0% acharam este documento útil (0 voto)
68 visualizações16 páginas

12412-Texto Do Artigo-58571-1-10-20181220

O documento discute a atuação da bancada evangélica no Congresso Nacional brasileiro em projetos de lei relacionados ao aborto. A bancada evangélica vem apresentando propostas legislativas que visam restringir o aborto e restaurar a moral cristã no país. Embora o discurso seja principalmente religioso, os argumentos apresentados nas propostas de lei também incluem fundamentos científicos e sociais.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
68 visualizações16 páginas

12412-Texto Do Artigo-58571-1-10-20181220

O documento discute a atuação da bancada evangélica no Congresso Nacional brasileiro em projetos de lei relacionados ao aborto. A bancada evangélica vem apresentando propostas legislativas que visam restringir o aborto e restaurar a moral cristã no país. Embora o discurso seja principalmente religioso, os argumentos apresentados nas propostas de lei também incluem fundamentos científicos e sociais.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 16

Em defesa da moral cristã?

TEORIA E CULTURA
Fundamentos e justificativas da bancada evangélica
nos projetos de lei anti aborto

Naiana Zaiden Rezende Souza

RESUMO

Desde a redemocratização em 1988 até as eleições mais recentes, segmentos religiosos vêm ampliando
sua ação no meio político com o propósito de restaurar na sociedade brasileira a moral e os bons
costumes cristãos. A atuação dos políticos religiosos, principalmente dos integrantes da Frente
Parlamentar Evangélica, no Congresso Nacional, vem chamando a atenção da população e da mídia
pelos projetos de leis e propostas de emendas constitucionais polêmicos. Dentre estas proposições,
as que mais se destacaram nos últimos tempos foram as pautas referentes ao movimento LGBTTQ
e às causas feministas, mais precisamente, os projetos que visam retirar direitos constitucionais e
infraconstitucionais já garantidos, como o casamento e o aborto. Diante dessa realidade, o presente
trabalho propõe-se a debater os projetos de leis de parlamentares da bancada evangélica que tratem
da interrupção voluntária da gravidez, trazendo suas justificativas e fundamentos, com o intuito de
discutir se o discurso religioso ainda é utilizado como motivação política para a proibição do aborto.
Para tanto, foi feita uma revisão bibliográfica da temática analisando os projetos de leis previamente
selecionados, bem como autores consagrados que tratam sobre a atuação evangélica na política e
também das questões de aborto e direitos humanos pertinentes ao estudo proposto. Após a pesquisa,
percebeu-se que o discurso religioso pró vida ainda se faz presente nas propostas legislativas, mas
sempre concatenado com argumentos de outra natureza (científico e social, por exemplo) para
legitimar e legalizar os projetos de leis ou emenda constitucional.

Palavras-chave: bancada evangélica, discurso religioso, aborto, direitos reprodutivos e sexuais.

DEFENDING CHRISTIAN MORAL? MOTIFS AND FUNDAMENTS PRESENTED IN


ANTI ABORTION LAW PROJECTS OF THE EVANGELICAL FRONT

ABSTRACT

Since the re-democratization in 1988 until the most recent elections, religious segments have been
expanding their action into the political sphere with the purpose of restoring in Brazilian society
moral and good Christian customs. The work of religious politicians, especially members of the
Evangelical Parliamentary Front, in the National Congress, has drawn the attention of the population
and the media to the draft laws and proposals for controversial constitutional amendments. Among

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 135
these propositions, the most relevant ones in Federal. Dentre essas bancadas religiosas, a Frente
recent times were the guidelines referring to the Parlamentar Evangélica vem sendo destaque
TEORIA E CULTURA

LGBTTQ movement and to feminist causes, more nas mídias e redes sociais por muitas posições
precisely, the projects aimed at the withdrawal polêmicas que seus integrantes defendem. Seja
of constitutional and infra-constitutional rights em defesa à vida ou pela restauração no Brasil
already guaranteed, such as marriage and da moral e dos bons costumes cristãos, os
abortion. In the face of this reality, the present parlamentares evangélicos vêm-se na missão de
work proposes to debate the bills of congressmen proteger a família dos males modernos que a
from the evangelical group that deals with the ameaçam.
voluntary interruption of pregnancy, bringing Neste cenário de caos social, a temática
its justifications and foundations, in order to do aborto é um prenúncio real da desordem
discuss whether religious discourse is still used social. O Código Penal de 1940 criminaliza o
as a political motivation for the prohibition of aborto punindo tanto a mãe quanto qualquer
abortion. For this purpose, a bibliographical um que a ajudar a interromper a gravidez. Mas,
review of the theme was carried out analyzing prevê dois casos específicos em que tal prática
the draft laws previously selected, as well as não é tipificada: quando o procedimento for
established authors dealing with the evangelical necessário para salvaguardar a vida da mulher e
work in politics, as well as abortion and human quando a gestação for em decorrência de estupro.
rights issues pertinent to the proposed study. Contudo, nos últimos cinco anos o Supremo
After the research, it was noticed that the pro-life Tribunal Federal tem permitido o aborto em
religious discourse is still present in legislative vários outros casos, fator que gerou uma reação
proposals, but always linked with arguments da bancada evangélica que, em resposta, propôs
of another nature (scientific and social, for leis, emendas à constituição e promoveu debates
example) to legitimize and legalize draft laws or no Congresso Nacional a fim de conscientizar
constitutional amendment. a população e os demais parlamentares sobre a
necessidade da defesa à vida em qualquer estágio.
Keywords: evangelical front, religious discourse, Na tentativa de captar se os discursos contrários
abortion, reproductive and sexual rights. ao aborto são estritamente religiosos ou também
embasados em motivos científicos e jurídicos,
trazemos à baila os projetos de leis 460/2016
INTRODUÇÃO e 461/2016 do Senado Federal e 8116/2014,
5069/2013, 1545/2011, 7443/2006, e 5166/2005,
Questões em torno do aborto, proteção todos da Câmara dos Deputados; bem como as
à vida e direitos sexuais e reprodutivos das Propostas de Emenda à Constituição: 58/2011
mulheres estão cada vez mais tendo espaço no e 181/2015 que versam sobre a criminalização
debate social e político. Fatos recentes no Brasil da interrupção voluntária da gravidez ou sobre
e no mundo demonstram que as mulheres a proteção à vida. A prática metodológica
estão buscando meios legais para garantirem utilizada neste trabalho compreende-se no
sua autodeterminação enquanto que, por outro estudo bibliográfico e documental de propostas
lado, atores religiosos usam de suas influências e legislativas que versem sobre o tema, bem como
posições parlamentares para defenderem a vida. análise de jurisprudência do Supremo Tribunal
Desde a recente redemocratização brasileira Federal tratando sobre o aborto, valendo-se
as bancadas religiosas vêm conquistando mais também do uso de sítios da Internet, empregados
cadeiras no Congresso Nacional fator que lhes dá modernamente em pesquisas, assim como livros,
mais força para defender suas visões e aprovar/ artigos, relatórios e notícias para complementar
modificar leis e até mesmo a própria Constituição o estudo.

