativos na estrutura da sociedade em que elas
mesmas irão viver; todavia, cada indivíduo decide apenas por detrás de
um “véu de ignorância”, desconhecendo portanto todas as características
que lhe poderiam trazer vantagens ou desvantagens na vida social, tais
como as suas posições de classe ou fortuna, as suas capacidades, as suas
inteligência e força, as suas conceções do bem. Numa tal situação, Rawls
considera que os indivíduos optariam de acordo com uma estratégia
maximin, segundo a qual favoreceriam a alternativa cujo pior resultado
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 63
possível fosse menos mau do que o pior resultado possível de qualquer
das outras. Dessarte, decidiriam vincular-se a dois princípios: o princípio
da liberdade individual compatível com a liberdade alheia; e o princípio
da diferença, de acordo com o qual as desigualdades apenas se justificam
se favorecerem os mais carenciados.
Este enquadramento intrageracional, contudo, não é facilmente passível
de transposição para o contexto intergeracional, dado que o princípio da
diferença não pode vincular as gerações do presente face a indivíduos
da mesma sociedade cuja situação de carência seja insuperável em fun‑
ção do decurso do tempo (gerações anteriores menos afortunadas, por
exemplo). Daí a atenção de Rawls à especificidade das relações entre
as gerações, formulando um novo princípio de justiça a que chamou de
“princípio da poupança”.
Retomando a tese da “posição original” e do “véu de ignorância”,
relembra que o desconhecimento dos indivíduos nessa condição inclui a
pertença a um tempo específico e a consequente inclusão numa geração,
pelo que na posição original todas as gerações estão potencialmente
representadas. Cada indivíduo sabe que pertencerá a uma geração, mas
o véu de ignorância impede-o de conhecer qual a geração específica que
integrará. Daí a necessidade de determinar um limiar de justiça abaixo
do qual nenhum indivíduo em nenhuma geração aceitaria viver, e que
por conseguinte impõe-se como princípio de justiça a salvaguardar por
todas as gerações (Rawls, 1999, sec. 44, pp. 254-5).
Segundo Rawls, as relações de justiça entre gerações modificam-se
consoante as diferentes fases de desenvolvimento social, havendo duas
grandes fases a considerar. Numa fase de acumulação, as gerações pre‑
sentes estarão adstritas a um princípio de poupança na medida em que
esta seja necessária para permitir às gerações subsequentes a permanência
acima de um limiar mínimo de justiça, o qual é descrito por Rawls como
o conjunto das “condições que são necessárias para estabelecer e preservar
uma estrutura básica justa ao longo do tempo” (Rawls, 2001, p. 159).
Numa fase ulterior de estabilidade, em que as instituições justas estejam
já suficientemente estabelecidas, o princípio de poupança dá lugar tão-só
à responsabilidade de fazer aquilo que permita às gerações subsequentes
continuar a viver ao abrigo dessas instituições justas, mormente deixando
cada geração à seguinte pelo menos o equivalente àquilo que receba da
geração anterior (Rawls, 1999, pp. 255-8).
Neste sentido, não é rigoroso sustentar que a posição de Rawls sobre
a justiça intergeracional seja simplesmente igualitarista quanto à distri‑
64 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
buição dos recursos disponíveis a cada geração; na verdade, a taxa de
poupança da fase de acumulação justifica-se em razão da necessidade
de se instalarem instituições justas que protejam as liberdades básicas
de todos os indivíduos (v.g., integridade física, liberdade de expressão,
etc.), pelo que o seu fim é sempre atinente à estrutura fundamental da
sociedade e o meio de o atingir não se pode contradizer. O que importa
a Rawls é assegurar uma igualdade das oportunidades abertas a cada
indivíduo de cada geração por via da sua inserção numa estrutura básica
da sociedade em que os princípios de obtenção da justiça sejam aplicados.
Assim, a fase de estabilidade numa sociedade justamente estruturada não
se atinge à custa de violações das liberdades básicas na fase de acumu‑
lação, dado que a igualdade almejada não é substantiva e portanto não
permite que as liberdades sejam derrogadas pelo objetivo de melhorar
as condições sociais e económicas dos mais desfavorecidos (de facto ou
em potência). Mister é, sim, que os indivíduos de diferentes gerações
acordem na vinculação a princípios de justiça que garantam aos membros
de cada geração o serem integrados numa estrutura básica de sociedade
que proteja os seus direitos mais fundamentais – e sendo a igualdade
de oportunidades uma dessas liberdades individuais protegidas, então o
princípio da poupança será um desses princípios de justiça acordados,
mesmo que provisório porque formulado para atingir um fim (e, uma
vez atingido, deixa de se justificar a sua vinculação).
Em A Theory of Justice [1971], Rawls justifica esta transversalidade
temporal do princípio da poupança numa “presunção motivacional”
segundo a qual os indivíduos contraentes preocupam-se com os seus
descendentes e assim estarão dispostos a poupar para seu benefício.
Mas como esta justificação não se refere à geração presente como uma
ponte de conexão contínua de princípios institucionais de justiça entre
gerações passadas e gerações futuras (conexão essa que obriga a deixar
à geração seguinte o equivalente àquilo deixado pela geração anterior),
Rawls reelabora em Political Liberalism [1993] a formulação do seu
princípio da poupança justa de maneira a torná-lo aplicável a todas as
relações entre gerações e não apenas à linha sucessiva presente-futuro:
“Ao invés de imaginar um acordo direto (hipotético e não histórico)
entre todas as gerações, poderá ser requerido às partes que acordem num
princípio de poupança sujeito à condição ulterior de que deverão querer
que todas as gerações anteriores a tivessem seguido. Assim, o princípio
correto é aquele que os membros de qualquer geração (e portanto todas
as gerações) adotariam como aquele a ser seguido pela sua geração e
TEORIAS DA JUSTIÇA INTERGERACIONAL 65
como o princípio que eles quereriam que as gerações precedentes tives‑
sem seguido (assim como as gerações seguintes), independentemente
de quão mais se recuasse (ou se adiantasse) no tempo.” (Rawls, 1993,
p. 274. Quanto a este desvio no pensamento de Rawls, cf. Gosseries,
2001, pp. 311-2).
Rawls esforça-se por aprimorar a espessura do “véu de ignorância”
no respeitante à geração a que cada indivíduo pertencerá, mas no fundo
fá-lo à custa da pureza da “posição original” (pois passa a presumir que
nenhum indivíduo pode fazer parte da primeira geração de uma sociedade
justa, uma vez que pressupõe sempre gerações anteriores) e do mecanismo
do contrato (enquanto disposição normativa sempre virada para o futuro),
o que acaba por sujeitá-lo a diversos géneros de crítica. (Cf., apenas a
título de exemplo, quanto aos seguidores: Paden, 1997; Tremmel, 2009.
E, quanto aos críticos, Dierksmeier, 2006; Birnbacher, 2006.) Porém,
isso não é bastante para perigar a sua versão liberal-igualitária da justiça
entre as gerações. Desde logo, porque a “posição intermédia” de cada
geração é posta na atualidade da História de uma comunidade, enquanto
a “posição original” é apenas pressuposta para efeitos de aferição dos
princípios constitutivos de uma estrutura social justa. Por outro lado, o
“contrato” em Rawls é apenas uma maneira de entender a necessidade
de acordo entre todos os indivíduos de uma mesma comunidade quanto
a esses mesmos princípios de justiça – é o consenso (não histórico) em
torno da proibição da despoupança que justifica a vigência de uma con‑
ceção de justiça cuja atualização é, mais do que histórica, trans-histórica.
(Num sentido revisionista de Rawls, segundo o qual o consenso em torno
da proibição da despoupança na fase de estabilidade é insuficiente para
fundamentar uma justiça entre as gerações, sendo necessário adicionar
uma proibição da poupança para benefício das gerações futuras, cf.
Gosseries, 2015, pp. 165-8.)
Todas estas teorias da justiça fornecem instrumentos que ensejam
a abordagem do tema da justiça intergeracional através de diferentes
perspetivas que, se aprofundadas nos seus argumentos, podem gerar
uma multiplicidade de implicações. Tal ocorrerá sobretudo se às linhas
gerais aqui apresentadas forem adicionadas algumas variáveis próprias
da conjuntura empírica. Por exemplo, cada uma destas teorias pode ter
uma solução específica para o problema das flutuações demográficas
contemporâneas – as alterações no número de membros de uma comu‑
nidade podem, ora modificar o conteúdo do que se acredita dever deixar
às gerações seguintes, ora manter a mesma grandeza em jogo, consoante
66 ANDRÉ SANTOS CAMPOS
a teoria adotada. Da mesma maneira, o facto de uma geração anterior
haver cumprido ou não as obrigações que a geração presente reconhece
serem vinculativas perante todas as gerações pode também, segundo
diferentes teorias, afetar ou não a extensão e a natureza das responsabi‑
lidades perante as gerações subsequentes (futuras).
E tudo isto sem chegar a abordar as características específicas dos
recursos disponíveis e do capital usufruído/produzido que constituem a
substância das responsabilidades entre as gerações (v.g., se estão em jogo
pensões de reforma, lixo industrial, juros de dívida pública, capacidades
de armamento, migrações em massa, escassez de recursos ambientais e
alimentares, taxas de desemprego, enquadramentos normativos a proble‑
mas de bioética como o aborto, a eutanásia e a procriação medicamente
assistida, etc.). Em última análise, levar a sério os modelos basilares das
mais notórias teorias da justiça intergeracional pode ser determinante para
lidar com problemas próprios das sociedades contemporâneas, sobretudo
no que elas têm de potencial e limitativo em relação ao seu futuro. Mas
o debate, apesar de longo, está ainda longe de conseguir demonstrar a
existência de uma justiça intertemporal cuja imperatividade se torne
desígnio primordial das sociedades de hoje, quando mais de conseguir
uniformizar uma definição mínima dos contornos dessa responsabilidade
entre as gerações. Caberá a uma cidadania eficiente assimilar o plano
teórico na práxis do quotidiano e não permitir que todos estes argumentos
não passem de experiências inconsequentes do pensamento.
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Wolf, 1995. Clark Wolf, “Contemporary Property Rights, Lockean Provisos and the
Interests of Futures Generations”, Ethics, 105 (1995), pp. 791-818
A Comunidade Política e o Futuro
Miguel Morgado*
Quase sempre nas discussões especializadas ou não especializadas
sobre as questões “intergeracionais” pressupõe-se a relação da comunidade
política com o futuro e, por conseguinte, pressupõe-se também a situação
da comunidade política no tempo. Esses pressupostos nem sempre são
explicitados, o que as mais das vezes significa que não são devidamente
considerados e refletidos. Ora, é essa consideração que importa incluir
como uma espécie de preâmbulo dos debates sobre os múltiplos temas
“intergeracionais”, assim como na longa discussão em torno do regime
político, em geral, e da democracia, em particular. É este o breve momento
que deve ser aproveitado para pensar nos pressupostos não explicitados.
No mundo quotidiano, a primeira pergunta que se impõe na pondera‑
ção de uma relação entre a comunidade política e o futuro é a de se essa
comunidade tem futuro. À partida, a pergunta instintiva parece não fazer
sentido, já que a ausência de futuro de um ser só poderia ser decretada
pelo desaparecimento total do mundo que o contextualiza. Logo, no
caso de uma comunidade política, só uma catástrofe inominável, ou um
escathon apocalíptico, poderia justificar a formulação dessa pergunta.
Por outro lado, colocar a pergunta do futuro da comunidade política
parece não fazer qualquer sentido pela simples razão de o futuro não
poder ser posto em questão, ou sequer constituir uma “questão”. Afinal
de contas, nenhuma comunidade política nasce com a finalidade de
não perdurar, ou com prazo de expiração determinado por si mesma.
Foi também com esse propósito de iluminação que desde a fundação
da teoria da soberania moderna se expôs a perpetuidade como uma das
suas “marcas”. Bodin (1986, I.6), ao dizer que a soberania era, além
de absoluta e indivisível, perpétua também, queria assinalar que ela era
* Miguel Morgado é Professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica. É atualmente deputado à Assembleia da República.
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 71
uma potência que não conhecia delimitação temporal, ao contrário, por
exemplo, da instituição da “ditadura” na república romana, cuja duração
estava bem delimitada no tempo. Daqui decorre uma consequência muito
importante. A comunidade política, em particular na sua versão moderna,
não precisa de encontrar uma justificação externa a si para existir e con‑
tinuar. E, por conseguinte, não precisa de uma justificação ulterior para
se defender daqueles que interna ou externamente pretendem extingui-la
(Montesquieu, 2011, XI.5).
Porém, a comunidade política não é uma entidade qualquer indi‑
ferenciada de tantas outras. De facto, a comunidade política coloca a
si mesma, e de modo constante, a questão do seu próprio futuro. Em
termos mais coloquiais: ela pode ter futuro? Mas esta formulação deve
ser fundamentada no essencial. Por exemplo, Portugal enquanto comuni‑
dade política vive desde há muito tempo um período de ansiedade, seja
devido à “crise”, à “Europa”, à degradação institucional, ou outra das
“causas” enunciadas no debate público. Contudo, a questão de saber se
tem futuro não é coincidente com uma resposta terapêutica superficial
dessa ansiedade, como se tratasse de efetuar um tratamento clínico cole‑
tivo, como os apelos à autoestima ou outros exercícios cívicos mais ou
menos desnorteados. O problema é outro e mais fundamental.
Qualquer comunidade política enfrenta o problema do futuro, desde
logo enquanto sobrevivência no tempo como comunidade autónoma,
isto é, capaz de determinar uma vontade coletiva ou universal que dê
uma orientação às intenções, quando não dos movimentos e resultados
históricos, da própria comunidade. Dado que essa é a questão primeira,
então é preciso examinar qual o futuro do conteúdo – conteúdo cívico,
digamos assim – que constitui o requisito primordial da autonomia da
comunidade. Ora, esse requisito é a cidadania. Não existe comunidade
política autónoma sem cidadãos. Mas isso implica a distinção entre
cidadãos e não cidadãos. Este é apenas um aspeto posto em causa pelo
preconceito ideológico que densifica várias correntes (das extremas‑
-esquerdas a alguns liberalismos) e que denuncia em termos morais essa
distinção – precisamente a distinção que necessária e incontornavelmente
funda a cidadania. Sem essa distinção, a cidadania não existe, e sem ela
a comunidade política autónoma também não existe. O seu passado,
presente e, claro, futuro requer essa distinção, tal como essa distinção é
absolutamente necessária à relação demiúrgica que o “povo constituinte”
da comunidade política tem com ela e com o seu futuro. A comuni‑
dade existe por vontade – por fiat – do povo que a constitui, e é esse o
72 MIGUEL MORGADO
entendimento basilar do exercício da soberania nos tempos modernos.
Só um “povo constituinte” diferenciado de outros “povos constituintes”
pode ser este criador e este sustentador do ser da comunidade política.
Assim sendo, a tese da arbitrariedade moral das fronteiras políticas, que
sem dificuldade desliza para a ilegitimidade simpliciter das mesmas, é
uma das muitas formas da negação de futuro às comunidades políticas,
diluindo-as no vasto oceano indiferenciado da humanidade (Nussbaum,
1996). Sem fronteiras históricas, políticas e jurisdicionais, a humanidade
como um todo pode ter um futuro comum? No fundo, essa é a ideia do
cosmopolitismo concretizada historicamente na globalização, ou mais
rigorosamente da mundialização, isto é, na consolidação de uma plura‑
lidade de mundos humanos num mundo só.
II
A segunda questão que tem de se colocar é a de se o futuro que pon‑
deramos ainda é da mesma comunidade política. Aqui entramos na difícil
distinção entre nação e comunidade política. Desde a fundação do moderno
“Estado-nacional”, uma designação nem sempre clarificadora, gerou-se
a tendência para supormos ambas as realidades como equivalentes. E,
na medida em que a nação tem subjacente a sua continuidade histórica,
a comunidade política adquiriria a mesma continuidade, perenidade e
quasi-imutabilidade. Mas é preciso perceber, com Aristóteles, que as
comunidades políticas mudam fundamentalmente de acordo com a sua
identidade política. A ideia de “nação” remete para a conceção contrária:
a de que as transformações coletivas ocorrem a uma velocidade glaciar,
na vinculação às lentidões históricas, ao ponto de podermos vislumbrar
melhor as permanências estruturais do que propriamente mudanças dignas
desse nome. Porém, as comunidades políticas, incluindo as nacionais, são
identificáveis politicamente. Essa identidade é o seu regime político – um
regime político que é muito mais do que os “sistemas de governo” da
ciência política ou do direito constitucional contemporâneos. Os regimes
políticos são modalidades de autointerpretação coletiva. Neste sentido,
Portugal, em 1974, como “nação” manteve-se; mas mudou. O que vale
por dizer que passou a entender-se a si mesmo de outra maneira bastante
diferente.
Assim, segundo este entendimento de nação que se identifica a si
mesma politicamente, quando concebemos o futuro da comunidade política,
concebemo-lo para a comunidade que se autointerpreta de acordo com o
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 73
mesmo regime político do presente. Caso contrário, estaríamos a dizer
que a comunidade política não teve futuro, já que o futuro determinado
como presente revelou uma comunidade política fundamentalmente
outra – trazendo inscrito um novo regime político. Concretizando, se
quisermos refletir sobre o “futuro de Portugal”, então é forçoso espe‑
cificar se é o “futuro do Portugal democrático”, ou alternativamente o
futuro “de Portugal como povo e país com esse nome independentemente
do seu regime político”. E, no entanto, ainda que se opte pela segunda
abordagem, é preciso assegurar a prioridade da determinação ulterior: “…
independentemente do seu regime político, mas enquanto comunidade
política autónoma”.
Explicitados estes preliminares, vale a pena insistir em mais um outro.
Podemos formulá-lo da seguinte maneira: toda a comunidade política se
define por um projeto. É parte integrante da tal identidade, ou da sua
autointerpretação a que podemos começar por chamar “regime político”.
A comunidade política é um projeto e, portanto, temos um pleonasmo
perfeito quando dizemos que a comunidade política se “projeta para o
futuro” – um pleonasmo ou uma tautologia rica de significado. O regime
político coloca a si mesmo tarefas a cumprir no tempo histórico e que,
por isso mesmo, são tarefas concretas – tarefas que podem ser pro‑
clamadas, ou tacitamente prosseguidas no decurso do tempo histórico
[veja-se como Aron (1990: xii) descreve a tarefa histórica concreta que
a IV República francesa colocou a si mesma: “reconstruir as suas ruí‑
nas, encontrar o seu lugar numa situação diplomática sem precedentes,
acordar uma Europa unida, modernizar a sua economia e transformar
fundamentalmente o, e finalmente prescindir do, seu império”]. Além da
legitimidade de cada um dos diferentes regimes, somos forçados também
a avaliá-los segundo a eficácia que demonstram na realização dessas
tarefas. Ademais, a comparação entre regimes políticos torna-se mais
complexa. Avaliamos e comparamos os regimes pelo conteúdo dessas
tarefas que eles propõem a si mesmos. Mas também medimos a sua
eficácia relativa. Quais são os regimes políticos, ou as variantes dentro
de uma mesma forma de governo, mais eficazes a realizar os objetivos
a que se propõem? Isso não oblitera a questão da legitimidade aferida
de acordo com uma filosofia política implícita ou explícita. Pode haver
eficácia na realização de um determinado propósito (por exemplo, mais
crescimento económico), mas falhando no critério da legitimidade por
comprometer valores inegociáveis (por exemplo, negação de liberdade
política) (Morgado, 2016).
74 MIGUEL MORGADO
Haverá, sem dúvida, quem contestará a noção de que a sociedade
política se define essencialmente como um projeto. E contestará em nome
de “diagnósticos” contemporâneos, como o facto social do pluralismo ou
as irredutíveis diferenças culturais que cada comunidade política contém
no seu interior. Por outras palavras, falar da comunidade política enquanto
projeto soa a pretensão monolítica que foi já definitivamente superada,
pelo menos nas democracias de tipo ocidental, pelo facto da diversidade
de conceções do bem que coexistem em cada uma delas. Mas esta objeção
pode ser parcialmente respondida se se atender ao leque amplíssimo de
projetos políticos societais que podem ser, e são, concebidos.
Tome-se como exemplo um dos projetos mais poderosos e dissemi‑
nados: o crescimento económico. Se há facto politicamente significativo
que percorre uma parte crescente do mundo desde o final da II Guerra
Mundial é como um projeto desta natureza acabou por abranger comu‑
nidades políticas cultural e ideologicamente tão distintas. No início do
século xx esta era, pelo menos nos seus grandes contornos, a tese da
“modernização”. Mas estranhamente as ciências sociais deixaram de
reparar neste facto histórico do maior significado, bem como naquilo
que ele comporta.
Seja como for, um projeto como o da mobilização de toda a comu‑
nidade para a transformação do futuro económico – e, por arrastamento,
social, moral e político também – é compatível com o facto social do
pluralismo. O crescimento económico acaba por ser assumido como um
bem desejado que permite gozar todos (ou quase todos) os bens dese-
jados – bens económicos que são definidos pela aplicação da razão
à satisfação dos bens determinados subjetivamente. É da (crescente)
multiplicidade destes encontros, ou destas coincidências, que resulta a
desejabilidade, e poderíamos até dizer obsessão, do crescimento econó‑
mico em praticamente todas as sociedades do mundo contemporâneo com
a possível exceção das partes sujeitas à opressão do fundamentalismo
islâmico. Até porque o crescimento económico é hoje visto por muita
gente como essencial na produção de bens a que não nos habituámos
a associar ao desenvolvimento da economia; bens intimamente ligados
à infraestrutura da própria democracia política, como, por exemplo, a
tolerância e a liberdade (Friedman, 2006a; Friedman, 2006b).
Por outro lado, poderá dizer-se que o crescimento económico enquanto
projeto despolitiza. Com este projeto, a comunidade política não se
distingue de uma população que tem de ser gerida do ponto de vista da
satisfação dos seus desejos “económicos” – isto é, materiais e corporais.
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 75
E isto nada tem a ver com a crítica ao “neoliberalismo” e a sua propensão
despolitizante, tecnocrática e globalizante. A crítica da esquerda ao “neo‑
liberalismo” é uma mera insistência para a mesma inclinação e propósito.
Se a política é reduzida a gestão de uma população em que a lógica do
mercado, da concorrência e da propriedade privada como meios para
gerar o crescimento económico e prosperidade é substituída pela lógica
centralizadora, planificadora e de propriedade estatal vistas como meios
mais eficazes para atingir os mesmos fins – sem aparentemente os custos
da abordagem “neoliberal”, então nada se alterou do ponto de vista da
despolitização da comunidade. O processo de dissolução é equivalente, na
medida em que o objeto é essencialmente o mesmo – isto é, a redução do
cidadão ao produtor/consumidor. Mais, não se pode perder de vista que a
globalização dos mercados acompanhou o movimento de universalização
do reino do indivíduo sujeito de direitos, sem obrigações correlativas;
uma entidade independente e autossuficiente, que povoa, não ordens
políticas impositoras de heteronomias, mas uma sociedade civil global
despolitizada. De um certo ponto de vista, a inclinação agregadora e
uniformizadora da ordem “económica” desejada pela esquerda na resposta
ao “neoliberalismo” não deixa dúvidas quanto ao seu caráter ainda mais
tecnocrático e despolitizante. Mas o serviço completo da sociedade para
a finalidade do crescimento económico, se esta for a finalidade exclusiva,
não qualificada por outros bens, projetos ou ambições, conduz aparente‑
mente a um processo de despolitização que ameaça a própria comunidade
política enquanto tal. Convém, no entanto, perceber que este comentário
não pode ser erigido em regra até porque o crescimento económico gera
poder social, político e militar, o que transporta consigo possibilidades
societais carregadas de valores extraeconómicos.
Talvez a desejabilidade do crescimento económico venha a ser posta
em causa em tempos futuros. Talvez isso venha a suceder em alguma
medida pelos males que também produz e que podem passar a ser vistos
como excedendo os benefícios. Já existe na Europa pelo menos um partido
político cujo programa é o de travar o crescimento económico – embora
não revertê-lo. Também não são de agora os grupos e movimentos como
o chamado “Clube de Roma”, que clamam contra a degradação ambiental
ou a exaurição dos recursos naturais. E não se deve excluir o argumento
tradicionalista de que as transformações económicas de destruição criativa
comprometem costumes, tradições e comunidades. De uma perspetiva
filosófica, e pondo de parte a maior parte das críticas do capitalismo que
só infrequentemente foram críticas do crescimento económico, resta a
76 MIGUEL MORGADO
pairar a denúncia de uma fundamental (e alegada) incompatibilidade entre
o crescimento e as aspirações humanas à felicidade. Mas por enquanto
parece que o receio contrário, o de que o crescimento económico pode
ter sido varrido do nosso horizonte, tem mais correligionários do que o
temor perante o seu excesso. Esse receio é hoje sintetizado na chamada
tese da “estagnação secular” (secular stagnation), ideia tributária de um
receio que aparece pela primeira vez, e sem surpresas, durante a Grande
Depressão (Summers, 2014; Hansen, 1939).
Há pouco foi dito que a objeção de que a noção de projeto coletivo
como orientador da aventura para o futuro da comunidade política era
incompatível com o facto do pluralismo social, moral e religioso, só
podia ser parcialmente respondida. Com efeito, há que admitir que o
desacordo radical quanto ao conteúdo e densidade de um projeto cole‑
tivo identificador da comunidade política significa a morte dessa mesma
comunidade. A secessão, a guerra civil e o próprio desaparecimento de
uma comunidade política enquanto tal são factos que correspondem
frequentemente a esse colapso na aceitação de um roteiro comum, ou
de um enredo comum, que unifique o sentido da comunidade na histó‑
ria. Não quer isto significar que esse acordo necessário para a simples
sobrevivência da comunidade política seja equivalente a um uníssono,
a um coro harmónico, orquestrado e afinado. A existência e aceitação
de um projeto coletivo não implica o desaparecimento do desacordo,
da discussão, do debate cívico, nem sequer da dissensão. Mas implica,
sim, que essas divergências sejam como que interpretações díspares de
um enredo comum, ou, visto de uma certa perspetiva mais redutora,
de uma tradução dos conteúdos essenciais do projeto aos preliminares
indispensáveis à sua realização que uns veem de uma maneira, e outros
verão de outra. Isto é, um desacordo sobre os meios históricos de realizar
os fins associados a esse projeto que pressupõe um acordo fundamental
quanto a estes. E ainda assim convém não excluir a possibilidade de um
desacordo em torno dos meios históricos que adquire uma gravidade e
violência tais que comprometa a própria existência da comunidade polí‑
tica e, por maioria de razão, os conteúdos essenciais do projeto coletivo.
Talvez seja mais rigoroso dizer que as dificuldades que se multiplicam
à tarefa que a comunidade política atribuiu a si mesma sejam objeto de
diferentes interpretações e de diferentes sugestões de resposta que geram
divisões potencialmente sérias. E, na medida em que essas dificuldades
são inevitáveis, o debate cívico em torno do seu significado e da resposta
que elas merecem nunca está terminado.
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 77
III
Não podemos ignorar que a autonomia da comunidade política, ainda
que sucessivamente alargada para mais e novas esferas, deixou de ser
suficiente como reivindicação e projeto futuro nas sociedades demo‑
cráticas. Essa é porventura uma das ilusões dos tempos que estamos a
viver em que o fortalecimento, ou até a recuperação, da autonomia da
comunidade política aparece como objetivo suficiente. Porém, autono-
mia neste sentido aplicado às comunidades políticas deixou de ser a
literalidade do ser governado apenas por leis da sua própria autoria e
o ser responsável pela sua própria ordem. Desde a chamada Revolução
Industrial que um novo desígnio se tornou disponível para as socieda‑
des: o da sua construção e reconstrução a ponto de a sua existência ter
passado a ser a sua permanente construção e reconstrução históricas.
Ora, é impossível dissociar o fenómeno do crescimento económico – e
as possibilidades que abre – desta novidade histórica. Certamente que
houve sempre quem receasse que o crescimento económico obedeça a
leis que se subtraem ao nomos político e que a história da construção
e reconstrução da comunidade política não era afinal de contas escrita
pelo político enquanto tal, nem pela vontade política comum. Para estas
vozes, o futuro já não apelaria a um momento da realização de um desejo
fundamental, mas apenas a mais um estádio da longa sequência de trans‑
formações que ia definindo a própria identidade da comunidade. Claro
que esta condenação da submissão a leis impessoais que comandam as
transformações desapareceria se estas fossem comandadas pela voz do
político enquanto tal – se elas fossem o resultado da vontade política
articulada. Quanto a estas vozes, cabe apenas dizer que frequentemente
se deixaram confundir pela inevitável indeterminação do futuro, bem
como pela natureza particular do projeto do crescimento económico. Mais
desenvolvimentos deste ponto não são necessários neste ensaio, já que o
importante é perceber o que estas transformações acrescentaram à tarefa
de preservação – e alargamento – da autonomia da comunidade política.
Mas esta sequência de transformações não é aquilo a que nos últimos
150 anos se tem chamado “progresso”? Se tivesse sido escrito nas últimas
décadas, um ensaio deste tipo, dedicado ao tema aqui em análise, teria
o “progresso” como conceito central. Mas desde outras tantas décadas
que já não falamos com a mesma confiança no “progresso”, na medida
em que é ideia que remete para a necessidade, ou para a linearidade, ou
para a inexorabilidade históricas. Hoje já não saberíamos sequer medir
78 MIGUEL MORGADO
um putativo progresso, tantas foram as desilusões que coletivamente
sofremos. Por cada “progresso” registado numa dimensão da vida humana
somos forçados a indicar um “retrocesso” noutra dimensão e não sabe‑
mos como ponderar o “valor” de uma face à outra. Ninguém duvida do
progresso técnico-científico, pois não é permitido duvidar da acumulação
de saber científico, das inovações tecnológicas, da elevação do padrão de
vida, desde os níveis de saúde e de esperança média de vida ao alívio de
esforço humano e melhoramento do conforto e das comodidades. Mas
já no que respeita à evolução moral-normativa não se pode dizer que
haja razões para a confiança sentida pelos nossos antepassados aquando
da viragem do século xix para o século xx. Sendo assim, somos convi‑
dados ao silêncio, a desistir das proclamações do progresso e a arrumar
no baú esta ideia que mobilizou tantas aspirações democráticas desde o
século xix. Silenciosos e resignados, aceitamos até o retrocesso como
uma triste possibilidade. O progresso fica reservado para discursos
políticos vazios sempre que uma lei é aprovada ao serviço da agenda
ideológica de subversão do lugar tradicional do corpo. Não é suficiente
para inscrições em bandeiras nacionais.
A imagem originária do progresso incluía o progresso de toda a
humanidade (e não apenas a acumulação de mais capacidades e conhe‑
cimentos pelos homens); não tinha limites, correspondendo à ilimitada
“perfetibilidade” do homem; e finalmente apresentava-se como irresistível,
como um movimento necessário, automático e inexorável (Benjamin,
1968, pp. 261-2). Mas, na verdade, foi graças à redução da escassez
económica e à aventura sempre nova do conhecimento científico que o
progresso pôde tornar-se na categoria fundamental da nossa esperança
“secular”, da fé “laica” e, como correlativo importante, da caridade
“humanística” – em que o amor ao outro se traduzia, não pela exorta‑
ção à virtude, não pelo chamamento ao caminho da verdade que salva,
mas antes pela capacidade de lhe reduzir a dor física. Não é apenas a
extensão temporal da vida humana, mas a sua extensão com a redução
da dor que lhe está associada. Por conseguinte, o critério do progresso
só é cumprido se este for trazendo a superação da dor: a dor da doença e
da escassez a par das dores do trabalho, como é amaldiçoada a condição
humana no livro do Génesis. Só a abundância económica e os avanços
científicos podiam dar essa garantia. Um mundo com cada vez menos
dor seria necessariamente um mundo cada vez mais economicamente
abundante e cientificamente mais esclarecido. No entanto, esta é já a
visão mais modesta do progresso. É a procura do mínimo denominador
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 79
comum do maior número possível de “conceções do bem”. E em que
a ténue ligação do progresso com o crescimento moral só é permitida
aparecer como se a emancipação da dor fosse condição necessária para
o aperfeiçoamento moral da humanidade. A ausência de limites, porém,
permanecia como pedra de toque, tal como sucedia nas conceções de
progresso mais sofisticadas e mais ambiciosas.
Se, como Maquiavel ensinou, a existência humana move-se sempre
num contexto de escassez e de perigo, o progresso teria de ser então o
afastamento cada vez maior face a esse contexto. Teria de ser o cami‑
nho para transcender ou superar a escassez – o que seria mais fácil de
mensurar, porventura – e o perigo que desde o início condicionavam a
vida dos homens. Por aqui também se vê que o crescimento económico
pôde constituir um determinante mais fiável do “progresso”, visto que
a escassez não deixando de ser realidade relativa ainda assim poderia
encaixar mais docilmente nos moldes da objetividade. Os perigos a que
estamos sujeitos é uma variável mais difícil de dominar.
O progresso, progressistamente entendido, sugeria o caráter cumulativo
de um bem humano primordial – a felicidade, a liberdade, o bem-estar
ou o conhecimento, ou até a redução de um mal, como a superstição,
o obscurantismo e por aí em diante. Mais precisamente, o progresso
sugeria o caráter cumulativo de uma gama de bens humanos primordiais
que devem obedecer a uma relação de complementaridade, sob pena de
o deixarem de ser. Coletivamente, desejamos acumular mais conheci‑
mento, por exemplo, mas desde que contribua para aumentar o nosso
bem-estar e a nossa liberdade. A dependência do progresso no desen‑
volvimento da ciência natural moderna implica que este progresso seria
tão infinito quanto as possibilidades da própria ciência, desconhecendo
o ponto de repouso próprio da tradição utópica. Esta estrutura afasta a
tradição progressista da tradição utópica. Assim, o progresso não tem
fim, nunca termina, nem pode parar. Mas reflete a esperança no fecha‑
mento de uma História insuscetível de operar todas as conciliações e de
uma Política como ação trágica no sentido literal do termo, isto é, como
ambas capazes de superar a condição em que a apropriação de um bem
obtém-se com a perda de outro, ou que uma época de prosperidade tem
de ser seguida de uma época de declínio, ou que os avanços deixam de
ser substituídos por recuos.
Até há algumas décadas partilhávamos no Ocidente de uma crença
automática de que estes bens humanos primordiais eram, de facto,
complementares. Porém, essa crença perdeu-se. Ou pelo menos a sua
80 MIGUEL MORGADO
automaticidade. Tornou-se numa das lacunas mais irreparáveis da crença
no progresso que se constatasse que a disseminação do próprio progresso
estava sujeita a constantes avanços e recuos. Uma outra lacuna atingiu a
relação humana com o motor de todo o progresso, a saber, o desenvol‑
vimento da ciência. Não só se pôs em dúvida a ligação necessária entre
o progresso científico e o progresso noutras dimensões humanamente
necessárias, como o progresso antecipado da ciência aparecia agora
frequentemente como assustador e ameaçador, pondo radicalmente em
causa os fundamentos da nossa humanidade, da autoconsciência humana,
de valores humanos fundamentais sem os quais a nossa vida deixa de
ser reconhecível e, portanto, desejável nos termos dos “melhoramentos”
trazidos pela ciência e pela técnica.
Muitos disseram que, sem a crença – esta é mesmo a palavra ade-
quada – no progresso, perder-se-ia a esperança imanente que tem animado
os homens (pelo menos, nos dois últimos séculos) a agir. Dizia-se que
perderíamos o interesse no futuro, ou na mobilização da vontade para
lançar mãos aos projetos do futuro (Lasch, 1991, pp. 41-4). O aviso não
deixa de ser estranho dado que, aceitando-o, ou negamos séculos de his‑
tória que desconheceram a noção de progresso sem perder a mobilização
para o futuro; ou trata-se outrossim de uma inadvertida admissão de que
o homem moderno não possui os mesmos recursos para essa mobilização
e, portanto, requer incentivos, ou promessas garantidas, para agir. Ora, a
verdade é que temos razões mais do que suficientes para agir, indepen‑
dentemente da falência de uma ou de outra crença.
IV
Como deve uma comunidade política “enfrentar” o futuro? Isto é,
como deve pôr-se de frente para o futuro? Uma comunidade política é
uma forma de ordem, e não há ordem que possa prescindir de um prin‑
cípio de estabilidade. A ancoragem num passado em que o presente da
comunidade se possa reconhecer faz parte muito provavelmente de um
princípio de estabilidade minimamente eficaz para uma ordem política.
A aptidão da comunidade para conservar os bens que quer transmitir
para o futuro é outro elemento indispensável e estreitamente relacionado
com o anterior.
Mas a ordem de uma comunidade não contém apenas um princí‑
pio de estabilidade. Requer a ativação de um princípio de abertura ao
futuro. Ou mais exatamente: um princípio de abertura à indeterminação
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 81
do futuro. Uma ordem política moderna não pode aspirar a enfrentar o
seu futuro apenas querendo reproduzir nele o que já é no presente – ou
o que herdou do passado. É a natureza da realidade mutável que não
o consente. Por conseguinte, é constitutivo do princípio de abertura à
indeterminação do futuro que os mecanismos de renovação da sociedade
estejam ativos. Nas sociedades humanas, a capacidade de renovação é,
sem paradoxo, parte insubstituível do princípio de estabilidade da ordem
política e também da abertura à indeterminação do futuro. Pela razão
elementar de que, sem renovação, espera-nos o declínio. E o declínio
abre as portas à desordem e à dissolução.
Com uma ponderação reforçada, porém, percebe-se que o princípio
de estabilidade e o princípio de abertura ao futuro são mais solidários do
que se poderia pensar. Os projetos para o futuro não são criados ex nihilo;
não são sugeridos ao imaginário dos povos de um modo arbitrário. Pelo
contrário, os projetos resultam da experiência do que a comunidade política
já foi – e frequentemente de uma representação da experiência passada
de outras comunidades políticas (Ortega y Gasset, 1964, pp. 38-9).
A vitalidade da relação com o passado acaba por ser constitutiva da
vitalidade da relação com o futuro. Nessa medida, processos acelerados
de “individualização” do tecido social estão normalmente associados à
declaração cultural de guerra ao passado da comunidade. Isso sucede em
períodos violentos ou pacíficos; ou em revoluções que conscientemente
se desenvolvem como inaugurações de um “tempo novo”, como nas
grandes revoluções modernas que degeneraram em despotismos opres‑
sores; ou em períodos pacíficos de estabilidade política e prosperidade
económica, mas culturalmente estruturados na negação do passado por
este ser tido como moralmente embaraçoso ou vergonhoso. O paradoxo
mais assinalável para os nossos propósitos dessas situações históricas
pode ser traduzido nos seguintes termos: a limpeza do tempo passado
produz uma ilusão de “horizonte livre” – a expressão é de Starobinski
(1973, p. 35) – que é, afinal de contas, um horizonte vazio.
Viver num eterno presente tem como consequência viver sem hori‑
zonte futuro. Alguns dedicaram-se a fazer precisamente esse diagnóstico
dos nossos tempos: “um presente onde apenas conta a possibilidade de
inovar em relação ao passado, cada laço com o passado apenas aparece
como um entrave ou um fardo de que temos de nos livrar” (Gauchet,
2005, p. 39). Mais, não é só a ligação ao passado que se rompe, mas
a construção de “um presente onde já não vale a pena preocuparmo‑
-nos com o futuro global, de qualquer modo impossível de antecipar”
82 MIGUEL MORGADO
(Gauchet, 2005, p. 40), numa autointerpretação fragmentária, em que
o direito (subjetivo) e o “interesse” se substituem à deliberação e ação
políticas, que empurra cada um para cuidar dos seus próprios projetos
individuais em separação com a vida comum – construção que remove
o futuro como tempo de consumação ou de aproximação de um projeto
comunitário. Isto traz implícito que não haver senão presente é idêntico
a dizer só existem indivíduos, que eles são o único facto social, o único
destino de qualquer normatividade, o único não estrangeiro da cultura que
se promove. A própria ideia de projeto coletivo perde qualquer sentido.
Cabe reconhecer que para muitos isto soará a emancipação. Esta espécie
de regresso a um “estado de natureza” (pacífico) em que o “governo dos
homens” dá lugar à mera “administração das coisas” gera com facilidade
o equívoco de se confundir o eclipse do político, e, portanto, a negação
da condição política do homem, com uma era histórica de libertação
individual. Mas isto também nos permite perceber que dizer que “em
política o futuro não existe” é, no fundo e à superfície, um bon mot
vazio e contraditório.
Contudo, não basta inverter os termos deste problema para encontrar
uma saída geradora de futuro. As comunidades políticas que romantizam
o seu passado, e o desejam no presente, também comprometem o seu
futuro. Mas comprometem-no num sentido subtil. É preciso não esquecer
que a tarefa de preservação do passado, ou a sua reconstrução de acordo
com mitos mais ou menos verosímeis, projeta já a comunidade política
para o futuro: um futuro de preservação (ou de reconstrução) do passado.
Contudo, pela mesma razão, o futuro perde o seu caráter próprio, isto
é, não resulta de um esforço de contributo histórico novo ou original –
ele é, ou espera-se que seja, o resultado de esforços determinados pela
experiência remota, ou pelo menos da interpretação (benévola) presente
dessa experiência remota. Neste sentido, o futuro desejado é o que mais
fidedignamente cumprir uma representação romantizada do passado.
Em contraposição, a abertura plena ao futuro tem de conter a abertura
à novidade histórica, incluindo às descontinuidades e não linearidades
que essa novidade histórica inevitavelmente produz.
Daqui podemos começar a concluir que o futuro da comunidade
política depende sobretudo da vitalidade, preservação, reabilitação ou
revitalização de uma relação, a saber, da relação que une os cidadãos
num povo, de um lado, à comunidade que lhes dá unidade, do outro.
Essa relação exprime necessariamente um cuidado que liga os cidadãos
uns aos outros e à comunidade que eles corporizam – um cuidado que
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 83
é, na verdade, uma forma de amor. A comunidade constitui a totalidade
referencial de sentido onde todos os “objetos” e relações entre partes
constituintes recebem os seus atributos, o que vale por dizer, o seu sig‑
nificado ou o seu valor. Quando esta relação se desfaz, a comunidade
política perde o seu futuro – ou até o seu próprio presente. A vontade
de futuro da comunidade política depende, no fundo, da vitalidade de
uma forma de cuidado ou de amor.
Antes dos recentíssimos reveses reputacionais sofridos pelo movi‑
mento histórico da “globalização”, crescia a força da tese segundo a qual
o “paradigma” da comunidade política autónoma “nacional” estaria a
perder relevância, eficácia e lealdade dos seus cidadãos. A ser verdade
que o devir histórico anunciava a substituição da forma política moderna
pela “governação em rede” ou pelo “constitucionalismo global” (com
dimensão regional ou não, pouco importa) ou pela pós-soberania da lei,
então isso seria equivalente a afirmar o esvaziamento da fonte de sentido
constituída pela comunidade política moderna. E, nesse sentido, seria o
mesmo que dizer que a comunidade política moderna – portuguesa ou
estrangeira – não tinha futuro. Mas, por mais diagnósticos de que os
problemas são crescentemente globais e exigem, por conseguinte, solu‑
ções igualmente globais – ou que, pelo menos, a escala transnacional dos
problemas contemporâneos tem de ser correspondida por uma idêntica
escala no uso de meios políticos e técnicos para os confrontar –, parece
subsistir a relação de cuidado, a apropriação de sentido existencial, no
contexto da comunidade política na forma moderna. Se for verdade
que as pessoas – os tais indivíduos – relacionam-se com a comunidade
política de um modo puramente instrumental, e apenas procuram dela
uma aritmética positiva e utilitária de benefícios face aos custos, então
o futuro de que falamos evidentemente não existe.
Não pode haver um compromisso com o futuro da comunidade política
se, em qualquer momento, o cálculo de custo-benefício se altera. E não
porque poderia fazer vingar a mudança de forma política ou de autori‑
dade política desde que mais eficaz em cumprir determinadas funções
associadas ao chamado “bem-estar material” do indivíduo enquanto tal;
mas antes porque esse cálculo puramente instrumental pode conduzir à
completa desvalorização do valor da comunidade política enquanto tal.
Esse compromisso com o futuro pressupõe investimento existencial – no
limite de sacrifício pessoal ilimitado, como sucede em caso de guerra
defensiva. Não é redutível à contabilidade do indivíduo isolado que, por
assim dizer, compara ofertas alternativas de empresas concorrentes em
84 MIGUEL MORGADO
busca de um novo cliente. São ordens de racionalidade, de ligação, e de
envolvimento temporal inteiramente distintas, como não custa demonstrar.
Num mundo marcado essencialmente pela mudança, os mecanismos
societais de renovação tornam-se ainda mais preciosos e o seu disfuncio‑
namento manifesta-se com rapidez acelerada. E por renovação entenda‑
-se a renovação cultural, intelectual, social, o que forçosamente inclui a
renovação demográfica. Não devemos fugir da dimensão demográfica
na ponderação dos mecanismos societais de renovação. Não é o único
desses mecanismos, mas a sua importância é inegável. A natalidade
como a projeção de alguém radicalmente novo no mundo, e por maioria
de razão na comunidade, é um facto da maior importância. A renova‑
ção da comunidade tem de ser corporizada; nunca é um vago processo
descorporizado. Tem de ser sempre protagonizado por pessoas; e neste
caso por pessoas novas no sentido literal do termo – não “jovens”, mas
novas, que não existiam antes e evidentemente irrepetíveis.
Como vimos, dirigidas para o futuro, as comunidades políticas têm de
se definir por um projeto. Caso contrário não têm futuro. Literalmente.
Daqui também se segue uma consequência importante. Se as comunidades
políticas são essencialmente um projeto político, então os seus membros
são participantes num projeto. E quem são os seus membros? Ou dito de
outra maneira: quem pode ser incluído como participante neste projeto
para o futuro? A resposta não pode ser outra senão a que diga: os cidadãos
da geração presente, bem como os cidadãos que já eram participantes no
passado. Do mesmo modo, os cidadãos do futuro são igualmente par‑
ticipantes. Também eles pegarão num projeto que herdam – e que não
deixarão de reformar, alterar, modificar. Ora, do ponto de vista político,
a continuidade geracional da comunidade política é determinada pelas
suas fronteiras também. Os cidadãos do passado contam, assim como
contam para nós, os cidadãos presentes, os cidadãos do futuro da nossa
comunidade política. Contam, não nos termos de um contrato, como a
célebre citação de Burke (1999) deixa patente e que o próprio Burke invoca
ao estilo de uma crítica imanente aos contratualismos da sua época, mas
antes como elemento fundamental deste entendimento da comunidade
política como um projeto, e, portanto, essencialmente dirigida ao futuro.
A comunidade política enquanto projeto não é uma simples ideia.
Para estar mais próximo da verdade, ela é a corporização de uma ideia.
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 85
É um processo animado e orientado por uma ideia. E nesse sentido
deveria ser um truísmo indicar que a política precisa de um corpo e de
corpos. Neste registo particular, insisto, a questão demográfica não pode
ser ignorada. As consequências do envelhecimento da população (fenó‑
meno particularmente avançado na Europa do Sul e do Sueste) são tão
vastas, complexas e profundas que seria impossível fazer aqui sequer um
sumário. Mas é indesejável deixar passar a seguinte observação: a redu‑
ção das taxas de natalidade que podemos observar em inúmeros países,
entre os quais se inclui Portugal, reflete uma relação problemática com
o futuro. O comportamento que a redução da natalidade reflete exprime,
por um lado, uma recusa de futuro. Não se trata aqui de apresentar uma
causa efetiva da decisão pessoal de não ter filhos. Existe certamente uma
panóplia de conjeturas envolvendo fatores “socioeconómicos” e “cultu‑
rais”. Contudo, o abandono do futuro e, como face da mesma moeda,
a apropriação desesperada do presente são os elementos primordiais do
sentido político e da interpretação cultural deste fenómeno dos últimos
trinta ou quarenta anos. E, por outro lado, exprime a indisponibilidade
para gerar o único recurso sem o qual, mesmo o futuro ambicionado, não
pode ser concretizado – pessoas, agência humana, a radicalidade do agir
de quem não existia no mundo antes e não permanecerá para sempre nele.
A comunidade política moderna é marcada pela convicção de que o
projeto articulado será concretizado na história pela vontade humana, ou
pela concorrência da vontade humana. As sociedades serão aquilo que
querem ser. Mas a exaltação moderna depara-se rapidamente com dificul‑
dades, a principal das quais reside nisto: o futuro, sendo essencialmente
indeterminado, não é simplesmente o invólucro neutro e passivo, dos
desejos presentes. Agimos, mas a nossa liberdade, ou vontade, apenas
consegue cumprir metade, ou perto disso, do que ambiciona. Mesmo
Maquiavel (1961, cap. XXV) tinha boas razões para preservar a outra
metade na esfera indecifrável e imprevisível da variação das coisas – ou
fortuna. Todavia, a exaltação moderna torna ainda mais saliente a rela‑
ção estrutural da comunidade política com o futuro. Na medida em que
a comunidade política moderna está, por assim dizer, particularmente
enraizada num solo identitário e autointerpretativo, isto é, particular‑
mente associada a uma consciência de si e da sua existência na história
diferenciada das outras comunidades políticas, então a determinação
dessa identidade e dessa autointerpretação tem de se permanentemente
clarificada. Ora, isso carrega uma implicação. Se a comunidade política
entende-se a si mesma como densa de uma autorrepresentação, então o
86 MIGUEL MORGADO
exame dessa representação torna-se numa questão permanente para a
própria comunidade. E esse exame gerará dúvidas igualmente permanen‑
tes acerca da distância entre a representação afirmada e a representação
verificada pelo processo interminável de se por a si mesma em questão.
A aproximação da comunidade face à sua identidade afirmada é, assim,
sempre assimptótica e a tarefa de aproximação e de reconstrução dessa
identidade constitui-se como um projeto do futuro (Kahn, 2005, pp. 51-3).
A comunidade política consciente de si mesma questiona-se a si
mesma, ou pelo menos sente-se questionada pela diferença que pressente
relativamente às restantes comunidades políticas. Numa era de intensa
comunicação global, as comunidades políticas parecem não ter grande
alternativa já que se não se questionam a si mesmas num primeiro
momento, nem se apercebem das diferenças face às outras comunidades
políticas, serão estas – as restantes comunidades políticas – com as suas
diferenças a interpelá-la de modo inconfundível. Ademais, esta relação
com o futuro afigura-se fundamentalmente diferente daquela que é abs‑
tratamente construída pela ideologia do progresso, em que a comunidade
política já sabe o que será no futuro – antevê no futuro aquilo que vai
ser e para onde caminha inexoravelmente, e nessa proporção ela já é o
que vai ser.
Feitas todas estas considerações, coloca-se uma questão com um cariz
mais prático: como ativar o princípio de abertura à indeterminação do
futuro sem deslizar para a pura liquefação das instituições sociais, dos
valores humanos, dos bens culturais e da memória histórica? A resposta
passa forçosamente pela trivialidade, que não é menos importante por
sê-lo, segundo a qual a política moderna requer a abertura à reforma.
Com as suas origens na eclesiologia medieval, “reforma” como conceito
remete para a adoção de uma nova forma. No sentido originário, de uma
nova forma de organizar e orientar a estrutura da Igreja. Mas a que ponto
vai essa novidade? Na verdade, a nova forma é adotada não sem antes
haver uma reflexão sobre a revitalização dos princípios originadores e
justificadores de uma determinada instituição ou estrutura. Mais: a nova
forma é exigida porque essa instituição ou estrutura já não conseguem
servir os fins para os quais foram criadas. É em nome dessas finalidades
e princípios originários que se repensa a forma, e é em nome deles que
se julga a adequação da nova forma que se irá adotar. Por conseguinte,
a reforma nunca é uma mudança nem por rutura, nem por saturação. Isto
é, não é uma revolução para criar ex nihilo, nem uma mudança trazida
pelo aborrecimento ou pelo enfado com a forma existente. Note-se, por‑
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 87
tanto, que a “reforma” é um compromisso com o futuro, mas não deve
ser confundida com a definição de um projeto coletivo. A “reforma” está
ao serviço da consecução mais eficaz – porventura, mais harmoniosa, ou
mais justa também – do projeto no tempo histórico futuro. Está essen‑
cialmente ligada à revitalização dos princípios originadores do projeto.
Pode até ser que sem reforma a comunidade política não tenha futuro,
no sentido do colapso do seu projeto, sobretudo quando uma comuni‑
dade política vai multiplicando os seus bloqueios e impasses. Mas, em
rigor, o futuro da comunidade política está ligado à densidade dela, e à
sua ligação com um projeto, e as propostas ou execuções de reformas,
podendo dar consistência a uma e a outro, não os substituem.
Como antecipar, então, o hiato entre a harmonia do nosso projeto
coletivo e os factos históricos futuros? O futuro que concebemos, o futuro
que nunca deixa de o ser, acaba por ser diferente do futuro que se torna
presente. O futuro não é um espaço vago aguardando pacientemente
pela sua ocupação milimétrica pelas aspirações e projetos do presente.
O ser da comunidade política envolve uma tarefa que é problemática.
A comunidade política em ação confronta as inúmeras dificuldades que
se lhe interpõem. E acontecerá que essas dificuldades à consumação do
projeto se converterão, pelo seu impacte direto e pela reação que susci‑
tam, em desvios ao próprio projeto, ou descaracterizações desse mesmo
projeto. Mas, como vimos, este ajustamento torna-se numa obsessão
para a comunidade política moderna. A questão é: quão diferente será
o futuro do projeto coletivo presente que se quer realizar no futuro?
Podemos prevenir a distensão indesejável desse quantum? Afinal de
contas, esse hiato pode variar, e olhando para a experiência histórica das
nações, varia muito de comunidade para comunidade. O que é possível
dizer com mais alguma segurança é que a frustração de um hiato insu‑
portavelmente grande é causa habitual de dissoluções mais ou menos
violentas da comunidade política.
Podemos dizer que Portugal teve um certo projeto político nos últi‑
mos 35 anos, não muito elaborado, não muito sofisticado. E que se pode
resumir assim: Portugal ambicionava tão-só ser mais parecido com as
democracias do centro e norte da Europa. Enquanto na década de 80 e 90
se foi consumando o chamado “processo de convergência”, a expectativa
quanto à viabilidade e bondade do dito projeto crescia em credibilidade e
robustez. Claro que a tendência inversa começou a manifestar-se a partir
do momento em que os primeiros anos do século xxi revelaram que o tal
“processo de convergência” tinha sido interrompido e invertido – e que,
88 MIGUEL MORGADO
portanto, o tal hiato aumentava, em vez de diminuir. A abertura desse
hiato alguma responsabilidade terá na relação dos Portugueses com as
suas instituições, procedimentos e práticas (na sua grande maioria jus‑
tificados pelo projeto coletivo e pela sua eficácia na redução do hiato).
O futuro de Portugal estará sempre de alguma maneira relacionado com
o caráter da interpretação (que venha a ser) dominante das dificuldades
que rodearam, e rodeiam, esta tarefa. Também não é preciso explicitar
que o futuro do País seria dramaticamente afetado se porventura este
projeto coletivo, que depende da existência de uma “Europa” a imitar,
com um determinado figurino institucional e com a sua função concreta
de âncora ou de lastro aos movimentos nacionais, desaparecesse. Nessas
circunstâncias, Portugal enquanto comunidade política teria de se reno‑
var com um alcance profundíssimo para conseguir substituir o antigo
projeto coletivo, para o qual no passado recente se mobilizou com uma
intensidade invulgar, por um novo necessariamente alternativo.
Bibliografia referenciada
Aron, 1990. Raymond Aron, Democracy and Totalitarianism, Ann Arbor: The University
of Michigan Press
Benjamin, 1968. Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History” in Illuminations,
ed. Hannah Arend, Nova Iorque: Schocken Books
Bodin, 1986. Jean Bodin, Les Six Livres de la République, Paris: Fayard, vol. 1
Burke, 1999. Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France”, in Select Works
of Edmund Burke, vol. 2, Indianapolis: Liberty Fund
Friedman, 2006a. Benjamin M. Friedman, “The Moral Consequences of Economic
Growth”, Society, 43 (2006)
Friedman, 2006b. Benjamin M. Friedman, “Moral Consequences of Economic Growth.
The John R. Commons Lecture, 2006”, The American Economist, 50 (2006)
Gauchet, 2005. Marcel Gauchet, La condition politique, Paris: Gallimard
Hansen, 1939. Alvin Hansen, “Economic Progress and Declining Population Growth”,
The American Economic Review, 29 (1939)
Kahn, 2005. Paul W. Kahn, Putting Liberalism in its Place, Princeton: Princeton
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Lasch, 1991. Christopher Lasch, The True and Only Heaven: Progress and its Critics,
Nova Iorque: W. W. Norton & Company
Maquiavel, 1961. Maquiavel, Il Principe, Turim: Einaudi
Montesquieu, 2011. Montesquieu, Do Espírito das Leis, trad. Miguel Morgado, Lisboa:
Edições 70
A COMUNIDADE POLÍTICA E O FUTURO 89
Morgado, 2016. Miguel Morgado, “Montesquieu and Aron on Democracy’s Virtues
and Vices: The Question of Political Legitimacy”, in The Companion to Raymond
Aron, ed. José Colen & Elisabeth Dutartre-Michaut, Londres: Palgrave Macmillan
Nussbaum, 1996. Martha C. Nussbaum, For Love of Country?, Boston: Beacon Press
Ortega y Gasset, 1964. José Ortega y Gasset, Historia como Sistema, in Obras Completas,
Madrid: Revista de Occidente, 6.ª edição, vol. VI
Starobinski, 1973. Jean Starobinski, 1789. Les Emblèmes de la Raison, Paris: Flammarion
Summers, 2014. Lawrence Summers, “U.S. Economic Prospects: Secular Stagnation,
Hysteresis, and the Zero Lower Bound”, Business Economics, 49 (2014)
II.
Teoria Constitucional
Justiça Intergeracional:
Entre a Política e o Direito Constitucional
Jorge Pereira da Silva
O Problema da Tutela Constitucional das Gerações Futuras
Gonçalo de Almeida Ribeiro
Democracia e Revisão Constitucional
Miguel Nogueira de Brito
A Tutela Constitucional das Gerações Futuras:
Profilaxia Jurídica ou Saudades do Futuro?
Catarina Santos Botelho
Justiça Intergeracional:
Entre a Política e o Direito Constitucional
Jorge Pereira da Silva*
The question whether one generation of men has a right to bind
another, seems never to have been started on this or our side of
the water. Yet it is a question of such consequences as not only to
merit decision, but place also, among the fundamental principles
of every government.
T. Jefferson to J. Madison, Paris, 6 Sept. 1789
Ainda há não muito tempo, um conhecido comentador político escre‑
via num artigo de opinião que “em política não há gerações futuras, só
as eleições seguintes”. E um líder partidário proclamava num discurso
inflamado: “não contem connosco para introduzir na Constituição a regra
de ouro”, referindo-se naturalmente à pressão de Bruxelas para que os
Estados-membros da União Europeia integrassem nas respetivas Leis
Fundamentais regras contendo limites percentuais ao défice orçamental e
à dívida pública. Aparentemente sem relação, estas duas afirmações têm
em comum uma posição de fundo sobre o problema da justiça intergera‑
cional: a sua inviabilidade no contexto das democracias contemporâneas.
* Professor Auxiliar e Diretor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa (UCP), instituição onde se licenciou, obteve o grau de
mestre e de doutor. Tem desenvolvido investigação nas áreas do Direito Constitucional,
dos Direitos Fundamentais, da Teoria Geral do Estado e da Ciência Política. Foi professor
visitante no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica e no Instituto Superior
de Estudos Militares. É também assessor do Representante da República para a Região
Autónoma dos Açores e desenvolve atividade como consultor jurídico privado. Entre as
suas publicações, destacam-se as obras Protecção jurisdicional contra omissões legisla-
tivas (2003), Direitos de cidadania e direito à cidadania (2004) e, mais recentemente,
Deveres do Estado de proteção de direitos fundamentais (2015).
94 JORGE PEREIRA DA SILVA
A primeira afirmação representa a capitulação perante a forma atual
de fazer política de curto prazo, com os olhos postos apenas na obten‑
ção de proventos eleitorais imediatos. Afinal, segundo o conhecido
vaticínio keynesiano, “in the long run, we are all dead”. Já a segunda
afirmação, além de ser contraditória, revela sobretudo desconhecimento.
É contraditória na medida em que, se uma qualquer asserção normativa
se designa “regra de ouro”, é porque deve incorporar qualquer coisa de
muito positivo e valioso e, portanto, não é razoável rejeitá-la liminar‑
mente, sem ponderar sequer a sua introdução num diploma fundamental
como a Constituição. Mas acima de tudo mostra desconhecimento, já
que quem a proferiu ignora a razão pela qual uma coisa aparentemente
tão simples – limites ao défice e ao endividamento, em percentagem do
PIB – tem sido apelidada de “regra de ouro”. Ou seja, não percebeu o
motivo da associação entre a limitação do recurso ao crédito público e
a conhecida “regra de ouro” da ética, segundo a qual não devemos fazer
aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem a nós. E, sobretudo,
que esta regra tanto vale quando os “outros” são nossos contemporâ‑
neos – vivem connosco, no mesmo fuso geracional – como quando os
“outros” são nossos sucessores, imediatos ou mediatos, na linha do
tempo. Recorde-se, a este respeito, a pequena estória que Derek Parfit
conta quanto apresenta o seu paradoxo da não identidade: “suponha‑
mos que eu deixo um vidro partido no chão de uma floresta. Cem anos
depois, uma criança pisa esse vidro e fica ferida num pé. Os meus atos
causaram um dano sério a esta criança. Se eu tivesse colocado o vidro
em segurança, esta criança teria atravessado a floresta sem se ferir. Do
ponto de vista moral, faz alguma diferença que a criança ainda não
exista hoje?” (Parfit, 1987, pp. 356-57).
Incompreensões à parte, antes de uma análise mais sistemática das
repercussões político-constitucionais da ideia de justiça entre gerações,
apresentam-se algumas perspetivas setoriais sobre o problema, que nos
últimos tempos têm surgido no espaço público, frequentemente ligadas
à crise financeira e social que Portugal tem atravessado, mas não só. Por
outras palavras, procurar-se-á primeiro afirmar a plausibilidade hodierna
de uma verdadeira questão intergeracional – dado que existe o perigo
de as pessoas das diferentes gerações não terem o mesmo acervo de
oportunidades e o mesmo nível de qualidade de vida (Parfit, 1987,
p. 365) –, para num segundo momento se refletir sobre o modo como
deve ser equacionada a essa questão no plano constitucional. Em todo
o caso, uma análise científica aprofundada de algumas das declinações
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 95
setoriais do problema que a seguir se apresentam pode encontrar-se em
vários capítulos desta mesma obra.
1. Défice e dívida
Antes de mais, é difícil não reconhecer que o défice orçamental e a
dívida pública colocam um incontornável problema de justiça entre gera‑
ções e, consequentemente, um sério problema constitucional (Pereira,
2012, pp. 62 et seq.). Ou alguém poderá dizer, em consciência, que uma
maioria governativa não abusa do seu poder quando, para obter dividendos
políticos no final da legislatura, gera encargos financeiros que terão de
ser pagos anos ou mesmo décadas a fio? Se uma força política obtém
maioritariamente do eleitorado legitimidade para governar durante quatro
anos, como poderá justificar-se a ausência de limitações jurídicas claras,
que a impeçam de obrigar as maiorias seguintes a pagar os empréstimos
por ela contraídos, ao longo de 10, 20 ou mais anos? Só quem entender
que estas questões não são pertinentes, no plano da governação da res
publica, pode rejeitar a priori a constitucionalização dos parâmetros do
endividamento público, afirmando apenas que os parlamentos democra‑
ticamente eleitos têm de poder decidir com ampla liberdade o quantum
dos impostos a cobrar aos cidadãos – assim no presente como no futuro,
para pagar a dívida pública (ou só para cumprir o serviço da dívida) – ou,
ainda, que não é por se consagrar na Constituição a proibição de défices
excessivos que estes vão desaparecer.
Regressando às origens, é importante lembrar que uma Constituição é
um documento cuja razão de ser está na limitação do poder, prevenindo
as formas mais graves ou mais comuns do seu abuso. Como sustentava
Montesquieu, só há liberdade nos governos moderados e só há governos
moderados quando não se abusa do poder (Montesquieu, 1996, p. 166).
Desde os primórdios do Estado de Direito que esse objetivo primacial
tem sido prosseguido por três vias paralelas: garantia dos direitos fun‑
damentais; imposição da separação de poderes; e democraticidade dos
sistemas de governo. E a verdade é que o endividamento desregulado do
Estado interfere negativamente com todas e cada uma destas três vias.
Por um lado, umas finanças públicas não sustentáveis põem em causa
direitos fundamentais das gerações futuras, que se verão privadas da
liberdade para fazer as suas próprias escolhas democráticas (v.g., entre
modelos de desenvolvimento económico ou entre políticas sociais). Em
coerência, pois, a Constituição não pode permitir que se esvaziem de
96 JORGE PEREIRA DA SILVA
conteúdo útil os direitos dos cidadãos de amanhã, quando ao mesmo
tempo faz questão de garantir aos cidadãos de hoje o pleno exercício
desses mesmos direitos. Por outro lado, a separação de poderes tem tam‑
bém, entre outras, uma dimensão temporal. Por isso os governantes têm
o seu tempo em funções dividido em mandatos curtos, de quatro, cinco
ou seis anos. Separação de poderes e princípio republicano caminham
aqui de mãos datas, exigindo renovação periódica da legitimidade de
todos os que governam em nome do povo. E é por isso um paradoxo
que a Constituição não os impeça de, a partir desses mandatos limitados,
determinar insidiosamente a ação governativa por períodos temporais
bastante mais longos. Por último, uma democracia saudável pressupõe
que, quem recebe dos eleitores os louros associados à realização da
despesa pública, assuma também os custos inerentes à cobrança dos
correspondentes impostos. Não há, aliás, melhor estímulo à gestão efi‑
ciente dos recursos públicos. Se for possível transferir para quem vem
depois os ditos custos, isso dificulta muito a responsabilização política
dos governantes e põe em causa a transparência e a lealdade do jogo
democrático. Enfim, o endividamento público é o ópio das democracias
fracas, que não conseguem resistir à tentação!
Ora, atendendo ao modo concreto de funcionamento das democracias
ocidentais, é legítima a dúvida sobre se as disposições constitucionais
que as regem estarão aptas a preencher as exigências decorrentes de
uma ética de responsabilidade para com o futuro, tal como pensada por
Hans Jonas. Isto é, são capazes de garantir um mínimo de equidade
intergeracional e as condições de possibilidade dos direitos das gerações
vindouras (Jonas, 1995, pp. 63 et seq.). Naturalmente, estas gerações
não votaram nas últimas eleições – aquelas em que se escolheram os
governantes e as políticas que as virão a onerar –, como não chegarão a
tempo de votar nas próximas eleições – quase por certo as últimas em
que será possível responsabilizar aqueles governantes e censurar as suas
políticas. Depois disso, muito provavelmente, o ciclo político-partidário
mudará de vez. Assim, a legitimidade das decisões do poder público, que
afetam negativamente o futuro e os seus protagonistas, não pode deixar
de ser questionada no próprio plano democrático, sobretudo quando
essa afetação seja muito gravosa, demasiado prolongada ou irreversível.
Garantir, no plano financeiro, um tratamento justo para os cidadãos
de amanhã, numa época em que a sociedade e o sistema político con‑
vergem numa irrestrita glorificação do presente, é porventura um dos
mais importantes problemas que a teoria política e a teoria jurídica
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 97
têm para resolver no início deste século. Pelo menos se, para utilizar
as palavras de Ulrich Beck, tiverem a ambição de controlar a situação
de “irresponsabilidade organizada” em que as atuais sociedades oci‑
dentais (e não só) ser encontram mergulhadas (Beck, 2015, pp. 63 et
seq.). A sua solução passa, antes de mais, por uma reflexão séria sobre
o desenho dos sistemas políticos estaduais, mormente sobre os freios e
contrapesos que incorporam e sobre os reais efeitos que estes produzem
nos diferentes domínios da governação. Numa palavra: num quadro em
que se reconhece que “as finanças são a realidade da Constituição”, nada
há de mais “constitucional” do que a limitação do défice e da dívida
pública (Canotilho, 2017, pp. 44 et seq.). Se é nesse campo que se
têm registado graves abusos – com consequências muito sérias para as
populações –, a constitucionalização desses limites é certamente uma
questão pertinente, que apresenta algumas dificuldades técnicas, mas
que não deve ser afastada de ânimo leve (v., para uma análise no plano
da teoria económica, III, caps. 7 e 8).
2. Parcerias público-privadas
Também a respeito dos esquemas de financiamento de muitas das
obras públicas realizadas em Portugal nos últimos anos – parcerias
público-privadas, project finance, pay-as-you use (Sarmento, 2013,
pp. 26 e 50 et seq.) –, se tem sustentado que a transferência para os que
vêm depois dos encargos correspondentes às nossas ações suscita, além
de um óbvio problema de sustentabilidade das contas públicas a médio
e longo prazo, uma séria questão de natureza moral.
Recorrendo a um lugar paralelo, todos concordarão que não é moral‑
mente aceitável que os pais procurem viver à conta dos filhos. Como
já referia Thomas Jefferson, em 1789, na sua carta escrita de Paris a
James Madison, “nenhuma geração pode contrair dívidas maiores do
que as que sejam pagáveis no curso da sua própria existência”. Por
exemplo, nenhum pai responsável assume um encargo financeiro para
os seus filhos pagarem mais tarde, quando começarem a trabalhar e a
ganhar dinheiro. Pelo contrário, os bons pais investem na educação dos
filhos e, quando podem, poupam algum do seu rendimento para depois
os ajudar a construir a sua independência. Sacrificam parte do seu bem‑
-estar presente para que eles possam ter um futuro melhor. Assim sendo,
é inevitável perguntar por que motivo não aplicar este mesmo princípio
no governo dos Estados. E, ao invés, se tolera que os governantes atuais
98 JORGE PEREIRA DA SILVA
sobrecarreguem as gerações futuras com pesados encargos financeiros,
decorrentes de investimentos públicos que só eles decidiram.
Alguns asseguram que é justo que as gerações futuras compartilhem
com a geração presente os custos das grandes obras do regime, que irão
perdurar no tempo, e dos investimentos públicos que, pelo seu efeito
reprodutivo, terão um resultado virtuoso no médio e longo prazo, assim
como das próprias políticas sociais de que também elas virão a retirar
benefícios. Seria este, aliás, o único procedimento conforme com os
cânones da racionalidade económica e financeira.
É preciso não esquecer, porém, que é a geração presente que decide
fazer as obras, realizar os investimentos e adotar as políticas públicas.
Numa palavra, somos nós, e não as gerações futuras. E, precisamente
porque somos nós que tomamos as decisões, fazemo-lo à luz das nos‑
sas prioridades políticas, dos nossos modelos de desenvolvimento, dos
conhecimentos técnicos disponíveis e, em especial, da relação que
estabelecemos entre ambiente e progresso económico. De resto, fazemo‑
-lo também visando a satisfação das nossas aspirações de bem-estar e
das nossas ingentes necessidades de emprego. Não é de estranhar que
nos pareça equitativo que as gerações vindouras suportem os encargos
decorrentes das nossas ações de hoje. É fácil considerar como justo um
veredicto quando julgamos em causa própria, em sintonia com os nossos
interesses, sem ter de perguntar a opinião dos demais afetados.
Num mundo cada vez mais imprevisível, não é possível garantir que
as gerações oneradas com os custos das obras, dos investimentos e das
políticas que pusemos em marcha irão pensar e sentir como nós. Num
mundo em que a única certeza é a permanente mudança, ainda quando as
intenções presentes sejam as melhores, as gerações futuras parecem ter
pelo menos o direito de exigir uma especial prudência e uma particular
probidade nas decisões que as vão sobrecarregar. E, não obstante, os
governantes insistem em comportar-se à semelhança de um pai que compra
uma casa nova, à medida das suas necessidades, e que deixa grande parte
do respetivo preço para os filhos pagarem, com o argumento de que eles
também vão viver nela e, até, que a virão a herdar um dia mais tarde.
A verdade é que cada vez mais os governantes atuam desta forma
porque a sociedade atual constitui uma imensa glorificação do presente.
Como na frase referida logo no início, “em política não há gerações futu‑
ras, só as eleições seguintes”. A relação entre governantes e governados
tornou-se uma relação de mercado, num jogo entre oferta e procura, em
que os governos têm na satisfação imediata dos seus clientes – isto é,
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 99
dos governados – a sua principal política. Por sua vez, os governados
– cientes dos seus direitos enquanto consumidores de serviços de gover‑
nação – descartam os governos com grande solicitude, logo que sentem
que estes não servem eficientemente os seus interesses. Descartam-nos
com a mesma facilidade com que trocam de operador de telecomunica‑
ções ou de eletricidade. Para que tal não aconteça, é necessário prestar
bons serviços e, na maior parte dos casos, isso só é possível construindo
boas autoestradas, aeroportos, hospitais modernos, escola novas e bem
equipadas, mesmo que os recursos financeiros não se encontrem (ainda)
disponíveis.
Na sociedade e na política, vive-se o presente como se não houvesse
futuro. O próprio presente parece reduzido à atualidade, às notícias em
direto. O tempo é sentido como cada vez mais curto e urgente, para ser
usado intensamente. Em consequência, tomam-se decisões políticas de
enorme alcance – cujos efeitos, mormente de natureza financeira, se pro‑
jetam por várias décadas – como se o futuro não existisse ou, pior, como
se o futuro fosse apenas mais uma oportunidade de viver comodamente
a atualidade e de uma forma mais despreocupada (v., de novo, para uma
análise no plano da teoria económica, III, caps. 7 e 8).
3. Segurança social
Como é sabido, outro lugar clássico deste problema da justiça entre
gerações é o da segurança social, sendo comuns as referências, mais
ou menos envergonhadas, à existência de uma verdadeira “conspiração
grisalha”, supostamente responsável pela situação de crescimento con‑
tínuo (e incontrolado) da despesa pública com pensões e pela situação
de insustentabilidade do sistema no seu conjunto (Mendes, 2011, pp. 36
et seq. e 104 et seq.).
Como alguém dizia, lapidarmente, “eu acho muito bem que o meu
pai tenha uma reforma igual ao último ordenado. Só tenho pena de
ter que ser eu a pagá-la”. Lamento justificado, naturalmente, porque a
geração dos atuais trabalhadores no ativo usufrui em geral de ordenados
mais baixos, desconta para o sistema por uma taxa superior, terminará
a sua carreira contributiva mais tarde na vida e, mesmo que venha a
ter efetivamente direito a uma reforma, esta terá sempre uma taxa de
cobertura muito inferior à das pensões que se encontram a pagamento
(correspondam estas, no caso mais extremo, ao último ordenado, ou
aos melhores cinco dos últimos dez, à média dos últimos quinze, etc.).
100 JORGE PEREIRA DA SILVA
Fatores de desvantagem a que se pode acrescentar ainda o facto de os
ativos presentes enfrentarem, como especial intensidade, a ameaça do
desemprego. Ou seja, mesmo fora dos períodos mais agudos de crise
económica, as taxas de desemprego tornaram-se estruturalmente mais
elevadas do que há 10 ou 20 anos.
Assentando o sistema público de segurança social num princípio de
repartição – e não de capitalização – a geração que tem pensões em
pagamento (que, por comodidade, se pode designar por terceira gera‑
ção) beneficia, supostamente, de um direito adquirido, do qual não está
disposta a abdicar, que se formou ao abrigo de regimes legais vigentes
num tempo em que as circunstâncias económicas, demográficas e de
mercado de trabalho eram bastante mais favoráveis do que as que existem
no presente e em que a geração dos ativos (a segunda geração) tem de
desenvolver o seu (sobre)esforço contributivo. A terceira geração tem
direito a receber porque pagou, mas não recebe apenas o que pagou.
Recebe, diretamente do bolso da geração que lhe sucede, muito mais
do que aquilo que pagou e do que aquilo que a geração ativa presente
alguma vez poderá aspirar. A primeira geração, que ainda não iniciou
o seu período contributivo, está por enquanto fora da equação, embora
o movimento geracional flua constantemente, sem paragens ou roturas.
Numa perspetiva de segurança social, tanto a primeira como a segunda
gerações são futuras, embora a segunda já tenha expectativas dignas de
alguma tutela jurídica. Só a terceira geração é presente e, nessa qualidade,
beneficia do grau máximo de tutela que o sistema comporta (o que não
significa que tenha, necessariamente, total proteção contra alterações
subsequentes do seu estatuto).
O problema da segurança social constitui, como é sabido, uma parte –
certamente a mais delicada e aguda – da chamada crise do Estado Social
(ou Estado Providência), surgida na segunda metade da década de setenta
do século passado e que se tem arrastado até aos nossos dias, apesar dos
esforços de sucessivos governos e das múltiplas soluções propostas por
académicos e especialistas. Ficaram célebres, por exemplo, as “New Ideas
about Old Age Securty”, contidas num documento do Banco Mundial,
coeditado por Holzmann e Stiglitz e publicado em 2001, com vista a
garantir a sustentabilidade do sistema de segurança social no século xxi.
No caso português, o problema é agravado pela circunstância de o iní‑
cio dessa crise ser contemporâneo do próprio esforço (de estabilização
política e económica e) de construção do nosso próprio modelo social de
Estado, em concretização da Constituição de 1976 e do amplo catálogo
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 101
de direitos económicos, sociais e culturais que a mesma consagrou, com
os olhos postos nos países desenvolvidos do centro e do norte da Europa
(Carreira, 1996, pp. 273 et seq.; Silva, 2013, pp. 17 et seq.).
Não constitui novidade que os fatores mais incontornáveis dessa crise
são essencialmente três: a redução consistente das taxas de crescimento
económico, que, com algumas oscilações conjunturais, nunca mais
atingiram os níveis anteriores às crises petrolíferas; a inversão progres‑
siva da pirâmide demográfica, com a redução paulatina das taxas de
natalidade e com o alargamento notável da esperança média de vida e,
consequentemente, com a diminuição do ratio de trabalhadores ativos por
dependente; o aumento estrutural do níveis de desemprego, que provoca
simultaneamente redução das contribuições e aumento das prestações
devidas. Para além destes, a crise de financiamento do Estado social
conta com outros fatores, mas em que o aumento da despesa pública tem
uma leitura positiva muito relevante, como sucede, na educação, com
o alargamento da “carreira escolar” da generalidade dos alunos ou, na
saúde, com a disponibilização de medicamentos e tratamentos médicos
que, apesar de caros, alongam e dão qualidade à vida das pessoas.
Que, fruto essencialmente dos fatores referidos, o sistema de segurança
social tem por sua conta o mais grave problema se sustentabilidade de
todo o universo do Estado social de direito – em Portugal, como em
várias outras paragens – é, pois, um dado incontornável, que a simples
visualização do gráfico subsequente revela com facilidade (PORDATA,
Despesas públicas por funções do Estado, 2017)
Além do extraordinário peso das despesas sociais no Orçamento de
Estado – com as despesas relativas às funções soberanas a assumirem
hoje, algo paradoxalmente, uma dimensão quase residual –, o que o
gráfico demonstra é que, ao contrário do que sucedeu com as despesas
com saúde e com educação, mesmo nos anos de mais intensa austeridade,
com o congelamento do valor de todas as pensões e com cortes sensíveis
em muitas das que estavam em pagamento, a despesa pública com ação
e segurança sociais (rubrica em larga medida preenchida por pensões)
continuou a crescer, a níveis absolutamente extraordinários. Comparando
2010 com 2015, a despesa com educação desceu de 8559 para 6757 e
a despesa com saúde encolheu de 9776 para 8518. Em contrapartida,
sem prejuízo de pequenas oscilações, a despesa com ação e segurança
social escalou de forma progressiva de 11 809 para 13 625 no mesmo
período, o que corresponde a um acréscimo acumulado de cerca de 15%
em apenas seis anos. É verdade que os anos de crise económica, sobre‑
102 JORGE PEREIRA DA SILVA
Despesas do Estado por algumas funções
Euro – Milhões
14.000
12.600
11.200
9.800
8.400
7.000
5.600
4.200
2.800
1.400
0
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
erviços gerais da Administração
S Defesa nacional Segurança e ordem públicas
Pública Educação Saúde
Ação e segurança sociais Habitação e serviços coletivos Serviços culturais, recreativos
Agricultura e pecuária, silvicultura, Indústria e energia e religiosos
caça e pesca Transportes e comunicações
tudo por causa do duplo efeito de desemprego (de redução da receita e
de aumento da despesa), são sempre muito pressionantes para todos os
sistemas de segurança social, mas não deixa de ser surpreendente que o
aumento se tenha dado num contexto de poupança forçada – com enor‑
mes custos sociais e que, inclusive, se revelou problemático do ponto de
vista constitucional – de recursos públicos afetos ao pagamento de largos
milhares de pensões. Imagine-se o que teria ocorrido se os montantes
de todas as pensões em pagamento se tivessem mantido absolutamente
inalterados (assumindo apenas o congelamento do valor respetivo como
incontornável). Imagine-se o que teria sucedido se, por exemplo, a tão
diabolizada Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), nas
suas sucessivas configurações, não tivesse passado no crivo apertado do
Tribunal Constitucional [Acórdão n.º 187/2013 (Orçamento de Estado
para 2013) e acórdãos n.os 413/2014 e 572/2014 (Orçamento de Estado
para 2014)].
A situação é, pois, deveras preocupante no médio prazo. Tudo isto,
porém, não faz uma conspiração da geração que beneficia agora do sistema
contra a que suporta o sistema com as suas contribuições. A incapacidade
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 103
de resolver o problema do financiamento do Estado social (sem recurso
sistemático ao endividamento público) e de garantir a sustentabilidade
do sistema de segurança social não foi um exclusivo da terceira geração,
quando até há bem pouco tempo detinha o poder político. A geração dos
atuais responsáveis políticos no ativo revela a mesmíssima incapacidade
e, reforma após reforma (como, por exemplo, a que levou à introdução,
em 2008, do conhecido fator de sustentabilidade), o problema acaba
por regressar sempre tal qual um bumerangue. Nem basta sequer, para
haver conspiração, que a terceira geração não abdique dos diferentes
regimes jurídicos que ainda a beneficiam na atualidade, escudando-se no
princípio da proteção da confiança. Seria necessário dolo: ou seja, que
os regimes legais em causa tivessem sido desenhados por ela mesma,
no passado, quando dominava o poder legislativo, com o objetivo de
criar para si própria um sistema de reformas douradas, custeado pelos
contribuintes futuros do sistema – o que, obviamente, é um absurdo do
ponto de vista histórico.
De um prisma jurídico, o problema é antigo e muito conhecido: rebus
sic stantibus. Os regimes da segurança social e, em particular, o regime
das pensões foram desenhados e mantidos em funcionamento – por
sucessivas gerações de governantes e governados, que fluem entre si de
forma contínua – assumindo a permanência de circunstâncias que foram
desaparecendo progressivamente e que, hoje, já não existem de todo. Em
rigor, os tais três pilares do modelo social de Estado acima referidos e
que, quando foram perdendo a solidez, desencadearam a chamada crise
do Estado Social: elevadas taxas de crescimento económico; altas taxas
de natalidade e de renovação geracional; níveis de emprego elevados.
Tendo desaparecido, de forma notória, a quase totalidade das circunstâncias
que estiveram na base do contrato celebrado entre o Estado (represen‑
tando a comunidade política no seu conjunto) e os então contribuintes
do sistema de segurança social (hoje beneficiários), poderá o devedor
invocar essa cláusula implícita em todos os contratos para não cumprir
as suas obrigações nos termos inicialmente previstos? Fará sentido, com
base no mesmo princípio subjacente ao artigo 437.º do Código Civil,
defender, não evidentemente a resolução do contrato geracional, mas a
sua modificação segundo juízos de equidade?
Uns responderão que não, com boas razões. Outros responderão que
sim, também com bons argumentos. O drama reside no facto de os pri‑
meiros – tendencialmente à esquerda –, apesar de baterem no peito em
sinal de apreço pelo Estado social, serem incapazes de explicar como
104 JORGE PEREIRA DA SILVA
irão garantir a sustentabilidade do sistema público de pensões sem
cortes nos seus valores e sem rever em baixa as regras do seu cálculo.
Em contrapartida, os segundos, que – maioritariamente à direita – se
têm revelado exímios em demonstrar a insustentabilidade da segurança
social tal como está, parecem também incapazes de explicar como é que
a generalidade dos reformados vai conseguir sobreviver depois de novos
cortes nas pensões, cujo nível médio é já hoje muito baixo.
Certo é que, entretanto, a sustentabilidade da segurança social entrou
definitivamente no domínio do jurídico, com o Tribunal Constitucional
a convocá-la como fator de ponderação em algumas das decisões em
que teve que tomar posição sobre medidas legislativas que encurtavam
pensões – em formação e em pagamento –, mas sem lhe atribuir o peso
suficiente para justificar um desfecho de não inconstitucionalidade
[v.g., acórdão n.º 188/2009 (fórmula de cálculo das pensões), acórdão
n.º 862/2013 (caixa geral de aposentações), acórdão n.º 575/2014 (con‑
tribuição de sustentabilidade)]. Ou, mais precisamente, sem lhe atribuir o
peso bastante para, numa operação de balanceamento com a proteção da
confiança, levar a melhor sobre a estabilidade garantida por este princí‑
pio – o que parece sugerir, algo paradoxalmente, que é razoável manter,
a curto prazo, a confiança num sistema que, a médio prazo, já não será
sustentável. Numa palavra: desconto temporal, com sobrevalorização da
utilidade dos bens presentes relativamente à utilidade dos bens futuros
(Parfit, 1987, pp. 480 et seq.) (v., para uma análise aprofundada deste
tema, III, cap. 11).
4. Mercado de trabalho
O (des)emprego constitui outro tópico recorrente da (in)justiça inter‑
geracional, com ampla projeção no espaço público e mediático, onde
pululam referências como: “aumenta o desemprego jovem”; “cresce o
desemprego entre os licenciados”; “geração ‘nem-nem’, não trabalham
nem estudam”; “geração 500 euros”; “geração recibos verdes”. A estas
menções mais ou menos estigmatizantes é, por vezes, justaposta uma
outra, destinada a aumentar o contraste: “geração mais bem preparada
de sempre”.
A injustiça nas relações entre os mais novos e os mais velhos mani‑
festa-se, todavia, em diferentes aspetos do funcionamento do mercado de
trabalho, que naturalmente não deixam de ter conexões entre si: a taxa
de desemprego; a estabilidade no emprego; e os níveis remuneratórios.
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 105
Num quadro económico em que o emprego se tornou definitivamente
um bem escasso, o aspeto mais evidente do problema reside pois na grande
discrepância entre as taxas de desemprego vigentes entre o grupo etário
mais jovem e as taxas médias de desemprego da população em geral
(ou, para aumentar o contraste, as taxas de desemprego da faixa etária
intermédia ou mais avançada na idade). Muitos gráficos poderiam ser
apresentados, com números (nacionais e europeus) absolutamente bom‑
básticos e com diferentes delimitações entre grupos etários e, sobretudo,
com diferentes definições de “jovem”. Desses gráficos poderia retirar-se,
grosso modo, sempre a mesma conclusão: o fenómeno do desemprego
afeta, em termos comparativos, muito mais os jovens – mormente os
jovens à procura do primeiro emprego – do que a restante população ativa.
Sendo que “afetar bastante mais” significa que a taxa de desemprego
jovem representa frequentemente pelo menos o dobro da taxa média do
desemprego em geral (dependendo um pouco da idade com que se perde
a qualidade, ou em rigor o defeito, da juventude).
O gráfico a seguir apresentado, que tem um conceito restrito de
jovem para os padrões sociológicos atuais, revela em 2015 uma taxa
de desemprego jovem de 32%, contra uma média de 12,4% e contra
uma taxa de 11,2% no grupo etário intermédio (PORDATA, Taxa de
desemprego total e por grupo etário, 2016). São números assustadores,
com respeito aos quais se intui que podem pôr em risco a coesão social
e que, naturalmente, fazem temer pelo futuro de qualquer economia
e pela estabilidade política de qualquer país. Com a agravante de, na
generalidade dos casos, os jovens não reunirem (pela ausência de carreira
contributiva) condições de acesso ao subsídio de desemprego. Por outro
lado, este (na melhor das hipóteses) retardamento da entrada dos jovens
no mercado de trabalho desencadeia um conjunto de efeitos laterais
muito negativos, como a redução do seu poder negocial (que, por sua
vez, redunda em ordenados mais baixos), a ausência de emancipação
pessoal, a não constituição de família, a redução da taxa de natalidade
e o encurtamento das carreiras contributivas.
É claro que o desemprego jovem não é a única injustiça geracional
que se pode vislumbrar no acesso ao mercado de trabalho. Pense-se,
por exemplo, naqueles trabalhadores que caiem no desemprego ainda
relativamente jovens para se reformarem, mas que já são velhos de mais
para os padrões de recrutamento do mercado e não podem, pelas suas
necessidades familiares, reiniciar a sua carreira com níveis remuneratórios
idênticos aos oferecidos aos mais novos. De resto, é também comum a
106 JORGE PEREIRA DA SILVA
duração média do desemprego aumentar à medida que os trabalhadores
vão avançando na idade. Mas, pela sua extensão e alcance, a grande
dificuldade dos jovens em ingressar no mercado de trabalho é certamente
uma das injustiças geracionais mais graves e disruptivas.
Taxa de desemprego: total e por grupo etário (%)
Taxa – %
40
36
32
28
24
20
16
12
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
Total Grupos etários - 25 Total 25 25 - 54 55 - 64
A questão é, precisamente, a de saber se o enquadramento legal e
institucional do mercado não favorece de forma indelével os trabalhadores
empregados, em detrimento dos jovens desempregados ou à procura do
primeiro emprego. Em particular, é razoável perguntar se a garantia jurídica
de um elevado nível de estabilidade das relações laborais – segundo o
paradigma clássico do contrato de trabalho por tempo indeterminado –
não tem um efeito negativo no acesso ao mercado de trabalho por parte
dos mais jovens. Assim como é razoável perguntar se as regras sobre
despedimento (por causas objetivas) não favorecem os trabalhadores há
mais tempo na empresa, em comparação com os entrados mais recente‑
mente. Ou ainda se as restrições quantitativas de acesso à função pública
lato sensu – e o Estado continua a ser de longe o maior empregador
nacional – não se projetam sobretudo sobre os mais jovens, protegendo
em contrapartida uma classe de trabalhadores mais velha e, porventura,
algo acomodada à irrevogabilidade do seu vínculo (Medeiros & Silva,
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 107
2015, pp. 413 et seq., a propósito do acórdão n.º 474/20013). De resto, é
também pertinente a questão de saber se o movimento sindical coloca o
mesmo empenho na defesa dos desempregados (maioritariamente jovens)
e na defesa dos trabalhadores detentores de emprego (por norma mais
velhos e com maior índice de sindicalização).
A par deste problema da taxa de desemprego jovem, o mercado
de trabalho parece reservar ainda aos grupos etários mais baixos uma
segunda desvantagem comparativa. Com efeito, o mercado de trabalho
encontra-se hoje profundamente segmentado, de modo que mesmo entre
os trabalhadores empregados encontramos diferentes grupos, cujos inte‑
resses não são necessariamente coincidentes (Centeno, 2013, pp. 41 et
seq.). No essencial: trabalhadores com contrato por tempo indeterminado;
trabalhadores com contrato a prazo; e trabalhadores a recibo verde (na
maior parte dos casos, falsas prestações de serviços, toleradas pelo
sistema juslaboral e acomodadas pelos regimes da segurança social);
mas também trabalhadores contratados por empresas de trabalho tem‑
porário; trabalhadores a tempo parcial ou num qualquer outro regime
de subemprego. Quer isto dizer que a relação jurídica de emprego, que
durante muito tempo esteve no âmago do desenvolvimento do direito do
trabalho, e que foi legal e constitucionalmente arvorada em paradigma
dessa relação (o artigo 53.º da Constituição consagra, precisamente, o
direito à “segurança no emprego”) – pelas especiais garantias que dava
ao trabalhador, em particular no que toca à estabilidade do vínculo –,
volveu-se apenas numa forma, entre várias, de integração do trabalha‑
dor no mercado. A par dela – ou melhor, um ou mais degraus abaixo
dela – outras surgiram, com níveis bastante mais reduzidos de tutela do
trabalhador e dos seus direitos.
Sobretudo, estas outras relações laborais não paradigmáticas têm por
traço identitário comum, apesar da sua heterogeneidade e, por vezes,
atipicidade, a precaridade do vínculo jurídico entre o trabalhador e o
empregador. Não obstante, volveram-se aos poucos na forma comum
– estatisticamente mais relevante – dos jovens entrarem no mercado de
trabalho e, em muitos casos, na única via de estes se manterem no ativo
durante muitos e bons anos. Numa palavra, além de mais afetados pelo
desemprego, os jovens são também o grupo etário mais atingido pelo
fenómeno da precarização do emprego. A questão é, consequentemente,
a de saber onde fica o ponto de equilíbrio em matéria de estabilidade
dos vínculos laborais que cabe ao legislador do trabalho definir, num
domínio normativo em que os efeitos adversos são recorrentes e onde,
108 JORGE PEREIRA DA SILVA
por exemplo, o excesso de proteção se projeta negativamente sobre os
destinatários dessa proteção ou sobre outros grupos de trabalhadores
em posição de maior fragilidade (por razões jurídicas, etárias, nível de
especialização, disponibilidade de mão de obra, etc.).
De resto, é também defendida com frequência a ideia de que os
jovens – sobretudo os detentores de formação superior (licenciatura
ou até mestrado) – juntam à dificuldade em encontrar um primeiro
emprego (com um mínimo de estabilidade) uma condenação prolongada
a níveis remuneratórios muito baixos, ligeiramente acima da fasquia
do salário mínimo. A mensagem que, por vezes, está subjacente a esta
ideia é mesmo a de que não vale muito a pena estudar e tirar um curso
superior, uma vez que os licenciados, além da dificuldade em encontrar
um emprego digno desse nome (isto é, não um simples estágio, não
um programa de formação, nem um emprego assistido por incentivos
públicos), quando o encontram, auferem remunerações não condizentes
com o seu nível de qualificações. No fundo, o mercado de trabalho
não recompensaria o esforço daqueles que se empenham em completar
um curso superior.
Porém, sem negar as dificuldades que os licenciados sentem no acesso
e permanência no mercado de trabalho – sobretudo quando se compara a
realidade presente com o que existia há algumas décadas atrás, em uma
licenciatura constituía um elemento curricular muito diferenciador e que
abria as portas para uma vida profissional tranquila e bem remunerada –,
não é líquido que o problema se coloque exatamente nos termos referi‑
dos. De um modo geral, aliás, o que os números indicam é que, quando
a taxa de desemprego aumenta, aumenta também entre os trabalhadores
detentores de licenciatura e, em geral, entre os mais qualificados. Mas
aumenta menos nos níveis superiores de formação académica e de qua‑
lificação profissional. Os mais afetados pelo fenómeno do desemprego
são, por regra, os trabalhadores indiferenciados. Conclusão semelhante é
válida para a questão dos níveis remuneratórios, em que o prémio salarial
pela formação superior, sobretudo numa economia como a portuguesa
ainda carecida de licenciados, é muito significativo e, apesar de tudo, é
acompanhado por perspetivas de carreira que não se abrem a trabalha‑
dores não qualificados ou com baixa escolaridade.
Vejam-se os gráficos, primeiro quanto à distribuição do desempego
por níveis de escolaridade, com o desemprego dos titulares de formação
superior a acompanhar as oscilações gerais da taxa geral de desemprego,
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 109
mas alguns pontos percentuais mais a baixo (PORDATA, Taxa de desem-
prego por nível de escolaridade completo, 2016):
Taxa – %
20
16
12
0
1998 2005 2012
Nenhum Básico Secundário e pós secundário Superior
Por sua vez, quanto ao nível remuneratório, é manifesto o desvio
para cima da remuneração média dos quadros superiores relativamente
às restantes categoriais profissionais (PORDATA, Níveis remuneratórios
por categorias profissionais, 2016):
Quadro superior
2,000
Quadros médios
1,500
Profissionais altamente qualificados
Total Níveis de qualificação
1,000
Profissionais qualificados
Profissionais não qualificados
500
0
Order: Euro - Média
Por conseguinte, ao contrário do que sucede com a taxa de desem‑
prego jovem e quanto à precaridade do emprego jovem, não parece que
os dados estatísticos confirmem uma injustiça geracional – pelo menos
uma injustiça generalizada ou que perdure no tempo – no que respeita
110 JORGE PEREIRA DA SILVA
aos níveis remuneratórios da denominada “geração mais bem preparada
de sempre”. Apesar de a dicotomia licenciados versus não licenciados ser
demasiado simplista, a verdade é que os prémios remuneratórios decor‑
rentes dos níveis superiores de qualificação parecem ser, ainda hoje, na
economia portuguesa, muito significativos e, naturalmente, esse efeito
é multiplicado quando se considera a totalidade da carreira profissional
dos trabalhadores.
Isto não invalida que o mercado de trabalho seja um contexto muito
propenso a desigualdades geracionais e à ocorrência de casos de verdadeira
discriminação em função da idade, sobretudo no que toca ao acesso ao
emprego. É interessante sublinhar, aliás, que a Constituição, no proémio
do artigo 59.º, sobre direitos dos trabalhadores, coloca a idade como o
primeiro dos critérios suspeitos (seguindo-se o sexo, a raça, a cidadania,
etc.) – o que não sucede no artigo 13.º, que consagra o princípio geral da
igualdade, e que nem sequer inclui a idade na sua lista exemplificativa
de termos de comparação suspeitos. Neste ponto, o artigo 59.º pode
ser considerado como percursor de uma tendência recente – com forte
projeção, por exemplo, na legislação europeia antidiscriminação – de
valoração jurídica da idade (das diferentes idades, para ser mais rigoroso)
como critério materialmente não justificativo de decisões (públicas e
privadas) conferentes de tratamento desigual. É conhecido, aliás, o neo‑
logismo “idadismo”, que visa precisamente sublinhar que a idade das
pessoas não é apenas um dado de facto, natural e axiologicamente neutro,
mas que pode ser usada como uma qualidade ou como um defeito, com
intuitos discriminatórios e até estigmatizantes daqueles que têm a idade
errada – com a agravante de que, dada o seu caráter de inevitabilidade,
as pessoas nada podem fazer contra ela (Marques, 2011, pp. 17 et seq.)
(v., para uma análise aprofundada do tema, à luz do direito do trabalho,
III, cap. 13).
5. Ambiente e energia
A recente eleição de Trump ressuscitou uma outra questão intergera‑
cional clássica, mas cuja resposta parecia estar até certo ponto encontrada,
ainda que a sua implementação prática implicasse um caminho longo
e difícil: a necessidade de proteger o ambiente e os recursos naturais,
contrariando o aquecimento global e apostando nas energias renováveis.
Depois das Cimeiras do Rio de 1992/2012 e de Joanesburgo em 2002,
bem como do acordo histórico alcançado em Paris, na Conferência
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 111
das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, em 2015, o caminho
parecia estar traçado no sentido do reconhecimento comum do princípio
do desenvolvimento sustentável, segundo o qual apenas é legítimo o
“desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem compro-
meter a capacidade das gerações futuras de suprir as suas próprias
necessidades” (formulação cunhada pela Bruntland Comission, in “Our
common future”, 1987). Porém, a retórica oficial da presente Adminis‑
tração norte-americana – os EUA são o segundo maior poluidor mundial,
logo a seguir à China, com uma quota de cerca de 18% das emissões
de gases com efeito de estufa a nível global – revela absoluta simpatia
pelas teses que negam o fenómeno do aquecimento do planeta e muito
pouco apreço pelas políticas ambientais e de promoção do desenvolvi‑
mento de energias renováveis. Ainda que um mandato de quatro (ou
oito) anos não seja suficiente para reverter um percurso de consciencia‑
lização ambiental que tem mais de 40 anos – recorde-se que a primeira
grande cimeira internacional sobre ambiente realizou-se em 1972, em
Estocolmo –, com desenvolvimento de políticas públicas e empresariais
que têm vindo a produzir alguns resultados dignos de registo, o regresso
dos EUA a uma política semelhante à adotada a respeito do “protocolo
de Kyoto” constitui um revés significativo no que toca aos objetivos de
preservação do nosso futuro comum.
É fundamental sublinhar, a este respeito, que o tema ambiental – nele
incluindo o combate à poluição, a preservação dos habitats e da biodi‑
versidade, a utilização sustentada dos recursos naturais, a produção de
energias limpas –, como questão de justiça intergeracional, apresenta
quatro particularidades relativamente aos outros terrenos antes apre‑
sentados: a irreversibilidade de muitos dos danos produzidos pela ação
humana; a amplitude das escalas temporais envolvidas; a dificuldade em
dissociar a responsabilidade dos atores públicos e privados pelas suas
ações e omissões; a inexistência de soluções eficazes num plano que
não seja transnacional. Estas quatro especificidades conjugadas fazem
do ambiente e da energia um domínio particularmente difícil e agudo no
que respeita à defesa dos direitos das gerações futuras. É neste sentido
que Derek Parfit vaticina, logo no início das suas considerações sobre
o paradoxo da não identidade, que “os próximos séculos serão aos mais
importantes da história da humanidade” (Parfit, 1987, p. 351).
É sabido que, quanto à primeira especificidade referida, o que fez
soar os alarmes nos anos 70 e 80 do século passado foi precisamente
a representação intelectual do desaparecimento de condições naturais
112 JORGE PEREIRA DA SILVA
para a continuação da vida humana na terra. A identificação de efei‑
tos ecológicos adversos da atividade humana e a ocorrência de alguns
desastres ambientais – o desaparecimento de muitas espécies animais,
a morte de florestas no centro da Europa, provocada por chuvas ácidas,
ou o acidente químico de Bhopal – juntaram-se ao medo de um conflito
nuclear entre as duas superpotências, no sentido de questionar, pela pri‑
meira vez, o mito do progresso contínuo, que praticamente acompanha
o homem desde o Renascimento e que, salvo algum evento anormal,
garantia a cada nova geração gozar uma vida melhor do que a das suas
antecessoras. Trata-se de um grande choque conceptual para a huma‑
nidade, que é forçada simultaneamente a confrontar-se com os efeitos
irreversíveis da sua ação sobre a natureza – como sucede com a extinção
de espécies animais ou com o esgotamento de alguns recursos – e com
a possibilidade de o próprio homem ter o mesmo destino, a curto prazo,
num conflito nuclear, ou a longo prazo, por desaparecimento progressivo
das condições naturais de vida na terra. No fundo, é este confronto com
uma realidade dramaticamente ameaçadora – marcada pela nota da irre‑
versibilidade das mudanças já ocorridas ou da sua reversibilidade apenas
numa escala temporal muitíssimo alargada – que está na origem do novel
paradigma ético proposto por Hans Jonas, de responsabilidade para com
o futuro: age de tal modo que a máxima da tua ação seja compatível
com a permanência de condições da vida humana na terra (Jonas, 1995,
pp. 40-1). Numa palavra: evolui-se de uma ética de reciprocidade para
uma ética de responsabilidade num só sentido; caminha-se de uma ética
centrada exclusivamente no homem – e nos deveres que este tem para
consigo e para com os seus semelhantes – para uma ética que incorpora
a natureza e o meio ambiente no seu seio.
Quando ao segundo ponto, começa por existir uma enorme discrepân‑
cia entre o tempo normal de permanência em funções dos governantes
e o tempo em que se fazem sentir as consequências dos seus atos ou, na
maior parte dos casos, das suas omissões. A escala temporal dos decisores
políticos reparte-se, na melhor das hipóteses, em curtas legislaturas de
quatro ou cinco anos, ao passo que as escalas dos ciclos biológicos e
naturais, da regeneração das espécies e dos ecossistemas, bem como dos
efeitos da acumulação de poluentes no solo, na atmosfera ou na água são
sempre bastante mais espaçadas, medindo-se na maior parte dos casos em
dezenas ou centenas de anos, quando não mesmo em milhares de anos.
Por exemplo, os efeitos de um derrame de crude podem durar por várias
décadas e o lixo radioativo produzido nos últimos 50 anos nas centrais
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 113
europeias irá, previsivelmente, permanecer ativo durante largos milhares
de anos. Para além disso, no domínio ambiental, existe uma certa névoa
que dificulta a identificação das causas e das consequências na linha
do tempo, uma vez que, frequentemente, umas e outras se sucedem de
forma contínua e se entrecruzam repetidamente.
No que tange ao terceiro ponto, a dificuldade em responsabilizar
politicamente alguém – não tanto uma pessoa, mas um governo ou um
conjunto de atores políticos em funções num dado período – decorre, por
um lado, de em matéria ambiental os danos resultarem mais de condutas
omissivas do que propriamente da decisão x ou y e de, por outro lado, a
generalidade dos atores poluentes serem as empresas e os cidadãos e de
ser limitada a capacidade dos poderes públicos para os refrear. As políticas
públicas ambientais são, de um modo geral, ou políticas de contenção
– v.g., redução de emissões poluentes – ou políticas de estímulo – v.g.,
em matéria de energias renováveis –, mas em ambos os casos o que se
censura nas más políticas seguidas não são as medidas tomadas, mas
sobretudo o que não se faz, a insuficiência ou a falta de medidas mais
severas e limitativas. O que se critica não são tanto as escolhas efetua‑
das, mas é a passividade ou a falta de determinação para mudar o status
quo. Ademais, esta permissividade do poder público vai ao encontro
da manifesta preferência temporal que a sociedade – excetuados alguns
franjas do eleitorado, militantes da preservação do ambiente – concede
às utilidades presentes em face das utilidades futuras. Por isso, empresas
e particulares, no desenvolvimento da sua atividade e nos mais peque‑
nos gestos do dia a dia, convergem em processos decisórios, expressos
e tácitos, que perpetuam padrões de desenvolvimento económico e de
consumo não sustentáveis. Por outras palavras, as questões ambientais
não geram o mesmo tipo de polarização político-ideológica de outras
políticas públicas – v.g., as políticas sociais redistributivas – e não existe,
na prática, um confronto tão marcado entre sociedade e poder.
Por fim, porque as emissões poluentes, assim como muitos recursos
naturais, não conhecem fronteiras políticas, as questões ambientais são
um exemplo claro da “glocalização” que caracteriza o mundo presente:
na linha de Peter Singer, para problemas globais só soluções globais
podem ser eficazes; mas, ao mesmo tempo, as soluções globais têm de ser
executadas localmente, já que são o resultado de muitos pequenos passos,
dados ao mesmo tempo nas diferentes partes do globo (Singer, 2004,
pp. 155 et seq.). Não que os riscos ambientais toquem a todos por igual.
Pelo contrário, há claramente países e povos que têm sofrido e sofrerão
114 JORGE PEREIRA DA SILVA
mais com a degradação do ambiente (v.g., fenómenos meteorológicos
extremos, aumento do nível do mar, desertificação), mas os problemas da
casa comum não se resolvem sem a mobilização de toda a comunidade
internacional e das suas instituições. Não são apenas problemas de países
ricos, preocupados com a qualidade de vida das suas populações, contra
os países pobres, que reclamam o direito ao desenvolvimento económico
e à exploração dos seus recursos naturais, com vista à elevação do seu
nível de vida. Assim como não são só problemas dos países pobres, com
níveis elevados de poluição da água e do ar e de degradação dos solos,
contra os países ricos, que muitas vezes aí buscam matérias-primas e
extraem energia sem os devidos níveis de proteção ambiental, para ali‑
mentar as suas economias desenvolvidas. Ainda assim, é evidente que
o problema da justiça intergeracional cruza-se aqui com o problema das
desigualdades presentes entre países desenvolvidos e países pobres ou
em desenvolvimento, não sendo razoável pedir aos deserdados de hoje
que se sacrifiquem em nome do bem-estar daqueles que nos hão de
suceder na terra.
Ciente destas particularidades da questão ambiental, a UNESCO
aprovou em 1997 uma Declaração – infelizmente não muito divulgada –
sobre as “Responsabilidades da Geração Presente para com as Gerações
Futuras”. Essa declaração começa por revelar, entre as premissas em que
assenta: “no atual ponto da história, está ameaçada a própria existência
da humanidade e do seu ambiente”; é fundamental para a solução dos
problemas do mundo de hoje uma “crescente cooperação internacional,
em particular para criar as condições que garantam que as necessidades
e interesses das gerações futuras não serão prejudicados pelo fardo do
passado”; “o destino das gerações futuras depende, em larga medida,
de decisões e ações tomadas hoje, de modo que os problemas presentes
– incluindo a pobreza, o subdesenvolvimento tecnológico e material, o
desemprego, a exclusão e as ameaças ao ambiente – devem ser resolvidos
simultaneamente no interesse das gerações presentes e futuras”. Depois,
no seu articulado, a declaração prescreve, entre outras coisas: “no que
respeita aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, as gerações
futuras devem beneficiar, tal como a presente, de total liberdade de
escolha quanto aos seus sistemas político, económico e social” (artigo
2.º); “a geração presente deve garantir a manutenção e perpetuação da
humanidade, com respeito pela dignidade da pessoa humana” (artigo
3.º); “a geração presente tem a responsabilidade de transmitir às gerações
futuras uma Terra que um dia não esteja irreversivelmente danificada
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 115
pela atividade humana” (artigo 4.º); “o desenvolvimento científico e
tecnológico não deve comprometer a preservação da vida humana e
das outras espécies” (v., para uma análise mais detalhada da questão
ambiental, III, caps. 9 e 10).
6. Brexit
Virando por fim a agulha para outro domínio completamente dife‑
rente, a recente decisão dos eleitores britânicos de abandonar a União
Europeia veio suscitar de forma inesperada a questão do risco de os
sistemas democráticos atuais produzirem decisões políticas intergeracio‑
nalmente injustas, numa perspetiva de médio e longo prazo. Ao mesmo
tempo, porém, uma análise mais ponderada do fenómeno revela como
são difíceis e arriscados os caminhos da reforma das estruturas políticas
em funcionamento – de modo a incorporar os interesses das diferentes
gerações – ainda que aquelas tenham sido herdadas dos séculos xix e
xx e aí pensadas essencialmente para decidir questões de justiça social,
de (re)distribuição de riqueza entre classes sociais, num mesmo espaço
geográfico e no mesmo fuso temporal.
A prova, mediaticamente apresentada para demonstrar a existência de
um verdadeiro “brexit entre gerações”, foi então a seguinte:
N.º médio de anos
Grupos Idade Esperança
Permanência Saída que terão de viver
etários média de Vida
com a decisão
18-24 21 64% 24% 90 69
25-49 37 45% 39% 89 52
50-64 57 35% 49% 88 31
65+ 73 33% 58% 89 16
No fundo, os eleitores mais novos queriam claramente ficar. Os mais
velhos, porém, estavam determinados a sair. E, com uma população
envelhecida, o “exit” partia com clara vantagem e acabou mesmo por
ganhar o referendo. Pior ainda, os mais velhos, saudosos de tempos pas‑
116 JORGE PEREIRA DA SILVA
sados – tempos felizes, de glória e soberania, que todavia ninguém sabe
verdadeiramente quando foram e quando terminaram –, não tiveram con‑
sideração pelos mais novos e votaram decididamente pela saída. Ou seja,
não incorporaram na sua decisão de voto os interesses dos mais jovens,
apesar de estes serem, por sinal, os seus filhos e netos. A “retrotopia”
recentemente convocada por Zygmunt Bauman, como esperança ilusória
de regresso a uma estabilidade e a uma confiança perdidas algures no
tempo, acabou por ser uma ideia mais mobilizadora do que qualquer utopia
europeia, como projeto de paz, unidade e desenvolvimento (Bauman,
2017, pp. 5-8). Numa sociedade marcada pelo não conhecimento e pela
incerteza quanto ao futuro, o passado parece ser o único lugar seguro, ao
qual faz sentido querer regressar (Beck, 2015, pp. 217 et seq.).
De fora da equação ficaram, naturalmente os muitos imigrantes,
aliás na sua maioria também jovens, que no Reino Unido não têm
– como na generalidade das democracias ocidentais – direito de sufrágio.
Estão a priori excluídos da comunidade politicamente organizada onde
vivem, apesar de aí trabalharem, de aí pagarem impostos de até de aí
acederem aos diferentes serviços e prestações sociais. Um dos grupos
mais diretamente afetados pelo resultado do referendo não participou,
como consequência de uma regra que é tão pacificamente aceite quanto
difícil de justificar no plano teórico: os direitos de participação política,
com o direito de voto à cabeça, são exclusivos dos nacionais. A regra
sagrada da democracia “one man, one vote” – tal como no passado só
valia para os homens livres (e não para os escravos), ou só valia para
os homens brancos (e não para os de outras raças), ou só valia para os
homens (e não para as mulheres) – continua no presente a valer apenas
para os nacionais do Estado e não para os estrangeiros. Ainda que, em
muitos casos, estes sejam essenciais para manter a economia a funcionar,
para equilibrar o saldo demográfico e para preservar em níveis mínimos
a sustentabilidade dos sistemas de proteção social.
Tanto quanto é possível apurar – considerando o ambiente de pós‑
-verdade em que se vive atualmente e que se manifestou de forma par‑
ticularmente intensa durante toda a campanha do referendo britânico –,
o quadro acima recolhe os resultados de uma sondagem, que aliás daria
globalmente a vitória ao “remain”. Apesar de apresentado e massivamente
divulgado após o resultado do referendo, só podia tratar-se de uma sonda‑
gem porque, como é evidente, os resultados eleitorais propriamente ditos
apenas são desagregáveis por área geográfica. Nunca por idade, género,
instrução. Ainda assim, assumindo que não houve fabricação, o quadro
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 117
tem claramente duas partes. As quatro colunas da esquerda limitam-se a
apresentar a desagregação do resultado por escalões etários (de alcance
bastante desigual). As duas colunas da direita, por sua vez, confrontam os
resultados com dados completamente estranhos à sondagem: a esperança
de vida e o número médio de anos que os eleitores terão de viver com a
decisão. A conclusão final é a de que quem vai ter de viver mais tempo
com a decisão queria ficar na União Europeia e está a ser arrastado para
a saída contra a sua vontade.
A questão decisiva que esta interpretação dos dados coloca é a de
saber se, em democracia, além da regra da universalidade do direito de
voto – “one man, one vote”, ainda que com exclusão óbvia dos menores e
bem menos evidente dos estrangeiros –, a regra da igualdade do sufrágio
é uma inevitabilidade e deve por isso permanecer acima da discussão,
como um dogma inquebrantável. Com efeito, sufrágio “igual” significa
que os votos dos eleitores devem ter todos sensivelmente o mesmo peso.
Por isso, dois círculos com o mesmo número de eleitores devem eleger
aproximadamente o mesmo número de deputados. Mas também: um
analfabeto e um licenciado têm um e um só voto cada; um pobre e um
rico têm um e um só voto cada; um solteiro e um pai ou uma mãe de
família têm um e um só voto cada; e, enfim, um jovem e um idoso têm
um e um só voto cada.
Tecnicamente seria possível graduar o voto em função de certas
características dos eleitores, como o nível de interesses que cada um
joga na votação ou o contributo que cada um dá para a sociedade. Tal
já aconteceu algumas vezes no passado, com a lei a atribuir aos eleito‑
res um direito de voto diferenciado: voto plural ou voto ponderado. Há
instituições privadas e comunidades restritas que graduam o direito de
voto dos seus associados nesses termos. Seria por isso fácil atribuir aos
cidadãos em geral um direito de voto cujo peso se fosse depreciando com
o passar do tempo ou, porventura, instituir um “sistema de pontos” de
participação política, que os eleitores gastam paulatinamente à medida
que vão exercendo o seu direito de voto e ficando mais velhos.
O problema é que não há nenhuma correlação entre a idade de cada
um (ou a esperança média de vida) e o contributo dos eleitores para a
sociedade, que não é mensurável em termos minimamente objetivos e
todas as tentativas de o avaliar acabaram por se revelar profundamente
discriminatórias. Além disso, claro está, semelhante mecanismo de tipo
pragmático colidiria de forma dramática com o princípio básico de que
o direito de voto é uma decorrência da ideia transpositiva de dignidade
118 JORGE PEREIRA DA SILVA
da pessoa humana – da igual dignidade da pessoa, como criatura única e
irrepetível e que, segundo Pico della Mirandola, se distingue das outras
criaturas pela capacidade de se criar e de se recriar a si mesma por força
exclusiva do seu ânimo (Mirandola, 2008, p. 57). Quer dizer que, com a
igual dignidade da pessoa na sua raiz mais profunda, não é possível, sem
insanável contradição com o seu próprio fundamento material, um direito
de sufrágio que não seja também tão igual quanto possível (tendo em
conta apenas a falta de absoluta isonomia dos universos ou circunscrições
eleitorais). Por outras palavras, a igual dignidade da pessoa determina
que todas as desigualdades existentes entre os eleitores – incluindo a
diferença de idade – sejam afinal acidentais e, portanto, insuscetíveis de
se refletirem no peso de cada voto a inserir nas urnas.
Nestes termos, é muito duvidoso que, mesmo os que se indignam com
a injustiça intergeracional decorrente da decisão popular no referendo
sobre o Brexit, sejam capazes de pôr em causa a regra do voto igual. Será
seguramente preferível dizer aos jovens que, se a sua orientação política
de hoje se mantiver, devem procurar convocar outro referendo algures no
futuro sobre o Brin: Britain in again! Assim, as únicas conclusões que,
nesta matéria, se podem extrair do referendo britânico serão: primeiro,
não há convergência de posições entre as diferentes coortes populacionais
com acesso ao direito de voto, sendo por isso razoável pensar que essa
ausência se mantem no confronto com as mais jovens (ainda não votantes);
segundo, ao contrário do que por vezes se afirma, é muito duvidoso que
as gerações mais velhas incorporem nas suas opções políticas, enquanto
decisoras e enquanto votantes, os interesses das gerações mais novas.
De certa forma, como já intuía Thomas Jefferson na sua famosa carta
a James Madison, “pela lei da natureza, uma geração está para outra
como uma nação independente está para outra”.
II
Os diferentes campos problemáticos apresentados – outros ainda se
poderiam juntar, como as políticas de educação, a preservação do patri‑
mónio cultural (material e imaterial), a investigação e experimentação
científicas nas áreas da biologia e da medicina, os movimentos migra‑
tórios e as políticas demográficas – revelam à saciedade que o tema da
justiça intergeracional é hoje incontornável, independentemente do modo
como surge formulado: deveres morais das gerações presentes para com
as vindouras; proteção dos direitos fundamentais das gerações futuras;
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 119
princípio jurídico da sustentabilidade (das decisões e políticas públicas);
princípio político do desenvolvimento (económico) sustentável1.
São poucos os que negam a sua autonomia teórica, sustentando que
a melhor forma de fazer justiça às novas gerações é garantir o respeito
atual pelos direitos fundamentais dos cidadãos (Beckerman, 2006, p. 66;
Beckerman & Pasek, 2004, pp. 11 et seq.). E mesmo esses preferem
concentrar-se na demonstração da impossibilidade lógica de gerações de
pessoas que ainda não existem serem titulares de posições jurídicas agora,
dificilmente escapando ao reconhecimento de que a geração atualmente
dominante tem obrigações para com as suas sucessoras (Beckerman,
2006, pp. 53 et seq., esp. p. 61; Beckerman & Pasek, 2004, pp. 107 et
seq.; Gomes, 2007, pp. 155 et seq. Numa análise crítica desta argumen‑
tação, Partridge, 1990, pp. 5 et seq.). A verdadeira questão que desafia
o mundo do Direito não é, assim, tanto a de saber se os indivíduos do
presente estão vinculados para com as gerações posteriores, mas antes a
de saber como se fundamenta e se conforma juridicamente essa vinculação
(Saladin & Zenger, 1988, p. 129).
Apesar da transversalidade do problema dentro do universos dos
ramos de direito –– Direito Internacional, Direito do Ambiente, o
Direito Financeiro e o Direito da Segurança Social – é certamente para
o Direito Constitucional que o desafio se apresenta mais exigente: por
este constituir o instrumento decisivo de limitação jurídica do poder
político e das maiorias conjunturais que efetivamente o exercem; porque
os direitos fundamentais compreendem em si mesmos uma dimensão
intergeracional que é mais do que um simples corolário da Constituição
enquanto pacto com vocação duradoura e, portanto, enquanto pacto entre
gerações (Häberle, 2006, pp. 224-25; & 2003, pp. 261-65). A literatura
germânica mais recente revela, como é hábito, estar profundamente
preocupada com esses desafios (Kahl, 2008; Gehne, 2011; Glaser,
2006; Kleiber, 2014). Concretamente, é no plano constitucional que se
tem perguntado se os deveres de proteção de direitos fundamentais que
impendem sobre o Estado se referem apenas aos seus titulares presentes
ou se abarcam também os direitos que hão de ser titulados pelas gerações
futuras (Murswiek, 1985, pp. 207 et seq..; Robbers, 1987, pp. 217 et
1
Daqui em diante segue-se, muito de perto, o que se escreveu em Breve ensaio
sobre a proteção constitucional dos direitos das gerações futuras, Em homenagem ao
Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, ed. Athayde, Caupers, Garcia, Coimbra, 2010,
pp. 458 et seq.
120 JORGE PEREIRA DA SILVA
seq.; Dietlein, 1992, pp. 124 et seq.; Lawrence, 1989, pp. 174 et seq.;
Saladin & Zenger, 1988, p. 76).
7. Problema constitucional
Admitindo como correta a ideia de que, no domínio em apreço, o
Direito (Constitucional) tem por obrigação corresponder a um mínimo
ético, segundo um modelo de complementaridade e diferenciação entre
regras jurídicas e regras morais (Habermas, 2001, pp. 169 et seq.,
esp. p. 172) – ideia que, não obstante as controvérsias que suscita, tem
beneficiado de ampla aceitação, representando o relacionamento entre
moral e direito através duas circunferências secantes (Tremmel, 2006,
pp. 199-200) –, a vinculação jurídica do Estado a um dever de atuação
em favor das gerações futuras resulta da imperiosa necessidade de sal‑
vaguardar todos aqueles que se acham ameaçados nos seus bens mais
elementares e não têm, por razões óbvias, qualquer capacidade para se
defender a si próprios. Ou, o mesmo é dizer, que decorre do imperativo
de proteção de todos os que, em virtude da sua posição de fragilidade,
estão colocados numa situação de absoluta dependência relativamente
à conduta de terceiros.
Excluída fica, portanto, toda e qualquer orientação segundo a qual o
Estado não se encontra juridicamente obrigado a atuar em proteção das
gerações vindouras, uma vez que, algures no futuro, é provável que se
venham a descobrir remédios eficazes contra os males que, aos olhos
de hoje, as sociedades atuais projetam sobre as gerações de amanhã
(Murswiek, 1985, p. 211; Caspar, 2001, p. 101). E, do mesmo modo,
são igualmente de excluir aqueloutras orientações que, reconhecendo
embora a existência de vinculações genéricas (de natureza moral) em
favor daqueles que hão de suceder-nos – mas não direitos das gerações
futuras (Beckerman & Pasek, 2004, pp. 15 et seq.) –, sustentam ao
mesmo tempo que a melhor forma de lhes dar cumprimento é cuidar dos
vivos, promovendo os seus direitos hoje e, em particular, aproveitando o
potencial que os direitos de participação política podem ter no sentido da
construção de um futuro melhor (Beckerman, 2006, pp. 66-7; Becker‑
man & Pasek, 2004, pp. 114 et seq.; contra, Tremmel, 2006, p. 200).
Um exemplo de escola tem sido utilizado para demonstrar a impro‑
cedência destas argumentações simultaneamente otimistas e apologistas
da passividade (Birnbacher, 2006, pp. 26-29): “alguém construiu um
engenho explosivo capaz de ceifar inúmeras vidas humanas, mas programa‑
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 121
-o para explodir apenas daqui a 100 ou 150 anos. O Estado, através das
suas forças policiais e da sua máquina judiciária, tem ou não um dever
de ação imediata, desarmando a bomba e perseguindo penalmente o
seu autor?” (Murswiek, 1985, pp. 209, 212 e 215; Palombella, 2007,
p. 6). Em face deste exemplo singelo, quem poderá defender no plano
jurídico que o desarmar da bomba é responsabilidade, não das autoridades
públicas atuais – que, assim, poderiam simplesmente cruzar os braços
–, mas sim das autoridades que estiverem em funções daqui a 100 ou
150 anos? E quem poderá sustentar que basta efetivar os direitos das
pessoas atualmente vivas para que a vida humana esteja devidamente
salvaguardada daqui a 100 ou 150 anos?
Nem se alvitre que, na hipótese dada, as autoridades têm o dever de
desarmar a bomba porque sabem como fazê-lo, ao passo que, no atual
estado da ciência e da técnica, desconhece-se o modo de resolução de
muitos dos problemas que são deixados para as gerações seguintes.
Assim, ultra posse nemo obligatur! O argumento não procede porquanto,
em rigor, o dever de agir das autoridades estaduais competentes – ainda
que atendendo apenas à função geral de segurança do Estado – é bem
mais complexo do que o simples desarmar do engenho já construído:
ele começa logo na evitação do seu fabrico; passa pela sua localização,
se esta for desconhecida; caso necessário, engloba também o desen‑
volvimento do saber indispensável ao seu desarmamento; e só termina
com o desativar, em segurança, da dita bomba. Trata-se de um dever de
diligência orientado para um resultado e cujo alcance, portanto, não deve
ser delimitado pelos meios já disponíveis para o alcançar. Se a geração
presente não tiver os conhecimentos ou os meios técnicos para desarmar
a dita bomba-relógio, nem por isso se torna ética e juridicamente legítimo
relegar uma eventual solução do problema para as gerações seguintes.
Muito pelo contrário, ela deve, antes de mais, procurar evitar o fabrico
daquela e, se isso já não for possível, fica vinculada a uma obrigação de
investigação e desenvolvimento, no sentido de contribuir para a resolução
quanto antes do problema entretanto criado.
Isto posto, firmada a existência não apenas de um dever ético mas
também de um dever jurídico de proteção das gerações futuras, resta
saber se o objeto a que esse dever se refere é constituído, agora numa
perspetiva dogmática, por verdadeiros direitos e, mais precisamente, por
direitos fundamentais. Ou se, pelo contrário, o Direito Constitucional tem
escolhido (ou pode escolher) outros caminhos para se desincumbir dessa
sua missão de salvaguarda de um mínimo da ética de responsabilidade
122 JORGE PEREIRA DA SILVA
para com o futuro, afirmando os vínculos relativos às gerações vindou‑
ras pela via dos princípios gerais, das normas programáticas e de outras
imposições ou tarefas constitucionais. Deveres por referência a direitos,
ou simplesmente deveres?
A tendência recente para proceder à incorporação do tópico das gera‑
ções futuras nos textos constitucionais vigentes não representa de modo
algum o arrastar de um corpo estranho para dentro do Direito Constitu‑
cional. A temática em causa integra-se com facilidade no campo mais
vasto das relações entre o Direito Constitucional positivo e o decurso do
tempo, que é, como se sabe, quase tão antigo quanto a própria ideia de
Constituição escrita (Palombella, 2007, pp. 17-8; Caspar, 2001, pp. 73
et seq.). O problema das denominadas “cláusulas pétreas” em matéria de
revisão constitucional é apenas uma das suas manifestações mais salientes
(Miranda, 2003, pp. 198 et seq.). Mesmo excluindo o tema mais óbvio
da aplicação da lei constitucional no tempo, existem vários outros que
revelam a natureza multifacetada daquele problema, como o do relevo
do elemento histórico (e dos preâmbulos) na interpretação constitucional,
o próprio papel da interpretação evolutiva, a medida da admissibilidade
do costume constitucional, a atenção concedida à herança cultural do
povo, a figura das garantias institucionais, as cláusulas (programáticas)
de evolução e o cumprimento das tarefas e imposições (legislativas)
constitucionais (Häberle, 2000, pp. 1 et seq.) (v., para uma análise
específica destes problemas do tempo constitucional, sobretudo em sede
de revisão constitucional, II, cap. 5).
8. Afloramentos positivos
Não é de estranhar, por isso, que a justiça intergeracional e as gera‑
ções futuras se achem representadas num número significativo de textos
constitucionais em vigor. Mesmo deixando agora de lado os casos mais
recentes e conhecidos de introdução de disposições contendo limites ao
défice e ao endividamento público – v.g., os extensos artigos 109.º e 115.º
da Constituição de Bona e o artigo 135.º da Constituição espanhola –,
podem mencionar-se os seguintes exemplos:
a) Desde 1997, a alínea d) do nº 2 do artigo 66.º da Constituição
portuguesa incumbe o Estado, em ordem a assegurar o direito ao
ambiente, de “promover o aproveitamento racional dos recursos
naturais, salvaguardar a sua capacidade de renovação e a estabili‑
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 123
dade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre
gerações” (Canotilho & Moreira, 2007, pp. 849-50; em sentido
diferente, Gomes, 2007, pp. 155-56);
b) O artigo 20.º da Lei Fundamental de Bona prescreve, desde que
foi introduzido em 1994 (e alterado em 2002), que, “tendo em
conta a responsabilidade para com as gerações futuras, o Estado
protege as bases naturais da vida (e os animais) no quadro da ordem
constitucional, através dos poderes legislativo e, em conformidade
com a lei, executivo e jurisdicional” (Calliess, 2001, pp. 104 et
seq., esp. pp. 118-21; Höfling, 2001, pp. 107 et seq.; Bubnoff,
2001, pp. 62 et seq.; Tepperwien, 2009, pp. 106-7);
c) Seguindo uma linha original, a Constituição francesa (1958) foi
acrescentada, em 2004, de uma “Carta do Ambiente”, a qual con‑
sagra simbolicamente a terceira geração de direitos fundamentais
dos franceses – somando-se aos direitos da primeira geração,
plasmados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789) e aos direitos da segunda geração, recolhidos no preâmbulo
da Constituição da IV República (1946) –, por entre os quais foram
igualmente consignados os princípios da precaução (artigo 5.º) e
do desenvolvimento durável (artigo 6.º) (Bourg, 2006, pp. 230
et seq.);
d) No preâmbulo da Constituição de 1999, o povo e os cantões
suíços inscreveram “o adquirido comum e o dever de assumir
as suas responsabilidades para com as gerações futuras” entre os
fundamentos primeiros do novo texto constitucional;
e) Por sua vez, na Constituição polaca de 1997 – no que, aliás, é
acompanhada por vários outros textos constitucionais da Europa
de leste (Häberle, 2006, p. 217) –, depois de no seu preâmbulo
reconhecer a “obrigação de deixar como herança às gerações futu‑
ras tudo o que é valioso para a atual”, vem prescrever no artigo
74.º que “as autoridades públicas devem prosseguir políticas que
garantam a segurança ecológica para a geração presente e para as
gerações futuras”;
f) Noutra latitude completamente diferente, a Constituição brasileira
estabelece, no seu artigo 225.º, integrado no título VIII sobre “ordem
social”, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia quali‑
124 JORGE PEREIRA DA SILVA
dade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”;
g) Também a Constituição da África do Sul de 1996 prescreve, no
seu artigo 24.º, que “todos têm o direito” […] “a um ambiente
que não seja ameaçador da saúde e do bem-estar”, bem como “a
ter um ambiente protegido, em benefício das gerações presentes
e futuras”;
h) Noutros países ainda, como a Hungria ou Israel, optou-se pela
criação de um órgão – respetivamente, um ombudsman e uma
comissão parlamentar – cuja função é precisamente a de representar
as gerações futuras e de salvaguardar os seus interesses (Jávor,
2006, pp. 282 et seq.; Shoham & Lamay, 2006, pp. 244 et seq.);
i) No plano supraestadual, a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia declara, no seu preâmbulo, que o gozo dos direitos
nela consagrados “implica responsabilidades e deveres, tanto para
com as outras pessoas individualmente consideradas, como para
com a comunidade humana e as gerações futuras”.
