Úrsula, o Romance de Maria Firmina Dos Reis (1860)
Úrsula, o Romance de Maria Firmina Dos Reis (1860)
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Dados básicos
Importância histórica:
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ÚRSULA
[Início sem título]
Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o
indiferentismo [a indiferença] glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o
dou a lume.
Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei
que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de
educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que
aconselham, que discutem e que corrigem; com uma instrução misérrima, apenas
conhecendo a língua de seus pais e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.
Como uma tentativa e, mais ainda, por este amor materno que não tem limites, que
tudo desculpa — os defeitos, os achaques, as deformidades do filho — e gosta de
enfeitá-lo e aparecer com ele em toda a parte, mostrá-lo a todos os conhecidos e vê-lo
mimado e acariciado.
Mas, ainda assim, não o abandoneis na sua humildade e obscuridade, senão morrerá
à míngua, sentido e magoado, só afagado pelo carinho materno.
Ele semelha [assemelha-se] à donzela que não é formosa porque a natureza negou-
lhe as graças feminis, e que, por isso, não pode encontrar uma afeição pura que
corresponda ao afeto da sua alma, mas que com o pranto de uma dor sincera e viva que
lhe vem dos seios da alma, onde arde em chamas a mais intensa e abrasadora paixão, e
que embalde [inutilmente] quer recolher para a corução [o coração], move ao interesse
aquele que a desdenhou e o obriga, ao menos, a olhá-la com bondade.
Deixai, pois, que a minha ÚRSULA, tímida e acanhada, sem dotes da Natureza nem
enfeites e louçanias [elegâncias] da arte, caminhe entre vós.
Não a desprezeis, antes amparai-a nos seus incertos e titubeantes passos, para assim
dar alento à autora de seus dias [sua criadora], que talvez que com essa proteção cultive
mais o seu engenho e venha a produzir coisa melhor; ou, quando menos, sirva esse bom
acolhimento de incentivo para outras [mulheres] que, com imaginação mais brilhante,
com educação mais acurada, com instrução mais vasta e liberal, tenham mais timidez do
que nós.
I
São vastos e belos os nossos campos porque, inundados pelas torrentes do inverno,
semelham [assemelham-se] [a]o oceano em bonançosa calma — branco lençol de
espuma que não ergue marulhadas ondas nem brame irado, ameaçando, insano, quebrar
os limites que lhe marcou a onipotente mão do rei da criação. Enrugada ligeiramente a
superfície pelo manso correr da viração, frisadas as águas, aqui e ali, pelo volver rápido
e fugitivo dos peixinhos que mudamente se afagam e que depois desaparecem para de
novo voltarem — os campos são qual vasto deserto, majestoso e grande como o espaço,
sublime como o infinito.
E a sua beleza é amena e doce, e o exíguo esquife [barquinho] que vai cortando as
suas águas hibernais, mansas e quedas, e o homem que sem custo o guia e que sente
vaga sensação de melancólico enlevo, desprende com mavioso acento um canto de
harmoniosa saudade, despertado pela grandeza dessas águas que sulca.
Quem haverá aí que não se sinta transportado ao lançar a vista para esses vastos
páramos [regiões desertas] ao alvorecer do dia ou ao arrebol da tarde, e não se deixe
levar por deleitoso cismar, como o que escuta o gemer da onda sobre areais de prata ou
o canto matutino de uma ave melodiosa!!... A vista expande-se e deleita-se, e o coração
volve-se a Deus e curva-se em respeitosa veneração, porque aí está Ele.
Entretanto, em uma risonha manhã de agosto em que a natureza era toda galas, em
que as flores eram mais belas, em que a vida era mais sedutora — porque toda respirava
amor —, em que a erva era mais viçosa e rociada [orvalhada], em que as carnaubeiras,
outras tantas atalaias [arbustos de até 10 m de altura] ali dispostas pela natureza, mais
altivas e mais belas se ostentavam, em que o axixá [chichá, árvore de até 20 m de
altura], com seus frutos imitando purpúreas estrelas, esmaltava a paisagem, um jovem
cavaleiro melancólico e como que exausto de vontade, atravessando porção de um
majestoso campo que se dilata nas planuras de uma das nossas melhores e mais ricas
províncias do Norte, deixava-se levar através dele por um alvo e indolente ginete.
Longo devia ser o espaço que havia percorrido porque o pobre animal, desalentado, mal
cadenciava os pesados passos.
Mas, quem sabe?!... Talvez uma ideia única, uma recordação pungente, funda,
amarga como a desesperação de um amor traído, lhe absorvesse nessa hora todos os
pensamentos. Talvez. Porque não havia o menor sinal de que observasse o espetáculo
que o circundava.
Que intensa agonia ou que dor íntima lhe iria lá pelos abismos da alma?! Só Deus o
sabe!
Era apenas o alvorecer do dia; ainda as aves entoavam seus meigos cantos de
arrebatadora melodia, ainda a viração era tênue e mansa, ainda a flor desabrochada
apenas [recentemente] não sentira a tépida e vivificadora ação do astro do dia, que
sempre amante, mas sempre ingrato, desdenhoso e cruel, afaga-a, bebe-lhe o perfume e
depois deixa-a murchar e desfolhar-se, sem ao menos dar-lhe uma lágrima de
saudade!... Oh! o sol é como o homem maligno e perverso que bafeja com hálito impuro
a donzela desvalida e foge, e deixa-a entregue à vergonha, à desesperação, à morte! — e
depois, ri-se e busca outra, e mais outra vítima!
Era apenas o alvorecer do dia, dissemos nós, e esse dia era belo como soem
[costumam] ser os do nosso clima equatorial, onde a luz se derrama a flux [em
abundância] — brilhante, pura e intensa.
Vastos currais de gado por ali havia, mas tão desertos a essa hora matutina, que
nenhuma esperança havia de que alguém socorresse o jovem cavaleiro que acabava de
desmaiar. E o sol, já mais brilhante e mais ardente e abrasador, subia pressuroso a eterna
escadaria do seu trono de luz e dardejava seus raios sobre o infeliz mancebo!
Nesse comenos [instante] alguém despontou, longe e como se fora um ponto negro
no extremo horizonte. Esse alguém, que pouco e pouco avultava, era um homem, e mais
tarde suas formas já melhor se distinguiam. Trazia ele um quer que era [algo] que de
longe mal se conhecia, e que descansando sobre um dos ombros obrigava-o a reclinar a
cabeça para o lado oposto. Todavia, essa carga era bastantemente leve — um cântaro ou
uma bilha; o homem ia sem dúvida em demanda de alguma fonte.
E mais e mais se aproximava ele do cavaleiro desmaiado, porque seus passos para ali
se dirigiam como se a Providência os guiasse. Ao endireitar-se para um bosque, à cata
sem dúvida da fonte que procurava, seus olhos se fixaram sobre aquele triste espetáculo.
E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendo esse homem lançado por terra, tinto
em seu próprio sangue e ainda oprimido pelo animal já morto. E ao aproximar-se
contemplou em silêncio o rosto desfigurado do mancebo; curvou-se e pôs-lhe a mão
sobre o peito, e sentiu lá no fundo frouxas e espaçadas pulsações, e assomou-lhe ao
rosto riso fagueiro de completo enlevo, da mais íntima satisfação. O mancebo respirava
ainda.
— Que ventura! — então disse ele, erguendo as mãos ao céu. — Que ventura, poder
salvá-lo!
O homem que assim falava era um pobre rapaz que ao muito parecia contar vinte e
cinco anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar toda a
nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhe [agitava-se
fortemente] nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão, e embalde
[inutilmente] o sangue ardente que herdara de seus pais e que o nosso clima e a servidão
não puderam resfriar, embalde — dissemos — se revoltava; porque se lhe erguia como
barreira — o poder do forte contra o fraco!...
Assim é que o triste escravo arrasta a vida de desgostos e de martírios, sem esperança
e sem gozos!
Coitado do escravo! nem o direito de arrancar do imo [lugar mais fundo do] peito um
queixume de amargurada dor!!...
Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima — ama a teu
próximo como a ti mesmo —, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu
semelhante!... àquele que também era livre no seu país... àquele que é seu irmão?!
E o mísero sofria porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma
porque os sentimentos generosos que Deus lhe implantou no coração permaneciam
intactos e puros como a sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso, e por isso seu coração
enterneceu-se em presença da dolorosa cena que se lhe ofereceu à vista.
Deixou fugir um breve suspiro, que talvez apesar seu [contra a sua vontade] se lhe
destacasse do coração, e sem proferir uma palavra de novo cerrou os olhos.
Talvez a extrema claridade do dia os afetasse, ou ele supusesse /ser/ mórbida visão o
que era realidade.
Entretanto, o negro redobrava de cuidados, de novo aflito pela mudez do seu doente.
E o dia crescia mais, e o sol, requeimando a erva do campo, abrasava as faces pálidas do
jovem cavaleiro que, soltando um outro gemido mais prolongado e mais doído, de novo
abriu os olhos.
Entretanto, o pobre negro, fiel ao humilde hábito do escravo, com os braços cruzados
sobre o peito descaía agora a vista para a terra, aguardando tímido uma nova
interrogação.
Esse beijo selou para sempre a mútua amizade que em seus peitos sentiam eles
nascer e vigorar. As almas generosas são sempre irmãs.
— Meu senhor, permiti que vos leve à fazenda que ali vedes — e apontava para a
outra extremidade do campo —; ali habita com sua filha única a pobre senhora Luiza
B..., de quem talvez não ignoreis a triste vida. Essa infeliz paralítica, todo o bem que
vos poderá prestar limitar-se-á a uma franca e generosa hospitalidade, mas aí está sua
filha, que é um anjo de beleza e de candura, e os desvelos que infelizmente não vos
posso prestar, ela vos dará com singular bondade.
Imerso, /no/ entanto, em novo cismar, o mancebo parecia nada ouvir do que lhe dizia
o jovem negro, deixando-se conduzir por ele, que como se fora leve carga o levava
sobre seus ombros nus e musculosos.
— Meu senhor — tornou-lhe o escravo, redobrando suas forças para não mostrar
cansaço —, chamo-me Túlio.
— Cala-te, oh! pelo céu, meu pobre Túlio — interrompeu o jovem cavaleiro —, dia
virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. Túlio, meu amigo, eu avalio
a grandeza de dores sem lenitivo que te borbulha na alma, compreendo tua amargura e
amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante. Sim —
prosseguiu —, tens razão: o branco desdenhou a generosidade do negro e cuspiu sobre a
pureza dos seus sentimentos! Sim, acerbo [angustiante] deve ser o seu sofrer, e eles que
não o compreendem!! Mas, Túlio, espera; porque Deus não desdenha aquele que ama ao
seu próximo... e eu te auguro um melhor futuro. E te dedicaste por mim! oh! quanto me
hás penhorado! se eu te pudera compensar generosamente... Túlio — acrescentou, após
breve pausa —, oh dize, dize, meu amigo, o que de mim exiges, porque toda a
recompensa será mesquinha para tamanho serviço.
E o cavaleiro perguntou-lhe:
— Sim, meu senhor. Fizeste-me tão feliz que nada mais ambiciono; e, rendendo a
Deus graças pela minha presente ventura, suplico-lhe que vos cubra de bênçãos e que
vele sobre vós a sua bondade infinita.
E o negro dizia uma verdade: era o primeiro branco que tão doces palavras lhe havia
dirigido, e sua alma ávida de uma outra alma que a compreendesse transbordava agora
de felicidade e de reconhecimento.
Pobre Túlio!
Empregava para isso todas as suas forças porque conhecia que o moço sofria
cruelmente.
Simples e solitária era essa casa implantada sobre um pequeno outeiro, de onde a
vista dominava a imensidade dos campos. Um aspecto de nobre singeleza apresentava;
pouco extensa era, mas coroava-a um agradável mirante orlado de largas varandas, por
onde uma onda de ar tépido divagava rumorejando.
Túlio franqueou a entrada da casa de Luiza B... no momento mesmo em que o jovem
desconhecido, alquebrado pelo muito sofrer de algumas horas, acabava de cair em
completa e profunda letargia.
II
O DELÍRIO
Violenta, terrível, espantosa tinha sido a crise, e Túlio velava à cabeceira do enfermo.
A noite há [havia] muito que tinha desdobrado sobre a terra seu pesado manto de
escuridão, animando destarte [desta maneira] o profundo silêncio dos bosques, apenas
interrompido pelo roçar do vento nos longínquos palmares ou pelo gemido triste de
sentido noitibó [bacurau], ou os agoureiros pios do acauã.
O quarto do doente era apenas aclarado por fraca luz, cuja baça claridade deixava
contudo ver-se o rosto do mancebo, afogueado pelo requeimar da febre: os olhos, tinha-
os ele dilatados, e com esse brilho e movimento que só dão a febre. No entanto, estava
tranquilo, e um só gemido não se lhe ouvia.
Após um breve instante desse fictício [enganoso] sossego, entrou a tremer-lhe o lábio
superior, ergueu ambas as mãos para o céu e, volvendo-se no leito, murmurou com voz
queixosa frases que não foram compreendidas.
Depois um gemido lhe veio do coração; cobriu os olhos com ambas as mãos e
repetiu:
Bela como o primeiro raio de esperança, transpunha ela a essa hora mágica da noite o
limiar da porta em cuja câmara debatia-se entre dores e violenta febre o pobre enfermo.
Era ela tão caridosa... tão bela... e tanta compaixão lhe inspirava o sofrimento alheio,
que lágrimas de tristeza e de sincero pesar se lhe escaparam dos olhos negros, formosos
e melancólicos. Úrsula, com a timidez da corça, vinha desempenhar à cabeceira desse
leito de dores os cuidados que exigia o penoso estado do desconhecido.
Nenhuma exageração havia nesse piedoso desempenho, porque Úrsula era ingênua e
singela em todas as suas ações, e porque esse interesse todo caridoso o mancebo não
podia avaliá-lo, tendo as faculdades transtornadas pela moléstia. Este sentimento era,
pois, natural em seu coração, e a donzela não se envergonhava de patenteá-lo.
— Túlio — disse ao entrar —, como vai ele? — Toda a resposta do escravo foi um
suspiro de profundo desânimo.
Então, ao contato dessas débeis mãos que tocaram a sua, o cavaleiro abriu os olhos, a
que um delírio febril dava estranha expressão, e, fitando a donzela num transporte
indefinível do mais íntimo sofrer, exclamou com voz magoada e grave:
— Oh! pelo céu! anjo ou mulher! por que trocaste em absinto a doçura do meu
amor? Amor!... Amei-te eu? Sim, e muito. Mas tu nunca o compreendeste! Louco!
louco que eu fui!... — E, passando da dor à desesperação, torcia os braços gritando:
Úrsula e Túlio estavam perplexos; estas palavras sem nexo produziam, em seus
corações, sensações, suposto que, em ambos, doídas, mas diversas em sua natureza.
— Adelaide! — prosseguiu ele após longa pausa. — Adelaide!... Este nome queima-
me os beiços; enlouqueço quando penso nela.
— Adelaide!... — repetiu consigo mesma a filha de Luiza B... — Oh! quem serás?!...
Essa mulher, essa Adelaide, parecia-lhe que muito interessava ao mancebo, que
ainda agora lhe vivia no coração, malgrado as palavras amargas ou entranhadas de
desesperação que lhe caíam dos lábios ao lembrar-se dela. Essa mulher, figurava-se-lhe
bela como um anjo, sedutora como uma fada, maligna como um demônio, e entretanto
amada, muito amada; e o seu nome lhe queimava o coração, como se lá estivesse escrito
com letras de fogo.
— E há de, ele, amá-la? — repetia Úrsula a si própria, com uma pertinácia que a
teria admirado, se nisso pudesse atentar. — Amor! — prosseguia — o que é amor?
Creio que jamais amarei. Mas Adelaide deve ser muita amada por ele... mas eu o ouvi
amaldiçoá-la!... Por que diz que lhe queima os beiços o seu nome? Oh! não é possível,
ele já não a ama! — E Úrsula, perdida nestes loucos pensamentos, não atendia ao que
em torno de si havia.
Então, ela voltou para junto de sua mãe. A pobre senhora, vencida pelo muito sofrer,
tinha também adormecido, e a menina, reclinando-se em uma cadeira, procurou, mas
embalde, conciliar o sono que nessa noite parecia obstinado em fugir-lhe.
Mais tarde, um gemido saiu da câmara do doente; o coração doeu-lhe porque se tinha
esquecido até do remédio do enfermo. Levantou-se, pois, correndo, e foi levá-lo.
A hora tinha já passado, porém o calmante produziu salutar efeito porque, ao retirar-
se-lhe a colher dos lábios, o cavaleiro, deslizando um fraco sorriso, estendeu a mão à
donzela e disse-lhe, com reconhecimento:
— Ah! senhora, como sois boa! Quem quer que o sejais, aceitai meus sinceros
agradecimentos pelo generoso interesse que mostrais por um infeliz desconhecido.
— Silêncio — animou-se ela a dizer, corando muito — não vedes que tendes febre?
Perdoai-me, mas eu não consinto que faleis.
— Agradecer-me? — interrogou Úrsula com voz um pouco comovida — que vos hei
eu feito que mereça o vosso reconhecimento? Pelo céu, nem faleis nisso — e em seus
grandes olhos errou uma lágrima.
Não sei que sentimento a trouxe do coração aos olhos, mas fosse qual fosse, o que é
verdade é que a lágrima, semelhando uma pérola escapada a precioso colar, rolou-lhe
pelas faces e foi cair sobre a mão do enfermo.
Mas os olhos do cavaleiro, reavendo seu fulgor febril, não viram essa lágrima que lhe
teria escaldado a mão, nem esse inocente rubor tão expressivo, porque
começara um novo solilóquio [monólogo].
— Sim — dizia — e não era feliz em possuí-la? — Que! — Oh! foi um só dia... foi.
Mas, minha mãe!... vi-a no sepulcro! e ela era um anjo!... Mataram-na... mataram-na!...
— Agora posso viver — disse, respirando largamente. —, sim, agora posso viver
porque já não a amo: sim, já não amo aquela que traiu cruelmente minhas loucas
esperanças.
— Não vedes? — prosseguiu, fitando Úrsula — como é belo amar-se! Como se nos
expande o coração, como nos transborda a alma de felicidade?!!...
E a moça dizia consigo: — Meu Deus! meu Deus, que é o que eu sinto no coração
que me enternece! Deve ser sem dúvida esta forçada vigília, este lidar [trabalho] de
todos os momentos. O estado de minha pobre mãe... a compaixão que me inspira este
infeliz mancebo, tão próximo talvez da morte!... Oh! terrível ideia! A morte! É ele tão
jovem... tão leal e tão franca é a sua fisionomia... meu Deus! seria bem duro vê-lo
morrer! Poupai-o, Senhor. Se eu pudesse, duplicara os meus cuidados para salvá-lo! Oh
se eu pudesse!...
Depois sua mão tocou uma mão alva e trêmula, e gelada: esta mão, que ele em seu
delírio procurou com ardor levar aos lábios, fugiu-lhe medrosa ao contato desse beijo de
fogo.
E Túlio ficou pensativo, e as lágrimas caíram, a seu pesar [contra a sua vontade], fio
por fio pela face abaixo.
A DECLARAÇÃO DE AMOR
Túlio acompanhava-o.
— Recebe, meu amigo, este pequeno presente que te faço, e compra com ele a tua
liberdade.
Túlio obteve, pois, por dinheiro, aquilo que Deus lhe dera, como a todos os viventes
— Era livre como o ar, como o haviam sido seus pais, lá nesses adustos [acalorados]
sertões da África; e como se fora a sombra do seu jovem protetor, estava disposto a
segui-lo por toda a parte. Agora Túlio daria todo o seu sangue para poupar ao mancebo
uma dor sequer, o mais leve pesar; a sua gratidão não conhecia limites. A liberdade era
tudo quanto Túlio aspirava: tinha-a — era feliz!
Pobre menina! Toda entregue a uma preocupação cuja causa não podia conhecer
ainda, engolfava-se de dia para dia em [na] profunda tristeza, que lhe tingia de sedutora
palidez as frescas rosas de suas faces aveludadas. Pouco e pouco desbotava-se-lhe o
carmim dos lábios, e os olhos perdiam seus vívidos reflexos, sem que nem ela própria
desse fé dessa transformação!
Alguém havia, porém, que reparava nessa mudança, que o coração já lhe havia
denunciado, fazendo-lhe vibrar nas suas cordas todos os simpáticos eflúvios
[emanações] que emanavam do peito cândido e descuidoso [descuidado] da virgem.
Esse alguém amava a palidez de Úrsula, esse alguém adorava-lhe a suave melancolia e
o doce langor de seus negros olhos. Mas ela nem sequer descobrira tal, não sabendo
explicar na sua inocência o que sentia.
Dias inteiros estava à cabeceira do leito de sua mãe, procurando com ternura roubar à
pobre senhora os momentos de angustiada aflição, mas tudo em vão porque seu mal
progredia, e a morte se lhe aproximava a passo lento e impassível, porém firme e
invariável.
À noite, após compridas horas de vigília ao pé desse leito materno onde ela consumia
seus primeiros anos de juventude, a donzela, recolhida em seu gabinete, meditava
profundamente. Ela, antes tão descuidosa, ela no arrebol [amanhecer] da vida, no
primeiro despontar da existência, tão bela, tão pura, tão ingênua e tão louçã [cheia de
brilho e frescor], por que sentia esse desejo irresistível de engolfar-se em tristes
pensamentos, que lhe davam a um tempo prazer e pena?! Onde a levava o ardor da
mente? Úrsula, interrogada, mal o saberia dizer.