136 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
1. O BRASIL LAICO/SECULAR E A (2015), bem aponta a visão de Lísis Negrão de

TEORIA E CULTURA
BANCADA EVANGÉLICA que apesar de as instituições Igreja e Estado
estarem separadas, o povo ainda continua sob
Entender a presença e atuação dessa frente o encantamento de uma cultura religiosa. Neste
parlamentar no espaço público demanda, mesmo sentido, Berger (2001) pondera que a
inicialmente, fazer um pequeno retrocesso nas religião perdeu o grande poder de influência
ideias de laicidade e secularização, trazendo seus que tinha no meio social, porém, suas crenças
significados e qual a situação de ambos no cenário e práticas continuaram vivas no cotidiano das
brasileiro. “O termo secularização é pensado na pessoas. Assim, o autor afirma que “O mundo
perspectiva da redução da presença e influência de hoje é tão ferozmente religioso quanto antes”
religiosa na sociedade em geral e laicidade diz (Berger, 2001, p. 10). Esta frase de Peter Berger
respeito ao processo mais específico que envolve não poderia estar melhor contextualizada diante
as relações entre religião e Estado em interface dos exemplos atuais no país. No Brasil, a Bancada
com a esfera política” (SOFIATI, 2015, pg. 328). Evangélica e seu conservadorismo moral legisla
Desde a chegada portuguesa até 1889, o Brasil a favor de suas crenças e contra vários direitos
teve como religião oficial a Católica, sendo que e garantias fundamentais das mulheres e da
a todas as outras era proibido o culto no espaço população LGBTT, já previstos em leis existentes
público. ou mesmo salvaguardados pelo STF e por
Com a Proclamação da República em 15 de Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
novembro de 1889 e com a segunda Constituição
brasileira em vigor1, no ano de 1891, oficialmente “Como destaca Enzo Pace (2015, p. 77), [...] o
o Estado tornou-se laico. No entanto, a questão da panorama contemporâneo mostra-nos o insurgir de
liberdade religiosa só foi amplamente discutida e movimentos radicais de inspiração religiosa [...] que
revista com o advento da Constituição Federal de pretendem que as leis dos homens (dos Parlamentos)
1988, que consolidava os princípios e garantias reflitam a Lei de Deus”. Esta afirmação pode ser
fundamentais dos indivíduos e o Estado exemplificada nos recentes casos de disputas
Democrático de Direito. Então, o Estado era entre setores da sociedade civil, notadamente da
declaradamente laico e a toda e qualquer religião comunidade LGBTT e do movimento feminista
era permitido professar seu culto e liturgia com a bancada evangélica do Congresso Nacional.
livremente. Atualmente, a liberdade religiosa Demandas em torno de questões que envolvem leis
está prevista no artigo 5º, inciso VI, tendo como concernente aos interesses de grupos homoafetivos
base três pontos cruciais: liberdade de crença, e direitos reprodutivos têm sido impedidas de
liberdade de organização e liberdade de culto. avançar por conta da ação de parlamentares ligados
Segundo tal artigo, é inviolável a liberdade de às igrejas pentecostalizadas”. (SOFIATI, 2015, pg.
consciência e de crença, sendo assegurado o livre 340)
exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de culto e às Após a redemocratização, em 1988, muitos
suas liturgias (BRASIL, 1988). movimentos subjugados emergiram para
No âmbito social, o Brasil também se tornou reclamarem um espaço no contexto público,
secular na medida em que a Igreja Católica sendo este cenário um dos fatores responsáveis
perdeu seu posto de religião oficial e, junto a pelo avanço do pluralismo religioso e, nesse caso,
isso, alguns privilégios ligados ao casamento, “a principal forma de influência da religião no
sepultamento e costumes culturais. Sofiati Estado é por meio da ação política a partir das

1 A primeira Constituição Brasileiro é de 1824, sendo outorgada por Dom Pedro I, e previa a Igreja Católica Apostólica
Romana como a oficial.

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 137
regras da democracia” (SOFIATI, 2015, pg. 344). Após as eleições nacionais de 2014, a bancada
Durante séculos o catolicismo foi hegemônico no evangélica passou a ser constituída por 74
TEORIA E CULTURA

espaço público, e, ainda hoje detém maior parte deputados, sendo 35 novos e 39 reeleitos, além de
dessa influência juntamente com a ação política 03 Senadores dos mais variados partidos políticos
coordenada dos pentecostais demonstrando que (PMDB, PSDB, PRB, DEM, PT, PV, PDT, PRB,
“a religião não perdeu sua influência e continua PTB, PR, PP, PMN)2, sendo seus integrantes, em
atuante nas esferas sociais [...], inclusive naquelas sua maioria, membros do Partido Social Cristão
que definem os rumos do país, como é o caso (PSC), ligados à Igreja Universal do Reino de
do Estado” (SOFIATI, 2015, pg. 336). Magali Deus.
do Nascimento Cunha (2016) refere-se ao Esta bancada, apesar de recente, ganhou
termo “evangélico” como “todos os cristãos não bastante visibilidade devido a alguns projetos de
católicos ou ortodoxos que compõem o campo lei apresentados por seus integrantes, tais como o
religioso brasileiro” (pg.148), sendo identificados Estatuto da Família, a Cura Gay e o Estatuto do
nos estudos de religião por quatro características: Nascituro. Todos justificados pela necessidade
“uma predominante leitura fundamentalista do de reintegrar a moral cristã numa sociedade
texto sagrado cristão, a Bíblia; ênfase na piedade desvirtuada e promíscua. Nessa linha, a bancada
pessoal na busca da salvação da alma” (pg. 149) evangélica tomou forma tendo como objetivo
além de “frequentes posturas de rejeição das principal defender a família tradicional brasileira
manifestações culturais não cristãs do país e um e a vida. Assim, a família brasileira seria aquela
isolamento das demandas sociais (resultante substancialmente patriarcal, formada por um
da espiritualização das questões da existência casal heterossexual e seus filhos, sendo o homem
individual e social), entre elas a participação o chefe de família que sustenta a casa, e a mulher
política” (pg. 149). o ser reprodutivo responsável por gerar a vida
A Constituição Democrática permitiu aos (sendo esta protegida desde a concepção).
evangélicos a percepção de uma oportunidade É claro que estas questões morais não são
de sair do estado de invisibilidade, reclamando exclusivamente tratadas pelos parlamentares
o acesso à esfera pública institucional que outros evangélicos. Vários outros projetos de leis e
setores emergentes começavam a ter e que a ações judiciais visaram estabelecer a ilegalidade
Igreja Católica já possuía, além da emergência da união homoafetiva, bem como a proteção
de uma orientação doutrinária interna, que da vida contra o aborto, tendo inclusive uma
apontava o ingresso na esfera pública como atuação direta de instituições religiosas (como
caminho para a saída da condição de minoria a igreja católica) nestes processos3. A maioria
política e culturalmente subalternizada dessas proposições tinham o intuito de frear a
(MACHADO e BURITY 2014). Nesse reação que os movimentos feministas e LGBTTs
contexto de representatividade evangélica na geraram na sociedade após os anos 80, e, “talvez
política brasileira, surge a Frente Parlamentar pela primeira vez, a sexualidade se tornou uma
Evangélica, “uma associação civil, de natureza verdadeira questão política de primeira linha,
não governamental, constituída no âmbito do com a Nova Direita identificando o “declínio
Congresso Nacional, integrada por Deputados da família”, o feminismo e a nova militância
Federais e Senadores” (SCHUCK, 2013, p. 04). homossexual como potentes símbolos do declínio

2 http://www.diap.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14637-evangelicos-crescem-no-
congresso-psc-lidera-em-numero-de-parlamentares
3 Em 2004 o Supremo Tribunal Federal rejeitou o pedido da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de
agir como “amicus curiae” e manifestar (contrariamente) na ação que decidiu sobre o direito de gestantes interromperem
a gravidez em casos de feto anencefálico (http://www.conjur.com.br/2004-jun-24/marco_aurelio_rejeita_cnbb_amicus_
curiae_processo).