Com exceção das disposições sobre défice e dívida, todos os demais
exemplos se inscrevem, de algum modo, na narrativa constitucional de
afirmação do “Estado de Direito ambiental” (Calliess, 2001, pp. 30 et
seq.; Häberle, 2006, p. 223). Além disso, a leitura dos excertos apre‑
sentados sugere que, do ponto de vista substantivo, se oscila entre visões
mais compreensivas do problema das gerações futuras, a começar por
aqueles textos que o chamam para o preâmbulo, e outras que o tratam
como um epifenómeno de outros institutos ou direitos constitucionais –
como sucede com a Constituição portuguesa, em que o tópico das gera‑
ções futuras apenas surge como parâmetro aferidor do aproveitamento
racional dos recursos naturais. Por outro lado, mesmo sendo a amostra
pequena, ela é suficiente para dar conta de uma grande heterogeneidade
de fórmulas de interceção entre o Estado (constitucional) de Direito e a
necessidade de nele dar guarida à posição das gerações futuras, especial‑
mente no domínio ambiental (mais exemplos: Tremmel, 2006, pp. 192-98;
Häberle, 2006, pp. 215-21). Com efeito, é possível vislumbrar soluções
normativas e soluções institucionais, e dentro das soluções normativas
é patente a distinção entre as fracas – como é o caso das referências
preambulares, sem prejuízo da sua grande carga simbólica – e as fortes
– como se verifica com os preceitos constitucionais propriamente ditos.
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 125
Por último, é de sublinhar que a generalidade das soluções normativas
fortes, apesar de surgirem no contexto dos direitos fundamentais, não
são formuladas textualmente como tal, mas antes como princípios, como
tarefas estaduais (e sociais) ou como fins ou programas públicos (Saladin
& Zenger, 1988, pp. 93 et seq.).
9. Dimensão intergeracional dos direitos fundamentais
O facto de os textos constitucionais mencionados não recorrerem
nunca à expressão “direitos das gerações futuras” parece denunciar a
primazia concedida ao lado passivo da relação entre a geração atual e
as gerações subsequentes, em desprimor de um eventual lado ativo. Tal
primazia parece, aliás, estar de harmonia com a unilateralidade passiva
que, na ética de responsabilidade para com o futuro, caracteriza assu‑
midamente o relacionamento entre o presente e a posteridade (Saladin
& Zenger, 1988, p. 27). Mas quererá isso dizer que, embora existam
deveres jurídico-constitucionais para com as gerações seguintes, não é
possível falar, ao menos numa perspetiva de jure condendo, de direitos
fundamentais das gerações futuras?
Não parece que assim seja. A análise literal das Constituições que
foi efetuada é insuficiente, deixando na sombra um sentido mais pro‑
fundo do constitucionalismo e, em particular, dos direitos fundamentais.
Um sentido que permite afirmar, com segurança, que de todo não pode
aceitar-se que os direitos consagrados nos textos constitucionais em vigor
sejam entendidos apenas como direitos das gerações presentes. Ou seja,
tão-somente como direitos daquelas pessoas que, por estarem hoje vivas,
podem assumir subjetivamente a titularidade das correspondentes posi‑
ções ativas. A pretexto da impossibilidade de erigir os “direitos (ainda)
sem sujeito” numa categoria jurídica genérica, não pode admitir-se que
se confinem os direitos fundamentais àquelas que são as suas dimensões
subjetivas – traduzidas em pretensões de defesa e na reivindicação de
prestações –, esquecendo as diversas dimensões objetivas que são parte
integrante da sua complexidade estrutural e funcional. Muito em especial,
semelhante visão redutora olvidaria que, à luz da própria genealogia dos
direitos fundamentais, logo na sua raiz natural e pré-constitucional, estes
se caracterizam pela sua capacidade de atravessar o tempo, de forma
contínua e incólumes na sua essência à passagem das gerações. Numa
palavra, tais entendimentos ignorariam que os direitos fundamentais se
acham originariamente marcados pela sua própria intemporalidade, que
126 JORGE PEREIRA DA SILVA
deflui da presença da dignidade da pessoa humana no núcleo irredutível
de cada um deles e do próprio sistema jusfundamental (Szczekalla,
2002, pp. 288-9; Saladin & Zenger, 1988, pp. 23-4). Na verdade, do
que se tem cuidado desde as revoluções liberais até hoje não é apenas
dos direitos de todos os homens e em todos os lugares, mas também dos
direitos dos homens em todos os tempos (Andrade, 2016, p. 17). Por
isso, eles são garantidos pelos textos constitucionais sem um horizonte
temporal específico (zeit-unspezifisch) (Saladin & Zenger, 1988, p. 63).
Logo nos adventos do movimento constitucional, na Declaração de
Direitos da Virgínia, o perfil dos direitos inatos é definido, justamente,
pela circunstância de o homem não poder, quando entra no estado de
sociedade, “por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade”.
A própria Constituição dos Estados Unidos foi decretada, entre outras
razões, para “assegurar os benefícios da liberdade a nós e aos nossos
descendentes”. Do lado de cá do Atlântico, a palavra “doravante” acha‑
-se no centro do preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, para que daí em diante os cidadãos pudessem fundar as suas
reclamações em princípios simples e incontestáveis. E logo no artigo
2.º deste texto fundador, os direitos aí consagrados são apelidados de
“imprescritíveis”. É assim possível dizer-se que, se há nota marcante
dos alvores do constitucionalismo, e das primeiras consagrações formais
dos direitos do homem, ela é exatamente um sentido muito apurado
de futuro e, com ele, uma grande determinação em legar às gerações
vindouras um conjunto de instituições políticas e jurídicas de que as
gerações passadas e a geração então presente não tinham beneficiado
(HOFMANN, 1981, pp. 266-70). Entre essas instituições definitivamente
legadas a todas as gerações vindouras, destacavam-se, como é óbvio,
os direitos do homem.
Os direitos fundamentais hoje consagrados nas Constituições – como
herdeiros diretos dos direitos do homem então reconhecidos e positivados
– estão, pois, também eles, irremediavelmente imbuídos desse sentido
apurado de futuro, compreendendo uma verdadeira dimensão intergera-
cional (Häberle, 2003, p. 261 e p. 263, em nota; & 2006, pp. 223-5).
Evidentemente, aquilo que está em causa no (re)tomar desta dimensão
jusfundamental não é o reconhecimento a cada um dos membros de todas
as gerações futuras de pretensões subjetivas atuais e acionáveis sobre
aqueles que são os concretos titulares presentes de direitos fundamentais ou
contra os poderes públicos em exercício. Os direitos das gerações futuras
existem – aliás, sem necessidade de se instituir artificialmente um novo
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 127
sujeito constitucional denominado “geração”, porventura para lhe nomear
um representante legal específico, para além dos órgãos competentes do
Estado (Partridge, 1990, pp. 8-13) – e são merecedores de proteção
constitucional enquanto realidades inscritas na dimensão jurídico-objetiva
dos direitos fundamentais – somando-se assim às funções institucio‑
nais, irradiantes, de eficácia entre privados, valorativas e estruturantes
da ordem constitucional (Dolderer, 2000, pp. 117 et seq.). E é nessa
qualidade que, naturalmente, interagem com a vertente jusfundamental
subjetiva reservada às gerações presentes e, por consequência, também
com a posição jurídica atual assumida pelo próprio Estado. A ideia de
direitos das gerações futuras não constitui, desta forma, uma alegoria
dissolvente da noção histórica e dogmaticamente estabelecida de direitos
fundamentais – ao contrário do que acontece, porventura, com outras
ideias, como a de direitos dos animais, direitos da natureza, ou direitos
dos povos ao desenvolvimento e aos recursos naturais (Araújo, 2003,
pp. 181 et seq., e pp. 283 et seq.).
Subjetivamente, os direitos fundamentais fluem de forma contínua
entre gerações, sem ruturas nem descontinuidades, mas numa perspetiva
objetiva eles coexistem no tempo em termos tais que os direitos das
gerações futuras interagem hoje mesmo com os direitos da geração pre‑
sente, cerceando-os no seu alcance material ou nas suas possibilidades de
exercício, e vinculando as entidades públicas à sua salvaguarda. Trata-se
assim, acima de tudo, de uma dimensão jusfundamental que compromete
os seus titulares presentes para com os seus titulares supervenientes e
que – como certamente já se vem pressentindo – depende da efetiva
assumpção pelo Estado das suas responsabilidades (éticas e) jurídicas
para com o futuro (Saladin & Zenger, 1988, pp. 124-8). Os titulares
presentes dos direitos fundamentais têm de agir, até certo ponto, como
administradores fiduciários daqueles que lhes hão de suceder (Häberle,
2003, p. 264). Tal como, lapidarmente, se escreve no preâmbulo da recente
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o gozo dos direitos
nela consagrados “implica deveres e responsabilidades”, não apenas para
com “as outras pessoas individualmente consideradas” e “a comunidade
humana”, mas também para com “as gerações futuras”.
A ideia de direitos fundamentais das gerações futuras não é apenas
um artifício retórico sem qualquer tradução jurídica, antes possuindo a
consistência dogmática que deriva do facto de aqueles poderem já hoje
produzir (pré)efeitos jurídicos delimitadores dos direitos atualmente titu‑
lados pela geração presente. Desde logo – adaptando uma ideia recorrente
128 JORGE PEREIRA DA SILVA
no que toca ao relacionamento entre direitos de sujeitos contemporâ-
neos –, os direitos das gerações presentes terminam aí onde o seu exer‑
cício irrestrito (ou abusivo) ponha em causa a subsistência dos direitos
das gerações futuras, considerando sobretudo a dependência destes em
face dos pressupostos naturais da vida humana na terra. Os direitos
fundamentais presentes incorporam como limites (imanentes), se não
mesmo como restrições, a responsabilidade dos seus atuais titulares para
com todos aqueles que lhes hão de suceder nessa posição. Para que essa
eficácia delimitadora se produza em termos efetivos – assim se fechando o
círculo –, os direitos das gerações futuras carecem apenas do cumprimento
por parte do Estado, com um alcance temporalmente alargado, dos seus
deveres de proteção de direitos fundamentais. Por outras palavras, entre
a dimensão intergeracional dos direitos fundamentais – que permite falar
com propriedade jurídica de direitos das gerações futuras – e a teoria
dos deveres estaduais de proteção existe uma ligação umbilical, uma vez
que é esta que fornece o caminho dogmático que permite dar tradução
prática àquela dimensão e àqueles direitos.
É assim indiferente que as Constituições acima citadas não se refiram
expressamente a direitos das gerações futuras. Não tinham nem têm de o
fazer. Por definição, os direitos fundamentais que todas elas consagram
são também direitos das gerações futuras, embora numa perspetiva dife‑
rente daquela em que são direitos da geração presente (Murswiek, 1985,
p. 211; Bubnoff, 2001, pp. 46-7). Tão-pouco pode cavar-se um fosso
entre a proteção constitucional concedida a uns e a outros. Muito pelo
contrário, a dimensão intergeracional dos direitos fundamentais implica
a continuidade substancial da sua proteção constitucional, sem nenhum
corte geracional, sem separar o presente do futuro (Saladin & Zenger,
1988, pp. 76-8). Todas as Constituições, sobretudo enquanto sede dos
direitos fundamentais, incluem o futuro no seu programa normativo.
É evidente que elas não são eternas, podendo ser revistas e passar por
inúmeras outras vicissitudes que interrompem a sua vigência. Mas não é
menos evidente que – descontados alguns exemplos históricos de textos
destinados a vigorar transitoriamente – a generalidade das Constituições
comunga de uma forte vocação de permanência, concebendo-se como
projetos de estabilização das relações políticas e sociais por períodos
temporais alargados (Tepperwien, 2009, pp. 101 et seq.). O tempo das
Constituições é um tempo longo – não um tempo curto, nem menos
ainda um tempo limitado à atualidade –, o que lhes permite afirmarem-se
também como pactos entre gerações (Häberle, 2003, p. 263). Acresce
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 129
que, de entre todos os capítulos constitucionais, é precisamente no terreno
dos direitos fundamentais que a referida vocação de permanência e de
continuidade mais se acentua. O que explica, por exemplo, a presença
relativamente frequente dos direitos fundamentais entre as cláusulas de
limites materiais de revisão constitucional – como ocorre com a alínea
d) do artigo 288.º da Constituição portuguesa.
Em suma, não se vislumbra nenhum obstáculo dogmático inultrapas‑
sável à inclusão dos direitos das gerações futuras na teoria dos deveres
do Estado de proteção de direitos fundamentais. Não são argumentos
procedentes contra essa inclusão, nem a impossibilidade de configurar
uma relação jusfundamental intersubjetiva triangular em que tomem
parte o Estado, as gerações presentes e as gerações vindouras, nem a
circunstância de ser inviável a criação de uma categoria geral de “direi‑
tos fundamentais à espera de um titular”, nem tão-pouco o facto de não
fazer sentido colocar, relativamente aos direitos das gerações futuras, o
conhecido problema da transmutação subjetiva (ou ressubjetivação) dos
deveres estaduais (objetivos) de proteção (Szczekalla, 2002, p. 289).
Bem ao invés, numa perspetiva de construção progressiva de um Estado
de direitos fundamentais e de um Estado de Direito ambiental, a partir
dos seus alicerces constitucionais, é através do dever de proteção dos
direitos fundamentais das gerações futuras que o Estado pode cumprir
aquele mínimo ético de responsabilidade para com a posteridade a que
está vinculado (Calliess, 2001, pp. 114 et seq.; Bubnoff, 2001, pp. 48
et seq.; Tepperwien, 2009, pp. 117 et seq.) (v., sobre o problema dos
direitos sem sujeito presente, I, cap. 1).
10. A ponderação com os direitos das gerações presentes
Uma vez assumida a natureza jusfundamental da posição das gerações
vindouras, outras questões ficam por responder relativas à configuração
do correspondente dever estadual de proteção: qual o acervo de direitos
futuros carecidos de proteção antecipada; qual o alcance temporal dessa
vinculação presente – isto é, com quantas gerações futuras tem a gera‑
ção atual de se preocupar; que instrumentos jurídicos existem hoje, ou
devem ser criados, para garantir que as decisões públicas hoje tomadas
são compatíveis com a ética de responsabilidade para com o futuro aqui
defendida; sobretudo, como balancear a justiça intergeracional e a justiça
intrageracional, já que, obviamente, os direitos das gerações futuras não
podem ser direitos absolutos (Caspar, 2001, pp. 98-100; Saladin &
130 JORGE PEREIRA DA SILVA
Zenger, 1988, pp. 102-4; Bubnoff, 2001, pp. 70 et seq.; Tepperwien,
2009, pp. 183 et seq.).
Na impossibilidade de abordar aqui as quatro questões enunciadas,
sublinha-se apenas que os direitos das gerações vindouras terão sempre de
ser cuidadosamente balanceados com alguns direitos da geração presente
cujo exercício pode comprometer as condições de possibilidade daqueles,
como se verifica por certo com o direito de propriedade, a liberdade de
iniciativa económica, a liberdade de investigação científica e, embora
marginalmente, com algumas faculdades compreendidas em direitos como
a liberdade de deslocação e fixação, a liberdade de escolha de profissão,
o direito à habitação e, de resto, a própria liberdade geral de ação. Em
termos genéricos, os direitos das gerações futuras terão sempre que ser
ponderados nas decisões públicas destinadas a promover o bem-estar
económico e a qualidade de vida dos cidadãos atuais, mormente quando
impliquem o consumo de recursos naturais escassos ou a projeção a
médio ou a longo prazo de efeitos nocivos.
Recusa-se, portanto, o argumento segundo o qual é logicamente
impossível fazer o confronto entre direitos de pessoas que não sejam
contemporâneas, em termos que redundem na atribuição de posições
ativas a umas e passivas a outras (Partridge, 1990, pp. 6-8; Caspar,
2001, p. 98) – à semelhança, aliás, dos argumentos segundo os quais é
inviável confrontar os direitos de pessoas que não se encontrem inse‑
ridas no mesmo espaço político ou que a justiça intergeracional agrava
os problemas de justiça entre os povos (Beckerman & Pasek, 2004,
p. 105, pp. 167 et seq., e pp. 193 et seq.). Estes argumentos inserem-se,
no fundo, nas orientações que negam a possibilidade de definir e aplicar
princípios de justiça intergeracional e de justiça entre povos ou Estados,
que pudessem acrescentar-se e articular-se com os tradicionais princípios
de justiça social em sentido amplo (justiça comutativa e distributiva),
ou seja, aos princípios que regem as relações entre pessoas que vivem
num dado tempo e num dado espaço político (Rawls, 2000, esp. pp. 43
et seq., e pp. 124 et seq.; Singer, 2004, esp. pp. 155 et seq.). Ora, uma
coisa é a dificuldade em delinear princípios de justiça aplicáveis às
relações intergeracionais, outra a sua impossibilidade lógica (Wallack,
2006, p. 86).
Além do já muito difundido princípio da precaução, outros princípios
ilustram bem que não é impensável definir princípios substantivos e
adjetivos de justiça entre gerações. É o que se verifica com os seguintes
princípios:
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 131
a) Equivalência – cada geração só pode usar uma quantidade de recur‑
sos renováveis equivalente à que é possível repor no período de
uso, e de recursos não renováveis para os quais possa providenciar
um sucedâneo (Lumer, 2006, p. 39; Caspar, 2001, pp. 103-4);
b) Saldo positivo de poupança – cada geração deve deixar à seguinte
tantos bens (capital, tecnologia, recursos naturais, educação, conhe‑
cimento) quantos os necessários a que esta possa elevar o seu
nível de bem-estar acima da precedente (Lumer, 2006, pp. 45-6;
Caspar, 2001, p. 103; Bubnoff, 2001, pp. 60-2);
c) Mínimo dano irreversível – todas as atividades de que resultem
danos irreversíveis devem ser limitadas no tempo e no espaço ao
mínimo indispensável (Wallack, 2006, p. 97);
d) Indisponibilidade do futuro dos outros – se é possível em regra
dispor dos direitos (presentes ou futuros) próprios, não é lícito
a ninguém dispor dos direitos (presentes ou futuros) dos outros
(Palombella, 2007, p. 3 e pp. 18 et seq.);
e) Imparcialidade intergeracional – as decisões cujas consequências
se estendam por várias gerações devem ser tomadas com abstração
da geração a que o decisor pertence, bem como ser defensáveis na
perspetiva de todas as que são afetadas (Wallack, 2006, p. 103;
contra, Beckerman, 2006, p. 64; Dierksmeier, 2006, pp. 72 et
seq.).
Estes princípios não são apenas a expressão retórica de boas intenções
isoladas. Antes são aptos a reunir à sua volta o apoio necessário para
guiar certas políticas públicas e, em alguns casos, para se traduzirem
em diretrizes juridicamente relevantes na ponderação dos direitos das
gerações presentes e futuras (Garcia, 2007, pp. 386-8; Bubnoff, 2001,
pp. 31 et seq.). Nem se pode dizer, sequer, que a controvérsia que geram
seja superior à que sempre existiu em torno dos princípios da dita justiça
social, sobretudo quando se discute a justiça distributiva.
Entre os que aceitam a possibilidade e a necessidade de ponderação
dos direitos das gerações presentes e dos direitos das gerações futuras
existem, no entanto, opiniões divergentes sobre o peso relativo que deve
der atribuído a uns e a outros. Mesmo excluindo a hipótese de diminuição
substancial do valor dos direitos das gerações vindouras por aplicação
de uma regra de “desconto temporal” – por ostensiva contradição com
132 JORGE PEREIRA DA SILVA
a “regra de ouro” acima enunciada –, duas posições essenciais merecem
registo:
a) De um lado, estão os que são particularmente exigentes na valora‑
ção das ameaças incidentes sobre os direitos das gerações futuras,
mas originadas pelo exercício de direitos de pessoas pertencentes
à atual geração (Hofmann, 1981, pp. 280-1);
b) Do outro lado, estão os que entendem que a Constituição não per‑
mite conferir aos perigos jusfundamentais que se projetam sobre
a posteridade um peso comparativamente superior ao que seria
atribuído a idênticos perigos se refletidos de imediato no presente
(Murswiek, 1985, pp. 212-3);
c) Entre uns e outros, há também espaço para defender uma “prefe‑
rência limitada do presente” sobre o futuro (Caspar, 2001, p. 100).
Baseiam-se os primeiros no facto de, colocadas perante certas
alternativas decisórias, as pessoas atuais admitirem correr certos riscos
jusfundamentais na expectativa de retirar daí alguns benefícios, mas
semelhante raciocínio não valer em relação às pessoas futuras, porque
quanto a estas não existe uma compensação correspondente ao risco a
que ficam submetidas (Gardiner, 2006, pp. 153-4) – como se passa,
tipicamente, com a produção de energia nuclear, assim como sempre
que o risco de certas atividades se repercute à distância ou decorre de
processos de acumulação. A energia produzida pelas centrais nucleares
é consumida hoje, mas o lixo radioativo daí resultante permanecerá um
perigo para as gerações futuras. E, ainda que estas mantenham a opção
atómica que herdaram, ficarão sempre sujeitas a um nível de risco superior
àquele de que tiram proveito – uma parte vinda do passado e outra parte
originada no presente. Os segundos, por seu turno, invocam em seu favor
a ausência de um princípio constitucional de equivalência entre custos e
benefícios ou de identidade entre as vantagens de certa atividade – não
individuais, mas geracionais – e as desvantagens daí decorrentes – também
geracionais e não individuais (Murswiek, 1985, pp. 213-4).
Sem prejuízo da importância de integrar a posição das gerações futu‑
ras nas análises de custos/benefícios destinadas a avaliar certas decisões
públicas, ainda que referentes a interesses ou projetos privados, contra‑
riando alguma superficialidade que por vezes as tem caracterizado – v.g.,
a tendência para o curto termo e para negligenciar aspetos culturais,
ambientais e estéticos (Gardiner, 2006, pp. 157-8) –, a verdade é que
JUSTIÇA INTERGERACIONAL: ENTRE A POLÍTICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL 133
nem aquelas análises constituem um critério de decisão imposto pela
Constituição, nem tão-pouco elas esgotam os elementos (quantitativos e
qualitativos) necessários a uma ponderação constitucionalmente adequada
dos direitos das diferentes gerações. O problema é antes outro: os riscos
jusfundamentais devem ser avaliados de forma meticulosa levando em
conta essencialmente a sua intensidade, por um lado, e o seu potencial
lesivo, por outro. Mas a dimensão temporal do risco – compreendendo
a extensão máxima do intervalo de tempo em que este se produz e a
sua distribuição ao longo desse intervalo –, é também indissociável
de uma correta avaliação do mesmo. Designadamente, não é possível
averiguar a intensidade de um risco sem definir uma escala temporal,
seja ela curta ou longa. Assim, a riscos que se prolongam no tempo
por 100, 1000 ou 10 000 anos tem normalmente que corresponder, no
momento de ponderar os direitos das gerações presentes e das gerações
vindouras, um peso muito superior aos riscos cujos efeitos se esgotam
em lapsos temporais mais curtos, compreendidos na vida daqueles que
são responsáveis pela sua produção (Murswiek, 1985, pp. 215-6). Este
maior peso constitui, portanto, uma especificidade resultante da medição
e valoração dos riscos de longo prazo (Langzeitrisikos), que depois se
repercute no resultado das operações de ponderação e na dificuldade aí
sentida em justificar jusfundamentalmente atividade privadas e decisões
públicas causadoras de riscos com semelhante tipo de efeitos (sobre os
riscos de longo prazo: Hofmann, 1981, pp. 258 et seq.; Calliess, 2001,
pp. 123-4; Lawrence, 1989, pp. 174 et seq.; Gethmann & Kamp, 2001,
pp. 137 et seq.; Bubnoff, 2001, pp. 107 et seq.).
Em suma, inexistindo um princípio constitucional de equivalência entre
custos e benefícios, a compressão de direitos fundamentais pertencentes
à comunidade atual, com vista à proteção de direitos futuros, obedece aos
padrões comuns constitucionalmente definidos em matéria de limitações e
restrições, valendo para a oneração da esfera jusfundamental dos homens
futuros os mesmos princípios e regras que valem para a oneração dos
homens presentes: proporcionalidade, densidade e determinabilidade da
lei, salvaguarda do conteúdo essencial, segurança jurídica, etc. Mesmo
que fosse possível isolar entre si as sucessivas gerações, apartando de
forma cortante o respeito pelos direitos da geração presente e a proteção
dos direitos das gerações futuras, o certo é que, à luz da Constituição,
as gerações posteriores não parecem exigir institutos jurídicos ou meios
materiais mais exigentes do que as gerações atuais (Murswiek, 1985,
p. 215; Palombella, 2007, p. 21).
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O Problema da Tutela Constitucional
das Gerações Futuras
Gonçalo de Almeida Ribeiro*
1. A Tese da Constitucionalização
A proteção constitucional das gerações futuras – dos direitos ou
interesses das pessoas vindouras – é um caso especial do problema geral
da constitucionalização de determinados direitos, interesses ou escolhas
públicas. O pressuposto em que a proposta de elevação de certa matéria ao
nível constitucional assenta é o de que a constituição tem força normativa
e valor reforçado. Força normativa, na medida em que as leis ou outros
atos da autoridade pública desconformes à constituição são inválidos, e
não apenas indesejáveis ou censuráveis, pelo que não vinculam os seus
destinatários. Valor reforçado, pelo facto de a constituição não poder ser
alterada através de legislação ordinária, mas apenas nos termos de um
procedimento agravado, em que se salienta a exigência de uma maioria
qualificada.
Daí resulta que a constitucionalização de uma certa decisão – a consa‑
gração de um direito ou a adoção de uma política no plano constitucional
– impede o poder político ordinário, em particular os parlamentos e os
governos que emergem das eleições, de a contrariar. Se a constituição
determinar que os cidadãos têm direito a um ambiente livre de poluição
radioativa antropogénica ou que a dívida pública não pode exceder uma
determinada percentagem do produto interno bruto, quaisquer decisões
políticas de sentido contrário serão inconstitucionais e, por essa razão,
juridicamente inválidas. A constituição estabelece limites à liberdade
de escolha do legislador ordinário, inibindo-o de tomar certas decisões.
* Gonçalo de Almeida Ribeiro é Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa e (desde julho de 2016) juiz conselheiro do Tribu‑
nal Constitucional. Licenciou-se na Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa (2006), fez o LL.M. (2007) e doutorou-se (2012) na Harvard Law School. Foi
cocoordenador da Secção de Lisboa do Católica Research Centre for the Future of
Law (2014-2016).
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 139
Essa natureza limitadora ou inibitória das constituições conduz com
naturalidade a que o processo de constitucionalização seja iluminado
através da analogia com o modelo da autovinculação individual (Holmes,
1995). O paradigma clássico desse modelo é o episódio da Odisseia em
que Ulisses dá instruções aos argonautas para que o prendam ao mastro
do navio, de modo a impedi-lo de se deixar atrair pelo canto sedutor das
sereias. Versões mais prosaicas do mesmo fenómeno são a do dorminhoco
que coloca o despertador a uma distância suficiente para o impossibilitar
de desligar o alarme de manhã e a do glutão que come uma dose subs‑
tancial de fruta momentos antes de sair de casa para um lanche em que
sabe que serão servidas sobremesas irresistíveis.
Nestas e noutras situações semelhantes, ocorre algo que parece encerrar
um paradoxo: um ser livre e racional – um agente – limita deliberada-
mente a sua liberdade de escolha. Mas o paradoxo é apenas aparente.
Nas situações descritas, o agente tem a perfeita noção de que padece da
patologia deliberativa que Aristóteles designou através do termo acrasia
– e que é comum traduzir-se por «fraqueza da vontade» –, cujo efeito é
inibir a ação de acordo com critérios que se reconhecem como razoáveis
ou de agir segundo as razões que se entende imporem-se (Aristóteles,
2006, pp. 152-72). A autovinculação é uma garantia de liberdade porque
permite ao agente exercer controlo sobre o seu comportamento, impor a
sua vontade às inclinações que o tentam, ou regular os impulsos que o
assaltam. Trata-se mesmo de uma medida cautelar indispensável naquelas
condições tipicamente acráticas – como a intoxicação, o vício, a luxúria,
a histeria, a preguiça, a depressão ou a inveja – em que a razão tende a
ser assoberbada pelas inclinações. Pese embora a sua natureza inibitória,
a autovinculação funciona, por isso, não como uma restrição da liberdade
pessoal, mas como uma garantia de autonomia ou de autogoverno, o
mesmo é dizer, de liberdade efetiva.
Transposto para o plano constitucional, o modelo da autovinculação
é geralmente apresentado nos seguintes termos. Perante os múltiplos
preconceitos e impulsos que podem inquinar a deliberação do povo encar‑
nado no processo político ordinário – como o racismo, a misoginia, a
homofobia, a xenofobia, o pânico, o fanatismo ou o populismo – compete
ao povo encarnado no processo constituinte – um momento de delibe‑
ração relativamente serena, lúcida e responsável – autovincular-se por
intermédio de compromissos constitucionais dotados de força normativa
e imunes a alteração legislativa. Dados estes termos da questão, haverá
boas razões para constitucionalizar um direito ou uma política – v.g., a
140 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
proibição de discriminação, a liberdade religiosa, o rendimento mínimo,
a indemnização por nacionalização – se recair sobre o processo político
ordinário uma suspeita fundada de patologia deliberativa inibitória de
autocontrolo ou autogoverno.
A tese da proteção constitucional das gerações futuras repousa na
premissa de que o processo político ordinário padece de uma patologia
deliberativa que se pode designar por imediatismo. Trata-se da incapaci‑
dade da geração presente, que exerce controlo absoluto sobre o processo
político, de atender aos interesses ou respeitar os direitos das gerações
futuras, tanto mais quanto mais distantes estas estejam. Sem dúvida que
em parte tal se deve a razões de ordem cultural, mais ou menos difusas,
como seja a tendência nas sociedades ocidentais contemporâneas para o
hedonismo – uma ética da satisfação pessoal – e para o individualismo
– uma metafísica da efemeridade existencial. É natural que em universos
sociais caracterizados por uma ética de serviço ao bem comum e por uma
metafísica transpersonalista, para dar o exemplo diametralmente oposto, a
geração presente assuma de modo espontâneo a responsabilidade de zelar
pelos interesses das gerações futuras. É o caso daquelas que por vezes se
designam de «sociedades heroicas», como as representadas nos poemas
homéricos ou na mitologia nórdica, ou das «comunidades teocêntricas»,
como os reinos cristãos da era medieval (Macintyre, 2007, pp. 121-30,
& 165-80). Mas o imediatismo do processo político ordinário deve-se
também a razões estruturais da democracia representativa – ao modo
específico como nela se organiza o exercício do poder.
São principalmente quatro os índices desse enviesamento: represen‑
tatividade eleitoral, responsabilidade política, legitimidade maioritária
e limitação temporal (Silva, 2015, pp. 418-21). Em primeiro lugar,
como as gerações futuras não participam nos atos eleitorais do presente,
não se verifica em relação a elas a coincidência, mediada pelo nexo
representativo, entre autores e destinatários das decisões políticas. Em
segundo lugar, e pela mesma razão, os titulares de cargos políticos que
tomam decisões que se repercutem nas gerações futuras não respondem
politicamente perante elas. Em terceiro lugar, a justificação sincrónica
ou intrageracional do governo maioritário, baseada na igualdade política
dos cidadãos, não é extensível ao plano diacrónico ou intergeracional,
pelo facto de uma maioria eleitoral no momento presente poder constituir
uma minoria num cenário hipotético em que todas as gerações afetadas
pelas decisões relevantes fossem chamadas a participar no ato eleitoral.
Finalmente, os mecanismos que se destinam a relativizar os poderes
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 141
das maiorias conjunturais – como a renovação periódica de mandatos, a
limitação de mandatos sucessivos e a proibição da prática de certos atos
em fim de mandato – não têm qualquer sucedâneo no âmbito intergera‑
cional, porque cabe necessariamente à maioria contemporânea governar.
A conclusão preliminar desta análise é a de que há boas razões para
descrer na capacidade do processo político ordinário para respeitar os
direitos ou interesses das pessoas vindouras. E este juízo a priori (na
medida em que decorre da análise do conceito de democracia representa‑
tiva) parece ser corroborado pela observação casual da generalidade dos
sistemas políticos democráticos, em que avultam tendências crónicas para
os défices orçamentais e o sobre-endividamento, o consumo excessivo de
energias não renováveis, a extrema dificuldade em concertar a redução da
emissão de gases poluentes, a aposta estratégica em energias tão eficientes
quanto perigosas (como a nuclear), a evolução da segurança social (em
particular no que diz respeito às pensões de velhice) para uma situação de
insustentabilidade, a opção por políticas que geram emprego e rendimento
no curto prazo mas agravam os desequilíbrios macroeconómicos e muitas
outras descritas nas estatísticas oficiais, debatidas pela opinião pública e
estudadas pelos especialistas. Ora, tal conclusão preliminar secunda uma
outra, regularmente afirmada na literatura sobre justiça intergeracional,
a de que as constituições devem salvaguardar os direitos fundamentais
das gerações futuras (Silva, 2015, pp. 421-32), não apenas através de
compromissos preambulares ou de princípios gerais, mas através de
cláusulas de proteção ambiental, equidade financeira, sustentabilidade
económica, e mecanismos afins (Häberle, 2006; & Tremmel, 2006).
Em suma, em virtude do imediatismo que o caracteriza na sua
encarnação «ordinária», o povo deve, na sua encarnação «constituinte»,
autovincular-se ao respeito pelos direitos das gerações futuras. Assim o
impõe o verdadeiro e próprio autogoverno coletivo, a submissão de «nós,
o povo» passional ou com p minúsculo a «Nós, O Povo» racional, ou
com P maiúsculo (Coutinho, 2009, pp. 346-7).
2. Duas Formas de Autovinculação
Antes de nos debruçarmos sobre o mérito da tese da constituciona‑
lização dos direitos das gerações futuras, é indispensável examinarmos
quais as formas que a autovinculação coletiva através do direito constitu‑
cional pode assumir. Importa distinguir, a este respeito, entre vinculação
mecânica e fiduciária.
142 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
No âmbito da autovinculação individual, o modelo que inspira a con‑
ceção constitucional da autovinculação, distinguem-se entre mecanismos
causais e não causais (Waldron, 1999, pp. 260-6). Imagine-se o seguinte
cenário hipotético. É dia de baile de finalistas da licenciatura em Direito.
O jovem estudante Acúrsio, prevendo os excessos no decurso da noite
e ciente do perigo de conduzir embriagado, decide tomar medidas pre‑
ventivas. Pode fazê-lo de duas formas: deixar as chaves do automóvel
em casa e tomar um táxi para a festa ou deslocar-se no seu automóvel
para a festa e aí confiar as chaves à sua namorada abstémia. Através da
primeira solução, Acúrsio cria um obstáculo que o impede de agir nas
circunstâncias acráticas; trata-se de um mecanismo causal, porque através
dele o agente previne a possibilidade física da ação indesejável. Com a
segunda solução, por outro lado, Acúrsio transfere a responsabilidade
deliberativa para um terceiro, submetendo-se à direção deste nas circuns‑
tâncias acráticas; trata-se de uma delegação de poder, na medida em que
o agente atribui a um terceiro a autoridade de orientar a sua conduta.
Em sentido amplo, ambas as soluções são formas de autovinculação,
já que correspondem à restrição voluntária da liberdade de decisão. Mas
repare-se que apenas os mecanismos causais o são num sentido próprio
ou estrito, já que através deles o agente toma uma decisão no momento
lúcido e promove a sua inderrogabilidade em circunstâncias acráticas;
constituem, por isso, formas de vinculação mecânica. A delegação de
poder num terceiro, por outro lado, é uma forma de o agente abdicar de
decidir e de confiar a decisão ao juízo de terceiro, pelo que consubstancia
um mecanismo de vinculação fiduciária.
Ambas as formas de autovinculação têm, como é evidente, vantagens
e inconvenientes. A primeira tem a virtude de prevenir a possibilidade,
inevitável quando a decisão é delegada num terceiro, de erro delibera‑
tivo ou de abuso de confiança; no exemplo que vimos, impede que a
namorada de Acúrsio se recuse devolver-lhe as chaves do automóvel
no dia seguinte porque julga tratar-se de um empréstimo ou porque pre‑
tende usar o veículo em benefício próprio. A vinculação fiduciária, por
outro lado, tem a vantagem de prevenir a execução da decisão prevista
para circunstâncias normais em situações anómalas que justificam um
tratamento excecional; no nosso exemplo, imagine-se que Acúrsio se
apercebe quando chega à festa de que se esqueceu da gravata e tem de
regressar imediatamente a casa para a ir buscar.
A distinção entre vinculação mecânica e fiduciária tem um paralelo
parcial no plano da autovinculação coletiva através de freios consti‑
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 143
tucionais ao processo político. Com efeito, as normas constitucionais
podem consubstanciar regras ou princípios. Reduzida aos seus aspetos
essenciais, a distinção traduz-se no seguinte (Dworkin, 1977, pp. 22-31,
& 71-80; Alexy, 2002, pp. 44-110). Se uma norma tem a natureza de
regra, a sua lógica de aplicação é basicamente subsuntiva ou, segundo
uma imagem disseminada, de «tudo ou nada»; quer isto dizer que, verifi‑
cados os respetivos pressupostos, a regra dispõe sobre o caso em termos
definitivos. Se uma norma tem a natureza de princípio, por outro lado,
a sua lógica de aplicação é basicamente valorativa ou, como é comum
dizer-se, implica um juízo de ponderação; verificados os pressupostos
da aplicação de um princípio, este conta como uma razão prima facie
para a decisão, sendo o sentido desta determinado pelo «peso relativo»
dos princípios que nela concorram. Aplicando estes conceitos a um
caso paradigmático de proteção constitucional das gerações futuras – a
existência de uma norma-travão ao endividamento público – temos que
ou esta determina a proibição definitiva do endividamento acima de
determinados valores de referência – caso em que será uma regra –, ou
estabelece apenas uma razão prima facie para a censura constitucional
do endividamento excessivo – caso em que será um princípio.
Importa não exagerar os termos da distinção. Apesar de por vezes
se afirmar o contrário, as regras nunca são absolutas, mesmo que o seu
âmbito de aplicação não seja limitado por cláusulas de exceção. Com
efeito, em circunstâncias excecionais, em que é muito elevado e evidente
o peso das razões para a não aplicação da regra, admite-se o recurso à
chamada redução teleológica, que consiste na operação simétrica à apli‑
cação analógica de uma norma. Nesses casos, por natureza excecionais,
justifica-se precisamente aquilo que, em princípio, é contrário ao direito
consubstanciado em regras: que o aplicador recuse a solução acolhida na
regra e a substitua pela ponderação dos valores ou princípios relevantes
nas circunstâncias. É nesse sentido que a vinculação dos poderes públicos
a uma regra constitucional que proíba o endividamento excessivo poderá
admitir exceções em situações de guerra ou calamidade pública. Por
outro lado, os princípios não encerram meras aspirações programáticas
ou proclamações simbólicas, mas verdadeiras normas jurídicas. O seu
sentido é o de que devem ser aplicados a todos os casos sobre os quais
dispõem, sob reserva de ponderação com outros princípios que possam
aplicar-se ao caso. A vinculação dos poderes públicos a um princípio
constitucional de proibição do endividamento excessivo implica que,
prima facie, uma política orçamental que ultrapasse determinados valo‑
144 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
res de referência é inconstitucional. Na verdade, a ofensa ao princípio
da equidade financeira que o endividamento excessivo sempre importa
evitará censura constitucional apenas naquelas circunstâncias em que o
peso concreto de princípios de sentido contrário o justificar.
Repare-se que, um pouco à semelhança do que ocorre com os meca‑
nismos causais e as delegações de poder no âmbito da autovinculação
individual, a forma de vinculação das regras é tendencialmente mecânica,
ao passo que a dos princípios é de natureza fiduciária. Num modelo de
regras, a constitucionalização passa pela avocação constituinte de deter‑
minadas escolhas públicas; o povo, na sua encarnação presumidamente
serena, lúcida e responsável, toma decisões inderrogáveis na sua encarna‑
ção acrática – cabendo a garantia dessa autovinculação a uma jurisdição
independente do processo político e adstrita a um dever funcional de
aplicar as regras constitucionais. Num modelo de princípios, por outro
lado, a decisão é essencialmente confiada à jurisdição constitucional,
incumbida de controlar através do seu juízo a racionalidade da ativi‑
dade legislativa; o povo constituinte delega num agente presumidamente
sereno, lúcido e responsável o poder de impedir a degeneração acrática
do processo político democrático.
As vantagens e desvantagens da vinculação por intermédio de regras
ou princípios são precisamente as que caracterizam as soluções mecânicas
ou fiduciárias: ao passo que as regras encerram decisões constituintes
que previnem a possibilidade de ponderações erradas ou usurpações de
poder por parte da jurisdição constitucional, os princípios, ao transfe‑
rirem a responsabilidade deliberativa para um terceiro contemporâneo
das decisões sob escrutínio, têm a virtude de serem flexíveis, o mesmo
é dizer, de vincularem de um modo equitativo e ponderado.
3. Irracionalidade ou Pluralismo?
Como se viu, a ideia de autovinculação – seja no contexto individual,
seja no contexto coletivo – baseia-se na premissa de um contraste entre
o «eu racional» e o «eu acrático». Na sua encarnação serena, lúcida e
responsável, o agente sabe exatamente o que é melhor para si e tem
a vontade firme de o fazer. Ulisses sabe que não se deve deixar atrair
pelas sereias e deseja evitá-lo; Acúrsio sabe que não deve conduzir
embriagado e deseja evitá-lo. A questão que se lhes coloca, nesse
momento esclarecido, é a de saber como garantir a racionalidade da
sua conduta nas circunstâncias acráticas ou de «fraqueza da vontade»
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 145
em que o exercício da liberdade de escolha gera escolhas irracionais,
isto é, escolhas que o agente reconhece serem-lhe prejudiciais e cuja
ocorrência deseja evitar. Essa é uma questão de ordem técnica ou ins‑
trumental: diz respeito à seleção dos meios adequados e necessários
para controlar os efeitos da acrasia.
A situação não pode ser descrita nestes termos quando, em vez de
um conflito entre o «eu racional» e o «eu acrático» – entre razões e
inclinações –, o agente experimenta um conflito no seio do seu «eu
racional» (Waldron, 1999, pp. 266-70). Imagine-se o caso de outro
estudante, o jovem Bártolo, que tem de fazer uma apresentação num
exame oral de filosofia do direito sobre a questão de saber se devem ser
reconhecidos direitos aos animais. Após muitas horas de estudo afincado
e reflexão empenhada, Bártolo sente-se dividido entre duas teses opos‑
tas. Por um lado, parece-lhe que os direitos só podem ser atribuídos a
agentes racionais, o que exclui obrigatoriamente os animais, tanto mais
que se forem reconhecidos direitos aos animais, nomeadamente direitos
fundamentais à vida, à integridade física e a não serem submetidos a
maus tratos, o sacrifício destes em atividades destinadas à promoção de
interesses humanos – como a investigação médica – é, com a maior das
probabilidades, ilícito. Por outro lado, é certo que pelo menos alguns seres
humanos não são agentes racionais – v.g., as crianças muito pequenas
ou os doentes mentais graves –, e nem por isso deixam ser titulares de
direitos, e que o bem-estar dos animais, nomeadamente o seu interesse
em não sofrerem, é moralmente atendível por razões que não são nada
fáceis de destrinçar daquelas que nos levam a reconhecer direitos a
humanos não racionais (Galvão, 2015, pp. 78-83).
Consumido pela hesitação e pressionado pelo curto prazo de prepara‑
ção para o exame, Bártolo decide comprometer-se com a tese negativa.
Para selar esse compromisso, comunica ao professor dois dias antes do
exame que defenderá a tese de que aos animais não devem ser reconhe‑
cidos direitos. Sem dúvida que são perfeitamente inteligíveis e válidas
estas razões que levam Bártolo a vincular-se a uma determinada opção.
O certo, porém, é que essas razões nada têm que ver com um suposto
conflito entre o «eu racional» e o «eu acrático», ou com a limitação da
possibilidade de escolhas irracionais. Pelo contrário, o sentido do seu
compromisso é o de inibir o exercício das faculdades racionais que ali‑
menta a hesitação intelectual, justamente porque aumenta a sua noção
da complexidade dos problemas sobre os quais se terá de pronunciar e
do pluralismo razoável que caracteriza o debate na matéria (Waldron,
146 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
1999, pp. 269-70). Em suma, Bártolo não age no sentido de prevenir a
insuficiência, mas sim a afluência, racional da sua encarnação vindoura.
Só assim conseguirá assegurar uma decisão em tempo útil.
Ora, a situação do povo no momento constituinte é, relativamente a
muitas matérias sobre as quais decide, mais próxima daquela em que se
encontra Bártolo do que da situação de Acúrsio. Com efeito, as sociedades
democráticas e liberais contemporâneas caracterizam-se pela persistência
de um amplo pluralismo de opiniões, não apenas no âmbito religioso,
metafísico e ético, mas também em matéria de liberdades fundamentais,
justiça social, política económica, organização administrativa e muitas
outras questões incontornáveis da vida pública (Rawls, 2005, pp. 36-9,
& 54-66). As estantes das livrarias, os seminários académicos, as colunas
de imprensa, as redes sociais e outros espaços de debate estão saturados
de argumentos rivais construídos com base em premissas liberais parti‑
lhadas. As divergências estendem-se desde o plano elevado das teorias
filosóficas da justiça até patamares de discussão mais prosaicos, como
o das diferentes leituras sobre o comportamento da economia ou das
políticas públicas adequadas nos domínios da saúde, da educação, da
segurança social, da cultura e da proteção ambiental. Esta diversidade
de razões, situada em todos os quadrantes da sociedade civil, incluindo
o discurso académico, não pode ser globalmente atribuída à degenera‑
ção de um espaço público colonizado pela propaganda ou permeável
ao tribalismo; corresponde ao dissenso razoável entre cidadãos livres
e responsáveis, no uso das suas faculdades racionais (Ribeiro, 2016,
pp. 71-2).
No âmbito constitucional, o pluralismo razoável reflete-se no amplo
consenso em torno de princípios estruturantes – v.g., igualdade de trata‑
mento, proibição do excesso, tutela da confiança, determinabilidade das
leis, separação de poderes – e de direitos fundamentais – dos clássicos
direitos de liberdade aos direitos sociais e de terceira e quarta geração –
acompanhado de controvérsia persistente sobre as implicações concretas
daqueles princípios e o peso relativo e concretização destes direitos. Por
outras palavras, um pequeno conjunto de valores constitucionais par‑
tilhados serve de base a um extenso reportório de programas políticos
concorrentes, cada um dos quais informado de modo mais ou menos
explícito por conceções morais, económicas, antropológicas, históricas
e outras profundamente controvertidas. A título de exemplo, pense-se
nas polémicas em torno dos limites à liberdade de expressão, da adoção
por casais de pessoas do mesmo sexo, da incriminação da interrupção
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 147
voluntária da gravidez, do papel do mercado na provisão de bens sociais
como a saúde ou a educação, da distribuição justa dos sacrifícios ditados
por uma crise de endividamento público, da sustentabilidade da segu‑
rança social numa era de envelhecimento demográfico ou da criação de
quotas de género e raciais no acesso à educação superior, ao mercado
de trabalho e a cargos públicos (Ribeiro, 2016, idem).
Nestas matérias, tão vastas e fundamentais, «Nós, O Povo» não é
um agente convicto na decisão acertada, como Ulisses ou Acúrsio, mas
um espírito inquietado pela dúvida, como Bártolo (Waldron, 1999,
pp. 270-5). Ao constitucionalizar uma determinada escolha controversa,
o povo constituinte não se limita a prevenir a degeneração acrática do
processo político – a combater a eventual irracionalidade coletiva –,
mas a inibir a razão pública e a arbitragem do dissenso próprios da
democracia, o mesmo é dizer, a alienar o pluralismo razoável de uma
sociedade aberta. Tal como Bártolo se compromete com uma determinada
tese sem que para isso tenha necessariamente uma razão suficiente, e
sobretudo suspendendo o exercício das suas faculdades de revisão crítica,
o povo constituinte, em matérias controversas, vincula a sociedade a
uma opinião sem que ela seja necessariamente objeto de um consenso
alargado, e, sobretudo, impede que essa opinião seja revista no quadro
do debate público e da deliberação democrática.
4. Complexidade da Justiça Intergeracional
Como vimos, a tese da constitucionalização dos direitos ou interesses
das gerações futuras assenta no diagnóstico de uma patologia deliberativa
do processo político ordinário em democracia – o imediatismo. Importa
agora chamar a atenção para a complexidade e controvertibilidade dos
problemas da justiça intergeracional, isto é, das razões pelas quais não
existe, e é extremamente improvável que algum dia venha a existir,
qualquer consenso alargado nessa matéria. Na verdade, o dissenso que
ela gera é profundo e obstinado, estendendo-se da opinião pública ao
universo académico, e incidindo, quer sobre questões relativas às políti‑
cas públicas adequadas em cada um dos múltiplos domínios em que se
projeta, quer sobre questões filosóficas relativas aos fundamentos lógicos,
empíricos e morais da justiça entre gerações. Vale a pena determo-nos
por alguns instantes nessa ordem de complexidade fundamental.
Há inúmeras ações e omissões presentes que se repercutem no
futuro: consumo de recursos não renováveis, investimento de retorno
148 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
a muito longo prazo, inovação que provoca efeitos tendencialmente
irreversíveis, antecipação de rendimentos futuros, entre muitas outras.
A questão fundamental que a partir de tal facto se coloca é a de saber
qual a extensão e quais as implicações de eventuais deveres da geração
presente relativamente às gerações futuras (Jonas, 1984; & Birnba‑
cher, 2006). A este propósito, suscitam-se três grandes categorias de
questões: (i) questões conceptuais, relativas à possibilidade lógica de
uma teoria da justiça entre gerações; (ii) questões empíricas, relativas
às condições epistémicas e antropológicas da justiça intergeracional; e
(iii) questões normativas, relativas ao conteúdo dos deveres de justiça
da geração presente.
A principal questão conceptual que se tem debatido neste domínio
é a de saber se as gerações futuras – mais precisamente, os indivíduos
que integrarão as coortes geracionais vindouras (Gosseries, 2015, 24-8)
– podem ser titulares de direitos existentes ou interesses atendíveis no
momento presente (Beckerman, 2006, pp. 54-60; Tremmel, 2009,
pp. 35-63). O problema, colocado em termos de máxima generalidade,
é o de saber se é logicamente possível que existam direitos (ou inte‑
resses) sem sujeito. (Sobre o assunto, com desenvolvimento, veja-se a
contribuição de Elsa Vaz de Sequeira para este volume).
A complexidade da matéria admite graduações. No primeiro nível,
estão os casos de direitos temporariamente sem titular, como seja a
herança jacente no lapso temporal entre a morte do autor da herança e
a aceitação da mesma pelos herdeiros. No nível seguinte estão os casos
de direitos cujo futuro titular (ainda) não existe, mas encontra-se indi‑
vidualizado, como seja o de usufruto constituído a favor de nascituro.
Num terceiro nível de complexidade estão aquelas situações em que o
futuro titular do direito não existe, nem se encontra individualizado,
como é o caso de usufruto constituído a favor de concepturo. No nível
subsequente, deparamos com os casos em que, quer o sujeito, quer o
próprio objeto, do direito, não existem, como seja a vida de futuros
recém-nascidos num berçário em que um terrorista colocou uma bomba
programada para detonar dentro de um século. Finalmente, no patamar de
maior complexidade, estão os casos em que faltam o sujeito e o objeto
ao suposto direito, e em que a existência do futuro titular do direito
depende – paradoxalmente – da sua violação no presente.
Estas últimas situações, a que caracteristicamente pertencem os pro‑
blemas da justiça intergeracional, encerram o denominado paradoxo da
não identidade (Parfit, 1984, pp. 351-79). Imagine-se que a geração
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 149
presente enterra lixo radioativo que dentro de 1000 anos contaminará o
planeta, ao ponto de prejudicar gravemente a saúde dos seres humanos e
de reduzir dramaticamente a esperança média de vida. Sucede que esse
lixo radioativo resulta da utilização de energia nuclear, essencial para o
modo de vida (incluindo a reprodução) da geração presente, de tal forma
que os indivíduos concretos que integram as coortes geracionais futuras
não existiriam, se a economia presente tivesse um perfil energético
diferente. Ora, a questão que se coloca é a de saber se é logicamente
possível que um ato constitua simultaneamente uma violação ilícita
de um direito e uma condição necessária da existência do sujeito e do
objeto desse mesmo direito.
Note-se que a questão é essencial para a teoria da justiça intergera‑
cional. A noção de que ela pode ser evitada se em vez da «linguagem
dos direitos» se recorrer a um discurso moral baseado em noções
como «deveres» ou «responsabilidades» (Beckerman, 2006, p. 61;
& Tremmel, 2009, pp. 46-7) assenta num equívoco. Com efeito, duas
proposições fundamentais e amplamente perfilhadas da cultura política
liberal que, em larguíssima medida, subjaz às democracias constitucio‑
nais contemporâneas, são as de que: (i) apenas os deveres de justiça – e
não também deveres morais de outra natureza, como os de caridade, de
magnanimidade, de retidão etc. – são «justiciáveis», ou seja, constituem
razões moralmente suficientes para a tutela coativa; e (ii) os deveres
de justiça – que dizem respeito ao que é devido a cada um – têm por
correlativos direitos subjetivos, justamente direitos ao aproveitamento
dos bens devidos ao respetivo titular, ou situações ativas semelhantes
(Hart, 1955, p. 178; & Waldron, 1999, pp. 105-6, & 159-60). Destas
proposições resulta que apenas uma teoria da justiça intergeracional
tem implicações jurídico-políticas e que semelhante teoria não pode
dispensar (ainda que implicitamente) a afirmação de que as gerações
futuras têm direitos.
Outra ordem de complexidade e controvérsia no debate sobre a jus‑
tiça intergeracional diz respeito a questões de natureza empírica, que se
reconduzem essencialmente a duas ordens. Em primeiro lugar, aquelas
que dizem respeito à possibilidade de prever o futuro. A preocupação com
as repercussões vindouras das decisões presentes repousa na premissa
de que é possível prever razoavelmente os efeitos futuros de decisões
tomadas no presente, no sentido de que conseguimos fazer prognósticos
credíveis de longo e muito longo prazo. É possível, e muitos críticos da
justiça intergeracional têm-no assinalado, que esta ideia se baseie numa
150 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
forma de neomalthusianismo, pessimista quanto ao futuro da espécie,
mas otimista quando à nossa capacidade de o prever (Beckerman,
1999). Na verdade, não só é difícil determinar com precisão os efeitos
de determinados tipos de conduta (a relação entre a emissão de dióxido
de carbono e o aquecimento global), como as previsões que fazemos
hoje são condicionadas por parâmetros cuja evolução futura desconhe‑
cemos – em especial, o desenvolvimento tecnológico.
Questões empíricas de uma segunda espécie são as que respeitam
à possibilidade antropológica da justiça intergeracional. Há uma longa
tradição filosófica de considerar, entre as «circunstâncias da justiça»
(Rawls, 1971, pp. 126-30) – aquelas propriedades do mundo que tornam
a justiça necessária e possível – o «altruísmo limitado» (Hume, 1985,
pp. 529-36) dos seres humanos, ou seja, o facto de estes terem simul‑
taneamente um sentido de justiça (daquilo que é devido a cada um) e
um interesse na justiça (na arbitragem dos conflitos humanos) (Kant,
2006). Ora, é justamente este segundo pressuposto que está ausente nas
relações intergeracionais, pelo menos aquelas em que se não verifica a
sobreposição temporal de gerações (Beckerman, 2006, pp. 61-4) Com
efeito, não podendo, em virtude do sentido único da história, as gera‑
ções futuras interferir na vida da geração presente, esta não tem qual‑
quer incentivo para abdicar da prossecução irrestrita do seu bem-estar.
Coloca-se, pois, a questão de saber se é realista a expectativa de que a
geração presente trate com justiça as gerações futuras, senão mesmo se
faz sentido reconduzir as responsabilidades da geração presente perante
as gerações futuras à categoria moral da justiça.
Finalmente, a complexidade e a controvertibilidade da justiça
intergeracional revela-se no debate interminável sobre o conteúdo dos
deveres da geração presente – sobre a teoria da justiça entre gerações
em sentido estrito. Pese embora se trate de uma reflexão de natureza
essencialmente especulativa, é um pressuposto indispensável do debate
sobre as políticas públicas de alcance intergeracional. Grosso modo, a
teoria da justiça intergeracional está para as políticas intergeracionais
como a teoria da justiça social está para as políticas sociais. Ora, as
teorias neste domínio (Gosseries, 2015, pp. 107-78) – v.g., a teoria
da reciprocidade indireta, as teorias neolockeanas, as teorias de matriz
utilitarista, as teorias de inspiração rawlsiana, as teorias igualitaristas –,
divergentes nos seus princípios e implicações, são numerosas, razoáveis
e incipientes, contribuindo para ampliar o dissenso no debate público
sobre a matéria.
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 151
5. Legitimidade Constituinte
Em virtude da sua elevada complexidade e controvertibilidade, a
justiça intergeracional não integra seguramente o elenco de matérias
em relação às quais a tutela constitucional pode ser justificada por uma
simples analogia com o modelo da autovinculação individual.
Daí não se segue – imediatamente – que seja ilegítimo o legislador
constituinte vincular o legislador ordinário a determinadas opções de
tutela das gerações futuras, como seja uma cláusula de limite ao endi‑
vidamento público ou a proibição de atividades que comportam graves
riscos ambientais. Sem dúvida que, ao avocar essas decisões, o poder
constituinte condiciona a liberdade de escolha do legislador democrá‑
tico (Brito, 2000). Porém – poderá dizer-se –, fá-lo no exercício de
um poder superior, o de estabelecer ou rever a constituição à qual a
autoridade democrática do legislador ordinário se reconduz, e no gozo
de legitimidade reforçada, em virtude das exigências procedimentais a
que estão sujeitos os momentos constituintes e de revisão constitucional.
Sucede que tal argumento traduz uma conceção estritamente formal
do princípio democrático, assente na comparação entre as grandezas
aritméticas e outras circunstâncias exigidas para a aprovação de diferentes
atos legislativos. Se é certo que a maioria de aprovação e de revisão
constitucional é mais expressiva do que a maioria exigível no processo
político ordinário, não é menos certo que a rigidez e a longevidade da
constituição implicam que o juízo de uma maioria qualificada conjun‑
tural vincule uma sequência potencialmente infinita de maiorias simples
futuras. Por outras palavras, uma vez acolhida determinada solução no
texto constitucional, as gerações políticas futuras ficarão vinculadas
a respeitá-la, ainda que essa opção seja reiteradamente repudiada por
maiorias dos seus representantes aquém das necessárias para rever a
constituição. Semelhante conceção do poder constituinte expõe a ordem
constitucional aos défices de legitimidade expressos através dos conhe‑
cidos paradoxos intergeracional (a submissão das gerações presentes às
escolhas das gerações passadas) e democrático (o governo da maioria
presente por uma minoria de bloqueio).
A alternativa a esta visão voluntarista é uma conceção material da
legitimidade constituinte. Segundo esta, a legitimidade das decisões
constituintes depende, essencialmente, não do procedimento de decisão,
mas da substância das opções consagradas: estas são legítimas se forem
imputáveis ao titular da soberania – «O Povo». É evidente que «O Povo»
152 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
é incapaz de exercer o poder soberano de que goza, pelo que terá sem‑
pre de contar com os bons ofícios de quem o represente no momento
constituinte; mesmo nos casos em que este assume a forma de um
procedimento convencionalmente democrático, como seja a eleição por
sufrágio universal de uma assembleia com plenos poderes constituintes,
é absurdo dizer-se que a constituição é obra direta do povo soberano.
Porém, mesmo com esta importante ressalva, a representação naturalística
do poder constituinte é amplamente insatisfatória. Os incapazes, como
os menores ou os interditos, são pessoas físicas, ainda que lhes faltem
as condições indispensáveis ao exercício dos seus direitos e poderes.
«O Povo», pelo contrário, é uma ficção normativa, um parâmetro de
justificação ou ideia regulativa da ação política concreta daqueles que
reclamam atuar em seu nome.
Não admira, por isso, que a vontade popular tenha sido invocada, ao
longo da história, para legitimar programas constitucionais radicalmente
divergentes no plano ideológico: uma conceção carismática, segundo a
qual a vontade popular se revela nas epifanias do líder aclamado pelas
massas; uma conceção romântica, que associa o povo a uma cultura
nacional cujos curadores são o escol académico; uma conceção classista,
para a qual o povo se identifica com a classe explorada que atua através
de uma vanguarda revolucionária; uma conceção populista, em cujos
termos o povo emerge nos protestos de rua, nos movimentos sociais,
na resistência ao poder oficial e noutras erupções inorgânicas; e, final‑
mente, a conceção democrático-liberal, segundo a qual «Nós, O Povo»
é o conjunto de indivíduos livres e iguais sujeitos a um sistema comum
de leis. Tão variados são os usos do povo no discurso constituinte, que
é justo dizer-se do termo o que Proudhon referiu a propósito do género
humano: quem o invoca está a fazer batota (Ribeiro, 2016, pp. 58-9).
A cada discurso constituinte subjaz, pois, uma determinada conceção,
axiologicamente comprometida, de vontade popular. Na tradição do
constitucionalismo democrático-liberal, «O Povo» é a vontade comum
de indivíduos livres e iguais, concebidos à imagem e semelhança dos
protagonistas de um amplo reportório de construções filosóficas, mais
ou menos aparentadas, como seja um contrato social, uma posição
original, um consenso de sobreposição ou uma situação ideal de diá‑
logo. A legitimidade de uma constituição inscrita nessa matriz afere-se
mediante a comparação entre uma obra constitucional com autor e data
e a vontade hipotética de um povo imaginado; a matéria da constituição
não é arbitrária, o livre produto da decisão do seu criador omnipotente,
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 153
mas o critério de reconhecimento da sua imputação ao povo, o que é
dizer, aos valores que este personifica. Em suma: não é a vontade que
justifica a matéria, mas a matéria que revela a vontade; não é a forma
que confere dignidade à substância, mas a substância que reclama a
solenidade da forma (Ribeiro, 2016, pp. 60-1).
É esse o alcance do célebre artigo 16.º da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789: «A sociedade em que não esteja assegu‑
rada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes,
não tem Constituição.» O sentido desta disposição é o de que O Povo
do liberalismo democrático não pode deixar de querer o poder público
separado e vinculado aos direitos fundamentais. O primeiro, porque só
assim, dividindo a autoridade numa pluralidade de poderes e instituindo
mecanismos de vigilância recíproca, pode prevenir a usurpação da sobe‑
rania que exclusivamente lhe cabe. O segundo, porque uma autoridade
instituída por cidadãos anónimos e iguais carece de legitimidade para
lhes dirigir a vida segundo o seu critério de felicidade ou de bem, como
se de um déspota ilustrado se tratasse, cabendo-lhe apenas assegurar as
condições para que cada cidadão possa perseguir o ideal de felicidade
ou praticar a conceção de bem, que entende justificados. Nos termos do
artigo 2.º da Declaração: «A finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.» Estas
palavras lapidares condensam todo um projeto de vida coletiva, o do
constitucionalismo moderno, assente numa conceção material (também
dita «racional-normativa») de constituição (Amaral, 2005, pp. 33-7;
Ribeiro, 2016, idem).
De tudo isto decorre que não é legítimo ao legislador constituinte, que
exerce um poder de que é titular «O Povo», no sentido que cabe a essa
expressão no constitucionalismo liberal, vincular o legislador ordinário
a determinadas opções em matéria de justiça intergeracional. Assim é,
porque, estando a vontade popular profunda e perenemente dividida
quanto a tal matéria, nenhuma decisão de sentido único lhe pode ser
imputada. Ao elevar uma certa opção ao plano constitucional – v.g., a
limitação do endividamento público –, o legislador não estará a expressar
a vontade popular à qual se devem reconduzir as suas decisões, mas
a usurpar o poder constituinte para «entrincheirar» uma opção política
controversa que deveria estar submetida aos processos de debate e de
revisão próprios da democracia.
É certo que este argumento parece provar de mais. Se as opções cons‑
titucionais são legítimas apenas na medida em que sejam consensuais,
154 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
ou, mais rigorosamente, em que sobre elas recaia a vontade comum ou
o consenso hipotético de uma pluralidade de indivíduos livres e iguais,
haverá que concluir pela impossibilidade de estabelecer uma constituição
numa sociedade pluralista. Afinal de contas, as constituições não podem
deixar de organizar o poder político, instituindo os órgãos de soberania,
fixando as suas competências, definindo o regime do seu exercício,
estabelecendo os princípios eleitorais e acolhendo soluções em muitas
outras matérias conexas. E a verdade é que também nestes domínios se
verifica um dissenso razoável, que se manifesta nos debates intermi‑
náveis sobre o sistema político (parlamentarismo, presidencialismo ou
semipresidencialismo), o sistema eleitoral (representação proporcional,
maioritária ou mista), as formas de participação democrática (eleições
e referendos), o financiamento dos partidos políticos e inúmeros temas
semelhantes. Seria absurdo e autofágico concluir que estas divergências
razoáveis de opinião impedem que se adotem determinadas opções
constitucionais relativas à organização do poder político.
Mas note-se que há uma diferença fundamental entre estas questões
de organização do poder político e as que dizem respeito ao conteúdo
das escolhas coletivas. Sem uma arquitetura constitucional da autoridade
pública, não há democracia. Os parlamentos, os governos, os tribunais,
as eleições, os procedimentos, os atos – tudo isto não são factos natu‑
rais, mas instituições constitucionais sem as quais «O Povo» não pode
resolver democraticamente os seus diferendos. Sem prejuízo da extrema
importância de se procurarem consensos alargados, a legitimidade das
opções constitucionais nestas matérias baseia-se ainda no facto de elas
serem inevitáveis; é uma impossibilidade lógica o poder constituinte
confiar ao processo político ordinário a tomada de decisões que são um
pressuposto da existência deste. A escolha constituinte nestas matérias
tem algumas semelhanças com a decisão de Bártolo de suspender as
suas reflexões por razões utilitárias, e não porque tenha formado uma
convicção segura e definitiva. Ora, esta justificação não aproveita
àquelas matérias em que não há necessidade alguma de uma opção de
nível constitucional, porque nenhum obstáculo lógico ou prático impede
que elas sejam submetidas à apreciação e decisão do processo político
ordinário. É justamente esse o caso das questões intergeracionais.
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 155
6. Princípios Intergeracionais
O argumento até aqui desenvolvido coloca-nos perante um dilema. Por
um lado, há boas razões para crer no imediatismo do processo político
ordinário, ou seja, que ele tenderá necessariamente a revelar um défice
de preocupação com as gerações futuras. Por outro lado, não há dúvida
de que a justiça intergeracional é uma matéria complexa e controversa,
cuja resolução deve caber aos mecanismos de deliberação próprios de
um regime democrático. Em suma, justifica-se subtrair a decisão destas
matérias ao processo político ordinário, mas não se justifica encerrar ou
condicionar a deliberação democrática que a elas diga respeito. A ques‑
tão é, pois, a seguinte: como assegurar simultaneamente a limitação do
legislador ordinário e a respiração democrática da sociedade?
Uma resposta promissora passa por recuperarmos a distinção entre
regras e princípios. Recorde-se que a vinculação constitucional pode
revestir a forma relativamente mecânica de regras ou a forma substan‑
cialmente mais flexível de princípios. Ao contrário do que sucede com
aquelas, estes não encerram escolhas definitivas do legislador consti‑
tuinte; operam antes como razões prima facie, cuja força vinculativa
depende do seu peso relativo no conjunto das razões válidas para uma
determinada decisão. Ora, a objeção à tutela constitucional das gerações
futuras tem em vista sobretudo a consagração de regras, como a proibição
do endividamento acima de determinados valores de referência, e não
de princípios. Assim é, porque estes admitem, por natureza, juízos de
graduação dos interesses em causa e de ponderação com outros interes‑
ses com dignidade constitucional, que no limite abrangem até posições
minimalistas em matéria de justiça intergeracional, nos termos das quais
os direitos e interesses das gerações futuras relevam apenas na medida
em que estas digam respeito a pessoas que já existem. Na verdade, a
consagração constitucional de princípios intergeracionais – ou a inter‑
pretação da constituição como acolhendo-os implicitamente (Silva,
2015, pp. 427-32) – encontra uma justificação semelhante à de outros
princípios estruturantes e direitos fundamentais do constitucionalismo
democrático: não é a afirmação dos princípios que gera dissenso, mas
o juízo sobre as suas implicações. Na medida em que a constituição
não se estenda, pois, para além do plano dos princípios, justifica-se
plenamente a proteção das gerações futuras.
Os princípios – já o vimos – aplicam-se sob reserva de ponderação
com princípios de sentido contrário, cuja tradução técnica é o princípio
156 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
da proibição do excesso, geralmente desdobrado em três «testes» de
aplicação sucessiva e cumulativa: a adequação, a necessidade e a pro‑
porcionalidade. O teste da adequação diz respeito à questão de saber se
a medida lesiva (v.g., o endividamento) é um meio idóneo para atingir
a finalidade visada pelo legislador (v.g., o estímulo ao consumo); se o
não for, a medida é inútil, pelo que a lesão que implica consubstancia
um sacrifício injustificado. O teste da necessidade afere se a medida
adotada é a menos lesiva no conjunto das medidas idóneas para a atingir
a finalidade pretendida; se houver uma medida menos lesiva, o sacrifício
acrescido implicado pela medida adotada é desnecessário. Finalmente,
o teste da proporcionalidade refere-se ao confronto entre o valor da
medida adotada, determinado pelos benefícios que a sua adoção gera,
e o seu desvalor, determinado pelos sacrifícios que implica; por outras
palavras, trata-se de saber se a promoção de um ou mais princípios
justifica o sacrifício de outros (Novais, 2014, pp. 162-93).
Relativamente a cada um destes «testes», coloca-se a questão de
saber qual o grau legítimo de intervenção judicial, nomeadamente por
uma jurisdição constitucional responsável por controlar a constitucio‑
nalidade da atividade legislativa. A intensidade do escrutínio judicial
das decisões do legislador admite graduações, polarizadas pelo mínimo
de um controlo de evidência ou de uma proibição do arbítrio, até ao
máximo de um controlo intensificado ou de uma revisão plena. Por
norma, cabe ao legislador uma ampla liberdade de conformação ou
margem de apreciação para decidir o que é adequado, necessário ou
proporcional, sob pena de em vez de um governo democrático, em que
as escolhas fundamentais da vida coletiva competem a uma maioria de
representantes eleitos pelo povo e politicamente responsáveis, termos
um governo juristocrático, em que os destinos da comunidade são, em
última análise, decididos por uma maioria de juízes sem legitimidade
democrática e politicamente irresponsáveis. Quer isto dizer que o controlo
jurisdicional da atividade legislativa, em democracia, deve limitar-se,
em regra geral, ao patamar mínimo de um controlo de evidência ou
racionalidade (Ribeiro, 2014, pp. 95-7).
A exceção a esta regra são precisamente os casos em que o processo
político ordinário padece de uma patologia deliberativa. O povo encarnado
naquele pode comportar-se como um tirano maioritário quando toma
decisões que atingem os interesses de grupos politicamente alienados
ou socialmente minoritários, recorrendo para o efeito a «classificações
suspeitas» como a raça, o género, a orientação sexual, a religião, e
O PROBLEMA DA TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 157
outras (Ely, 1980, pp. 135-80). A discriminação injusta desses grupos,
motivada por preconceitos racistas, sexistas, homofóbicos, fundamen‑
talistas, e quejandos, é uma perversão do autogoverno coletivo – uma
degeneração da democracia, uma forma de governo entre iguais, na
ditadura da maioria (Ribeiro, 2014, pp. 97-9). Em virtude da propen‑
são irresistivelmente imediatista da democracia representativa, há boas
razões para incluir as gerações futuras nesse elenco de grupos sociais
politicamente vulneráveis.
Ora, nesses casos excecionais, em que recaem suspeitas acráticas sobre
o processo político ordinário, justifica-se um escrutínio judicial intenso
das decisões legislativas, porque a jurisdição constitucional tem maior
legitimidade democrática do que o legislador ordinário. Com efeito, o
facto de os juízes não estarem sujeitos a pressão eleitoral e a terem de
fundamentar as suas decisões torna mais plausível que, nesses casos,
os seus juízos reproduzam os mecanismos deliberativos de uma comu‑
nidade de pessoas livres e iguais do que as decisões de um legislador
condicionado por preconceitos arraigados. Tem, por isso, todo o sentido
que a última palavra sobre essas matérias delicadas seja confiada a uma
jurisdição constitucional independente e que esta seja particularmente
severa no controlo que exerce sobre a atividade legislativa nesse domínio.
A analogia com os casos de autovinculação individual através de um
mecanismo fiduciário é aqui particularmente útil e cogente: embora em
princípio seja mais livre aquele que decide sobre a sua própria vida do
que aquele que transfere essa responsabilidade para terceiro, as decisões
de um agente acrático são plausivelmente menos representativas do seu
«eu racional» do que as de um terceiro sereno, lúcido e responsável ao
qual confiou essa autoridade.
7. Reservas Finais
A conclusão a que chegámos é a de que o único modelo legítimo
de proteção constitucional das gerações futuras é o da consagração
de princípios intergeracionais e da atribuição de poderes de controlo
intensificado à jurisdição constitucional neste domínio.
Porém, esta conclusão merece algumas reservas.
Os problemas da justiça intergeracional não implicam apenas ponde‑
rações de interesses e direitos, e outros juízos de valor que integram o
trabalho habitual da justiça constitucional. Implicam regularmente juízos
de prognose empírica extremamente complexos sobre as repercussões
158 GONÇALO DE ALMEIDA RIBEIRO
futuras das decisões presentes. Ora, a verdade é que os tribunais cons‑
titucionais não têm a menor vocação para essas tarefas. Mal estaríamos
se, por exemplo, os juízes se arrogassem, com fundamento no princípio
da proibição do endividamento excessivo, a prerrogativa de escrutinarem
a credibilidade técnica de teorias macroeconómicas neokeynesianas,
monetaristas ou outras subjacentes às opções de política pública subscritas
pelo legislador. E o mesmo se diga quanto a outras áreas privilegiadas
de decisão pública com repercussão intergeracional, como o ambiente,
o ordenamento do território, ou a política energética. Se é verdade que
o imediatismo justifica uma atitude de desconfiança relativamente à
integridade democrática das decisões tomadas nestes domínios, não
é menos verdade que a intervenção judicial dificilmente aprofundará
a qualidade da deliberação pública a eles respeitante. O pior remédio
fiduciário para a acrasia é confiar a decisão a um terceiro incompetente.
Estas inquietações encerram o dilema fundamental que nos tem
acompanhado neste percurso. Por um lado, a tentação do imediatismo
deprecia fortemente, no âmbito das decisões com repercussões no futuro,
o capital de legitimidade democrática do legislador ordinário. Por outro
lado, os freios constitucionais característicos das democracias contempo‑
râneas são funcionalmente inadequados para cumprir muitas das tarefas
exigidas pela necessidade de proteger as gerações futuras. Talvez isso
nos deva levar a questionar até que ponto as estruturas constitucionais
com as quais estamos familiarizados oferecem uma resposta satisfatória
ao problema da proteção das gerações futuras.
O território a que tal questão nos conduz é o da arquitetura consti‑
tucional, esse grande desafio à imaginação e à experiência coletivas,
em que nos deslocamos sobre os ombros de figuras gigantes da nossa
tradição intelectual e política, como o Barão de Montesquieu, o Abade
Sieyès, Immanuel Kant e James Madison.
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Democracia e Revisão Constitucional
Miguel Nogueira de Brito*
1.
Introdução: justiça intergeracional, democracia e revisão da
Constituição
A relevância do tema da revisão constitucional para o problema da
justiça intergeracional e da sustentabilidade é evidente, sobretudo se pen‑
sarmos nos limites à revisão constitucional. Nessa perspetiva, podemos
mesmo afirmar que a consagração de limites à revisão constitucional
é um dos instrumentos privilegiados da efetivação de qualquer justiça
intergeracional e de qualquer política de sustentabilidade. Assim, por
exemplo, a introdução da «regra de ouro» num texto constitucional, a
afirmação da neutralidade económica da Constituição, ou a introdução
de disposições visando acautelar os direitos das gerações futuras, desig‑
nadamente no plano ambiental, sairão evidentemente reforçadas se forem
garantidas através de cláusulas pétreas.
Ao mesmo tempo, a revisão constitucional foi, desde a origem do
constitucionalismo, pensada precisamente como meio de dar voz à
geração presente contra as anteriores, deixando às gerações futuras o
direito de se manifestarem também. Thomas Jefferson deu expressão a
este pensamento em termos impressivos. Vale a pena retomar aqui as
suas palavras a este propósito:
«… consagremos na nossa constituição a sua revisão em períodos
fixos. Qual a duração destes períodos é algo que a própria natureza
nos indica. Segundo as tabelas europeias de mortalidade, de todos
os adultos vivos em cada momento a maioria estará morta em
* Professor Associado da Faculdade de Direito de Lisboa, faculdade pela qual
se licenciou e obteve os graus de mestre e doutor. Foi membro do Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais (1991-1996) e assessor do Presidente do Tri‑
bunal Constitucional (2001-2003) e do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional
(2003-2007). Desde 2007 que é também advogado. Tem investigado e publicado nas
áreas do Direito Constitucional, Direito Administrativo, Ciência Política e Filosofia do
Direito. Entre as suas obras destacam-se A Constituição Constituinte, A Justificação
da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional e As Andanças de Cândido.
162 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
cerca de dezanove anos. No final desse período, então, uma nova
maioria ocupará o seu lugar; ou, por outras palavras, uma nova
geração. Cada geração é tão independente quanto a que a precede,
como esta o foi de todas as que antes se foram. Tem, pois, como
elas, um direito de escolher por si a forma de governo que acredita
ser mais promotora da sua própria felicidade; consequentemente,
de se acomodar às circunstâncias em que se encontra, recebidas
dos seus predecessores; e é para a paz e o bem da humanidade
que a oportunidade solene de fazer isto cada dezanove ou vinte
anos deveria ser prevista na constituição; de modo que possa ser
transmitida, com reparações periódicas, de geração para geração,
até ao fim dos tempos, se é que algo humano pode durar tanto.»
Poder-se-ia pensar que esta emancipação da geração presente em
relação às que a precederam não a liberta de vínculos em relação às
gerações futuras. Mas, precisamente, esses vínculos devem ser pensados
e assumidos por cada geração, não por uma geração em nome de todas
as que se lhe seguirão. Esse parece ser, em todo o caso, o pensamento
de Jefferson:
«Faz agora quarenta anos desde que a constituição da Virgínia se
formou. As mesmas tabelas informam-nos que, durante esse período,
dois terços dos adultos que então viviam estão agora mortos. Será que
o terço restante tem o direito, mesmo que tenha o desejo, de manter a
obediência à sua vontade, bem como às leis feitas por si, dos outros
dois terços, que compõem por si a presente massa de adultos? Se não
têm, quem terá? Os mortos? Mas os mortos não têm direitos. São nada
e nada não pode ter algo. Onde não existe substância, não pode existir
acidente. Este globo corpóreo, e tudo o que sobre ele existe, pertence
aos seus atuais habitantes corpóreos, durante a sua geração. Apenas eles
têm um direito de dirigir o que é apenas da sua conta, e de declarar a
lei em conformidade; e esta declaração pode apenas ser feita pela sua
maioria. Essa maioria tem, então, um direito de apontar representantes
para uma convenção, e fazer a constituição que pensarem ser melhor
para si mesmos.» [Cf. carta de Thomas Jefferson a Samuel Kercheval
de 12 de junho de 1816, disponível em http://teachingamericanhistory.
org/library/document/letter-to-samuel-kercheval/, último acesso em 29 de
dezembro de 2016 (tradução do autor).]
As palavras de Jefferson têm um especial ressonância na medida em
que parecem articular diretamente o princípio democrático com uma certa
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 163
visão do princípio de justiça entre gerações: cada geração tem o direito de
fazer a sua própria constituição; nenhuma geração pode vincular as que
se lhe sucedem. Na realidade, essa articulação parece apontar para uma
justificação das «preferências temporais puras», segundo a designação
de John Rawls (Rawls, 1993, pp. 233 et seq.): a deliberação democrática
de cada geração seria um fundamento para essa geração atribuir maior
importância aos seus interesses do que aos das gerações passadas ou
futuras. A ideia duma revisão constitucional em sentido «forte», como
exigência dos princípios democrático e de justiça entre gerações, parece
admitir um ressurgimento periódico do próprio poder constituinte, mas
não teve acolhimento em praticamente nenhuma constituição.
Pelo contrário, o que mais comummente se verifica na prática
constitucional é a conceção da revisão como um compromisso entre as
exigências do princípio democrático, que tornaria inaceitável qualquer
imutabilidade absoluta da constituição, e a exigência de respeito do texto
constitucional, que conduz à introdução de limites ao poder de revisão.
Este compromisso é usualmente pensado como uma implicação da dis‑
tinção entre poder constituinte e poder constituído. O poder de revisão
é ainda um poder constituído e por essa razão não pode o seu exercício
ser ilimitado; apenas ao poder constituinte compete aprovar uma nova
constituição, livre de vínculos constitucionais anteriores. Em certa medida,
este modo de pensar permite preservar a ideia de que o poder constituinte
permanece no povo e, ao mesmo tempo, desconsiderar a possibilidade
do seu exercício nos quadros da ordem jurídica em vigor.
O apelo das ideias de Jefferson permaneceu, todavia, como modo
de conciliar poder constituinte e poder constituído no âmbito da revisão
constitucional. É possível, com efeito, pensar a revisão constitucional
como efetuada no âmbito do ordenamento vigente, mas sem apelo às
regras formalmente previstas para o efeito. Para tal, bastaria a deliberação
de uma convenção nacional confirmada por um referendo. Esta é, no que
toca à Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, a opinião de
Akhil Reed Amar: «A Constituição dos Estados Unidos é um documento
muito mais majoritário e populista do que temos geralmente pensado; e
Nós o Povo dos Estados Unidos temos um direito legal de alterar o nosso
governo – de rever a nossa Constituição – através de um mecanismo
majoritário e populista semelhante a um referendo nacional, ainda que
esse mecanismo não esteja explicitamente especificado no Artigo V.»
Em nota de rodapé, Amar acrescenta: «Especificamente, acredito que
o Congresso estaria obrigado a convocar uma convenção para propor
164 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
uma revisão se uma maioria dos eleitores americanos o peticionasse; e
essa revisão poderia ser legalmente ratificada por uma maioria simples
do eleitorado americano» (Amar, 1995, p. 89 & nota 1).
Uma conceção próxima é a defendida por Bruce Ackerman: a his‑
tória constitucional norte-americana estaria repleta de situações em que
transformações momentosas da Constituição não seguiram exatamente os
trâmites do artigo V, mas não deixam de se conformar com o princípio
democrático que lhe está subjacente. Exemplos dessas transformações
seriam a Décima Quarta Emenda (em que a maioria de votos exigida
no artigo V apenas foi obtida à custa da ausência dos congressista dos
Estados do Sul) e o New Deal (Ackerman, 1998, pp. 160 et seq., 207
et seq., & 279 et seq.).
Os dois constitucionalistas mencionados encaram a disposição do
artigo V da Constituição norte-americana como apenas um dos modos
através dos quais se pode rever a Constituição, sem excluir outros, que
envolvem um apelo direto à vontade popular. Ackerman afirma a este
propósito existir uma «dialética recorrente entre populismo e legalismo
na história americana» (Ackerman, 1998, p. 379). Amar, por seu turno,
procura sustentar a existência de uma componente populista no próprio
direito constitucional norte-americano vigente, que adquire expressão
no direito de o povo se reunir em convenções com o objetivo de rever
a Constituição (Amar, 1988, p. 1044; & 1995, p. 107). Estas leituras do
direito constitucional norte-americano são congruentes com uma visão
mais ampla da democracia moderna, de acordo com a qual a participação
política é encarada como um aspeto essencial, mas ao mesmo tempo
limitada a um conjunto de atos fundamentais, entre os quais adquirem
especial relevância as revisões da constituição. De acordo com tal visão
a própria possibilidade da democracia moderna assenta na distinção
entre soberania e governo. A soberania é do povo, mas este não a exerce
para governar; apenas a pode exercer para autorizar o governo e decidir
as questões fundamentais. Por outras palavras, a soberania é do povo e
exerce-se através do voto dos cidadãos, com base no princípio maiori‑
tário; o governo é representativo e exerce-se sem participação popular
direta. Richard Tuck traçou recentemente as origens desta conceção de
democracia no pensamento de Hobbes e especialmente Rousseau: estaria
aqui em causa o surgimento de «um novo tipo de democracia, apropriado
para o mundo moderno, em que os cidadãos podem todos ser verdadeiros
legisladores em assuntos fundamentais, mas deixar os menos fundamen-
tais aos seus agentes». O próprio Rousseau terá compreendido o caráter
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 165
moderno desta ideia, embora essa compreensão tenha sido raramente
reconhecida pelos seus comentadores (Tuck, 2015, p. 141).
Não pretendo questionar a existência duma oposição histórica entre
democracia e representação política, muito presente nos tempos da
Revolução Francesa, apesar de a superação dessa oposição consistir na
própria condição de possibilidade do constitucionalismo moderno. Julgo,
no entanto, que é de rejeitar a ideia segundo a qual a democracia envolve
necessariamente um momento «populista», para utilizar uma expressão que
tanto Amar como Ackerman algo ingenuamente adotaram (mas certamente
sem plena consciência de desenvolvimentos mais recentes), e que esse
momento «populista» teria especial relevância, através da realização de
referendos, no que diz respeito à revisão da constituição ou, em geral, à
adoção de decisões especialmente relevantes na vida dum Estado.
Nas páginas subsequentes pretendo precisamente questionar a ideia
de que exista um direito dos cidadãos a reunir em assembleias popu‑
lares tendo em vista uma revisão da Constituição, ou que a conceção
moderna da democracia envolva necessariamente um elemento «popu-
lista» expresso na participação necessária de todos os eleitores em certas
decisões fundamentais da comunidade política. Repare-se que a crítica
desta conceção adiante desenvolvida é prévia a um conjunto de objeções
que relativamente à mesma poderiam ser formuladas: Quem tem a inicia‑
tiva do referendo? E quem formula as questões sobre as quais deve ser
consultado o eleitorado? Pode o eleitorado ser chamado a pronunciar-se
sobre quaisquer matérias? É que estas questões envolvem já que previa‑
mente se aceite o caráter eliminável do elemento representativo na vida
de uma comunidade política.
O meu propósito consiste em defender a ideia de que a revisão
constitucional não pode ser levada a cabo através de duas vias – a via
«legalista», com observância dos artigos 284.º e seguintes da Consti‑
tuição, e a via «populista», realizada à margem daquelas disposições,
mas assegurando uma ampla participação política dos cidadãos –, mas
apenas com base no disposto na Constituição. A tese contrária, de
que deve permanecer aberta a possibilidade de o povo ser chamado a
pronunciar-se diretamente sobre as questões mais relevantes da vida
política, não pode ser defendida com base na sua pretensa proximidade
da ideia moderna de democracia. E esta, por seu turno, não pode ser
mobilizada para fundamentar preferências temporais puras, suscetíveis
de fazer prevalecer os interesses da geração que delibera sobre os
das demais. A conciliação entre o princípio democrático e a ideia de
166 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
justiça entre gerações não pode ser levada a cabo pelos instrumentos
de participação democrática direta, mas antes impõe a salvaguarda da
dimensão representativa da democracia. Levar a cabo tal conciliação,
através da revisão constitucional, é uma tarefa que deve caber aos
representantes e não diretamente ao povo. A razão para tal reserva da
revisão constitucional à representação política resulta de só esta estabe‑
lecer adequadamente a separação entre juízo e vontade que devem estar
presentes em toda a decisão política (Nadia Urbinati, 2009, pp. 10, 23
et seq., & 61 et seq.). A eleição dos representantes envolve o exercício
de faculdade de juízo dos eleitores, refletindo o voto a complexidade
das opiniões em termos que não se deixam à simples agregação dos
votos. Pretendo, pois, sustentar aqui que os constituintes prestam um
mau serviço aos seus concidadãos quando consagram o referendo
como instrumento normal de revisão constitucional, subordinando o
exercício da faculdade de juízo dos eleitores sobre o comportamento
dos eleitos a longo prazo à expressão da vontade imediata sobre uma
questão pontual.
Para esse efeito, começarei por comentar um caso recente: o referendo
realizado em Itália em 4 de dezembro de 2016 sobre a proposta de revisão
constitucional contida na lei constitucional intitulada «Disposições para
a superação do bicameralismo paritário, a redução do número dos par-
lamentares, a contenção dos custos de financiamento das instituições, a
supressão da CNEL [Consiglio nazionale dell’economia e del lavoro] e
a revisão do Título V da parte II da Constituição» (publicada na Gazetta
Ufficiale della Repubblica Italiana, Serie Generale n.º 88, de 15 de abril
de 2016) (2.). Seguidamente sustentarei que a democracia constitucional
atravessa um momento de crise cujas consequências são ainda, em toda a
sua extensão, desconhecidas, mas envolvem uma profunda transformação
da vida política. Esse momento de crise prende-se, em última análise,
com a desvalorização e desgaste do conceito de representação política,
contra a qual urge reagir (3.). Ao mesmo tempo, esta crise da represen‑
tação política está inscrita nas próprias origens do conceito moderno de
democracia, a partir do pensamento de Rousseau (4.). A partir daqui
analisarei a conceção de democracia subjacente à nossa Constituição – e,
na verdade, a todas as constituições ocidentais –, com especial destaque
para a questão da revisão, tendo em vista sustentar que a matriz teórica
dessa conceção é muito diferente daquela que é apresentada por alguns
como a base da democracia moderna, supostamente assente num dualismo
entre participação direta e representação política (5.).
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 167
2. Um caso recente: o referendo italiano sobre a revisão constitu-
cional
No dia 4 de dezembro de 2016 o povo italiano rejeitou, por uma
maioria ligeiramente superior a 59% dos votos, num ato eleitoral com
uma participação de cerca 65% dos eleitores (cf. http://elezioni.interno.
it/referendum/scrutini/20161204/FX01000.htm, último acesso em 3 de
janeiro de 2017), a proposta de revisão constitucional apresentada pelo
governo ao parlamento, e submetida a referendo por não ter sido apro‑
vada em segunda votação na Câmara dos Deputados e no Senado da
República por dois terços dos seus membros, como prevê o artigo 138.º
da Constituição italiana.
A revisão constitucional foi apresentada pelos seus defensores como
visando reduzir os custos da política, diminuir os cargos de poder e
introduzir um aparato público mais eficiente, desde logo através da eli‑
minação do bicameralismo paritário, centrando-se na segunda parte da
Constituição italiana, respeitante à organização do Estado, e deixando
intocada a primeira parte, em que são consagrados os princípios e os
direitos fundamentais (cf., e.g., Boschi, 2016, p. V). Pelo contrário,
os detratores da revisão salientam que o seu propósito é o de reforçar
o poder executivo, sobretudo se a lei de revisão for articulada com a
reforma eleitoral de 2015, designada como «Italicum» (Zagrebelsky
& Pallante, 2016, pp. 37-47), que acentuaria o caráter maioritário do
sistema. Esta deslocação do centro do poder para o executivo decorreria
de o Senado (cujo número de membros diminuiria de 315 para 95) deixar
de ser eleito pelos cidadãos, passando os seus membros a ser designados
pelas instituições territoriais (para além de eventuais 5 senadores desig‑
nados pelo Presidente da República), e ainda de o controlo da agenda
parlamentar ser assumido pelo governo (Zagrebelsky & Pallante,
2016, p. 79; Azzariti, 2016, pp. 52-3; Labruna, 2016, pp. 59 et seq.).
O debate entre defensores e opositores da proposta de revisão cons‑
titucional foi amplo e profundo, suscitando tomadas de posição claras
pelos apoiantes de cada um dos lados da contenda [do lado dos defen‑
sores do não cf. «Sulla Riforma Costituzionale», de 24 de abril de 2016,
disponível em http://www.libertaegiustizia.it/2016/04/24/sulla-riforma‑
-costituzionale/; do lado oposto, cf. «Le Ragione del Sì», in http://media2.
corriere.it/corriere/pdf/2016/Le_ragioni_del_Si.pdf (último acesso em 3
de janeiro de 2017)]. Não cabe aqui, naturalmente, nem seria relevante
para os propósitos deste escrito, discutir os méritos da proposta de revi‑
168 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
são. Importa apenas salientar como a discussão em torna da proposta de
revisão constitucional se tornou também, independentemente dos seus
méritos, uma discussão sobre o rumo da democracia na Itália.
Entre os defensores da reforma constitucional ouvia dizer-se que
a mesma permitiria superar o estado de coisas correspondente à vida
política dos primeiros anos de vigência da Constituição italiana de 1948,
supostamente dominada por duas regras: a primeira afirmando que a
soberania pertence ao povo; a segunda afirmando que o seu titular jamais
deve exercê-la. Ora, a reforma constitucional, ao «prever um potencia-
mento dos institutos de participação popular, consente verdadeiramente
o exercício da soberania por parte do povo, evidentemente segundo as
formas e limites da Constituição» (Frosini, 2016, p. 73). A isto res‑
pondem os opositores que o recurso aos instrumentos de democracia
direta é apenas aparentemente favorecido pela proposta de revisão. Isto
aconteceria porque, nesta matéria, como resulta da proposta de revisão
do artigo 71.º da Constituição, «quase tudo é reenviado para sucessivas
leis constitucionais: seja para introduzir os referendos propositivo e de
orientação [indirizzo], seja para obrigar o Parlamento a discutir as
propostas de lei de iniciativa popular». Pelo contrário, a revisão torna
«imediatamente operativo o aumento de assinaturas que se tornará
necessário recolher: triplicado, de 50 mil para 150 mil, quanto à ini-
ciativa popular; aumentado de 500 mil para 800 mil para o referendo
se se pretender que o quórum seja calculado sobre metade mais um não
dos eleitores, mas dos votantes nas últimas eleições para a Câmara [dos
Deputados]» (Zagrebelsky & Pallante, 2016, p. 78).
O debate que se gerou em torno da revisão toca aspetos mais profun‑
dos que se prendem com a própria natureza da democracia constitucional
em Itália. Um dos defensores da reforma colocou a questão nos seguin‑
tes termos: «Queremos uma democracia de tipo consociativo, em que
representar conta mais do que decidir, ou queremos uma democracia
maioritária da alternância, em que a representação é função da decisão
política?» (Morrone, 2016, p. 123; Lijphart, 1989). A reforma permi‑
tira dotar a Itália de uma «democracia decidente», em face de uma mera
democracia «discutidora» (Schmitt, 1996, p. 33; Cortés, 1973, p. 31).
A esta alternativa contrapõem os críticos da revisão que a mesma visaria,
na verdade, introduzir uma «democracia de investidura», por oposição
a uma «democracia pluralista» (Mangia, 2016, p. 126), um cesarismo
político ou mesmo uma «autarquia eletiva» (Zagrebelsky & Pallante,
2016, p. 79). Em causa estaria o facto já notado, aceite por todos mas
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 169
valorado diferentemente por defensores e opositores da revisão, de esta
conduzir a um reforço dos poderes do executivo em face do parlamento, o
que aliás não se apresentaria como uma novidade na procura de soluções
para os problemas do sistema político italiano (Pertici, 2016, pp. 53 et
seq.; Fusaro, 2016, pp. 3-12). Tal reforço decorreria em particular, antes
de mais, do facto de a revisão, em vez de ter origem em iniciativa parla‑
mentar, resultar de uma proposta do Governo (Rubechi, 2016, p. XIII;
Zagrebelsky & Pallante, 2016, p. 52), o que em Portugal seria motivo
para a inexistência da lei de revisão (Brito, 2013, p. 136)]. Para além
disso, o reforço do executivo resultaria ainda de a relação de confiança
entre parlamento e governo passar a ter apenas como titular a Câmara
dos Deputados, dado que os membros do Senado deixam de ser eleitos,
e ser eventualmente enfraquecida em resultado de a lei eleitoral atribuir
340 lugares (dos 630 previstos no artigo 56.º, n.º 2, da Constituição) ao
partido com maior número de votos (Zagrebelsky & Pallante, 2016,
p. 64; Fusaro, 2016b, pp. 83-4). Por último, o reforço do poder execu‑
tivo decorreria da introdução de um processo legislativo com conclusão
«em data certa», através da possibilidade – apenas excluída em relação
a determinados atos legislativos, como as leis constitucionais, as leis
eleitorais, as leis de autorização à ratificação de tratados internacionais,
as leis de amnistia e indulto e as leis que dão execução ao equilíbrio
orçamental – de o governo requerer ao parlamento que reconheça, no
prazo de 5 dias, que um determinado projeto de lei é «essencial para a
realização do programa de governo» (artigo 72.º, n.º 7, da Constituição,
de acordo com a proposta de revisão; Zagrebelsky & Pallante, 2016,
pp. 70-1; Fusaro, 2016b, pp. 62-3).
O aspeto mais interessante da discussão em torno da revisão constitu‑
cional consiste, todavia, no modo como os dois lados da contenda avaliam
o facto, já notado, e sobretudo salientado pelos defensores do «Sim»
(D’Amico, 2016, pp. 91 et seq.), de a proposta de revisão incidir apenas
sobre a parte segunda da Constituição italiana, relativa à organização do
Estado e deixar intocada a primeira parte, respeitante aos princípios e
direitos fundamentais. A questão que se pode colocar a este propósito
é a seguinte: em qual das duas dimensões reside, afinal, a democracia?
Em relação a tal questão a clivagem deixa de operar entre defensores
do «Sim» e do «Não».
Assim, Tania Groppi, defensora do «Sim», estabelece uma diferença
entre democracia constitucional e democracia eleitoral e considera
esta última, em que o exercício do princípio democrático se encon‑
170 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
tra desligado das formas e limites da constituição, responsável pelas
experiências do nazismo e do fascismo. Ao procurar ilustrar o funcio‑
namento da democracia constitucional Groppi afirma que a mesma se
«concretiza, a nível organizativo, na separação entre dois distintos
“circuitos decisórios”: de um lado, o circuito do indirizzo político,
em que decidem as maiorias emergentes das eleições, que adotam as
decisões políticas “ordinárias” levando avante o seu programa; do
outro lado, o circuito das garantias, em que operam órgãos “técnicos”,
independentes da política, com o escopo de fazer respeitar por todos,
incluindo as maiorias políticas, as regras constitucionais» (Groppi,
2016, pp. 75-6). Em sentido aparentemente diverso Marilisa D’Amico,
igualmente defensora do «Sim», sustenta que a reforma – ao pôr termo
ao bicameralismo paritário e ao concentrar na Câmara dos Deputados
a competência para fazer a maior parte das leis e atribuir confiança
ao governo, transformando o Senado em expressão das autonomias
territoriais – «tem entre os seus objetivos principais também o de dar
novamente valor e centralidade à primeira parte [da Constituição]».
Assim, a reforma contribuiria para que os tribunais deixem de poder
substituir-se ao parlamento e garantir os direitos com a mesma eficácia
de uma lei geral (D’Amico, 2016, p. 95).
O facto, todavia, que merece ser destacado, é a dissociação, revelada
pelo conteúdo da própria proposta de revisão, entre a constituição dos
direitos e a constituição da política. O propósito do Governo Renzi
parece ter sido o de combinar uma «democracia decidente», no quadro
de um sistema político mais eficaz e gerador de menos custos, com o
respeito dos direitos e princípios fundamentais. Mas a dissociação entre
constituição dos direitos e constituição da política pode assumir outras
manifestações. Pode significar, antes de mais, uma transformação não
apenas no sentido de uma «democracia decidente», mas de uma demo‑
cracia «eleitoral» ou «iliberal», em que se procura combinar eleições
livres com restrições aos direitos e liberdades dos cidadãos (Mair, 2013,
p. 10). Temos manifestações recentes disso mesmo no caso da Hungria
e da Polónia (Müller, 2016, pp. 58-9); se não quisermos limitar o
campo de análise aos governos em funções, mas a experiências partidá‑
rias, cabe reconhecer que o populismo se revela em todos, ou quase, os
países da Europa (Judis, 2016, pp. 89 et seq.). A dissociação indicada
pode também significar, em sentido contrário, que «não são as eleições
– ou pelo menos as eleições enquanto tais – que fazem a democracia,
mas antes os tribunais, ou pelo menos a combinação dos tribunais com
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 171
outros modos de participação não eleitoral» (Zakaria, 2007, pp. 89 et
seq.; Mair, 2013, p. 11).
Uma terceira forma de dissociação, ou desagregação (Mair, 2013,
p. 10), da democracia é precisamente aquela que ocorre entre as suas
dimensões representativa e de participação direta. O que aqui se verifica
é um desinteresse dos cidadãos pelo funcionamento normal das institui‑
ções políticas combinado com um comportamento no voto popular que
exprime o distanciamento em relação aos representantes políticos e muitas
vezes se torna imprevisível e constitui manifestação de atitudes identi‑
tárias. Dir-se-á, com razão, que o referendo em Itália não correspondeu
a qualquer manifestação identitária. O que se verificou foi antes que os
representantes políticos, com o primeiro-ministro Renzi à cabeça, não
souberam interpretar a vontade popular; ao mesmo tempo, os opositores
da revisão não são necessariamente defensores do atual estado de coisas
constitucional.
O referendo sobre a revisão constitucional correspondeu, pois, em
certa medida, a uma oportunidade desperdiçada, ao não resolver o pro‑
blema da necessidade de reforma das instituições políticas, reconhecida
por todos, quer os defensores do «Sim», quer os do «Não». Resta saber
se as futuras tentativas de reforma não irão agravar a dissociação entre
democracia constitucional e democracia eleitoral.
As posições em debate no referendo constitucional italiano são bem
expressas em dois escritos sobre a democracia, de Giorgio Napolitano,
anterior Presidente da República Italiana e um dos grandes defensores
da reforma constitucional, e de Gustavo Zagrebelsky, porventura um
dos seus mais empenhados opositores. Para Napolitano é politicamente
legítimo «verificar que os concretos elementos de reforço ulterior dos
poderes do governo, e de quem a ele preside, possam ser introduzidos na
base de motivações transparentes e convincentes» (Napolitano, 2010,
p. 14). Falar de democracia é, neste contexto, falar de legitimação de
uma reforma institucional sentida como necessária quase desde o início
de vigência da Constituição italiana de 1948. Zagrebelsky, por seu turno,
defende «a tese de que a democracia não é apenas um hábito exterior
de regras, mas é também uma atitude interior que dá corpo às institui-
ções; de que não existe democracia sem um ethos conforme e difuso;
de que o esqueleto, feito de regras, é importante mas não suficiente; de
que a mais democrática das constituições está destinada a morrer, se
não for animada da energia que compete aos cidadãos transmitir-lhe»
(Zagrebelsky, 2010, p. 54).
172 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
O que o referendo italiano sobre a revisão constitucional demonstra
é, afinal, a indefinição sobre a própria noção de democracia. O refe‑
rendo serviu para rejeitar, para já, uma certa visão de democracia, mas
permanece a indefinição sobre qual deva ser o seu sentido atual na vida
política italiana. A questão consiste em saber se esse sentido pode ou
deve ser apurado através de um referendo.
3. A desagregação da democracia e a necessidade de revitalização
da representação política
A partir das considerações anteriores, é possível falar de um fenómeno
da desagregação da democracia, que reveste as seguintes manifestações:
(i) a identificação da democracia com a afirmação dos direitos dos cida‑
dãos através dos tribunais, em detrimento da escolha dos representantes
políticos; (ii) em sentido contrário, a identificação da democracia com
as eleições, ao mesmo tempo que se restringem os direitos e liberdades;
(iii) o desenvolvimento de mecanismos de democracia direta e outros
instrumentos de participação que exprimem uma desconfiança crescente
dos cidadãos em relação ao funcionamento da democracia representativa.
Está aqui em causa o afastamento entre os dois «circuitos decisórios», na
expressão de Tania Groppi há pouco referida, regulados na Constituição:
a justiça e a política. No primeiro caso, é impossível deixar de notar
como um recuo da participação política coincide com o desenvolvimento
do ativismo judicial; no segundo caso, pelo contrário, o que releva é
a utilização das eleições para o estabelecimento de projetos políticos
contrários ao Estado de Direito e uma das questões suscitadas por esses
projetos consiste precisamente em saber em que medida poderão os
tribunais atuar como travões ao seu desenvolvimento.
A estas manifestações pode ainda acrescentar-se uma outra: (iv) a
dissociação entre a democracia e os vínculos comunitários de pertença
dos cidadãos, como as nações, que pode ocorrer de duas maneiras: atra‑
vés da desnacionalização do conceito de cidadania e a sua estruturação
sobre a qualidade de ser pessoa e titular de direitos (Colliot-Thélène,
2011, pp. 21 & 173 et seq.); em sentido contrário, através da ideia de
que apenas se integram na nação certos grupos sociais, definidos pela
etnia, pela cultura ou até pela classe social. Neste último caso, estamos
perante a deriva populista que toma a parte pelo todo; no primeiro, perante
a ilusão de que é possível superar por completo o caráter exclusivo da
pertença a uma comunidade política.
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 173
Não se desconhece que a crise é, em certa medida, inerente à própria
vivência da democracia (Zagrebelsky, 2010, p. 40), mas o que está em
causa é especificamente a crise da dimensão representativa da democracia.
Com efeito, a manifestação da desagregação da democracia que se prende
com a introdução de mecanismos corretivos da democracia representativa,
com aquilo que é percecionado como a necessidade de contrariar o afas‑
tamento dos representantes em relação aos seus representados, pode ser
resumida na afirmação de que «no regime representativo a democracia
está sempre em falta» (D. Rousseau, 2015, p. 27).
A crise da democracia representativa tem sido explorada e desenvol‑
vida por múltiplos autores. Pierre Rosanvallon distingue, neste contexto,
dois tipos de experiência democrática: o funcionamento e os problemas
das instituições eleitorais representativas, por um lado, e, por outro lado,
os contrapoderes sociais informais e as instituições «destinadas a com-
pensar a erosão da confiança por uma organização da desconfiança»
(Rosanvallon, 2006, p. 11).
O projeto de Pierre Rosanvallon consiste em estudar o alargamento
da vida das democracias «cada vez mais para além da esfera eleitoral-
-representativa», estendendo-se a muitas outras maneiras «ao mesmo
tempo concorrentes e complementares da consagração pelas urnas, de
se ser reconhecido como democraticamente legítimo» (Rosanvallon,
2008, p. 19). No seu modo de ver, todavia, essas outras maneiras não
chegam a pôr em causa a ideia de soberania popular, mas apenas a
sua visão monista, esteja ela centrada num «corpo social tendo a sua
consistência intrínseca», ou num espaço de comunicação, concebido na
linha de um «patriotismo constitucional», como pretenderia Habermas.
Em vez disso, haveria que admitir a existência de diversas maneiras
de agir ou falar «em nome do corpo social» e de «ser representativo»
(Rosanvallon, 2008, pp. 20-1).
A grande questão consiste, todavia, em saber se a introdução de medidas
«destinadas a compensar a erosão da confiança por uma organização
da desconfiança», na expressão de Pierre Rosanvallon já anteriormente
citada, não terá um efeito sobretudo negativo. Por outras palavras, há
que admitir a hipótese de a instituição de uma «contrademocracia» ter
um efeito essencialmente destrutivo da democracia representativa, sem
ganhos significativos na perspetiva da instituição de um novo regime
democrático.
Ainda que a ideia de «contrademocracia» possa ser válida como des‑
crição do atual estado de coisas que se vive nas democracias ocidentais
174 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
modernas (ideia que encontra, aliás, um paralelo evidente em outros
conceitos, como o de «democracia de monitorização», desenvolvido
por Keane, 2009, pp. xxii et seq., & 585 et seq.), essa é a descrição de
democracias sem linha de rumo. A demonstração de que essas demo‑
cracias não mais sustentam uma visão monista da soberania – isto é, a
ideia de que não só os órgãos constitucionais atuam em nome do corpo
social, mas este admite uma pluralidade de expressões –, não é, em si
mesma, um argumento contra tal visão monista. É apenas um sinal do
enfraquecimento da soberania e da comunidade política de que a mesma
constitui expressão. Na verdade, a ideia de «contrademocracia» pode ser
comparada a um «contrafogo»: trata-se de combater o fogo com o fogo,
mas o propósito é extinguir o incêndio. Ao combater o distanciamento
entre governantes e governados que caracteriza a democracia represen‑
tativa através de instrumentos de democracia participativa é a própria
consistência do projeto democrático que fica em jogo.
O que está em causa é, em última análise, o conceito de repre‑
sentação política e a incapacidade de distinguir no seu seio entre as
realidades a que Ernst-Wolfgang Böckenförde chama representação
formal e representação material. A primeira designa «o nexo de legiti-
mação e imputação entre a atuação dos órgãos de direção e o povo:
os órgãos de direção atuam representativamente em nome do povo e
como povo; têm a força de vincular o povo através da sua atuação»
(Böckenförde, 1991, p. 391). A representação em sentido material,
por seu turno, é aquela através da qual os representantes atualizam e
manifestam os conteúdos da vontade do povo, que assim se revê na sua
atuação. Já não está apenas em causa a competência dos representantes
para obrigar externamente os representados, mas a sua «capacidade para
gerar aceitação e uma disposição de seguimento». Ora, apenas com
o alargamento do conceito, de modo a abranger a dimensão material
mencionada, se torna possível compreender que a representação não
se limita a exprimir algo já dado, mas antes consiste num «processo
político-espiritual» (Böckenförde, 1991, p. 392). Outra forma de
exprimir esta mesma ideia consiste em afirmar que a representação
implica duas versões do «povo»: o povo que os representantes fazem
aparecer e o povo que faz desaparecer os representantes. Isto significa
que «o funcionamento da democracia representativa depende de políticos
capazes de oferecer diferentes visões do povo ao povo, de modo a que
os votantes sejam capazes de escolher aquela que preferem» (Vieira
& Runciman, 2008, pp. 140-1).
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 175
A representação produz-se através de uma atuação dos representantes
que implique os diversos interesses e necessidades em presença e, ao
mesmo tempo, articule aquilo que os representados sentem como vincu‑
lante para todos na ordenação da sua vida em comum. A representação
surge como um processo de mediação em direção ao geral e só ela
permite alcançar a volonté générale dos cidadãos, por oposição à mera
volonté de tous. Quer isto dizer, nas palavras de Böckenförde, que «a
representação democrática pode lograr-se, pode consolidar-se, mas pode
também diluir-se e desintegrar-se» (Böckenförde, 1991, pp. 397-98).
Por outras palavras, para Böckenförde a dissociação entre vontade geral
e vontade de todos – a primeira entendida como conceito normativo e a
segunda como mera realidade empírica – permanece uma possibilidade
na democracia representativa, ao contrário do que sucede na conceção
identitária da democracia defendida por Carl Schmitt (Schmitt, 2010,
pp. 234 et seq.). Precisamente porque permanece uma possibilidade
de dissociação entre vontade geral e vontade de todos é que a própria
articulação do povo surge como uma tarefa a ser realizada no âmbito
do processo aberto da representação, em vez de surgir como uma reali‑
dade dada previamente ao processo político e fixada numa determinada
comunidade de raça ou língua. Ora, aquela tarefa, por sua vez, apenas
pode ser levada a cabo através da atuação autónoma dos membros do
parlamento no contexto do mandato livre (Böckenförde, 1991, p. 400).
A representação em sentido material pressupõe a negação do mandato
imperativo, bem afirmada no artigo 152.º, n.º 2, da nossa Constituição.
Não é uma simples coincidência histórica que o momento histórico em
que se dá a desincorporação do poder, com o afastamento do príncipe, é
também o momento histórico em que, através do pensamento de autores
como Paine, Madison e Sieyes, se torna possível pensar a representação
como assente na participação dos indivíduos, sem dúvida, mas visando
representá-los não como simples indivíduos e sim como membros do
Estado como um todo (Vieira & Runciman, 2008, p. 44).
Aquilo que a tese da desagregação da democracia verdadeiramente
significa é a diluição e desintegração da democracia representativa em
resultado da incapacidade de articulação da vontade geral a partir da
expressão da vontade de todos. Dito de outro modo, a desagregação
da democracia decorre em boa medida da incapacidade de descortinar,
para além da representação formal, através da qual os órgãos políticos
vinculam o povo, a representação material, através da qual lhe constroem
a identidade e a razão de ser como comunidade política. Repare-se que
176 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
nesta dimensão material a representação não é apenas construída pelos
representantes, mas também por todos os membros da comunidade polí‑
tica. São muitas e conhecidas as razões da mencionada incapacidade – a
indiferença dos cidadãos, o desinteresse das elites pela coisa pública e
o seu envolvimento na vida económica e financeira, a indiferenciação
dos partidos políticos que aceitam os princípios do Estado de direito, o
clientelismo e eleitoralismo da classe política, etc. –, mas a causa que
verdadeiramente interessa aqui salientar consiste muito simplesmente na
«labilidade da democracia» enquanto traço da sua própria natureza e na
dependência de um regime democrático de recursos que nele possam ser
mobilizados tendo em vista o desenvolvimento de uma cultura política
robusta (Böckenförde, 1991, pp. 404-5).
Uma cultura política democrática robusta é uma cultura política que
se mobiliza para assegurar que o lugar do poder, em vez de permanecer
um vazio (Lefort, 1986, pp. 292 et seq.; Habermas, 1992, p. 452) é
preenchido por um processo político-espiritual correspondente ao fim e
cabo à representação política e, ao mesmo tempo, para impedir que o
mesmo seja ocupado por uma qualquer identidade prefixada. A demo‑
cracia não pode prescindir do povo e da nação, ainda que deva repudiar
a sua construção identitária]. Substituir no lugar do poder uma pessoa
por um processo não é tarefa, porém, que se afigure fácil. Na verdade
trata-se de uma tarefa que apenas foi possível, no contexto europeu,
pela lenta maturação do conceito de representação política ao longo de
todo o período medieval. Foi no âmbito dessa evolução que se tornou
possível pensar os parlamentos já não como órgãos de representação do
poder real perante o povo, mas como órgãos de representação do povo
perante o rei e, posteriormente, órgãos a cujos membros cabia a tarefa de
articular a comunidade política (Vieira & Runciman, 2008, pp. 10-28).
Sem dúvida que no termo desta evolução a responsabilidade que pesa
sobre os ombros dos representantes, e também dos seus representados,
se torna consideravelmente maior, mas é duvidoso que a incapacidade
que estes parecem atualmente mostrar de se desonerar dela não ponha
em risco a própria democracia. A democracia não pode sustentar-se
no voto isolado dos cidadãos sobre questões concretas, mas necessita
de uma «temporalidade ininterrupta» que apenas lhe é conferida pela
representação política (Urbinati, 2009, p. 68) e que é também a condição
essencial de qualquer princípio de justiça entre gerações.
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 177
4. O problema de Rousseau
O problema anteriormente identificado, isto é, o problema que consiste
em articular democracia e representação é, na realidade, o problema de
Rousseau. Mas é-o apenas com uma precisão complementar, decorrente de
dizermos «vontade popular», em vez de «democracia». Tem sido notada
a tensão que existe nos seus escritos entre a ideia de autolegislação do
povo e a rejeição da representação na articulação do poder legislativo, por
um lado, e, por outro lado, o reconhecimento do caráter necessariamente
representativo do governo.
Assim, enquanto «o poder legislativo pertence ao povo, e não
pode pertencer senão a ele», o «poder executivo não pode pertencer
à generalidade enquanto legisladora ou soberana; porque este poder
não consiste senão em atos particulares que não competem à lei, nem
consequentemente ao soberano, cujos atos, todos eles, não podem ser
senão leis» (J.-J. Rousseau, 1992a, p. 264). Segundo Rousseau, «não
sendo a lei senão a declaração da vontade geral, é claro que, no poder
legislativo, o povo não pode ser representado; mas pode e deve sê-lo
no poder executivo, que não é senão a força aplicada à lei» (J.-J.
Rousseau, 1992a, p. 299).
A crítica da representação política vale, pois, em relação ao poder
legislativo, mas já não tem razão de ser em face do executivo. É em
relação àquele, com efeito, que vale a conhecida afirmação de que «a
soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser
alienada; e consiste essencialmente na vontade geral, que em caso algum
se representa; a vontade é a mesma, ou é outra; não há meio-termo»
(J.-J. Rousseau, 1992a, p. 298). O contexto desta afirmação demonstra,
todavia, que o exercício do poder legislativo do povo não prescinde,
segundo Rousseau, de deputados; apenas sucede que os mesmos não
podem ser considerados representantes do povo, mas seus comissários,
que «não podem concluir nada definitivamente». Rousseau rejeita assim
a ideia moderna de representação, de origem feudal, com base na qual os
deputados do povo atuam em vez deste, para recuperar a visão clássica
da democracia direta. Neste contexto, afirma não ver que «seja doravante
possível ao soberano conservar entre nós o exercício dos seus direitos
se a cidade não for muito pequena» (J.-J. Rousseau, 1992a, p. 300).
Como afirma noutra ocasião, «um dos grandes inconvenientes dos gran-
des Estados, aquele de entre todos que mais dificulta a conservação da
178 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
liberdade, é que o poder legislativo não se pode aí mostrar a si próprio,
e apenas pode agir por deputação» (J.-J. Rousseau, 1992b, P. 434).
Neste contexto, o grande problema consiste em saber como articular o
poder legislativo sem recorrer à representação moderna. Para Rousseau,
o povo não governa, isto é, não exerce o poder executivo, mas em rigor
também não legisla. Na realidade, uma das raízes da tirania consiste em
reunir «sobre as mesmas cabeças a autoridade legislativa e o poder
soberano». Deste modo, «aquele que redige as leis não tem assim, ou
não deve ter, qualquer direito legislativo, e o próprio povo não pode,
mesmo que quisesse, despojar-se desse direito incomunicável, uma vez que
segundo o pacto fundamental só a vontade geral obriga os particulares,
e não se pode jamais assegurar que uma vontade particular é conforme
com a vontade geral senão depois de a ter submetido aos sufrágios livres
do povo» (J.-J. Rousseau, 1992, p. 250). Para além disso, importa dis‑
tinguir no seio do poder legislativo o requisito de unanimidade exigido
para a instituição do pacto social e a exigência de maioria para todas
as demais deliberações: «fora deste contrato primitivo, a voz do maior
número obriga sempre todas as outras». Na verdade, «quanto mais as
deliberações são importantes e graves, mais o sufrágio que a sustenta
se deve aproximar da unanimidade» e «quanto mais o assunto suscitado
exige celeridade, mais se deve estreitar a diferença prescrita na partilha
dos sufrágios: nas deliberações que é necessário terminar imediatamente
o excedente de uma só voz deve ser suficiente» (J.-J. Rousseau, 1992a,
pp. 309 & 311; & 1992b, pp. 452-3). A vontade popular conduz em
Rousseau a uma visão da democracia como essencialmente composta
de uma série contínua de decisões isoladas, enquanto manifestação de
uma «soberania pontilhista» (Urbinati, 2009, p. 65).
Não é claro o sentido útil que podem ter estas considerações em relação
às instituições das modernas democracias representativas. Poderá ver-se
aí uma referência ao poder constituinte como fonte de toda a autoridade
política legítima (Zweig, 1909, pp. 83-5; Colliot-Thélène, 2001,
p. 68). É duvidoso, todavia, que se possa encontrar no plano institucio‑
nal a relevância de Rousseau para a democracia moderna. Na verdade,
importa reconhecer a existência no pensamento político de Rousseau de
uma distinção «entre o plano da metapolítica, que trata do fundamento
do poder legítimo, e um plano pragmático, mais próximo daquilo que
usualmente se espera de uma teoria política» (Colliot-Thélène, 2011,
p. 72). De resto, a confusão, deliberada ou não, instalada por Rousseau
entre os dois planos mencionados teve um efeito persistente na cultura
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 179
política ocidental que consiste em fazer da abolição da distinção entre
dominantes e dominados um objetivo político, todavia desmentido na
vida das comunidades políticas e, ao mesmo tempo, da democracia
uma ideia regulativa, porém inalcançável na prática. Na verdade, com
Rousseau a democracia torna-se um modelo crítico de todas as formas
de governo, a começar pelo governo representativo, mas também um
modelo em larga medida irrealizável. É, em grande medida, por causa
de Rousseau que hoje se pode chegar a afirmar que o lugar do poder
deve permanecer vazio. A crítica da representação que desenvolveu não
resulta, todavia, tanto da sua oposição à democracia, quanto da respetiva
incompatibilidade com a ideia moderna de soberania, identificada com a
vontade popular (Urbinati, 2009, p. 19). É o caráter absoluto com base
no qual continua a pensar a soberania que leva à rejeição da representação
política no pensamento de Rousseau.
5. Rejeição do dualismo democrático como chave de compreensão
do poder de revisão constitucional
Mas poderá afirmar-se que nas condições dos Estados modernos o
ideal de Rousseau pode apenas ser aproximado através dos referendos
constitucionais, com o reconhecimento inerente que os mesmos não podem
consistir numa modalidade comum de tomada de decisões políticas,
mas asseguram a presença da vontade popular nos grandes momentos
constitucionais? A conceção que encara a democracia moderna como um
compromisso entre representação e participação, a primeira funcionando
para as decisões «normais» do governo e a segunda orientada para as
grandes decisões políticas, agrava o fenómeno da desagregação da demo‑
cracia e não é, de modo algum, apropriada para o mundo moderno. Tal
conceção não fornece a melhor leitura do desenvolvimento do pensamento
democrático constitucional e não deve, por isso, ser pensada como o
fundamento da revisão constitucional.
A conceção aqui criticada foi, como já anteriormente afirmei, defendida
com maior profundidade, no plano da história das ideias políticas, por
Richard Tuck e, no plano do direito constitucional, por Akhil Reed Amar
e Bruce Ackerman. O pensamento de todos estes autores caracteriza-se
por uma afirmação do princípio democrático que se basta a si própria, sem
uma necessária articulação com os princípios constitucionais do Estado de
direito e da defesa dos direitos. O primeiro deles procura fazer remontar
a Rousseau a ideia de um soberano referendário, isto é, a ideia de que só
180 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
ao povo soberano cabe decidir as questões políticas fundamentais, entre
as quais se inclui certamente a revisão da constituição. E o modo como
Tuck alcança essa conclusão baseia-se na tese de que Rousseau teria
construído uma teoria política que «equivale à teoria de Hobbes com
uma inconsistência removida, mais do que a uma teoria que se encontra
em oposição fundamental com a de Hobbes» (Tuck, 2015, p. 141).
Na avaliação da tese de Tuck deixemos de lado as próprias palavras
e intenção de Rousseau, que certamente revelam uma oposição expressa
em relação ao pensamento de Hobbes (J.-J. Rousseau, 1971, p. 189;
Idem, «Lettre à M. le Marquis de Mirabeau», de 26 de julho de 1767, in
Vaughan, 1962, p. 161). Deixemos igualmente de lado a bizarria que
consiste em atribuir a um pensador da envergadura de Rousseau uma
teoria política que se mostra essencialmente apendicular do pensamento
político de Hobbes. Centremo-nos, antes, na substância da tese que pre‑
tende ver em Rousseau um defensor da ideia do «soberano adormecido»,
expressão retirada do Cap. VII do De Cive de Hobbes (Hobbes, 1998,
pp. 98-100; Tuck, 2015, p. 87).
Como aspeto central da sua tese, Tuck parte da distinção entre
soberania e governo, cujas origens e evolução traça desde Jean Bodin.
A partir daqui defende essencialmente, antes de mais, que a negação da
representação política levada a cabo por Rousseau é «apenas o correlato
da distinção entre soberano e governo, pois a essência dessa distinção
é que o governo não pode representar o soberano enquanto soberano»,
embora possa atuar como «agente do soberano em várias áreas especí-
ficas» (Tuck, 2015, p. 138). Rousseau opor-se-ia apenas à ideia de que
o soberano pudesse ser representado por deputados eleitos, mas já não
à ideia de que os indivíduos são representados pelo soberano, ou seja,
à ideia de que é «a coleção das representações individuais que faz a
vontade do soberano geral no seu caráter» (Tuck, 2015, p. 137). Não
haveria quanto a este ponto qualquer divergência relevante em relação
ao pensamento de Hobbes.
Em segundo lugar, e aqui residiria a divergência em relação a Hobbes,
Tuck sustenta que Rousseau «não acreditava que a legislatura soberana
pudesse transferir ou alienar a sua soberania para outra pessoa ou
assembleia, e Hobbes acreditava – aqui residia a base do seu próprio
realismo» (Tuck, 2015, p. 139). Ora, esta alienação pressuporia a pró‑
pria dissolução do soberano que assim, todavia, deixaria de representar
os cidadãos no momento anterior à própria transferência do seu poder.
Assim, não seria possível uma transferência do poder de uma democra‑
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 181
cia para uma monarquia (Tuck, 2015, p. 140). Apesar de a assembleia
legislativa soberana não poder transmitir o seu poder para o monarca,
não está inibida de se fazer representar no que diz respeito ao exercício
do poder executivo. Assim, retomando a distinção entre soberano e
governo, seria possível considerar que, para Rousseau, o soberano reserva
para si a legislação sobre as questões fundamentais, deixando as menos
relevantes para os seus agentes, isto é, o governo. E esta seria a própria
essência da democracia moderna.
Sucede que esta leitura do pensamento de Rousseau não pode ser
aceite. Para Rousseau, o soberano não pode ser representado, tal como
para Hobbes o soberano é necessariamente o produto da representação.
Não existe, além disso, nenhum sentido útil na afirmação de que a von‑
tade geral representa os indivíduos. No pensamento de Hobbes a repre‑
sentação transforma uma multidão em um povo – e daí Hobbes afirmar
que nas monarquias o Rei é o povo (Hobbes, 1998, p. 137) –, o que não
sucede com a transformação da vontade de todos na vontade geral (J.-J.
Rousseau, 1992a, p. 238). Não está aqui em causa nenhum processo
de representação, mas a transmutação, levada a cabo pelo pacto social,
do povo real em soberano, que tem o seu correlato na transmutação do
indivíduo natural em ser moral (Colliot-Thélène, 2011, p. 70). Rous‑
seau não é, pois, o fundador da democracia moderna porque combinou
a representação com a participação popular através do referendo, mas
porque fez da democracia um ideal que interpela as comunidades políticas
efetivamente existentes.
Finalmente, a distinção entre soberano e governo, cujas origens e evo‑
lução Tuck traça com esmero, encontra na verdade o seu culminar, mas
também a sua exaustão, no pensamento de Rousseau. Na verdade, Rou‑
sseau demonstra a impossibilidade de materializar o soberano: quaisquer
tentativas de o fazer são duvidosamente compatíveis com os princípios
constitucionais, ou acabam por se concretizar através de instrumentos
representativos. Não é simplesmente possível pensar a expressão da
soberania através da presença permanente do povo, mas isso não signi‑
fica que Rousseau tivesse em mente a sua presença intermitente, através
do referendo. Na verdade, o meio que encontrou para minorar os males
da inelutabilidade da representação em Estados de grandes dimensões
foi a instituição do mandato imperativo (Derathé, 1992, pp. 277-280).
A visão das origens filosóficas da democracia moderna proposta por
Richard Tuck revela ser uma combinação desastrosa do pensamento de
Hobbes e de Rousseau, que na verdade oculta aquilo com que de mais
182 MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO
importante cada um dos autores contribuiu para a política moderna: no
caso de Hobbes, a ideia de representação política, à margem da qual
não existe sequer o povo enquanto conceito político significativo, mas
apenas a multidão; no caso de Rousseau, a ideia de que a legitimidade de
qualquer regime político depende da sua aproximação ao ideal político
da autolegislação de um povo. A verdade é que outros autores parecem
ter contribuído de forma bem mais decisiva para as origens da democra‑
cia moderna, como por exemplo Thomas Paine (cf. Lamb, 2015, pp. 78
et seq.). O interesse do contraste entre Hobbes e Rousseau decorre de
o primeiro pôr o soberano no culminar do processo de constituição da
comunidade política, através da representação, enquanto o segundo o põe
logo no início desse mesmo processo, sobre o qual fica depois a pairar
como um ideal, ou uma ideia reguladora. É, aliás, este movimento que
justifica que a leitura de Rousseau tenha conseguido interromper, segundo
reza a lenda, os hábitos pedonais de Kant (Cassirer, 1991, p. 31).
O resultado fundamental das escavações históricas de Richard Tuck
consiste em defender que o governo em funções não se pode arrogar a
soberania do povo, podendo este chamar a si em qualquer momento o
exercício do poder constituinte sem observância das regras previstas na
constituição para a respetiva revisão. Trata-se, na verdade, da defesa de
uma desagregação entre democracia e representação, que alguns cons‑
titucionalistas americanos têm também defendido, como anteriormente
mencionei. Com efeito, essa desagregação abre a porta a um convívio
perigoso entre democracia identitária e democracia representativa, do
qual em última análise são os próprios princípios do Estado de direito
que saem a perder. (Ackerman, 2010, pp. 181 et seq.; Tierney, 2009,
pp. 360 et seq.; Tierney, 2014, pp. 19 et seq.; Brito, 2015, pp. 93-6).
Um dos episódios dessa desagregação ainda em curso consiste, como é
bem sabido, no designado Brexit, isto é, no referendo através do qual o
Reino Unido decidiu, em 23 de junho de 2016, sair da União Europeia,
dando assim início ao processo previsto no artigo 50.º do Tratado da
União Europeia. A questão deste referendo não é verdadeiramente a
de saber se o mesmo pode, ou não, ser considerado legítimo, mas a de
saber que democracia o mesmo se destina a realizar (Tierney, 2016).
E esta última permanece, em larga medida, por responder. O problema
não reside tanto na resposta dada pelo povo, quanto na intenção de quem
formulou a pergunta.
Enquanto Rousseau defendia que a soberania não é passível de repre‑
sentação, os modernos críticos da representação pretendem desconstruir
DEMOCRACIA E REVISÃO CONSTITUCIONAL 183
a ideia de soberania, afirmando que o ideal democrático se exprime
de múltiplas formas, para além da representação parlamentar. Nesta
desconstrução corre-se todavia o risco de se perder de vista a ideia de
democracia como governo do povo, confundindo-a com o governo para o
povo ou, pior ainda, por meio do povo (advertindo para a necessidade de
ter presentes estas distinções, cf. Zagrebelsky, 2010, pp. 4-25; Kelsen,
2006, pp. 250 et seq.).
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A Tutela Constitucional das Gerações
Futuras: Profilaxia Jurídica ou Saudades
do Futuro?
Catarina Santos Botelho*
“On sent si bien, en voyant se bander pour le souvenir le regard
fatigué de tant d’adaptation à des temps si différents, souvent si
lointains, le regard rouillé des vieillards, on sent si bien que sa
trajectoire, traversant ‘l’ombre des fours’ vécus, va atterrir, à
quelques pas devant eux, semble-t-il, en réalité à cinquante ou
soixante ans en arrière.”
(Marcel Proust, Pastiches et mélanges,
Gallimard, p. 224).
1. Introdução: confronto axiológico entre o passado, o presente e o
futuro
Em grande medida, podemos afirmar que o tratamento dos direitos
fundamentais é, amiúde, realizado através da sua perspetivação espacial.
Segundo este entendimento, identificam-se os direitos fundamentais lato
sensu, conceito este que inclui os direitos fundamentais consagrados na
legislação internacional geral e regional, e os direitos fundamentais stricto
sensu, catalogados nas constituições dos Estados.
Uma característica endógena do Direito é que o seu objeto tende a
incidir sobre um horizonte temporal algo limitado: o passado próximo –
nos termos em que a legislação é o resultado do estudo de uma realidade
legislativa anterior que se pretende modificar ou a verificação da sua
ausência – o presente e o futuro próximo (Spadaro, 2008, p. 74). Seja
* Licenciada (2004), Mestre (2009) e Doutora (2015) em ciências jurídico-políticas
pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Professora Auxiliar na
Escola do Porto da Faculdade de Direito da UCP. Investigadora do Católica Research
Center for the Future of Law. Membro do Conselho de Coordenação da Academic
Network on the European Social Charter and Social Rights (ANESC).