E as noites se tornavam para ela longas e fatigantes, porque o sono não lhe abreviava
as horas do cismar acerbo [angustiante], nem lhe reparava as forças, e por isso a
aparição da aurora era-lhe quase uma felicidade.
Quantas vezes ela, sentada sobre a relva ou recostada a algum tronco colossal, que
decepado e meio combusto [queimado] brada contra a barbaria e rotina da nossa lavoura
semisselvática, via despontar o sol por sob a orla azul dos horizontes, espalhando com
seus raios de fogo a luz por toda a parte e destruindo como por encantamento a neblina,
que qual denso véu encobria aos olhos madrugadores toda aquela paisagem!!...
Quando o sol tingia de cor dourada os cocares das palmeiras, ela voltava ao lar
materno para continuar a desempenhar a penosa tarefa de que se havia incumbido. E a
pobre mãe exultava de vê-la tão meiga, tão generosa e tão compassiva.
Ninguém em casa sabia dos seus passeios matinais, ninguém os adivinhava, e por
isso /ela/ esperava com ânsia o romper do dia; e, à hora em que a natureza desperta, só e
sem temor tomava o caminho que bem lhe convinha e ia conversar com a solidão essa
conversa que só Deus compreende, e quando voltava achava-se mais aliviada.
Em uma madrugada, contudo, após uma noite de atribulada vigília, mais cedo ainda
que de costume a mimosa donzela entranhou-se por acaso no mais espesso da mata,
onde não bulia a mais pequena folha e onde apenas o reflexo do sol nascente penetrava
a custo. Divagando por ela sem tino, vencida pelo cansaço, sentou-se ou deixou-se cair
sobre as raízes de um jatobá, cuja altura chamaria a atenção de outra que não fora
Úrsula, de outra que não sentira, como ela, o coração oprimido por mortal desassossego.
Este jatobá, sobre cujas raízes Úrsula se deixara cair, parecia em anos rivalizar com a
criação; sua copa altaneira, balançando-se no espaço, derramava grata sombra em larga
distância. Aí em seu tronco a natureza, melhor que um hábil artista, entalhara em
derredor espaçosos degraus, como outros tantos assentos preparados para descanso dos
que à sua sombra buscassem uma hora de repouso ou de meditativo cismar.
Úrsula sentou-se sem o menor reparo [atenção] num desses degraus e continuou nos
seus pensamentos loucos, ou talvez inocentes como a sua alma, mas profundos, penosos
para ela, que pela vez primeira sentia a necessidade de uma alma que compreendesse a
sua, de um pensamento que se harmonizasse com o seu.
Mas amava ela a alguém? Ao cavaleiro? Talvez! Úrsula sentia uma vaga necessidade
de ser amada, de amar mesmo, mas em quem empregar esse amor, que devia ser puro
como a luz do dia, ardente como o fogo de madeira resinosa?! Em quem?! Não o sabia
ainda.
Entretanto, nessa madrugada em que Úrsula, ferida pela mais profunda angústia,
sentara-se junto ao altivo jatobá que ficava a cavaleiro [em posição elevada] às demais
árvores, pensava em que o mancebo ia nesse mesmo dia partir, e esse pensamento era-
lhe como o leito de Procusta [Procusto; situação de ajuste forçado], e o coração
desfalecia-lhe de dor, a vida parecia-lhe agora inútil e fastidiosa. Sentiu leve arruído
[ruído] de folhas secas como que calcadas sob pés que se moviam cautelosos, e
despertou. E o arruído não cessou. Então a jovem donzela, meio assustada, levantou os
olhos e perscrutou em derredor, mas nada viu. Seria talvez alguma fugaz cutia que
atravessava o bosque correndo. Então Úrsula de novo voltou aos seus sonhos; mas um
momento depois os passos eram já mais próximos, ela tornou a olhar e, mais
amedrontada, quis erguer-se, quis sair correndo, porém uma força oculta, irresistível, a
deteve, e os passos mui perto estavam dela. Úrsula, temerosa e sem poder atinar com
quem seria, estremeceu, mas não de verdadeiro medo, antes por um pressentimento
incompreensível e que às vezes pressagia vagamente algum acontecimento futuro da
nossa vida. Úrsula tudo ignorava, mas alguém, com íntima satisfação, descobriu seus
passeios matinais; alguém que sentia a necessidade de vê-la, de falar-lhe um momento,
e que devassou-lhe o retiro e foi perturbá-la em sua meditação.
E de repente ela ouviu uma voz, que a essa hora do amanhecer, nesse lugar, onde se
julgava só, surpreendeu-a e lhe arrancou um grito.
— Úrsula! — dizia-lhe a pessoa que estava ante seus olhos. — Úrsula, serei
perdoado por vós?
— Oh! pelo céu, Senhor! — exclamou a moça a tremer — que viestes aqui fazer?!
— Oh! não, não, Úrsula, por amor de vossa mãe, não me deixeis sem ouvir-me. — E
tanta singeleza havia nestas palavras, e tanta expressão nos olhos do mancebo, que a
donzela estacou indecisa e confusa.
Era o cavaleiro convalescente o homem que assim falava, como o leitor perspicaz já
o terá adivinhado.
Nesse momento tão solene para Úrsula, [ela] sentiu profundo arrependimento de seus
passeios da alvorada, e rápido pela mente repassou todos os últimos atos de sua vida,
sem atinar com o motivo que a levou tão longe de sua morada e a um bosque que nunca
vira, e por que fatalidade aquele homem a viera ali surpreender.
— Oh! senhor, por quem sois, deixai-me voltar agora mesmo para ao pé de minha
mãe! — e deu um passo, mas este passo foi vagaroso e trêmulo, e o mancebo,
eletrizado, encantado por essa cândida timidez que revelava a mais angélica pureza,
correu para ela com indefinível transporte misturado de amorosa veneração, e,
docemente obrigando-a a sentar-se, curvou-se aos pés, e mudo, contemplativo e
enlevado no rubor que tingia as faces da donzela, guardou silêncio por alguns instantes,
e depois, rompendo-o, disse-lhe:
— Úrsula, casto é o meu amor, e se não o fora, por prêmio de tanto desvelo e
generosidade, não o oferecera a vós. No meu delírio, Úrsula, não éreis vós quem me
aparecia, oh! não. Uma outra mulher eu via! Era terrível essa visão infernal, e julguei
morrer de desesperação porque dia e noite ela, implacável, desdenhosa e fria, estava
ante meus olhos!... Sim, julguei morrer, mas vós aparecestes junto ao meu leito, eu vos
vi, e as dores se amodorraram [amainaram], e, como se eu visse a Senhora dos Aflitos
levando à minha cabeceira um dos anjos que a rodeiam, e que lançou um bálsamo
divinal em minhas feridas, que se cicatrizaram e o coração serenou, a alma ficou livre.
Então a imagem odiosa que me perseguia desapareceu para sempre. Úrsula, pude
esquecê-la para sempre, sim! esquecê-la! e esquecer com ela não o amor que sentia,
porque esse há muito que me morreu no coração, mas o ódio, o ódio que lhe votava.
A vossa bondade deu-me forças para esquecê-la, talvez mesmo para perdoá-la!...
— Eu tinha o coração dilacerado por cruentas dores — prosseguiu o moço, com voz
pausada, após um momento de silêncio —, e esse estado de penosa angústia ocasionou a
enfermidade que me deu a ventura de conhecer-vos, e [que,] se não vos houvesse visto,
se prolongaria até o extremo da vida, que não poderia tardar. Vós, Úrsula, aparecestes e
espancastes as trevas de tão apurado sofrimento ― Fostes o meu anjo salvador. Úrsula,
eu vos amo! e se vossa alma simpatizar com a minha, meu coração vos tem escolhido
para a companheira dos meus dias.
Um súbito rubor, melhor que a rosa, tingiu as faces da delicada virgem, e ela,
baixando os olhos, disse-lhe:
— Talvez!... — A vós [voz] era tão débil que semelhou o doce murmúrio de
queixoso ribeiro.
E Adelaide — essa mulher, esse nome proferido em delírio, que lhe aparecia em seus
sonhos como uma visão que a incomodava, deixava de agora em diante de ocupar-lhe o
pensamento, porque o mancebo havia dito: — Esqueci-a, perdoei-a por amor de vós. —
Mas, ainda assim, quem seria ela que tanto amor lhe tinha merecido?
Que lhe importava? Era feliz, porque era amada, e sua vida inteira teria dado por esse
momento de ventura.
Amor! esse sentimento novo — ardente como o sol do seu país, arrebatador como as
correntes que se despenham [se precipitam] no vale — foi a varinha mágica que lhe
transformou a existência. Julgou tudo um sonho encantador, cujas doçuras começava
apenas a apreciar.
— Oh! — exclamou a donzela com interesse —, pesa-vos por acaso no coração tão
pungente mágoa?!
— Sim — tornou [respondeu] ele, comovido —, sim, grande tem sido o meu
sofrimento. Julguei, Úrsula, nunca mais amar, e morrer amaldiçoando meu primeiro
amor; mas eu já vos disse ― eu vos vi, e meu coração cobrou nova vida, e novo amor
curou-lhe as feridas que o destruíam. Agora, decidireis a minha sorte: feliz ou
desgraçado, Úrsula, só vós sereis o meu amor.
Então os olhos da donzela desferiram brilhantes reflexos de amor, e, cedendo a um
transporte de indefinível entusiasmo, /ela/ exclamou:
— Sejais vós, senhor, quem quer que fordes, quaisquer que sejam os precedentes da
vossa vida, que generosamente prometeis confiar-me, aqui, na solidão silenciosa e grave
desta mata, onde só Deus nos ouve, onde só a natureza nos contempla, juro-vos pela
vida de minha mãe que vos amarei agora e sempre, com toda a força de um amor puro
intenso, e que zombará de qualquer oposição, de onde quer que parta.
— Vós?! ― Repeti-me, repeti-me ainda uma vez essas inebriantes palavras que me
transportam [arrebatam]!
— Sim — tornou ela, cujos olhos cintilavam como dois astros luminosos e diziam
mais que os lábios, e cujo coração arfava de amor e de felicidade —, sim, juro-vos pelo
céu, que nos escuta, que hei de amar-vos sempre! Feliz ou desgraçada, lembrai-vos que
por amar-vos desprezarei a vida.
E eu amei-a, Úrsula, amei-a com todas as veras [com toda a força] de um primeiro
amor. Não vos pode ofender esta confissão, porque esse amor tão apaixonado varreu-se
da minha alma como a nódoa /varrida/ pela límpida água da fonte cristalina.
Depois de tão longo e apurado sofrimento, depois de ter esgotado até as fezes [a
borra] o meu cálix [cálice] de amargura, votei ódio àquela que me fora tão cara.
Excessivo era o meu afeto, mas ela o quebrou, deli-o [apaguei-o] do meu coração, e
hoje sinto por essa mulher fundo e inextinguível desprezo.
— Úrsula! agora todo esse amor, ou ainda amor mais sublime, mais digno de vós,
nutre o meu coração; agora poderei ter forças para contar-vos a história da minha vida.
— Quisera que o meu passado fugisse como a sombra de uma ave inquieta, ou como
a nuvem que o vendaval desfaz, para nunca mais invocá-lo, porque é triste e pungente,
mas é preciso pedir-lhe recordações que me rasgarão de novo feridas mal cicatrizadas,
para patentear-vos todas as minhas longas e profundas dores...
Rogo-vos, pois, que não tomeis a minha narração, quando tenha de ser apaixonada,
como desejo do passado e saudades dele. Podeis amar-me sem receio de que ele
perturbe o nosso mútuo afeto. Ressentimento, ódio, maldição, tudo, tudo hei sacrificado
ao vosso amor.
Oh! de novo jurai-me que sois minha, que o vosso amor é igual ao meu, doce e
mimosa Úrsula, para que eu possa falar-vos daquela que foi casta e pura como vós,
daquela que foi minha mãe.
E a voz tornou-se-lhe débil e surda, e dolorosa, como um choro sentido que fica no
coração e não vem aos olhos.
IV
A PRIMEIRA IMPRESSÃO
Lágrimas tinha ele na voz e no coração, que lhe embargaram [a voz] e o impediram
de atar o fio da sua narração. Fez por último um esforço sobre si, e começou:
O segredo de minhas dores seria para sempre sepultado no mais fundo do meu
coração; mas eu vos amo, e o vosso amor dá-me forças para tamanho sacrifício. Ouvi-
me, pois, e perdoai-me.
Só apartei-me de minha mãe quando fui para São Paulo cursar as aulas de direito, e
seis anos de saudades ali passei, tendo-a sempre em meus pensamentos, porque a amava
com uma ternura que só vós podeis compreender. Num dia recebi o grau de bacharel, e
no outro segui para a minha terra natal.
Ah! como me transbordava a alma de prazer! eu vinha rever aquela que cercara de
amor e de cuidados a minha infância!
Afeição alguma me pôde reter em São Paulo; minha mãe, o lugar onde eu tive meu
berço, meus amigos de infância, não os podia esquecer. Parti, pois, com prazer, de uma
terra onde tinha vivido longos anos de saudades e de pesares.
E eu vi essa mulher, que me dera a vida, essa mulher que era o ídolo do meu coração,
e lancei-me nos seus braços chorando de alegria por tornar a vê-la; mas ela estava
desfeita, e suas feições denunciavam grande abatimento moral.
Nunca tive felicidade a que se não viesse misturar sentimentos de angústia; nunca fui
completamente feliz.
— Sim, agora o creio — respondeu ele com confiança. — Vós, Úrsula, sois a mulher
com quem sonhava minha alma em seu contínuo devanear.
Oh! minha doce Úrsula, eu amei a essa encantadora donzela, e o meu amor foi puro,
arrebatador, mas ela não o compreendeu.
— Meu filho — disse-me minha mãe, apresentando-me a formosa donzela —, eis
Adelaide, a minha querida Adelaide. É filha de minha prima e órfã de mãe e pai.
Recolhi-a e amo-a come se fosse minha própria filha.
— Minha Úrsula adorada, de joelhos prometi à minha infeliz mãe ser o escudo da
formosa órfã.
Então ela, em sinal de reconhecimento, estendeu-me a mão, que apertei com enlevo.
Creio que meus olhos exprimiram algum sentimento terno a seu respeito, porque seu
rosto se tingiu de carmim, e depois um débil suspiro, como que a [havia] muito
reprimido, saiu meio abafado de seus róseos lábios.
Ouvi-o, e julguei — louco de mim! — que esse suspiro era a primeira expressão de
um repentino e profundo afeto: julguei que sonhava, porque nunca havia sentido o que
então se passava em mim.
Mais tarde, veio meu pai felicitar-me. Mostrava-se feliz e orgulhoso de seu filho, e
abraçou-me com transporte.
Não sei por quê, mas nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com
aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava
colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher, e ela, triste vítima,
chorava em silêncio e resignava-se com sublime brandura.
Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso — minha mãe era
uma santa e humilde mulher.
Quantas vezes na infância, malgrado meu [para meu desagrado], testemunhei cenas
dolorosas que magoavam, e de louca prepotência, que revoltavam! E meu coração
alvoroçava-se nessas ocasiões, apesar das prudentes admoestações de minha pobre mãe.
E meu pai ressentia-se da afeição que /eu/ tributava a esse ente de candura e
bondade, mas foram as suas carícias, os seus meigos conselhos, que soaram a meus
ouvidos, que me entretiveram nos primeiros anos, ao passo que o gênio rude de meu pai
amedrontava-me.
O desprazer de ver preferida a si a mulher que odiava fez com que meu implacável
pai me apartasse dela seis longos anos, não me permitindo uma só visita ao ninho
paterno; e minha mãe finava-se de saudades, mas sofria a minha ausência porque era a
vontade de seu esposo. Mas eu voltava agora para o seu amor, e seus dias vinham a ser
belos e cheios de doce esperança.
Entretanto, eu também era feliz. Aprazia-me ver Adelaide, no arrebol da vida, tão
casta, tão encantadora, compartilhando ora a dor que nos oprimia, ora o prazer que
enchia os nossos corações. Em Adelaide minha mãe encontrara uma desvelada amiga; a
sua extrema beleza e a dedicação àquela mulher, que eu tanto amava, atraíam-me
incessantemente para ela, e a primeira vez que a vi, o meu coração adivinhou que havia
de amá-la.
Sim, amei-a loucamente, amei-a com todas as forças de um primeiro amor, e quando
um dia revelei o profundo afeto que me inspirava, conheci que era correspondido, não
obstante ela dizer-me:
Tancredo, meu filho, não cedas a um amor que te pode vir a ser funesto. Adelaide é
uma pobre órfã, e teu pai não consentirá que sejas seu esposo.
Adelaide entrou, sorriu-se para mim e foi abraçar minha mãe, e eu continuei a
conversação.
— Sim, minha querida mãe, amo Adelaide, e seu coração retribui-me; meu pai ama-
me; não poderá, portanto, contrariar a minha primeira inclinação. Não, minha mãe,
abençoai primeiro que ele o nosso amor, porque esta há de ser a esposa de vosso filho.
Não é verdade, minha Adelaide?
— Oh! pelo céu — interrompi-a — pelo céu... meu pai não tem coração de tigre.
— Ah! meu filho! — objetou minha pobre mãe, com voz tão trêmula que semelhou
um choro amargo: — Receio...
— Receais!...
— Sim, minha boa e terna mãe — tornei-lhe com convicção —, haveis de ver-nos
felizes, e vós o sereis também. Estou /certo de/ que meu pai não me poderá negar a
esposa que meu coração escolheu.
Notei que meu pai começou a ser mais comunicativo e mais tratável, e com isso
minhas esperanças robusteciam, e minha mãe cedeu a essa enganosa ilusão.
Oh! como escoaram felizes esses dias! Eu amava, e meu amor correspondido bastava
para a minha ventura.
Todo embevecido no meu amor, não curava de meus interesses e nem de ilustrar meu
nome na carreira pública. Toda a minha ambição era essa mulher tão loucamente
amada. Mas isto não podia durar muito — era ventura demais para um pobre mortal.
Era o dia dos anos de Adelaide. Esse dia! que [quanto] de amargas recordações me
traz!!...
Decidi-me a ir comunicar a meu pai o segredo do meu coração — esse segredo que
me transbordava já da alma e que ele fingia não conhecer.
— Qualquer que seja a impressão que a meu pai possam causar minhas palavras —
disse à minha mãe —, Adelaide há de ser minha.
— Tancredo, não chames sobre ti a cólera de teu pai. Oh! Deus não protege a quem
se opõe à vontade paterna.
Baixei os olhos, confuso e magoado, e quando os ergui duas lágrimas lhe sulcavam o
rosto.
Então ela sorriu-se, porém seu sorriso era amargo e terno a um /só/ tempo!
Ah! ela temia seu esposo, respeitava-lhe a vontade férrea, mas com uma abnegação
sublime quis sacrificar-se por seu filho.
Corri para meu quarto, contíguo ao de meu pai, e ouvi tudo quanto se passou entre
ele e minha mãe.
O que ouvi, ainda hoje me enche de espanto, e reconheci desde então que meu pai
era mais desapiedado e cruel do que imaginava.
E minha desditosa mãe tudo arrostou [encarou com coragem], porque era a causa de
seu filho que advogava! Era às vezes tão débil e trêmula a sua voz, e tão áspera e
violenta a de meu pai, que seus acentos chegavam a meus ouvidos como a queixa ao
longe de sentida rola.
Mas outras vezes vinha ela aos meus ouvidos, e eu acreditei que era minha mãe uma
santa.
A mansidão com que se exprimia desarmaria a uma fera, mas meu pai, irritado e fora
de si, exclamou com voz terrível, que ecoou medonha em meus ouvidos:
— Calai-vos! eu vos ordeno — e interrompeu, aceso em ira. — Julgais que por ser
essa mísera órfã vossa parenta e porque a amais, hei de desposá-la a meu filho só por ser
essa a vossa vontade? Decididamente que enlouquecestes.
/Minha mãe/ Não se aterrou, e respondeu-lhe com uma voz tão débil que não ouvi,
mas tão meiga e queixosa que o acalmou um pouco.
Perdoai-me... mas tanto tenho sofrido, tantas lágrimas me tem sulcado o rosto
desfeito pelos pesares, tanta dor me tem amargurado a alma, que estas palavras,
nascidas do íntimo do peito, pungentes, como toda a minha existência, não vos podem
ofender. Arranca-as, senhor, dos abismos da minha alma a agonia lenta, que nela tem
gerado o desprezo e o desamor com que me tendes tratado!
E, extenuada por tamanho esforço e pela dor, não pôde continuar.
E meu pai ouvia-a em silêncio: quando ela terminou suas magoadas expressões, ele,
com tom seco e firme, tão estranho aos queixumes de sua esposa, como se os não
ouvira, exclamou:
Ela obedeceu.
V
A ENTREVISTA [O ENCONTRO]
— A dor que senti, minha querida Úrsula — prosseguiu o mancebo, com voz
magoada —, não vos poderei exprimir... Ela calou-me até o fundo do coração, e eu gemi
de angústia por mim, por minhas esperanças assim cortadas e por minha mãe,
desdenhada e alvitada [aviltada] ao último apuro por seu esposo!...
Corri para ela chorando: esse choro, que eu não sabia reprimir, arrancava-me o sofrer
profundo daquela criatura angélica.
E ela também chorava, mas era um pranto sentido e terno, que contrastava com o
meu, que era provocado mais pela indignação mal sufocada no coração, ao passo que o
dela era o de uma santa.
— Amo as humilhações, meu filho — disse, com brandura que me tocou as últimas
fêveras [fibras] da alma —: o mártir do Calvário sofreu mais, por amor de nós.
Meus joelhos vergaram instintivamente ante essa mulher de tão sublimes virtudes, e
eu lhe disse:
— Ao menos o sacrifício do filho de Deus não foi inútil, minha mãe, e o vosso?!...
