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Fernando de Ligório, A Alquimia Negra Do Culto de Exu

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FERNANDO DE LIGÓRIO

A ALQUIMIA NEGRA DO
CULTO DE EXU
A TRADIÇÃO DAS SOMBRAS
TEXTO 3

PALAVRAS INICIAIS

U ma pergunta singela norteia todo o caminho da iniciação. Enquanto


o neófito, o iniciado ou o adepto hesitar em fazê-la ou estar consci-
ente dela e de sua resposta, todo e qualquer caminho é tomado em
vão; é como seguir por uma estrada e não saber até onde ela vai le-
var; um exercício que na maioria das vezes conduz ao fracasso. A pergunta é:
qual é o destino que quero dar a minha alma após a minha morte? Essa per-
gunta foi muito cara aos iniciados do passado, profundamente preocupados
com o destino de suas almas. Trata-se de uma pergunta norteadora porque
todo sistema de iniciação, culto de mistérios ou religião etc. leva a alma hu-
mana para algum lugar. Então sabendo qual é o destino que se quer conduzir
a alma após a morte, o caminho para conquista deste objetivo torna-se claro,
muito embora segui-lo constitua uma labuta árdua e severa, um ordálio de
iniciação.
A Quimbanda, um culto brasileiro de mistérios do caminho da mão es-
querda, oferece um norte através de um processo de alquimia espiritual. A
ignição deste processo e seu modus operandi são as ferramentas teúrgicas
que a Quimbanda oferece; entre os principais, o conhecimento e a conversa-
ção com os Poderosos Mortos através da paranormalidade pessoal desperta
(capacidades mediúnicas) e do corte sacerdotal propiciatório as deidades da
Quimbanda. Essas duas ferramentas atuam poderosamente na alma, ope-
rando um profundo processo de transmutação alquímica nela. Na Quimban-
da chamamos este processo de Alquimia Negra da Alma. Para explicá-lo, no
entanto, teremos de empreender uma jornada até o passado na intenção de
construir uma ponte entre a Quimbanda e suas ferramentas teúrgicas de dei-
ficação da alma, a teurgia clássica neoplatônica e a feitiçaria dos PAPIROS MÁ-
GICOS GREGOS. Será possível identificar que a Quimbanda não formula absolu-
tamente nada de novo. O Culto de Exu no Brasil emula os cultos e tradições
de mistérios, usando a mesma tecnologia espiritual que no passado feiticei-
ros, magos e teurgos utilizaram. E é por esse motivo que a Quimbanda, efeti-
vamente, funciona, tanto na apoteose mística da alma quanto no exercício
taumatúrgico da feitiçaria.
No caminho da mão esquerda o exercício que leva a apoteose da alma,
quando ela torna-se deificada, é distinto do exercício que encontramos para
a mesma finalidade nas escolas da mão direita. Para a compreensão desse
processo de alquimia e deificação da alma na Quimbanda, portanto, será
preciso identificá-los no caminho da mão direita. Por conta disso, primeiro
vamos explorar o conceito de ochēma-pneuma construído na teurgia neopla-
tônica; passaremos a deificação da alma através do auxílio do espírito tute-
lar, o paredros dos papiros gregos, para então encontrar suas equivalências
na tradição de Quimbanda.

SEÇÃO . I .
VEÍCULO PNEUMÁTICO

O conhecimento popular acerca da constituição ou estrutura espiritual – i-


material mas efetivamente existente – que a visão ocultista moderna disse-
mina vem do tantrismo, mas refratada através das lentes da Sociedade Teo-
sófica. Seguindo a interpretação teosófica da estrutura espiritual hindu, mui-
tas outras escolas modernas no Ocidente desenvolveram reinterpretações
dessa doutrina. Assim, temos escolas modernas que dizem que temos quatro
corpos, i.e. físico, astral, mental e espiritual; outras dizem que temos cinco, o
físico, etérico, astral, mental e espiritual; ainda, outras propõem seis, o físico,
etérico, astral, mental inferior, mental superior (intelectual) e espiritual; e
finalmente, as escolas que falam de sete corpos: físico, etérico, astral inferior,
astral superior, mental inferior, mental superior e espiritual (intelectual).
Uma salada de frutas emprestada da cultura tântrica. O que muitos ocultistas
modernos não sabem é que o Ocidente produziu sua própria visão da estru-
tura espiritual baseada na filosofia platônica e neoplatônica.

O sagrado comunica até ao corpo um eco A filosofia está unida à arte das coisas sa-
de sua própria qualidade: assim o corpo se gradas, já que esta arte se ocupa da purifi-
torna não só animado e intelectivo, mas cação do corpo luminoso e, se você separar
também divino. o pensamento filosófico dessa arte, desco-
brirá que ela não tem mais o mesmo poder.
Proclo, ELEMENTOS DA TEOLOGIA
Hierócles, IN CARMEN AUREUM

Vamos começar com a ideia de aesthesis1 na prática da teurgia. Os deuses


invocados na teurgia penetram no reino da geração, infundindo nele seus
códigos de luz. Os teurgos incorporam esses deuses por meio da oração fer-
vorosa, inspiração divina (transe mediúnico) e do ritual. É por meio de uma

1 Do grego antigo αἴσθησις que significa percepção sensorial, sensação; do tronco αἰσθάνεσθαι que significa
perceber. Aqui a sensação entra como uma oposição direta a intelecção (noesis), quer dizer, entendimento e
também a dianóia, o pensamento discursivo. De modo geral, aesthesis se opõe a qualquer movimento intelecti-
vo. Para Platão, aesthesis pode ser classificada como visões, sonhos, odores, frio, calor, angústia, medo, prazer,
alegria etc. e incontáveis sensações sem nome (TEETETO, 156b). Para Plotino, a aesthesis do mundo da geração
só produz intelecção obscura (noesis) e a aesthesis dos planos noéticos são percepções puras e vívidas. Fílon de
Alexandria fala de uma aesthesis noética, relacionada ao nous, o Intelecto de Deus.
vida aestética que eles entram em contato com os deuses. Longe de escapar
do mundo da geração e do uso dos sentidos, o teurgo emprega a experiência
aestética como a necessária codificação e o veículo através do qual esta o-
correrá a deificação do corpo sutil da alma, o ochēma.2 No ritual teúrgico, o
ochēma, purificado pela oração diária, é preenchido com a luz dos deuses e
torna-se resplandecente, que dizer, o teurgo se torna um augoeides: uma in-
corporação do divino. O papel do ochēma não é tirar a alma do reino sublu-
nar; antes, o ochēma estando repleto de luz, ele se torna simultaneamente
um veículo para a descida do deus e a deificação da alma. Tornar-se um au-
goeides, portanto, é tornar-se idêntico aos deuses, compartilhar de suas vir-
tudes e luminosidade.
A arte da divinação3 tem como propósito a deificação da alma, por isso
oráculos eram tidos em alta medida aos filósofos e teurgos do passado. Por
meio da divinação a alma recebe um influxo divino que, como um presente
natural dos deuses (e não dos daimones) a eleva e leva na sua direção trans-
formando-a num veículo (ochēma) dos deuses. Devemos cuidar para não
confundir a divinação de origem divina daquela humana e Jâmblico é bastan-
te claro a este respeito. A divinação pode ser considerada como uma, entre
muitas maneiras, pelas quais os deuses se manifestam a nós. Porém, em to-
das elas deve-se ressaltar que é o deus quem realiza o trabalho divinatório e
não os homens,4 não podendo este trabalho se encaixar apenas na esfera da
palavra mas, sobretudo, na da ação e, portanto, da teurgia, não importando
saber o futuro, mas somente a vontade dos deuses.
Buscando definir a teurgia, nos deparamos com muitas definições, sen-
do que algumas delas parecem se desviar da essência daquilo que o termo
evoca, além do que ele significa. A definição baseada no entendimento de
Jâmblico, no entanto, é essa: a teurgia trata-se de uma manifestação muitas
vezes involuntária de um estado interior de santidade que deriva da combi-
nação de bondade e conhecimento no qual o primeiro elemento prevalece.
Dessa maneira, a teurgia representava a tentativa de Jâmblico de corrigir os
excessos de racionalização da filosofia dos seus contemporâneos gregos e
recuperar a sabedoria viva dos antigos recebida diretamente dos deuses.
Transmitidos através dos ritos de sacrifício e de divinação, a teurgia é uma