188 CATARINA SANTOS BOTELHO
como for e em contraposição, na sua essência, o Direito é naturalmente
“orientado para o futuro” (Wolff, 2000, p. 297). Esta tendência já se
verificava no Direito Romano, em que a Urbs era defendida para a pos-
teritas, passando pelo Positivismo Ocidental, com todo o seu otimismo
e crença no progresso científico e económico das sociedades, assim
como pelo período que sucedeu à Revolução Industrial e que passou a
perspetivar o Direito como instrumento de prevenção de todos os riscos
associados a esse progresso (Luciani, 2008, p. 424).
A teoria de justiça rawlsiana, que se adequou bem às décadas de 50
e 60 do século passado, assentava na ideia de que cada geração seria
melhor do que a anterior, até se atingir um estádio de otimização e de
plenitude de “capital” (Rawls, 1971, p. 256). Nas últimas décadas, porém,
percebeu-se que vivemos numa “sociedade de risco”, ameaçada por uma
miríade de riscos, desde o risco tecnológico, genético, ambiental, até
ao risco da segurança e bem-estar dos indivíduos (Beck, 2007, p. 26).
Em boa verdade, a atuação das gerações presentes poderá, propositada
ou negligentemente, ter repercussões irreversíveis na livre fruição dos
recursos por parte das gerações futuras (Caspar, 2001, p. 103; de Rita,
2008, p. 511; Mazzina, 2008, p. 363). Basta pensar, por exemplo, nas
consequências imprevisíveis dos progressos da genética contemporânea,
ou nas opções quanto à política energética.
A noção de geração, relativamente enigmática, suscita problemas
interdisciplinares, que ultrapassam em muito as nebulosas balizas do
mundo jurídico e penetram em território limítrofe de considerações éticas,
morais e filosóficas. Na segunda metade e finais do século xx, começaram
a circular teses que faziam apelo à existência de expectativas jurídicas,
vínculos jurídicos ou até mesmo de genuínos direitos subjetivos das
gerações futuras, que careciam de reconhecimento e proteção expressa.
A perceção da necessidade de tutela foi primeiramente elaborada em
termos teóricos e reflexivos por correntes filosóficas e de opinião, que
se foram posteriormente concretizando em processos de decisão política
concretos (Mazzina, 2008, p. 361).
Com efeito, no mundo da Filosofia, estas preocupações deram
origem a importantes contribuições teóricas, tais como: (i) a sobeja‑
mente conhecida obra de John Rawls que aborda o problema da justiça
intergeracional; (ii) as preocupações de ética intergeracional de Hans
Jonas; (iii) ou as teorias utilitaristas de, v.g., Dieter Birnbacher (cf.,
respetivamente, Rawls, 1971, Jonas, 1995, & Birnbacher, 1988.
Desenvolvidamente, cf. Martins (2016), pp. 114-41. Para um estudo
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 189
muito interessante das perspetivas “comunitarista” e “libertarista”, cf.
Campos, 2015, pp. 125-28).
Se é verdade que estes novos desafios se têm colocado primeiramente
num plano deôntico, ético, moral ou filosófico, não será igualmente de
surpreender que a noção de responsabilidade intergeracional se tente
afastar desses domínios abstratos para algo mais percetível. Em con‑
creto, assistimos a uma tentativa de densificação normativa, não apenas
no plano interno dos Estados, mas igualmente nos planos internacionais
e europeus. Avista-se, assim, uma “qualidade global e aterritorial” pal‑
pável na configuração do Direito intergeracional (Bifulco & D’Aloia,
2008, p. XIII).
Na nossa perspetiva e num contexto das ciências constitucionais, será
à Teoria da Constituição que caberá acolher esta nova realidade que
se vem desenhando e aperfeiçoar os contornos esbatidos do conceito
de “geração” (Tremmel, 2006a, pp. 187-202; Häberle, 2006, p. 223).
Deparamo-nos com uma sociedade mais incerta, menos estável, que,
tantas vezes, não tem grande margem de manobra para assegurar o
bem-estar das gerações futuras, porquanto não consegue garantir sequer
o bem-estar das gerações presentes (Martins, 2016, p. 374, nt. 1631).
Como seria de prever, vislumbramos novos conceitos que tentam
entranhar-se no léxico jurídico, paulatinamente, e ainda sem grande
densidade conceptual e normativa. Estes conceitos são atinentes à noção
de direitos fundamentais num sentido temporal e ontológico, que não
têm como destinatários exclusivos as gerações atuais, mas que procu‑
ram tutelar igualmente as gerações vindouras (Spadaro, 2008, p. 79).
Como resulta transparente, a vida humana não é um momento temporal
isolado, mas é uma perene continuidade, provém dos nossos ascenden‑
tes e transmite-se aos descendentes, não apenas num sentido biológico
ou genético, mas também a todos aqueles que, de uma forma ou outra,
serão influenciados pela marca da nossa existência. A existência humana
não é um ato solitário, é outrossim relacional, vocacionada para o outro
(Botelho, 2015, p. 362).
Esta vertente temporal perpassa todo o direito e é especialmente
evidente no ramo do Direito Constitucional, porquanto abundam normas
que possuem concomitantemente “identidade estática e dinâmica”, sendo
a identidade estática todo o património histórico e de experiência herda‑
dos do passado e a identidade dinâmica aquilo que se almeja transmitir
às gerações futuras (Castanheira Neves, 2007, pp. 1-72; Vaz, 2015b,
pp. 73-4; Häberle, 2000, pp. 2-3). Num olhar retrospetivo, a Constituição
190 CATARINA SANTOS BOTELHO
visa manter um núcleo essencial de características de organização do
poder político e uma catalogação de direitos fundamentais, que deverão
estar protegidos contra a atuação de todos os poderes jurídico-públicos,
especialmente o poder legislativo. Num olhar prospetivo, a força normativa
da Constituição estará umbilicalmente conexionada com a capacidade de
a mesma se adaptar à evolução da vivência constitucional. Esta readap‑
tação às novas exigências da realidade constitucional poderá efetuar-se
quer através de alterações formais do texto constitucional, quer através
de mutações constitucionais, em que o sentido do texto é alterado sem
que se proceda a uma revisão formal do texto constitucional (Vaz,
2015b, pp. 94-105).
Os progressos tecnológicos e científicos assumem uma espiral de tal
modo evolutiva, de ritmo galopante, que tornam indeclinável a existência
de um maior distanciamento entre o presente o futuro. Nestes termos, é
já um lugar-comum o entendimento de que, nos dias de hoje, se valoriza
muito (demasiado!) o tempo presente, limitadamente o “tempo curto”,
e quase nada (ou mesmo nada) o “tempo longo” (para mais desenvol‑
vimentos sobre a destrinça “tempo longo” e “tempo curto”, cf. Garcia,
2007, pp. 289-91).
Perante este cenário, o desejável seria que os legisladores constituinte
e ordinário assumissem uma missão de actio in distans, procurando con‑
centrar os seus esforços normativos não apenas nos seus destinatários
imediatos e previsíveis – a saber, os cidadãos de hoje de um determinado
Estado – mas, igualmente, ‘naqueles’ que hão de vir, quer num futuro
próximo, quer num futuro distante (Birnbacher, 2006, p. 29; Schröder,
2011, p. 328).
Como veremos, a possibilidade de atribuir direitos às gerações futuras
divide radicalmente a doutrina, surgindo, como normalmente sucede, teses
que bifurcam os argumentos e teses intermédias, que procuram estabe‑
lecer pontos de contacto entre uma rejeição absoluta e um acolhimento
total de direitos às gerações futuras. Outra questão é a de saber, uma vez
admitindo que as gerações futuras deverão ser tuteladas juridicamente,
como as proteger? Nesta esteira, se alguma doutrina defende que a lin‑
guagem dos direitos “é o idioma apropriado” para dar um tratamento
jurídico adequado a esta questão, outra doutrina nega, com veemência,
a existência de “direitos” das gerações futuras (Bruhl, 2002, p. 398).
No fundo, trata-se de averiguar se somos todos nós, individualmente, ou
se somos todos enquanto coletividade (Botelho, 2015, p. 366). Nestes
termos e mais recentemente, raiou na doutrina o conceito de “comunidade
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 191
transgeracional”, aderindo a uma abordagem comunitarista (Thompson,
2010, pp. 5-20).
2. Breve resenha acerca do reconhecimento normativo das gerações
futuras
2.1. Prudência legislativa
Como iremos verificar, estamos ainda “muito longe da solidariedade
entre gerações” (Miranda, 2010, p. 36). Num plano internacional,
os direitos das gerações futuras parecem ter adquirido o estatuto de
norma consuetudinária (Falk, 2000, p. 193. Há quem fale, inclusive,
em “direitos do planeta”, que dizem respeito à proteção do ambiente e
dos recursos naturais. Neste sentido, Weiss, 1992, p. 24). Com efeito,
são inúmeras as exortações às gerações presentes da urgência de levar a
cabo comportamentos responsáveis em benefício da posteridade, ainda
que esses comportamentos possam exigir sacrifícios ou a mudança do
estado de coisas.
A confirmá-lo, o artigo 1.º da DUDH, que persuade os homens a “agir
uns para os outros em espírito de fraternidade”, o Preâmbulo da Con‑
venção sobre Comércio Internacional de Espécies Em Perigo de Fauna e
Flora Selvagens (de 03.03.1973), o Preâmbulo da Convenção-Quadro das
Nações Unidas para as Alterações Climáticas (de 09.05.1992), o artigo
3.º da Declaração sobre as Responsabilidades das Gerações Presentes em
Relação às Gerações Futuras, intitulado “manutenção e perpetuação da
humanidade” (adotada em 12.11.1997, na 29.ª Sessão da Conferência Geral
da UNESCO), o artigo 4.º da Convenção para a Proteção do Património
Mundial, Cultural e Natural (de 16.11.1972), o Preâmbulo da Convenção
das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (de 05.06.1999). Em
1992, na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
adiantou-se o conceito de “desenvolvimento sustentado”, que está
associado à ideia de “responsabilidade de larga duração”. Em reforço,
alguma doutrina entende que a tutela das gerações futuras resulta, hoje,
subentendida no princípio da precaução (Hartwig, 2008, p. 60).
Já no plano do Direito da União Europeia, o artigo 2.º do Tratado da
União Europeia alude a uma sociedade caracterizada pelo “pluralismo, a
não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade
entre homens e mulheres” (itálico nosso). A este nível, vai-se entranhando
a perceção de que a prosperidade, solidariedade e segurança que almeja
192 CATARINA SANTOS BOTELHO
o projeto europeu não prescinde da proteção das gerações futuras. Em
sintonia, há quem advogue que a proteção de direitos e interesses das
gerações futuras deveria integrar as competências do Ombudsman Euro‑
peu (Agius, 2006, p. 29).
Uma vez percorridos o plano internacional e o plano da União Euro‑
peia, importa centrar as nossas atenções no plano constitucional. Neste
domínio, alguma doutrina entende mesmo que os direitos das gerações
futuras não carecem de consagração constitucional expressa, porquanto,
graças à sua “vocação de permanência”, o futuro integra o programa
normativo constitucional (Silva, 2010, p. 490). Historicamente, o movi‑
mento constitucional não parecia acolher a proteção das gerações futuras.
Muito pelo contrário: a Constituição jacobina de 1793, no seu artigo 28.º,
afirmava lapidarmente que “nenhuma geração pode sujeitar às suas leis
as gerações futuras”. Hoje, podemos verificar que as referências às gera‑
ções futuras surgem, timidamente, nos preâmbulos constitucionais ou no
âmbito da tutela do ambiente e da sustentabilidade dos recursos naturais.
Um estudo de Direito Comparado evidencia disparidades na proteção
constitucional das gerações futuras. Para iniciar a resenha num tom mais
otimista, destacamos três constituições que contêm disposições constitu‑
cionais que atribuem direitos às gerações futuras: são elas o artigo 11.º da
Constituição japonesa de 1946, o artigo 110b da Constituição norueguesa
(tal como revista em 1992), e o n.º 15 do artigo 108.º da Constituição
da Bolívia (aprovada em 2009).
Todavia, a generalidade dos textos constitucionais não veicula os
direitos das gerações futuras. Identificámos, inclusivamente, uma certa
tendência semântica nas referências constitucionais às gerações futuras,
que assume preferência pelas expressões como “para”, “em benefício
de”, ou “no interesses das”, em detrimento de uma clara referência à
linguagem dos direitos (Botelho, 2015, p. 371). A título exemplifica‑
tivo, o preâmbulo e o n.º 2 do artigo 2.º da última Constituição suíça; o
artigo 225.º da Constituição brasileira; o preâmbulo da Constituição da
Estónia (1992), que refere o “êxito social e benefício comum das gera‑
ções futuras”; o preâmbulo da Constituição russa (1993); o preâmbulo e
o artigo 74.º (1997) da Constituição polaca, o artigo 24.º da Constituição
Sul-africana, o par. 1 do artigo 59.º da Constituição albanesa (1998).
De mencionar é ainda a Constituição italiana, na qual não encontra‑
mos uma alusão expressa à noção de responsabilidade intergeracional.
Não obstante e com muita benevolência, alguma doutrina sugere vários
preceitos de onde se poderá retirar, ainda que muito mitigadamente, uma
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 193
tal proteção: no n.º 2 do artigo 1.º da Constituição, o conceito de “povo”,
enquanto unidade ideal, compreende as gerações presentes e as futuras;
por outro lado, no artigo 2.º, a expressão “direitos invioláveis do homem”
acolhe uma interpretação aberta ao futuro, e a 2.ª parte deste preceito
refere “o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política,
económica e social”; no n.º 2 do artigo 4.º, a ideia de “progresso” está
vocacionada para o futuro; e, por fim, nos artigos 9.º e 32.º é tutelada
a proteção ambiental (Bifulco & D’Aloia, 2008, pp. XXIII-XXIV).
Em sintonia, na Alemanha, a Lei Fundamental contém algumas dispo‑
sições que se relacionam com a justiça intergeracional, a saber: o artigo
20.ºa, que, pela primeira vez, na revisão de 1994, introduziu o termo
geração no texto constitucional; e os artigos 109.º, 109.ºa e 115.º (limites
à dívida, introduzidos em 2009). Em contrapartida, em várias Constitui‑
ções dos Estados federados alemães, podemos confirmar um acrescido
compromisso acerca da proteção das gerações vindouras [cf. o preâmbulo
da Constituição Bávara de 1946 (que usa a expressão “para as futuras
gerações”) e o artigo 39.º, par. 1, da Constituição de Brandemburgo].
Por sua vez, a Constituição portuguesa, embora não consagre espe‑
cificamente direitos das gerações futuras, acaba por os acautelar, por via
indireta, através do princípio da solidariedade entre gerações, em especial
em relação com princípio da sustentabilidade, que tem várias referências
normativas, a saber: a alínea e) do artigo 9.º; o n.º 1 e as alíneas c), d),
f) e g) do artigo 66.º, e as alíneas a) e m) do artigo 81.º.
Importa ressalvar, não obstante, que a opção constituinte de não
consagrar constitucionalmente os direitos das gerações futuras não sig‑
nifica a sua exclusão ad nutum (Botelho, 2015, p. 371). Ainda que os
direitos das gerações futuras não estejam expressamente reconhecidos
na Constituição, poder-se-á retirar um certo nível de proteção de uma
leitura combinada de várias disposições constitucionais – ou de seus
fragmentos – que possuam um claro grau de abertura ao futuro (como
admitem Saladin & Zenger, 1988, p. 77).
Perante estes elementos, alguma doutrina pugna pela existência – ou,
com mais cautela – pelo desabrochar de um Direito constitucional gera-
cional, que procura trilhar um “caminho intermédio” entre a liberdade das
gerações hodiernas e as obrigações associadas aos interesses das gerações
futuras (Häberle, 2006, p. 225). A proteção constitucional das gerações
futuras colocará importantes desafios à teoria dos direitos fundamentais.
Não se trata de uma empreitada fácil e muito menos definitiva.
194 CATARINA SANTOS BOTELHO
A “sociedade de risco” em que vivemos não se compadece com uma
ausência de intervenção estadual e, cada vez mais, exige do Estado a
promoção ativa dos direitos fundamentais (Botelho, 2015, p. 390). Se
os direitos fundamentais foram inicialmente concebidos para proteção
dos indivíduos contra o Estado, hoje assistimos a uma horizontalização
da proteção contra outros indivíduos, o que justifica eventuais restrições
no âmbito de aplicação de alguns direitos, mediante a aplicação, em
Portugal, das balizas dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º. Ora, se se estender
o papel protetor dos direitos fundamentais para o futuro, então ter-se-á
de aceitar que isso acarreará um acréscimo de restrições aos direitos
fundamentais (Hartwig, 2008, p. 68).
2.2. Autocontenção jurisdicional
Como iremos demonstrar, ainda que o papel das jurisdições constitu‑
cionais e supremas relativamente às gerações futuras não seja despiciendo,
a verdade é que são ainda muito escassas as referências jurisprudenciais.
Uma celebrada exceção a esta timidez jurisprudencial, foi o caso Minors
Oposa v. Secretário do Departamento do Ambiente e Recursos Naturais,
levado ao Supremo Tribunal das Filipinas [de 30.07.1993, 33 ILM 173
(1994)]. Neste aresto, um grupo de jovens menores intentou uma ação
contra a destruição florestal no seu país, invocando o direito a um ambiente
sadio e equilibrado. O Tribunal deu provimento a esta ação, tendo deixado
claro, que “enquanto o direito ao [ambiente] se encontra localizado na
Declaração de Princípios e Políticas Estatais e não na Carta de Direitos
Fundamentais, daí não se retira que tenha menos importância do que
qualquer direito civil ou político enumerado nesta última. Um tal direito
pertence a uma categoria diferente de direitos […] que nem precisam de
estar escritos na Constituição, pois presume-se que existem deste o início
da humanidade. Se se encontram agora explicitamente mencionados no
texto constitucional, é devido ao bem fundando receio dos constituintes
de que, a não ser que a Constituição imponha políticas de equilíbrio e
ambiente sadio, desta forma sublinhando a sua relevância […] não tardará
o dia em que tudo isso se perderia, não só para a presente geração, mas
também para as gerações vindouras que herdarão nada mais do que uma
terra estéril, incapaz de sustentar a vida” (Gosseries, 2008a, pp. 29-56).
Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, se bem que não
tenha ainda invalidado um ato jurídico-público por violação direta do
princípio da justiça intergeracional, não se acanha em referências expressas
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 195
à proteção das gerações futuras (cf. os Acórdãos do TCFA, n.º 1644/00
e 188/03, Primeira Secção, de 19.04.2005, e n.º 3/03, Segunda Secção,
de 19.10.2006).
No contexto português, na década de 80 do século passado, a nossa
jurisdição constitucional proclamou que “não há direitos fundamentais sem
sujeito”. (Em causa estava a possibilidade de reconhecer o direito à vida
do nascituro. Cf. o Acórdão n.º 85/85, processo n.º 95/84, de 29.05.1985,
ponto 2.2.) Nas décadas que se seguiram, as referências constitucionais às
gerações futuras foram escassas, descafeinadas e atinentes à salvaguarda
do património ambiental.
Mais recentemente, no contexto das políticas de austeridade, des‑
tacaremos uma declaração de voto da então Juíza Conselheira Maria
Lúcia Amaral, que mereceu uma apreciação muito positiva na doutrina
constitucional e juslaboral portuguesa. (Gomes, 2014, p. 82, apelidou‑
-o de “voto dissidente mais sofisticado”, e Urbano, 2014, pp. 43-4,
destacou a importância deste voto, ainda que a análise do princípio da
justiça intergeracional não tenha descolado do “plano puramente teó‑
rico”.) Assim, a Conselheira admitiu que, ainda possa ser questionado
o “exato alcance prescritivo” do princípio da justiça intergeracional, “e
qual a sua rigorosa sede, no texto da Constituição”, não se poderá colocar
em causa “o postulado básico em que o mesmo assenta […]: embora se
não estabeleçam na Constituição limites quantitativos ao endividamento
do Estado, dela decorrem implicitamente limites qualitativos, que coin‑
cidem com os limites do ónus que as gerações presentes podem impor
às gerações futuras sem condicionar gravemente a sua autonomia. […]
numa “República baseada na ideia de dignidade da pessoa (artigo 1.º),
esta atenção para o justo limite de encargos a deixar para o futuro – justo
limite que se ultrapassa quando se oneram as gerações seguintes de tal
forma que é a sua própria esfera de decisão que é esvaziada – não pode
deixar de ser também, ela própria, um dos princípios estruturantes da
Constituição. A solidariedade (artigo 1.º) entre os que estão vivos não
pode ser vivida de forma a excluir a solidariedade para com o futuro”
(declaração de voto ao Acórdão n.º 353/2012, Processo n.º 40/12, de
05.07.2012, relator: Cons. João Cura Mariano).
No ano seguinte, registou-se outra referência às gerações futuras –
nada surpreendentemente, em declaração de voto – pela Juíza Conselheira
Catarina Sarmento e Castro, que entendeu que o TC deveria ter declarado
a inconstitucionalidade da Contribuição Extraordinária de Solidariedade
(CES), porquanto esta não se “justificaria […] por um dever de solida‑
196 CATARINA SANTOS BOTELHO
riedade intergeracional: um tal objetivo jamais pode ser prosseguido por
uma medida meramente conjuntural e avulsa (cf. Acórdão n.º 187/13,
processo n.º 2/13, de 05.04.2013, relator: Cons. Carlos Fernandes Cadi‑
lha). Ora a CES, como foi concebida, enquanto receita extraordinária,
não é uma medida estrutural, pensada para a solvabilidade do sistema,
não podendo, por isso, ser encarada como uma medida com o propósito
de reduzir encargos lançados sobre as gerações futuras” (Declaração da
Cons. Catarina Sarmento e Castro, ponto V).
Pouco tempo depois, no Acórdão n.º 474/13, novamente em declara‑
ção, a Juíza Conselheira Maria Lúcia Amaral, com enorme clarividência,
defendeu “não há – sejamos claros – ordem constitucional que perdure
para além da sustentabilidade do Estado, como não há constituição
que racionalmente eleja como princípio orientador da ordem pública a
“irresponsabilidade” (ou a indiferença) da geração presente perante a
autonomia das gerações futuras. Simplesmente, e uma vez mais, para
legitimar o comportamento arbitrário da administração no despedimento
dos seus próprios “trabalhadores” seria necessária uma demonstração
clara da essencialidade da medida para a prossecução desse princípio
de sustentabilidade estadual. Cabia ao legislador ordinário o ónus da
demonstração dessa essencialidade” (novamente, declaração da Cons.
Maria Lúcia Amaral, ponto 2, no Processo n.º 754/13, de 29.08.2013,
relator: Cons. Fernando Vaz Ventura).
Por fim, agora já no corpo do Acórdão, a nossa jurisdição constitu‑
cional acolheu a máxima da solidariedade intergeracional, salientando
que a “intervenção restritiva no complexo de direitos, deveres e incom‑
patibilidades que formam o “estatuto do aposentado” mobilizam, no
plano constitucional, os princípios materiais da segurança social (v.g.,
contributivo, solidariedade, justiça intergeracional) e os condicionantes
de medidas restritivas (v.g., igualdade, proporcionalidade, proteção da
confiança), mas não os que conformam medidas fiscais ou parafiscais”
(cf. Acórdão n.º 862/2013, processo n.º 1260/13, de 19.12.2013, relator:
Cons. Lino Rodrigues Ribeiro, consid. 17). Mais concretamente, “os
interesses públicos da sustentabilidade financeira e da justiça intergera‑
cional […] têm também sido invocados pelo Tribunal Constitucional para
credenciar medidas restritivas de direitos sociais, quer num contexto de
crise económico-financeira (cf. Acórdão n.º 187/2013), quer a propósito
da convergência do sistema de pensões (cf. Acórdãos n.º 188/2009 e
n.º 3/2010)”. […] O princípio da sustentabilidade recebe acolhimento
constitucional nos artigos, 81.º, alínea a), e 66.º, n.º 1 e 2, da CRP, mas
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 197
também do artigo 101.º, quando refere a exigência do “desenvolvimento
social” ou do artigo 9.º, alínea d), que tem subjacente a ideia de justiça
intergeracional, o que pressupõe a sustentabilidade do sistema (Consid.
29). Conclui, porém que, “o questionamento dos direitos à pensão já
constituídos na ótica da sustentabilidade do sistema público de pensões
no seu todo e da justiça intergeracional não se opõe à redução das
pensões. Tais interesses públicos poderão justificar uma revisão dos
valores de pensões já atribuídas, visto que se conexionam com a altera‑
ção de circunstâncias – demográficas, económicas e financeiras – que
transcendem as diferenças de regime entre os dois sistemas públicos
de pensões existentes. Mas, também por isso, os critérios de revisão a
observar terão de efetivamente visar recolocar num plano de igualdade
todos os beneficiários dos dois sistemas, só desse modo se assegurando
o respeito pela justiça intrageracional. Nessas circunstâncias, será o sis‑
tema e seus valores, designadamente a garantia da sua sustentabilidade
e a sua equidade interna, a conferir sentido aos sacrifícios impostos aos
respetivos beneficiários, desse modo justificando-os e legitimando-os à
luz do princípio da tutela da confiança” (Consid. 45).
Este avanço jurisprudencial foi, decerto, positivo. No entanto, quanto
à categorização conceptual e normativa das gerações futuras, confirma‑
-se que estas não são vislumbradas como sendo titulares de direitos
subjetivos, nem sequer de direitos em sentido amplo, tendo o Tribunal
Constitucional português optado por uma postura menos ativista e mera‑
mente reconhecedora da necessidade da sua proteção.
2.3. Proposta de revisão constitucional
Como vimos atrás, a constitucionalização da proteção das gerações
futuras é ainda um fenómeno muito raro. Vale a pena, por isso, dar a
conhecer os ordenamentos jurídicos que tutelam as gerações futuras
explicitamente nos seus textos constitucionais. O artigo 11.º da Cons‑
tituição japonesa afirma que “(o)s direitos fundamentais garantidos às
pessoas por esta constituição são veiculados, como eternos e invioláveis,
às pessoas da geração presente e das gerações futuras”. Já o artigo 110b
da Constituição da Noruega dispõe que “(o)s recursos naturais deverão
ser utilizados com base em amplas considerações de longo prazo, de
forma a que este direito seja igualmente salvaguardado para as gerações
futuras”. Por fim, o n.º 15 do artigo 108.º da Constituição da Bolívia
deixa claro que “são deveres das bolivianas e dos bolivianos proteger
198 CATARINA SANTOS BOTELHO
e defender os recursos naturais e contribuir para o seu uso sustentável,
para preservar os direitos das futuras gerações”.
Tendo em conta as considerações precedentes, julgamos ser avisado
alterar o texto constitucional português e nele consagrar, de forma clara
e sem equívocos, a tutela das gerações futuras. Desta forma, quiçá, a sua
proteção consiga, por fim, deslocar-se de corajosas e pontuais declarações
de voto para o terreno firme do corpo/texto principal dos acórdãos do
Tribunal Constitucional.
Quanto a uma concreta proposta de revisão constitucional, tudo
dependerá, de acordo com o preceituado nos artigos 284.º a 286.º da
CRP, da vontade política da Assembleia da República. As alternativas
são várias e todas terão, como resulta da natureza das coisas, vantagens
e desvantagens. Uma possível solução seria acrescentar à alínea b) do
artigo 9.º, como tarefa fundamental do Estado, a garantia dos “direitos
e liberdades fundamentais das gerações presentes e futuras e o respeito
pelos princípios do Estado de Direito Democrático” (sublinhado nosso).
Por outro lado, também se poderia optar por fazer esse aditamento
na alínea d) do mesmo artigo 9.º, nos seguintes termos: “promover o
bem-estar e a qualidade de vida do das gerações atuais e futuras e a
igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos
económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação
e modernização das estruturas económicas e sociais” (itálico nosso).
Claro que poderemos argumentar que a expressão por nós substituída – a
palavra “povo” – já abrangeria as gerações futuras, pelo que esta altera‑
ção constitucional seria supérflua e dispensável. Compreendemos que o
conceito de “povo” tenha a latitude e abstração suficientes para um tal
raciocínio. (Sobre o conceito de povo, cf. Calvão, Campos & Botelho,
2016, pp. 38-40) Porém, e uma vez que esta perspetiva estaria sempre
dependente de uma interpretação mais generosa do que se entende por
“povo”, julgamos ser mais avisado alterar o texto constitucional e não
deixar margem para equívocos.
A diferença entre ambas as propostas está na subtileza de conteúdo
dos verbos “garantir” ou “promover”. De notar que, se o primeiro aponta
para um controlo mais apertado, o segundo parece indicar uma maior
discricionariedade na promoção dos direitos em causa.
Para terminar, indicaremos outra sugestão, que seria a de, pura e sim‑
plesmente, acrescentar uma alínea ao artigo 9.º, exclusivamente dedicada
à “proteção das gerações futuras”.
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 199
3. A ideia de “pacto intergeracional”: entre a tentativa de conceptua-
lização jurídica e um paternalismo ético
3.1. As objeções jurídicas ao reconhecimento de direitos às gerações
futuras
Em primeiro lugar, importa salvaguardar que o conceito de geração
não é unívoco. Tanto poderá ser utilizado para nos referirmos ao con‑
junto de indivíduos nascidos no mesmo ano, no mesmo lustro, como
o poderemos alargar até um período temporal suficiente para que os
nascidos se tornem pais e avós. (Há quem defenda uma referência
expressa ao conceito de “gerações futuras não nascidas”, que serão todas
aquelas pessoas que nascerão num horizonte temporal que não coincide
com os que vivem atualmente. Neste sentido, cf. Solum, 2001, p. 170.
Outra precisão conceitual é defendida por quem entende que, em vez
da designação “gerações futuras”, se deveria falar do termo “gerações
descendentes”, uma vez que este último abarca não apenas as gerações
não nascidas mas também as presentes crianças e adolescentes. Assim,
Tremmel, 2006b, p. 55) Quanto a nós, parece-nos que a plasticidade do
conceito geracional justifica uma perspetiva generosa e que atenda aos
recentes dados de facto que apontam para um aumento da esperança
média de vida, o que faz com que o tempo de convivência, no mesmo
espaço temporal, entre avós, pais e filhos, seja tendencialmente mais
prolongado (Botelho, 2015, p. 365).
Todavia, a questão mais delicada e de importantes repercussões é
mesmo esta: como traduzir a exigência ética de proteção das gerações
futuras em termos normativos? (Garcia, 2007, p. 290) Estaremos perante
genuínos direitos das gerações futuras ou deveres das gerações presentes?
Quanto a nós, parece-nos que, se a própria Constituição de um
Estado não garantir expressamente os direitos das gerações futuras,
estes poderão derivar, com limitações, do princípio da dignidade da
pessoa humana (Alexandrino, 2006, p. 146, nt. 639; Botelho, 2015,
p. 380). Nestes termos, Hartwig é de opinião que a não consideração
das pessoas futuras constitui uma “violação de nós mesmos”. Por este
motivo, a dimensão objetiva ou comunitária dos direitos fundamentais
vincula os órgãos estatais a terem em consideração os interesses das
gerações futuras (Hartwig, 2008, p. 67). Admitir os direitos das gera‑
ções futuras passaria por os enquadrar na quarta geração de direitos
fundamentais, os direitos de solidariedade, que se caracterizam pela
200 CATARINA SANTOS BOTELHO
sua forte dimensão objetiva, porquanto protegem bens comunitários
que dizem respeito não apenas às gerações presentes, mas também – se
estiver em causa a sua afetação – às gerações vindouras (Becker, 2001;
Andrade, 2002, p. 64).
Como veremos de seguida, vários Autores negam categoricamente
a existência de direitos das gerações futuras, em especial no plano
económico-social. Um argumento que já foi utilizado para a sustenta‑
ção desta tese foi o de que a própria resolução da UNESCO, que era
originariamente intitulada “Declaração para os Direitos das Gerações
Futuras”, foi redenominada como “Declaração sobre as Responsabi‑
lidades das Gerações Presentes face às Gerações Futuras”. Assim, no
limite, poder-se-á falar em “limites objetivos” das escolhas das gerações
presentes (Luciani, 2008, p. 440).
Um desafio, que sacode a normação jurídica clássica – em especial a
privatística – é o dilema de saber se se deverá entender como necessária
a verificação da titularidade de um direito para a possibilidade de obter
uma indemnização civil. Outra das principais dificuldades do reconheci‑
mento dos direitos das gerações futuras diz respeito ao objeto da tutela.
A este propósito, podemos encontrar uma miríade de denominações que
procuram qualificar o objeto protegido: direitos subjetivos; interesses,
interesses-direitos; bem-estar; necessidades, legado, tratamento (Bifulco
& D’Aloia, 2008, p. X e p. XVIII).
Num discurso menos arrojado, alguma doutrina prefere falar em
“expectativas de sujeitos futuros” (Spadaro, 2008, p. 103). Outra
doutrina defende a “teoria dos interesses”, que assenta na depuração
do conceito de bem-estar geral do conceito de dano injusto (Bruhl,
2002, pp. 393-439).
Num patamar intermédio, propondo o abandono das teses de subjeti‑
vização das gerações futuras, há quem refira um “princípio de compro‑
misso limitado” das gerações presentes face às gerações futuras, oriundo
de imperativos morais e que poderá estender-se, de forma facultativa,
a um patamar médio ou até a um patamar máximo de compromisso.
Por seu turno, outra doutrina sugere a adaptação da doutrina da pessoa
jurídica pública, que comporta a “continuidade da pessoa jurídica na
descontinuidade da pessoa física que não cobre os órgãos” (Luciani,
2008, pp. 440-1).
Nos antípodas, há quem defenda a existência de verdadeiros “direitos”
das pessoas futuras e não de meras “necessidades” (Weiss, 1989, p. 96;
Häberle, 1998, p. 228; Tremmel, 2006b, p. 52). Segundo este entendi‑
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 201
mento, são as gerações presentes que optam, de forma gratuita, por se
autolimitarem, criando vínculos jurídicos que acabarão por influenciar
e/ou cercear os atuais modelos de desenvolvimento económico, social
e ambiental (Spadaro, 2008, p. 107).
De qualquer forma, não queremos deixar sem acento que, a linguagem
dos direitos, que tem sido uma constante nas décadas do pós-Guerra, tem
tanto de aliciante e de poderoso como tem de frágil e vulnerável (Bote‑
lho, 2015, p. 380). Como vimos, a temática da proteção das gerações
futuras assume contornos de um “verdadeiro problema constitucional
material” (Häberle, 2006, p. 225). Nesta esteira, uma parte muito
considerável da doutrina tem vindo a alertar que a ideia de direitos das
gerações futuras e da responsabilização das gerações presentes assenta
em pilares movediços e numa conceptualização teórica ainda frágil,
que recorre a conceitos polissémicos e ambíguos, e pouco sustentada
dogmaticamente (Luciani, 2008, p. 426; Botelho, 2015, p. 380).
De seguida, elencaremos as principais objeções dogmáticas à possi‑
bilidade de garantir direitos das gerações futuras, sendo que as primeiras
duas objeções são relativas ao significado do reconhecimento destes
direitos e as quatro restantes se referem à sua utilidade: (i) o desafio da
não existência; (ii) o problema da falta de identidade; (iii) os direitos
não acionáveis; (iv) o princípio da indisponibilidade do futuro; (vi) e a
objeção democrática (seguiremos, de perto, o nosso estudo em Botelho,
2015, pp. 380-4).
À cabeça, “o desafio da não existência” invoca que, se os direitos
têm de ser atribuídos a alguém, por essa mesma razão não tem sentido
invocar direitos de pessoas futuras, porquanto estariam sempre condi‑
cionados à existência do seu titular (Beckerman & Pasek, 2001, p. 18;
Earl, 2011, pp. 61-2). Os defensores desta objeção alertam para uma
confusão funcional ao se posicionarem as gerações presentes e as gerações
futuras no mesmo plano de equilíbrio, como se de dois sujeitos jurídicos
se tratassem: as gerações atuais (existentes) e as gerações futuras (que
apenas existem em potência) (Luciani, 2008, p. 426).
Numa tentativa de contornar este obstáculo, Axel Gosseries prog‑
nostica, sotto voce, a existência de direitos das gerações futuras (Gos‑
series, 2008b, p. 450). Em consonância com esta linha de pensamento
e se o futuro é, no fundo, um prolongamento do presente, então seria
juridicamente viável exercerem-se direitos (presentes) que não possuam
titulares (presentes) (para Bruhl, 2002, p. 403, esta é uma situação em
que devemos pensar em deveres sem titulares de direitos). Nesta esteira,
202 CATARINA SANTOS BOTELHO
uma via discursiva possível é aquela que propõe uma teoria de “direitos
futuros condicionais”, isto é, condicionados à existência do seu titular,
e acionado com “ações coletivas” antecipadas, nos quais os titulares
de direitos futuros são representados por atores presentes (Gosseries,
2008a, pp. 31-2; Bifulco & D’Aloia, 2008, p. XVII).
Em segundo lugar, o “problema da falta de identidade” diz respeito
a saber como podemos responsabilizar a geração presente (G2) pelos
danos causados à geração futura (G3), quando os atos lesivos foram
causados pela geração antecedente (G1). A título de exemplo, determi‑
nadas opções ambientais poderão ter consequências desastrosas somente
passadas várias décadas. Perante um intrigante contexto de “paradoxo
do indivíduo futuro”, alguma doutrina tem alertado para a possibilidade
de “graves contradições lógicas”, caso esta tese dos bens jurídicos não
titulados seja adotada (Kavka, 1982, pp. 93-112, Luciani, 2008, p. 440,
& Macklin, 1981, pp. 151-7. No ordenamento jurídico português, alguma
doutrina tem recomendado cautela quanto a uma suposta refundação da
responsabilidade civil num “mecanismo de ressarcimento de danos futuros
e difusos”, visto que a presença do dano “continua a ser imprescindível
para que o mecanismo ressarcitório atue”. Cf., a propósito, Barbosa,
2012, pp. 132-3. Na doutrina estrangeira, cf. Kumar, 2003, pp. 99-118).
As pessoas futuras poderão ser prejudicadas pelas nossas ações,
no sentido de estas terem um efeito pernicioso não apenas nas suas
condições de vida, mas também – e aqui reside o maior problema – na
determinação daquilo que essas mesmas pessoas serão (Parfit, 1984,
pp. 351-447). Neste cenário, é a própria identidade das gerações futuras
que resulta comprometida. A pergunta a fazer é a seguinte: como se
poderá violar os direitos de toda pessoas que se prevê que venham a
existir mas que, de facto, ainda não existem?
Numa tentativa de circundar esta objeção, tem-se defendido que as
obrigações das gerações presentes serão apenas relativamente às gera‑
ções futuras imediatas, ou seja, aquelas que se sobrepõem à nossa atual
geração (é o caso dos filhos, netos e, muito eventualmente, bisnetos).
Dever-se-ia então aplicar, neste domínio, uma lógica de “desconto
temporal decrescente” das decisões tomadas pelas gerações presentes,
no sentido de a responsabilidade para com as gerações futuras diminuir
em modo proporcional à distância do tempo. De acordo com esta astuta
construção doutrinal, a possibilidade de uma “estratégia de ajustamento
retroativo” – que não afetará a identidade das gerações posteriores –
resulta precisamente do facto de (algumas) gerações se poderem sobrepor
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 203
temporalmente, donde se retira que será viável, por exemplo, responsa‑
bilizar a geração anterior por ter consumido de forma irresponsável os
recursos naturais disponíveis (Farber, 2003, pp. 289-335; Gosseries,
2004, pp. 99-100; Palombella, 2008, p. 6).
Em terceiro lugar, terá sempre de perguntar-se: direitos contra
quem? Com efeito, a contradita dos “direitos não acionáveis” alerta
que o exercício dos direitos futuros chegará tarde demais e, quando for
altura de acionar os tribunais, perderá o seu efeito útil. Nesta sede, há
quem opte por falar na existência de direitos “morais” e não de genuí‑
nos direitos jurídicos, sendo que apenas os últimos serão coercíveis e
exigíveis judicialmente (Bruhl, 2002, p. 409; Gosseries, 2004, p. 51).
Por seu turno, Gianluigi Palombella lança um desafio acutilante:
qual a razão de as gerações futuras estarem amarradas ao cumprimento
de regras ditadas por “um povo de mortos”? O Autor questiona se fará
sentido uma “intervenção unilateral sobre as gerações futuras” e se não
deverá vigorar, pelo contrário, um princípio da disponibilidade do próprio
presente e um princípio da indisponibilidade do futuro (Palombella,
2008, p. 24). Sustentada nestes argumentos, alguma doutrina considera
que “não se tem de prestar contas, juridicamente, ao futuro”, defen‑
dendo a “opção dos direitos atuais de pessoas atuais” (Gosseries, 2004,
p. 454; Luciani, 2008, p. 441). Como crítica a este entendimento, há
quem contraponha precisamente que a impossibilidade de os indivíduos
futuros votaram é um “problema estrutural da democracia” (Tremmel,
2006b, p. 32).
No seguimento da objeção anterior, o princípio democrático parece
conflituar com a noção de justiça intergeracional. Em boa verdade, só
com muita ingenuidade podemos esperar que os políticos atuem no
interesse das gerações futuras com o mesmo empenho que agem para
com seu eleitorado atual. Por isso, não surpreende que os interesses das
gerações futuras acabem por ser negligenciados, também em termos
políticos (Tremmel, 2006b, p. 32-3).
Para concluir as reflexões antecedentes, julgamos importante acrescen‑
tar, em jeito de contra-argumentação, que o objeto da tutela intergeracional
não se modifica totalmente com o tempo, uma vez que existe um fio
condutor que perpassa o cerne das necessidades humanas ao longo das
sucessivas gerações. De tudo o que até aqui se foi afirmando, resulta,
com uma vítrea clareza, que raramente estamos a falar de atos isolados
de uma geração, mas, ao invés, de um continuum que acompanha, em
maior ou menor dimensão, várias gerações (Botelho, 2015, p. 384).
204 CATARINA SANTOS BOTELHO
3.2. (As)sinalagmaticidade geracional, no terreno da ficção ou da
aporia geracional
Na sequência do que foi exposto, importa agora concretizar alguns
dos aspetos da temática da dependência geracional. O conceito da
equidade geracional pode ser encarado de duas perspetivas: (i) intra-
temporal, ou seja, dentro do mesmo ciclo de vida geracional; (ii) ou
então, numa visão intertemporal, que se estenderá no tempo, sendo, por
conseguinte, a longo prazo (Börsch-Supan, 2003, pp. 221-6; Kluth,
2009, pp. 246-89].
A ideia de “Constituição como um pacto de geracional” ou como
“contrato geracional” assenta numa lógica de confiança (fiducia)
(Bifulco, 2003, p. 173). Uma significativa parte da doutrina – e na
esteira das objeções da não identidade e da não existência, que atrás
referimos – entende que a ideia do pacto geracional, ainda que possa
exercer um certo “fascínio sobre o plano ético”, acaba por ter pouca ou
nenhuma sustentabilidade jurídica, uma vez que assenta numa conceção
de dois interlocutores que nunca coincidirão temporalmente (Spadaro,
2008, p. 104).
Argumentando que “qualquer teoria coerente de justiça implica conferir
direitos ao povo”, há quem não consiga vislumbrar como os interesses
das gerações futuras possam ser protegidos no contexto de uma teoria
de justiça (Beckerman, 2006, pp. 53-4). A propósito, Antonino Spadaro
rejeita a figura do pacto intergeracional entre dois sujeitos coletivos e,
com uma boa dose de humor, alerta para o perigo latente de se incor‑
rer numa espécie de “curto-circuito lógico-temporal” (Spadaro, 2008,
p. 104). Concomitantemente, limita-se a reconhecer a existência de “
um vínculo jurídico unilateral” ou de um “compromisso” unilateral da
parte da geração atual (G2) para com a geração futura (G3) (Spadaro,
2008, p. 104). Uma tal sincronia apenas seria plausível na relação entre
as gerações mais imediatas, isto é, pais-filhos-netos, ao jeito de um
“horizonte de empatia limitado” (Birnbacher, 2006, p. 12).
Nesta hipótese de sobreposição geracional, há quem, inclusive, opte
por não se referir a uma sucessão de gerações, mas sim a uma única
geração, ou seja, a uma justiça “intrageracional” em vez de uma jus‑
tiça “intergeracional” (Spadaro, 2008, p. 104). Uma vez que é difícil
identificar uma relação de sinalagmaticidade entre ambas as gerações,
alguma doutrina propôs o conceito de “sinalagmaticidade subjetivamente
assimétrica”, segundo o qual a G2 teria obrigações para a G3 na mesma
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 205
medida que recebeu benefícios que estiveram a cargo da G1 (sublinhado
nosso) (Bifulco & D’Aloia, 2008, p. XVII).
Se nos detivermos, como a maioria da doutrina faz, no domínio redutor
de um conceito estrito de relação sinalagmática, então a pergunta a fazer
será sempre a seguinte: o que poderão as gerações futuras oferecer às
gerações presentes? Ressalvamos que esta não é, como poderia parecer,
uma mera pergunta retórica.
Nesta esteira, há quem contraponha, a nosso ver com alguma justiça,
que a proteção das gerações futuras começa com a proteção genuína das
gerações presentes e dos seus direitos fundamentais (Beckerman, 2006,
p. 66; Martins, 2016, p. 374, nt. 1631). Com realismo, dir-se-á que a
ideia de as gerações presentes tutelarem as futuras é plausível, mas a
de as gerações futuras serem responsáveis pelos comportamentos das
gerações passadas já não é tão transparente nem consensual.
A pergunta permanece a mesma: de que forma cumprirão as gerações
futuras a ‘sua parte’? Como tentativa de resposta, há quem adiante que
as gerações futuras poderão honrar, com dignidade e estima, as gerações
passadas, cuidando da sua memória, num gesto de “reconhecimento
e gratidão retrospetiva” (Birnbacher, 2006, p. 10). Nesta sede, por
exemplo, poderão erigir museus, estátuas, ou outro tipo de obras de
homenagem e de reconhecimento dos antepassados mais marcantes da
sua geração.
3.3. Caso de amore verso i lontani?
Segundo alguma doutrina, uma teoria de justiça que integre as gerações
futuras alicerça-se em pilares duvidosos de uma estirpe de “paternalismo
ético”, uma vez que pretende disciplinar situações jurídicas de forma
antecipada e sem o consentimento dos diretamente interessados (Rimoli,
2006, pp. 527 et seq.). Tratar-se-ia, portanto, de uma certa “imposição”
das nossas mundividências aos nossos descendentes, numa espécie de
versão ontológica do mais básico instinto da conservação da espécie.
Desvenda-se, por conseguinte, um fenómeno psicológico de “amor ao
que aí vem” (amore verso i lontani), que se externaliza em manifestações
de altruísmo/heterocentrismo (Spadaro, 2008, p. 77).
A doutrina vislumbra aqui justificações “morais ou quasi-morais”
de compaixão, generosidade e solidariedade pela continuidade da vida
humana (Birnbacher & Shicha, 2001, pp. 20-2; Birnbacher, 2006,
p. 8). A cadeia da vida é um “sentimento histórico”, que nos inunda
206 CATARINA SANTOS BOTELHO
de empatia pelos nossos descendentes (Hartmann, 1981, pp. 305-8;
Palombella, 2008, p. 3). Richard A. Epstein refere igualmente a exis‑
tência de uma “conexão genética” que induz a proteger as gerações
futuras (1992, p. 89). É aquilo a que se designou, no mundo da Biologia,
como o “gene egoísta” tendente à preservação e continuidade da espécie
humana (assim, a teoria do biólogo evolucionista Richard Dawkins,
The Selfish Gene, 1989, pp. 19-20, citada em Palombella, 2008, p. 5).
Na década de 80 do século passado, John Passmore defendeu a ideia
de uma “corrente de amor” como fundamento das preocupações éticas
para com as gerações futuras, e que se traduz no sentimento de união
e continuidade entre pais, filhos, netos, almejando sempre o seu bem‑
-estar e sucesso (Man’s responsibility for nature – Ecological problems
and western traditions, 1980, p. 88, apud Birnbacher, 2006, p. 12).
Parece-nos, todavia, que este desígnio de cuidar das gerações futuras
não é exclusivo do horizonte temporal pais-filhos-netos, nem tal faria
sentido. Todo o ser humano possui um sentimento de pertença a um
grupo, a uma comunidade, sentimento este que se desenvolve desde
criança, se agudiza na adolescência e toma maturidade na vida adulta
(Care, 1982, p. 207; Botelho, 2015, pp. 393-4).
Quanto a este aspeto, afigura-se-nos importante fazer duas precisões:
(i) os laços de empatia não são exclusivos dos progenitores em relação
à sua descendência, como se o “amor ao que aí vem” fosse uma espécie
de qualidade moral superior daqueles que possuem descendência; (ii)
os progenitores irradiam um horizonte de empatia apenas em relação
aos seus descendentes, mas sim, como resulta óbvio, têm igualmente
outros laços de empatia com aquilo que os une aos demais seres huma‑
nos, seja, v.g., a pertença ou afinidade relativamente a uma determinada
religião, a uma mundividência, a uma ideologia, a uma profissão, a uma
nacionalidade, entre outros fatores.
4.
A tutela efetiva das gerações futuras num universo político-
-jurídico obcecado pelo presente
Desde logo, importa salvaguardar que nem toda a doutrina entende ser
necessária a criação de mecanismos específicos para tutelar as gerações
futuras, porquanto os seus direitos seriam “o prolongamento” natural
dos direitos das gerações atuais (Silva, 2010, p. 502). Nesta sede, seria
então de aproveitar as potencialidades dos institutos já existentes de
tutela dos direitos fundamentais, tais como o instituto do Provedor de
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 207
Justiça, cuja esfera de competência não se deverá confinar à tutela das
gerações presentes (Silva, 2010, p. 503).
De jure condendo, são vários os mecanismos que têm vindo a ser
propostos para uma efetiva tutela das gerações futuras. Uma solução
que nos parece interessante, ainda que de índole política, seria incen‑
tivar os partidos com assento parlamentar a indicarem, nas suas listas
eleitorais, um certo número de candidatos a deputados mais jovens, que
posam representar realisticamente as gerações mais novas (Botelho,
2015, p. 415).
Uma problemática que se coloca relativamente à capacidade eleito‑
ral ativa relaciona-se com o facto de o eleitor – “demos-participante”
– e o destinatário dos atos jurídico-públicos – “demos-destinatário-de‑
-decisões” – não coincidirem totalmente (Campos, 2015, pp. 137-8).
Para contornar esta falta de coincidência temporal, há quem defenda
a positivação de um direito eleitoral familiar. Um caminho possível
seria o de permitir aos progenitores representarem os interesses dos
seus filhos, por exemplo, atribuindo-lhes um voto adicional pelos seus
filhos (independentemente do número de filhos). Esta ideia, ainda que
possa parecer uma boa solução, não deixará de esbarrar com vários
obstáculos, que se prendem, desde logo, quanto a uma possível discor‑
dância dos próprios progenitores quanto ao sentido/orientação do voto
em representação dos seus descendentes. Uma outra opção seria a de
atribuir o direito de voto aos próprios menores, ultrapassando destarte
a ideia da maioridade como condição de legitimidade eleitoral ativa
(Cohen, 1981, pp. 47-50; Löw, 1993, pp. 25-8; Hattenhauer, 1996,
pp. 9-16; Merk, 1997, pp. 260-79; Zivier, 1999, pp. 156-60. Recusando
expressamente esta possibilidade, Vetterling-Braggin, 1983, pp. 42-6;
Münch, 1995, pp. 3165-6).
Uma via que se nos afigura de elevado potencial é a da criação de
uma instituição específica para a defesa dos interesses das gerações
futuras (Caspar, 2001, pp. 90-1). Esta ideia poderá materializar-se
de diferentes formas. Assim, aproveitando as experiências de Direito
Constitucional Comparado (sobre a importância do Direito Comparado
no domínio constitucional, cf. Botelho, 2011, pp. 53-106, & Ramires,
2016), salientamos algumas propostas: (i) opção por um “lugar reservado”
no Parlamento exclusivamente dedicado à discussão e votação dos atos
legislativos de uma perspetiva da tutela dos interesses das gerações futu‑
ras (Gosseries, 2004, p. 29); (ii) a criação de um órgão administrativo
especializado ou de um defensor cívico/ombudsman, ao jeito húngaro
208 CATARINA SANTOS BOTELHO
(Göpel, 2010, pp. 3-10. Para uma exemplificação do modelo húngaro,
cf. Jávor, 2006, pp. 282-98, & Tóth, 2010, pp. 18-24); (iii) ou, como
sucede em Israel, por um comissário diretamente associado a uma das
câmaras parlamentares (modelo Knesset), entre outras hipóteses (Sho‑
ham & Lamay, 2006, pp. 244-81). Um tal defensor teria vários direitos,
entre estes, os direitos de ser ouvido e de participar em decisões atintes
a esta temática, assim como a realização de avaliações sobre o impacto
futuro (Gosseries, 2004, p. 30).
Outra sugestão foi a da adequação do nível de contribuição para a
reforma com base no número de filhos, beneficiando os contribuintes
proporcionalmente ao número de filhos (Gosseries, 2004, p. 30). Uma
tal medida justificar-se-ia com o intuito de contribuir para a susten‑
tabilidade do sistema, porém e como não poderia deixar de ser, pode
ser alvo de algumas objeções: e quem optar por não ter descendência?
E quem não puder, querendo, ter descendência? E quem garante que
esses filhos terão emprego futuramente e contribuirão ativamente para
a sustentabilidade do sistema? (Botelho, 2015, p. 415)
As sugestões que foram apontadas poderão, em maior ou menor
medida, lograr implementação efetiva na generalidade dos sistemas
jurídicos, se houver vontade político-legislativa para tal (Barry, 2004,
p. 116). No entanto, e sem pretender retirar o mérito à generalidade das
propostas, a verdade é que as soluções apresentadas oferecem somente
mecanismos de tutela de curta duração, tutelando apenas as gerações
futuras próximas ou imediatas.
Com efeito, se “a Terra pertence aos que nela vivem” (a conhecida
afirmação de Thomas Jefferson, apud Schröder, 2011, p. 321, remonta
ao século xviii. Thomas Jefferson adiantou um prazo de dezanove anos,
por entender ser este o horizonte temporal correspondente a cada gera‑
ção), não é de surpreender o endógeno presentismo que caracteriza as
leis democraticamente aprovadas e que tende a favorecer as gerações
presentes, em detrimento das gerações futuras (Thompson, 2007, p. 13;
Bifulco & D’Aloia, 2008, p. XIX; Silva, 2010, p. 461; Botelho,
2015, p. 416). Como já escrevemos, “a indispensabilidade de agradar
ao eleitorado pressiona os políticos a raciocinarem sincronicamente e
a direcionarem os seus esforços para a satisfação das necessidades do
seu eleitorado – que não são as gerações futuras próximas ou remotas,
mas sim aqueles que possuem capacidade eleitoral ativa. Parece, pois,
que um dos calcanhares de Aquiles do sistema democrático é a rejeição
de uma lógica diacrónica, revelando uma excessiva preocupação com
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 209
o tempo presente e negligenciando aquilo que está para vir” (Botelho,
2015, p. 509).
A ser assim, somos forçados a concluir que estamos perante uma
característica intrínseca à democracia, que é o facto de esta ser pro
tempore e visar a renovação, a possibilidade de mudança e o arejamento
de ideias e de políticas (Botelho, 2015, p. 416). Talvez um caminho
a percorrer seja aquele que perspetiva o “Direito para o futuro” como
um “processo de atualização” dos pilares estruturais da atuação dos
poderes públicos, da “cultura jurídica” e da “racionalidade democrática”
(Bifulco & D’Aloia, 2008, p. XI).
5. Notas Finais: o difícil equilíbrio entre um défice e um excesso
de tutela
Como lembra Manuel Afonso Vaz, as gerações futuras não poderão
“ver a sua vida totalmente condicionada pela falta de generosidade das
gerações presentes” (2015a, p. 172). Concordamos com as palavras de
Jorge Pereira da Silva quando defende que os direitos fundamentais
“incorporam como limites (imanentes), se não mesmo como restrições”,
a responsabilidade da geração atual pela geração futura, no sentido
de os direitos das gerações presentes terminarem onde “o seu exer‑
cício irrestrito (ou abusivo)” perigue os direitos das gerações futuras
(Silva, 2010, p. 490). Repleta de clarividência é também, a nosso ver,
a conclusão de André Santos Campos, no sentido de não ser necessária
uma justificação ética “sobre a intertemporalidade da justiça e os seus
conteúdos (deônticos ou não) para justificar a premência de constrangi‑
mentos e responsabilidades por parte das gerações presentes em relação
às gerações futuras” (Campos, 2015, p. 144).
Relativamente ao conceito geracional, pensamos que poderemos
estabelecer uma classificação atinente à relação entre a geração e a sua
capacidade de participação política. Nestes termos, poderemos tripartir
as gerações entre: (i) geração participativa, que é a geração que possui
capacidade eleitoral ativa, ou seja, a geração que vota e que tem uma
palavra a dizer sobre o destino político do seu Estado; (ii) geração
quasi-participativa, sendo esta geração aquela que já nasceu e que, em
breve, adquirirá o direito a votar; (iii) geração não participativa, que
integra então as gerações vindouras, não nascidas.
Neste domínio, parece-nos importante a consideração de que o nosso
legado às gerações futuras não deverá ser propriamente, como defendia
210 CATARINA SANTOS BOTELHO
James Madison, uma transmissão de instituições políticas e jurídicas
que nós entendemos como válidas ou como ideais (apud Campos, 2015,
p. 123), mas outrossim, a possibilidade de as gerações futuras poderem
ter as contingências sociais e ambientais que lhes permitam escolher
livremente as instituições políticas e jurídicas que elas entendam como
viáveis. Cumpre, por conseguinte, tentar evitar a sedutora teia do pater-
nalismo geracional, que está umbilicalmente associada a uma – mais do
que compreensível e, de um certo ponto de vista, até desejável – empatia
pelas gerações futuras.
Como vimos, o reconhecimento ou a mera consagração normativa
dos direitos das gerações futuras não é suficiente para a sua tutela,
tanto mais que a generalidade dos Estados não tutela expressamente
as gerações futuras no seu texto constitucional e, quando o faz, opta
pelas disposições preambulares ou por normas (ou pseudonormas) de
densidade normativa mínima – para não dizer meramente proclamató‑
ria. O que a nosso ver é incontornável é a verificação da existência de
uma “assimetria nas relações de poder” entre as gerações presentes e
as gerações futuras” (Campos, 2015, p. 134). Trata-se de uma temática
que pertence ainda demasiadamente ao domínio da discussão política
e que carece de tentativas dogmáticas de definição do conteúdo de tais
direitos (Gosseries, 2004, p. 31).
Quanto a nós, o conceito de direitos subjetivos das gerações futuras,
quando interpretado stricto sensu – isto é, como direitos judicialmente
acionáveis – afigura-se demasiado ambicioso para o atual estádio de
desenvolvimento da própria teoria de justiça intergeracional. Por tais
razões, serão necessárias uma maior elasticidade e uma acrescida plas-
ticidade na conceptualização teórica da proteção das gerações futuras.
É um lugar-comum afirmar-se que a verdadeira essência de um direito
é a de ser atribuída proteção imediata por um tribunal (Bogdandy,
1997, p. 1316). Compreendemos que este seja, muito provavelmente,
uma via privilegiada de tutela de direitos. Não obstante, o conceito de
justiciabilidade, ainda que abarque a suscetibilidade de uma questão
ser apresentada em tribunal, é mais amplo do que isso e não se esgota
nessa possibilidade (Marshall, 1961, pp. 267-8; Akandji-Kombé, 2013,
p. 493; Botelho, 2016, pp. 205-16). Assim, um direito não perde a sua
fundamentalidade por possuir apenas uma dimensão objetiva, que opere
como “princípio basilar e inderrogável do pacto constitucional no todo”
(Bifulco & D’Aloia, 2008, p. XVII).
A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS GERAÇÕES FUTURAS 211
Num jeito de súmula e como tivemos oportunidade de elucidar, as
principais dificuldades que esta temática apresenta são as seguintes: (i)
saber se fará sentido uma teoria de justiça intergeracional; (ii) quais as
características concretas dessa justiça, cujos contornos estarão perene‑
mente enevoados pela ausência de contemporaneidade entre as gerações;
(iii) definida a teoria de justiça a adotar, descortinar o papel que se
deverá reservar ao Direito e aos operadores jurídicos.
A nosso ver, independentemente da teoria de justiça e, em concreto,
dos mecanismos de tutela geracional a que se adiram, não se deverá
cair na tentação das redutoras lógicas binárias do tudo ou nada. Por
conseguinte e nesta sede, identificamos dois riscos verosímeis: o de um
défice de tutela e o de um excesso de tutela. Como vimos, um défice de
tutela poderá lesar as gerações futuras em vários aspetos – qualidade
de vida, de ambiente, etc. – além de poder impedir, no limite, o próprio
surgimento físico de posteriores gerações.
Por sua vez, uma situação de excesso de tutela poderá condicionar
as gerações futuras de forma inaceitável, criando-lhes amarras de tal
forma pesadas que lhes seja retirada a sua autodeterminação. No domínio
da justiça intergeracional a Constituição assume um papel inestimável,
tendo como missão impedir a “ditadura de uma geração” (Schröder,
2011, p. 325). Ainda que não diretamente sobre este tema específico,
mas atinente àquilo que é e legítimo impor-se às gerações futuras, veja‑
-se o debate da revisão constitucional de 1982, no qual, acerca de uma
eventual reformulação do então artigo 290.º (atual 288.º), o Deputado
Costa Andrade alertou para os perigos de um “narcisismo dos consti‑
tuintes” e manifestou que, v.g., o princípio da apropriação coletiva não
deverá nunca constar dos limites à revisão, por ser “uma violência, que
nós, geração atual, não podemos impor às gerações futuras, por falta de
legitimidade” (DAR, 1.ª Série, n.º 129, 29.07.1982, pp. 5426-9).
A terminar, reiteramos a nossa convicção de que seria importante
alterar o texto constitucional português e nele consagrar, de forma
cristalina, a tutela das gerações futuras. Como mencionámos atrás, uma
possível solução seria acrescentar à alínea b) ou à alínea d) do artigo
9.º, como tarefa fundamental do Estado, a garantia dos direitos “das
gerações presentes e futuras”. Uma outra alternativa, que atestaria um
compromisso acrescido nesta temática, seria aditar uma alínea ao artigo
9.º (passaria a ser a nova alínea i) do artigo 9.º), consagrando como tarefa
fundamental do Estado a “proteção dos interesses das gerações futuras”.
212 CATARINA SANTOS BOTELHO
Prognosticamos que uma tal revisão constitucional, independente‑
mente dos seus contornos concretos, teria o inestimável mérito de, por
fim, deslocar a temática da proteção das gerações futuras de corajosas
(e pontuais) declarações de voto para o terreno firme do corpo/texto
principal dos acórdãos do Tribunal Constitucional e da demais jurisdi‑
ção ordinária.
Bibliografia referenciada
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Jean-François Akandji-Kombé, Bruxelas: Bruylant, pp. 475-503
Alexandrino, 2006. José Melo Alexandrino, A Estruturação do Sistema de Direitos,
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III.
Políticas Públicas
A Dívida Pública como Problema Intergeracional
J. Albano Santos
Ensaio sobre a Solidariedade Intergeracional
e sua Incidência na Despesa Pública
Maria d’Oliveira Martins
Breves Noções de Sustentabilidade Ecológica
Bruno Pinto
Precaução e Proteção do Ambiente:
Da Incerteza à Condicionalidade
Carla Amado Gomes
A Sustentabilidade da Segurança Social
Nazaré Costa Cabral
Demografia, Migrações e Sustentabilidade
Intergeracional
Gonçalo Saraiva Matias
Justiça Intergeracional e Mercado de Trabalho:
Apontamentos para uma Aproximação Juslaboral
António Nunes de Carvalho
A Dívida Pública
como Problema Intergeracional
J. Albano Santos*
1. O quadro intergeracional: uma introdução
A ideia de que as sucessivas gerações não constituem fenómenos
estanques entre si, para além de muito antiga, é transversal a diversas
culturas – bem se pode dizer que «é um valor universal partilhado pela
humanidade»1. Mais do que isso, manifesta-se recorrentemente o enten‑
dimento de que os laços que, pela natureza das coisas, se estabelecem
entre as diversas gerações envolvem um conjunto de direitos e de deveres
recíprocos – de tal modo que o político e filósofo britânico Edmund Burke
(1729-1797) não hesitou em afirmar que «a Sociedade é, realmente, um
contrato, […] uma parceria, não apenas entre aqueles que vivem atual‑
mente, mas entre estes, aqueles que estão mortos e aqueles que hão de
nascer» (Burke, 1790)2. No que toca à existência de deveres para com
os antepassados, a Antropologia ensina que «um dos primeiros grupos de
seres com os quais os homens tiveram de contratar, e que por definição
estavam lá para contratar com eles, eram antes de mais os espíritos dos
mortos e dos deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das
coisas e dos bens do mundo. Era com eles que era mais necessário trocar
e mais perigoso não trocar» (Mauss, 1950). Desta crença resultavam,
* Economista pelo ISEG (1973). Professor Auxiliar Convidado do ISCSP e do
ISEG nas áreas da Economia Pública e das Finanças Públicas. Controlador Financeiro
do Ministério da Saúde. Secretário-Geral do Ministério das Obras Públicas. Adjunto do
Ministro da República para a R. A. dos Açores. Adjunto do Ministro das Finanças. Dos
trabalhos publicados destacam-se Finanças Públicas (INA Editora, 2.ª edição, 2016),
Economia Pública (Coleção Manuais Pedagógicos, ISCSP, 2.ª edição, 2012) e Teoria
Fiscal (Coleção Manuais Pedagógicos, ISCSP, 2.ª edição, 2013).
1
Cf. Intergenerational Solidarity and the Needs of Future Generations, relatório da
Assembleia-Geral da ONU (A/68/100), 5 de agosto de 2013.
2
No dizer do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002), «os membros
das diferentes gerações têm deveres e obrigações uns para com os outros, tal como os
contemporâneos face aos seus» (Rawls, 1971).
222 J. ALBANO SANTOS
aliás, normas de conduta a observar por parte dos vivos – nas antigas
culturas indo-europeias, os mortos eram tidos como seres divinos, mas,
para que pudessem gozar de uma existência bem-aventurada, impunha-se
o respeito por «uma condição indispensável à sua felicidade; era preciso
que nos tempos próprios os vivos lhes trouxessem as suas oferendas»
(Coulanges, 1888)3.
O alcance da influência que, neste contexto, os antepassados são
supostos exercer no comportamento dos homens foi, entretanto, bem
vincado, ainda que num registo diferente, pelo filósofo francês Auguste
Comte (1798-1857). Tomando a Humanidade, não como uma espécie
biológica, mas como uma entidade moral que qualificava como um «ser
imenso e eterno que se compõe muito mais de mortos do que de vivos»
(Comte, 1848), o fundador do positivismo era levado a afirmar que «os
vivos são sempre, e cada vez mais, governados necessariamente pelos
mortos: é esta a lei fundamental da ordem humana» (Comte, 1852).
Perante esta tese, abre-se um espaço onde, no limite, é possível falar
na perspetiva de uma tirania dos mortos (Gosseries, 2004). Mas ainda
que se rejeite tal hipótese extrema, parece razoável admitir que, mesmo
em sociedades relativamente secularizadas, subsiste um sentimento muito
divulgado de que «os deveres para com os mortos estão entre as mais
firmes das obrigações morais, pelo menos quando se trata de mortos que
nos são relativamente próximos» (Gosseries, 2004)4 – sendo certo que a
generalidade destas obrigações tem uma clara incidência económica (v.g.,
construção e manutenção de monumentos, celebrações comemorativas).
3
Perfilava-se, assim, o que Fustel de Coulanges (1830-1889) designa por uma «troca
perpétua de bons serviços», através da qual «o antepassado recebia dos seus descenden‑
tes a série de repastos fúnebres» indispensáveis à sua segunda vida e cada descendente
recebia dos seus antepassados «o auxílio e toda a força de que necessitava» (ibidem).
Refira-se que a crença na necessidade de proporcionar alimentos aos mortos persistiu
durante muito tempo. Alguns escritores da Antiguidade Greco-Latina ainda a refletem
claramente, como ilustra o caso de Eurípedes (480-406 a. C.) que coloca na boca de
Ifigénia as seguintes palavras: «Verto sobre a terra do túmulo o leite, o mel, o vinho,
porque é com isto que os mortos sentem prazer» – cf. Ifigénia entre os Tauros, 157.
4
Este entendimento tem raízes filosóficas distantes: Aristóteles, por exemplo, já
afirma que «num certo sentido, parece haver para um morto males e bens, tal como os
há para um vivo, mesmo que aquele não tenha consciência disso. É, por exemplo, o caso
das honras e das desonras, das boas ações praticadas e das desventuras que acontecem
aos seus filhos e, de um modo geral, aos seus descendentes» – cf. Ética a Nicómaco,
Livro I, IX, 1100a.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 223
Na base destas obrigações para com os antepassados destaca-se,
entretanto, a dívida que cada geração presente tem para com eles – de
tal modo elevada que Montesquieu (1689-1755), reportando-se à Pátria,
afirma que «ao nascer, contrai-se para com ela uma dívida imensa que
nunca se pode pagar» (Montesquieu, 1748). No dizer do estadista
francês Léon Bourgeois (1851-1925), Prémio Nobel da Paz (1920), «o
imenso reservatório de utilidades acumuladas pela humanidade» de que
desfrutamos constitui uma «dívida para com todos os mortos que deixa‑
ram essa herança, para com todos aqueles cujo trabalho transformou a
terra rude e desabrigada dos primeiros tempos num imenso campo fértil,
numa fábrica criadora» (Bourgeois, 1896).
Ora, a humanidade anterior não reuniu este tesouro para uma dada
geração ou para um grupo específico de homens: «é para todos aqueles
que serão chamados à vida que todos aqueles que estão mortos criaram
este capital de ideias, de forças e de utilidades. É, pois, a todos aqueles
que virão depois de nós que recebemos dos antepassados o encargo de
pagar a dívida; é um legado de todo o passado a todo o futuro. Cada
geração que passa só pode considerar-se, verdadeiramente, como sendo
usufrutuária5, está apenas investida no encargo de o conservar e de o
restituir fielmente» (Bourgeois, 1896).
O Autor retoma, aqui, o entendimento do filósofo francês François
Huet (1814-1869), segundo o qual «quando a mão liberal da Providência
confiou aos nossos primeiros pais um solo fértil com todas as espécies
de recursos naturais, não foi para devorarem esterilmente um capital tão
rico e desaparecerem depois de uma terra devastada, levando consigo
o futuro da humanidade. Receberam esse belo património para eles e
para os seus descendentes». Assim, «a mais simples equidade exige
que cada homem deixe depois de si, para uso dos seus sucessores, pelo
menos o equivalente ao que recebeu dos seus predecessores» (Huet,
1853, itálico nosso).
Não basta, pois, conservar este legado, uma vez que, olhando para
trás, vemos que cada época juntou alguma coisa ao capital recebido
das gerações anteriores. Assim, e ainda no dizer de Léon Bourgeois,
«qualquer homem, no momento a seguir ao seu nascimento, contrai [...]
a obrigação de concorrer, com o seu próprio esforço, não apenas para
5
De realçar que, mais de cem anos antes, Thomas Jefferson (1743-1826), antigo
presidente dos EUA, já tinha defendido que «a terra pertence em regime de usufruto aos
que vivem» – cf. carta de 6 de setembro de 1789 a James Madison, in Bergh, 1905.
224 J. ALBANO SANTOS
a manutenção da civilização da qual vai fazer parte, mas também para
o desenvolvimento futuro dessa civilização» (Bourgeois, 1896). Ou
seja: cada homem vivo deve às gerações seguintes, não só a herança
que recebeu das gerações passadas, como também o seu contributo para
engrandecer esse capital6.
Trata-se, aliás, de um capital multifacetado: para usar as palavras de
Abraham Lincoln (1809-1865), as «dádivas fundamentais» que rece‑
bemos das gerações anteriores vão do território que habitamos, com a
fertilidade do solo e a salubridade do clima, às instituições básicas da
Sociedade, nomeadamente o edifício político construído com base nos
valores essenciais da liberdade e da igualdade de direitos. Cabe-nos
«transmitir isto, o primeiro sem ser profanado pelos pés de um invasor,
o último preservado durante o tempo transcorrido e livre de usurpação,
até à última geração que o destino permitirá ao mundo conhecer»7.
No encadeamento de gerações perfilam-se, entretanto, fortes assimetrias
que se manifestam em vários planos. Por um lado, as ações da geração
presente têm impactes muito diferentes nas outras gerações: reduzido
quanto às anteriores, grande em relação à atual e potencialmente deci‑
sivo sobre as que viverão no futuro8; por outro lado, as gerações futuras,
pela própria natureza das coisas, não podem atuar sobre a geração pre‑
sente. Ora, desta capacidade assimétrica que as diferentes gerações têm
para se influenciar reciprocamente é possível retirar que qualquer ética
intergeracional que se queira estabelecer terá de ter contornos distintos
da ética intrageracional que, nos diferentes momentos, se aplica aos
contemporâneos.
O norte-americano Robert Solow, prémio Nobel da Economia (1987),
interroga-se porque é que nos devemos preocupar com a posteridade,
dado o facto inelutável de ela não fazer nada por nós. Encontra três argu‑
mentos para o efeito: [1] vivemos numa cultura orientada para o futuro
porque as culturas sem essa orientação têm uma baixa probabilidade
6
À luz desta ideia, percebe-se bem a afirmação do filósofo francês Jacques Derrida
(1930–2004) de que «[…] nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece
possível, pensável e justa, se não reconhecer no seu princípio o respeito por aqueles que
já não estão ou por aqueles que ainda não estão cá, presentemente vivos, tenham eles já
falecido ou não tenham ainda nascido» (Derrida, 1993).
7
Cf. The Perpetuation of Our Political Institutions, discurso perante o Young Men’s
Lyceum of Springfield, Illinois, em 27 de janeiro de 1838, in Basler, 1953.
8
Basta pensar que, dada a evolução tecnológica, a geração atual tem capacidade
para eliminar a vida na Terra.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 225
de sobreviverem por muito tempo9; [2] sentimos um dever para com
o futuro na medida em que estamos conscientes de termos uma dívida
para com o passado (sabemos bem que boa parte do nível de vida de que
desfrutamos resulta da herança que recebemos dos nossos antecessores);
e [3] preocupamo-nos com o futuro porque a natureza humana incita-nos
a cuidar do bem-estar dos nossos vindouros, máxime os nossos filhos e
netos (Solow, 1974).
Posto isto, é possível defender que, na sucessão de gerações, as mais
recentes são beneficiadas em relação a todas as anteriores, uma vez que,
pelo menos tendencialmente, desfrutam de melhores condições de vida,
dada a progressiva evolução do capital disponível. Daí que o escritor
russo Alexander Herzen (1812-1870) afirme que «o desenvolvimento
humano é uma forma de injustiça cronológica» uma vez que «os últimos
a chegar podem beneficiar do trabalho dos seus predecessores sem pagar
o mesmo preço»10 e o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804)
refira que «só as últimas gerações terão a sorte de habitar na mansão
em que uma longa série dos seus antepassados (talvez, decerto, sem
intenção sua) trabalhou, sem no entanto poderem partilhar da felicidade
que prepararam» (Kant, 1784).
Perante esta tese do benefício relativo das gerações futuras tem vindo
a avolumar-se, entretanto, um argumento de sentido oposto: a posteridade
está, pelo contrário, a ser gravemente penalizada pela geração atual. Na
base do florescimento desta ideia, destacam-se dois tópicos fundamen‑
tais – o ambiente e a dívida pública. O primeiro, decorre da evidente
degradação ecológica a que o planeta tem vindo a ser sujeito e que é
imperioso travar, sob pena de graves incidências na qualidade de vida
dos nossos vindouros ou, até, de extinção da espécie humana11. Devemos
cuidar do planeta, desde logo, porque ele não nos pertence: segundo um
9
Trata-se de um parecer de índole darwiniana: a preocupação com a sobrevivência
da espécie.
10
O filósofo materialista Nikolay Chernyshevsky (1828-1889) viria, entretanto, a
glosar esta ideia em termos sugestivos, ao defender que «a História gosta dos seus netos,
visto que lhes oferece o tutano dos ossos que as gerações anteriores feriram as mãos a
quebrar» – citações feitas pelo filósofo liberal Isaiah Berlin (1909-1997) na introdução
a Venturi, 1952.
11
De facto, já há quem defenda que «as espécies mais importantes que estão em
perigo de extinção não são a águia de cabeça branca ou algumas espécies de besouro
de que ainda há milhões de exemplares; é a raça humana» – cf. Wilfred Beckerman, in
Tremmel, 2006.
226 J. ALBANO SANTOS
celebrado provérbio, «não herdámos a Terra dos nossos antepassados,
foi-nos emprestada pelos nossos filhos»12.
Importa, aliás, não perder de vista que a questão ambiental assumiu
uma importância suficiente para levar o filósofo alemão Hans Jonas
(1903-1993) a perfilar um paradigma alternativo àquele que envolve
Kant e Rawls. Reconhecendo que «as possibilidades apocalípticas con‑
tidas na tecnologia moderna» implicam que a existência humana tenha
«um caráter precário, vulnerável e afastável», Jonas imputa ao Homem
a responsabilidade da sua preservação. Daí que justaponha ao imperativo
categórico de Kant13 uma nova fórmula, de alcance bem diferente: age
de tal maneira que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a per-
manência de uma vida autenticamente humana na Terra (Jonas, 1979).
Já quanto à dívida pública, a sua evocação como fator de injustiça no
contexto intergeracional tende a ser um fenómeno recorrente. Com efeito,
de há muito que, sempre que se verifica um crescimento acentuado desta
variável, surgem vozes preocupadas com as repercussões que isso irá trazer
para as gerações futuras. Ora, o mundo ocidental tem vindo a atravessar
um desses períodos, com a dívida pública a crescer de modo persistente
desde a década de 70 do século passado, com particular intensidade na
sequência da crise financeira de 2008. O gráfico da fig. 1 ilustra esta
dinâmica confrontando a evolução da dívida pública em Portugal, nos
países da Zona Euro e nos Estados Unidos da América.
Este crescimento continuado levou a dívida pública a passar, na média
dos países da Zona Euro, de cerca de 25% do PIB em 1970 para valores
da ordem dos 90% do PIB em 2015 – um aumento suficientemente intenso
e duradouro para justificar a ideia de transformação do chamado Estado
fiscal (Schumpeter, 1918) em Estado da dívida (Streeck, 2013). Na
sequência deste movimento, a generalidade dos países apresenta dívidas
públicas com valores historicamente elevados, como mostra o gráfico
da fig. 2. Portugal, uma das dívidas públicas mais elevadas no quadro
da Zona Euro, com valores próximos dos 130 por cento do PIB, é um
caso evidente desta realidade.
12
Este sugestivo aforismo mostra bem o caráter culturalmente transversal da ideia
que lhe subjaz: atente-se no facto de a sua origem ser disputada, nomeadamente, pelos
índios Sioux da América do Norte e pela tribo africana Kikuyu, do Quénia.
13
Que se pode expressar nos seguintes termos: age somente segundo uma máxima
tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal (Kant, 1785).
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 227
Fig. 1 – Evolução Comparada da Dívida Pública em Portugal, na Zona Euro
e nos EUA (1970-2015)14
Fig. 2 – O peso da Dívida Pública nos Países da Zona Euro, nos EUA
e no Japão (2015)15
14
Fonte: FMI, Historical Public Debt Database, exceto para os anos de 2013 a
2015 (inclusive), cujos valores foram retirados da base de dados AMECO. Importa ter
presente esta quebra de série.
15
Fonte: AMECO.
228 J. ALBANO SANTOS
Ora, como sempre acontece na sequência de períodos de forte aumento
da dívida pública, também neste caso o debate sobre as consequências
do crescimento desta variável, particularmente para as gerações futuras,
reacendeu-se no nosso País, tal como na generalidade dos países que
enfrentam uma realidade semelhante. Para que se possa avaliar o alcance
da polémica, interessa estabelecer uma breve análise dos argumentos
que, ao longo de séculos, têm vindo a ser trocados por ambos os lados
da barreira na histórica controvérsia da dívida pública. É o que se faz
no ponto seguinte.
2. A dívida pública: uma controvérsia antiga16
É normalmente entendido que a dívida pública, com os traços fun‑
damentais que hoje lhe conhecemos, remonta aos séculos xiv e xv nas
antigas cidades da Renascença Italiana (v.g., Florença, Génova, Veneza)17.
A partir de então, os governos da generalidade dos países europeus
passaram a recorrer, progressivamente, a este meio de financiamento,
de tal modo que, no último quartel do século xviii, já se proclamava,
numa obra de referência sobre Finanças Públicas, que «o mais singular
e importante traço político do tempo presente é, sem dúvida, a pesada
carga de dívidas públicas com que estão oneradas quase todas as nações
da Europa» (Sinclair, 1784)18.
O nosso País não escapa a este sentimento: basta ter presente que o
padre e escritor José Agostinho de Macedo (1761-1831) já se referia à
16
O texto seguinte retoma, na sua essência, o exposto em Santos, 2010.
17
Claro que o recurso ao crédito como meio de financiamento de despesas públicas
pode-se considerar uma realidade de todos os tempos. Todavia, só numa fase muito
adiantada da História se deve começar a falar, com propriedade, de crédito público e,
especialmente, de dívida pública. Com efeito, durante muito tempo, os empréstimos
obtidos pelas diversas espécies de monarcas estavam intimamente ligados ao crédito
pessoal ― sendo certo que, para merecer o qualificativo de pública, uma dívida «não
deve constar como pessoal, isto é, como obrigação de uma pessoa, seja ela príncipe ou
rei, mas sim de uma coletividade no seu conjunto, como seja uma cidade ou um estado»
– cf. Jean-Yves Grenier, Dettes d’État, Dette Publique, in Andreau et al. 2006.
18
O Prof. Henry Adams (1851-1921) referia, entretanto, que «é muito difícil perceber
este novo método de financiamento, porque fez o seu aparecimento ao mesmo tempo
que a riqueza crescia rapidamente. O mundo torna-se cada dia mais rico […] e contudo,
apesar da acrescida opulência, os governos mergulham na dívida» (Adams, 1887).
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 229
«enorme, enormíssima, e insolvível dívida pública» (Macedo, 1830)19 e
o lente coimbrão António Pereira Jardim (1821-1888) reclamava que «é
tal a tendência entre nós para contrahir empréstimos, que a mais pequena
parochia procura motivos e ensejo para tomar capital emprestado: há
exaggeração» (Jardim, 1872). Aliás, esta prática atingia tal dimensão
que a realidade anterior a 1880 já levava a afirmar que «um deficit
enorme ameaça toda a riqueza nacional», pois cresce «d’uma maneira
fabulosa» (Teixeira, 1882)20. Daí que a dívida pública fosse qualificada
como uma «traça roedora dos tesouros públicos da Europa e América»
e uma «pesada carga que definha os povos»21.
Ora, a entrada em cena do recurso aos empréstimos públicos como
prática corrente teve consequências de monta na generalidade dos países
– de tal modo que o estadista francês Charles D’Audiffret (1787-1878)
não hesitou em afirmar que «o advento do crédito público produziu
uma revolução não menos decisiva para o poder dos governos do que
a descoberta da pólvora de canhão para o dos instrumentos de guerra»
(D’Audiffret, 1840). O fenómeno, aliás, cedo começou a desencadear
controvérsia, desde logo porque se inscrevia num ambiente cultural
tradicionalmente hostil à prática de empréstimos com juros, os quais,
independentemente do seu valor, eram qualificados de usura.
De facto, aquela hostilidade já é recorrente no Antigo Testamento22
e Aristóteles reflete-a bem quando defende que «há razão para execrar
a usura» visto que «o juro é dinheiro produzido pelo próprio dinheiro;
e de todas as aquisições, é a mais contrária à natureza»23. Também os
chamados Doutores da Igreja adotam esta linha de pensamento ― basta
recordar que Santo Ambrósio (circa 340-397) interroga-se «o que é
19
Exclamava, aliás: «poderosa alavanca he esta nas mãos dos Arquimedes revo‑
lucionários, com ella querem mover a vasta máqina da Terra, e com ella sustentão as
revoluções» (ibidem).
20
A «epidemia de deficits» (Vieira, 1905) levou o Prof. Armindo Monteiro (1896-
-1955) a cunhar uma afirmação que, perto de cem anos depois, mantém uma notável
atualidade: «a história do deficit é a história das finanças portuguesas» (Monteiro, 1921).
21
Cf. O Panorama, n.º 210, 8 de maio de 1841.
22
Atente-se nas seguintes passagens: «se emprestares dinheiro a alguém do meu
povo, ao indigente que está contigo, não serás para ele como um usurário: não lhe
imporás juros» (Ex 22,24). Aquele que «empresta com usura e recebe juros» comete
um «crime abominável» e «seguramente, não viverá» (Ez 18,13). A Bíblia prescreve,
aliás, o perdão regular das dívidas: «de sete em sete anos, cumprirás a lei do perdão das
dívidas» (Dt 15,1).
23
Cf. Politica, I,3.
230 J. ALBANO SANTOS
emprestar com juros senão matar um homem?»24 e que, para S. Tomás
de Aquino (1225-1274), «um homem que recebe um empréstimo de
dinheiro, ou de qualquer coisa semelhante, cujo uso é o seu consumo,
não é obrigado a devolver mais do que recebeu de empréstimo: assim,
é contrário à justiça se for obrigado a restituir mais»25.
Com o florescimento das doutrinas mercantilistas surgem, entretanto,
autores que defendem abertamente o recurso à dívida pública através de
diversos argumentos. Assim, Jean-François Melon (1675-1738) alega
que a dívida pública, quando colocada junto de credores nacionais,
não enfraquece o país, dado que «as dívidas de um estado são dívidas
da mão direita à mão esquerda» (Melon, 1734)26 e George Berkeley
(1685-1753) sustenta que o progresso da Grã-Bretanha era devido aos
empréstimos públicos, pelo que estes deviam ser considerados «uma
mina de ouro»27. Um autor de origem portuguesa, Isaac de Pinto (1720-
1791), defende que os empréstimos públicos «enriquecem efetivamente
o Estado e não o empobrecem», dado que os títulos de dívida pública
se somam à riqueza já existente28. Esta tese é bem vincada por James
Steuart (1713-1780) para quem «o Estado tem por função retirar dos
cofres, através de impostos ou de empréstimos públicos, os fundos
que aí estão estagnados, e canalizá-los para despesas públicas úteis e
produtivas, assegurando assim que o fluxo de rendimento completará
o seu circuito»29. Daí que, no seu entender, «o efeito dos empréstimos
públicos ou da dívida pública é o de aumentar o rendimento duradouro
do país, a partir do dinheiro parado
24
Cf. De Tobia, citado em Choucri, 1955.
25
Cf. Summa Theologica, II, q. 78, 2. De realçar que os canonistas prolongaram
esta tese, de tal modo que, em meados do séc. xviii, ainda a Encíclica Vix Pervenit,
promulgada em 1745 pelo Papa Bento XIV, apontava o caráter pecaminoso da cobrança
de juros num empréstimo.
26
Voltaire retoma esta opinião afirmando que «um Estado que só deve a si próprio
não empobrece, e as suas próprias dívidas são um novo estímulo para a indústria» – cf.
Observations sur M. Jean Lass, Melon, Dutot sur le Commerce, le Luxe les Monnaies
et l’Impôt, 1758, citado em Garnier, 1858.
27
Cf. The Querist, n.º 233, 1735-37, citado em Bullock, 1906.
28
Cf. Traité de la Circulation et du Crédit, 1771, ibidem. Assim, Pinto defende que,
mesmo que se pudesse pagar toda a dívida pública, isso seria um erro.
29
Cf. Walter Stettner, Nineteenth Century Public Debt Theories in Great Britain
and Germany, 1944, citado em Salsman, 2012. Cf. Stettner, 1945.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 231
[…]» (Steuart, 1767)30. A aceitação colhida por esta ideia reflete-se
na afirmação de Alexander Hamilton (1757-1804) de que «a dívida
pública, se não for excessiva, será para nós uma bênção nacional»31,
uma vez que se trata de «um meio de acelerar o rápido emprego de todas
as capacidades da nação»32. Segundo este antigo Ministro das Finanças
dos EUA, «o crédito, seja público ou privado, é da maior importância
para qualquer país»; mais do que isso, «não pode haver época ou situa‑
ção na qual o crédito não seja essencial para uma nação», pois ele é,
«não apenas um dos principais pilares da segurança pública, como está
entre os principais motores de empreendimentos úteis e de progresso
interno». E perante o argumento dos excessos que o crédito permite,
Hamilton replicava: «é inútil tentar denegrir o crédito objetando com
os seus abusos. Existe alguma coisa que não seja suscetível de abuso
ou de uso indevido? […] Até a própria liberdade, ao degenerar em
licenciosidade, produz uma terrível complicação de males e gera a sua
própria destruição» (ibidem).
A defesa da dívida pública chega a ser feita em termos encomiásticos,
como mostra o seguinte trecho: «os progressos da civilização e da riqueza
dos povos abriram aos governos o inesgotável tesouro do crédito. Esta
conquista recente da paz, da ordem e da justiça, sobre a violência, as
dilapidações e o arbitrário da autoridade superior, tornou-se a medida do
poder relativo das nações» (D’Audiffret, 1840). O número crescente de
apoiantes do recurso ao crédito público, bem como os argumentos por
eles aduzidos, não foram, porém, suficientes para calar as vozes daqueles
que mantinham viva a tradicional oposição teórica ― acentua-se, pois,
a controvérsia sobre a dívida pública.
Assim, por exemplo, o filósofo escocês David Hume (1711-1776)
parece já descortinar uma questão de justiça intergeracional quando
aponta o expediente que é «hipotecar as receitas públicas e confiar que
a posteridade pagará os encargos contraídos pelos seus antecessores»,
algo que tem por «uma prática que parece ruinosa para além de toda
a controvérsia». Daí que só vislumbre duas alternativas: «ou a nação
30
O Autor esclarecia que «os empréstimos são subscritos por dinheiro que está
parado e que o dono deseja realizar: se não conseguir melhor, empresta-o ao Estado;
caso contrário, não empresta» (ibidem).
31
Cf. carta a Robert Morris em 30 de abril de 1781, citada em Douglas Elmendorf
e Gregory Mankiw, Government Debt, in Taylor & Woodford, 1999.
32
Cf. Public Credit, n.º 2, relatório comunicado ao Senado em 21 de janeiro de 1795,
in Reports of the Secretary of the Treasury of the United States, Vol. I, Washington, 1828.
232 J. ALBANO SANTOS
destrói o crédito público, ou o crédito público destrói a nação» (Hume,
1752). Com efeito, na sequência do recurso continuado à dívida pública,
«os impostos podem, a seu tempo, tornar-se completamente intoleráveis
e todo o património do Estado passar para as mãos do público» (Hume,
1741).
Esta conotação dos empréstimos com impostos futuros é, aliás, uma
constante. Já Jean-Baptiste Colbert (1619-1683) entendia que, simples‑
mente, «depois dos empréstimos, há que lançar impostos para os pagar;
e se os empréstimos não têm limites, os impostos também não os terão»
(Clément, 1846)33. O seu sucessor no cargo, o fisiocrata Turgot, Ministro
das Finanças de Luís XVI, tinha uma variante desta posição: rejeitava
os empréstimos porque eles implicam, «ao fim de algum tempo, ou a
bancarrota ou o aumento dos impostos». Daí que, na sua opinião, «em
tempo de paz só se deve permitir o recurso a empréstimos para liqui‑
dar dívidas antigas ou para reembolsar outros empréstimos contraídos
anteriormente em condições mais onerosas»34.
Mas se isto é, assim, tão evidente, como explicar o intenso recurso
ao crédito que já então se verificava por parte dos mais desencontrados
governos? David Hume fornece a justificação, alegando que «é muito
tentador para um ministro usar tal expediente, dado que lhe permite
fazer uma grande figura durante a sua administração sem sobrecarregar
o povo com impostos ou despertar quaisquer clamores contra si próprio.
A prática de contrair dívida, portanto, será, quase infalivelmente, objeto
de abuso em qualquer governo. Dificilmente será mais imprudente dar
a um filho pródigo um crédito em cada agência bancária de Londres do
que dar poderes a um estadista para, desta maneira, sacar letras sobre
a posteridade» (Hume, 1752)35. A corrente crítica da dívida pública
viria, entretanto, a ser polarizada pelos economistas da Escola Clássica.
33
Neste aspeto, o seu compatriota Joseph Garnier (1813-1881) seria terminante: «em
última análise, o empréstimo não é mais do que uma variedade particular de imposto»,
embora com uma agravante: o empréstimo público «exerce uma ação deletéria sobre a
moralidade dos povos e dos governantes» (Garnier, 1858).
34
Cf. carta ao rei em 24 de agosto de 1774 in Dupâquier & Lachiver, 1970, e
Rivoli, 1975.
35
O referido Joseph Garnier viria a glosar esta ideia nos seguintes termos: para os
políticos «é tão agradável dispor da fortuna dos contribuintes, usá-la largamente, terem‑
-se na conta, por isso, de pessoas espertas e terem direito ao reconhecimento público»
(Hume, 1752). Este argumento subsiste nos dias de hoje, praticamente inalterado: segundo
James Buchanan (1919-2013), por exemplo, «para os políticos eleitos, deve ser óbvio o
atrativo de financiar despesa pela emissão de dívida. Pedir emprestado permite realizar
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 233
Assim, Adam Smith (1723-1790) defende que o capital emprestado ao
Estado deixa «de manter trabalhadores produtivos para manter pessoas
inativas e para ser, de um modo geral, gasto e esbanjado, ao longo do
ano, sem qualquer esperança de futura recuperação». Daí que critique
as «enormes dívidas que atualmente oprimem e que, provavelmente,
serão no futuro a causa da ruína de todas as grandes nações da Europa»
(Smith, 1776) – uma ideia que Frédéric Bastiat (1801-1850) retomaria
de forma lapidar: «recorrer ao crédito quer dizer devorar o futuro»
(Bastiat, 1848)36. Já David Ricardo (1772-1823) tem a dívida pública
como «um dos mais terríveis flagelos algum dia inventados para atribular
uma nação» (Ricardo, 1820)37, dado que o crédito «é um sistema que
tende a tornar-nos menos económicos; cega-nos sobre a nossa situação
real» (Ricardo, 1817). No seu entender, a dívida é um mal tão grave
que «quase nenhum sacrifício seria demasiado grande para nos vermos
livres dela». No mesmo sentido, Jean-Baptiste Say (1767-1832) defende
que os governos, «em condições normais, só pedem emprestado para
dissipar sem retorno os fundos que lhe emprestaram» (Say, 1803).
Entre os economistas liberais merece destaque, pelo seu pragma‑
tismo nesta matéria, Paul Leroy-Beaulieu (1843-1916), para quem «os
empréstimos públicos, em si mesmos, não são nem um bem nem um
mal: ou melhor, digamo-lo claramente, a faculdade de o Estado contrair
empréstimos é um bem, um bem incontestável. O crédito público é uma
força tão respeitável e útil como o crédito privado: é, na verdade, uma
força da qual pode ser feito mau uso, como a pólvora, por exemplo, ou
a dinamite; mas é indubitável que, em si mesmo, é um bem» (Leroy‑
despesa que proporcionará dividendos políticos imediatos, sem incorrer em qualquer
custo político imediato» (Buchanan, 1984).
36
Na sua essência, a ideia já tinha sido avançada por Thomas Jefferson (1743-1826),
presidente dos EUA, nos seguintes termos: «o princípio de gastar dinheiro para ser pago
pela posteridade sob o nome de financiamento não é mais do que roubar o futuro em
larga escala» – cf. carta de 28 de maio de 1816 a John Taylor in Bergh, 1905.
37
A oposição deste clássico à Dívida Pública decorre do facto de considerar que ela
tem efeitos negativos sobre a prosperidade económica de um país, por três vias diferentes:
(1) a natureza improdutiva das despesas públicas, agravada pelas extravagâncias que,
mais facilmente que os impostos, os empréstimos podem financiar; (2) o decréscimo do
investimento privado resultante da ilusão de riqueza que ocorre no momento em que a
dívida é contraída; e (3) a fuga de capitais para o exterior, para escapar ao acréscimo
de impostos exigido pelo subsequente aumento do serviço da dívida. Para uma análise
circunstanciada, veja-se Churchman, 2001.
234 J. ALBANO SANTOS
-Beaulieu, 1877)38. Vale por dizer que um empréstimo é bom ou mau
para a sociedade conforme o seu produto seja utilizado convenientemente
ou desperdiçado em aplicações impróprias.
Cabe realçar que a intransigente oposição da generalidade dos
economistas clássicos à dívida pública teve, entretanto, uma difusão
suficientemente ampla para ultrapassar as mais vincadas barreiras
ideológicas – basta ter presente que, se o presidente dos EUA James
Madison (1751-1836) afirmava que «uma dívida pública é uma maldição
pública»39, o filósofo revolucionário Karl Marx (1818-1883) não hesitava
em a execrar como «a alienação do Estado, quer ele seja despótico,
constitucional ou republicano», acabando por lhe lançar um anátema:
«o crédito público, eis o credo do capital» (Marx, 1867).
Ora, as ideias dos apoiantes da Escola Clássica sobre a dívida pública
suscitaram vigorosa contestação por parte de um número crescente de
autores que, pelo contrário, descortinavam benefícios de vária ordem
no recurso ao crédito. O referido filósofo francês François Huet, por
exemplo, sustentava que «o empréstimo com juros vai revelar-se uma
das mais belas e fecundas invenções do génio social. É vê-lo estimular a
poupança, recompensar a economia, desenvolver o gosto pela propriedade,
aumentar os capitais, enriquecer o património geral, preparar a redenção
material do género humano!» (Huet, 1853). Entre nós, Pereira Jardim
reflete este entendimento quando afirma que o crédito é «o principal
instrumento do progresso da vida moderna» (Jardim, 1872).
Entre os críticos das teses clássicas destacam-se os economistas da
Escola Histórica Alemã que as rejeitavam liminarmente por assenta‑
rem num erro: o de considerarem o Estado como improdutivo, com
a consequente redução dos seus gastos a mera destruição de valor.
Contrapõem-lhes as diversas vantagens que atribuem à dívida pública
– para Friedrich List (1789-1846), precursor daquela Escola, «o cré‑
dito público é uma das mais belas criações da administração moderna
e constitui uma bênção para os povos sempre que serve para repartir
entre diversas gerações os custos das obras e dos empreendimentos da
38
O Autor adianta que «por certo, uma grande parte dos capitais recolhidos através
dos empréstimos foram desperdiçados em guerras e em empreendimentos loucos, algo
que não se pode negar; mas o erro disso está nas paixões humanas, nos maus governos,
na opinião pública enganada; o procedimento do empréstimo está completamente inocente
nestas loucuras» (ibidem).
39
Cf. carta a Henry Lee em 13 de abril de 1790, segundo Douglas Elmendorf e
Gregory Mankiw, Government Debt, in Taylor & Woodford, 1999.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 235
geração presente que interessam ao futuro da nação e que lhe asseguram
a existência, o desenvolvimento, a grandeza e o acréscimo das suas
forças produtivas [...]» (List, 1841).
Seguindo esta linha de pensamento, Gustav Cohn (1840-1918) salienta
que «o crédito é um fruto do avanço da civilização» (Cohn, 1889) e
Lorenz von Stein (1815-1890) faz notar que a dívida pública é reprodutiva
de duas formas: diretamente, quando é aplicada em despesas que geram
rendimento para o Estado; indiretamente, quando é gasta em operações
que melhoram a capacidade produtiva da população40. Assim, «há que
julgar como atrasada toda a autoridade orçamental que não sabe como
fazer uso do seu crédito»41. Aliás, tendo em vista o papel da dívida
pública na equidade intergerações, «colocar dívida pública passou a ser,
não uma manifestação de dificuldades financeiras, mas, simplesmente,
uma obrigação do Estado»42 – daí que von Stein não hesite em afirmar
que «um Estado sem dívida pública, ou importa-se muito pouco com o
seu futuro, ou exige demasiado do seu presente»43.
Este debate reacende-se no século xx e chega aos nossos dias. De
facto, com a teoria keynesiana a dívida pública passa a ser abordada
numa lógica macroeconómica – no quadro das chamadas Finanças
Funcionais, o recurso à dívida torna-se num simples subproduto da
política orçamental visando o pleno emprego: o importante é financiar
um acréscimo de despesa pública que origine uma procura adicional,
de modo a pôr em marcha uma capacidade produtiva desaproveitada44.
Ou seja: o recurso à dívida pública é necessário para alcançar o nível
40
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Cohn, 1889. O Autor
esclarece que o governo «deve ver se, com a contração de qualquer dívida pública, os
fundos obtidos vão ser gastos de modo a propiciar rendimento para o pagamento dos
juros e a amortização do capital, ao mesmo tempo que a sua aplicação vai desenvolver
os resultados morais e económicos para os quais se incorreu na dívida. Se isto não for
feito, cada dívida torna-se consumo do capital da nação, em vez de se tornar num fator
de capacidade produtiva do capital privado» (ibidem).
41
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Holtfrerich, 2013.
42
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Cohn, 1889.
43
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Holtfrerich, 2013.
44
Nesta lógica, a dívida pública é mais eficiente que os impostos enquanto meio
de financiamento de um acréscimo de gastos capaz de aumentar o nível de atividade.
Com efeito, numa situação de desemprego de recursos, podem contrair-se empréstimos
públicos sem reduzir o investimento privado: de algum modo, a dívida pública torna-se,
pois, um fator de equilíbrio da economia. A ideia não é, aliás, nova: como atrás se viu,
já tinha sido defendida em Steuart, 1767.
236 J. ALBANO SANTOS
adequado de procura agregada «[…] quando o investimento privado é
insuficiente para absorver a poupança prevista ao longo de um período
de tempo relativamente longo» (Domar, 1944).
Assim, para Alvin Hansen (1887-1975), a decisão de contrair ou de
amortizar dívida pública deve «depender exclusivamente da situação
económica geral e não de julgamentos assentes em considerações con‑
tabilísticas de índole privada» (Hansen, 1941)45. Aliás, segundo este
Prémio Nobel da Economia (1974), a dívida pública pode propiciar
«uma relativa imunidade contra qualquer grave quebra nas despesas de
consumo em períodos de recessão» (Hansen, 1959)46. Daí que Hansen
vá ao ponto de conjugar a «oposição à dívida pública» e a «oposição
medieval ao juro» (Hansen, 1941).
Também para Abba Lerner (1903-1982) a contração ou o reembolso
de empréstimos não devem decorrer da situação financeira do Estado –
devem ser operações «completamente subordinadas às regras para manter
um nível adequado de despesa e de investimento» por forma a «manter
o bem-estar e impedir a inflação» (Lerner, 1941)47. Aliás, «uma nação
que deve dinheiro a outras nações (ou a cidadãos de outras nações) está
empobrecida ou onerada da mesma maneira que um homem que deve
dinheiro a outros homens. Mas isto não se aplica à dívida pública que
45
Esta ideia já tinha sido avançada pelo economista sueco Gunnar Myrdal (1898-1987)
nos seguintes termos: «é concebível que a redução da dívida pública não só diminua o
rendimento nacional, mas também que a situação orçamental do Estado possa ser mais
agravada pelo reembolso da dívida do que pelo facto de se incorrer em mais dívida» – cf.
Finanzpolitikens ekonomiska verkningar, 1934, citado em Hansen, 1941.
46
Noutra sede, Hansen realça que, para além deste efeito genérico, a dívida tem
consequências económicas específicas que dependem do tipo de despesa pública que
financia. Essas consequências tanto podem ser (a) a criação de emprego, (b) a criação
de utilidades, ou (c) a criação de eficiência, como (d) alguma combinação das anteriores
(Hansen, 1941). Deste modo, defende que «pode muito bem ser uma política correta
financiar com empréstimos uma grande parte do investimento público de um programa
de desenvolvimento, causando assim uma subida de longo prazo na dívida pública»
(Hansen, 1941). De facto, no seu entender, o fomento do investimento público no desen‑
volvimento dos recursos naturais ou noutras obras públicas, abre novas oportunidades
para o investimento privado, criando emprego e aumentando a produção nacional – cf.
Stability and Expansion, in Homan & Machlutp, 1945.
47
Noutra sede, o Autor adiantaria que «o Estado deve contrair empréstimos apenas
se for desejável que o setor privado deva possuir menos dinheiro e mais títulos de dívida
pública, pois estes são os efeitos do recurso ao crédito pelo Estado» (Lerner, 1943).
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 237
é devida pela nação a cidadãos da mesma nação. Não há, neste caso,
credor externo. “Devemos a nós próprios”»48.
No combate à teoria Keynesiana destaca-se James Buchanan (1919-
2013), Prémio Nobel da Economia (1986), que procura reabilitar teses
clássicas. No seu dizer, «uma avaliação moderada sugere que, politi‑
camente, o Keynesianismo representa uma verdadeira doença que, a
longo prazo, pode mostrar-se fatal para a sobrevivência da democracia»
(Buchanan et al., 1978). De facto, o recurso ao crédito baixa a barreira
orçamental que impede o «vulgar apetite dos políticos» pelos gastos:
«armados com a mensagem keynesiana, os políticos podem gastar e
gastar, aparentemente sem a necessidade de tributar», o que leva a
«défices orçamentais permanentes, inflação e a um setor público em
expansão e desproporcionadamente grande» (Buchanan & Wagner,
1977)49. Acresce que «pelas mesmas razões que os políticos acham
muito mais fácil financiar despesas com dívida do que com impostos,
também acham muito mais fácil empurrar a dívida para a frente, uma
vez emitida, do que pagá-la com dinheiro dos impostos. […] O capital
da nação, depois de destruído pela criação da dívida, não será restaurado.
Ou seja, para colocar a questão de modo diferente, a dívida pública, uma
vez criada, é permanente, a despeito da utilização inicial que possa ter
sido dada aos fundos» (Buchanan, 1986)50. Buchanan não hesita, aliás,
em recorrer a argumentos de ordem moral para combater as ideias de
Keynes. Como, no seu entender, «era um “pecado” criar défices antes
do período keynesiano»51, atribui o posterior crescimento da dívida
48
Cf. The Burden of the National Debt, in Metzler, 1948, reproduzido em Fer‑
guson, 1964.
49
Claro que Buchanan conhecia o argumento de que a tendência para défices gran‑
des e persistentes não se desenhou no apogeu do keynesianismo, mas sim no período
posterior a 1970, quando as ideias de Keynes já estavam em perda de influência. Daí
que se defenda que a revolução keynesiana contribuiu, provavelmente, para o avolumar
dos défices, mas não foi ela que os causou: na sua base estará o forte crescimento das
despesas sociais, muitas delas dificilmente controláveis no plano orçamental por terem
alcançado o estatuto de direitos adquiridos – cf. Gary Anderson, The U.S. Federal
Deficit and National Debt: A Political and Economic History, in Buchanan et al., 1987.
50
Adam Smith já reflete esta ideia quando afirma que «resolver os problemas de
momento é sempre a ideia principal daqueles que estão ligados à administração dos
negócios públicos, deixando sempre para as gerações vindouras o cuidado de salvar a
dívida pública» – cf. Smith, 1776.
51
Cf. entrevista a The Region (The Federal Reserve Bank of Minneapolis), publicada
em 1 de setembro de 1995.
238 J. ALBANO SANTOS
pública, pelo menos em parte, a «um colapso nas restrições morais»,
nomeadamente a que diz que «o capital, uma vez acumulado, deve ser
preservado e transmitido às futuras gerações»52. Assim, convicto de que
«os orçamentos não podem ser deixados à deriva no mar da política
democrática» (Buchanan & Wagner, 1977), o Autor envolveu-se no
movimento político que defende a necessidade de incluir na Constituição
uma regra imperativa capaz de limitar o recurso ao crédito, funcionando
como um «substituto constitucional para aquela norma moral»53.
A polémica alargou-se, entretanto, com Robert Barro e o seu Teo-
rema da Equivalência Ricardiana54, segundo o qual é irrelevante que o
governo financie os gastos públicos com impostos ou com emissão de
dívida. De facto, os agentes económicos percebem que, qualquer que
seja a opção, o que está em causa é, apenas, o momento em que têm de
pagar os impostos correspondentes: no caso de recurso à dívida pública,
é certo que os contribuintes ficam com um maior rendimento disponível;
mas a certeza de que a dívida contraída implicará o pagamento de mais
impostos no futuro, levá-los-á a poupar esse suplemento temporário de
rendimento, a fim de satisfazerem o posterior acréscimo de impostos.
Isto é, a poupança extra dos contribuintes compensará a despesa pública
adicional, pelo que a procura global permanece inalterada (Barro,
1974)55. Perante esta breve resenha histórica, compreende-se bem a
afirmação do Prof. Richard Musgrave (1910-2007) de que «a economia
da dívida pública [...] tem estado entre as partes mais controversas da
52
Cf. Budgetary Bias in Post-Keynesian Politics: The Erosion and Potential Repla-
cement of Fiscal Norms, in Buchanan et al., 1987.
53
Cf. entrevista citada. Noutra sede, o Autor afirma que «a mais elementar previsão
da teoria da Public Choice é que, na ausência de restrições morais ou constitucionais,
as democracias financiarão alguma parte do consumo corrente com dívida em vez de
impostos e que, por consequência, o crescimento das despesas será maior do que seria
com o orçamento equilibrado» – cf. Budgetary Bias in Post-Keynesian Politics: The
Erosion and Potential Replacement of Fiscal Norms, in Buchanan et al., 1987.
54
A designação do Teorema deve-se ao facto de Barro basear a sua tese em David
Ricardo (Ricardo, 1817; 1820). Não se deve, todavia, inferir que este Clássico tinha os
empréstimos em boa conta, como ressalta da sua opinião atrás citada.
55
Segundo o Autor, o Teorema «equivale à afirmação de que o impacto finan‑
ceiro do Estado resume-se à tendência da sua despesa. Dada esta tendência, o arranjo
da distribuição dos impostos no tempo – implícita nos défices orçamentais – não tem
impactos de primeira ordem na economia» (cf. Reflections on Ricardian Equivalence,
in Maloney, 1998).
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 239
doutrina financeira»56. Ora, um dos aspetos que assume maior relevo
nesta polémica é o da incidência que a dívida pública tem na equidade
intergeracional. De facto, a questão de saber se a dívida pública coloca
uma «carga» nas gerações futuras tem vindo a suscitar diferentes respos‑
tas por parte de vários setores de opinião57. Interessa, pois, estabelecer
uma abordagem ao tema.
3. A dívida pública e a equidade intergerações
O recurso ao crédito permite a um governo repartir por um determi‑
nado número de anos o financiamento de uma despesa realizada num
dado momento, isto é, o empréstimo público acaba por se traduzir num
processo de antecipação de receitas que «permite diminuir, repartindo-
-a no tempo, a pressão exercida pelo imposto sobre os contribuintes de
um país» (Jèze, 1912). No ponto anterior ficou, aliás, bem vincado o
interesse dos decisores políticos em financiarem as suas despesas com
empréstimos, visto que estes, por serem «um imposto que não ousa
dizer o seu nome» (Masoin, 1946), tendem a protegê-los de eventuais
manifestações da ancestral aversão dos indivíduos a qualquer forma de
tributo – afinal, «a dívida pública é uma forma de tornar aceitável para
os cidadãos aquilo que eles não aceitariam com impostos»58. Ora, esta
possibilidade de um governo decidir, soberanamente, a realização de
despesas e lançar o respetivo pagamento, no todo ou em parte, sobre
os governos futuros – colocando-os perante um facto consumado –,
mais do que uma questão de estratégia política59, começa por suscitar a
56
Cf. A Brief History of Fiscal Doctrine, in Auerbach & Feldstein, 1985.
57
Para uma abordagem a esta controvérsia, vejam-se Ferguson, 1964; Tremmel,
2006; Tremmel, 2014.
58
Cf. Vilfredo Pareto (1848-1923) em carta a Benvenuto Griziotti em 31 de agosto
de 1917, no vol. 19 de Busino, 1975.
59
Pelo recurso ao endividamento, o governo atual pode forçar os governos futuros a
financiar (através dos impostos necessários para satisfazer o serviço da dívida contraída)
despesas que correspondem às suas preferências. Assim, esta utilização estratégica da
Dívida Pública permite ao partido no governo reduzir a margem de manobra dos partidos
da oposição quando chegarem ao poder: «sobrecarregar os futuros governos com uma
grande dívida dá a certeza de que eles não podem gastar e, se a dívida tiver uma curta
maturidade e for denominada em moeda forte, os problemas dos sucessores serão ainda
piores». Deste modo, pode-se dizer que «a dívida liga uns governos aos outros» (Dor‑
nbusch & Draghi, 1990), ou, de forma mais específica, que «o montante da dívida liga
as políticas do passado às políticas do futuro» (Alesina & Perotti, 1994).
240 J. ALBANO SANTOS
questão da legitimidade de uma geração para fazer repercutir sobre as
seguintes, especialmente através da dívida pública, os custos dos gastos
que só ela decide. A importância do problema é, de há muito, reconhe‑
cida: para Thomas Jefferson, «a questão de saber se uma geração de
homens tem um direito de vincular outra parece nunca ter sido iniciada
[…]. Contudo, é uma questão com tais consequências que deve merecer
não só decisão, mas também lugar, entre os princípios fundamentais de
qualquer governo»60. Aquele antigo presidente dos EUA começou por
tomar posição defendendo que «nem os representantes da nação, nem
toda a nação reunida, podem validamente contrair dívidas para além
daquilo que eles podem pagar no seu próprio tempo» (ibidem). A tese
oposta começou, porém, a dominar a doutrina. Para o italiano Angelo
Messedaglia (1820-1901), por exemplo, «assentar no imposto todo o
serviço extraordinário das obras públicas seria quebrar o equilíbrio natural
da produção e atormentar a atividade económica com uma fiscalidade
insuportável». Assim, «quando os impostos, que dão a medida dos meios
atuais, são insuficientes, não resta mais ao Estado que antecipar com o
crédito os seus rendimentos futuros» (Messedaglia, 1850)61.
Já Leroy-Beaulieu, após colocar a questão de saber até que ponto
é legítimo um Estado lançar sobre as gerações futuras «um fardo que
a geração atual poderia suportar» afirma não acreditar «que essa legi‑
timidade possa causar dúvida», pois «uma geração inteira, tanto como
um homem, não tem, moralmente, o direito de esbanjar o património
que recebeu; deve-o transmitir integralmente à geração seguinte; mas
limita-se a isso o seu estrito dever». Com efeito, para este economista
liberal, ainda que as diversas gerações cometam erros coletivos, «não se
pode pretender que uma geração não tem o direito de lançar uma parte
desse fardo sobre as gerações futuras enquanto os esforços individuais
dessa geração tenham aumentado mais a riqueza pública do que os seus
erros coletivos a tenham diminuído» (Leroy-Beaulieu, 1877).
Aceite essa legitimidade, subsiste o problema da inexistência de
uma medida objetiva que permita partilhar entre as diversas gerações,
com a apropriada dose de equidade, o financiamento da referida acu‑
60
Cf. carta de 6 de setembro de 1789 a James Madison, in Bergh, 1905.
61
O Autor recorda, aliás, que «o Estado que, quando os seus meios não bastam,
apela ao crédito para fazer frente ao gasto extraordinário com uma obra produtiva, está
na mesma posição da empresa que recorre a empréstimos para completar os fundos
insuficientes do seu capital» (ibidem).
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 241
mulação de capital coletivo da nação e da desejável subida do seu nível
civilizacional. Aliás, a necessidade de definir um critério tão objetivo
quanto possível para estabelecer essa partilha é acentuada pelo facto
incontornável de ela ser decidida de forma unilateral pela geração que,
em cada momento, está no poder, uma vez que, pela própria natureza
das coisas, as gerações vindouras não podem fazer valer os seus inte‑
resses no processo de tomada de decisão quanto aos gastos públicos e
ao respetivo custeio.
Assim, a defesa do interesse das gerações vindouras está, exclusiva e
inelutavelmente, nas mãos da geração atual62 – bem se pode, pois, dizer
que, de certa maneira, os dirigentes de cada geração no poder «são os
guardiães do futuro contra as reivindicações do presente. A sua tarefa
é a de preservar a equidade entre gerações» (Tobin, 1974). De realçar
que esta precisa obrigação dos governantes é de há muito expressamente
reconhecida – Friedrich List (1789-1846), precursor da Escola Histórica
Alemã, já defendia que os estadistas têm duas responsabilidades: «uma
para a sociedade contemporânea e outra para as gerações futuras»63.
Aliás, como a experiência ensina que as vicissitudes a que o quotidiano
das sociedades está sujeito podem, com alguma frequência, impelir os
governantes a privilegiar os interesses da geração presente, preterindo
os interesses do futuro64, o Legislador tem vindo a procurar acautelar
estes últimos, de tal modo que se pode falar numa «tendência recente
para proceder à incorporação do tópico das gerações futuras nos textos
constitucionais vigentes»65. No nosso caso, o dever de salvaguardar a
equidade entre gerações está consagrada em dois diplomas fundamentais
da ordem jurídica: a Lei de Enquadramento Orçamental (cf. artigo 13.º
da Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro) e o Regime Financeiro das
Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (cf. artigo 9.º da Lei
n.º 73/2013, de 3 de setembro).
62
É possível descortinar aqui algumas das questões inerentes a uma relação de
agência, fenómeno que ocorre quando alguém opera em nome de outrem. Sobre o con‑
ceito, veja-se Santos, 2010a.
63
Cf. memorando sobre a proposta de aliança Anglo-Germânica, citado em Hen‑
derson, 1983. Para uma abordagem no plano dos recursos naturais, veja-se Weiss, 1992.
64
De facto, «os indivíduos do futuro não podem votar hoje, por isso os seus interesses
são muitas vezes negligenciados» – cf. Joerg Tremmel na introdução a Tremmel, 2006.
65
Cf. J. Pereira da Silva, Breve Ensaio sobre a Protecção Constitucional dos Direitos
das Gerações Futuras, in Caupers et al., 2010.
242 J. ALBANO SANTOS
A prevalência de um critério objetivo é tão mais importante neste
domínio quanto é certo que os entes públicos não enfrentam os meca‑
nismos espontâneos de limitação do endividamento que pontificam
no mundo empresarial (v.g., o acionista que aceita um acréscimo de
endividamento, suporta a respetiva consequência, designadamente sob a
forma de eventual degradação do valor das suas ações). Daí que, se nos
colocarmos numa perspetiva de longo prazo, é possível descortinar um
amplo espaço de manobra para a predação dos recursos públicos pelos
interesses da geração presente. Está-se perante um fenómeno equivalente
aos riscos de predação que se verificam, no interior de uma mesma gera‑
ção, por parte de grupos de interesse organizados (Marchand, 1999).
Torna-se, pois, claro que, à conhecida necessidade de um governo
assegurar a justiça na distribuição do rendimento e da riqueza entre
os seus contemporâneos, junta-se, em cada momento, o imperativo
de garantir igual justiça na partilha dos recursos disponíveis com as
gerações futuras – de modo a que cada geração receba a herança que
lhe cabe das gerações anteriores e contribua com a sua devida quota‑
-parte para as gerações vindouras. Perfila-se, portanto, o problema da
forma de partilhar, entre as sucessivas gerações, o financiamento da
acumulação de capital coletivo da nação e da desejável subida do seu
nível civilizacional.
Das respostas que este problema tem suscitado, destaca-se a do filó‑
sofo John Rawls (1921-2002), para quem o investimento público que
as sucessivas gerações realizam deve ser calibrado segundo o chamado
Princípio da Poupança Justa, isto é, «cada geração deve, não apenas
salvaguardar os ganhos de cultura e de civilização e manter intactas as
instituições justas que forem estabelecidas, mas também pôr de lado uma
quantidade adequada de capital acumulado efetivo. Esta poupança pode
assumir várias formas, desde o investimento líquido em maquinaria e
outros meios de produção até ao investimento no saber e na educação»
(Rawls, 1971, e a evolução registada em Rawls, 1993 e 2002).
Importa não perder de vista, entretanto, que, como se infere das
palavras de Rawls, para efeitos de equidade entre as sucessivas gera‑
ções, o conceito de capital deve ser utilizado na sua aceção mais ampla.
Inclui, pois, o capital natural (o conjunto de recursos naturais utilizáveis
pela Humanidade), o capital artificial e financeiro (v.g., maquinaria,
infraestruturas, edifícios, ativos financeiros), o capital cultural (v.g.,
instituições democráticas, legislação), o capital social (v.g., solidariedade
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 243
social, relações estáveis entre indivíduos e grupos, valores) e o capital
humano (v.g., saúde, educação, conhecimento, aptidões produtivas)66.
Desta maneira, a obrigação para com os vindouros pode traduzir-se
no princípio de que a geração presente deve conduzir as suas atividades
de modo a não comprometer as condições económicas, sociais e ambien‑
tais necessárias à sustentação do bem-estar e da qualidade de vida das
gerações seguintes67. No contexto em que nos situamos, cumpre realçar
o aspeto particular da sustentabilidade financeira que exige da geração
presente uma gestão equitativa das Finanças Públicas, a fim de não
passar para as gerações futuras uma carga orçamental que as impeça de
alcançar os níveis de bem-estar a que têm direito – o que implica, em
especial, que a geração presente opte por financiar os seus consumos
com impostos e não com empréstimos.
Está-se, aliás, perante uma exigência que representa uma simples
condição de eficiência económica – a afetação de recursos decidida
por cada geração só será eficiente se aqueles que a compõem tiverem
de suportar o custo dos bens públicos que consomem. Deste modo, a
aplicação do Princípio do Benefício leva a que, tendencialmente, [1] as
despesas correntes devem ser custeadas no período em que são realizadas
(isto é, por impostos pagos pela geração presente, a única que desfruta dos
benefícios que elas geram) e [2] as despesas de investimento devem ser
custeadas no decurso do período de vida útil do capital que constituem,
o que implica a conveniente distribuição do seu valor entre as várias
gerações (a presente e as futuras) que deles beneficiam68. O primeiro
destes ditames é comummente aceite: no dizer de James Buchanan,
se a dívida financiar consumo público, a expressão «taxation without
representation é literalmente descritiva da situação daqueles que irão
66
Cf. Joerg Tremmel na introdução a Tremmel, 2006.
67
A definição de «desenvolvimento sustentável» adotada pela ONU é a de «desen‑
volvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das
gerações futuras para satisfazer as suas próprias necessidades» (cf. Brundtland Report,
1987). Importa, contudo, não perder de vista que se está perante um conceito contro‑
verso – cf. Dobson, 1999.
68
Daqui pode-se retirar um corolário: «a dívida que tem uma contrapartida nos ativos
do Estado deve ser objeto, nem mais nem menos, de uma amortização correspondente
à degradação desses ativos», isto é, «a amortização financeira segue a amortização eco‑
nómica» – um princípio que «não faz mais do que transpor para as Finanças Públicas
uma regra elementar de gestão privada» (Masoin, 1946).
244 J. ALBANO SANTOS
enfrentar a carga da dívida acumulada em períodos futuros»69. Claro
que, para além da iniquidade intergeracional, a hipótese configura um
grave erro económico que, noutra sede, o mesmo Autor descreve com
uma imagem sugestiva: «ao financiarmos despesa pública corrente com
dívida, estamos, de facto, a cortar as macieiras para obter lenha, reduzindo
deste modo, para sempre, a produção do pomar» (Buchanan, 1986).
Já o segundo preceito, sem ser consensual, dispõe de uma sólida
corrente de pensamento a sustentá-lo. No dizer do acima referido eco‑
nomista alemão Friedrich List, por exemplo, «as dívidas de um Estado
são letras que a geração presente saca sobre a geração futura. Podem
ter sido contraídas no interesse particular da geração presente, no das
gerações futuras ou no interesse comum. Só no primeiro caso essas
dívidas são condenáveis. Mas sempre que se trate da conservação e do
desenvolvimento da nacionalidade, e que as despesas necessárias para
esse efeito excedam os recursos da geração presente, tais dívidas caem
na última categoria» (List, 1841)70.
Também o já citado italiano Angelo Messedaglia se inscreve nesta
linha de pensamento ao defender que há injustiça para com as gerações
atuais quando se lhes impõe o custo de obras «cujos benefícios maiores
estão reservados ao futuro» pelo que, no seu entender, «nada de mais
natural que invocar para uma obra de utilidade duradoura o concurso
daqueles que estão destinados a recolher a herança». Daí que, para este
economista, «entre os meios de obter dinheiro em tempos de necessidade,
aquele que compromete o crédito do Estado é muitas vezes preferível
ao outro que procura exigir tudo dos contribuintes atuais» (Messeda‑
glia, 1850).
Na mesma linha, Lorenz von Stein sustenta que «a dívida pública
é dívida apenas na forma; na realidade dos factos, cada empréstimo é
um método independente de tributar o futuro para todas aquelas des‑
pesas públicas destinadas a construir instituições públicas duradouras
em benefício da posteridade através de adiantamentos fornecidos pelo
69
Cf. Budgetary Bias in Post-Keynesian Politics: The Erosion and Potential Repla-
cement of Fiscal Norms, in Buchanan, 1987.
70
Recorde-se que, para List, o crédito público «constitui uma bênção para os povos
sempre que serve para repartir entre diversas gerações os custos das obras e dos empreen‑
dimentos da geração presente que interessam ao futuro da nação e que lhe asseguram
a existência, o desenvolvimento, a grandeza e o acréscimo das suas forças produtivas
[…]» (ibidem).
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 245
presente»71. A evidência do papel crucial que o recurso ao crédito tem
neste processo leva von Stein, recorde-se, a defender que «colocar dívida
pública passou a ser, não uma manifestação de dificuldades financeiras,
mas, simplesmente, uma obrigação do Estado»72 – o que o conduz à
conclusão de que «um Estado sem dívida pública, ou importa-se muito
pouco com o seu futuro, ou exige demasiado do seu presente»73.
Aliás, na sua essência, a ideia da utilidade do crédito nesta pers‑
petiva é aceite até por acerados críticos da dívida: basta pensar que o
clássico Say afirma que «a grande vantagem que resulta para uma nação
da faculdade de contrair empréstimos, é a de poder repartir sobre um
grande número de anos os encargos que reclamam as necessidades de
um momento» (Say, 1803) ou que Buchanan reconhece que «a dívida
pública, enquanto instrumento para obtenção de receita, tem uma utilização
apropriada e bem definida como uma forma de permitir aos governos
alterar o fluxo temporal de pagamentos das despesas extraordinárias»
(Buchanan, 1992)74. Ressalta do exposto que a dívida pública assume
um papel essencial enquanto instrumento de uma justa distribuição do
custo dos bens de capital por todos quantos os usufruem ao longo do
tempo75. Em termos estritos de equidade intergeracional, é tão reprovável
71
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Cohn, 1889.
72
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Cohn, 1889.
73
Cf. Lehrbuch der Finanzwissenschaft, 1860, citado em Holtfrerich, 2013.
74
O Autor já havia afirmado, aliás, que «o princípio ético contra a emissão de dívida
pública que envolve alguma transferência de responsabilidade orçamental líquida para as
futuras gerações de contribuintes, não se aplica plenamente quando a dívida é limitada ao
financiamento de projetos genuinamente de longo prazo. Neste caso, as futuras gerações
gozam dos benefícios tal como herdam a responsabilidade» (Buchanan, 1967). Registe-se
que, mesmo neste aspeto restrito, o consenso não é total: Luigi Einaudi (1874-1961), por
exemplo, começa por aceitar que os empréstimos devem ser preferidos aos impostos no
financiamento de despesas extraordinárias, mas acrescenta que esta conclusão só é válida
se o nível de despesa se mantiver constante. Evoca, entretanto, a possibilidade de os
empréstimos poderem levar a uma maior despesa pública para concluir que «embora de
um ponto de vista puramente económico-financeiro a dívida seja preferível ao imposto, de
um ponto de vista político, isto é, tendo em conta também a decisão política da despesa
pública, o imposto é preferível à dívida» (Einaudi, 1932).
75
Cabe referir que, na sua essência, a chamada Regra de Ouro das Finanças Públi‑
cas (segundo a qual um défice orçamental não deve ultrapassar o valor das despesas de
investimento) assenta neste entendimento. De realçar, entretanto, que a interpretação da
dívida pública como mecanismo de redistribuição intergeracional dos custos de inves‑
timento torna a tradicional Contabilidade Pública um instrumento inapropriado para
avaliar a posição da política orçamental neste aspeto. Daí que alguns autores tenham
246 J. ALBANO SANTOS
que a geração presente transfira o custo daquilo que consome para as
futuras gerações como o é impor aos contribuintes de hoje o sacrifício
de suportar a totalidade do custo dos bens públicos que vão beneficiar,
sobretudo, as gerações seguintes. Neste plano, «o abuso do imposto […]
não é nada menos deplorável do que o abuso do crédito» (Messedaglia,
1850). De facto, «o financiamento de despesas correntes com emprés‑
timos […]coloca uma carga indevida sobre o futuro e o financiamento
de despesas de capital com impostos dá-lhe um benefício indevido»
(Musgrave & Musgrave, 1980).
Na verdade, em condições normais, sempre que a dívida pública
financia bens de capital, nomeadamente infraestruturas básicas, não
tem cabimento dizer-se que está a comprometer o nível de bem-estar
das gerações futuras – bem pelo contrário, há um setor da doutrina
que defende ser a ausência de investimento público que pode colocar
dificuldades à prosperidade dos vindouros: no dizer de Abba Lerner,
«podemos empobrecer o futuro cortando no nosso investimento em bens
de capital (ou através do consumo ou da destruição de recursos naturais)
que teriam permitido às gerações futuras produzir e beneficiar de padrões
de vida mais elevados» (Lerner, 1961). Deste modo, «um défice que
financia a construção e manutenção das nossas estradas, pontes, portos
e aeroportos é um investimento no futuro» (Eisner, 1986).
Pode-se, pois, defender que «só há uma forma de podermos deixar o
presente prejudicar o amanhã. É agirmos hoje de maneira a que o futuro
tenha menos capital produtivo, e isso inclui capital de todas as espécies
[…]» (Eisner, 1989). O economista norte-americano Paul Krugman,
Prémio Nobel de Economia (2008), chega a sustentar esta ideia em
termos enfáticos quando escreve: «a política orçamental é, de facto,
uma questão moral, e devemos ter vergonha do que estamos a fazer às
perspetivas económicas da próxima geração. Mas o nosso pecado é o
de investirmos muito pouco, não o de nos endividarmos demasiado»76.
Posto isto, independentemente da posição que se possa assumir nesta
matéria, importa não perder de vista que, em igualdade de circunstâncias,
não é indiferente a origem dos capitais que o Estado obtém através do
recurso ao crédito. Ou seja, o facto de a dívida pública ser detida por
entidades nacionais ou estrangeiras pode, só por si, gerar consequências
proposto uma contabilidade geracional capaz de medir o impacto da política orçamental
nas diferentes gerações – cf. Auerbach et al., 1991, Kotlikoff, 1992, e Bonin, 2001.
76
Cf. «Cheating our Children», New York Times, 28 de março de 2013.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 247
diferentes. Levando este aspeto em linha de conta, é possível combinar
nas duas seguintes proposições a incidência da dívida pública no plano
da equidade intergeracional: (a) a dívida interna não coloca problemas
de equidade; (b) a dívida externa pode colocar problemas de equidade.
Vejamos:
(a) A dívida interna não coloca problemas de equidade intergera-
cional.
Desde logo, a geração que contrai os empréstimos não tem um ganho
líquido: a despesa pública adicional de que beneficia tem por contra‑
partida a renúncia voluntária de alguns dos seus membros a gastar o
respetivo rendimento disponível, com a subsequente opção por emprestar
ao Estado a poupança resultante. Portanto, considerada em bloco, esta
geração suporta o custo de oportunidade correspondente à subscrição
da dívida, uma vez que o aumento da despesa pública de que usufrui é
compensado pela redução da despesa privada.