Lágrimas e desesperança!...
— Eu tudo ouvi, minha mãe, tudo. — E, ajuntando as mãos sobre seus joelhos, que
tremiam de aflição, continuei soluçando. — Por amor de mim quisestes sacrificar-vos!...
— E, reprimindo o pranto, continuei: — Meu pai...
Adelaide, que estava presente, pálida e abatida, disse com voz grave e melancólica,
porém firme, que revelava dignidade:
E depois, com voz mais tocante e mais dolorosa, que me cortou o coração,
prosseguiu:
— Agradeço-te, generoso mancebo, o afeto desinteressado que animou teu coração,
mas se me é permitido pedir-te ainda um último favor... Tancredo, pelo amor do céu não
desafies a cólera de teu pai!
— E eu — disse ela com amargura, mas tão baixo que só eu lhe ouvi —, triste de
mim! Amar-te-ei sempre, mas em silêncio — basta que só Deus o saiba.
— Úrsula... minha Úrsula —, só agora sei que essa mulher mentia, que suas lágrimas
eram encadeadas aleivosias [traições], e suas palavras, refalsadas [falsas] como o seu
coração.
Tresloucado, porque essas lágrimas feriam a minha alma, arranquei-me à triste cena
que tão dolorosamente me magoava, e fui procurar meu pai.
Nesse quarto, onde brilhava o luxo e a opulência, tudo era triste e sombrio.
Cruzava-o meu pai com passos rápidos e incertos; seus olhos refletiam o ódio que lhe
dominava nesse momento o pensamento. Notei que suas feições estavam transtornadas
e que baça [sem brilho] palidez lhe anuviava a rosto. Semelhava o leão ferido, que
despede [lança] chama dos olhos, e julguei que ia prorromper em insensatos brados.
Enganei-me.
Apenas viu-me, serenou um pouco, assentou-se e acenou-me para uma cadeira que
estava ao lado.
Houve então um momento de profundo silêncio; nesse momento, meu pai observava
atento minha fisionomia, que devia estar bastante alterada porque eu sofria
horrivelmente.
Entretanto, depois de minucioso e aturado exame, deixou errar nos lábios um sorriso
meio animador e meio escarnecedor, e disse-me com irônico acento, que esmagava:
— Por mais que tenha cogitado, não atinei ainda, meu Tancredo, com o motivo que
te obriga a assim obsequiar-me. Não ousava contar com este favor.
— Tancredo! — bradou, com voz de trovão —, vens por acaso questionar comigo?
Também tu!... — E sorriu-se com desdém, e depois continuou. — De há muito que
conheço que o amor que me dedicas não excede aos limites que te impõe a sociedade e
a decência. Bem, nem outra coisa podia esperar; entretanto, para provar-te o meu
desvelo, não hei poupado fadigas nem desdenhado meios para oferecer-te um lugar
distinto entre os homens.
— Então, não atinastes ainda com o motivo da minha visita? — disse-lhe. — Pois
bem, explicá-lo-ei se o permitirdes.
— Já não podeis ignorar — comecei — que amo com paixão a jovem Adelaide e que
ela é digna da minha mão: uma só palavra vossa bastará agora para a minha completa
ventura. O vosso consentimento, senhor, para desposá-la, que [e] o meu reconhecimento
será eterno e profundo.
— Meu filho, tenho pensado madura e longamente, sobre os teus amores ― são uma
loucura!
— Loucura! — exclamei com ânsia — loucura, meu pai? Por que o dizeis? Porque é
ela pobre! Oh! a um tesouro de riquezas é preferível seu coração.
— Perdão, meu pai — atalhei com aflição —, o que me importa o nome de seu pai?
Dar-lhe-ei o meu, e se alguma nódoa houve sobre esse homem, purificou-a o gelo do
sepulcro. Meu pai, Adelaide está pura dessa mancha como de toda a culpa.
Esperava uma explosão de cólera, mas, contra toda a expetativa, sorriu-se com
bondade e disse-me:
— Tancredo, terás o meu consentimento. Adelaide será tua esposa, mas hás de
permitir que te imponha uma condição.
A estas palavras, Úrsula, eu estava de joelhos aos pés desse homem, que pela vez
primeira se mostrava bondoso.
— Pois bem — tornou ele, rindo-se tão expansivamente que, Deus meu!, acreditei
que vinha tudo aquilo do coração que se lhe expandia pela minha felicidade: e eu,
transportado de reconhecimento, beijava-lhe as faces e sentia que o amava, porque era
feliz. Mas esta ilusão passou, e o despertar foi doloroso.
— Escuta-me. Bem sabia eu que te ias afligir, porém atende-me. A esposa que
tomamos é a companheira eterna dos nossos dias. Com ela repartimos as nossas dores
ou os prazeres que nos afagam a vida. Se é ela virtuosa, nossos filhos crescem
abençoados pelo céu, porque é ela que lhes dá a primeira educação, as primeiras ideias
de moral; é ela, enfim, que lhes forma o coração e os mete na carreira da vida com um
passo que a virtude marca. Mas se, pelo contrário, sua educação abandonada torna-a
uma mulher sem alma, inconsequente, leviana, estúpida ou impertinente, então do
paraíso das nossas sonhadas venturas despenhamo-nos num abismo de eterno desgosto.
O sorriso foge-nos dos lábios, a alegria do coração, o sono das noites, a amargura nos
entra na alma e nos tortura. Amaldiçoamos sem cessar essa mulher que adorávamos
prostrados, porque se nos figura agora o anjo perseguidor dos nossos dias.
Vês, meu filho — continuou —, Adelaide é apenas uma criança; é tão nova... tão
pouco conheces suas qualidades que...
— Mas, meu pai! — interrompi-lhe — que dotes faltam ao espírito de Adelaide? Não
a tem educado minha mãe!?
Franziu ligeiramente os supercílios e disse:
— Mas... O quê?
— Meu pai, por que não desposarei Adelaide antes de partir para a terra do exílio?
Oh! não, não; hei de desposá-la, e depois irei contente.
Então ele mordeu asperamente os beiços, tornou-se rubro de cólera, e com voz que
mal disfarçava a raiva de ver-se assim contrariado, disse-me:
Velho cruel! dizia eu a mim mesmo: por que semelhante procedimento para comigo?
Baixei os olhos, meditei por largo tempo e submeti-me à sua vontade férrea. Saí do
seu quarto prostrado de amargura, e porque a dor era funda em meu coração.
VI
A DESPEDIDA
— Recusou?
E Adelaide, erguendo as mãos aos céus e fitando neles seus grandes olhos úmidos de
prazer, parecia concluir a oração começada por minha mãe.
— Adelaide — disse-lhe —, não cedas assim aos transportes de uma ventura que
ainda se envolve nas sombras do porvir, porque o despertar te será doloroso. Meu pai
impôs-me dura condição, e eu me submeti a ela. Meu Deus! que posso eu fazer? Sabeis
qual seja? Oh! É um custoso e amargo sacrifício: é um ano de separação arrastado no
exílio! Este ano é um século de desesperação.
— Meu Deus! — exclamou minha pobre mãe, com acento tão doloroso que me
estalou o coração de mágoa. — É mais uma prova [provação], Senhor, que me enviais!
.......................................................................
Muitos dias não eram passados quando eu, em pé no meio do salão de meu pai, com
os braços cruzados sobre o peito, que sentia partir-se de dor, observava em silêncio a
agonia íntima dessas duas mulheres, que na derradeira despedida semelhavam dolorosas
estátuas de Niobe [personagem da mitologia grega punida com a morte de seus 14
filhos].
Adelaide reclinava-se nos braços de minha mãe, pálida como a açucena pendurada na
corrente, e essa mulher cheia de bondade e de virtude esforçava-se por consolá-la de
uma dor que só nela era real, mas que supunha igual na donzela, que um dia seria minha
esposa.
Com mágoa comparei então o semblante pálido e emagrecido dessa mulher de alma
tão heroica e santa, com o seu retrato pendente de uma das paredes do salão, e gelei de
pasmo e de angústia. O pintor havia aí traçado uma beleza de dezoito primaveras.
Esta separação forçada era, contudo, a maior dor que a havia torturado, porque um
funesto pressentimento dizia-lhe — que seria eterna!
E essa dor debuxava-se [esboçava-se] muda, porém viva e profunda, em seu rosto
macilento e cheio de rugas.
E ao lado deste retrato estava outro — era o de meu pai. Sessenta autos de existência
que lhe haviam alterado as feições secas e austeras; só o tempo começava a alvejar-lhe
os cabelos, outrora negros como a noite.
Enquanto retraçava na mente agitada os desgostos de minha aflita mãe, entrou seu
esposo. Notou-lhe o abatimento, viu as lágrimas de Adelaide, e seu rosto de leve se
contraiu.
Tomei-lhe a mão e beijei-a, e ele, voltando-se para a inconsolável esposa, com severa
inflexão de voz e com aspecto colérico, perguntou-lhe:
— Oh! meu filho — tornou-me ele com aquele sorriso que lhe é particular —, é
necessário que nem sempre se atenda às lágrimas das mulheres, porque é o seu choro
tão tocante que, apesar nosso [contra a nossa vontade], comove-nos, e a honra e o dever
condenam a nossa comoção e chamam-lhe ― fraqueza.
— Pois bem, meu pai, na hora em que saio a cumprir a vossa vontade, permiti que
vos recomende zeloso o tesouro de minha futura felicidade e a mãe desvelada que
minha alma adora.
Meu pai — continuei com voz queixosa —, adoçai o amargor do meu exílio! Bem
sabeis quanto me é penosa esta separação, que só um requinte de filial condescendência
a ela me obrigou. Oh! fazei com que não saiba, no lugar do desterro, que minha pobre
mãe verteu uma lágrima de aflita dor, longe do coração de seu filho, e que a desposada,
que me concedestes, se conserva triste e pesarosa como ora a vedes. Oh! velai por ela,
meu pai, e que ela se conserve digna da mão que lhe está destinada.
Então olhou-me, e seu olhar era sinistro: suportei-o e, sempre imóvel ante ele,
aguardei uma resposta.
Ela deu-me um derradeiro olhar, tão terno, tão apaixonado, tão expressivo de mágoa
íntima e de sincero reconhecimento, que as lágrimas, que me gotejavam no coração, por
fim me ressaltaram nas faces, e prorrompi em copioso pranto........................
Nesse olhar, em que lhe estava a alma, disse-me o seu derradeiro adeus!
VII
ADELAIDE
Adelaide, que com frequência também escrevia-me a princípio, entrou a espaçar mais
a sua correspondência, que era o alento da minha vida, era o que me fazia permanecer
com alguma alma, tão longe de entes caros.
E eu chorava, no exílio, dores, que ela havia esquecido ― afetos, que nunca lhe
tinham pulsado no coração ― esperanças e saudades, que eram só minhas!...
Com que lentidão espreguiçavam-se então os dias!... Contava as horas, longas como
séculos, tristes como as agonias do padecente.
Com o tempo, o espírito cansado de tão apurado sofrimento reagiu sobre o físico, e
caí perigosamente doente.
Prorrogou-se a minha enfermidade apesar dos esforços dos médicos, e eles recearam
pela minha vida, porém o amor e a esperança salvaram-me.
Recobrei finalmente a vida, e quando achei-me com forças para empreender viagens,
pensei em rever o objeto de minha terna afeição, e não obstante não ter carta de meu pai
que me chamasse a receber a recompensa de meu sacrifício, dispus-me para a partida.
Mas... Deus eterno! como são ocultos os teus juízos! Uma ordem muito positiva do
governo obrigou-me a renunciar ao meu projeto, e tive de dirigir-me à comarca de ***,
onde ia incumbido de uma comissão espinhosa e honrosa.
E dei de rédeas ao animal, com loucura e sem parar, porque sentia a necessidade do
movimento, mas depois a aflição sempre crescente trazia-me o abatimento, e eu deixava
o cavalo andar como lhe parecia.
Concluída essa penosa meta, no entrar em minha casa encontrei uma carta, cuja letra
era trêmula e mal traçada, cuja data era ainda anterior à /da/ minha enfermidade. Oh!
Deus meu! Gelou-se-me de dor o sangue — essa carta era de minha mãe! Escrevera-a às
portas da Eternidade, e cada linha de suas palavras era um queixume desanimado de
dolorosa angústia. Não havia ali uma palavra que acusasse meu pai, mas compreendi
logo que ele lhe cavara a sepultura.
E após essa, li sucessivamente uma carta de meu pai e outras de alguns amigos —
minha desditosa mãe cessara de existir!!...
Ah! essa dor foi profunda e tão aguda que recaí e por muitos dias ignorei o que se
passava em derredor de mim. Recuperei a saúde, alentado por meu amor. Adelaide
estava no coração, e agora mais que nunca seus afetos eram necessários à minha alma...
Ergui-me, pois, e de novo pus-me a caminho, e quinze dias viajei, já [ora] pela
ardentia do sol, já [ora] pela umidade da noite, sempre depressa, sem nunca descansar,
animado pelo desejo de chegar a ver a minha Adelaide, único ente adorado que me
restava sobre a terra! No cabo dos quinze dias bati, à noite, à porta da casa onde nasci e
onde morrera minha infeliz mãe!
A dor que eu sentira ao receber essas cartas fatais crescia e sufocava-me à proporção
que me aproximava dessa casa, onde eu deixara minha desventurada mãe, pálida e
desfeita, e onde ia encontrar lutuoso silêncio; e o aspeto lúgubre do escravo que vigiava
a entrada aumentou mais essa dor profunda.
Levantou-se, apenas [tão logo] me viu, e falou-me com voz magoada; e depois,
cruzando os braços sobre o peito, aguardou mudo por uma interrogação.
Era Adelaide.
E naquele momento, seduzido pelos seus encantos, louco pela ventura de vê-la,
esqueci a mágoa que me doía no coração, da perda de minha mãe. Estendi-lhe os
braços, e as expressões morreram-me nos lábios; e depois, curvando-me ante ela, ia
tomar-lhe as mãos e beijá-las com efusão, mas ela então, altiva e desdenhosa, disse-me
com frieza, que me gelou de neve.
Oh! não sei como não enlouqueci! Em trevas de desesperação tornou-se-me a luz
dos olhos, e todo o salão parecia ondular sob meus pés. A mulher que tinha ante meus
olhos era um fantasma terrível, era um demônio de traições, que na mente abrasada de
desesperação figurava-se-me sorrindo para mim com insultuoso escárnio. Parecia
horrível, desferindo chamas dos olhos, e que me cercava e dava estrepitosas
gargalhadas. Erguia-se para mim ameaçadora, e abraçava e beijava outro ente de
aspecto também medonho. Ambos no meio de orgia infernal cercavam-me e não me
deixavam partir.
Se durou muito este fatal pesadelo, não o posso dizer. Quando acordei, debatia-me
no tapete aos pés dessa mulher orgulhosa.
— Mulher infame! — disse-lhe —, perjura... onde estão os seus votos? É assim que
retribuíste a estremecida [intensa] paixão que te rendi? É com um requinte de vil e
vergonhosa traição que compensaste o ardente afeto da minha alma? Compreendeste ou
sondaste já o profundo abismo de infame execração e de baixa degradação em que te
despenhaste?
— Não, não me hei de calar — redargui furioso —, não me pode esmagar o teu
desdenhoso acento [tom]. Monstro, demônio, mulher fementida [traidora], restitui-me
minha pobre mãe, essa que também foi tua mãe, que agasalhou no seio a áspide que
havia /de/ mordê-la! Oh! dívida é esta que jamais me poderás pagar, mas a Deus, ao
inferno, a pagarás sem dúvida. Foi essa a gratidão com que lhe compensaste os desvelos
de que te cercou na infância, a generosidade com que te amou?!!
Estava louco de aflição, e a voz faltou-me porque o que eu sentia era demais para as
minhas forças. Torcia as mãos de desesperação, porque o acordar de minhas loucas
esperanças era amargo e doloroso.
E de repente, um sorriso que me pareceu infernal errou-lhe nos lábios — era seu
esposo, que grave e silencioso atravessava o salão, e ela julgava-se isenta de minhas
recriminações e sentia-se livre de desagradáveis lembranças.
E cambiamos longo, amargo e expressivo olhar: creio que foi um século de torturas
para meu pai, porque depois ele cravou os olhos no chão e respirava a custo.
— Tendes razão, senhora — disse-lhe. — Sentis que vos incomodo? assim deve ser.
Eu sou para vós remorso vivo. Esperai, não será longo o tempo que gastarei aqui,
porque também me incomoda a vossa presença, porque nesta casa respira-se um hálito
pestilento, porque aqui enfim estais vós. Pouco me demorarei — só quero dizer-vos:
— Mulher odiosa! eu vos amaldiçoo. Por cada um dos transportes de ternura que
outrora meu coração vos deu, tende um pungir agudo de profunda dor, e a dor que me
dilacera agora a alma seja a partilha vossa na hora derradeira. Por cada uma só das
lágrimas de minha mãe, choreis um pranto amargo, mas árido como um campo
pedregoso, doído como a desesperação de um amor traído. E nem uma mão que vos
enxugue o pronto, e nem uma voz meiga que vos suavize a dor de todos os momentos.
O fel de um profundo mas irremediável remorso vos envenene o futuro e desejado
prazer, e no meio da opulência e do luxo firam-vos sem tréguas os insultos de
impiedosa sorte. Arfe vosso peito e estale por magoados suspiros, e ninguém os escute;
e sobre esse sofrimento terrível cuspam os homens e riam-se de vós.
— Eis, Úrsula a fiel narração da minha vida, eis os meus primeiros amores; o resto
toca-vos. Fazei-me venturoso. Oh! em vossas mãos está a minha sorte.
A donzela, comovida, não pôde falar, e estendeu-lhe a mão, que ele beijou com amor
e reconhecimento.
VIII
LUISA B...
O dia ia já alto quando Úrsula entrou no quarto de sua mãe, e esta, admirada de não
vê-la logo ao amanhecer como de costume, começava a inquietar-se, e por isso
estendeu-lhe os braços com transporte de indizível satisfação e disse-lhe:
— Dormiste hoje muito, minha cara Úrsula, e eu julguei que me tinhas esquecido.
Suposto [Embora] a voz de Luisa nada tivesse de repreensiva, todavia Úrsula corou
de envergonhada, e ao mesmo tempo o remorso lhe errou na alma.
— Deus meu! perdoai-me — disse consigo, e correu com os braços abertos para
abraçar sua carinhosa mãe, que lhe sorriu.
— Ah, minha filha! — tornou a senhora B..., querendo atrair Úrsula aos seus braços,
a qual, afetada pelo primeiro remorso, receava algum tanto lançar-se nos braços
maternos. — Vem abraçar-me... que tão ansiosa estava por ver-te!
Então a tímida menina, vencendo a sua perturbação, lançou-se com júbilo no seio de
sua mãe, e soluços mal sufocados lhe rebentaram do peito.
— Enxuga, minha Úrsula, as tuas lágrimas, não vês que eu não choro? — E
procurava sorrir-se, mas era um riso amargo porque o coração não estava isento de
dores.
Úrsula levou o lenço ao rosto por um movimento rápido. Luiza julgou que ela
procurava daí extinguir o vestígio das suas lágrimas, mas a donzela ocultava o rubor
subitâneo [súbito] que lhe tingia as faces, ouvindo sua mãe falar do homem que lhe
ocupava a alma, e por [para] disfarçar a sua comoção, disse distraidamente:
E um profundo silêncio reinou no quarto da doente, porque cada uma dessas duas
mulheres se abandonava a seus pensamentos. Luisa, sem dúvida, preocupava-se se do
porvir de sua filha; esta, pelo contrário, recordava as doces expressões do cavaleiro,
seus votos de amor, e sentia pesar por vê-lo partir. Contudo, Úrsula tinha já uma
esperança que lhe dava forças para arrostar [enfrentar] as dores da vida: ― amava, e
tinha a convicção de ser amada.
E ela meditava na breve mudança da sua vida, e sentia o coração palpitar com
estranho desassossego.
— Ei-lo — disse a moça à sua mãe, que se tinha imergido em tristes reflexões e não
ouvira pronunciar o nome de seu hóspede. E levantou-se para ir ao seu encontro.
A moça compreendeu que sua mãe muito sofria, e, com meiguice, chegou-se a ela e
disse-lhe:
— Perdoai a frieza desta recepção — continuou —, sou uma pobre paralítica, mas a
honra que me fazeis e que aparentemente mal posso corresponder, ficará gravada
profundamente em meu coração. Entrai, senhor.
O mancebo ressentia-se ainda dos efeitos de uma longa enfermidade, e o seu rosto
conservava mórbida palidez, que nessa hora sobressaía-lhe, aumentando a gravidade do
seu porte em presença dessa mulher que semelhava [parecia representar] o próprio
sofrimento.
E ele entrou; mas, ao aproximar-se do leito de Luiza B... uma comoção de pesar lhe
feriu a alma. É que nesse esqueleto vivo que a custo meneava os braços, o mancebo não
podia [não podia = podia] descobrir sem grande custo os restos de uma penosa
existência que se finava lenta e dolorosamente.
Luisa B... fora bela na sua mocidade, e ainda no fundo da sua enfermidade podia
descobrir-se leves traços de uma passada formosura.
Úrsula herdara as doces feições de sua mãe. Então o mancebo contemplou-a com
religioso respeito, e o que sentiu em presença desse leito de tão apuradas dores mal
poderia dizer.
Essa mão era leal e generosa, e Luisa B... sentiu-se comovida porque era a primeira
pessoa que a visitava em sua triste morada, e que, em face de sua enfermidade, não a
desdenhava nem sentia repugnância da sua miséria e do seu penoso estado. E por isso
disse com reconhecimento, que tocou o mancebo.