2 Literalmente, veículo; o barco que leva as Almas dos mortos, a carruagem da Alma no FEDRO de Platão. Em
Aristóteles, ochēma é entendido como pneuma – a sede da imaginação (phantasia), análoga àquele elemento de
que as estrelas são feitas. O ochēma-pneuma como um corpo astral funciona como um portador quase imaterial
da Alma irracional; os daimones têm um pneuma enevoado que altera sua forma em resposta a imaginação de
que o convoca e, assim, eles aparecem em formas sempre mutáveis. Para Jâmblico, o veículo etérico e luminoso
(aitherodes kai augoeides ochēma) é o receptor de phantasiai divinas. o ochēma leva a Alma ao estado de en-
carnação e se obscurece até se tornar completamente material e visível: o corpo material ou carnal é também
uma espécie de ochēma. Proclus distinguiu ochēma como: 1) o maior, imaterial e luminoso ochēma no qual
Demiurgo de Platão coloca a Alma (TIMEU, 41e) e; 2) o inferior, pneumatikon ochēma, que é composto dos qua-
tro elementos e serve como veículo da Alma irracional, sobrevivendo à morte corporal, vagando como um
Egun. É sse tipo de ochēma que comparece a maioria das reuniões kardecistas de mesa branca.
3 O termo divinação sugere uma forma de predição que vem de Deus. Inúmeros tradutores preferem utilizar o

termo adivinhação. Optamos pelo termo divinação em português porque o termo adivinhação parece se associ-
ar mais à magia e à predição de acontecimentos futuros livres do que a profecia, seu sentido mais profundo
enquanto predição que vem de Deus. Nos termos da teurgia e cultos de mistérios do passado, divinação implica
em incorporação, quando a consciência é solapada pela presença divina.
4 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 3, 7 [115].
atividade, uma experiência e uma revelação concreta através da qual os se-
res humanos recuperam a sua identidade divina ao se tornam veículos dos
deuses.
O termo teurgia não pode ser compreendido, a não ser quando se expe-
rimenta a transformação que a experiência promove na alma.5 É neste senti-
do que Jâmblico diz a Porfírio que ele jamais irá compreender como a alma é
arrebatada e possuída pelo divino, elevando-se ao nível dos deuses ao ser
transformada em um veículo da deidade, se não atuar o rito ele próprio.

Não obstante, não basta aprender apenas estas coisas, nem é o caso de que alguém
que saiba apenas estas coisas se torne mestre da ciência divina. Mas faz-se também
necessário saber o que é a possessão divina e como ela se dá. Assim, então, crê-se, fal-
samente, que seja um transporte da mente por inspiração daimônica. Pois o intelecto
humano não é nem arrebatado quando é realmente possuído, nem é o caso que a ins-
piração venha dos daimones, mas dos deuses. No entanto, não se trata sequer de êxta-
se puro e simples, mas de uma exultação e transferência rumo ao que é superior, ao
passo que o frenesi e o êxtase na verdade revelam uma perversão rumo ao que é infe-
rior. Mais ainda, aquele que representa este êxtase diz algo sobre a característica e-
ventual daqueles que estão inspirados, mas não coloca o dedo na ferida. Quer seja, eles
mesmos são totalmente possuídos pelo divino, consequência do que, é o êxtase. Mas
uma pessoa não deve supor com acerto que a possessão divina pertence à alma ou a
uma de suas faculdades, ou ao intelecto ou a uma de suas faculdades ou atividades, ou
às fraquezas corporais ou sua ausência. Nem se deveria supor razoavelmente que isso
se dê deste modo, pois ser transportado por um deus não é nem uma realização hu-
mana, nem isso baseia seu poder nas partes humanas (do corpo) ou atividades. Mas,
por outro lado, estes são, ao contrário, subordinados, e o deus usa-os como instrumen-
tos; por outro lado, toda a atividade da divinação (profecia) chega à sua realização a-
través do deus agindo por si, puramente desapegado de outras coisas, sem que a alma
ou o corpo se mova de modo algum. Daí que, as divinações, ao serem realizadas com
acerto, como já disse, ocorram realmente e verdadeiramente. Mas quando a alma toma
a iniciativa, ou é perturbada durante a divinação, ou o corpo interrompe e perverte a
harmonia divina, as divinações tornam-se turbulentas e falsas, e a possessão não é
mais verdadeira nem genuinamente divina.6

Jâmblico criticava os falsos artífices de sua época da mesma maneira que


hoje os criticamos. Devemos, no entanto, cuidar para não mantermos, com
relação à teurgia proposta por Jâmblico, os mesmos preconceitos ao nos pro-
tegermos daquilo que ainda desconhecemos porque, como ele mesmo diz,
isso só pode ser apreendido na experiência dos ritos não podendo ser com-
preendido pela razão. Em seu esforço por explicar a arte divinatória, Jâmbli-
co culmina na redação do seu DE MYSTERIIS, onde ele elabora a sua defesa da
teurgia.

A Alma se torna precisamente aquilo que Todas as coisas no mundo da natureza não
vê são controladas pelo destino, pois a alma
tem um princípio próprio.
Plotino
Jâmblico

5 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 1, 2 [6].


6 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 3, 7 [114-115].
O DE MYSTERIIS de Jâmblico é um tratado polêmico escrito por um filósofo e
teurgo platônico exasperado pela profunda incompreensão de seu antigo
mestre, Porfírio, em relação à sua tradição comum: a teurgia.7 O estilo de
vida divino que tinha sido a herança dos platonistas e pitagóricos estava
perdendo-se, segundo Jâmblico, devido a erros no pensamento metafísico e
– mais significativamente – à importância exagerada dada ao pensamento
abstrato sobre a experiência direta dos deuses.8 Os erros de Porfírio eram
emblemáticos de uma tendência crescente entre os filósofos gregos que per-
deram contato com a prioridade e a profundidade dos símbolos e rituais di-
vinos. Enquanto a reflexão racional foi certamente valorizada entre os pita-
góricos e platonistas, por muito tempo foi sua prática – especialmente entre
pitagóricos – subordinar seu discurso filosófico à sabedoria esotérica trans-
mitida por símbolos divinos recebidos pelos antigos.9 Portanto, a promoção
vigorosa da teurgia de Jâmblico não deve ser vista, como alguns argumen-
tam, como uma tentativa de introduzir algo novo em sua tradição – por e-
xemplo, um esforço para competir com o cristianismo –, mas sim preservar
algo antigo, a integridade e a santidade de seu estilo de vida filosófico.10
Em seu DE MYSTERIIS, Jâmblico tornou explícito o que estava implícito
em sua tradição: a experiência íntima da divindade reconhecida e comparti-
lhada por ambos os filósofos e pela comunidade. Mas no final do Séc. III d.C.
isso foi ameaçado pelos novos hábitos intelectuais dos gregos. Jâmblico de-
fendeu o elemento esotérico da teurgia, a saber, que o objetivo da vida filo-
sófica é realizado não se tornando apenas bons seres humanos, mas tornan-
do-se deuses. Nisto ele seguiu Plotino, professor de Porfírio, que disse preci-
samente o mesmo: Nossa preocupação não é simplesmente evitar o erro, mas
ser deuses, [...] pois é para com os deuses que devemos nos tornar semelhantes,
não para com os bons homens.11 Sob a rubrica da teurgia, Jâmblico estendeu
esse entendimento a todas as formas de culto onde os seres humanos incor-
poram os deuses em sessões de divinação.12
O fato de Porfírio ter desprezado os ritos teúrgicos como indignos de
um filósofo platônico era sintomático de quão mal orientados os gregos ha-