Por outro lado, se é certo que esta dívida vai implicar, amanhã, o
seu reembolso e os juros correspondentes, obrigando os membros da
geração seguinte a pagar impostos para o efeito, não o é menos que quem
vai receber esses valores são, também, membros desta última geração.
Com efeito, no que toca à dívida interna, a tese muito divulgada de que
«contrair dívida pública é hipotecar o futuro dos nossos filhos» assenta
na analogia entre dívida pública e dívida privada, nomeadamente a que
ocorre no seio de uma família – aqui, sim, os pais que, para manter o
seu padrão de vida, contraem dívidas e as deixam aos seus filhos estão
a hipotecar-lhes o futuro.
Porém, tal analogia não é válida no caso dos empréstimos públicos
porque abstrai de um facto que, na circunstância, assume uma impor‑
tância decisiva: qualquer dívida tem, necessariamente, por contrapartida
um crédito de igual montante. Ora, no seio de uma família, os filhos do
devedor herdam a respetiva dívida, mas não o correspondente crédito
que permanece nas mãos do credor ou dos seus filhos; no caso de uma
nação, todavia, a geração que herda a dívida herda também o crédito
que lhe corresponde, pelo que não fica mais pobre por isso. Perfila-se,
pois, uma diferença essencial: «a dívida interna é uma dívida do Estado;
não é uma dívida da nação» (Masoin, 1946).
De facto, no âmbito de uma nação, a dívida pública é tanto um fardo
para alguns, como é uma fonte de rendimentos para outros – a cada euro
248 J. ALBANO SANTOS
de dívida contraída corresponde um euro de crédito concedido, ou seja,
pela própria natureza das coisas, é incontornável que «para cada deve‑
dor tem de haver um credor» (Eisner, 1986)77. Quer dizer, pois, que,
à referida tese de que «contrair dívida pública é hipotecar o futuro dos
nossos filhos» pode-se contrapor, com igual propriedade, o entendimento
de Herbert Hoover (1874-1964), antigo Presidente dos EUA, segundo
o qual «abençoados são os jovens, porque herdarão a dívida pública»78.
Claro que não se deve inferir daqui que a dívida interna é isenta de
repercussões no plano intergeracional, porquanto, naturalmente, ten‑
derá a provocar transferências de rendimentos no seio de cada uma das
gerações envolvidas. Exemplos dessas transferências são, (i) na geração
que contrai a dívida, a que ocorre entre aforradores e consumidores; (ii)
na geração seguinte, a que vai dos contribuintes para os detentores de
títulos da dívida pública. A ausência de iniquidade nestas transferências
pode, entretanto, ser ilustrada com o segundo caso, pois mostra bem que,
«enquanto algumas pessoas irão ganhar e outras irão perder, a futura
geração como um todo, ficará igual» (Baumol & Blinder, 1979)79.
Coisa diferente é, entretanto, saber se a transferência de rendimentos
que a dívida interna opera no interior de cada uma das gerações envol‑
vidas é, ou não, desejável ― mas há que convir em que uma eventual
redistribuição, só por si, está longe de corresponder a uma iniquidade
entre elas. Com efeito, «se há um bom motivo de ordem geral para
contrair dívida, a redistribuição pode ser ignorada, porque não temos
mais razão para supor que a nova distribuição é pior que a anterior do
que para assumir o oposto. Que a distribuição será diferente não é mais
argumento contra a dívida pública do que o é a favor dela»80.
77
Noutra sede, este Autor comenta, com algum humor, a tese de que os défices
permanentes significam que estamos a passar para os nossos filhos uma dívida cada vez
maior, afirmando: «isto é literalmente verdade. Os nossos filhos serão os donos de todos
esses títulos do Tesouro que constituem a dívida. Isso dar-lhes-á uma boa almofada de
poupanças acumuladas» (Eisner, 1994).
78
Cf. discurso perante o Meeting of Republicans Sponsored by Nebraska Republican
State Central Committee, realizado em Lincoln, Nebrasca, a 16 de janeiro de 1936, in
Hoover, 1936.
79
O Prof. Teixeira Ribeiro expõe esta realidade de forma clara nos seguintes termos:
«a dívida interna não acarreta, pois, nenhum ónus para as gerações futuras, uma vez que
estas pagam os juros e os reembolsos a si mesmas, como que recebendo com a mão
esquerda aquilo que entregam com a mão direita […]» – cf. Ribeiro, 1995.
80
Cf. Abba Lerner, The Burden of the National Debt, in Metzler et al., 1948,
reproduzido em Ferguson, 1964.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 249
Deste modo, pode-se dizer que, no plano em que nos situamos, a
consequência que a contração de um empréstimo no presente tem para
as gerações do futuro «é que ele limita a liberdade do Estado quanto à
disposição das suas receitas: o empréstimo obriga a levar em conta os
direitos adquiridos por uma certa categoria de indivíduos, os respetivos
subscritores e os seus herdeiros. [...] As gerações futuras não suportam,
pois, uma carga económica, mas apenas uma espécie de “servidão jurídica”
[…] que vem limitar os poderes dos governantes» (Duverger, 1956).
(b) A dívida externa pode colocar problemas de equidade interge-
racional.
A geração que decide recorrer ao crédito externo começa por ter um
benefício evidente: passa a dispor de um suplemento de meios financeiros
sem suportar o correspondente custo de oportunidade, dado que nenhum
dos seus membros abdica de um consumo ou de um investimento para
ceder fundos ao Estado. Contudo, na perspetiva da equidade interge‑
racional esse benefício tanto pode ser real como aparente, consoante a
utilização que for dada aos recursos adicionais assim obtidos.
Com efeito, se esse acréscimo de recursos for aplicado em despesas
de capital que beneficiem, exclusivamente, as gerações futuras, não há
qualquer iniquidade intergeracional, já que: por um lado, a geração que
contrai a dívida não utiliza em proveito próprio os meios assim obtidos,
visto que os aplica na provisão de bens públicos que os vindouros vão
usufruir; por outro lado, os impostos cobrados aos membros das gerações
seguintes para pagamento do serviço da dívida em causa representam,
tão-só, o seu devido contributo para o custeio dos correspondentes bens
públicos de que beneficiam.
Pode, aliás, argumentar-se que, nesta hipótese, é a geração presente
que suporta um custo, em virtude de abdicar de recursos reais em proveito
dos vindouros. De facto, um investimento representa, na sua essência,
uma redução do consumo atual em proveito de um consumo acrescido
no futuro: no dizer de Giuseppe Ricca Salerno (1849-1912), «a despesa
feita no presente, ainda que por meio de empréstimos, consiste sempre
num emprego ou num consumo de riqueza; e é claro que não podem
consumir-se as riquezas que ainda não existem»81. De forma sugestiva
e com algum humor, Wilhelm Roscher (1817-1894) expressa esta ideia
81
Cf. Teoria generale dei prestiti pubblici, 1879, citado em Pantaleoni, 1891.
250 J. ALBANO SANTOS
nos seguintes termos: «com cavalos do futuro não se pode equipar uma
divisão de cavalaria»82.
Um caso diferente é, porém, o de a geração que recorre ao crédito
externo decidir aplicar a totalidade dos fundos que assim obtém no
financiamento de despesas correntes. Como o benefício destas despe‑
sas se confina à geração presente sob a forma de um aumento do seu
consumo, neste caso, sim, perfila-se uma iniquidade intergeracional
que se concretiza no facto de os membros das gerações seguintes serem
chamados a pagar com os seus impostos aquilo que a geração anterior
consumiu, com a agravante de terem de fazer esse pagamento ao exterior,
drenando recursos da economia.
Isto é, com a dívida externa, deixam de ser aplicáveis os referidos
argumentos de que «devemos a nós próprios» ou que «as dívidas de um
estado são dívidas da mão direita à mão esquerda». Na verdade, sempre
que se trate de empréstimos externos, o pagamento do correlativo serviço
da dívida passa a implicar a saída de recursos para o estrangeiro, com a
inevitável repercussão negativa no nível de bem-estar do país devedor,
uma vez que a esses pagamentos ao exterior não corresponde qualquer
benefício para a geração que os suporta, visto a dívida ter sido usada
para financiar consumos correntes cuja utilidade, por definição, apenas
aproveitou à geração que recorreu ao crédito.
Decorre do exposto que só num caso específico a dívida pública
provoca uma situação de iniquidade intergeracional: quando a geração
presente se serve dela para transferir para as gerações vindouras o paga‑
mento dos bens e serviços que consome, financiando-os com recurso ao
crédito externo em vez de o fazer com impostos ou com empréstimos
internos. Importa ter presente, entretanto, que o valor dos consumos
públicos de uma geração não é dado, simplesmente, pelo total das
despesas correntes que figuram nas contas públicas; de facto, pode-se
considerar que algumas destas despesas vão beneficiar, sobretudo, as
gerações seguintes e podem, mesmo, representar fatores decisivos do
seu nível de bem-estar (v.g., salários de professores).
Cabe referir que, por vezes, se argumenta que o entendimento
precedente peca por abstrair do facto de a posteridade ter de suportar,
não só o reembolso da dívida pública, mas também o encargo dos
respetivos juros. Ora, a este argumento pode-se contrapor que, se os
recursos obtidos através dos empréstimos forem devidamente aplicados,
82
Cf. System der Finanzwissenschaft, 1886, ibidem.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 251
como é suposto, em investimento público – isto é, se estamos perante
o que Hugh Dalton designa por dívida reprodutiva –, o pagamento dos
juros correspondentes tem compensação no rendimento que, explícita
ou implicitamente, essas aplicações tendem a gerar (Dalton, 1922)83.
Portanto, também aqui não se pode falar de iniquidade intergeracional.
Posto isto, importa não perder de vista que a dívida pública tem
incidências macroeconómicas de outra ordem, das quais não é lícito
abstrair. De facto, mesmo no caso particular dos empréstimos internos,
a dívida pública, para além dos seus efeitos na distribuição do rendi‑
mento e da riqueza, pode ter repercussões significativas nos incentivos
para trabalhar, poupar ou assumir riscos (Meade, 1959, ou Ratchford,
1943). Assim, bem se pode dizer que a contração de um empréstimo
pelo Estado não é um fenómeno meramente contabilístico, como se
fosse a transferência de somas de dinheiro de uma conta para outra da
mesma empresa; pelo contrário, o processo tem consequências de longo
alcance na produção e na distribuição84.
São, aliás, conhecidos múltiplos exemplos de consequências negativas
que podem resultar da dívida pública – basta atentar nos casos [1] de
investimentos públicos ineficientes que só têm lugar porque a geração
que os decide não suporta o respetivo custo de oportunidade85, ou [2]
do encargo excedente associado a um eventual acréscimo de impostos
que as gerações seguintes tenham de recorrer para financiar o serviço da
dívida86, ou [3] das alterações no perfil do consumo e do investimento
que ela tende a provocar, em particular por via do chamado efeito de
evicção87. Estas incidências negativas não devem, porém, ser simples‑
83
O Prof. Dalton refere que, quando a dívida pública está totalmente coberta por ativos
públicos, «é análoga ao capital de uma empresa e os credores da autoridade pública são
como os obrigacionistas dessa empresa». Coisa diferente é estarmos perante uma dívida
peso-morto (aquela a que não corresponde qualquer ativo público): neste caso, os juros
a suportar pelas gerações seguintes têm de ser pagos com rendimentos de outras receitas
públicas (maxime, impostos), pelo que representam um fardo (ibidem).
84
Cf. Jørgen Pedersen, citado em Hansen, 1941.
85
Recorde-se que Benjamin Disraeli (1804-1881), antigo primeiro-ministro do
Reino Unido, não hesitou em afirmar que «a dívida é a mãe prolífica de loucuras e de
crimes» (Disraeli, 1837).
86
Recorde-se que o conceito de encargo excedente traduz o custo, em termos de
eficiência económica, que a cobrança de impostos implica (Santos, 2003).
87
Mais conhecido pela expressão anglo-saxónica crowding-out, traduz a possibilidade
de o recurso ao crédito por parte do Estado (designadamente por provocar uma subida
da taxa de juro) forçar o investimento privado a contrair-se. Cabe, porém, referir que,
252 J. ALBANO SANTOS
mente dissociadas do facto de muita da despesa pública que é financiada
por recurso à dívida ter por fim a provisão de bens públicos que geram
importantes benefícios para as gerações futuras (Herber, 1967).
Com efeito, importa ter presente que, se é certo que cada recém-nascido
herda o encargo da sua quota-parte na dívida pública, não o é menos que
a sua herança enquanto cidadão inclui, também, um valioso quinhão de
riqueza pública, seja ela tangível (v.g., estradas, escolas, hospitais) ou
não (v.g., património cultural e artístico, qualidade ambiental, aumento
da esperança de vida). Ora, em condições normais, estes ativos não são
separáveis da dívida pública, pelo que evocar apenas uma parcela do
espólio e esquecer as restantes afigura-se pouco rigoroso. Assim, a mera
análise da evolução da dívida pública num certo período tenderá a dar
uma imagem distorcida da realidade se abstrair da variação concomitante
no valor do património público.
Essa falta de rigor é, aliás, frequente e chega a ser reconhecida pelo
Legislador, como ressalta do seguinte trecho: «compreende-se o inte‑
resse não puramente científico, mas político e financeiro, de se poder a
cada passo cotejar o aumento ou diminuição da dívida pública com as
diferenças notadas no património do Estado. Fazem-se todos os anos
construções novas; realizam-se aquisições de bens móveis ou imóveis;
incorporam-se dezenas de milhares de contos no domínio público do
Estado em melhoramentos ferroviários, pontes, estradas, portos, obras
de hidráulica agrícola, reconstrução de monumentos e obras de arte.
E não se tem por intermédio das contas a menor impressão do constante
enriquecimento nacional operado por força das receitas ordinárias ou de
dívida contraída expressamente para aquele efeito: vê-se o que se paga
e o que se pede, mas não os aumentos que todos os anos se verificam
no ativo do Estado»88.
Deste modo, parece claro que a dívida pública, só por si, está longe
de ser um bom indicador das transferências intergeracionais – representa,
apenas, uma faceta da herança que, ao longo do tempo, cada geração
deixa às seguintes. Compreende-se, pois, que Alvin Hansen ao indagar
com igual propriedade, pode falar-se de um efeito de crowding-in, através do qual, em
período de recessão, a despesa pública financiada com dívida pode contribuir para elevar
o nível de atividade económica, acabando por induzir o investimento privado. Assim,
neste plano, o efeito da dívida pública vai depender da fase do ciclo económico em que
ela tem lugar (Baumol & Blinder, 1979). Para uma análise circunstanciada dos efeitos
económicos da Dívida Pública, veja-se Silva, 1977.
88
Cf. preâmbulo do Decreto-Lei n.º 22728, de 24 de junho de 1933.
A DÍVIDA PÚBLICA COMO PROBLEMA INTERGERACIONAL 253
se «em termos gerais, a geração futura fica melhor ou pior devido à
dívida?» tenha afirmado que «provavelmente, não há uma resposta
inequívoca que se possa dar a esta questão» (Hansen, 1959). Aliás,
convém ter presente que, não raro, a posição que se toma neste debate
é inquinada por fatores ideológicos: segundo James Tobin, perante a
questão de saber se a dívida pública coloca uma carga nas gerações
futuras, «a resposta foi durante muito tempo “sim” nos círculos políticos
e financeiros conservadores, e “não” entre os economistas académicos»
(Tobin, 1965)89. De facto, neste domínio, não é irrelevante a atitude que
se tem perante o Estado e a sua ação económica: no dizer de Brigitte
Unger, «dos vários debates económicos sobre a dívida pública ao longo
da História, podemos concluir que, nas épocas em que as teorias eram
a favor da dívida pública, a hipótese implícita era a de que as despesas
públicas eram boas, úteis, que os governos usavam recursos inativos
ou faziam alguma coisa com significado para o presente e o futuro.
Nas épocas em que se criticava a dívida pública, a hipótese implícita
era a de que as despesas públicas eram más, inúteis, que os governos
desperdiçavam recursos do presente e do futuro» (Unger, 2003).
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Ensaio sobre a Solidariedade Intergeracional
e a sua incidência na Despesa Pública
Maria d’Oliveira Martins*
1. Quando surgiu em Portugal a preocupação com a solidarieda-
de intergeracional e como esta se reflete em matéria financeira
pública?
De uma forma geral, embora o tema da solidariedade intergeracional
seja já objeto de preocupação e tratamento bem anterior, o seu estudo,
no que toca à sua aplicação à realidade portuguesa, faz-nos rapidamente
chegar à conclusão de que a preocupação ex professo com o futuro e as
gerações vindouras parece ter chegado já tarde, tanto no plano constitu‑
cional quanto no plano financeiro. Para uma perceção cronológica clara
do tema, mencionamos apenas duas datas: 1997 e 2004.
Só em 1997 é que o artigo 66.º, n.º 2, alínea d), da Constituição,
reconhece o “respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações”,
sendo certo, todavia, que desta primeira referência não podemos de
imediato extravasar uma influência, seja para o tratamento, seja para o
controlo da despesa pública (Miranda, 2005, p. 682). Com efeito, como
explica Jorge Pereira da Silva, a nossa Constituição, tal como, de resto,
todos os exemplos constitucionais de reconhecimento da solidariedade
intergeracional acabou por aderir apenas à “narrativa constitucional de
afirmação do ‘Estado de Direito Ambiental’” (Silva, 2010, p. 485).
No plano jurídico-financeiro, o tema da solidariedade entre gerações
acabou por ser abordado ex professo apenas com a revisão da Lei de
Enquadramento Orçamental, operada pela Lei n.º 48/2004, de 24 de
*
Professora Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa,
onde se licenciou, obteve o grau de Mestre e de Doutor. Leciona, desenvolve investigação
e publica sobretudo nas áreas de Direito Financeiro e Direito Constitucional. É autora
da Despesa Pública Justa – Uma análise jurídico-constitucional do tema da Justiça na
despesa pública (2016), das Lições de Finanças Públicas e Direito Financeiro (2011) e
do Contributo para a Compreensão das Garantias Institucionais (2007) e é coautora da
Lei de Enquadramento Orçamental – Anotada e Comentada (2007 e 2009).
262 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
agosto. No artigo 10.º desta mesma lei passou a ler-se no seu n.º 1 que
“o Orçamento do Estado subordina-se ao princípio da equidade na dis‑
tribuição de benefícios e custos entre as gerações” e no seu n.º 2 que
“a apreciação da equidade intergeracional incluirá necessariamente a
incidência orçamental: a) das medidas e ações incluídas no mapa XVII;
b) do investimento público; c) do investimento em capacitação humana,
cofinanciado pelo Estado; d) dos encargos com a dívida pública; e) das
necessidades de financiamento do setor empresarial do Estado; f ) das
pensões de reforma ou de outro tipo”.
E se as referências legais foram tardias, ainda mais o foram as referên‑
cias jurisprudenciais explícitas a estas questões de equilíbrio geracional.
A primeiríssima referência ao tema encontra-se no Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 437/2006, referindo-se de passagem à “solidariedade
intergeracional”. Servindo, neste caso, a referência para justificar o sistema
de repartição da Segurança Social (Urbano, 2014, p. 44).
No sentido estrito de limitação da despesa pública, ainda em sede de
referências jurisprudenciais, as primeiras palavras em relação à responsa‑
bilidade para com as gerações futuras foram proferidas pela Conselheira
Maria Lúcia Amaral, apenas no voto de vencido ao Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 353/2012, embora reconhecendo que deste princípio não
era ainda possível retirar um limite concreto. Este princípio voltou a ser
invocado mais uma vez em 2013, no Acórdão n.º 862/2013, tomado agora
e, pela primeira vez, como objeto de ponderação das medidas restritivas
de direitos sociais, tomadas no contexto da crise económico-financeira.
Num plano paralelo, é interessante notar que no Tribunal de Contas,
as primeiras referências são também tardias – de 2010 –, também elas de
passagem (cfr. exemplificativamente Acórdão n.º 22/2010 – 8 jun/1.ª/SS).
Só nos anos seguintes, começam a encontrar-se referências mais detalha‑
das a este princípio, sobretudo nos relatórios de auditoria do Tribunal de
Contas, procurando-se a sua densificação no que toca essencialmente à
dívida pública e aos encargos plurianuais (vide nomeadamente Relatório
n.º 11/2012 – FS/SRATC e Relatório n.º 3/2014 – FS/SRATC).
Embora as referências financeiras tenham sido vagarosas em chegar
– na verdade, muito vagarosas – é injusto dizer, sem mais, que o nosso
ordenamento jurídico se encontrava totalmente alheado deste problema.
Esta preocupação encontra-se patente há muito – embora sem referên‑
cias explícitas à solidariedade entre gerações – sobretudo a propósito da
discussão da dívida pública.
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 263
Antes de mais, destaca-se, a este propósito, que o período liberal
(1822-1926) – quer o monárquico, quer o republicano – é marcado, em
Portugal, pela adesão a um critério normativo restritivo em relação ao
equilíbrio (Franco & Martins, 1993, p. 108). A estrutura financeira
liberal caracterizada pela ideia de disciplina financeira, num esforço de
manter o orçamento equilibrado, subsistirá até 1928-1929 (com consoli‑
dação da dívida em 1852), embora apresentando sempre défice (Franco,
2001, p. 126 e 127-8).
Esta visão liberal está na base do entendimento clássico no que
toca ao equilíbrio orçamental: a ideia era a de que o endividamento só
deveria ser contraído em casos extremos. Não sendo economicamente
reprodutivas, as despesas não deveriam, na ótica dos autores liberais ser,
em caso algum, financiadas por recurso ao crédito público. Deveriam
ser apenas financiadas por receitas provenientes de impostos e da ges‑
tão do património (embora o património do Estado fosse normalmente
parco). Para os liberais o recurso ao crédito corresponderia sempre a
uma “ilegítima absorção pelos cidadãos presentes dos impostos que, no
futuro, outros cidadãos terão de suportar para pagar as dívidas herdadas”
(Franco, 2001, p. 58).
Mas não é só. Também o período de vigência da Constituição de
1933 foi marcado por um preceito, constrangendo o recurso ao crédito,
que bem poderia ser lido à luz desta proteção das gerações futuras: “não
pode recorrer-se a empréstimos senão por aplicações extraordinárias em
fomento económico, aumento indispensável do património nacional ou
necessidades imperiosas de defesa e salvação nacional” (prevendo porém
uma exceção para recurso a dívida flutuante para suprimento das receitas
de gestão corrente).
Desde 1976, embora a Constituição não exija mais do que a autoriza‑
ção parlamentar, sob a forma de lei, para a contração de dívida pública,
admitindo, quando muito, “um controlo a posteriori da Assembleia rela‑
tivamente ao crédito público” (Santos, Gonçalves & Marques, 2014,
p. 81), a verdade é que as sucessivas Leis de Enquadramento Orçamental
nunca deixaram de prever uma certa limitação do recurso ao crédito.
No período de vigência da atual Constituição não obstante a preocu‑
pação do equilíbrio orçamental ter ficado um pouco adormecida até à
entrada na União Económica e Monetária, a verdade é que a preocupação
com o futuro começou a explicitar-se logo na primeira versão da Lei de
Enquadramento Orçamental de 2001 com a afirmação do princípio da
estabilidade orçamental (entende-se por estabilidade orçamental a situação
264 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
de equilíbrio ou de excedente orçamental), defendido até por mecanis‑
mos corretivos, seguindo na esteira dos que também se tentam impor a
nível europeu (embora os limites quantitativos previstos no Tratado de
Funcionamento da União Europeia e que pressionaram o nosso legislador
a apertar o cerco ao endividamento excessivo, não sejam diretamente
associados ao problema da sustentabilidade/solidariedade intergeracional).
A partir do reconhecimento do princípio da solidariedade interge‑
racional pela Lei de Enquadramento Orçamental em 2004 é que este
conheceu, naturalmente, mais desenvolvimento jurídico. Até mesmo as
leis de enquadramento orçamental locais e regionais têm procurado ir
densificando progressivamente esse imperativo (veja-se, por exemplo, a
Lei das Finanças Locais, a qual já desde a versão dada pela Lei n.º 2/2007,
de 15 de janeiro, não só faz referência à equidade intergeracional no
artigo 35.º, como também procura densificar um pouco esse princípio
no regime de contração de dívida: estabelecendo limites à dívida total a
contrair no artigo 37.º; limitando a contração de empréstimos de médio e
longo prazo, fazendo-os corresponder a um investimento concreto ou ao
saneamento ou reequilíbrio financeiro no artigo 38.º, n.º 4; ou proibindo
a celebração de contratos com entidades financeiras com a finalidade de
consolidar dívida de curto prazo, bem como a cedência de créditos não
vencidos no artigo 38.º, n.º 12).
Isto dito, não se pode, pois, da tardia preocupação com o tema extrair‑
-se imediatamente que nunca foram formulados limites à atuação do
Estado, tendo em vista a proteção das gerações futuras.
Fora os casos de limitação de dívida pública, em matéria de despesa
pública, a preocupação a favor das gerações do porvir é também explícita
já na última metade do século xx, ao nível da Segurança Social, com a
adoção de um sistema de repartição, o qual assenta num entendimento
geracional: a geração presente paga àquela que a antecede. Mesmo que
esta ideia de solidariedade entre gerações nunca fosse explicitada, o
arranjo geracional em que a Segurança Social assenta desde a década
de 1960 impediria a rutura do financiamento da geração mais velha pela
mais nova (e.g., através do retorno a um puro sistema de capitalização,
assegurando apenas as prestações futuras da geração contribuinte e com‑
prometendo o financiamento presente da geração inativa); assim como
impediria, simetricamente, um aumento das reformas e dos benefícios
das gerações inativas pondo em perigo as prestações futuras.
Hoje, no plano financeiro, a solidariedade intergeracional tem, de
novo, como face mais visível os limites à contração de dívida. Pode
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 265
falar-se, por isso, de um retorno aos “grandes debates e preocupações
que foram os da idade de ouro das finanças e da filosofia política” (Bou‑
vier, Esclassan & Lassale, 2010, p. 21). Esta ponderação cada vez mais
frequente dos interesses das gerações futuras e o retorno às limitações
clássicas de endividamento público não se cinge, porém, a repetir o que
foi feito no final do século xix e início do século xx. Ela tem conduzido
a uma renovação da face das finanças públicas. O debate e a preocupação
gerada em torno da proteção das gerações futuras, sobretudo depois da
década de 1970, faz com estas assumam protagonismo nas decisões de
despesa pública que atualmente se tomam. O princípio da solidariedade
intergeracional constrange hoje – e cada vez mais – as decisões de des‑
pesa pública no que toca à assunção de responsabilidades contratuais,
sobretudo, plurianuais. Por isso, e como nunca antes, as finanças públicas,
surgem pela primeira vez, associadas ao desenvolvimento de modelos
assentes em projeções de médio e longo prazo, indicadores sintéticos
de sustentabilidade, em contabilidade intergeracional e de equilíbrio
geral, os quais permitem calcular desde já se os encargos plurianuais
estão distribuídos equilibradamente ao longo do tempo ou então prever
a partir de uma previsão de receitas (com base na capacidade conhecida
de a entidade pública gerar receita) se esses mesmos encargos podem
ser pagos até ao seu termo.
Com base nestes avanços, o Orçamento deixa, assim, de ser encarado
numa lógica anual, para ser encarado de uma perspetiva plurianual. Veja‑
-se, neste sentido, a recente evolução do direito orçamental promovendo
o reforço da programação orçamental e a limitação da despesa por essa
via (note-se que na mais recente alteração da LEO, promovida pela Lei
n.º 151/2015, de 11 de setembro se registou um aprofundamento da
programação orçamental: o OE passa a ser integralmente apresentado
por programas, alterando o caminho que a lei de 2001 vinha trilhando.
Recorde-se que a lei de 2001 previa que as receitas e as despesas fossem
apresentadas simultaneamente numa lógica anual e de programas. Nota‑
mos que ao nível local e regional a lógica da programação total ainda
não é aplicável, uma vez que aí a programação é facultativa e parcial,
não obstante pensarmos que é uma questão de tempo até as suas leis
de enquadramento orçamental acompanharem o que é feito pela LEO.
O sentido da evolução legislativa parece ir claramente neste sentido da
programação).
Estas alterações ao nível da orçamentação da despesa, enfraquecendo
a importância do planeamento anual, são acompanhadas por alterações
266 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
ao nível contabilístico. Para ponderação dos interesses das gerações
futuras, a contabilidade de caixa, favorecedora de uma perspetiva anual
de inscrição de receitas e despesas, é cada vez mais complementada por
uma perspetiva plurianual que, de alguma forma, impede ou compensa
a oneração das gerações futuras com um aumento da poupança total
(Martins, Martins & Martins, 2009, pp. 97-9).
2. Os casos de prioridade ao presente, limitadores da invocação da
solidariedade entre gerações
Depois de uma introdução descritiva e genérica do impacto que a
solidariedade entre gerações tem sobre as finanças públicas, é tempo
de passar para um plano mais problemático, levantando as questões que
estão por detrás dos limites que se possam querer estabelecer à despesa
pública com base neste princípio da solidariedade entre as gerações.
A primeira questão que se levanta é a de saber até onde se pode e deve
levar a tutela dos direitos das gerações futuras e se, em última análise,
as gerações presentes devem sacrificar o seu bem-estar em benefício do
porvir. Para nós, a resposta a esta questão é fundamental para procurar‑
mos balizar este dever de solidariedade, para percebermos afinal com
que limites e dimensão se poderá aplicar à intervenção pública.
Na resposta a esta primeira questão, partimos de uma premissa que
para nós é óbvia. A solidariedade intergeracional não deve confundir‑
-se com uma prioridade à geração futura. Isto porque só o interesse das
presentes gerações é real, ao contrário do interesse das gerações futuras
que é meramente hipotético (está em causa a afirmação de que não conhe‑
cemos o futuro, embora como Brian Barry defende, haja limites para
a afirmação desse desconhecimento: “Of course, we don’t know what
the precise taste of our remote descendants will be, but they are unlikely
to include a desire for skin cancer, soil erosion, or the inundation of all
low-lying areas as a result of the melting of the ice-caps” – Barry, 1977,
pp. 268-84). E afirmar o contrário seria como reconhecer que uma pes‑
soa teria de viver condicionada para poder deixar uma herança aos seus
descendentes, ficando limitada no usufruto dos seus réditos e riqueza.
O que não faz sentido, como princípio geral. Mas daí a dizer que só o
presente interessa e que por isso estaríamos sempre legitimados a atirar
a fatura para o futuro, para que as gerações vindouras custeiem as nossas
despesas, vai um grande passo. Será, pois, no meio termo entre a preva‑
lência de uns e outros interesses que havemos de encontrar a resposta à
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 267
questão última de saber que despesa devemos fazer ou deixar de fazer
para salvaguardar os interesses das gerações dos nossos descendentes.
Começamos então por explicar os limites à invocação da solidariedade
intergeracional. Ou seja, os casos em que a afirmação de uma prioridade
à geração presente impedem, em certos domínios, a consideração dos
interesses das gerações futuras.
Os primeiros limites a esta ideia de solidariedade encontram-se nos
casos em que a reserva do financeiramente possível é insuscetível de ser
invocada. Com efeito, aí onde não pode ser invocada a falta de meios, pelo
Estado, encontram-se as prioridades que devem ser atendidas, pensando
mais nas gerações presentes e menos nas gerações futuras.
Hoje, podemos identificar três limites à reserva do financeiramente
possível:
1) O direito a um mínimo de existência condigna;
2) O conteúdo mínimo dos direitos, liberdades e garantias e direitos
fundamentais de natureza análoga; e
3) O conteúdo mínimo dos direitos económicos sociais e culturais
(para mais desenvolvimentos sobre estes limites cf. Martins,
2016, pp. 351 et seq.).
Nestes casos, a prioridade ao presente resulta, antes de mais, de uma
tendência natural de acudir às necessidades dos que nos estão próximos
(vide Lumer, 2006, p. 41 e sobre a inadaptação dos atuais sistemas políticos
às tarefas de concretização dos princípios de justiça entre gerações, Silva,
2010, p. 476 e p. 479), mas resulta, sobretudo, do respeito e promoção
do valores jurídicos protegidos pela nossa Constituição: a dignidade da
pessoa; a proteção dos direitos liberdades e garantias, impedindo a sua
restrição; e a proteção do conteúdo mínimo dos direitos sociais para o
cumprimento da visão da justiça social programaticamente prevista pelo
texto da Lei Fundamental. Obviamente que esta prioridade do presente
não se faz sentir sempre com a mesma intensidade. Há, no fundo, três
níveis de intensidade desta prioridade, como se explicará adiante.
Explicando um pouco melhor a afirmação desta prioridade ao presente,
começaremos, justamente, pelo primeiro nível, referindo-nos ao direito
a uma existência condigna.
Retirando diretamente, quer do princípio da dignidade da pessoa
humana, quer da própria ideia de Estado social em que se funda a despesa
pública, a ideia de prestações estaduais, “que permitam uma existência
268 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
autodeterminada, sem o que a pessoa, [seria] obrigada a viver em condi‑
ções de penúria extrema” (Novais, 2004, p. 64), já em 2002 o Tribunal
Constitucional deixa claro que o Estado deve assumir preocupações
redistributivas através da despesa. Servindo-se dos seus réditos, o Estado
deve, assim, assumir a anulação das condições de pobreza extrema que
pudessem fazer perigar a vida das pessoas. Os indivíduos podem assim
exigir ao Estado a garantia da sua existência material.
Notamos, porém, que a defesa do direito a uma vida minimamente
condigna, nos termos da Constituição, não deve cingir-se a um mínimo
de sobrevivência para que a pessoa se mantenha viva. Ou seja, não deve
limitar-se ao mínimo para alimentação ou habitação, como sucede com
o atual rendimento social de inserção, que nas grandes cidades apenas
cobre, por via de regra, as despesas de habitação, deixando todas as
outras necessidades básicas sujeitas à satisfação por parte da benevolên‑
cia voluntária. A dignidade da pessoa humana que é reconhecida pela
Constituição deve obrigar a um entendimento mais exigente. Ele deve
incluir não só o direito a um mínimo de sobrevivência, mas também o
direito a um mínimo de existência condigna, na linha do que reconhece,
aliás o Tribunal Constitucional alemão no BVerfGE 125, 175. Apresenta‑
-se-nos, portanto, um Estado que mais do que assegurar o mínimo de
subsistência para todos, deve intervir no sentido da promoção de uma
vida condigna para todos; a promoção da “vida minimamente condigna”
(minimally decent life) de que fala Cécile Fabre (Fabre, 2000, passim).
Nestes termos, do reconhecimento da dignidade da pessoa humana deve
resultar um imperativo de cobertura de outras necessidades para além
das de abrigo e alimentação, suficientes para manter a pessoa viva.
Entre essas necessidades que têm de ser tomadas em conta, pensamos,
nomeadamente, nas necessidades básicas de habitação condigna, de
acesso à saúde, à educação, à informação, de acesso ao Direito e apoio
judiciário e até de utilização do espaço público – incluindo, por exemplo,
necessidades com vestuário e calçado adequado de forma a que a pessoa
não surja, com vergonha, no espaço público (BVerfGE 125, 175: “The
statutory benefit claim must be shaped such that it always covers the
total needs necessary for the existence of each individual fundamental
right holder”).
Diga-se até que é o próprio entendimento que o Tribunal Constitu‑
cional tem defendido em relação à consideração de uma vida condigna
– ainda que para efeitos negativos, ou seja, de proteção de determinado
rendimento em casos de penhora – que nos leva a elevar a fasquia no
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 269
que toca à exigência que se deveria ter em relação às prestações que são
devidas pelo Estado. No Parecer da Comissão Constitucional n.º 479
de 25 de março de 1983 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional
n.os 232/91, 349/91, 434/91, 411/93, 130/95, 318/99, 62/02, 177/02 e 96/04,
os juízes do Palácio Ratton demonstram o reconhecimento da proteção
pública contra a privação de um mínimo para uma vida condigna, numa
medida que extravasa largamente um mínimo de sobrevivência. O Tri‑
bunal reconhece até que a esfera de proteção abrange o salário mínimo.
Relativamente à proteção do salário mínimo, por exemplo, a jurisprudência
do Tribunal Constitucional parece-nos até bastante generosa. Diga-se
até que na esteira deste reconhecimento jurisprudencial, o artigo 738.º
do novo Código de Processo Civil refere até atualmente, para efeitos
de consideração dos casos de proteção deste mínimo de vida condigna,
a possibilidade de alargamento desse mesmo mínimo – que é o salário
mínimo – atendendo ao montante e à natureza do crédito exequendo,
bem como às necessidades do executado e do seu agregado familiar.
O direito a uma vida minimamente condigna deve ser encarado
pelo Estado como uma despesa de inscrição prioritária, até mesmo à
frente das despesas decorrentes de leis e de contratos que nos termos da
Constituição parecem ser as únicas limitações ao legislador orçamental
(para nós, é esta ideia que nos faz não temer que este direito soçobre
em situações de dificuldades económicas – como objeta Novais, 2010,
pp. 206-7). Esta é, portanto, uma despesa que deve ser considerada isenta
da invocação da reserva do financeiramente possível (como defendem
Torres in Sarlet e Timm, 2008, pp. 80-1 e Torres, 2009, pp. 83 et
seq.). Foi, aliás, desta forma que o Tribunal Constitucional reconheceu
este direito; como um direito que vincula o Estado “independentemente
de dificuldades financeiras circunstanciais ou de particulares orientações
políticas” (Novais, 2004, pp. 67 e 68).
Desta impossibilidade de invocação da reserva do financeiramente
possível deve retirar-se o reconhecimento de uma prioridade ao presente
aplicada em pleno. Mais do que pensar no futuro, trata-se de assegurar
a existência e a capacidade de os presentes gerarem filhos e netos com
que se preocupar. Isto significa que, antes de se comprometer com
qualquer despesa ou com o futuro, o Estado tem pois de arranjar meios
para distribuir bens, de forma a assegurar, pelo menos, a existência das
pessoas que compõem o seu substrato. Não faria sentido deixar morrer
hoje alguém à fome em benefício de um futuro incerto ou de uma pessoa
que ainda nem sequer nasceu.
270 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
Mesmo reconhecendo a ideia de uma prioridade ao presente aplicada
em pleno, não podemos deixar de reconhecer que valerão alguns limites
que contemplam a proteção das gerações futuras: não obstante a falta de
limites constitucionais ao endividamento público, há limites orçamentais
máximos que não poderão deixar de ser invocados e que, na prática,
poderão ter de ser equacionados em sede de decisão orçamental e em sede
de controlo jurisdicional respetivo e que valem tanto para estas despesas,
como para qualquer outro gasto a orçamentar. Desde logo, a orçamen‑
tação da despesa tem de respeitar os limites previstos para o recurso ao
crédito público, nos termos do que hoje dispõe a Lei de Enquadramento
Orçamental. Fica, pois, fora de causa o recurso ao crédito público para
financiar o défice do ano orçamental em causa [(Moreira, 2007, p. 135,
e Sarlet & Figueiredo, 2008, falando de um “impacto económico […]
muito expressivo [do mínimo existencial contido no direito à saúde]
(comparado com o ‘custo’ do mínimo existencial em outros casos, como
o da moradia e do ensino fundamental, por exemplo)”].
Para além destes limites orçamentais máximos que podem ser invo‑
cados contra estas despesas, deve notar-se que deve valer também a
regra de que devem ser aceites, pelo poder judicial, compressões a este
direito a uma vida minimamente condigna, no caso de uma concreta
prova de impossibilidade de ação por parte do Estado. Neste juízo,
devem pois os juízes basear-se numa prova concreta de escassez real de
recursos. Entendemos, assim que não pode deixar de valer o princípio
segundo o qual ultra posse nemo obligatur. Pensamos, porém, que esta
prova que deve ser sempre ponderada à luz da ideia de que as verbas
de que o Estado dispõe devem ser afetadas prioritariamente a resolver
os casos de emergência social. Note-se que a escassez real de recursos
corresponde à falta de verba, já depois de ultrapassados os limites de
dívida ou em casos de impossibilidade de recurso a essa mesma dívida
para fazer face a necessidades de financiamento público. A escassez real
de recursos não deriva de uma valoração politica, como a ponderação
feita ao abrigo da reserva do financeiramente possível. Ela deriva, sim,
de uma impossibilidade técnica que é passível de ser demonstrada. Esta
escassez distingue-se da escassez moderada de recursos, que está ligada
com a invocação normal da reserva do possível (vide sobre isto Lima
Lopes in Sarlet & Timm, 2008, pp. 178-93 e ainda Stern, 1988, p. 719).
A solidariedade entre gerações terá, então, neste domínio, o seu
conteúdo mínimo. Pelo menos neste núcleo, a despesa pública deve
corresponder – senão efetivamente, pelo menos, tendencialmente – à
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 271
capacidade financeira do Estado, para responder às situações de sofrimento
das pessoas presentes que se encontram no seu substrato.
Este dever de orçamentar a verba correspondente a esta vida minima‑
mente condigna para a geração presente poderá, todavia, vir associado ao
perigo de uma total subordinação à interpretação que os juízes fizerem
desse direito. O que fazer para afastar esse perigo, de forma a que o
poder orçamental não fique nesta parte entregue aos juízes?
Este perigo fica afastado se não se procurar subverter a lógica da
repartição de poderes orçamentais prevista na Constituição. Defendemos,
assim que, no que toca a esta despesa relativa ao mínimo de existência
condigna, o juiz deve ficar, à partida, impedido de questionar o como e o
quanto previsto pelo legislador no Orçamento do Estado para a concreti‑
zação deste imperativo da dignidade da pessoa, pois que há um espaço de
conformação legislativa que deve ser respeitado. É certo que a garantia de
um mínimo (qualquer que ele seja) é sempre difícil de fixar, uma vez que
não beneficia de diretivas constitucionais claras para a sua fixação. Assim,
e atendendo à impossibilidade de fixação de um valor para esse mínimo
a partir da Constituição, teremos inevitavelmente de reconhecer que se
abre um espaço para a conformação legislativa, suscetível de controlo
apenas nos casos em que a violação do mínimo desta vida condigna nas
dimensões mínimas apontadas – alimentação, habitação, acesso à saúde
e utilização do espaço público – seja evidente, uma vez que não há nada
na Constituição que aponte para o modo de concretização deste mínimo
(logo no primeiro Acórdão em que se refere a este mínimo, o Tribunal
Constitucional Federal Alemão fala desta liberdade de conformação
legislativa que nós também aqui reconhecemos: “[…] existem muitas
possibilidades para realizar a proteção oferecida” – BverfGE 40, 121.
Cf. ainda Novais, 2010, p. 193). No que toca à configuração do controlo
deste mínimo nós defendemos, portanto, a aplicação de um critério de
evidência (Vide Sarlet & Figueiredo, 2008. Vide com interesse para
este tema Silva, 2015, p. 128, e Amaral & Medeiros, 2000, p. 369, e
Fabre, a qual, em caso de violação de um dos direitos referidos, defende
que “the constitutional court should tell the government when it has
breached a right and should set a deadline for the provision of remedies,
but should not tell the government which remedies to provide and how it
should provide them” – Fabre, 2000, loc. 130-33, versão kindle). Portanto,
só no caso de manifesta insuficiência da verba (critério de evidência) e
em todas as situações concretas em que a verba orçamentada se mostre
insuficiente para acorrer a situações de carência absoluta é que o juiz deve
272 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
condenar o Estado ao pagamento ou à prestação devida, mesmo que não
haja cabimento orçamental expresso para tal. Nesse caso, o Estado deverá
ser obrigado a suprir a falha orçamental pelos meios normais relativos às
despesas obrigatórias (utilizando, por exemplo, a dotação provisional).
Para evitar ter de aplicar um critério de evidência, poderia pensar-se,
para que não se pise a linha da separação de poderes, à maneira do que
exige o Tribunal Constitucional alemão, na obrigação do Governo dar
a conhecer os métodos e cálculos que usa para determinar o mínimo de
existência condigna (cf. BVerfGE 125, 175, de 20 de outubro de 2009
– Hartz IV).
Para além do direito a um mínimo de existência condigna, a prioridade
à geração presente deve também fazer-se sentir ao nível da despesa pública
implicada na concretização dos direitos, liberdades e garantias e direitos
fundamentais de natureza análoga (defendendo que os direitos, liberdades
e garantias têm custos, cf., nomeadamente, Holmes & Sunstein, 1999,
Nabais, 2007 e 2008, e Novais, 2010. Vide ainda Matos, 1998, p. 8,
ou Chulvi, 2001, p. 63). Identificamos, assim, como despesa pública
constitucionalmente prioritária a que se baseia no caráter determinável de
algumas normas constitucionais. Isto porque quando conjugada com um
direito diretamente exigível a partir da Constituição, a reserva do possí‑
vel nunca poderá conceder liberdade legislativa plena para a definição
da despesa necessária à concretização dos direitos fundamentais em si
mesmos, sob pena de restrição inconstitucional do direito. Nesta medida,
a atividade do legislador orçamental poderá e deverá ser controlada pelo
poder jurisdicional, no sentido deste último aferir da constitucionalidade
das escolhas feitas.
Nestas normas, na medida em que a reserva do possível se tolhe,
surgindo, as mais das vezes, reduzida a uma reserva geral de ponde‑
ração, isto significa que há a prioridade à geração presente, na medida
em que vale a proibição de restrição inconstitucional dos seus direitos,
liberdades e garantias.
À semelhança do que sucede quanto ao direito a uma vida minima‑
mente condigna, esta reserva impedirá o poder judicial de controlar, por
princípio, o como e o quanto decididos pelo legislador orçamental; mas
e uma vez que estamos no âmbito das normas determináveis, o controlo
judicial será sempre possível. Desde logo, no que toca ao quando do
direito em causa. Para além disso, no que toca à despesa que resulta
destas normas, ela deverá sempre ser controlada, quer de acordo com o
parâmetros mínimos de respeito pelo conteúdo essencial do direito em
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 273
causa, quer de acordo com os limites impostos pelo Estado de direito
democrático (igualdade, proporcionalidade ou proteção da confiança).
No seio destas normas, a reserva do possível só se limita verdadeira‑
mente quando é a Constituição que impõe especificamente ao legislador
a adoção de despesas públicas determinadas.
No âmbito da concretização dos direitos, liberdades e garantias, a
prioridade ao presente faz-se sentir de novo, mas não num nível tão
limitador para o legislador como a proteção do direito a um mínimo de
existência condigna. Isto porque se abre a possibilidade de o legislador
poder escolher dentre as soluções possíveis para a concretização dos
direitos em causa, as soluções de despesas que lhe pareçam menos one‑
rosas ou mais sustentáveis numa perspetiva de futuro. Valem também
aqui, todavia, os limites à despesa impostos pelo princípio da estabilidade
orçamental e o da escassez real de recursos.
Para além do direito a um mínimo de existência condigna e do
cumprimento dos direitos, liberdades e garantias, na parte em que o seu
conteúdo é determinável a partir da Constituição, poderemos falar ainda
de prioridade ao presente no que toca à concretização de um conteúdo
mínimo de realização dos direitos económicos, sociais e culturais.
Se é verdade que os direitos sociais estão associados a uma aplicação
forte da reserva do financeiramente possível e que por via de regra o
poder judicial fica com o seu poder tolhido no que toca ao seu controlo
(pois não poderá, por regra, controlar nem o quando, nem o como nem
o quanto orçamentado), a verdade é que a prioridade ao presente tam‑
bém se faz sentir. Embora, admitimo-lo, de forma mais mitigada do que
qualquer uma das situações anteriormente referidas: é a prioridade ao
presente reduzida ao mínimo.
Esta prioridade ao presente vai-se afirmando devido ao facto de a
concretização das normas de direitos económicos, sociais e culturais ir
tolhendo paulatinamente a liberdade orçamental. Não se pode pois, nem
no seio dos direitos sociais, falar de uma liberdade orçamental máxima,
uma vez que o Estado vai ficando amarrado às metas ou objetivos cons‑
titucionalmente já alcançados no sentido da concretização de uma visão
de justiça social que vá retirando paulatinamente as pessoas de situações
de submissão, exploração, dominação, violência ou extrema carência.
O melhor exemplo que encontramos para explicar esta submissão
progressiva encontra-se na escolaridade obrigatória. Ainda que a letra
da Constituição limite o ensino obrigatório ao ensino básico, hoje os
deveres de despesa que o Estado foi assumindo, à luz das metas que foi
274 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
fixando para a sua ação, impedem-no de retroceder nos passos que foi
dando quanto à elevação do limite da escolaridade obrigatória para além
do ensino básico. Os objetivos a definir pelo Estado no que toca às metas
curriculares mínimas não podem deixar de apresentar uma relação estreita
não só com a promoção de um determinado nível cultural e de literacia e
numeracia entre os portugueses, mas também com outros fatores que não
podem ficar sem consideração quando o legislador orçamental pondera
os recursos a alocar à escolaridade obrigatória. Estamos a pensar em
concreto em como a escolaridade obrigatória se relaciona intimamente,
por exemplo, com a proibição do trabalho infantil, com a promoção
dos direitos das mulheres e das crianças ou até mais genericamente
com os deveres de promoção do desenvolvimento das potencialidades
de todas as pessoas, para que estas tenham meios de se governar e de
prover autonomamente à sua subsistência. Isto já para não falar na forma
como a escolaridade obrigatória se relaciona intimamente com metas e
compromissos que o Estado vai assumindo em matéria de investigação
e desenvolvimento (I&D).
O mesmo vale para o caso de uma reorganização do serviço nacional
de saúde que impossibilite o acesso das pessoas de determinadas loca‑
lidades a cuidados de saúde. É certo que literalmente, nos termos da
Constituição, não se diz quantos são os hospitais que devem fazer parte
da rede de cuidados de saúde, no entanto, a verdade é que o caminho
que o legislador tem vindo a seguir permite falar de uma consolidação no
seio da Constituição material de uma certa visão dos cuidados de saúde
que são prestados publicamente que não pode ser descurada quando
pensamos no conteúdo essencial do direito à saúde.
A prioridade ao presente surge, assim, no seio dos direitos sociais,
com uma vertente positiva, obrigando o Estado à contínua promoção de
esforços no que toca ao aumento das potencialidades (capabilities) das
pessoas e ancorando a intervenção pública a uma ideia ética de compro‑
metimento com os direitos fundamentais, tal como se vão consolidando
na ordem jurídica. Contudo, sobressai também na sua vertente negativa,
impedindo o retorno nos passos já dados na concretização da justiça social.
Limita-se assim a liberdade orçamental pública, impedindo o legislador
de retirar a proteção que já oferecera concretamente às pessoas do perigo
de ficarem em situações de submissão, exploração, dominação, violência
ou extrema carência (Martins, 2016, pp. 409 et seq.).
De todos os níveis de prioridade à geração presente este é, nos termos
da Constituição, aquele que é o mais limitado de todos. Naturalmente
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 275
que só se admite a consideração da prioridade à geração presente nos
aspetos da justiça social que estão não só concretizados, mas também
consolidados no nosso ordenamento jurídico.
Encolhendo a prioridade da geração presente às opções de Justiça
Social consolidadas no nosso ordenamento jurídico, cresce inevitavel‑
mente o espaço da reserva do financeiramente possível em relação à
concretização das normas constitucionais indetermináveis programáti‑
cas, o que aumenta inevitavelmente o espaço para a preocupação com
a geração futura. Valem não só os limites genéricos de endividamento
referidos nas situações anteriores de prioridade à geração presente, mas
cresce o espaço de invocação da escassez de recursos, não só por razões
políticas, mas também por razões de poupança justa para salvaguarda
do porvir. Em todos os casos de concretização da Justiça Social ainda
não consolidados na realidade constitucional, nem sequer é necessária
a invocação de uma escassez real de recursos. Basta a invocação da
necessidade dos recursos para outras finalidades ou prioridades também
reconhecidas pela Constituição.
3. Prioridade ao presente e tutela dos interesses das gerações futu-
ras
Fora estes casos de prioridade de despesa pública em relação à geração
presente coloca-se a questão de saber, em que medida são considerados
os interesses das gerações futuras.
Para resposta a esta questão, não nos basta a análise do texto consti‑
tucional. A compreensão da solidariedade intergeracional em termos de
despesa pública passa, em grande parte, pela compreensão do controlo
que já hoje é feito em relação às decisões que implicam dispêndio por
parte Estado.
Em termos financeiros, o princípio da solidariedade intergeracional
consubstancia-se atualmente, sobretudo, num controlo das despesas que
se prolonguem no tempo, as despesas plurianuais. É o que se retira, de
resto, do atual artigo 13.º da Lei de Enquadramento Orçamental quando
estabelece que “a atividade financeira do setor das administrações públicas
está subordinada ao princípio da equidade na distribuição de benefícios
e custos entre gerações, de modo a não onerar excessivamente as gera‑
ções futuras, salvaguardando as suas legítimas expectativas através de
uma distribuição equilibrada dos custos pelos vários orçamentos num
quadro plurianual”.
276 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
No que toca a estas despesas plurianuais, o controlo é feito de forma
a que as mesmas sejam equilibradamente distribuídas ao longo do tempo.
É, aliás, em relação a estas que se pode falar de uma versão mais forte
da solidariedade para com as gerações futuras.
Este controlo é hoje em dia feito, nomeadamente, pelo Tribunal de
Contas quando recusa o visto a despesas nestas condições, por violação
seja de normas financeiras, seja do princípio da boa administração, que
nas finanças públicas se consubstancia no controlo dos 3’Es da econo‑
mia, eficiência e eficácia, podendo ainda ser realizado pelo Tribunal
Constitucional no controlo que faz das leis dos Orçamentos do Estado.
Este escrutínio, porém, não impõe uma limitação concreta às despesas
controladas. Quando muito ele implicará a invalidação das despesas caso
haja uma evidência de que elas não se encontram adequadamente distri‑
buídas no tempo (critério da evidência). A aplicação de um critério da
evidência baseia-se no facto de não se conseguir extrair da solidariedade
entre gerações um limite concreto de despesa. E isto não é possível, porque
não vivemos na “sociedade ideal”, ou seja, na sociedade que demonstre
“uma capacidade total para [...] prever com rigor as necessidades e recursos
disponíveis ao longo dos tempos e deliberar, consequentemente, em cada
momento, qual a parcela de rendimento que deveria ser afeta ao consumo
e a que deveria ser desviada para a poupança” (Ferreira, 1995, p. 71).
À luz deste critério de evidência, será então possível impedir, por
exemplo, a realização de uma despesa pública para proteção das gera‑
ções futuras quando ela implica défice ou dívida pública para além dos
limites previstos; quando da mesma resultem encargos plurianuais que
se preveem desde já insuscetíveis de ser pagos no futuro, com base no
esquema vigente de distribuição de receitas públicas; ou quando a mesma
pode dar origem a pagamentos futuros não previstos (porque ocultos ou
mal calculados) no presente.
Incorporando cada vez mais preocupações de comportabilidade
financeira e de sustentabilidade, veja-se exemplificativamente a recente
evolução do regime jurídico das parcerias público-privadas, cada vez
mais exigente quanto a um planeamento cuidado e rigoroso das despesas
geradas e quanto à identificação da proveniência concreta dos fundos que
as financiam, prevendo ainda o reforço dos mecanismos que assegurem
que os orçamentos futuros não sejam onerados com custos imprevisíveis
ou adicionais em relação aos que estão já previstos.
Se este controlo é passível de ser feito já hoje no âmbito das des‑
pesas públicas de que resultem encargos plurianuais, não é certo que a
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 277
ponderação das gerações futuras seja tão clara em relação às despesas
que não geram encargos plurianuais.
É certo que o legislador, ao desenvolver a ideia da programação
orçamental deu um passo em frente na salvaguarda dos interesses da
geração futura, uma vez que com esta programação acaba por revestir
todas as despesas desta aparência plurianual. Como é sabido, a programa‑
ção, invertendo a lógica da ponderação orçamental – de uma perspetiva
bottom-up para outra top-down –, permite que, pelo menos no espaço
da legislatura, haja um maior escrutínio dos gastos orçamentais e uma
avaliação crítica da sua distribuição no tempo. Note-se até que o legis‑
lador ao impor, na nova versão da Lei de Enquadramento Orçamental,
a identificação das receitas e das fontes de financiamento para cada
despesa em concreto, promove a facilitação da deteção de incapacidade
ou dificuldade de pagamentos futuros.
Não obstante a novidade que isto implica, o limitadíssimo horizonte
temporal desta programação (o ano em curso e os quatro anos seguin‑
tes) não permite falar aqui de uma verdadeira tutela dos interesses das
gerações futuras. Quando muito, pode dizer-se que a solidariedade entre
gerações vale aqui numa versão fraca de si própria, inspirando apenas
um princípio geral de equilíbrio temporal dos pagamentos plurianuais
no espaço da legislatura.
No que toca às despesas plurianuais que aqui se referem como objeto
principal da solidariedade entre gerações, chama-se a atenção para um
facto, de certa forma, curioso. Dentro do Orçamento do Estado, a con‑
jugação dos mapas de classificação económica com os demais mapas
de despesa parece indiciar que o legislador privilegia as despesas com
formação de capital fixo em detrimento das chamadas despesas de futuro,
ou seja, das despesas com educação e investigação, assente ainda no
pressuposto de que as primeiras mais facilmente melhoram ou aumentam
as capacidades produtivas da economia dos as segundas. Com efeito, a
divisão das despesas em correntes e de capital acaba por permitir um
regime mais favorável a estas últimas despesas, na medida em que se
permite que estas beneficiem em certos casos de receitas creditícias,
como se as outras (as chamadas despesas de futuro) fossem equiparáveis
a quaisquer outros consumos (entendidos estes na lógica do Estado liberal
“de redução de riqueza, de património, ainda que redução considerada
necessária, indispensável” – Martinez, 1967, p. 32) que devem ser
reduzidos ao mínimo para evitar desperdício.
278 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
Hoje esta visão da despesa está completamente ultrapassada, uma vez
que hoje bem se sabe que tanto as clássicas despesas de capital quanto
as despesas de educação e investigação podem ter um fortíssimo impacto
nas gerações futuras. As despesas de investigação e desenvolvimento,
por exemplo, mesmo não contribuindo para o aumento do património
duradouro do Estado, são feitas a pensar na formação de capital humano
reprodutivo (apesar de no momento em que estas despesas são efetuadas
elas não parecerem reprodutivas, a verdade é que a sua realização pode
permitir um desenvolvimento económico a médio ou longo prazo. Nas
palavras de Duverger, “aumentar as despesas com o ensino é subtrair
capitais e trabalho ao circuito económico; mas isso pode permitir desen‑
volver a formação técnica e humana que assegurará o desenvolvimento
futuro da economia” – Duverger, 1975, p. 47).
É certo que se nas despesas de capital é fácil avaliar o valor das
contrapartidas que oferecem, com as despesas de investigação e de edu‑
cação será difícil fazê-lo. Primeiro, porque os bens que elas produzem
são imateriais, nem sempre fáceis de avaliar e, segundo, porque esses
mesmos bens são insuscetíveis de inventariação (ao contrário dos bens
duradouros). Não obstante esta dificuldade, questionamos se o legislador
não deveria, no âmbito da classificação económica de despesas, colocar a
par todos os investimentos, uma vez que só assim se cumpre cabalmente
a ideia de cuidado para com as gerações futuras. Ou seja, se não deveria
colocar as despesas de educação e investigação como componente de
despesa junto das demais despesas de capital, beneficiando então do seu
regime mais favorável. Tal como a Michel Bouvier, Marie-Christine
Esclassan e Jean-Pierre Lassale também nos parece anacrónico que numa
sociedade, que tem como motor para o crescimento económico o saber,
a capacidade de criar e de inventar, estas despesas não se destaquem
das demais despesas de funcionamento do Estado (no sentido da revisão
da distinção entre despesas correntes e de capital cf. Bouvier, Esclas‑
san e Lassale, 2010, p. 58; corroborando este entendimento atente-se
naquilo para que a doutrina social católica chama atenção na Encíclica
Pacem in Terris: “observe-se que nos nossos dias o homem aspira mais
a conseguir habilitações profissionais do que tornar-se proprietário de
bens; e tem maior confiança nos recursos que provém do trabalho ou
no direito baseado no mesmo, do que em rendimentos vindos do capi‑
tal ou em direitos nele fundados”). É certo que não contribuem para o
aumento de bens duradouros e inventariáveis do Estado, porém, não
podemos deixar de reconhecer que são um importante contributo para
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 279
o aumento da riqueza nacional e do PIB de um Estado (com o qual se
estabelece uma íntima ligação em relação à despesa pública, ao endivi‑
damento e ao défice orçamental: aumentando o PIB, aumenta também
a capacidade de endividamento). Como se compreende, é totalmente
diferente uma solução de recurso ao crédito para cobrir despesas com
consumos do Estado e uma solução semelhante para financiamento de
despesas de investimento (sejam elas despesas de capital ou despesas
com a formação de capital humano) (estas considerações têm como base
aquilo que tem sido provado, nas últimas décadas, por vários estudos de
econometria – cf. Kosempel, 2004, p. 204; significativo da importância
da aprendizagem para o crescimento económico, veja-se este exemplo – a
que se dá o nome de “efeito de Horndal”: “The Horndal-iron Works in
Sweden had no investment […] for a period of 15 years, yet productivity
[…] rose in average close to 2% per annum. We find again increasing
performance which can only be imputed to learning from experience”
– Arrow, 1962, p. 156).
Fora estas limitações à despesa pública sugeridas pela solidariedade
entre gerações (tanto na sua versão mais forte como na sua versão
mais fraca), é necessário porém sublinhar que todos estes controlos são
insuficientes para garantir plenamente a tutela dos interesses da geração
futura, porque a deixam sempre à mercê do julgamento condicionado
pelas circunstâncias presentes. De facto, não podendo queixar-se ou
reclamar da distribuição de custos estabelecida no presente, por falta
da existência e de meios concretos para a sua defesa, a geração futura
ficará em desvantagem em face do egoísmo de uma geração presente,
consumidora de muitos recursos (Birnbacher, 2006, p. 36).
Contra isto poderia dizer-se que as gerações futuras sempre contam
a seu favor com a limitação do défice e dívida, imposta por força da
aplicação dos tratados europeus. Limitação esta que é vista, como acima
assinalamos, como a face visível de uma ideia de solidariedade entre
gerações. É certo que não podemos deixar de reconhecer que esta tem um
efeito positivo no reforço desta mesma solidariedade, impedindo grandes
excessos na assunção de compromissos de dívida pública comprome‑
tedores da saúde das finanças públicas. Nota-se porém a fragilidade de
um raciocínio que baseia a proteção das gerações futuras neste controlo
de défice e dívida, uma vez que “tem sido generalizadamente posta
em evidência a questão da total aleatoriedade dos valores previstos no
Tratado, que não correspondem a qualquer critério económico razoável,
não espelhando, designadamente, a problemática da “sustentabilidade”
280 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
da dívida e antes refletindo, simplesmente, um valor médio registado em
certa altura nos países da Comunidade” (Ferreira, 1995, pp. 127 e 128).
A limitação da consideração da solidariedade entre gerações para
efeitos de controlo da despesa pública nos termos acima descritos (com
prioridade ao presente, por via de regra, e consideração das gerações
futuras para ponderação de encargos plurianuais) é, para nós, sinal claro
do reconhecimento não de uma visão maximalista, mas de uma visão
minimalista do princípio da solidariedade para com a gerações futuras.
Isto significa que, ao não impor limites concretos à despesa e à
intervenção públicas, a Constituição não obriga à adoção de uma lógica
sacrificial das gerações presentes pelas gerações futuras. Ou seja, nos
termos da Constituição a geração presente não tem de prescindir de bem‑
-estar, em benefício de interesses hipotéticos da geração futura. O que
se compreende dado o nevoeiro informativo que temos em relação ao
futuro: não sabemos ao certo que interesses terão as gerações futuras; não
sabemos como será o desenvolvimento técnico; não sabemos como será
o mundo... A rápida ultrapassagem da teoria da população de Malthus
é, aliás, um bom exemplo da falibilidade das previsões feitas sobre o
futuro. Recorde-se que no seu Ensaio sobre o Princípio da População,
Malthus parte do pressuposto de que as taxas de crescimento, por um
lado, da população e, por outro, dos meios de subsistência são confli‑
tuantes: o crescimento da população operaria numa proporção geomé‑
trica, ao passo que o dos meios de subsistência se faria apenas numa
proporção aritmética. Em consequência, defende que todo o aumento da
população deveria ter em conta a possibilidade de aumento dos meios de
subsistência e que a desatenção aos meios de subsistência no aumento
da população, teria efeitos nefastos sobretudo ao nível das classes mais
baixas da sociedade – Malthus, 1826 (vol. I), p. 17.
Prescindindo de uma visão maximalista, pensamos ficar mais próxi‑
mos daquilo que afirmava a Conselheira Maria Lúcia Amaral quando,
no voto de vencido ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 353/2012,
defendia que o justo limite de encargos a deixar para o futuro “se ultra‑
passa quando se oneram as gerações seguintes de tal forma que é a sua
própria esfera de decisão que é esvaziada” (parece aqui apontar-se para
o tal critério de evidência que referimos) do que de Jorge Pereira da
Silva quando, numa abordagem aparentemente maximalista a este tema,
defende que a responsabilidade para com o futuro deve ser considerada
como um limite imanente – quando não mesmo uma restrição implícita
– aos direitos fundamentais (Silva, 2010, pp. 490 e 493)), obrigando,
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 281
portanto, o Estado a garantir que as gerações posteriores beneficiem de
oportunidades de vida e de liberdade idênticas às da geração presente
(Silva, 2010, p. 495).
Uma visão minimalista da solidariedade entre gerações leva-nos,
assim, à defesa não de uma proteção de interesses hipotéticos ou de
um certo nível de vida desejável, mas tão-só à defesa da tomada de
decisões que evitem os desastres futuros que se adivinham desde já
(Beckerman, 2006, p. 64). Portanto, para nós, a solidariedade para com
a gerações futuras tem impacto na despesa pública apenas e na medida
em que permita a resolução de problemas que se detetam hoje. Esta é a
perspetiva mais consentânea com o controlo das despesas, impeditivo da
assunção de despesas impagáveis ou pagáveis com sacrifício futuro ou
favorecedor da afirmação de um princípio geral de equilíbrio temporal
dos pagamentos plurianuais no espaço da legislatura, ainda há pouco
extraídos da ideia da solidariedade entre gerações.
4. Devemos mais às gerações presentes nossas contemporâneas ou
às gerações futuras?
Chegados a este ponto – e uma vez que procurámos olhar para a
realidade do prisma da comunidade política presente e futura do Estado
português – faz ainda sentido abordar uma outra questão, pondo em
confronto as gerações que até aqui consideramos (presente e futura
nacionais) e as gerações que se encontram fora do espaço nacional
(extranacionais).
Fará sentido estender a prioridade que afirmamos à geração presente
às pessoas que por todo o mundo são nossas contemporâneas? Trata‑
-se, pois, de cruzar dois temas: o solidariedade intergeracional e o da
solidariedade internacional.
A ideia da solidariedade internacional é acalentada por vários autores,
desde os que se inserem no âmbito do pensamento social católico até
aos que sustentam a filosofia utilitarista.
Está em causa a ideia de que os deveres do Estado não terminam
no plano interno.
Da parte da doutrina social católica, invoca-se a ideia do destino univer‑
sal dos bens para a sustentação desta ideia de solidariedade internacional,
falando-se na fraternidade cristã entre os povos e no favorecimento de
movimentações de bens, capitais e pessoas para a eliminação e diminuição
das desigualdades entre os países. Esta ideia justificaria, no fundo, uma
282 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
“colaboração multiforme” entre países ricos e pobres, “destinada a fazer
adquirir aos seus cidadãos as habilitações profissionais e as competências
científicas e técnicas; e a fornecer os capitais indispensáveis para iniciar
e acelerar o progresso económico segundo critérios e métodos moder‑
nos” (João XXIII, 1961, ponto 162; na Pacem in Terris fala-se, a este
propósito, de uma “solidariedade dinâmica”, “através de mil formas de
colaboração económica, social, política, cultural, sanitária, desportiva,
qual é o panorama exuberante que nos oferece a época atual” – João
XXIII, 1963, ponto 98). Para a Igreja Católica, esta colaboração entre
ricos e pobres deveria implicar uma alteração nas prioridades dos países
para que as verbas que são utilizadas apenas para “ostentação nacional
ou pessoal” ou que servem para aumentar os arsenais de armas sejam
desviadas no sentido do incremento do desenvolvimento dos povos (Paulo
VI, 1967, ponto 53, e João Paulo II, 1988, ponto 10).
Como dissemos, a Igreja Católica não está, porém, só nesta defesa.
A ONU, sobretudo nos relatórios do PNUD, também tem defendido que
só a solidariedade poderá gerar uma distribuição mais igualitária das
oportunidades económicas globais (cf. nomeadamente os Relatórios do
PNUD de 1995 e de 2005).
Para além destas referências, também a discussão contemporânea
acerca do utilitarismo e da consideração da dor e do prazer (“pain and
pleasure”) como critérios de ação ou valoração acaba por alargar os
horizontes e considerar no âmbito dos deveres dos Estados a resolução
dos problemas da pobreza e da fome dos países mais pobres. Com efeito,
o utilitarismo da ação (act utilitarianism), quando diretamente aplicado
até às últimas consequências, parece exigir sacrifícios às sociedades
mais ricas em benefício das mais pobres (Carson, 1993, p. 312). É,
neste ponto, interessante recordar a doutrina dos anos 1970 de Peter
Singer. Este filósofo utilitarista advoga que é indiferente saber se a
pessoa que eu posso ajudar mora a dez metros ou a muitos quilómetros
de distância e que não há distinção entre “casos em que eu sou a única
pessoa que poderia fazer qualquer coisa e casos em que eu sou apenas
um entre milhões na mesma posição” (Singer, 1972; reforçando este
aspeto particular da ideia de Singer, é útil a leitura do livro de Peter
Unger – Unger, 1996 –, que inicia justamente demonstrando isto mesmo
com os exemplos conhecidos como “the vintage sedan & the envelope”,
embora os pontos de vista dos dois autores não sejam sempre coinci‑
dentes, como o mostra o artigo em que Singer faz uma crítica a este
mesmo livro – Singer, 1999). Ao fazê-lo sustenta a universalização de
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 283
toda a lógica de bem-estar, com base no argumento da igual conside‑
ração de todos, uma vez que a humanidade é a mesma perante a dor e
o sofrimento (criticamente John Arthur, sustentando que a versão forte
do utilitarismo de Singer se reduz a um apelo a uma visão heroica do
Homem – Arthur, 1984, p. 847 e reconhecendo implicitamente que o
benefício do dispêndio do rendimento das pessoas ricas não compensaria
o benefício que poderia ser auferido pelas pessoas nos países pobres –
cf. também Carson, 1993, p. 313).
Nesta lógica de consideração da solidariedade internacional afirma-se,
de certa forma, uma prioridade ao presente, alargando-se porém esta
prioridade ao cuidado de todos os nossos contemporâneos, sejam eles
da nossa comunidade política ou de outra qualquer.
A nossa Constituição nada estabelece no sentido de impor despesa
pública, dirigida especificamente à ajuda de outros países. É certo que
no artigo 7.º, n.º 1, da Constituição refere que Portugal se reja pelo prin‑
cípio da “cooperação com todos os outros povos para a emancipação e
o progresso da humanidade”. Porém, as obrigações de consideração de
outros povos ou Estados estrangeiros ficam-se pelos artigos 7.º n.º 4,
estatuindo que “Portugal mantém laços privilegiados de amizade e coo‑
peração com os países de língua portuguesa”; artigo 7.º, n.º 6, prevendo
a cooperação com outros Estados europeus, tendo em vista “a construção
e o aprofundamento da União Europeia”; artigo 15.º, reconhecendo o
princípio da equiparação entre cidadãos portugueses e estrangeiros ou
apátridas, com especial destaque dado aos cidadãos de países lusófonos
e aos cidadãos europeus; e 81.º, alínea g), prevendo o “desenvolvimento
de relações económicas com todos os povos, salvaguardando sempre a
independência nacional e os interesses dos portugueses e da economia
do país”. Ou seja, a Constituição nada estabelece em concreto sobre
a ajuda a dar a países terceiros para resolução dos seus problemas de
pobreza ou carência.
Perante a vagueza do enunciado constitucional e o silêncio das leis
financeiras e orçamentais no que tange a esta matéria, não podemos deixar
de considerar que aparentemente a solidariedade internacional é, no que
toca à despesa pública, um “não tema”. Podemos então afirmar que à luz
da nossa Constituição, a intervenção e a despesa públicas assentam, pois,
numa visão nacionalista. Visão esta que implicará necessariamente que
se dê prioridade às gerações que partilham o mesmo espaço territorial.
Ou seja, a proteção geracional assentará primacialmente em deveres
assumidos perante a comunidade política a que respeita o Estado por‑
284 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
tuguês (“[…] we would tend to give priority to family over friends, to
friends over strangers […]” – Beckerman, 2006, p. 64). Ou, quando
muito, perante a sua comunidade política e perante os estrangeiros e
apátridas que se encontrem ou residam em Portugal, nos termos do que
dispõe o artigo 15.º da Constituição.
Não estamos com isto a dizer que Portugal não assume obrigações
no âmbito da designada “Ajuda Pública ao Desenvolvimento”, pois
que as assume, mas sob a forma de lei ordinária. É certo que elas não
representam um grande volume de despesa pública (ainda assim tem
como objetivo chegar aos 0,7% do PIB em 2030), mas têm permitido um
avanço progressivo na cooperação que o Estado português toma sobre
si (embora com oscilações nos anos da crise), ainda que muito assente
na ajuda aos países lusófonos, tomando como prioridade a erradicação
da pobreza e a ajuda aos Estados mais débeis (OECD, 2016, passim).
Também indiretamente, Portugal assume deveres de intervenção em
despesas de cooperação, na medida em que contribui para as despesas
da União Europeia. Com efeito, a União Europeia tem vindo a assu‑
mir cada vez mais as despesas de cooperação para o desenvolvimento
(intervenções humanitárias e alimentares de urgência, programas de
assistência técnica a países em desenvolvimento, parcerias com países
vizinhos, subvenções a ONGs e fundos multilaterais, por exemplo, em
matéria de saúde, direitos humanos e gestão de crises) (Adam, Fernand
& Rioux, 2010, pp. 343-5). Assim sendo, e tomando em consideração
este último aspeto, poderá dizer-se que esta preocupação com as gera‑
ções presentes nossas contemporâneas apenas é indiretamente acolhida
pela Constituição pelo reconhecimento da aplicação direta das normas
dos tratados da União Europeia que se referem à contribuição para a
mesma por parte dos seus Estados-membros.
Mas então, se nenhuma dessas despesas é diretamente imposta cons‑
titucionalmente ou resulta verdadeiramente num limite à intervenção do
Estado, isso significa que estão sujeitas à reserva do financeiramente
possível, havendo total liberdade orçamental quanto ao seu montante e
às finalidades a privilegiar.
Podemos, então, dizer – embora contraintuitivamente – que devemos
mais às gerações futuras do nosso espaço político, pelas razões acima
expostas, do que às gerações presentes nossas contemporâneas, as quais
não façam parte do conjunto dos membros da comunidade que se encon‑
tram sob a intervenção do Estado (gerações presentes extranacionais).
A prioridade dada aos membros, presentes ou futuros, da comunidade
ENSAIO SOBRE A SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL
E A SUA INCIDÊNCIA NA DESPESA PÚBLICA 285
política e aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em
Portugal acaba, assim, por se sobrepor aos interesses de todos os outros
povos do mundo, ainda que nossos contemporâneos. O que se pode
explicar pela ideia de escassez de recursos e pela tendência que sempre
se gerará de os gastar em primeiro lugar connosco próprios.
Dito isto, não poderemos, todavia, dizer que, nos termos da nossa
Constituição há uma absoluta indiferença aos interesses de todas as gera‑
ções de outras comunidades. Mas curiosamente estes deveres parecem
incidir mais sobre as gerações futuras, ainda que fora da nossa comunidade
política. Olhando desde logo para o já referido artigo 66.º, n.º 2, alínea
d), ficamos com a ideia de que a Constituição não quer ser indiferente
ao destino das gerações futuras, quaisquer que elas sejam. Lendo este
artigo no contexto de uma “sociedade de risco”, tal como descrita por
Ulrich Beck, com o sentido do reconhecimento de que é necessária a
congregação de esforços de todos os Estados para o aproveitamento
racional os recursos naturais (Beck, 2006), ficamos então com a ideia de
que os interesses das gerações futuras das pessoas que não fazem parte
da nossa comunidade politica são objeto de preocupação constitucional
mais concreta do que as gerações nossas contemporâneas. Ainda assim:
numa perspetiva ultraminimalista. Os interesses das gerações futuras
(fora da nossa comunidade politica) obrigarão a esforços tendo em conta
um aproveitamento racional dos recursos naturais.
Esta consideração faz-nos, porém, rever o entendimento anterior:
se a nossa Constituição dá relevo às preocupações da geração futura
extranacional, isso significa que indiretamente reconhece, ainda que a
letra constitucional não corrobore de imediato este entendimento, que a
“Ajuda Pública ao Desenvolvimento” que já é prestada deve ser lida no
âmbito de um dever genérico de solidariedade com as gerações futuras.
É que verdadeiramente, uma consideração – ainda que extraminimalista
da geração futura extranacional –, não terá nenhum valor se não assentar
numa ajuda efetiva e presente.
Do que se conclui que, fora da comunidade política nem a geração
presente nem a futura terão precedência sobre as gerações presentes
ou futuras nacionais. Ainda assim (e contra a letra do texto constitu‑
cional), entre as mencionadas gerações extranacionais diríamos que a
presente terá precedência sobre a futura, sob pena de os esforços para
a proteção da subsistência da própria Humanidade, que motivaram em
última análise a constitucionalização do princípio que ora estudamos,
saírem malogrados.
286 MARIA D’OLIVEIRA MARTINS
5. Esquema-síntese
Procurando resumir as principais conclusões que o presente texto
permitiu formular, apresenta-se o seguinte esquema de ideias:
Geração futura
Geração presente
(nacional)
(nacional)
– Não tem prioridade sobre a gera‑
– Há casos de prioridade ao pre‑
ção presente (nacional), mas tem
sente constitucionalmente defi‑
sobre a geração presente extra‑
nidos
nacional
– Tem sempre prioridade sobre
– Consideração minimalista dos
todas as outras
interesses
Geração presente Geração futura
(extranacional) (extranacional)
– Não tem precedente sobre as gera‑ – Não tem prioridade sobre as
ções presente e futura (nacionais) demais
– Tem precedência sobre a geração – Consideração extraminimalista
futura (extranacional): a falta de dos interesses para aproveita‑
cooperação presente prejudica a mento racional dos recursos
solidariedade futura naturais
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Breves Noções de Sustentabilidade Ecológica
Bruno Pinto*
1. Contextualizando a sustentabilidade ecológica
1.1. Introdução
No início do século xvi, os marinheiros portugueses que viajavam
pelo Oceano Índico paravam ocasionalmente na ilha Maurícia (próximo
de Madagáscar) para se abastecerem de comida e água (Hume, 2006;
Selvon, 2001). Durante as suas breves estadias, terão conhecido uma
estranha ave que não voava, que não tinha medo dos humanos e que
fazia as posturas de ovos no chão – o dodó. Em 1598, os Holandeses
tornaram-se os primeiros colonizadores desta ilha, e isso marcou o
princípio do fim desta espécie (Hume, 2006; Selvon, 2001). É que os
marinheiros caçavam frequentemente dodós para alimentação ou apenas
por diversão, tendo também introduzido ratos, porcos e outros animais
domésticos na ilha que provocavam a destruição das suas posturas.
O último avistamento confirmado desta ave ocorreu em 1662, sendo
provável que a espécie se tenha extinguido antes do fim do século xvii
(BirdLife International, 2012).
Esta pequena história ilustra como as nossas ações no mundo natural
podem ter consequências significativas. Para dar mais alguns exemplos,
a colonização humana do continente Australiano e Americano implicou
a extinção de diversas espécies de megafauna (Sandom et al., 2014;
Saltré et al., 2016; Surovell et al., 2016). Assim, atribui-se à perí‑
cia dos nossos antepassados caçadores-recolectores o desaparecimento
de cangurus com mais de 200 quilos, coalas gigantes e aves terrestres
*
Licenciado em Biologia, com experiência no estudo de ecologia e conservação
de mamíferos, e doutorado em história ambiental portuguesa. Desde 2009 que centra a
sua atividade na comunicação de ciência (sobretudo ciências naturais e do ambiente),
explorando formatos como a exposição, a crónica, o teatro ou a banda desenhada. Atual‑
mente, está a fazer um pós-doutoramento sobre comunicação de ciências marinhas no
MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Faculdade de Ciências de Lisboa).
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 291
semelhantes à avestruz na Austrália (Saltré et al., 2016), bem como de
mamutes, camelos e cavalos nativos da América (Surovell et al., 2016).
Hoje em dia, o nosso impacto no ambiente é bem maior do que no
passado. Para referir alguns impactos que são abordados neste capítulo,
a Humanidade lida hoje com um clima em mudança devido ao aumento
da concentração de gases com efeito de estufa, com a destruição de
habitats naturais, com a extinção de espécies a um ritmo acelerado,
com problemas de escassez de água e com solos degradados (e.g.,
Meadows et al., 2004; Santos, 2012; Sachs, 2015). Este capítulo tem
como principal objetivo abordar algumas noções sobre sustentabilidade
ecológica ou ambiental, uma vez que esta poderá ter efeitos na quali‑
dade de vida das gerações presentes e futuras. O contexto apresentado
é global, mas com referências à realidade portuguesa.
1.2. Biodiversidade e serviços de ecossistema
Dizem os fotógrafos de natureza que as horas mais indicadas para
fotografar paisagens em dias de sol são o início da manhã e o final da
tarde, sendo desaconselhado fotografar a meio do dia. Uma das razões
apontadas é que podemos captar maior diversidade de cores próximo
do crepúsculo, sendo as cores a meio do dia menos variadas. Além
de cores diferentes, a maior parte das pessoas parece apreciar outros
tipos de diversidade. Por isso, viajamos para outros locais, fazemos
dietas variadas, gostamos de ouvir ideias diferentes, contactamos com
outras culturas e apreciamos ver filmes e ouvir músicas que ainda não
conhecemos. Existem, também, empresas que advogam a diversidade
dos seus recursos humanos, por acreditarem que empresas mais diversas
e inclusivas são mais inovadoras e produtivas. Em suma, a diversidade
é considerada importante em muitas áreas distintas.
A diversidade biológica (ou biodiversidade) também tem geralmente
um efeito positivo no funcionamento dos sistemas naturais, tornando-os
mais resilientes. Podemos defini-la como “a diversidade da vida na Terra,
incluindo todos os organismos, espécies e populações; a diversidade
genética entre estes; e a sua organização complexa em comunidades
e ecossistemas” (Benn, 2010). Mesmo não havendo uma medida que
integre a diversidade da vida nos três níveis referidos (genética, espécie,
ecossistema), o número de espécies é usado frequentemente para medir
biodiversidade (Gaston & Spicer, 2004).
292 BRUNO PINTO
A extinção de espécies é um fenómeno natural, tendo havido cinco
períodos no passado em que a taxa de extinção de espécies foi muito
mais alta do que o habitual (Raup, 1981; Raup & Sepkoski, 1984).
Num dos mais recentes e conhecidos períodos de extinção em massa,
que ocorreu há cerca de 66 milhões de anos, o desaparecimento dos
dinossáurios e de outras espécies aconteceu sobretudo devido às conse‑
quências do impacto de um grande asteroide (Barnosky et al., 2011).
Atualmente, o domínio da nossa espécie sobre o planeta é incontestável,
o que implica frequentemente consequências negativas para as outras
espécies com quem partilhamos uma longa história evolutiva (Rocks‑
trom et al., 2009a; Butchard et al., 2010).
A informação global sobre o estatuto de conservação de espécies é
regularmente disponibilizada pela União Internacional de Conservação
da Natureza (IUCN – International Union for Conservation of Nature),
uma organização internacional fundada em 1948 pelas Nações Unidas,
que tem milhares de membros pertencentes a entidades governamentais e
não governamentais (IUCN, 2016). De acordo com a sua avaliação mais
recente, cerca de 30% das espécies avaliadas tem estatuto de ameaça
de extinção – ainda que em diferentes graus (IUCN, 2015). Para além
disso, calcula-se que a taxa de extinção de espécies seja atualmente
cerca de 1000 vezes mais alta do que antes da ocorrência dos seres
humanos (De Vos et al., 2015). Por isso, alguns cientistas consideram
que estamos a entrar no sexto episódio de extinção em massa do nosso
planeta (e.g., Barnosky et al., 2011; Ceballos et al., 2015).
Entre as principais causas para esta redução drástica da biodiver‑
sidade, destacam-se a destruição de habitat, as alterações climáticas,
a sobre-exploração de espécies e a introdução de espécies exóticas
invasoras (Ceballos et al., 2015). Reconhecendo a importância desta
questão, foi criada a Convenção da Diversidade Biológica, um acordo
internacional que tem como objetivos “a conservação da biodiversi‑
dade, a utilização sustentável dos seus componentes e a partilha justa
e equitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos
genéticos”. Esta convenção foi inicialmente proposta na conferência
das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, que decorreu
no Rio de Janeiro (Brasil) em 1992 (CBD, 2016).
Quais as principais implicações da redução da biodiversidade? As
espécies organizam-se em ecossistemas, ou seja, em comunidades de
plantas, animais e micro-organismos que interagem de forma dinâmica
com o meio abiótico (luz, temperatura, ar, água, etc.) e que podem
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 293
também integrar os seres humanos. Estes ecossistemas proporcionam
serviços que são o nosso sistema de suporte natural, bem como a base
da nossa economia (e.g., Perman et al., 2003). A regressão ou extinção
de uma espécie pode ter impacto nos ecossistemas onde ocorre, que é
variável consoante a espécie que consideramos.
Vejamos o caso da abelha-comum, um inseto que nos é parti-
cularmente útil. Para além de fazer mel, a abelha tem a enorme res‑
ponsabilidade de polinizar grande parte das nossas culturas agrícolas, o
que representa um valor económico de milhares de milhões de dólares
por ano (UNEP, 2010). Este protagonismo também é consequência do
declínio generalizado de outros insetos polinizadores. Por isso, não é de
admirar o alarme quando muitas abelhas-comuns começaram a morrer
misteriosamente a partir de 2006 em colmeias na Europa, EUA e nou‑
tras partes do mundo. Ainda não se sabe ao certo o que tem causado
este colapso, que continua a ser uma ameaça ainda hoje. Os especia‑
listas apontam para um conjunto de fatores que incluem a degradação
do habitat, a falta de diversidade alimentar, a disseminação de novas
doenças por um determinado ácaro, a introdução de novos parasitas e
a influência dos pesticidas (Pettis et al., 2013; Goulson et al., 2015).
Para além da polinização, os ecossistemas proporcionam outros ser‑
viços de produção tais como alimentos, materiais de construção, fibras e
produtos industriais (MEA, 2005; Perman et al., 2003). Ocasionalmente,
existem produtos naturais com potencial uso como medicamentos. Um
exemplo bem conhecido é casca do salgueiro, usada desde a Antiguidade
para combater infeções e aliviar as dores. O produto químico que está
nessa casca (ácido acetilsalicílico) é usado para fazer a aspirina, um
dos medicamentos mais consumidos no mundo (Mackowiak, 2000).
Ao destruirmos uma área natural (por exemplo, uma floresta tropical),
poderemos inadvertidamente extinguir espécies com utilidade para o
desenvolvimento de novos fármacos e/ou com outras aplicações futuras
(e.g., Li & Vederas, 2009; Singh et al., 2008).
Os ecossistemas também são responsáveis por serviços de suporte tais
como a formação do solo, o ciclo de nutrientes e a produção primária.
Estes servem de base à produtividade biológica do planeta. Também
nos proporcionam serviços de regulação como a retenção de carbono
(reduzindo os efeitos das alterações climáticas), a reciclagem do ar e
da água, a regulação de cheias ou secas e o controlo de doenças (MEA,
2005; Perman et al., 2003). Como exemplos, podemos referir que um
recife de coral, um mangal ou uma praia bem fornecida de areia são
294 BRUNO PINTO
boas defesas contra as tempestades costeiras ou que uma floresta pode
reduzir o impacto de secas e cheias pela sua capacidade de retenção
de água.
Existem, ainda, valores culturais dos ecossistemas que representam
um ganho económico em atividades como o ecoturismo ou turismo
rural. Por exemplo, a observação de leões e outros animais no Kruger
Park (África do Sul) ou de cetáceos nos mares dos Açores trazem um
benefício económico às economias locais ou regionais (Blamford et
al., 2015). Mas devemos notar que há outros bens intangíveis associa‑
dos à natureza que não se traduzem necessariamente em dinheiro tais
como os valores recreativos, simbólicos, estéticos, espirituais, religiosos
ou educacionais. Ainda assim, podem enriquecer as nossas vidas de
boas experiências e ter efeitos benéficos na nossa saúde, criatividade
e bem-estar. Por exemplo, se gostamos de dar passeios na praia ou
na montanha, estamos a vivenciar este tipo de valores (MEA, 2005;
Perman et al., 2004).
1.3. O que é a sustentabilidade ecológica ou ambiental?
Por volta de 985 D.C., uma frota de barcos provenientes da Islândia
chegou à Gronelândia trazendo colonos viquingues para ocupar aquela
terra onde não existiam pessoas. Durante cerca de 500 anos, estes colo‑
nos dedicaram-se à agricultura, pecuária, caça e pesca, trocando com os
povos do norte da Europa itens que incluíam dentes de morsa e peles
de foca por outros tais como madeira, ferro e produtos alimentares.
Apesar da sua grande capacidade de adaptação a um ambiente difícil,
esta colónia começou a decair a partir do século xiv e foi abandonada
entre 1450 e 1500. Uma das principais razões para este desfecho foram
os limites de produtividade agropastoril, juntamente com os conflitos
com outro povo que ocupou aquela região (os Inuit), o arrefecimento do
clima e a consequente interrupção do comércio com o norte da Europa
(Dugmore et al., 2012; Young et al., 2015). Este é apenas um de muitos
exemplos de colapso de uma sociedade em que os fatores ambientais
desempenharam um papel importante (Butzer, 2012; Diamond, 2005).
Tal como referido acima, a atividade económica assenta no uso de
valores (ou recursos) naturais proporcionados pelos ecossistemas tais
como a água, o ar ou a madeira. Estes ecossistemas também têm a
capacidade de absorver e reciclar os resíduos gerados pelo seu consumo,
quer sejam águas residuais, lixo, dióxido de carbono, etc. No entanto,
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 295
e uma vez que vivemos num planeta finito, estes valores naturais e a
capacidade de absorção de resíduos são grandes mas necessariamente
limitados (Perman et al., 2003). Em alguns casos, esses limites foram
provavelmente atingidos a nível local no passado.
A sustentabilidade é tradicionalmente definida como um “desen‑
volvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprome‑
ter a capacidade das futuras gerações satisfazerem as suas próprias
necessidades” (Brundtland Commission, 1987). O desenvolvimento
sustentável considera simultaneamente três dimensões: a económica, a
social e a ecológica. Partindo desta premissa, uma definição possível de
sustentabilidade ecológica ou ambiental é “satisfazer as necessidades
humanas sem comprometer a saúde dos ecossistemas” (Callicott &
Mumford, 1997). Por exemplo, a gestão dos recursos pesqueiros utiliza
frequentemente o conceito de rendimento máximo sustentável, que é a
quantidade máxima de peixe que se pode retirar de um stock durante
um determinado período de tempo sem que este entre em declínio
(FAO, 2016; WWF, 2015). Ou seja, a sustentabilidade ecológica de
um recurso pesqueiro requer que o seu uso respeite este limite máximo
de exploração.
Diversos autores referem que a Revolução Industrial – que teve
início em Inglaterra no século xviii – foi um ponto de viragem na
História da Humanidade (e.g., Steffen et al., 2015; Sachs, 2015).
A exploração de combustíveis fósseis (carvão, gás natural e petróleo),
a criação da indústria têxtil, o fabrico de aço ou o início dos comboios
a vapor são algumas das mudanças drásticas que ocorreram a partir
daí. Para dar uma ideia do aumento da magnitude das ações humanas
no planeta, podemos referir que a população mundial cresceu cerca de
nove vezes entre 1750 e 2014, e que a produção da economia mundial
(GWP – Gross World Product) aumentou cerca de 200 vezes durante
o mesmo período (Sachs, 2015).
O crescimento da economia mundial traduziu-se numa melhoria
do nível de vida para milhões de pessoas. No entanto, continuam a
verificar-se problemas ambientais, económicos e sociais que nos impe‑
dem de chegarmos ao tão ambicionado desenvolvimento sustentável
(e.g., Meadows et al., 2004; Santos, 2012; Sachs, 2015). Por isso,
as Nações Unidas propuseram recentemente 17 objetivos de desenvol‑
vimento sustentável a atingir até 2030, e que incluem medidas para
reverter ou prevenir a degradação ambiental (mais detalhes em: https://
sustainabledevelopment.un.org/?menu=1300).
296 BRUNO PINTO
2. Medindo a sustentabilidade ecológica
De seguida, descrevemos sucintamente quatro estudos marcantes de
medição de sustentabilidade ecológica a nível global, e os seus principais
resultados. Mesmo não havendo ainda um consenso dentro da comuni‑
dade científica sobre quais os indicadores mais adequados, estes e outros
estudos têm contribuído para um maior conhecimento sobre a evolução
e estado atual dos valores naturais do planeta.
2.1. Os limites do crescimento
O livro “Os limites do crescimento” (Meadows et al., 1972) tinha
como principal objetivo analisar quais os limites ao desenvolvimento
num horizonte temporal entre os anos de 1900 e 2100. Este projeto foi
comissionado pelo Clube de Roma (um grupo internacional de homens de
negócios, Estadistas, cientistas, etc.) e envolveu especialistas de diversas
áreas e países, sendo liderado por cientistas do conceituado Instituto de
Tecnologia de Massachusetts (MIT, EUA). Este livro vendeu milhões de
cópias em todo o mundo, foi traduzido em 30 línguas e é visto como uma
das obras mais importantes do movimento ambientalista (Turner, 2008).
O modelo de computador desenvolvido neste projeto (chamado
“world3”) usava cinco variáveis: população, produção de alimentos,
industrialização, poluição e consumo de recursos não renováveis. Ape‑
sar deste modelo ser assumidamente uma simplificação imperfeita da
interação entre estes fatores, os resultados obtidos revelaram a existência
de limites ao crescimento da atividade humana, que seriam atingidos
até 2070 (Meadows et al., 1972; Meadows et al., 1992; Meadows et
al., 2004). Os autores também consideraram provável que estes limites
implicassem um declínio súbito e simultâneo da população mundial e
da industrialização, e que seria desejável uma transição atempada para
uma estabilidade económica e ecológica global.
Das várias críticas feitas a este projeto, podemos destacar: a subes‑
timação do poder da tecnologia e a resiliência dos mercados face à
escassez de valores naturais ou outros limites, que era moralmente
inadmissível propor a redução do crescimento da população humana
ou do consumo material ou ainda que este trabalho era apenas uma
reformulação das ideias do economista inglês Thomas Malthus sobre
o perigo do crescimento exponencial da população humana (Meadows
et al., 2004; Turner, 2008).
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 297
Este livro teve uma atualização em 1992 (com uma nova obra intitulada
Beyond the Limits) e outra em 2004 (desta vez, com o livro intitulado The
Limits to Growth – The 30 year update), em que os valores das variá‑
veis e o modelo original foram revistos e ligeiramente modificados, em
alguns casos para responder a críticas. Os resultados foram semelhantes
aos obtidos anteriormente, mas com uma diferença: o primeiro livro
revela que a Humanidade ainda vivia dentro dos limites biofísicos do
planeta, enquanto o segundo e o terceiro mostram uma passagem para
a insustentabilidade (Meadows et al., 2004). Um estudo recente mostra
que os resultados do modelo desenvolvido no cenário “normal” (business
as usual) entre 1970 e 2000 têm uma boa correspondência com o que se
passou na realidade durante este período (Turner, 2008).
2.2. A pegada ecológica
Este conceito pode ser definido como a área de terra necessária para
sustentar os níveis atuais de consumo de valores naturais e a absorção de
resíduos de uma determinada população (Wackernagel et al., 1999; Rees
& Wackernagel, 1996; Sanderson et al., 2002). A unidade de medição
é o “hectare global”, definido como um hectare hipotético de produção
biológica média a nível mundial para um determinado ano. Esta medida
foi criada em meados dos anos 1990 e tem sido amplamente utilizada por
organizações não governamentais, mas também por governos, regiões,
acordos internacionais, etc. (Collins & Flynn, 2015; Blomqvist et al.,
2013; WWF, 2015; CBD, 2016).
Um estudo que media a pegada ecológica no planeta entre 1961 e 1999
operacionalizou o conceito (Wackernagel et al., 1999). As variáveis
de impacto humanas usadas nesta medida, com diferentes ponderações,
foram a área agrícola, pastagens para criação de gado, madeira cor‑
tada, pesca (no mar e em águas interiores), infraestruturas e emissões
de dióxido de carbono (ou seja, a área necessária para a sua fixação).
A pegada ecológica humana em 1961 correspondia a cerca de 70% da
sustentabilidade ambiental do planeta (ou “biocapacidade total”), tendo
excedido a capacidade de 100% em meados dos anos 1980s (Wacker‑
nagel et al., 1999).
Entre as diversas críticas feitas ao conceito de pegada ecológica,
poderemos dar como exemplos a discordância das ponderações atribuí‑
das aos impactos escolhidos, a falta de distinção entre florestas naturais
de elevado valor biológico e florestas de produção (monoculturas) ou a
298 BRUNO PINTO
dificuldade de correspondência entre área hipotética de terra e a área real
no nosso planeta (e.g., Van den Bergh & Verbruggen, 1999; Lenzen
& Murray, 2001).
Hoje em dia, a organização não governamental Global Footprint
Network é a principal entidade a calcular a pegada ecológica em diferentes
regiões, países e a nível global, utilizando as variáveis acima referidas
(Global Footprint Network, 2016). De acordo com as suas análises, a
pegada ecológica em regiões do mundo como a Europa, os Estados Uni‑
dos da América ou do Japão ultrapassam bastante a sua biocapacidade.
Esta organização estimou recentemente que a pegada ecológica mundial
em 2016 foi de 1.6 planetas, o que significa que estamos a exceder a
capacidade de sustentabilidade ecológica ou ambiental do planeta em
cerca de 60% (Global Footprint Network, 2016; mais informações em:
www.footprintnetwork.org/).
2.3. Avaliação dos ecossistemas do Milénio
Esta iniciativa foi liderada pelas Nações Unidas entre 2001 e 2005,
e teve como principais objetivos avaliar o estado dos ecossistemas a
nível mundial e as suas implicações no bem-estar humano (MEA, 2005).
A avaliação foi feita à escala global, regional, nacional e local, e envolveu
cerca de 1360 especialistas de 95 países diferentes. Este grupo de trabalho
não pretendia gerar novo conhecimento científico, mas antes sintetizar
toda a literatura científica, bases de dados e modelos já existentes. Para
além disso, foi também usada informação proveniente do setor privado,
comunidades locais e indígenas. As avaliações dos ecossistemas foram
posteriormente revistas e validadas por outros cientistas e governos
(MEA, 2005; Poweldge, 2006).
Durante este processo, foram identificadas muitas lacunas de conhe‑
cimento ligando biodiversidade, ecossistemas, serviços de ecossistemas e
bem-estar humano (e.g., Carpenter et al., 2006). No entanto, foi possí‑
vel concluir que cerca de 60% dos serviços dos ecossistemas que foram
considerados estavam a ser degradados ou usados de forma insustentável
(por exemplo, água potável, recursos pesqueiros e regulação do clima).
Podem, também, ser referidas outras quatro conclusões importantes
deste projeto, embora nenhuma delas seja surpreendente: 1) os huma‑
nos mudaram mais rápida e profundamente os ecossistemas nos últimos
50 anos do que noutro período de duração comparável da História; 2)
essas mudanças foram importantes para o nosso conforto material, mas
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 299
também implicaram uma degradação dos serviços dos ecossistemas; 3)
os modelos desenvolvidos para projetar o futuro próximo mostraram
uma tendência de agravamento da insustentabilidade dos ecossistemas
durante a primeira metade do século xxi; 4) de uma forma geral, as
mudanças políticas necessárias para travar esta degradação não estão a
ser implementadas.
Foi, também, feita uma avaliação específica para Portugal, integrada na
avaliação dos ecossistemas do Milénio, em que se verificou a tendência
geral de ganhos nos serviços de produção (por exemplo, de alimentos,
madeiras, fibras, etc.) em detrimento dos serviços de regulação (retenção
de carbono, controlo de doenças, etc.), de suporte (formação do solo,
reciclagem de nutrientes, etc.) e culturais (espirituais e religiosos, esté‑
ticos, etc.), o que põe em causa a sustentabilidade destes ecossistemas a
médio prazo (Pereira et al., 2009).
Este esforço massivo da avaliação dos ecossistemas do Milénio resul‑
tou num maior reconhecimento do valor dos serviços dos ecossistemas,
havendo também países africanos e do norte da Europa que estão a
adotar técnicas e metodologias baseadas nesta iniciativa. No entanto, o
impacto desta iniciativa em termos de políticas ambientais globais foi
relativamente modesto (Powledge, 2006).
2.4. As fronteiras planetárias
Um ecossistema é geralmente estável em torno de uma tendência,
mas pode mudar para um novo estado devido a alterações naturais e/ou
antropogénicas (Kay, 2000; Scheffer & Carpenter, 2003). Por exemplo,
a vegetação da região do Sahara colapsou subitamente há cerca de 5500
anos, dando lugar a um deserto devido a mudanças nas interações entre
a atmosfera e a vegetação (Foley et al., 2003).
Partindo do princípio que as alterações antropogénicas podem trazer
mudanças negativas aos ecossistemas, um grupo de especialistas identi‑
ficou recentemente quais as variáveis ambientais que são fulcrais para o
nosso bem-estar, bem como a fronteira que não devemos ultrapassar em
cada uma delas (Rockstrom et al., 2009a). Os autores identificaram nove
variáveis que garantem um “espaço operacional seguro para a Humani‑
dade”, e que obviamente se relacionam entre si: alterações climáticas;
redução de biodiversidade (terrestre e marinha); interferência nos ciclos
do azoto e fósforo; redução do ozono estratosférico; acidificação dos
300 BRUNO PINTO
oceanos; uso global de água; mudanças de uso do solo; poluição química;
emissão de partículas para a atmosfera.
Para estimar os valores que não devemos exceder, foram usadas fre‑
quentemente estimativas da era pré-industrial (antes de 1750), havendo
no entanto duas variáveis em que não sabemos o suficiente para definir
estes limites (Rockstrom et al., 2009a; Rockstrom et al., 2009b). Foi
concluído que estamos a ultrapassar as fronteiras planetárias de três
destas variáveis (alterações climáticas, redução da biodiversidade e ciclo
do azoto). Por exemplo, no caso das alterações climáticas, a fronteira
foi estabelecida numa concentração de 350 partes por milhão (ppm) de
dióxido de carbono na atmosfera, mas atualmente esse valor é cerca de
400 ppm (Steffen et al., 2015).
Algumas críticas a este trabalho incluíram a arbitrariedade, falta de
robustez científica e discordância de limites estabelecidos, variáveis con‑
sideradas inadequadas ou incompletas ou ainda que há limites planetários
que podem ser irreversíveis (e.g., Allen, 2009; Schlesinger, 2009;
Mollen, 2009; Lewis, 2012). Cinco anos depois da primeira avaliação,
os mesmos autores propuseram pequenas modificações à metodologia
original e fizeram uma atualização dos valores das variáveis, chegando
a resultados semelhantes (Steffen et al., 2015).
3. Exemplos de ameaças à sustentabilidade ecológica
Consideremos, agora, alguns problemas ambientais específicos que
podem pôr em causa a sustentabilidade. Mesmo tendo sido consideradas
isoladamente, muitas destas e outras ameaças estão relacionadas entre si.
3.1. A destruição de habitats naturais
Segundo estatísticas recentes, cerca de 40% da superfície terrestre
mundial é dedicada à agricultura e cerca de 30% é ocupada por flo‑
restas, que estão concentradas ao longo da linha equatorial nas regiões
tropical e boreal (Potapov et al., 2008). No entanto, existem milhões de
hectares de florestas destruídas todos os anos que não são compensados
pela reflorestação ou pela expansão natural da vegetação (Latham et
al., 2014). As áreas urbanas e infraestruturas representam apenas 2% da
superfície terrestre, sendo o restante ocupado por áreas desabitadas tais
como desertos e glaciares (UNEP, 2014).
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 301
Imaginemos, então, uma floresta temperada localizada no centro ou
sul da Europa há uns milhares de anos. O que lhe poderá ter acontecido?
O mais provável é ter sido convertida numa zona agropastoril. Mas a
definição de destruição de habitat também inclui alterações menos drás‑
ticas (Hogan, 2012). Assim, pode ter ocorrido a fragmentação desse
habitat, por exemplo, pela construção de infraestruturas como estradas
ou linhas de comboio, que promovem a descontinuidade dessa floresta
(Lindemayer & Fisher, 2007). Também pode ter havido uma degradação
do habitat pela destruição parcial da vegetação, por estar sujeita a um
poluente, pela invasão de uma espécie exótica, etc.
Em qualquer destes três casos (destruição, fragmentação ou degrada‑
ção do habitat), existe um impacto ambiental, o que geralmente reduz a
biodiversidade e os serviços dos ecossistemas. No entanto, há habitats
seminaturais que ainda mantêm um elevado valor natural graças ao uso
sustentável dos seus recursos, como por exemplo os montados de sobro e
azinho do sul de Portugal Continental (Aguiar & Pinto, 2007). Também
existe a remota possibilidade de essa floresta se manter bem conservada,
o que acontece normalmente em zonas pouco acessíveis e/ou com baixa
densidade populacional tais como áreas montanhosas (Hogan, 2012).
Em Portugal continental, a área de floresta em 1870 representava
cerca de 4 a 7% do território (Pereira et al., 2009). Com o abandono
da agricultura, o êxodo rural e a expansão dos montados acima referi‑
dos, as zonas florestais sensu latu têm vindo a recuperar. Em 2010, as
florestas naturais e seminaturais ocupavam cerca de 18% do território
continental (ICNF, 2013).
A destruição dos habitats naturais também ocorre em ambientes
aquáticos, devido a determinadas artes de pesca, poluição, turismo, etc.
Por exemplo, a pesca de arrasto de fundo é feita com placas metálicas e
rodas de borracha presas a redes do tamanho de um ou mais campos de
futebol, que são arrastadas no fundo do mar. Durante este processo, são
destruídos habitats marinhos que podem levar décadas a recuperar. Outro
exemplo é a destruição de recifes de coral, quer devido à acidificação
e aquecimento da água do mar provocado pelas alterações climáticas,
como também por atividades de turismo, pesca usando dinamite, reco‑
lha de coral para ornamentos, etc. (FAO, 2016). Por último, poderemos
referir que investigações recentes estão a revelar a verdadeira dimensão
do problema do lixo marinho (sobretudo plástico), bem como os seus
efeitos negativos em espécies marinhas como aves, mamíferos, peixes
302 BRUNO PINTO
e tartarugas (e.g., Depledge et al. 2013; Eriksen et al., 2014; Jambeck
et al., 2015).
Iniciativas como o estabelecimento e gestão adequadas de Áreas
Protegidas terrestres e marinhas, a criação e fiscalização de medidas de
proteção ou uso sustentável de habitats naturais e seminaturais, e uma
gestão adequada de resíduos e campanhas de educação e sensibilização
ambiental poderão ajudar a reduzir esta ameaça (WWF, 2015; FAO, 2016).
3.2. As alterações climáticas
Existe atualmente um consenso na comunidade científica de que as
alterações climáticas a que estamos a assistir são causadas pelas ações
antropogénicas (e.g., IPCC, 2014; Oreskes, 2004; Cook et al., 2013).
Num estudo publicado recentemente, concluiu-se que 97.1% dos artigos
científicos que expressavam a sua posição sobre este tema apoiavam a
ideia de que são as ações humanas que estão a causar estas mudanças
(Cook et al., 2013).
Vejamos, então, como acontecem estas alterações climáticas. A Terra
recebe radiação do Sol, absorvendo parte desta e refletindo outra parte
para o Espaço. Os gases com efeito de estufa que se concentram na
atmosfera impedem que parte da radiação infravermelha seja refletida,
o que aumenta a temperatura média da superfície do planeta (IPCC,
2014; Santos, 2012). Desde a Revolução Industrial – e sobretudo nas
últimas décadas – que tem havido um grande aumento da concentração
de gases com efeito de estufa tais como o dióxido de carbono, o metano
e o óxido nitroso. A combustão de combustíveis fósseis (carvão, petróleo
e gás natural), a desflorestação e a produção de gado são considerados
os principais responsáveis por este aumento dos gases com efeito de
estufa (IPCC, 2014).
Os impactos das alterações climáticas são variáveis conforme a
região do Mundo, e incluem um aumento das cheias, secas, tempestades
costeiras, fogos florestais, ondas de calor, a subida do nível da água do
mar, a acidificação dos oceanos, etc. (IPCC, 2014; Santos, 2012). No
entanto, também se projetam efeitos positivos. Por exemplo, espera-se
um aumento da produtividade agrícola e do turismo em regiões mais
frias como o norte da Europa. Referindo um exemplo nacional, as praias
do Algarve deverão tornar-se demasiado quentes durante o verão, mas o
turismo nas praias do centro e norte de Portugal Continental deverá ser
beneficiado por um aumento da temperatura (Santos & Miranda, 2006).
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 303
Curiosamente, são geralmente esperados maiores impactos negativos
das alterações climáticas nos países mais pobres, onde existem menos
recursos para lidar com estes problemas. Isto também se verifica à escala
europeia, uma vez que os impactos adversos serão maiores nos países do
Mediterrâneo, onde se inclui Portugal (EEA, 2012). Por exemplo, nesta
região, a temperatura média mais elevada e a redução da precipitação
aumentarão os riscos de desertificação e a diminuição da disponibilidade
de água. Por isso, será importante implementar medidas de adaptação
na agricultura como uma gestão mais eficiente da água ou a adoção de
culturas e/ou variedades de culturas mais resistentes às secas (Santos
& Miranda, 2006: IPCC, 2014). Nesta região, também se projeta um
alargamento da época de incêndios e fogos mais intensos e frequentes.
O aumento da temperatura irá proporcionar condições mais favoráveis à
sobrevivência de vetores de doenças (por exemplo, algumas espécies de
mosquitos), o que representa um maior risco do aparecimento de doenças
tropicais que incluem a malária, a dengue ou a febre do Nilo Ocidental
(Santos & Miranda, 2006; Naves & Firmino, 2009).
No que diz respeito às espécies terrestres e aquáticas, projetam-se
mudanças na sua distribuição, nos seus padrões de migração e na sua
abundância como resposta às alterações climáticas (IPCC, 2014). Por
exemplo, uma determinada espécie em Portugal Continental poderá
adaptar-se a um aumento da temperatura mudando-se para áreas mais
a norte e/ou a maiores altitudes, onde o clima é mais frio (Bellard et
al., 2012). Acontece algo de semelhante no mar: existem espécies mari‑
nhas subtropicais como o peixe-porco que têm vindo a ocupar a costa
continental portuguesa devido ao aumento da temperatura da água do
mar, projetando-se uma redução na nossa costa de espécies de águas
mais frias como o tamboril ou a raia-lenga (Santos & Miranda, 2006).
Com as alterações climáticas, os oceanos também se estão a tornar
mais ácidos e o nível da água do mar está a subir, calculando-se que o
nível da água do mar subiu entre 15 e 20 centímetros desde o final do
século xix (IPCC, 2014). Os cientistas projetam uma subida de 1 metro
até 2100, bem como tempestades costeiras mais intensas e frequentes.
Isto implicará mudanças futuras ao longo das zonas costeiras, o que é
especialmente preocupante em países com uma elevação baixa em relação
ao nível do mar tais como o Bangladesh, Moçambique e Egito (Santos,
2012; Santos & Miranda, 2006).
Geralmente, há dois tipos de resposta para lidar com as alterações
climáticas: a mitigação e a adaptação (IPCC, 2014). No caso da miti‑
304 BRUNO PINTO
gação, procuramos reduzir a emissão de gases com efeito de estufa
investindo em energias alternativas (e.g., eólica, solar, eólica, geotérmica,
etc.), melhorando a eficiência energética, promovendo o uso de trans‑
portes públicos, reduzindo o consumo de carne, etc. Também podemos
aumentar a capacidade de retenção de carbono pelo acréscimo da área de
floresta. No caso da adaptação, e uma vez que algumas destas mudan‑
ças já são irreversíveis, o objetivo principal é perceber como reduzir os
seus impactos negativos. São exemplos dessa adaptação a modificação
de edifícios e zonas urbanas às futuras condições climáticas, o uso de
espécies florestais mais resistentes aos fogos ou a adoção de sistemas
de rega mais eficientes.
3.3. A sobre-exploração de espécies
Supõe-se que a introdução da agricultura e da pastorícia no nosso país
terá sido feita por grupos de colonizadores oriundos do Mediterrâneo,
que desembarcaram há cerca de 7500 anos no centro e sul de Portugal
Continental. Depois disso, a nossa sobrevivência foi gradualmente
deixando de depender da caça, da pesca e da recoleção (Alday, 2012;
Zilhão, 2000).
Hoje em dia, os produtos da pesca são praticamente os únicos ali‑
mentos “selvagens” consumidos com regularidade em Portugal e em
muitos outros países. Um dos riscos que corremos quando pescamos uma
determinada espécie é a sua sobre-exploração. Ou seja, poderá haver um
excesso de capturas que ultrapassa a sua capacidade de reposição, tendo
em conta as suas taxas naturais de reprodução e mortalidade. E se insis‑
tirmos nesta forma de exploração durante algum tempo, essa população
(ou mesmo espécie) pode regredir ou mesmo extinguir-se. Um conceito
conhecido como “tragédia dos comuns” explica este conflito entre o
interesse privado e o interesse comum (Hardin, 1968). Por exemplo,
numa zona de caça sem restrições, poderá haver caçadores que matam
todos os coelhos que conseguem para aumentar o seu lucro pessoal,
mesmo que seja vantajoso para todos manter um número mínimo de
coelhos que assegure a sua existência a médio e longo prazo.
A pesca é um exemplo clássico da “tragédia dos comuns”, em que
os pescadores podem levar stocks de peixe à exaustão. Foi o que acon‑
teceu com o stock de bacalhau na Terra Nova (Canadá), que colapsou
em 1992 devido ao excesso de pesca. Mesmo depois da implementação
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 305
de várias medidas de proteção a esta espécie, o nosso fiel amigo só
recentemente começou a recuperar nesta região (MacKenzie, 2015).
Este não é um caso isolado: estimou-se recentemente que 31.4% dos
stocks pesqueiros marinhos mundiais sejam sobre-explorados (FAO,
2016). Aliás, desde 1990 que os stocks de peixe explorados em níveis
insustentáveis têm vindo a aumentar gradualmente. As principais causas
incluem uma gestão deficiente destes recursos, políticas inadequadas,
acordos de pesca internacionais injustos, capturas acidentais de peixes
juvenis e outras espécies marinhas, pesca ilegal e práticas de pesca des‑
trutivas (WWF, 2015; FAO, 2016). Mesmo existindo divergências nas
projeções sobre a sustentabilidade da pesca e da aquacultura a médio e
longo prazo, os especialistas defendem que dependerá de fatores como
o uso sustentável dos recursos aquáticos, da redução significativa das
capturas acidentais, rejeições e desperdícios durante a pesca, bem como
da maior eficiência a vários níveis da produção em aquacultura (Béné et
al., 2015; World Bank, 2014; Merino et al., 2010; Cao et al., 2015).
Em Portugal, também existem ameaças à manutenção destes recursos
(Leitão, 2015; Baeta et al., 2009), bem como captura acidental de
espécies (Baeta, 2009). Por exemplo, numa análise feita recentemente
a stocks de Portugal Continental, concluiu-se que quase 40% destes
foram sobre-explorados entre 2000 e 2009 (Leitão, 2015). Também
se registou nesta análise uma transição de uma pesca mais tradicional
feita ao longo da costa e direcionada a espécies de pequeno e médio
porte para uma pesca industrial mais longe da costa, em águas mais
profundas e capturando maior diversidade de espécies (Leitão, 2015;
Baeta et al., 2009). Esta mudança foi possibilitada por avanços tecnoló‑
gicos que permitem a pesca em águas mais profundas. Isto tem vindo a
acontecer em muitas outras regiões do mundo, o que é motivado por um
declínio dos stocks de pesca tradicionais em regiões costeiras (Leitão,
2015; WWF, 2015). No entanto, é preciso ter em conta que a maioria
da pesca em águas profundas é considerada insustentável, porque as
populações de peixe têm baixa produtividade, crescimento lento, maior
longevidade e maturidade reprodutora tardia (Morato et al., 2006).
Também existem casos de sobre-exploração relacionados com a
comercialização legal ou ilegal de plantas, animais e seus produtos
(e.g., Cordell, 2011; Rosen & Smith, 2010). Há acordos interna‑
cionais para banir (ou pelo menos reduzir) o comércio de espécies de
fauna e flora ameaçadas, mas a sua aplicação nem sempre é eficaz.
Por exemplo, a principal causa atual do declínio do elefante-africano
306 BRUNO PINTO
é a caça ilegal para comercialização de marfim destinado sobretudo ao
mercado asiático (Wittemyer et al., 2014). Outro exemplo diz respeito
ao filme À procura de Nemo (Disney, 2003), que aumentou a procura
de diversas espécies de peixes-palhaço em recifes de coral para aqua‑
riofilia (precisamente o que aconteceu ao Nemo!). Com a criação de
algumas destas espécies em cativeiro, foi possível reduzir a captura de
animais nos seus habitats naturais, atenuando assim a regressão destas
espécies. Mais recentemente, quando estreou o filme À procura de Dory
(Disney, 2016), foram feitos vários alertas e campanhas para que não
acontecesse o mesmo ao cirurgião-paleta (a espécie da personagem
“Dory”; mais informações em: http://www.savingnemo.org/).
Recomendações para evitar a sobre-exploração de espécies incluem
respeitar os limites de capturas dos recursos pesqueiros aconselhados
pelos cientistas, consumir produtos do mar sustentáveis, criar leis mais
rigorosas e associadas a maior fiscalização para banir o comércio de
espécies ameaçadas e aumentar a sensibilização ambiental para a questão
da sobre-exploração (WWF, 2015; FAO, 2016).
3.4. As espécies exóticas invasoras
Comecemos com dois exemplos. O primeiro diz respeito a um
grupo de empresários que, no ido ano de 1973, trouxe legalmente exem‑
plares de lagostim-vermelho do Louisiana do sul dos Estados Unidos
da América para a zona de Badajoz (sul de Espanha). O objetivo era
fazer produção deste animal em aquacultura para fins alimentares. Só
que alguns destes lagostins conseguiram alcançar a liberdade, não se
sabe bem como, tendo sido detetados pela primeira vez em Portugal
em 1979 no rio Caia, um afluente do Guadiana (Correia, 2001, 2002;
Cruz & Rebelo, 2007).
Desde essa data que o lagostim-vermelho se tem expandido na
Península Ibérica, por vezes contando com a ajuda de pescadores e
populações locais que os lançam em rios por colonizar. Esta espécie
serve de presa a predadores como a lontra, a raposa ou a cegonha
(Santos et al., 2007; Pedroso & Santos-Reis, 2006; Correia, 2001,
2002), mas também contribui para a redução de diversas espécies de
invertebrados (incluindo uma espécie nativa de lagostim), plantas,
anfíbios e peixes (Holdich et al., 2009; Cruz & Rebelo, 2007). Para
além disso, o lagostim-vermelho causa prejuízos em reservatórios,
canais de rega e culturas agrícolas como o arroz devido à sua atividade
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 307
escavadora e alimentar. Mesmo tendo em conta a venda desta espécie
por pescadores portugueses para o mercado espanhol, os ganhos não
compensam os danos ambientais e económicos causados (Conde &
Dominguez, 2015; Arce & Diéguez-Uribeondo, 2015).
O segundo exemplo é a tartaruga-da-Flórida, uma espécie também
oriunda dos Estados Unidos da América que foi exportada para todo o
mundo como animal de estimação. A sua introdução no meio natural
acontece geralmente quando são libertadas pelos donos ou escapando
por mérito próprio ao cativeiro. A expansão da tartaruga-da-Flórida
em Portugal implicou uma redução das duas espécies nativas de cága‑
dos, e também de outras espécies da nossa fauna e flora (Loureiro
et al., 2010).
Portanto, se uma espécie evolui numa determinada região e, por
acidente ou de forma intencional, é introduzida noutra região, designa‑
-se por espécie exótica. Se consegue prosperar, torna-se uma espécie
exótica invasora, ou seja, uma espécie que se estabeleceu fora da sua
distribuição natural passada ou presente, cuja introdução e/ou prolifera‑
ção ameaça a diversidade biológica (CBD, 2009). Estas espécies podem
promover mudanças na estrutura e composição de ecossistemas, o que
pode resultar numa redução de alguns dos seus benefícios (Simberloff,
2011; Simberloff et al., 2013).
Para além disso, podem danificar infraestruturas humanas, transmitir
agentes patogénicos ou parasitas, causando assim prejuízos ambientais,
económicos e de saúde pública. Ocasionalmente, existem espécies
exóticas invasoras que podem trazer ganhos ecológicos e económicos
tais como uma redução da erosão dos solos ou a produção de alimento
(Simberloff et al., 2013; Davis et al., 2011). Estes benefícios devem ser
equacionados nas decisões de controlo ou erradicação destas espécies.
Na Europa, o número de espécies exóticas invasoras já ultrapassa as
11 000, sendo sobretudo plantas terrestres e invertebrados terrestres e
marinhos (Hulme et al., 2009; Keller et al., 2011). Apesar de não se
conhecer os seus efeitos em detalhe, calcula-se que representem perdas
avaliadas em milhares de milhões de euros por ano. Em Portugal, há
legislação que regula a introdução destas espécies desde 1999. E apesar
de haver algum desconhecimento sobre o seu estado atual no nosso país,
supõe-se que o número de espécies exóticas invasoras tenha aumentado
bastante nas últimas décadas (Almeida & Freitas, 2012).
A erradicação de uma espécie exótica invasora após o seu estabele‑
cimento é muito difícil. E como os recursos são geralmente escassos,
308 BRUNO PINTO
as ações direcionadas a estas espécies concentram-se na gestão dos
casos mais problemáticos. Por exemplo, na Europa, existem apenas 34
espécies que foram erradicadas de determinados locais com sucesso
(sobretudo vertebrados). Medidas como a cooperação internacional para
impedir a sua passagem entre países e regiões, ações como a erradica‑
ção e/ou controlo numa fase inicial da sua introdução e sensibilização
da população para a não libertação de animais exóticos em ambientes
naturais podem ajudar a reduzir o impacto das espécies exóticas inva‑
soras (Hulme et al., 2009; Keller et al., 2011).
3.5. A degradação do solo
O solo é a camada mais superficial da Terra, sendo o ritmo da sua
formação influenciado por fatores como os materiais de origem (por
exemplo, rocha, areia ou barro), os organismos presentes no solo, o
clima ou a topografia do terreno. Como são apontados valores médios
de 10 000 anos para a formação de 17 cm de espessura de solo, este é
considerado um recurso não renovável (Montgomery, 2007).
Em 2013, alguns meios de comunicação social internacionais noti‑
ciaram o crescimento acentuado da importação de arroz na China, que
é um dos maiores produtores deste alimento no Mundo. A causa prin‑
cipal era a desconfiança dos consumidores pelo arroz chinês, uma vez
que tinham sido encontrados níveis elevados de cádmio em diferentes
regiões do país (e.g., Terazeno, 2013; Guilford, 2013; The Econo‑
mist, 2013). A contaminação dos solos na China devido às atividades
industriais e agrícolas continua a ser uma ameaça ambiental nos tem‑
pos que correm, mas esta é apenas uma de muitas regiões do mundo
em que existem problemas com os solos. Mesmo havendo lacunas de
informação, dados recentes indicam que cerca de 1/3 de todos os solos
se encontram degradados (FAO, 2015). Algumas formas de degradação
decorrem de processos naturais, mas que são drasticamente aumenta‑
das por fatores como o aumento da população mundial, o crescimento
económico e as alterações climáticas (FAO, 2015; Montanarella et
al., 2016; Koch et al., 2013).
Um dos principais problemas apontados pelos especialistas é a
erosão, que é mais grave em regiões como África e Ásia (FAO, 2015).
Globalmente, as estimativas apontam para a perda de solo em áreas
agrícolas a um ritmo 10 a 40 vezes mais rápido do que as taxas naturais
de formação dos solos (Pimentel & Burgess, 2013; Amudson et al.,
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 309
2015). Mesmo regiões do mundo como os Estados Unidos da América
e a Europa, que têm menores níveis de erosão, excedem largamente
o que pode ser reposto naturalmente. Em áreas agrícolas, a redução
de nutrientes no solo tem sido parcialmente compensada pelo uso de
fertilizantes, que introduzem sobretudo azoto e fósforo (Meadows et
al., 2004; FAO, 2015). No entanto, esta solução não pode ser mantida
a longo prazo, uma vez que há indícios de que estamos a atingir os
limites para a sua absorção.
A salinização dos solos também prejudica a produção agrícola. Pode
ocorrer de forma natural (por exemplo, em áreas com depósitos de sal)
ou por ação humana (por exemplo, devido a uma deficiente gestão de
água para rega) (Tanji, 2002; Chinnusamy et al., 2005). Este fenó‑
meno está tipicamente associado a áreas áridas ou semiáridas, e pode
ser exacerbado pelas alterações climáticas.
Outra ameaça, que ocorre sobretudo em países desenvolvidos, é a
impermeabilização dos solos, pela expansão das zonas urbanas. Quando
tal acontece, os solos perdem a sua capacidade de produção de alimento,
de reter água e carbono, etc. (Amudson et al., 2015). Esta questão é
especialmente relevante se forem áreas de grande aptidão agrícola, que
deveriam ser poupadas a esta mudança de uso do solo. Uma análise
recente estimou que, entre 1990 e 2006, 19 países da União Europeia
– em que se destacam pela negativa a Alemanha e Portugal – perderam
uma área agrícola que corresponde a 1% da sua capacidade de produção
(Prokop et al., 2011). No nosso país, os desafios ambientais para a
gestão dos solos agrícolas (que são geralmente pobres) incluem também
a redução da erosão, o aumento da matéria orgânica e o melhoramento
da estrutura dos solos para aumentar a capacidade de retenção de água
(Carvalho & Lourenço, 2014).
A forma como se tem lidado com a perda, impermeabilização e
degradação dos solos no passado foi a expansão e/ou mudança de loca‑
lização das áreas agrícolas. No entanto, boa parte dos solos e climas
adequados à produção agrícola encontram-se hoje ocupados (FAO,
2015; Amundson et al., 2015; Koch et al., 2013). A intensificação da
agricultura como estratégia global também não parece ser uma solu‑
ção viável, uma vez que agrava alguns dos problemas acima referidos
(Amundson et al., 2015).
310 BRUNO PINTO
3.6. A escassez de água
Na edição de 16 de novembro de 2014, o programa de televisão
norte-americano “60 minutos” (CBS, 2014) referia que havia uma
seca que durava há mais de quatro anos na Califórnia (EUA). Mesmo
assim, continuava a haver uma abundante produção agrícola naquela
região. Como é que isto era possível? A resposta estava no uso de água
subterrânea captada em aquíferos. Explicava a jornalista que esta água
deve funcionar como uma reserva, e que o seu uso deve ser comedido.
Mas ao longo deste programa, percebemos que o uso de água não é
controlado e que os especialistas estão renitentes relativamente ao futuro
da agricultura na Califórnia.
De facto, a água subterrânea é atualmente a principal fonte de água
para aproximadamente 2 mil milhões de pessoas, representando quase
metade da água usada na irrigação de culturas agrícolas (Famiglietti,
2014; Siebert et al., 2010). Com a redução das fontes de água doce
tradicionais (rios, ribeiros, lagos, etc.), a quantidade de água subterrâ‑
nea extraída de aquíferos tem vindo a aumentar nas últimas décadas
(Famiglietti, 2014; Richey et al., 2015; Macdonald et al., 2014). No
entanto, a informação relativa aos principais aquíferos do mundo em
regiões áridas e semiáridas revela um cenário preocupante: em quase
todos os casos, a água é extraída a uma taxa bastante mais alta do que
a sua reposição natural (Famiglietti, 2014; Richey et al., 2015).
Mesmo sabendo que a maioria da água doce a nível mundial é usada
na agricultura, existe uma parte substancial com outros usos. Assim,
em termos globais, usamos 69% da água doce na agricultura (irrigação,
criação de gado e aquacultura), 19% na indústria e 12% nos municípios
(que inclui o uso doméstico) (FAO, 2016). Sabemos, também, que
continua a haver milhões de pessoas em todo o mundo que vivem sem
água potável e um número ainda maior de pessoas sem acesso a boas
condições sanitárias. Existe, obviamente, uma relação entre a falta de
saneamento básico e a degradação da qualidade da água, uma vez que
o tratamento adequado de águas residuais pode evitar a contaminação
de água potável (WWAP, 2015).
Para reforçar estes números, um estudo recente concluiu que cerca
de 2/3 da população mundial vive em condições de escassez de água
severa durante, pelo menos, um mês por ano (Mekonnen & Hoesktra,
2016). Esta escassez tem especial incidência na Índia e na China. Neste
estudo, também é referido que milhões de pessoas são afetadas por
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 311
uma falta de água severa durante todo o ano, havendo outros autores
que referem problemas de abastecimento de água em grandes cidades
devido “a limitações geográficas e financeiras” (Macdonald et al.,
2014). As alterações climáticas deverão trazer um agravamento da
escassez de água em determinadas regiões (IPCC, 2014).
4. Conclusão
Ao longo deste capítulo, abordámos de forma resumida e simplifi‑
cada o conceito de sustentabilidade ecológica ou ambiental, algumas
iniciativas da sua medição a nível mundial e exemplos específicos de
ameaças ambientais globais. Mesmo havendo incertezas associadas a
estas avaliações, existe um consenso entre cientistas que trabalham na
área da sustentabilidade de que as ações humanas atuais têm um grande
impacto à escala mundial e também que poderemos atingir os limites de
uso de alguns destes valores naturais durante o século xxi (Meadows et
al., 2004; Rockstrom et al., 2009a; Wackernagel et al., 1999).
Os efeitos das ações humanas no planeta são tão grandes que motivam
mudanças na forma como vemos a história do nosso planeta. Assim, foi
proposta a designação de “Antropoceno” como uma nova época geológica
em que estamos a viver e que é caracterizada por alterações antropogénicas
profundas. A União Internacional das Ciências Geológicas (UICG), que
é a entidade que define as unidades de tempo geológico, deverá deliberar
em breve se ainda estamos a viver no Holoceno ou se passámos para o
Antropoceno (Waters et al., 2016; Steffen et al., 2015).
Mesmo sabendo que o futuro é imprevisível, deveremos ter em conta
que existem hoje cerca de 7.4 mil milhões de pessoas no mundo, e que
este número deverá ser cerca de 9.7 mil milhões de pessoas em 2050
(United Nations, 2015). Durante este período, especula-se que a econo‑
mia mundial terá de crescer cerca de três vezes para poder acompanhar
não só este aumento do número de pessoas, mas também o crescimento
do consumo de produtos alimentares como a carne ou o peixe em países
em desenvolvimento como a China ou a Índia (Sachs, 2015). No entanto,
e tendo em conta o estado de alguns dos valores naturais, colocam-se
dúvidas sobre a possibilidade deste crescimento a longo prazo (e.g.,
Sachs, 2015; MEA, 2005).
Vimos, também, como uma gestão deficiente de valores naturais
renováveis pode ter consequências negativas. Não precisamos de fazer
grandes incursões ao nosso passado longínquo para o ilustrar, uma vez
312 BRUNO PINTO
que temos exemplos atuais, por exemplo, em alguns dos stocks de pesca.