— O céu vos proteja, senhor, porque sois generoso e bom. E quereis partir? —
acrescentou com benevolência.
— Sim, senhora — tornou-lhe o cavaleiro com voz firme mas magoada, por aí lhe
ficar parte do coração —, o dever me chama. Acho-me restabelecido, e não devo por
mais tempo abusar da vossa bondade. Com desvelo e carinho, e sem que eu o
merecesse, tendes me dado um novo existir; venho, pois, protestar-vos a minha
gratidão. Se algum dia — continuou depois de breve pausa — as vicissitudes da sorte
vos obrigarem a recorrer a alguém, /que/ esse alguém seja eu, porque, senhora, jamais
me esquecerei da franqueza e da bondade com que me acolhestes.
E olhou para sua filha que, pálida e perturbada como a flor na ardentia [calor
atmosférico] da sesta, descaída a face nas mãos, estava à sua cabeceira, e suspendeu-se.
Luisa B... queria dizer: eu nada peço para mim, nada mais que a sepultura, mas se
sois cavaleiro, se tendes virtudes na alma, protegei esta pobre órfã. Mas aquele homem
era-lhe desconhecido, e a ideia de sua próxima morte ia despertar em Úrsula
sentimentos dolorosos. A pobre mulher calou-se.
— Sem dúvida, minha pobre Úrsula, tinhas razão quando, tocada pelo generoso
proceder do nosso hóspede, me falavas de suas bondades e de seus delicados
pensamentos.
E a senhora B..., notando que seu hóspede estava comovido, e atribuindo ao exórdio
[início] da sua conversação a comoção do mancebo, apressou-se em dizer-lhe:
— Perdoai-me, senhor. Uma pobre mulher enregelada pela doença e pela morte que
se lhe aproxima deve falar com toda a franqueza, e [a]demais, a sensibilidade do meu
coração ainda existe, e o céu permitiu-me simpatizar com as ações nobres e
desinteressadas. Eu amei, senhor, o vosso procedimento.
— Há doze anos... — começou Luisa B..., suspirando aquele suspiro que vem do
fundo da alma, não para comover a outrem e captar a sua atenção ou a sua bondade, mas
aquele suspiro que é o momentâneo mas triste alivio de um sofrimento apurado e baldo
[desprovido] de toda a esperança. — Há doze anos que arrasto a custo esta penosa
existência, e só Deus conhece o sacrifício que hei feito para preservá-la! Parece-vos isto
incompreensível? — interrogou ela ao mancebo, que atento a escutava. — Sou, sim
senhor! Vede minha pobre filha! é um anjo de doçura e bondade; abandoná-la e deixá-la
só sobre este mundo, que ela mal conhece, é a maior dor de quantas dores hei provado
na vida. Sim, é a maior dor — continuou ela, com amargo acento —, porque então
perderá o único apoio que ainda lhe resta! Ao menos se meu irmão pudesse esquecer o
seu ódio e protegê-la!...
— Vosso irmão, senhora? — interrogou o cavaleiro, admirado de que um irmão
pudesse odiar a sua irmã.
— Sim — tornou ela —, meu irmão. Mas, senhor, ele é implacável no ódio, e nunca
o esquecerá.
— Não é possível, senhora — objetou o cavaleiro. — Vosso irmão, quem quer que
seja, não vos pode odiar. O vosso estado e as desgraças que por certo tem [têm] pesado
sobre vós, que ele talvez não ignore, lavarão toda a ofensa que porventura lhe houverdes
feito.
— Lavarão, dizeis vós, todas as ofensas que lhe hei feito? Ah! pudera assim
acontecer! Mas não, eu chamei seu ódio sobre a minha cabeça, eu o conhecia: seu
coração só se abriu uma vez: foi para o amor fraterno. Amou-me, amou-me muito, mas
quando tive a infelicidade de incorrer no seu desagrado, todo esse amor tornou-se em
ódio, implacável, terrível e vingativo. Meu irmão jamais me poderá perdoar.
— Talvez! O tempo...
— Sim, senhor — tornou-lhe a mãe de Úrsula —, e um desvelado irmão foi ele. Vós
o conheceis talvez pela sua reputação de fereza de ânimo, mas este homem tão
implacável como o vedes, era um terno e carinhoso irmão. Amou-me na infância com
tanto extremo e carinho que o enobreciam aos olhos de meus pais, que o adoravam, e
depois que ambos caíram no sepulcro ele continuou a sua fraternal ternura para comigo.
Mais tarde, um amor irresistível levou-me a desposar um homem, que meu irmão no seu
orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo B...
— Não, senhor. Ninguém a não ser eu sentiu a morte de meu esposo. A justiça
adormeceu sobre o fato, e eu, pobre mulher, chorei a orfandade de minha filha, que
apenas saía do berço, sem uma esperança, sem um arrimo; e alguns meses depois veio a
paralisia ― essa meia morte ― roubar-me os movimentos e tirar-me até o gozo ao
menos de seguir os primeiros passos desta menina que o céu me confiou.
— Não sei — tornou ela com desânimo. — E para que pensar temerariamente,
quando já me acho tão próxima do meu fim, e tantas culpas tenho para com aquele que a
todos nós há de julgar? Só Deus, senhor, deve conhecer o culpado, e os remorsos o terão
punido.
Uma tarde, meu esposo deixou-me para ir à cidade, de ***, de onde voltaria ao cabo
de três dias. Foi embalde que o esperei, porque a sua alma estava com Deus, e só ao
amanhecer do outro dia dois homens compassivos trouxeram-me o seu cadáver! Ai!
que triste recordação!
— Oh! minha mãe — exclamou Úrsula com amargura —, pelo céu não vos aflijais
mais, falando desse homem que tanto mal vos tem feito.
— Não. Oh! que nunca o veja — tornou-lhe a donzela, refugiando-se nos braços de
sua mãe.
— Tens razão, minha cara Úrsula — disse a pobre mãe, procurando ampará-la —,
grande mal ele nos tem feito.
— Tendes razão, senhor — prosseguiu Luisa B... —, ele habita as nossas vizinhanças
desde que morreu meu marido, e jamais nos tem incomodado.
— O comendador habita estes arredores? — perguntou o cavaleiro.
— E eu tenho-lhe tanto horror — disse Úrsula, a tremer —, que mal posso suportar a
ideia de que estejamos sempre tão próximas dele. Parece-me que esse homem ainda me
há de ser funesto. — E algumas lágrimas lhe orvalharam as faces.
— Pelo céu, minha filha — disse a mãe, angustiada —, essas lágrimas me matam.
Não, eu quero ver-te risonha e feliz.
— Sim, feliz — interrompeu o mancebo, tão comovido que tocou o coração de Luisa
B... — Contai comigo, senhora: vossa filha há de ser feliz, prometo-o sob juramento.
— Sim, minha senhora, eu; porque amo-a, e como o meu amor não poderá jamais
arrefecer, juro-vos em nome do céu, que nos escuta, que Úrsula será a mais venturosa de
todas as mulheres, se anuirdes aos [concordardes com] meus desejos.
Luisa B.... reduzida à última miséria e descobrindo nas maneiras do seu hóspede os
sinais de um nascimento distinto, assim como o esplendor de uma próspera fortuna,
julgou-se vivamente ofendida por aquelas palavras proferidas com tanto arrebatamento,
e que aos seus ouvidos pareceram insultuosa ofensa; e ressentida, envergonhada e quase
que desesperada, abandonada já de forças, caiu quase que completamente desmaiada
nos braços de Úrsula, que lhe bradava:
E Deus o escutou porque, aos esforços da donzela, ao acento de sua voz meiga e
doce, a pobre mãe abriu os olhos e, fitando a filha com redobrado amor, disse-lhe:
— Puro é o seu amor, minha pobre mãe — animou-se a dizer a moça, rubra de pejo
—, o esposo que meu coração tem escolhido.
Então, uma viva palidez tingiu as faces avermelhadas da pobre Úrsula, que na sua
ingenuidade nunca tinha indagado do nobre cavaleiro o seu sobrenome. Sabia de seu
nome, que era Tancredo, e esse lhe bastou; seu nascimento, sua posição social, não lhe
lembraram ao menos. Ela amou o mancebo desconhecido; seu amor era, portanto,
desinteressado, mas agora que um nome ilustre lhe soara aos ouvidos, agora que ela
acabava de reconhecer no mancebo convalescente seu primo, de distinto nascimento,
sua fronte curvou-se abatida, como a flor que, no arrebol da manhã, ostentando beleza e
sedução, vai rastear na terra, quebrada a haste por furacão violento.
O mancebo, compreendendo então o que se passava na alma dessa menina tão casta e
tão delicada como um anjo, tomou-lhe a mão, dizendo-lhe:
— Úrsula, eu sou incapaz de uma má ação. O mancebo que junto ao bosque solitário,
depois de consultar o vosso coração, vos jurou amor e fidelidade e que tomou a Deus
por testemunha de que seria vosso esposo, está agora de novo ante vós. Sou o mesmo,
Úrsula. Olhai-me.
Entanto, Luiza B..., mais tranquila por aquelas palavras que francas e leais lhe
pareciam, cobrando ligeira esperança, sem contudo poder vencer sua comoção, disse
com voz fraca:
— Perdoai, senhor, se não tenho bastante confiança em vós. Bem sabes a que estado
me vejo reduzida... e eu nunca aspirei à mão de um homem como vós para minha filha.
Tancredo de ***, quem vos não conhece? Sois grande, sois rico, sois respeitado; e nós,
senhor? nós que somos?! Ah! vós não podeis desejar para vossa esposa a minha pobre
Úrsula. Seu pai, senhor, era um pobre lavrador sem nome e sem fortuna.
— Oh! senhor — tornou Luiza —, minha filha é uma pobre órfã que só tem a seu
favor a inocência e a pureza da sua alma.
— Úrsula — disse o mancebo, voltando-se para a donzela —, pelo amor do Céu,
fazei conhecer à vossa mãe a lealdade dos meus sentimentos.
— Tomo-vos por testemunha, meu Deus, de que as minhas intenções são puras.
— Aproximai-vos.
Então, Úrsula ajoelhou aos pés do leito de sua mãe, e Tancredo, imitando-a, dobrou
também os joelhos, e unidos assim, e cheios de respeito, de amor e de veneração,
aguardaram um gesto ou uma palavra dessa mulher a quem o amor materno tornava,
nessa hora, tão radiante de celeste beleza.
— Meus filhos, eu os abençoo em nome de Deus. Que ele escute a minha oração, e
os vossos dias corram risonhos e tranquilos sobre a terra.
E depois acrescentou:
— Bendito seja o Senhor! minha filha não será mais uma desditosa órfã.
IX
A PRETA SUSANA
E aí havia uma mulher escrava e negra como ele, mas boa e compassiva, que lhe
serviu de mãe enquanto lhe sorriu essa idade lisonjeira e feliz, única na vida do homem
que se grava no coração com caracteres de amor — única cuja recordação nos apraz e
em que [linha ausente do livro original].
Susana chama-se ela; trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla
chegava-lhe ao meio das pernas magras e descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça
tinha cingido um lenço encarnado e amarelo que mal lhe ocultava as alvíssimas cãs
[cabelos brancos].
Túlio estava ante ela com os braços cruzados sobre o peito. Em seu semblante
transparecia um quê de dor mal reprimida, que denunciava o seu profundo pesar.
A velha deixou o fuso em que fiava, ergueu-se sem olhá-lo, tomou o cachimbo,
encheu-o de tabaco, acendeu-o, tirou dele algumas baforadas de fumo e de novo sentou-
se, mas desta vez não pegou no fuso.
— Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato. Quantas saudades levo eu de vós!
Oh! só Deus sabe quanto me pesam elas!
— Então não procures ir com esse homem que apenas conheces! Olha, ainda a [há]
pouco vi uma lágrima pender dos olhos dessa boa menina, essa lágrima, creio que lhe
arrancou do coração a notícia da tua partida... e tu vais-te! Quando voltarás aqui?
— A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo, será por pouco tempo. Volto
para junto de vós, mãe Susana, e a senhora não reclamará em vão os meus serviços.
— A senhora! — replicou a velha, com mágoa — Essa, meu filho, jamais reclamará
os teus serviços; ou eu me engano, ou tu vais dizer-lhe o último adeus!
— Oh! quanto a isso não, mãe Susana — tornou Túlio. — A senhora Luiza B... foi
para mim boa e carinhosa, o céu lhe pague o bem que me fez, que eu nunca me
esquecerei de que poupou-me os mais acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao
jovem cavaleiro, é bem diverso o meu sentir; sim, bem diverso. Não troco cativeiro por
cativeiro, oh não! Troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe
Susana, se devo ter limites à minha gratidão; veja se devo ou não acompanhá-lo, se
devo ou não provar-lhe até a morte o meu reconhecimento!...
— Tu! tu livre? ah não me iludas! — exclamou a velha africana, abrindo uns grandes
olhos. — Meu filho, tu és já livre?...
— Não se aflija — disse. — Para que essas lágrimas? Ah! perdoe-me, eu despertei-
lhe uma ideia bem triste!
— Ah! pelo céu! — exclamou o jovem negro, enternecido —, sim, pelo céu, para
quê essas recordações!?
— Não matam, meu filho. Se matassem, há muito que morrera, pois vivem comigo
todas as horas.
Ainda não tinha vencido cem braças de caminho quando um assobio, que repercutiu
nas matas, me veio orientar acerca do perigo eminente [iminente] que aí me aguardava.
E logo dois homens apareceram e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira —
era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha que me
restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas e olhavam-me sem
compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me
reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares onde tudo
me ficava — pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no
fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!...
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no
estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta
de tudo quanto é mais necessário à vida, passamos nessa sepultura até que abordamos às
praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e
para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das
nossas matas que se levam para recreio dos potentados [soberanos poderosos] da
Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda
mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento
e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e
que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a
vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que
escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade, foram sufocadas nessa
viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti — é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de
sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.
O comendador P... foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de
horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos por que passaram doeram-me até o fundo
do coração! O comendador P... derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados
negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por
falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se dava a meus
irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e
muitas vezes com a mais cruel injustiça.
Pouco depois, casou-se a senhora Luísa B..., e ainda a mesma sorte: seu marido era
um homem mau, e eu suportei em silêncio o peso do seu rigor.
E ela chorava porque doía-lhe na alma a dureza de seu esposo para com os míseros
escravos, mas ele via-os expirar debaixo dos açoites os mais cruéis, das torturas do
anjinho, do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os
sepultava vivos, onde, carregados de ferros, como malévolos assassinos, acabavam a
existência amaldiçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmos céus!...
O senhor Paulo B... morreu, e sua esposa e sua filha procuraram em sua extrema
bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio, meu filho, eu as amo de
todo o coração e lhes agradeço, mas a dor que tenho no coração, só a morte poderá
apagar! — meu marido, minha filha, minha terra... minha liberdade...
E depois ela calou-se, e as lágrimas, que lhe banhavam o rosto rugoso, gotejaram na
terra.
Túlio ajoelhou-se, respeitoso ante tão profundo sentir: tomou as mãos secas e
enrugadas da africana e nelas depositou um beijo.
— Vai, meu filho! Que o Senhor guie os teus passos e te abençoe com [como] eu te
abençoo.
X
A MATA
Tancredo, esse homem de suas loucas afeições, e que ela tinha amado ainda
desconhecido, era toda a sua vida, e por isso a saudade, a mais pungente, a primeira que
lhe tocava a alma, envenenava agora essa fonte de prazer inocente, esse manancial de
venturas que aí havia feito nascer a chama de um primeiro e ardente amor.
Nunca tinha amado — na sua solidão, seu coração era tão puro como o de um anjo;
foi esse o primeiro choque que lhe abalou a alma, e a saudade devia corresponder à
grandeza desse sentimento. Chorava, pois, porque ia ver partir o objeto de suas mais
caras afeições; mas no momento da partida fez um supremo esforço sobre sua aflição e
estendeu a mão ao mancebo, que a beijou com enlevo, e perguntou-lhe com magoado
acento, que bem revelava o pungir do seu coração:
O mancebo, comovido por tanto amor, amor que era ternamente correspondido, amor
que ele embalde tinha procurado na primeira mulher que amou, sorriu-lhe com
reconhecimento e tornou-lhe com afeto.
— Lembrai-vos, Úrsula, que vos levo no coração, que me seguirá a vossa imagem,
que hei de ver-vos em todos os objetos que me circundarem, que deixo minha alma e
meu coração — todo o meu prazer, minha felicidade presente, o esquecimento de um
passado amargo, as esperanças de um porvir deleitoso e cobiçado: lembrai-vos disto, e
acreditai que breve estarei convosco. Contarei os dias da ausência pelo pungir de
minhas saudades, e por breves que eles sejam, achá-los-ei por demais longos.
Longínquo é ainda o caminho que tenho a percorrer, mas a lembrança de que um anjo
aguarda com amor e /de/ que esse anjo sois vós, dar-me-á asas, e estarei convosco daqui
a meio mês. Então — acrescentou com um acento inexprimível —, então serei para
sempre vosso!
O cavaleiro enfim partiu, e ela nada disse; e só um soluço doído, como o de quem
geme de um pesar profundo, lhe rebentou do peito.
Tancredo transpusera já grande espaço, e Úrsula ainda não mudara seus olhos
umedecidos de sobre ele, e o mancebo prosseguia rápido, até que uma ilhota de verdura
o encobriu à vista da saudosa donzela. Então deixou o lugar dessa tocante despedida, e,
como desejosa de confiar a alguém a dor das suas saudades foi correndo à mata, onde
tinha ouvido dos lábios dele a confissão sincera do seu amor, e logo para aí dirigiu os
passos, penetrou a mata, e lá, junto ao tronco secular, começou a derramar sentidas
lágrimas. O sol, segundo sua marcha inalterável, dardejava na terra seus últimos
enfraquecidos raios, insinuando luminosos resplendores por entre as franças do
arvoredo da mata solitária.
A donzela, então, saiu da mata porque se lembrou de sua mãe, e volveu para ela; mas
no dia imediato, à mesma hora do crepúsculo, voltou à mata, e imergida em sua
meditação, às vezes esquecia-se de si própria para só pensar no seu Tancredo. Soltando
as asas à sua ardente imaginação, seguia-o na sua divagação, escutava-lhe a voz no
remorejar do vento, via-o no meio da solidão e afagava-o com seus meigos transportes
nesses lugares onde só estavam ela e Deus. E depois de longo e profundo cismar, muitas
vezes punha-se a entalhar na árvore, testemunha de sua primeira ventura, o nome
querido de Tancredo! tão doce aos seus ouvidos. Com tanto esmero procurou entalhá-lo
esse dia que, completamente absorvida nesse empenho, se esquecera do mundo inteiro.
E o nome enfim estava completo, e ela pôs-se a soletrá-lo com um enlevo próprio da sua
idade, e que só as almas apaixonadas podem compreender, quando o som desagradável
e medonho de um tiro de arcabuz, disparado bem junto dela, veio arrancá-la a esse
recreio do espírito e a fez estremecer convulsa, e dar um grito involuntário. Espavorida
e meio morta de terror, ia ela levantar-se, quando uma avezinha, uma infeliz perdiz,
como que implorando-lhe socorro, veio, ferida e agonizante, cair-lhe aos pés. Movida de
compaixão, desvaneceu-se-lhe por encanto o pavor que o som do tiro lhe incutira na
alma, e, tomando a pobrezinha em suas mãos, por excesso de bondade levou-a ao peito.
Um rasto de sangue lhe nodoou os vestidos alvíssimos de neve.
É que, mudo e contemplativo, junto dela estava um homem. Os olhos, tinha-nos ele
fixos sobre a donzela amedrontada — dir-se-ia a estátua do pasmo ou da admiração.
E Úrsula e esse homem, por alguns momentos, guardaram profundo silêncio; nela
motivavam-no a surpresa, o terror, o desgosto que lhe causavam a fisionomia desse
homem de tão sinistro olhar: nele, a deleitável contemplação desse rosto feminil de tão
pura e ideal beleza.
E assim permaneceram: ela a recobrar coragem para escapar a esse desconhecido que
a incomodava, ele a contemplar-lhe as negras tranças molemente reclinadas sobre uns
ombros de marfim, as mãos diáfanas e mimosas, que lhe velavam o rosto, que divisava
ser belo como o rosto angélico de um querubim.
— Ide-vos!
Ele embalde tentou obedecer a essa ordem muda de um ente tão divino, qual jamais
havia visto, mas quem sabe se o coração o permitia?
Estranho foi o que se passou então em sua alma, e ele sentiu que alguma coisa lhe
abalava o fundo do peito; gemeu de um primeiro afeto e curvou-se ao ímpeto de uma
paixão insensata.
E o instrumento mortífero estava-lhe nas mãos, e ele não o via, porque seus olhos
estavam fitos sobre a encantadora donzela: mas ela o viu, estremeceu, e um novo grito
lhe prorrompeu dos lábios.
Úrsula ia fugir.
A esta expressão, a filha de Luiza B... fitou-o com curiosidade: este homem tão
estranho conhecia-a, sem dúvida, e ela nunca o tinha visto! Chamou-a pelo seu nome,
suplicou-a em nome de sua mãe!... quem era ele, pois?
— Tranquilize-vos!
Ele tentou falar, mas os olhos dessa menina lhe impuseram respeitoso silêncio.
Esse homem não estava no verdor dos anos, mas sua fisionomia, suposto que severa
e pouco simpática, nessa hora crepuscular que dá certa sombra a toda a natureza não
denunciava a sua idade. A pele sem rugas, os olhos negros e cintilantes, tinham um quê
de belo, mas que não atraía. Era de estatura acima da medíocre, esbelto e bem
conformado; e as feições firmes davam-lhe um ar aristocrático que, quando não atrai,
sempre agrada.