138 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
nacional” (WEEKS, 2007, pg. 54). das entrevistadas já fez ao menos 01 aborto no

TEORIA E CULTURA
O Brasil, por sua história política, só foi ter uma decorrer da vida. Se considerar a faixa etária de
abertura maior para os assuntos de sexualidade 38 e 39 anos a taxa sobe a quase 19%. Assim, em
no século XXI e, desde então, os partidos e 2016 tínhamos o total estimado de 37.287.746
políticos mais conservadores (geralmente ligados brasileiras entre 18 e 39 anos. Extrapolando-se a
às doutrinas cristãs) vem batalhando contra partir das taxas de aborto de alfabetizadas urbanas
grupos e instituições que trabalham em prol (13%), têm-se o incrível número de 4,7 milhões
dos Direitos Humanos ligados à sexualidade e à de mulheres que até 2016 já abortaram ao menos
autonomia das mulheres. Tanto é assim que os 1 vez (DINIZ, MADEIRO, MEDEIROS, 2016).
parlamentares integrantes dos grupos religiosos Quase metade dos casos registrados de
passaram a apresentar novos projetos que interrupção voluntária da gravidez foi realizada
tratam dessa temática, alguns escancaradamente em casa com uso de medicamentos e 48% das
contrários às decisões já consolidadas do STF mulheres entrevistadas precisaram ser internadas,
ou STJ ou mesmo contra leis que assegurem os seja para proceder com o aborto seguro ou
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em decorrência de complicações advindas
com objetivo de “impedir a implementação de de um aborto inseguro (DINIZ, MADEIRO,
serviços de aborto dentro dos limites permitidos MEDEIROS, 2016). As consequências de um
pela lei, ou para judicializar casos de aborto não aborto inseguro são várias: dano psicológico,
puníveis” (RUIBAL, 2014, pg. 116). E, nosso infecção de trato genital, sequelas temporárias
objetivo aqui é apontar quais são os principais e permanentes no sistema reprodutivo ou até
argumentos utilizados pelos autores dessas mesmo a morte. O aborto acontece com maior
proposições a fim de identificar se há ou não frequência entre mulheres com baixo grau de
um discurso de natureza confessional contra o informação e escolaridade, sendo que 23% das
aborto e em favor da vida. brasileiras que abortaram estudaram até o ensino
fundamental e 12% até o ensino médio. As taxas
2. EM PROL DA VIDA E DA FAMÍLIA: O de aborto são maiores dentre as mulheres não-
DISCURSO DA BANCADA EVANGÉLICA. brancas (pretas/pardas), com mais de um filho
nascido vivo, casadas ou em união estável e,
A 55ª legislatura (2014-2018) formou o por isso, a maioria das brasileiras que morrem
Congresso mais conservador que o Brasil já teve em decorrência do aborto ilegal são as negras.
desde a redemocratização em 1988 e isto tem (SANTOS, ANJOS, et. al, 2013).
levantado várias questões quanto à atuação de Isto ocorre, provavelmente, por conta do
grupos religiosos que legislam conforme suas ambiente violento e precário que essas mulheres
crenças e, por vezes, contrariam normas que estão inseridas, bem como em decorrência
asseguram direitos de grupos minoritários. O da falta de acesso a métodos contraceptivos.
aborto é uma questão de saúde pública e não só Ademais, este dado também demonstra a
o Legislativo, mas também os Poderes Executivo ineficácia do dispositivo que criminaliza o aborto
e Judiciário se preocupam com a temática diante haja vista que aquelas que têm condições de
da realidade nacional. A discussão do tema torna- arcarem com um aborto seguro na rede privada
se ainda mais importante quando analisamos assim o fazem, enquanto que as mulheres sem
os dados obtidos em estudos sobre a temática, condições financeiras para tal, e sem respaldo
apontando que mesmo sendo considerado um do sistema público de saúde, procuram métodos
delito, o aborto clandestino ainda é uma prática clandestinos e perigosos para interromperem
comum entre as brasileiras. Os resultados da uma gravidez indesejada, colocando suas vidas
Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 (DINIZ, em risco. No debate sobre aborto temos, de um
MADEIRO, MEDEIROS, 2016), feita entre lado, ativistas, organizações ligadas aos Direitos
mulheres de 18 a 39 anos, demonstrou que 13% Humanos, lideranças políticas e grupos feministas

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 139
que defendem a sua descriminalização e, de interromper a gravidez por vontade própria? Bem,
o argumento daquelas pessoas que defendem que
outro, há instituições religiosas, grupos políticos
TEORIA E CULTURA

de viés religioso (principalmente os evangélicos a vida passa a existir a partir da fecundação do


e católicos) e parlamentares conservadores óvulo pelo espermatozoide geralmente baseia-
que nem sempre estão inseridos nas bancadas se em crenças religiosas (e inclusive utilizado
religiosas mas que defendem a família e a vida. para protestar contra os tratamentos com células
É possível identificar quatro discursos que tronco). Por outro lado, temos o argumento
podem ser encontrados nos projetos (favoráveis científico de que a vida só passa a existir a partir
ou não) tratando sobre a interrupção voluntária das atividades cerebrais, depois do 2º mês de
da gravidez. O primeiro é a postura totalmente gestação. Dentro dessa discussão trazemos os
intransigente que visa defender a vida desde sua projetos de lei 8116/2014 e 5166/2005, todos
concepção e, para tanto, propõe a modificação da Câmara dos Deputados, bem como as PEC’s
das leis existentes a fim de criminalizar todo 58/2011 e 181/2015. As propostas de Emenda à
tipo de aborto. Um segundo posicionamento, Constituição 58 e 181, apesar de originalmente
também contrário à interrupção voluntária da não terem sido apresentadas por integrantes
gravidez, defende que a vida deve ser protegida, da Bancada Evangélica, sofreram importantes
mas, em alguns casos, é aceitável o aborto pelo alterações através da ação desse grupo. Ambas
bem da mulher. Por outro lado, temos a postura atualmente tramitam em conjunto e foram
legalista daqueles que defendem que o aborto apelidadas de “PEC Cavalo de Troia” por ativistas
deve ser liberado em qualquer situação, como que lutam pelos direitos sexuais e reprodutivos
forma de afirmação dos direitos reprodutivos e das mulheres4.
sexuais das mulheres. Por fim, Gonçalves (2016) As duas preposições nasceram com uma boa
ainda identifica um quarto discurso possível: intenção, qual seja, estender os direitos de licença
a posição dúbia dos parlamentares que “não maternidade para as mães de filhos pré-maturos.
emitem um parecer concreto sobre o aborto e Entretanto, ao longo de sua tramitação foram
(ou) que durante suas falas manifestam dúvidas” sofrendo importantes modificações. A principal
(pg.181). delas foi apresentada pelo relator deputado Jorge
Vejamos, então os projetos selecionados que Mudalen, integrante da Bancada Evangélica,
abordam a interrupção voluntária da gravidez, e inserindo o dispositivo que trata de proteção à
seus mais variados argumentos. Para tratarmos vida e à dignidade da pessoa humana desde a
dessas propostas, optamos por dividir em concepção. Este trecho revogaria demais leis
dois tópicos. O primeiro discutirá os projetos infraconstitucionais que permitem o aborto em
apresentados que defendem a incondicional casos específicos (como no caso de estupro, por
proteção da vida (desde a sua concepção) e exemplo).
o segundo abordará as proposições (e suas O deputado, em seu relatório, usou como
justificativas) que versem sobre a criminalização principal justificativa para a inserção deste
(tipificação, punição e penas) da interrupção dispositivo a necessidade de frear o ativismo
voluntária da gravidez. judicial do Supremo Tribunal Federal no que
concerne ao direito à vida e ao aborto, alegando
2.1. Por Deus, pela vida e pela família? que cabe somente ao congresso decidir sobre
tal matéria, sendo que nenhuma sentença pode
A discussão em torno do aborto gira ao redor valer-se da vontade de uma pessoa não eleita para
de duas questões principais. Primeiro: quando “estar acima da lei”. Afirmou, ainda, que o aborto
inicia a vida? Segundo, tem a mulher o direito de vem sendo inserido na sociedade por meio

4 https://www.cartacapital.com.br/politica/camara-vota-pec-181-entenda-seus-impactos-sobre-o-aborto-no-brasil

140 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
desse ativismo, considerando tal prática como vem sendo duramente criticada por juristas