7 Veja, por exemplo, o tom irônico de Jâmblico onde ele diz que as suposições de Porfírio sobre deuses e dai-
mones estão tão distantes de delinear as características próprias de suas essências que alguém seria incapaz de
sequer conjeturar qualquer coisa sobre elas. DE MYSTERIIS, 49, 9-13. Veja também 156, 3-5; 26, 12-14.
8 Jâmblico sentia que sua tradição estava ameaçada pela heresia do intelectualismo. Foi precisamente contra

essa heresia que ele dirigiu seus esforços, procurando proteger o núcleo revelador do platonismo daqueles que
o reduziriam a uma estrutura de abstrações.
9 Os neoplatônicos compartilham da crença de que a sabedoria não pode ser transmitida por pensamento ou

linguagem racional. Dessa maneira, os neoplatônicos se engajam em intensa reflexão racional que visa não
esboçar verdades dogmáticas, mas diferente disso, despertar o elemento não-discursivo e simbólico em um
exercício ritual. Jâmblico dizia ser este exercício ritual o modo simbólico de discurso.
10 A noção de que a teurgia era uma tentativa de competir com o cristianismo continua a atrair mesmo erudi-

tos eminentes como Pierre Hadot. Ele rejeita o elemento ritual da teurgia como supersticioso e pueril, uma
tentativa infeliz de competir com o cristianismo. Em O QUE É FILOSOFIA ANTIGA?, Edições Loyola, 2014. Quanto à
tendência entre os gregos sobre a arrogância racional e instabilidade intelectual, veja Jâmblico, DE MYSTERIIS,
259, 5-14. Veja também Algis Uždavinys, PHILOSOPHY & THEURGY IN LATE ANTIQUITY (Angelico Press, 2010); Olavo
de Carvalho, FILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS (Vide Editorial, 2012).
11 Plotino, ENÉADA, I.2; 6.3.
12 Como demonstrado no texto TEURGIA & GOÉCIA, o que difere teurgia de goêteia não se trata do método execu-

tado, mas da intenção do executor. Tradições como o Iṣeṣe Lagba são altamente teúrgicas, estando dentro do
tronco xamanismo ou teurgia africana (cabala crioula).
viam se tornado. Enganados pela arrogância do poder discursivo, filósofos
como Porfírio acreditavam que sua capacidade de pensar abstratamente os
libertava das restrições do domínio material. Na opinião de Jâmblico, suas
construções conceituais e falta de piedade13 tinham exatamente o efeito o-
posto: as separavam da divindade do mundo da geração e da comunhão com
os deuses. DE MYSTERIIS é a tentativa de Jâmblico em demonstrar a importân-
cia da recepção dos deuses no ritual teúrgico e a transformação do corpo
sutil da alma, o ochēma, através de atos de divinação e sacrifícios.
Porfírio solicitou a Jâmblico uma explicação sobre como, precisamente,
os deuses se fazem presentes na divinação uma vez que o teurgo perde a
consciência. Ele explicou:

Esta é a maior evidência; para muitos, mesmo quando o fogo é aplicado a eles, não são
queimados, já que o fogo não os toca por causa de sua inspiração divina. E muitos que
são queimados não reagem, porque neste momento eles não estão vivendo a vida de
uma criatura [mortal]. E alguns que são perfurados não têm consciência disso, nem
outros que são golpeados nas costas com machados; ainda outros cujos braços são
cortados com facas não sentem nada. Suas ações não são de forma alguma humanas,
porque o que é inacessível torna-se acessível sob a possessão divina [inspirada]. Eles se
lançam no fogo e andam através do fogo, e andam sobre rios como a sacerdotisa em
Castabala. A partir desses exemplos, fica claro que aqueles que são [divinamente] ins-
pirados não estão conscientes de si mesmos e não levam nem a vida de um ser huma-
no nem um animal vivo no que diz respeito à sensação ou apetite; eles trocam sua vida
por uma outra vida mais divina, pela qual eles são inspirados e pelos quais são com-
pletamente possuídos.14

Obviamente, ser perfurado com facas, cortado com machados e exposto às


brasas e ao fogo não está no itinerário dos filósofos platônicos. Mas o exem-
plo daqueles que passavam por essa experiência demonstrou claramente
tanto para Porfírio quanto para nós hoje, que os seres humanos são capazes
de mudanças profundas na consciência. Este tipo de fenômeno extático, a
incorporação de deidades diversas semelhante à descrição de Jâmblico está
ocorrendo ainda hoje em culturas diversas. Quimbanda, Umbanda, Candom-
blé, Vodu etc. são tradições de cabala crioula que preservaram e refinaram
essa tecnologia espiritual. O êxtase, saindo da orientação habitual, era um
elemento essencial em toda a teurgia e Jâmblico revela a mecânica sutil en-
volvida nesses estados extáticos. Em sua opinião, a consciência é removida
de nossos corpos físicos quando outro corpo toma posse dele, invisivelmen-
te presente no reino da geração; a invasão seria ativada em momentos de
liberação extática, quando o corpo sutil se expande ao ponto de permitir que
outro corpo espiritual o penetre. Este corpo sutil é descrito por Jâmblico
como o veículo da alma (ochēma tēspsuchēs) e é através dele que ela anima o
corpo físico e recebe a presença dos deuses. É através do ochēma que a alma
entra na vida encarnada, e é através desse mesmo ochēma que a alma recebe
os deuses e se torna divina. Se o filósofo platônico se tornaria um deus en-
carnado, como Plotino encorajou, foi por meio do ochēma.

13 No sentido grego, piedade significa prestar honra aos deuses da forma devida.
14 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 110, 4-111, 2.
Enquanto que a essência do platonismo é que o Bem é a razão última da
alma encarnada no reino da geração, é seguro dizer que a essência do neo-
platonismo é o retorno da alma ao Bem, o que consiste em um trabalho duro
sobre a própria alma, sua salvação. Para os neoplatônicos, portanto, a teur-
gia consiste em uma ferramenta de operação sobre a alma através de seu
veículo, o ochēma. Nesse caminho, ele cumpre três funções:

1. Abriga a Alma Intelectual em sua descida do reino noético ao reino da


geração;
2. Atua como o órgão da percepção dos sentidos e da imaginação;
3. Através dos rituais teúrgicos pode ser purificado e elevado aos reinos
noéticos de luz e perfeição, um veículo para o retorno racional da al-
ma através do cosmos aos deuses.