Uma das justificações para este tipo de comportamento é conhecida pelos
economistas como “preferência temporal”, em que se opta pela utilidade
imediata ao invés da utilidade futura (Frederick et al., 2002; Silva,
2010; Santos, 2012). Apesar desta característica nos ter sido benéfica no
passado, em que a nossa sobrevivência se decidia em intervalos de tempo
curtos, uma visão a médio e longo prazo parece hoje mais adequada para
garantir o bem-estar das gerações presentes e futuras.
A este propósito, o cientista português Filipe Duarte Santos refere-se
a um “discurso prometeico” como uma confiança praticamente ilimitada
na ciência, tecnologia e inovação para resolver praticamente todos os
problemas relacionados com a escassez de recursos naturais (Santos,
2007, 2012). Mesmo reconhecendo o seu valor, e considerando também
a nossa resiliência a condições difíceis, a perspetiva de que esta escas‑
sez de valores naturais se pode resolver recorrendo apenas à ciência é
irrealista (Santos, 2012).
Está fora do âmbito deste capítulo apresentar soluções para os pro‑
blemas ambientais referidos de forma exaustiva. Genericamente, e para
além de outras anteriormente referidas, poderemos mencionar a redução
do desperdício (alimentos, água, eletricidade, etc.), a monitorização
ambiental regular, a prevenção da exaustão de recursos renováveis, a
redução de desigualdades entre ricos e pobres e medidas que promovam
o abrandamento do crescimento populacional humano (sobretudo pela
educação e acesso a contraceção nos países em desenvolvimento) (Sachs,
2015; Meadows et al., 2004). Por exemplo, como se calcula que cerca
de 1/3 de todos os alimentos produzidos hoje são desperdiçados, uma
redução substancial deste valor teria um impacto significativo nos valores
naturais do planeta (Food and Agriculture Organization, 2011).
Numa nota mais positiva, parece haver maior consciência global
das questões ambientais, o que poderá ajudar a implementar estas e/ou
outras medidas. Apenas dois exemplos disto: 1) o acordo do clima em
Paris de 2015 foi negociado envolvendo a generalidade dos países do
mundo. Mesmo com o recuo dos Estados Unidos da América anunciado
pelo presidente Donald Trump, este continua a ser um feito notável; 2)
segundo o relatório do Fórum Económico Mundial 2016, em que foram
consultados 750 especialistas de diversos países, o risco com maior
impacto a nível global é a deficiente mitigação e adaptação às altera‑
ções climáticas, estando as crises de água em terceiro lugar e a perda de
biodiversidade e colapso dos ecossistemas em sexto lugar (WEF, 2016).
BREVES NOÇÕES DE SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA 313
Para concluir, é bom recordar que uma situação em que há mais recur‑
sos usados do que disponíveis não se poderá manter indefinidamente.
Não argumentamos aqui que irá ocorrer um fim trágico da nossa espécie
devido à escassez de recursos naturais ou algo de semelhante. Cabe-nos,
no entanto, concordar com outros autores de que uma transição mais
suave e voluntária de uma situação de insustentabilidade para a susten‑
tabilidade será sempre preferível a uma transição abrupta e forçada, que
implique consequências negativas tais como a guerra ou a fome, que se
verificaram no passado (Meadows et al., 2004; Sachs, 2015).
A escrita deste capítulo foi feita com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia
(FCT), através do financiamento do centro de investigação MARE (UID/MAR/04292/2013)
e da bolsa de pós-doutoramento do autor (SFRH/BPD/112119/2015).
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in Europe’s first farmers, ed. T. D. Price, Cambridge: Cambridge University Press,
pp. 144-82
Precaução e Proteção do Ambiente:
Da Incerteza à Condicionalidade
Carla Amado Gomes*
1. Algumas ideias simples sobre o princípio da precaução
Precaução é um termo com o qual o cidadão comum está, hoje em
dia, familiarizado. Fruto de alarmes sociais como os associados à crise
das vacas loucas, da gripe asiática, do vulcão Eyjafjallajokull, a ideia
de precaução surge como aliada de um consumidor confrontado com
riscos inesperados, dos foros alimentar, sanitário e de segurança. Na
dúvida, proíbe-se a venda de carne de vaca por suspeita de possibilidade
de contaminação da cadeia alimentar humana; instauram-se controlos
nas fronteiras para avaliar o estado de saúde de pessoas que regressam
de determinados países e desaconselha-se a viagem para tais destinos;
suspende-se o tráfego aéreo nos céus da Europa por suspeita de que as
cinzas vulcânicas possam danificar os motores dos aviões. A precaução,
novo paradigma de decisão num cenário de ciência incerta (aludindo à
precaução como base de um “Direito da ciência incerta”, Grassi, 2012,
pp. 87 et seq.), ganha protagonismo na sociedade de risco.
Quando, em 1986, Ulrich Beck revelou as novas dimensões do
risco na modernidade, na sua obra já antológica Risikogesellschaft. Auf
dem Weg in eine andere Moderne, lançou também as bases para uma
nova cultura de gestão do medo. O risco moderno é global, induzido
pelo homem, oculto nas causas e magno nas consequências, e intensa‑
mente democrático. Não se circunscreve a “grupos de risco”, antes se
espraia por toda a sociedade, local, regional, mundial e por isso cria
um potencial de medo muito superior, em quantidade e qualidade, ao
que se vivia na sociedade industrial dos séculos xix / xx. Biotecnologia,
* Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professora
Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto. Foi Professora
Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa entre 2007 e 2013.
Leciona cursos de mestrado e pós-graduação em Direito do Ambiente, Direito Adminis‑
trativo e Direito da Energia em Angola, Moçambique e Brasil. Colabora regularmente
em ações de formação no Centro de Estudos Judiciários.
324 CARLA AMADO GOMES
proteção radiológica, segurança alimentar, são hoje riscos públicos,
sobre os quais os governantes devem promover um intenso e alargado
contraditório que atenue o medo da incerteza e gere confiança nas
vantagens do risco associado ao progresso civilizacional.
Risco e incerteza são grandezas muito próximas, que se aproxi‑
mam através do chamado “princípio da precaução” (Amado Gomes,
2007, pp. 224 et seq.. Mais recentemente, Aragão, 2008, pp. 32-6,
apresentando a incerteza como o segundo pressuposto de aplicação do
princípio da precaução, a par de “novos riscos”). A diluição do nexo
de causalidade entre ‘evento potencialmente lesivo’ e ‘dano’ obriga o
decisor político a antecipar o momento de prevenção para um limiar
temporal muito anterior à possibilidade de ocorrência da lesão. É nesta
antecipação da atuação preventiva que avulta a dimensão da precaução
– um momento em que não há certezas, em que inexistem consensos na
comunidade científica, em que pairam dúvidas sobre a inocuidade de
um produto ou atividade e ainda assim se dita uma restrição ou mesmo
interdição, in dubio pro salute/in dubio pro ambiente. Ao momento da
certeza do perigo prefere o momento da intuição do risco.
A evolução técnico-científica a que as sociedades desenvolvidas
vêm assistindo principalmente nos últimos cinquenta anos trouxe para
a ribalta o conceito de risco. Aproveitando (parcialmente) a síntese de
Gilles Martin (Martin, 1998, pp. 451 et seq.), o risco começou por
ser identificado, na Idade Média, com a ideia de destino, passando a
ser relacionado, numa segunda fase, com o progresso – na sequência
das profundas alterações aos processos de produção induzidas pela
Revolução Industrial –, para estar hoje associado a uma imagem de
encruzilhada da civilização – sinónimo, a um só tempo, de desafio
tecnológico e de temor generalizado.
O risco sempre foi associado ao desconhecido. Atualmente, apesar e
por causa das constantes superações da Ciência, esse desconhecido entra‑
nhou-se em praticamente todos os domínios da vida, trazendo consigo
uma intensa sensação de fragilidade. O risco globalizou-se, e a exploração
da (fácil) vertente sensacionalista das questões com ele relacionadas
pelos mass-media, se contribui, por um lado, para a mobilização social
(“Dans la perception collective des risques, les médias sont alors sociolo‑
giquement appelés à jouer un rôle stratégique au regard du processus de
décision” Charbonneau, 1998, p. 386), não raras vezes, por outro lado,
o banaliza. Chegámos à sociedade multirriscos: grandes ou pequenos,
reais ou artificiais, é com eles que quotidianamente temos que conviver.
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 325
A precaução ganhou relevo no Direito Internacional no âmbito da
luta contra a poluição marinha, e como metodologia de ponderação de
riscos no âmbito do licenciamento de instalações potencialmente poluen‑
tes, no Direito alemão (veja-se, para uma síntese evolutiva da lógica
de precaução no ordenamento alemão, Boehmer-Christiansen, 1994,
pp. 31 et seq.). Numa formulação ampla, a lógica de precaução implica
que a dúvida sobre a existência de um determinado risco securitário,
sanitário, ambiental, não deve inibir as autoridades públicas que têm por
missão o seu controlo de tomar medidas e de as impor ao operadores
económicos no sentido de o minimizar. O seu intuito é sustentar deci‑
sões tomadas em contextos de incerteza quanto à existência do risco,
quanto à sua magnitude, quanto ao momento da sua eclosão, deslocando
para a esfera de quem pretende introduzir o fator de risco o ónus de
demonstração da sua neutralização através de medidas de prevenção.
Assim apresentada em traços impressionistas, a precaução assume
uma faceta impressivamente positiva, de defesa de interesses públicos
vitais à comunidade, legitimando a imposição de salvaguardas ao
comércio e à indústria no sentido da mais elevada proteção do consu‑
midor. Mas esta seria uma perspetiva redutora das consequências que
lhe estão associadas. Vejamos porquê.
2. Algumas ideias inquietantes sobre o princípio da precaução
Escreve Cass Sunstein que uma das vantagens das democracias reside
na institucionalização do debate sobre os riscos, prevenindo situações
de pânico injustificado, promovendo a informação sobre os dados dis‑
poníveis – não forçosamente claros e tendencialmente controversos – e
definindo os riscos aceitáveis através de uma análise custo/benefício
(Sunstein, 2005, passim). O risco, enfatiza Bernstein, é um conceito
político porque resulta de uma escolha, não de uma predestinação –
“risk is a choice rather than a fate” (Bernstein, 1996, p. 8: “The word
risk derives from the early italian risicare, which means ‘to dare’. In
this sense, risk is a choice rather than a fate. The actions we dare to
take, which depend on how free we are to make the choices, are what
the story of risk is all about”). Problemático é interpretar e gerir as
escolhas da generalidade da população sobre os riscos, porque elas
resultam, muitas vezes, de apreciações não racionais (Posner, 2004,
pp. 119 et seq.).
326 CARLA AMADO GOMES
Com efeito, riscos próximos, circunscritos, que se traduzam em
perda de vidas humanas ou em incapacidades vitalícias, sobretudo se
apetecíveis para a comunicação social, são aqueles que mais facilmente
captam a atenção da população no sentido da sua rejeição (Hornstein,
1992, p. 608). O caráter difuso de certos riscos (v.g., a inalação de
gases tóxicos), a deficiente ou contraditória informação sobre outros
(v.g., os efeitos das radiações emitidas pelos telemóveis), a incidência
prioritária ou exclusiva do risco sobre bens naturais (v.g., efeitos de
certos pesticidas sobre a qualidade do solo, ou de uma atividade de
lazer sobre uma espécie animal), a distância temporal do pico do risco
relativamente ao período de vida da geração presente e da subsequente
(v.g., o sobreaquecimento do planeta provocado pelas emissões de dió‑
xido de carbono, desde as industriais às domésticas), mas sobretudo a
acomodação social a certos riscos – quer da parte de quem o suporta,
quer da parte dos que o provocam (conforme nota Hornstein, 1992,
p. 628, “Technological innovation, however, is not a ‘black box’ into
which policymakers can reach at will to extract solutions. It is a com‑
plex market process with demands that can be profoundly affected by
the social process of environmental decisionmaking”) –, estes e outros
fatores de ponderação condicionam a análise racional do potencial lesivo
do risco, forçando o decisor público a assumir uma atitude dialogante
com os agentes económicos e a sociedade civil, sob pena de criação
de resistências ao acatamento de medidas restritivas.
Este diálogo é dificultado pela complexidade técnica dos problemas
associados aos riscos em jogo, é entorpecido pela permeabilidade do
poder político a interesses económicos e não raro convoca questões
éticas de relevo. Sunstein sublinha a este propósito que, enquanto a
sinalização do risco tem uma dimensão predominantemente factual, a
sua gestão envolve (por vezes dilemáticos) juízos de valor – e sempre
acarreta um custo, a suportar pela indústria ou pelos consumidores.
A gestão do risco é, decerto, onerosa, na direta proporção da incer‑
teza que o rodeia. O desconhecimento da magnitude do risco, das suas
prováveis manifestações, das circunstâncias da sua eclosão, obrigam
os operadores económicos a um esforço financeiro considerável, que
pode em última análise tornar a sua atividade incomportável, tama‑
nho é o volume de riscos que devem antecipar (“Taken literally, the
precautionary principle would lead to indefensible huge expenditures,
exhausting our budget well before the menu of options could be tho‑
roughly consulted” – Sunstein, 2002, p. 103). O facto de se impor ao
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 327
operador um ónus da prova da inocuidade do produto ou da atividade
pode constituir, desde logo, um obstáculo intransponível.
O peso financeiro da precaução pode, consequentemente, levar a
retração na introdução de inovações – o que é suscetível de perpetuar
produtos ou atividades tendencialmente obsoletos. A dúvida sobre os
riscos associados a novos produtos ou atividades, porque importa em
custos de prevenção elevados, pode gerar, paradoxalmente, um fenó‑
meno de degradação dos níveis de segurança, em virtude da preferência
do velho e aparentemente seguro ao novo e previsivelmente arriscado.
O receio do desconhecido potencia, assim, como enfatiza Cross, um
anquilosamento da tecnologia e uma estagnação do progresso científico
(Cross, 1996, pp. 863 et seq.). Este autor sublinha que “o princípio da
precaução tende a ser primacialmente aplicado a novas fontes de risco,
precisamente porque já nos acostumámos a viver com os riscos antigos
e não nos sentimos tão ameaçados por eles” (Cross, 1996, p. 876).
Ou seja, o receio associado à insegurança do novo pode induzir um
acréscimo de insegurança através da perpetuação do antigo.
A questão da precaução ganha, todavia, contornos ainda mais inquie‑
tantes quando utilizada no âmbito da política de segurança. A ideia de
que, na dúvida sobre a perigosidade social de um determinado sujeito,
é legítimo escutá-lo, segui-lo, detê-lo, torturá-lo ou mesmo executá‑
-lo, em nome da segurança nacional, constitui uma concretização da
precaução no seu pior sentido – infelizmente bastante usual no pós 11
de setembro e vastamente detetável em medidas, legislativas e execu‑
tivas, tanto nos Estados Unidos da América como na Europa. [Cf. o
USA Patriot Act (Uniting and Strengthening America by Providing
Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act
of 2001) assinado pelo Presidente George W. Bush em 26 de outubro
de 2001, na sequência dos ataques da Al-Quaeda em território norte‑
-americano; o Antiterrorism, Crime and Security Act 2001 aprovado
pelo Parlamento do Reino Unido em 19 de novembro de 2001; ou,
mais recentemente, na sequência do atentado contra a sede do jornal
Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, as alterações à lei antiterrorista
aprovadas em 4 de novembro de 2015, numa escalada que logo em
2004 foi descrita como “o fim do Estado de Direito” por Paye, 2004,
pp. 61 et seq.] Conforme sublinham Miller e Conko, o princípio da
precaução tende a tornar os governos menos confiáveis (accountable)
porque a sua ambiguidade permite ao decisor usá-lo como justificativa
de qualquer decisão restritiva (Miller & Conko, 2001, p. 303).
328 CARLA AMADO GOMES
A escolha da precaução acaba por coincidir, muitas vezes, com um
sacrifício intolerável das liberdades, de circulação, de comunicação,
de expressão. O medo torna as pessoas reféns de políticas securitárias
altamente invasivas e deixa a sociedade permeável a investidas autori‑
tárias. A precaução torna-se lobo em pele de cordeiro.
Temos até aqui adotado um estilo menos técnico. Mas a noção de
(princípio da) precaução tem projeções jurídicas várias, ainda que não
propriamente precisas. Em razão desta imprecisão, a precaução tem na
jurisprudência um determinante intérprete. Vamos prosseguir com um
breve apanhado das formulações do princípio da precaução no Direito
da União Europeia e no Direito Português, para depois analisarmos
algumas decisões jurisdicionais que podem ajudar a perceber o sentido
que o princípio vem adquirindo.
3. As várias “faces” do “princípio” da precaução (desenvolvida-
mente sobre este ponto, veja-se Amado Gomes, 2007, pp. 252 et
seq.)
A lógica de precaução traduz fundamentalmente uma ideia de pre‑
venção antecipada em razão da incerteza sobre a existência de lesividade
significativa de uma determinada atividade ou produto. A lei alemã
sobre autorizações de atividades geradoras de emissões poluentes,
em vigor desde 1972 e desde então por várias vezes alterada, lançou
a distinção entre prevenção de perigos (eventos lesivos com probabi‑
lidade de ocorrência comprovada com base em juízos estatísticos ou
científicos incontroversos e que nessa qualidade devem ser evitados)
e prevenção de riscos (eventos cuja lesividade ou probabilidade de
ocorrência é controversa e que, por isso, devem ser prevenidos por
recurso às melhores técnicas disponíveis) (cf. os n.os 1 e 2 do artigo 5
da Bundes-Immissionsschutzgesetz: “Genehmigungsbedürftige Anla-
gen sind so zu errichten und zu betreiben, dass zur gewährleistung
eines hohen Schutzniveaus für die Umwelt insgesamt / 1. schädliche
Umweltwirkungen und sonstige Gefahren, erhebliche Nachteile und
erhebliche Belästigungen für die Allgemeinheit und die Nachbarschaft
nicht hervorgerufen werden können; 2. Vorsorge gegen schädliche
Umwelteinwirkungen und sonstige Gefahren, erhebliche Nachteile
und erhebliche Belästigungen getroffen wird, insbesondere durch die
dem Stand der Technik entsprechenden Maßnahmen”). A esta norma
está implícita uma metodologia de ponderação de interesses: porque
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 329
a atividade é socialmente útil, ela não deve ser liminarmente proibida
caso a sua lesividade não esteja absolutamente comprovada; todavia, o
facto de poder importar em danos para o ambiente obriga o operador
a suportar o custo de medidas de prevenção de riscos por recurso à
melhor técnica disponível.
No plano internacional, o primeiro assomo da lógica de precaução
fez-se na Carta Mundial da Natureza, de 1982 (aprovada pela Reso‑
lução da Assembleia Geral da ONU de 28 de outubro de 1982 n.º A/
RES/37/7), no artigo 11.º, que aqui se transcreve:
“11. Activities which might have an impact on nature shall be
controlled, and the best available technologies that minimize
significant risks to nature or other adverse effects shall be used;
in particular:
(a) Activities which are likely to cause irreversible damage to
nature shall be avoided;
(b) Activities which are likely to pose a significant risk to
nature shall be preceded by an exhaustive examination;
their proponents shall demonstrate that expected benefits
outweigh potential damage to nature, and where potential
adverse effects are not fully understood, the activities should
not proceed; […]”.
Deste documento, fortemente ecocêntrico, resulta uma versão máxima
da lógica de precaução, uma vez que se afirma que sempre que rema‑
nesça dúvida sobre os efeitos adversos de uma determinada atividade
para a Natureza, ela deve ser vedada. Cabe ao operador demonstrar
inequivocamente que os efeitos benéficos para a Natureza ultrapassam
largamente os efeitos adversos. E na dúvida, proíbe-se – trata-se de um
mandado de inação a favor do ambiente.
Já na Declaração de Londres, de 1987, sobre poluição marinha no
Mar do Norte, a precaução surge bem menos assertiva, no artigo XVI/I,
que igualmente se reproduz:
“[The ministers] accept the principle of safeguarding the marine
ecosystem of the North Sea by reducing pollution emissions of
substances that are persistent, toxic and liable to bioaccumulate
at source by the use of the best available technology and other
appropriate measures. This applies especially when there is reason
to assume that certain damage or harmful effects on the living
330 CARLA AMADO GOMES
resources of the sea are likely to be caused by such substances,
even where there is no scientific evidence to prove a causal link
between emissions and effects (‘the principle of precautionary
action’)”.
Como facilmente se apreende, esta formulação aproxima-se da adotada
pela lei alemã, estabelecendo, diferentemente da norma anteriormente
transcrita, um mandado de ação a favor da viabilização da atividade,
embora condicionada à observância das melhores tecnologias disponíveis
(numa tentativa de “avoid paralysis by analysis” – Harremoes, Gee,
MacGarvin, Stirling, Keys, Wynne & Guedes Vaz, 2002, pp. 203
et seq.). As diferenças não ficam pela atitude positiva, anotando-se
também a omissão relativamente à inversão do ónus da prova a cargo
do operador.
A Declaração do Rio de Janeiro, de 1992, no seu princípio 15, viria a
dar amplitude planetária à ideia de precaução – à abordagem de precau‑
ção, mais precisamente –, conforme resulta da norma que aqui se ilustra:
“In order to protect the environment, the precautionary approach
shall be widely applied by States according to their capabilities.
Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of
full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing
cost-effective measures to prevent environmental degradation”.
A distância entre fórmulas atinge um pico assinalável: a adoção da
“approach” precaucionista fica condicionada de múltiplas formas, em
função: i) da capacidade dos Estados; ii) da seriedade ou irreversibilidade
do dano; iii) da consistência científica da dúvida sobre os efeitos lesivos
da atividade; iv) da sujeição da adoção de medidas minimizadoras a
uma ponderação custo-benefício. Na Declaração do Rio, mantém-se a
lógica do mandado de ação e neutraliza-se irreversivelmente a máxima
in dubio pro ambiente que resulta da Carta Mundial da Natureza, uma
vez que se admite a viabilização da atividade condicionada por medidas
minimizadoras de efeitos adversos, mas sujeita-se a fixação destas a uma
equação de vantagens e desvantagens sociais imediatas e previsíveis da
atividade contra vantagens e desvantagens ambientais desta, de médio
e longo prazo e de ocorrência incerta.
Esta brevíssima amostragem visa caracterizar a forte alternância
de fórmulas relativas à precaução nos documentos internacionais, que
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 331
se deve tanto às divisões que convoca em razão das escolhas políticas
que reclama, como aos diferentes domínios de regulação em que marca
presença (poluição marinha; biodiversidade; radioatividade), como
ainda ao nível de regulação em que se posiciona (regional ou mundial).
Vejamos como a assimilou o Direito da União Europeia.
3.1. A precaução no Direito da União Europeia
No Direito da União Europeia, a primeira referência explícita à
precaução surge na sequência da revisão dos Tratados operada pelo
Tratado da União Europeia (1993) [tal não significa que a lógica da
precaução não fosse já percetível no Direito da União Europeia anterior
ao Tratado da União Europeia. Veja-se o n.º 3 do artigo 6.º da Diretiva
n.º 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de maio de 1992 (diretiva habitats),
a que se fará referência na sequência do texto]. O nº 1 do então artigo
130R passou a incluir o termo no lote de princípios aplicável à política
de ambiente, embora sem desenvolvimento quanto ao seu conteúdo. Só
em 2000, através de uma Comunicação da Comissão sobre o princípio
da precaução [Comunicação da Comissão relativa ao princípio da pre‑
caução – COM(2000) 1 final, de 2 de fevereiro de 2000], e devido à
grande oscilação de formulações e interpretações a que se assistia no
plano do Direito Internacional, a Comunidade Europeia tomou uma
posição mais extensa sobre o seu significado.
Nesta Comunicação, a Comissão estabelece que o princípio da
precaução é invocável apenas num quadro de incerteza decisória – ou
seja, quando existir uma dúvida consistente sobre o potencial lesivo
de determinado produto ou atividade para o ambiente ou para a saúde
pública. A Comissão exige o preenchimento de três pressupostos para
legitimar o recurso ao critério de precaução: i) a identificação de efeitos
potencialmente lesivos, através de uma análise de risco; ii) a avaliação
dos melhores dados científicos disponíveis; iii) a controvérsia sobre os
efeitos lesivos na comunidade científica. A precaução é, em regra, um
mandado de ação, com recurso às melhores técnicas disponíveis, no
sentido da conciliação dos interesses em jogo; contudo, não se exclui
(nem se admite) a opção pela proibição.
Na fixação das medidas de minimização do risco, a Comissão
reclama a observância de cinco princípios gerais: a proporcionalidade
entre as medidas adotadas e o nível de proteção pretendido; a não
discriminação na aplicação das medidas; a coerência entre as medidas
332 CARLA AMADO GOMES
sucessivamente adotadas ao longo do tempo em situações similares; uma
análise comparativa de vantagens e desvantagens da autorização ou da
proibição/ação ou inação; um reexame da suficiência das medidas de
minimização tendo em atenção a evolução técnico-científica.
Desde a sua inclusão no Tratado, em sede de política de ambiente,
até hoje, o princípio da precaução passou a ser invocado por diversos
diplomas legislativos ambientais da União Europeia. Sem pretensão de
exaustividade, vejam-se: a diretiva sobre prevenção e controlo integrados
da poluição (1996) (Diretiva n.º 96/61/CE, do Conselho, de 24 de setembro
de 1996 – hoje revogada pela Diretiva n.º 2010/75/UE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 24 de novembro, relativa às emissões indus‑
triais); a (segunda) diretiva sobre organismos geneticamente modificados
(2001) (Diretiva n.º 2001/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 12 de março de 2001, relativa à libertação deliberada no ambiente de
organismos geneticamente modificados – ver, em especial, o Anexo II,
ponto B. Princípios Gerais); o regulamento sobre o sistema de gestão
de substâncias químicas (2006) [Regulamento (CE) n.º 1907/2006 do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro de 2006 relativo
ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas
(REACH)]; o regulamento, relativo à utilização na aquicultura de espécies
exóticas e de espécies ausentes localmente (2007) (Regulamento (CE)
n.º 708/2007, do Conselho, de 11 de junho); a diretiva sobre resíduos
(2008) (Diretiva n.º 2008/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 19 de novembro de 2008); a diretiva sobre máquinas de aplicação de
pesticidas (2009) (Diretiva n.º 2009/127/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 21 de outubro de 2009 – que altera a Diretiva n.º 2006/42/
/CE no que respeita às máquinas de aplicação de pesticidas); a diretiva
quadro da água (2010) (Diretiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 23 de outubro de 2000); a diretiva relativa à restrição
do uso de determinadas substâncias perigosas em equipamentos elétricos
e eletrónicos (2011) (Diretiva n.º 2011/65/UE, do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 8 de junho de 2011); e a diretiva relativa à segurança
das operações offshore de petróleo e gás (2013) (Diretiva n.º 2013/30/
UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013).
À exceção da diretiva de 2009 sobre máquinas de aplicação de pestici‑
das (Diretiva n.º 2013/30/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 12 de junho de 2013), nenhuma das outras inclui propriamente um
critério de decisão, focando-se sim sobre a metodologia de análise de
risco, sobre a fixação das medidas de gestão do mesmo segundo as
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 333
melhores tecnologias disponíveis, e sobre as questões da monitorização
e revisão da decisão autorizativa.
Mas atente-se sobretudo na formulação do n.º 3 do artigo 6.º da
Diretiva n.º 92/43/CEE, do Conselho, de 21 de maio de 1992, mais
conhecida por “diretiva habitats” – sublinhando-se que neste diploma
se não vislumbra qualquer referência expressa à precaução:
“Os planos ou projetos não diretamente relacionados com a gestão
do sítio e não necessários para essa gestão, mas suscetíveis de
afetar esse sítio de forma significativa, individualmente ou em
conjugação com outros planos e projetos, serão objeto de uma
avaliação adequada das suas incidências sobre o sítio no que
se refere aos objetivos de conservação do mesmo. Tendo em
conta as conclusões da avaliação das incidências sobre o sítio
e sem prejuízo do disposto n.º 4, as autoridades nacionais com‑
petentes só autorizarão esses planos ou projetos depois de se
terem assegurado de que não afetarão a integridade do sítio em
causa e de terem auscultado, se necessário, a opinião pública”
(itálico nosso).
Este preceito espelha bem a opção mais radical do princípio, plas‑
mada na Carta Mundial da Natureza, a que aludimos supra. Desta norma
resulta, diferentemente das restantes, um critério material de ponderação,
que faz prevalecer o interesse de proteção da biodiversidade integrante
da rede Natura sobre qualquer outro interesse (pelo menos prima facie,
uma vez que o diploma admite a derrogação da proibição em nome
da salvaguarda de interesses públicos de superior relevo e desde que
sejam oferecidas contrapartidas para o equilíbrio da rede, no seu todo).
Nos restantes diplomas, a precaução é invocada como metodologia de
ponderação de interesses, sempre em articulação com o sentido e limites
fixados na Comunicação da Comissão de 2000.
3.2. A precaução no Direito português
A precaução foi pela primeira vez nomeada no Direito ambiental
português no DL n.º 194/2000, de 21 de agosto, que acolheu o primitivo
regime de licenciamento ambiental no âmbito do sistema de controlo
integrado da poluição (cf. o artigo 9.º, n.º 1, in fine, e o Anexo V). Nessa
altura, a Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de abril) era
334 CARLA AMADO GOMES
alheia ao conceito, só o tendo incorporado no lote de princípios materiais
ambientais em 2014, quando passou a estar consagrado no artigo 3.º,
alínea c), a par da prevenção (cf. a Lei de Bases do Ambiente atual‑
mente em vigor: Lei n.º 19/2014, de 14 de abril), nos termos seguintes:
“c) Da prevenção e da precaução, que obrigam à adoção de medidas
antecipatórias com o objetivo de obviar ou minorar, prioritaria‑
mente na fonte, os impactes adversos no ambiente, com origem
natural ou humana, tanto em face de perigos imediatos e concretos
como em face de riscos futuros e incertos, da mesma maneira
como podem estabelecer, em caso de incerteza científica, que
o ónus da prova recaia sobre a parte que alegue a ausência de
perigos ou riscos”.
Entretanto, todavia, chegara uma definição do princípio da precaução
à Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro), cujo artigo 3.º,
alínea e), o desenha assim:
“Princípio da precaução, nos termos do qual as medidas desti‑
nadas a evitar o impacte negativo de uma ação sobre o ambiente
devem ser adotadas, mesmo na ausência de certeza científica da
existência de uma relação causa-efeito entre eles;”
Esta definição foi reproduzida, apenas com substituição de objeto, no
DL n.º 142/2008, de 24 de julho (Regime da conservação da natureza e
da proteção da biodiversidade): a alínea e) do artigo 4.º deste diploma
refere-se a “conservação da natureza e da biodiversidade” em vez de a
“ambiente”, como o diploma anterior.
No espaço de tempo que medeia a entrada em vigor da Lei da Água
(2006) e do Regime de proteção da natureza (2008), surge ainda uma
terceira fórmula de princípio da precaução, no artigo 5.º, alínea c), da
Lei n.º 27/2006, de 3 de julho (Lei de Bases da Proteção civil), de onde
se extrai o seguinte:
“c) O princípio da precaução, de acordo com o qual devem ser ado‑
tadas as medidas de diminuição do risco de acidente grave ou
catástrofe inerente a cada atividade, associando a presunção de
imputação de eventuais danos à mera violação daquele dever de
cuidado”.
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 335
Não se afigura simples, perante esta amostra, descortinar o sentido
que a precaução adquire no nosso ordenamento jurídico, mas parece
ser possível retirar as seguintes conclusões:
i) A precaução constitui um mandado de ação – a incerteza científica
não deve tolher o decisor de ordenar a tomada de medidas, tanto
a operadores públicos como privados, para minimizar os riscos
inerentes à atividade autorizada;
ii) A precaução só se distingue da prevenção no objeto de controlo:
riscos para a primeira, perigos para a segunda (cf. a definição da Lei
de Bases do Ambiente). Ambos envolvem uma atitude antecipativa
de eventos potencialmente adversos para o ambiente, bem como
a oneração do operador com a demonstração de suficiência das
medidas adotadas com vista à minimização da eventual lesão [um
bom exemplo deste dever de atestar a viabilidade socioambiental
de um qualquer projeto traduz-se na obrigação do proponente de
entregar um Estudo de Impacto Ambiental no âmbito da avalia‑
ção de impacto ambiental de projetos que podem gerar impacto
significativo para o ambiente – cf. o artigo 14.º, n.º 1, do DL
n.º 151-B/2013, de 31 de outubro (com última alteração através
do DL n.º 197/2015, de 27 de agosto: Regime de avaliação de
impacto ambiental)];
iii) O legislador português não define o(s) grau(s) de risco que
desencadeia a precaução, nem impõe análise de custo/benefício
na fixação das medidas preventivas, nem tão-pouco avança cri‑
térios específicos de ponderação de bens – ou seja, não se retira
da legislação portuguesa uma priorização do objetivo de proteção
da saúde ou do ambiente em face de outros interesses decorrentes
da mera explicitação do princípio da precaução.
A pulverização de fórmulas não abona sobre a consistência do
princípio, muito menos sobre o seu sentido. Mas além disso, e
em face dos dados do Direito da União Europeia, uma ausência
deveras estranha destas normas é a da ligação entre gestão da
incerteza, avaliação de risco e recurso à melhor técnica disponível
no âmbito da gestão do risco. Um dos locais onde essa ligação
é patente é o DL n.º 72/2003, de 10 de abril (que dispõe sobre o
regime de libertação deliberada no ambiente de organismos gene‑
ticamente modificados para qualquer fim diferente da colocação
no mercado, bem como a colocação no mercado de produtos que
336 CARLA AMADO GOMES
os contenham ou por eles sejam constituídos) o qual, não avan‑
çando nenhuma definição de precaução mas apenas a invocando,
inclui um Anexo II cujo teor é totalmente constituído por regras
sobre a concretização da lógica de precaução, nomeadamente
com descrição extensa de metodologias de avaliação e gestão de
riscos a eles associados.
Esta referência permite-nos aditar uma quarta conclusão às três
acima expostas, extrapolando a partir de diplomas como o DL
n.º 72/2003 ou como o DL n.º 127/2013, de 30 de agosto, que
traça o regime das emissões industriais e regula o licenciamento
ambiental das instalações mais intensamente poluentes (no qual
se menciona a precaução apenas no artigo 32.º, n.º 2, a propósito
da fórmula das melhores técnicas disponíveis):
iv) O legislador português entende a precaução como uma metodo‑
logia de análise e gestão de risco, antecipativa e dinâmica, por
recurso à melhor tecnologia disponível.
O Direito escrito dá-nos, portanto, sinais contraditórios sobre o sentido
da precaução no ordenamento português. Teremos que entrar no Direito
aplicado, ou seja, na jurisprudência, para porventura descobrir algo
mais. Mas antes, vamos proceder a essa mesma operação no âmbito da
União Europeia, analisando alguns casos decididos pelo Tribunal Geral
(=TG) e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (=TJUE) a fim de
deles tentar extrair algum contributo útil para a melhor compreensão
da precaução.
4. O sentido do “princípio da precaução” na jurisprudência:
Do percurso percorrido até aqui, compreender-se-á que a lógica de
precaução provoque alguma resistência da parte dos tribunais. No plano
internacional, o Tribunal Internacional de Justiça já desconsiderou a
precaução como princípio, afirmando que a prevenção de danos ao
ambiente é o único princípio que pode ser aceite no plano das relações
internacionais, sob pena de se introduzir um perigoso fator de unilate‑
ralismo potencialmente adverso ao princípio pacta sunt servanda [O
Tribunal Internacional de Justiça chegou a esta conclusão na decisão
Gabcikovo-Nagymaros Project, prolatada a 25 de setembro de 1997.
Estava em causa a suspensão unilateral de um Tratado celebrado entre
a Hungria e a (então) Checoslováquia, que tinha por objeto a construção
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 337
de uma barragem no rio Reno. A Hungria suspendeu os trabalhos com
base em alegações de que a continuação da construção poderia provo‑
car, segundo alguns estudos, riscos para a saúde das pessoas e para o
ambiente, invocando a precaução como fundamento de um “estado de
necessidade ambiental”. O Tribunal descartou esta argumentação, vin‑
cando que a suspensão do cumprimento de um Tratado não pode operar
com base na alegação de um risco eventual mas apenas com fundamento
em um perigo devidamente comprovado – e iminente. Ou seja, não
aceitou como válida a invocação da precaução (cf. os considerandos
49 a 58 do acórdão)]. O Tribunal Internacional para o Direito do Mar,
apesar de ter adotado uma retórica argumentativa que alguns identificam
com o princípio da precaução, no caso Southern Bluefin Tuna (1999),
nunca o invocou expressamente. O Painel de Resolução de Conflitos
da Organização Mundial do Comércio tão pouco vê com bons olhos a
invocação da precaução, que se constitui como um inimigo do comércio
internacional em razão da lógica protecionista que lhe está subjacente.
O Tribunal de Justiça da União Europeia, cuja principal jurisprudên‑
cia em sede de precaução analisaremos sinteticamente de seguida, tem
resistido a aceitar o argumento quando brandido pelos Estados-membros
para afastar atos da União Europeia; todavia, em contrapartida, tem-se
manifestado favorável à validação de medidas tomadas pelas instituições
europeias contra empresas que atuam no espaço europeu sustentadas
em argumentos precaucionistas – mormente no plano da proteção da
saúde pública.
4.1. Da União Europeia
Os casos que subiram aos tribunais da União Europeia nos quais se
invoca a precaução como critério de decisão remontam a 1999 [note‑
-se que em 1998 foram decididos dois casos que opuseram o Reino
Unido à Comissão Europeia em virtude da proibição de exportação de
carne bovina, por risco de contaminação com encefalopatia espongi‑
forme (a conhecida “doença das vacas loucas”) – acórdãos do TJUE
de 5 de maio de 1998, procs. C-157/96 e C-180/96. Em nenhum deles
se invocou expressamente o princípio da precaução, embora se tenha
contestado a análise de risco subjacente ao embargo decretado pela
Comissão. O Tribunal considerou, em ambos os casos, que a medida
proibitiva da Comissão era conforme ao princípio da proporcionali‑
dade, na vertente da adequação e do equilíbrio, tendo em consideração
338 CARLA AMADO GOMES
as incertezas sobre o contágio e o valor primordial em jogo (a vida
humana), frisando nomeadamente que “Where there is uncertainty as
to the existence or extent of risks to human health, the institutions may
take protective measures without having to wait until the reality and
seriousness of those risks become fully apparent” (consid. 99; vejam‑
-se os considerandos 96 a 111 do proc. C-180/96)], com as decisões
proferidas no caso Pfizer Animal Health [Despacho do Presidente do
Tribunal de Primeira Instância (hoje TG) de 30 de junho de 1999, proc.
T-13/99 R, confirmado pelo Despacho do Presidente do TJUE de 18 de
novembro de 1999, proc. C-329/99 P(R)] – em que os tribunais negaram
o pedido de suspensão de um regulamento de execução do Conselho que
implicou a retirada de autorização de comercialização de um antibiótico
para animais produzido pela Pfizer, com fundamento em risco para a
saúde humana. Este caso é particularmente paradigmático porquanto
a Comissão Europeia, perante as suspeitas de risco para a saúde das
pessoas, pediu parecer ao Comité Científico de Alimentação Animal
(Scientific Comittee for Animal Nutrition = SCAN) e este Comité não
detetou quaisquer riscos imediatos na utilização da virgianimicina. Ainda
assim, o Tribunal considerou que a Comissão e o Conselho agiram de
forma proporcional, decretando uma medida adequada e suficiente a
evitar um risco para saúde pública, não tendo excedido os limites do
poder de apreciação que lhes é concedido porquanto, embora o risco se
não revelasse imediato, não era de todo excluível à luz das considera‑
ções científicas produzidas sobre o assunto [Deixa-se a transcrição do
considerando 19 do Regulamento (CE) 2821/98 do Conselho, de 17 de
dezembro de 1998 (que altera, no que respeita à retirada da autorização
de certos antibióticos, a Diretiva 70/524/CEE relativa aos aditivos na
alimentação para animais), onde reside a fundamentação da medida
decretada: / “(19) Considerando que o Comité Científico de Alimentação
Animal indica igualmente que a transferência do gene satA, que confere
resistência à virginiamicina, se verifica in vitro entre estirpes isogénicas
de Enterococcus faecium; que foram detetados E. faecium resistentes à
virginiamicina em 22 % dos alimentos provenientes de suínos e em 54
% dos alimentos provenientes de aves de capoeira; que, na população
humana, existem fatores genéticos que conferem resistência à virgi‑
niamicina, desconhecendo-se a sua prevalência; que duas estirpes de
E. faecium resistentes à virginiamicina e à pristinamicina, uma isolada
num explorador agrícola neerlandês e outra nas suas aves de capoeira,
apresentam a mesma marca genética; que, embora não seja possível
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 339
generalizar com base num só caso o que poderia ser um exemplo de
transferência de enterococos resistentes do animal para o ser humano,
tal caso constitui, no entanto, uma indicação para a Comissão, que
poderia ser futuramente confirmada por novos casos”].
Este nível de “risco-zero” – ou seja, um risco não excluível em
abstrato à luz da melhor informação científica disponível – sancionado
pelo Tribunal do Luxemburgo repetiu-se em casos subsequentes, gerando
acusações, da parte da indústria, de que a União Europeia estaria a pro‑
mover uma absolutização do valor “segurança na saúde” perante direitos
como a iniciativa económica e a investigação farmacológica. Veja-se, por
exemplo, o Acórdão Solvay (2003), no qual estava em causa uma diretiva
que proíbe a presença de um aditivo para alimentação animal (nifursol)
no mercado: aí o TG afirmou expressamente que a União Europeia pode
adotar uma política de tolerância zero relativamente a certos fatores de
risco que não se consegue demonstrar serem minimizáveis, em nome da
proteção da saúde pública [Acórdão do TG de 21 de outubro de 2003,
Solvay c. Conselho, proc. T-392/02, n.º 150 (o Tribunal reforça que “é
possível considerar por analogia que, se o conceito de ‘tolerância zero’
pode conduzir, aplicando o princípio da precaução, à proibição total
de um aditivo, mesmo em caso de incerteza sobre a extensão do risco
potencial considerado, é, no entanto, necessário, que tal risco potencial
seja baseado em dados científicos”)]. Ou o Acórdão Alpharma (2002),
no qual se reconheceu que, apesar de o conhecimento sobre os efeitos do
antibiótico bacitracina-zinco (usado em medicina humana e em alimen‑
tação animal) serem altamente lacunares, “as instituições comunitárias
devem todavia ter em conta a sua obrigação, por força do [à data] artigo
129.°, n.º 1, primeiro parágrafo, do Tratado, de assegurar um elevado
nível de proteção da saúde humana que, para ser compatível com esta
disposição, não deve de modo necessário ser tecnicamente o mais ele‑
vado possível” [Acórdão do TG de 11 de setembro de 2002, Alpharma
c. Conselho, proc. T-70/99, n.º 165 (continuando, no ponto seguinte,
com a consideração de que “A determinação do nível de risco consi‑
derado inaceitável depende da apreciação feita pela autoridade pública
competente sobre as circunstâncias específicas de cada caso concreto.
Na matéria, esta autoridade pode ter em conta, nomeadamente, a gravi‑
dade do impacte de superveniência deste risco sobre a saúde humana,
incluindo a extensão dos efeitos adversos possíveis, a sua persistência,
a reversibilidade ou os efeitos retardados possíveis destes danos, bem
340 CARLA AMADO GOMES
como a perceção mais ou menos concreta do risco com base no estado
dos conhecimentos científicos disponíveis”)].
A aplicação da precaução no domínio da proteção da saúde, onde
se tem afirmado particularmente atuante, nunca foi contestada – ainda
que esse domínio se distinga da política de ambiente (cf., para a saúde,
o artigo 168.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia).
Decisões como as descritas repetiram-se ao longo dos últimos anos, sendo
curioso que numa das últimas – Acino AG (2014) –, na qual estava em
causa a suspensão de introdução no mercado de medicamentos com o
princípio ativo clopidrogel, o Tribunal de Justiça valeu-se do princípio
da prevenção para justificar a validade da medida: “Sendo embora certo
que o Tribunal de Justiça já declarou […] que a avaliação do risco não
se pode basear em considerações puramente hipotéticas, porém, tam‑
bém acrescentou que, quando se tornar impossível a determinação com
certeza da existência ou do alcance do risco alegado devido à natureza
insuficiente, não conclusiva ou imprecisa dos resultados dos estudos
levados a cabo, mas persista a probabilidade de um prejuízo real para
a saúde pública na hipótese de o risco se realizar, o princípio da pre‑
venção justifica a adoção de medidas restritivas” [Acórdão do TJUE de
10 de abril de 2014, Acino AG c. Comissão, proc. C-269/13 P, n.º 58
(refira-se que o Tribunal invocou jurisprudência de 2003 para sustentar
a afirmação reproduzida no texto, nomeadamente o n.º 52 do Acórdão
de 23 de setembro de 2003, Comissão c. Dinamarca, proc. C-192/01)].
Os Tribunais da União Europeia dedicam especial atenção à análise
da fundamentação apresentada pelas instituições para impor uma deter‑
minada proibição em nome da proteção da saúde pública, vincando a
necessidade de a margem de incerteza assumida assentar numa base sufi‑
cientemente sólida do ponto de vista científico – mesmo que controversa
e ainda que apontando para um risco meramente abstrato. A diferença
entre um risco hipotético, eventual, que descartam como fundamento de
medidas de precaução e um risco ainda não concretizado mas possível,
é extremamente ténue e justifica porventura a acusação de opção por
um nível de risco-zero. O facto de estar em jogo um valor como a vida
humana tem sido preponderante para a validação das medidas proibitivas;
mas identicamente relevante é o respeito dos tribunais da União pela
“margem de decisão” dos órgãos executivos e pelas suas escolhas de
um alto nível de segurança ainda que perante riscos não absolutamente
comprovados – escolhas intrinsecamente políticas.
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 341
A plausibilidade da escolha em face dos elementos levados à funda‑
mentação não deixou de valer, no entanto, para sustentar uma decisão
inversa, no caso Artegodan (2001). Aqui a autora levou a melhor na
contestação da revogação de uma autorização de introdução no mercado
de uma substância destinada a promover o emagrecimento, a amfepra‑
mona, pois o Tribunal considerou que a Comissão deveria ter invocado e
provado a superveniência de riscos novos e tal prova não foi produzida
[Despacho do Presidente do TG de 28 de junho de 2000, Artegodan
GmbH c. Comissão, proc. T 74/00 R – confirmado em recurso pelo
TJUE por Despacho de 24 de julho de 2003, proc. C-391-03 P –, n.º 53
(“No caso vertente, a Comissão provou, é certo, existirem incertezas
quanto aos riscos associados aos medicamentos contendo anfepramona,
apesar de tais riscos serem ligeiros. Contudo, sendo que a decisão de 9
de dezembro de 1996 e a decisão impugnada se fundam em elementos
de facto perfeitamente idênticos, divergem fundamentalmente as medidas
adotadas pela Comissão em 1996 e em 2000 para a proteção da saúde
pública relativamente a tais riscos. Nestas circunstâncias, a Comissão
estava obrigada a demonstrar que as medidas de proteção contidas na
decisão de 9 de dezembro de 1996 se revelaram insuficientes para a
proteção da saúde pública, de tal forma que as medidas de proteção que
adotou pela decisão impugnada não eram manifestamente desproporcio‑
nadas. Contudo, a Comissão não conseguiu fazer tal prova”). Refira-se
que a Artegodan veio posteriormente intentar uma ação de efetivação
de responsabilidade civil extracontratual contra a União Europeia, por
danos patrimoniais significativos decorrentes da medida entretanto
anulada. Por acórdão de 3 de março de 2010, Artegodan c. Comissão,
proc. T-429/05, o TG descartou a responsabilidade da União porque,
apesar de ter havido ilicitude e violação do direito de propriedade da
autora, a complexidade de análise a que a Comissão estava obrigada
em sede de avaliação de risco concorreu para que a violação não fosse
suficientemente caracterizada de modo a gerar um dever de indemnizar].
A justiça da União parece, todavia, adotar um duplo critério na aferição
da observância do “princípio da precaução” quando se trata de invalidar
medidas eurocomunitárias pretensamente violadoras do mesmo (além
dos casos a seguir descritos no texto, vejam-se os acórdãos do TJUE:
de 21 de janeiro de 2003, Comissão c. Alemanha, proc. C-512/99; de
23 de setembro de 2003, Comissão c. Dinamarca, proc. C-192/01; de
2 de dezembro de 2004, Comissão c. Holanda, proc. C-41/02). Veja-se
o caso Açores (2004) (Despacho do Presidente do TG de 7 de julho de
342 CARLA AMADO GOMES
2004, Açores c. Conselho, proc. T-37/04 R), no qual a Região Autónoma
caracterizou a invalidade de um regulamento da União Europeia sobre
pesca, cujos efeitos para os mares do arquipélago seriam desastrosos
do ponto de vista ambiental, pondo em causa a regenerabilidade dos
estoques. O Tribunal, confrontado com a alegação de violação da pre‑
caução, obtemperou que a análise do relatório que precedeu a adoção
do diploma não permite detetar risco para os ecossistemas – apesar de,
na verdade, no relatório se afirmar que não é de todo impossível excluir
a existência de tal risco...
Um caso mais recente que confirma esta análise envolve a diretiva
OGM e a tentativa do Estado francês de travar a introdução de orga‑
nismos geneticamente modificados no mercado. Nesta decisão, de 2011
(Acórdão do TJUE de 8 de setembro de 2011, Monsanto e o. c. Ministre
de l’Agriculture et de la Pêche, procs. C-58/10 a 68/10), o Tribunal de
Justiça deu razão à Monsanto e outras empresas fabricantes de OGM,
considerando a medida legislativa francesa inválida à luz do Direito
da União Europeia por decretar a proibição ou suspensão de OGM no
mercado francês sem que estivesse provado um risco que manifesta‑
mente pusesse em perigo a saúde humana ou o ambiente. A França,
de resto, perdeu outros dois casos em que sustentava derrogações ao
Direito da União Europeia com base no princípio da precaução: um,
relativo à importação de adjuvantes tecnológicos (que subordinava,
em legislação interna, a autorização prévia por alegadas razões de
precaução) (Acórdão do TJUE de 28 de janeiro de 2010, Comissão c.
França, proc. C-333/08); outro, no qual questionava a validade de um
regulamento da União Europeia que flexibilizou o regime de erradicação
das encefalopatias à luz do critério de precaução (Acórdão do TJUE de
11 de julho de 2013, França c. Comissão, proc. C-601/11 P).
Este double standard não ajuda à credibilização de um princípio que,
na esmagadora maioria dos casos, assenta em bases normativas frágeis,
na medida em que o legislador da União não define com rigor o nível
de risco aceitável ou intolerável de determinado produto ou atividade,
nem o conteúdo da prova a produzir pelo operador para justificar a sua
conformidade aos padrões de segurança (à mesma conclusão chegam
Garnett & Parsons, 2016, ponto 5). Outro fator inquietante é a sua
expansão a domínios como as liberdades cívicas, como o atestam os
acórdãos do Tribunal de Justiça Gaydarov (2011) (Acórdão do TJUE
de 17 de novembro de 2011, Hristo Gaydarov c. Diretor da Polícia,
proc. C-430/10) e Geoffrey Leger (2015) (Acórdão do TJUE de 29 de
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 343
abril de 2015, Geoffrey Leger c. Ministre des Affaires Sociales, proc.
C-528/13). No primeiro, o tribunal admite que o princípio da precaução
pode aplicar-se no âmbito de uma legislação nacional que proíbe um
traficante de droga condenado por esse crime num outro Estado-membro
de sair do território húngaro para evitar que reincida (o TJUE deixa ao
juiz nacional a concretização desta proibição que, frisa, não pode ser
automática e deve estar assente numa ameaça real de perigosidade do
indivíduo). No segundo, a precaução é invocada para afastar a possi‑
bilidade de indivíduos que mantiveram relações homossexuais serem
doadores de sangue, em virtude do alto risco de contágio de doenças
infeciosas graves “quando se demonstre que, com base em conheci‑
mentos e em dados médicos, científicos e epidemiológicos atuais, tal
comportamento sexual coloca essas pessoas em grande risco de contrair
doenças infeciosas graves que podem ser transmitidas pelo sangue e
que, no respeito do princípio da proporcionalidade, não existem técnicas
eficazes de deteção dessas doenças infeciosas ou, na falta dessas técnicas,
métodos menos restritivos do que tal contraindicação, para assegurar
um elevado nível de proteção da saúde dos recetores”.
Os casos descritos não são, na sua grande maioria, situações de
aplicação da precaução no domínio da proteção do ambiente – se des‑
contarmos os casos Açores e Monsanto, todos eles se movimentam no
âmbito da proteção da saúde pública. No domínio ambiental, a precaução
surge invariavelmente no quadro da tutela dos valores de biodiversi‑
dade da rede Natura 2000 – por força da norma da diretiva habitats que
identificámos no ponto anterior e que constitui o único momento em
que o legislador da União fixou um critério de decisão claro a favor
da Natureza sempre que algum risco, ainda que hipotético, decorra de
um projeto que se pretenda desenvolver naqueles espaços. Com efeito,
e em jurisprudência constante (vejam-se, entre outros, os acórdãos do
TJUE: de 7 de setembro de 2004, Landelijke Vereniging tot Behoud van
de Waddenzee e o. c. Staatssecretaris van Landbouw, Natuurbeheer en
Visserij, proc. C-127/02; de 20 de outubro de 2005, Comissão contra
Reino Unido e o., proc. C-04; de 26 de maio de 2011, Comissão c.
Bélgica, proc. C-538/09; de 11 de abril de 2013, Peter Sweetman e o.
c. An Bord Pleanála, proc. C-258/11; de 14 de janeiro de 2015, Grune
Liga Sachsen e o. c. Freistaat Sachsen, proc. C-399/14; de 21 de julho
de 2016, Hilde Orleans and Others v Vlaams Gewest, proc. C-387/15
e 388/15), o TJUE tem sistemática e contundentemente afirmado que
a autorização de planos ou projetos que possam trazer efeitos prejudi‑
344 CARLA AMADO GOMES
ciais para as zonas protegidas só pode ser concedida na condição de
as autoridades competentes “terem a certeza de que é desprovido de
efeitos prejudiciais para a integridade do sítio em questão. Assim acon‑
tece quando não subsiste nenhuma dúvida razoável, do ponto de vista
científico, quanto à inexistência de tais efeitos” (Acórdão do TJUE de
7 de setembro de 2004, Landelijke Vereniging..., n.os 56-7).
Esta postura é tão firme que o Tribunal chegou a considerar que
houvera violação do sistema de proteção da rede Natura 2000 mesmo
que não se tivessem verificado prejuízos após a implantação do projeto.
Nas suas palavras: “A circunstância de, após a sua realização, o projeto
não ter produzido tais efeitos é irrelevante para esta apreciação. Com
efeito, é no momento em que é tomada a decisão que autoriza a execução
do projeto que não deve subsistir nenhuma dúvida razoável, do ponto
de vista científico, quanto à inexistência de efeitos prejudiciais para a
integridade do sítio em causa” [Acórdão do TJUE de 26 de outubro de
2006, Comissão c. Portugal, proc. C-239-04 (mais conhecido por caso
Castro Verde)].
O Tribunal confirma, assim, “que o critério da autorização previsto
no artigo 6.°, n.° 3, segundo período, da diretiva habitats integra o
princípio da precaução […] e permite prevenir de forma eficaz os atos
contra a integridade dos sítios protegidos devidos aos planos ou projetos
considerados. Um critério de autorização menos estrito do que o que
está em causa não pode garantir de forma igualmente eficaz a realização
do objetivo de proteção dos sítios da referida disposição” (Acórdão
do TJUE de 7 de setembro de 2004, Landelijke Vereniging..., n.º 58).
Não pode, todavia, deixar de observar-se que o rigor deste critério
tem um “preço”. A razão porque a norma da diretiva habitats exclui a
possibilidade de implantação de um qualquer projeto em espaço quali‑
ficado como rede Natura 2000 desde que não haja certeza absoluta de
que ele é totalmente inócuo para os valores de biodiversidade prende-se
com o facto de esta impossibilidade poder ser ultrapassada com base
na alegação de superiores interesses socioeconómicos subjacentes ao
projeto, tendo-se demonstrado a inexistência de alternativas tecnicamente
viáveis e oferecendo-se medidas compensatórias suficientes. Ou seja, o
critério de inação prima facie, por prioritarização do interesse ambiental/
ecológico pode ser afastado por uma metodologia de ponderação de
interesses na qual a precaução é, afinal, sacrificada.
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 345
4.2. Portuguesa
A jurisprudência portuguesa sobre o princípio da precaução é escassa,
o que não admira, tendo em consideração, por um lado, o caráter errá‑
tico do legislador português na sua formulação e, por outro lado, o
facto de o Supremo Tribunal Administrativo, em 2009, a propósito da
coincineração de resíduos perigosos na cimenteira de Souselas, ter sido
inequívoco na desconsideração do princípio (pelo menos no plano da
inversão do ónus da prova):
“O princípio da precaução não foi adotado como critério de
decisão da prova, não podendo com base na mera falta de certeza
da não produção de danos ambientais ou para a saúde pública
o julgador concluir pela existência de receio de produção de
danos ambientais e para a saúde pública, de difícil reparação ou
irreversíveis, quando não se demonstra positivamente, mesmo de
forma sumária, a existência de uma probabilidade séria de eles
virem a ocorrer.
Trata-se de uma opção legislativa discutível, em termos de política
legislativa, mas que se justificará pela ponderação da necessidade
de prossecução de outros interesses públicos, que se entendeu não
dever ser obstaculizada por meros receios de danos eventuais ou
hipotéticos, que não se demonstra com grau de probabilidade
séria que possam vir a ocorrer”.
Na verdade, em 2009, o princípio já entrara no ordenamento português,
como vimos supra. Porém, não constava – como não consta atualmente
– da Constituição, nem da Lei de Bases do Ambiente de 1987 (hoje
revogada). Mas mesmo quando reconhecem a sua presença, os tribunais
resistem em retirar dele consequências, tanto materiais quanto adjetivas,
em razão da ambiguidade que o envolve. [Cf. o Acórdão do Tribunal
Central Administrativo Sul, de 7 de março de 2003, proc. 04613/08, que
julgou um recurso de uma sentença que indeferiu o pedido de anulação
deduzido contra uma decisão de colocação de linhas de muito alta ten‑
são (LMAT) numa determinada localidade no qual se invocava o alto
risco para a saúde pública decorrente da proximidade dessas linhas.
O autor pretendia, com base na precaução, que a EDP demonstrasse a
inocuidade das linhas, mas o Tribunal considerou que nada no nosso
ordenamento jurídico permite concluir que existe uma regra de inversão
346 CARLA AMADO GOMES
do ónus da prova a cargo do operador: “‘O princípio da precaução vem
dizer que devem ser os potenciais agressores a demonstrar que uma
ação não apresenta riscos sérios ou graves para o ambiente, uma vez
que são eles que pretendem alterar o status quo ambiental […]’, sendo
que a doutrina realça que se coloca ‘[…] a questão de saber, primus, se
constitui uma regra aplicável sempre que exista um risco ambiental ou
se depende da sua gravidade e irreversibilidade; secundus, se é neces‑
sário demonstrar a inocuidade da relação ao ambiente ou basta a mera
plausibilidade de não ocorrência de efeitos ambientais adversos. […]’.
Todavia, esta transposição do quadro procedimental para o contencioso
jurisdicional da técnica da inversão do ónus de prova não é admissível
salvo previsão normativa expressa nos termos do disposto no art. 344.º,
n.º, 1 do Código Civil que, na circunstância, não existe”]
Nesta data, o aresto que mais profundamente discutiu as consequên‑
cias do “princípio da precaução” – que reduziu a uma metodologia de
ponderação de riscos/interesses, mesmo antes da superveniência da alínea
c) do artigo 3.º da Lei de Bases do Ambiente de 2014, supra citado –
foi o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho de
2012 (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 de junho
de 2012, proc. 244/2002.G1). Tratou-se de um caso envolvendo linhas de
muito alta tensão e alegações de risco para a saúde humana. O Tribunal,
depois de proceder a uma análise extensa das informações contidas nos
vários relatórios juntos aos autos, concluiu que os melhores estudos
disponíveis (in casu, da Organização Mundial de Saúde) não regista‑
vam índice de risco significativo caso se respeitassem as distâncias de
segurança, negando assim provimento à pretensão do autor de remoção
de tais linhas. Ouça-se o Tribunal em discurso direto:
“Pode-se sempre invocar que existe um risco potencial, ainda que
mínimo, decorrente da presença de linhas de alta ou muito alta
tensão nas proximidades da habitação onde os autores residem
de modo permanente.
Todavia, a imposição de um risco zero em
qualquer atividade humana é incompatível com a operatividade
do princípio da precaução, não sendo possível satisfazer uma
reivindicação social de segurança absoluta do ser humano.
Na verdade, as medidas baseadas no princípio da precaução não
implicam, nem pressupõem, a erradicação de todo e qualquer risco,
desde logo e também, como se sublinha na sentença recorrida,
porque a ciência, em determinado estado evolutivo, poderá mesmo
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 347
conduzir a que se julgue completamente afastada a ocorrência de
um risco que vem, porém, mais tarde, a verificar-se.
Ademais, no domínio dos campos eletromagnéticos foram adotados
determinados limites legais à sua emissão, os quais no caso concreto
não foram ultrapassados, nem sequer minimamente aproximados.
Seria, por isso, totalmente desproporcionado determinar o afasta‑
mento dos condutores da linha de alta tensão explorada pela ré,
quando o grau de risco suportado pelos autores em consequência
da presença daquela linha de alta tensão nas proximidades da sua
residência se situa num patamar muito inferior ao limite máximo
legalmente estipulado.”
Podemos concluir que, além de escassa, a jurisprudência portuguesa
(pelo menos ao nível dos tribunais superiores) não julgou até hoje
nenhum caso em que desse acolhimento ao princípio da precaução,
nem como critério de decisão, nem como critério de inversão do ónus
da prova a favor de quem alega a existência de um risco associado a
determinado produto, coisa ou atividade. De resto, nesta última dimen‑
são, tanto a prevenção como a precaução fazem inverter o ónus da
prova – nos termos da LBA –, mesmo que tenha ficado por explicitar
qual o grau de índice probatório a cumprir pelo operador/empresário a
fim de demonstrar que a sua atividade ou produto não comporta riscos
intoleráveis à saúde ou ao ambiente.
5. A retórica da precaução: uma metodologia de fundamentação
da decisão tomada em contexto de incerteza
A breve análise que se empreendeu ilumina, por um lado, a principal
fragilidade da ideia de precaução e, por outro lado, a sua principal virtude.
Referimo-nos, no que toca à fragilidade, às imprecisões na formulação
do princípio que potenciam utilizações arbitrárias e imprevisíveis. No
que tange ao seu lado virtuoso, a precaução chamou a atenção para a
emergência do risco tecnológico e da necessidade de o avaliar e gerir
dinamicamente no contexto de decisões tomadas em contexto de incerteza.
A incerteza quanto a um significado (pelo menos universal) de pre‑
caução leva a que a atenção se desvie do sentido material da fórmula
para um sentido funcional ou procedimental. Por outras palavras, não
havendo sinais inequívocos quanto à sua valia enquanto critério mate‑
348 CARLA AMADO GOMES
rial de decisão, fazendo primar determinados valores sobre outros na
presença de risco, a sua força parece antes residir no fortalecimento das
garantias da transparência do procedimento de decisão, nomeadamente
no que se refere à consistência da instrução (com exame dos vários
aspetos controversos em presença, nomeadamente no plano da avaliação
do risco), à fundamentação da decisão (que deve espelhar uma esco‑
lha plausível em face das várias teses em presença) e à adequação da
decisão (que deve traduzir uma ponderação proporcionada dos vários
interesses em presença).
O momento da fundamentação é particularmente sensível, a três níveis:
i) da legitimação da decisão do ponto de vista político, esclarecendo
sobre os valores em jogo e sobre o equilíbrio das escolhas relativamente
aos sacrifícios impostos; ii) da pedagogia de informação sobre os riscos
envolvidos em determinadas atividade ou produto, contribuindo para o
fortalecimento do “direito a saber” do público em geral (Amado Gomes,
2014, passim); iii) da admissibilidade de um controlo parcial por parte
dos tribunais, que não podem substituir o sentido último da decisão
mas devem controlar a racionalidade da escolha a partir da análise da
correção do iter procedimental.
Tornar claras as razões porque se aceitou condicionadamente, porque
se suspendeu ou porque se proibiu um determinado produto ou atividade
constitui simultaneamente um importante penhor de paz social no presente
e de testamento político ante os vindouros. A lógica de precaução – ou
de prevenção antecipativa de riscos, como preferimos – reveste uma
inerradável dimensão prospetiva que se traduz numa responsabilidade
(ética) por escolhas que podem hipotecar irreversivelmente as opções
das gerações futuras (sobre a problemática da responsabilidade perante
as gerações futuras, veja-se Amado Gomes, 2016, pp. 80-2 e doutrina aí
citada). Nas palavras de Thierry Balzacq, “a precaução não tem neces‑
sariamente as gerações futuras por alvo, mas utiliza sempre o futuro
como ponto focal […] Na verdade, a precaução é melhor compreendida
na sua relação com a temporalidade, como ferramenta que visa evitar
uma atuação que pode ter consequências extremas no futuro” (Balzacq,
2015, p. 557).
A precaução surge, assim, sobretudo como uma metodologia de
construção de um discurso legitimador de uma decisão tomada entre a
ignorância e a incerteza sobre determinados riscos, num preciso contexto
temporal presente que se projeta, também, num contexto temporal futuro
cuja salvaguarda de uma certa integridade contra a irreversibilidade
PRECAUÇÃO E PROTEÇÃO DO AMBIENTE:
DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 349
se pretende. O conhecimento científico, mesmo que desdobrado em
múltiplas teses, muitas vezes dissonantes, vai ser o fio de Ariadne de
coesão de tal discurso, embora o sentido último da decisão, pelo menos
perante incertezas radicais, seja intrinsecamente político.
O arco entre incerteza e condicionalidade vai então desenhar-se por
recurso a uma retórica técnico-científica. A precaução revela assim uma
curiosa e quase paradoxal relação com a Ciência, uma vez que, por um
lado, a entroniza como base de inteligibilidade de decisões complexas
mas, por outro lado, a receia, por indutora de incerteza. Esta relativização
da Ciência como reduto último e intocável da verdade acaba por ser a
justificação da emergência da precaução (Shelton, 1998, passim), pelo
menos na sua vertente de mandado de ação de um decisor político refém
da incerteza (extensamente sobre a relação entre decisão política sobre
o risco, técnica e democracia, Esteve Pardo, 2009, passim).
Precaver é, por isso, prevenir riscos, na medida do tecnicamente pos‑
sível, do cientificamente plausível e do democraticamente sustentável.
“No contexto tecnológico de avaliação do risco, o processo de ‘escolher
e preferir’ não se traduz em favorecer um interesse em detrimento de
outro mas antes em preferir uma determinada compreensão do risco a
outra(s), em preferir uma determinada compreensão do interesse público
a outra(s), em preferir uma determinada compreensão da lei a outra.
Assim, como um ‘perfeito espelho de uma comunidade’, a decisão
sobre o risco reflete toda a complexidade inerente ao processo político
de o gerir” (Fisher, 2007, p. 257). Presumivelmente, mas incertamente,
salvaguardando o bem-estar presente sem hipotecar irremediavelmente
o futuro.
Bibliografia referenciada
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350 CARLA AMADO GOMES
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DA INCERTEZA À CONDICIONALIDADE 351
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Cambridge: Cambridge University Press
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Links de acesso à jurisprudência citada
Tribunal Internacional de Justiça: http://www.icj-cij.org
Tribunal Internacional para o Direito do Mar: https://www.itlos.org
Tribunal de Justiça da União Europeia e Tribunal Geral: http://curia.europa.eu
Tribunais nacionais: www.dgsi.pt
A Sustentabilidade da Segurança Social
Nazaré da Costa Cabral*
“A técnica de influenciar os homens assustando-os
com o que ainda não existe é antiga.”
Gonçalo M. Tavares, A máquina de Joseph Walser
1. A relação entre a sustentabilidade da segurança social e a justiça
entre gerações
Vamos, no presente Capítulo, tratar do tema da sustentabilidade da
segurança social, reconhecendo que a sua inclusão numa obra cole‑
tiva que relaciona as questões da sustentabilidade com a justiça entre
gerações, nos obriga justamente a começar por aqui: verificar em que
medida a sustentabilidade da segurança social apresenta relações com
a justiça intergeracional e que tipo de relações são essas, o que exige
ainda, e desde logo, fixar os conceitos de “justiça intergeracional”, de
“justiça” e de “gerações”. Aceita-se antes de mais nada – como também
faz Loureiro, 2010, p. 279 – que a sustentabilidade da segurança social
não se confunde com a justiça intergeracional, tanto mais, como nos diz,
que “pode haver sistemas de segurança social que, de um ponto de vista
económico-financeiro sejam sustentáveis a médio prazo, mas nem por isso
sejam necessariamente justos em chave intergeracional”. Pode dizer-se,
com efeito, em primeira linha, que a sustentabilidade tem uma dimensão
que é essencialmente económica e financeira, e que ela é também um dos
“capítulos” da sustentabilidade das finanças do Estado (de Bem-Estar)
[vamos partir e assumir, por ora, o pressuposto de que a segurança social
é de natureza pública (pois ela assim é na generalidade dos Estados de
bem-estar, numa boa proporção), se bem que – como veremos adiante
*
Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Investi‑
gadora principal do Centro de Investigação de Direito Europeu, Económico, Financeiro
e Fiscal (CIDEEFF) da mesma Universidade (Grupo IV – “Crise, Políticas Públicas,
Política Orçamental e o Euro”). Autora de diversos livros e artigos, sobretudo nos
domínios das Finanças Públicas e da Segurança Social.
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 353
– problemas de sustentabilidade tanto podem existir em sistemas públi‑
cos como privados) [usaremos, ao longo do texto, preferencialmente a
expressão “Estado de bem-estar” (de Welfare State), em detrimento da
noção de “Estado social”, por nos parecer aquela mais adequada aos
propósitos deste Capítulo: inclui fundamentalmente os Estados europeus
que, no após II Guerra Mundial, desenvolveram sistemas compreensivos
e abrangentes de proteção social], podendo ainda e devendo mesmo, em
alguns casos, ser aferível à luz de uma noção mais restritiva e precisa,
a noção de sustentabilidade da dívida pública (como teremos, de resto,
oportunidade de clarificar).
Diversamente, o conceito de justiça intergeracional, que começa por
operar numa dimensão sobretudo filosófica, procura encontrar o “ponto de
equilíbrio” na transmissão do acervo de bens, de geração para geração – o
“legado” que a geração presente deixa à futura. Para ser justa, a transmis‑
são tem de ser equilibrada. Não obstante esta sua dimensão filosófica, a
ideia de justiça intergeracional tem diversas implicações noutros domínios,
em especial no da Economia. Aqui, a preocupação fundamental é a de
materializar aquela ideia, desde logo mediante a densificação da noção
de “legado”. Heller (2003, p. 130), por exemplo, fazendo a síntese de
correntes económicas anteriores, sugere duas hipóteses para enriquecer
a mesma noção. O legado seria assim o conjunto de: i) transferências
líquidas (impostos/contribuições pagos menos prestações recebidas)
obtidas por cada geração (hipótese que chamamos de versão minimalista)
ou; ii) de custos e benefícios totais (ou benefícios líquidos) (incluindo,
do lado dos benefícios, formação de capital fixo, educação, tecnologia,
progresso científico, etc.) que cada uma delas obteria em confronto com
as demais (versão maximalista). Para além desta, existe ainda uma outra
perspetiva (de raiz económica), e também ela permite observar o conceito
de “legado” a partir de duas possibilidades: i) concebê-lo como o stock
global de bens transmitidos ou; ii) como a parte que marginalmente cada
geração recebe quando comparada com o que a anterior havia recebido.
Seja como for, no campo da Economia, a noção de “legado” (de uma
geração à outra) é aferível em termos de utilidade e os utils têm facilmente
uma expressão monetária. Um exemplo dessa conversão, em diversos
setores, consiste na “análise custo-benefício”, afigurando-se-nos que a
Economia concretiza a noção de justiça intergeracional precisamente
através de uma análise custo-benefício de caráter intertemporal.
Se pensarmos agora no caso da segurança social (e em particular no
seu sistema de pensões), verificamos outrossim que, pese a sua relevância
354 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
para a vida das pessoas, nesta não se põem as “questões fundamentais”
da justiça intergeracional que se colocam por exemplo nos domínios
ambiental e da investigação genética, em que está em causa, no limite,
a sobrevivência da humanidade. Nestes outros casos, do que se trata é
de apreciar, em termos filosóficos, as decisões potencialmente “catas‑
tróficas”, e de aferir da sua legitimidade nos planos moral e jurídico
(sobre as correntes filosóficas nesta matéria, apreciando em concreto
as implicações morais das decisões que afetam gerações futuras, leia-se
Parfit, 1982). O ponto da justiça intergeracional, no domínio da segu‑
rança social, não tem esta mesma essencialidade e, por isso, o debate
acaba por residir aqui, sobretudo, no plano financeiro, ou seja, no plano
da sustentabilidade. Neste domínio, a justiça intergeracional encontra, ao
fim e ao cabo, a ideia de sustentabilidade e acaba por dissolver-se nela.
Resta-nos, por ora, o conceito de “geração”. Em regra, usando vários
critérios (classes etárias, períodos históricos, participação nos ciclos polí‑
tico-eleitorais), é possível definir coortes de população, reconduzindo-os
a gerações (sobre os vários conceitos de “geração presente” e “geração
futura”, veja-se entre nós, por todos, Ferreira, 1995, pp. 79-82, que
nos dá a sua própria definição: “por geração presente, a totalidade dos
indivíduos que, diretamente ou por intermédio dos seus representantes
participam numa decisão financeira, e por gerações futuras, todas as
restantes, quer integrem indivíduos já nascidos, mas que ainda não têm
idade para participar na decisão, quer aqueles que ainda não existem” –
Ferreira, 1995, p. 82). O conceito de geração tem interesse analítico,
por exemplo a propósito das decisões que envolvem opções de financia‑
mento progressivo e a longo prazo – como sucede na emissão de dívida
que sirva, por exemplo, para financiar grandes investimentos públicos.
Nesta opções, o que está em causa, já o dissemos, é confrontar as utili‑
dades (benefício obtido com o uso da infraestrutura) e as desutilidades
(encargo de dívida), durante o período de vida útil do ativo, e verificar
se o legado transmitido às gerações futuras envolvidas é positivo ou
negativo. A este respeito, desenvolveu-se na economia e nas finanças
públicas o princípio do pay-as-you-use que, como nos recorda Ferreira,
1995, p. 100, a partir do ensinamento de Musgrave (em 1989), obriga os
beneficiários (gerações) a financiar de forma equitativa as despesas cuja
utilidade se prolongue no tempo (procura-se com este princípio evitar,
implicitamente, o chamado efeito de “free-riding intergeracional” – sobre o
mesmo, veja-se Gosseries, 2015, pp. 124-8). Ora, como veremos adiante,
no caso da segurança social, os regimes de repartição desenvolvidos nos
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 355
sistemas de pensões de diversos países europeus, sobretudo no após II
Guerra Mundial – também chamados de regimes pay-as-you-go –, são
tributários, justamente, deste princípio. Acontece que, neles, a utilidade
não apenas se prolonga, como desde logo se forma ao longo do tempo.
Aqui, na verdade, desde que inicia a sua vida contributiva, uma geração
já não é apenas geração “futura” a quem é prometida a atribuição de
uma pensão em termos abstratos (por conseguinte, o gozo de uma dada
utilidade), mas é desde logo também uma geração “presente” que tem em
si a desutilidade associada ao esforço de financiamento de uma pensão
em formação, e é deste esforço que resultará, afinal, o valor concreto da
pensão a atribuir. Significa isto, assim, que no sistema de pensões em
pay-as-you-go, as gerações não são estanques entre si, antes acabando
por se diluir umas nas outras, pelo menos a partir de um certo momento
(o momento em que cada geração entra no sistema no papel de contri‑
buinte) [aliás, como nos dizem Schokkaret e Van Parijs (2003, p. 249),
esta é a principal razão do aparecimento de sistemas pay-as-you-go. Na
verdade – explicam –, a partir do momento em que se verifica a sobre‑
posição de coortes populacionais (em que os grupos etários mais novos
de um coorte posterior vivem em simultâneo com os grupos mais velhos
de um coorte anterior), deixa-se de se estar necessariamente confinado
a sistemas capitalizados. É possível então estabelecer arranjos do tipo
pay-as-you-go, i.e., arranjos em que os rendimentos dos mais velhos, em
vez de assegurados pelas suas próprias poupanças, sejam assegurados a
partir de transferências feitas pelos mais novos. Repare-se ainda – acres‑
centam –, que a estrutura de família tradicional é também ela do tipo
pay-as-you-go: os pais tomam conta dos filhos quando estes são ainda
muito novos para trabalhar e, através de uma reciprocidade diferida, os
filhos tomam conta dos seus pais quando estes forem demasiado velhos
para trabalhar].
De qualquer forma, importa fazer notar que também no sistema de
repartição a noção de “dívida” está muito presente, e isto independen‑
temente de qual seja o seu peso, sinal e comportabilidade. Trata-se, no
entanto, de uma dívida implícita, porque, ao contrário da dívida direta,
não há tecnicamente emissão e amortização e ela não é, como tal, con‑
tabilizada no balanço do emitente [isto resulta também do facto de a
dívida em questão ser de natureza condicional (depende da verificação
de um ou mais eventos), e é por isso geradora de responsabilidades
contingentes]. Além disso, pode afirmar-se que na dívida implícita o
processo de rollover é permanente, automático e intrínseco. Com efeito,
356 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
em sistema de repartição, o Estado (ou outra entidade responsável) paga
dívida anterior assumida perante gerações precedentes (os beneficiários
do sistema), contraindo dívida junto das gerações atuais (os contribuintes
do sistema), e faz isto assim, sucessivamente, na base de um preexistente
e também implícito contrato intergeracional.
2. A sustentabilidade do Estado de bem-estar e a densidade jurídica
dos direitos sociais
2.1. A sustentabilidade da Segurança Social no contexto da susten-
tabilidade do Estado de bem-estar: os “tempos relevantes” da
Segurança Social
Como mencionámos no ponto anterior, no campo da segurança social,
a justiça intergeracional encontra a ideia de sustentabilidade e acaba por
dissolver-se nela. Podemos agora generalizar e afirmar que, com a ideia
de sustentabilidade, do que se trata, afinal, é de aferir das possibilidades
financeiras do Estado (de Bem-Estar), ou seja, da capacidade deste para
saldar compromissos e/ou garantir direitos. E isso depende, como vere‑
mos, de diversos fatores, de um lado, da dimensão dos compromissos
assumidos e dos direitos garantidos, do outro lado, da capacidade de o
Estado se financiar por si ou por terceiros – o que, por seu turno, também
se fica a dever, e muito, à capacidade de gerar e transmitir riqueza. Se
se reparar, problemas idênticos podem ser colocados em variadíssimas
outras áreas com relevância financeira (mau grado diferenças importantes
que já iremos assinalar), em que também há promessas constitucionais
ou até contratos firmados. É o caso, por exemplo, da educação. Quem
nos garante que o Estado terá possibilidade para suportar as despesas
de educação das gerações futuras? Como dissemos antes, o problema da
sustentabilidade da segurança social é o problema da sustentabilidade
financeira do Estado e é, em última análise, o problema de existir Estado
[tal problema, com efeito, não se colocaria se o Estado inexistisse, ou
até se ele fosse um Estado ultramínimo do tipo “nozickiano” (veja-se, a
propósito, o próprio Nozick, 1974). Num Estado assim, não há políti‑
cas públicas de natureza social, (quase) não há despesa pública, e serão
despiciendas as necessidades de financiamento].
No entanto, apesar desta afinidade geral, a segurança social coloca
desafios particulares, que nos remetem, desde logo, para a questão da
densidade dos direitos subjetivos que a ela eventualmente surjam asso‑
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 357
ciados. Independentemente da questão de saber se as gerações futuras
são titulares de direitos (direitos às prestações sociais), questão de difícil
resposta e controvertida [sobre a (dúbia) identidade jurídica e (difícil)
atribuição de direitos (subjetivos) aos membros destas mesmas gerações,
veja-se Parfit, 1982, e Herstein, 2009. Gosseries, por sua vez, questiona
a possibilidade de se falar em “dano sem identidade” (Gosseries, 2015,
p. 54)], a segurança social – no que diz respeito às pensões ou prestações
diferidas – já há muito que intentou superar esse dilema, confinando o
campo dos direitos por um lado à(s) geração(ões) presente(s), aquelas que
já beneficiam da atribuição de uma pensão ou estão em condições de o
fazer, por outro lado à(s) geração(ões) futura(s), desde que hajam iniciado
já a sua vida contributiva e que, portanto, já apresentem um elemento
de ligação com o sistema, enquanto contribuintes (a referida diluição da
geração futura na presente acontece aqui). Para as primeiras, o direito
formula-se em relação a uma “pensão em atribuição” ou em pagamento
(por isso, é um “direito adquirido”), para as segundas, o direito formula‑
-se em relação a uma “pensão em formação” (e é portanto um “direito
em formação”) [veja-se, entre nós, o artigo 100.º da Lei n.º 4/2007, de
16 de janeiro (Lei de Bases da Segurança Social – LBSS)]. Gerações
vindouras, tardias, sem ligação ao sistema enquanto contribuintes, não
têm ainda, verdadeiramente, um direito à pensão.
Não se pense contudo que é ao plano estrito do reconhecimento de
direitos que deve cingir-se a atenção do decisor (político). Para efeitos
de formulação de política (e de responsabilização política), o espectro
temporal pode e deve ser alargado, ainda que com limites temporais
justificados pela utilidade, pela razoabilidade e pelas possibilidades
técnicas existentes (sobre a relevância dos direitos das gerações futuras
no exercício da política, leia-se entre nós Silva, 2010, e Campos, 2015.
Para o primeiro Autor, é possível e desejável, no plano do desenho da
política, extrair um sentido útil dos “direitos das gerações futuras”,
recorrendo nomeadamente a princípios materiais e adjetivos de justiça,
tais como os princípios da equivalência, do saldo da poupança positiva,
do mínimo dano irreversível, da indisponibilidade do futuro dos outros e
da imparcialidade intergeracional – cf. Silva, 2010, p. 500). A figura 1
procura justamente capturar os “tempos” relevantes da Segurança Social.
Olhando para a figura, reparamos então que as gerações abrangidas,
do ponto de vista da consumação dos direitos, são as gerações associadas
a pensões em atribuição ou em formação; o ponto determinante é, como
dissemos, o momento em que passam a relacionar-se com o sistema
358 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Figura 1 – Os “tempos relevantes” da Segurança Social
enquanto contribuintes e veem de imediato uma pensão a formar-se em
seu favor. Repare-se que este “tempo” de consumação de direitos, embora
seja intrinsecamente de curto/médio prazo, tende a estender-se ao longo
prazo. Na verdade, em relação a cada geração, a ligação ao sistema de
segurança social é de décadas: décadas para a formação de um direito
à pensão integral e décadas em que se pode beneficiar da atribuição de
uma pensão.
É também ao longo prazo, por maioria de razão, que respeita o
“tempo” da definição da política de segurança social. De resto, ele
deve incorporar não apenas as gerações que, de uma forma ou outra,
já estejam no sistema, mas também as gerações futuras que possam,
proximamente, vir a ligar-se a ele, desde logo no papel de contribuintes.
Se isto é certo, não é menos que o longo prazo conhece aqui algumas
balizas: em princípio, ele deve ir até onde seja possível, por exemplo,
garantir alguma fiabilidade das projeções em que se apoia a decisão
(nunca muito superior a meio século) [não é por acaso que as projeções
de longo prazo envolvendo as principais variáveis que condicionam as
políticas públicas no domínio das pensões, a saber, variáveis demográficas
(natalidade, mortalidade, esperança média de vida), macroeconómicas
(taxa de crescimento do PIB, inflação, emprego, desemprego, salários)
e orçamentais (receitas fiscais e despesa com prestações), cobrem
geralmente o período de cinquenta anos. Veja-se, a este propósito, os
relatórios produzidos, no seio da Comissão Europeia, pelo seu Ageing
Working Group (AWG), o último dos quais este: European Commission,
2015]. Ou seja, o tempo da decisão política estende-se até onde seja
possível antecipar fiavelmente ou conhecer os impactos dessas políti‑
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 359
cas, pois é esse conhecimento que permite afinal a responsabilização
política (maxime perante as próprias gerações futuras).
Para lá deste “tempo”, entramos no longuíssimo prazo (de natureza
secular) e este é fundamentalmente o tempo da investigação: aqui, quais‑
quer hipóteses/cenários podem e devem ser concebidos, e avaliados os
impactos das decisões políticas sobre gerações futuras. No entanto, para lá
desse papel científico prospetivo, não deve haver outro significativo. Na
verdade, consideramos que os resultados de uma investigação deste teor
não podem pretender originar ou condicionar decisões vinculantes para
futuro (definitivas?), a pretexto do seu alegado impacto intergeracional:
mesmo que juridicamente possíveis, decisões (na segurança social) visando,
a longuíssimo prazo, proteger os direitos das gerações vindouras seriam
tão simplesmente decisões inúteis ou irrazoáveis, pois os pressupostos
fáticos, financeiros e jurídicos subjacentes são aqui sempre mutáveis e
tornam, de resto, muito falíveis as projeções de base.
2.2. Graus de densidade dos direitos sociais; a “densidade acrescida”
no tocante às prestações da segurança social (em pagamento)
Mas voltemos agora ao “tempo” da consumação dos direitos. Existe
de facto, como vimos, um período de tempo relevante, em relação a
toda e qualquer geração visada, em que o direito objetivo à segurança
social (contemplado desde logo no n.º 1 do artigo 63.º da Constitui‑
ção da República Portuguesa) se materializa num direito subjetivo à
segurança social, podendo ser judicialmente acionado. A LBSS é a
primeira a assegurar que assim seja: a (não) atribuição de prestações
do sistema da Segurança Social (com exceção das que se insiram na
área da Ação Social) pode ser sindicada pela via graciosa ou em juízo
(cf. artigos 76.º e 77.º) [tradicionalmente, um dos critérios distintivos
entre a “segurança social” e a “ação social” está justamente aqui: a
primeira é o campo dos direitos subjetivos; a segunda, o campo das
(simples) expectativas jurídicas].
Consideramos mesmo que, no caso das prestações de natureza contri‑
butiva (de entre elas, as pensões em pagamento ou em curso de atribuição
do regime geral) [repare-se que também existem pensões de natureza não
contributiva (ou seja, não financiadas diretamente pelos beneficiários
– através de contribuições sociais –, antes através do Orçamento do
Estado, ou seja, através dos impostos gerais), às quais se denomina de
pensões sociais. Outras prestações de natureza não contributiva são: o
360 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Rendimento Social de Inserção; os complementos sociais (que permitem
atribuir a pensão mínima no regime geral a quem não tem carreira contri‑
butiva suficiente); os abonos de família; prestações na área da deficiência
e dependência; etc.], estamos perante direitos subjetivos dotados de uma
densidade acrescida – nomeadamente quando os comparamos quer com
as prestações de segurança social de caráter não contributivo, quer com
outros benefícios ou direitos sociais (na saúde, na educação, na habitação,
etc.) –, e essa especial densidade advém-lhes dos seguintes elementos:
––Em primeiro lugar, do facto de o seu financiamento se fundar num
princípio de contributividade (ou seja, na existência de um pressu-
posto sinalagma entre o que é pago pelo contribuinte/beneficiário
e aquilo que é percebido em troca) (cf. artigo 54.º da LBSS. Em
nossa opinião, como dissemos em Cabral, 2010, este sinalagma já
não é hoje perfeito e tende aliás a quebrar-se), princípio que por sua
vez entronca na existência de um contrato bilateral tácito (entre o
beneficiário e a segurança social) onde se pode associar ao direito o
cumprimento prévio de uma obrigação – o cumprimento desta e de
outros requisitos legais implicam, por conseguinte, que o direito à
prestação se torne exigível [num outro plano, no âmbito do direito
laboral, sucede algo similar no processamento de salários e de
outras prestações remuneratórias: o cumprimento de uma obrigação
de facere (por parte do trabalhador), ao longo de um determinado
período de tempo, implica, no fim, o vencimento daquelas mesmas
prestações];
––Em segundo lugar, do facto de, no nosso sistema de segurança social,
as prestações serem financiadas segundo o modelo de repartição
(todas elas, incluindo as prestações imediatas), o que significa que
o sistema assenta numa lógica de financiamento por terceiros e não
pelos próprios – são os contribuintes no ativo que, em cada momento,
financiam as prestações daqueles que por qualquer razão (velhice ou
invalidez, mas também desemprego, doença ou maternidade) estejam
numa situação de inatividade – ora, esse financiamento por terceiros
assenta no compromisso, implicitamente assumido pela segurança
social (de novo um contrato implícito), de que existirão meios de
financiamento similares se e quando os primeiros se encontrarem
nas mesmas circunstâncias;
––Em terceiro lugar, se pensarmos agora no caso particular das pensões
(quando autonomizadas em relação às restantes prestações sociais)
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 361
[como dissemos em outro momento (Cabral, 2014a, p. 278), “o
problema da sustentabilidade de longo prazo dada segurança social
prende-se fundamentalmente com a gestão das prestações diferidas
(maxime as pensões de velhice). ‘O’ problema da segurança social é
então sobretudo um problema do sistema de pensões”. Ainda reto‑
maremos esta questão] [na verdade, aquilo que fundamentalmente
distingue as prestações imediatas (v.g., seguros de doença, desem‑
prego, parentalidade), das pensões (v.g., de velhice e de invalidez)
é o tempo de formação: enquanto as primeiras se formam num
período curto de tempo, aferível em meses, as segundas formam-se
num período longo, aferível em anos. Isto significa que o cálculo
das prestações opera diferentemente. Nas primeiras, determina-se o
valor da remuneração de referência – RR (uma média dos salários
registados ao longo de alguns meses), aplicando-se-lhe de seguida
a dada taxa de substituição (variável entre nós em função do tipo de
prestação); o valor da prestação fica assim apurado. Nas segundas,
determina-se o valor da RR (uma média dos salários registados ao
longo de anos de carreira contributiva) multiplicado pela taxa anual de
formação (variável em função dos anos de carreira e/ou da dimensão
da própria RR) – e é deste produto que resulta a taxa de substituição
(que no mínimo, no regime geral, é de 80%) e assim se procede à
determinação do valor da pensão (estatutária). Atualmente, haverá
ainda a considerar, no cálculo da pensão, a aplicação subsequente
de um fator de sustentabilidade que é função da idade de acesso à
pensão em cada ano estabelecida (idade que por sua vez depende da
evolução da esperança média de vida)], verifica-se que em relação
a estas o sistema de repartição implica, como dissemos antes, uma
verdadeira dívida implícita em constante rollover de geração para
geração – e isto pressupõe um verdadeiro contrato intergeracional,
também ele implícito;
––Finalmente, ainda no tocante às pensões, o facto de o nosso sistema
assentar num modelo de benefício definido (modelo adiante retomado)
determina não apenas que o sistema se compromete a assegurar uma
pensão em termos abstratos, mas também que o próprio montante
da prestação (na base das regras de cálculo juridicamente definidas
e de uma determinada carreira contributiva) pode ser, desde logo,
antecipadamente conhecido pelos beneficiários – neste sentido, a
362 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
segurança social assume um compromisso de pensão no tocante ao
an e ao quantum.
O quadro 1 ilustra os dois graus (crescentes) de densidade jurídica em
relação aos diferentes direitos sociais (porventura de uma forma demasiado
simplista porque ultrapassa a questão da jusfundamentalidade dos direi‑
tos sociais em geral) [acerca da jusfundamentalidade plena dos direitos
sociais (em geral) e dos argumentos jurídicos nesse sentido, leia-se por
todos Novais, 2010], e nele se destaca ainda o locus das prestações de
segurança social de natureza contributiva e, em especial, o das pensões
que estejam em curso de atribuição (o “grau máximo de densidade”).
Quadro 1 – Os dois graus de densidade jurídica nos direitos sociais
Primeiro grau de densidade jurídica Segundo grau de densidade jurídica
do direito do direito
Direitos sem contrapartida monetária ou de Direitos com contrapartida em obrigações
facere (o direito sem obrigação imediata). contributivas ou de facere.
Condições de atribuição: Condições de atribuição:
– Previsão legal; – Previsão legal e/ou contratual;
– Requisitos legais (residência, condição – Requisitos legais em geral;
de recursos, outros). – Contributividade/exercício de atividade:
sinalagma perfeito ou imperfeito; dife‑
renciações em razão da esforço contri‑
butivo/esforço despendido ou mérito.
Grau de exigibilidade/sindicabilidade: exi‑ Grau de exigibilidade/sindicabilidade:
gíveis em relação ao an, mas não necessa‑ exigíveis em relação ao an e ao quantum
riamente em relação ao quantum (direitos (direitos completos e perfeitos).
incompletos).
Natureza das prestações: monetárias, em Natureza das prestações: em regra,
espécie ou em equipamentos. monetárias ou facilmente convertíveis
em moeda.
Exemplos: prestações de segurança social Exemplos: prestações de segurança social
de natureza não contributiva; benefícios/ de natureza contributiva (pensões do
/direitos em outras áreas sociais (educação, regime geral em atribuição); prestações
saúde, etc.) remuneratórias.
Em todo o caso, não ignoramos que o tema da natureza dos direitos
sociais enquanto direitos fundamentais ganhou contornos novos (e uma
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 363
importância acrescida) com a crise financeira e económica recente. Da
crise parece ter resultado a defesa da reconfiguração dos direitos sociais
e do redimensionamento do próprio Estado de Bem-Estar. Construções
intelectuais, mais ou menos cimentadas do ponto de vista jurídico, como
é a da “proibição do retrocesso social”, parecem soçobrar perante uma
escassa reserva do possível ou perante um estado de necessidade finan‑
ceiro mais ou menos duradouro. Mais do que outrora ganha importância
a questão de saber se estes mesmos direitos sociais constituem ou não
direitos subjetivos e, em caso afirmativo, se esse atributo lhes advém
ou não diretamente da previsão constitucional ou se tanto pressupõe,
verdadeira condição de aplicabilidade direta e de sindicabilidade, a inter‑
mediação do legislador ordinário. Num outro plano, mas com este ligado,
discute-se se as normas constitucionais que os preveem serão “meras”
normas programáticas ou normas dotadas de caráter verdadeiramente
precetivo e prescritivo.
A questão que colocamos é justamente a de saber – tal como já havia
feito Loureiro (2014, pp. 97-134) – se a crise criou um estado de neces‑
sidade a exigir tão-só contenções e reduções de natureza extraordinária
e temporária ou se, pelo contrário, ela serviu para adensar excessos e
fragilidades antigas, evidenciadas pelos Estados de Bem-Estar na provisão
dos vários direitos sociais – obrigando ao referido redimensionamento
em termos estruturais (Suscitando também estas questões, sobre o sentido
e alcance do redimensionamento do Estado Providência verificado nos
últimos anos, aqui como na Europa, leia-se Silva, 2013). Esta última
hipótese é a sufragada pelo autor, quando afirma que “mesmo sem a
especial urgência de um estado de emergência económico-financeira,
certos graus de concretização dos direitos revelaram-se insustentáveis a
médio e a longo prazo e violam as exigências de justiça intergeracional”
(Loureiro, 2014, p. 110). Sem esquecermos os argumentos aqui usa‑
dos (aos quais voltaremos), diremos por ora que, em última instância, a
resposta num sentido ou noutro (de “retrocesso” ou não) é de natureza
política e ideológica – embora os termos de concretização das escolhas
políticas possam, depois, conhecer limitações decorrentes por exemplo
do quadro constitucional existente ou dos próprios constrangimentos
económicos e financeiros. Senão vejamos. A política dita de austeridade
seguida pelo anterior Governo (entre 2011-2016), implicando reduções
de algumas prestações sociais e remuneratórias, apontava para esse redi‑
mensionamento permanente e estrutural do Estado de Bem-Estar, mas, a
dado passo, a mesma terá sido refreada, mercê da intervenção do Tribunal
364 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Constitucional, por causa dos limites impostos pela Constituição, e que
aquele Governo não lograra modificar. Já a política dita de antiausteridade
que vem sendo seguida pelo atual Governo (marcada por exemplo pela
decisão de reposição de salários na função pública e de algumas presta‑
ções sociais) é, por sua vez, condicionada pelas fragilidades financeiras
e económicas que o país evidencia e que o impedirão de ir mais longe
e mais depressa nessa vontade de reverter. Seja como for, a questão
permanece em aberto e o sentido da evolução é por ora desconhecido.
Admitindo no entanto uma hipótese extremada, de “retrocesso” social
vincado, permanente e estrutural, ou seja, a hipótese de retrenchment
do Estado de Bem-Estar (esta expressão vulgarizou-se a partir da obra
célebre de Pierson, 1995, e é usado desde logo no seu título), parece-nos
ser útil, ainda que de forma sumária e esquemática (como fazemos no
quadro 2), antecipar as consequências substantivas que isso poderá(ia)
ter sobre os direitos sociais (em alguns casos obrigando a uma alteração
constitucional), considerando os dois graus de densidade supra.
Quadro 2 – As consequências do “retrocesso” nos direitos sociais de acordo
com a sua densidade
Direitos sociais menos Direitos sociais mais densa-
densamente protegidos mente protegidos
Identificação dos níveis A “dignidade mínima” – Prestações remuneratórias
ou critérios de provisão como critério de efetiva‑ vencidas como prestações
doravante assegurada pelo ção da provisão (“o igua- vincendas, sempre sujeitas a
Estado litarismo pela rama”); a condição (a versão máxima da
provisão confinada ao flexibilização salarial);
“núcleo essencial” do – Limites ao valor máximo das
direito, o mínimo garan‑ prestações;
tido
– Benefícios definidos trans-
formados em contribuições
definidas;
– Direitos “adquiridos” quanto
ao an, mas não no tocante ao
quantum (a rejeição absoluta
da conceção “patrimonial”
dos direitos sociais); na ver‑
dade, os direitos adquiridos
serão sempre direitos em
constante formação.
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 365
Nos pontos seguintes, analisaremos melhor estas consequências, a
propósito do desenho do sistema de pensões, e no quadro dos invo‑
cados argumentos por Loureiro (supra), do “reforço da sustentabili‑
dade” e do “respeito pela justiça intergeracional”. Veremos em que
medida estes mesmos argumentos sugerem reformas estruturais na
segurança social, que tipos de reformas, e seus aspetos críticos. Uma
questão crucial, que desde logo se retira do quadro 2 é a de saber se
e em que medida o retrenchment implicará um sacrifício permanente,
mais ou menos violento, de direitos em atribuição (o sacrifício pois
das gerações presentes), em prol de direitos em formação ou a formar
(em prol das gerações futuras). Na verdade, uma tal opção implicaria
a transformação de direitos perfeitos em direitos imperfeitos, de direi‑
tos adquiridos em direitos em constante formação – ou seja, direitos
que porventura não chegam a ser. A questão é mesmo esta: será que o
sacrifício dos direitos das gerações presentes em favor dos direitos das
futuras, de direitos adquiridos em direitos em permanente formação,
não significará aqui, afinal, transformar “direitos” em “não direitos”?
(Uma chamada de atenção semelhante é feita também por Miranda,
2014, p. 164, ao considerar ser risco grave “a pretexto desses direitos
das gerações futuras, se sacrificarem hoje direitos e interesses muito
legítimos das gerações presentes”.)
Para chegarmos à resposta, precisamos de recordar primeiro alguns
conceitos de base com os quais trabalha a segurança social.
3. A sustentabilidade da segurança social e o sentido da sua reforma
3.1. Insights teóricos e conceitos operativos fundamentais na segu-
rança social
A Segurança Social, enquanto sistema estruturado para garantir quer
a proteção de contribuintes/beneficiários perante a ocorrência de riscos
sociais quer um conjunto de rendimentos bastante para evitar a pobreza
e assegurar uma vida digna, tem sido, ao longo de décadas, o palco para
aplicação de teorias (económicas) de diferentes raízes e influências.
O quadro 3 procura, justamente, ilustrar os insights teóricos mais rele‑
vantes para alguns dos tópicos da segurança social.
Já do ponto de vista da gestão financeira da segurança social, importa
ter presentes alguns dos seus conceitos operativos fundamentais. Antes
porém, uma chamada de atenção: os considerandos seguintes são feitos
366 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Quadro 3 – Os insights teóricos mais relevantes a propósito de alguns tópicos da
segurança social
Insights da
Insights da macroeconomia/
Tópicos Explicação
microeconomia /de ordem política
ou filosófica geral
Porque é que – Life-cycle Se é verdade, de acordo com o
a segurança model (Ando‑ modelo do ciclo da vida, que a
social existe -Modigliani): uma fase de poupança (fase da
como sistema hipótese de vida ativa) se segue uma fase de
de seguro rendimento/ não poupança (dissaving), supos‑
obrigatório? /consumo tamente criando incentivos para
permanente e que indivíduos racionais procu‑
constante ao rem garantir um nível de consumo
longo do ciclo constante ao longo da vida (para
da vida; isso justamente poupando na fase
– Miopia do ativa), também é verdade que
consumidor1. os consumidores tendem a ser
míopes, ou seja, a preferir o con‑
sumo presente ao consumo futuro.
O seguro obrigatório (de pensão
de velhice) procura pois forçar a
poupança na fase ativa, destinada
depois a ser recuperada na fase
inativa da vida de cada um.
Porque é que – Os mesmos – Função de redis‑ – A simples existência de um
a segurança referidos tribuição (Mus‑ esquema de seguro favorece
social existe supra; grave); a exposição ao risco (“risco
como sistema – Falhas de – Justiça social. moral”), o que tende a levar
de seguro mercado: ao aumento dos prémios de
obrigatório risco moral seguro pagos pelos maus, mas
público e e seleção também pelos bons segurados.
como ins‑ adversa Se não for possível criar classes
trumento (Akerlof, de segurados e diferenciar o
de combate Stiglitz); prémio de seguro, pode ocor‑
à pobreza – Falhas de rer seleção adversa: ou seja,
por parte do mercado: os bons segurados saem do
Estado? externalidades esquema de seguro (cujo pré‑
positivas. mio se torna injustificado em
face do seu grau de exposição
ao risco) e o esquema fica con‑
finado aos maus segurados.
A longo prazo, este mercado
deixa de ter condições para ope‑
1
Sobre o ponto veja-se, Hu (1996, 319).
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 367
Insights da
Insights da macroeconomia/
Tópicos Explicação
microeconomia /de ordem política
ou filosófica geral
rar. Se o esquema for obriga‑
tório e público, fica garantida,
pelo contrário, a sobrevivência
do esquema de seguro.
– A segurança social, como outras
políticas públicas, apresenta
externalidades positivas (v.g.,
contribui para a produtividade
dos trabalhadores abrangidos);
logo, existe um rationale para
a socialização da externalidade
por parte do Estado.
– Na medida em que os sistemas
de segurança social modernos
evoluíram para assumir obje‑
tivos de combate à pobreza
(nomeadamente no seio dos
seus regimes não contributi‑
vos), a segurança social acaba
também por favorecer a redu‑
ção das desigualdades inter‑
-individuais e esta é função do
Estado no desenvolvimento da
sua atividade financeira.
Porque é que – Armadilha da A atribuição de certas prestações
algumas pres‑ pobreza/ sociais (v.g., subsídio de desem‑
tações sociais /Armadilha do prego) pode criar incentivos para
conhecem desemprego. que o beneficiário evite procurar
limites máxi‑ novo trabalho, enquanto estiver a
mos? receber a prestação. A introdu‑
ção de limites máximos ao valor
do subsídio procura justamente
garantir que o beneficiário não
desiste de procurar ativamente
trabalho enquanto está desem‑
pregado.
368 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Insights da
Insights da macroeconomia/
Tópicos Explicação
microeconomia /de ordem política
ou filosófica geral
Porque é que – Life-cycle – Equivalência – Os consumidores/contribuintes
a segurança model (Ando‑ Ricardiana intuem racionalmente que é
social (em -Modigliani): (Barro)2; indiferente financiar a despesa
particular hipótese de – Generational (agregada) através de impos‑
o sistema rendimento/ Accounting (Fel‑ tos ou de dívida: sabem que a
de pensões) consumo per‑ dstein-Gokhale‑ dívida implica impostos futu‑
assenta num manente ao -Kotlikoff). ros. Nessa medida, ajustam os
modelo de longo do ciclo padrões de consumo em fun‑
repartição ou da vida. ção da despesa criada em cada
de capitaliza‑ momento.
ção? – A contabilidade intergeracional
(CI) é uma forma de estimação
da situação financeira global
do Estado ou do seu sistema
de segurança social: calcula
para um determinado ano t, o
valor atualizado dos impostos
futuros que cada contribuinte
terá de pagar, em face das
transferências que recebe do
Estado (“pagamento líquido”).
Haverá equilíbrio se estes dois
termos se igualarem. O modelo
de CI parte de dois pressupos‑
tos (Silva, 2002, pp. 177-178):
i) uma trajetória constante de
crescimento da despesa; ii) a
manutenção dos níveis de paga‑
mento das gerações presentes.
fundamentalmente no contexto de uma segurança social pública, embora,
em diversos casos, esses mesmos conceitos possam ser transpostos,
com as devidas adaptações, para a provisão privada de seguros sociais
(repare-se, desde já, que a velha questão ideológica, da “privatização
da segurança social”, não nos interessa por si só). Identificamos, na
2
Não obstante esta sua inserção no plano da macroeconomia, a “equivalência
ricardiana” apresenta pontos de contacto com os contributos da teoria microeconómica,
nomeadamente com o modelo do “ciclo da vida”.
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 369
verdade, três grandes “pares” de conceitos, cada um deles marcado por
antinomias internas, mas que apresentam, entre si, ligações de natureza
circular, como revela a figura seguinte.
Figura 1 – Os três grande grupos de conceitos operativos da Segurança Social
Financiamento
por Reparação
contribuições ou ou capitalização
por impostos
Benefício definido ou
contribuição definida
Se é verdade que do ponto de vista jurídico, as diferenças entre finan‑
ciamento da Segurança Social pela via fiscal (impostos gerais) ou pela
via contributiva (contribuições sobre salários, pagas por trabalhadores e
geralmente também pelas entidades empregadoras) são diferenças assi‑
naláveis [diferenças desde logo quanto à natureza jurídico-tributária de
cada um dos tributos, mas também, e como dissemos antes, em virtude
da diferente densidade jurídica dos direitos dependentes de financiamento
pela via fiscal (menor) quando comparada com a densidade dos direitos
associados ao financiamento pela via contributiva (maior)], já do ponto
de vista económico a distinção não é tão significativa (sobretudo numa
ótica de longo prazo, do life-cycle model, como aquela que nos interessa).
Na verdade, ambos, enquanto tributos, servem para financiar despesa
pública e ambos implicam, como tal, perda de rendimento disponível
para os trabalhadores e a repercussão dos seus efeitos no consumo pre‑
sente. Apesar disto, existem, em termos económicos, duas diferenças
relevantes: i) no financiamento através de impostos (maxime impostos
370 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
sobre o rendimento), a base de incidência dos mesmos tende a ser mais
alargada do que no caso das contribuições, para incluir outros rendi‑
mentos que não apenas os do trabalho, atingindo pois as possibilidades
de consumo dos cidadãos em geral, qualquer que seja o seu estatuto
sociolaboral (acresce que, se considerarmos a natureza progressiva da
maior parte dos impostos sobre o rendimento pessoal, verificamos então
que, na margem, serão aqui mais pesadamente tributados os titulares de
maiores rendimentos); ii) do ponto de vista contabilístico (na ótica das
empresas), o custo só é considerado no cálculo dos respetivos resultados
anuais – como custo não salarial da mão de obra –, quando haja lugar ao
pagamento de contribuições para a segurança social, pagamento, desde
logo, a cargo das próprias empresas.
Da opção pelo financiamento fiscal tende a resultar, por sua vez, no
plano da técnica financeira usada, a opção pelo regime de repartição, ou
seja, pelo regime em que a despesa é financiada, em cada momento, pela
receita corrente gerada e não por fundos constituídos por ativos finan‑
ceiros criados e alimentados a partir de contas de poupança individuais
(como sucede no regime de capitalização). Aliás, pela sua natureza de
tributo unilateral e em regra não consignado, é conatural ao imposto a
aplicação da receita respetiva a uma variedade indeterminada de despesa,
de entre ela a despesa social. Implicitamente ainda, os contribuintes
estão aqui a financiar despesa presente, na expectativa de que esse
processo de financiamento seja replicado pelas gerações seguintes. No
entanto, ao contrário do que veremos suceder quando o financiamento é
alimentado por contribuições, considerar os impostos como instrumento
de “financiamento por terceiros” é algo de menos intuitivo, desde logo
porque eles não são suscetíveis de uso em aplicações alternativas e, em
particular, de serem usados como instrumentos de poupança. Na verdade,
se pensarmos de novo à luz do modelo life-cycle, as contribuições sociais
são instrumentos de poupança na fase ativa da vida (o que lhes advém,
desde logo, das suas propriedades seguradoras), para depois serem
usadas na fase inativa, a fase de dissaving, sob a forma de benefício
social. Mesmo em regime de repartição, essa ideia de poupança está
lá, intuída. Já no financiamento pela via fiscal, a conceção do imposto
como elemento de poupança – pela sua fisionomia própria – torna-se
muito mais problemática. Por esta razão, em suma, o financiamento pela
via contributiva (ou seja, por contribuições sociais) sendo o que melhor
se adequa à ideia de capitalização (pois aqui o elemento poupança é
evidente), é também, curiosamente, aquele que colige para o regime de
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 371
repartição – quando seja este o existente – todas as consequências asso‑
ciadas ao “financiamento por terceiros”, e desde logo a perceção de que
este financiamento gera uma dívida, uma dívida implícita, que deverá
ser paga pelas gerações futuras.
Repare-se, por outro lado, que quer o regime de repartição quer o
de capitalização convivem com modelos de benefício definido ou de
contribuição definida, ainda que exista uma tendência para associar o
regime de capitalização a estes últimos. E, contudo, não é forçoso que
assim seja: de facto, sobretudo no passado, muitos planos de pensões
geridos em regime de capitalização assentavam em modelos de bene‑
fício definido, e só mais recentemente foram evoluindo para esquemas
preferenciais de contribuição definida. Evolução que, aliás, também se
verificou no seio de alguns regimes (públicos) de repartição: também
nestes o benefício definido cedeu passo perante a contribuição definida
(a reforma no sistema de pensões sueco, verificada em final dos anos
noventa passados, costuma ser indicada como exemplo paradigmá‑
tico a este respeito) [o modelo sueco é vulgarmente conhecido como
modelo de capitalização virtual ou “nocional”, pois embora implique
a criação de contas de poupança individuais, permitindo o cálculo
anual de um rendimento de valorização em razão das contribuições
efetuadas, essa valorização resulta contudo de uma taxa determinada
pelo Estado (ajustada regularmente em função da alteração em variáveis
económicas, demográficas e financeiras relevantes), e não em virtude
de uma qualquer rendibilidade de aplicações financeiras (determinada
de acordo o funcionamento dos mercados financeiros), que aqui nem
sequer têm lugar. No mais, a gestão financeira mantém as características
da repartição, ou seja, o financiamento quotidiano do sistema assenta
em contribuições dos ativos que assim asseguram o pagamento das
pensões. O modelo sueco vai aliás mais longe do que outros modelos
de capitalização virtual (v.g., Itália, Estónia), na medida em que estende
a possibilidade de conformação ou de adaptação das pensões, mesmo
quando estas já estão em curso de atribuição. Ou seja, em suma, as
pensões a atribuir ou já atribuídas são objeto de permanente recálculo,
em função da evolução, que é também permanente, daquelas mesmas
variáveis económicas, demográficas ou financeiras, podendo haver
assim atualizações “negativas” do valor das pensões. Este modelo tem
a vantagem, sobre os modelos de capitalização convencionais, de tornar
os sistemas de pensões menos dependentes do funcionamento volátil
dos mercados financeiros, sendo menos atreitos à ideia de “mercantili‑
372 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
zação” dos riscos sociais, mas ao mesmo tempo capaz de incorporar nas
pensões a volatilidade das condições demográficas e económicas, com
vista à sustentabilidade de longo prazo do próprio sistema. Para uma
caracterização do sistema sueco, veja-se Palmer (2002), Guardiancich
(2010), Barr & Diamond (2010, pp. 160-3) e Mendes (2011)]. Aquilo
que, em termos imediatos, separa os modelos de benefício definido
dos modelos de contribuição definida é que enquanto nos primeiros se
determinam as contribuições em função dos benefícios – cujo montante
é predefinido ou predeterminado –, nos segundos os benefícios ficam
dependentes das contribuições efetuadas ao longo do período contri‑
butivo, estas fixadas à partida. Sem embargo, no quadro dos planos
públicos de pensões – pois também eles, antes de serem públicos, são
planos de pensões –, a distinção entre os dois modelos obriga a alguma
densificação destas ideias. Assim, no modelo de benefício definido, a
pensão é formada de acordo com elementos predeterminados na lei,
pelo que o contribuinte/beneficiário pode estimar, com alguma certeza,
qual vai será o valor da sua pensão, mesmo antes de se reformar, já
que eles são conhecidos ou antecipáveis (como veremos adiante, a taxa
de substituição das pensões tende por isso a ser fixa). Esses elementos
são portanto parâmetros ou fatores estáticos, de cálculo de pensão,
assinalando-se os seguintes:
––Valor da remuneração de referência (que inclui a taxa de revalo‑
rização dos salários sobre que incidem as contribuições sociais,
podendo esta ficar indexada, por exemplo, à taxa de inflação ou à
evolução do índice de preços no consumidor – IPC);
––Taxa anual de formação da pensão [entre nós, a taxa anual de for‑
mação situa-se entre 2 e 2,3%, percentagem variável em função da
dimensão da carreira contributiva (taxa maior para carreiras maiores)
e do valor da própria remuneração de referência (taxa maior para
remunerações menores)]; e
––Dimensão da carreira contributiva (entre nós, considera-se carreira
contributiva completa a que atinja os quarenta anos).
Ao invés, no modelo de contribuição definida, os fatores que concorrem
para o cálculo da pensão são também parâmetros ou fatores dinâmicos (e
a taxa de substituição das pensões é por isso flexível), em certo sentido
voláteis e incertos, nomeadamente relacionados com:
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 373
––Variáveis demográficas (v.g., evolução da esperança média de vida);
––Variáveis económicas (v.g., taxa de crescimento da economia);
––Variáveis financeiras (v.g., saldo do sistema previdencial).
Posto isto, podemos afirmar que as vantagens do modelo de benefício
definido são simultaneamente as suas principais desvantagens. Como
refere Mendes (2011, p. 77), o esquema de benefício definido “é estabi‑
lizador de expectativas, mas revela uma grande rigidez perante contextos
desfavoráveis: os direitos estão juridicamente garantidos pelo Estado de
direito, e mesmo certas expectativas acerca das prestações futuras podem
ter validade nos sistemas jurídicos mais vincadamente garantísticos”. Isto
sucede assim, porque o modelo de benefício definido faz repercutir sobre
os ativos do sistema a deterioração das varáveis económicas e financeiras
que constituem os inputs desse sistema, nisso residindo justamente a sua
alegada rigidez. Da mesma maneira, pela inversa, o modelo de contribui‑
ção definida (nomeadamente, na versão de contas nocionais à la sueca)
leva a que sejam sobretudo os pensionistas (os inativos) a suportar todas
essas contingências, permitindo a adaptabilidade do sistema à variação
da conjuntura, mas isso pode, afinal, impedi-lo de garantir uma proteção
social satisfatória [convém, além disso, não nos esquecermos de que
Portugal não é (ainda) a Suécia, nem no que se refere à sua estrutura e
capacidade económicas, nem no que toca aos seus índices de natalidade,
nem quanto à suficiência do seu Estado de bem-estar]. Ainda assim, de
forma inovadora (associando-se precisamente ao exemplo sueco), Por‑
tugal acolheu no seu sistema de pensões um dos parâmetros dinâmicos
antes mencionado – a variável demográfica. Criou, em 2007, o fator de
sustentabilidade. A sua introdução, e mesmo já considerando a alteração
de 2013, implicou entre nós uma mudança importante, de substituição
de um sistema de benefício definido puro, por um sistema de benefício
definido mitigado [O fator de sustentabilidade (FS) foi previsto na LBSS
de 2007 e regulado pelo Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de maio (regime
jurídico das pensões de velhice e invalidez). O valor da pensão correspon‑
dia ao produto da pensão estatutária (calculada pela aplicação das regras
de cálculo ou fatores estáticos antes indicados) pelo rácio EMV2006/
/EMVn-1 (sendo EMV a esperança média de vida, e respetivamente, no
numerador, EMV em 2006 e, no denominador, EMV no ano anterior ao
de requerimento da pensão). A aplicação do FS poderia ser neutralizada
– assim resultava desde logo do preâmbulo do diploma – de duas formas:
374 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
ou pelo prolongamento da idade de acesso à velhice para lá dos 65 anos
(no respeito pelo princípio do envelhecimento ativo), ou através de um
esforço contributivo suplementar, mormente no âmbito no regime público
de capitalização (então também previsto). Recentemente, os termos do
cálculo das pensões foram alterados pelo Decreto-Lei n.º 167-E/2013,
de 31 de dezembro, que alterou conjuntamente as regras de fixação da
idade normal de acesso à pensão de velhice (antes fixada nos 65 anos
de idade). Assim, o FS aplica-se agora às: a) Pensões iniciadas até
31 de dezembro de 2014 e às; b) Pensões iniciadas após 1 de janeiro de
2015, mas desde que requeridas antes dos 66 anos (idade de acesso à
pensão fixada para esse mesmo ano). As regras são diferentes consoante
os casos. Para pensões iniciadas até 31 de dezembro de 2014, valem
as regras iniciais do FS. Diversamente, para as pensões iniciadas após
1 de janeiro de 2015 e nas condições antes indicadas (requeridas antes
dos 66 anos), o rácio será EMV2001/EMVn-1. Acima do tudo, o que
ressalta nesta nova versão é a adequação da idade normal de acesso à
pensão de velhice em 2014 à alteração da fórmula de determinação do
fator de sustentabilidade. Tudo indica pois que haverá uma elevação
paulatina da idade de acesso à pensão em razão da deterioração do rácio
da EMV2001/EMVn-1, sendo que essa idade já não é mais de antemão
fixada (como até aqui), antes dependendo da evolução do denominador
do mesmo rácio. Em suma, pode dizer-se que à luz da versão anterior,
o FS implicava variações (reduções) no valor da pensão a atribuir aos
65 anos, podendo essa redução ser neutralizada através das duas formas
antes mencionadas. Agora, o FS induz variação (aumento) da idade de
acesso à pensão, podendo aqueles instrumentos de neutralização ser
relevantes, por exemplo, quando alguém requer a pensão antes da idade
de acesso em cada momento ditada pelo rácio EMV2001/EMVn-1. No
mais, a forma de garantir uma pensão completa, sem redução, resulta
de se trabalhar até à idade (em princípio crescente), em cada ano ditada
pela aplicação do mesmo rácio].
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 375
3.2. O significado da ideia de “sustentabilidade da segurança social”
e como promovê-la no contexto dos diferentes modelos de segu-
rança social
i) Sustentabilidade e financiamento pela via fiscal ou pela via con-
tributiva...
Começamos por recordar uma ideia antes já aflorada: “o” problema da
sustentabilidade da segurança social é fundamentalmente um problema
do sistema de pensões. Partindo desta premissa, impõe-se proceder a uma
“separação de águas”, no sistema de segurança social, entre a gestão das
pensões e a gestão das prestações imediatas (i.e., prestações nas even‑
tualidades doença, doenças profissionais, desemprego e parentalidade).
No caso português, essa separação pode parecer difícil de fazer, desde
logo porque o modelo de financiamento assenta numa taxa contributiva
global (ainda conhecida por “taxa social única – TSU”). Seria em todo o
caso possível e desejável, ainda que numa primeira fase de forma menos
evidente (ou seja, mantendo a atual estrutura da taxa), autonomizar a
parcela relativa à eventualidade velhice e geri-la per se, permitindo
desde logo concretizar um mecanismo de desagregação atuarial da
TSU que, em bom rigor, hoje não se verifica (alternativa mais radical
seria abandonar o modelo da taxa contributiva global e criar uma taxa
contributiva específica para as pensões. A ser assim, recuperar-se-ia um
modelo de seguro social e repor-se-ia aqui a lógica previdencial e sina‑
lagmática que a conceção da TSU tem desvirtuado ao longo do tempo).
[O atual modelo da TSU comporta vantagens e desvantagens. Quanto
às vantagens, chamo a atenção para o facto de a mesma TSU poder ser
utilizada para financiar outras despesas, que não apenas o custo técnico
das eventualidades sociais, como sejam as que concretizem objetivos de
política de rendimentos ou de política laboral. Além disso, o modelo é
mais suscetível de ser utilizado para a prossecução de objetivos de natureza
redistributiva. Acresce que o modelo da TSU é especialmente adequado
a uma gestão em repartição (e repartição em todas as eventualidades
sociais), e é adequado sobretudo em contextos de razoável crescimento
económico. Nesse caso, a gestão interna da TSU permite assegurar, em
cada momento, as compensações devidas entre o agravamento do custo
de umas eventualidades e a redução do custo de outras (sem necessidade
de alterar o valor global da taxa). A TSU permite, nessas circunstâncias,
o alisamento de ganhos e custos técnicos. No entanto, sabemos que o
376 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
modelo conhece algumas desvantagens, sobretudo em contextos negativos
como o que temos estado a viver. Em contextos de fraco crescimento
económico e de desemprego, o modelo da TSU não funciona tão bem.
Especialmente as pensões – que constituem sem dúvida a sua principal
fatia – perdem sobremaneira por estarem associadas à eventualidade
desemprego. Herdam e são contaminadas pelo agravamento implícito
do custo técnico do desemprego. Daí que a “separação de águas” entre
pensões e as demais prestações pudesse favorecer: i) Uma análise mais
rigorosa do impacto financeiro das pensões no longo prazo; ii) Uma
melhor perceção da respetiva taxa de equilíbrio (esforço contributivo
exigido em face do respetivo custo técnico); iii) Uma definição mais
adaptada das medidas de reforma necessárias, de natureza paramétrica
ou sistémica. E acima de tudo, essa segregação permitiria “limpar” o
sistema de pensões da contaminação dos efeitos do desemprego que hoje
se fazem sentir de duas formas, uma inevitável, outra dispensável: ine‑
vitável, porque o sistema de pensões é tributário, na cobrança de receita
e na realização de despesa, do estado da economia (logo dos níveis de
emprego e de desemprego); dispensável, porque, como a TSU é única e
não é de ajustamento flexível (precisamente porque a desagregação não
é atuarial), então o financiamento das pensões está, a todo o momento,
a “herdar” e a ser contaminado pelos efeitos do desemprego.]
Autonomizadas as pensões (de velhice) de entre as restantes prestações
sociais, pode então definir-se sustentabilidade financeira do sistema de
pensões, seguindo Fall e Bloch (2014, p. 13), como a capacidade de o
sistema ser capaz de cumprir as suas responsabilidades ou compromissos
no médio a longo prazo. A sustentabilidade implica ainda que o valor
atualizado (discounted present value) da corrente de receitas contributivas
e de outras receitas, num horizonte temporal alargado, seja suficiente para
cobrir as despesas projetadas. Desta forma, a sustentabilidade pode ser
calculada como equilíbrio atuarial a longo prazo do sistema, havendo
equilíbrio atuarial sempre que o valor atualizado da pensão esperada (con‑
siderada a esperança média de vida e as regras de atualização das pensões)
seja igual à pensão formada à data em que o beneficiário se reforma.
Repare-se que a opção entre financiamento pela via contributiva ou pela
via fiscal não releva significativamente para este efeito: em contextos de
repartição – cujas implicações para a sustentabilidade desenvolveremos
a seguir –, estas duas opções de financiamento são intercambiáveis do
ponto de vista económico (este é também um dos corolários da “equi‑
valência ricardiana” e sobretudo da afirmação, antes produzida, de que
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 377
os efeitos económicos, sobretudo no longo prazo, destas duas formas
de financiamento são similares) [na verdade, qualquer que seja a forma
de diversificação das fontes de financiamento (princípio aliás acolhido
na LBSS – artigo 88.º), pode sempre alegar-se que, no final, todas elas
redundam em impostos].
ii) Sustentabilidade e regimes de repartição ou de capitalização...
Conceito não distante, mas diferente do de sustentabilidade do sistema
de pensões, é o conceito de sustentabilidade da dívida pública – que é
aliás uma expressão muito usada, hoje em dia, no quadro das finanças
(globais) do Estado. Trazemos esta ideia à colação, pois, como vimos antes,
também se usa falar de “dívida implícita” a propósito da que é gerada no
contexto de sistemas de repartição, dívida suscetível de ser quantificada,
ainda que nem sempre conhecendo na lei o mesmo tratamento e limites
dos que são fixados para as restantes formas de dívida. [Veja-se, a este
respeito, a noção de sustentabilidade das finanças públicas, que nos é dada
pela nova Lei de Enquadramento Orçamental – LEO (Lei n.º 151/2015,
de 11 de setembro), e que parece não incluir os compromissos resultantes
de “dívida” com pensões. Na verdade, apesar da primeira parte, ampla,
do n.º 2 do seu artigo 11.º onde se afirma que a sustentabilidade é “a
capacidade de financiar todos os compromissos, assumidos ou a assumir”,
logo de seguida se limita o alcance da norma, acrescentando-se que essa
mesma capacidade se afere “com respeito pela regra de saldo orçamental
estrutural e da dívida pública, conforme estabelecido na presente lei” e
assim se confina o seu espectro à noção convencional, contabilística,
de dívida – financeira e não financeira.] Falar em dívida pública pres‑
supõe necessariamente a existência de contratos intergeracionais, que
manifestamente não existem em regimes de capitalização. Um plano de
pensões gerido em capitalização obriga a aferir da sua sustentabilidade,
mas não coloca, pela sua natureza, problemas de dívida. Já no regime
de repartição, a sustentabilidade, pela natureza das relações contratuais
subjacentes (ainda que implícitas), é, ela mesma, o atributo de uma
dívida ou de compromissos assumidos perante outrem. Em particular, no
caso particular dos planos públicos de repartição, reconhece-se (Kane &
Palacios, 1996, p. 36) que os pensionistas e trabalhadores têm sobre o
sistema de pensões direitos de crédito similares aos que obrigacionistas ou
outros titulares de dívida pública têm sobre o Estado (como vimos antes,
razão de densificação do próprio direito subjetivo em si). Tratar-se-ia,
378 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
assim, neste caso, de alargar a noção convencional de “sustentabilidade
da dívida”, para nela integrar a chamada dívida implícita, nomeadamente
a resultante de compromissos com pensões, com todas as implicações
associadas em termos de gestão orçamental (vide Caixa 1). Mas as difi‑
culdades desta integração são conhecidas, desde logo porque, apesar
dos mencionados direitos adquiridos e em formação, a possibilidade
de os governos adaptarem o sistema de pensões às mudanças fáticas e
financeiras que aconteçam ao longo do tempo, preservando as suas con‑
dições quotidianas de sustentabilidade, é maior do que a possibilidade
unilateral de alteração das condições de pagamento da dívida pública
expressa, a qual ademais só em circunstâncias pontuais pode ser objeto
de renegociação com a contraparte.
Caixa 1 – Da sustentabilidade da dívida pública (expressa)
Como nos diz Pereira (2012, p. 290), a sustentabilidade da dívida pública (enquanto
sustentabilidade das finanças públicas) “impõe que o valor atual de todos os futuros
excedentes orçamentais primários (ou seja, os saldos orçamentais sem juros) seja igual
ao valor existente da dívida pública”, ou seja, formalizando, assim:
!
!"!
!!! =
(1 + ! 1 + !)!!!!
!!!!!!
em que t é o período considerado, dt é o rácio da dívida pública e o PIB, pdt são os
saldos orçamentais primários, r a taxa de juro nominal e g a taxa de crescimento do
PIB nominal.
No pressuposto de que r > g (admite-se que a taxa de retorno do capital será sempre
maior do que a taxa de crescimento, agora ambas em termos reais), então isso significa
que existe uma restrição orçamental intertemporal sobre o Estado que obriga a limitar
o crescimento do endividamento e/ou à obtenção de saldos orçamentais (primários)
consentâneos com esse objetivo.
Seja como for, recapitulando, as exigências de sustentabilidade impõem‑
-se quer num caso quer noutro: nos regimes de capitalização, está em
causa a sustentabilidade do plano individual de reformas que é antes de
mais um plano de poupança; no regime de repartição, trata-se de aferir
da sustentabilidade da dívida assumida para com outrem no quadro de
um contrato intergeracional – colocando assim, de forma muito mais
evidente do que em capitalização, problemas de justiça intergeracional,
como também veremos.
Para já, repare-se que os fatores que atualmente condicionam a sus‑
tentabilidade dos planos de pensões (maxime os fatores demográfico
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 379
e económico) fazem-se sentir nos regimes de repartição e de capitali‑
zação, e não apenas nos primeiros, como por vezes se chega a pensar.
Na verdade, considerando que quer o regime de repartição, quer o de
capitalização constituem mecanismos organizados de pretensões sobre
a riqueza futura, considerando ainda que as alterações demográficas
relevam não por si só, mas na medida em que afetam a produção dessa
riqueza, então tais alterações colocam desafios à gestão dos planos (que
podem implicar redução de benefícios ou aumento de contribuições/
/prémios de seguro), independentemente do mecanismo de organização
dessas pretensões (Barr & Diamond, 2010, p. 70). No entanto, pode
contrapor-se o seguinte argumento: desde logo, por causa do pressuposto
assumido na Caixa 1 – de que a taxa de retorno do capital é, no longo
prazo, superior à taxa de crescimento real da economia –, então regimes
de capitalização parecem ganhar vantagem sobre os de repartição (Fel‑
dstein, 1996, p. 6), especialmente em contextos de fraco crescimento
económico, como aquele que marca hoje diversos países europeus, com
Portugal em evidência. [Como é afirmado, por exemplo, no relatório da
OCDE (OECD, 2015, p. 11), o crescimento dos ativos dos fundos de
pensões em 2014 foi sustentada por retornos de investimento positivos.
Todos os países da OCDE reportados registaram retornos líquidos reais
positivos em 2014, em valores que oscilam entre 1,2% na República
Checa e 16,7% na Dinamarca, com uma média ponderada de 5,0% e
uma média simples de 6,8% para todos os países estudados. Esta ten‑
dência manteve-se em 2016 (assim, OECD, 2016, pp. 17-18), ainda que
países asiáticos – que até aí a haviam seguido – tenham agora conhecido
resultados negativos (o caso da China e de Hong Kong), por causa do
mau desempenho dos mercados de ações naquela região do globo. Por
outro lado, em 2016, assistiu-se a uma redução muito significativa do
número de fundos de pensões em diversos países da OCDE, embora isso
não apresente necessariamente correlação com o desempenho respetivo.