TEORIA E CULTURA
um direito unilateral das mulheres que deve ser e militantes por ser uma violação aos direitos
discutido por todos e não simplesmente imposto. das mulheres e um grande desrespeito de sua
Além disso, argumentou que a opinião religiosa autonomia. O Estado, ao invés de assegurar às
é importante na discussão sobre o aborto e, por brasileiras o direito à saúde e dignidade para que
muitas vezes, ela concorda com argumentos de decida se quer ou não proceder com uma gravidez
natureza sociológica, filosófica e até científica, indesejada, quer simplesmente tirá-las a opção de
não devendo ser descartada e nem excluída minimizar seu sofrimento após terem vivenciado
do debate. Por fim, ao propor a modificação um ato tão cruel e violento. A quantia deverá ser
do dispositivo, inserindo a defesa à vida desde paga pelo estuprador, caso ele tenha condição,
a concepção, o deputado Mudalen justificou ou pelo Governo, quando o estuprador não
que a proteção da vida prematuramente só faz tiver meio de arcar com essa responsabilidade.
sentido se também for garantida a sua proteção O Projeto, ao fazer isso, está dando ao homem
no âmbito uterino, isto é, desde a concepção, o status privilegiado de Pai, obrigando a criança
haja vista que o feto também tem direitos e sua e a mãe a terem uma relação de proximidade
dignidade humana deve ser respeitada. com o criminoso, fator que praticamente
As propostas de Emenda à Constituição, legitima a violência sexual como mais uma
em seu formato original, foram aprovadas pelo maneira de formar-se uma família. A legislação
Senado e, após a proposição de modificação brasileira que trata dos direitos das mulheres já
do texto, ela vem sendo bastante debatida na é bastante criticada por órgãos internacionais
Câmara, estado atualmente nas mãos de uma devido ao seu caráter conservador, retrógrado
comissão criada especialmente para discutir e discriminatório, imagine se retroceder ainda
essa matéria. A preocupação das ativistas que mais para obrigar às mulheres estupradas ou
defendem os direitos sexuais e reprodutivos com risco de vida de manterem suas gestações.
femininos é sólida pois as alterações ocasionam Neste sentido vem sendo importante o ativismo
um profundo retrocesso dos direitos e garantias judicial do Supremo Tribunal Federal, para
individuais. proteger a vida da mulher, bem como seu direito
O PL 8116/2014, de autoria dos deputados de autodeterminação.
Alberto Filho, Arolde de Oliveira e Aníbal O PL 8116/2014 contém 14 artigos que tratam
Gomes trata sobre os direitos do feto, tendo sido desde o conceito de “nascituro” até seus direitos
apensando ao projeto do “Estatuto do nascituro” de ampla proteção jurídica por parte do Estado e
(PL 478/2007, de autoria dos deputados Luiz da família. O PL 478/2007 traz como justificativa
Bassuma e Miguel Martini). Estas propostas para a criação de um estatuto a necessidade de
de lei visam proteger a vida intrauterina, não resguardar a expectativa de direitos aos que
permitindo o aborto nem em casos de deficiência gozam de proteção mesmo sem ainda nascer,
física ou mental ou mesmo em decorrência da pois atualmente:
probabilidade de sobrevida, além de incluírem o
aborto no rol de crimes hediondos e implementar A proliferação de abusos com seres humanos
a pensão alimentícia, no valor de 1 salário não nascidos, incluindo a manipulação, o
mínimo, para a criança concebida em um ato congelamento, o descarte e o comércio de embriões
de violência sexual, devendo ser paga desde o humanos, a condenação de bebês à morte por
nascimento até a maioridade civil (18 anos). causa de deficiências físicas ou por causa de crime
Esta pensão, apelidada de “bolsa estupro”5, cometido por seus pais, os planos de que bebês

5 https://www.cartacapital.com.br/politica/2018bolsa-estupro2019-e-risco-de-transformar-vitima-em-criminosa-1925.
html

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 141
sejam clonados e mortos com o único fim de serem da gestação de feto anencefálico não configura
suas células transplantadas para adultos doentes, crime contra a vida – revela-se conduta atípica”
TEORIA E CULTURA

tudo isso requer que, a exemplo de outros países (STF, 2012, pg. 24) pois não existe vida possível
como a Itália, seja promulgada uma lei que ponha capaz de criminalizar a conduta da mulher ou do
um “basta” a tamanhas atrocidades (PL 478/2007, médico de abortar. Mais recentemente, em 2016,
pg. 07, 2007). o Supremo Tribunal Federal6 considerou, em
decisão histórica da 1ª Turma, inconstitucionais
Por fim, o último projeto de lei a ser tratado os artigos do Código Penal que criminalizam
aqui é o 5166/2005 do deputado Takayama, um o aborto, eis que, segundo o voto do Relator, o
dos mais atuantes na bancada evangélica no Ministro Luiz Roberto Barroso7, a criminalização
que diz respeito à defesa da moral e dos bons do aborto até o terceiro mês de gestação
costumes cristãos. Esta proposta discute o direito conferiria uma proteção deficiente do Estado aos
da mulher de abortar nos casos de anencefálico direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à
ou inviável. Segundo o autor, seria crime integridade psíquica e física, e à saúde da mulher,
interromper a gravidez mesmo nestes casos haja com reflexos sobre a igualdade de gênero e
vista que o feto anômalo é uma vida humana e impacto desproporcional sobre as mulheres mais
deve ser tutelada pelo Estado como tal. Justifica, pobres.
ainda, que “o determinismo biológico faz com Nesse sentido, pergunta-se: Qual vida
que a mulher seja a portadora de uma nova vida, proteger, do feto ou da mãe? Certamente há quem
não é desejo, portanto, de nosso Bendito Criador diga haver um aparente conflito de direitos. No
que a porção feminina de sua obra aborte ou entanto, se considerar-se a dignidade humana
antecipe o parto mediante alguma intervenção das mulheres e tomá-las como sujeitas dotadas
cirúrgica” (PL 5166/2005, pg. 03, 2005). de direitos e garantias fundamentais, bem como
Na contramão desta teoria, em 2012 o Tribunal analisarmos todos os aspectos sociais de sua
Pleno do Supremo, por maioria e nos termos do vida (casamento, trabalho, questões financeiras,
voto do Relator, julgou procedente a ADPF 54 etc), seu direito à autodeterminação em relação
no sentido de declarar a inconstitucionalidade à reprodução, saúde e vida sexual, a resposta é:
da interpretação segundo a qual a interrupção deve-se proteger a vida da mulher, bem como suas
da gravidez de feto anencefálico seria crime escolhas. O feminino não está mais submetido
tipificado nos artigos 124, 126, 128, incisos I e à vontade do masculino ou de uma doutrina
II, do Código Penal. O Ministro Marco Aurélio religiosa. Se a todos são assegurados a liberdade
Mello votou no sentido de descriminalizar o e a igualdade, mulheres não devem ser tratadas
aborto nesses casos justificando que o feto sem de forma diferente e, pior, serem criminalizadas
cérebro, mesmo que biologicamente vivo, seria por isso.
juridicamente morto, isto é, não teria proteção Além disso, deve-se ressaltar que a cultura
jurídico-penal. “Nesse contexto, a interrupção do abandono (literal e afetivo) paterno já

6 O marco dos direitos humanos é um componente essencial na defesa do direito ao aborto. Recentemente, e
a partir da constatação da dificuldade para o avanço do direito ao aborto através dos órgãos políticos, organizações
feministas na América Latina têm apelado às cortes nacionais, e em particular às cortes constitucionais. Em realidade, o
desenvolvimento das demandas pela legalização do aborto na América Latina nas duas últimas décadas coincidiu com o
desenvolvimento da justiça constitucional e a judicialização dos processos políticos, a partir especialmente da criação ou
reforma de cortes constitucionais e cortes supremas com poder de controle de constitucionalidade em última instância.
As cortes constitucionais tiveram um papel central, e suas decisões na maioria desses casos têm se referido à perspectiva
dos direitos humanos das mulheres, e têm retomado alguns dos argumentos desenvolvidos por organizações feministas
em cada caso. Em contextos caracterizados pela incidência de atores fundamentalistas nos poderes políticos do Estado, as
Cortes Constitucionais têm demonstrado serem espaços institucionais mais isolados dessa influência, e com ânimo para
defender a laicidade em seus processos decisórios (RUIBAL, 2014, pg. 126/127).
7 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330769

