CARVALHO, Paulo de Barros AQUINO, Sérgio Serafim - A NATUREZA DA HIERARQUIA ENTRE LEI COMPLEMENTAR E LEI ORDINÁRIA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA (2019)
CARVALHO, Paulo de Barros AQUINO, Sérgio Serafim - A NATUREZA DA HIERARQUIA ENTRE LEI COMPLEMENTAR E LEI ORDINÁRIA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA (2019)
Como citar este artigo / How to cite this article (informe a data atual de acesso / inform the current date of access):
CARVALHO, Paulo de Barros; AQUINO, Sérgio Serafim. A natureza da hierarquia entre lei complementar e lei ordinária
em matéria tributária. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 65, n. 1, p. 81-99, jan./abr. 2020.
ISSN 2236-7284. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/67676>. Acesso em: 30 abr. 2020. DOI:
http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v65i1.67676.
RESUMO
A lei complementar ostenta uma posição de destaque em matéria tributária, particularmente em
função do papel a ela atribuído pela Constituição da República em seus artigos 59, parágrafo único,
e 146, III. Em razão disso, desde que a lei complementar ingressou no ordenamento jurídico pátrio,
doutrina e jurisprudência têm se debruçado sobre esse tipo normativo procurando estabelecer a sua
relação com os demais diplomas legais, em especial com a lei ordinária. Com fundamento nas mais
diversas premissas, ora as teses apontam para a existência de hierarquia entre lei complementar e lei
ordinária, ora para a inexistência de hierarquia, argumentando-se que tudo não passaria de uma
questão de reserva material definida na própria Constituição da República. Ao longo desta pesquisa
foram exploradas correntes doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do assunto, com especial atenção
aos seus fundamentos. Ao final da pesquisa, concluiu-se que, embora existente em determinadas
situações, a hierarquia entre lei complementar e lei ordinária em matéria tributária não tem como
pressuposto a espécie normativa em si, mas o seu conteúdo.
PALAVRAS-CHAVE
Lei Complementar. Lei Ordinária. Hierarquia. Reserva Material. Normas Gerais.
ABSTRACT
Supplementary laws hold a key position in tax matters, particularly due to the role they were assigned
by the Brazilian Constitution under Article 59, sole paragraph, and Article 146, III. As a result, ever
since supplementary laws were introduced in the Brazilian legal system, legal scholars and the Courts
have been addressing the novel normative type in order to establish its relationship to other types of
legislation, with ordinary laws in particular. Based on various arguments, some opinions point to the
existence of a hierarchical relationship between supplementary laws and ordinary laws, and other
opinions argue there is no hierarchy between them and it is a question of material reserve enshrined
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in the Federal Constitution. Throughout this study scholarly reasoning and case law were examined,
with a focus on their grounds. Finally, this study concludes that although a hierarchical relationship
exists in certain situations, the hierarchy between supplementary laws and ordinary laws in tax matters
is not based on the type of norm per se, but rather on their content.
KEYWORDS
Supplementary Law. Ordinary Law. Hierarchy. Material Reserve. General Norms.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como propósito trazer a lume uma contribuição à discussão
envolvendo a temática da relação hierárquica entre lei complementar e lei ordinária em matéria
tributária enquanto veículos introdutores de normas no sistema jurídico. Adverte-se que o tema já foi
objeto de exame por estudiosos do direito tributário nacional, o que, se por um lado minimiza os
esforços investigativos do pesquisador, por outro o submete a uma profusão de argumentos nem
sempre convergentes.
Em consonância com o delineado no artigo inaugural da Carta Magna, a República
Federativa do Brasil comporta ordens jurídicas parciais que regulam as relações interpessoais
ocorridas no âmbito de suas pessoas políticas União, estados, Distrito Federal e municípios,
guardando entre si apenas vínculos de coordenação, afastadas quaisquer aspirações de ordem
hierárquica. No que interessa a este trabalho, destaca-se, de início, a lei nacional, expressão dos
estados federais, que alcança indistintamente todas as pessoas políticas, tendo como objeto
determinadas matérias delineadas na Constituição da República. Neste particular, em trabalho
primoroso, Geraldo Ataliba (1969, p. 49) alerta para a distinção necessária entre lei federal e lei
nacional, a primeira dirigida à União e a segunda dirigida aos entes federativos, guardando como
traço comum sua origem no legislativo federal.