Os resultados da regressão efetuada demonstram, pelo contrário, que as
variáveis explicativas que se mostraram estatisticamente significativas
para explicar o retorno dos fundos de pensões foram as dimensões dos
mercados de pensões e o desenvolvimentos dos mercados acionistas
(correlação positiva) e a afetação a obrigações (correlação negativa)
(Ibidem, p. 27).] Se isto é assim, verifica-se contudo um trade-off: o da
“mercantilização” do risco social, ou seja, o da sua entrega à volatilidade
dos mercados financeiros (e afins) e às contingências próprias da sofisti‑
cação atual dos mesmos mercados. Mesmo que devidamente regulados
380 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
os fundos financeiros afetos a planos de pensões e sujeitos a princípios
de prudência e de diversificação do risco, o risco de fuga à regulação
subsiste e a hipótese do seu colapso pode verificar-se (paira o “fantasma”
do famoso caso Maxwell, nos anos noventa passados, que justamente
se traduziu na implosão, por gestão fraudulenta, do fundos de pensões
associado ao grupo de comunicação social Maxwell). De resto, a situação
atual parece ilustrar já, por sua vez, um caso de eventual captura dos
fundos de pensões pelas chamadas “finanças Ponzi” – que como se sabe,
estão na base de movimentos especulativos ou do surgimento de “bolhas”
em torno do valor de certos ativos. Na verdade, no contexto de taxas
de juro muito baixas e prolongadas no tempo (como aquele que hoje se
vive), os fundos de pensões estão a ser levados a adotar comportamentos
de search for yield (“procura de rendimento”) que os leva a diversificar
investimentos, pela aquisição de classes de ativos alternativas aos ativos
“tradicionais” (ações e obrigações), processo de diversificação que pode
acarretar, ao contrário do que é suposto, exposição a riscos acrescidos e
irresponsáveis (alertando para este perigo, OECD, 2015, p. 15). De entre
estas novas classes de ativos, destacam-se empréstimos, imobiliário,
outros fundos mútuos, contratos de seguro não alocados, hedge funds,
private equity funds, produtos estruturados, etc.
Repare-se que esta opção entre modalidades de gestão de planos de
pensões, medindo prós e contras em função da sua rendibilidade e do risco,
nada tem que ver com a natureza pública ou privada dos responsáveis
últimos pelo plano – sejam eles empresas ou setores privados, seja ele
o próprio Estado. Como sabemos, no caso português, embora o sistema
previdencial da segurança social pública seja gerido fundamentalmente em
repartição, existe já um instrumento de capitalização individual – o regime
público de capitalização –, e que funciona justamente como instrumento
de poupança de natureza facultativa (contas individuais de reforma), com
vista à obtenção de uma pensão complementar no seio do mesmo sistema
previdencial. [O seu objetivo consiste pois em reforçar a proteção na
velhice e na invalidez absoluta, pela atribuição de um complemento da
pensão ou da aposentação que assumirá a forma de renda vitalícia (cf.
artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 26/2008, de 22 de fevereiro). Para
tanto, deve o contribuinte aderente proceder ao pagamento de uma con‑
tribuição mensal que é creditada numa conta individual aberta em seu
nome. O saldo da conta individual será, em cada momento, o resultado da
valorização (“capitalização”) das unidades de participação que a integram,
denominadas certificados de reforma. O pagamento das contribuições
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 381
é efetuado ao fundo dos certificados de reforma, que é um património
autónomo gerido pelo Instituto de Gestão dos Fundos de Capitalização
da Segurança Social (IGFCSS), de acordo com um conjunto de regras e
princípios, designadamente em matéria de liquidez, composição dos ativos
e política de investimento, constantes quer do Decreto-Lei em apreço,
quer do respetivo regulamento de gestão. Anualmente, o IGFCSS deve
prestar aos contribuintes aderentes informação sobre a evolução e situação
atual da conta individual, a taxa de rendibilidade anual do fundo, a forma
e local onde se encontra disponível o relatório e contas anuais referentes
ao fundo, bem como a composição do respetivo património (cf. n.º 1 do
artigo 43.º)] Neste caso, trata-se de um esforço contributivo adicional e
que, na sua génese, recorde-se, visava neutralizar os efeitos da aplicação
do fator de sustentabilidade sobre o valor da pensão (isto é, a redução
sofrida no regime de repartição seria compensada pelo valor da pensão
adicional obtida no seio do regime de capitalização). Seja como for, se
isto é certo, não é menos que os regimes privados de planos de pensões
assentam, em regra, na capitalização financeira. Por isso, a deriva de um
sistema de repartição para um sistema de capitalização (em grau menor
ou maior) pode traduzir também a opção entre um sistema público ou
privado de segurança social (ou por um e outro em proporções variáveis).
Nos anos noventa passados, na sequência da elaboração, entre nós,
do Livro Branco da Segurança Social (Comissão do Livro Branco,
1998), discutiu-se muito esta questão: criar no sistema previdencial,
a par da primeira pensão atribuída pelo sistema público de repartição,
uma segunda pensão obrigatória de natureza privada e assegurada em
capitalização. Ao contrário porém da opção que acabou por ser feita em
2008, com a criação do regime público de capitalização, a segunda pen‑
são de que então se falava, além de privada e obrigatória, seria formada
sem recurso a partilha de base de incidência tributária (piggy-backing),
uma vez que parcelas diferentes de remuneração serviriam como base
de incidência para efeitos de formação das duas pensões: com efeito,
mediante introdução de limites horizontais (plafonds) ao valor da remu‑
neração base de incidência, o contribuinte financiava o sistema público
de repartição (a primeira pensão) até ao valor do plafond, e para lá desse
valor financiaria uma conta individual gerida em capitalização (a segunda
pensão). Isto significava, assim, que o esforço contributivo não conheceria
a redundância de incidir duplamente sobre a mesma base de incidência,
mas significava também perda de receita no sistema de repartição – pelo
menos no imediato e no curto prazo –, já que logo desviada para a com‑
382 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
ponente afeta à capitalização. [Diversamente, no atual regime público de
capitalização, como a base de incidência toma “por referência a média
dos valores que constituíram base de incidência para o cálculo das con‑
tribuições para o sistema previdencial da segurança social, para a Caixa
Geral de Aposentações (CGA) ou para outro regime de proteção social
de enquadramento obrigatório, nos 12 meses que antecedem o 2.º mês
anterior à data” (cf. n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 26/2008), o
regime acaba por se fundar quase por inteiro num mecanismo de partilha de
base de incidência tributária – os montantes de remuneração que relevam,
como base de incidência, no sistema de repartição relevam, quase como
tal, também no de capitalização.] A grande dificuldade estaria então em
assegurar os custos de transição de um sistema de repartição puro, para
um sistema de repartição doseado com capitalização. Privado o sistema de
repartição de uma fatia significativa da sua receita, a questão estaria em
como continuar a financiar, numa base pay-as-you-go, os compromissos
quotidianos por ele já assumidos perante pensionistas em curso de atri‑
buição ou em curso de formação. Como notámos em momento anterior
(Cabral, 2010), para minimizar (que não impedir) a perda de receitas
ocorridas durante este período, foram identificadas algumas medidas,
como por exemplo, a entrada em vigor do regime de forma progressiva,
por escalões, ou a sua aplicabilidade a apenas novos subscritores ou com
idades inferiores a uma determinada (o que protelaria, repare-se, por várias
décadas a efetiva entrada em vigor do novo sistema, retirando-lhe eficácia
positiva imediata, ou seja, a atribuição pelo sistema público, de pensões
com limites máximos). Em alternativa (ou conjugadamente), impor-se‑
-ia o recurso a fontes alternativas de financiamento do sistema público
de repartição, para compensar aquela perda de receitas. Acontece que
tais fontes alternativas implica(ria)m, em qualquer caso, o agravamento
da carga fiscal (v.g., aumento do IVA) ou o recurso à dívida pública,
soluções, como se vê, sempre de difícil exequibilidade, sobretudo em
circunstâncias marcadas por sobrecarga fiscal ou por excesso de dívida
pública, como é a circunstância atual (afigurando-se designadamente
inusitado procurar resolver o problema da dívida implícita à custa da
emissão de nova dívida expressa, ou seja, transferindo, de igual modo,
para as futuras gerações o encargo a ela associado).
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 383
iii) Sustentabilidade e modelos de benefício definido ou de contri-
buição definida
Em contexto de benefício definido, os regimes de repartição assumem
que o benefício é o resultado do esforço contributivo e da dimensão da
carreira contributiva do beneficiário, e o cálculo da pensão obedece a
parâmetros estilizados (remuneração de referência por anos de carreira)
que, no final, determinam uma percentagem, maior ou menor, de subs‑
tituição do salário perdido pela pensão atribuída. Se os parâmetros são
fixos, porque previamente definidos na lei (vide supra), então a taxa de
substituição também é fixa (no sentido de determinável). Da forma como
são previstos estes parâmetros resulta a adesão da pensão à realidade
(contributiva): se a regra legal disser que a remuneração de referência
(RR) é a média das dez melhores remunerações dos últimos quinze anos
de carreira, a adesão à realidade será porventura menor do que se essa
remuneração corresponder à média de todas as renumerações obtidas
ao longo da vida ativa. Em certos casos, as regras são muito generosas
e a adesão à realidade (contributiva) é fraca: atribuem-se pensões que
sobrevalorizam o esforço contributivo e a dimensão da carreira contri‑
butiva. Isto é mais fácil de acontecer em contextos de repartição do que
de capitalização, pela própria natureza do financiamento: como afirmam
Barr e Diamond (2010, p. 32), uma das implicações dos regimes de
repartição é que estes relaxam a obrigação de que os benefícios sejam
cobertos pelas contribuições, diríamos mais, que os benefícios reflitam
efetivamente o esforço contributivo.
Em contrapartida, no entanto, os sistemas de repartição procedem à
redistribuição intergeracional, alisando esforços contributivos diferen‑
ciados ao longo do tempo, num jogo intertemporal que se pretende de
soma nula, ainda que em certos momentos ou circunstâncias uns possam
beneficiar mais do que outros. Isto é especialmente evidente nos momentos
iniciais, desde logo quando o sistema se inicia ou se expande, em que
mecanismos de redistribuição intergeracional operam fundamentalmente
em favor de trabalhadores mais velhos ou já pensionistas. Na verdade,
quando, após a II Guerra Mundial, se generalizaram na Europa os sis‑
temas públicos de repartição, os primeiros anos de implementação do
sistema foram marcados pela sua “imaturidade”. Carreiras contributivas
inexistentes ou curtas conviviam com a necessidade de atribuir pensões
aos mais idosos. Estes – os da geração de entrada mais velha – benefi‑
ciaram assim de um sistema para o qual praticamente não haviam con‑
384 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
tribuído, ou seja, beneficiaram, nas palavras de Schokkaret e Van Parijs
(2003, p. 254), de um “almoço grátis” (Para os autores, houve contudo
um bom fundamento para que assim tivesse acontecido (Schokkaret
& Van Parijs, 2003, p. 254): é certo que esta geração beneficiou da
criação do sistema de pay-as-you-go, mas fora ela também que mais
pesadamente havia sofrido os efeitos da Guerra). Financiar este almoço
foi possível graças à existência de coortes alargados (de número superior)
de população jovem, ativa e com acesso crescente ao emprego. Assim
sendo, neste contexto, de bonança económica e demográfica, a partilha
de riscos entre gerações – elemento imanente ao sistema pay-as-you-go
– ditou que fossem os coortes de população ativa mais nova a suportar
o sistema e a assumir este primeiro risco ou se se quiser, melhor, esta
vicissitude (forem eles como que os “perdedores” deste momento inicial,
de “abertura” do sistema). Em todo o caso, repare-se que à medida que
o sistema foi amadurecendo – ou seja, à medida que as carreiras médias
se tornaram progressivamente maiores – tudo o resto constante (ou seja,
taxas de crescimento significativas e renovação geracional), então os
equilíbrios foram-se obtendo e todos passaram a “vencedores”, ou seja,
a beneficiar equitativamente do sistema instituído. A alteração posterior
dos pressupostos económicos e demográficos (num sentido negativo)
implicou, contudo, que carreiras contributivas longas deixassem de bastar
para assegurar, no longo prazo, os referidos equilíbrios, determinando
neste caso uma nova classe de perdedores: as gerações futuras seriam
invariavelmente confrontadas com taxas de substituição mais baixas
(pensões mais reduzidas em termos nominais), se nada fosse feito no
presente, por exemplo, reformas na segurança social que poderiam no
limite implicar reduções permanentes aos valores de pensões em curso de
atribuição. A opção mais definitiva e quiçá mais lógica, para resolver esta
rutura, seria tão só a de “fechar” o sistema de repartição, substituindo‑
-o total ou parcialmente pelo de capitalização – e assim aproveitando,
além disso, as propriedades multiplicativas do capital financeiro. No
entanto, a ser este o caso, como vimos antes, seriam as gerações ativas
de saída a “perder” mais, se calhar de forma irreparável, pois teriam de
suportar os custos de transição, financiando simultaneamente a pensão
dos inativos (em repartição) e a sua componente de pensão a formar-se
em capitalização.
Acima de tudo, apesar dos problemas notados de sustentabilidade, a
ideia de repartição mantém alguns dos seus principais atrativos (desde
logo, a existência de mecanismos de solidariedade entre gerações) e, de
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 385
certa forma, ela incorpora uma visão não catastrofista, uma esperança
em relação ao futuro. O regime de repartição poderá sobreviver (se essa
for a vontade política prevalecente), mas incorporando-lhe elementos
que impliquem uma melhor partilha de riscos pelas várias gerações
envolvidas. Assim, de duas formas diferentes:
––Uma primeira forma consiste em reforçar a “adesão à realidade” pelo
sistema, procurando que o valor da pensão reflita verdadeiramente
o esforço contributivo, prevenindo fenómenos de “manipulação
estratégica” das carreiras contributivas, o que sucede por exemplo
quando a média de salários relevante para a determinação da RR seja
apenas a dos últimos anos de carreira (levando a subdeclaração dos
salários nos primeiros anos e a sobredeclaração nos últimos). Foi
o que foi feito entre nós, em 2002 e depois em 2007 (Decreto-Lei
n.º 35/2002, de 19 de fevereiro, e Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de
maio), quando se passou a considerar toda a carreira contributiva na
determinação dessa RR e assim fazendo refletir melhor no valor da
pensão o esforço contributivo realizado durante a vida ativa. Neste
caso, porém, não se abandona a lógica do benefício definido – antes
pelo contrário – e a taxa de substituição (das remunerações pelas
pensões) mantém-se fixa, pois que determinável. Se é verdade que
este sistema é justo numa ótica de justiça comutativa, também é
certo, como dissemos, que ele cria desequilíbrios geracionais quando
se alteram os referidos pressupostos económicos e demográficos,
onerando especialmente os atuais e futuros contribuintes e vem
alertar para a impossibilidade futura de manter taxas de substituição
quase integrais (Hoje em dia, para carreiras contributivas máximas
e RR médias, as taxas de substituição atingem os 80%), logo, para
a sua eventual progressiva redução;
––Outra forma consiste, ao invés, em prever a determinação flexível
das pensões, já não apenas em função do esforço contributivo e da
duração das carreiras contributivas, mas de outros fatores, voláteis,
mormente de ordem económica (v.g., crises) ou demográfica (v.g.,
quebras de natalidade). Esta adaptabilidade permite, curiosamente,
que o sistema de repartição continue a exercer a sua habitual função
de partilha de riscos e de justiça intergeracionais, mas agora já não,
necessariamente, à custa da compensação de esforços contributivos
diferenciados ao longo do tempo, favorecidos pela maturidade
crescente do sistema. Quando se entra em velocidade de cruzeiro
386 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
e o crescimento económico abranda, verifica-se, pelo contrário,
que a justiça intergeracional e a própria sustentabilidade não só
já não dependem da maturidade do sistema, nem da longevidade
média das carreiras, como podem até, paradoxalmente, ser postas
em causa por essa mesma maturidade [a este respeito veja-se o
estudo de Fall (2014), em que se simulam os efeitos de um cho‑
que negativo, de natureza económica (choque de produtividade)
e de natureza demográfica (choque migratório e envelhecimento)
sobre modelos de benefício definido e de contribuição definida
(ambos em repartição), concluindo-se pela maior robustez dos
segundos]. Por isso, a partir daqui – recorde-se Rawls (1993) –,
torna-se difícil exigir uma “poupança positiva” por parte da geração
anterior, a ser transmitida à(s) seguinte(s). [O último estádio de
desenvolvimento coincide na verdade, em Rawls (1993, p. 232),
com o último estádio em que a poupança positiva é exigida – pois
esta é fase de concretização de uma sociedade justa (instituições
justas concretizadas) –, e em que apenas por razões de aumento da
riqueza material (e não de justiça) se pode continuar a exigir esse
esforço de poupança.] Apenas se pode exigir a não delapidação do
adquirido (nomeadamente com encargos transmitidos que provo‑
quem a erosão das poupanças existentes). A deriva dos modelos
de benefício definido para modelos de contribuição definida (ou
para modelos mistos), em contexto de repartição, ao ajustar as
pensões à produtividade e à renovação geracional, significa afinal
isto: no estado de velocidade de cruzeiro, as gerações presentes
prescindam de legar às gerações futuras encargos marginais com
pensões superiores àqueles que elas próprias tiveram de suportar
e que, em certas alturas (de retração económica severa), admitem
mesmo vir a receber, temporariamente, pensões de valor inferior,
em termos nominais absolutos. Com base neste quadro filosófico,
diversos países da OCDE, seguindo o exemplo sueco pioneiro,
têm introduzido os chamados “mecanismos automáticos de ajus-
tamento”, que são, no fundo, adaptações dos parâmetros de cál‑
culo e de atribuição das pensões (vide supra) às contingências da
economia e da demografia (sobre tema, veja-se Fall & Bloch,
2014). Repare-se, por outro lado, que o recurso a mecanismos
automáticos de ajustamento implica ainda o seguinte:
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 387
i) O reconhecimento de que as “reformas” da segurança social (e
do seu sistema de pensões) são necessariamente incertas e às
vezes extemporâneas quanto aos seus resultados, e que melhor
do que estar a reformar permanentemente a segurança social, é
preferível aceitar o seu caráter volátil, dando-lhe elementos de
flexibilidade que lhe permitam adaptar-se, automaticamente, em
cada momento, às alterações de circunstâncias;
ii) Mau grado a importância das projeções de longo prazo, nomea‑
damente para a definição das tendências que envolvem as prin‑
cipais variáveis relevantes nos sistema de pensões, os cenários
de base respetivos partem sempre do comportamento, todos os
anos e em cada um dos anos, das variáveis que condicionam o
sistema (crescimento económico, emprego, desemprego, salários,
etc.) ou que lhe são imanentes (cobrança de receita e realização
de despesa), e isso implica alterações recorrentes das próprias
projeções.
Musgrave (1981) traçou uma tipologia com quatro modalidades de
provisão de pensões (Quadro 4) que consideramos manter toda a sua
atualidade – desde logo porque em algumas delas encontramos elemen‑
tos de benefício definido, noutras elementos de contribuição definida, e
porque aí se encontra também uma proposta de síntese, inovadora, que
hoje nos deve merecer a maior atenção.
A primeira modalidade, de “provisão ad hoc”, é dificilmente conce‑
bível entre nós, nomeadamente porque ela pode pôr em causa princípios
de segurança jurídica – na vertente da tutela da confiança – que estão
subjacentes à atribuição de pensões, fixadas segundo regras legislativas
de cálculo. Trata-se, como dissemos antes, de prestações associadas a
direitos com uma especial densidade. Os cortes recentemente verifica‑
dos no valor das pensões só foram aceites pelo Tribunal Constitucional
durante um período de tempo transitório e tolerou-se então a restrição
do direito, dadas as circunstâncias excecionais, de necessidade financeira
por que o país passava. Agora, pretender deixar ao entendimento da
maioria (expresso no governo em funções) o valor das pensões a pagar
em cada momento e aceitar, nomeadamente, reduções nominais destas,
ainda que com o argumento (usado habitualmente) do reforço da susten‑
tabilidade da segurança social, não parece ser, ainda assim, aceitável à
luz do quadro jurídico-constitucional aqui vigente. De seguida, as duas
388 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Quadro 4 – As modalidades de provisão de pensões segundo Musgrave (1981)
Taxa de Taxa de substitui-
Provisão ad hoc Posição fixa relativa
substituição fixa ção ajustável
Em cada período, A pensão substitui, A pensão substitui As contribuições e os
são os eleitores em termos fixos, o o valor de remune‑ benefícios (pensões) são
que escolhem o valor de remuneração ração obtido até aí, estabelecidos de modo
nível de provisão a obtido até aí. sem prejuízo de ajus‑ a manter, em níveis
conceder aos seus tamento (infra). constantes, o rácio dos
pensionistas. benefícios per capita
dos pensionistas em
relação aos rendimentos
per capita dos trabalha‑
dores no ativo.
Elementos de Elementos de ajus‑ Elementos de ajus‑ Elementos de ajus‑
ajustamento: não tamento (perante tamento (perante tamento a alterações
relevante. alterações demográ‑ alterações no cres‑ demográficas ou do
ficas): cimento económico crescimento económico:
como a taxa de subs‑ ou produtividade): a uma vez estabelecido o
tituição das pensões taxa de substituição rácio supra (de acordo
em relação aos salá‑ pode ser ajustável, com a proposta de Mus‑
rios é fixa, o elemento para permitir que os grave, o rácio seria de
de ajustamento será a pensionistas possam 0,33), as taxas de con‑
taxa de contribuição a tirar dividendos do tribuição e de substitui‑
suportar pela geração aumento da produti‑ ção seriam ajustáveis, se
ativa (ajustamento vidade ou, pelo con‑ necessário, em reposta
pela lado do financia‑ trário, sofrer reduções às alterações demográ‑
mento – v.g., contri‑ quando a produtivi‑ ficas e de produtividade,
buições ou impostos) dade decai. para manter aquele rácio
inalterado. Assim, res‑
postas a alterações
demográficas, far-se‑
-iam pelo lado da con‑
tribuição (aumento ou
diminuição do esforço
contributivo), mas sem
que as taxas de subs‑
tituição dos benefícios
fossem alteradas; res‑
postas a alterações da
produtividade ocorre‑
riam pelo lado da taxa
de substituição dos
benefícios, mas sem que
a taxa de contribuição
sofresse alteração.
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 389
modalidades intermédias, de “taxa de substituição fixa” e de “taxa de
substituição ajustável”, traduzem a transição de um sistema de benefício
definido, para outro com elementos de contribuição definida. Por fim, a
modalidade de “posição fixa relativa”, que o autor acaba por subscrever,
é peculiar por procurar manter o sistema de pensões numa espécie de
estado estacionário, promovendo em simultâneo a sua sustentabilidade
atuarial e financeira, mas também a justiça intergeracional, através de
um adequado sistema de partilha de riscos entre gerações.
Dada a sua originalidade e interesse, e ainda pelo facto de esta última
modalidade não se limitar a consubstanciar uma deriva do sistema de
benefício definido para o de contribuição definida, antes indo num sen‑
tido diferente, valerá a pena equacionar a sua transposição para o caso
português. Trata-se de uma opção de diferente sentido relativamente às
demais modalidades referidas, sobretudo por duas razões. Em primeiro
lugar, porque a “posição fixa relativa” vem abandonar o elemento-chave
subjacente à distinção entre benefício definido e contribuição definida,
que é como vimos o elemento “taxa de substituição das pensões” – taxa
de substituição fixa no primeiro caso, taxa flexível, no segundo. Aqui,
diversamente, o elemento-chave é o da relação entre rendimentos das
diferentes gerações envolvidas, assentando precisamente num equilíbrio
tenso e estável nessa relação. Em segundo lugar, porque as reações ao
impacto dos fatores demográfico e económico sobre o sistema de pensões
são diferentes, quer quanto à geração que deve protagonizar a reação (os
trabalhadores no ativo ou os pensionistas), quer quanto ao “lado” pelo
qual se opera a adaptação às novas circunstâncias – nuns casos, pelo
“lado” do financiamento (adaptação pela via contributiva ou fiscal), nos
casos, pelo lado das prestações/pensões (adaptação pela via prestacional),
estejam elas em atribuição ou em formação.
O ponto de partida está em definir o estado estacionário que corres‑
ponda a um rácio estável entre rendimentos das sucessivas gerações (por
exemplo, de 1/3), que permite sinalizar se, quando e com que intensidade,
em virtude da ocorrência daqueles fatores demográficos ou económicos,
as desigualdades intergeracionais se acentuam, pondo em causa o estado
estacionário inicial. Para isso, haveria que definir um mecanismo (trigger),
destinado a ser acionado sempre que fatores daquela índole viessem a
penalizar os rendimentos de uma das gerações envolvidas, deteriorando
a relação. Como demonstra a figura 2, as formas de reação são diferentes
consoante a natureza do choque. Por outro lado, os parâmetros envolvidos
estão pensados para responder automaticamente, logo que acionado o
390 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Figura 2 – A transposição da “posição fixa relativa de Musgrave”
para o sistema de pensões português
Demografia Rácio entre benefícios per capita Economia
v.g., Aumento da esperança dos pensionistas e rendimentos per v.g., Desemprego/
média de vida capita de trabalhadores no ativo. /menor cobrança de receita
Resposta pelo lado das contri‑ Resposta pelo lado das pen‑
buições (alguns parâmetros): sões (alguns parâmetros):
– Aumento das taxas contri‑ A) Pensões em atribuição
butivas; – Alteração das regras de
– Diversificação das fontes de atualização das pensões (v.g.,
financiamento; em vez de inflação – IPC,
– Aumento da idade de acesso atualização de acordo com
à pensão (relacionando-a o crescimento do PIB, ou
por exemplo com factores tendo em conta ambos)
de sustentabilidade – como – Criação de buffers no sis‑
sucede atualmente na lei); tema de segurança social,
– Garantia da neutralidade geridas em capitalização
atuarial das pensões (v.g., (alimentadas a partir de
penalização do acesso ante‑ receita fiscal obtida com a
cipado à pensão). tributação de pensões, maior
em períodos de crescimento
e destinada a compensar
menor receita em períodos
de recessão)
B) Pensões em formação
– Revalorização da base de
cálculo: v.g., salários em vez
de inflação, ou ambos em
função das contingências
– Alteração das taxas anuais
de formação das pensões,
que podem também ficar
dependentes da evolução da
produtividade/crescimento
trigger, pelo que devem ser, desde logo, muito bem estimados e cali‑
brados pelo decisor, prevenindo nomeadamente incursões legislativas
subsequentes que poderiam ser consideradas arbitrárias. Como se vê
assim na figura, que segue de perto Musgrave, sempre que ocorresse um
fator de ordem demográfica (v.g., aumento da esperança média de vida),
a reação operaria sobretudo pelo lado das contribuições – seriam pois os
trabalhadores no ativo (a geração dos futuros pensionistas) a suportar as
consequências dessas alterações demográficas (negativas). Por sua vez,
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 391
no caso de alterações na taxa de crescimento da economia, com impacto
desde logo a nível da cobrança de receita contributiva pela segurança
social, deveriam ser os pensionistas, desde logo os pensionistas em atri‑
buição, a “suportar” essa contingência, nomeadamente fazendo acionar
as regras (automáticas) de atualização de pensões, que permitiriam por
exemplo, nos casos graves de recessão económica, diminuição (temporária)
de pensões em pagamento, ou pelo menos de algumas delas. [Repare-se
que atualizações “negativas” de pensões, apesar de problemáticas, não
colocam os mesmos problemas de constitucionalidade, nomeadamente
quanto a uma eventual violação do princípio da segurança jurídica, na
vertente da tutela da confiança. Isto é assim porquanto estas regras, pela
sua própria natureza, apenas dispõem para futuro, ao contrário do que
sucede quando se pretende recalcular a posteriori pensões em atribuição,
ou fixar-lhes limites máximos de forma permanente. O Tribunal Cons‑
titucional, no Acórdão n.º 862/2013, de 7 de janeiro de 2014 (Processo
n.º 1260/13), declarou a inconstitucionalidade de normas que justamente
implicavam o recálculo a posteriori de pensões em atribuição, e assim
com o fundamento na violação do princípio da tutela da confiança. De
qualquer forma, apesar de não colocar este tipo de problemas com a mesma
intensidade, a admissibilidade de atualizações “negativas” do valor das
pensões não deixa de exigir cautelas e impor salvaguardas. Como disse‑
mos num comentário justamente ao Acórdão referido (Cabral, 2014b),
essas salvaguardas deverão ser pelo menos as seguintes: i) Diferenciação
positiva: as atualizações “negativas” de pensões devem salvaguardar as
de valor mais baixo e fariam sentir os seus efeitos de forma progressiva
em razão do valor da pensão; ii) Limitação temporal para as atualizações
negativas (por exemplo, não podendo haver uma perda no valor da pen‑
são por um período superior a três anos consecutivos); iii) Ajustamento
automático das pensões: assim, da mesma forma que os “maus anos”
económicos, financeiros, demográficos, relevam negativamente no valor
das pensões, também os “bons anos” devem traduzir-se em aumentos de
pensões, em conformidade; iv) A medida deve ser o mais consensualizada
possível, para poder ser acolhida com estabilidade, impondo-se assim
a sua negociação prévia, mormente em sede de concertação social.] De
notar, por fim, que estes dois fatores – demográfico e económico – podem
concorrer em simultâneo, obrigando a reações de ambos os “lados”, ou
podem, pelo contrário, neutralizar-se.
Verifica-se, por conseguinte, pela sua capacidade de adaptação às
diversas contingências que concorrem para a formação e atribuição de
392 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
uma pensão (de velhice), que um modelo deste tipo está disposto a dar
uma resposta satisfatória aos “desafios” da sustentabilidade e ao mesmo
tempo a promover a justiça intergeracional no seio do sistema de pensões,
garantindo uma partilha de custos e benefícios mais equilibrada entre as
gerações envolvidas. A ideia de definir o tal estado estacionário como
rácio estável entre rendimentos das sucessivas gerações permite instru‑
mentalizar os parâmetros fundamentais que concorrem para a formação
e atribuição de uma pensão, ponderando-os pela sua importância relativa
e sobretudo permitindo a sua adaptação, de forma a garantir que todas
gerações possam partilhar, nos seus rendimentos relativos, eventuais
custos demográficos, tecnológicos e outros, mas também aproveitar,
nesses mesmos rendimentos e na mesma razão, os benefícios associados
eventualmente a uma maior produtividade futura.
4. Notas conclusivas
No presente Capítulo, começámos por relacionar o conceito de sus‑
tentabilidade com o princípio da justiça intergeracional. Dissemos que,
na segurança social, a ideia de justiça entre gerações tem sobretudo
uma relevância financeira (e pode ser calculada, estimando-se custos e
benefícios que são transmitidos às futuras gerações). Assim, no domínio
da segurança social, a justiça intergeracional encontra a ideia de susten‑
tabilidade e acaba por dissolver-se nela.
Falar em sustentabilidade da segurança social significa sobretudo falar
em sustentabilidade do seu sistema de pensões e, em certos casos (no
contexto de regimes pay-as-you-go), implica falar da sustentabilidade
da dívida (implícita) associada. A relevância dos direitos das gerações
envolvidas faz-se aqui, entre nós, mediante a distinção entre pensões em
atribuição (correspondendo aos chamados “direitos adquiridos”) e pensões
em formação (equivalentes aos “direitos em formação”). O “tempo” dos
direitos na área da segurança social integra o curto prazo, mas abrange
também já o médio/longo prazo, pois tratam-se de direitos de formação
longa no tempo e de concessão duradoura. Existem contudo outros “tem‑
pos” relevantes, os tempos da formulação da política e o da investigação.
Ambos podem e devem corresponder a um horizonte alargado, mas para
efeitos de tomada de decisão que responsabilize decisores perante as
gerações futuras, impõem-se limites temporais, os quais são justifica‑
dos pela utilidade da decisão, sua razoabilidade e pelas possibilidades
técnicas dos instrumentos analíticos que as sustentam.
A SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL 393
Em relação ao “tempo” dos direitos, afirmámos que as pensões cor‑
respondem a direitos sociais especialmente densos, pelo que elas devem
merecem ser tuteladas perante incursões do decisor, ainda que apoiado na
maioria, nomeadamente incursões gravosas que impliquem por exemplo
reduções nos montantes atribuídos. A crise recente veio exacerbar as
fragilidades do Estado e acabou por pôr tudo em questão, desde logo
os fundamentos do Estado de bem-estar: no limite, mesmo para direitos
dotados desta especial densidade, o retrenchment do Estado pode significar
a transformação de prestações vencidas em prestações sempre vincendas,
de direitos adquiridos em direitos em constante formação – em suma, a
transformação de “direitos” em “não direitos”.
Confrontada com este alegado problema de sustentabilidade, as pos‑
sibilidades de reforma da segurança social (e do sistema de pensões) têm
sido equacionadas em torno de três pares de opções, cada par antinó‑
mico entre si, opções essas que podem ser descritas de forma circular:
financiamento pela via contributiva ou pela via fiscal; repartição ou
capitalização; benefício definido ou contribuição definida. Nos últimos
anos – na sequência da implementação do modelo sueco de “contas
nocionais” –, é este último par que tem merecido maior atenção: discute‑
-se, por exemplo na OCDE, como podem ser introduzidos nos regimes
de repartição mecanismos automáticos de ajustamento às vicissitudes de
natureza demográfica e económica. Estes mecanismos automáticos, se
previamente bem definidos e calibrados na lei, substituem a necessidade
de reformas recorrentes na segurança social.
Nesta linha, recordámos as propostas pioneiras de Musgrave que,
nos idos anos oitenta, predestinavam já o debate que agora se faz, neste
princípio de novo século. Já então Musgrave confrontava, por exemplo,
duas modalidades do regime de pensões, de “taxa de substituição fixa”
e de “taxa de substituição ajustável”, na verdade embriões dos agora
denominados regimes de benefício definido e de contribuição definida.
Já então também, Musgrave equacionava uma modalidade alternativa, a
que denominou de “posição fixa relativa”, cujo aspeto peculiar residia no
facto de procurar manter o sistema de pensões numa espécie de estado
estacionário, promovendo em simultâneo a sua sustentabilidade atuarial e
financeira, mas também a justiça intergeracional, através de um adequado
sistema de partilha de riscos entre gerações. O nosso desafio derradeiro
consistiu então em procurar transpor este modelo para o contexto do
sistema atual de pensões português (que é basicamente de pay-as-you-
-go), e de avaliar o seu realismo e adequação jurídico-constitucional.
394 NAZARÉ DA COSTA CABRAL
Concluímos que alguns problemas de constitucionalidade poderiam ser
agora melhor enfrentados, nomeadamente quanto a uma eventual vio‑
lação do princípio da segurança jurídica, e desde que adotadas algumas
salvaguardas elementares.
Qualquer que seja a sua exequibilidade, o modelo demonstra uma
importante virtualidade: a de “olhar” para a segurança social em função
do estádio de produção de riqueza que a sustenta em cada momento.
Como sabemos, o contexto atual é de crescimento fraco (“velocidade de
cruzeiro”), e que por isso não pode exigir sacrifícios injustos e inusitados
às gerações futuras, gerações que, de resto, desde já se apresentam. Esta
modalidade de “posição fixa relativa” permite, com efeito, assegurar
automaticamente a manutenção dos equilíbrios intergeracionais, através
de um trigger destinado a ser acionado sempre que fatores de natureza
demográfica ou económica possam penalizar os rendimentos de uma
das gerações envolvidas. Mas acima de tudo o modelo preserva a cadeia
pay-as-you-go, ou seja, as relações entre gerações sequentes, elos de
solidariedade e de responsabilidade, que implicam o reconhecimento
pragmático de que não é com isolacionismo geracional que se enfrenta
melhor aquilo que ainda não existe.
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Demografia, Migrações
e Sustentabilidade Intergeracional 1
Gonçalo Saraiva Matias*
1. Introdução
Portugal perde população por várias vias. Ao longo dos últimos anos
tem acumulado saldos migratórios e saldos naturais negativos.
Isto é, o país perde população por todas as vias possíveis: saem
anualmente mais pessoas do que as que entram e morrem mais pessoas
que as que nascem.
O saldo natural – a diferença entre o número de nascimentos e de
óbitos – permanece negativo, sensivelmente ao nível de 2013 e 2014,
em larga medida resultante de uma estrutura demográfica envelhecida.
Mas em 2015 verificaram-se mais 3,8% nascimentos que em 2014, razão
para clara celebração.
Já o saldo migratório, embora negativo, sofreu uma significativa
melhoria em resultado de uma diminuição muito relevante da emigração
– de 49 572 emigrantes permanentes em 2014 para 40 377 em 2015 – e
um aumento da imigração – de 19 516 imigrantes permanentes em 2014
para 29 896 em 2015.
* Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
(UCP), instituição onde concluiu a licenciatura, o mestrado e o doutoramento. É Vice‑
-Diretor da Escola de Lisboa da referida Faculdade e da Católica Global School of
Law. Realizou investigação como Fulbright Visiting Scholar na Georgetown University
Law School. Especialista em Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Internacional Público e Direito das Migrações. Foi consultor do Gabinete do Secretário
de Estado da Presidência do Conselho de Ministros do XV Governo Constitucional. Foi
Assessor para os Assuntos Jurídicos e Constitucionais da Casa Civil do Presidente da
República entre 2008 e 2014 e consultor da mesma Casa Civil desde 2014. Foi Diretor
do Observatório das Migrações. Foi Secretário de Estado Adjunto e para a Modernização
Administrativa do XX Governo Constitucional. É advogado e jusrisconsulto, sobretudo
nas áreas do Direito Público.
1
Os capítulos 2 e 3 foram publicados em Migrações e Cidadania, editado pela
Fundação Francisco Manuel dos Santos.
398 GONÇALO SARAIVA MATIAS
Porventura mais importante que estes números é a tendência que
eles revelam.
Em especial, quanto ao saldo migratório, após uma década de sal‑
dos positivos, a tendência inverteu-se a partir de 2011, tendo atingido
o pico negativo em 2012. Em 2013 verificou-se uma ligeira melhoria,
aprofundada em 2014, e muito significativa em 2015 (Fonte: Instituto
Nacional de Estatística).
É expectável um acentuado decréscimo da população nas próximas
décadas (Tal como confirma o recente estudo sobre demografia, editado
pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, “Migrações e Sustentabi‑
lidade Demográfica”, FFMS, 2017).
Este facto – em si mesmo grave do ponto de vista da sustentabilidade
de um país – torna-se trágico quando visto no contexto das sociedades
europeias, muito envelhecidas e com estados sociais pesados, cuja sus‑
tentabilidade depende, em larga medida, da renovação populacional.
A consideração de políticas demográficas passa, muitas vezes, pela
adoção de medidas de apoio à natalidade. Ora se, por lado, estas medidas
têm uma eficácia duvidosa, sobretudo as que possuem uma dimensão
exclusivamente financeira, por outro demoram décadas a produzir efeitos.
Sem descurar a componente da natalidade e do saldo natural, uma
política demográfica de sucesso não pode descurar a componente migra‑
tória por várias razões:
1. As políticas de natalidade não produzem efeitos a curto prazo,
podendo demorar gerações a fazer-se sentir;
2. A decisão de migrar ocorre, em regra, em idade reprodutiva, pelo
que a emigração produz um efeito negativo na natalidade;
3. Reversamente, a imigração produz um efeito positivo na natalidade
pelas mesmas razões, a que acresce o facto estatístico de, em média,
os imigrantes terem mais filhos que os portugueses;
4. A imigração, de acordo com os estudos disponíveis, tem um impacto
positivo nas contas públicas, no equilíbrio da segurança social e,
em geral, na economia;
5. A política migratória, num mundo de migrações circulares, permite
fixar os cidadãos nacionais e promover o retorno dos que tenham
deixado o País.
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 399
Esta lógica esteve presente na elaboração do Plano Estratégico para
as Migrações, aprovado há pouco mais de um ano e atualmente em vigor
para o período 2015-2020.
Este Plano e as políticas que lhe estão subjacentes têm como principal
objetivo atingir o resultado que os números atuais revelam: debelar o
défice natural e migratório e inverter o movimento de saída de cidadãos
portugueses.
Não significa isto, claro, que a melhoria destes défices se deva exclu‑
sivamente ao referido Plano, mas eles revelam a tendência e a vontade
política, transversal aos diversos Governos.
Sem motivos para euforia, estes números constituem, essencialmente,
um estímulo para que continuemos na direção certa, conscientes de que,
com sanções ou sem elas, boa parte do nosso futuro se joga no tema da
demografia.
2. Política migratória
O fenómeno migratório tem sofrido profundas alterações ao longo da
sua história. Desde logo, são conhecidas as migrações forçadas decor‑
rentes de catástrofes naturais ou de guerras e conflitos entre povos, de
que são exemplo os milhões de deslocados na Segunda Guerra Mundial.
Depois, as migrações laborais motivaram deslocações em massa de
pessoas, num movimento conhecido como Sul – Norte, consubstanciando,
essencialmente, a procura por parte dos trabalhadores migrantes de melho‑
res condições de trabalho e de vida, deixando países em desenvolvimento
e fixando-se em países desenvolvidos.
Finalmente, a globalização trouxe consigo uma alteração sem pre‑
cedentes do fenómeno migratório e uma radical alteração dos diversos
perfis migratórios.
Na verdade, a crescente mobilidade, acompanhada de maior consciência
das assimetrias nacionais, levou ao desejo concretizável de deslocação
de pessoas. Estes movimentos têm na base motivações muito diversas.
Assim, o fenómeno migratório deixou de se central na migração laboral
em sentido Sul – Norte para passar a representar uma rede muito mais
complexa de circulação de pessoas, assente em fatores como a migração
económica, de consumo e de talento.
Esta realidade foi em grande parte potenciada também pela globa‑
lização dos mercados, das empresas, da sociedade de informação. Um
fenómeno relativamente comum dos dias de hoje é a formação das
400 GONÇALO SARAIVA MATIAS
chamadas “comunidades de expats”, jovens profissionais e altos qua‑
dros de empresas multinacionais que deixam os seus países de origem,
em geral países desenvolvidos, para residirem, trabalharem, investirem
ou prestarem os seus serviços em países em desenvolvimento cujas
oportunidades para estes profissionais se apresentam muito promis‑
soras. A esta realidade não é alheia também a expansão de grandes
empresas multinacionais que promovem a circulação dos seus quadros
enquanto estratégia de crescimento interno e de valorização dos recursos
humanos.
Como concluiu a OCDE (International Migration Outlook 2013) no
seu relatório sobre as migrações no mundo, o fenómeno migratório dei‑
xou de se centrar no fator trabalho para passar a resultar de elementos
tão distintos como o capital humano e o investimento.
É certo que estas alterações profundas têm também impacto na
sociologia das migrações. O fator-chave para a boa gestão dos fluxos
migratórios deixou de ser apenas a relação entre as migrações e o mer‑
cado de emprego, a integração dos imigrantes e das suas gerações de
descendentes ou o debate sobre o multiculturalismo ou a assimilação. Os
novos fenómenos migratórios exigem dos Estados uma política de cap‑
tação de imigrantes qualificados, de par com a captação de investimento
estrangeiro. A interligação entre estas realidades é umbilical: de nada
serve a um Estado criar condições – fiscais e outras – de investimento
se depois as empresas multinacionais encontrarem obstáculos – não
apenas laborais – à promoção da circulação do seu capital humano. Isto
sem descurar a importância fundamental das políticas de integração dos
imigrantes que já se encontram nos países de destino e que aí decidiram
construir a sua vida.
Outra consequência sociológica está relacionada com a menor difi‑
culdade de integração desta nova migração, em geral mais informada e
de maiores recursos. O reverso desta realidade é que raras vezes estes
migrantes têm a intenção de se fixar nos países de destino. Isso é par‑
ticularmente evidente nos casos da novíssima imigração Norte – Sul.
Trata-se de um desafio para os países de acolhimento, mas também de
uma oportunidade, terem de lidar com novos migrantes que o são, assu‑
midamente e por opção própria, a prazo.
Esta realidade exige políticas migratórias adequadas que preservem os
interesses dos países de destino sem, contudo, descurarem os incentivos
corretos a este grupo de migrantes muito volátil que podem facilmente
escolher outra paragem para aplicar as suas qualificações.
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 401
Atualmente, a complexidade do fenómeno migratório é, assim, muito
maior que no passado. Isto porque aos novos desafios do capital humano
se somam os velhos problemas da integração das comunidades migrantes
e seus descendentes que continuam a viver e a trabalhar nos países de
acolhimento.
Uma discussão muito presente nos debates sobre migrações e o seu
impacto nos países de origem e de destino dos migrantes diz respeito à
chama “fuga de cérebros” ou brain drain.
Esta realidade coibiu, de resto, os países desenvolvidos de estabelecerem
políticas mais “agressivas” de captação de capital humano, na medida
em que se instalou a convicção de que essas políticas se faziam à custa
da perda de competências e de valor nos países mais necessitados deles.
A análise da realidade portuguesa revela-se especialmente rica para
o estudo deste fenómeno, na medida em que Portugal, nos últimos cin‑
quenta anos, alterou de forma acentuada e em sentidos diversos o seu
perfil migratório. De um país de fortíssima emigração nos anos 60 do
século xx passou a um país de elevada imigração nos anos 90 e, final‑
mente, a um país de moderada emigração no final da primeira década
do século xxi. Esta realidade encontra-se bem presente na evolução do
saldo migratório do país.
A análise sociológica destas alterações é também muito interessante.
A emigração dos anos 60 era essencialmente de perfil indiferenciado
e de baixas qualificações. A imigração dos anos 90 destinou-se a tra‑
balho indiferenciado e de baixa exigência de qualificação, sobretudo
no setor da construção. Verificou-se contudo, que o perfil de alguns
destes imigrantes, sobretudo os provenientes do Leste europeu, apre‑
sentavam elevadas qualificações, das quais, salvo raras exceções, o
país não beneficiou, verificando-se, em certa medida, um desperdício
de potencial brain gain. Finalmente, a nova emigração é altamente
qualificada, podendo enquadrar-se, boa parte dela, na categoria dos
expats acima identificada.
Ora, o que revelam os dados mundiais e os estudos realizados é que,
ao tradicional brain drain decorrente das migrações laborais permanentes,
sucedeu o chamado brain circulation, associado aos novos fenómenos
migratórios temporários e assentes na globalização (Daugeliene &
Marcinkeviciene, 2009).
As políticas públicas migratórias têm em conta estes fenómenos, a
corrida mundial pelo talento, bem como o perfil migratório que possuem
e que desejam possuir. Exemplos de países que conseguiram inverter o
402 GONÇALO SARAIVA MATIAS
seu perfil migratório na última década através de políticas migratórias
ativas são Taiwan e a Coreia do Sul que investiram fortemente no retorno
dos seus emigrantes qualificados (Shachar, 2006, p. 167).
Com efeito, a experiência destes países demonstra que a inversão
das tendências de emigração depende de políticas ativas de captação de
imigrantes. Num mundo global de inclusão de movimentos de pessoas,
só a gestão integrada dos fluxos migratórios emigração/imigração permite
o desenho e implementação de efetivas políticas públicas migratórias.
Assim, a atracão de migrantes qualificados possibilita criar condi‑
ções, de investimento, empreendedorismo ou investigação, em enti‑
dades públicas ou privadas, para a retenção e reversão da emigração
de pessoas com elevadas qualificações. A este mecanismo chama-se
reverse brain drain, com resultados comprovados a nível internacional
(Shachar, 2006, p. 167).
Mesmo os países mais desenvolvidos apresentam hoje números ele‑
vados de população emigrante. Esta realidade decorre dos fenómenos
já identificados. Um jovem britânico com elevada formação pode hoje
encontrar desafios profissionais mais aliciantes em empresas a explorar
mercados como a Nigéria. Nada há de errado neste fenómeno. Pode
mesmo suceder que o referido jovem britânico trabalhe numa empresa
multinacional com sede em Londres e que a estadia na Nigéria faça
parte do seu plano de carreira e de desenvolvimento profissional.
Nenhum país democrático pode pretender regular os seus fluxos
migratórios de saída: a emigração é absolutamente livre. O único país do
mundo que assumidamente impede a saída dos seus cidadãos é a Coreia
do Norte, por razões nada recomendáveis.
Os países podem, é certo, regular os fluxos de imigração. Todavia,
deparamo-nos hoje com uma realidade muito diversa da que conhecemos
no passado.
Voltemos ao exemplo de Portugal. O saldo migratório atual é nega‑
tivo. Neste sentido, o país gostava – e necessitava – de estancar a saída
de população ao mesmo tempo que aumentava o número de imigrantes.
Só este movimento conjugado pode equilibrar o défice demográfico que
vimos sentindo.
Ora, encontrando-se Portugal juridicamente impedido – como é evi‑
dente – de impedir a saída dos seus cidadãos, e sendo a política migratória
essencialmente assente em mecanismos de exclusão, o Estado ficaria
absolutamente desprovido de instrumentos que lhe permitam inverter
este quadro.
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 403
A experiência internacional demonstra que uma situação deste tipo só
pode ser ultrapassada através de políticas públicas ativas que i) captem
imigrantes, ii) estanquem e revertam a saída de emigrantes.
As políticas públicas migratórias encontram-se, assim, no topo da
agenda demográfica. Só através delas os países desenvolvidos, em par‑
ticular da Europa ocidental, podem resolver o grave défice demográfico
que enfrentam, sendo o caso português especialmente preocupante na
medida em que se vem acentuando o défice democrático e o saldo
migratório negativo.
3. A regulação das migrações
Não existe uma autoridade mundial competente para regular as migra‑
ções, nem códigos ou tratados internacionais aplicáveis aos movimentos
migratórios. Na verdade, o direito internacional não tem cuidado do
fenómeno migratório como porventura deveria, tendo em conta o seu
caráter essencialmente global e transfronteiriço.
Os direitos dos migrantes são objeto de tratamento sobretudo no
quadro da proteção internacional dos direitos humanos podendo apontar‑
-se como exceção de um texto internacional dedicado aos direitos dos
migrantes a Convenção internacional sobre a proteção dos direitos de
todos os trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias que
praticamente não mereceu a ratificação dos países ditos desenvolvidos.
Este quadro de desregulação internacional das migrações assenta na
convicção há muito firmada de que a decisão de aceitar imigrantes se
encontra profundamente radicada na soberania dos Estados, sendo uma
decisão interna essencialmente livre.
Isto significa, pois, que o maior ou menor grau de regulação das
migrações depende das leis internas, uma vez que o direito internacional
não deve ser chamado a intervir numa área que se encontra abrangida
pela soberania dos Estados.
E compreende-se que assim seja. A decisão de receber um imigrante
tem impacto interno em diversos níveis e seria dificilmente compreensível
que os países abdicassem dessa decisão em favor da comunidade inter‑
nacional. Por outro lado, trata-se de um decisão essencialmente política,
pelo que caberá ao Estado definir que imigração pretende receber e em
que dimensão.
404 GONÇALO SARAIVA MATIAS
Sem prejuízo do que antecede, a política e a regulação migratórias não
são absolutamente livres. O direito impõe limites e restrições à regulação
interna das migrações.
Assim, por exemplo, um país não pode assentar a sua política migra‑
tória em regras discriminatórias ou violadoras dos direitos humanos e
dos princípios fundamentais de direito internacional.
Um país está impedido de estabelecer uma política migratória dis‑
criminatória, por exemplo, em função da etnia, da cor, da religião ou do
género. Qualquer destes exemplos deve ser cuidadosamente analisado
à luz do princípio da igualdade de modo a garantir que não existe uma
discriminação inadmissível.
Seria inaceitável que um país estabelecesse um embargo a imigrantes
de determinada etnia, por exemplo. Mesmo quanto à origem nacional
– um sistema de quotas em função do país de origem dos imigrantes –
tal constitui um método de seleção extremamente controverso que só
poderia ser admitido com base em fundamentos materiais muito sólidos,
como, por exemplo, a reiterada violação das leis de imigração por parte
de uma determinada comunidade de migrantes, o que é pouco credível
que aconteça. Em qualquer caso, a utilização de discriminações deve ser
evitada pelo grande potencial de violação de princípios fundamentais
que apresentam.
Há, por outro lado, situações de migrantes que podem justificar uma
limitação à decisão dos Estados na medida em que, não sendo cidadãos,
mantêm com aquele Estado uma relação que justifica a sua admissão
obrigatória.
É o caso das relações familiares próximas com imigrantes com
autorização de residência. A lei apelida este direito de “reagrupamento
familiar”. O direito ao reagrupamento familiar tem, todavia, consagrações
diversas. Goza de ampla proteção na Europa. Em Portugal encontra-se
salvaguardado quer por diretivas comunitárias já transpostas quer pela
lei interna, podendo mesmo ser considerado um direito fundamental de
origem legal.
O reagrupamento familiar consiste no direito do imigrante de trazer
para junto de si, no país de destino, a família mais próxima. Em geral
incluem-se neste conceito o cônjuge e os descendentes ou ascendentes
diretos, desde que dependentes ou a cargo do imigrante.
Todavia, excetuando as situações descritas, os países são livres de
estabelecer a sua política migratória. Isto mesmo é afirmado na citada
Convenção internacional sobre a proteção dos direitos de todos os tra-
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 405
balhadores migrantes e dos membros das suas famílias que no seu artigo
79.º estabelece que “nenhuma disposição da presente Convenção afeta o
direito de cada Estado Parte de estabelecer os critérios de admissão de
trabalhadores migrantes e de membros das suas famílias”. Significa isto
que os instrumentos de direito internacional existentes deixam bem claro,
mesmo em matéria de direitos humanos, que a decisão de admissão dos
migrantes compete a cada Estado.
Ainda assim, discute-se esta faculdade, sobretudo do ponto de vista da
filosofia política. Pode identificar-se uma tese designada por “fronteiras
abertas” que, recorrendo a argumentos poderosos da filosofia política e
moral, procura sustentar que as fronteiras não deveriam constituir um
obstáculo intransponível à decisão de um migrante de procurar outro
país para viver e trabalhar. Um dos expoentes máximos desta corrente
é o cientista político Joseph Carens (2013).
Joseph Carens refere-se às conceções que acabam por defender, embora
de formas diversas, o controlo de fronteiras e o direito dos Estados de
limitarem a imigração. Carens procura afastar os principais argumentos
em favor do controlo de fronteiras. Em primeiro lugar, entende que
quem estabelece as leis de imigração e cidadania – os cidadãos de uma
sociedade democrática – não se encontra numa posição legítima uma
vez que o seu poder resulta de uma atribuição arbitrária, por força de
critérios como o local de nascimento ou a descendência. Em segundo
lugar, procura afastar o argumento económico segundo o qual a imigra‑
ção implica uma redução no bem-estar dos cidadãos. Segundo Carens,
esta consequência dos movimentos migratórios não está demonstrada.
Todavia, ainda que fosse possível demonstrar uma tal realidade, seria
necessário, do ponto de vista de uma sociedade democrática e liberal,
assente na dignidade da pessoa humana, que o sacrifício dos cidadãos
fosse maior que o sacrifício imposto ao candidato a migrante, impedido
de entrar no Estado da sua escolha. Por fim, o argumento segundo o qual
a imigração coloca em risco a cultura dos Estados de acolhimento é, de
acordo com Carens, irrelevante na medida em que, a verificar-se, este
fenómeno não colocaria em crise os valores básicos de uma sociedade
democrática (Carens, 1987, pp. 334-9).
Esta corrente ignora, porém, as dificuldades do controlo dos movimen‑
tos migratórios. Uma política de “fronteiras abertas” pressuporia, para
evitar o resultado caótico de um mundo sem fronteiras, uma autoridade
mundial que regulasse os movimentos migratórios. O Estado que pra‑
ticasse uma política de fronteiras abertas enfrentaria o peso de o fazer
406 GONÇALO SARAIVA MATIAS
isoladamente no contexto mundial pelo que seria de esperar que o caos
se instalasse no seu território. Não é por acaso que nenhum Estado, nem
mesmo os mais “liberais”, adota uma política de “fronteiras abertas”.
Os argumentos esgrimidos pelos defensores desta corrente de pensa‑
mento têm, todavia, muito interesse para o estabelecimento da relação
entre imigração e cidadania. Ao colocar em causa a legitimidade dos
cidadãos para legislarem em termos restritivos sobre a admissão de
imigrantes defendendo, simultaneamente, o direito à cidadania, Carens
está a afirmar que a aquisição da qualidade de cidadão depende apenas
da decisão do imigrante (Carens, 1987, pp. 345). O direito à cidadania
aqui invocado por Carens resulta da adesão do autor à tese de Walzer,
segundo a qual um Estado com trabalhadores sem direito à cidadania
seria uma tirania (Walzer, 1983, p. 52).
Ora, a teoria de “fronteiras abertas” conjugada com o direito à cida‑
dania conduz à perda de controlo de um Estado sobre a sua população,
transferindo dos cidadãos para o imigrante a decisão sobre a aquisição
da cidadania. Carens procura afastar a crítica afirmando que a distinção
entre estrangeiros e nacionais continuaria a manter-se. Deve ser permitido
aos estrangeiros a adesão ao contrato social que lhes permite integrarem‑
-se como membros plenos de uma comunidade, uma vez cumpridas as
condições desse mesmo contrato.
Esta tese coloca algumas dificuldades de fundo. Desde logo, a ideia
de adesão ao contrato social pode hoje ser interpretada no sentido de
“imigração por contrato” que tem sido utilizada em sentido oposto ao
aqui defendido por Carens, justamente para afastar o direito à cida‑
dania. De acordo com essa tese, os imigrantes não poderiam reclamar
um direito à cidadania na medida em que, ao escolherem emigrar para
um Estado, aceitariam tacitamente as condições do contrato que esse
Estado lhes propõe e que podem incluir a recusa, temporária ou per‑
manente, da atribuição da cidadania. Segundo Hiroshi Motomura, os
imigrantes originários de meios mais pobres encontram-se em posição
especialmente vulnerável, aceitando quaisquer termos de admissão,
mesmo os méis humilhantes e degradantes, desde que considerem
que a sua entrada no país de acolhimento é mais vantajosa que a sua
permanência do país de origem. O poder negocial dos imigrantes é,
nestas circunstâncias, muito limitado (Motomura, 2006, p. 10). Mais
que permitir o acesso generalizado ao contrato social, parece determi‑
nante controlar as cláusulas desse contrato, uma vez que o imigrante
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 407
pode estar a vincular-se a condições que se venham a revelar, para ele,
eternamente desvantajosas.
Depois, a transferência da decisão de atribuição da cidadania dos
cidadãos para o imigrante é também problemática. Isto porque, do ponto
de vista dos interesses, a decisão alcançada por um grupo alargado de
pessoas, desejavelmente diverso e representativo, é necessariamente mais
democrática que a decisão tomada por uma só pessoa, além do mais,
diretamente interessada.
Esta tese apresenta grande proximidade com o “cosmopolitismo moral”
de Martha Nussbaum (1996, p. 3). Aqui o cosmopolitismo é visto como
forma de aproximação entre povos, de maior compreensão recíproca. Só
assim, nas palavras de Nussbaum, se poderia evitar a repetição de fenó‑
menos trágicos de ódio mundial como o nazismo ou, mais recentemente,
o terrorismo levado a cabo pelo fundamentalismo islâmico.
Além do cosmopolitismo moral, tem surgido recentemente uma cor‑
rente que podemos designar de “cosmopolitismo económico”. Esta teoria
olha para o fenómeno da imigração de um ponto de vista estritamente
económico para concluir que a única opção racional seria a de liberalizar
a entrada de trabalhadores estrangeiros nos países de acolhimento.
Com efeito, estudos recentes têm demonstrado que a imigração
produz um efeito favorável nas economias dos países de acolhimento
dos trabalhadores migrantes. A decisão de emigrar está, muitas vezes,
ligada às melhores condições de vida e de trabalho que os emigrantes
esperam encontrar nos países de acolhimento. Quando essa expectativa
se concretiza, o trabalhador migrante está a produzir valor acrescentado.
O efeito mais direto desse valor acrescentado faz-se sentir, naturalmente,
no poder aquisitivo e na qualidade de vida do próprio trabalhador migrante.
Todavia, os benefícios para os países de acolhimento e de origem são
também assinaláveis. As economias dos países de acolhimento bene‑
ficiam de mão de obra adicional, porventura inesperada, muitas vezes
a custos mais baixos que a mão de obra nacional. Beneficia, ainda, de
novos consumidores, uma vez que os migrantes, agora com maior poder
de compra, tenderão a integrar o mercado nacional. Os países de origem
beneficiam das remessas dos seus emigrantes, que muito contribuem para
o desenvolvimento das suas economias constituindo fontes relevantes de
receita nacional.
Esta teoria, marcadamente economicista, tem sido contrariada por outros
estudos que procuram negar os benefícios específicos na economia dos
Estados de acolhimento. Tem sido argumentado que o efeito económico
408 GONÇALO SARAIVA MATIAS
positivo da imigração apenas se repercute nas classes mais favorecidas
do país de acolhimento, que passam a poder utilizar serviços básicos a
preços mais baixos, ficando assim com maior rendimento disponível para
outras atividades. Concretamente, esse argumento procura demonstrar
que os empregos em competição entre imigrantes e nacionais são aqueles
que apenas seriam ocupados por nacionais menos qualificados. O que
significa que a imigração traria desemprego para os cidadãos pobres
e acréscimo de poder de compra para os cidadãos ricos. O exemplo é
clássico: um restaurante que contrata imigrantes, poderá servir refeições
mais baratas aos seus clientes, beneficiando aqueles que o utilizam com
frequência – tipicamente as classes privilegiadas – enquanto os cidadãos
mais desfavorecidos, trabalhadores desse restaurante, se veem na difícil
situação de optar entre o desemprego e trabalhar por salários substan‑
cialmente mais baixos, iguais aos que os imigrantes aceitariam para o
mesmo trabalho (Chang, 2006-2007).
Como demonstra Howard Chang, este argumento assenta em pres‑
supostos errados. Desde logo, seria necessário assumir que imigrantes
e nacionais competem pelos mesmos empregos. Esta assunção não é
verdadeira, uma vez que é sabido que há hoje, nas sociedades ociden‑
tais, muitos trabalhos que os nacionais não estão dispostos a fazer. Por
outro lado, o argumento assenta na presunção de que o efeito benéfico
na economia pode ser circunscrito a determinadas classes. Ora, ainda
que o efeito positivo da imigração se fizesse sentir apenas, numa
primeira fase, nas classes mais privilegiadas – os clientes habituais
dos restaurantes ou os passageiros dos táxis, etc. – rapidamente tal
efeito se contagiaria a toda a economia, uma vez que o maior poder
de compra dessas classes teria repercussões em todas as outras pela
maior disponibilidade que revelaria em realizar os seus consumos
habituais ou em expandi-los a outras áreas. Voltando ao exemplo do
restaurante, a concorrência entre estrangeiros e nacionais não se dá ao
mesmo nível. Os donos dos restaurantes preferem contratar nacionais
para empregados de mesa e imigrantes para o trabalho de cozinha.
Se esta opção se revelar mais económica – porque os empregados de
cozinha, sendo imigrantes, ganham menos que os cidadãos na mesma
posição, o restaurante poderá servir refeições a preços mais baixos
sem perder o lucro. Os clientes, por seu turno, podem tornar-se ainda
mais assíduos do restaurante. O aumento dos lucros por esta via pode
conduzir o dono do restaurante a expandir o seu estabelecimento ou
a abrir outros. Este movimento terá um efeito muito positivo na eco‑
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 409
nomia em geral, criando mais empregos para nacionais e estrangeiros.
É claro que tudo isto pode soar a economicismo ou neoesclavagismo.
Simplesmente a alternativa seria fechar as fronteiras?
O “cosmopolitismo económico” convive mal, todavia, com o reconhe‑
cimento de direitos aos imigrantes, em particular com o reconhecimento
do direito à cidadania. Parte de uma conceção economicista do mercado
e puramente liberal repugnando, por isso, o controlo preventivo da imi‑
gração bem como a concessão de benefícios sociais aos imigrantes. Em
particular, a atribuição da cidadania representará um desvio nesta teoria
uma vez que após a naturalização perde-se as vantagens económicas
reconhecidas, numa primeira fase, ao movimento migratório.
As diversas teorias “cosmopolitas”, favoráveis à eliminação dos
controlos fronteiriços dos fluxos migratórios, embora controversas pelas
razões expostas, colocam em evidência a relação existente entre imigra‑
ção e cidadania. Não é hoje possível pensar-se um debate sobre fluxos
migratórios sem ponderar seriamente as consequências que esses fluxos
e as conexas regras aplicáveis à imigração terão na reconfiguração do
demos no país de acolhimento. Isto porque é crescente a consciência – e
as teses “cosmopolitas” não a ignoram – de que não é possível pensar-se
a imigração desligada da cidadania, de que não é aceitável afastar-se os
imigrantes do acesso à cidadania do seu país de acolhimento.
Assim, torna-se incompreensível um certo abandono a que os Estados
têm votado as políticas migratórias. Já se viu que ao direito internacio‑
nal não repugna a ideia de soberania dos Estados na definição das suas
políticas migratórias. Por outro lado, a inexistência de uma autoridade
mundial que regule os movimentos migratórias torna ainda mais exigente
esta tarefa dos Estados.
Com efeito, a política migratória dos Estados, desenhada primacial‑
mente em função dos seus interesses internos, o que não se pode estra‑
nhar, deve ter em conta esses interesses mas também os do migrante e
das comunidades de origem.
Com efeito, como afirma Paul Collier (2013), alguma imigração é
melhor que nenhuma, mas deve ser procurado o seu ponto ótimo.
O debate sobre as migrações tende a ser profundamente emotivo e
raramente informado, extremamente marcado por preconceitos de parte
a parte que, no limite, de pouco servem para melhorar a situação dos
migrantes.
O ponto de partida deste debate deve assentar em alguns factos:
i) o direito dos Estados de controlo dos seus fluxos migratórios, ii) os
410 GONÇALO SARAIVA MATIAS
efeitos positivos das migrações nas contas públicas, iii) o efeito positivo
das migrações, em geral, nas sociedades de destino, de origem e para
os próprios migrantes, quer sob o ponto de vista material, quer sob o
ponto de vista imaterial, enquanto elemento enriquecedor da diversidade
cultural (2013).
Isto dito, do ponto de vista das políticas públicas e dos próprios Esta‑
dos são indesejáveis sistemas migratórios que recusem as migrações mas
também os que assentem na desregulação das migrações.
Os países com sistemas migratórios mais desenvolvidos – como a
Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia ou os Estados Unidos – investem
fortemente no desenho de políticas migratórias consistentes acompanhadas
de instrumentos administrativos adequados.
Tal significa que, ao invés de abdicarem de regular as migrações, os
países que mais apostam nesta área procuram aprovar mecanismos de
captação de migrantes aptos a prosseguirem uma correta política migratória.
O que vem de ser dito pressupõe a adoção e implementação de cri‑
térios de escolha (Carens, 2013).
À cabeça entre os critérios de exclusão surgem a segurança nacio‑
nal e a saúde pública. Assim, é legítimo aos Estados procederem a um
escrutínio e seleção dos candidatos a imigrantes em função do seu grau
de ameaça para a segurança nacional ou de risco para a saúde pública.
O problema deste critério, como bem alerta Carens, é que pode ser
facilmente manipulável e objeto de abusos. Por um lado, o critério da
segurança nacional não deve servir de pretexto para proceder a tratamentos
arbitrários e discriminatórios dos candidatos a imigrantes. O tema ganhou
grande relevo após o 11 de setembro, tendo os Estados reforçado o seu
controlo fronteiriço, até aí, em muitos casos, inexistente ou ineficiente,
com o propósito de controlar os movimentos de terroristas. Com efeito,
não obstante o declarado combate à imigração ilegal, foi o terrorismo e
não esta imigração que despertou os Estados para a importância do con‑
trolo das suas fronteiras. Todavia, a ligação entre imigração e terrorismo
é largamente despropositada na medida em que não só não há relação
entre ambos os fenómenos como a experiência demonstra que, em alguns
casos, os ataques terroristas são perpetrados por cidadãos nacionais, como
exemplos recentes no Reino Unido o comprovam.
Em todo o caso, é compreensível que os países elejam a segurança
nacional como critério de exclusão de candidatos a imigrantes. Na própria
União Europeia, no “espaço Schengen” (o Acordo de Schengen prevê a
abolição dos controlos fronteiriços, só podendo estes ter lugar em condições
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 411
excecionais), estes critérios são os únicos a poder justificar a reposição
de controlos fronteiriços ou a restrição ao direito de livre circulação.
O que já não se pode aceitar é que o critério tenha por base um pre‑
conceito étnico ou religioso. Não pode aceitar-se que o escrutínio seletivo
recaia especialmente sobre os membros de determinada etnia ou religião
com base no preconceito da pertença a organizações terroristas. Não por
acaso, as autoridades dos Estados Unidos realizam nos seus pontos de
entrada nas fronteiras exames seletivos aleatórios – random screening
– com o objetivo de eliminar a suspeita de tratamento discriminatório.
A exclusão com fundamento na segurança nacional deve, assim, fundar-se
no comportamento ou ameaça do candidato a imigrante em concreto e
nunca na sua pertença a determinada minoria étnica ou religiosa. Não se
ignora, contudo, que a utilização deste critério é de extrema dificuldade,
desde logo porque as informações em que as autoridades se baseiam para
proceder ao controlo não são, em muitos casos, sindicáveis ou sequer
controláveis por procederem de fontes sensíveis, classificadas e dos
serviços de informações e segurança.
O mesmo se diga do critério relacionado com o risco para a saúde
pública. Este deve ser aplicado à condição concreta dos migrantes que
apresentem riscos claros e predefinidos. Não deve ser manipulado para
excluir minorias.
Um outro critério admissível de exclusão de candidatos a imigrantes
é a existência de registo criminal, ou seja, da prática de crimes pelo
migrante. Uma pergunta usual nos processos de candidatura a vistos de
imigração relaciona-se com o passado criminal do candidato. Embora
seja perfeitamente admissível essa pergunta, as consequências a retirar
desse facto devem respeitar o princípio da proporcionalidade. Com efeito,
seria desproporcionado excluir, à partida, um candidato a imigrante que
apresentasse uma infração de trânsito ou mesmo um crime de baixa gra‑
vidade ou culpa no seu registo. Já parece razoável que um país recuse a
admissão como imigrante de alguém que cometeu crimes graves no seu
passado, como homicídios ou tráfico de drogas. De resto, por exemplo
em Portugal, a pena de expulsão do território nacional por determinado
número de anos é frequentemente aplicada a estrangeiros como sanção
acessória da pena de prisão em caso de crimes graves. Ora, se tal sucede
aos estrangeiros residentes em Portugal, semelhante critério também pode
ser aplicado aos candidatos a imigrantes. Em ambos os casos com uma
limitação relevante: não deve ser aplicado a estrangeiros que tenham
filhos menores de nacionalidade portuguesa a seu cargo, em larga medida
412 GONÇALO SARAIVA MATIAS
como garantia do mesmo princípio presente no reagrupamento familiar
e para assegurar que um menor de nacionalidade portuguesa não é, na
prática, forçado pela lei a residir fora do território nacional.
Finalmente, um critério muito controverso mas frequentemente presente
nas leis de imigração como critério de exclusão dos imigrantes é o da
suficiência económica. Nos processos de candidatura a vistos é frequente
a pergunta sobre os meios de subsistência económica, designadamente
sobre o peso imediato que o imigrante poderá representar para o sistema
de segurança social do país de acolhimento. A insuficiência económica
como critério de exclusão tem gerado grande controvérsia nos debates
sobre imigração, uma vez que tende a privilegiar os imigrantes com
condições económicas que, de um ponto de vista humanitário, são os
que menos necessitam do acolhimento dos Estados, deixando desprote‑
gidos aqueles que têm maiores dificuldades económicas e, logo, maior
necessidade de emigrarem.
Contudo, como sustenta Paul Collier, os migrantes de países pobres
não são necessariamente os mais necessitados, uma vez que estes não
têm sequer os meios para tomar a decisão de emigrar. Essa decisão
vem a ser tomada por quem tem recursos suficientes, ainda que muito
escassos, para mudar de país, algo que não se encontra ao alcance de
todos (Collier, 2013).
Isto não significa, naturalmente, que os países não possam ou, até,
não devam, de um ponto de vista ético e moral, acolher migrantes em
situação de carência económica. Todavia, formalmente o direito inter‑
nacional não os obriga a esse acolhimento o que permite a adoção do
critério da suficiência económica como excludente na decisão de admissão
de imigrantes.
Para além dos critérios de exclusão, os sistemas migratórios mais sofis‑
ticados têm desenvolvido critérios de seleção que permitem, em alguns
casos, políticas de captação de migrantes. Tal significa que os Estados
identificam o perfil dos migrantes de que precisam e que gostariam de
captar em cada momento, desenvolvendo a partir desse perfil politicas
ativas de captação de imigrantes.
Os critérios de seleção podem ainda ser utilizados, para além das poli‑
ticas atrativas, em normais procedimentos de admissão correspondendo,
à partida, ao perfil predefinido. Assim, os candidatos a migrantes podem
saber previamente as condições exigidas pelos Estado de acolhimento,
designadamente se preenchem os requisitos de admissão.
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 413
Um dos critérios possíveis na admissão de imigrantes é o da existência
prévia de uma relação laboral ou promessa de trabalho. Muitos sistemas
migratórios têm usado esse critério.
Trata-se de um critério muito eficaz na medida em que transfere para o
mercado de trabalho a decisão sobre a admissão ou não de migrantes, em
função das oportunidades de trabalho. Por outro lado, garante a melhor
integração dos migrantes e a sua subsistência económica na medida em
que a admissão fica condicionada ao efetivo exercício profissional.
Todavia, um sistema que assente exclusivamente na existência de uma
relação laboral não pode ser considerado “proativo” nem representa uma
verdadeira política pública migratória. Com efeito, limita-se a relegar
para as relações laborais a decisão de admissão, combinando depois os
fatores excludentes – como, por exemplo, a segurança nacional – para
a decisão de admissão.
Ora, como vimos, o fenómeno migratório apresenta hoje uma muito
maior complexidade, não devendo os países bastar-se com a passividade
da escolha do migrante e dos seus empregadores. Desde logo, as migra‑
ções deixaram de possuir um foco eminentemente laboral para passar a
abranger muitos outros fenómenos e interesses, de que são exemplo as
migrações de consumo.
Não significa isto, naturalmente, que as políticas públicas migratórias
devam constituir um obstáculo à relação laboral que legitimamente se
estabeleça ou venha a estabelecer entre um candidato a migrante e um
empregador. Pelo contrário, o Estado deve deixar funcionar o mercado,
podendo, ainda assim, opor-se caso se verifique um dos fatores de
exclusão mencionados. Assim, se, por exemplo, um migrante obtém um
contrato de trabalho com uma empresa portuguesa que declara necessitar
dos serviços da pessoa em causa, só a verificação de um motivo exclu‑
dente, como a ameaça para a segurança, deve levar o Estado a excluir a
admissão desse migrante.
Todavia, um país que pretenda prosseguir uma política migratória
ativa deve procurar conceber critérios de seleção que vão além do mer‑
cado de trabalho.
Assim, países como o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia têm
vindo a desenvolver critérios de seleção que valorizam outros fatores.
Estes sistemas migratórios mais sofisticados assentam num mecanismo
de atribuição de pontos em função de critérios predefinidos.
O primeiro país a conceber um sistema de pontos foi o Canadá, em
1967 (Shachar, 2006). O sistema de pontos é criado para procurar ante‑
414 GONÇALO SARAIVA MATIAS
cipar a provável contribuição a longo prazo do imigrante para a socie‑
dade de acolhimento e para a sua economia. Os pontos são geralmente
atribuídos em função de fatores como a idade, o percurso académico, o
conhecimento da sociedade de acolhimento e da sua língua, a experiência
de trabalho (Legomsky, 2012, p. 350).
O sistema de pontos apresenta grandes vantagens do ponto de vista
da definição dos critérios de seleção. Desde logo, porque se trata de um
mecanismo flexível que permite contemplar diversos fatores e, simulta‑
neamente, faz variar o seu peso específico. Essa flexibilidade manifesta‑
-se, ainda, na facilidade de alteração dos critérios e do respetivo peso
específico em cada momento, em função das necessidades concretas do
Estado. Finalmente, é um sistema transparente e não discriminatório, na
medida em que é aplicável a todos em igualdade de circunstâncias e pode
ser conhecido antecipadamente pelos candidatos a migrantes.
São anunciadas tabelas que contêm os fatores a ter em conta e os
pontos a atribuir a cada um. Assim, ao percurso académico é atribuído
um peso específico no contexto da pontuação geral. Esse elemento é
depois preenchido pelo candidato a migrante sendo a sua pontuação
dentro da categoria percurso académico atribuída em função do nível de
estudos apresentado, desde o elementar até ao doutoramento. O sistema
replica depois o modelo em fatores como o conhecimento de línguas, a
experiência profissional, a idade, a obtenção ou a promessa de contrato
de trabalho.
Num certo sentido este procedimento replica um trabalho de recursos
humanos à escala do Estado. Como se vê, ele comporta uma flexibili‑
dade ilimitada podendo valorar fatores tradicionais como a promessa de
emprego ou outros mais vanguardistas como as capacidades inatas ou
o talento dos candidatos a migrantes. As combinações entre fatores e a
variação do seu peso específico são também irrestritas.
Este mecanismo foi, depois, adotado pela Austrália e, com variações,
pela Nova Zelândia. O debate sobre a sua adoção ocorreu também já nos
Estados Unidos e na Alemanha.
O sistema de pontos e a atenção dada a fatores diversos dos focados
no tradicional mercado de trabalho abriu o debate e a prática nos Estados
sobre o que se pode designar de “corrida pelo talento” (Schachar, 2006).
Os Estados despertaram para esta realidade, ganhando consciência que
essa corrida num mundo de competição global pelo talento só poderia ser
ganha por quem identificasse esse “talento” em primeiro lugar e depois
conseguisse desenvolver políticas proativas para o captar e fixar.
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 415
Assim, por exemplo, foram introduzidas nos Estados Unidos medidas
para atrair imigrantes investidores através da criação de vistos especiais.
Mais recentemente, na sequência da Estratégia de Lisboa, foi adotada
a União Europeia a diretiva “blue card” com objetivo de atrair para o
espaço europeu os imigrantes mais qualificados e de elevado potencial.
As mais recentes alterações às leis da imigração dos Estados-membros
– incluindo a portuguesa – foram motivadas, entre outros aspetos, pela
necessidade de transpor esta diretiva, incorporando nas ordens jurídicas
internas esta mesma filosofia de captação de migrantes.
Finalmente, ainda no contexto da união Europeia mas agora sem uma
lógica harmonizada, têm sido adotados vistos especiais para investidores
e para atracão de investimento, a chamara “autorização de residência
para atividade de investimento”, também conhecida por “visto gold”.
Este movimento foi iniciado em Portugal mas já seguido por Espa‑
nha e por Malta. É possível que outros países venham a adotar politicas
semelhantes.
Trata-se de vistos concedidos a pessoas que venham a efetuar inves‑
timentos nos países de destino em imobiliário ou na criação de empresas
ou de postos de trabalho. Tudo motivado pela necessidade de captação
de investimento estrangeiro para países da União Europeia dele muito
necessitados.
A atração de investimento, mesmo que restrito ao mercado imobiliário,
tem efeitos positivos na economia do país de destino, desde logo pela
indústria de bens e serviços que tem florescido em torno destas atividades.
Essa indústria carece, por outro lado, como o próprio fluxo migratório,
de regulação, de modo a evitar a prestação de serviços em violação de
princípios éticos e deontológicos. Essa realidade – da regulamentação e
regulação da prestação de serviços migratórios – encontra também ampla
experiência em países como o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia.
Esta experiência recente na União Europeia de vistos não resultan‑
tes de harmonização de legislação comunitária para investimento pode
colocar dificuldades advenientes da livre circulação de pessoas e das
regras aplicáveis ao Espaço Schengen, designadamente a inexistência
de controlos fronteiriços.
Todavia, a utilização prudente pelos Estados membros destes meca‑
nismos, que evite o dumping migratório, acompanhada de algum grau
de harmonização e de uma adequada regulação da prestação de serviços
migratórios permitirá, certamente, o são convívio das regras específicas
de cada país, em especial das economias mais necessitadas de investi‑
416 GONÇALO SARAIVA MATIAS
mento estrangeiro com os interesses dos outros Estados-membros no
que respeita ao acolhimento de fluxos migratórios não decididos por
si e que não beneficiam em primeira linha a sua economia. Os Estados
que pretendem manter ou aprofundar vistos especiais para investimento,
não resultantes de legislação comunitárias devem, pois, adotar legislação
interna de regulação de prestação de serviços migratórios que garantam
a fidedignidade dos processos de candidatura bem como a correção das
práticas de empresas privadas que prestam esses serviços.
4. Migrações e sustentabilidade intergeracional
Como se viu, boa parte da questão demográfica é também um pro‑
blema de sustentabilidade intergeracional.
A gestão dos fluxos migratórios e uma adequada política migratória
são essenciais à sustentabilidade intergeracional.
O equilíbrio demográfico depende da correta distribuição etária. Quando
ele não se produz pela via natural, importa adotar políticas de correção
que, no curto ou médio prazo, só podem ser políticas migratórias.
Estas políticas devem possuir, como se viu, uma dupla vertente: de
atração de talento e de retenção do “brain drain”.
No plano demográfico, como também se assinalou, o impacto dos
movimentos migratórios é muito significativo. Não só pelo que importa
de perda de população mas, sobretudo, por se tratar de um movimento
que ocorre, em larga medida, entre camadas jovens da população, tipi‑
camente em idade reprodutiva.
Isto significa que o círculo de perda de população pela via migra‑
tória é duplamente vicioso: tanto diretamente como através do impacto
negativo na natalidade.
Por seu turno, o ganho populacional pela via migratória é duplamente
virtuoso: pelo que representa de aumento populacional direto e pelo seu
impacto positivo na natalidade. Acresce que, em regra, como se viu,
os imigrantes têm mais filhos que os nacionais, pelo que também aí a
natalidade sai beneficiada.
No plano das funções sociais do Estado, o impacto dos movimentos
migratórios é também positivo, como revela o relatório decenal do Obser‑
vatório das Migrações. Com efeito, por exemplo, o saldo da segurança
social com migrantes é positivo na medida em que, sendo indivíduos
ativos, em geral procedem aos seus descontos, não chegando muitos
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 417
deles, num mundo de migrações circulares, a receber as correspetivas
prestações.
Num outro plano, estudos sociológicos têm demonstrado que a solida‑
riedade intergeracional é profundamente vivida intrafamílias migrantes.
Tratando-se de famílias que deixam os seus países, em muitos casos
numa situação de vulnerabilidade, e não sabendo, à partida, com o que
podem contar no país de destino, a predisposição é, naturalmente, para
um entreajuda familiar, transversal às várias gerações, a qual se estende
à família alargada, quando ela é parte do projeto migratório.
É certo que hoje as migrações representam uma preocupação das
sociedades europeias, com um certo recrudescimento de forças políticas
de inspiração xenófoba, o que ocorre, muitas vezes, entre eleitores mais
velhos.
Felizmente esse não é o caso de Portugal, onde não existe qualquer
partido com tendências xenófobas ou racistas com representação parla‑
mentar.
Em todo o caso, este fenómeno merece uma reflexão.
Um dos argumentos em geral brandidos para uma oposição à imigração
é o impacto que ela poderia provocar no desemprego dos cidadãos do país
de acolhimento. Os dados demonstram que esta asserção é largamente
infundada na media em que muitos imigrantes desempenham funções
que os locais não querem desempenhar, que muitos outros se dedicam
ao empreendedorismo, assim criando postos de trabalho, não os tirando,
e, finalmente, produzem um efeito económico geral positivo, assim con‑
tribuindo para o dinamismo das economias dos países de acolhimento,
o que acabará por gerar emprego.
Por outro lado, esse fechamento ao estrangeiro é ainda mais incom‑
preensível entre as gerações mais velhas, sobretudo entre os reformados.
Desde logo, não se encontrando já a trabalhar, inexiste o receio de verem
os seus trabalhos retirados por estrangeiros. Depois, encontrando-se
dependentes da sustentabilidade do estado social, seriam os primeiros
interessados em garantir a sua solvabilidade, através de novas fontes
de financiamento que os imigrantes inquestionavelmente representam.
É claro que nesta equação racional não entram fatores de ordem
essencialmente psicológica. O facto de terem nascido na época do estado‑
-nação e, consequentemente o cosmopolitismo e a globalização serem
realidades que observam ainda com desconfiança e, sobretudo, um certo
ressentimento por verem os seus filhos privados de empregos e forçados
– na sua visão – a emigrar, fatores que atribuem à chegada de imigrantes.
418 GONÇALO SARAIVA MATIAS
Como se vê, a reação é largamente emotiva e não racional. Nenhum
argumento militaria a favor do fechamento destes eleitores, antes pelo
contrário. Acresce que as dificuldades de emprego dos seus filhos e a
sua vontade de sair do país não se devem à imigração. Por um lado, a
diminuição do emprego é uma consequência direta da sociedade tec‑
nológica, a qual só irá acentuar-se drasticamente nos próximos anos.
Por outro lado, como se assinalou, num mundo cosmopolita e de circu‑
lação migratória, os mais jovens emigram não por estrita necessidade
mas por vontade de conhecer o mundo ou de abraçar novos projetos
profissionais ou de vida.
Neste sentido, pode verificar-se aqui um paradoxo: as gerações mais
velhas, que ficam nos seus países de origem e que seriam os principais
beneficiados, numa lógica de sustentabilidade intergeracional, com as
migrações, são os que mais ferozmente se lhe opõem. Este paradoxo
tem, depois, uma declinação democrática relevante.
Veja-se, a título de exemplo, a distribuição de votos no referendo
sobre o Brexit no Reino Unido e as consequências no resultado final.
Ora, a decisão democrática acaba por ficar largamente nas mãos destas
gerações que votam em sentido contrario aos dos seus interesses, baseados
em perceções erradas e ressentimento.
Claro que os movimentos populistas aproveitam este terreno fértil
para crescer. E têm-no feito ao longo dos últimos anos na Europa. Não
por acaso, os argumentos ligados às migrações e à sua relação com a
sustentabilidade intergeracional encontram-se no topo da agenda destes
partidos.
Esta realidade agrava o cenário já debilitado da demografia europeia.
Sem uma política massiva de migrações, não é possível corrigir os dese‑
quilíbrios que se fazem sentir na demografia.
5. Conclusão
Pode concluir-se, do que antecede, que a sustentabilidade intergera‑
cional das sociedades europeias e do seu estado social dependem, em
larga medida, da capacidade de impor uma correta política migratória.
Essa imposição é cada vez mais difícil em face das reações populistas
e xenófobas de muitos países.
A única forma de as combater – e de, por essa via, permitir a apli‑
cação dessa política essencial – é através da formação e informação dos
cidadãos, de modo a que não se perpetue o paradoxo aqui identificado.
DEMOGRAFIA, MIGRAÇÕES E SUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL 419
Numa sociedade envelhecida, só a atração de imigrantes permite essa
sustentabilidade, seja no plano das relações familiares, no cuidado aos
idosos dependentes ou, no plano macro, na sustentabilidade das finan‑
ças públicas, dos sistemas de segurança social e, em geral, do próprio
estado social.
É nessa frente que importa colocar recursos e investir esforços.
Bibliografia referenciada
Carens, 1987. Joseph H. Carens, Aliens and Citizens: The Case for Open Borders
Carens, 2013. Jospeh H. Carens, The Ethics of Immigration
Chang, 2006-2007. Howard F. Chang, Economic Impact of International Labor Migration:
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Circulation: Theoretical Considerations
Legomsky, 2012. Stephen H. Legomsky, Immigration Policy from Scratch: The Universal
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Nussbaum, 1996. Martha Nussbaum, Patriotism and Cosmopolitanism
Shachar, 2006. Ayelet Shachar, The Race for Talent: Highly Skilled Migrants and
Competitive Immigration Regimes
Walzer, 1983. Michael Walzer, Spheres of Justice. A Defense of Pluralism and Equality
Justiça Intergeracional e Mercado
de Trabalho: Apontamentos para uma
Aproximação Juslaboral
António Nunes de Carvalho*
I – A abordagem sugerida para o presente capítulo articula o tópico
da justiça intergeracional com o mercado de trabalho. O que se propõe
nestas páginas é tentar essa análise a partir da perspetiva de um jurista
do trabalho. Sendo certo que a matéria transcende o quadro jurídico
(em bom rigor, antecede-o), assumindo especial riqueza no âmbito do
discurso filosófico e político, uma abordagem exclusivamente jurídica é,
naturalmente, redutora. Correndo esse risco, é a tarefa que vamos ensaiar.
Sucede, por outro lado, que, como tem sido notado, por comparação
com as discussões em torno do ambiente ou dos sistemas de pensões e
de cuidados de saúde, o tema da justiça intergeracional no mercado de
trabalho tem merecido reduzida exposição (Tremmel & Wegner, 2010,
p. 6). Assim acontece, em particular, no quadrante do pensamento jusla‑
boral, dando nota da falta de interesse da doutrina pelo tema (ainda que
com a exceção do espaço anglo-saxónico, Guaglianone, 2014, pp. 621-2,
nota 29). Parece, nesta medida, adequado começar por alguma reflexão
sobre o enfoque juslaboral do mercado de trabalho, para, de seguida, tratar
genericamente das circunstâncias que suscitaram, nas últimas décadas,
a eclosão (ou a recuperação) do debate sobre a justiça intergeracional,
relacionando-as com as vicissitudes específicas do ordenamento laboral
e aferindo o seu impacto no projeto regulativo do Direito do Trabalho.
Tentar-se-á, de seguida, reunir elementos que auxiliem a enunciar a
questão da justiça intergeracional numa perspetiva juslaboral, partindo
de uma formulação paradigmática para discutir brevemente os termos
* Mestre em Direito. Docente convidado da Escola de Lisboa da Faculdade de
Direito da Universidade Católica Portuguesa. Jurisconsulto. Autor e coautor de várias
obras e artigos em diversos domínios do Direito do Trabalho. Docente ou orador em
cursos de mestrado, pós-graduações e congressos no âmbito de diversas instituições
de ensino nacionais e estrangeiras. Membro da equipa que elaborou o anteprojecto de
Código do Trabalho (2002-2003).
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 421
em que é proposta. A partir daí, serão apontados, muito sumariamente,
caminhos de ação e reflexão, sempre a partir do lugar próprio do jurídico.
Conforme sugere a prudência do subtítulo, que corresponde à modéstia
do propósito destas páginas, pretende-se apenas refletir sobre o modo de
introdução deste tópico no pensamento juslaboral, mapeando os dados
da discussão.
II – Conjugar mercado e trabalho implica que este último seja
encarado como bem transacionável, o que pressupõe um processo de
abstração que encara a atividade humana como mercadoria (ainda que
meramente fictícia, no sentido proposto por Polanyi, 1983, pp. 122 et
seq.) suscetível de ser trocada por uma contrapartida.
A configuração do trabalho humano como bem transacionável em
relações que prescindem de um vínculo pessoal entre o trabalhador e o
destinatário da atividade constituiu operação necessária para a emergência
do contrato de trabalho como tipo contratual autónomo. Assim encarado,
aparece como trabalho abstrato, atividade objetivada, autonomizada do
seu resultado, quantificável em função do tempo e colocada no mercado1.
O contrato de trabalho corresponde, justamente à forma negocial para‑
digmática de aproveitamento desta atividade abstrata (trabalho humano
e livre), tratada como bem de natureza mercantil cedido mediante retri‑
buição a um utilizador (trabalho produtivo). Neste sentido se pode dizer
que “a ideia de um ‘mercado de trabalho’ implica não apenas competição
e mobilidade de recursos, mas mais especificamente a instituição de
‘trabalho assalariado’ e da sua expressão legal, o contrato de emprego”
(Deakin & Wilkinson, 2005, p. 1 e, desenvolvendo a constituição e os
condicionamentos deste mercado, pp. 26 et seq. e 284 et seq.).
A autonomização do contrato de trabalho e a sua regulação visaram
conferir enquadramento jurídico a esta operação de troca e assegurar que
as relações de trabalho funcionem satisfatoriamente como transações de
mercado, apresentando-se a esta luz como um direito da produção (Biagi,
2003, pp. 363-4). Ao mesmo tempo, porém, o Direito do Trabalho, tal
1
Apenas numa lógica comercial desaparece a diversidade dos trabalhos humanos:
“na medida em que a relação de trabalho deixa de aparecer como uma relação pessoal
entre o trabalho entre um utilizador e um trabalhador a variedade dos trabalhos pode
fundir-se numa mesma categoria abstrata, tal como os produtos do trabalho, todos dife‑
rentes pela sua utilização se tornam mercadorias comparáveis do ponto de vista do seu
valor” – Supiot, 2002, p. 6.
422 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
como se desenvolveu no nosso espaço jurídico, nasce de uma reação
contra a instauração de uma lógica puramente mercantil.
A contratualização implica, por definição e ainda que apenas for‑
malmente, a legitimação das obrigações assumidas pelas partes pelo
exercício da sua autonomia negocial. Por outro lado, como qualquer
outro contrato, o contrato de trabalho “não poderia existir sem lei que
o regesse e sem juiz competente para dele conhecer” (Supiot, 2004,
p. 33). Dificilmente, porém, o direito geral dos contratos permite um
enquadramento adequado, justamente pela circunstância de o apelo à
vontade das partes redundar numa legitimação meramente formal e pela
inerente objetivação e mercantilização da atividade laboral (coisificada
como pura energia trocada por retribuição ou como bem suscetível de ser
oferecido à fruição de outrem) (recordem-se, muito particularmente, as
abordagens de Carnelutti e de Barassi – cf., por todos, Passanti, 2006,
pp. 186-9 e 487-91).
A resposta oferecida pelo Direito do Trabalho centra-se, fundamen‑
talmente, em duas vertentes.
Por um lado, no reconhecimento da indissociabilidade do trabalho
relativamente ao trabalhador (na síntese magistral de Mancini, não há
trabalho em si, apenas pessoas que trabalham). O modelo contratual,
centrado no trabalho abstrato e na sua objetivação, numa lógica civilística
ou comercial, tende a uma reificação do trabalho e, por força do vínculo
indissolúvel entre atividade e trabalhador, na reificação deste.
Num primeiro momento, a ação do legislador operou através do
estabelecimento de regimes limitando a imposição de condições laborais
especialmente nocivas – como escreve Le Goff, o trabalhador surge fun‑
damentalmente como corpo, a que o ordenamento confere certo tipo de
proteção (Le Goff, 2004, pp. 85 et seq.). A partir do início do século xx
fez o seu caminho uma abordagem mais ambiciosa, centrada na formu‑
lação a partir da qual se viria a construir a Organização Internacional
do Trabalho: “o trabalho não é uma mercadoria” (Supiot, 2010, p. 23).
O reconhecimento da incontornável implicação da pessoa do trabalhador
na prestação da atividade laboral implica a imposição de um conjunto
de garantias diretamente dirigidas à proteção da pessoa do trabalhador e
da sua dignidade, que necessariamente se impõem à autonomia negocial
das partes. Temos, então, o estabelecimento de um conjunto de normas
inderrogáveis visando a proteção do trabalhador.
De outra parte, está igualmente presente na emergência da legislação
laboral a ideia de controlo do poder do empregador. Poder que se exprime,
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 423
desde logo, em termos de força negocial, no contexto do mercado de
trabalho: as condições de mercado determinam que o trabalhador se apre‑
sente perante quem oferece trabalho numa situação negocialmente débil.
Para além disso, essa posição inicial de desigualdade é amplificada, em
termos fácticos, pela inserção do trabalhador numa organização definida
em termos hierárquicos e rigidamente controlada pelo empregador (que
não apenas domina a própria existência e oferta de trabalho como define
unilateralmente os moldes em que se desenvolve a atividade produtiva,
impondo tempos, técnicas e tarefas) (para uma reflexão sobre as relações
entre subordinação e a diferente relação de trabalhador e empresário com
a técnica, cf. Vardaro, 1986, pp. 78-83). Finalmente, a própria distri‑
buição de poder inerente ao contrato de trabalho, instrumento negocial
paradigmático de afetação da atividade humana às organizações produ‑
tivas, coloca o trabalhador numa posição de subordinação, sujeito a um
conjunto de poderes jurídicos, de organização, de direção e disciplinar.
O Direito do Trabalho visa, pois, regular esta situação de poder,
não apenas pela imposição de um conjunto de garantias, que operam
diretamente como limites ao exercício das prerrogativas patronais e de
tutela de posições especialmente fundamentais do trabalhador, como pela
abertura à criação de dispositivos de autotutela do trabalhador, através da
possibilidade de constituição de organizações representativas, interiores ou
exteriores à empresa, dotadas de poderes de negociação que equilibrem
no plano coletivo a desigualdade de posições entre as partes do contrato
de trabalho, estabelecendo condições que conformam heteronomamente
o conteúdo dos vínculos contratuais, organizações essas que surgem
igualmente como titulares do direito ao conflito.
Na edificação deste sistema surge, em momento mais tardio, a intro‑
dução de limitações fundamentais à possibilidade de desvinculação
unilateral do empregador, em certos casos envolvendo uma verdadeira
“estabilidade real” (por todos, Furtado Martins, 1992, pp. 82-8).
O contrato de trabalho passa, com isto, a ser encarado, mais do que mero
instrumento de troca ou de afetação do trabalho à empresa, como suporte
da estabilidade económica do trabalhador e da sua família.
Forma contratual, princípio da proteção da parte mais fraca, norma
inderrogável (legal ou convencional-coletiva), limitação à possibilidade
de desvinculação unilateral do empregador, mecanismos de representação
coletiva, convenção coletiva e greve, estas são as peças fundamentais
(dizendo-o de outro modo, os “blocos básicos” de construção do discurso
juslaboral comum – Deakin & Wilkinson, 2005, p. 3) a partir das quais
424 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
foi sendo construído, com configurações variáveis, o edifício do Direito do
Trabalho (Romagnoli, 1993, p. 5, fala mesmo, a propósito das diversas
modalizações do Direito do Trabalho, em termos geográfico-culturais e
históricos, de uma “Lego-law”). Edifício que se estrutura, na formulação
de Bernardo Xavier, em torno de três princípios fundamentais: trabalho
como bem indissociável do trabalhador, realização de uma igualdade
substancial entre as partes do contrato de trabalho, reconhecimento da
autonomia coletiva (Xavier, 2005, pp. 29-37).
Subjacente a este longo processo de edificação do Direito do Trabalho
está, naturalmente, uma estratégia de intervenção do Estado nas relações
económicas e sociais que se traduz numa determinada modelação do
contrato social. Desde as primeiras leis laborais, produzidas na sequên‑
cia da eclosão da Questão Social, que se tornou nítida a relação entre a
regulação das relações de trabalho e a busca de um modelo suscetível
de garantir a necessária coesão social e assegurar um certo grau de
legitimação do Estado. Encaradas nesta perspetiva, as diferentes con‑
figurações do ordenamento laboral traduzem a evolução das conceções
do papel do Estado e das estratégias de equilíbrio entre liberdade de
iniciativa económica e de empresa, por um lado, e, por outro, a garantia
de uma cidadania económica e social (para uma descrição sumária desta
evolução, Baylos Grau, 1993, pp. 15-47. Para o processo de formação
do Direito do Trabalho é, também quanto a este ponto, especialmente
esclarecedor Vardaro, 1986).
No mundo ocidental e, em particular, no espaço europeu continental,
esta evolução culminou no segundo pós-guerra, com o “novo começo”
marcado pela aprovação de um conjunto de textos internacionais funda‑
dores, acrescentando aos tradicionais direitos fundamentais o reconheci‑
mento de novos direitos sociais (Ramm, 1986, pp. 297-8. Veja-se também
para esta evolução posterior a 1945, Hepple, 2011, p. 37-8, focando-se
na nova lógica de intervenção do Estado). Seguiu-se em vários países
um processo de constitucionalização, vertendo esses valores na matriz
dos respetivos ordenamentos, como parte integrante do compromisso
social fundamental. A assunção, pela via constitucional, deste programa
fundamental de coesão social chegou, por razões conhecidas, bem mais
tarde aos países periféricos do bloco europeu ocidental (Portugal, Espa‑
nha, Grécia).
Este compromisso assentou em duas vertentes fundamentais.
De uma parte, no contrato de trabalho “como categoria típica cons‑
truída sobre a subordinação do trabalhador, a que se liga um estatuto
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 425
jurídico de proteção crescente (direitos laborais e de Segurança Social)”,
peça essencial de um modelo que integra também “a família nuclear,
a institucionalização de agentes coletivos (sindicais e patronais) e os
Estados nacionais” (Casas Baamonde, 2004, p. 4023). Este modelo
tem igualmente como componente nuclear a empresa, na feição de
“organização standardizada, uniforme e hierarquizada, com um poder
de direção nítido e concentrado e vocacionada para a produção em
massa de produtos em série e pouco diversificados” (Casas Baamonde,
2004, pp. 4023-4), na qual a figura típica do prestador de trabalho é a
do trabalhador contratado por tempo indeterminado2, que labora a tempo
inteiro, cuja atividade é em larga medida fungível, estavelmente integrado
numa comunidade de trabalhadores com a qual partilha solidariedades e
interesses. “Os trabalhadores […] encontram no contrato de trabalho e
no ordenamento próprio desta figura contratual estabilidade e proteção,
a possibilidade de realizar uma carreira profissional ascendente e, depois
da sua reforma, o direito a receber pensões de reforma (por um escasso
período de tempo, atendendo à sua esperança média de vida)” (Casas
Baamonde, 2004, p. 4024).
Por outro lado, o compromisso fundamental inclui igualmente um
papel primordial para o Estado, tanto no plano das relações económi‑
cas – sustentação da procura interna, proteção do mercado nacional,
garantia da soberania económica – como na intervenção nas relações
de trabalho, protegendo os trabalhadores e preservando a ordem social
e económico-produtiva (a referência é, ainda, Casas Baamonde, 2004,
p. 4025). Cabem-lhe, no âmbito da garantia dos parâmetros de proteção
que estabelece – normas inderrogáveis, de ordem pública –, funções de
fiscalização, autorização e inspeção. Incumbe-lhe, igualmente, uma dupla
função de suporte do diálogo social e de controlo da conflitualidade (sobre
o papel do Estado, cf. Xavier, 2005, p. 56). No sentido da maximiza‑
ção da eficácia desta intervenção e do reforço da sua legitimação, são
frequentemente institucionalizados mecanismos de concertação social,
passando as organizações sindicais a partilhar a tarefa de condução do
sistema e de ajustamento dos seus objetivos e mecanismos.
2
“A conceção do contrato de trabalho evoluiu no sentido de entender esta relação
como tendencialmente a tempo indeterminado, estável e de longa duração, exclusiva e
a tempo inteiro, capaz de conter no seu seio uma ‘carreira’, e colocado, enquanto tal,
ao abrigo de interrupções e ruturas mediante a adoção de vínculos dirigidos a garantir
a sua continuidade perante diversas eventualidades e a limitar a faculdade de resolução
por parte do empregador” – Giugni, 1989, p. 307.
426 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
Dito isto, é possível decantar o sentido do Direito do Trabalho, tal
como resulta destes elementos.
Constitui, antes de mais, uma “técnica de tutela ou emancipação de um
sujeito caracterizado pela subproteção social e dependência económica”,
um “direito social e distributivo”, mas assume, ao mesmo tempo, a feição
de “direito da produção”, de “instrumento de gestão da empresa e de
regulamentação das modalidades de encontro entre capital e trabalho”
(Biagi, 2003, pp. 363-4). O sentido do Direito do Trabalho encontra-se na
conjugação destas duas valências (direito social e direito da produção)3,
articulação que não é isenta de tensões e a que têm correspondido, no
tempo e no espaço, pontos de equilíbrio distintos.
Tem subjacente, como ideia fundamental e fundadora, a necessidade de
corrigir, através de uma intervenção normativa heterónoma, a assimetria
estrutural da posição das partes no contrato de trabalho, tomado como
dispositivo típico e paradigmático de regulação da prestação de uma ati‑
vidade a outrem no quadro do sistema produtivo, tendo em consideração
a dimensão pessoal da prestação debitória e a inaptidão da autonomia
negocial para produzir um equilíbrio justo, suscetível de garantir um
conjunto de valores primordiais, que se considera integrarem a própria
ideia de cidadania (cf., para uma formulação desta ideia básica ou ori‑
ginal do Direito do Trabalho e suas declinações particulares, Goldin,
2011, pp. 70 et seq.).
Finalmente, o sentido e a ideia do Direito do Trabalho reportam-se
também, como ficou referido, a um certo perfil típico do trabalhador.
Fala-se, nesta medida, de um específica conceção antropológica, que
constitui uma das premissas implícitas no sistema juslaboral (por exem‑
plo, Romagnoli, 1989, p. 18 e, mais extensamente, 1997, pp. 27 et seq.
especialmente pp. 32-3).
Verificamos, em suma, que a formalização da troca de trabalho por
retribuição, a partir do modelo do contrato de trabalho e da construção da
atividade como bem transacionável, faculta a constituição do mercado de
trabalho, cabendo ao Direito do Trabalho a institucionalização do funcio‑
3
Esta visão não é partilhada por uma parte importante da doutrina juslaboral, que
associa ao Direito do Trabalho uma abordagem unilateral, radicada na proteção do traba‑
lhador. A repercussão no âmbito da empresa, através da fixação de parâmetros de gestão
da prestação do trabalho e da imposição de limitações à possibilidade de desvinculação
unilateral do empregador, aparece nesta perspetiva como efeito indireto, mera refração
da ideia fundamental de tutela do trabalhador.
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 427
namento desse mercado a partir de uma específica ideia de justiça4, cuja
matriz fundamental consta, no nosso espaço jurídico – e, particularmente,
em Portugal –, do próprio quadro constitucional. Na síntese de D’Antona
(2000a, p. 221), “as novas Constituições e as praxes constitucionais que
tomaram forma” a partir da segunda metade do século xx “propõem como
valores jurídicos da sociedade inteira as cláusulas de um compromisso
entre classes sociais até então radicalmente contrapostas pela desigual
distribuição de poder e rendimento por força da distinta inserção na
esfera da produção”, incluindo aí as “garantias da organização e da
luta sindical, o princípio da tutela do trabalho na relação contratual e as
suas condições específicas, como o justo salário e a proteção da mulher
e dos menores e, mais extensamente, o princípio do ‘Estado social’, o
direito ao trabalho e à segurança social”. Este compromisso funcionou
como fator decisivo da legitimação do Estado e das instituições, tendo
implícita uma proposta de promoção da “integração de sempre mais
vastos estratos de cidadãos no mercado de trabalho e na economia de
bem-estar” (D’Antona, 2000a, p. 222).
III – A emergência da moderna reflexão sobre a justiça intergeracio‑
nal, a partir da década de 70 do século passado (Tremmel, 2006, p. 1),
coincidiu com o início da erosão do tradicional edifício do Direito do
Trabalho. Poder-se-á, mesmo, dizer que são, em alguma medida, comuns
as circunstâncias que estão na origem destes movimentos.
A mesma fé no progresso, com raízes na Revolução Industrial, levou
a ter por certo que “a próxima geração teria uma melhor e mais próspera
existência do que a geração presente e que essa situação iria continuar
para o futuro previsível”, crença que se manteve “largamente indiscutida
4
Este juízo reporta-se essencialmente à evolução do Direito do Trabalho nos países
da nossa tradição jurídica. É certamente discutível a sua generalização, podendo, ainda
assim, considerar-se, com Davidov, 2016, pp. 27-8, que, apesar da diferente densidade
normativa, de contextos distintos e de diversas formas de articulação de princípios ordena‑
dores conflituantes, o reconhecimento dos “problemas do trabalho” implica naturalmente
um núcleo comum de objetivos ou valores. De todo o modo, é necessário ter presente, no
mundo da globalização, que a questão se coloca, naturalmente, noutros moldes quando é
muito substancialmente distinta a própria perceção desses “problemas do trabalho” (o que
ajudará, porventura, a perceber a própria alteração de posicionamento, dos parâmetros
de intervenção e da agenda da Organização Internacional do Trabalho – vejam-se, por
ex., Sankaran, 2006, pp. 205-18, e Marín, 2006, pp. 345-54). Talvez por isso mesmo
escreveu D’Antona que “a ordem pública internacional do direito do trabalho na idade
da globalização é um terreno de valores em conflito” – D’Antona, 2000a, p. 232.
428 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
durante a última metade do século xix e os primeiros terços do século xx”
(Auerbach, 2014, p. XIV e 1, bem como, para os pressupostos teóricos
do renascimento da questão da justiça intergeracional, pp. 55 et seq.).
No âmbito do pensamento juslaboral, esta convicção tinha corolários
tangíveis como o da contínua progressividade dos níveis de proteção
social5, suposta fonte de um “metaprincípio” vinculando o legislador a
uma sucessiva rerregulação em sentido mais favorável para o trabalhador
(Dray, 2015, p. 525), por sua vez argumento para concretas soluções
jurídicas, como a da imediata aplicação da lei nova a todas as relações
de trabalho, incluindo as já constituídas6.
As sociedades ocidentais, com o fim dos “trinta gloriosos anos” e as
crises económicas que se sucederam após os anos 70, foram confrontadas
com uma realidade nova e bem distinta da anterior, de que passaram
a fazer parte o desemprego estrutural e as dificuldades de sustentação
do Estado social, surgindo a perceção de que o nível de bem-estar das
gerações futuras, longe de estar garantido, poderia ser menor do que o
gozado pelas precedentes. Ao mesmo tempo, o próprio progresso científico,
económico e tecnológico engendrou, com novos instrumentos de inter‑
venção na natureza e nas condições fundamentais para a vida humana, o
esgotamento de recursos naturais e a contínua complexificação do sistema
económico, também causa de inesperadas fragilidades para a sociedade.
O problema da sustentabilidade – da despesa pública, dos regimes
de previdência, mas também do próprio ambiente e, em última análise
da própria vida humana – alimentou o debate sobre a responsabilidade
perante os vindouros (é, aqui, especialmente relevante a contribuição
de Jonas, 1992; para uma descrição dos termos do problema e da sua
5
Decorrente da “ideia de continuado progresso da legislação social (‘sempre mais’)”,
que manteve alguma resiliência até finais dos anos 80, cf. Xavier, 2014, p. 981. Referindo
que “o sentido geral do Direito do trabalho dirige-se para uma tutela crescente dos tra‑
balhadores”, ainda que “em globo e por forma sensível, capaz de absorver conjunturas”,
Menezes Cordeiro, 1994, p. 199.
6
A referência é, note-se, puramente histórica, reportando-se a um obsoleto “espírito
‘panglossiano’ do ‘sempre mais’” (Xavier, 1986, p. 522). Como escreve Dray (2015,
p. 525), fazendo eco de posição há muito estabelecida na dogmática juslaboral, tratava‑
-se “de uma ideia simultaneamente pueril e autoritária: admitir que o curso da história
é sempre propício a melhorar o nível de vida dos cidadãos é, por si só, uma perspetiva
ingénua” e “pretender que, independentemente do curso da história, das suas vicissitu‑
des e das condições socioeconómicas, o legislador está adstrito a legislar, apenas, num
único sentido, sempre mais favorável ao trabalhador, é querer impor autoritariamente
uma solução legislativa em nome de um dogma que não é absoluto, mas sim relativa”.
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 429
amplitude, cf., por todos, Pereira da Silva, 2010, pp. 465-82). Ao credo
da sociedade do progresso contínuo sucedeu a perceção da sociedade de
risco (a referência é, aqui, Beck, 2015) – mais ainda, de uma sociedade
em que os riscos se distribuem de modo não equitativo.
Um problema “tão velho como a humanidade”, o de “‘tratar de modo
justo’ qualquer geração”, assumiu-se como “questão (public issue)
totalmente nova nos termos em que hoje a discutimos”, “nova porque
mudaram completamente o contexto e o significado do problema, assim
como as formas de o definir e de encontrar soluções”: “os chamados
‘pactos sociais’ entre gerações típicos das sociedades antiga e moderna
tinham pressupostos culturais, demográficos e económicos que hoje
desapareceram ou estão a desaparecer, pois mudaram os valores e as
modalidades de troca e, por isso, há que encontrar novas regras de
alocação das oportunidades de vida entre gerações” (Donati, 2002,
pp. 151-2).
Esta dinâmica reproduziu-se no âmbito estrito do mercado de trabalho.
O impacto dos choques petrolíferos, primeiro, e, depois, as sucessivas crises
económicas fizeram surgir um contexto de descontinuo e tipicamente baixo
crescimento, em que o desemprego se foi tornando um elemento estrutu‑
ral: o emprego passou, cada vez mais, a ser encarado como bem escasso
“e, portanto, como bem a partilhar, quiçá parcimoniosamente” (Xavier,
1986, p. 519). Ao mesmo tempo, a própria evolução (paradoxalmente, o
progresso...) das organizações produtivas e dos esquemas organizativos
e tecnológicos de realização do trabalho (a literatura é muitíssimo vasta;
pode ver-se, por ex., a minuciosa análise de Coriat, 1982, e 1994), a
par das novas condições de funcionamento dos mercados, foram, e são,
causa de profunda transformação dos modos de trabalhar, determinando
a extinção de muitos postos de trabalho, apenas parcialmente substituídos
e por postos de natureza muito diferente, bem como a uma profunda
diferenciação dos trabalhos e dos modos de realização das atividades
(cf., em termos gerais, Nunes de Carvalho, 1999, pp. 55-69 e, mais
desenvolvidamente, Palma Ramalho, 2000, pp. 552-68; refletindo sobre
a projeção destes problemas nos sistemas de segurança social, Loureiro,
2014, pp. 121-6). Neste sentido conflui a explosão do setor terciário,
mais a mais numa sociedade em que os ciclos temporais “naturais” vão
sendo substituídos pela voracidade de uma permanente disponibilidade
de bens e serviços, todos os dias e a todas as horas do dia, reclamando,
por isso, a necessidade de esquemas temporais de prestação do trabalho
menos padronizados e que potenciem a disponibilidade.
430 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
As mutações tecnológicas, as inovações organizativas e as necessida‑
des da concorrência (nacional e internacional), com os mantras da lean
production e do just in time, têm vindo a tornar crescentemente obsoleto o
esquema produtivo a partir do qual foi erguido o ordenamento juslaboral.
A fábrica “compacta, rígida e hierárquica” (D’Antoma, 2000a, p. 225)
segmentou-se, dispersou-se organizacional e geograficamente, desmate‑
rializou a sua organização, diversificou produtos e perdeu dimensão. Em
termos tais que mesmo a identificação do empregador ou da entidade a
quem devem ser imputados especiais responsabilidades laborais se tornou,
muitas vezes, um problema extremamente complexo.
Por outro lado, o impacto das inovações tecnológicas e organizativas
produz-se de forma assimétrica. Relativamente a certos grupos de traba‑
lhadores, opera no sentido de uma maior ligação com a prossecução dos
objetivos da empresa, favorecendo uma maior autonomia e proporcio‑
nando o enriquecimento contínuo da sua profissionalidade, o que, por seu
turno, incrementa a estabilidade do vínculo contratual. Já relativamente
aos trabalhadores afetos a tarefas menos qualificadas ou atingidos de
forma diversa pela introdução de novas tecnologias tende a instalar-se
um processo inverso, de desqualificação, “de expulsão da produção ou
de perda sempre maior de qualquer conteúdo qualificante das atividades
desenvolvidas” (Zanelli, 1985, p. 46). Os legisladores têm, por sua vez,
reagido às necessidades empresariais associadas às novas estratégias de
produção e de organização com a disponibilização do acesso a vínculos
contratuais menos estáveis e tutelados, formas contratuais flexíveis e que
se afastam da relação laboral típica.
Resulta daqui um duplo processo de segmentação: de uma parte, entre
os trabalhadores que pertencem ao núcleo da empresa, estavelmente
integrados e apetrechados com uma profissionalidade que é garante
de estabilidade, e aqueles que estão nas orlas da organização, numa
situação bem mais contingente e à mercê de uma qualquer medida de
“racionalização” ou de uma opção de externalização7; de outra parte,
7
Sobre a distinção entre “trabalhadores fortes” e “trabalhadores débeis”, pode
ver-se Ichino, 1989, pp. 231-9. Faz-se notar que a opção pela externalização implica
frequentemente a conversão de postos de trabalho antes integrados na estrutura perma‑
nente da empresa, e como tal preenchidos com recurso ao contrato de trabalho comum,
em funções desenvolvidas por trabalhadores de uma empresa prestadora de serviços,
que esta contrata muitas vezes a termo (fazendo corresponder a duração do contrato de
trabalho ao período de vigência do contrato de prestação de serviços) ou com recurso
a outras formas de vinculação (por exemplo, aproveitando as medidas temporárias de
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 431
entre trabalhadores da organização e titulares de contratos “atípicos”, que
podem ou não ter natureza subordinada. Segmentação que oculta uma
mesma “inultrapassável dependência pessoal relativamente à sorte e às
conveniências económicas da empresa de outrem, que permanece árbitro
de um destino individual e de um inteiro projeto de vida” (D’Antona,
2000a, p. 225). E a que corresponde uma substancial variação no nível
de tutela que é dado pelo ordenamento.
Ou seja, no quadro de um sistema normativo que liga à posição de
trabalhador subordinado um determinado aparato de proteção, unitaria‑
mente definido, a assinalada segmentação facilmente se converte num
desequilíbrio substancial de posições. A aplicação dos instrumentos do
ordenamento jurídico reproduz, por isso mesmo, essas assimetrias, refor‑
çando a posição dos trabalhadores cuja posição na empresa é mais sólida
e falhando na proteção dos que se encontram em posição mais frágil.
Este elemento cruza-se com outro, que toca igualmente um aspeto
central do modelo corrente do Direito do Trabalho. A subordinação jurí‑
dica, elemento tipificador do contrato de trabalho, continua a constituir o
centro de imputação da tutela proporcionada pela lei do trabalho, numa
lógica que é, tendencialmente, de tudo ou nada. O conceito de subordi‑
nação, aplicado transversalmente a toda a área coberta pelo Direito do
Trabalho, adquiriu, porém, um elevadíssimo grau de abstração, que torna
a sua aplicação extremamente complexa. Também as alterações ao nível
da organização produtiva e das formas de integração dos trabalhadores
nessa organização, aliadas à preponderância crescente do setor dos ser‑
viços, acentuam a perda de referenciais concretos para a subordinação
e potenciam as dificuldades na aplicação do conceito.
Para além disso, e pelas razões acima indicadas, torna-se cada vez
mais clara a falta de conexão entre a subordinação jurídica, como fator de
tipificação de situações jurídicas, e a necessidade da tutela característica
do Direito do Trabalho. Tanto é trabalhador subordinado o diretor como
o trabalhador indiferenciado, embora as necessidades de tutela sejam
bem diversas. Os vários ordenamentos nacionais têm respondido com
esquemas de modalização dos regimes (comissão de serviço, especifi‑
cação das regras sobre limitação e organização do tempo de trabalho,
etc.), embora esta diversificação de tutelas esteja ainda assim aquém da
incentivo à contratação de jovens ou desempregados de longa duração). Para além disso,
os níveis salariais e de condições de trabalho em geral são normalmente mais baixos na
empresa prestadora de serviços.
432 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
dissemelhança de situações. Por outro lado, não é certamente trabalhador
subordinado o que presta, com autonomia, a sua atividade à empresa,
mesmo que esta seja a única destinatária desses serviços. Como não o
é aquele que se encontra transitoriamente afeto à empresa nos termos
de um contrato de estágio, ou similar, e que, por isso mesmo, ainda
que realizando a sua atividade ao lado de “verdadeiros” trabalhadores
subordinados e no contexto de uma mesma organização, não tem acesso
às tutelas de estabilidade, níveis de rendimento e condições de trabalho
de que beneficiam estes.
Em suma, regista-se o esvaziamento da referência semântica do conceito
de subordinação e a sua perda de utilidade como conceito operativo. Em
especial, é notório o esvaziamento das virtualidades do conceito para a
imputação de tutela jurídica adequada.
Ora, como se disse, a efetividade da tutela garantida pelo Direito do
Trabalho, enquanto projeto de garantia de cidadania social e económica
no mundo produtivo, pressupõe a existência de um vínculo laboral (por
isso mesmo se podia afirmar que a legislação do trabalho correspondia ao
“estatuto jurídico comum da população ativa” – Xavier, 1976, p. 318).
Assim como aos programas constitucionais de proteção do trabalhador
está associada a afirmação do direito ao trabalho, também a efetividade
do próprio Direito do Trabalho se associa a uma específica intervenção
do Estado, pela promoção de políticas dirigidas à promoção do pleno
emprego. Contudo, os condicionamentos económicos das últimas décadas
(recessão, crises orçamentais, excesso de endividamento público, jobless
growth), somados à evolução das próprias organizações empresariais
(externalização, desenvolvimento de tecnologias e esquemas de orga‑
nização que dispensam o uso intensivo de mão de obra, just in time)
comprometem gravemente a realização desta dimensão do compromisso
que dá ao Direito do Trabalho o sentido que fomos identificando.
Como aponta M. D’Antona, parece que somos confrontados com
a necessidade de escolha entre dois modelos: de uma parte, o modelo
norte-americano, onde se aceitam retribuições inferiores ao patamar da
pobreza e não se colocam obstáculos nem à explosão dos bad jobs nem
às limitações à criação de obstáculos aos mecanismos de representação
coletiva, aceitando-se limites nunca vistos de desigualdade social, mas
que gera ocupação e alarga a possibilidade de acesso a uma atividade
remunerada; e, por outro lado, o modelo europeu continental que, “que‑
rendo preservar a dignidade e a segurança do trabalho, não admite ofi‑
cialmente salários abaixo de um mínimo social, mantém fortes vínculos
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 433
no acesso e na saída do emprego, preserva o controlo sindical sobre as
condições mínimas de trabalho, mas expia uma mortífera combinação
de alta desocupação, trabalho ilegal e imigração, restringindo as chances
efetivas de ocupação de certas faixas sociais, como os jovens em geral,
os desocupados de longo período e as mulheres com qualificação média‑
-alta” (D’Antona, 2000a, p. 227).
Desde os anos 80 que os diversos Estados do nosso espaço jurídico‑
-cultural têm tentado fugir deste impasse através de medidas, as mais das
vezes avulsas, dirigidas à promoção do emprego, que tende, no léxico
oficial, a substituir a antiga referência ao trabalho, enquanto objetivo
a promover. Esta alteração da terminologia é significativa. Perante a
contínua escassez de trabalho, o emprego designa essencialmente ocupa‑
ção, seja no quadro de vínculos temporários ou com tempo de trabalho
reduzido, seja pela multiplicação de formas contratuais atípicas (trabalho
intermitente ou on call, trabalho a tempo parcial, job sharing, formas de
trabalho para-subordinado, etc.), seja, ainda, tanto por força da neces‑
sidade de renovação dos perfis profissionais disponíveis no mercado
como pela necessidade de promover a absorção dos empregos perdidos
com a introdução de novas tecnologias, a vulgarização de contratos em
que a prestação de trabalho subordinado é articulada com a ministração
de formação profissional (é particularmente ilustrativa, neste sentido, a
Reforma Biagi, empreendida em Itália no início do novo século – cf.,
por todos, Ferraro, 2004, pp. 1-24). Em qualquer destes casos é, desde
logo, patente a diversificação e atenuação das tutelas que correspondem
à prestação de trabalho subordinado. É, também, nítida a alteração da
fisionomia do Direito do Trabalho, onde se afirma cada vez mais a proe‑
minência da articulação com as políticas de emprego (já neste sentido,
Xavier, 1976, pp. 318-20 e, mais desenvolvidamente, Xavier, 1986,
pp. 519-26).
Por força desta evolução, cada vez mais nos confrontamos com uma
realidade em que, como escreve G. Lyon-Caen, “a província mais extensa
do Direito do trabalho é constituída paradoxalmente pelas regras relativas
ao não trabalho”, regras essas, mais a mais, mal sistematizadas e, até,
pouco conhecidas e transparentes (Lyon-Caen, 1995, p. 61).
Estes fatores têm, por seu turno, impacto numa outra vertente crucial
do equilíbrio que faz parte do sentido tradicional do Direito do Trabalho
e que integra também a sua “narrativa constitutiva” (a expressão é de
Langille, 2006, pp. 14 et seq.).
434 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
A segmentação de que acima se deu conta repercute-se, inexoravel‑
mente, na desagregação da comunidade de trabalhadores (compreendendo
trabalhadores “fortes”, trabalhadores “fracos” e titulares de vínculos
precários, laborais ou não). No mesmo sentido funciona a distinção, cada
vez mais nítida, entre job owners e job seekers. Estas contraposições a
partir da titularidade e do tipo de emprego quebram as solidariedades
coletivas e fragmentam o interesse coletivo, elemento fundamental da
construção dos mecanismos de representação coletiva (neste domínio,
continua relevante Giugni, 2011, p. 62-4). Para esse efeito de limitação
das condições da ação coletiva concorre igualmente a alteração das for‑
mas de integração do trabalhador na empresa: o trabalhador a termo ou
intermitente, assim como o que presta a atividade noutro local são apenas
“visita” da empresa, não criam solidariedades nem se veem como parti‑
cipante de uma comunidade de interesses com os outros trabalhadores.
Do mesmo passo, as próprias organizações sindicais tendem a encarar
a proliferação dos trabalhos “atípicos” como ameaça ao emprego dos
titulares de postos de trabalho permanentes, aqueles que integram as
suas estruturas, que podem mobilizar e em função de cujos interesses é
fundamentalmente orientada a atividade representativa.
Como é bom de ver, mais uma vez estes impactos operam de modo
assimétrico: os efeitos negativos projetam-se sobretudo na representação
sindical dos trabalhadores menos protegidos, num processo em boa parte
autorreprodutivo.
Por outro lado, assiste-se também neste mais recente período de
vida do Direito do Trabalho a uma estratégia legislativa de regulação
da flexibilidade que convoca os sindicatos a participar na sua aplicação.
Trata-se do que é usual designar por “flexibilidade negociada”, que
consiste na atribuição à contratação coletiva da tarefa de regulação da
aplicação de regimes de flexibilidade da condições de trabalho, quando
não de integração dos regimes legais, através do reenvio para a disciplina
produzida pela autonomia coletiva, que desempenha neste casos uma
função de integração do conteúdo da norma legal, independentemente
da sua maior favorabilidade. A convenção coletiva assume nestes casos
um papel diferente do tradicional, surgindo agora, por força da norma
legal, como guardiã, ou gestora, de instrumentos de flexibilização dos
poderes patronais que, em boa parte, escapam à lógica do princípio do
tratamento mais favorável. E que, na medida em que envolvam a dimi‑
nuição do padrão geral de proteção, funcionam como uma derrogação in
pejus do tratamento legal (Carabelli & Leccese, 2006, p. 199; aprofun‑
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 435
dadamente, Magnani, 2006, pp. 4 e 16-69; Fontana, 2010, pp. 115-59).
Este envolvimento dos sindicatos na definição e aplicação de regimes
menos favoráveis acaba também por contribuir para a desafeição dos
trabalhadores relativamente ao movimento sindical.
Os efeitos da conjugação destes fatores são conhecidos: deslegi‑
timação dos sindicatos perante os trabalhadores, diminuição da filia‑
ção, fragmentação sindical (ou, em alguns países, desaparecimento
da tradicional unicidade de facto e emergência de formas ad hoc de
representação), perda de relevância dos sindicatos como interlocutores
negociais, refluxo da negociação coletiva e substancial diminuição da
capacidade de mobilização dos sindicatos. Algumas análises vão mesmo
mais longe, assinalando que a diluição das solidariedades profissionais
e da conceção unitária do trabalho subordinado são causas de um esva‑
ziamento da própria condição de trabalhador (que determina aspirações,
atitudes e ações), condição que, como vimos, está na base do sentido
normalmente conferido ao Direito do Trabalho (que não se preocupa
com o trabalho em si mas sim com as pessoas que trabalham). Daí
que, depois da pergunta “who is labour law for?” surja naturalmente
outra: “what is labour law for?” (Arthurs, 2011, pp. 18-22; veja-se,
no entanto, para uma visão, do ponto de vista sociológico, bastante
menos pessimista quanto à perda da identidade social conferida pelo
trabalho, Accornero, 1994, pp. 257-8).
Regista-se, mais recentemente, uma outra tendência, em parte impul‑
sionada pelas dificuldades que afetam a representatividade sindical.
Para além dos fatores que se deixaram já indicados, quer por razões
de estrutura (no caso português, a falta de dispositivos convencionais‑
-coletivos com eficácia erga omnes)8 quer por uma expectável reticência
dos sindicatos na outorga de compromissos suscetíveis de colocarem
ainda mais em causa a sua base de apoio social, esta “flexibilidade
negociada” não tem produzido os resultados que se almejavam. Por
esse motivo, e mantendo a sua premência as circunstâncias que impe‑
lem o legislador a consagrar os mecanismos de flexibilidade, têm sido
dados novos passos, agora no sentido de permitir à própria autonomia
8
Sobre os problemas ligados ao princípio da filiação, Xavier, 2009, pp. 111 et seq.
O problema assume particular criticidade entre nós, na medida em que, por força da
revolução copernicana no sistema de fontes dos Direito do Trabalho operada em 2003,
em Portugal concretizou-se a tendência, referida por Magnani, 2006, p. 4, no sentido
de a regulação inderrogável das relações laborais ser, em medida crescente, confiada
não à norma legal mas sim à convenção coletiva.
436 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
individual a ocupação de pelo menos parte destes espaços (quando
não, em certos casos à intervenção unilateral do empregador). Desta
sorte, fica enfraquecida a inderrogabilidade in pejus da norma legal,
perante a contratação coletiva, primeiro, e diante da própria autonomia
negocial individual, num segundo momento. E introduz-se um novo
elemento perturbador, constituído pela tendência para a individualiza‑
ção dos estatutos dos trabalhadores, contrariando a lógica estatutária e
coletiva que desde há muito se considera inerente à ideia de Direito do
Trabalho. O ressurgir do assalariado-indivíduo choca com a ideia do
coletivo como “condição objetiva de possibilidade” (sobre o conceito
e o impacto deste processo de individualização, pode ver-se Adam,
2005, e, para a perspetiva referenciada no texto, pp. 472-3).
A estes fatores poder-se-iam adicionar outros, como da crescente
dificuldade do Estado, por força das dinâmicas conjugadas da globali‑
zação e da integração em espaços económico-políticos transnacionais,
em assegurar o papel que lhe cabe no compromisso construído a partir
da metade do século passado, nos termos do qual lhe incumbe um papel
crucial em termos de condução das relações económicas – sustentação
da procura interna, proteção do mercado nacional, garantia da soberania
económica – e de intervenção nas relações de trabalho (cf., de novo,
D’Antona, 2000a, pp. 223-6). Certo é que da ação conjugada destes
elementos decorre uma acentuada erosão dos pilares identitários do
Direito do Trabalho tradicional e do projeto de justiça que lhe está
associado.
Com isto, somos confrontados com o problema de saber se o orde‑
namento juslaboral, enquanto sistema de regras e princípios, continua
a proporcionar uma resposta valorativa e pragmaticamente adequada
aos problemas específicos, à interpelação própria da hodierna realidade
social diferenciada (colocando estes problemas, Perulli, 2010, pp. 3-6).
A questão coloca-se com especial premência quanto às sequelas do
“novo normal” constituído pelo desemprego estrutural. O compromisso
estruturante do Direito do Trabalho assenta na relevância fundamental
do trabalho como fator de realização pessoal mas também de integração
e participação plena na comunidade (para uma articulação das várias
dimensões axiológicas do direito ao trabalho, Friboulet, 1999, pp. 229-
-45), pelo que o sentido de uma tutela adequada do valor do trabalho
envolve, necessariamente, a possibilidade de aceder a uma ocupação
remunerada. Por força das circunstâncias sumariamente descritas surge,
porém, uma interrogação: na nova realidade social e económica, o nível
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 437
de tutela do trabalho não constitui mais um fator (ou, mesmo, um fator
crucial) de diminuição da oferta de emprego? A escassez do trabalho
não é também (ou sobretudo) uma consequência dos padrões legais de
proteção aplicáveis? Numa formulação sugestiva, dever-se-á considerar
que o Direito do Trabalho passou, de aliado fiável do direito ao trabalho,
num seu rival? (sobre esta formulação, Le Goff, 1999, pp. 198-216)
É, com efeito, patente “o conflito entre os trabalhadores protegidos
por um estatuto de estabilidade e aqueles que não podem aceder ao
mercado de emprego, a não ser pela utilização de formas mais dúcteis”
(Xavier, 1986, p. 521). Modalidades cuja flexibilidade se traduz em
precarização (que dela é, muitas vezes, contraponto), menores condi‑
ções de remuneração e condições de trabalho menos favoráveis. Com
isso, o abaixamento do patamar de proteção, admitido como preço
incontornável da tentativa de potenciar o acesso a um emprego, acaba
por comprometer a própria legitimidade do processo de juridificação
do mercado de trabalho, “transformando o inicial conflito entre empre‑
gador e trabalhadores numa disputa entre diferentes grupos de traba‑
lhadores” (Simitis, 1987, p. 131). Paradoxalmente, temos de enfrentar
a possibilidade de o ordenamento laboral, no seu novo contexto social
e económico, privar de proteção os mais desfavorecidos em nome da
tutela dos que beneficiam já da vantagem de um posto de trabalho com
as garantias que lhe estão associadas.