142 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
tomou um status de “normalidade” no Brasil, exigir o exame de corpo de delito e a prévia

TEORIA E CULTURA
visto socialmente a mãe, geradora, é que deve comunicação à autoridade policial para a mulher
ter a responsabilidade de criação, não havendo que aborta no caso de gravidez resultante de
qualquer criminalização ou punição ao homem estupro. A imposição do exame vai de encontro a
que abandona seus filhos. Neste sentido, todas as políticas de resguardo e implementação
segundo o Conselho Nacional de Justiça, mais de direitos humanos das mulheres, violando,
de 5,5 milhões de crianças não tem o nome sobremaneira, os direitos fundamentais (sexuais
do pai na certidão de nascimento8. Ou seja, os e reprodutivos), legitimando a violência de
parlamentares que apresentam estes projetos gênero.
defendem que a mulher não pode ter o direito de O fato de impor à mulher tal procedimento
abortar já que o embrião é um ser vivo e, por este primeiro desacredita sua palavra e, segundo,
motivo, tem plenos direitos e deve ter proteção a faz passar por um processo doloroso e
absoluta do Estado contra a subversão feminina traumático, logo após uma experiência horrenda
de contrariar uma regra moral religiosa (RUIBAL, de violência contra seu corpo. Este exemplo só
2014), mas não se preocupam com o abandono atesta a perspectiva subalterna que o projeto
paterno que pode gerar traumas na criança. coloca na mulher. Spivak, em seu livro “Pode
Ou, quando tentam se preocupar, colocam a o subalterno falar?” (2010) questiona: “O que
mulher violentada em uma situação ainda mais a elite deve fazer para estar atenta à construção
vulnerável ao permitir que o estuprador tenha contínua do subalterno? A questão da mulher
direitos paternos. parece ser a mais problemática nesse contexto.
Evidentemente, se você é pobre, negra e mulher,
2.2. Criminalizar já! está envolvida de três maneiras” (pg. 65) e,
especificamente neste caso do aborto essas
Neste tópico analisaremos os projetos de mulheres de classe baixa e negras são as mais
lei que tratam da criminalização do aborto e prejudicadas por estes projetos. Primeiro porque
do endurecimento das penas já previstas pela mulheres com condição financeira que tiverem
legislação brasileira para esse tipo. Para tanto, sofrido violência sexual e desta resultar uma
trataremos dos projetos de lei do Senado nº gravidez, irão procurar atendimento particular
460 e 461/2016 e projetos de lei nº 5069/2013, (como acontece hoje) para abortar. No entanto,
1545/2011 e 7443/2006, da Câmara dos as mulheres desprovidas dessa condição, serão
Deputados. Os projetos de lei do Senado nº 460 obrigadas a submeterem-se, nos hospitais
e 461, foram apresentados no ano de 2016 pelo públicos, a este exame que pode demorar dias,
Senador Pastor Valadares9 (Sebastião Valadares semanas ou até meses e, enquanto isso, ela deverá
Neto), presidente da Convenção das Assembleias arcar com os custos e infortúnios dessa gravidez
de Deus em Rondônia, Ministério de Madureira forçada.
e também um dos apresentadores do programa O projeto ainda propõe alterações na Lei
evangélico Deus Fala Comigo, exibido em seu 12.845/13 que prevê o uso da chamada “pílula do
estado10. O projeto 460 visa alterar o Código Penal dia seguinte” (“profilaxia da gravidez”) às vítimas
para criminalizar o induzimento e a instigação de abuso sexual, de acordo com a redação do
ao aborto e o anúncio de meio abortivo (pílula artigo 3º, inciso IV do diploma normativo. Se
do dia seguinte, por exemplo) bem como quer o projeto de lei for aprovado definitivamente, a

8 http://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem-5-5-milhoes-de-criancas-sem-pai-no-registro/
9 O Pastor era Suplente do Senador Acir Gurgacz, tendo atuado no período de 14 de setembro de 2016 até 13 de janeiro
de 2017, não integrando oficialmente a Frente Parlamentar Evangélica.
10 http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/09/14/pastor-valadares-toma-posse-no-senado

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 143
pílula só poderá ser utilizada pelos profissionais qualquer dos seus estágios de desenvolvimento.
de saúde como medicação não abortiva para Sendo assim, a intenção deste legislador é
TEORIA E CULTURA

prevenir a gravidez resultante do estupro (MAIA impedir a interrupção intencional e desmotivada


SILVA; SOUZA, 2017). Dessa forma, o próprio do processo de gestação e, consequentemente, a
conceito de violência sexual apresentado pela Lei morte dos sempre indefesos e vulneráveis fetos (PL
12.845/13, que atualmente compreende qualquer 460/2016). Ademais, justifica ainda que muitas
forma de atividade sexual não consentida, mulheres que abordam não tinham tal intenção,
independente da prática de violência, será mas o fazem induzidas por seus companheiros
alterado para abranger apenas o “crime contra ou médicos (PL 1545/2011). Neste sentido, estes
a liberdade sexual de que resulte danos físicos e projetos também seriam uma forma de proteger
psicológicos”. a vida da mulher destes “personagens ocultos
Já o Projeto 461 também altera a legislação que incentivam a interrupção da gestação e não
penal com o intuito de criminalizar a prática do são responsabilizados por falta de previsão legal”
aborto em qualquer estágio da gestação, sendo (PL 460/2016, pg. 03, 2016). O PL 7443/2006
uma resposta clara e direta à decisão do STF ainda usa como justificativa a comparação do
que, ao julgar o HC 124.306/RJ, entendeu que a impacto e gravidade do aborto com os crimes
interrupção voluntária da gestação, efetivada nos de homicídio e estupro e propõe a inserção da
primeiros três meses de gravidez deve ser excluída interrupção voluntária da gravidez no rol dos
do âmbito de incidência dos artigos 124 a 126 do crimes hediondos.
Código Penal (CP), que tratam do aborto. Outros Por fim, o Projeto de Lei 5069/2013, de
dois projetos que tratam do assunto e são de autoria de 14 Deputados Federais, dentre eles
autoria do ex-deputado Eduardo Cunha, são as Eduardo Cunha11, Arolde de Oliveira, Lincoln
proposições 1545/2011 e 7443/2006. O primeiro Portela, João Campos, Roberto de Lucena e
tipifica o crime de aborto praticado por médico Marcos Rogério (todos integrantes da bancada
quando não forem os 02 previstos no Código evangélica), atua na mesma linha do projeto
Penal: necessário (para salvaguardar a vida da 460/2016 do Pastor Valadares, criminalizando
gestante) ou de gravidez resultante de estupro o uso ou até mesmo a instrução e orientação
(sentimental). A pena mínima passaria de 02 sobre substâncias abortivas (como a pílula
para 06 anos, enquanto a máxima dobraria de 10 do dia seguinte), com penas máximas de até
para 20 anos de reclusão. Além disso, os médicos 10 anos, dependendo da situação do agente.
também seriam punidos com a proibição Tais proposições, desde a criação, têm sofrido
definitiva do exercício da profissão. diversas críticas de movimentos feministas por
Já o projeto 7443/2006 tinha o intuito de obstarem a interrupção da gravidez em casos
incluir o tipo penal do aborto no rol de crimes de violência sexual, além de criminalizá-la com
hediondos, justificando que qualquer ato contra mais rigor. Este projeto adiciona uma nova
a vida deveria ser punido pelo Estado com o tipificação criminal ao Código Penal (artigo
mais extremo vigor. Este, apesar de ter sido 127-A), definindo como delito o induzimento
arquivado em 2007, foi desarquivado em 2015 a instigação ou auxílio ao aborto. Além disso,
(coincidentemente no momento em que o autor ainda será criminalizada a conduta de entregar,
era presidente da casa) e atualmente tramita em mesmo que gratuitamente, substância ou objeto
conjunto com outros projetos de mesmo teor. As destinados a provocar aborto, bem como orientar
motivações destes projetos são praticamente as e instruir a gestante sobre formas de se praticar
mesmas: proteção à vida humana intrauterina em aborto. Ainda, o delito se qualificará se o aborto

11 Eduardo Cunha foi presidente da Câmara dos Deputados de 1º de Fevereiro de 2015 até 05 de Maio de 2016, tendo
sido afastado pelo STF e posteriormente tendo seu mandato cassado e sendo preso em Outubro de 2016 acusado de
recebimento de proprina e lavagem de dinheiro.