Essa doutrina está completamente exposta em Platão. No TIMEU (41e), onde


o Demiurgo coloca as almas em veículos estrelados (ochēmata), em AS LEIS
(899a) e no FEDRO (247b) onde os veículos da alma são identificados nova-
mente como ochēmata. Aristóteles desenvolveu uma teoria de que cada alma
possui um corpo pneumático celeste e de natureza etérica que serve como
intermediário entre a alma imaterial e os sentidos físicos. Isso é deveras in-
teressante, pois estabelece uma relação entre a alma e os sentidos. Os senti-
dos têm profundo impacto na alma. Como dito por Plotino na citação acima,
a alma se torna exatamente aquilo que vê. É através de seu veículo pneumáti-
co, o ochēma, que a alma recebe impressões do mundo exterior. É preciso
estabelecer, portanto, um filtro adequado para receber e digerir as impres-
sões que a alma recebe por meio dos sentidos. Os hindus desenvolveram um
mecanismo de filtro denominado pratyāhāra,15 onde se pretende estabele-
15 Pratyāhāra é o estágio de entrada na meditação profunda. É o alicerce fundamental de todas as práticas
meditativas do yoga, formando o substrato de todas elas. É um estágio, uma condição espiritual que se divide
em quatro etapas: 1. Primeiro, nós começamos a desenvolver consciência. A definição clássica de pratyāhāra é a
retirada ou abstração dos sentidos. Tem sido dito que assim como uma tartaruga é capaz de recolher todos os
seus membros para dentro do casco, da mesma forma o yogī deveria ser capaz de recolher toda extensão dos
sentidos e da mente do exterior para o interior. Contudo, se nós aplicamos a lógica comum a este processo, nós
iremos entender que não é uma simples questão de se desligar de tudo e se fechar para o mundo exterior. É antes
de tudo se tornar consciente do que está acontecendo externamente e como nós estamos reagindo. Então, na
primeira etapa de pratyāhāra, os sentidos são plenamente estendidos ao mundo externo, permitindo-nos
experimentar sua completa atividade, seja no sentido do tato, paladar, visão, olfato ou audição. 2. Segundo, nós
observamos nossas reações aos estímulos sensoriais. Por exemplo, se surgisse um repentino e agradável aroma
de rosas na sala, a maioria de nós faríamos uma profunda respiração e diríamos: Oh! É apenas um cheiro, mas
este cheiro desperta muitas reações dentro de nós. Um sentimento, uma expressão, uma lembrança podem
estar associados ao sentido do olfato. Logo, muitas reações diferentes se manifestam ao mesmo tempo, ao
passo que nós nem mesmo percebemos todas elas. Se sentirmos o cheiro de carne estragada iremos nos levan-
tar, colocar nossa cabeça para fora da janela e dizer yrk! A mesma coisa está acontecendo novamente. Se algo é
suave e agradável, temos a sensação de prazer. Se algo é áspero de desagradável, não queremos tocá-lo. Essas
são reações comuns, mas ao mesmo tempo são profundas reações aos estímulos sensoriais externos. Na se-
gunda etapa de pratyāhāra, após nós termos expandido nossos sentidos externamente, temos que aprender
como manter nosso equilíbrio, como desenvolver imunidade as influências dos sentidos, que são externas por
natureza. 3. Terceiro, nós recolhemos a consciência das experiências externas para as esxperiências internas dos
sentidos. Começamos a ver a conexão que uma experiência sensorial tem com nossa mente interior. Como o
cheiro desperta memória? Como um cheiro incita a sensação de prazer ou aversão? O reconhecimento e a per-
cepção do processo mental associado com os sentidos é a terceira etapa de pratyāhāra. 4. Quarto, nós percebemos
e harmonizamos as atividades interiores. Depois de ter reconhecido o que experimentamos interna e externa-
mente, e após termos desenvolvido imunidade, nós começamos a etapa final de pratyāhāra. É a experiência de
cer controle sobre os sentidos e seus órgãos correspondentes. O ditado po-
pular diga-me com quem andas e te direi quem tu és transmite um pouco da
ideia de que a alma se alimenta daquilo que vê, que está em contato, se
transformando a partir disso. Esse ditado popular é dito se encontrar na BÍ-
BLIA, mas não está, de fato. No entanto, há outras passagens que o explicam
com uma sabedoria refinada. Em PROVÉRBIOS (13:20): Quem andas com sábio
será sábio; mas o companheiro dos tolos sofre aflição. Em SALMOS (1, 1-6)
Deus exorta para que seus fies não andem no caminho dos ímpios e em MA-
TEUS (13, 1-23) Jesus fala dos perigos do apego ao mundo material na jorna-
da espiritual. Todas essas passagens explicam que nossa alma se torna na-
quilo que ela tem contato. É por isso também que todas as tradições fidedig-
namente espirituais, do Ocidente ao Oriente, colocam ênfase na relação dire-
ta entre aluno e professor, pois é vivendo com o mestre no dia-a-dia que o
discípulo irá absorver as suas genuínas qualidades espirituais. A filosofia,
disse Pierre Hadot, não se aprende em livros, mas do Logos puro exercitado na
relação do professor com seu aluno.16
Se o pneuma de Aristóteles é composto de matéria etérica, estelar, ele é
comparado ao ochēma de Platão, o veículo da alma. O que os hermetistas
modernos vieram a chamar de Corpo de Luz ou Corpo Astral (protoplasmá-
tico, energético, perispírito etc.), é o mesmo pneuma de Aristóteles ou o o-
chēma de Platão, um corpo intermediário na forma de um ovo de luz. É inte-
ressante o formato ovalado do ochēma, cuja proporção é áurea, uma razão
divina capaz de trazer para si as qualidades daqui que vê ou entra em conta-
to. Para Jâmblico, portanto, a alma possui um veículo etérico que anima o
corpo com seu alento (pneuma) que coordena todas as funções sensoriais,
quer dizer, a relação da alma com o mundo através dos sentidos. Este veícu-
lo da alma, o ochēma, também está associado a fantasias e isso segue a cren-
ça de Aristóteles de que as imagens mentais são necessárias para envolver o
mundo. A imaginação, como o próprio ochēma, funciona como uma espécie
de intermediário entre os reinos material e imaterial.17
Se é através do ochēma que a alma se torna um deus, necessariamente
ele desempenha um papel fundamental na divinação teúrgica. Jâmblico for-
nece algumas dicas sobre como esta transformação acontece. Naturalmente,
nós procuramos compreender a função teúrgica do ochēma através de des-
crições discursivamente coerentes. Porfírio fez exatamente isso em suas in-
dagações a Jâmblico. Ele pediu a Jâmblico que articulasse uma explicação
sensata, compreensível a razão e precisa sobre a mecânica pelo qual ocorre
a divinação. No entanto, Jâmblico repreende Porfírio por pensar que a divi-

śūnya, o nada ou vazio, ganhando controle sobre as ações e reações inconscientes dos sentidos e da mente,
interrompendo assim suas interações. Śūnya é apenas a transição de um estado de meditação para o outro, da
consciência para concentração e a concentração se inicia com dhāraṇā. Veja o texto O ELO PERDIDO DO YOGA,
Fernando Liguori.
16 Pierre Hadot, O QUE É FILOSOFIA ANTIGA? (Loyola, 2014).
17 Todas as técnicas de visualização para desdobramento do Corpo de Luz na modernidade estão baseadas

neste princípio fundamental, assim como na consagração de uma estátua ou talismã com o veículo pneumático
de um deus. Quando o teurgo coloca o veículo pneumático de um deus em uma estátua ou talismã, está ani-
mando, infundindo pneuma no objeto consagrado.
nação é um processo compreensível como qualquer fenômeno natural ou
técnica humana capaz de ser analisada pelo pensamento discursivo.
Pois, de acordo com a essência da sua pergunta, você acredita em algo como isto sobre
a presciência: que ela pode vir a existir, e está entre as coisas existentes na natureza.
Mas não é uma das coisas que vêm à existência, e não se comporta de maneira alguma
como uma mudança natural, nem é um artefato inventado para uso na vida cotidiana,
nem é, em geral, uma conquista humana.18

Das três funções do ochēma acima descritas, a terceira é a mais importante


na nossa discussão, de que o veículo da alma pode ser purificado e elevado
aos reinos noéticos de luz e perfeição, transformando-se em um veículo para
o retorno da alma através do cosmos aos deuses. Tanto em Jâmblico como
em Proclo abundam informações de como o ochēma retorna aos reinos noé-
ticos de luz e perfeição. Jâmblico foi pouco generoso para com Porfírio ao
repreendê-lo, dizendo-lhe – e por extensão todos os que pensam como Porfí-
rio – não apenas que sua suposição sobre a divinação é ortodoxa e equivo-
cada, mas que seu próprio modo de pensar está equivocado, mantendo-o
alienado do divino transcendente e qualquer esperança de compreender o
fenômeno.
Para estudiosos que filtram evidências e fornecem relatos racionais so-
bre a filosofia antiga, a repreensão de Jâmblico é muito séria. Existe um de-
safio em compreender a linguagem dos platonistas tardios. Plotino costuma-
va dizer que o pensamento discursivo em si é um tipo de feitiçaria que nos
coloca sob o encanto dos nossos pensamentos.19 Jâmblico diz a Porfírio que
ele precisa de um talismã mental para protegê-lo do hábito de tentar enten-
der os fenômenos teúrgicos nos termos do pensamento discursivo.20 Para
qualquer estudioso que pensa e escreve discursivamente, faz sentido que o
ochēma purificado permita que a alma suba através do cosmo e se junte aos
deuses. Afinal, Jâmblico diz explicitamente que a alma faz uma ascensão (a-
nagōgē).21 A partir disso nós podemos visualizar a alma subindo através das
esferas planetárias e no seu curso o ochēma se purifica na medida que galga
níveis mais sutis, afastando-se do reino da geração. Esse tem sido o caminho
das principais escolas teúrgicas da era moderna. No entanto, embora precio-
so seja esse conhecimento e deveras importante, só isso não basta. Jâmblico
diz a Porfírio: o que você está tentando aprender é impossível, pois Porfírio
queria entender a divinação em termos racionais. O desafio contínuo dos
platonistas tardios era que eles usavam a linguagem discursiva como um
glifo, levando não a conclusões racionais, mas a uma consciência não-

18 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 100, 1-5.