A peculiar vocação das leis nacionais para a veiculação de normas gerais na esfera da
competência concorrente, nos termos do artigo 24, § 1º, da Constituição da República, tem o condão
de alçá-las a uma posição proeminente nos quadrantes deste trabalho. Saliente-se que, na abalizada
lição de José Souto Maior Borges (1975, p. 71-72), as leis nacionais podem assumir a forma de lei
complementar ou lei ordinária, sempre em conformidade com o disposto na Lei Maior:
Assim sendo, tanto a lei complementar, quanto a lei ordinária da União podem revestir-se ou
não do caráter de leis nacionais, em função dos respectivos conteúdos e âmbitos pessoais de
validade, sendo de rechaçar-se a opinião dos que sustentam indiscriminadamente ser a lei
complementar uma lei essencialmente nacional.
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Nada obstante, nos termos do artigo 146, III, da Constituição da República, coube à lei
complementar a função de estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. A partir
desse comando constitucional, desvela-se uma série de questões que vêm sendo tratadas pela doutrina
e jurisprudência, nem sempre de modo convergente, compreendendo as relações observadas entre lei
complementar e lei ordinária em matéria tributária, especialmente no que se refere à existência de
hierarquia entre elas. As premissas adotadas pelos que se debruçaram sobre a matéria foram
investigadas na busca de soluções possíveis para as questões postas à discussão. Coube, ainda, à lei
complementar, nos termos do artigo 59, parágrafo único, da Constituição da República, o papel de
dispor sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.
Os caminhos trilhados pelo Judiciário, inspirado pelo debate de ideias no âmbito doutrinário,
acabam por interferir no modo de produção e controle dessas espécies normativas, repercutindo no
planejamento tributário dos agentes econômicos. Diante desse quadro, tornam-se extremamente
oportunas as investigações ora propostas.
A hipótese que se pretende investigar aponta em direção à existência de uma superioridade
hierárquica apenas reflexa entre lei complementar e lei ordinária em matéria tributária, pois se
constata que o fundamento dessa relação normativa está associado ao conteúdo da lei complementar
e não à sua forma, como pode parecer em uma análise preliminar.
Foi na Constituição de 1967 que, de modo vestibular, se atribuiu à lei complementar o papel
de veículo introdutor das normas gerais de direito tributário, inovação mantida pela Emenda
Constitucional nº 1 de 1969. Nesse sentido, Geraldo Ataliba (1969, p. 58):
Entre as inovações trazidas pela Carta de 1967 e mantidas pela Emenda Constitucional n.1 é
importante a disposição do § 1º do art. 18, que dispõe que “lei complementar estabelecerá
normas gerais de Direito Tributário, disporá sôbre os conflitos de competência nessa matéria
entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e regulará as limitações
constitucionais do poder de tributar”.
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A única limitação, que ele próprio enxergava, era a de se tratar de preceitos comuns aos três
legisladores. Afora isto, ele não via e não achava necessário delimitar, de outra maneira, a
competência que queria fosse atribuída ao Legislativo da União, que já então ele concebia,
neste setor e em outros paralelos, não como federal, mas sim nacional. Entretanto, ele
encontrou resistência política, de se esperar e muito forte, em nome da autonomia dos Estados
e da autonomia dos Municípios, em nome de temores, justificados ou não, de se abrir uma
porta, pela qual se introduzisse o fantasma da centralização legislativa. Falou-se nada menos
do que a própria destruição do regime federativo, todos os exageros verbais, que o calor do
debate político comporta e o próprio Aliomar encontrou uma solução de compromisso, que
foi a de delimitar-se essa competência, que ele queria ampla, pelas normas gerais, expressão
que, perguntado por mim quanto ao sentido que ele lhe dava, no intuito de ter uma forma de
interpretação autêntica, ele me confessou que não tinha nenhuma, que nada mais fora do que
um compromisso político, que lhe havia ocorrido e que tinha dado certo.