144 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
for praticado por agente de serviço público de da mulher estuprada e, ainda, aumenta as

TEORIA E CULTURA
saúde ou por quem exerce a profissão de médico, chances de gravidez indesejada, eliminado a
farmacêutico ou enfermeiro. profilaxia da gravidez. Aliás, insta salientar
Não bastasse isso, o projeto ainda possibilita que uma das estratégias utilizadas pelos grupos
ao médico de escusar-se ao dever de aconselhar, conservadores tem sido inserir seus membros em
receitar ou administrar qualquer procedimento comissões legislativas essenciais para aprovar (ou
ou medicamento que provoque abortamento, rejeitar) qualquer projeto de lei que passe pela
de acordo com o exercício de seu “direito de casa13. A justificativa deste projeto começa com a
consciência”. Contudo, devemos salientar que explicação de que a legalização do aborto estaria
essa previsão contraria o Código de Ética Médica, sendo imposta por organizações internacionais
que apesar de garantir ao médico o direito de que defendem a ideologia neo-maltusiana de
objeção de consciência, impõe o dever de orientar controle populacional e financiadas por fundações
a vítima e garantir a atenção ao abortamento por norte-americanas ligadas a interesses super-
outro profissional ou instituição (MAIA SILVA; capitalistas. Dessa maneira, os Estados Unidos
SOUZA, 2017). REIS (2015), dissertando sobre estariam, desde a década de 70, encorajando a
os impactos do projeto 5069/2013 que trata dos prática do aborto em países subdesenvolvidos
Direitos das Mulheres, afirma que o efeito da conseguindo enganar até mesmo as mulheres
não obrigatoriedade do médico em aconselhar, fazendo-as acreditar que a interrupção da
receitar ou administrar qualquer procedimento gravidez seria uma “emancipação feminina”
ou medicamento que provoque abortamento, ou “meio de afirmação dos direitos sexuais e
faz com que as vítimas dependam do fator sorte, reprodutivos femininos”, mas seu real objetivo
de modo que, quando do atendimento, se o nada mais é do que o controle demográfico da
médico possuir convicções severas, não poderá população mundial (PL 5069/2013).
a vítima contar com a medicação12. Assim, vê-se Assim, é dever do sistema jurídico brasileiro
claramente a inconstitucionalidade do dispositivo, enfrentar essa ofensiva internacional e fazer
já que, em razão da laicidade do Estado, não pode valer as normas constitucionais que protegem a
uma vítima ficar na dependência de convicção inviolabilidade do Direito à vida e, para tanto, é
pessoal do profissional da saúde (MAIA SILVA; importante o preenchimento de possíveis lacunas
SOUZA, 2017). no sistema jurídico que ameaçam os direitos dos
Devemos destacar que essa proposição, já nascituros. E, finalmente, os deputados ainda
aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e afirmaram que as normas contrárias à interrupção
Cidadania da Câmara dos Deputados, prejudica voluntária da gravidez são “um desejo da maioria
a informação e o atendimento da vítima de esmagadora do povo brasileiro, que repudia a
violência sexual, impõe a vitimização secundária prática do aborto, conforme verificado pelas mais

12 Este dispositivo segue a ideia da legislação italiana que legalizou o aborto em 1978, pela lei 194, permitindo a
interrupção da gravidez nos primeiros 90 dias após a concepção, para proteger a saúde da mulher. Entretanto, a legislação
ainda possibilita ao médico objetar-se de tal prática por justificativa de crença pessoal, fator que aumentou o número de
abortos ilegais, pois a maioria dos médicos credenciados na rede pública negavam-se ao procedimento justificando sua
doutrina religiosa cristã.
13 Em conjunturas importantes, a bancada religiosa tem presidido duas das comissões legislativas fundamentais para
o tratamento do direito ao aborto: a Comissão de Seguridade Social e Família e a Comissão de Constituição, Cidadania
e Justiça, ambas na Câmara dos Deputados (Mori, 2009, p. 83). Não obstante, o caso mais grave até o momento, quanto
à inserção do fundamentalismo religioso no Estado, foi a eleição, em fevereiro de, 2013 como presidente da Comissão
de Direitos Humanos e Minorias do deputado e pastor Marco Feliciano, que havia realizado manifestações públicas de
conteúdo racista e abertamente contrárias aos direitos das mulheres e das minorias sexuais. Feliciano presidiu a Comissão
até dezembro de 2013 e gerou uma advertência a outros setores da sociedade sobre a vulneração dos limites da esfera
estatal por parte de atores fundamentalistas (RUIBAL, 2014, pg. 124).

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 145
diversas pesquisas de opinião” (PL 5069/2013, pg. Parlamentar Evangélica vem ganhando cada vez
06). E, sendo o Congresso Nacional responsável mais espaço por suas ideias de defesa da moral
TEORIA E CULTURA

por traduzir a voz do povo brasileiro, a reforma e dos bons costumes da família tradicional
legislativa que trata deste assunto é necessária brasileira, contrariando minorias e propondo leis
para endurecer as penas e combater os meios que que retirem ou dificultem direitos já garantidos,
facilitam o aborto ilegal. principalmente às mulheres e aos homossexuais.
Este grupo demonstra o contexto político de
CONCLUSÃO interferência cada vez maior de moral religiosa
na elaboração de normas penais e civis no Brasil,
Questões sobre sexo e sexualidade sempre o que iria de encontro aos limites constitucionais
estiveram presentes em discussões na maioria impostos ao poder configurador do legislador e
das sociedades e “isso tem sido um elemento do próprio ideal de Estado Laico e Secular.
chave do debate político na maior parte dos dois Rubin (1989) acertou ao questionar a
últimos séculos” (WEEKS, 2007, pg. 73). Debate, legislação sexual em relação à normas sobre outras
pois, no que concerne ao tema, temos, de um questões sociais. Neste sentido, a autora dirá que
lado, uma direita conservadora forte e numerosa, o Estado sempre interfere nas questões sexuais
muitas vezes ligadas à alguma doutrina religiosa de um jeito que não seria tolerado em qualquer
que julga o tópico através de sua moral própria outro aspecto da vida social. E, na maioria das
e, por outro lado, defensores da igualdade de vezes essa intromissão é negativa no sentido de
direitos e garantias em um Estado Democrático suprimir direitos simplesmente por entender
de Direito. As mulheres, apesar de constituírem que certas atitudes são imorais e contrariam os
51,6% da população brasileira14, praticamente bons costumes da sociedade. Então, diante deste
não têm voz na vida pública, tendo míseros cenário, os legisladores evangélicos utilizam o
9% de presença na Câmara dos Deputados ordenamento jurídico como uma vantagem na
(45 deputadas entre 513) e 13% de Senadoras guerra contra os direitos homoafetivos e sexuais
(sendo 10 entre 81 Senadores)15. E, esta falta de femininos, demonstrando a falta de preocupação
representatividade talvez seja um dos principais em realmente preservar a vida.
motivos que possibilitam a criação de projetos Após a exposição destas nove proposições
de leis controversos que tratem da saúde, legislativas que tratam sobre o direito à vida e
segurança, liberdade sexual e reprodutiva da interrupção voluntária da gravidez, algumas
mulher, leis estas que, além de atestarem a ideia considerações podem ser feitas quanto ao
de que os homens “precisam tomar conta das discurso dos parlamentares para justificar seu
mulheres” ainda retiraram direitos fundamentais posicionamento “pró-vida” e contra o aborto.
já garantidos pela Corte Suprema e por nossa Apesar de a premissa de natureza confessional
Constituição Federal. ser ainda muito forte nas falas em plenários
Assim, tão antigo quanto o tema é a polêmica e entrevistas dos parlamentares da bancada
que o rodeia e, volta e meia, nos dias de hoje, evangélica, percebe-se que nestes projetos os
somos testemunhas das tentativas de impedir a argumentos religiosos foram usados com cautela
definitiva legalização de questões já legitimadas e geralmente serviram apenas para reafirmar
pelos tribunais superiores brasileiros. Um desses um outro argumento de natureza diversa. Isto
grupos que vem atuando na arena política ocorre provavelmente pois vários projetos de leis
brasileira é a Bancada Evangélica. A Frente anteriores foram rejeitados logo no início de sua