19 Plotino, ENÉADA, IV, 4-43.
20 O termo que Jâmblico usa é µέγιστονἀλεξιφάρµακον (o maior talismã / contra-feitiço). Veja DE MYSTERIIS,

100. 8; 101, 2. Platão usa ἀλεξιφάρµακον de maneira semelhante para indicar um antídoto para visões errô-
neas. Aqueles que legislam devem possuir os escritos do legislador divino e usá-los como um talismã
(ἀλεξιφάρµακον) contra todos os outros discursos. Veja AS LEIS, 957d.
21 Ao longo do DE MYSTERIIS Jâmblico argumenta que a presença dos deuses – através de suas teofanias ou

sunthēmata – eleva a Alma aos reinos de luz e perfeição. A apoteose da alma na teurgia é imaginada como uma
subida (anagōgē) aos deuses. Mas é precisamente como devemos entender essa ascensão teúrgica e como
Jâmblico a compreendia o tema central dessa primeira parte de nosso estudo.
semântica que, nos termos de Jâmblico, era ativada através da teurgia.22 En-
tão, para clarear a função teúrgica do ochēma como um veículo purificado
adequado a ascensão da alma aos reinos de luz e perfeição, seria mais inte-
ressante vê-lo não como um veículo de ascensão, mas como um veículo de
descida, por onde os deuses se revelam na alma e através dela. Desta forma,
o ochēma cumpre o objetivo da vida platônica, transformando teurgos em
deuses: não como estátuas elevadas e inertes erguidas acima da poluição do
mundo, mas como deidades que vivem e respiram em carne na região sub-
lunar.23
O aspecto corporificado e vívido da divinação teúrgica pode ser mensu-
rado nas palavras de Jâmblico para Porfírio depois de explicar as revelações
nos santuários de Asclépio:

Mas por que passar por tais ocorrências, uma por uma, quando os eventos que aconte-
cem todos os dias (καθ’ἡµέρανἀεὶσυµπιπτόντων) oferecem uma clareza maior do que
qualquer explicação (κρείττονατοῦλόγου)?24

Os santuários asclepianos, os oráculos de Delfos, Claros e Dídimos, e o e-


xemplo dos teurgos extáticos imunes à dor das facas e do fogo, todos de-
monstram os efeitos da possessão teúrgica (ou incorporação mediúnica).
Mas Jâmblico parece quase desconsiderar esses exemplos extraordinários e
oráculos muito famosos.25 Ele parece mais interessado na divinação que era a
experiência cotidiana daqueles que vivem em comunhão com os deuses.
A prática diária de Jâmblico era a oração. Ele diz claramente que ne-
nhum ritual teúrgico pode ocorrer sem ela26 e que na oração o ochēma é pu-
rificado.

A prática prolongada da oração nutre nosso intelecto, amplia grandemente o receptá-


culo dos deuses da nossa alma, revela-nos a vida dos deuses, acostuma nossos olhos
ao brilho da luz divina e gradualmente aperfeiçoa nossa capacidade de união íntima
com os deuses. Eleva nossos hábitos de pensamento e nos dá os dos deuses [...]. Au-
menta o amor divino e inflama a presença divina da alma. Limpa (ἀποκαθαίρει) todas
as tendências contrárias da alma e remove de seu veículo etéreo e luminoso (αἰθερώ-
δους καὶ αὐγοειδοῦς πνεύµατος) tudo inclinado à geração [...]. Faz com que aqueles
que oram [...] companheiros dos deuses (ὁμιλητὰς τῶν θεῶν).27

22 Jâmblico afirma que, embora a henosis não ocorra sem conhecimento, esse conhecimento só é útil se nos
levar além do conhecimento, pois a união e a purificação divina vão além do conhecimento (DE MYSTERIIS, 98, 7-
10). Esse aspecto não-semântico do neoplatonismo, tão difícil e muitas vezes negligenciado, está presente em
vários neoplatônicos. Por exemplo, em Plotino, sua significação do Uno, o Princípio Absoluto, não era semanti-
camente significativa.
23 E este é o cerne da questão. Exotericamente pensamos no ochēma como um veículo de ascensão da alma e

essa ascensão metafórica libera em nós a presença divina que se torna mais real, mais presente e mais encar-
nada. Ao se tornar como o divino, o teurgo entra em contato com o imortal e, por meio dessa participação,
torna-se divino, cheio de piedade e maravilhamento espiritual. E nessa experiência transformadora do subir
mortal à imortalidade, em um momento distintamente teúrgico e teofânico, a perspectiva muda: não é mais o
mortal alcançando a imortalidade, mas o contrário. O divino toma um corpo mortal e essa descida é inteira-
mente dependente de prover a ele um receptáculo adequado, um ochēma poroso para receber a luz divina. A
subida e a descida da alma, embora discursivamente distintas, são esotericamente simultâneas e copresentes.
24 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 109, 1-3.
25 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 124, 1-2.
26 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 238, 11-12.
27 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 238, 13; 239, 10.
Para suportar os códigos de luz dos deuses é preciso se tornar divino. Na
oração teúrgica, a alma é libertada das oposições da vida corporificada: a
dianoia28 fragmentada é substituída pela noese29 unificada e as tendências
contrárias do veículo pneumático também são unificadas, o que quer dizer
que o veículo pneumático da alma assume completamente a forma esférica,
como os corpos dos deuses celestes.30

O corpo etéreo [dos deuses celestiais] está isento de toda contrariedade e está livre
de toda mudança [...]. É totalmente liberado de qualquer tendência centrípeta ou
centrífuga porque não tem tendência nem porque é movido em círculo.31

Em seu comentário sobre o TIMEU, Jâmblico diz que o Demiurgo cria a alma
com um veículo produzido de todo o éter (pantos tou aitheros) [...] [e] possu-
indo um poder criativo.32 Mas diferente dos deuses celestiais, no exercício
desse poder, nos tornamos autoalienados (allotriōthen). Quando em corpos
animados, perdemos nossa forma esférica e ficamos presos nas oposições da
vida material: as divisões, colisões, impactos, reações e mudanças que Jâm-
blico diz serem as experiências inevitáveis da vida no reino da geração.33 Na
oração teúrgica, equilibramos essas oposições no veículo pneumático de
nossa alma, recebendo a partir daí a noese dos deuses. Como diz Jâmblico:
nosso ochēma é feito esférico e é movido circularmente sempre que a alma é
especialmente assimilada ao Nous.34 O ochēma tem uma função crítica nessa
assimilação. É o vaso no qual nos tornamos deuses e o vaso onde os deuses
tomam posse de nossos corpos. Como disse Jâmblico: o deus usa nossos cor-
pos como seus órgãos.35 Mas, para se tornar um órgão do deus, o ochēma de-
ve ser purificado e preenchido com luz, um processo que o neoplatônico
Damascius no Séc. VI chama de saturação fotônica. Ele diz:

Como uma esponja, a alma não perde nada de seu ser, mas se torna porosa, rarefeita
ou densamente compactada. O mesmo acontece com o corpo imortal da alma [...] [que]
às vezes fica mais esférico e às vezes menos; às vezes é preenchido com luz divina e às
vezes preenchida com as manchas de atos generativos.36