As leis complementares e ordinárias guardam identidade com relação à iniciativa para sua
edição, conforme previsto no caput do artigo 61 da Constituição da República. Com relação à sua
aprovação pelo parlamento, as leis complementares destacam-se por sua forma mais rigorosa no
tocante ao quórum. Enquanto as leis ordinárias são aprovadas pela maioria de votos das casas
legislativas, nos termos do artigo 47 da Constituição da República, as leis complementares reclamam
maioria absoluta, conforme o artigo 69. A maior rigidez na aprovação das leis complementares
associada à reserva material estabelecida na Lei Maior evoca a opção feita pelo legislador constituinte
em salvaguardar essas matérias contra maiorias fugazes no Congresso Nacional. Essas matérias
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reservadas à lei complementar escapam, ainda, de sua veiculação por meio de medidas provisórias e
leis delegadas, à luz da previsão constitucional dos artigos 62, § 1º, III, e 68, § 1º, respectivamente.
Além dos já mencionados comandos normativos inseridos nos artigos 146, III, e 59,
parágrafo único, ao longo da Constituição da República é possível encontrar outras indicações de
matérias reservadas à lei complementar, de modo expresso ou implícito nas dobras da interpretação
dos comandos constitucionais. Às leis ordinárias restam residualmente as demais matérias. Consigne-
se que a constatação da existência de uma reserva material relacionada à lei complementar na
Constituição da República não sinaliza per se em direção ao amesquinhamento da autonomia
parlamentar, vedando-se a veiculação de outras matérias por essa espécie legislativa. De outra parte,
também não se pode afirmar que se trata de um núcleo não exaustivo de matérias a ser veiculado por
lei complementar, podendo esse rol ser ampliado ao talante do legislador. Entretanto, dado o objeto
das presentes investigações, considerações de tal espécie serão apenas tangenciadas naquilo que
forem relevantes ao desenvolvimento deste trabalho.
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en alguna medida”, conforme avaliam Guibourg, Ghigliani e Guarinoni (1991, p. 48, grifo dos
autores). Dessa forma, existe um conjunto de casos em que as palavras podem ser utilizadas ou deixar
de ser utilizadas sem nenhum tipo de contestação. Entretanto, existe uma zona de penumbra na qual
nada se pode afirmar acerca da utilização dessas palavras sem o uso de critérios adicionais para
precisar seu significado. Diante do exposto, com o objetivo de superar as imprecisões associadas ao
contexto comunicacional, cumpre delimitar o sentido em que a expressão hierarquia normativa será
utilizada neste trabalho.
Toma-se hierarquia normativa como a relação existente entre normas jurídicas por meio da
qual determinadas normas buscam seu fundamento de validade em outras. Nesse sentido, a norma
jurídica hierarquicamente superior regula a produção das normas que lhe são inferiores.
Na medida em que a produção das normas jurídicas pode envolver questões de forma e
conteúdo das unidades produzidas, abre-se espaço para que o tema da hierarquia normativa possa ser
examinado em seus aspectos formal e material.
Tendo sido delimitado o conteúdo semântico da hierarquia formal e material, resta saber se
esses conceitos são aplicáveis à lei complementar tributária em sua relação jurídica com a lei ordinária
ou se a relação entre essas espécies normativas se limita apenas à divisão de matérias nos termos
delineados na Constituição da República.
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Editado como lei ordinária, o Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Carta de
1988, conforme previsão do artigo 34, § 5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
ostentando o status de lei complementar.
Hugo de Brito Machado (2010, p. 166) ressalva que, embora só possa ser alterado por meio
de lei complementar, em razão do status alcançado por força do que dispõe o artigo 146, III, da Lei
Maior, o fenômeno da recepção constitucional não atribuiu ao Código Tributário Nacional a natureza
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de lei complementar, tendo remanescido sua feição ordinária. Segundo o autor, “a recepção de uma
norma por uma nova ordem constitucional não confere a essa norma qualidade formal que não tinha”.
Tendo ingressado no ordenamento jurídico como lei ordinária, mantém essa natureza, ainda que seus
dispositivos somente possam ser alterados por meio de lei complementar. Consigne-se que não é
escopo deste trabalho examinar se o Código Tributário Nacional veicula disposições que extrapolam
os limites relativos à matéria tributária, o que poderia suscitar controvérsia acerca da espécie
normativa exigida para sua revogação.