— Meu Deus! — dizia ela consigo — quem será este homem, e o que quer ele de
mim?
Uma chama ativa lhe abrasava a alma, talvez a primeira que assim o requeimava, e
bem ardente devia ser ela porque ele sentia no peito ondear-lhe e ferver em caixões
[agitar-se incontrolavelmente] o violento fogo de uma cratera. Ainda assim, mal lhe
traía o rosto o que lhe ia lá na alma.
Ele deu um passo para a donzela, e ela de pronto ergueu-se, trêmula de angústia e de
terror, e bradou com ânsia:
— Oh! quem quer que sejais, senhor, que me quereis?! Segui o vosso caminho e
deixai-me sossegada e tranquila.
— Meu Deus! Senhora — exclamou ele — não vos compreendo. Em que vos posso
incomodar?!...
— Acabai, senhor — continuou ela —, esta penosa entrevista. A vossa presença não
só me incomoda, como me causa susto.
— Senhor — tornou ela, com voz súplice —, não me vedes a saída desta mata:
necessito voltar para junto de minha mãe.
— De vossa mãe! — inquiriu o caçador com emoção — e não foi em nome dela que
acabo de suplicar-vos que não me fugisses? Úrsula, talvez me perdoásseis essa
desagradável impressão, que à primeira vista tive a infelicidade de causar-vos, se
soubésseis quem sou, o quanto hei sido amigo de vossa mãe. De vossa mãe — repetiu
ele com a voz um pouco alterada —, Luisa! Luisa! Quanto os anos a terão desfeito!
Não sereis também minha amiga, quando me conhecerdes?
— Eu! — exclamou a moça com ingenuidade — eu, senhor! E por quê? Minha
infeliz mãe vergou sob a influência de uma sorte adversa, gemeu até hoje as dores de
uma penosa enfermidade, chorou com amargura uma viuvez prematura e a orfandade de
sua filha, e nunca um amigo generoso ou uma alma sensível, nunca, senhor, enxugou-
lhe a lágrima ardente que lhe queimava as faces.
— Não, mas não vos creio. E [a]demais, para que me demorais? Sede breve, dizei o
vosso intento, que quero partir.
E seus olhos, descaindo para o chão, encontraram a ave morta que lhe caíra aos pés e
os seus vestidos nodoados daquele sangue inocente. Estremeceu involuntariamente e,
contrariada pela obstinação daquele homem de tão sinistro aspeto, disse-lhe com certo
tom de desespero:
— Sim, tínheis razão quando dissestes que eu vos odiava. Sois obstinado em
incomodar-me; sabei, pois, que me é insuportável a vossa presença. Vedes esta
avezinha? Para que a matastes? Não era ela tão inocente e tão bela? A dor do seu
coração feriu o meu, e o seu sangue tingiu-me os vestidos. Esse ato de inútil crueldade
faz-me aborrecer-vos [sentir aversão por vós].
— Pois bem — disse ela —, guardai-o muito embora, mas deixai-me, em nome do
céu.
Mas não. O amor que ora desenvolvestes em meu coração é tão ardente quanto
respeitoso. Nasceu agora, mas tanto já influiu sobre mim, que é humilhado que vos
peço que não o desdenheis.
Se pudésseis sentir, compreender somente, o que ora se passa em mim... mas sois
inflexível! Úrsula, quando voltardes aos vossos lares, quando, descansada em vosso
quarto, recordardes esta cena da mata, não zombeis do homem que vos fala, porque este
amor que me escalda o coração há de durar enquanto eu existir.
Úrsula, tímida e angustiada, ouvira todo este discurso sem interrompê-lo, mas o
coração lhe estava gelado de aflição.
— Aguardo por uma palavra vossa — tornou o desconhecido, fitando nela olhar
inexprimível.
— Uma palavra?! — Aguardais uma palavra minha? Pois bem! Abusastes por
demais da minha fraqueza. Estou só, o lugar ermo, tudo vos protege e vos anima. Se
fôsseis mais cavalheiro, seríeis comedido em expressões que sempre foram tidas por
ofensivas quando ditas por estranhos, e nunca chegaríeis a uma impertinência tão
desagradável.
— Sim — tornou a moça, procurando desprender-se-lhe das mãos —, sim não vos
odeio, mas deixai-me em paz.
— O quê, senhor?
— Afirmastes ser amigo de minha mãe, não o acreditei; falais-me de um amor, que a
meu pesar [para minha insatisfação] em vós despertei, e quereis que o corresponda.
Tenho-me até agora negado a semelhante compromisso, mas tudo isso pode modificar-
se se eu puder conhecer-vos, se for permitido agora saber quem sois. O vosso nome?
Agora ide-vos!
Rogai ao céu — acrescentou —, meiga e inocente donzela, rogai ao céu para que vos
possa esquecer, porque se o meu amor prosseguir assim, extremoso, indomável,
apaixonado, haveis de ser minha, porque ninguém me desdenha impunemente. Ouvis?
— disse, em tom de ameaça, e depois em meia súplica ajuntou — Oh! por Deus, não
troqueis a ventura pela dor, e quem sabe? pelo!..................................................
Esta ameaça horrível, dita com voz alterada e em tais horas, irriçaram [eriçaram] os
cabelos da moça, que ficou pálida e queda de horror.
E ela, toda agitada e confusa, deixou a mata, prometendo a si mesma não voltar
jamais àquele lugar.
— Mulher! anjo ou demônio! Tu, a filha de minha irmã! Úrsula, para que te vi eu?
Mulher, para que te amei? Muito ódio tive ao homem que foi teu pai: ele caiu às minhas
mãos, e o meu ódio não ficou satisfeito. Odiei-lhe as cinzas, sim, odiei-as até hoje, mas
triunfaste do meu coração; confesso-me vencido, amo-te! Humilhei-me ante uma
criança, que me desdenhou e parece detestar-me! Hás de amar-me. Humilhado, pedi-te
o teu afeto. Maldição! Paulo B..., estás vingado!
Tua filha oprime-me com o seu indiferentismo e esmaga-me com o seu desprezo,
como se me conhecera!
Mulher altiva, hás de pertencer-me, ou então o inferno, a desesperação, a morte serão
o resultado da intensa paixão que ateaste em meu peito.
XI
O DERRADEIRO ADEUS!
Úrsula, ainda tão nova, começou a vergar sob o peso de tantas comoções
encontradas. Pálida e abatida, semelhava o lírio do vale que a calma emurcheceu
[tornou murcho]. Era débil para tão grandes embates.
Na sua solidão, o homem tinha ido perturbar-lhe a virginal pureza do coração para
dar-lhe uma nova existência — o amor; e depois, ainda o homem, invejoso dessa
momentânea e fugaz felicidade, veio roubar-lhe a tranquilidade do espírito e envenenar-
lhe a suave esperança de uma vida risonha a venturosa, espremendo-lhe no coração a
primeira gota de fel do cálix [cálice] que ela devia libar até às fezes [a borra].
E quem será ele? Deus meu! Por que fatalidade me viu e disse-me que me amava
com amor ardente e intenso que terá a duração da sua vida! Pressagia-me o coração
aflito que esse homem e o seu amor me hão de ser funestos!
Uma voz interna diz-me que aí está uma grande desgraça. Oh! esse homem
ensanguentou os meus vestidos, que eram tão alvos! Cada nódoa desse sangue, que
tanto me horroriza, parece-me que serão outras tantas lágrimas de amargura que tenho
de verter.
Oh! meu Deus!...meu Deus, permiti, Senhor, que eu me engane e que jamais o torne
a ver.
Tancredo! aonde [onde] estás a esta hora? que fazes, que não me vens proteger
contra a insolência e as ameaças desse caçador desconhecido? O teu amor pode
amparar-me. Oh, sim, o teu amor me dará forças para destruir suas loucas esperanças e
esquecer suas terríveis ameaças.
A noite ia já alta. A moça entrou no quarto de sua mãe; ia talvez revelar-lhe o que se
havia passado na mata, descrever-lhe as feições do desconhecido, o acento de sua voz,
para ver se descobria indícios que a elucidassem sobre esse terrível adorador, ou ao
menos procurar conforto no coração materno, quando, com redobrada amargura esta lhe
disse:
— Ânimo! minha querida filha, não chores: os meus sofrimentos vão já acabar. Sinto
aproximar-me da sepultura! mas Deus me há de permitir ainda ver-te feliz. Sim, feliz!
porque Tancredo te há de dar a ventura que tanto hei pedido ao céu para a minha Úrsula.
A moça, então traspassada de dor, olhou para essa mulher a quem tão ternamente
amava e estremeceu de angústia. Luisa B... não poderia já aspirar /a/ muitos dias de
vida, e essa lembrança fez-lhe esquecer sua desagradável apreensão, e até mesmo seu
amor apaixonado, para entregar-se toda à dor de uma eterna separação que ela antevia
como irrevogável.
E debruçada sobre o colo materno, a donzela derramava sentido e terno pranto que
vinha lá do fundo da alma, onde havia dor mil vezes mais cruel que a própria morte.
Ela fechava aqueles olhos alquebrados, que mal podiam já acariciar os seus, aqueles
lábios semimortos, que fracamente exprimiam a ternura maternal, aquelas mãos hirtas e
regeladas, que só por sobre-humano esforço erguiam-se ainda para abençoá-la, e o
coração partia-se-lhe de angústia.
...................................................................
Brilhou enfim a alvorada, que espancou essa noite tão longa e de tantas dores. Luisa
B... recobrou fictícios [enganosos] sinais de melhoras.
Úrsula, mais reanimada, tinha secado o seu pranto, e, feliz pelas melhoras de sua
mãe, procurava esquecer o desconhecido da mata, cuja entrevista desejava relatar à mãe;
mas aguardava para esse efeito um dia em que esta se sentisse mais forte e vigorosa.
Úrsula receava incomodá-la com os seus receios, aliás tão bem fundados. Tinha
razão — Luiza B..., no aflitivo estado em que se achava, morreria instantaneamente
vendo a filha querida de seu coração ameaçada por um homem, cuja fereza desenhava-
se no seu aspecto.
Sim, Úrsula tinha razão; Luiza não poderia resistir a esse novo embate: era demais
para uma fraca moribunda.
E alguns dias tinham-se já passado depois dessa noite de penosas comoções, e Luisa
B... era ainda a mesma débil, esquálida enferma, mas terna e desvelada mãe, e parecia,
mesmo na aproximação da morte, redobrar de afetos e de carícias, ameigando com
ternura extrema sua inconsolável filha, toda pranto e saudades.
Um dia, porém, Luiza pareceu recobrar forças, que há [havia] muito a haviam
abandonado, e a filha viu com prazer errar-lhe nos lábios um sorriso animador.
Acreditou que suas lágrimas tinham tido o poder de arrancar a mãe da morte, e
prostrada rendeu graças ao Senhor.
Pobre Úrsula!.....................................................
Era esse o dia destinado e há tanto esperado para ela informar sua mãe sobre a
entrevista da mata, e começava já a dispô-la para esse fim, quando bateram à porta.
— Uma carta! — Exclamou esta. — E de onde virá ela? Lede-a, minha filha.
Úrsula comprimiu com as mãos a fronte, que súbita dor acometera. Uma vertigem
lhe obscureceu a vista; mas, acalmando-se-lhe o natural sobressalto, continuou a ler:
"É necessário que nos vejamos ainda uma vez na vida, e conto que anuirás a este
desejo, ou antes súplica de teu irmão.
"Minha irmã! minha Luiza! muito me tens a perdoar, porque gravíssimo é o mal que
te hei feito; mas és boa, teu coração não pode alimentar ódio por aquele que foi sócio
[companheiro] dos teus jogos infantis, e que na juventude te amou com essa doçura
fraternal que só tu compreendias, porque eram gêmeas as nossas almas.
"Luisa, minha doce irmã; por que me tornei eu mau e odioso a meus próprios olhos
depois que tomaste a Paulo B... por esposo? Por quê? nem o sei eu! Talvez o desejo que
sempre tive de dar-te uma posição mais brilhante, como muitas vezes te fiz sentir.
Malograste, no entretanto, as minhas intenções, esposando esse homem, que...
"Esse foi o teu crime, crime que eu nunca te haveria perdoado, se o céu se não
incumbisse desta conversão, que sem duvida te há de admirar, porque a mim mesmo me
admira.
"O mais, dir-te-ei vocalmente, porque só deve esta preceder-me uma hora. Adeus.
"Teu afetuoso
"FERNANDO."
— Meu Deus! — exclamou a viúva de Paulo B... após alguns momentos de silêncio.
— Que quer dizer isto? Esta conversão! oh! não o compreendo. Úrsula, minha filha, não
sei por que aperta-se-me o coração à aproximação desta entrevista. Fernando, meu
irmão! o teu ódio ainda não estará vingado?!
Mas — continuou a pobre mulher — ele me fala de perdão: Deus! será possível que
se haja arrependido e que o meu sofrimento lhe tocasse o coração empedernido?!
— Duvido, minha mãe — objetou Úrsula —, duvido. Para que vem ele perturbar o
nosso sossego?
E entrou a cismar sobre tão inesperado e estranho assunto. Falava em sossego! como
se ela o gozasse há [havia] dias! Depois dessa desgraçada entrevista da mata, sentira um
só dia o que era tranquilidade? Não, por certo. Mas Fernando P***! que vinha ele aí
fazer? Úrsula tinha horror a semelhante parente e implorava ao céu /que/ o arredasse
sempre da sua vista. Graves suspeitas pesavam sobre o comendador, e a infeliz órfã não
podia lembrar-se dele sem terror.
E Luisa tinha suas razões; por isso, agora mais que nunca, estava aflita e inquieta,
mas Úrsula para tranquilizá-la disse:
— Por que estais assim a tremer, minha querida mãe? Que mal vos poderá ele fazer
além dos que já tem feito? Ele vos fala em perdões, trata de uma conversão...
— Operada pelo céu, que a ele mesmo admira! — tornou Luiza, interrompendo sua
filha, que cada vez se sentia mais inquieta. Esta conversão assemelha-se a todos os atos
da sua vida: esta conversão deve nos ser funesta!
— Santo Deus! — exclamou Úrsula, precipitando-se para fora do quarto de sua mãe
e cobrindo o rosto com ambas as mãos.
O caçador desconhecido acabava de entrar sem anunciar-se.
— Luiza! Luiza, minha querida irmã — bradou o comendador, correndo para ela e
unindo-a ao seu coração.
Este brado terno e comovido revocou [fez retornar] a infeliz mulher a uma vida que
ela já julgava extinta, e, esquecendo por um instante todo o amargor que Fernando lhe
derramara no coração, sorriu-se para o irmão que amara, e por momentos brilhou-lhe no
rosto a alegria, e disse:
— Meu irmão!
E Fernando cedeu então ao mais belo transporte da sua alma, ao único sentimento
virtuoso que Deus aí lhe implantara e que embalde tinha lutado por abafar ou destruir.
Fernando combatia há [havia] dezoito anos o poder desse amor fraterno, e seu
orgulho conseguiu por algum tempo o que o coração repugnava, o que a razão e a
inteligência condenavam e o que ele sentia dolorosamente; porque só nesse afeto lhe
estava a ventura de toda a sua vida.
E para vencer-se, obstinadamente evitava a vista de sua irmã, a que não poderia
resistir, para bem saciar a sua vingança, para bem flagelar-se, flagelando-a na sua
desgraça.
Fernando tinha vivido solitário e desesperado com essa luta terrível do coração com
o orgulho, e esses desgostos íntimos, que ele próprio forjava, o tinham embrutecido e
tanto lhe afearam o moral, que era odiado e temido de quantos o praticavam
[relacionavam-se com ele] ou conheciam de nome.
Ele se tornara odioso e temível aos seus escravos: nunca fora benigno e generoso
para com eles; porém, o ódio e o amor que lhe torturavam de contínuo fizeram-no uma
fera — um celerado.
Nunca mais cansou de duplicar rigores às pobres criaturas que eram seus escravos.
Aprazia-lhe os sofrimentos destes, porque ele também sofria.
Pobre menina! Correu sem tino e sem consciência do que fazia, porque acabava de
reconhecer em seu tio o caçador, cuja voz e cujas expressões não podiam ser
esquecidas. Seu aspecto, suas ameaças, seu amor violento e libidinoso já o tornavam
repelente, e agora via nele Fernando P..., o perseguidor de sua mãe e talvez o assassino
de seu pai. O coração pulsava-lhe com veemência — parecia querer estalar.
Compreendeu toda a extensão do perigo iminente, que estava sobre sua cabeça. Sua
mãe pouco poderia viver, Tancredo estava ausente. O comendador ia triunfar, já não
havia dúvida. Oh! essa ideia era horrível!
Úrsula correu louca por algum tempo, ora invocando a morte, ora maldizendo a hora
do seu nascimento, até que afinal, vencida por tão violentos embates, caiu em uma
prostração mórbida, de onde a preta Susana a veio arrancar para dizer-lhe:
— Ide, ide, que minha senhora lhe quer falar. Ah! ela não pode tardar.
— Que me queres?
— Oh! não, mentes, não pode ser! Tu te enganaste, Susana, não é verdade?
Luiza B... estava só: seu irmão tinha-lhe já dito o derradeiro adeus; ela agora
necessitava falar à sua filha — desabafar com ela e dar-lhe o último ósculo [beijo]
maternal!
XII
FOGE!
— Aproxima-te minha pobre filha —, exclamou a infeliz mãe, com a voz fraca e
arrastada. — Ah! que desgraçada entrevista!
E um tremor convulso agitou os membros da desditosa mãe, que ainda na sua agonia
velava pela infeliz órfã.
A filha, a desvelada filha, tomou-a nos braços, uniu-a ao seu coração, orvalhou-a
com as suas lágrimas e, sufocada pela dor, lhe bradou:
— Oh! minha mãe... minha querida mãe, que foi que vos fez esse homem malvado?
A pobre mulher não pôde retrucar-lhe: fechou os olhos e parecia que de todo lhe
faltava a vida.
Úrsula gritou, pediu socorro, e ao seu pranto doído só teve por eco o pranto de
Susana!
Luiza tornou a si dessa penosa e prolongada síncope, porque Deus quis que uma vez
ainda ela falasse à sua filha; por isso ela, recobrando um breve alento, mas já com os
olhos amortecidos e vidrados, e com a voz pausada e abafada que a custo se lhe
deslocava dos lábios, disse:
— Minha filha querida... minha Úrsula, para que te dei essa vida?! Ah tu que eras o
encanto dos meus dias... tu, a alma da minha existência... Oh! meu Deus! Senhor, dai-
me sequer poucos dias mais de vida para protegê-la, para ampará-la........
— Oh! não choreis, minha mãe, pelo céu — exclamou a pobre moça, aflita por tantas
dores — Oh! não choreis!
— Disse-mo [-me isso] na mata, quando me anunciou seu amor apaixonado. Mas
perdoai-me de vos não ter ainda relatado esse triste acontecimento da minha vida. Via-
vos tão débil, tão desalentada... que me não atrevia a dar-vos esse golpe. Uma tarde, não
há muito, estendi o meu passeio até a mata próxima, e aí meditando sobre as promessas
de...
— Esqueci-me das horas, o tempo foi passando, e só ao cair da noite é que dei fé de
mim e tratei de voltar. Nesse comenos [momento], ouvi o estampido de uma espingarda,
e /vi/ uma pobre perdiz que, ferida, veio como pedir-me socorro. Acolhi-a ao seio, mas
nem bem o havia feito, que dei junto a mim com um homem que me fixava com olhos
sinistros.
Tomou a donzela algum alento, e só depois de alguns minutos é que pôde relatar à
sua moribunda mãe a sua fatal entrevista. Terminada que foi a narração, acrescentou:
— Por último, cobrei ânimo e quis fugir-lhe, mas ele implorou em vosso nome, e eu
ouvi-o!
Louca, louca, que eu fui: tinha diante dos olhos comendador P***, o perseguidor de
minha mãe, e...
— O assassino de teu pai, minha Úrsula — interrompeu Luiza B... com indefinível
amargura.
— Sim — tornou ela — acaba de me confessar, num transporte que diz de vivo
arrependimento.
— Oh! que horror! — disse Úrsula, levando as mãos ao rosto lívido de pavor.
— E diz que loucamente te adora, e quer compensar-te com o seu nome e com a sua
fortuna dos males que nos há feito!...
— Silêncio, minha pobre filha! Agora escuta-me: são estas talvez minhas derradeiras
palavras: pesa-as bem. Não chores, não, minha filha, não chores, se queres ainda ouvir-
me por um instante. Bem sei quanto te é penosa esta dura separação, mas tarde ou cedo
ela devia chegar, e deves resignar-te e aproveitar o tempo, que urge.
Frágil e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceira do meu leito como se fosse o anjo
de extermínio a falar-me de coisas que só me poderiam abreviar os instantes. Conheci
que chegava o termo dos meus dias, ele também o conheceu, e, conquanto esta ideia,
apesar da dureza do seu coração, lhe fosse amarga, ele contudo deixou-me à pressa para
ir à cidade de ***, de onde deve voltar amanhã.
— Sim, nunca — replicou a pobre moribunda, aproveitando suas últimas forças; mas
um novo desmaio, seguido de violentas convulsões, reapareceu, e seu rosto tornou-se
mais esquálido, e as feições mudadas, e o suor gelado da morte mostrou-se.
— Meu Deus! meu Deus! — exclamou Úrsula, no auge da mais pungente aflição. —
Oh! Vós, Senhor, que sois bom e que podeis tanto, restitui-lhe a vida, ainda /que/ em
troco da minha! — E caiu sobre o corpo meio gelado da infeliz mãe.