Damascius contrasta a luz divina com as manchas de atos generativos, a


mesma distinção que faz Jâmblico quando diz que a oração purifica o ochē-
ma de tudo o que tende à geração.37 Pode parecer que eles estão sugerindo

28 Conhecimento, capacidade discursiva. Conceito chave em Platão. Veja o PARMÊNIDES.


29 Compreensão imediata, além da capacidade discursiva (dianoia).
30 Em seu livro A ÁRVORE DA VIDA, Israel Regardie cita Jâmblico várias vezes, atribuindo a ele o conceito chave de

inflama-te em oração. É precisamente aqui que o conceito se aplica. Através da fervorosa oração, o ochēma é
purificado e assume completamente a forma esférica ovalada que permite a recepção dos códigos de luz dos
deuses.
31 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 202, 10; 203, 1.
32 Veja John M. Dillon, IAMBLICHI CHALCIDENSIS, p. 196.
33 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 217.
34 Veja John M. Dillon, IAMBLICHI CHALCIDENSIS, p. 152.
35 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 115, 4-5.
36 Citado em John M. Dillon, IAMBLICHI CHALCIDENSIS, p. 174.
37 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 238, 8.
que o ochēma deve escapar da geração, mas não é o caso. Para Jâmblico, a
ascensão da alma é realizada como a descida do deus: no vaso alquímico do
ochēma, o deus se torna carne. A descida e ascensão da alma não são opos-
tas, mas estão misteriosamente ligadas. Jâmblico diz: Não há oposição entre
a descida da alma e sua ascensão [...]. A liberdade [do reino da] geração está
em harmonia com nossa preocupação com a vida gerada.38 Jâmblico aprova a
visão dos platonistas do Séc. II. que ensinaram que o propósito da descida da
alma é para manifestar a vida divina, que a vontade dos deuses é revelar-se
(ekphainesthai) nas almas humanas.39 Essa visão teofânica da existência hu-
mana não era nova em Jâmblico. Era uma tradição reconhecida dos filósofos
pré-socráticos, platônicos, aristotélicos e estóicos: enquanto permaneciam
mortais, eles se tornavam deuses. Mas na era de Jâmblico, o propósito hierá-
tico dessa tradição – enraizado na experiência não discursiva – estava sendo
perdido devido a o intelectualismo e o dualismo metafísico que depreciam a
vida corporificada.

CONCLUSÃO DA SEÇÃO . I .
O CAMINHO DA MÃO ESQUERDA EM JÂMBLICO

A doutrina do tornar-se divino, tornar-se um deus encarnado no reino da


geração, um cosmocrator vivo saturado de luz divina que aparece na filoso-
fia pré-socrática antiga e outras tradições pelo mundo, está no cerne do ca-
minho da mão esquerda. Outra doutrina do caminho da mão esquerda é a
visão positiva do universo na corporificação da alma, a ideia de que o divino
se apresenta ao homem no clímax da deificação ou apoteose da alma, ele-
vando-a a condição divina. Em Jâmblico, embora inserido em uma cosmovi-
são demiúrgica tradicional do caminho da mão direita, nós vemos ambas as
doutrinas. Através do refinamento e da purificação do veículo pneumático,
no curso de sua piedade o teurgo poderia tornar-se um deus, um augoeides
radiante de luz no reino da geração. Com sua visão positiva da encarnação
da alma no reino da geração, Jâmblico criou ideias adversárias de mão es-
querda típicas de seu tempo e de tempos antigos dentro do caminho da mão
direita neoplatônico. Para nós que queremos explorar a Alquimia Negra da
Alma na tradição de Quimbanda, o que tiramos da doutrina de Jâmblico ex-
posta nessa Seção I?
Assim como um teurgo da Antiguidade, o feiticeiro-kimbanda de hoje
tem por caminho norteador a divinação (ou deificação) total de sua alma a-
través do fenômeno paranormal da inspiração divina ou incorporação medi-
única. A tecnologia espiritual individual que cada feiticeiro-kimbanda tem
para isso é o veículo pneumático da alma que, saturado com a luz emanada
do archote luciférico dos Exus e Pombagiras, torna-se um Ovo de Luz Negra.
Nós nos debruçaremos sobre isso abaixo. Diferente da recepção de códigos

38 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 272, 7-11.


39
Jâmblico, DE ANIMA, 54, 20-26.
de luz dos deuses solares da mão direita no veículo pneumático para a alma
tornar-se um augoeides, os feiticeiros-kimbanda alimentam seus veículos
pneumáticos com as virtudes dos Poderosos Mortos, Mestres e Guias da hu-
manidade.40 Mas isso não é novo. Como citei anteriormente, a Quimbanda
não cria nada de novo; ela repete as fórmulas mágicas dos feiticeiros e ma-
gos do passado. Então, para compreendermos mais efetivamente essa dou-
trina na Quimbanda, nas próximas seções vamos novamente até a Antigui-
dade tardia revisitar a teurgia de Jâmblico e a feitiçaria dos papiros gregos
na doutrina soteriológica do espírito tutelar.
O caminho da mão esquerda pode ser rastreado nas entranhas da cul-
tura helênica; nós encontramos ideias de mão esquerda em Pitágoras, Platão
e em mitos gregos como o de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses e o
deu aos homens. Oculto, o caminho da mão esquerda travestiu-se de cami-
nho da mão direita em muitas culturas, sociedades, cultos e religiões pelo
mundo. Em Jâmblico encontramos muitas das doutrinas compartilhadas pe-
lo caminho da mão esquerda e que influenciaram os gigantes e ilustres inici-
ados da Tradição Ocidental de Mistérios.

SEÇÃO . I I .
DA TEURGIA GREGA A TEURGIA BRASILEIRA

Anteriormente nós vimos que o ochēma-pneuma trata-se do veículo pneu-


mático da alma, como um invólucro tênue que envolve a alma na forma de
um ovo de luz. A visão moderna que o ocultismo no ocidente tem deste veí-
culo pneumático é importada da tradição hindu via Sociedade Teosófica no
Séc. XIX. Mas a visão deste veículo pneumático que o mago da Antiguidade
possuía foi desenvolvida pela própria Tradição Ocidental de Mistérios, cujo
refinamento ficou sob a responsabilidade da tradição neoplatônica. É no ne-
oplatonismo tardio ou baixo que ao ochēma foi dado maior atenção para os
fins do trabalho teúrgico sobre a alma. É através do ochēma que os deuses
podem influenciar e envelopar o teurgo, para usar um termo de Jâmblico. Ele
sustenta que o teurgo veste-se com o manto dos deuses no curso do ritual,
quando ocorre a inspiração divina, termo que Jâmblico usa para dizer posses-
são daimônica ou incorporação mediúnica. Em estado de transe/êxtase, o
ochēma se expande consideravelmente, abrindo espaço para presença de um
agente externo, uma deidade (deus, daimon, exu etc.) que temporariamente
ocupa este ochēma expandido. Para Jâmblico, a inspiração divina só é efetiva
quando o agente externo se apodera completamente do aparato psico-
fisiológico do teurgo, o que nós identificamos como incorporação total ou
inconsciente, quando o médium/feiticeiro desliga-se completamente e ape-
nas a deidade age em seu veículo pneumático. Sacerdotes de cabala crioula