Típica lei nacional veiculando normas gerais em matéria tributária, o Código Tributário
Nacional alcança indistintamente União, estados, Distrito Federal e municípios, não podendo as
pessoas políticas legislar em matéria tributária contrariando seus comandos normativos. Conforme já
anotado, embora editadas pelo Congresso Nacional, as leis nacionais não se confundem com as leis
federais que vinculam somente a União. Nos Estados federais, as leis nacionais veiculam normas
gerais aplicáveis a todos os entes federados.
Embora essas assertivas envolvendo a lei nacional e as normas gerais por ela veiculadas
forneçam elementos significativos para apreciação das indagações relativas à relação hierárquica
entre lei complementar e lei ordinária, antes de enfrentar o tema proposto por este trabalho cabe ainda
uma reflexão acerca do posicionamento da jurisprudência e de parcela da doutrina nacional que,
ignorando a existência de hierarquia nos termos propostos, ora sustenta que a discussão se resume a
uma questão de reserva material posta pela Constituição da República, vindo a conferir campos
normativos distintos às mencionadas leis, ora vislumbra relação hierárquica sob fundamentos
diversos.
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normativas não pode declinar reflexões acerca do conteúdo das normas analisadas, sob pena de serem
tratadas de modo indiscriminado realidades diversas.
A respeito da existência de hierarquia normativa, Celso Ribeiro Bastos (1999, p. 72)
proclama:
No que diz respeito a [sic] relação existente entre lei complementar e lei ordinária, vale
ressaltar, [sic] que a lei ordinária retira a sua validade da sua conformidade com a
Constituição e não da lei complementar como gostariam aqueles que defendem a
superioridade hierárquica desta última em relação a [sic] lei ordinária. […] A lei ordinária
tem um campo material diferente do da lei complementar, poderíamos dizer que seu campo
de atuação é um campo residual, na denominação do Prof. Michel Temer.
Com efeito, Michel Temer (2014, p. 150) sustenta a inexistência de hierarquia entre lei
complementar e lei ordinária, nos seguintes termos:
É por exclusão, pois, que se alcança o âmbito material da lei ordinária. Não há hierarquia
alguma entre a lei complementar e a lei ordinária. O que há são âmbitos materiais diversos
atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas.
A existência de superioridade hierárquica da lei complementar, por sua vez, é defendida por
Hugo de Brito Machado (2010, p. 154-155) por meio de argumento peculiar:
É evidente, porém, que a hierarquia superior resulta exatamente da maior rigidez assumida
pela espécie normativa. Não pelo simples fato de haver sido eventualmente aprovada por
determinado quórum. Uma lei ordinária evidentemente não se transforma em lei
complementar pelo simples fato de haver sido aprovada por maioria absoluta. Nem se
transforma em emenda constitucional por haver sido aprovada por mais de três quintos dos
parlamentares. Aliás, quanto às emendas a Constituição exige sejam votadas em dois turnos,
o que afasta desde logo o infeliz argumento. Em qualquer caso, o que caracteriza a espécie
normativa é o procedimento adotado em sua apreciação e aprovação pelo Congresso
Nacional. […] Na verdade, a hierarquia superior resulta precisamente da maior rigidez no
procedimento ao qual se submete a espécie normativa.
Por seu turno, Frederico Araújo Seabra de Moura (2009, p. 101-102, grifo do autor) acolhe
a tese da existência de hierarquia entre as normas em determinadas situações:
Quadra advertir que a hierarquia entre as normas somente se dá na ocasião de uma delas
servir de fundamento de validade para a outra, seja no aspecto formal, seja no aspecto
material. […] Pode a norma superior indicar ou o órgão competente ou o processo a ser
obedecido para criação da norma inferior, ou ainda delimitar-lhe o conteúdo material. […]
Contudo, não há de se falar que a lei complementar é sempre superior hierarquicamente à lei
ordinária. Esse é um equívoco rotundo, segundo Vitor Nunes Leal. Pode vir a ser, mas
unicamente quando servir de fundamento de validade – formal ou material – para uma lei
ordinária, o que não ocorre sempre.