Mesmo uma análise muito perfunctória dos dados estatísticos atuais
e da sua evolução (para estes dados, https://data.oecd.org/unemp/unem‑
ployment-rate#indicator-chart) permite perceber que este confronto se
coloca de modo especialmente claro entre os trabalhadores jovens que
pretendem aceder a uma ocupação adequada e aqueles, mais velhos, já
integrados no mercado de trabalho. O confronto entre insiders e ousiders
tende, portanto, a colocar-se de modo especialmente relevante no plano
geracional.
Os trabalhadores jovens são, com efeito, desproporcionalmente afe‑
tados pelos desequilíbrios do mercado de trabalho: tendem, com maior
probabilidade, a encontrar-se na situação de desemprego e em empregos
sem futuro (dead-end jobs) ou atípicos, são-lhes pagos salários menores
e têm maiores dificuldades em aceder a carreiras estáveis (Bradley
& Van Hoof, 2005b, p. 243). Na síntese de Bradley e Van Hoof, que
partem da conceção de Ulrich Beck segundo a qual “a questão central
do debate sobre a sociedade de risco é a de saber se os riscos do que
percecionado como um contexto crescentemente inseguro estão igual‑
438 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
mente divididos entre os cidadãos”, impõe-se o reconhecimento de
que os jovens têm, realmente, o pior quinhão, injustamente expostos
aos riscos do mercado de trabalho por comparação com os seus mais
protegidos concidadãos mais velhos, muitos dos quais beneficiam de
longo tempo de serviço, de garantias de estabilidade e das regras e prá‑
ticas estabelecidas (Bradley & Van Hoof, 2005a, p. 6). Encontram-se,
igualmente, mais expostos às consequências, em termos de cidadania,
da transição dos modelos de welfare para os de workfare (assim, Reiter
& Craig, 2005, pp. 19-23).
Tão marcada assimetria na distribuição das dificuldades de acesso ao
emprego – “esta atividade enquadrada por um conjunto de direitos e de
deveres que forma o vetor pelo qual um indivíduo assegura uma certa
percentagem da riqueza coletiva e acede à cidadania social” (Soulet,
1999, p. 12) – ou a relegação para sucedâneos mais ou menos aproxi‑
mados desse emprego, numa tendência persistente nas últimas décadas,
não podem deixar de ser encaradas como um rasgar do famoso véu de
ignorância (parafraseando Soulet, 1999, p. 19).
Questionamento sobre a consistência do compromisso fundador do
moderno juslaboralismo que é, certamente, agravado pelo efeito simultâ‑
neo do papel central reconhecido à representação sindical, tanto pela via
da concertação social como da contratação coletiva, na conformação das
regras enformadoras do mercado de trabalho (Simitis, 1987, pp. 134-43)
e a assinalada subrepresentação dos trabalhadores mais jovens quer na
vida sindical quer na definição das reivindicações. Esses trabalhadores
veem-se, pois, remetidos para a classe do “demos-destinatário-de decisões”,
sem efetivo e real acesso à do “demos-participante”, quando não mesmo
à do “demos-com-direito-de participação” (transpomos as categorias a
que recorre Santos Campos, 2015, p. 137).
Finalmente, a maior fragilidade negocial dos trabalhadores jovens
acarreta uma desproporcionada exposição aos inconvenientes dos
mecanismos de individualização das condições de trabalho assentes na
autonomia individual. Boa parte destes mecanismos prende-se com a
regulação da limitação e da distribuição da jornada de trabalho (cf., por
ex., Adam, 2005, pp. 237-46), envolvendo, tipicamente, a sujeição dos
trabalhadores a maiores cargas de trabalho e, sobretudo, ao acréscimo
de dificuldades na conjugação entre vida profissional e vida pessoal e
familiar. Criam-se, também aqui, vincadas assimetrias, em detrimento
dos trabalhadores mais jovens e daqueles que se posicionam na “rush
hour of life”.
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 439
Esta abordagem enferma, todavia, de alguma unilateralidade. Na ver‑
dade, a rapidez das modificações do tecido produtivo e a velocidade da
alteração dos conteúdos profissionais e técnicos dos trabalhos constituem
um fator de risco que incide muito particularmente sobre os trabalhado‑
res mais velhos. Neste caso, é justamente a posição profissional de que
dispõem – com maior estabilidade e maiores salários – que os coloca, na
perspetiva gestionária, na primeira linha dos projetos de recomposição
da força de trabalho na empresa. Esta opção é, as mais das vezes, legiti‑
mada externamente pela referência às (supostas ou reais) dificuldades de
adaptação a novas exigências organizativas ou tecnológicas, bem como
(o que é frequentemente ecoado pelas próprias políticas de emprego)
pela ideia de que dispõem de uma alternativa “natural”: a reforma.
Como escreve Simitis, “o pleno emprego é a única situação na qual a
sua presença é incondicionalmente tolerada ou desejada”, justificando-se
o tratamento discriminatório por essa alternativa “natural” e encarando‑
-se a manutenção no emprego como “desvio do ‘adequado’ modelo de
vida” (Simitis, 1987, p. 143).
A antiguidade na empresa ou no setor facilmente se convertem numa
desvantagem competitiva no mercado de trabalho quando está em causa
uma profissionalidade estreitamente ligada à organização ou a determi‑
nado tipo de atividade, desenvolvida em específicos parâmetros técnicos
e tecnológicos, não sendo, nessa medida, transponível para outro quadro
organizativo ou outro tipo de trabalho. O circunstancial afastamento do
posto de trabalho facilmente se traduz, portanto, numa real exclusão do
emprego ou, em situações marginalmente menos desfavoráveis, numa
abrupta queda do nível das condições de trabalho.
O discurso centrado na alternativa “natural” – a reforma, que cada
vez menos coincide com a ideia tradicional de incapacidade para o
trabalho – (Neves, 1996, pp. 479-82) não pode, de outra parte, fazer
esquecer que “o processo de envelhecimento depende em larga medida
da oportunidade de trabalhar”, sobretudo num contexto de substancial
alargamento da esperança de vida: “a experiência mostra que qualquer
que seja o tipo de trabalho, a cessação do emprego tem consideráveis
implicações emocionais e físicas”, pelo que “nenhuma sociedade, ou lei,
que pretendam condenar práticas discriminatórias podem […] tratar os
trabalhadores mais velhos como um segmento descartável da força de
trabalho”; “degradação social e alienação mental só podem ser evitadas
na medida em que iguais oportunidades de emprego sejam garantidas”
440 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
(Simitis, 1987, p. 145; sobre estes problemas, cf. Villaverde Cabral,
2013, pp. 41-88).
Temos, portanto, que à crise que afeta os pilares identitários do Direito
do Trabalho, traduzida no já clássico questionamento da sua atual aptidão
para garantir o compromisso que o suporta e o projeto valorativo que lhe
dá razão de ser, acresce a perda da sua referência antropológica. Caída a
máscara da convergência de interesses e necessidades dos trabalhadores
enquanto tais, aparece, com crueza, a polarização das pretensões que
dirigem ao Estado e à sociedade (e ao próprio Direito do Trabalho, como
instrumento de institucionalização do mercado de trabalho), diferenciação
que se alastra por várias linhas de fratura, entre os quais a geracional.
Importa, com efeito, ter presente que outras linhas de fratura, que não
a da inserção numa específica coorte demográfica, sempre existiram e
continuam a existir. Como tem sido demonstrado, fatores como o nível
económico, o sexo ou a origem étnica desempenham também um papel
essencial (cf. Bradley, 2005, e Craig, Dietrich & Gautiè, 2005) Fica,
pois, aberto espaço para a ponderação do conflito de interesses e valores
entre gerações, “aquelas que estão plenamente na vida laboral, aquelas
que a largaram ou a estão a largar e as jovens gerações que se prepa‑
ram […] para entrar no mundo do trabalho”, não existindo dúvidas de
que, no nosso espaço jurídico, “a evolução do direito do trabalho é um
terreno de conflito entre gerações”, “um terreno no qual se apresenta de
modo dramático um problema constitucional de justiça intergeracional”
(D’Antona, 2000a, p. 241). Poder-se-á talvez dizer que para além da
tradicional tensão entre as duas vertentes constitutivas do Direito do
Trabalho – direito da produção, que regula o adequado funcionamento
da operação jurídica e económica enquadrada pelo contrato de trabalho,
e direito de tutela, numa lógica social e (re)distributiva – emerge nesta
segunda vertente uma tensão interna, que se prende com o funcionamento
diferenciado dos mecanismos de proteção.
Simplisticamente, tudo isto nos lembra a velha alegoria de Kronos,
a figura mitológica que, depois de derrubar o seu pai, devorava os seus
filhos, temendo a profecia de que um deles o destronaria (recuperada
por Ost, 2001, pp. 9-10, para abordar as relações do direito e do tempo,
“uma história que, para dizer a verdade, começou mal”), ilustrando o
entrincheiramento dos trabalhadores protegidos diante dos que procu‑
ram o acesso ao trabalho (temendo, como escreve Soulet, o momento
em que o trabalhador jovem chega a casa e anuncia “Pai, encontrei um
emprego, o teu”).
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 441
IV – Na formulação de Tremmel e Wegner, “um mercado de trabalho
é intergeracionalmente justo se cada grupo (isto é, nova, média e velha
geração) tiver no mínimo as mesmas possibilidades de satisfazer as suas
necessidades do que a anterior geração correspondente” (Tremmel &
Wegner, 2010, p. 5).
Estamos, há que sublinhar, perante uma questão de justiça. Deixando
de parte a sempre complexa tarefa de concretizar o sentido do conceito,
é importante começar por sublinhar que não se trata de uma questão de
eficiência (ou de eficácia, se se entender o termo numa aceção que se se
afasta das coordenadas que lhe são próprias no pensamento jurídico)9.
Nesta medida, não cabe aqui uma racionalidade puramente técnica – ou
estrategicamente apresentada como tal – que reduza o Direito do Trabalho
a simples instrumento de regulação do mercado de trabalho, conjunto
de constrangimentos externos cuja adequação é aferida em função dos
critérios inerentes ao funcionamento do próprio mercado (critérios muitas
vezes assumidos de forma axiomática e subtraídos a verdadeira argu‑
mentação, ocultando – ou remetendo para fora do discurso – uma opção
valorativa)10. Não estamos, pois, a operar com uma noção de emprego que
o encare como mero “stock expresso pelo número, desprovido de toda
9
Não se trata da dimensão da validade objetiva da norma, encarada quer a partir da
sua legitimidade formal quer da sua consistência com os valores nucleares do sistema em
que se insere. Assim como não está em causa um outro nível de significação especifi‑
camente jurídica, agora apreciando a norma no plano da sua adequação – racionalmente
demonstrável e, por isso mesmo, aberta a discussão de acordo com parâmetros de raciona‑
lidade argumentativa – instrumental aos fins visados pelo legislador – “demonstração da
validade ou legitimidade do ato de acordo com critérios (proporcionalidade, necessidade)
postos pela lei ou dedutíveis a partir do sistema jurídico”. Trata-se, antes, de eficácia no
sentido de eficiência, de acordo com critérios de racionalidade essencialmente económicos.
Colocando desta forma o problema, Perulli, 2010, pp. 5-6.
10
Fazendo esta reflexão sobre as abordagens puramente económicas e as tributá‑
rias da Law and Economics, Perulli, 2014, pp. 4-8, e Masters, 1992, pp. 6-7. Com
efeito, a postergação dos valores subjacentes à tutela do trabalho, em homenagem a um
determinado parâmetro de eficiência (e frequentemente desconsiderando as próprias
externalidades positivas geradas pelo sistema legal de regulação) implica, logicamente,
um juízo valorativo que fundamente a proeminência desse parâmetro. Para este tipo de
abordagens, aliás de cunho eminentemente prescritivo, cf., v.g., Macleod, 2011, pp. 1591
et seq., e, entre nós, Centeno, 2013, pp. 20-49 e 65-100, e Centeno & Novo, 2012,
pp. 9-25. Dito isto, é decerto incontornável e mesmo indispensável, no plano analítico,
a compreensão do sentido e da dinâmica económicos da relação laboral e do impacto
que, deste ponto de vista, decorre do sistema legal de regulação (o mesmo valendo para
outras perspetivas, como a sociológica).
442 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
a dimensão individual, um bem sem qualidade” (Perulli, 2010, p. 5).
Parafraseando Supiot, o quadrante problemático em que nos situamos
não é do governo das coisas mas sim o do governo das pessoas.
A corrosão dos pilares em que assentou a construção do ordenamento
laboral e a sua crescente dificuldade em dar resposta adequada às novas
circunstâncias da economia e da sociedade não se reduzem a uma crise
de funcionamento ou de identidade, pondo em causa, mais radicalmente,
a sua legitimação, por força da dissolução do compromisso que está
na sua base. Abre-se, por isso, espaço para uma crítica aos parâmetros
de juridificação das relações de trabalho e à sua hodierna aptidão para
proporcionar respostas pertinentes. E é aqui que deparamos com as
interrogações levantadas a partir da perspetiva da justiça intergeracional.
Contudo, o problema deve ser colocado na dimensão própria (valorativa)
do jurídico, reconhecendo e reafirmando a “autonomia do sistema jurídico
na sociedade” (D’Antona, 2000b, p. 71).
Está, pois, em causa um problema de justiça. Mais concretamente,
de justiça distributiva: trata-se de encontrar, ou proporcionar, “o modo
adequado de corresponder às necessidades e interesses conflituantes
de pessoas distintas” (Nagel, 1997, p. 108), agrupadas a partir de
certa posição social relevante (Rawls, 1993, pp. 91-5; sobre este pro‑
cedimento de agregação, cf. Nagel, 1997, p. 111). Estes conjuntos
de pessoas são apresentados, na formulação acima reproduzida, como
respeitantes a gerações sucessivas. Encontramos aqui um primeiro
conjunto de problemas.
Se as pretensões em conflito são as de gerações sucessivas (no sen‑
tido de contemporâneas), situamo-nos num específico segmento dos
problemas normalmente associados à justiça intergeracional (nos termos
em que o problema vem sendo modernamente discutido, na sequência
da abordagem de Rawls, 1993, 227-33), não tendo de defrontar apo‑
rias que surgem a propósito de outros segmentos (a impossibilidade de
estabelecer relações de reciprocidade entre gerações muito afastadas
no tempo, o problema da não identidade, as questões da relevância, ou
não, do desconto temporal, etc.). Este específico conflito não opõe os
atuais elementos da sociedade (em sentido lado, a geração presente) aos
futuros (gerações futuras). As posições contrastantes são assumidas pelas
coortes demográficas sucessivas que integram, em conjunto, o universo
dos atuais membros da comunidade. Por isso mesmo, e como se disse,
não se colocam os problemas que nascem da não contemporaneidade
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 443
dos sujeitos em causa. No âmbito em que nos situamos, a perspetiva é
essencialmente sincrónica, não diacrónica11.
Mas deparamo-nos, porém, com as habituais dificuldades no recorte
da noção relevante de geração. Não cabendo entrar nesta discussão (sobre
os conceitos de coorte demográfica e geração e seus problemas, pode
ver-se o resumo feito em Daniels, 1990, pp. 58-60), poderemos assumir
que o conceito de geração deve ser encontrado a partir do ponto de vista
em que é enunciado o conflito, recortando-se a partir daí a posição social
relevante. A distinção entre nova, média e velha geração deve ser feita,
justamente, a partir daquilo que é relevante para colocar o problema de
justiça de que tratamos – como escreve Rawls, “qualquer que seja o pro‑
cesso [de identificação dos grupos em causa], não é possível evitar que,
de algum modo, ele seja ad hoc” (Rawls, 1993, p. 94). Neste sentido,
e antecipando um pouco o que se dirá adiante, os grupos são definidos
a partir da sua posição, em termos relevantes para o juízo valorativo do
ponto de vista da justiça distributiva, quanto ao acesso a certos bens pri‑
mários (aqueles cuja tutela fundamental é assegurada pelo ordenamento
juslaboral). É, assim, possível diferenciar aqueles que, por força da
coorte demográfica em que se inserem, têm dificuldade em aceder a uma
situação que lhes permita usufruir desses bens (geração jovem), aqueles
que já estão em condições de fruir esses bens (geração média), estando
porém sujeitos a determinado tipo de riscos ou dificuldades (próprios
da chamada rush hour of life, num período em que se joga o essencial
da vida profissional) (Gaullier, 1999, p. 175, que refere, também, as
dificuldades no seccionamento das gerações, 1999, pp. 172-7), e aqueles
que se veem perante a contingência de ser afetados ou mesmo excluídos
da fruição desses bens (geração mais velha). Densificando os termos do
problema da justiça intergeracional no mercado de trabalho, Tremmel
e Wegner referem, assim, que “enquanto os trabalhadores jovens estão
hoje em situação pior comparados com os trabalhadores jovens de há
30 anos, considerando o enquadramento legal do mercado de trabalho,
as formas de emprego e o seu rendimento, os trabalhadores mais velhos
deparam-se com dificuldades crescentes em encontrar novo emprego
11
Thompson, 2013, pp. 87 e 101-3. A autora distingue estas duas perspetivas, pondo
em evidência que a discussão a partir de Rawls se centra na perspetiva diacrónica, mas
sublinhando, porém, que este corte não pode ser absoluto, pois as escolhas feitas hoje
perante as atuais gerações necessariamente se projetam nas futuras.
444 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
quando perdem o seu antigo emprego após os 55 anos” (Tremmel &
Wegner, 2010, p. 5).
Os termos em que a formulação de que partimos é proposta sugerem
também uma lógica processional. Encarando as sociedades na dimensão
temporal, podemos vê-las como uma procissão de dimensão indefinida,
em que constantemente entram e saem elementos, os quais, pelo lugar
em que se inserem, estabelecem relações com os demais, designadamente
com os que deles estão mais perto, relações essas que são relevantes no
desenho das instituições que regem essas sociedades (Thompson, 2013,
p. 102, a partir da noção de justiça processional proposta por Laslett &
Fishkin). Estaremos, então, a tratar de sucessivas coortes demográficas,
que naturalmente assumirão cada uma das posições sociais relevantes.
Pode, no entanto, o problema ser posto de modo bastante diferente,
fazendo corresponder as posições sociais relevantes a coortes demográ‑
ficas precisas e especificamente determinadas em termos cronológicos.
Conforme se evidenciou no caminho já percorrido (II e III), a assimetria
de posicionamento dos diferentes grupos surge perante um ordenamento
laboral que resultou de um concreto processo histórico. O moderno Direito
do Trabalho e o compromisso social que corporiza foram permitidos pela
dinâmica de evolução tecnológica e de crescimento económico dos “trinta
gloriosos anos”, viabilizando soluções normativas de que beneficiaram
gerações concretas e de que hoje usufruem em maior grau as gerações
mais velhas. Soluções normativas que têm associado um conjunto de
tutelas que implicam especial onerosidade do emprego e influem na sua
escassez, por essa via surgindo a marginalização da geração mais jovem.
A ser assim, o problema não deve ser colocado em termos abstratos, já que
se centra numa injusta diferenciação de tratamento de concretos grupos
etários (também a propósito da discussão em torno da segurança social
se coloca esta questão, optando alguns autores por focar o problema a
partir da relação entre a “geração do welfare state” e as posteriores – cf.
Thompson, 1990, pp. 32-54). A fratura entre gerações passará, pois, pela
emergência da crise, refletindo o abaixamento de tutelas e/ou o momento
a partir do qual surgem as patologias do sistema.
Porém, colocar o problema nestes termos envolve necessariamente a
redução do atual ordenamento juslaboral – ou da sua traça tradicional –
a um acidente histórico de algum modo irrepetível, a um arranjo social
historicamente datado e hoje obsoleto, que beneficia circunstancialmente
e de forma não equitativa um preciso grupo etário. Se bem vemos, esta
perceção está subjacente no modo pelo qual Tremmel e Wegner enun‑
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 445
ciam a questão e que os leva a considerar que “basicamente, do que
precisamos é de um novo contrato intergeracional entre jovens e velhos
trabalhadores nas empresas” (Tremmel & Wegner, 2010, p. 6). Logo,
porém, reconhecem que “isto não está, de momento, a ser discutido e a
nova geração não está a formular esta pretensão na negociação coletiva
ou no âmbito de procedimentos legislativos” (Tremmel & Wegner, 2010,
p. 6). Isso acontece, cremos, por boas razões.
Com efeito, o compromisso social inscrito nas constituições e que
está na base do sistema de legislação laboral tem um sentido intemporal,
que se autonomiza do concreto contexto social e económico que lhe
deu origem. Constitui um projeto, que carece, em cada momento, da
adequada mediação dos parceiros (não apenas do Estado legislador mas
também dos que asseguram a negociação coletiva e a representação dos
trabalhadores) para a sua adequada concretização. Por isso mesmo, faz
sentido que as reivindicações dos trabalhadores mais jovens se dirijam
não ao questionamento do contrato social básico, mas antes à correta
atualização do seu sentido e concretização, considerados os dados de
contexto. Diremos então, de modo que consideramos apenas aparentemente
paradoxal, que muito embora estejamos perante a dimensão temporal
da comunidade política e social e das relações temporais entre os seus
membros, o problema deve ser colocado de forma intemporal, do ponto
de vista da procissão de gerações mas ultrapassando as relações entre
concretas coortes demográficas.
Estando aqui em causa uma questão de justiça distributiva, impõe-se
um juízo comparativo que incide sobre as diversas posições sociais rele‑
vantes (ainda que numa lógica meramente ordinal) (Rawls, 1993, p. 89).
O modo de realização desta comparação dá, também, espaço a dúvidas
relevantes. De entre eles avulta a parametrização temporal do juízo.
Desde logo, a comparação pode ser feita diretamente, comparando,
num momento cronológico t, as posições das diferentes coortes demo‑
gráficas – geração jovem, geração média e geração mais velha –, ou
indiretamente, comparando a situação das diferentes coortes demográficas
num determinado momento do seu percurso histórico – v.g., a situação
da atual geração jovem com a vivida pela presente geração mais velha
no momento em que era jovem (assinalando a essencialidade da distinção
entre comparação direta e indireta e registando a relevância de ambas,
Tremmel & Wegner, 2010, pp. 10-12).
Num outro ângulo, a própria realização da comparação requer a
determinação do momento a que se reporta. Tanto poderemos considerar
446 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
um determinado momento inicial (starting-gate), como se pode entender
que a comparação deve ser feita a cada momento (Lamont & Favor,
2016, p. 5).
De outra parte ainda, é necessário determinar a unidade de tempo que
é considerada: o percurso existencial de cada qual, globalmente consi‑
derado (como sugerem Rawls, 1993, e Nagel, 1997, pp. 110, 121, e
124-5) ou, em alternativa12, um determinado segmento de vida.
Qualquer destas opções envolve problemas específicos. Eleger um
específico momento cronológico pode implicar a desconsideração do
percurso que levou até esse momento, bem como o tipo de perspetivas
futuras de cada grupo, enquanto a comparação indireta não permite pon‑
derar o significado das profundas mutações no contexto e nos interesses
(pense-se na substancial reconfiguração do trabalho e das organizações
nas últimas décadas, bem como nas modificações do próprio sistema
assistencial e as inflexões no tipo de interesses relevantes). O mesmo se
diga quanto à escolha de um starting-gate: no domínio em discussão,
ceteris non paribus, pouco existindo em comum entre as posições de
início de percurso profissional no mercado de trabalho de há trinta anos
para cá. Por sua vez, a realização da comparação em cada momento pode
levar a obnubilar as específicas vantagens que possam decorrer da plena
integração no mercado (v.g., a profissionalidade adquirida) ou condições
exógenas que confiram uma situação de benefício (as vantagens da
melhoria do sistema de educação e formação ou o próprio aumento da
escolaridade mínima obrigatória). Finalmente, a consideração do percurso
existencial em bloco (ainda que, neste caso, eventualmente adaptado de
forma a centrar a unidade de tempo na vida laboral) tem como passivo
a eventual desconsideração de circunstanciais posições de manifesta
desvantagem num âmbito que põe em causa aspetos fundamentais da
existência e da cidadania (e, por isso mesmo, não toleráveis), muito
embora a comparação com base em segmentos de vida possa legitimar
intervenções que distorcem o balanço total reportado às condições de
tutela da vida profissional considerada como todo.
Não cabendo aqui uma discussão exaustiva deste ponto (ainda assim,
central), ficam apenas algumas notas.
12
Ou concomitantemente, operando com um juízo que se deve conjugar, com o que
resulta da existência considerada como todo, em certas circunstâncias podendo sobrepor‑
-se a ele (é a tese sustentada por McKerlie, 2013, pp. 74, 96-101, e 197-201 e passim).
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 447
Não vemos relevância (do ponto de vista em que nos situamos) numa
comparação indireta que confronte a posição de uma certa coorte etária
presente (v.g., a geração jovem) com a situação passada de outra coorte
no mesmo momento do seu percurso (a atual geração mais velha, no
momento em que lhe cabia a qualificação de geração jovem) quando
tenha ocorrido mudança relevante do contexto normativo.
De outra parte, estes parâmetros temporais não constituem uma variá‑
vel totalmente independente. É incontornável a necessidade de ponderar
a modificação das condições subjacentes e o significado que assumem
em cada momento. Para além disso, a segmentação etária é apenas um
dos vetores relevantes, devendo ter-se presente que os interesses funda‑
mentais prosseguidos pelo ordenamento laboral não se reduzem aos dos
participantes no mercado de trabalho: a consideração de interesses de
toda a comunidade social é também incontornável.
Mais ainda, como em todos os processos de comparação, a forma de
comparar depende essencialmente da própria razão de ser da comparação
e da precisa consequência que está em causa. Tal como ficou sugerido
para a delimitação das posições fundamentais, também aqui é fundamental
atender aos bens relativamente aos quais se estabelecem essas posições,
bem como ao comparador. Se estiver em causa a realização pessoal, como
bem a que se tem acesso através do emprego, fará sentido uma perspe‑
tiva que atenda a todo o percurso existencial. Noutros casos, como seja
a autonomia económica, será importante levar em consideração dados
como a existência de prestações sociais, que podem dar relevância a uma
análise assente nos segmentos de vida. Noutros casos ainda, tratando-se
de bens como a dignidade das condições de trabalho existem limites
mínimos, abaixo dos quais não é consentida gradação ou comparação.
A questão é, já o dissemos, de justiça distributiva. Mas quais são os
bens de cuja distribuição se trata?
Afigura-se irrealista e redutor entender que se trata da distribuição de
um stock de empregos. A quantidade de empregos não é fixa e depende
(não exclusivamente, como é natural) dos próprios termos da institucio‑
nalização do mercado de trabalho, que especifica os modos admissíveis
de prestação de trabalho. Esta institucionalização não pode, também,
deixar de depender da evolução dos esquemas de produção e de orga‑
nização e, bem assim, das mutações dos padrões de preferência que se
vão estabelecendo na sociedade. Há, ainda, que levar em consideração
as alterações nos interesses (ou na respetiva hierarquização) associados
ao acesso ao mercado de trabalho – registando-se, neste âmbito, a ten‑
448 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
dência, ainda que não igualmente distribuída entre as diversas coortes
para conferir caráter prioritário a interesses pós-materiais (D’Antona,
2000a, pp. 234-8 e, desenvolvidamente quanto ao tempo de trabalho,
Ricci, 2005, pp. 13-26 e 65-6), como sejam os associados ao aprovei‑
tamento do tempo, em particular na chamada rush-hour of life, mas
também nos momentos que antecedem a saída da vida ativa. Mostra-se,
assim, incontornável um maior esforço de abstração, compatível com
um esforço posterior de diferenciação.
Diríamos, então, que se trata aqui da satisfação dos interesses cuja
satisfação depende do acesso a uma ocupação remunerada e dignificante,
dotada do nível de estabilidade que consinta a elaboração de um projeto
de vida autónomo e satisfatório. A concretização de cada um destes
interesses pode, no entanto, envolver diferenciação, já que o modo de os
percecionar e hierarquizar varia em função da posição em cada momento
ocupada na procissão de gerações. Em particular, a satisfação destes
interesses não tem, necessariamente, que passar por uma determinada
forma de estruturação jurídica da ocupação. Neste sentido, o “emprego”
não deve ser restringido à noção de trabalho subordinado.
Este tipo de interesses é, diga-se, compatível com formas de tutela
que se afastam dos parâmetros tradicionais do Direito do Trabalho
(conforme tem sido notado a propósito das propostas que pretendem
reformular a lógica de intervenção no mercado de trabalho a partir das
ideia de Amartya Sen – cf. Goldin, 2011, pp. 79-80, e Fudge, 2011,
pp. 126-9). Em todo o caso, são estes os interesses fundamentais que
justificaram a construção do ordenamento laboral: a operacionalização das
formas de encontro entre capital e trabalho, em termos simultaneamente
compatíveis com a racionalidade e eficiência económica das transações
e com a indissociabilidade do trabalho relativamente à pessoa que tra‑
balha, de modo a assegurar uma existência condigna e a possibilidade
de participação integral na comunidade.
A lógica, que ficou sumariamente descrita, da institucionalização do
mercado de trabalho através do Direito do Trabalho, e o compromisso
social que lhe está subjacente, fornecem-nos o elemento que falta, o
comparador. O Direito do Trabalho visa, com efeito, proceder a uma
adequada13 distribuição de tutelas associadas à garantia dos referidos
13
Como é bom de ver, a aferição do exato sentido que se deve dar a esta adequação,
na resolução de um problema que é de justiça distributiva, leva-nos à consubstanciação
dos critérios dessa justiça. Como se vê no texto, abdicamos nesta análise de optar por
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 449
bens primários, centrando-se essencialmente na operação económica
consubstanciada no contrato de trabalho. Esta adequação é determinada
pelo quadro de valores matriciais que está na sua base (no nosso caso,
fundamentalmente no texto constitucional).
O que atrás se deixou referido quanto ao “novo começo” do constitu‑
cionalismo do século xx de algum modo representou o reavivar da “nota
marcante dos alvores do constitucionalismo e das primeiras consagrações
formais dos direitos do homem”, visando-se, também aqui, “uma grande
determinação em legar às gerações vindouras um conjunto de instituições
políticas e jurídicas de que as gerações passadas e a geração então pre‑
sente não tinham beneficiado” (Pereira da Silva, 2010, p. 490). Esse
propósito, presente no vigente quadro constitucional, “compreende uma
verdadeira dimensão intergeracional” (Pereira da Silva, 2010, p. 490).
O conjunto de posições jurídicas que lhe está associado é construído a
partir de um nível básico de proteção aplicável a todos, presentes e vin‑
douros, e que não é compatível com reconfigurações redutoras que vão
para além do que é imposto no âmbito das “relações jusfundamentais
sincrónicas” – os direitos não têm caráter absoluto, no sentido de que
carecem de ponderação com os direitos dos demais (Pereira da Silva,
2010, p. 498), ponderação que deve também ter lugar no âmbito das
relações entre gerações simultâneas.
A esta luz, a instauração desses direitos representa um corte com o
passado, pelo que não fará sentido uma lógica comparativa que convoque
momentos anteriores à sua consagração. Marca, também, os próprios
limites da redistribuição, já que não será aceitável uma redistribuição
que afete esses padrões mínimos (pelo menos no que contenham de
mínimo irredutível e que não possa ser sacrificado mesmo em situações
de conflito entre posições jusfundamentais).
O sentido do compromisso fundamental em que assenta – no nosso
espaço jurídico, logo no plano constitucional – o ordenamento laboral
consiste na garantia de uma verdadeira cidadania social, assegurando,
através do acesso ao trabalho, uma participação integral dos sujeitos na
vida comunitária (cf., v.g., Ghera, 2006, pp. 164-5) e uma existência
condigna, tendo em atenção a posição tipicamente desfavorável do tra‑
balhador no mercado de trabalho e nas organizações produtivas. Este é,
então, o parâmetro fundamental a partir do qual deve ser avaliado não
um concreto critério normativo de justiça, fixando-nos no padrão legal ínsito no sistema
vigente.
450 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
só o posicionamento relativo dos membros da sociedade – a partir das
diversas posições sociais relevantes, como seja a que resulta de deter‑
minada inserção geracional –, como a adequação do edifício normativo
de institucionalização do mercado de trabalho perante os diversos con‑
textos sociais e económicos. Devendo, ao mesmo tempo, ter-se presente
a mutação do próprio sentido do trabalho, a sua natural e incontornável
fragmentação em trabalhos, bem como a própria evolução dos interesses
relacionados com o trabalho e, também, a segmentação do universo de
trabalhadores (avultando uma cada vez mais crescente gradação entre
“trabalhadores fortes” e “trabalhadores débeis”). Mais ainda, o projeto
valorativo e os respetivos pressupostos devem ser adequados às próprias
metamorfoses do modelo de emprego, não podendo entender-se como
exclusivos do trabalho juridicamente subordinado – também no trabalho
autónomo se podem colocar os problemas de proteção do trabalhador e
de necessidade de parametrização do poder do destinatário da prestação,
nos moldes que levaram à emergência do Direito do Trabalho (para uma
cabal demonstração, cf. Ichino, 2004, pp. 111-3).
Nos termos que se deixaram assinalados, as substanciais mudanças
verificadas após a institucionalização deste compromisso – sobretudo
a dimensão estrutural do desemprego e o impacto das novas formas de
trabalho e de organização, com os desequilíbrios que lhes estão associa‑
dos – dificultam a sua realização, designadamente no que concerne ao
tratamento equitativo das diferentes gerações. Os problemas, contudo,
não se circunscrevem a uma simplística oposição entre trabalhadores
jovens e mais velhos.
Na verdade, a formulação de Tremmel e Wegner, ao centrar a com‑
paração na posição relativa de cada geração com a anterior geração
correspondente, parece redutora. Esta formulação leva, aliás, os autores
a considerar que “as desvantagens da nova geração (a chamada ‘geração
precária’) no mercado de trabalho são sistémicas e, por isso, não com‑
paráveis com os riscos em que os mais velhos incorrem em não conse‑
guir (re)emprego por força da sua menor produtividade, da legislação
protetora ou do apelo dos esquemas de reforma antecipada” (Tremmel
& Wegner, 2010, p. 5). Esta hierarquização das questões não é, aliás,
fundamentada, a não ser pela vaga referência ao caráter sistémico da
primeira relativamente à segunda e é, certamente, discutível, não ape‑
nas pelos dados demográficos e do desemprego (que mostram como o
desemprego de longa duração afeta assimetricamente tanto os jovens
trabalhadores como os mais velhos), mas também pela desconsideração
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 451
de segmentos importantes dos interesses subjacentes à tutela fundamental
do trabalho. A mudança de emprego numa idade mais tardia facilmente
se pode traduzir numa radical diminuição do rendimento, impedindo o
trabalhador de dar resposta às responsabilidades que assumiu. De outra
parte, a mutação do tipo paradigmático de trabalhador – que se pretende
crescentemente qualificado e flexível, implicando novos paradigmas de
profissionalidade (vejam-se Carabelli, 2006, pp. 380-7 e, numa abor‑
dagem sociológica, Accornero, 1994, pp. 289-92, & 2000, pp. 108-
19) – pode levar à exclusão dos trabalhadores mais velhos, invertendo a
lógica que tende a identificar, por relação ao mercado de trabalho, os mais
novos como outsiders e os mais velhos como insiders (é, justamente, esta
abordagem mais abrangente que tem prevalecido a nível internacional e
comunitário – cf. Barabaschi, 2015, pp. 4-5).
Tentando reunir todos estes elementos, diremos então que a questão
central colocada pela justiça intergeracional ao pensamento juslaboral
envolve uma avaliação dos mecanismos jurídicos de institucionalização
do mercado de trabalho, no sentido de apurar se os dispositivos de tutela
relacionados com o acesso aos bens primários associados ao emprego
asseguram, em cada contexto económico e social, de modo congruente
com a matriz valorativa fundamental do sistema (maxime o quadro cons‑
titucional), a adequada proteção dos sujeitos, sem distorções decorrentes
da posição que ocupam na procissão intergeracional.
V – Deste ponto de vista, a justiça intergeracional fundamenta, desde
logo, uma perspetiva crítica autónoma da arquitetura do ordenamento jus‑
laboral e um padrão de avaliação de políticas legislativas com incidência
no mercado de trabalho. Constitui, também, um parâmetro a introduzir
no modelo de decisão de casos concretos.
Referimos atrás que os abalos nos pilares identitários do Direito
do Trabalho produziram um crescente desajustamento entre o quadro
normativo e os seus valores matriciais, desajustamento que, como se
notou, é também patente a partir da consideração da posição relativa das
diversas gerações. Logo, também a partir das considerações de justiça
intergeracional se impõe uma recalibração dos mecanismos do Direito
do Trabalho em ordem a garantir a realização dos seus valores funda‑
mentais, expressos na matriz fundamental do sistema, tal como, no nosso
espaço jurídico, resulta da Constituição. No caso português, a necessidade
de especial consideração das circunstâncias associadas à idade consta,
inclusivamente, de previsões constitucionais expressas. A alínea b) do
452 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
n.º 1 do artigo 70.º confere aos jovens direito a proteção especial no
acesso ao primeiro emprego, no trabalho e na segurança social, enquanto
o artigo 73.º garante às pessoas idosas direito à segurança económica e
prescreve políticas que garantam aos idosos oportunidades de realização
pessoal, através de uma participação ativa na vida da comunidade. Mais
genericamente, no âmbito da proteção do direito ao trabalho, a alínea b)
do n.º 2 do artigo 58.º comete ao Estado a prossecução de políticas de
trabalho que promovam a igualdade de oportunidades. Em todos estes
casos, não estamos perante normas de aplicação direta, sendo indispensável
a mediação da ação do Estado, que dá espaço a opções de política. Mas
delas resultam parâmetros de avaliação dessas políticas e, bem assim,
a necessidade de conjugar a aproximação igualitária com a adoção de
medidas de discriminação positiva – cf., por todos, Miranda & Medeiros
(2010), pp. 1140-1, 1390 e 1404-5.
Como escreve Ichino, quando, por força das concretas soluções legais
aplicáveis “uma parte relevante dos desocupados ou irregulares esteja
de facto condenada a continuar em permanência em tal condição, sendo
composta por sujeitos cuja esperança de aceder em tempo razoável ao
trabalho tutelado acaba por ser, em concreto, nula ou exígua” (Ichino,
2004, p. 115), essas soluções devem ter-se por desconformes com o
quadro constitucional. Na verdade, a hoje incontornável14 e crescente
fragmentação dos interesses dos trabalhadores trouxe à luz o que para
alguns constitui uma função autónoma do Direito do Trabalho, a de
assegurar a correta distribuição de rendimento, poder, oportunidades e
recursos também entre os próprios trabalhadores (assim, Mundlak, 2011,
pp. 315-28). Será, porventura, mais correto considerar que esta função
está já compreendida na “racionalidade material” (em sentido weberiano)
que caracteriza o Direito do Trabalho, dirigido à prossecução de uma
igualdade material, não só entre as partes contratuais, mas também entre
grupos e trabalhadores (cf. D’Antona, 2000c, pp. 163-71). Com efeito,
“a sempre crescente heterogeneidade de interesses torna necessário
admitir que a ideia de que a clivagem trabalho-capital é a mais impor‑
tante instituição que anima o desenvolvimento das instituições relativas
ao mercado de trabalho não pode mais merecer adesão”, pelo que, “em
14
Não se trata, em bom rigor, de questão nova. Simplesmente, a suposta unidade
antropológica da figura do trabalhador, se desde há muito colocava problemas de
adequação à realidade social – ainda que, em certas perspetivas, fosse útil nos planos
ideológico e sindical, quando não na formulação de políticas de trabalho – tornou-se
agora insustentável.
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 453
vez de ocultar outras clivagens, é importante admiti-las e tornar a lei do
trabalho responsável pelo impacto distributivo que envolve” (Mundlak,
2011, p. 328).
O esquema de tutelas deve, portanto, ser reequacionado nesta perspetiva,
avaliando o seu funcionamento nos termos atuais e, reconhecendo-se o
seu efetivo afastamento da adequada prossecução dos valores constitu‑
cionais que lhe estão subjacentes, procurando modelos adequados a estes
heterogéneos interesses.
Este tipo de abordagem muitas vezes é dirigido ao mero abaixamento
generalizado das tutelas, sendo, nessa medida, criticado como mero
argumentário que visa fornecer lastro teórico a projetos de destruição
dos aspetos fundamentais do ordenamento laboral e à reaproximação da
relação do trabalho das meras transações comerciais (assinalando e des‑
montando estas críticas, Mundlak, 2011, pp. 322-3; em sentido paralelo,
Donati, 2002, p. 155, refere que o aproveitamento do tema da justiça
intergeracional por diversos quadrantes leva a que certos problemas (os
da pobreza ou do ambiente) sejam associados à “esquerda”, enquanto
outros (tipicamente, os associados às tutelas proporcionadas pelo estado
social) sejam qualificados como de “direita”). Contudo, trata-se de ques‑
tão bem diferente.
Como é bom de ver, será certamente contraditório que, em nome da
adequada concretização da matriz constitucional se destruam os valores
básicos que estão em causa ou se prejudique a efetiva realização do projeto
constitucional15, retirando consistência real a dimensões nucleares da tutela
do trabalho. Assim como parece muito discutível que, precisamente a partir
da afirmação de preocupações de justiça intergeracional, se avance para
soluções de layering (instituição de um novo quadro normativo aplicável
apenas às novas relações de trabalho, conservando as regras anteriores
para os contratos existentes) (esta foi a via adotada recentemente em
Itália, com as Reformas Fornero e Renzi – cf. para uma síntese, Carinci,
2015, pp. 7-9 e, mais desenvolvidamente, Santoni, 2015, pp. 113-36).
Fazê-lo implica dar força de lei à criticada segmentação que resulta do
que se assume ser o indevido funcionamento dos mecanismos legais.
15
A legitimação deste tipo de solução poderá assentar numa visão particular do prin‑
cípio da igualdade, que valorize mais a eliminação das (efetivas) diferenças de tratamento
do que o nível geral de bem-estar. No fundo, somos aqui confrontados com um tema
clássico da justiça distributiva, que tem clara projeção no tema da justiça intergeracio-
nal – cf. McKerlie, 2013, pp. 71-4 e 78, e Arrhenius, 2011, p. 329.
454 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
O caminho deverá, pelo contrário, fazer-se pela diversificação das
tutelas, conjugando as soluções legais com os interesses dos diferentes
estratos etários e recalibrando os dispositivos de proteção, não apenas nos
termos e âmbito da proteção da estabilidade, mas também ajustando os
regimes de flexibilidade na realização da prestação à evolução dos inte‑
resses das diversas camadas etárias. E articulando também a tradicional
proteção no quadro do contrato com esquemas de tutela que atendam à
posição do trabalhador no mercado de trabalho, quer no que concerne aos
apoios à formação e à procura de ocupação, quer, num outro plano, na
correta imputação aos empregadores dos custos sociais das suas estratégias
gestionárias (designadamente, tornando-os responsáveis pelos custos de
proteção social inerentes a modelos que assentam numa excessiva rotação
de pessoal ou no desproporcionado recurso a esquemas de contratação
precários). Boa parte das tentativas de resposta a estes problemas tem,
aliás, passado pelo incentivo a esquemas de contratação que permitam
simultaneamente o acesso ao emprego e o afastamento progressivo do
trabalho, designadamente pela partilha de postos de trabalho, ajustada
com mecanismos de apoio social (veja-se Barabaschi, 2015, pp. 5-8).
Da mesma forma, também as próprias normas que instituem e supor‑
tam a representação coletiva apenas estarão conformes a essa mesma
matriz fundamental se proporcionarem uma intervenção destinada a “uma
elevação geral das condições de vida e de trabalho dos trabalhadores” e
não “em função da autodefesa de um grupo circunscrito contra a concor‑
rência privada” (Ichino, 2004, p. 116; mais desenvolvidamente sobre as
clivagens inerentes às estratégias sindicais, Mundlak, 2011, pp. 321-2 e
325-7). Não podendo a lei laboral impor às estruturas de representação
coletiva uma específica linha de atuação, cabe-lhe, no entanto, avaliar e
regular os resultados dessa ação, garantindo a sua adequação ao quadro
valorativo fundamental – recorde-se, v.g., que o Código do Trabalho
contempla já um sistema de controlo das convenções coletivas no sentido
de garantir a inexistência de discriminações em função da idade (n.os 3 e 4
do artigo 25.º). Deverá, ainda, estimular a assunção de responsabilidades
dessas estruturas no âmbito da articulação dos interesses diferenciados
das sucessivas gerações de trabalhadores. A preponderância que a repre‑
sentação coletiva dos trabalhadores assume na matriz constitucional do
sistema requer adaptação às novas circunstâncias, traduzida na adaptação
da legislação de suporte à ação coletiva.
Mais radicalmente, a perspetiva intergeracional põe em evidência a
crescente obsolescência de um esquema de tutelas rigidamente enraizado
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 455
no contrato de trabalho comum ou, mesmo, no trabalho subordinado. No
caso português, é usual considerar-se, por exemplo, a contraposição das
posições jusfundamentais ligadas à segurança no emprego e à posição
jurídica do trabalhador no contrato de trabalho, tuteladas com o regime dos
direitos, liberdades e garantias, com o direito ao trabalho, o qual “embora
se funde ainda na dignidade da pessoa humana e se destine ‘a prover às
necessidades de uma vida digna’ (cf. Acórdão n.º 635/99 do Tribunal
Constitucional), constitui tipicamente, por contraposição aos direitos,
liberdades e garantias, um direito económico, social e cultural”, pelo que
“o seu destinatário primeiro é o Estado […] e a sua plena efetividade
pressupõe a prévia criação das condições normativas e fácticas de que
depende o pleno cumprimento do programa constitucional” (Miranda
& Medeiros, 2010, pp. 1139-40). Sublinha-se, ao mesmo tempo, que
“a segurança no emprego […] respeita aos trabalhadores subordinados
e pressupõe ‘a existência de uma situação jurídica laboral’, ‘visando
assegurar a sua subsistência e o seu normal desenvolvimento’”, ao passo
que “em contrapartida […] o direito ao trabalho refere-se genericamente
aos cidadãos”, abrangendo “o exercício de qualquer profissão ou género
de trabalho, anda que se trate de trabalho dependente” (Miranda &
Medeiros, 2010, pp. 1139, reportando-se também aqui à jurisprudência
do Tribunal Constitucional). A dicotomia condiciona, pois, a tutela efe‑
tiva e reforçada dos direitos inerentes ao trabalho à titularidade de uma
relação de trabalho, dela privando aqueles que não acedem a um posto
de trabalho ou cuja atividade não se desenvolve nos moldes do trabalho
subordinado. Esta visão é, no fundo, ainda tributária da velha conceção
do Direito do Trabalho como ordenamento aplicável aos trabalhadores
subordinados, enquanto parte de um contrato de trabalho. Carece, todavia,
de atualização, que a faça corresponder à substituição do trabalho pelos
trabalhos, mais a mais quando assimetricamente distribuídos em função da
idade. A plena realização do compromisso social corporizado no projeto
constitucional requer uma leitura consentânea com um recentramento do
próprio Direito do Trabalho, quer através do alargamento da sua malha
protetora, quer pela reconfiguração do próprio conceito de subordinação
(vejam-se, v.g., nesta linha, entre muitos outros, Simitis, 1997, 632-4,
Ghera, 2006, pp. 158-66, e Freeland & Kountouris, 2011, pp. 11-43).
Verificamos, portanto, que a justiça intergeracional proporciona, em
simultâneo, um parâmetro de avaliação do vigente ordenamento laboral e
um critério de ação. Que impõe, igualmente, a reponderação de institutos
específicos do ordenamento laboral (desde logo, e como se assinalou,
456 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
nos que se prendem com a medida e o tipo de tutela da estabilidade
do vínculo, mas também, entre outros, os atinentes à configuração dos
regimes de flexibilidade – acentuando a dimensão atinente aos interesses,
distintos, dos vários universos de trabalhadores – ou, mesmo, à vigência
das convenções coletivas – uma vez que a possibilidade de renovação
dos conteúdos convencionais pode ser decisiva nesta matéria).
Cabe-lhe, ainda um outro papel, o de tópico relevante na construção
de modelos de decisão de casos concretos. Vejamos, muito brevemente,
três exemplos.
No Acórdão n.º 474/2013, o Tribunal Constitucional pronunciou-se
pela inconstitucionalidade de uma norma que alargava o regime então
vigente de cessação do contrato de trabalho por razões objetivas dos
trabalhadores da Administração Pública aos trabalhadores que, até então,
beneficiavam da proteção que lhes era conferida pelo n.º 4 do artigo
88.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro. Este último preceito, com
natureza de regime transitório, colocava os trabalhadores nomeados defi‑
nitivamente até à data de entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2008 e cujo
vínculo passasse a seguir as regras do contrato de trabalho em funções
públicas ao abrigo dos regimes de cessação do contrato de trabalho por
razões objetivas aplicáveis aos demais trabalhadores com vínculo de
idêntica natureza. Esta norma de salvaguarda suscitou acesa discussão,
centrada no princípio da igualdade.
Mesmo reconhecendo que os trabalhadores da Administração Pública
não beneficiam, por força da Constituição, de proteção acrescida em
matéria de estabilidade do vínculo para além da concedida à generalidade
dos trabalhadores (designadamente, dos sujeitos ao Código do Trabalho),
o Tribunal considerou que a supressão dessa garantia constituiria violação
do princípio da tutela da confiança e que “não se encontra fundamento
que permita considerar a presença de razões de interesse público com
peso prevalecente sobre a confiança gerada pela expectativa legítima
reforçada de defesa relativamente ao afastamento do despedimento sem
justa causa subjetiva, nos mesmos termos de outros trabalhadores com
que partilharam até à entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de
fevereiro, o regime de nomeação definitiva”. Esta argumentação centra‑
-se, pois, exclusivamente no princípio da tutela da confiança (sendo
relevante notar que esta especial proteção tinha sido conferida apenas
cinco anos antes, não existindo até então), sugerindo uma comparação
com os trabalhadores cujo vínculo passou, com a Lei de 2008, a assumir
a natureza de nomeação. Nada se refere, porém, quanto aos efeitos deste
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 457
absoluto bloqueio dos despedimentos com justa causa objetiva, em especial
quando conjugados com a persistência de grandes restrições à admissão
de novos trabalhadores para a Administração Pública. Aliás, vigorava ao
tempo uma versão especialmente draconiana desta política, determinando
que no máximo pudesse ser admitido um trabalhador por cada quatro
saídas. Estas restrições à admissão na função pública, cujo impacto se
projeta assimetricamente nos mais jovens, suscitam por si mesmas fonte
de reflexão (em termos práticos, está-se a reduzir drasticamente, quanto
aos trabalhadores mais jovens, o direito de acesso à função pública
garantido pelo n.º 2 do artigo 47.º da Constituição). A sua conjugação
com a salvaguarda ad hoc de 2008 é especialmente lesiva da situação
dos mais jovens. Teria, por isso, sido importante que a ponderação da
justiça intergeracional tivesse sido introduzida no processo argumentativo
(enfatizando a unilateralidade da argumentação fundada no princípio da
confiança, nos termos em que neste aresto a desenvolveu o Tribunal
Constitucional, e assinalando as questões relativas à representatividade
sindical, Medeiros & Pereira da Silva, 2015, pp. 424-31).
Num outro aresto, o Acórdão n.º 602/2013, o mesmo Tribunal con‑
siderou inconstitucional a eliminação dos critérios legais de seleção
dos trabalhadores a despedir em caso de despedimento por extinção
do trabalho nos termos em que foi operada pela Lei n.º 23/2012, de 25
de junho. Este diploma substituiu os critérios que então vigoravam, na
tradicional lógica last in, first out, passando a exigir que o empregador
indicasse “critérios relevantes e não discriminatórios face aos objetivos
subjacentes à extinção do posto de trabalho”. O Tribunal Constitucio‑
nal considerou que a nova solução legal não previa regras capazes de
acautelar suficientemente a defesa da posição do trabalhador perante a
invocação de fundamentos adequados. Em consequência desta decisão,
foi repristinada a formulação anterior (posteriormente substituída, e em
termos que suscitam, do nosso ponto de vista, muito maiores dúvidas
do que a previsão reprovada pelo Tribunal Constitucional, entre outras
razões pela inconsistência interna também do ponto de vista da justiça
intergeracional). De novo, em parte alguma foi equacionado o impacto
da regra tradicional na posição relativa dos trabalhadores de diferentes
quadros etários. O Tribunal limitou-se (aliás, estranhamente, considerando
o regime vigente para o despedimento coletivo) a ponderar a substituição
de critérios taxativos e rigidamente hierarquizados a partir de uma das
dimensões do princípio da segurança do emprego, sem atender a consi‑
458 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
derações de outra índole, designadamente à discriminação proporcionada
pelas regras anteriores, cuja repristinação determinou.
Deparamos, no fundo, com a omissão da temática da justiça inter‑
geracional. Certamente que a ponderação dos problemas ligados às
posições relativas na procissão geracional e o impacto que nelas tem o
ordenamento laboral teriam proporcionado um mais adequado modelo
de decisão (ainda que, porventura, sem alterar o sentido desta).
Já o Tribunal de Justiça da União Europeia, debruçando-se sobre
tratamentos diferenciados em função da idade, evoluiu no sentido da
ponderação dos aspetos associados à justiça intergeracional. Partindo dos
princípios e normas comunitários (sobretudo a Diretiva 2000/78/CE), a
questão é metabolizada através dos temas da igualdade e da não discri‑
minação. Em casos como os abordados em Mangold (Processo C-144/04,
Werner Mangold contra Rüdiger Helm) e Swedex (Processo C-555/07,
Seda Kücükdeveci contra Swedex GmbH&Co, KG), estas diferenciações
foram enquadradas a partir das regras comunitárias que vedam a discrimi‑
nação em função da idade, sem ponderar, de um ponto de vista “interno”,
o posicionamento relativo dos trabalhadores a partir da idade. Já com
o Acórdão Palacios de la Villa (Processo C-411/05, Félix Palacios de
la Villa contra Cortefiel servicios, SA) o Tribunal manifestou abertura,
em sede de apreciação de regimes baseados em distinção etária, para a
ponderação dos aspetos ligados ao mercado de trabalho. Mais claramente,
no Acórdão Petersen (Processo C-341/08, Domnica Petersen contra
Berufungsausschuss für den Bezirk Wetsfalen-Lippe) é feita diretamente
menção à legitimidade da ponderação da situação específica dos jovens
quanto ao acesso a determinada profissão. Por sua vez, em Age Concern
England [Processo C-388/07, The Incorporated Trustees of The National
Council on Ageing (Age Concern England) contra Secretary of State for
Business, Enterprise and Regulatory Reform] o Tribunal de Justiça não
apenas admite a pertinência da consideração de políticas de emprego, do
mercado de trabalho e da formação profissional como defere aos tribunais
nacionais a competência para verificar a adequação e necessidade de
medidas legislativas à luz desses objetivos (para uma análise abrangente
da jurisprudência europeia nesta matéria, Moreira, 2012, pp. 63-124;
e Mestre, 2014, pp. 582-621; bem como Barnard, 2014, pp. 368-75).
Ainda que com as limitações decorrentes de uma abordagem fundada
na ideia de não discriminação (e, bem assim, de uma visão discutível do
mercado de trabalho, dando por assente a fungibilidade entre jovens e
idosos), encontramos, pois, abertura à ponderação de tópicos ligados à
JUSTIÇA INTERGERACIONAL E MERCADO DE TRABALHO 459
justiça intergeracional e o convite às instâncias jurisdicionais nacionais
para a sua realização.
Curiosamente, este mesmo tipo de questões tem sido debatido no
contexto nacional, (recorde-se, em todo o caso, que já há várias décadas
se aludia aos problemas colocados por um “princípio latente de discri‑
minação” contra os trabalhadores mais velhos – Monteiro Fernandes,
1965, p. 87) sobretudo a propósito do regime de acesso à reforma por
velhice e da sua repercussão na vigência do contrato de trabalho (con‑
cretamente, no quadro da solução introduzida pelo artigo 5.º do regime
jurídico da cessação do contrato de trabalho aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 64-A789, de 27 de fevereiro, e que, com várias adaptações, consta hoje
do artigo 348.º do Código do Trabalho – sobre estes problemas, cf. Ramos
de Faria, 2009, pp. 225-36; e Furtado Martins, 2012, pp. 114-20).
E também nesta discussão o Tribunal Constitucional recusou relevância
ao tópico da justiça intergeracional. Conforme se escreveu no Acórdão
581/95 (cuja argumentação foi acolhida também no Acórdão n.º 747/95),
“é sobretudo na perspetiva de uma justificação inerente à função do traba‑
lho e ao equilíbrio do contrato que haverá de indagar-se da razoabilidade
da opção do legislador”, “ou seja, a lógica não é aqui a de uma ‘justiça
de distribuição’ que tenha em vista uma ‘osmose’ entre a empresa e o
mercado de trabalho, mas uma lógica que, em nome da dignidade e da
solidariedade, atende às alternativas que se apresentam ao trabalhador
e, num certo sentido, à relação comutativa das prestações no contrato”
(isto porque, no entender do Tribunal, “aqui, não deve convocar-se uma
conceção ‘utilitarista’ dos direitos fundamentais no sentido de encontrar,
sem mais, justificação para uma estabilidade condicionada do emprego
‘particular’ dos mais velhos em ordem à satisfação de um ‘bem geral’
a que se ordenem as políticas de pleno emprego”, pois “como direitos
individuais, os direitos fundamentais têm limites de redutibilidade, não
podem ser dissolvidos nos desideratos das políticas globais do Estado”).
Deparamos, pois, com a desconsideração dos aspetos distributivos desde
sempre inerentes ao próprio Direito do Trabalho (desconhecendo-se a
nova realidade de escassez estrutural do emprego) e com uma inespe‑
rada cisão entre a vertente contratual (ligada à ponderação da situação
do trabalhador no contrato de trabalho) e a dimensão de ordem pública
do ordenamento juslaboral (na qual está presente, ao lado dos interesses
das partes, a ponderação dos interesses gerais).
Estes são, apenas, alguns exemplos da relevância da justiça interge‑
racional como parâmetro de valoração do ordenamento vigente, critério
460 ANTÓNIO NUNES DE CARVALHO
para a sua reformulação e tópico a ponderar na construção de modelos
de decisão. Fica, naturalmente, a faltar a sua aplicação sistemática aos
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Xavier, 1976. B. Lobo Xavier, “A política de emprego e o regime do contrato de traba‑
lho (Alguns aspectos do regime da duração do trabalho em Portugal)”, Revista de
Direito e Economia, II (1976)
Xavier, 1986. B. Lobo Xavier, “A crise e alguns institutos do Direito do Trabalho”,
Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXVIII (I da 2.ª série), n.º 4
Xavier, 2005. B. Lobo Xavier, Direito do Trabalho. Ensinar e investigar, Lisboa:
Universidade Católica Editora
Xavier, 2009. B. Lobo Xavier, “As fontes específicas do Direito do Trabalho e a supe‑
ração do princípio da filiação”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel
Henrique Mesquita, vol. II, Coimbra: Coimbra Editora
Xavier, 2014. B. Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, 2.ª edição, com a cola‑
boração de P. Furtado Martins, A. Nunes de Carvalho, Joana Vasconcelos e Tatiana
Guerra de Almeida, Lisboa: Verbo
Zanelli, 1985. P. Zanelli, Impresa, lavoro e innovazione tecnologica, Milão: Giuffré
IV.
Política Empresarial
Governança Societária e Justiça Intergeracional
Evaristo Mendes
Governança Societária e Justiça
Intergeracional
Evaristo Mendes*
Introdução
Em termos gerais, a governança societária ou governança corporativa
(corporate governance) (sobre a terminologia, cf. Garcia, 2007, nota
604, Olavo Cunha, 2016, nota 820) pode ser identificada com um con-
junto de boas práticas, máximas, regras, princípios e/ou recomendações
destinadas a promover uma gestão de empresas responsável e criadora
de valor (ou riqueza) num arco temporal de longo prazo, bem como um
adequado controlo e transparência das mesmas (cf. Schmidt, 2002,
p. 767, Cordeiro, 2011, p. 901). Numa caracterização mais analítica,
tendo em conta a realidade portuguesa na qual o presente artigo se
encontra focado, podemos também partir da seguinte noção: (a) conjunto
articulado de estruturas, regras de competência e funcionamento, normas
de comportamento, princípios e recomendações, assim como incentivos e
boas práticas, (b) aplicáveis a uma sociedade comercial de caráter corpo‑
rativo (SQ, SA e SCA) ou nela observáveis, (c) que lhe são impostas ou
a condicionam independentemente da sua vontade, no seu modo de ser,
funcionar e agir, interna e externamente (heterodeterminação), a que ela
se submete voluntariamente (autorregulação) ou que respeita sem estar
vinculada ou constrangida a isso, (d) tendo como objetivo (i) contribuir
para otimizar o seu funcionamento e o exercício da atividade produtiva
que constitui o seu objeto, (ii) de forma sustentável e num arco temporal
* Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e
Mestre em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas, atual Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa. Professor convidado desta Faculdade (Escola de Lis‑
boa), cocoordenador dos Cursos de pós-graduação em Direito Comercial e coordenador
adjunto do mestrado em Direito Empresarial.
Advogado (consultor jurídico), autor e coautor de diversos textos, artigos e comentários
jurisprudenciais, sumários de aulas e pareceres, sobretudo na área do Direito Comercial,
em que também leciona e tem atuado como árbitro. Antigo bolseiro do DAAD e do Max
Planck Institut de Munique (Direito da Propriedade Industrial).
470 EVARISTO MENDES
de longo prazo, tendencialmente ilimitado, (iii) em benefício de todos os
seus sócios, com tratamento equitativo destes, (e) levando em considera‑
ção (i) o papel ou função económico-social geral que a sociedade, com
a respetiva empresa, enquanto organização humano-técnico-produtiva de
mercado juridicamente interligada que constitui a peça nuclear do tecido
socioeconómico, em especial do tecido produtivo nacional, é chamada
a desempenhar, bem como (ii) a sua condição de célula social básica,
espaço de vida e realização pessoal e profissional.
Utilizamos, portanto, um conceito lato de governança societária, com‑
preendendo normas de direito estrito ou cogente (hard law), incluindo
mínimos éticos e deveres de relato, financeiro e não financeiro, bem
como instrumentos de direito brando ou flexível, máxime códigos de
boas práticas que vão além da lei (soft law). Em sentido restrito, a
governança tem a ver com este direito brando, de caráter essencialmente
recomendatório e dominado pelo princípio «cumpre ou explica porque
não cumpres» (cf. Câmara, 2002, pp. 65 et seq., Frada, 2014, pp. 339
et seq., Maia, 2012, pp. 43 et seq., Olavo Cunha, 2016, pp. 547 et seq.,
Abreu, 2010, pp. 6 et seq.).
Realça-se, ainda, que, embora a governança societária seja um tema
transversal, que inclusive não tem de se circunscrever às SQ e SA, na
prática, ela está pensada para estas últimas ou até, mais restritamente,
para as sociedades anónimas abertas (sobre o conceito, artigo 13.º do
CVM), nas quais os problemas societários são, em boa medida, também
problemas do mercado de capitais e de quem nele investe. Não é por
acaso que os primeiros instrumentos de governação societária em Portugal
tenham vindo da CMVM, a entidade reguladora na matéria, e hajam tido
como objetivo fundamental a proteção do mercado e dos investidores,
designadamente investidores em ações, completando o regime legal e
regulamentar.
Salienta-se também que, em temas sensíveis como os do ambiente,
do respeito dos direitos humanos, etc., por um lado, o impacto das gran‑
des organizações produtivas, em boa medida sociedades multinacionais
abertas, assume um significado especial, por outro lado, elas estão não
apenas na origem de muitos dos problemas existentes, mas, igualmente,
em condições de contribuir para a sua resolução ou minoração. Daí que,
para além das regras e princípios, proibitivos, impositivos e recomen‑
datórios de fazer e de não fazer, de cumprir ou explicar porque não se
cumpre, se lhes aplique também a regra «diz pelo menos o que andas
a fazer» (obrigação de transparência mediante relato não financeiro).
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 471
Em face desta caracterização sumária, cabe perguntar: tem a gover‑
nança societária alguma coisa a ver com a justiça intergeracional? Esta
justiça é uma das preocupações dos teóricos da mesma, do legislador
societário e/ou dos promotores e redatores dos existentes códigos de boas
práticas ou bom governo das sociedades? Pode a governança contribuir
para um tratamento equitativo das gerações futuras (e/ou das gerações
mais novas, alargando o campo de análise)?
A resposta apresenta-se matizada. Na verdade, por um lado, é pos‑
sível identificar pontos de contacto entre os temas: seja em virtude da
típica dimensão transgeracional – embora estatisticamente limitada (cf.
Ferreira et al., s/d) – da empresa societária (mono ou plurissocietária),
para os sócios/acionistas, para a respetiva comunidade de implantação e,
enquanto peça do tecido produtivo do país, para a própria comunidade
nacional; seja através do legado, positivo e negativo, da sua ação, máxime
em termos ambientais, mas também sociais (considerando aspetos como
as oportunidades de emprego que oferece, a formação de trabalhadores,
o espaço de conhecimento e de realização que representa, etc.).
Por outro lado, os estudos e instrumentos de governança societária
não estão, em geral, pensados para promover a justiça intergeracional,
designadamente protegendo as gerações futuras contra o possível impacto
adverso das ações presentes na saúde, no ambiente e na qualidade de vida
dessas gerações. Isso acontece, inclusive, nos modelos de governança
socialmente responsável, de criação de valor partilhado e de tutela de
investimentos específicos. Em todo o caso, dela podem resultar benefícios
ou efeitos positivos para essas gerações, como se vai ver.
Começa-se por um enunciado geral de tais efeitos possíveis (n.º 1).
Segue-se um título dedicado à governança nas sociedades abertas (n.º 2),
procurando identificar na lei – e sobretudo em existentes instrumentos
recomendatórios – princípios, disposições e outros mecanismos suscetí‑
veis de melhorar o governo das organizações produtivas, com potenciais
benefícios não apenas para as gerações presentes mas também para as
que hão de vir. Dado o caráter geral da obra em que o presente estudo se
insere, optou-se por um relato em extensão de tais instrumentos, que seria
naturalmente desnecessário se o público alvo fosse mais especializado.
Dá-se aí relevo especial ao Livro Branco da governança societária (2.1),
seguindo-se o Código da CMVM (2.2), o existente Projeto do Código
do IPCG (2.3), o correspondente Código brasileiro (2.4), o Livro Verde
e o Plano de ação da Comissão Europeia (2.5) e os Princípios do G20 e
da OCDE (2.6). Termina-se com uma síntese conclusiva (2.7). O sub‑
472 EVARISTO MENDES
sequente n.º 3 respeita à governança das sociedades fechadas. O último
título (n.º 4) é dedicado aos objetivos da sociedade e da respetiva gestão,
enquadrando a governança societária no modelo socioeconómico que se
extrai da Constituição. No centro de análise estará o artigo 64.º, n.º 1, do
CSC, em face do artigo 61.º, n.º 1, da CRP e do «quadro» constitucional
para que este remete, onde pontuam preocupações sociais e ambientais
suscetíveis de influenciar a interpretação da lei societária.
O plano inicial compreendia um título adicional em que, por um
lado, se confrontava o modelo dominante da gestão das sociedades
orientada para a criação de valor para os sócios (shareholder value)
com modelos plurais «alternativos» – como os das partes interessadas
(stakeholders), da criação de valor partilhado (creating shared value), da
responsabilidade social das empresas (corporate social responsability) e
da equipa de produção ou do investimento específico (team production
theory) – revendo alguma literatura, sobretudo económica, e procurando
verificar se estes últimos constituem verdadeira alternativa ao primeiro;
por outro lado, se analisavam alguns textos e propostas de melhoria do
sistema existente, designadamente no plano dos «deveres fiduciários»
dos administradores, de modo a conseguir uma maior sustentabilidade
das organizações produtivas, com preservação e valorização social e
ambiental, levando em devida conta as gerações futuras. Por limitações
de espaço, esta parte teve, no entanto, de ficar de fora. Faz-se, em todo
o caso, uma alusão sumária ao assunto. Para alguns dados adicionais,
veja-se evaristomendes.eu, I.10.
Como se observará, a ideia força da governança societária com mais
relevância para a justiça intergeracional é a de sustentabilidade no longo
prazo (cf., e.g., a respeito do ambiente, Neves, 2008, p. 432 et seq.).
Atendendo a este seu objetivo geral, pode ver-se nela a afirmação do
tempo e das vistas longas da economia – do tecido económico-produtivo
e das organizações de mercado que o compõem (breviter, «empresas»),
que geram riqueza e constituem formas de riqueza real, transformando
recursos em capital produtivo operacional – contra o tempo e as vistas
curtas da finança (ou de certa finança).
No campo do Direito e das políticas públicas, existe também o tempo
longo do Estado de Direito, com o elemento nuclear dos direitos funda‑
mentais (incluindo ambientais), garantidos pela Constituição, e o tempo
curto do princípio democrático (e.g., Garcia, 2007, Silva, 2010), que,
sendo igualmente um princípio estruturante do sistema constitucional,
se encontra limitado por estes direitos. Quando se olha a governança
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 473
societária sob a ótica de tais direitos – mormente dos direitos ambientais,
do direito à saúde e da liberdade de empresa, com a função socioeco‑
nómica que é chamada a desempenhar –, a ideia de sustentabilidade no
longo prazo surge naturalmente evidenciada; mas ela ganha, ainda, uma
dimensão transgeracional.
Note-se, no entanto, que a sustentabilidade no longo prazo que verda‑
deiramente interessa, em termos coletivos, é não tanto a das organizações
produtivas atomisticamente consideradas, mas a do tecido produtivo por
elas constituído. Nessa perspetiva de longo prazo, o sistema deve eliminar
as empresas ineficientes. Significa isto que a sustentabilidade de longo
prazo – e mesmo transgeracional – das organizações produtivas não é,
sem mais, benéfica para as gerações futuras. A ótica de governo das
sociedades deve ser essa, criando-se condições para que tal aconteça,
mas ela tem os seus limites.
Olhando para a realidade nacional, por um lado, na aplicação do regime
insolvencial, verifica-se uma natural tentação para atender a necessidades
sociais e interesses de curto prazo. Por outro lado, há organizações que,
pela sua relevância sistémica, são demasiado importantes para deixar
cair. Por estas e outras razões, a administração das sociedades tem sido
desequilibrada: há um recurso intensivo ao capital alheio, com e sem
garantias pessoais, de que resulta um endividamento estrutural excessivo e
uma gestão porventura não tão criteriosa como aquela que existe quando
se gerem interesses próprios. Este sobre-endividamento – que onera
as organizações (tendencialmente duradouras), mas também o próprio
Estado «auxiliador» e os contribuintes, presentes e futuros – representa
um importante fardo transgeracional. O tema está, em alguma medida,
presente nos existentes instrumentos de governança societária; fica, no
entanto, a sensação de que é preciso fazer muito mais.
Além disso, numa outra ordem de ideias, é conhecido o malefício
económico e social das insolvências fraudulentas, envolvendo desig‑
nadamente a criação e destruição repetidas e sucessivas de sociedades
mercantis pelas mesmas pessoas, sem consequências de maior para os
respetivos responsáveis, não por falta de lei, mas por falta de resposta
adequada da administração da justiça. A governança societária poderia ter
aqui um papel, sobretudo preventivo, mas o assunto encontra-se ausente
dos modelos correntes, pelo que não nos ocupamos dele.
474 EVARISTO MENDES
1. Possíveis efeitos positivos da governança societária na realização
da justiça intergeracional. Enunciado geral
1.1.
G overnança societária e sustentabilidade transgeracional.
Modelos de governança
Em primeiro lugar, cumpre referir a existência de potenciais efeitos
positivos, quando se impõe, recomenda e/ou incentiva a gestão das
sociedades – ou dos centros de atividade produtiva constituídos por elas
e as respetivas empresas – de forma sustentável, num arco temporal de
longo prazo, tendencialmente ilimitado, bem como a adoção de estruturas
que a favoreçam; promovendo designadamente políticas de investimento
cujo retorno expectável apenas poderá ocorrer nesse horizonte temporal,
como investimentos vultosos em infraestruturas, em certos projetos de
investigação e desenvolvimento, em capital humano e na criação de
uma teia de relações sociais e de mercado virtuosa, estável e com forte
componente fiduciária (promotora de eficiência, designadamente através
de um maior comprometimento dos diversos interessados na sua ação
potenciador de investimentos específicos, da redução de custos de transa‑
ção e litigância, etc.). São de vária ordem os benefícios transgeracionais
aqui identificáveis. Salienta-se o que se segue.
Por um lado, beneficiam disso as futuras gerações de sócios/acionis‑
tas, que recebem uma organização produtiva sólida e duradoura de que
podem usufruir (legado da organização produtiva). A circunstância de
se tratar de uma organização de membros variáveis, transsubjetiva, torna
isso possível. Por outro lado, beneficiam também as gerações futuras que
procuram emprego e cargos de gestão (e encontram esse emprego e um
ambiente propício à valorização das suas capacidades), a que pode acres‑
cer uma melhor formação possibilitada por um ambiente familiar mais
evoluído, em virtude da aposta na valorização do capital humano (legado
económico-social). Beneficiam, igualmente, os fornecedores, clientes e
outras partes interessadas, que se vão mantendo e sucedendo, incluindo
a comunidade de implantação da organização, enquanto comunidade de
pessoas, presentes e futuras; e beneficia, ainda, a economia nacional, das
gerações presentes e futuras, na medida em que a organização poderá
ser uma peça importante do tecido produtivo do país (legado económico,
mas com uma dimensão suscetível de ir além desta vertente económica).
Havendo uma atividade de investigação e desenvolvimento, promove-se
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 475
a formação de um património tecnológico e de conhecimento de que,
igualmente, beneficiam as gerações futuras (legado tecnológico).
Um aspeto sensível nesta sustentabilidade transgeracional das organi‑
zações produtivas, importante para a sua solidez e solvência, é a gestão
do risco. Esta é, portanto, uma preocupação recorrentemente espelhada
em princípios e recomendações nos códigos de governança societária.
A profissionalização, a separação, no âmbito da administração da socie‑
dade, da gestão operacional ou executiva, a instituição de mecanismos
fiáveis e eficazes de fiscalização (cf. também J. Gomes, 2015, Câmara
et al., 2015), de relato, financeiro e não financeiro, e prestação de contas,
com devida publicidade legal, promotora de transparência, são, igual‑
mente, temas salientes.
Para otimizar a criação de riqueza económica e social, desta forma
duradoura e sustentável, existem vários modelos de governança que
«competem» entre si. O modelo que se afigura dominante em Portugal
é o da criação de valor para os sócios/acionistas – segundo o padrão do
acionista iluminado, interessado em maximizar a sua riqueza no longo
prazo –, com tratamento equitativo de todos eles [cf., e.g., Câmara, 2008,
pp. 36 et seq., Serra, 2011, pp. 211 et seq., 244 et seq. (reconhecendo a
primazia dos interesses de longo prazo dos sócios, mas admitindo, além de
deveres procedimentais para com os stakeholders, situações excecionais
de «responsabilidade social sacrificadora do lucro»), e, ainda, o § 172
do CA 2006 do RU, CLR Steering Group, 1999, pp. 37, 39 et seq.,
Jensen, 2002, Williams, 2012, Rahim, 2014].
Na base do modelo, está a conceção da sociedade anónima (cotada)
– para a qual foi concebido – como uma organização pertencente aos acio‑
nistas e destinada à criação de valor para eles (shareholder value), sendo
esta portanto também a missão dos respetivos gestores (ligados àqueles,
através da corporação, por uma relação fiduciária dita de «agência») (cf.,
e.g., Friedman, 1962 e 1970). Na sua versão mais pura, o critério geral
de aferição do desempenho é o das cotações das ações em mercado; e,
nessa medida, pode falar-se num modelo de governança financeiro ou
financialista (Champaud, 2011).
Nesta forma, ele foi, no entanto, justamente criticado por favorecer
uma gestão orientada para o curto prazo. Daí as propostas de modificação
ou ajustamento, no sentido da prossecução do objetivo em causa numa
ótica de longo prazo e a correspondente ideia do acionista iluminado
ou esclarecido. Estamos, portanto, perante um modelo de governança
apelidável de modelo «financeiro» ajustado, embora, sobretudo quando
476 EVARISTO MENDES
aplicado também a sociedades não cotadas como sucede em Portugal,
se possa com mais propriedade falar num modelo do sócio iluminado
ou do «stakeholder» iluminado (Jensen, 2002) ou num modelo «instru‑
mental» das partes interessadas (instrumental em relação ao objetivo da
criação de valor para os sócios). Muitas vezes tem associado um certo
comprometimento ou responsabilidade social e ambiental, mas como
aspeto acessório e instrumental da produtividade e da sustentabilidade
económica, envolvendo aspetos reputacionais e estratégias competitivas
condizentes com estes. Note-se que a imagem social e a reputação pública
das organizações produtivas são consideradas «ativos» fundamentais das
mesmas, mormente em termos concorrenciais. Daí a relevância que lhes
é dada nalguns instrumentos de governança societária que têm na base
este modelo de governança.
Todavia, por num lado, há quem aceite a ideia básica de uma gover‑
nança ao serviço da maximização ou criação de valor para os acionistas,
no longo prazo, mas, ao mesmo tempo, negue aos membros deste grupo
a qualidade de titulares da corporação e a existência de uma relação de
agência entre eles e quem administra a sociedade, seja em virtude da
personalidade jurídica societária seja porque nas sociedades anónimas
o órgão de administração é dotado de poderes próprios e juridicamente
independente da coletividade social, afirmando o primado organizativo‑
-funcional do conselho de administração, instância hierárquica dotada do
superior poder de decisão na organização (um poder de mandar fazer)
(cf., em especial, Bainbridge, 2003, 2008 e 2015, e Padfield, 2015,
nota 6); por outro lado, têm sido defendidos modelos «alternativos» (ou
complementares), também eles em geral pensados para as sociedades
anónimas cotadas. Salientam-se os que se seguem.
Em primeiro lugar, o da governança multilateral ou das partes interes‑
sadas, que afetam e/ou são suscetíveis de ser afetadas pelo comportamento
da organização (stakeholder model/theory: Freemann, 1984, Freeman
et al., 2010), focado na gestão estratégica das relações organizacionais
de que depende o sucesso empresarial no longo prazo e apresentando
cambiantes – incluindo a mais elementar, em que surge como simples
instrumento para atingir fins como o lucro ou a própria maximização
do lucro no longo prazo – próxima do modelo financeiro ajustado ou
recondutível ao mesmo – mas numa delas, mais «progressista», com uma
associada componente ética (ética empresarial) que envolve designada‑
mente o tratamento das pessoas como fins e não como simples meios
(recursos económicos) (cf., e.g., Phillips, 2003, Phillips et al., 2003,
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 477
Freeman et al., 2004, Neves, 2008, pp. 319 et seq., 341 et seq., 411 et
seq., Rousseau, 2012, p. 116).
O segundo «modelo» comummente referido na literatura da espe‑
cialidade é o da responsabilidade social das empresas (RSE/CSR) (cf.,
e.g., Rousseau, 2012, Sacconi et al., 2011, Sacconi, 2004 e 2012,
Carrol/Shabana, 2010, Kerr et al., 2009, Johnson, 2013, Padfield,
2015, Neves, 2008, pp. 411 et seq., Comissão Europeia, 2001 e 2011a,
Gomez Segade, 2011, Serra, 2009 e 2011, Serens, 2014, Abreu, 2015,
pp. 280 et seq., Olavo Cunha, 2016, pp. 554 et seq.). Trata-se de um
modelo igualmente assente na pluralidade de partes interessadas a levar
em conta, numa mais ou menos pronunciada ética de responsabilidade
e na ideia de que, sendo as organizações produtivas, com as respetivas
envolventes, uma realidade complexa e evolutiva, a regulação legal,
estatutária ou contratual da sua atividade e das suas relações, é natural‑
mente imperfeita ou incompleta, pelo que se torna imperioso ir além das
imposições de direito estrito (hard law).
Apresenta também diversas variantes, que vão desde as simples conce‑
ções «filantrópicas» e instrumentais da criação de valor acionário, jogando
sobretudo com o valor da reputação social das empresas, até formas mais
evoluídas que procuram incorporar a componente social e ambiental no
modelo de negócio, combinando responsabilidade com oportunidade, em
que as organizações produtivas são concebidas à imagem e semelhança
de um bom cidadão (são instituições sociais, fazem parte da sociedade,
do sistema social e político), sendo a responsabilidade social um fim e
não um simples meio para atingir objetivos comerciais, etc. No fundo, à
semelhança do que sucede com o modelo das partes interessadas, também
aqui encontramos uma dicotomia geral, entre conceções instrumentais
e as conceções finalistas da RSE/CSR, ou seja: (i) entre as conceções
da RSE/CSR que a encaram como um meio ou instrumento competitivo
de empresas com uma gestão orientada para o lucro ou valor acionista,
conferindo a estas uma aura socialmente legitimadora, e (ii) as conce‑
ções de pendor institucional (que veem a empresa como uma instituição
social, com um poder de decisão ao serviço da organização no seu todo,
envolvendo acionistas e outras partes interessadas, e cumprindo uma
função social na comunidade em que se insere) e éticas ou axiológicas,
que consideram a RSE/CSR um fim da empresa, assumindo esta como
parte do seu modelo de desenvolvimento económico e social; desenvol‑
vimento este insuscetível de se obter através da pura concorrência num
mercado orientado para o lucro. Mas há diversas correntes intermédias,
478 EVARISTO MENDES
incluindo, por exemplo, a que aposta na autorregulamentação da atividade
empresarial socialmente responsável como etapa preliminar, enquanto
não se consegue uma regulação supranacional dos mercados (cf., e.g.,
a ISO 26 000).
Em terceiro lugar, embora menos divulgado, encontramos o modelo
da produção em equipa com mediação hierárquica independente do CA
ou modelo de governança orientada para a promoção e tutela do inves‑
timento específico (team production theory: Blair & Stout, 1999). Está
em causa a produção de riqueza ou valor económico «em equipa», numa
perspetiva de longo prazo, não apenas para os acionistas mas também
para outros grupos de interessados, como os trabalhadores, que fazem na
empresa investimentos específicos (contribuem com recursos essenciais
e únicos, incluindo conhecimento, para a formação do valor, e assumem
riscos) que importa estimular e portanto proteger e remunerar adequada‑
mente. A empresa corporativa é vista como uma teia de investimentos
específicos, em contraposição à teia de «contratos» que, em certas con‑
ceções do shareholder value, o grupo dominante (acionistas) estabelece
com os demais interessados, e o conselho de administração é concebido
como uma instância de mediação de interesses e conflitos independente,
agindo no interesse da corporação no seu todo e não no interesse dos
acionistas apenas, desempenhando uma função estratégica coadjuvante
e não apenas de «monitorização» da gestão executiva.
Do ponto de vista jurídico, realça-se que nas sociedades anónimas
(mormente cotadas) o órgão de administração é independente dos acio‑
nistas, em contraste com a ideia de «agência» que caracteriza os modelos
do shareholder vakue, e que as mesmas têm personalidade jurídica, sendo
perante elas que os administradores detêm deveres fiduciários (limitados
pela business judgment rule).
Finalmente, temos o modelo da criação de valor partilhado, económico
e social (corporate shared value/CSV: Porter & Kramer, 2011), por
vezes associado ao modelo da RSE/CSR, como componente do mesmo
(cf., e.g., Comissão Europeia, 2011b). Segundo ele, o fim da «corpora‑
ção» (sociedade anónima) não consiste na simples prossecução do lucro,
devendo a sua atuação orientar-se para a criação de um valor partilhado,
ou seja, para a criação de valor económico de um modo tal, que também
envolva a criação de valor para a sociedade em geral, satisfazendo as
suas necessidades e respondendo aos seus desafios; juntando sucesso
da empresa societária (melhorando a sua competitividade) e progresso
social (melhorando as condições económicas e sociais das comunidade
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 479
em que a empresa opera), que permite legitimar o ganho comercial.
Não se trata de afetar recursos da empresa a causas sociais ou filantró‑
picas ou mesmo à sustentabilidade ambiental, à margem da atividade
da empresarial (perspetiva redistributiva), mas de uma nova maneira de
atingir o sucesso económico, de uma nova estratégia empresarial ou novo
modelo de negócio que incorpora esta componente de desenvolvimento
social com vista a potenciar esse sucesso económico no longo prazo
(expandindo o todo constituído por valor económico e social). O impacto
social e ambiental da sua ação é incorporado nessa estratégia com vista
a melhorar a criação de valor económico; designadamente, minorando
externalidades negativas e, ao mesmo tempo, ganhando com isso.
Embora o centro de atenção destes modelos multilaterais não seja
explicitamente a justiça para com as gerações futuras, eles podem, em
tese geral, ser mais favoráveis a uma sustentabilidade das organizações
produtivas com maior justiça transgeracional, incorporando estratégias
de «desenvolvimento com futuro» e, nas formas mais evoluídas, preo‑
cupações de justiça e ética de responsabilidade num tempo e espaço
alargados (sobre tais estratégias e formas, cf. Garcia, 2007). Todavia,
uma das grandes questões a eles associada, largamente controvertida,
consiste em saber se se trata de modelos capazes de competir com o
modelo dominante e dentro de que limites.
Paralelamente, existem propostas destinadas a introduzir nos modelos
de governança societária, designadamente, a responsabilidade ambiental,
através de mecanismos vinculativos como o dos deveres «fiduciários»
dos administradores, o que levaria, no caso do modelo dominante, a um
ulterior ajustamento do mesmo neste sentido (assim, Henderson, 2011
e 2013). Contudo, para já, não passam de propostas isoladas.
Justifica-se, ainda, uma referência à doutrina social da Igreja e à
«doutrina da empresa», correntemente conotada sobretudo com a cha‑
mada Escola de Rennes e ligada ao Fonds pour la Recherche sur la
Doctrine de l’Entreprise (FORDE). No que respeita à primeira, realça-se
a Encíclica Centesimus Annus (João Paulo II, 1991), com uma visão
antropocêntrica, comunitária e de longo prazo do mundo empresarial.
[Cf. também Sonnier, 2012, e Neves, 2008, pp. 344 et seq., realçando
a dupla condição do trabalhador, como recurso produtivo e como pes‑
soa, com dignidade superior, e a importância do trabalho para a vida
das pessoas, citando, ainda, a encíclica Laborem Exercens, igualmente
de João Paulo II, especialmente dedicada à questão laboral, na qual se
defende, inter alia, que o respeito pelo trabalho requer uma revisão do
480 EVARISTO MENDES
direito de propriedade dos meios de produção (capital).] Os partidários
da chamada «doutrina da empresa», em que se realçam juristas como
Champaud, Contin e Danet, pretendem afirmar uma concepção prag‑
mática, pluralista e humanista da empresa, próxima da teoria socioeco‑
nómica das partes interessadas, bem como da RSE/CSR e da doutrina
social da Igreja (embora sem o comprometimento teleológico destas),
apresentando-a como uma terceira via, entre o «financialismo» e o cole‑
tivismo marxista. No apêndice consultável em evaristomendes.eu, dão-se
indicações adicionais acerca da Encíclica e faz-se um breve apanhado
das ideias diretoras desta doutrina.
1.2. Governança societária e a questão ambiental
Via de regra, o problema da justiça intergeracional surge associado
a questões ambientais em sentido lato, incluindo a qualidade de vida e
o esgotamento, utilização irracional e delapidação de recursos naturais
finitos, a que podem acrescentar-se questões humanitárias e sociais (explo‑
ração de mão de obra infantil e juvenil, prejudicando designadamente a
formação das vítimas e a evolução das comunidades a que pertencem,
enquanto comunidades de membros presentes e futuros).
Para os partidários do modelo de governança que tem dominado inter‑
nacionalmente nas últimas décadas (shareholder value), estamos perante
um problema regulatório, não de governação societária. O sistema de
bom governo das sociedades pressupõe que a lei é cumprida, mas não lhe
acrescenta nada; não recomenda uma atuação responsável praeter legem.
Pelo contrário, nas palavras de Jensen (2002, p. 246), partidário do
modelo da maximização «iluminada», num horizonte de longo prazo, do
valor acionista, «Resolving externality and monopoly problems is the
legitimate domain of the government in its rule-setting function. Those
who care about resolving monopoly and externality issues will not suc‑
ceed if they look to firms to resolve these issues voluntarily. Firms that
try to do so either will be eliminated by competitors who choose not to
be so civic minded, or will survive only by consuming their economic
rents in this manner».
Todavia, cabe assinalar que um dos grandes problemas da regulação
social e ambiental, a acrescer à sua possível insuficiência, reside na
falta de cumprimento ou «mau cumprimento» das regras imperativas,
na matéria. Isto coloca problemas de vário tipo: frustra os objetivos da
lei e causa correspondentes danos, designadamente ambientais, por‑
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 481
ventura duradouros e irreversíveis ou só reparáveis com grandes custos
(incluindo custos a suportar pelas gerações futuras); distorce e falseia
a concorrência, eliminando os efeitos benéficos que dela se esperam e,
inclusive, torna-a injusta e nociva, em vez de socialmente útil; a pressão
de sobrevivência competitiva pode agravar as situações de incumprimento,
generalizando-as (efeito de imitação e dominó), colocando em crise o
próprio Estado de Direito.
Daí que, para além dos mecanismos de relato não financeiro acerca de
questões sociais, ambientais, de direitos humanos e corrupção – tornados
obrigatórios na UE para as grandes entidades empresariais pela Diretiva
n.º 2014/95/UE e recondutíveis à boa governança societária –, se consi‑
dere um princípio de boa governança promover esse cumprimento da lei,
designadamente criando adicionais mecanismos de vigilância, denúncia,
departamentos de compliance, etc. Diversos códigos de governança
contemplam este aspeto.
A aludida imagem e reputação das sociedades mercantis (tendo em
conta uma atual «sensibilidade ambiental» que vai para lá das exigências
legais, cf. Neves, 2008, p. 432 et seq.), bem como as consequências
financeiras desastrosas que para elas podem advir do incumprimento das
normas, também desempenham aqui um papel importante. E, ainda dentro
do modelo dominante da criação de valor para os sócios/acionistas, não
se exclui uma atitude mais pró-ativa da sociedade, desde que «avalizada»
por estes (Alves, 2007, pp. 180 et seq.).
Como se compreende, a perspetiva dos defensores dos alternativos
modelos de governança pluralistas, fundados numa ética de responsabili‑
dade, é diferente. As preocupações sociais e ambientais constituem uma
componente fundamental da estratégia empresarial e da governança, não
acessória. O próprio modelo da criação de valor partilhado, apesar de ser
um modelo económico, procura incluir as questões sociais e ambientais
na estratégia e no modelo de negócio.
Realça-se, no entanto, que, neste como noutros domínios, a busca
de soluções de racional e prudente equilíbrio, e compromisso, é funda‑
mental (cf. também Garcia, 2007, Neves, 2008, pp. 435 et seq., e, mais
geralmente, Champaud, 2012, pp. 184, 198 et seq.).
1.3. Governança das sociedades familiares
A assinalada dimensão transgeracional das sociedades mercantis (com
as respetivas empresas) – enquanto património que é deixado em legado
482 EVARISTO MENDES
às gerações futuras de sócios/acionistas e enquanto instituições integrantes
de um tecido produtivo duradouro – defronta-se com problemas especiais,
designadamente nas sociedades familiares, pequenas e grandes. Aquele
a que tem sido dada maior atenção é o problema da sucessão.
Na verdade, segundo dados colhidos em Ferreira et al. (2011), as
empresas familiares (grandes e pequenas), em Portugal, representam 80%
do total, geram 60% do PIB e são responsáveis por 50% do emprego.
Todavia, 50% não passam da primeira geração e apenas 20% atingem a
terceira (pp. 11 e 114). Entre as causas desta fraqueza do tecido produ‑
tivo nacional – e de perda de riqueza produtiva, que, se se conservasse,
beneficiaria as gerações vindouras – encontram-se razões de ordem
financeira (necessidade de pagamento de compensações a outros her‑
deiros, falta de meios e de apoio para consolidar posições na empresa e
inerente dispersão do capital, tornando o governo das sociedades muito
complexo – pp. 69 et seq.) e de competência profissional [os principais
envolvidos – sucedido, sucessor e colaboradores – não possuem conhe‑
cimentos e formação (meios de aprendizagem) que lhes permitam lidar
bem com a situação – pp. 114 et seq.].
Segundo os mesmos autores, a governança societária, tal como se
encontra prevista no Código Buysse (Buysse et al., 2009), pode ajudar
a promover o desempenho e a sustentabilidade destas organizações
produtivas familiares, designadamente promovendo a separação efetiva
entre o plano familiar («propriedade») e o plano empresarial, melhorando
a gestão de riscos, etc. (ibidem, pp. 61 et seq.). Porém, o problema da
sucessão requer instrumentos mais vastos, de governança familiar, pla‑
neamento sucessório, apoio financeiro e fiscal, etc. (ibidem, pp. 59 et
seq., 69 et seq., 102 e 124; cf. também R. Xavier, 2016, e, sobre as SQ
em geral, Martins, 2016).
1.4. Políticas remuneratórias, compensatórias e de dividendos
Termina-se este enunciado geral de possíveis efeitos positivos da
governação societária na realização da justiça intergeracional com uma
breve alusão a alguns temas mais específicos. O primeiro respeita à
remuneração de gerentes e administradores.
Dispõe o artigo 255.º do CSC, a respeito da remuneração dos gerentes
das SQ: «1 – Salvo disposição do contrato de sociedade em contrário,
o gerente tem direito a uma remuneração, a fixar pelos sócios. 2 – As
remunerações dos sócios gerentes podem ser reduzidas pelo tribunal,
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 483
a requerimento de qualquer sócio, em processo de inquérito judicial,
quando forem gravemente desproporcionadas quer ao trabalho prestado
quer à situação da sociedade. 3 – Salvo cláusula expressa do contrato
de sociedade, a remuneração dos gerentes não pode consistir, total ou
parcialmente, em participação nos lucros da sociedade.»
No correspondente artigo 399.º, relativo aos administradores das SA,
estabelece-se: «1 – Compete à assembleia geral de acionistas ou a uma
comissão por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos
administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação
económica da sociedade. 2 – A remuneração pode ser certa ou consistir
parcialmente numa percentagem dos lucros de exercício, mas a percen‑
tagem máxima destinada aos administradores deve ser autorizada por
cláusula do contrato de sociedade. 3 – A percentagem referida no número
anterior não incide sobre distribuições de reservas nem sobre qualquer
parte do lucro do exercício que não pudesse, por lei, ser distribuída aos
acionistas.» Como observa Coutinho de Abreu (2010, pp. 33 et seq.),
apesar do teor deste artigo 399.º, n.os 2 e 3, são lícitas outras formas de
remuneração variável (incluindo stock options) (cf., ainda, Gomes, 2011
e 2011a, pp. 421 et seq., Ferreira, 2016, Olavo Cunha, 2016, pp. 285
et seq., 815 et seq.).
Se a remuneração for excessiva, coloca-se o problema de saber se é de
admitir a aplicação analógica do n.º 2 do artigo 255.º Coutinho de Abreu
(2013) defende que sim. Note-se, no entanto, que só existe analogia das
situações nas sociedades anónimas sem ações cotadas em bolsa.
A Lei n.º 28/2009, aprovada na sequência da crise financeira e eco‑
nómica de 2007-2008, por sua vez, determina no artigo 2.º que o órgão
de administração das entidades de interesse público – entre as quais se
contam as sociedades emitentes de ações admitidas à negociação em mer‑
cado regulamentado – ou a comissão de remunerações, se existir, deverão
submeter, anualmente, à aprovação da assembleia geral uma declaração
sobre política de remuneração dos membros dos respetivos órgãos de
administração e de fiscalização (n.º 1). Tal declaração deverá conter,
designadamente, informação relativa: a) Aos mecanismos que permitam o
alinhamento dos interesses dos membros do órgão de administração com
os interesses da sociedade; b) Aos critérios de definição da componente
variável da remuneração; c) À existência de planos de atribuição de ações
ou de opções de aquisição de ações por parte de membros dos órgãos de
administração e de fiscalização; d) À possibilidade de o pagamento da
componente variável da remuneração, se existir, ter lugar, no todo ou em
484 EVARISTO MENDES
parte, após o apuramento das contas de exercício correspondentes a todo
o mandato; e) Aos mecanismos de limitação da remuneração variável,
no caso de os resultados evidenciarem uma deterioração relevante do
desempenho da empresa no último exercício apurado ou quando esta
seja expectável no exercício em curso. Para as instituições de crédito
e as sociedades financeiras, vale o regime constante do RGIC (n.º 4).
A mesma Lei, no artigo 3.º, impõe que tais entidades divulguem, nos
documentos anuais de prestação de contas (quanto àquelas emitentes
de ações cotadas, cf. também o artigo 245.º-A do CVM), «a política
de remuneração dos membros dos órgãos de administração e de fisca‑
lização, aprovada nos termos do artigo anterior, bem como o montante
anual da remuneração auferida pelos membros dos referidos órgãos, de
forma agregada e individual». Já anteriormente, no Livro Branco sobre
a governança societária em Portugal, de 2006 [Santos Silva et al.
(IPCG 2006)], se recomendara esta divulgação da informação relativa
à remuneração atribuída a cada um dos membros do CA, distinguindo,
no caso dos membros da comissão executiva, a componente variável da
componente fixa (recomendação 46).
No Código de Governo das Sociedades da CMVM (Recomendações
2013), no que toca à aprovação ou fixação de remunerações e eventual
atribuição de benefícios de reforma (II.3), realça-se: «Todos os membros
da Comissão de Remunerações ou equivalente devem ser independentes
relativamente aos membros executivos do órgão de administração e incluir
pelo menos um membro com conhecimentos e experiência em matérias
de política de remuneração» (II.3.1); «Deve ser submetida à Assembleia
Geral a proposta relativa à aprovação de planos de atribuição de ações,
e/ou de opções de aquisição de ações ou com base nas variações do preço
das ações, a membros dos órgãos sociais. A proposta deve conter todos
os elementos necessários para uma avaliação correta do plano» (II.3.4).
No que respeita ao modo ou critérios de fixação da remuneração
(III), para além de um princípio de não remuneração dos membros não
executivos e dos membros do órgão de fiscalização com uma compo‑
nente variável, em função do desempenho da sociedade ou do seu valor
(III.2), cabe realçar: «A remuneração dos membros executivos do órgão
de administração deve basear-se no desempenho efetivo e desincentivar
a assunção excessiva de riscos» (III.1); «A componente variável da
remuneração deve ser globalmente razoável em relação à componente
fixa da remuneração, e devem ser fixados limites máximos para todas as
componentes» (III.3); «Uma parte significativa da remuneração variável
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 485
deve ser diferida por um período não inferior a três anos, e o direito ao
seu recebimento deve ficar dependente da continuação do desempenho
positivo da sociedade ao longo desse período» (III.4); «Até ao termo do
seu mandato devem os administradores executivos manter as ações da
sociedade a que tenham acedido por força de esquemas de remunera‑
ção variável, até ao limite de duas vezes o valor da remuneração total
anual, com exceção daquelas que necessitem ser alienadas com vista ao
pagamento de impostos resultantes do benefício dessas mesmas ações»
(III.6); «Quando a remuneração variável compreender a atribuição de
opções, o início do período de exercício deve ser diferido por um prazo
não inferior a três anos» (III.7).
Na mesma linha, vai o Projeto de Código de Governo das Socieda-
des (2016) do Instituto Português da Corporate Governance (IPCG). No
capítulo V, relaciona-se um outro tópico, também ele próximo das ideias
de sustentabilidade e visão de longo prazo – o da profissionalização da
gestão –, afirmando-se, a respeito das remunerações dos órgãos de admi‑
nistração e fiscalização, o seguinte princípio: «A política de remuneração
dos membros dos órgãos de administração e de fiscalização deve permitir
à sociedade atrair, a um custo economicamente justificável pela sua
situação, profissionais qualificados, induzir o alinhamento de interesses
com os dos acionistas – tomando em consideração a riqueza efetivamente
criada pela sociedade, a situação económica e a do mercado – e consti‑
tuir um fator de desenvolvimento de uma cultura de profissionalização,
de promoção do mérito e de transparência na sociedade» (ponto V.2).
Ainda no mesmo capítulo V, acerca da remuneração dos Administra‑
dores, pode ler-se: «Princípio: Os administradores devem receber uma
compensação: que remunere adequadamente a responsabilidade assumida,
a disponibilidade e a competência colocadas ao serviço da sociedade;
que garanta uma atuação alinhada com os interesses de longo prazo
dos acionistas, bem como de outros que estes expressamente definam;
e que premeie o desempenho»; «Tendo em vista o alinhamento de inte-
resses entre a sociedade e os administradores executivos, uma parte da
remuneração destes deve ter natureza variável que reflita o desempenho
sustentado da sociedade e não estimule a assunção de riscos excessivos»
(ponto V.3.1).
Em suma, estamos perante um aspeto nuclear da governança societá‑
ria [cf. também, na literatura, e.g., Câmara, 2010, pp. 42 et seq., 49 et
seq., Gião, 2010, pp. 268 et seq., F. Gomes, 2011, Olavo Cunha, 2016,
pp. 584 et seq.; note-se, ainda, que em Espanha, por exemplo, é o próprio
486 EVARISTO MENDES
legislador que regula com algum pormenor a matéria (artigos 217 et seq.
da Ley de Sociedades de Capital)]. Através das regras e recomendações
existentes pretende-se atingir vários objetivos, de que se salientam dois.
O primeiro deles consiste em incentivar estratégias empresariais sus‑
tentáveis de longo prazo, criadoras de valor neste horizonte temporal,
contrariando políticas de curto prazo observadas no passado (cf., e.g.,
Câmara, 2010, p. 14). O segundo, presente designadamente no artigo
255.º do CSC, é de índole financeira: pretende-se que a base de capital da
sociedade não seja afetada por remunerações excessivas, como também
tem sucedido (cf., e.g., May, 2016), acautelando o valor da sociedade
para sócios e contribuindo para a sua sustentabilidade financeira.
O segundo tema a realçar, igualmente com impacto na sustentabilidade
das sociedades e, nessa medida, relevante para a justiça intergeracional,
respeita à reforma dos administradores das SA. Estabelece o artigo 402.º
do CSC: «1 – O contrato de sociedade pode estabelecer um regime de
reforma por velhice ou invalidez dos administradores, a cargo da sociedade.
2 – É permitido à sociedade atribuir aos administradores complementos
de pensões de reforma, contanto que não seja excedida a remuneração
em cada momento percebida por um administrador efetivo ou, havendo
remunerações diferentes, a maior delas. 3 – O direito dos administradores
a pensões de reforma ou complementares cessa no momento em que a
sociedade se extinguir, podendo, no entanto, esta realizar à sua custa
contratos de seguro contra este risco, no interesse dos beneficiários.
4 – O regulamento de execução do disposto nos números anteriores deve
ser aprovado pela assembleia geral.»
Trata-se de um assunto especialmente sensível, porque os encargos
deste modo assumidos pelas sociedades, ao longo do tempo, podem
tornar-se muito vultosos, atingindo a sua base de sustentabilidade finan‑
ceira. É seguramente um ponto importante do ponto de vista da justiça
intergeracional. O artigo do CSC suscita, no entanto, diversas questões
de interpretação e aplicação, de que não podemos ocupar-nos (cf., e.g.,
Olavo Cunha, 2014, 2016, pp. 839 et seq., Abreu, 2010, p. 34).
No referido Código de Governo das Sociedades da CMVM (Recomen‑
dações 2013), estabelece-se: «Deve ser submetida à Assembleia Geral a
proposta relativa à aprovação de qualquer sistema de benefícios de reforma
estabelecidos a favor dos membros dos órgãos sociais. A proposta deve
conter todos os elementos necessários para uma avaliação correta do
sistema» (II.3.5). Realça-se esta necessidade de submeter à apreciação
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 487
pela AG os benefícios de reforma, em termos compreensíveis para os
acionistas fazerem um juízo esclarecido acerca da matéria.
O terceiro tema tem também a ver com a proteção da base finan‑
ceira (e correspondente sustentabilidade) da sociedade, mas sobretudo
com a conveniência de não comprometer a liberdade de destituição dos
administradores (artigo 403.º, n.º 1, do CSC) quando se entenda que
a sua prestação ou desempenho são inadequados. Dispõe-se no ponto
III.8 daquele Código de Governo das Sociedades da CMVM (2013):
«Quando a destituição de administrador não decorra de violação grave
dos seus deveres nem da sua inaptidão para o exercício normal das res‑
petivas funções mas, ainda assim, seja reconduzível a um inadequado
desempenho, deverá a sociedade encontrar-se dotada dos instrumentos
jurídicos adequados e necessários para que qualquer indemnização ou
compensação, além da legalmente devida, não seja exigível.» Não se
exclui a indemnização legal prevista no n.º 5 do artigo 403.º do CSC
(cf. também o artigo 430.º, n.º 2), mas pretende eliminar-se a prática de
contratação de indemnizações exorbitantes por cessação antecipada dos
cargos, preservando aquela liberdade – e, portanto, uma gestão sadia e
competente da sociedade – e protegendo as finanças societárias.
O quarto tema respeita à distribuição de dividendos, também ela
suscetível de afetar a base financeira da sociedade, comprometendo o
seu desenvolvimento sustentável e transgeracional. Os artigos 217.º,
n.º 1, e 294.º, n.º 1, do CSC reconhecem aos sócios de sociedades por
quotas e aos acionistas um direito à distribuição anual de dividendos,
duplamente derrogável: mediante cláusula estatutária (derrogação geral
e abstrata) e, ano a ano, mediante deliberação tomada por maioria qua‑
lificada de 3/4 da totalidade dos votos existentes (derrogação concreta).
O direito, tal como se encontra atribuído, pode fazer algum sentido
nas sociedades fechadas, mas não nas sociedades abertas, com ações
admitidas à negociação em mercado regulamentado, em que o mercado
funciona como mecanismo regulador do funcionamento da sociedade e
os acionistas podem livremente comprar e alienar as ações. Nestas, o
órgão de administração deve ter o poder discricionário de, quando da
aprovação das contas anuais, propor a distribuição ou não de lucros,
embora fundamentando devidamente a proposta [cf. o artigo 66.º, n.º 4,
alínea f )]; e a coletividade dos sócios/acionistas deve, dentro dos limites
gerais (incluindo o princípio da lealdade ou fidelidade ao fim comum),
possuir autonomia de decisão na matéria. Daí que seja boa prática de
governança societária a derrogação estatutária do direito consagrado na
488 EVARISTO MENDES
lei (cf., no entanto, com outra leitura, Olavo Cunha, 2016, pp. 341 et
seq., e, em geral, Gomes, 2011a, pp. 297 et seq., 328 et seq.).
Mas também constitui boa prática a definição de uma política de
dividendos, no quadro da gestão estratégica da sociedade. No indicado
Livro Branco da governança societária (2006), recomenda-se que «O
Conselho de Administração submeta à aprovação da Assembleia Geral
uma política de dividendos de longo prazo» (recomendação 89).
2. Governança societária e justiça intergeracional nas sociedades
abertas
Aludiu-se no número anterior a alguns aspetos nucleares da governança
societária – mormente a que se situa no plano recomendatório, especial‑
mente concebida para as sociedades anónimas abertas ao investimento
público (máxime, com ações cotadas em bolsa) ou tendo estas como
alvo principal – realçando o seu possível contributo para a melhoria
da condição das gerações futuras e, nesta medida, para alcançar uma
melhor justiça intergeracional. Os tópicos da remuneração dos gestores
e da distribuição de dividendos – em boa medida transversais a todas
as sociedades, embora o significado não seja uniforme – bem como da
reforma e indemnização dos administradores que são destituídos das
funções mereceram aí algum desenvolvimento. Outros foram tão-só
aflorados, pelo que se justificam mais algumas linhas sobre eles. Para
uma visão integrada dos mesmos, procede-se, adiante, a uma breve
revista dos principais instrumentos de governança recomendatória (soft
law) assinalados, na parte em que podem interessar para o tema que nos
ocupa; com uma adicional incursão por textos não nacionais (para o
setor financeiro, em particular, cf. Câmara et al., 2016). Antes, porém,
transcreve-se um importante preceito do Código dos Valores Mobiliários
(CVM 1999) e refere-se um regulamento da CMVM.
Estabelece o artigo 245.º-A do CVM, intitulado Relatório anual sobre
governo das sociedades:
«1 – Os emitentes de ações admitidas à negociação em mercado
regulamentado situado ou a funcionar em Portugal divulgam, em
capítulo do relatório anual de gestão especialmente elaborado
para o efeito ou em anexo a este, um relatório detalhado sobre
a estrutura e as práticas de governo societário, contendo, pelo
menos, os seguintes elementos: a) Estrutura de capital […];
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 489
b) Eventuais restrições à transmissibilidade das ações, tais como
cláusulas de consentimento para a alienação, ou limitações à
titularidade de ações; c) Participações qualificadas no capital
social da sociedade; […] e) Mecanismos de controlo previstos
num eventual sistema de participação dos trabalhadores no
capital na medida em que os direitos de voto não sejam exer‑
cidos diretamente por estes; f ) Eventuais restrições em matéria
de direito de voto […]; […] h) Regras aplicáveis à nomeação e
substituição dos membros do órgão de administração e à alteração
dos estatutos da sociedade; i) Poderes do órgão de administra‑
ção, nomeadamente no que respeita a deliberações de aumento
do capital; j) Acordos significativos de que a sociedade seja
parte […]; l) Acordos entre a sociedade e os titulares do órgão
de administração ou trabalhadores que prevejam indemnizações
em caso de pedido de demissão do trabalhador, despedimento
sem justa causa ou cessação da relação de trabalho na sequência
de uma oferta pública de aquisição; m) Principais elementos dos
sistemas de controlo interno e de gestão de risco implementados
na sociedade relativamente ao processo de divulgação de infor‑
mação financeira; n) Declaração sobre o acolhimento do código
de governo das sociedades ao qual o emitente se encontre sujeito
por força de disposição legal ou regulamentar, especificando as
eventuais partes desse código de que diverge e as razões da diver‑
gência; o) Declaração sobre o acolhimento do código de governo
das sociedades ao qual o emitente voluntariamente se sujeite,
especificando as eventuais partes desse código de que diverge e
as razões da divergência; p) Local onde se encontram disponíveis
ao público os textos dos códigos de governo das sociedades aos
quais o emitente se encontre sujeito nos termos das alíneas ante‑
riores; q) Composição e descrição do modo de funcionamento
dos órgãos sociais do emitente, bem como das comissões que
sejam criadas no seu seio. 2 – Os emitentes de ações admitidas
à negociação em mercado regulamentado sujeitos a lei pessoal
portuguesa divulgam a informação sobre a estrutura e práticas
de governo societário nos termos definidos em regulamento da
CMVM, onde se integra a informação exigida no número anterior.
3 – O órgão de administração de sociedades emitentes de ações
admitidas à negociação em mercado regulamentado sujeitas a
490 EVARISTO MENDES
lei pessoal portuguesa apresenta anualmente à assembleia geral
um relatório explicativo das matérias a que se refere o n.º 1.»
Estabelece, por sua vez, o Regulamento da CMVM n.º 4/2013, relativo
ao Governo das Sociedades, designadamente: que o relatório detalhado
sobre a estrutura e as práticas de governo societário a divulgar pelas
sociedades referidas naquele artigo, deve conter os elementos mencionados
no mesmo, com a sistematização prevista no Regulamento, bem como
os elementos informativos complementares neste exigidos (cf. o Anexo
I) e, ainda, «todas as demais informações que sejam relevantes para a
compreensão do modelo e das práticas de governo adotadas» (artigo 1.º,
n.º 1); que os emitentes devem explicar, de modo efetivo, justificado e
fundamentado, a razão do não cumprimento das recomendações previstas
no código de governo das sociedades adotado em termos que demons‑
trem a adequação da solução alternativa adotada aos princípios de bom
governo das sociedades e que permitam uma valoração dessas razões
em termos que a tornem materialmente equivalente ao cumprimento da
recomendação (artigo 1.º, n.º 2); que os emitentes de ações admitidas à
negociação em mercado regulamentado situado ou a funcionar em Por‑
tugal devem adotar ou o Código da CMVM ou um código de governo
societário emitido por entidade vocacionada para o efeito (artigo 2.º,
n.º 1) [já se assinalou o Projeto de Código do IPCG]; e que a escolha
do código de governo societário pelos emitentes sujeitos a lei pessoal
portuguesa deve ser justificada naquele relatório (artigo 2.º, n.º 2).
2.1. Livro Branco sobre corporate governance em Portugal
Em Portugal, um dos textos mais importantes na matéria é o assinalado
Livro Branco da governança societária (Silva et al., 2006). Refere-se aí
que a expressão «governo da sociedade» designa «o conjunto de estruturas
de autoridade e de fiscalização do exercício dessa autoridade, internas
e externas, tendo por objetivo assegurar que a sociedade estabeleça e
concretize, eficaz e eficientemente, atividades e relações contratuais
consentâneas com os fins privados para que foi criada e é mantida e as
responsabilidades sociais que estão subjacentes à sua existência», pelo
que «compreende todos os mecanismos que respeitam à determinação
da vontade da empresa e à sua concretização, seja ao nível da definição
do tipo de atividades económicas a desenvolver, seja no que se refere à
organização operacional dessas atividades, seja na tomada de decisões
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 491
de financiamento dos respetivos investimentos, seja no que respeita à
devolução dos recursos investidos aos seus proprietários ou à sua remu‑
neração sob a forma de dividendos». Acrescenta-se, ainda:
«Paralelamente com as estruturas que tomam decisões em nome da
empresa, integram o governo das sociedades outros mecanismos
que controlam e fiscalizam esse exercício e que visam garantir que
a empresa é gerida de modo eficaz, eficiente e consentâneo com
os seus interesses. Por outras palavras, o governo de cada empresa
deve contemplar mecanismos que induzam a uma eficiente afe-
tação de recursos e mecanismos que exijam a responsabilização
pelo modo como esses recursos são usados» (pp. 12 et seq.; neste,
como noutros casos, acrescentou-se o itálico).
O Livro começa por identificar as vantagens e os problemas das socie-
dades com capital muito disperso (pp. 13 et seq.), naturalmente geridas
por profissionais, «tanto ao nível estratégico, como ao nível quotidiano»,
«por um corpo restrito de administradores executivos e diretores, os quais
podem ou não ser detentores de qualquer ação da empresa», havendo,
por isso, «total separação entre a propriedade e a gestão»: (i) por um
lado, proporcionam ganhos aos acionistas, investidores de capital, sem
dispêndio de tempo, permitindo-lhes participar em negócios de uma
dimensão que não estariam individualmente ao seu alcance, com diluição
do risco mediante a diversificação das carteiras, asseguram que «profis‑
sionais possam conceber e concretizar projetos rentáveis, mesmo quando
não disponham de património pessoal suficiente para esse efeito», com
«vantagens não só para os gestores e para os acionistas, mas também
para a sociedade no seu todo, na medida em que este tipo de organização
tem permitido que se concretizem investimentos e, consequentemente,
se dinamize a atividade económica, numa escala que não poderia ser
atingida sem a separação entre a propriedade e a gestão»; (ii) por outro
lado, envolvem o risco de arbitrariedade das decisões dos gestores (porque
a dispersão do capital e a assimetria de informação tornam difícil o seu
controlo pelos «proprietários»), custos de agência inerentes à separação
da propriedade e da gestão, ou seja, o «risco de os decisores procura‑
rem atingir os seus próprios interesses em detrimento dos interesses da
empresa», com «expropriação» de valor aos acionistas; sendo «a tomada
de riscos excessivos, em circunstâncias em que os gestores partilhem dos
benefícios em caso de sucesso, mas não partilhem dos custos em caso
492 EVARISTO MENDES
de insucesso», «um dos múltiplos exemplos» capazes de ilustrar esta
«problemática da divergência de interesses». Daqui a conclusão: «Na
presença de empresas com capital disperso, a existência de mecanismos
de fiscalização e de controlo das equipas de gestão assume uma significa‑
tiva importância. Da eficácia (efetiva e reconhecida) destes mecanismos
depende a confiança dos investidores e, por consequência, o custo e a
disponibilidade do capital, com os inerentes reflexos na possibilidade de
concretização de determinados projetos de investimento e na dinâmica
da atividade económica no seu todo.»
No que respeita às sociedades com controlo maioritário (pp. 16 et
seq.), escreve-se:
«Os administradores e diretores das empresas com acionistas
maioritários, sejam estes outras empresas, famílias ou o Estado,
não gozam do mesmo poder arbitrário que os profissionais que
gerem as empresas com capital totalmente disperso. Não se pense,
porém, que não existe espaço para que a gestão prossiga outros
interesses que não os objetivos da empresa, e que não existe a
possibilidade de expropriação dos acionistas.» Com efeito, neste
tipo de sociedades, esses «acionistas maioritários, por norma, ou
integram eles próprios a equipa de gestão, ou os membros desta
(na totalidade ou, pelo menos, na sua maioria) são pessoas da sua
confiança», tendo portanto «rosto e […] poder efetivo». Significa
isto, por um lado, que a «possibilidade de expropriação dos acio‑
nistas (na sua totalidade) pelos gestores não é aqui um problema
tão relevante» como no caso anterior, de capital disperso. Todavia,
por outro lado, a «concentração da propriedade […] tem os seus
próprios problemas de agência e os conflitos de interesse também
podem ser expressivos».
A «questão coloca-se [então] na relação entre os acionistas maio-
ritários e os pequenos acionistas, originando problemas de eventual
expropriação dos minoritários. O acionista maioritário está, por norma,
direta ou indiretamente, envolvido na gestão e dispõe de mais informação
que os acionistas minoritários. Pode usar esta assimetria de informação
em proveito próprio, em prejuízo da empresa no seu todo, e dos acio-
nistas minoritários em particular». «A redução do valor da empresa, a
redução dos dividendos, a redução da riqueza dos acionistas via redução
da performance dos investimentos e uma inferior performance operacio‑
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 493
nal são frequentemente apontadas como consequências da distorção de
incentivos dos grandes acionistas.» Donde a conclusão:
«Em suma, tratando-se de situações em que há um controlo maiori‑
tário do capital por um acionista, de igual modo é indispensável que,
no conjunto de mecanismos que integram a respetiva governação,
se incluam instrumentos de fiscalização e controlo.»
Quanto às sociedades com vários acionistas minoritários mas com
rosto (p. 17), observa-se: (i) havendo um único acionista minoritário com
rosto ou um grupo concertado, o problema é semelhante ao anterior; (ii)
havendo um controlo recíproco dos acionistas entre si, «evitando que
algum deles extraia benefícios privados que não possam ser partilhados
pelos demais acionistas, incluindo os anónimos, o problema muda de
configuração», uma vez que, neste caso, «a equipa de gestão retoma algum
do poder discricionário que caracteriza as situações das empresas com
o capital disperso», mas a «assimetria de informação de que beneficia»
é encurtada e, portanto, é «menor a possibilidade de [os seus membros]
extraírem impunemente benefícios privados excessivos».
Em seguida, o Livro ocupa-se do importante tema dos «interesses
dos acionistas versus outros interesses legítimos» (pp. 18 et seq.; cf.
também infra, n.º 4), ou seja, do «problema de saber com que objetivos
as empresas são ou devem ser geridas», tendo em conta que o «desígnio
final» do respetivo governo é assegurar que elas sejam «permanentemente
geridas tendo em vista o cumprimento eficaz e eficiente dos objetivos
com que foram constituídas e são mantidas» e que «os acionistas não
são os únicos agentes económicos com interesses legítimos na vida» das
mesmas, uma vez que os «trabalhadores, os credores, os fornecedores, os
clientes, o Estado e a comunidade local são igualmente parte interessada»
no seu futuro: da sua viabilidade e solidez «depende a manutenção dos
postos de trabalho»; «da sua saúde financeira depende a capacidade de
pagamento de juros e de reembolso dos credores»; os fornecedores e
os clientes «também têm óbvios interesses na respetiva solvabilidade
e continuidade; e o «Estado é parte interessada por múltiplas razões:
da existência e continuidade da empresa resulta atividade económica,
emprego, receita fiscal, impacto ambiental e social».
Salienta-se o que se segue: i) segundo a visão tradicional, os acionis‑
tas são vistos como beneficiários últimos dos atos da empresa, devendo
as empresas ser geridas com o objetivo de maximizar a sua riqueza ou
494 EVARISTO MENDES
bem-estar, ou seja, devendo os gestores concentrar-se em criar valor
para eles, maximizando o valor do respetivo capital investido; ii) esta
criação de riqueza deve beneficiar todos os acionistas, impedindo que os
maioritários pratiquem atos de «expropriação dos minoritários», desig‑
nadamente explorando assimetrias de informação «em proveito próprio,
em prejuízo da empresa no seu todo» e destes minoritários em particular;
iii) porém, existem outras partes interessadas (stakeholders), incluindo
a comunidade no seu todo, podendo, na prática, essa maximização ser
levada a cabo com sacrifício eticamente reprovável das mesmas; ainda
que os seus interesses sejam defendidos por contratos específicos, por
legislação adequada e por uma opinião pública atenta, «subsistem interes-
ses não adequadamente defendidos e cuja salvaguarda se deve cometer
às equipas de gestão, pelo menos nos planos ético e deontológico»;
podendo incluir-se aqui, por exemplo, certas «práticas de agressão do
meio ambiente e de crescimento insustentável», e de exploração de mão
de obra infantil (se falha a censura do consumidor), compatíveis com a
criação de valor para os acionistas, mas inaceitáveis; iv) assim, embora
o primeiro objetivo da gestão deva ser a criação de riqueza e a sua dis‑
tribuição equitativa e transparente por todos os acionistas, «deve também
exigir-se que as equipas de gestão atuem de forma ambientalmente e
socialmente responsável, contribuindo para que o desenvolvimento
seja equilibrado e sustentável», e os mecanismos de fiscalização e de
controlo devem igualmente «promover a dimensão da sustentabilidade
nos seus critérios de atuação»; v) além disso, no plano das relações com
os trabalhadores e colaboradores, importa ter consciência de que «as
empresas são espaços de realização pessoal e profissional», pelo que o
«desempenho por mérito deve ser o critério fundamental de remuneração
e de progressão na carreira» e deve, ainda, «presidir à organização da
estrutura hierárquica em que se baseia a tomada de decisões no seio da
empresa».
Em suma, reconhece-se que a maximização da riqueza dos acionistas,
além de valer tanto para maioritários como minoritários, é o objetivo pri‑
meiro da gestão; mas, para além de limitações legais, ela tem adicionais
limites de ordem ética e deontológica que os gestores devem observar.
Não se fornecem critérios operacionais de atuação, mas fica a ideia de
que existe um espaço para considerações de ordem ética, de uma ética
de responsabilidade, que também devem nortear a conduta dos gestores.
Ainda no que respeita à aludida estrutura do capital acionário, dão-se
alguns dados estatísticos e conclui-se (pp. 20 et seq.):
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 495
«Compreende-se, assim, que no modelo anglo-saxónico [de acen‑
tuada dispersão do capital nas sociedades cotadas] o principal
desafio que se coloca no desenho dos instrumentos de controlo e
fiscalização das empresas tem a ver com a proteção dos acionis-
tas face ao poder arbitrário dos gestores profissionais, os quais
por norma gozam de uma ampla margem de atuação. No caso da
Europa continental [com uma estrutura de capital muito mais con‑
centrada], o principal problema reside na proteção dos interesses
dos pequenos e anónimos acionistas face aos acionistas que têm
dimensão suficiente para exercer influência sobre a equipa de
gestão da empresa.»
«Além disso, a diversidade de estruturas acionistas e de impor‑
tância dos mercados de capitais igualmente torna compreensível
que, no caso anglo-saxónico, se espere um grande contributo dos
agentes económicos que gravitam em torno deste mercado para o
controlo (de fora para dentro) dos gestores. Na Europa continental,
pelo contrário, o controlo externo pelo mercado de capitais não
é um elemento nuclear, antes se conceptualizando que as equipas
de gestão são internamente controladas pelos acionistas com mais
interesses na empresa, e que estes (se forem múltiplos) se con‑
trolam entre si, e são igualmente controlados por outros grupos,
tais como os bancos e os trabalhadores, com interesses e relações
privilegiadas com a empresa.»
A «falta de eficácia de alguns dos mecanismos de governo das
sociedades» existentes (mercado de controlo, sistemas remune‑
ratórios e de auditoria, etc.), que já vinha sendo apontada nos
meios académicos e ao nível da regulação e supervisão, veio a
ser confirmada por escândalos financeiros ocorridos nos primeiros
anos do século xxi. Daí o aparecimento de iniciativas no sentido
da «regulação das práticas de governo das sociedades no espaço
económico em que o nosso país se integra» e o aparecimento de
«Códigos de Bom Governo» (pp. 26 et seq., 31 et seq.).
«A filosofia que esteve subjacente a este movimento, e que veio a
informar iniciativas posteriores, é a de que as normas de natureza
voluntária, dirigidas ao comportamento ético dos intervenientes na
vida das sociedades cotadas (órgãos de administração, auditores,
acionistas, stakeholders), apresentam maiores virtualidades para
restaurar a confiança dos mercados – na medida em que sejam
livremente adotadas e divulgadas pelas empresas ou estas expli‑
496 EVARISTO MENDES
quem por que não as adotam – do que as disposições vinculativas,
frequentemente cumpridas na sua letra e não no seu espírito e que
nunca impedirão práticas intencionais de má gestão.
Tem-se entendido, além disso, que a flexibilidade que resulta da
autorregulação permitida pelos códigos recomendatórios – apre‑
sentados sempre como complementares das fontes legislativas,
especialmente do direito das sociedades e dos valores mobiliá-
rios – facilita o tratamento das questões cada vez mais complexas
do governo das sociedades, com respeito pelas particularidades de
cada empresa, cada setor económico e cada país» (p. 33).
Nas conclusões da obra, realça-se a observação de que, na prática, os
conselhos de administração não continham, à data, membros independen‑
tes («face aos administradores executivos e aos principais acionistas»)
bastantes para proteção dos minoritários (p. 135). O Livro termina com
um conjunto de recomendações (pp. 139 et seq.). Transcreve-se, subs‑
tancialmente, a parte relativa aos «objetivos da empresa» (2.2):
«As empresas cotadas em bolsa devem ser geridas tendo em vista
a maximização do seu valor a longo prazo, o mesmo é dizer que
devem ter por missão a criação duradoura de riqueza para os
seus acionistas. Não se ignora, porém, que além dos interesses
dos detentores do capital próprio, gravitam em torno das empre‑
sas múltiplos outros interesses justos e legítimos. Estando esses
outros interesses protegidos por lei, por contratos específicos ou
por uma opinião pública atenta, as empresas devem promover o
seu respeito de forma inequívoca, mesmo nas circunstâncias em
que exista elevada probabilidade de prática diversa não ser objeto
de sanção efetiva. Não existindo restrição externa que obrigue
as empresas a respeitarem esses interesses, como condição para
a maximização do seu valor, considera-se que ainda assim estas
devem nortear a sua atuação por princípios de sustentabilidade e
de responsabilidade social.»
Assim, recomenda-se que:
«1) As empresas cotadas tenham por objetivo central a criação de
riqueza e a sua equitativa distribuição por todos os acionistas; 2)
As empresas cotadas aprovem em Assembleia Geral e enunciem a
sua política de desenvolvimento sustentável e o seu entendimento
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 497
quanto à responsabilidade social que sobre elas impende, e prestem
informação anual aos acionistas sobre a respetiva execução; 3)
Além de outros aspetos, a política de desenvolvimento sustentável
enuncie o posicionamento energético e ambiental da empresa,
tornando claro quais as implicações ecológicas decorrentes da
sua atividade, e quais os princípios que norteiam a sua atuação;
4) O enunciado da responsabilidade social de cada empresa con‑
temple, designadamente: – A política da empresa no recrutamento,
remuneração e progressão na carreira dos seus trabalhadores; –
A política de formação e valorização profissional e pessoal dos
seus trabalhadores; – A política da empresa visando salvaguardar a
sua competitividade, designadamente no que respeita à integração
de novas tecnologias no seu processo produtivo; – A política de
gestão fiscal da própria empresa; – O posicionamento da empresa
face a potenciais práticas de evasão fiscal dos seus trabalhadores,
clientes e fornecedores; – A política de mecenato cultural da
empresa; – A política de estímulo à investigação, desenvolvimento
científico e inovação; – O posicionamento da empresa face ao finan‑
ciamento de partidos políticos, de organizações governamentais ou
não governamentais e de associações cívicas; 5) Anualmente, no
âmbito do Relatório do Conselho de Administração, seja prestada
informação detalhada aos acionistas sobre as relações da empresa
com as suas principais partes interessadas (stakeholders).»
Recomenda-se, ainda, designadamente:
que «6) O Conselho de Administração zele pelo cumprimento
da lei aplicável e do pacto social, pelo respeito dos princípios de
desenvolvimento sustentável e de responsabilidade social assumi‑
dos pela empresa e, ao mesmo tempo, assegure o desenvolvimento
de uma cultura de ética presente em todos os níveis de atividade
da empresa»; 7) a criação de «uma Comissão Executiva, à qual
deve competir a gestão quotidiana da empresa, sendo fixadas em
Regulamento, e divulgadas no Relatório Anual, as atribuições nela
delegadas e o seu modo de funcionamento»; 8) que os «adminis‑
tradores não executivos» sejam «em número claramente superior
ao número de membros que integram a Comissão Executiva»;
9) devendo, existir administradores não executivos «que sejam
independentes, tanto dos administradores executivos, como dos
498 EVARISTO MENDES
principais acionistas da empresa, e que não tenham negócios ou
relações materialmente relevantes que possam interferir com a
liberdade do seu julgamento»; 10) que a «estrutura do Conselho
de Administração» reflita «a estrutura acionista, devendo na sua
composição atender-se os legítimos interesses dos acionistas
maioritários, dos acionistas minoritários com posições relevantes
e dos restantes acionistas, devendo o número de administradores
independentes assegurar que a sua ação possa ser efetiva»; 11) que,
«sempre que acionistas controlem direitos de voto que excedam
significativamente os direitos de dividendo por eles detidos, o peso
dos administradores independentes» seja «reforçado, tendo em
vista assegurar uma proteção mais efetiva e eficaz dos acionistas
minoritários»; 12) que as empresas expliquem publicamente a
estrutura do seu Conselho de Administração, «identificando de
modo claro e inequívoco o que são e quem são os administradores
independentes, as relações de dependência existentes entre os admi‑
nistradores executivos e acionistas e as relações de dependência
existentes entre os administradores não executivos e acionistas»; […]
20) que «Os administradores não executivos, além de conselheiros
e decisores, assumam um papel de fiscalizadores, desafiadores e
avaliadores dos administradores executivos, devendo ainda zelar
pela aplicação dos princípios de sustentabilidade e responsabilidade
social assumidos pela empresa»; 21) que «Os administradores não
executivos independentes igualmente assumam o papel de defen-
sores de todos os acionistas, designadamente procurando evitar
que os interesses dos pequenos acionistas sejam prejudicados
em benefício dos interesses dos demais acionistas»; […] 29) que
«Os administradores executivos recebam uma compensação que
remunere adequadamente o tempo, o esforço, a experiência e a
competência colocadas ao serviço da empresa, que pondere a
importância e o valor da empresa, e proporcione incentivos que
garantam um desempenho alinhado com os interesses de todos os
acionistas»; […] 38) que «A estratégia seja concebida, discutida,
planeada e estruturada pela totalidade dos membros do Conselho
de Administração»; 39) que «O Conselho de Administração não
delegue a responsabilidade pelas decisões que envolvam a tomada
de riscos significativos para a empresa, e submeta à aprovação da
Assembleia Geral as aquisições que exijam ulteriores aumentos de
capital»; […] que 46) «O Relatório Anual contenha desejavelmente
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 499
informação sobre a remuneração atribuída a cada um dos membros
do Conselho de Administração, sendo que nos casos dos membros
da Comissão Executiva deve distinguir-se a componente variável
da componente fixa […]»; 50) que «A Comissão de Avaliação,
Nomeação e Remunerações acompanhe o processo de seleção e
nomeação de quadros superiores, em ordem a garantir que a empresa
disponha de uma base de recrutamento de futuros administradores
executivos que garantam a tranquilidade de futuras sucessões»;
51) que, «No seio do Conselho de Administração, seja criada
uma Comissão de Auditoria, exclusivamente eleita e integrada por
administradores não executivos, maioritariamente composta por
administradores independentes, um dos quais desempenhando as
funções de presidente, com o objetivo principal de, nos termos de
adequado regulamento, assegurar que a informação financeira foi
de facto analisada por auditores externos independentes, compe‑
tentes e qualificados, segundo os padrões internacionais, e que a
informação divulgada reflete a verdadeira situação da empresa»;
59) competindo-lhe designadamente «a supervisão do sistema de
controlo interno e de riscos, sem prejuízo da superintendência fun‑
cional da Comissão Executiva sobre estes serviços»; […] 75) que
«As remunerações dos administradores não executivos sejam
fixadas diretamente pela Assembleia Geral ou por uma comissão
de acionistas por esta nomeada»; 77) que «Todos os acionistas
atuem de forma ativa assumindo a sua qualidade de proprietários
da empresa»; […] 82) que «Os acionistas com posições superiores
a 5 por cento identifiquem ao Conselho de Administração todos
os fornecedores e clientes da empresa que com eles mantenham
interesses comerciais comuns relevantes»; 83) que «Todas as tran‑
sações da empresa com acionistas com posições superiores a 2 por
cento, ou com terceira entidade com quem aqueles mantenham
interesses comerciais comuns relevantes, sejam formalizadas e
realizadas nas condições de mercado, e quando tais operações não
ocorram em condições de mercado sejam previamente aprovadas
ou pelo Conselho de Administração ou pela Comissão de Auditoria,
consoante o que fique definido nos respetivos regulamentos»; […]
89) que «O Conselho de Administração submeta à aprovação da
Assembleia Geral uma política de dividendos de longo prazo»;
[…] 96) que «O Estado exerça os seus direitos enquanto acionista
em empresas cotadas como se de um acionista privado se tratasse,
500 EVARISTO MENDES
devendo abster-se de utilizar essas empresas como instrumentos
de regulação ou de política setorial».