40 E deidades negras adversárias como Lilith, Ahriman e outros deuses antigos. O feiticeiro-kimbanda não é
proibido de invocar outros deuses caso queira com eles travar comércio. Na tradição de Quimbanda Exu abre
linha. Isso significa que seguindo a doutrina universal do espírito tutelar, o Exu ou diabo pessoal dá acesso a
outros espíritos e forças espirituais.
falam de incorporação consciente e semiconsciente, querendo dizer que de
certo modo o médium/feiticeiro participa do processo.
É através do ochēma que o teurgo recebe as virtudes dos deuses na al-
ma. Isso é deveras importante ao comprometimento espiritual do teurgo
com sua alma. Ao receber as virtudes dos deuses no ochēma, o que chama-
mos também de enriquecimento de alma, ele se torna um veículo pneumático
luminoso (augoeides) através do qual a alma é deificada. É através do ochē-
ma que a alma se alimenta, de tudo. Eu costumo dizer que a região sublunar,
o reino da geração, é um grande mar onde tudo come tudo. Larvas astrais
que perambulam pela região do plano astral tanto são devoradas por espíri-
tos mais fortes quanto usam como carapaças, conchas invadidas, corpos as-
trais em decomposição, quando se tornam cascões astrais. Nós nos alimen-
tamos e também servimos de alimento para tudo e todos, isso significa que
influenciamos e somos influenciados por homens e os espíritos de todas as
coisas. Mas existe uma forma de nos protegermos, de fortificarmos o ochēma
para que ele se alimente apenas do que precisa para deificação da alma: o
conhecimento e a conversação com o espírito tutelar. Este espírito tutelar na
tradição de Quimbanda é o Exu Tutelar; na teurgia clássica neoplatônica, o
daimon pessoal; na feitiçaria dos papiros gregos, o paredros.
A possessão daimônica, inspiração divina ou incorporação mediúnica é
uma das ferramentas fundamentais da feitiçaria tradicional brasileira.
Quando Jâmblico explica o fenômeno da inspiração divina, se vê obrigado a
descrever os ritos de teurgia que possibilitam o fenômeno. Em sua descrição
ele fala do uso de instrumentos musicais como tambores, pandeiros e flautas
que induzem um estado de receptividade no ochēma, permitindo sua expan-
são e a partir disso a possessão divina. Ao conhecedor de cabala crioula, a
descrição de Jâmblico não difere em nada de uma gira de Quimbanda onde
Exus e Pombagiras são convocados a invadirem o veículo pneumático dos
feiticeiros.
Para continuarmos, vamos considerar alguns pontos importantes em
nossa jornada:

1. Todas as criaturas corpóreas da região sublunar, no reino da geração,


possuem um ochēma ou veículo pneumático, pois ele sustenta a cone-
xão da alma com o corpo. Não apenas as almas corporificadas, mas
espíritos que atuam no reino da geração, deuses, heróis, daimones di-
versos ou os Exus da Quimbanda possuem ochēma. Sem um ochēma
nenhuma criatura espiritual seria capaz de agir no reino da geração.
2. O ochēma não sofre alterações em sua natureza devido a fatores ex-
ternos, mas sofre alteração em sua sutileza; o veículo pneumático da
alma corporificada precisando ser purificado a partir de orações e in-
vocações, banhos, fumigações e estilo de vida daimônico-espiritual-
filosófico. Através do contato com a deidade tutelar, o ochēma torna-
se um poderoso escudo contra ataques de magia negra, ácidos ou al-
calinos.
3. Na tradição de Quimbanda cada alma é acompanhada por um Exu
Guia ou Exu Mentor Espiritual, o Exu Tutelar. A interação entre o o-
chēma do feiticeiro-kimbanda e o ochēma do Exu Tutelar possibilita
sua influência em sua alma e a possessão divina. No processo da in-
corporação, é como se o Exu Tutelar e o feiticeiro começassem a com-
partilhar de um só ochēma que passa a incluir o ochēma de ambos.
4. O Exu Tutelar e todas as deidades da Quimbanda são almas que um
dia estiveram encarnadas no reino da geração; pela natureza de seus
feitos em vida e a maneira pela qual elas transgrediram o limiar entre
a vida e a morte, essas almas ganharam o direito e a honra de recebe-
rem o título de Exu ou Pombagira, conferido somente a almas deifica-
das. As deidades da Quimbanda são ancestrais divinizados. Diferentes,
no entanto, da natureza dos deuses e outras criaturas espirituais dos
éteres superiores, o veículo pneumático dos Exus e Pombagiras é ne-
gro; a constituição energética do veículo pneumático de um Exu é sa-
turada com as virtudes dos Sete Reinos de Quimbanda a partir do tro-
no de V.S. o Maioral, imortalizado no glifo da deusa Baphomet. Em
contato com os feiticeiros-kimbanda, Exus e Pombagiras lhes transfe-
rem suas virtudes radiantes de luz negra. A Alquimia Negra da Quim-
banda ocorre quando o adepto, saturado com a luz do archote lucifé-
rico de seu Exu Tutelar, conquista a apoteose da alma.

Por ignorância, muitos são levados a crer que o conhecimento e a conversa-


ção com espíritos superiores, o anjo da guarda etc. livra a alma da danação
no submundo e que o contato com Exus e Pombagiras leva a danação no in-
ferno. Embora de certa maneira reflita uma realidade em termos soteriológi-
cos, trata-se de uma deturpação que reflete apenas a escatologia criada pela
cultura judaico-cristã e que perverteu inúmeros arcanos de iniciação do pas-
sado. É uma ignorância por muitos fatores! Por exemplo, um feiticeiro-
kimbanda não pretende habitar os reinos de luz e perfeição dos éteres supe-
riores. Na Quimbanda, estes éteres superiores são a morada de espíritos que
trabalham para manutenção da escravidão dos ciclos de morte e renasci-
mento de almas hipnotizadas ou escravizadas dentro de um sono profundo.
Um feiticeiro da Quimbanda, ao contrário disso, pretende ser aceito nas Le-
giões de V.S. o Maioral, dentro de seu reinado espiritual que são os Sete Rei-
nos da Quimbanda. E isto está em sincronia com as crenças espirituais dos
magos e feiticeiros da Antiguidade, cujo objetivo era tornar-se uma alma dei-
ficada para auxiliar em espírito a comunidade, os magos e feiticeiros encar-
nados na legião dos vivos. Exus e Pombagiras são poderosos magos negros
dos Sete Reinos da Quimbanda, treinados nas artes mágicas e que possuem
grande sabedoria. Mas para que a alma de um feiticeiro-kimbanda possa ser
aceita no reinado obscuro de V.S. o Maioral, uma alquimia distinta no ochē-
ma ocorre.
Através da tecnologia mágico-espiritual do Culto de Exu os feiticeiros-
kimbanda aperfeiçoam sua alma, despertam suas fagulhas ígneas e capaci-
dades inatas. O Culto de Exu produz uma alquimia distinta no ochēma, trans-
formando sua qualidade em um Ovo Negro de Luz. Enquanto a teurgia (clás-
sica neoplatônica) busca transformar o ochēma em um augoeides (Ovo de
Luz), a Quimbanda opera uma alquimia de obscurecimento do ochēma para
que a luz contida nos rincões mais sombrios da alma brilhe na escuridão; ao
mesmo tempo, transformando o ochēma em uma carapaça rígida de prote-
ção, um escudo negro intransponível. Esse escudo, no entanto, é fortalecido
pela presença do Exu Tutelar, que passa a compartilhá-lo com o feiticeiro,
operando como um filtro para tudo o que entra e de tudo o que sai. É como
se o Exu Tutelar envolvesse o adepto com sua capa negra e colocasse a sua
frente seu tridente de proteção.
Alguns Exus como o Sr. Exu Pantera Negra estão profundamente enga-
jados na alquimia da alma de seus adeptos. A Quimbanda não sustenta ne-
nhum tipo de vício ou faz apologia a uso de qualquer entorpecente; ou mes-
mo coaduna ou incentiva um estilo de vida de entrega desmedida aos senti-
dos e apetites animalescos. Esse tipo de comportamento afeta profundamen-
te a qualidade do ochēma, atrapalhando a Alquimia Negra de Exu. Para que
essa alquimia ocorra, o adepto deve procurar por um processo de simbiose
entre seu ochēma e o de seu Exu Tutelar através de um sistemático processo
de desenvolvimento mediúnico e aperfeiçoamento da alma, libertando-a das
descargas emocionais descontroladas, da falta de firmeza na mente (e, por-
tanto, vontade), da preguiça, apetites desmedidos, vícios e indisciplinas. Exu
é dinamismo e potência, é poder criativo e ímpeto ígneo. São essas as virtu-
des que Exu transmitirá ao ochēma do feiticeiro.
Geralmente o Culto de Exu da Quimbanda é tido como uma baixa feiti-
çaria em contraste com uma teurgia de tipo superior encontrada na alta ma-
gia moderna de inclinação judaico-cristã. Mas isso é outra ignorância dos
arcanos espirituais da Quimbanda. Os procedimentos mágicos da feitiçaria
do Culto de Exu não são nada distintos dos procedimentos da teurgia clássi-
ca neoplatônica ou do xamanismo aborígene de muitas culturas. Não há pro-
cedimento nenhum que um feiticeiro-kuimbanda faça que seja distinto do
procedimento de um teurgo neoplatônico ou sacerdote de Umbanda. A dis-
tinção não está no exercício da feitiçaria, mas na cosmovisão e metalingua-
gem que se adota. Enquanto um teurgo neoplatônico lida com criaturas espi-
rituais dos éteres de luz e perfeição e também aquelas do reino da geração e
submundo, um feiticeiro-kimbanda lida apenas com almas de mortos deifi-
cadas, poderosos magos negros dos Sete Reinos da Quimbanda; eles são,
portanto, necromantes (ou nigromantes), feiticeiros (goēs) que lidam com
Exus e Pombagiras para fins de divinação (necromancia/nigromancia) e ma-
gia (necrurgia).
SEÇÃO . I I I .
DO PAREDROS AO EXU TUTELAR