O entendimento de Regina Helena Costa (2014, p. 42, grifo da autora) sobre o tema remete
aos mesmos fundamentos:
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Cremos mais adequado o entendimento segundo o qual não existe uma hierarquia necessária
entre a lei complementar e a lei ordinária, porquanto ambas, em regra, retiram seu
fundamento de validade diretamente da Lei Maior. Falamos em hierarquia necessária
porque, eventualmente, ela pode se verificar. É o que ocorre na hipótese de a lei ordinária
encontrar seu fundamento de validade também na lei complementar. Nesse caso, então, a lei
ordinária extrairá seu fundamento de validade mediatamente da Constituição e
imediatamente da lei complementar. Certo é, portanto, existirem leis complementares que
outorgam fundamento de validade à lei ordinária e outras que, diversamente, não cumprem
essa função.
A impossibilidade de se defender uma visão unitária sobre as leis complementares tem como
exemplo eloquente as regras estabelecidas para dirimir conflitos de competência entre os entes
tributantes. Trata-se, portanto, de hierarquia material, em que os comandos da lei complementar
relativos às matérias a ela constitucionalmente reservadas deverão ser observados pelo legislador
ordinário.
Adentrando nos domínios da hierarquia formal, avulta-se a falta de vocação da Lei
Complementar nº 95/1998, que dispõe “sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação
das leis” (BRASIL, 1998), para dispor sobre o conteúdo de outros diplomas legais, e evidencia-se sua
superioridade hierárquica formal em relação às demais espécies normativas. Nesse sentido, Frederico
Araújo Seabra de Moura (2009, p. 104) sustenta a superioridade formal da mencionada lei
complementar em relação aos demais diplomas normativos, servindo-lhes de fundamento de
validade.
Como se observa, a cambiante doutrina sobre o tema hierarquia normativa vai buscar
suporte para suas assertivas nas particularidades da lei complementar nos termos em que foi posta na
Constituição da República, ora dando ênfase a determinados aspectos, ora a outros. Deve-se ponderar,
no entanto, que a existência de dois grupos distintos de leis complementares ofusca qualquer esforço
na busca de uma única perspectiva sobre a questão.
Tendo sido apresentadas respeitáveis posições doutrinárias envolvendo a relação hierárquica
entre lei complementar e lei ordinária, cumpre examinar manifestações dos tribunais superiores a
respeito do tema.
Apreciando a matéria no RE 377.457/PR (BRASIL, 2008a), o Supremo Tribunal Federal
(STF) sufragou a inexistência de relação hierárquica entre lei complementar e lei ordinária,
defendendo a tese da reserva material constitucionalmente posta. Nessa linha, os ministros da
Suprema Corte votaram pela revogação por meio de lei ordinária da isenção da Contribuição para o
Financiamento da Seguridade Social (Cofins) concedida nos termos do artigo 6º, II, da Lei
Complementar nº 70/1991 às sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente
regulamentada, conforme ementa:
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EMENTA: Contribuição social sobre o faturamento - COFINS (CF, art. 195, I). 2. Revogação
pelo art. 56 da Lei 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão
regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar 70/91. Legitimidade. 3. Inexistência de
relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamente
constitucional, relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Precedentes. 4. A
LC 70/91 é apenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação
aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída. ADC 1, Rel. Moreira
Alves, RTJ 156/721. 5. Recurso extraordinário conhecido mas negado provimento. (RE
377457, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2008,
REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008
EMENT VOL-02346-08 PP-01774)
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introdutor lei ordinária. Nesse caso, trata-se apenas de manifestação da superioridade hierárquica do
Código Tributário Nacional subordinando a produção da lei ordinária criadora do imposto.
Argumentar que as leis instituidoras não estariam dispondo acerca de normas gerais em
matéria de legislação tributária, mas tão somente sobre os critérios relacionados ao imposto criado,
apenas reforça a premissa de que essas leis ordinárias encontram seu fundamento material de validade
nas normas gerais do Código Tributário Nacional.