14 http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/mulheres-sao-maioria-da-populacao-e-ocupam-mais-espaco-
no-mercado-de-trabalho
15 http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-tem-menos-mulheres-no-legislativo-que-oriente-medio,1645699

146 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
tramitação sob a justificativa de contrariarem aborto. Outra premissa comum nas proposições

TEORIA E CULTURA
a laicidade, já que as proposições sobre é a comparação do aborto com homicídio.
criminalização do aborto praticamente possuíam Muitos deputados defendem que a interrupção
apenas justificativas religiosas (“Desejo de Deus”, voluntária da gravidez deve ter suas penas
“Está escrito na Bíblia”, “Criador concedeu endurecidas pois uma vida indefesa está sendo
a vida, só ele tem o poder de tirá-la”, dentre ceifada, neste sentido, é necessário não só
outros). Portanto, para conseguir que os projetos criminalizar, mas também incluir o aborto no
continuassem até a votação em plenário, motivos rol de crimes hediondos para que aquelas que
científicos e sociais foram adicionados junto aos cometam tal prática não sejam beneficiadas pelas
religiosos, como veremos adiante. leis de processo penal.
Dois motivos presentes em quase todos os Finalmente, dentre os argumentos mais
projetos apresentados são “a defesa da família utilizados, não poderia deixar de destacar aquele
tradicional” e “a defesa incondicional da vida que se baseia no “desejo da maioria da população”.
em qualquer estágio”. Ambos são reconhecidos Os parlamentares justificam ser o aborto ilegal
como valores morais cristãos pois baseiam- pois grande parte dos brasileiros, que seriam
se principalmente nas escrituras sagradas. cristãos, são contrários a tal prática e, sendo as
Para as mulheres o sexo deve ser considerado leis fenômenos sociais, cabe aos Deputados e
estritamente com fim único de reprodução (e Senadores ouvirem o clamor das ruas e criarem
não, também, o prazer) e isto justifica a visão as leis baseando-se na moral e princípios que
religiosa contrária ao aborto. A relação sexual grande parte tem como certo. Porém dentre os
geralmente é considerada como perigosa, argumentos apresentados, o que mais preocupa é
destrutiva, uma força negativa (RUBIN, 1986), aquele que trata sobre o ativismo judicial do STF.
sendo “tolerável” apenas para um bem maior, O sistema de freios e contrapesos e a tripartição
qual seja, a procriação. E, em sendo assim, toda dos poderes é um dos principais fundamentos
e qualquer gravidez será “desejada”, “planejada e de uma república democrática, devendo as três
“sabida” (portanto, desnecessário o aborto) pois a esferas agirem harmonicamente. Cada um têm
função feminina é gerenciar as relações com afeto o seu papel a desempenhar perante a sociedade.
e emoção. Neste sentido, Altivo, comentando No entanto, para que a população não saia
a visão da Igreja Universal sobre casamento prejudicada no caso de negligência de uma dessas
e o papel da mulher, dissertará que à mulher esferas, a própria carta magna trouxe previsões
cabe “atuar na constituição de pessoas (pela da possibilidade de um poder agir numa função
maternidade e pelos cuidados com a manutenção típica de outro.
dos corpos familiares) nas relações de afeto e O Supremo Tribunal Federal, ao ter uma
emoção que configuram o ambiente acolhedor postura pró-ativa em alguns assuntos (sempre
do lar” (2016, pg. 182). após ser provocado de maneira legal e na forma
O determinismo biológico também foi prevista) está assegurando que minorias tenham
utilizado como fundamento nos projetos. seus direitos garantidos a despeito de ainda não
Este pressupõe que as características físicas e haver qualquer lei tratando sobre a matéria.
psicológicas das mulheres a obrigam a ser mãe, Quando a Corte Suprema legitima o casamento
mas isto não a permite escolher sobre a vida/ entre pessoas do mesmo sexo e permite que
morte do bebê, cabendo a Deus tal decisão. uma mulher interrompa a gravidez, ela não está
Por esta premissa também se explica outro legislando, mas sim fazendo valer os direitos e
argumento: o da fragilidade das mulheres. garantias fundamentais previstos no artigo 5 º da
Eduardo Cunha, em um dos seus projetos, alega Constituição. E, diante da realidade brasileira e
que as mulheres precisam de proteção de seus da crescente onda conservadora na política, os
companheiros e médicos que as induzem ao cidadãos precisam sempre ter a quem e como

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 147
recorrer na defesa dos seus direitos. Por isso e a Anistia Internacional17 demonstraram
instituições e indivíduos estão preocupados com preocupações acerca do retrocesso de direitos
TEORIA E CULTURA

o fato de vários parlamentares (não só da bancada que vem ocorrendo no Brasil desde a saída
evangélica) apresentarem projetos para limitar da Presidenta Dilma, em 2015. São quase 200
ou até mesmo anular essa prática recorrente. propostas diferentes de emendas constitucionais,
Caso isso ocorra, vários grupos perderam a única novas leis e modificações da legislação existente
via legal que têm hoje para assegurar uma efetiva que ameaçam uma série de direitos humanos,
isonomia social. Entre essas medidas retrógradas estão: redução
Ademais, devemos destacar que estes projetos, da maioridade penal, revogação do estatuto do
caso aprovados, serão ineficientes para diminuir desarmamento, proibição absoluta do aborto
o número de interrupções voluntárias da gravidez (violando os direitos sexuais e reprodutivos das
(e mortes em decorrência de procedimentos mulheres e meninas) e restrição ao direito de
inadequados) pois muitas mulheres continuarão manifestação pacífica (ANISTIA, 2018). Por
praticando o aborto, algumas em clínicas conseguinte, discussões como a proposta neste
particulares e outras buscando formas trabalho são importantes para que a população
alternativas, perigosas e inseguras para o fim da tome conhecimento das agendas dos políticos e
gestação. Infelizmente, ao invés de os congressistas de suas propostas.
preocuparem-se em regulamentar o aborto e dar
condições médicas, psicológicas e seguras para as AGRADECIMENTOS
mulheres prevenirem a gravidez ou abortarem,
eles operam com uma racionalidade de morte Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa
e não de proteção a vida, já que a “ampliação do Estado de Goiás (FAPEG) pelo auxílio
dos tipos penais e a minimização da política de financeiro que possibilitou o Doutorado
redução de danos prevista na lei de atendimento Sanduíche na Università di Pisa, bem como a
integral às vítimas de violência sexual revelam realização desta pesquisa.
um ódio à autonomia sexual e reprodutiva das
mulheres que beira à misoginia”. (CAMPOS,
AMORIM; LOYOLA, 2013, pg. 18) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Assim, os dispositivos não servem ao ideal
de proteção da vida, mas sim, “ao controle sexual ALTIVO, Bárbara. Dever e prazer no casamento-
e reprodutivo das mulheres, demonstrando empresa: transações regulares de controle do amor
a hipocrisia do discurso em defesa da vida” segundo a Igreja Universal. In: Revista Galáxia
(CAMPOS, AMORIM; LOYOLA, 2013, pg. 19), Online, n. 32, 2016, pg. 176-187.
ademais, projetos de leis com esse conteúdo
e justificativa estritamente moral, só atestam ANISTIA INTERNACIONAL. O Estado dos
a ideia de submissão feminina, dessa vez, à Direitos Humanos no Mundo: Informe 2017/2018.
vontade de um legislador que, ao tentar impor Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/
sua doutrina religiosa, ameaça direitos humanos, uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf
sexuais e reprodutivos das mulheres, além de Acesso em: 14/06/2018.
contrariarem o princípio da laicidade estatal.
Isto explica porquê organizações internacionais, BERGER, Peter. A dessecularização do Mundo:
como o Comitê de Direitos Humanos da ONU16 uma visão global. In: Religião & Sociedade. Rio