Luisa de novo abriu os olhos para dar um último adeus à filha de suas adorações, e
por um esforço derradeiro disse-lhe:
— Úrsula, minha filha, teme a cólera de Fernando, mas sobretudo teme e repele seu
amor desenfreado e libidinoso.
Então Úrsula, a pobre órfã, ajoelhou aos pés do leito e, volvendo em seus braços o
corpo inanimado, com seus lábios trêmulos de dor, tocou os lábios frios e inertes de sua
mãe, tentando, embalde, transmitir ao coração materno o hálito ardente que a animava.
Mas quando voltou à realidade, quando teve plena consciência de que estava só e
entregue ao rigor da sua sorte, quando pôde acreditar que sua mãe já não existia, então
prorrompeu em lágrimas e estorceu-se [contorceu-se] pelo chão, e agitou-se como uma
possessa, porque as grandes e profundas dores do coração só acham alívio na expansão
ilimitada da dor e na fadiga do corpo e do espirito.
............................................................
Era uma dessas tardes que parecem resumir em si quanto de belo, de luxuriante e de
poético ostenta o firmamento no equador; era uma dessas tardes que só Bernardin de
Saint-Pierre soube pintar no delicioso Paulo e Virgínia, que deleita a alma e a transporta
a essas regiões aéreas que só a imaginação compreende, e que, divinizando as nossas
ideias, nos torna superiores a nós mesmos.
Era, pois, uma dessas tardes em que o sol no seu descambar para o acaso recebe mil e
cambiantes cores, invejadas pela palheta dos Rafaéis, e que se confundem com o sorriso
da triste amante, a Lua, que ressurge pálida na orla do horizonte. Os últimos raios de um
sol vívido misturavam-se com os raios prateados de uma lua de agosto.
Silencioso e ermo estava então o cemitério de Santa Cruz, e só o vento, que silvava
entre o arvoredo ao longe, e que mais brando gemia tristemente nessa cidade da morte, é
que quebrava a solidão monótona e imponente desse lugar do esquecimento eterno!
E o vive diz:
O morto repousa sob a lousa, seu corpo reduz-se a terra, e a paz e o esquecimento das
dores humanas, que ele há tanto anelava, lhe oferece a morte.
Oh! passam-se os séculos, e ele não volve! É sempre mudo e frio como a terra, que
em borbotões se derramou sobre ele!
..............................................................
Simples e quase nu era esse cemitério de Santa Cruz — como devera ser a última
morada do homem.
A vaidade não tinha franqueado o seu liminar [limiar]; aí não havia mausoléus nem
floreadas campas, mas uma capelinha singela e pobre, e a cruz com os seus braços
distendidos, protegendo as cinzas dos que eram pó, denunciando que na vida seguiram a
sublime religião do Cordeiro Crucificado. Além disso, uma ou outra árvore, e ervas
rasteiras cobrindo o terreno e invadindo tudo.
A estrada que ia a Santa Cruz abria-se aos pés desse lugar de tão saudosas
recordações.
Úrsula, a essa hora do crepúsculo, desatinada por tantas dores, depois de vagar
incerta no caminho que queria seguir, tinha enfim penetrado no âmbito [lugar] pavoroso
que encerrava os restos de sua mãe.
De joelhos, beijou a terra úmida e ainda revolta pelo aluvião, e o pranto amargo que
lhe inundava as faces, e o soluçar magoado que vinha lá dos abismos de sua alma, eram
a mais sincera expressão da sua dor ― e a mais grata prece ao altíssimo.
Que soledade [solidão] a sua! Entregue agora a toda a força de um destino cuja
dureza começava a experimentar, no começo dos seus anos, ela não podia ter ânimo
para encará-lo sem tremer.
Que lhe restava agora sobre a terra? Um amor ardente e apaixonado, ternamente
correspondido, mas que a esta hora, ignorando toda a sua angústia, todo o perigo que a
ameaçava, estava longe de poder salvá-la e ampará-la contra as fúrias de Fernando!
Pobre e desditosa Úrsula!... era essa a única ventura que lhe restava — o único elo
que ainda a prendia à cadeia da vida!
Mas a mísera, transida de [tomada pela] dor, no excesso de sua íntima e irremediável
mágoa, esqueceu o seu amor, e até mesmo a odiosa imagem do comendador. A
inconsolável filha chorava a perda irreparável e eterna de sua querida mãe!
No fundo desse sepulcro tão frio e tão silencioso lhe estava a alma!
Ela beijava o pó da sepultura, e um pranto sentido caía sobre essa terra e, filtrando-
se, ia como que despertar do sono eterno aquele coração irregelado [enregelado] pela
morte, e que tanto amor lhe havia tributado.
E a lua melancólica e pálida, lançando uma chuva de prateados raios sobre o cume
das árvores e sobre a erva do cemitério, e branqueando os bravos negros da cruz, junto
da qual estava a sepultura de Luiza B... e a dolorosa donzela ajoelhada, dava a esse
quadro mil encantos de sublime poesia. Os olhos da donzela levantavam-se para esse
sagrado estandarte da Fé, porque o coração procurava um auxílio do céu; mas logo a
cabeça pendia para a terra, e os lábios roçavam o pó da campa.
Depois a dor — mais viva, mais dolorosa e íntima conturbou-a; seus membros
tiritaram, a vista obscureceu-se-lhe e um gemido saiu do imo [lugar mais fundo do]
peito, intenso e dolorido:... era como se nele lhe viesse a vida. Úrsula caiu desmaiada.
Infeliz donzela! Por que fatalidade viu ela esse homem de vontade férrea, que era seu
tio e que quis ser amado?! Esse homem, que jamais havia amado em sua vida, por que a
escolheu para vítima de seu amor caprichoso, a ela que o aborrecia [detestava], a ela a
quem ele tornara órfã, antes de poder avaliar a dor da orfandade? A ela que amava a
outrem, cujo nome devia conhecer, porque mais de uma vez o vira no tronco da árvore,
enlaçado com o de Úrsula, a ela que toda a sua alma, toda a sua vida pertencia agora a
esse jovem cavaleiro?!
A pobre donzela, assim desmaiada, semelhava a flor do prado que murchou porque o
tufão da tarde a arrancou da haste: e ninguém lhe prestava o mínimo socorro, e Deus,
somente, a via e avaliava a grandeza das suas dores.
O sol tinha de todo desaparecido no extremo do horizonte, e a luz ainda tíbia da lua
derramava vaga claridade.
Úrsula nada ouvia, e se o tivesse ouvido, seu coração morreria de pavor. Esse tropear
de cavalos em demanda do lugar em que se achava, ela julgaria ser o núncio
[mensageiro] da má vinda de seu tio, que a vinha perseguir, aumentando por ess'arte
[essa maneira] a sofrimento da sua alma.
Mas ela, envolvida nesse torpor que se assemelha à morte, não tinha consciência do
que lhe ia em torno, nem da sua própria existência.
Pararam os animais junto à estacada de madeira que cercava a morada dos mortos, e
dois homens penetraram o recinto silencioso.
Estes homens apearam-se com presteza, ataram a uma árvore as rédeas de seus
ginetes e, de um salto, cada qual o mais rápido, invadiram a morada do sono eterno.
— Ei-la — exclamaram a um tempo ambos eles, e o que era amante, o que sentia no
coração referver-lhe um amor estremecido, ajoelhou ante a bela desgraçada e, tomando-
a nos braços, exclamou:
— Úrsula!... Úrsula!...
Então essa mulher, que no excesso de sua aflição ele julgara morta, reanimando-se
pouco e pouco ao contato de seu corpo, desatou um gemido profundo e dolorido.
— Tens razão, Túlio, mas Úrsula está tão debilitada que receio não possa suportar as
fadigas de uma viagem que, [a]demais, não pode ser vagarosa.
— É possível que torne a desmaiar, ou que este desmaio que ora está a terminar se
prolongue muito; mas, senhor, os vossos cuidados revocá-la-ão [a trarão de novo] à
vida. Lembrai-vos do que nos disse mãe Susana.
— Sim — tornou Tancredo —, mas supões, Túlio, que eu trema com a lembrança
desse homem? Não. Eu só receio que o estado de saúde desta infeliz menina piore, ou
venha a perigar por uma viagem imprudente e que só pode revelar pouco ânimo da
minha parte.
Depois, curvou-se sobre a moça e chamou-a. Essa voz amada lhe ecoou na alma.
Úrsula abriu os olhos e reconheceu Tancredo.
E aqueles dois corações, unidos polo amor, oraram pelo descanso eterno de Luiza
B...
XIV
O REGRESSO
Agora é preciso sabermos como Tancredo, de volta de sua viagem, pôde saber onde
estava Úrsula e o que lhe havia acontecido.
Entretanto, raiou o dia apetecido e que devia levá-lo para junto de sua jovem
desposada, e nesse dia o coração arfava-lhe, ora com um arrebatamento apaixonado, ora
com triste desassossego, e ele enterrava as esporas nas ilhargas do brioso animal que o
conduzia, e redobrava o ardor de sua carreira.
— Túlio — exclamou Tancredo, vendo que fugiam as horas —, será possível que
ainda hoje deixemos de chegar à sua casa?!
Túlio nada respondeu e parecia não tê-lo ouvido: com efeito, o negro cismava
profundamente, porque a aproximação daqueles lugares trazia-lhe mais de uma
recordação.
— Não me ouviste, meu bom amigo — continuou Tancredo. — Túlio, quero vê-la
hoje, agora mesmo se nos for possível. Ah! não sabes como a amo... Ela é tão bela... o
sorriso nos seus lábios é como a gota de orvalho no cálice de uma flor.
— Oh! — exclamou Tancredo, contrariado. — E ela que me espera! Parece que lhe
escuto a palpitar do coração, que vejo a ânsia com que me aguarda, e ouço-lhe um som
queixoso e um suspiro lhe perpassar pelos lábios, embaciando o vivo rubor que os tinge.
Túlio também sentia uma vaga inquietação, e esse desassossego, que começava a
tornar-se sensível no jovem apaixonado, a [há] muito o tocava ao vivo: é que a cada um
deles figurava-se [imaginava] que Úrsula reclamava socorro, que algum pesar a
oprimia.
Tancredo amava apaixonadamente a essa menina de olhar meigo e arrebatador; Túlio
tinha-a visto no berço, e a sua afeição para com ela era profunda e desinteressada.
— É tão somente para satisfazer à vossa impaciência — tornou Túlio — que propus
esta estrada com preferência à outra; ao contrário...
— Por quê! — repetiu Túlio — porque eu havia prometido a mim mesmo e às cinzas
de minha mãe nunca mais trilhar esta maldita estrada: porque sentirei pungentes e tristes
recordações ao passar pela fazenda de Santa Cruz.
— Sim — prosseguiu o negro, com voz amarga —, é desse homem de sangue, dessa
fera indômita. Oh! vós não conheceis o comendador, e vossa alma generosa tem de
repugnar em face das barbaridades que ele pratica cada dia. Implacável é o seu ódio, e a
pobre senhora Luiza B... bem o tem experimentado. Pobre senhora! Seu marido foi
também um homem cruel, mas a cólera do comendador o seguiu por toda a parte, e
Deus sabe... talvez ele abreviasse os dias...
Ambos caminhavam, pois, para o mesmo lugar, tinham ambos pressa: Tancredo,
tipicamente para ver a mulher de suas adorações; Fernando, porque nutria graves
suspeitas de que outro lhe seria preferido. Ele começava a sentir no fundo da alma o
desassossego mortal do ciúme e da vaidade, mas, cônscio do terror que infundia àqueles
que o conheciam, cobrava às vezes um pouco de calma e dizia:
— Não é possível. Embora ela o ame, não poderá resistir à minha vontade. E,
[a]demais, onde está agora esse insensato? Na comarca de ***; quando voltar, tudo
estará feito: Úrsula será já minha esposa, e ele, resignado ou esquecido, ou mesmo
desesperado, mas respeitando a minha posição social e meu nome, morrendo de inveja,
embora amaldiçoando a minha felicidade. Mas, se pelo contrário!... não é possível. Se
pelo contrário, ai dele!
Tudo isto repetia o comendador a si mesmo, devorando a estrada que trilhava, cego
por uma frenética paixão.
Entretanto, o rico sítio de Santa Cruz oferecia aos jovens viajantes o mais belo
panorama que se pode imaginar. Era sobre uma colina, de onde se gozava a poética
perspectiva do campo, que a tinham colocado; a sua formosura era portanto natural,
porque os renques de coqueiros, que se alinhavam fazendo um semicírculo em frente da
casa do comendador e dos ranchos dos negros, a mão do tempo e o abandono do
proprietário tinham reduzido a um penoso estado de morbidez que causava dó.
Ainda as casas dos escravos, que outrora tinham sido de um aspecto agradável,
tapadas de barro e cobertas de telha, hoje mal representavam esse singelo asseio de
outras eras. Já arruinadas, desmoronavam-se aqui e ali, porque os desgraçados escravos
do comendador, espectros ambulantes, não dispunham de uma só hora no dia que
pudessem dedicar em benefício de suas moradas; à noite, trabalhavam ordinariamente,
até ao primeiro cantar do galo. Esfaimados, seminus, espancados cruelmente,
suspiravam pelas duas ou três horas desse sono fatigado que lhes concedia a dureza de
seu senhor.
Desgraçados! que até à hora das trevas e do repouso, à hora em que a brisa geme
apaixonada, como amante que anela o ardente hálito do seu adorador, em que a erva
escuta o segredo terno da viração, em que o cantor da espessura afaga o plumígero
[plumífero = coberto de plumas] habitante de seu ninho amoroso, um momento de
sossego e amor lhes é vedado!
Não há descanso para o seu corpo, nem tranquilidade para seu espirito, desvairado
pelo terror de tantos e tão contínuos sofrimentos!
Deveis saber que esse homem amaldiçoado comprou as numerosas dívidas que meu
senhor legou à órfã e à sua viúva, com o intuito tão somente de reduzi-la ao último
extremo de miséria, como a reduziu; porque seus diversos credores ter-se-iam
comovido, e talvez lhe facultassem os meios de ir pagando-os sem grande detrimento de
sua fortuna, aliás tão arruinada.
— Pois bem — prosseguiu Túlio com voz lacrimosa —, minha desgraçada mãe fez
parte daquilo que ele comprou aos credores, e talvez fosse ela mesma uma das coisas
que mais o interessava. Quando ela se viu obrigado a deixar-me, recomendou-me entre
soluços aos cuidados da velha Susana, aquela pobre africana que vistes em casa de
minha senhora e que é a única escrava que lhe resta hoje!
Minha mãe previa a sorte que a aguardava: abraçou-me sufocada em pranto e saiu
correndo como uma louca.
Ah! quão grande era a dor que a consumia! Porque era escrava, submeteu-se à lei,
que lhe impunham, e como um cordeiro abaixou a cabeça, humilde e resignada.
Bem pequeno era eu — continuou Túlio, após uma pausa entrecortada de soluços —,
mas chorei um pranto bem sentido por vê-la se partir de mim, e só comecei a consolar-
me quando mãe Susana, à noite, balançando-me na rede, disse-me:
— Não chores mais, meu filho, basta. Tua mãe volta amanhã, e te há de trazer muito
mel e um balaio cheio de frutas.
Enxuguei os olhos e dormi na doce esperança de revê-la; e à noite sonhei que a vira
carregada de frutas, como a boa velha me havia dito. Embalde a esperei no outro dia!
porém mãe Susana, que chorava enquanto eu cuidava dos meus brinquedos, sorria-se
quando me via e procurava fazer-me esquecer minha mãe e seus afagos.
Minhas forças eram ainda débeis para compreender toda a extensão da minha
desgraça, e por isso as saudades que me ficaram, pouco e pouco foram-se-me
adormecendo no peito.
Eu estava já crescido, mas nunca mais a havia visto: era-nos proibida qualquer
entrevista.
E o pobre desatou a chorar com desespero, porque era a recordação das desditas de
sua mãe!
Tancredo também tinha na alma uma chaga mal cicatrizada, e as dores do negro
encontraram eco em seu coração. Tancredo chorou também, e o silêncio da tarde
recolheu soluços que não podiam envergonhá-los.
Alguns momentos depois estavam à porta de casa onde haviam deixado Úrsula,
lacrimosa, porém cheia de lisonjeiras esperanças, e Luiza B..., suposto que ao
aproximar-se da morte, todavia feliz pela futura felicidade de sua filha. Mas essa porta
estava fechada: um sinistro pressentimento afetou o coração de ambos. Bateram; ao
abrir-se a porta, só Susana apareceu, que, vendo-os disse:
— Meu filho — soluçou a velha —, tudo para mim acabou! E a pobre menina lá foi
sozinha ao cemitério orar sobre a sepultura de sua mãe!
— Dize-nos o que aconteceu. Mas primeiro que tudo, onde está Úrsula?
— Saiu, meu senhor, haverá uma hora, e proibiu-me que a acompanhasse: disse-me
que ia orar sobre a sepultura de sua mãe, como já vos afirmei.
— Há tantas estradas para lá — disse Túlio — que é muito possível que não a
víssemos.
— E [a]demais — acrescentou Susana —, ela sofre tão cruelmente pela morte de sua
mãe, como pela perseguição de seu tio, que...
— Ah! senhor, creio que ela me disse que se não chegásseis agora, estava perdida,
porque o senhor Fernando P. abreviou os dias de sua mãe e jurou que há de ser o esposo
da pobre menina.
O CONVENTO DE ***
— Fujamos, Tancredo! Mas, ah! o seu ódio pode seguir-nos por toda a parte.
— Úrsula, o meu braço é bastante forte para defender-te; estás ao abrigo do seu
furor.
Tancredo olhou-a assustado e obedeceu. Úrsula estava combalida por muitas dores, e
a mais leve contradição [contestação] poderia enlouquecê-la. Ele procurou acalmá-la; e,
durante a viagem, /Úrsula,/ mais tranquila, relatou-lhe os tristes acontecimentos que
sobrevieram na sua ausência.
Tinham deixado a estrada real e tomado por um atalho, que muito lhes alongava o
caminho, mas que evitava o encontro do comendador.
E uma noite prateada pelos raios da Lua lhes amenizava a fadiga da viagem.
Meia légua fora da cidade, erguiam-se denegridas pelo tempo as velhas paredes de
antigo convento, com suas gelogias [gelosias = grades de janelas] também enfumaçadas
pelo tempo, e que escondiam zelosas às vistas indiscretas as puras virgens dedicadas ao
Senhor.
Era um edifício antigo na sua fundação, grave e melancólico no seu aspecto: era a
casa do Senhor sem ostentação. As virgens que o habitavam, longe do mundo, não
conheciam deste os gozos de um momento, mas também em suas almas não amargava o
doloroso pungir de profundos pesares. Viviam no remanso da paz, porque a solidão e o
retiro davam-lhe aquela doce inocência que constitui a candura da alma, e essa vida de
castos enlevos dedicavam-na ao Deus do Calvário.
E o Senhor ama àqueles que na pureza da sua alma erguem-lhe os carmes [versos
líricos] de um hino melodioso e abrem-lhe o coração como um sacrário [lugar para
objetos sagrados] sem mancha, ou, como a pecadora, mostram-se profundamente
arrependidos porque as lágrimas de um pranto sentido lavam a nódoa do pecado.
Chegaram a esse asilo da inocência os nossos viajantes e pararam, observando
atentos essas paredes solitárias do luxo humano, e depois Tancredo conduziu pela mão
sua jovem desposada à porta do convento, que se abriu ao seu reclamo [apelo]
Ela estava radiante de beleza e parecia disputar primores com a estrela da manhã.
Pretenderá em vão lutar contra a tua vontade, e nunca te poderá arrancar da alma a
sublime afeição que deste a outrem. Louco! A mulher só ama uma vez. No seu coração
imprimiu Deus um sentir tão puro e tão verdadeiro que o homem não pode duvidar dos
seus afetos.
E a mulher cumpre na terra sua missão de amor e de paz, e depois de tê-la cumprido
volta ao céu, porque ela passou no mundo à semelhança de um anjo consolador.
Esta é a mulher.
Mas aquela, cujas formas eram tão sedutoras, tão belas, aquela cujas aparências
mágicas e arrebatadoras escondiam um coração árido de afeições puras e
desinteressadas... Oh! essa não compreendeu para que veio habitar entre os homens,
porque a cobiça hedionda envenenou-lhe os nobres sentimentos do coração.
O brilho do ouro deslumbrou-a, e ela vendeu seu amor ao primeiro que o ofereceu.
Maldição!... infâmia sobre a mulher que não compreendeu a sua honrosa missão e
trocou por outro os sublimes afetos da sua alma.
XVI
O comendador, talvez mais por ostentação que por sentimentos religiosos, tinha em
sua casa um capelão, que era voz pública ser-lhe muito dedicado em consequência de
altos favores feitos pelos pais de Fernando à sua família. Fosse pelo que fosse, o capelão
de Fernando P. dizia-se amigo deste, e isso causava a todos admiração, porque o
comendador era um homem detestável e rancoroso, e o sacerdote parecia ser um santo
varão.
Por uma singular anomalia, estes dois homens pareciam querer-se ou suportar-se
reciprocamente, e essa união dava-lhes a reputação de íntimos amigos.
Fernando, homem estúpido e orgulhoso, não sabendo sequer exprimir seus próprios
pensamentos e não querendo contar a alguém que ele julgava inferior a si pela posição e
pelo nascimento — única tábua de salvação a que se apegava em seu naufragar contínuo
de completa ignorância —, tinha ido à cidade, suposto que ralado de mortais
desconfianças, arranjar os papéis da mais absoluta necessidade, ou para fazer-se
incontinenti esposo de Úrsula, no caso de ainda encontrar viva a mãe desta menina, ou
para, constituído por esta senhora tutor de sua filha, esta não poder escapar à sua
vigilância nem à sua paixão. Como ainda este erro seu era grosseiro!