Outro caso paradigmático refere-se ao julgamento do RE 556.664/RS (BRASIL, 2008b) pelo
Supremo Tribunal Federal, cuja ementa é reveladora:
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condição de fundamento de validade das leis ordinárias em matéria tributária, assumindo uma posição
hierarquicamente superior em relação a elas.
Entretanto, uma análise mais minuciosa da questão revela que a mencionada superioridade
hierárquica não se evidencia em razão de sua natureza de lei complementar, como pode parecer à
primeira vista. Indícios que corroboram essa afirmação podem ser colhidos ao se buscar o fundamento
de validade de leis complementares instituidoras de impostos.
Embora seja usual a afirmação de que lei complementar é materialmente superior a lei
ordinária, a assertiva de ser a lei complementar superior a outra lei complementar extrapola as raias
da lógica, ferindo o senso comum. A esse respeito, tome-se como exemplo o exercício pela União de
sua competência residual, nos termos do artigo 154, I, da Constituição da República, que reclama lei
complementar para veiculação de nova exação.
Tratando-se de instituição de imposto pela União no exercício de sua competência residual,
indaga-se se o legislador responsável por sua elaboração teria liberdade para inovar em matéria
tributária veiculada pelo Código Tributário Nacional. Ainda que de modo intuitivo, tende-se a negar
tal prerrogativa a esse legislador. Mas qual seria o fundamento jurídico dessa vedação? Certamente
não seria em razão do status de lei complementar atribuído ao Código Tributário Nacional em
confronto com a lei complementar instituidora do imposto, na medida em que se trata de diplomas
normativos de idêntica conformação. A primazia do Código Tributário Nacional decorre de seu
conteúdo de normas gerais. Ainda que a Constituição da República tivesse atribuído à lei ordinária o
papel de estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, leis instituidoras de tributo,
ordinárias ou complementares, tampouco poderiam inovar em matéria tributária já tratada por essa
lei ordinária de normas gerais. Como assevera Charles William McNaughton (2011, p. 325), norma
de ordem parcial não pode se voltar contra norma nacional.
O mesmo raciocínio deve ser reservado ao cotejo entre o Código Tributário Nacional e as
leis complementares nacionais editadas por reclamo constitucional para uniformizar o tratamento
dispensado a impostos específicos como o ICMS (Lei Complementar nº 87/1996) e o ISSQN (Lei
Complementar nº 116/2003). Inobstante seu conteúdo de normas gerais, não se pode atribuir a essas
leis complementares nacionais primazia sobre o Código Tributário Nacional. Nas oportunas
ponderações de Renata Elaine Silva (2013, p. 47), pensar de modo diverso atentaria contra o princípio
da isonomia entre as pessoas políticas de direito público, dando ensejo à criação de normas mais
favoráveis para determinados entes tributantes em detrimento dos demais. Afinal, embora veiculem
normas gerais com relação às exações apontadas, não preservam tal condição ante o sistema tributário
nacional.
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Como arremate, constata-se que Eduardo Marcial Ferreira Jardim (1996, p. 103) aproximou-
se do deslinde da questão. Nada obstante a sua rejeição com relação à existência de hierarquia por
conteúdo entre lei complementar e lei ordinária, o autor assim pontuou:
Na medida em que a produção das normas jurídicas pode envolver questões de forma e
conteúdo das unidades produzidas, abre-se espaço para que o tema da hierarquia entre normas
também possa ser examinado em seu aspecto formal. Assim, pode-se definir hierarquia formal como
a relação existente entre duas ou mais normas por meio da qual uma delas fornece os fundamentos de
validade das demais com relação à sua forma de elaboração.
A Constituição da República define em seu artigo 59, parágrafo único, que lei complementar
disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Em atendimento ao comando
constitucional, foi elaborada a Lei Complementar nº 95/1998, que, logo em seu artigo 1º, parágrafo
único, prescreve que as suas disposições aplicam-se aos atos normativos do artigo 59 da Constituição
da República e ainda aos decretos e aos demais atos regulamentares do Poder Executivo, no que
couber. Do exposto, conclui-se que a Lei Complementar nº 95/1998 é formalmente superior aos
demais diplomas legislativos, em especial àqueles elencados no artigo 59 da Lei Maior.