16 https://nacoesunidas.org/revisao-periodica-universal-brasil-recebe-mais-de-240-recomendacoes-de-direitos-
humanos-na-onu/
17 https://anistia.org.br/direitos-humanos/informes-anuais/informe-anual-20172018-o-estado-dos-direitos-humanos-
mundo/

148 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
de Janeiro, 2011, pg. 09-23. em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/

TEORIA E CULTURA
fichadetramitacao?idProposicao=597005 Acesso
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Trad.: em 15/05/2018.
Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
______. PL 7.443/2006. Disponível
BRASIL. Constituição da República Federativa do para acesso em: http://www.camara.
Brasil. São Paulo: Saraiva, 2017. g o v. b r / p r o p o s i c o e s We b / p r o p _
egra?codteor=416204&filename=PL+7443/2006
______ Lei 12.835/13. Disponível para acesso Acesso em 15/05/2018.
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm Acesso em ______. PL 8166/2014. Disponível para acesso em:
10/05/2017. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/p_
a?codteor=1287642&filename=PL+8116/2014
BUTLER, Judith e RUBIN, Gayle. “Tráfico sexual Acesso em 15/05/2018.
– entrevista (Gayle Rubin com Judith Butler)”.
In: Cadernos Pagu (21). Campinas: Núcleo de CAMPOS Carmen Hein de; AMORIM, Rovena
Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, 2003. Furtado, LOYOLA, Júlia Roberta Teixeira; Aborto
Análise crítica do PL 5069/2013. In: Revistas
CÂMARA DOS DEPUTADOS, Frente Eletrônicas PUC RS, Porto Alegre, 2013.
Parlamentar Evangélica. Disponível para
acesso em: http://www.camara.leg.br/internet/ DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE
deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658 Acesso ASSESSORIA PARLAMENTAR. Evangélicos
em 15/05/2018. crescem no Congresso; PSC tem mais
representantes. Disponível para acesso em:
______. PL 478/2007. Disponível para acesso http://www.diap.org.br/index.php?option=com_
em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ content&view=article&id=14637-evangelicos-
fichadetramitacao?idProposicao=345103 Acesso crescem-no-congresso-psc-lidera-em-numero-
em 15/05/2018. de-parlamentares Acesso em 15/05/2017

______. PL 1.545/2011. Disponível DINIZ, Madeiro Marcelo. Pesquisa Nacional


para acesso em: http://www.camara. de Aborto 2016. Cien Saude Colet [periódico
g o v. b r / p r o p o s i c o e s We b / p r o p _ na internet] (2016/Nov). disponível em:
egra?codteor=884992&filename=PL+1545/2011 http : / / w w w. c i e n c i a e s au d e c o l e t i v a . c om .
Acesso em 15/05/2018. br/artigos/pesquisa-nacional-de-aborto-
2016/15912?id=15912&id=15912. Acesso em
______. PL 5.069/13. Disponível para acesso 07/05/2018.
em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=565882 Acesso EXAME. Os números da violência contra
em 15/05/2018. mulheres no Brasil. In: Revista Exame:
08/03/2017. Disponível em: https://exame.abril.
______. PL 5166/2005. Disponível com.br/brasil/os-numeros-da-violencia-contra-
para acesso em: http://www.camara. mulheres-no-brasil/ Acesso em: 06/12/2017
g o v. b r / p r o p o s i c o e s We b / p r o p _
egra?codteor=304198&filename=PL+5166/2005 FRANCHETTO, Bruna; CAVALCANTI, Maria
Acesso em 15/05/2018. Laura; HEILBORN, Maria Luiza. “Antropologia e
Feminismo”. In: Perspectivas Antropológicas da
______. PL 6.583/2013. Disponível para acesso Mulher. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 149
LUNA, Naara. “Aborto no Congresso Nacional: atividade/materias/-/materia/127776 Acesso em
O Enfrentamento de atores religiosos e feministas 25/05/2018.
TEORIA E CULTURA

em um Estado laico”. In: Revista Brasileira de


Ciência Política, nº14. Brasília, maio - agosto de SOFIATI, Flávio. “Perspectivas da laicidade no
2014, pp. 83-109. Brasil Contemporâneo”. In: Dossiê Desafios
Contemporâneos da Sociologia da Religião
MACHADO, Maria das Dores Campos; BURITY, Cadernos, 2015, pg. 327 - 350.
Joanildo. A Ascensão Política dos Pentecostais
no Brasil na Avaliação de Líderes Religiosos. In: SPIVAK, Gaiatry. Pode o subalterno falar? Belo
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
57, no 3, 2014, pg. 601 a 631.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, APFD 54.
MAIA SILVA, Renata Cristina; SOUZA, Naiana Disponível para acesso em: http://www.stf.jus.
Zaiden Rezende. Atuação da frente parlamentar br/portal/processo/verProcessoAndamento.
evangélica frente aos direitos fundamentais das asp?incidente=2226954 Acesso em 12/04/2018.
mulheres: projeto de lei do aborto e estatuto
do nascituro. In: Revista Aporia Jurídica (on- RUIBAL, Alba. “Feminismo frente à
line). Revista Jurídica do Curso de Direito da Fundamentalismos Religiosos”. In: Revista
Faculdade CESCAGE. 8ª Edição. Vol. 1 (jul/dez- Brasileira de Ciência Política, nº 14, 2014, pg.
2017). p. 295 - 316. 111 - 138.

NAÇÕES UNIDAS. Feminicídio: Brasil WEEKS, Jeffrey. “O corpo e a sexualidade”. In:


quinto maior do mundo. In: ONU: 12/04/2016. Louro, G. O Corpo Educado – pedagogias da
Disponível em: https://nacoesunidas.org/ sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-
diretrizes-nacionais-buscam-solucao/ Acesso
em: 06/12/2017.

RUBIN, Gayle. “El Tráfico de Mujeres: notas sobre


la “economia política” del sexo”. In: Revista Nueva
Antropología (30, VIII). México: 1986.

SCHUCK, Elena de Oliveira. As políticas de


gênero e o enfrentamento da bancada religiosa
no Poder Legislativo. Disponível para acesso
em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.
dype.com.br/resources/anais/20/1373336040_
ARQUIVO_Schuck.FazendoGenero.pdf Acesso
em 23/05/2018.

SENADO FEDERAL, PL 460/2016. Disponível


para acesso em: https://www25.senado.leg.
br/web/atividade/materias/-/materia/127777
Acesso em 25/05/2018.

______. PL 461/2016. Disponível para acesso


em: https://www25.senado.leg.br/web/

150 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 13 n. 2 Dezembro. 2018 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)

Você também pode gostar