Já o sol não dominava as regiões da terra quando Fernando P. apeou-se à porta de sua
habitação para dar ligeiramente algumas ordens. Vinha esbaforido e preocupado por um
pressentimento, que embalde tentava destruir.
— Talvez eu venha por demais tarde! — ao apear exclamou, sem intenção de fazê-
lo, porque era contra o seu orgulho, que não imaginava dificuldades.
Dois negros de cabeça baixa e humilhados, que lhe vieram pegar as rédeas, ouviram
em silêncio essa exclamação desesperada, e pela contração dos supercílios do
comendador tremeram involuntariamente.
Depois subiu para a varanda, e logo uma multidão de escravos se lhe veio
aproximando, mas ele, erguendo a voz imperiosa, perguntou:
— Onde está o padre F ...?
— Saiu ainda há pouco, meu senhor — animou-se a responder o menos tímido entre
os que ali estavam.
— Ignoro-o, meu senhor — tornou o mesmo escravo, com voz convulsa pelo medo
—, creio que o mesmo acontece aos mais [demais] parceiros. Tomou a sua mula
azeitonada, e a [há] pouco o vimos desaparecer pela estrada do cemitério.
— Eia, que fazem, animais! Outro cavalo imediatamente selado. E os meus dois
pajens, que me sigam.
Os míseros escravos gemeram de ódio e de dor, mas nem a mais leve exprobração
[recriminação], nem um sinal de justa indignação, se lhes pintou no rosto. Eram
escravos, estavam sujeitos aos caprichos de seu bárbaro senhor.
E a ordem era tão peremptória, que um outro cavalo apareceu como por encanto
arreado, e os dois pajens montados em suas cavalgaduras.
— Resignai-vos!
— Minha irmã?! minha pobre irmã?! — e soluçou magoado aquele coração de ferro.
— Morreu! filho — disse o padre comovido —, e Úrsula geme acurvada pela mais
pungente e aflitiva dor.
Então duas lágrimas rolaram dos olhos de Fernando, que se esqueceu de si, imerso
nesse sentimento único que esclarecia a sua vida, em todos os demais pontos tão negra.
Abandonou as rédeas, e o seu cavalo seguia os passos tardos da mula do digno
sacerdote.
E esse torpor doído durou muito, e ninguém ousava quebrar o silêncio que era
completo.
Então a corrida de rápida tornou-se vagarosa e pesada, e a lua passeava bem alta nos
campos do céu quando o comendador, ajudado pelos seus dois pajens, apeou-se à porta
dessa casa silenciosa, cuja fachada melancólica demonstrava os grandes pesares de que
o interior era testemunha atenta, posto que muda e impassível.
Fernando entrou e dirigiu-se à sala, e depois de ter-se atirado sobre uma cadeira e
investigado com um olhar melancólico aqueles lugares que lhe recordavam a única
afeição sincera que havia tido, chamou Suzana [Susana].
Esta, aflita e angustiada, com os braços cruzados sobre o peito e a cabeça inclinada
para o chão, acudiu ao seu chamado.
— Úrsula saiu só e foi até Santa Cruz sem a companhia de alguém? — interrogou o
comendador com sinistra incredulidade.
Levantou-se com ímpeto e, como um tigre que se arremessa à presa, ia cair sobre a
infeliz Susana quando o sacerdote, até então testemunha muda dessa cena, lhe disse:
— Prudência, filho! Por que vos encolerizais contra essa mísera velha? Mandai
primeiro que tudo /alguém/ à Santa Cruz, e talvez lá seja possível encontrá-la. Sua dor
era tão profunda que minhas consolações tornaram-se inúteis. Hoje ao amanhecer pediu-
me que queria ficar só por algumas horas, e voltei a Santa Cruz, onde gastei algum
tempo a esperar-vos; mas vendo que não chegáveis e lembrando-me do penoso estado
em que a tinha deixado, tomei a resolução de vir de novo trazer-lhe a palavra divina,
único bálsamo para as chagas do coração. Este seu desaparecimento, confrontado com a
desesperação em que estava, faz-me recear alguma desgraça.
Fernando P. não lhe ouviu esta exclamação de desespero, porque já havia montado e,
com seus dois pajens, corria afanoso e desesperado a estrada que conduz a Santa Cruz.
Os cavalos dispararam, fogosos e rápidos como o aquilão [vento do Norte], e sumiram-
se com velocidade incrível.
A noite era já adiantada, e o galo, que cantara na fazenda de Santa Cruz e que ele
ouvira ao longe, veio revelar-lhe que tinha soado a hora dos mistérios, a hora em que
aquele que medita em meio dos palmares ou sobre as ribas do mar, debaixo do nosso
opulento e magnífico céu estrelado, enche o coração de maga poesia e de um sentir
delicioso que vai como nuvem de incenso desfazer-se puro aos pés do trono do monarca
do universo. A hora alta e silenciosa da noite encerra mistérios tão profundos que só os
compreende a alma que verga ao peso de uma dor íntima e incurável, ou o coração que
transborda de afetos que a vida inteira não pôde resfriar.
Todavia, mais de um remorso lhe devia povoar a alma de terror à vista desse lugar
onde dormiam Paulo B..., Luiza e tantos outros, cujos dias ele tanto amargurara, e cuja
morte talvez pesasse sobre sua consciência!
Mas Fernando P... não era homem que parecesse ter remorsos: talvez o fogo de seu
amor sufocasse em sua alma todos os outros sentimentos que porventura aí existissem.
Nesta ocasião, a lua era perpendicular ao topo da cruz, e a noite derramava sobre ela
seu choro algente [gélido] e triste.
A cruz estava úmida e orvalhada, e o musgo, que por ela distendia os braços,
ostentava o brilhante esplendor de sua verdura, e a gota cristalina, que se filtrara do céu,
esmaltava-o com celeste encanto.
O silêncio era tétrico e melancólico, e uma só ave noturna não o interrompia. Parece
que toda a natureza o observava, estupefata.
O serão ainda não havia acabado: o débil bruxulear de uma luz esmorecida no meio
dessa vasta casa de trabalho indicava que aí ainda todos velavam, porque as tarefas não
estavam acabadas.
O feitor apareceu com prontidão. Era um homem de mediana estatura, tez pálida e
olhar melancólico. Ao entrar, fez uma respeitosa cortesia ao comendador, que não a
correspondeu, e disse:
— Quero imediatamente dois negros, que irão voando à casa que foi de Paulo B... —
Parou, e com as mãos pareceu afastar de diante dos olhos uma sombra desagradável;
mas foi um momento: recuperou sua feroz energia e continuou:
— Que me tragam sem detença [demora] Susana. Ouvis, senhor? Que a tragam de
rastos. Que a atem à cauda de um fogoso cavalo, e que o fustiguem sem piedade, e...
— Morta?... Não, poupem-lhe um resto de vida, quero que fale, e demais reservo-lhe
outro gênero de morte.
— Sim — tornou ele —, quero que dobre hoje o serão destes marotos. Ah! esta cáfila
de negros, só surrados e...
— Mas, senhor comendador — interrompeu o feitor com acento, apesar seu [contra a
sua vontade], repreensivo e indignado —, é já meia-noite, os desgraçados ainda
trabalham por acabar o serão, como pois é possível dobrar-se-lhes a tarefa?
— Oh! lá!... — bradou Fernando, e sorriu-se com horrível sarcasmo. — Que tal?
Quem manda nesta casa?
Saiu correndo a pegar o seu cavalo, mas à hora em que tão generosamente se dirigia
à casa de Luiza B..., um sacerdote montado em uma mula acompanhava a preta Susana,
conduzida por dois negros, e murmurava em voz ininteligível estas palavras do salmo
138: "Para onde me irei de vosso espírito? E para onde fugirei de vossa face?".
Susana não vinha atada à cauda de um cavalo: caminhava com a fronte erguida e
com a tranquilidade do que não teme, porque é justo.
— Foge Susana! — bradou-lhe da orla da estrada uma voz forte: ela pareceu nada
ouvir, e o padre continuou:
— "Se subira ao céu, vós lá estais; se descera aos infernos, ali vos encontraria".
— Foge, Susana!
— Louca! — tornou ele —, toma o meu cavalo e foge... Que importa àquela fera a
tua inocência? Acaso não conheces o comendador?
— O céu vos pague tão generoso empenho, mas os que estão inocentes não fogem.
E o sacerdote prosseguia:
— "Se tomasse as asas da alva e habitasse no cabo do mar, até ali vossa mão me
guiaria e vossa destra me sustentaria".
O ex-feitor deu então de rédeas ao seu cavalo, deixou passar aquela vítima resignada
de tão implacável cólera e, tocado pela sublime brandura daquela velha africana,
lamentou profundamente a sorte mesquinha e horrível que preparara o comendador, que
em sua insânia parecia despenhar-se irremessivelmente [irremissivelmente =
fatalmente] nos abismos do inferno.
Na casa do trabalho, muito mais frouxa lobrigava-se [divisava-se] ainda a escassa luz
de um lampião: os negros tinham recebido novas tarefas, empenhavam-se por acabá-las.
Desgraçados! Não eram eles que trabalhavam por acabá-las — era o novo feitor, que
com o azorrague em punho, ao som dos estalos os despertava. E já nem uma lágrima
lhes vinha aos olhos, nem um queixume nos lábios — eram mudos; estorciam-se
[contorciam-se] com a dor da chicotada, abriam os olhos, moviam-se maquinalmente
para continuarem o serviço e logo recaíam naquela penosa prostração que revela a
extrema fadiga de um corpo que descai já para o túmulo, cansado de lutar em vão contra
mil privações que o desgastaram e aniquilaram.
— Mandei informar-me, meu padre, do caminho que seguiu a minha louca fugitiva, e
em menos de dez minutos aguardo pela resposta. Os homens da minha guarda estão
prontos e partirão ao primeiro sinal; as nossas cavalgaduras esperam-nos no pátio.
Fernando P... pensara que o padre lhe ia lembrar seu crime, e impôs-lhe silêncio.
— Para onde foi Úrsula? — interrogou com voz que horrorizava. — Para onde foi
Úrsula? Fala ou prepara-te para morrer sob o azorrague.
— Não sei, meu senhor — respondeu humildemente a velha —, disse-me que vinha
orar ao cemitério.
— Não sabes dela?! Queres arrostar comigo [me afrontar]?... — e os olhos
desferiram chamas de raiva, que gelavam de terror.
— Pois bem! Confessareis à força de tormentos o que é feito dela e qual o nome do
seu sedutor.
Tancredo! Rápido foi o teu regresso, mas hás de arrepender-te, assim como tu, velha
louca e maldita!
Levem-na — disse, acenando para os dois negros que a tinham conduzido —, levem-
na, e que ela confesse o seu crime.
— Filho — objetou então o padre —, filho, em nome do que nos há de julgar, não
mandeis flagelar esta pobre velha: ela é inocente.
— Confessa a tua cumplicidade, diz-me para onde foi ela, ou apronta-te para morrer.
Susana havia dito a Tancredo que Úrsula lhe falara de um perigo iminente se ele,
Tancredo, retardasse mais o seu regresso, e que esse perigo criava-o comendador;
lembrava-se que o moço partira imediatamente para o lugar por ela indicado, e onde
devia estar Úrsula; persuadiu-se mesmo algumas vezes de que a moça, para escapar às
perseguições de seu tio, se houvesse submetido à proteção do mancebo e fugido, mas
tudo isso não era mais que suposição, e quando mesmo ela o soubesse com certeza,
estava longe de querer denunciá-la a um homem que tão funesto era para quantos o
conheciam.
Pediu a Deus que lhe pusesse um selo nos lábios e o valor do mártir no coração.
— Não sabes quem seja o seu sedutor? Não o viste sair em sua companhia?...
— A menina saiu só, eu a quis acompanhar porque ela estava louca de aflição, mas
disse-me: — Proíbo-te que venhas; deixa-me que vá rezar sobre a sepultura de minha
mãe, e...
Então um sorriso infernal lhe arregaçou o lábio superior, e seu rosto ficou hediondo.
Susana ouviu tudo isso com a cabeça baixa; depois ergueu-a, fitou os céus, onde a
aurora começava a pintar-se, como se intentasse dar à luz seu derradeiro adeus, e de
novo volvendo para o céu exclamou:
— Paciência!
— Não há tempo a perder — disse Fernando, e entrou no seu gabinete, onde deu
ordens, que para logo se cumpriram. Dois homens de hórridas fisionomias foram
introduzidos, e o que lhes disse o comendador, só Deus e eles o puderam ouvir.
Não se passou muito tempo, que não voltassem: eram ligeiros e vinham vestidos
como talvez lhes tivesse ordenado o homem a quem serviam.
O padre viu todo esse apresto execrando, e aguardava ansioso pelo seu hóspede.
Meu padre — continuou depois de alguma pausa —, essa menina era minha
desposada, jurei que havia ser seu esposo; pelo céu ou pelo inferno, sê-lo-ei ainda. Sim,
— prosseguiu, espumando de ira —, hei de ser seu esposo porque não a tornarei a ver
enquanto o sangue do seu raptor não tenha lavado, extinguido o ferrete [estigma] da
infâmia estampado em minha fronte.
Fernando P... escutou-o, mas em suas veias agitava-se o sangue, que lhe queimava o
coração. Rangia os dentes, e os lábios lívidos e trêmulos exprimiam a impaciência e o
furor, até que por último prorrompeu irado:
Sabes acaso o que é ser desdenhado pela mulher que amamos? Sabes o que é ser
iludido, aviltado por aquela a quem déramos a vida, a honra, a alma, se nos pedisse?
Então embalde suplicareis o meigo auxílio do sono, que vossos olhos pasmados e
fitos no medonho fantasma não se poderão serrar [cerrar].
Então ele erguerá a voz e exclamará em horrífico acento, que vos resfriará os
membros: — Maldição do Senhor sobre aquele que assassinou o homem que era seu
irmão!
— É o sedutor de Úrsula.
Sim, eu vi Úrsula. Era uma tarde, um jatobá antigo como os séculos prestava-lhe
doce sombra; no tronco dessa árvore gravava ela um nome, que me ocultou com o seu
corpo; mais tarde, no dia imediato, todos os dias à mesma hora [eu] ia ao lugar
indicado: ela jamais voltou a ele, mas seu nome e o nome de Tancredo entrelaçados aí
estavam gravados para advertir-me que se amavam.
Oh! maldita sejas tu, mulher infame, maldito o teu sedutor! De joelhos hás de pedir-
me compaixão para esse que preferiste a mim, mas não hás de achá-la!
— As... sas... si... no!! — estupefato disse o pobre sacerdote, e ficou estacado nesse
lugar, sem movimento, com os cabelos eriçados, os membros hirtos e os olhos parados,
como se um raio o houvesse fulminado.
XVII
TÚLIO
Úrsula estava assaltada de justos temores, ainda que menos penosos, porque julgava
o convento /um/ asilo seguro. Contudo, ela pensava em Susana e muitas vezes tremia
com a ideia de que seu tio intentasse persegui-la ou vingar nela a sua desaparição [o seu
sumiço], e resolveu-se a escrever a Tancredo, pedindo que a mandasse vir.
A Fernando, porém, tardava por demais a hora da vingança: vigiava de parte a sua
presa, seguia-lhe os passos e nutria de infernal esperança o coração ávido de sangue e
vingança.
E essa hora tão ardentemente desejada chegou enfim, e ele afagou-a com medonho
sorriso. Era um dia belo como a suprema felicidade, esse da vingança para um coração
que só se aprazia no ódio!
Tancredo, todo entregue às doçuras de um amor que lhe fazia esquecer as dores com
que uma outra mulher por tanto tempo lhe havia ulcerado o coração, nem uma ideia
vaga lhe perpassava pela mente da surda e atroz vingança que o comendador lhe
preparava.
Nesse pressuposto estava Tancredo, que, já esquecido mesmo dos tristes precedentes
da sua vida, porque acabava de ver Úrsula, esse anjo de paz que lhe sorria, chamou o
seu fiel Túlio para encarregá-lo de algumas ordens que só por ele seriam bem
desempenhadas. Mas Túlio não apareceu.
Vinha acompanhada das jovens religiosas, que já a amavam: no meio dessas virgens
consagradas ao Senhor, era como uma rosa entre açucenas. Trajava simples vestido de
seda preta, e mimosas pérolas ornavam-lhe o colo de neve, brandamente agitado pelo
voluptuoso arfar do peito. A fronte altiva e jaspeada engrinaldava-a uma capela de
odoríferas flores de laranja, e o véu de castidade flutuava-lhe sobre os ombros nus e
bem contornados, e encobria-lhe os negros e aveludados cabelos.
Assim era ela mais formosa que nunca, e Tancredo, vendo-a tão radiante de
mocidade e de amor, olvidou suas penosas inquietações para só rever-se nela, para
render-lhe um culto de apaixonada veneração.
E ele lhe sorriu com um sorriso que o transportou de felicidade, e esse sorriso
feiticeiro e angélico arrancou-lhe do fundo da alma o orgulho feminil ― era como a
lembrança de que seu amor apagara ainda mesmo as cinzas do de Adelaide.
O cântico das virgens, tão solene e tão santo, começou, e suas notas melodiosas
confundiram-se com os acentos ternos e acordes do órgão: os círios projetavam uma luz
vívida que se derramava em ondas por todo o santuário e iluminava esse quadro de
felicidade.
Pobre Túlio! Bem se havia ele esforçado por estar junto ao seu amigo, mas
como?..........................
Pelo cair da tarde, esse fiel negro passava descuidosamente [descuidadamente] por
uma esguia e tortuosa travessa, a essa hora completamente deserta, quando de repente
ante si viu dois homens de fisionomias sinistras, e que, engatilhando as pistolas e
pondo-as ao seu peito, disseram, acenando-lhe para a porta de um casebre insignificante
e velho que lhes ficava fronteiro:
O jovem negro olhou em cheio esses dois homens, que tão bruscamente o
acometiam, e conquanto não fosse medroso, estremeceu involuntariamente.
E esse mesmo homem tocou com as pontas dos dedos em uma porta lateral. Esta
abriu-se como por encanto, devassando um quarto quase tão úmido e escuro como o
lugar onde se achavam.
Já não havia a claridade do dia, e a luz de uma vela não a substituíra ainda.
Túlio recuou no limiar da porta, porque no meio desse quarto Fernando P... passeava.
Parecia nada ter visto nem ouvido do que se passava em torno de si, porque
continuou no seu passeio insano, malgrado o ranger sinistro dessa porta que gemeu nos
gonzos como o sibilar da serpente.
Cruzou o quarto ainda por muitas vezes; depois, estendendo a mão para os seus dois
sicários [assassinos de aluguel], acenou-lhes para a porta.
Esta ordem muda foi prontamente cumprida. Os sicários saíram — a porta tornou-se
a fechar.
Túlio conheceu que estava perdido, mas, recobrando toda a sua energia, como sucede
sempre ao homem nos lances apertados da existência, respondeu sem hesitar:
Como se fora um ferro em brasa, esse nome pareceu requeimar-lhe os lábios, que se
tingiram de uma cor lívida e tremeram convulsos.
E tu, vil escravo! pretendes iludir-me?! Sim, demais me tarda a hora da vingança! ...
Úrsula, encerrada no convento de ***, aguarda hoje pela cerimônia que vai uni-la para
sempre ao homem da sua escolha, ao homem por quem desprezou meu amor e até meu
ódio! Oh! juro-lhe pelo inferno que o sorriso de sonhadas delícias, que sorriem sobre a
minha desesperação, apagará de seus lábios minha justa e completa vingança. Tancredo!
hoje mesmo o anjo pálido da morte te dará o beijo de idolatrada esposa, e a terra úmida
do sepulcro cerrará sobre ti as brancas cortinas do leito nupcial.
— Senhor — exclamou Túlio, aceso em legitima cólera —, que ação tão vil pratiquei
eu algum dia que possa merecer-vos semelhante conceito?
— Covarde — bradou Túlio, esquecendo a pessoa com quem falava e quanto essa
palavra insultuosa o podia perder — matai-me muito embora, estou em vosso poder;
mas não me insulteis! Não, nunca espereis que proteja o assassino, mormente contra
aquele que me arrancou da escravidão!
Túlio, aliás, aguardava imóvel esse último esforço da desesperação; mas a Fernando
caíram os braços inertes, e por um segundo ficou absorto e contemplativo, como se ante
si estivera um espectro: depois tocou a campainha e esperou.
A DEDICAÇÃO
Antero era um escravo velho que guardava a casa, e cujo maior defeito era a afeição
que tinha a todas as bebidas alcoolizadas.
— Coitado! — dizia ele lá consigo — sua pobre mãe acabou sob os tratos de meu
senhor!... e ele, sabe Deus que sorte o aguarda! Pobre Túlio!...
E o prisioneiro, ora abatido, ora desesperado, entrou a soluçar e a desafogar por esse
modo as dores que lhe assoberbavam o peito. Depois ergueu-se e entrou a passear pela
estreita prisão, ora com passos rápidos e incertos, ora com andar frouxo e desalentado.
— Meu filho, não achas que a noite assim vai tão lenta e fastidiosa?
Túlio não respondeu. Pensava então que Tancredo partira já a receber sua noiva, e
que apenas saísse da cidade estaria a braços com os seus assassinos.
O velho esteve por algum tempo recolhido em si mesmo, depois levantou-se, pegou
de uma cuia e tratou de lançar-lhe dentro o que quer que era que estava em uma cabaça.