Entretanto, assim como demonstrado em relação à hierarquia material, uma análise mais
minuciosa da questão revela que a mencionada hierarquia formal não se evidencia em razão da
natureza da lei complementar, como pode parecer à primeira vista.
Se, conforme explanado, extrapola as raias da lógica a assertiva de ser a lei complementar
superior a outra lei complementar, ainda mais paradoxal seria afirmar que a lei complementar é
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2 CONCLUSÃO
Diante do exposto, pode-se inferir que a escolha da lei complementar pelo legislador
constituinte para o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária e para
disciplinar o processo de elaboração, redação, alteração e consolidação das leis teve como
fundamento a maior rigidez no rito de aprovação desse diploma normativo. Em princípio, não haveria
óbices a que o legislador tivesse escolhido a lei ordinária com pretensões de tal espécie.
Breve exame do sistema jurídico revela que os preceitos dos artigos 146, III, e 59, parágrafo
único, da Constituição da República foram satisfeitos por meio do Código Tributário Nacional e pela
expedição da Lei Complementar nº 95/1998. Se por um lado o papel atribuído às mencionadas leis
sugere a existência de superioridade hierárquica da lei complementar em relação à lei ordinária em
matéria tributária, por outro lado, a existência de diversos comandos constitucionais que reclamam a
edição de lei complementar em temas tributários parece refutar tal assertiva.
Com efeito, vislumbram-se na tessitura do sistema jurídico duas ordens de lei complementar
em matéria tributária: aquela alçada a fundamento de validade de outros diplomas normativos e
aqueloutra manejada para o exercício de competências da União enquanto ente político. Conclui-se,
desse modo, que não se pode defender uma visão unitária sobre a superioridade hierárquica de lei
complementar sobre lei ordinária em matéria tributária.
Ao se desincumbir de seu encargo constitucional, o legislador vai inserir no sistema jurídico
as duas referidas ordens de lei complementar e desvendar a dinâmica envolvendo essas ordens.
Enquanto a função da lei complementar reservada ao exercício de competências da União na
qualidade de ente político se exaure com sua edição, o Código Tributário Nacional e a Lei
Complementar nº 95/1998 vão servir de fundamento para a expedição das leis instituidoras de tributos
pelas pessoas políticas. A previsão in abstracto dos caracteres da regra matriz de incidência tributária
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nas leis instituidoras dos tributos, pressuposto inarredável para imposição válida da exação,
conforma-se ao disposto nas leis complementares que lhe servem de fundamento.
Convém notar que o exercício de competências da União na qualidade de ente político está
sujeito à reserva material constitucionalmente posta, não se podendo cogitar da utilização de outro
instrumento introdutor de normas jurídicas se lei complementar for exigida. Por seu turno, o
estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária por meio de lei complementar
pressupõe a expedição das leis instituidoras de tributos pelas pessoas políticas, que naquela buscam
fundamento para criação dos caracteres da regra matriz de incidência tributária.
Na medida em que essas leis instituidoras de tributos podem assumir a feição de lei
complementar ou lei ordinária, nos termos constitucionais, abre-se espaço para indagações acerca da
natureza da superioridade hierárquica do Código Tributário Nacional. Em reforço a essas indagações,
vale ressaltar que, em seu processo de elaboração, as emendas constitucionais se curvam aos
imperativos da Lei Complementar nº 95/1998.
Deveras, o fundamento da superioridade hierárquica da lei complementar em matéria
tributária radica-se em seu conteúdo, não guardando relação alguma com sua forma, nada obstante
tê-la escolhido o legislador constitucional em razão da maior rigidez no rito de aprovação desse
diploma normativo.
Em conclusão, a despeito da demonstração da superioridade hierárquica do Código
Tributário Nacional e da Lei Complementar nº 95/1998 em relação às leis ordinárias em matéria
tributária, a partir das investigações empreendidas foi possível desvelar a natureza apenas reflexa
dessa superioridade. Em respeito ao rigor científico cumpre reconhecer que o fundamento da
superioridade hierárquica material e formal observada não se radica no caráter formal das leis
complementares examinadas, mas tão somente em seu conteúdo.
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