2.2. Código de Governo das Sociedades da CMVM
O Código de Governo das Sociedades da CMVM (Recomendações
2013) tem a estrutura que se segue. Compõe-se de 6 títulos: I. Votação
e Controlo da Sociedade; II. Supervisão, Administração e Fiscalização
(desdobrado em: II.1. Supervisão e Administração; II.2. Fiscalização;
II.3. Fixação de Remunerações); III. Remunerações; IV. Auditoria; V.
Conflitos de Interesses e Transações com Partes Relacionadas; e VI.
Informação (para uma sumária apreciação crítica, cf. Martins, 2014).
No primeiro, trata-se, inter alia, da participação e do voto dos acio‑
nistas nas assembleias gerais, bem como do efetivo poder desse voto
(incluindo quóruns deliberativos e limitações de voto), com alusão tam‑
bém a eventuais entraves indiretos à livre transmissibilidade das ações e
à livre apreciação pelos acionistas do desempenho dos titulares do órgão
de administração, em especial «em caso de transição de controlo ou de
mudança da composição do órgão de administração».
No que respeita à supervisão e administração, as ideias-chaves são:
um princípio de separação da supervisão e administração estratégica,
devendo o CA possuir administradores não executivos independentes,
por um lado, da administração executiva, por outro lado; bem como o
controlo do risco. No que respeita à administração e fiscalização das
sociedades anónimas, os modelos de governação permitidos constam do
artigo 278.º do CSC. Não se recomenda a opção por nenhum deles (cf.,
por e.g., Nunes, 2016, e Câmara, 2008, pp. 66 et seq.).
Note-se que, diferentemente do que sucede nas sociedades por quotas
(cf. o artigo 259.º do CSC) e nas sociedades de pessoas, o órgão de admi‑
nistração das sociedades anónimas gere a sociedade com independência
em relação à coletividade dos acionistas (artigos 405.º, n.º 1, e 373.º, n.º 3,
do CSC) (cf., e.g., Maia, 2002, pp. 137 et seq., Martins, 1998, pp. 193
et seq., 2013, pp. 403 et seq.); sendo uma das razões apontadas o facto de
a sociedade dever ser gerida de forma a ter um bom desempenho e tendo
em conta o interesse não apenas dos sócios presentes mas também dos
sócios futuros (cf. Maia, 2002, p. 155 e nota 221, Martins, 1998, p. 200
e nota 364, 2013, p. 404, V. Xavier, 1976). A delegação de poderes e a
existência de uma eventual comissão executiva com poderes de «gestão
corrente» encontra-se regulada no artigo 407.º do CSC.
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 501
Quanto à fiscalização, as ideias mestras a reter são: competência e
independência; controlo do risco e cumprimento das normas. A matéria
da fiscalização encontra-se desenvolvida nos artigos 413.º e seguintes
do CSC, bem como nos artigos 423.º-B a H (comissão de auditoria). As
competências do CGS na matéria podem ver-se no artigo 441.º, sendo
ainda importante o artigo 444.º, relativo a possíveis comissões, incluindo
a aludida comissão para as matérias financeiras (para maiores desenvol‑
vimentos, cf. Gomes, 2015).
Os temas das remunerações e da reforma dos administradores ocupam
no texto um lugar destacado. A preocupação fundamental é de compro‑
meter os administradores executivos com o desempenho da sociedade,
evitando ao mesmo tempo uma gestão orientada para o curto prazo.
Adicionalmente, pretende-se incentivar uma gestão prudente, evitando
riscos excessivos. Remete-se para o que se observou no número anterior
(supra, 1.4).
Quanto à auditoria externa (V), realça-se: «O auditor externo deve,
no âmbito das suas competências, verificar a aplicação das políticas e
sistemas de remunerações dos órgãos sociais, a eficácia e o funcionamento
dos mecanismos de controlo interno e reportar quaisquer deficiências ao
órgão de fiscalização da sociedade» (IV.1) (cf. também os artigos 8.º et
seq. do CVM e o Regulamento da CMVM n.º 1/2014).
A sociedade com a respetiva empresa forma um centro de atividade
produtiva autónomo, com uma esfera de ação e um património próprios,
separados dos respetivos administradores, sócios e colaboradores, des‑
tinado a cumprir os objetivos acima assinalados (a respeito do Livro
Branco), de forma sustentável, num arco temporal de longo prazo. Daí
a importância do tema dos conflitos de interesses e transações com
partes relacionadas (V), que já se salientou quando da análise do Livro
Branco (supra, 2.1). Realça-se: «Os negócios da sociedade com acio-
nistas titulares de participação qualificada, ou com entidades que com
eles estejam em qualquer relação, nos termos do artigo 20.º do Código
dos Valores Mobiliários, devem ser realizados em condições normais
de mercado» (V.1), cabendo ao órgão de supervisão ou de fiscalização
estabelecer os «procedimentos e critérios necessários para a definição do
nível relevante de significância» desses negócios e ficando a realização
de «negócios de relevância significativa dependente de parecer prévio
desse órgão» (V.2).
Estão em causa, no essencial, perniciosas e encapotadas transferências
de valor da sociedade para os acionistas, ou alguns deles, contrária às
502 EVARISTO MENDES
regras gerais da transparência (cf. também o artigo 31.º, n.º 1, do CSC)
e potencialmente lesivas quer do princípio da igualdade de tratamento
desses acionistas quer do princípio da intangibilidade do capital social
(cf. também o artigo 34.º, n.º 5, do CSC). A recomendação do Código
completa o disposto no artigo 397.º do CSC, relativo aos negócios da
sociedade com os administradores. Trata-se, portanto, de regras de boa
governança com significado importante tanto para o bom desempenho
e sustentabilidade da sociedade, como para o tratamento equitativo das
minorias. Daí o relevo que também lhe é reconhecido na literatura (cf.,
e.g., Gomes, 2010, pp. 78 et seq., 90 et seq., Gião, 2010, pp. 237 et
seq., Abreu, 2013, pp. 326 et seq., e 2013a, Lopes, 2013, Regêncio,
2016, Oliveira, 2017, 170 et seq.; nas SQ, também Gonçalves, 2011;
no EMCA, Antunes/Fuentes Naharro, 2016).
Note-se que são várias as «insuficiências» do artigo 397.º do CSC [e
do correspondente artigo 428.º, bem como do mais exigente artigo 46.º,
n.º 2, al. a), do CCoop]: diretamente, aplica-se apenas aos administra‑
dores (deixando de fora os gerentes – cf. infra, 3); não abrange, pelo
menos de forma segura, todas as situações de conflitos de interesses em
que, no campo negocial, pode estar envolvido um administrador, sendo
discutível o seu âmbito de aplicação subjetivo; não regula, pelo menos
diretamente, os negócios entre a sociedade e os sócios detentores de
participação relevante (incluindo sócios controladores); etc. É certo que
existem outras normas legais que completam o sistema – incluindo relativas
à capacidade da sociedade, impedimentos de voto e intangibilidade do
capital social – e os deveres gerais de lealdade quer dos administradores
e gerentes (artigo 64.º, n.º 1) quer dos sócios (sobre este, cf., por ex.,
Abreu, 2015, pp. 281 et seq.); mas o direito recomendatório é chamado
a cumprir aqui uma importante função clarificadora e complementadora.
Finalmente, no que respeita à informação (VI), prevê-se: «As socie‑
dades devem proporcionar, através do seu sítio na Internet, em português
e inglês, acesso a informações que permitam o conhecimento sobre a sua
evolução e a sua realidade atual em termos económicos, financeiros e de
governo» (VI.1); «As sociedades devem assegurar a existência de um
gabinete de apoio ao investidor e de contacto permanente com o mercado,
que responda às solicitações dos investidores em tempo útil, devendo ser
mantido um registo dos pedidos apresentados e do tratamento que lhe
foi dado» (VI.2). Como é natural no Código de um regulador, como é
a CMVM, a preocupação geral, explicitada nesta última recomendação,
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 503
é com os investidores em valores mobiliários, designadamente ações, e
o mercado de capitais.
2.3. Código de Governo das Sociedades do IPCG
O Projeto de Código de Governo das Sociedades do IPCG, de 2016,
vai na mesma linha, sendo composto por princípios e recomendações,
de adesão facultativa, tendo como destinatários naturais as sociedades
abertas, em especial as emitentes de ações admitidas à negociação em
mercado regulamentado, para as quais é obrigatória a adoção de um
CGS. O Código baseia-se no aludido princípio «cumpre ou explica»,
como é próprio da generalidade dos instrumentos de governança deste
género (cf., e.g., Frada, 2014), adota um princípio de neutralidade
relativamente à escolha dos modelos legais de governação, como sucede
com o da CMVM, e afirma-se como destinado a servir como um guia
de bom governo, em complemento do prescrito na lei (e nos estatutos
das sociedades) (pp. 3 et seq.).
Salienta-se o seguinte princípio geral: «O governo societário deve
promover e potenciar o desempenho das sociedades, bem como do
mercado de capitais, e sedimentar a confiança dos investidores, dos
trabalhadores e do público em geral na qualidade da administração e da
fiscalização e no desenvolvimento sustentado das sociedades» [Cap. I
(Parte Geral), p. 6]. Esta ideia de desenvolvimento sustentado, ou sus‑
tentável, encontra-se reafirmada, em especial, no capítulo IV, a respeito
da administração executiva.
Estreitamente relacionada com ela está o estímulo de políticas de longo
prazo. Dispõe-se no capítulo II, relativo aos acionistas: «A sociedade
não deve estabelecer mecanismos que tenham por efeito provocar o des‑
fasamento entre o direito ao recebimento de dividendos ou à subscrição
de novos valores mobiliários e o direito de voto de cada ação ordinária,
salvo se devidamente fundamentados em função dos interesses de longo
prazo da sociedade» (ponto II.5). No importante capítulo VI, relativo à
gestão do risco, o princípio é o seguinte: «Tendo por base a estratégia
de médio e longo prazo, a sociedade deverá instituir um sistema de
gestão e controlo de risco e de auditoria interna que permita antecipar e
minimizar os riscos inerentes à atividade desenvolvida.»
No capítulo V, alude-se a um tópico ainda próximo das ideias de sus‑
tentabilidade e visão de longo prazo: o da profissionalização da gestão,
a que já se aludiu mais acima. Estabelece-se aí, a respeito das remunera‑
504 EVARISTO MENDES
ções dos órgãos de administração e fiscalização, o seguinte princípio: «A
política de remuneração dos membros dos órgãos de administração e de
fiscalização deve permitir à sociedade atrair, a um custo economicamente
justificável pela sua situação, profissionais qualificados, induzir o alinha-
mento de interesses com os dos acionistas – tomando em consideração
a riqueza efetivamente criada pela sociedade, a situação económica e a
do mercado – e constituir um fator de desenvolvimento de uma cultura
de profissionalização, de promoção do mérito e de transparência na
sociedade» (ponto V.2; cf. supra, 1.4).
Finalmente, cumpre aludir a este tópico do «alinhamento de interes-
ses [dos membros da administração e, segundo o Código, também dos
membros do órgão de fiscalização] com os dos acionistas», que se prende
diretamente com o fenómeno porventura mais próximo da génese da
doutrina da «corporate governance», o dos «custos de agência». Depois
de, no capítulo II, se estabelecer que «O adequado envolvimento dos
acionistas no governo societário constitui um fator positivo de governo
societário, enquanto instrumento para o funcionamento eficiente da
sociedade e para a realização do fim social» (ponto II.A), prevê-se, inter
alia, no capítulo V, ainda acerca da remuneração dos Administradores:
«Princípio: Os administradores devem receber uma compensação: que
remunere adequadamente a responsabilidade assumida, a disponibili‑
dade e a competência colocadas ao serviço da sociedade; que garanta
uma atuação alinhada com os interesses de longo prazo dos acionistas,
bem como de outros que estes expressamente definam; e que premeie
o desempenho»; «Tendo em vista o alinhamento de interesses entre a
sociedade e os administradores executivos, uma parte da remuneração
destes deve ter natureza variável que reflita o desempenho sustentado
da sociedade e não estimule a assunção de riscos excessivos» (ponto
V.3.1; cf. supra, 1.4).
Infere-se daqui, na linha do Livro Branco e do Código da CMVM,
por um lado, que a gestão da sociedade deve ser orientada para a rea-
lização dos interesses de longo prazo dos acionistas e de outros por
estes definidos e, por outro lado, a par da profissionalização da mesma
(e também da separação entre a administração de supervisão e controlo
e a administração executiva), devem criar-se mecanismos que fomentem o
envolvimento dos acionistas na vida da sociedade, exercendo as respetivas
competências legais. O modelo de governança subjacente é, portanto, o
da primazia do interesse dos acionistas (shareholder primacy), servindo
a sociedade como mecanismo de criação de valor para eles (destinada
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 505
a maximizar os fluxos de caixa suscetíveis de «apropriação» por eles),
mas, podendo haver acionistas investidores de curto prazo e acionistas
«iluminados» interessados na valorização da sociedade enquanto orga‑
nização produtiva duradoura, o padrão de referência é o destes últimos.
Tendencialmente, daqui resultarão organizações produtivas com bom
desempenho, controlo do risco e desenvolvimento sustentável, num arco
temporal de longo prazo, porventura transgeracional.
Embora o tema não seja pacífico, este modelo de governança corres‑
ponde ao consagrado na atual lei societária mercantil, na interpretação
que dominantemente se faz da mesma. Na verdade, dispõe o n.º 1 do
artigo 64.º do CSC, após a Reforma de 2006: «Os gerentes ou admi‑
nistradores da sociedade devem observar: […] b) Deveres de lealdade,
no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos
sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a
sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e
credores.» O n.º 2 impõe igual dever aos titulares de órgãos sociais com
funções de fiscalização, mas limita-se a referir o interesse da sociedade.
Note-se que, ao menos segundo alguns autores, é de entender que, no
médio e longo prazo, não é do interesse dos acionistas desconsiderar
inteiramente os interesses dos trabalhadores e o bem público, uma vez
que desse modo a empresa social sofrerá danos na produtividade, no
ambiente de trabalho e no mercado de mão de obra e provocará reações
negativas das autoridades públicas (cf., e.g., Hopt, 2008, p. 16, Câmara,
2008, pp. 36 et seq. e 40). Além disso, encontra-se aqui também a ideia
de sustentabilidade da sociedade como objetivo a atingir.
Numa outra ordem de considerações, realçam-se, ainda, os princípios
da transparência e da equidade como princípios de governança corpo‑
rativa. Também estes poderão ter algum significado para o problema da
justiça intergeracional. O Código do IPCG (como de resto o da CMVM)
destaca o primeiro, mas não confere especial relevo ao segundo, ficando
aquém das recomendações constantes do Livro Branco.
Em estreita relação com o princípio da transparência, mas também
com a sustentabilidade e o desempenho financeiros da sociedade, estão os
temas do conflito de interesses e dos negócios com partes relacionadas, a
que já se fez referência quando da análise do Código da CMVM. Quanto
ao primeiro, estabelece-se o seguinte princípio: «Deve ser prevenida a
existência de conflitos de interesses, atuais ou potenciais, entre os mem‑
bros de órgãos ou comissões societárias e a sociedade. Deve garantir-se
que o membro em conflito não interfere no processo de decisão» (I.4).
506 EVARISTO MENDES
Seguem-se as recomendações: «Deve ser imposta a obrigação de os
membros dos órgãos e comissões societárias informarem pontualmente o
respetivo órgão ou comissão sobre os factos que possam constituir ou dar
causa a um conflito entre os seus interesses e o interesse social» (I.4.1.);
«Deverão ser adotados procedimentos que garantam que o membro em
conflito não interfere no processo de decisão, sem prejuízo do dever de
prestação de informações e esclarecimentos que o órgão, a comissão ou
os respetivos membros lhe solicitarem» (I.4.2.).
Quanto aos negócios com partes relacionadas, o princípio é o seguinte:
«Pelos potenciais riscos que comportam, as transações com partes relacio‑
nadas devem sujeitar-se a princípios de transparência e de fiscalização»
(I.5). Para o efeito, recomenda-se: «O órgão de administração deve definir,
com parecer prévio favorável e vinculativo do órgão de fiscalização ou
de supervisão, o tipo, o âmbito e o valor mínimo, individual ou agregado,
dos negócios com partes relacionadas que: i) requerem a aprovação prévia
deste órgão; ii) e os que, por serem de valor mais elevado, requerem,
igualmente, um parecer favorável de uma comissão de administradores
não executivos independentes, nos termos previstos na Recomendação
III.3, que aprecia a importância da transação para a sociedade, no plano
da gestão ou administração» (I.5.1); «O órgão de administração deve
comunicar mensalmente ao órgão de fiscalização ou de supervisão todos
os negócios abrangidos pela Recomendação I.5.1» (I.5.2).
2.4. Código de Governança Corporativa brasileiro
Dentro do espaço lusófono, justifica-se uma referência adicional,
ao bem elaborado e desenvolvido Código das Melhores Práticas de
Governança Corporativa (2015), editado pelo Instituto Brasileiro de
Governança Corporativa (IBGC). Como se observará, no que respeita
ao leque de interesses em jogo, nota-se nele uma maior abertura do que
aquela que encontramos no projeto de Código anterior, do IPCG; em
certa medida, na linha do que se observou a respeito do Livro Branco.
Na verdade, o objetivo é instituir um modelo «cooperativo», eticamente
comprometido, equitativo e transparente, coenvolvendo todas as partes
interessadas na boa governação das organizações produtivas, centrado no
conselho de administração (sem funções executivas), embora orientado
para valorizar o negócio das mesmas, de forma sustentável, num horizonte
de longo prazo. A diretoria (órgão executivo), em especial, deve, na sua
«missão de cumprir o objeto e a função social da organização», levar
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 507
em devida consideração os interesses legítimos quer dos sócios, de todos
eles, quer das demais partes interessadas, garantindo, com a orientação
e supervisão do CA, «uma relação transparente e de longo prazo» com
todas essas partes interessadas, propondo e pondo em prática «um pro‑
grama contínuo de relacionamento, consulta e comunicação sistemática»
com elas (ponto 3.3, p. 72).
«As boas práticas de governança corporativa convertem princípios
básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade
de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organiza-
ção, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade
da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum» (p. 20). Os
quatro princípios básicos de governança corporativa são os seguintes:
transparência, disponibilizando às partes interessadas as informações que
sejam de seu interesse e não apenas aquelas impostas por disposições de
leis ou regulamentos, contemplando, além do desempenho económico‑
-financeiro, os demais fatores (inclusive intangíveis) que norteiam a
ação gestória e que conduzem à preservação e à otimização do valor da
organização; equidade, que se caracteriza pelo «tratamento justo e iso‑
nômico de todos os sócios e demais partes interessadas (stakeholders),
levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses
e expectativas»; prestação de Contas (accountability) e responsabilidade
corporativa [«Os agentes de governança devem zelar pela viabilidade
econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades nega-
tivas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas, levando
em consideração, no seu modelo de negócios, os diversos capitais (finan‑
ceiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional,
etc.) no curto, médio e longo prazos»] (pp. 20 et seq.).
A construção clara de uma cultura e identidade da organização, com
certa razão de ser, valores e objetivos, regida por um código de conduta
apropriado e assente num processo de decisão ética e socialmente respon-
sável – não apenas respeitador daquela identidade e promotor da mesma,
mas que leve em conta «os impactos das decisões sobre o conjunto das
partes interessadas, a sociedade em geral e o meio ambiente, visando o
fim comum» – encontra-se no centro das preocupações (pp. 15 et seq.).
Acresce a transparência, indutora de uma boa reputação da organiza‑
ção. «A clareza sobre essa identidade é fundamental para que os agentes
de governança possam exercer adequadamente seus papéis, alinhando
a estratégia traçada e a ética» (p. 16). «A boa reputação contribui para
redução dos custos tanto de transação quanto de capital, favorecendo
508 EVARISTO MENDES
a preservação e criação de valor económico pela organização» (p. 17).
«A avaliação adequada do desempenho e do valor de uma organização
depende da divulgação clara, tempestiva e acessível de informações sobre
sua estratégia, políticas, atividades realizadas e resultados. Possibilitar
um nível elevado de transparência das informações sobre a organização
contribui positivamente para a reputação da própria organização e dos
administradores. A reputação positiva pode minimizar os custos de transa‑
ção pela redução do custo de capital ao fomentar confiança. A reputação
possui valor económico e pode atribuir vantagens competitivas. Favorece,
ainda, a atração e a retenção de colaboradores. Construir, com base na
transparência, uma boa reputação, não é apenas uma deferência ou con‑
cessão que a organização faz ao mercado e à sociedade, mas, por ser
também economicamente vantajosa, é um benefício que ela proporciona
a si própria» (pp. 72 et seq.).
A respeito do aludido código de conduta, que deve reger o compor‑
tamento da organização, assinala-se o seguinte: «As organizações devem
fundamentar sua atuação em princípios éticos e socialmente responsá‑
veis, refletidos no seu código de conduta» (3.5, p. 74). Este é elaborado
segundo os princípios e políticas definidos pelo CA e aprovado por ele
[5.1 e), p. 94]. Cabe à diretoria liderar a sua feitura – com participação
de representantes das partes interessadas, de modo a promover a sua
aceitação e legitimidade [5.1 e), p. 94] – e zelar pelo seu efetivo cum‑
primento [3.5, p. 74, e 5.1 f ), p. 94]. «A administração é responsável
por dar o exemplo no cumprimento do código de conduta. O conselho
de administração é o guardião dos princípios e valores da organização.
Entre suas responsabilidades está disseminar e monitorar, com apoio da
diretoria, a incorporação de padrões de conduta em todos os níveis da
organização» (5.1, p. 93).
«O código de conduta tem por finalidade principal promover princípios
éticos e refletir a identidade e a cultura organizacionais, fundamentado
em responsabilidade, respeito, ética e considerações de ordem social e
ambiental. A criação e o cumprimento de um código de conduta elevam
o nível de confiança interno e externo na organização e, como resultado,
o valor de dois de seus ativos mais importantes: sua reputação e imagem»
(5.1, p. 93).
Deve, assim, em complemento das normas legais e regulamentares
(e também estatutárias), ser «elaborado segundo os valores e princípios
éticos da organização», «fomentar a transparência, disciplinar as relações
internas e externas da organização, administrar conflitos de interesses,
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 509
proteger o património físico e intelectual e consolidar as boas práticas de
governança corporativa», expressando «o compromisso da organização,
de seus conselheiros, diretores, sócios, funcionários, fornecedores e partes
interessadas com a adoção de padrões adequados de conduta» [5.1 a) e b),
p. 94]. Note-se, em especial, que «o uso de informações privilegiadas em
benefício próprio ou de terceiros é ilegal, antiético e viola o princípio de
equidade», devendo o código de conduta «definir, com clareza, o escopo
e a abrangência das situações (e.g.: utilização da informação privilegiada
para finalidades comerciais ou para obtenção de vantagens na negociação
de valores mobiliários)», bem como «explicitar o dever de lealdade de
todos para com a organização», uma vez que tal «uso prejudica não só
a integridade do mercado como também a organização envolvida e seus
sócios» (5.6, p. 99). O código de conduta «aplica-se a administradores,
sócios, colaboradores, fornecedores e demais partes interessadas», abran‑
gendo, ainda, «o relacionamento entre elas» [5.1 b), p. 94].
O código deve compreender e regular o funcionamento de um canal
de comunicação e relacionamento da organização com as partes inte‑
ressadas, acolhendo «opiniões, críticas, reclamações e denúncias, con‑
tribuindo para o combate a fraudes e corrupção e para a efetividade e
transparência na comunicação e no relacionamento da organização com
as partes interessadas» («canal de denúncias», 5.2, p. 95). Deve, ainda,
existir, na dependência do CA, um «comitê de conduta», «encarregado
de implementação, disseminação, treinamento, revisão e atualização do
código de conduta e dos canais de comunicação» (5.3, p. 96).
A organização deve adotar um conjunto de políticas destinadas a
promover o respeito pela lei e a transparência, bem como a proporcionar
um tratamento equitativo e eticamente responsável, valorizando desse
modo a sua imagem e reputação públicas. Especificamente: 1) deve
adotar uma política de estrito cumprimento da lei, prevenindo e dete‑
tando atos de natureza ilícita (incluindo práticas de corrupção, fraude,
suborno e lavagem de dinheiro), e estimular os fornecedores não só
a comprometerem-se com o seu código de conduta, mas instituírem
também o seu próprio sistema de conformidade, uma vez que, «além
de violarem preceitos éticos, condutas ilícitas podem comprometer a
imagem e reputação da organização e de seus colaboradores, deteriorar
seu valor económico e impactar sua sustentabilidade e longevidade»
[5.10, p. 102 s); 2] as sociedades abertas «devem adotar, por deliberação
do conselho de administração, uma política de negociação de valores
mobiliários de sua emissão», regida pelos princípios da «transparência,
510 EVARISTO MENDES
equidade e ética», aplicável a «sócios controladores, diretores, membros
do conselho de administração e do conselho fiscal, de outros órgãos
estatutários e executivos com acesso a informação» (5.7), bem como
uma política de divulgação de informações orientada para o tratamento
equitativo de sócios e investidores, designadamente proporcionando‑
-lhes um acesso às mesmas em simultâneo [5.8); 3] a política social da
organização deve ser desenvolvida de forma transparente e objetiva, com
controlo do CA, e «deixar claro que a promoção e o financiamento de
projetos filantrópicos, culturais, sociais e ambientais devem apresentar
uma relação explícita com o negócio da organização» ou «contribuir, de
forma facilmente identificável, para o seu valor» (5.9, pp. 101 et seq.).
Com especial interesse para o tema do presente artigo, quando se
referem as premissas do Código, a respeito da «Evolução do Ambiente
de Negócios», salienta-se o seguinte: «Nos últimos anos, sem diminuir
a importância dos sócios e administradores, a governança ampliou seu
foco para as demais partes interessadas, demandando dos agentes de
governança corporativa um maior cuidado no processo de tomada de
decisão. Cada vez mais, desafios sociais e ambientais globais, regionais
e locais fazem parte do contexto de atuação das organizações, afetando
sua estratégia e cadeia de valor, com impactos na sua reputação e no
valor econômico de longo prazo. Mudanças climáticas, a ampliação da
desigualdade social e inovações tecnológicas, entre outros fatores, têm
imposto transformações na vida das organizações.
Tais circunstâncias impõem a necessidade de uma visão ampliada
do papel das organizações e do impacto delas na sociedade e no meio
ambiente e vice-versa. O conceito de cidadania corporativa deriva do
fato de a empresa ser uma pessoa que deve atuar de forma responsável.
Na prática, para operar, uma empresa depende não apenas das licenças
previstas em dispositivos legais e regulatórios, mas também do aval de
um conjunto de partes interessadas que a afeta ou é afetado pelas suas
atividades. Os agentes de governança devem considerar, portanto, as
aspirações e a forma pela qual a sociedade em geral entende e absorve
os efeitos positivos e negativos – as externalidades – da atuação das
organizações e responde a eles.
Nesse novo ambiente, a ética torna-se cada vez mais indispensável.
Honestidade, integridade, responsabilidade, independência, visão de
longo prazo e preocupação genuína com os impactos causados por suas
atividades são fundamentais para o sucesso duradouro das organizações»
(pp. 15 et seq.).
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 511
2.5. Instrumentos da União Europeia
No plano europeu, já se mencionou a Diretiva n.º 2014/95/UE (supra,
1.2). Faz-se agora uma breve alusão ao Livro Verde de 2011. Lê-se aí: «O
governo das sociedades é tradicionalmente definido como o sistema pelo
qual as empresas são dirigidas e controladas, bem como um conjunto de
relações entre a gestão de uma empresa, o seu conselho de administra-
ção, os seus acionistas e outras partes interessadas. O enquadramento
do governo das sociedades para as empresas cotadas em bolsa, na União
Europeia, é uma combinação de legislação e de normas não vinculativas,
incluindo recomendações e códigos de governo das sociedades» (p. 2).
O Livro aborda três temas: (i) o conselho de administração (essencial‑
mente, a sua função de supervisão), salientando o papel fundamental que
deverá desempenhar no «desenvolvimento de empresas responsáveis»,
recordando, por exemplo, as recomendações da Comissão já existentes
em matéria de remuneração e a importância de «incentivos adequados
que favoreçam o desempenho e a criação de valor a longo prazo» (1.4),
bem como da gestão eficaz dos riscos (1.5); (ii) os acionistas, realçando,
inter alia, o existente problema da gestão orientada para o curto prazo e a
importância da sua participação na sociedade, com vista a uma melhoria
dos respetivos «benefícios a longo prazo», no quadro de uma estratégia
também com este horizonte temporal (2.1 a 2.3); e (iii) a regra «cumprir
ou explicar» porque não se cumpre (realçando a necessidade de melhorar
a qualidade das explicações e o controlo do governo das sociedades) (3).
Na parte relativa aos acionistas, importa salientar a importância da
proteção das minorias (2.7). No ponto 2.8, contêm-se considerações sobre
a participação dos trabalhadores na sociedade e o seu envolvimento na
empresa, aludindo ao seu interesse na sustentabilidade a longo prazo
das mesmas, mas não se tiram daí grandes ilações.
Assinala-se, ainda, entre outros textos, do final de 2012, a comuni‑
cação pela Comissão de um Plano de Ação, destinado a promover uma
maior participação dos acionistas e a sustentabilidade das empresas.
Lê-se, designadamente, na Introdução: «Um quadro eficaz do governo
das sociedades é de importância capital, uma vez que as empresas bem
geridas são suscetíveis de ser mais competitivas e mais viáveis a longo
prazo. Um bom governo das sociedades é, acima de tudo, da respon‑
sabilidade da empresa em causa, estando em vigor regras europeias e
nacionais que garantem o respeito de certas normas.»
512 EVARISTO MENDES
São três as principais linhas de ação: aumentar a transparência,
fomentar a participação dos acionistas e apoiar o crescimento e a com‑
petitividade das empresas. No que respeita à transparência, salientam-se
os seguintes temas: «Publicação da política de diversidade dos conselhos
de administração e da gestão dos riscos não financeiros» (2.1); «Melhorar
a comunicação de informações sobre o governo das sociedades» (2.2),
estando em causa a «qualidade das explicações» dadas quando uma reco‑
mendação não é seguida; «Identificação dos acionistas» (2.3); «Reforçar
as regras de transparência para os investidores institucionais» (2.4). No
que toca à participação dos acionistas, destaca-se: «Melhor supervisão
dos acionistas relativamente à política de remuneração» (3.1); «Melhor
supervisão pelos acionistas das transações com partes relacionadas» (3.2);
«Participação dos trabalhadores no capital» (2.5).
No que respeita ao tema mais específico dos conflitos de interesses
e negócios com partes relacionadas, para além dos deveres de informa‑
ção impostos pela Diretiva 2006/46/CE (cf. os artigos 66.º-A e 508.º-F
do CSC; bem como a IAS 24) e o que consta do Livro Verde (pp. 19
et seq.), realçam-se: a declaração do Fórum Europeu do Governo das
Sociedades (criação da Comissão) de 2011 (Statement of the European
Corporate Governance Forum on related Party Transactions for Lis-
ted Entities) e, na sequência do Plano de Ação de 2012, a proposta de
diretiva de 9.04.2014 [Com (2014) 213 final], tendente, inter alia, a
aditar à diretiva 2007/36/CE (relativa aos incentivos ao envolvimento
dos acionistas a longo prazo) um artigo 9.º-C, dispondo designadamente:
«1. Os Estados-membros devem assegurar que as sociedades, no caso
de transações com partes relacionadas que representem mais de 1%
dos seus ativos, anunciem publicamente tais transações no momento
em que forem realizadas e façam acompanhar esse anúncio de um
relatório elaborado por uma terceira parte independente que avalie
se teve ou não lugar em condições normais de mercado e confirme
que a transação é justa e razoável do ponto de vista dos acionistas,
nomeadamente dos acionistas minoritários. O anúncio deve conter
informações sobre a natureza da relação com as partes relacionadas,
o nome da parte relacionada, o valor da transação e quaisquer outras
informações necessárias para avaliar a mesma. / Os Estados-membros
podem prever que as empresas possam solicitar aos seus acionistas
uma isenção à obrigação prevista no n.º 1 de que o anúncio de uma
transação com uma parte relacionada seja acompanhado de um relatório
elaborado por um terceiro independente, em relação a determinados
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 513
tipos claramente definidos de transações recorrentes com uma parte
relacionada identificada num período não superior a 12 meses a contar
da data de concessão da isenção. Quando as transações com partes
relacionadas envolverem um acionista, o mesmo deve ser excluído da
votação respeitante à isenção prévia. 2. Os Estados-membros devem
assegurar que as transações com partes relacionadas que representem
mais de 5% dos ativos da sociedade ou que possam ter um impacto
significativo sobre os lucros ou volume de negócios sejam submetidas
ao voto dos acionistas em assembleia geral. Quando a transação com
partes relacionadas envolver um acionista, o mesmo será excluído da
votação. A sociedade não deve concluir a transação antes da sua apro‑
vação pelos acionistas. A sociedade pode, contudo, concluir a transação
sob condição de aprovação pelos acionistas. […].»
Os temas da sustentabilidade no longo prazo, da tutela das minorias
mormente nas sociedades com controlo acionário estável (incluindo os
investidores institucionais), focando o tema dos negócios com partes
relacionadas, e da relevância de outras partes interessadas, para além
dos investidores de capital, entre outros, aparecem também salientadas
em textos de sínteses e prospetivos, como os de Dallas e Pitt-Watson
(2016), aludindo a três modelos de governança em confronto (primazia
acionária, primazia das partes interessadas e empresas independentes em
mercado aberto), da ecoDA (2015) e de Hopt (2015), este com análise
mais abrangente do direito da UE.
2.6. OCDE e G20
Num trabalho desta índole, justificar-se-ia, ainda, uma análise dos
Princípios de Governo das Sociedades do G20 e da OCDE (2015), os
quais tiveram por base uma anterior versão de 2004 (da OCDE), «que
envolve o entendimento comum de que um elevado nível de transparência,
responsabilização, supervisão dos executivos e respeito pelos direitos
dos acionistas, assim como o papel das principais partes interessadas,
é parte integrante da fundação de um sistema funcional de governo das
sociedades». Por razões de espaço, limitamo-nos, no entanto, a salientar
alguns pontos e a uma breve conclusão. Assim:
Como se salienta no preâmbulo, os Princípios «auxiliam os deci‑
sores políticos a avaliar e a melhorar o enquadramento jurídico,
regulamentar e institucional para o governo das sociedades, por
514 EVARISTO MENDES
forma a apoiar a eficiência económica, o crescimento sustentável
e a estabilidade financeira» (pp. 3 e 9). «Tal é conseguido, prin‑
cipalmente, através dos incentivos aos acionistas, aos membros do
conselho e aos executivos, bem como aos intermediários financei‑
ros e aos prestadores de serviços, adequados ao desempenho das
suas funções dentro de um quadro de controlo e equilíbrio» (p. 9).
A ideia é estabelecer um modelo destinado a servir de base aos
sistemas de governança de cada país, centrando-se os Princípios
nas sociedades de capital aberto, financeiras e não financeiras»
(p. 9). Pretende-se «fornecer uma referência sólida, mas flexível,
para os decisores políticos e participantes do mercado para que
estes desenvolvam as suas próprias estruturas de governo das
sociedades» (p. 11).
«Os Princípios reconhecem os interesses dos trabalhadores e de
outras partes interessadas e o seu importante papel na contribuição
para o sucesso a longo prazo e para o desempenho da empresa.
Outros fatores relevantes para os processos de tomada de decisões
de uma empresa, tais como preocupações ambientais, anticorrupção
ou éticas, são considerados nos Princípios, embora sejam tratados
de forma mais explícita numa série de outros instrumentos incluindo
as Linhas Diretrizes da OCDE para as Empresas Multinacionais,
a Convenção sobre a Luta contra a Corrupção de Agentes Públi‑
cos Estrangeiros nas Transações Comerciais Internacionais, os
Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e
Direitos Humanos e a Declaração da OIT sobre os Princípios e
Direitos Fundamentais no Trabalho, que são referenciados nos
Princípios» (p. 10).
«A estrutura de governo das sociedades deve reconhecer os direi‑
tos dos stakeholders estabelecidos por lei ou por meio de acordos
mútuos, e estimular a cooperação ativa entre as sociedades e os seus
stakeholders na criação de riqueza, empregos e na sustentabilidade
de sociedades financeiramente sólidas» (princípio IV) (pp. 37 et
seq.). Com efeito, «Um aspeto-chave do governo das sociedades
é a garantia de um fluxo de capital externo para as sociedades,
tanto na forma de capital social como de crédito. O governo das
sociedades também deve debruçar-se sobre formas de incentivar
os diversos stakeholders da sociedade a realizar níveis economi‑
camente otimizados de investimento em capital humano e físico
específico para a sociedade. A competitividade e o sucesso de uma
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 515
sociedade são o resultado do trabalho de equipa que incorpora
contribuições de um leque de diferentes provedores de recursos,
incluindo investidores, trabalhadores, credores, clientes e forne‑
cedores, e outros stakeholders. As sociedades devem reconhecer
que as contribuições dos stakeholders constituem um valioso
recurso para a construção de sociedades competitivas e rentáveis.
É, portanto, no interesse de longo prazo das sociedades fomentar
a cooperação na criação de riqueza pelos stakeholders. O quadro
de governo deve reconhecer os interesses dos stakeholders e a sua
contribuição para o sucesso a longo prazo da sociedade».
Em complemento das leis e dos contratos, que devem ser efetiva‑
mente cumpridos, «muitas sociedades assumem compromissos adicionais
perante os mesmos [stakeholders], e a preocupação com a reputação e
o desempenho das sociedades muitas vezes requer o reconhecimento de
interesses mais amplos. Para as empresas multinacionais, isto pode, em
algumas jurisdições, ser alcançado pela utilização das Linhas Diretrizes
da OCDE para as Empresas Multinacionais para os procedimentos de
due diligence que abordem o impacto de tais compromissos». Não se
prevê, no entanto, nenhuma recomendação sobre o assunto.
No que respeita à efetividade dos direitos, esclarece-se que «o
enquadramento e o processo jurídicos devem ser transparentes» «e não
prejudicar a capacidade» de comunicação das infrações e a obtenção de
indemnização pelos danos causados por estas. Esclarece-se, ainda, quanto
às práticas ilegais e antiéticas dos dirigentes da empresa, que, para
além de poderem violar tais direitos, são suscetíveis, ainda, de afetar a
reputação da sociedade e dos acionistas, bem como representar um risco
cada vez maior de responsabilidades financeiras futuras, causando-lhes
por isso um dano. Daí que seja vantajoso para eles «que se estabeleçam
procedimentos e garantias para comunicação de irregularidades pelos
trabalhadores, pessoalmente ou através dos seus organismos representa‑
tivos, e outros externos à sociedade».
«O conselho de administração deverá ser incentivado através de leis
e/ou princípios a proteger esses indivíduos e organizações representativas
e conceder-lhes acesso direto e confidencial a um membro independente
do conselho, muitas vezes um membro de uma comissão de auditoria ou
ética. Algumas empresas estabeleceram um ombudsman para lidar com
comunicações de irregularidades. Vários reguladores estabeleceram tam‑
bém linhas telefónicas e endereços de e-mail confidenciais para receber
516 EVARISTO MENDES
denúncias. Não obstante, em alguns países, os organismos representativos
dos trabalhadores assumirem a tarefa de transmitir as suas preocupações
à sociedade, os trabalhadores, a título individual, não devem ser impe‑
didos de atuar por si ou ser menos protegidos nesse caso. Na ausência
de medidas imediatas de correção ou perante o risco razoável de reação
negativa pelo empregador na sequência da sua denúncia, os trabalha‑
dores devem ser encorajados a comunicar a sua denúncia de boa fé às
autoridades competentes. Muitos países preveem também a possibilidade
de submeter os casos de violações das Linhas Diretrizes da OCDE para
Empresas Multinacionais ao Ponto de Contacto Nacional. A sociedade
deve abster-se de ações discriminatórias ou disciplinares contra esses
trabalhadores ou organismos.»
A preocupação é, portanto, com a efetividade dos direitos e com a
denúncia, mormente por parte dos trabalhadores, de práticas de gestão
irregulares, ilegais ou contrárias à ética, quer internamente quer perante
as autoridades, sem o autor da denúncia ser vítima de discriminação
ou sanção disciplinar. Isto, naturalmente, no interesse dos titulares dos
direitos potencialmente lesados, e no superior interesse da sociedade
(e dos acionistas), cuja reputação pode vir a ser afetada por tais práticas
e cujo património pode ser lesado em resultado de inerentes responsa‑
bilidade financeiras.
Como se observou, o Código Brasileiro, por exemplo, acolhe este
ponto de vista. Mas o que se acentua é esta conveniência de tratar bem
os stakeholders e de respeitar a lei e os contratos por razões de ordem
reputacional e de prevenção de responsabilidades financeiras.
Em suma, estamos perante um padrão de governança aberto, a que
é inerente uma certa preocupação com outras partes interessadas, nas
sociedades cotadas, para além dos acionistas. A tónica reside na susten-
tabilidade das organizações produtivas no longo prazo, na sua eficiência
e estabilidade financeira, no respeito pelos direitos e na consideração dos
interesses das partes envolvidas. Há também a clara afirmação da neces‑
sidade de respeitar não apenas as leis, mas igualmente a ética. Realça-se
ainda que o objetivo geral da governança consiste em «construir um
ambiente de confiança, transparência e responsabilidade, necessário
para fomentar o investimento a longo prazo, a estabilidade financeira e a
integridade empresarial». Mas não se acrescenta nada de verdadeiramente
significativo para o tema da justiça intergeracional.
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 517
2.7. Síntese conclusiva
Em conclusão:
i) A governança societário-empresarial em Portugal acha-se focada
nas sociedades anónimas com ações admitidas à negociação em
mercado regulamentado (sociedades cotadas), o que compreende
um universo bastante restrito das sociedades portuguesas, embora
represente uma parte significativa do tecido empresarial.
ii) A ideia geral consiste em colocar as sociedades ao serviço da
criação de valor ou riqueza para os acionistas – para todos
eles, enquanto acionistas da sociedade considerada – já que são
investidores em capital de risco (utilizando a expressão em sen‑
tido lato) e, portanto, lhes cabe o valor líquido ou residual das
mesmas.
iii) Diferentemente de certas perspetivas económicas neoliberais,
cria-se, no entanto, a figura abstrata do acionista «iluminado»,
interessado em beneficiar de uma gestão das sociedades enquanto
organizações produtivas duradouras, destinadas à criação susten‑
tável, num arco temporal de longo prazo, de um fluxo monetário
líquido suscetível de «apropriação» por si, seja recebendo uma
parte desse fluxo sob a forma de dividendos ou equiparável, seja
aumentando o seu património pessoal através da valorização da
sociedade e das suas ações, cujo valor ele pode realizar; deste
modo, a reflexa criação de riqueza para a comunidade em que a
sociedade (com a sua empresa) se insere resulta já não da pura
maximização do seu valor para os acionistas, obtida de qualquer
modo, mas da instituição de organizações socioeconómicas
tendencialmente duradouras, dentro da lógica de natural seleção
no longo prazo daquelas que são suficientemente eficientes para
sobreviver no mercado de concorrência.
iv) Estando em causa organizações empresariais, os interesses de
outras partes interessadas, como os credores (fornecedores e
financiadores), os trabalhadores e a própria comunidade em
geral, são de levar em conta, mas ao governo societário não cabe
a sua defesa; os gestores apenas deverão considerá-los, dentro
do permitido pela lei e pelos contratos aplicáveis, na medida em
que isso for relevante para a sustentabilidade a longo prazo da
organização, com criação de valor para os acionistas (segundo
518 EVARISTO MENDES
algumas opiniões, na medida em que isso seja relevante para a
maximização do valor do acionista iluminado ou esclarecido,
com horizonte de longo prazo, dando prevalência, em caso de
conflito, ao interesse deste).
v) A este respeito, realçam-se algumas objeções à corrente de
pensamento dominante, seja pela necessidade de incorporar na
governança societária os fornecedores de capital alheio, dada a
crescente importância desta forma de financiamento, seja por
razões éticas, já que, numa economia complexa e globalizada como
a presente, com liberdade de estabelecimento (incluindo a liber‑
dade de deslocalização das empresas) e com défices conhecidos
de eficácia na administração (atempada) da justiça, a criação de
valor para os acionistas pode ser levada a cabo com custos sociais
e danos ambientais contrários a uma ética de responsabilidade,
mesmo sendo respeitada a lei a que a sociedade está sujeita;
todavia, faltam diretrizes ou recomendações concretas capazes
de superar a ideia da primazia do interesse dos acionistas.
vi) Em todo o caso, sendo as sociedades estruturas de membros/
/acionistas variáveis, que se vão sucedendo e renovando ao longo
do tempo, tendo presente o objetivo da sustentabilidade dura‑
doura, poder-se-á dizer que, pelo menos ao nível dos acionistas,
a governança societária estará ao serviço das gerações presentes
e futuras; a sociedade será gerida como uma comunidade de
pessoas (investidores) presentes e futuras.
vii) Vista mais de perto, a governança societária – ou societário‑
-empresarial – visa, em primeiro lugar, evitar que quem administra
a sociedade (e a respetiva empresa) se sirva do cargo para reali‑
zar interesses próprios, em prejuízo dos acionistas e da própria
sociedade com a constelação de todos os demais interesses que
em torno dela gravitam (problema de «agência»); seja regulando
ou recomendando boas práticas no domínio das remunerações, das
indemnizações por cessação de funções e das eventuais pensões
de reforma, seja dispondo acerca de negócios entre a sociedade
e os administradores (ou pessoas cujos interesses particulares
representam), bem como sobre o uso de bens sociais e apropriação
de oportunidades de negócio, seja emitindo adicionais diretrizes e
instituindo mecanismos de controlo do risco, mormente para evitar
a assunção de riscos excessivos, seja, mais em geral, instituindo
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 519
procedimentos e mecanismos de controlo da atividade gestória,
de avaliação do desempenho, etc. O objetivo correntemente decla‑
rado é o de alinhar o interesse dos administradores, mormente o
dos administradores executivos, com o dos acionistas de longo
prazo (da comunidade de acionistas que se vão sucedendo no
tempo, presentes e futuros, atendendo ao seu interesse enquanto
acionistas).
viii) Em segundo lugar, a governança societária destina-se a evitar,
nas sociedades com poder maioritário definido (e estável), que
os acionistas detentores de tal poder, diretamente, através do
exercício das suas competências (enquanto membros da coleti‑
vidade social e/ou enquanto administradores, se for o caso), ou
indiretamente, através do seu poder de influência sobre os admi‑
nistradores (que em geral podem fazer eleger e destituir), tratem
a sociedade como coisa própria – exclusiva ou primacialmente
ao serviço do seu interesse, social (enquanto acionistas) ou par‑
ticular –, desconsiderando ou não levando em devida conta os
interesses dos acionistas minoritários ou exteriores ao grupo de
controlo [problema de tratamento injustamente prejudicial dos
acionistas/investidores minoritários, que, além de constituir um
problema em si mesmo (de «expropriação» ou esterilização do
investimento destes), tal como o aludido problema de agência,
põe em causa a confiança dos investidores, atuais e potenciais,
na sociedade e no mercado acionário em geral]. Em causa estão
comportamentos desviantes, relativos, como no caso anterior, à
remuneração e às pensões dos acionistas administradores, bem
como às indemnizações por eventual cessação do cargo, mas
também de administradores relacionados com os acionistas de
controlo, a negócios com a sociedade, sejam eles administradores
ou não, ao uso de bens sociais e aproveitamento de oportunidades
de negócio corporativas, a mecanismos de controlo do risco e da
gestão, à avaliação do desempenho dos administradores, à política
de dividendos e de financiamento, à subordinação da gestão à
lógica de «grupo» nos agrupamentos societários, ao mercado de
controlo da sociedade, à compensação de minoritários eliminados
(squeezed out), etc.
ix) Como se observou, ao menos em termos substanciais e efetivos,
na versão dominante, está ausente, em especial, uma ética de
520 EVARISTO MENDES
responsabilidade para com outras partes interessadas, incluindo
no domínio ambiental. Os interesses das mesmas encontram-se
subordinados à lógica da criação sustentável de valor para os
acionistas, num arco temporal de longo prazo.
Decorre do exposto que o tema da justiça intergeracional, qua tale,
está fora das preocupações da governança societária, tal como esta tem
sido dominantemente entendida e praticada em Portugal. Em todo o caso,
como se observou mais acima, na medida em que existe uma preocupa‑
ção com o desenvolvimento sustentável e responsável das organizações
produtivas, uma correspondente gestão numa ótica de longo prazo, e,
inclusive, alguma preocupação com a posição dos minoritários, através
da recomendação de um número adequado de administradores não exe‑
cutivos independentes, fomentando a informação e a transparência, bem
como a gestão também no seu interesse (de longo prazo), indiretamente
existe alguma relação. Uma boa governança, em princípio, também a
favorecerá. São possíveis comportamentos transviados e oportunistas,
mas eles não serão a norma.
No estado atual, pode melhorar-se a situação, sobretudo através da
criação de canais de diálogo e interação com todas as partes interessadas,
como acontece no Código brasileiro, de exigências de maior transparência,
designadamente em matéria social e ambiental – por exemplo, impondo
ou recomendando a elaboração e publicação de relatórios de sustentabi‑
lidade, com adequados mecanismos de controlo da sua veracidade e da
pertinência da informação divulgada, na esperança de que pelo menos a
atual e potencial censura social (difusa ou organizada) de comportamentos
irresponsáveis promova uma cultura empresarial de responsabilidade (cf.,
a este respeito, a Diretiva n.º 2014/95/UE). Porém, a perspetiva dominante
é (ainda) estreita, focada nos acionistas. Mesmo neste domínio estreito,
as ideias de sustentabilidade e de gestão numa ótica de longo prazo são
mais critérios de orientação geral do que realidades concretas. Existem
mecanismos destinados a promover a sua realização ou, pelo menos, a
impedir que esta seja comprometida, mas a sua eficácia prática não se
encontra, em boa medida, assegurada.
Note-se, em especial, que, dado o caráter naturalmente imperfeito e
incompleto dos contratos duradouros e das leis, no pensamento dominante
da primazia acionária, com prevalência dos interesses dos acionistas sobre
outros conflituantes, desde que se respeitem normas legais imperativas
como as de proteção ambiental (a que a sociedade esteja sujeita), o inte‑
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 521
resse dos acionistas (presentes) pode «legitimamente» ser prosseguido
apesar de ter implicadas externalidades lesivas das gerações futuras.
3. Governança societária e justiça intergeracional nas sociedades
fechadas
Tanto as sociedades anónimas, abertas e fechadas, como as socieda‑
des por quotas, legalmente configuradas como sociedades fechadas, são
organizações de membros variáveis. As próprias sociedades gerais (civis)
e sociedades mercantis de pessoas (SNC e SCS) o são, desde 1967 e
1977, respetivamente.
Todavia, existe uma grande diferença entre uma sociedade com ações
cotadas em bolsa (admitidas à negociação em mercado regulamentado)
– o paradigma da sociedade aberta ao investimento público – e as demais:
nas sociedades abertas, existe um mercado regular de ações, que, por
um lado, permite aos acionistas desinvestir e afastar-se da sociedade em
qualquer momento, por outro lado, em virtude desta circunstância e das
maiores exigências regulatórias, de governança e informação pública, quer
de direito societário e contabilístico-financeiro quer de direito mobiliário,
o mercado de ações funciona indiretamente como mecanismo regulador
do próprio funcionamento da sociedade, mesmo quando há um controlo
maioritário estável, designadamente familiar. Isto é assim sobretudo no
espaço anglo-americano, em que este mercado é a forma de financiamento
privilegiada de tais sociedades ou pelo menos uma forma particularmente
importante; mas, em alguma medida, é-o também em Portugal e noutros
países da Europa continental.
Apesar disso, observou-se que, nas sociedades com controlo maiori‑
tário ou sobretudo nelas, vários textos de governança societária realçam
o tema do tratamento justo ou equitativo das minorias. Não havendo
um tal mercado, como sucede nas sociedades fechadas, o problema
ganha uma dimensão ainda muito maior e tem associado um outro: o
da conservação da base patrimonial e correspondente sustentabilidade
financeira da sociedade.
Via de regra, nas sociedades com um número limitado de sócios
– como sucede tipicamente nas SQ e num grande número de SA –,
a sociedade funciona, pelo menos inicialmente, como uma estrutura
de colaboração, com interesses solidários ou convergentes dos sócios,
segundo o paradigma legal geral (cf. o artigo 980.º do CC: organização
de fim comum lucrativo). Todavia, estando em causa organizações de
522 EVARISTO MENDES
cunho personalista, em que a base pessoal é muitas vezes tão ou mais
importante que a base patrimonial ou financeira (tenha-se presente a
abolição da exigência de capital mínimo nas SQ, em 2011), existem
contingências de vária ordem suscetíveis de comprometer o desempenho
e a durabilidade das mesmas – mormente a durabilidade transgeracional.
A morte de sócios – com a associada questão sucessória, a que se
aludiu a respeito das sociedades familiares, mas que tem uma dimensão
mais ampla porque envolve quaisquer sócios, maioritários e minoritá‑
rios – é uma delas. Porém, mesmo quando a homogeneidade pessoal
perdura, a circunstância de, em muitos casos, a sociedade ser a base
de sustento da família dos sócios impede-a de se desenvolver, como
organização produtiva autónoma e sustentável.
Independentemente disto, na generalidade dos casos, a sociedade
constitui-se e funciona muito mais na base de entendimentos tácitos,
pressuposições, escolha e confiança recíprocas dos sócios do que numa
explícita e articulada regulação da relação, estatutária ou parassocial.
Tal como nas sociedades abertas, encontramos, também aqui, um típico
mecanismo regulador externo, mas um mecanismo distinto, constituído
pelas relações pessoais existentes entre os sócios. Note-se que é o pró‑
prio legislador – com os procedimentos simplificados de constituição e
dissolução de sociedades por quotas e anónimas e a abolição naquelas
da exigência de capital social mínimo, para a generalidade dos setores
de atividade económica – quem promove este estado de coisas.
Nas sociedades abertas, se o mecanismo regulador do mercado falha
ou não é eficiente, existe uma insuficiente proteção dos acionistas,
mormente dos minoritários nas sociedades com controlo estável. Nas
sociedades fechadas, quando o mecanismo regulador pessoal deixa de
funcionar – por quebra de confiança, pelo simples desaparecimento
da empatia inicial dos sócios, causada pelo desgaste da convivência
quotidiana, por interferências familiares, comportamentos oportunistas,
etc. –, elas facilmente deixam de ser estruturas de colaboração (pelo
menos de colaboração integral) e passam a funcionar como estruturas de
poder, com minoritários prisioneiros de investimentos estéreis e vítimas
de comportamentos opressivos ou injustamente prejudiciais, desgastadas
por conflitos internos e, muitas vezes, intermináveis querelas judiciais,
com natural prejuízo para o seu desempenho e durabilidade. Temos aqui,
portanto, problemas de eficiência, sustentabilidade funcional e tratamento
equitativo das minorias.
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 523
Todavia, este é apenas um dos aspetos da questão. No fundo, além
da natural fraqueza das sociedades que na prática se identificam com os
sócios, assentes no exercício direto da atividade social por estes, sem
colaboradores ou com um número restrito dos mesmos, muitas vezes
familiares sem vínculo jurídico definido, as sociedades fechadas apre‑
sentam duas grandes debilidades: uma deriva da sua base personalista,
sendo de índole funcional; a outra decorre da ausência de um mercado
regular das quotas e ações, sendo de índole financeira. Noutros termos,
encontramos nelas dois problemas com contornos específicos e em boa
medida interligados: um de sustentabilidade funcional e outro de sus-
tentabilidade financeira.
Dão-se alguns exemplos:
i) Se a sociedade é a base da economia familiar dos sócios, a «renda»
que produz é naturalmente canalizada para esse domínio: seja
através da distribuição de dividendos, seja por via de retribuições
«laborais», de gerência, etc.; seja mediante amortização voluntária
ou aquisição pela sociedade das próprias quotas ou ações, bem
como realização de outros negócios com os sócios. Pode, inclusive,
ser atingida a «substância» económica da mesma se o capital for
reduzido para distribuição ou se houver uma distribuição de valor
excessiva permitida por um capital estatutário baixo, desadequado
em relação à dimensão do negócio ou empresa.
ii) Se um sócio morre, a sociedade pode continuar com os herdeiros.
Neste caso, temos frequentemente uma quebra da homogeneidade
da coletividade social, com associados problemas funcionais, de
tratamento injusto das minorias e possível «guerrilha» dos mino‑
ritários (sejam eles os herdeiros, sejam sócios sobrevivos). Na
hipótese de a sociedade, por acordo ou cláusula estatutária, não
continuar com os sucessores do sócio falecido, em regra ser-lhes-á
devida uma contrapartida compensatória, a pagar pela sociedade
se ela não encontrar quem fique com a quota (ou as ações) (cf. o
artigo 225.º, n.os 4 e 5, do CSC), afetando as respetivas finanças.
iii) Se um sócio tem um comportamento oportunista, desleal ou gra‑
vemente perturbador do funcionamento da sociedade, afetando-a
de forma séria, a sociedade pode eliminar o problema funcional
excluindo-o ou promovendo a sua exclusão (artigos 241.º e 242.º
do CSC; nas SA, o assunto é discutido). Mas, em geral, isso tem
para si um custo financeiro, porque terá de lhe pagar o valor da
524 EVARISTO MENDES
participação [artigos 241.º, 235.º, n.º 1, alínea a), e artigo 242.º,
n.º 4, do CSC].
iv) Se a quota de um sócio é executada por um credor pessoal deste
ou se o sócio fica insolvente, para evitar a entrada de estranhos,
conservando a homogeneidade da coletividade social, a sociedade
pode amortizar essa quota, caso o pacto social o autorize (artigos
233.º, n.os 1 e 2, e 239.º, n.º 2, do CSC), ou exercer a preferência
prevista no artigo 239.º, n.º 5, do CSC, mas isso tem, igualmente,
um custo financeiro. O mesmo vale, mutatis mutandis, para as
ações, se a situação estiver regulada no pacto social (artigos 347.º
e 328.º, n.º 2, alínea b), e n.º 5, do CSC).
v) Se um sócio de uma sociedade por quotas estiver há pelo menos
3 anos na sociedade e encontrar um adquirente para a sua quota,
real ou «fingido» (sem que se prove a fraude), que a sociedade
não deseje, a preservação da homogeneidade da coletividade
social também tem para ela um potencial custo financeiro (artigo
231.º do CSC). O mesmo vale, havendo regulação estatutária
do assunto e sem aquela restrição temporal, para as sociedades
anónimas (artigos 328.º, n.º 2, e 329.º, n.º 3) (a menos que se
interprete a lei no sentido de que a sociedade não pode, neste
contexto, adquirir ou amortizar as ações – nem mesmo prevendo‑
-se tal possibilidade nos estatutos).
vi) Como o CSC tem na base a ideia de que a cessão de quotas é a
via normal de um sócio sair de uma sociedade por quotas, liqui‑
dando o investimento que nela tem, isto apesar da real falta de
mercado para as quotas mormente quotas minoritárias (problema,
de resto, agravado pelo legislador em 2006, com a destruição da
segurança jurídica do tráfico das quotas), mesmo que um sócio
seja vítima de um comportamento opressivo ou injustamente
prejudicial por parte da maioria, ainda que o seu investimento
se torne estéril, apesar de a sociedade proporcionar benefícios
aos maioritários, ou ocorram outras situações capazes de tornar
dificilmente suportável a sua permanência na sociedade (podendo
haver mesmo uma situação de «absoluta» inexigibilidade de tal
permanência), o artigo 240.º do CSC não lhe reconhece o direito
a exonerar-se (acerca da inexigibilidade, cf. Cunha, 2011, pp. 99
et seq. e 557 et seq., Espírito Santo, 2014, p. 1039, Pinto,
2013, pp. 393 et seq.). A razão fundamental de tal opção legal
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 525
reside na necessidade de preservar a base financeira da sociedade;
mas o resultado, na prática, acaba por ser, muitas vezes, ou uma
«expropriação» de facto do minoritário, utilizando a linguagem
de parte dos instrumentos de governança societária analisados, ou
uma solução negociada, com um custo financeiro para a sociedade,
ou a perpetuação de uma situação injusta e conflitual, capaz de,
com o tempo, redundar num grave prejuízo para a imagem e o
funcionamento da mesma sociedade.
Situações desta índole reclamam, portanto, dispositivos de governança
adequados. Acima de tudo, é importante uma clara identificação dos
problemas e a elaboração de modelos de estatutos, que os interessados
poderão adotar, no todo ou em parte.
Mais uma vez a título tão-só exemplificativo, é importante regular nos
estatutos, antes de mais, a morte de sócios; seja definindo as condições
em que a quota pode passar para os sucessores – com eficácia face à
sociedade, ou seja, tornando-se estes sócios –, seja regulando a contra‑
partida a pagar se tal não vier a suceder ou para que tal não suceda. Na
verdade, a situação presente mostra-se totalmente insatisfatória: a regra
legal supletiva é a de que os sucessores se tornam ou têm o direito de
se tornar sócios, ocupando o lugar do sócio falecido (embora não seja
claro como se conjugam aqui os planos jussucessório e societário); até
aos processos simplificados de constituição de sociedades (2005), uma
percentagem significativa de pactos sociais regulava o assunto, embora,
na maioria dos casos, através de uma cláusula de amortização facultativa,
que tem associados diversos problemas e um contencioso muito signifi‑
cativo; e a situação ainda se agravou, porque tais processos simplificados
favorecem agora a não regulação da matéria.
Igualmente insatisfatória é a situação em caso de divórcio (ou sepa‑
ração de bens) de um sócio cuja quota seja um bem comum do casal.
A situação encontra-se, aliás, agravada, neste contexto como no da morte,
em virtude da utilização no direito das sociedades de conceitos de direito
civil inapropriados, como o da natureza declarativa da partilha.
A exclusão de sócios desleais ou perturbadores merece também aten‑
ção: quer porque, em regra, a sociedade precisa de intentar uma ação
de exclusão, que pode ser demorada; quer porque, aplicando o regime
legal supletivo, o encargo financeiro pode ser muito significativo para a
sociedade. Para o efeito, é relativamente indiferente que a via seja a da
exclusão propriamente dita ou a da amortização de quotas com função
526 EVARISTO MENDES
excludente (equivalência funcional que nem sempre a jurisprudência
tem em conta). A este respeito, importa notar que uma grande parte
das sociedades por quotas se constitui com base num pressuposto ou
entendimento não escrito de que os sócios não exercerão uma atividade
concorrente com a da sociedade e não aproveitarão em seu benefício opor‑
tunidades de negócio corporativas. Isto mesmo resulta de cláusulas que
«sancionam» tais comportamentos com a amortização de quotas, apesar
de os pactos que as contêm não estabelecerem explicitamente qualquer
proibição desses comportamentos; e pode, em concreto, considerar-se
uma decorrência do princípio da lealdade ou fidelidade ao fim comum,
considerando o tipo real de sociedade em causa. Todavia, a tendência tem
sido para utilizar o raciocínio linear de que, legalmente, tais obrigações
apenas impendem sobre os gerentes (ou administradores), não sobre os
sócios enquanto tais. Donde resultam frequentes situações conflituosas,
insatisfatoriamente decididas pelos tribunais.
No que respeita à cessão de quotas, o artigo 228.º, n.º 2, do CSC
considera livres as cessões realizadas por um sócio a favor de outro, bem
como a favor do cônjuge, ascendente ou descendente. Em consonância
com o típico intuito pessoal das sociedades por quotas, na maioria dos
casos em que o assunto é regulado no pacto, circunscreve-se a liberdade
de cessão às transmissões entre sócios. Porém, grande número de pactos
sociais não regula o assunto; e tal acontece, provavelmente, quando isso
mais se justificava, porque o cariz pessoal da sociedade é mais acentuado.
Um dos modelos de contrato de sociedade fornecidos pelo IRN (SQ
2/2006) vai no bom caminho, mas a cláusula que nele se propõe apresenta
um duplo problema. Em primeiro lugar, fala-se aí em cessão a estranhos
e, embora pareça claro que estamos a falar de estranhos à sociedade, não
ao titular da quota, por um lado, perante cláusulas estatutárias congé‑
neres, já se tem entendido o contrário; por outro lado, há quem entenda
que, em face do artigo 8.º, n.º 2, do CSC, o cônjuge do sócio também é
sócio (não um estranho), quando a quota for um bem comum do casal,
originando situações em que avulta o aludido problema funcional das
sociedades fechadas de base pessoal. Em segundo lugar, na «cessão
onerosa a estranhos», reconhece-se aos sócios não cedentes e à socie‑
dade um direito de preferência. Todavia, se estivermos a falar de uma
preferência em sentido estrito, sujeita à regra da paridade de condições
(ou do tanteio), nem todas as cessões onerosas poderão ser consideradas;
se englobarmos as preferências impróprias, seria conveniente regular
o valor pelo qual a preferência pode ser exercida. A isso acrescem os
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 527
problemas relativos ao exercício da preferência e à sua conjugação com
o regime do consentimento a prestar pela sociedade, bem como dúvidas
(injustificadas) acerca da validade das cláusulas de preferência criadas
por alguma jurisprudência.
A situação mais insatisfatória – a carecer de atenção adequada no
âmbito de uma governança societária orientada para o tratamento equi‑
tativo dos sócios minoritários e a sustentabilidade funcional e financeira
da sociedade num horizonte tendencialmente transgeracional – é, no
entanto, a que decorre da inexistência de um direito geral de exoneração
nas sociedades por quotas (e anónimas fechadas), mesmo quando existe
objetivamente justa causa para tal e a cessão de quotas (ou a alienação
de ações) não se mostra uma alternativa com viabilidade prática. Na
base, está a conceção tradicional do direito de/à exoneração como um
direito de dupla face – de desvinculação e recebimento do contravalor
da quota – contra a sociedade. Existem, porém, modelos exoneratórios
distintos, financeiramente neutros para a mesma sociedade, como acontece
no direito belga. Outro tanto sucede, de resto, com a exclusão. (Sobre o
assunto, cf. Mendes, 2012.)
Note-se que um bom número de situações deste tipo tem que ver com
a mudança de gerações de sócios, por morte de um deles. Com entrada
para a sociedade dos herdeiros, seja na condição de minoritários seja na
de maioritários, frequentemente há uma quebra da homogeneidade da
coletividade social e a sociedade passa a funcionar como uma simples
estrutura plutocrática, sem saudáveis e efetivos mecanismos regulatórios
e, portanto, potenciadora de situações de injustiça intergeracional, em
que as vítimas de tratamento iníquo tanto podem ser os sucessores que
acedem à condição de sócios, como os sócios que já lá estavam.
Um outro problema que afeta a grande maioria das sociedades
portuguesas e a respetiva governação é o financiamento – sobretudo
financiamento bancário ou concedido por outras instituições financeiras,
pessoalmente garantido (cf., sobre o assunto, Mendes, 2015). Trata-se,
antes de mais, de um problema de governança societário-empresarial.
Com efeito, em primeiro lugar, os sócios, em boa medida também
gerentes ou administradores, arriscam na sociedade sobretudo dinheiro
alheio, o que seria um desincentivo a adotar práticas de governo menos
sãs, não foram as garantias pessoais. Mas nem sempre estas têm a con‑
sistência esperada, quando acionadas; o que parece sugerir uma duvidosa
eficácia do mecanismo regulador que elas representam – no sentido de
528 EVARISTO MENDES
uma gestão leal, criteriosa e ordenada –, com naturais prejuízos para o
sistema financeiro e o tecido produtivo em geral.
Em segundo lugar, não sendo este o caso, em situações de crise, atual
ou previsível, o sistema tem o efeito de estimular uma gestão favorável aos
credores garantidos, em detrimento dos demais. Por vezes, os contratos
autorizam até aqueles a intervir na gestão. Talvez isto seja compreensível
e mesmo inevitável, dado que a base financeira é o capital alheio. Mas
justifica regras apropriadas de governação que não são as do modelo
tradicional dominante (desenvolvidamente, sobre o tema, cf. Dias, 2014).
Existe, todavia, uma outra dimensão do problema, que se prende
mais diretamente com a justiça intergeracional. Apresenta duas facetas.
Por um lado, o tecido produtivo que perdura nas gerações futuras é em
larga medida composto por sociedades sobre-endividadas, pelo que a
sucessão intergeracional leva consigo para as gerações vindouras este
«fardo». Por outro lado, embora as garantias pessoais sejam prestadas
pelos respetivos subscritores em razão da respetiva qualidade de sócios,
existe uma corrente jurisprudencial dominante no sentido de que elas, em
geral, perduram após a cessação de tal qualidade e cobrem não apenas
dívidas contraídas até essa cessação, mas também resultantes de negócios
futuros (cf. Mendes, 2015).
Isto agrava, antes de mais, o aludido problema dos sócios minoritários.
Além disso, transposta a jurisprudência para a morte dos sócios, a situa‑
ção dos herdeiros, que já comportava o fardo decorrente de as garantias
estarem abrangidas pelo princípio da sucessão universal (artigo 2024.º
do CC), ainda se torna mais «pesada».
Note-se que o problema do sobre-endividamento não é privativo das
sociedades fechadas e familiares. Respeita também a grandes sociedades,
incluindo sociedades abertas, e é suscetível de representar um fardo para
as próprias gerações que não estão envolvidas no processo produtivo,
presentes e futuras, sobretudo em virtude de operações de salvamento
estatal destinadas a evitar ou minorar deletérios efeitos sistémicos, ou
seja, na qualidade de contribuintes.
Numa outra ordem de ideias, em sociedades deste género que cons‑
tituem a base da economia familiar dos sócios, não raro a sobrevivência
e a rentabilidade mínima das mesmas a favor desses sócios presentes
sobrepõem-se a outros interesses, ainda que importantes ou decisivos
para a sua sustentabilidade no longo prazo, incluindo interesses de índole
social e ambiental. A própria lei nem sempre é respeitada ou é-o mais
na letra que no espírito. Sucede, inclusive, que a falta de cumprimento
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 529
de leis com importante impacto nos custos das empresas, se não for
eficazmente combatida, acaba por assumir proporções alarmantes para
o próprio Estado de Direito, porque as mesmas razões de sobrevivência
e rendibilidade mínima, num sistema concorrencial, levam à nivelação
por baixo e à imitação de comportamentos negativos.
Como se observou, nesta matéria as atenções concentram-se nas
grandes organizações, mormente multinacionais. Mas o todo formado por
numerosas empresas de pequena e média dimensão com comportamentos
deste género é suscetível de ter um impacto igualmente assinalável, digno
de ser considerado nas regras de governança societária.
4. Perspetiva integrada da governança societária. Enquadramento
constitucional
Termina-se com algumas observações de caráter geral, tendo sempre
presente a questão de fundo: pode a governança societária contribuir para
uma melhor justiça intergeracional? De que modo?
Verificou-se que os existentes instrumentos de governação não adotam
tal perspetiva. Favorecem, no entanto, em maior ou menor medida, a
durabilidade transgeracional das organizações produtivas e podem con‑
tribuir para uma maior efetividade prática da proteção ambiental e dos
recursos naturais, bem como, em última análise, para um desenvolvimento
económico e social sustentável, com solidariedade intergeracional.
Observou-se, igualmente, que existem modelos de governança mais
próximos da neutralidade social (modelos financialistas dominantes) e
modelos mais comprometidos com as questões ambientais e sociais (v.g.,
RSE/CSR, CVP/CSV); colocando-se um problema de competitividade
entre eles. Em termos gerais, a primeira questão a resolver é a seguinte:
na ausência de vinculações específicas, legais, estatutárias, contratuais,
etc., que lhes imponham certo comportamento, que objetivos e interes‑
ses podem e/ou devem os gerentes e administradores de uma sociedade
prosseguir? Uma vez respondida ela, surge uma segunda: de que modo
podem e/ou devem tais objetivos e interesses ser prosseguidos?
Nas páginas que se seguem, procura-se dar ao tema que nos ocupa
um enquadramento mais lato, tendo presentes tais questões e possíveis
leituras divergentes do assinalado artigo 64.º, n.º 1, do CSC. A Consti‑
tuição, apesar de se encontrar em grande medida ausente da pertinente
literatura jurídico-societária e económica, ocupa aqui, naturalmente, um
lugar de destaque.
530 EVARISTO MENDES
4.1. Desenvolvimento sustentável e solidariedade intergeracional
Antes de tudo, cabe realçar que, na CRP, existe um conjunto de
direitos fundamentais fundados na dignidade da pessoa humana e ele‑
mento nuclear do Estado de Direito – os direitos à vida, à saúde e à
liberdade, o direito ao desenvolvimento da personalidade e certos direi‑
tos de liberdade mais específicos que permitem a realização da pessoa
humana, pessoal e profissionalmente, como a liberdade profissional e
de empresa, bem como direitos implicados por eles, como o direito ao
ambiente e à qualidade de vida – que, com os bens e valores de referência
do respetivo objeto, formam um património juscultural entendido como
património da humanidade. Trata-se de um adquirido civilizacional que
o nosso diploma fundamental de «tempo longo» considera merecedor de
proteção objetivamente, independentemente da titularidade concreta que
– por definição, numa comunidade de pessoas que vão sucessivamente
coexistindo no espaço de aplicação das normas e se vão sucedendo no
tempo – vai variando, de geração em geração.
Na verdade, estamos perante um património comum transgeracional
desta comunidade diacrónica de pessoas, repositório de valores e inte‑
resses do conjunto dessas pessoas, presentes e vindouras, com titulares
concretos presentes a que se sucederão naturalmente titulares futuros, mas
cuja gestão, pela própria natureza das coisas, é confiada a cada geração
que sucessivamente vai sendo presente. Nesta medida, tal gestão assume
um certo caráter fiduciário, de administração de um património que não
é só daqueles a quem está temporalmente confiado. Cabe à Constituição
e ao Estado de Direito assegurar que essa relação fiduciária seja preser‑
vada, criando mecanismos de proteção dos titulares entendidos como
membros variáveis no tempo de uma comunidade unitária; por exemplo,
instituindo uma instância representativa dos interesses daqueles que hão
de vir (cf. Silva, 2010).
Cumpre realçar aqui as ideias de um património ambiental (eco‑
lógico), suscetível de afetação irreversível pela atuação imprevidente,
irresponsável ou mesmo rapace das gerações presentes (ou setores das
mesmas) e, portanto, particularmente carecido de proteção, e da utilização
de recursos naturais escassos potencialmente irracional ou delapidante.
Depois de no n.º 1 do artigo 66.º da CRP se reconhecer a todos o direito
a um «ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado»,
bem como o dever de todos o defenderem, salienta-se a incumbência do
Estado de o assegurar, no quadro de um desenvolvimento sustentável,
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 531
designadamente: promovendo o «aproveitamento racional dos recursos
naturais»; com salvaguarda da sua «capacidade de renovação» e da
«estabilidade ecológica», respeitando o «princípio da solidariedade
entre gerações» [n.º 2, alínea d)]; integrando os objetivos ambientais nas
políticas setoriais [n.º 2, alínea f)]; e assegurando que a política fiscal
«compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de
vida» [n.º 2, alínea h); cf., ainda, artigo 9.º, alínea e), Silva, 2010, pp. 485
et seq., nota 76, 487 e 493, Garcia & Matias, 2010, pp. 1350 et seq.].
O princípio do desenvolvimento sustentável [e equilibrado: cf. ainda o
n.º 2 do artigo 66.º, alínea b), bem como os artigos 81.º, alínea d), e 90.º]
ou da sustentabilidade do desenvolvimento económico e social (Garcia,
2007, pp. 172 et seq., 310 et seq., 379 et seq., 448 et seq., Garcia &
Matias, 2010, pp. 1350 et seq., Canotilho & Moreira, 2007, pp. 843
et seq., 967, e Mendes, 2010, pp. 1189 et seq.) – cuja conexão estreita
com a proteção do ambiente e a solidariedade intergeracional se afigura
manifesta – encontra-se, ainda, enfatizado no artigo 81.º, alínea a), em
que se incumbe o Estado de promover o bem-estar social e económico no
quadro do mesmo e portanto com respeito por ele. Acerca dos recursos
naturais e do equilíbrio ecológico, incumbe também ao Estado adotar
uma política de energia que assegure a sua preservação e uma política
nacional da água, com gestão planeada e racional dos recursos hídricos
[artigo 81.º, alíneas m) e n)].
4.2. Liberdade de empresa e modelo socioeconómico constitucional
A governança societária – ou societário-empresarial – tem a ver com
a liberdade de empresa (acerca do tema nas cooperativas, cf. Meira,
2014). Dispõe o n.º 1 do artigo 61.º da CRP que a iniciativa económica
privada se desenvolve livremente «nos quadros definidos pela Constituição
e pela lei e tendo em conta o interesse geral». Nesses quadros incluem‑
-se, naturalmente, aqueles princípios do desenvolvimento sustentável (e
ecologicamente responsável) e da solidariedade intergeracional. O próprio
interesse geral – enquanto interesse da mencionada comunidade abrangida
pelas normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais – pode
ver-se como o interesse de uma comunidade de membros variáveis, que
se vão sucedendo ao longo do tempo, de geração em geração, e portanto,
compreendendo também o das gerações futuras.
A este respeito, escreveu-se noutro estudo (Mendes, 2012) que, entre
os novos princípios característicos do Estado social, além do da demo‑
532 EVARISTO MENDES
cracia económica e social, avultam dois outros, que o modelo ou sistema
económico concreto deve «internalizar» ou incorporar: o do respeito
pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos consumidores e o
da salvaguarda ou proteção do ambiente; e observou-se igualmente que,
quanto a este, o texto constitucional explicita que o desenvolvimento
económico pretendido é um desenvolvimento ambientalmente sustentável
ou equilibrado.
Notou-se, ainda, que, «em última análise, o sistema ou modelo eco‑
nómico decorrente da Constituição (que sintetiza o regime nela contido
nesta matéria) deverá ser capaz de – salvaguardando a existência e tirando
partido do exercício, individual ou associado, dos direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos (e estrangeiros), mormente a liberdade de
empresa e a propriedade – promover o progresso económico e social e
a efetivação de um Estado social ecologicamente responsável, no res‑
peito pelos interesses e direitos dos trabalhadores e dos consumidores.
Ao Estado compete atuar como regulador e promotor ou impulsionador
das ações e atividades necessárias para atingir esses objetivos».
No fundo, está em causa «estabelecer um equilíbrio dinâmico entre
um incontornável princípio de liberdade, por um lado, e, por outro lado,
um princípio de solidariedade e responsabilidade, a que se junta, ainda,
um princípio de justiça», cabendo ao Estado promover a «otimização do
sistema de princípios e valores expressos na Constituição, ajustando-os
de modo a obter um resultado coerente e profícuo».
Realçou-se também um ponto que na CRP aparece menos explícito:
«a economia e o respetivo processo produtivo constituem um espaço
de liberdade e de realização pessoal e profissional dos seus partici‑
pantes (máxime, empresários e trabalhadores)». E, em jeito conclusivo,
observou-se, igualmente, que a liberdade de empresa dos particulares
apresenta uma «natureza de dupla face: apesar de a CRP apenas se lhe
referir como liberdade fundamental de índole económica – que, enquanto
tal, se exerce no quadro do sistema económico gizado pela Constituição
e, dentro dos limites desta, pela lei –, colocando em primeiro plano a
sua relevância institucional ou sistémica, como liberdade-princípio de
organização económica, ela constitui, simultaneamente, uma liberdade
fundamental de caráter pessoal, em que estão presentes valores de
liberdade e de realização da pessoa humana. O sistema assume, para
ela, um duplo significado: por um lado, alarga o seu campo de ação e
nessa medida reforça a sua efetividade prática; por outro lado, sobretudo
enquanto sistema regulado, limita-a juridicamente».
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 533
No presente estudo, importa realçar, ainda, que o direito vigente – e
a correspondente atividade conformadora e reguladora do sistema socio-
económico, normativa e institucional, que incumbe ao Estado – devem
incorporar a assinalada dimensão intergeracional dos direitos funda‑
mentais, incluindo a proteção do ambiente e dos recursos produtivos,
mormente os recursos naturais, enquadrando o exercício da liberdade
de empresa de modo a que o desenvolvimento daí resultante seja social‑
mente sustentável e observe o princípio da solidariedade entre gerações.
Vendo as coisas sob uma outra ótica, o sistema deve, por imperativo
constitucional, potenciar e enquadrar a liberdade de empresa enquanto
liberdade das gerações presentes e futuras, na dupla vertente assinalada
(institucional e de realização pessoal), conciliando o seu exercício com a
necessidade de evitar ou pelo menos minorar associados efeitos negativos
que se prolongam no tempo ou são mesmo irreversíveis, mormente no
plano ambiental e dos recursos naturais não renováveis.
4.3. Entendimento dominante do artigo 64.º, n.º 1, do CSC
Tendo presentes estas coordenadas, retomam-se as questões acima
enunciadas: que objetivos e interesses podem e/ou devem os gerentes
e administradores de uma sociedade prosseguir? De que modo podem
e/ou devem tais objetivos e interesses ser prosseguidos?
Do artigo 64.º, n.º 1, do CSC, na redação que lhe foi conferida pela
reforma do direito societário de 2006, retira-se a seguinte resposta à pri‑
meira questão: os gerentes e administradores devem prosseguir o interesse
da sociedade. Porém, que interesse é este? Segundo a doutrina societária
que se afigura dominante, ele identifica-se com o interesse comum dos
sócios; e, dado o paradigma legal da sociedade lucrativa (artigo 980.º do
CC), corresponderá à prossecução do lucro, em benefício desses sócios,
de todos eles (cf., e.g., Câmara, 2008, pp. 36 et seq., 2010, pp. 59 et
seq., e, ainda, Ventura, 1991, pp. 150 et seq., Martins, 2006, p. 23
e nota 21, V. Xavier, 1976, nota 116, pp. 242 et seq.; sobre o assunto,
cf., ainda, Ribeiro, 2009, pp. 509 et seq. e 535 et seq., Cordeiro, 2011,
pp. 844, 872 et seq. e 888, e Gonçalves, 2015, pp. 838 et seq. e 874 et
seq., com ulteriores reflexões).
Quanto à segunda questão, decorre também do preceito legal que os
gerentes e administradores, ao prosseguir tal objetivo e interesse, devem
atuar de forma criteriosa e ordenada e têm de respeitar certas linhas de
orientação; não são livres de escolher o modo de alcançar esse objetivo.
534 EVARISTO MENDES
Concretamente, a gestão deve ser orientada para a sustentabilidade da
sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo da coletividade
dos sócios, ou seja, criando riqueza para eles neste horizonte temporal
alargado, e levando em conta os interesses de outros sujeitos relevantes
para essa sustentabilidade. Note-se que estes outros sujeitos, como de
resto os sócios, também são relevantes para o desempenho da empresa
social, mas o que o legislador pretendeu acentuar foi a sustentabilidade
ou durabilidade da sociedade enquanto organização produtiva (cf. também
Gonçalves, 2015, pp. 874 et seq.).
Na leitura dominante da lei, uma boa governança das sociedades
identifica-se, assim, pelo menos no campo dos princípios, com uma
boa governação do interesse dos sócios vistos como um todo (cf., e.g.,
Alves, 2007). Nas sociedades por ações, com especial variabilidade dos
acionistas e a possível existência de um mercado regular que a potencia,
com um órgão de administração legalmente independente em matéria de
gestão, e com uma administração orientada para a sustentabilidade das
mesmas num horizonte temporal de longo prazo, em conformidade com
o padrão do acionista iluminado, estão em causa acionistas presentes e
futuros. A sociedade é governada enquanto organização duradoura de
membros variáveis, presentes e futuros, ou seja, atendendo também aos
interesses de futuros acionistas.
Sendo a sua duração tendencialmente ilimitada, a governança assume,
portanto, no que respeita à coletividade social, uma potencial dimensão
transgeracional: está em causa uma comunidade dinâmica de acionistas
presentes e futuros, incluindo, tendencialmente, os das gerações vin‑
douras. No caso das sociedades anónimas abertas, máxime com ações
cotadas (admitidas à negociação em mercado regulamentado), esta ideia
ainda surge reforçada porque está igualmente envolvido o mercado de
capitais, enquanto instituição económica fundamental, que igualmente
se pretende duradoura, funcionante, transparente e digna de confiança,
a bem das gerações que se vão sucedendo. A proteção deste mercado,
assim encarado, é uma das preocupações fundamentais, designadamente,
do CVM, presente em grande parte do respetivo articulado.
Acresce que a sustentabilidade da sociedade num arco temporal
de longo prazo, tendencialmente ilimitado, também depende, como
se observou, de uma adequada atenção aos interesses de outras partes
interessadas, mormente as coenvolvidas na respetiva empresa enquanto
organização social e produtiva de mercado (trabalhadores, fornecedores,
financiadores, clientes, etc.), as quais formam, igualmente, um círculo
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 535
variável e tendencialmente transgeracional. Por conseguinte, a governança
societária compreende, ainda, a consideração de interesses que vão para
além do interesse comum dos sócios e das gerações presentes destes.
Todavia, segundo o referido entendimento dominante da lei, estamos
perante uma consideração de tais interesses subordinada, instrumental
em relação realização do interesse comum dos sócios (Câmara, 2008,
pp. 36 et seq.).
É esta interpretação da lei conforme à Constituição? Não existirão
leituras alternativas pelo menos mais conformes às referidas coordena‑
das da Lei Fundamental? Como se vai ver, a resposta é que tais leituras
existem. Mesmo sem este apoio de nível superior, analisando apenas o
texto do CSC, é possível contestar a hierarquização de interesses defen‑
dida pela doutrina dominante. Fazendo intervir a Constituição e as leis
que a completam, na definição do aludido sistema socioeconómico, esta
conclusão sai reforçada: do sistema extrai-se uma diretriz no sentido da
adoção pelos empresários de comportamentos eticamente responsáveis
e da preferência por modelos de negócio filoambientais e filossociais.
4.4. O artigo 64.º, n.º 1, do CSC à luz da Constituição. Modelos de
governança
Recorda-se que, segundo o artigo 61.º, n.º 1, da CRP, a iniciativa
económica privada se desenvolve «livremente nos quadros definidos
pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral».
A iniciativa privada que tem lugar em Portugal cabe tanto a nacionais
como a estrangeiros e a entidades com sede no país e no estrangeiro,
mormente cidadãos europeus e entidades sediadas noutro país da União,
sendo neste caso protegida não apenas pela liberdade em apreço mas
também pelas liberdades fundamentais do Direito da União Europeia
(DUE); e compreende também aquela que se projeta além fronteiras.
Apesar dos termos da disposição que se analisa, o respetivo quadro
normativo abrange não apenas a Constituição e a lei em sentido estrito,
mas também, designadamente, o DUE e o direito internacional direta‑
mente aplicáveis e, ainda, normas regulamentares; e, a par dele, existe
um quadro institucional, constituído, inter alia, por autoridades regula‑
doras independentes.
A esse quadro normativo pertencem princípios e disposições de índole
económica, bem como de política económica. Realçam-se os seguintes
princípios constitucionais: – da proteção dos interesses económicos dos
536 EVARISTO MENDES
consumidores (artigo 60.º, n.º 1), da publicidade leal e transparente e da
propriedade (artigos 60.º, n.º 2, 62.º e 83.º), a que correspondem direi‑
tos fundamentais; – do desenvolvimento económico [artigos 59.º, n.º 2,
alínea a), artigo 80.º, alínea e), artigo 81.º, alíneas a), j) e l), 87.º, 90.º
e 101.º], da coexistência de setores de propriedade [artigos 80.º, alínea
b), e 82.º], da «liberdade de iniciativa e de organização empresarial no
âmbito de uma economia mista» [artigo 80.º, alínea c)], da plena utiliza‑
ção das forças produtivas e meios de produção [artigos 81.º, alínea c), e
88.º], da sã concorrência [artigos 81.º, alínea f), e 99.º, alíneas a) e c)],
do mercado (de concorrência) e da eficiência dos mercados [artigos 81.º,
alínea f), e 99.º, alínea b)], a par de um princípio de planeamento [artigos
80.º, alínea e), e 90.º et seq.], e da instituição de um sistema financeiro
orientado para a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem
como a aplicação dos meios financeiros ao desenvolvimento económico
e social (artigo 101.º).
Quanto às políticas, para além das implicadas nos princípios anterio‑
res, assinalam-se, entre outras: as do fomento da atividade empresarial
e exportadora, em especial das PMEs [artigos 86.º, n.º 1, e 100.º, alínea
d)], de aumento da produção industrial [artigo 100.º, alínea a)], da
internacionalização da economia portuguesa [artigo 100.º, alínea a)], do
aumento da competitividade e da produtividade das empresas industriais
[artigo 100.º, alínea c)], e da modernização do tecido empresarial agrícola
[artigo 93.º, n.º 1, alínea b)].
A tais princípios e disposições acrescem direitos fundamentais, princí‑
pios e comandos, mormente de índole humana, social e ambiental, tendo
na base o valor superior da dignidade da pessoa humana [artigos 1.º e 26.º,
n.os 2 e 3], o respeito e a garantia de efetivação dos direitos e liberdades
fundamentais [artigos 2.º e 9.º, alínea b)] e a promoção da democracia
económica, social e cultural [artigos 2.º e 9.º, alínea d)]. Salientam-se os
seguintes direitos: – à vida e à integridade pessoal (artigos 24.º e 25.º), à
segurança e à saúde [artigos 57.º, n.º 3, 59.º, n.º 1, alínea c), 60.º, n.º 1, e
64.º], ao desenvolvimento da personalidade e realização pessoal [artigos
26.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea b)], ao bom nome e reputação, à imagem e
à reserva da vida privada [artigos 26.º, n.º 1, e 65.º, n.º 1]; – à segurança
social (artigo 63.º), ao ambiente e qualidade de vida [artigos 9.º alínea
d), e 66.º], à qualidade dos bens e serviços consumidos e à informação
sobre os mesmos (artigo 60.º, n.º 1), à paternidade e maternidade (artigo
68.º); – os direitos à segurança no emprego (artigo 53.º) e ao trabalho
(artigo 58.º), de intervenção associada na vida da empresa (artigos 54.º
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 537
e 58.º), a uma retribuição ajustada e condigna [artigo 59.º, n.º 1, alínea
a), e n.º 2, alínea a)], à higiene e segurança no trabalho, incluindo a justa
reparação de danos em caso de acidente [artigo 59.º, n.º 1, alíneas c) e
f)], à «organização do trabalho em condições socialmente dignificantes,
de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da
atividade profissional com a vida familiar» [artigo 59.º, n.º 1, alínea b)],
e ao repouso [artigo 59.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alíneas b) e d)], bem
como à participação na gestão de unidades produtivas do setor público
[artigos 54.º, n.º 5, alínea f), e 89.º].
Realçam-se, ainda, os princípios da proteção do consumidor [artigos
81.º, alínea i), e 99.º, alínea e)], em complemento dos direitos assinalados,
da especial proteção dos trabalhadores de empresas estrangeiras (artigo
87.º), da promoção do bem-estar, económico e social, e da qualidade
de vida [artigos 9.º, alínea d), e 81.º, alínea a)], do desenvolvimento
socioeconómico equilibrado e sustentável, com proteção da natureza
e do ambiente e a preservação e aproveitamento racional dos recursos
naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade
ecológica, e com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações
[artigos 9.º, alíneas d) e e), 66.º, n.º 2, alíneas b) e d), 81.º, alíneas a),
d), m) e n), e 90.º], e do ordenamento do território [artigos 9.º, alínea f),
65.º, 66.º, n.º 2, alínea b)].
No plano infraconstitucional, salienta-se a evolução, nas últimas
décadas, de um modelo socioeconómico com forte intervenção pública,
direta e indireta, para um modelo de economia regulada, integrado por
autoridades reguladoras independentes (cf. a Lei-Quadro n.º 67/2013,
de 28 de agosto, e, v.g., Confraria, 2011, Moreira & Maçãs, 2003, e
Catarino, 2014). No domínio ambiental e do desenvolvimento susten‑
tável, a nível nacional, o diploma legal fundamental é a Lei de bases da
política do ambiente (Lei n.º 19/2014, de 14 de abril), que desenvolve
os princípios dos mencionados artigos 9.º e 66.º da CRP. Realça-se:
Artigo 2.º, n.º 1: «A política de ambiente visa a efetivação dos
direitos ambientais através da promoção do desenvolvimento
sustentável, suportada na gestão adequada do ambiente, em parti‑
cular dos ecossistemas e dos recursos naturais, contribuindo para
o desenvolvimento de uma sociedade de baixo carbono e uma
“economia verde”, racional e eficiente na utilização dos recursos
naturais, que assegure o bem-estar e a melhoria progressiva da
qualidade de vida dos cidadãos.» Nos artigos 14.º e seguintes, estão
538 EVARISTO MENDES
indicados diversos instrumentos da política ambiental. Destacam-se
o artigo 19.º, segundo o qual «As atividades públicas ou privadas,
potencial ou efetivamente poluidoras, ou ainda suscetíveis de afetar
significativamente o ambiente e a saúde humana, estão sujeitas
a prévio licenciamento ou autorização nos termos da legislação
aplicável», e o artigo 17.º, relativo aos instrumentos económicos e
financeiros. Dispõe o n.º 1: «A política de ambiente deve recorrer
a instrumentos económicos e financeiros, concebidos de forma
equilibrada e sustentável, com vista à promoção de soluções que
estimulem o cumprimento dos objetivos ambientais, a utilização
racional dos recursos naturais e a internalização das externalida‑
des ambientais.» No n.º 2, contém-se uma lista exemplificativa
desses instrumentos: fundos públicos ambientais, instrumentos
de compensação ambiental, fiscalidade ambiental, prestações e
as garantias financeiras decorrentes da aplicação do princípio da
responsabilidade ambiental, instrumentos de mercado, etc.
Artigo 8.º (deveres ambientais): «1 – O direito ao ambiente está
indissociavelmente ligado ao dever de o proteger, de o preservar
e de o respeitar, de forma a assegurar o desenvolvimento susten-
tável a longo prazo, nomeadamente para as gerações futuras.
2 – A cidadania ambiental consiste no dever de contribuir para a
criação de um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado e, na
ótica do uso eficiente dos recursos e tendo em vista a progressiva
melhoria da qualidade vida, para a sua proteção e preservação.»
Do conjunto extenso e complexo de diplomas normativos existentes,
internacionais, europeus e nacionais, emerge uma série de princípios,
que enquadram e completam os direitos e deveres fundamentais. Inte‑
ressam aqui, em especial, para além dos referidos princípios do desen‑
volvimento sustentável e da solidariedade entre gerações, dois deles:
o da prevenção e o da precaução. Segundo o primeiro, «as ações com
efeitos imediatos ou a prazo no ambiente devem ser consideradas de
forma antecipativa, a fim de ser possível a minimização ou eliminação
das causas, prioritariamente à correção dos efeitos que possam ter em
relação à qualidade do ambiente, sendo o poluidor obrigado a corrigir
ou recuperar o ambiente, suportando os encargos daí resultantes, não lhe
sendo permitido continuar a ação poluente». O segundo «impõe, perante
a incerteza científica sobre os efeitos da ação, particulares deveres de
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 539
cautela de quem age» (cf. Garcia & Matias, 2010, pp. 1349 et seq., e,
na presente obra, Carla Gomes).
Em suma, através do artigo 61.º, n.º 1, da CRP, assegura-se aos
membros da sociedade em geral e respetivas organizações, bem como
a interessados externos, a liberdade de acesso a um sistema aberto de
economia mista e social de mercado regulada – sistema este em parte
autorregulado mas também institucional e funcionalmente garantido pelo
Estado –, de fazerem parte do mesmo e de aí desenvolverem uma atividade
económico-produtiva (ao menos tipicamente empresarial), prosseguindo
objetivos e interesses particulares, com dois limites: (i) observando as
regras do jogo fundamentais – ou seja, respeitando a Constituição, as leis
e as restantes normas de conduta aplicáveis, incluindo as de fonte europeia
e internacionais, mas também as instituições criadas e a funcionalidade do
sistema – e, adicionalmente, (ii) não sobrepondo a prossecução daqueles
objetivos e interesses particulares ao interesse da comunidade em geral.
Quer dizer, para além do respeito das normas de proteção de outros
valores e interesses consignadas na Lei Fundamental e das normas
legais e regulamentares pertinentes (legalidade democrática), exige-se,
ainda, aos agentes económicos e respetivas organizações produtivas, na
prossecução dos seus interesses privados, um comportamento que leve
em devida conta este interesse da sociedade em geral. A consciência de
que a atuação das organizações empresariais pode ter impactos sistémi‑
cos, de índole económica, social, ambiental, etc., não só positivos mas
também negativos, levou o legislador constituinte a fazer esta exigência
adicional; mesmo se ela já resulta em grande medida da necessidade de
respeitar a Constituição e a lei.
Salientam-se alguns vetores da dimensão social do modelo. O primeiro
é o do referido desenvolvimento sustentável a longo prazo, capaz de
beneficiar as gerações futuras, mormente em termos ambientais, com a
implicada proteção da sociedade em geral contra externalidades negativas
da atividade económica. Este considerou-se tão importante, que surge
repetidamente afirmado; e a associada proteção do ambiente em sentido
lato, incluindo a preservação e a gestão racional dos recursos naturais,
foi consagrada através de um direito e de um dever fundamentais: «todos
têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equi‑
librado e o dever de o defender» (artigo 66.º, n.º 1, da CRP). Realça-se
também a repetida afirmação do binómio «desenvolvimento económico e
social» como objetivo a atingir [artigos 66.º, n.º 2, alínea b), 80.º, alínea
e), 81.º, alínea j), 90.º e 101.º da CRP].
540 EVARISTO MENDES
O segundo vetor é o da proteção dos trabalhadores, realçando-se
«a organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de
forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da ativi‑
dade profissional com a vida familiar». O terceiro vetor é o da proteção
dos consumidores, que constituem uma peça essencial da economia de
mercado, mas mostram-se suscetíveis de ser afetados pela atividade dos
agentes económicos (produtivos). O quarto é o da saúde, dos trabalha‑
dores, dos consumidores e da sociedade em geral, igualmente protegida
através de um direito fundamental, como os anteriores.
Acresce a afirmação adicional da necessidade de levar em conside‑
ração o interesse geral, para além do que resulta do quadro normativo
estrito. A ele se referem também, por exemplo, os artigos 52.º e 81.º,
alínea f), da CRP.
Finalmente, realçam-se dois aspetos. Nos termos do artigo 18.º, n.º 1,
da CRP, os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades
e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas; o mesmo sucedendo com os demais direitos fundamentais de
natureza análoga (artigo 17.º), na medida em que possuam esta natureza.
No artigo 52.º, por sua vez, dispõe-se que todos os cidadãos têm um direito
de petição e queixa para defesa «dos seus direitos, da Constituição, das
leis ou do interesse geral» (n.º 1), bem como um direito de ação popular,
exercitável individualmente ou de forma associada, com vista a prevenir,
fazer cessar ou perseguir judicialmente infrações contra a saúde pública,
os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do
ambiente e do património cultural [n.º 3, alínea a)].
Estamos, portanto, longe dos modelos económicos liberais que sub‑
jazem à interpretação dominante do artigo 64.º, n.º 1, do CSC, mesmo
na vertente moderada e moderna do acionista iluminado. O modelo
constitucional é o de um desenvolvimento económico ambientalmente
responsável ou sustentável – num horizonte transgeracional – e socialmente
comprometido, com os consumidores, os trabalhadores e a comunidade
em que a atividade económico-produtiva se desenvolve; respeitador de
regras, valores e princípios explícitos e, ainda, com uma genérica atenção
ao interesse geral.
Encontramos aqui interesses e valores merecedores de serem con‑
siderados em si mesmos, designadamente o valor da sustentabilidade
empresarial de longo prazo e da solidariedade transgeracional; não
meros interesses instrumentais em relação ao objetivo da maximização
do lucro ou riqueza dos sócios nesse horizonte temporal. Ao menos tais
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 541
participantes no processo produtivo (stakeholders), de que depende esta
sustentabilidade, são vistos como tais, com relevo e dignidade próprios
(cf., v.g., a respeito dos trabalhadores, Neves, 2008, pp. 344 et seq., e
Briand, 2012); não como entidades portadoras de interesses subordina‑
dos ou instrumentais em relação a essa maximização do lucro. A inicia‑
tiva económica privada exerce-se deste modo, através de organizações
empresariais (máxime, societário-empresariais) assim concebidas, a que
é inerente um compromisso social e intergeracional.
Por conseguinte, a concretização de um tal modelo socioeconómico,
seja no plano das políticas públicas, seja no da atuação dos agentes
económicos privados, aponta mais para as doutrinas da responsabilidade
social das empresas (RSE/CSR), nas suas versões mais modernas, em
que a componente social é incluída no modelo de negócio, do que para
as teorias neoliberais, defensoras de uma estrita separação do económico
e do social. E, embora o modelo constitucional possa considerar-se pouco
elaborado em termos económicos se tivermos em conta as existentes
correntes de pensamento na matéria (a ênfase é dada, como se viu, à
componente social e à sustentabilidade transgeracional), também se afigura
mais próximo das teorias do valor partilhado (shared value) de Porter &
Kramer (2011) – tenha-se presente o aludido binómio do desenvolvimento
«económico e social» – e, inclusive, das teorias pluralistas da equipa de
produção (team production theory), ou do investimento específico, de
Blair & Stout (1999), e das partes interessadas (stakeholder theory), na
medida em que esta se distinga da RSE, do que da doutrina da criação
de valor para o acionista (shareholder value).
Quer dizer, no artigo 64.º, n.º 1, do CSC, o interesse da sociedade a
definir em concreto e a prosseguir pelos gerentes e administradores não
tem de se reconduzir ao mero interesse comum dos sócios, à maximi‑
zação do fim comum lucrativo ou máxima criação de riqueza/valor em
benefício de todos eles, ainda que numa ótica de longo prazo, levando
em conta os interesses de outros intervenientes – consumidores, traba‑
lhadores, credores, etc. – apenas na medida em que tal seja relevante
para essa maximização. Com efeito, por um lado, os próprios termos do
preceito, apesar da sua ambiguidade (Antunes, 2017, p. 336, Serra,
2011, p. 212), permitem uma conceção pluralista do interesse social, ao
mandar atender aos interesses de longo prazo dos sócios e, simultanea‑
mente, ponderar os de outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade
da sociedade (designadamente, trabalhadores, clientes e credores) (cf.
542 EVARISTO MENDES
também F. Gomes, 2007, p. 566). Por outro lado, a sua leitura à luz da
Constituição aponta para uma interpretação deste tipo.
Trata-se, é certo, de uma conceção pluralista mitigada, porque a lei
não impõe a participação dos trabalhadores na gestão, dada a regra da
designação/eleição e da livre destituibilidade dos gerentes e administra‑
dores pela coletividade dos sócios, atenta a ausência de mecanismos de
defesa contra um eventual sacrifício injusto ou injustificado dos interesses
potencialmente conflituantes com os dos sócios, etc. [cf. Abreu, 2010,
pp. 17 et seq., e Costa & Dias, 2010, pp. 736 et seq.]. Mas traduz o
«espírito do sistema», legitima uma atuação mais abrangente dos gerentes
e administradores que a autorizada pela conceção tradicional do interesse
social (incluindo medidas de RSE: Gomes Segade, 2011, pp. 352 et seq.)
e deixa espaço para uma possível intervenção do direito recomendatório
(soft law), mormente das regras de boa governança (cf. também Serra,
2011, pp. 252 et seq.). Permite, assim, uma maior atenção a critérios de
atuação como os da responsabilidade ambiental e transgeracional, da
conciliação do desenvolvimento económico da empresa societária com o
desenvolvimento social da comunidade em que ela se insere, integrando
esta componente social no modelo de negócio, etc.; atendendo não ape‑
nas ao estrito direito legislado, mas também aos princípios e adicionais
normas éticas e de boa conduta.
Vendo, ainda, as coisas por um outro prisma, mais técnico-jurídico,
pode afirmar-se que as perspetivas financialistas do artigo 64.º, n.º 1,
do CSC têm na base uma visão «dominial» da sociedade, mormente
das sociedades por quotas e anónimas. Note-se que a circunstância de
o legislador ter abolido em 2011 a exigência de capital mínimo nas
primeiras não se opõe a semelhante visão. Apenas torna mais evidente
que está em causa a «propriedade» implicada na liberdade económico‑
-produtiva: a SQ, como a respetiva empresa, enquanto centro de atividade
económico-produtiva com valor e podendo funcionar como mecanismo
de acumulação de capital, é o resultado da iniciativa empresarial dos res‑
petivos fundadores, aderentes e respetivos sucessores, com um implicado
princípio de apropriação de tal resultado (cf. Mendes, 2010, p. 1214, e, a
respeito da liberdade profissional, Miranda & Medeiros, 2010, p. 968).
Resumidamente, o quadro é este:
i) A sociedade é uma pessoa coletiva integrada pelos sócios, que
detêm o direito ao seu valor líquido ou residual – valor que se
projeta nas suas esferas jurídicas individuais através das parti‑
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 543
cipações sociais, que podem realizar negociando estas, e de que
podem apropriar-se mediante distribuições de dividendos ou de
capital exuberante (neste caso, reduzindo o capital estatutário),
através da amortização e aquisição de quotas e ações próprias, da
dissolução e liquidação da sociedade, etc. – e formam um órgão
detentor do poder de domínio da mesma, envolvendo designada‑
mente a faculdade de designação e destituição dos titulares dos
outros órgãos sociais, em que avulta o órgão de administração,
o poder de a conformar estatutariamente e o poder de decidir
acerca do seu destino. Nesta medida, dentro de certos limites,
a sociedade é deles, está ao serviço do seu interesse comum,
devendo os respetivos gerentes e administradores maximizar a
criação de valor ou riqueza para eles, numa ótica de longo prazo.
ii) A sociedade pessoa jurídica, assim entendida, desenvolve uma
atividade económica, através de uma organização produtiva de
mercado predisposta para o efeito – tipicamente uma empresa –,
que lhe é exterior e da qual ela é titular (da qual tem o «domí‑
nio»). Esta é coisa sua, de que ela pode usufruir e de que pode
dispor, para realização dos seus fins; de tal modo que os sócios se
consideram indiretamente, através desta sua sociedade, os bene‑
ficiários da riqueza que tal empresa produz e podem dela dispor,
também de forma indireta, alienando em globo as participações.
iii) Quer os trabalhadores ou colaboradores, quer os fornecedores
e subcontratados industriais, quer os distribuidores e os con‑
sumidores da empresa são, portanto, exteriores à sociedade;
outro tanto sucedendo com as comunidades em que a atividade
é desenvolvida. Os próprios credores – mormente financiadores
mas também trabalhadores, fornecedores, etc., embora se liguem,
nesta qualidade de credores, à sociedade – são-lhe exteriores e
assumem tal condição, tipicamente, em atenção à empresa (à sua
capacidade para gerar um fluxo monetário suficiente para pagar
pontualmente os créditos).
iv) A governança respeita à sociedade e portanto aos sócios; é um
assunto do interesse destes. Os outros interessados serão apenas
seus beneficiários indiretos.
A perspetiva constitucional, de pendor institucionalista, como se expôs,
é distinta. No centro está o sistema produtivo, motor de um desenvol‑
544 EVARISTO MENDES
vimento económico e social sustentável no plano transgeracional: (i)
eficaz na prossecução do objetivo último da criação de uma sociedade
de bem-estar (económico e social) na qual as pessoas tenham uma
vida com qualidade e possam realizar-se, pessoal e profissionalmente
(desenvolvendo livremente a sua personalidade) [cf., designadamente, os
artigos 81.º, alínea a), 26.º, n.º 1, 59.º, n.º 1, alínea b), 61.º, n.º 1, e 66.º
da CRP]; e (ii) eficiente na sua organização e no seu funcionamento, ou
seja, atingindo os seus fins com o menor custo possível, no quadro de uma
concorrência que se pretende efetiva, equilibrada e salutar, benéfica para
os consumidores e a sociedade em geral [cf., designadamente, os artigos
81.º, alínea f), 99.º, alíneas a) a c), 60.º e 81.º, alínea i), da CRP]. Trata-se
de um sistema de organizações produtivas [essencialmente, empresas: cf.,
e.g., os artigos 80.º, alínea c), e 86.º, 100.º, alíneas c) a e), e 93.º, n.º 1,
alínea b), e Mendes, 2012] capazes de criar riqueza social, não apenas
individual, e elas próprias uma forma de riqueza com dimensão social.
Nele as formas ou estruturas jurídicas, designadamente societárias, são
secundárias ou instrumentais.
Noutros termos, para a Constituição, o que releva são unidades pro‑
dutivas ou centros de atividade produtiva, enquanto sistemas sociais e
económicos (e também jurídicos porque o direito é um elemento deci‑
sivo de coesão dos mesmos) integrados no tecido produtivo nacional.
As sociedades de direito comercial – cujo objeto é o exercício de uma
atividade criadora de riqueza, via de regra através de uma empresa –
formam, com as respetivas empresas, outros tantos centros de atividade
produtiva, autónomos ou integrados num centro mais vasto, a empresa
plurissocietária (com uma instância de comando societária). Para deter‑
minados efeitos, é possível distinguir a superestrutura societária e a
infraestrutura empresarial. Porém, numa perspetiva socioeconómica
global, o que conta é a unidade formada por ambas essas componentes,
com um órgão de governo ou administração comum às duas.
Por conseguinte, no artigo 64.º, n.º 1, o órgão de administração não
pode ver-se como um mero gestor dos interesses dos sócios. Mesmo
quando se tenha da sociedade uma perspetiva dualista – de sujeito de
direito (pessoa), titular de um património (máxime, empresarial), e de
objeto de atribuição jurídica aos sócios (coisa produtiva) (Iwai, 1999) –,
a situação não muda substancialmente: o órgão de administração gere
sempre um centro de atividade produtiva que coenvolve uma multiplicidade
de interesses. O que, nesta visão, pertence aos sócios não é uma coisa
qualquer, mas uma organização socioeconómica de mercado com uma
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 545
pluralidade de outros interessados. Quer se trate de uma sociedade-empresa
(ou empresa plurissocietária) com sede e atividade em Portugal, quer de
uma empresa plurissocietária multinacional com implantação no país,
inserida no tecido socioprodutivo nacional, enquanto componente deste,
ela não pode ser artificialmente separada em superestrutura societária,
dos sócios, com um bom governo no interesse destes, e infraestrutura
empresarial, com gestão, pura e simplesmente, subordinada ou funcio‑
nalizada a tal interesse, dentro dos limites da lei e do contrato.
Aceitando-se tal perspetiva, a governança de que nos ocupamos não
é, afinal, apenas uma governança societária, mas societário-empresarial,
envolvendo outros interessados para além dos sócios, órgãos e titulares
de órgãos sociais. Espera-se que ela contribua não exclusivamente para
a maximização de fluxos financeiros em benefício dos sócios, mas, mais
latamente, para a criação de riqueza social (nacional), de forma sustentável
e numa ótica de longo prazo, tendencialmente transgeracional.
Neste sentido, o ambiente, a qualidade de vida, a saúde, a valorização
do capital humano e intelectual (conhecimento) e valores análogos da
comunidade em que a atividade é exercida – encarada como comunidade
transgeracional – deverão olhar-se como parte integrante da estratégia
empresarial ou modelo de negócio; não como mera fonte de custos
financeiros adversos, a minimizar para maximização do lucro dos sócios.
O desafio estará então em conceber modelos de gestão capazes de, neste
quadro pluralista e integrado, assegurar a necessária competitividade e
eficiência das organizações. A governança socitário-empresarial também
terá a ver com isso.
Não é seguramente tarefa fácil conseguir tal competitividade e eficiên‑
cia; sobretudo no atual sistema economicamente globalizado, dominado
por grandes multinacionais, «jogando» estas com poderes estaduais frag‑
mentários, descoordenados e assimétricos, e explorando a concorrência
entre Estados que procuram atingir objetivos de crescimento, muitas vezes
com a visão de curto prazo favorecida pelo princípio democrático (cf.,
designadamente, Quairel-Lanoiselee, 2011, Robé, 2013, Jensen, 2002,
e Cordeiro, 2011, p. 888). Para os partidários das teorias financeiras
dominantes, isso mostra-se mesmo impossível: quem tem preocupações
sociais, com o ambiente, etc., será, coeteris paribus, menos competi‑
tivo que quem segue o modelo dominante da criação de valor para os
sócios [cf., e.g., Jensen, 2002]. Note-se, em todo o caso, que Eccles et
alii concluíram num estudo recente (2014) que, numa ótica de longo
prazo, o desempenho financeiro das organizações produtivas (sociedades
546 EVARISTO MENDES
anónimas) que incorporam na respetiva estratégia e modelo de negócio
políticas ambientais e sociais pode ser superior ao das que não o fazem.
O panorama existente das teorias alternativas ao modelo dominante
é muito diversificado e em evolução. Enquanto este é fácil de enten‑
der e de operar, os modelos alternativos são em geral complexos e de
contornos menos bem definidos. Mas uma coisa parece certa: os atuais
desafios da humanidade – no campo da segurança, da saúde, do ambiente
e qualidade de vida, etc. – são tão grandes, que, sem o envolvimento
ativo dos potentados económicos, existentes e vindouros, não parecem
ter solução à vista.
A autorregulação e a adesão a regras de boa governança económica
e social poderão dar o seu contributo para esse envolvimento. Importa,
no entanto, reconhecer que se trata mais de um possível (e desejável)
programa de ação do que de uma realidade atual. Existem experiências
que se afiguram animadoras no campo da criação de valor partilhado
(mas cf., e.g., a crítica de Crane et al., 2014, em diálogo com Porter
e Kramer), da responsabilidade social das empresas, etc., mas a sua
expressão global apresenta-se limitada.
Blair & Stout (1999) e Stout (2015), a respeito da sociedade aberta
norte-americana, defendem igualmente um modelo alternativo, tendo como
conceito central o investimento específico de partes interessadas que vão
para além dos acionistas, aludindo a última autora, inclusive, à vertente
intergeracional nele descortinável, mas também ele foi sujeito a críticas
(cf., v.g., Bainbridge, 2003 e 2015). Na Europa, podem referir-se, por
exemplo, Moczaldo (2015), confrontando a doutrina de Porter e Kramer
com a estratégia europeia da RSE/CSR, Champaud, com a sua doutrina
da empresa (2011; mas cf. a crítica de Robé, 2013), e Sacconi (v.g.,
2004 e 2012), este propondo um modelo multilateral e multifiduciário,
tendente a conciliar, mormente na sociedade anónima, os aspetos sociais e
ambientais com a eficiência económica, através de um pacto fundacional
com dois níveis: um de união ou cooperação (legitimador e organizador,
fonte de deveres fiduciários, etc.) e o outro de sujeição (criando uma
estrutura de governo, uma «autoridade» capaz de, dentro dos limites
daquele, tornar o funcionamento da organização operacional e eficiente).
Todavia, sobretudo no atual panorama global, caracterizado, como se
observou, por uma forte e mesmo cortante concorrência económica, pela
existência de multinacionais com dimensão e estratégia planetárias, e por
poderes estaduais fragmentários, a expressão e efetividade práticas de
tais modelos alternativos afiguram-se, para já, limitadas.
GOVERNANÇA SOCIETÁRIA E JUSTIÇA INTERGERACIONAL 547
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Índice de resumos
I. Fundamentos Jurídico-Filosóficos da Justiça Intergeracional
19 Direitos sem sujeito?
Elsa Vaz de Sequeira
Resumo: Um dos argumentos mais utilizados para negar a existência de
direitos das gerações vindouras e dessa forma rejeitar a eventual responsabili‑
dade da geração presente relativamente aos seus sucessores reside justamente
no caráter futuro dos respetivos sujeitos. Segundo este raciocínio, a falta do
sujeito impede a vigência do direito, da mesma forma que a inexistência deste
determina a ausência de um dever genérico de respeito. Pois bem, aquilo que
interessa descortinar é, por uma banda, se efetivamente não podem existir
direitos sem sujeitos e, por outra banda, se não é possível haver um dever
genérico de respeito pese embora o direito subjetivo a respeitar ainda não
se ter constituído em concreto.
41 Teorias da Justiça Intergeracional
André Santos Campos
Resumo: Embora a justiça seja temática explorada pela filosofia desde
os primórdios desta, apenas recentemente o problema do prolongamento
temporal do valor por várias gerações foi reconhecido como merecedor de
maior atenção. Nascida das discussões sobre as exigências de estabilidade
dos constitucionalismos modernos e sobre os ditames da economia pública
quanto à extensão da dívida contraída, a temática da justiça intergeracional
acabou por desenvolver-se como resposta a desafios históricos emergentes aos
quais as tradicionais teorias da justiça não conseguiam apresentar hipóteses
viáveis de resolução. Com o alargamento do alcance da ação humana ao
ponto da entrada numa era do antropoceno, cujas consequências maiores
serão suportadas por gerações ainda não nascidas, a invocação da justiça nas
relações entre diferentes gerações atinge o píncaro da premência. Este texto
tenta delinear um breve panorama das teorias da justiça intergeracional que
se foram desenvolvendo nas últimas décadas. Numa primeira parte, delimita
o que se deva entender por teorias da justiça intergeracional. Numa segunda
parte, identifica características específicas a estas teorias, explicitando em
que consistem. Por fim, tenta resumir o que defendem algumas das princi‑
pais teorias da justiça intergeracional, focando-se na teoria da reciprocidade
558 RESUMOS
indireta, no utilitarismo, e nos diferentes géneros de igualitarismo, mormente
o comunitarista, o libertarista, e o liberal de John Rawls.
70 Comunidade Política e o Futuro
Miguel Morgado
Resumo: A temporalidade é constitutiva de qualquer comunidade política.
Na medida em que ela se determina por um “projeto” há uma relação da
comunidade política com o futuro que é decisiva, quer para a sua autointer‑
pretação quer para as possibilidades que se abrem e fecham à coletividade
e aos membros que a compõem. Em tempos, essa discussão ficou resumida
à questão do “progresso”, o que se veio a revelar redutor. Importa, pois,
tentar perceber como o futuro é estruturante do passado e do presente da
comunidade política, e, do ponto de vista prático, como pode a comunidade
política preparar-se para esse futuro.
II. Teoria Constitucional
93 Justiça Intergeracional: Entre a Política e o Direito Constitucional
Jorge Pereira da Silva
Resumo: São diversas as políticas públicas que, nos tempos mais recentes,
têm surgido no espaço mediático escrutinadas à luz de uma ideia de justiça
entre gerações. Endividamento público, parcerias público-privadas, segurança
social, mercado de trabalho, ambiente e energia são apenas algumas das áreas
temáticas a respeito das quais se teme que as gerações futuras – abarcando
neste conceito tanto as gerações que ainda não existem, quanto as que
ainda não acederam a certo direito, como inclusivamente as gerações mais
jovens – não terão as mesmas oportunidades das suas antecessoras.
É sobre a Constituição, enquanto documento destinado a impedir o abuso do
poder e a garantir os direitos fundamentais, que recai a obrigação de limitar a
possibilidade de as gerações presentes transferirem para o futuro alguns dos
encargos decorrentes das políticas que hoje são desenvolvidas, reduzindo a
autonomia das gerações futuras para tomarem as suas próprias opções e o
próprio acervo de direitos que poderão exercer.
Independentemente dos afloramentos concretos do princípio da justiça
entre gerações nos textos constitucionais, os direitos fundamentais parecem
incorporar uma dimensão intergeracional a se: subjetivamente, eles fluem de
forma contínua entre gerações, sem ruturas ou descontinuidades; mas numa
perspetiva objetiva eles coexistem no tempo em termos tais que os direitos das
gerações futuras interagem hoje mesmo com os direitos da geração presente,
limitando o seu alcance e o seu exercício.
RESUMOS 559
138 O Problema da Tutela Constitucional das Gerações Futuras
Gonçalo de Almeida Ribeiro
Resumo: A proteção constitucional das gerações futuras é geralmente
apresentada como uma resposta natural à tendência crónica da democracia
representativa para o imediatismo. Dada a incapacidade do processo político,
controlado pela geração presente, de salvaguardar os interesses das gerações
vindouras – tanto mais quanto mais distante o futuro –, justifica-se a imposição
de limites constitucionais neste domínio. O problema é geralmente visto a
partir do ângulo da autovinculação: o povo encarnado no processo político
ordinário é como Ulisses encantado pelas sereias – incapaz de agir racio‑
nalmente –, pelo que é sensato que o povo na sua encarnação constituinte,
lúcida e responsável, proceda como Ulisses quando pede que o prendam ao
mastro do navio. Porém, o capítulo procura demonstrar que esta analogia
atraente é enganadoramente simples. As questões da justiça intergeracional
são extremamente complexas e controversas, pelo que se coloca o problema
de saber se é sensato e legítimo que a sua resolução seja avocada pelo
legislador constituinte em vez de estar sujeita aos mecanismos de formação
e renovação da vontade coletiva próprios das democracias constitucionais.
161 Democracia e Revisão Constitucional
Miguel Nogueira de Brito
Resumo: O presente artigo visa questionar a ideia de que exista um direito
dos cidadãos a reunir em assembleias populares tendo em vista uma revisão
da Constituição, mesmo à margem das disposições que a regulam, ou que
a conceção moderna da democracia envolva necessariamente um elemento
«populista» expresso na participação necessária de todos os eleitores em certas
decisões fundamentais da comunidade política. A tese contrária, de que deve
permanecer aberta a possibilidade de o povo ser chamado a pronunciar-se
diretamente sobre as questões mais relevantes da vida política, não pode
ser defendida com base na sua pretensa proximidade da ideia moderna de
democracia, tendo ainda na sua base uma visão deturpada das origens desta
última. Adicionalmente, essa tese enfraquece a força das normas constitucio‑
nais destinadas a salvaguardar os direitos das gerações futuras.
187 A Tutela Constitucional das Gerações Futuras: Profilaxia Jurídica ou
Saudades do Futuro?
Catarina Santos Botelho
Resumo: Independentemente das premissas éticas, morais, filosóficas,
sociológicas, mundividenciais, entre outras, que possam justificar a tutela
das gerações futuras, o Direito não poderá continuar silente e a raciocinar
numa lógica exclusivamente sincrónica. Seja qual for a estratégia de prote‑
ção adotada, o importante será não cair nos extremos do excesso de tutela,
560 RESUMOS
que possa manietar a liberdade das gerações futuras, ou do défice de tutela,
que deixe as gerações vindouras inteiramente à sua sorte. Numa perspetiva
de jure condendo, entendemos ser pertinente alterar o texto constitucional
português e nele consagrar, de forma cristalina, a tutela das gerações futuras.
III. Políticas Públicas
221 A Dívida Pública como Problema Intergeracional
J. Albano Santos
Resumo: O modo como, em cada momento, uma sociedade decide usar
os seus meios disponíveis tem, regra geral, reflexos na qualidade de vida
das gerações futuras. Daí que a equidade intergeracional seja uma antiga
exigência que reclama dos decisores políticos uma afetação de recursos que
pondere devidamente os interesses dos vindouros. Ora, a dívida pública é
um tópico crucial nesta matéria, na medida em que representa o instrumento
básico para a distribuição do custo do capital coletivo da nação pelas várias
gerações que dele beneficiam. De há muito, porém, que a dívida pública
está envolta numa viva controvérsia onde mitos e realidades se cruzam com
igual firmeza, quantas vezes ao sabor de meras conveniências ideológicas.
Assim, o presente texto passa em revista os principais argumentos com que,
de ambos os lados, se alimenta essa polémica, no intuito de contribuir para
a formação de um juízo criterioso neste domínio.
261 Ensaio sobre a Solidariedade Intergeracional e sua Incidência na Despesa
Pública
Maria d’Oliveira Martins
Resumo: Depois de uma introdução sobre o impacto que a solidariedade
entre gerações tem no plano jurídico-financeiro, o texto procura dar resposta
essencialmente a duas questões A primeira é a de saber se as gerações pre‑
sentes devem sacrificar o seu bem-estar em benefício do porvir. A segunda é
a de saber que gerações presentes e futuras são aquelas a que a Constituição
oferece proteção: serão apenas as nacionais ou também as extranacionais?
A partir destas questões, ensaiam-se os contornos da prioridade ao presente
e estabelecem-se as prioridades entre as diferentes gerações nacionais e
extranacionais, tal como se desenham no plano constitucional.
290 Breves Noções de Sustentabilidade Ecológica
Bruno Pinto
Resumo: Este artigo pretende definir sustentabilidade ecológica ou ambiental,
ilustrar a importância de serviços de ecossistema como a reciclagem de ar
e água, a polinização ou a produção de alimento, e apresentar evidências
RESUMOS 561
da sua atual degradação. Assim, são incluídos estudos globais que apontam
para a degradação de alguns valores naturais, havendo referência a ameaças
específicas como a destruição do habitat, as alterações climáticas ou a escassez
de água. Tendo em conta que a nossa economia é baseada no uso sustentável
desses valores naturais, reforça-se a ideia de que devemos assegurar a sua
viabilidade a médio prazo para evitar consequências negativas no futuro.
323 Precaução e Proteção do Ambiente: Da Incerteza à Condicionalidade
Carla Amado Gomes
Resumo: O texto pretende iluminar as fragilidades e virtudes da ideia de
precaução. Por um lado, sublinha a imprecisão da noção nos documentos
normativos, nacionais e internacionais, que gera posicionamentos erráticos dos
tribunais e utilizações abusivas da parte dos responsáveis políticos; por outro
lado, o facto de a precaução entroncar no conceito de risco tecnológico, alerta
para a necessidade de o avaliar e gerir dinamicamente no contexto de deci‑
sões tomadas em cenários de incerteza. Agir de acordo com uma lógica de
precaução constitui, assim, um importante penhor de paz social no presente
e de testamento político ante os vindouros. A metodologia de ponderação
de interesses em que se traduz reveste uma inarredável dimensão prospetiva
que se traduz numa responsabilidade (ética) por escolhas que podem hipotecar
irreversivelmente as opções das gerações futuras.
352 A Sustentabilidade da Segurança Social
Nazaré Costa Cabral
Resumo: A autora começa por relacionar as noções de sustentabilidade da
segurança social e de justiça entre gerações. De seguida, articula o problema da
sustentabilidade dos Estados de bem-estar contemporâneo com a necessidade
de respeitar os direitos sociais (fundamentais), em função da sua densidade,
evidenciando as tensões que hoje se descortinam nessa articulação. Analisa
depois, especialmente, o desafio da sustentabilidade da segurança social
(e em particular do seu sistema de pensões), à luz das várias propostas de
reforma e de modelos alternativos que nas últimas décadas têm vindo a
ser concretizados. A autora assinala por fim que, nos últimos anos, muito por
força da influência do modelo sueco de contas “nocionais”, os sistemas de
pensões – mesmo que mantendo a técnica de repartição (pay-as-you-go) – têm
evoluído no sentido de acomodar automaticamente os efeitos da demografia
e da economia no comportamento das variáveis da segurança social, seja do
lado da receita seja do lado da despesa, assim procurando, em cada momento
e para futuro, garantir o respetivo equilíbrio
562 RESUMOS
397 Demografia, Migrações e Sustentabilidade Intergeracional
Gonçalo Matias
Resumo: A sustentabilidade intergeracional das sociedades europeias e do
seu estado social dependem, em larga medida, da capacidade de impor uma
correta política migratória. Essa imposição é cada vez mais difícil em face das
reações populistas e xenófobas de muitos países. Numa sociedade envelhecida,
só a atração de imigrantes permite essa sustentabilidade, seja no plano das
relações familiares, no cuidado aos idosos dependentes ou, no plano macro,
na sustentabilidade das finanças públicas, dos sistemas de segurança social
e, em geral, do próprio Estado social.
420 Justiça Intergeracional e Mercado de Trabalho: Apontamentos para uma
Aproximação Juslaboral
António Nunes de Carvalho
Resumo: O texto articula o tópico da justiça intergeracional com uma refle‑
xão sobre os impasses atuais do Direito do Trabalho. Parte da construção do
paradigma juslaboral clássico e da sua crise, passando, depois, ao tratamento
genérico das circunstâncias que suscitaram, nas últimas décadas, a eclosão
(ou a recuperação) do debate sobre a justiça intergeracional, relacionando‑
-as com as vicissitudes específicas do ordenamento laboral e aferindo o
seu impacto no projeto regulativo do Direito do Trabalho. A partir daqui,
deixam-se bases para a discussão da questão da justiça intergeracional numa
perspetiva juslaboral, tomando-a como vetor de política legislativa e como
tópico argumentativo.
IV. Política Empresarial
469 Governança Societária e Justiça Intergeracional
Evaristo Mendes
Resumo: A governança societária (corporate governance) é genericamente
um conjunto articulado de estruturas, regras de competência e funcionamento,
normas de comportamento, princípios, recomendações, incentivos e boas
práticas, aplicáveis a uma sociedade comercial ou nela observáveis, tendo
como objetivo contribuir para otimizar o seu funcionamento e o exercício do
seu objeto, de forma sustentável e no longo prazo, levando em consideração
a respetiva função económico-social geral.
Os estudos e instrumentos de governança societária não estão, em geral,
pensados para promover a justiça intergeracional. Dela podem, no entanto,
resultar benefícios ou efeitos positivos neste domínio e um papel coadjuvante
na efetividade do sistema de proteção legal existente. Esta conclusão ainda
sai reforçada quando o tema é visto à luz do pertinente texto constitucional.
RESEARCH CENTRE
FOR THE FUTURE OF LAW
LISBOA
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ISBN: 9789725405710