Mas esta estava completamente vazia. Antero arremessou-a para longe de si com certo
ar de desprezo, suspirou e depois disse:
— Que mau vício em verdade, pai Antero... sempre a fumar e a beber. Não vos
envergonhais de semelhante procedimento? Que conceito fará de vós o senhor
comendador?!
— Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terra há um dia em cada semana que
se dedica à festa do fetiche [ritual africano], e nesse dia, como não se trabalha, a gente
diverte-se, brinca e bebe. Oh! lá então é vinho de palmeira, mil vezes melhor que
cachaça, e ainda que tiquira [aguardente de mandioca].
— Então, pai Antero, gostais assim tão loucamente de matar esse imortal bicho?
— Pois bem — tornou o jovem negro, metendo-lhe nas mãos tanto dinheiro quanto
era bastante para Antero embriagar-se dez vezes pelo menos —, tomai e ide saciar à
farta essa maldita sede.
Então Túlio olhou em redor de si para assegurar-se da situação e dos meios de fuga, e
viu nesse quarto horrível troncos, correntes, cepos, anjinhos, que se cruzavam. Aí,
quantos desgraçados não tinham no meio das torturas amaldiçoado como Jó o dia do seu
nascimento?!... Quantas lágrimas não teriam regado aqueles instrumentos de
suplício?!..............................................................................
— Ah! se eu sempre tivesse destes bons prisioneiros!... — exclamou contente e
batendo as palmas o bom Antero, que voltava já bastante alegre, e que, não satisfeito
com a dose que engolira, de novo beijava ternamente sua querida cabaça, agora cheia da
bebida de sua predileção.
— Deus lhe pague, meu filho, e te dê uma boa sorte. — E daí arremessava-se à sua
amante, e já os beijos eram tão repetidos que pareciam um só e contínuo.
Dez horas ecoaram aos seus ouvidos. Túlio estava sobre espinhos.
— Dez horas — murmurou —, que silêncio! Parece-me, pai Antero, que o mundo
inteiro dorme: pelo menos nesta casa aposto que só nós estamos acordados.
— Deserta! — perguntou Túlio, tremendo em face de uma coisa que ele adivinhara
já. — E então [aonde] onde foi o comendador?
— Pelo quintal.
Não pôde mais falar e caiu em profundo sono, entrecortado só por uma respiração
forte e estrepitosa. Então Túlio arrastou-o pelas pernas e o foi levando até um tronco,
que se unia à parede, e lá, depois de tê-lo bem seguro, tirou-lhe da algibeira a chave da
prisão e saiu.
Estava esbaforido, e mal entrou, sabendo que Tancredo há muito que saíra
acompanhado das testemunhas, partiu sem respirar pela estrada que levava ao convento.
— Meu Deus! — dizia ele consigo — seria ainda tempo? Poupai-o, Senhor: livrai-o
de seus inimigos.
Já lhe faltava o fôlego, as pernas se lhe afracavam de cansaço, e ele corria sempre
veloz como o fuzilar de um relâmpago, como o servo que o caçador persegue.
No meio da sua carreira avistou um homem montado em uma mula, que caminhava a
passos lentos.
— E os noivos, senhor?
Túlio deixou o padre e de novo começou a correr, e não tardou muito em descobrir as
negras paredes do templo, onde uma lua minguante projetava tíbia claridade.
E Túlio avistou um coche, cujos cavalos, mordendo o freio, iam já partir para a
cidade.
Depois ouviu pronunciar-se um adeus, logo depois outro, e o coche partiu a trote
largo. Outro coche, porém, estava ainda postado à porta da igreja.
Na sua carreira, pressentiu um vago rumor à beira da estrada e um vulto negro que se
escondeu atrás de uma árvore copada. Uma tal aparição veio dar-lhe novas forças, e a
suspeita fê-lo ativar a sua carreira.
— São eles! — disse a si mesmo, e no ardor da sua dedicação gritou, com voz que
repercutiu na solidão.
— Cilada, senhor... querem assassi...
— Jesus! Eu mor...ro!
Então Tancredo e sua jovem esposa, que acabavam de entrar no coche, tremeram de
dor e de surpresa. Reconheceram que a voz era a de Túlio, que lhes advertia na íntima
desesperação da sua alma.
— É ele, o meu fiel Túlio! Monstros! Por que o assassinaram?! — E deu um passo
para ir socorrê-lo, mas Úrsula puxou-o pelo braço, dizendo-lhe:
— Úrsula tinha razão! — disse ele consigo. — Eu é que me perco sem poder salvá-
la!...
E Fernando P... furioso e com ímpeto, subiu ao coche e apareceu às suas vítimas,
sinistro e ameaçador como o anjo deve-o ser no dia supremo do julgamento.
— Poupai-o, senhor. Ah! pelo céu, poupai-o! — exclamou Úrsula, aflita e pálida,
caindo aos pés desse homem desapiedado.
E por um esforço sublime, que só a mulher — ente feito para a dedicação e o amor
— pode conceber, disse-lhe, apresentando-lhe o peito:
— Ofendi-vos, senhor, vingai-vos: eis-me, não me poupeis: mas ele? oh! não o
assassineis! oh! não tens culpa de que o ame mais que a vida...
E caiu prostrada aos pés de Fernando, que, semelhante à hiena que meneia a cauda e
lambe os beiços porque a presa não lhe escapará, olhava-a sorrindo de ferocidade.
Estava agora face a face com Tancredo, que, desarmado, só podia esperar a morte
fria e cruel que lhe preparava seu implacável inimigo.
E essa beleza adormecida e pálida como o lírio do vale parecia sorrir-lhe com celeste
meiguice, e o jovem esposo, transportado de amor e de aflição, imprimiu nesses lábios
de voluptuosa perfeição um beijo ardente com que parecia ir-lhe a vida — era o seu
último adeus.
Ao contato desses lábios, ela abriu os grandes olhos alquebrados pela dor e, com um
olhar que exprimia a mais singular e indefinível ternura, pareceu dizer-lhe:
— Amo-te!
Depois, esses dois astros de amor, que guiavam ainda no perigo ou nas trevas da
desesperação ao infeliz mancebo, recaíram em seu lânguido torpor.
Esse beijo foi a expressão profunda de tão sublime amor: foi o primeiro, o casto e
puro ósculo de amor, que o comendador jurou ser o derradeiro.
Fernando P..., essa menina, que jaz desfalecida, ama-me muito para poder esquecer-
me, e odeia-te demais para poder perdoar-te. O teu amor será a punição do teu crime.
Entretanto, Fernando, vitorioso e triunfante, uivava de feroz alegria, e vociferou,
rangendo os dentes:
— Mentes! mentes! Olha-a pela derradeira vez; não é ela formosa como um anjo?
Não é assim? Amei-a também, amei-a, rendi-lhe um culto de louca adoração, e agora é
minha. Amaste-a, Tancredo? Amou-te ela? oh! há de amar-me também, quando tuas
cinzas já frias no sepulcro não lhe recordarem tua passada ternura.
Então a donzela despertou de seu dorido letargo, abriu os olhos e, num excesso de
amor apaixonado e de uma dor íntima, lançou-se sobre seu desditoso esposo e, unindo-o
ao coração, recebeu-lhe o derradeiro respiro.
O DESPERTAR
O amor que se nutre no coração do homem generoso é puro e nobre, leal e santo,
profundo e imenso, e capaz de quanta virtude o mundo pode conhecer, de quanta
dedicação se possa conceber. Ele o eleva acima de si próprio, e as suas ações são o
perfume embriagador desse sentimento que o anima: mas o amor no peito do homem
feroz e concupicente [concupiscente = libidinoso] é uma paixão funesta que conduz ao
crime, que lhe mata a alma e a despenha [precipita] no inferno.
Tal era o amor que abrasava a alma indômita e malvada de Fernando P... O amor
perdera-o. Ele já não sonhava com a vingança, mas começava a sentir alguma coisa que
lhe rasgava o coração. Seriam os espinhos do remorso?
Fernando até ali sopitara [amortecera] esse castigo do céu, e nunca seu sono fora
atribulado. Entretanto, agora cada sombra era um espectro pavoroso e ameaçador, que
lhe erguia os braços descarnados e acenava-lhe para as feridas gotejantes: e ele fechava
os olhos e via-o ainda, e sempre, por toda a parte.
Então corria espavorido e louco, como se pretendesse fugir a si mesmo para escapar
a tão pungente martírio, mas embalde, porque a sombra de sua vítima o seguia
impassível.
Úrsula tinha os olhos cerrados; dormia o sono agitado do febricitante [doente febril].
As horas, que se escoavam já tão longas, os desvelos de que a cercavam, nem a dor, que
lhe despedaçava a alma, tinham-na arrancado a esse doloroso torpor.
Então Fernando P... ajoelhou ante esse anjo, olhou-a extasiado, sem atrever-se a tocá-
la ou chamá-la pelo seu nome. Temeu despertá-la.
Nessa atitude passou ele muitas horas, sem que Úrsula voltasse a si. Um assomo de
cólera concentrada enuviou [ensombreceu] a fronte pálida desse homem feroz, e /ele/
prorrompeu blasfemando:
Mas o fantasma aí veio persegui-lo; ele fechou os olhos, depois abriu-os para fitá-los
sobre a donzela adormecida, e estremeceu.
A presença dessa menina era um remorso vivo para o seu coração; seus olhos
cerrados, seus lábios entreabertos, sua respiração curta e anelante, pareciam repetir-lhe:
— Assassino!
O comendador tentou espancar do espírito essa ideia, que lhe voltava incessante, e
ele caiu em dolorosa prostração, que excitaria dó em quem não soubesse os seus
nefandos [execráveis] crimes.
— Úrsula!
Ao som dessa voz, que lhe despertava tão agudas dores, a moça debateu-se no leito,
e, convulsa, pálida e angustiada, levantou-se com impetuosidade. Abriu os olhos e
dilatou-os sobre Fernando P..., sempre ajoelhado a seus pés, e soltou um grito que o fez
estremecer de angústia.
Depois levou ambas as mãos aos olhos, e um soluçar doído e magoado parecia
despedaçar-lhe o aflito peito.
Então esse homem endurecido e cruel vergou ao peso de tão enorme remorso...
Fernando P..., pela vez primeira, compreendeu o que era a dor no coração de outrem!
Gemeu de aflitiva angústia ante o supremo sofrimento da mulher que amava, e invocou-
a com ternura.
— Úrsula! Oh! quanto te hei amado! Puderas tu compreender a extensão dos meus
afetos, e eu não sentira agora envenenarem-me a alma a desesperação e o remorso.
Desdenhaste o amor do meu coração... Por quê? não era ele puro como a tua alma?
Desde o dia fatal em que te vi na mata esqueci o meu orgulho, e uma ardente e
inextinguível paixão me abrasou a alma. Nesse dia, eu jurei pelo céu ou pelo inferno
que serias minha esposa. Perdoa, Úrsula! nesse dia, ainda eu era orgulhoso. Hoje peço-
te suplicante: negar-me-hás?
Úrsula, em nome do céu, uma só palavra, ainda que essa seja para amaldiçoar-me!...
E, dizendo [isso], [ar]rojava-se pelo chão e beijava-lhe a fímbria [orla inferior] de seu
vestido.
Tão doída foi-lhe essa triste convicção que a cabeça pendeu-lhe para a terra, e ficou
prostrado come se um raio o tivesse ferido. E as esperanças tão queridas do seu coração
mirraram-se e extinguiram-se!...
Passou algum tempo nessa posição, e depois esse homem robusto, altivo, feroz e
colérico chorou como débil criança.
Mas seu desespero, seu pranto de amargura, não os compreendia Úrsula, que
distraída brincava com as flores já murchas de sua capela [grinalda] de noiva.
Na sua desesperação ninguém o consolava, porque era mau e cruel para os que o
conheciam.
A LOUCA
Sentado em um banco do seu jardim, o comendador. Fernando P... não via nem
curava de toda essa beleza arrebatadora que inebria os sentidos e eleva a alma até Deus.
A essa hora mágica em que a flor singela e sedutora escuta enlevada o suspiroso
segredo da brisa, que a festeja; em que o colibri, furtando-lhe um mimoso e feiticeiro
beijo, adeja e sussurra-lhe em volta; em que lá no bosque o vento suspira harmonioso, e
os cantores das selvas soltam seu trinar melodioso e terno; em que o mar na praia é
pacifico e manso, e perde a altivez com que bramia; em que a virgem, entregue a um
vago, indefinível e mágico cismar, recende mais casto, mais enlevador perfume, como o
aroma de uma flor celeste; a essa hora mesma Fernando P..., aguilhoado pelos remorsos,
só via horrorosos fantasmas, que o cercavam.
Faltava-lhe forças para ver Úrsula; as noites e os dias inteiros passava-os aí, ora
correndo louco por baixo dessas copadas e seculares árvores, ora [ar]rojando-se por
terra, arrancando os cabelos e blasfemando horrivelmente de Deus e dos homens.
Aí, a essa hora maluca do crepúsculo, estava ele, como do costume, só, e todo
entregue a seus pungentes sofrimentos, quando a branda mas repreensiva voz de um
homem o sobressaltou.
Em uma rede velha levavam dois pretos um cadáver envolto em grosseira e exígua
mortalha; iam-no sepultar!
Então Fernando P... estremeceu, porque aos ouvidos ecoou-lhe uma voz trêmula e
horrível que o gelou de medo. Era o remorso pungente e agudo, que sem tréguas nem
pausa acicalava [acicatava = esporeava] o seu coração, fébera por fébera [fibra por
fibra].
Homem! Por que a encerrastes nessa escura e úmida prisão, e aí a deixastes entregue
aos vermes, à fome e ao desespero?!!
Nos derradeiros instantes da sua vida, eu, o indigno ministro do Senhor, estava ao
seu lado, e os seus últimos queixumes como que ainda os escuto!
Sorria-se à borda da sepultura, porque tinha a consciência de que era inocente e bem-
aventurada do céu. A morte era-lhe suave, porque quebrava-lhe o martírio e as cadeias
da masmorra infecta e horrenda.
E sabeis vós o que é a vida na prisão? oh! é um tormento amargo, que mata o corpo,
embrutece o espírito! É morrer mil vezes sem encontrar nunca a paz da sepultura! É um
sono doloroso e triste do qual o infeliz só vai despertar na eternidade!
Orgulhoso e vingativo que sois! E não sentistes que Deus observa os malvados e que
os pune ainda na terra.
Fernando P...! Deus vela sobre as ações do homem e o condena pela vaidade estúpida
do seu orgulho. Úrsula! O que é feito dela?!
Fernando! chorai o pranto do arrependimento: sede caritativo e sincero, que são vias
para a remissão de vossos enormes pecados. Ainda é tempo. Escutai por esta boca
impura a voz do Senhor, que na sua extrema bondade talvez vos perdoe.
Indenizai os vossos escravos do mal que lhes heis feito, dando-lhes a liberdade. Esse
ato de abnegação e de caridade cristãs agradará a Deus, e então talvez na sua
misericórdia infinita ele abra para vós os tesouros da sua inefável graça.
— Levai-me onde está ela... a [há] tanto tempo que não a vejo!
Úrsula sorria, afagando invisível sombra, mas esse sorriso era débil e vaporoso —
era o derradeiro esforço de uma alma que estava prestes a quebrar as prisões do corpo.
E ela, como se a ninguém visse, murmurava em voz baixa, e depois tornava a sorrir-
se.
— Vem — disse com voz débil, mas repassada de ternura — tanto tempo há que te
procuro embalde.
Espera... agora me recordo. Túlio disse-me que muito longe te levava não sei que
negócio urgente!... E eu sentia a dor da separação, porque era já longa e triste.
E depois, tirando dos cabelos uma florzinha seca, última que lhe restava da capela,
beijou-a e sorriu-se com ternura.
Não as vês, Tancredo? são as flores do meu noivado! São tão lindas... amo-as!...
E apertou-a no coração.
Depois soltou um profundo suspiro e, erguendo as mãos súplices para o sacerdote,
em quem só então reparara, exclamou com voz que revelava a mais aflitiva angústia:
— Por compaixão! Oh! não o mateis! Que horror!... Oh! matai-me antes! O monstro
ri-se com prazer... e sem piedade! Ah! Maldição!... maldição sobre ele!
Seus olhos brilharam ainda uma derradeira vez com um fulgir vívido, depois
cerraram-se.
Era como a luz que, no seu último viver, antes de extinguir-se para sempre, avulta e
cresce por clarões vagos e interrompidos.
— Deus meu! Por que assassinou ele a Tancredo? Oh! era noite... Bem o vi, seus
olhos eram os de um tigre!
Muito, muito sangue derramou ele, e esse sangue caiu-me todo aqui no coração.
Sinto uma aflição, que me mata! Ai que dor!!... — E com a mão sobre o coração se
pôs a soluçar com tanta dor, que partiria o coração ainda o mais embrutecido.
O sacerdote acenou então para o comendador, que estava imóvel e pálido: este
entrou.
Ambos caíram prostrados aos pés da infeliz louca, que entregava a alma ao Criador.
O padre não deu fé desse acidente e continuou a orar fervorosamente. E a oração dos
seus lábios subia ao céu como nuvem de incenso, que por muito tempo ondula em torno
do altar e sobe até Deus.
E ela, nesse transe supremo, cruzou as mãos sobre o peito, apertando nesse estreito
abraço a florzinha seca de sua capela, e murmurou — Tancredo! —, e com os lábios
entreabertos, e onde adejava um sorriso divinal, e como um anjo deu o último suspiro.
EPÍLOGO
Dois anos eram já passados sobre os tristes acontecimentos que narramos, e ninguém
mais na província se lembrava dos execrandos fatos do convento de *** e da horrenda
morte de Tancredo. A Justiça, se a pintam vendada, completamente cega ficou, e os
assassinatos do apaixonado mancebo e do seu fiel Túlio, impunes.
Só um homem conhecia o assassino, mas esse homem era incapaz de uma denúncia
— esse homem só curava da alma, e a sua missão era toda de paz. A Deus, pois,
pertencia o castigo do culpado.
No convento dos carmelitas, havia dois anos entrara um homem, que pedira o hábito
e logo depois começara o seu noviciado.
Esse homem era um velho, com a fronte e o rosto sulcados de rugas, a pele macilenta
e o corpo vergado e encarquilhado como do convalescente de moléstia atroz, debilitante
e prolongada.
Quem era ele, ninguém o sabia no convento. Chamava-se ― frei Luiz de Santa
Úrsula.
Afirmavam alguns leigos que esse velho era um louco porque, às vezes, rompendo
fervorosa oração, possuía-se de frenesi, os olhos chamejavam-lhe, rangia os dentes e
caía por terra em delíquio [desmaiado].
— Úrsula!
..........................................................
A noite ia já alta. Era uma destas noites invernosas em que o céu se tolda de nimbos
espessos e negros. Nem uma estrela se pintava no céu, nem a Via Láctea esclarecia
[iluminava] um ponto sequer do firmamento. Era tudo trevas. O vento zunia com
estampido, e a chuva caía em torrentes com fragor imenso, como sói [costuma]
acontecer nas regiões equatoriais.
Então o sino, lugubremente tangido, anunciou aos carmelitas que um dos seus tocava
as portas da eternidade. E logo no convento agitou-se um longo e lúgubre murmúrio.
O irmão que gemia a derradeira dor era o noviço frei Luiz de Santa Úrsula, a quem
chamavam ― o louco.
— Não — tornou o moribundo. — Sabeis vós o que vai por esta alma, de torturas e
ódio? Oh! tenho o inferno no coração.
Frei Luiz de Santa Úrsula, ou antes o comendador Fernando P..., volveu os olhos já
baços pela morte e, olhando para o Crucificado e depois para o padre, disse:
— Amei-a, padre, amei-a mais que ao Filho de Deus, mais do que a salvação da
alma, e por amor dela despenhei-me no inferno!... — E as lágrimas começaram a cair-
lhe pelas áridas faces.
— Esse homem fora preferido, fora o eleito do seu coração. Ela, ainda após a sua
morte dele, dedicou-lhe o mesmo amor.
Meu padre — continuou — eu a vi no sepulcro, e não sei como não morri então!
— Porque, meu filho, ela está no céu, e vós, homem criminoso e impenitente, vos
despenhais no inferno.
Houve então uma longa pausa. Faltavam as forças ao moribundo, cujo peito ansiava
como combatido [combalido] por uma luta terrível e renhida.
Lágrimas de sincera dor verteram seus olhos, que para sempre se cerraram, e a morte
imprimiu-lhe no rosto a tranquilidade da contrição.
Nesse dia chorava Adelaide suas primeiras lágrimas de dor, porque a opulência e o
fausto não bastavam para estancá-las.
Seu primeiro esposo era já morto, envenenado por acerbos desgostos. Ela ludibriara
o decrépito velho que a roubara ao filho, e ele, em seus momentos de ciúme impotente,
amaldiçoava a hora em que a amara.
Ela depois também chorou, e chorou muito, porque as dores que o céu lhe enviou
foram bem graves. Casou /uma/ segunda vez, e o novo esposo, que não amava a sua
deslumbrante beleza, a arrastou de aflição em aflição até o desespero.
E o remorso, que lhe pungia na alma, aumentava a grandeza das suas mágoas porque
a imagem daquela mulher que tanto a amara, e cujos dias ela torturou sem piedade até
despenhá-la no sepulcro, se lhe erguia melancólica na hora do repouso e a amaldiçoava.
E depois, eram já tão amargos os seus dias, que buscou afanosa a morada do
descanso e da tranquilidade.
De todas estas vítimas do amor, apenas restam vestígios sobre a terra da desditosa
Úrsula.
No convento de ***, junto ao altar da Senhora das Dores, encontra-se uma lápide
rasa e singela com estas palavras — ORAI PELA INFELIZ ÚRSULA.
FIM