Para iniciarmos essa terceira seção, vamos começar pelas definições: i. o pa-
redros da feitiçaria grega dos papiros é qualquer espírito assistente (tutelar),
seja um espírito da natureza, a alma de um morto deificada (como os Exus e
Pombagiras da feitiçaria tradicional brasileira) ou deidades diversas, que
inclui deuses e demônios; ii. o Exu/Pombagira Tutelar (ou mestre) é um an-
cestral, a alma de um morto deificada, dotada de sabedoria e poder de magi-
a.
No Curso de Filosofia Oculta, no nosso primeiro ano de estudo, Módulo
1: Magia na Antiguidade, nós estamos nos debruçando sobre os primórdios
da magia goécia como compreendida e praticada na Antiguidade tardia e
cujo epicentro foi a magia hermética dos PAPIROS MÁGICOS GREGOS. Nas pri-
meiras lições nós chamamos atenção para a grande similaridade que existe
entre a magia dos papiros e a cabala crioula da África Setentrional. Nos pri-
meiros séculos de nossa era, a região do Mediterrâneo tornou-se um caldei-
rão fervilhante onde as culturas mágico-religiosas do Egito, Grécia e Roma se
encontraram com as culturas da Suméria, Babilônia, Acádia e Assíria. Todas
essas culturas e cultos mágico-teúrgicos influenciaram profundamente a
magia hermética dos papiros, que apresenta uma feitiçaria tipicamente goé-
tica: a conjuração de espíritos para diversos fins.
Afiliada a Tradição Ocidental de Mistérios, a Quimbanda ou feitiçaria
tradicional brasileira trata-se de uma genuína tradição de feitiçaria que her-
da uma gama variada de tecnologias espirituais da feitiçaria dos PAPIROS MÁ-
GICOS GREGOS. O estilo de vida goético que culminou na feitiçaria tradicional
brasileira chegou ao Brasil via Portugal no Séc. XVI, quando as primeiras fei-
ticeiras condenadas e exiladas pelo Santo Ofício começaram a aportar em
nossas terras. A magia ibérica daquele período já trazia uma grande influên-
cia da magia dos papiros, que cruzava sistemas e tradições livremente, onde
vemos cristianismo, judaísmo e paganismo greco-egípcio misturados em fei-
tiços diversos.

A maioria dos métodos e técnicas usados pelas bruxas dos tempos antigos tem pouca
semelhança com aqueles usados pelas bruxas neopagãs de hoje. Muitas vezes o povo
astuto praticava a observância da fé dual e os encantos, amuletos, orações e encanta-
mentos que eles usavam invocavam Jesus, a Virgem Maria, a Trindade e a companhia
dos santos. Os salmos eram usados para propósitos mágicos como feitiços e ainda es-
tão em alguns círculos de feitiçaria tradicionais modernos. Com a chegada da nova fé
do cristianismo e a supressão das antigas religiões pagãs, objetos como crucifixos,
medalhões dos santos, a hóstia e a água benta foram amplamente usados pelos magos
populares porque acreditavam possuir «virtude» ou energia mágica e poder de cura
inerente. O simbolismo cristão era usado em rituais de magia popular envolvendo pro-
teção psíquica, contra-magia e cura. Muitos dos antigos encantos pagãos foram cristi-
anizados e alguns dos santos assumiram os atributos anteriores de deuses e deusas
pagãos. As nascentes sagradas, anteriormente dedicadas às deusas, por exemplo, eram
voltadas para a Virgem Maria ou para as mulheres, como Winefrede ou Bride. Os en-
cantos de cura substituíram os nomes das divindades pagãs, como Woden, Loki e
Thor, pelos de Deus, de Jesus e do Espírito Santo. Muitos dos grimórios [medievais]
usados pelas bruxas e praticantes da magia popular também continham inevitavel-
mente o simbolismo judaico-cristão.
Algumas bruxas tradicionais modernas ainda seguem a observância da fé dupla u-
sando os salmos para propósitos mágicos, trabalhando com a companhia de santos e
empregando imagens cristãs, simbolismo e liturgia, muitas vezes de maneira herética
e subversiva. A bruxa neo-pagã fala de maneira que não prejudique ninguém, enquan-
to que a bruxa tradicional moderna – em comum com as astúcias das bruxas do passa-
do – pode tanto curar quanto amaldiçoar quando surgir a necessidade. Aqui a magia,
enquanto cristã, é indubitavelmente autêntica, e não um renascimento romântico. Prá-
ticas semelhantes podem ser encontradas no Vodu, Hoodoo, Santeria, Macumba, Ju-ju
e Obeah nas Américas e na África. Um modelo católico do universo, incluindo o céu, o
purgatório e o submundo, influenciou a aceitação congolesa e o uso do catolicismo em
suas práticas mágicas, como Palo Mayombe. É tão útil na necromancia ocidental.41

Mesmo tendo se apartado completamente da tradição judaico-cristã seguin-


do por uma via sinistra demoníaca e luciférica, a feitiçaria tradicional brasi-
leira veio deste berço e essa é a linha tênue através da qual a conecto com a
feitiçaria goética da Idade Média e Antiguidade tardia. Um dos fatores de e-
quivalência entre a feitiçaria dos papiros e a feitiçaria tradicional brasileira
está na doutrina do paredros, o espírito tutelar. Nos PAPIROS MÁGICOS GREGOS
são listados tipos distintos de espíritos assistentes, dentre eles o paredoi, o
espírito assistente da alma de um defunto, quer dizer, um ancestral.
Na genuína tradição da magia, uma das etapas preliminares da carreira
mágico-iniciática é o conhecimento e a conversação com o espírito tutelar,
pois é dele que provem todo poder e conhecimento que o feiticeiro apresen-
ta possuir. Ao mesmo tempo que ele é um instrutor espiritual, também é um
guardião, agente de destruição, de prosperidade material e, principalmente,
de salvação: o feiticeiro da Antiguidade era profundamente preocupado com
a deificação de sua alma. Obter o conhecimento e a conversação com o espí-
rito tutelar, portanto, resolveria todos os seus problemas. Nós temos nos
debruçado profundamente na doutrina do paredros e aqui não é necessário
repetir as etapas do treinamento magístico que levam ao contato com ele.
Por agora, vamos comparar o papel do paredoi, o espírito assistente da alma
de um defunto com o Exu Tutelar (ou Exu Mestre) do feiticeiro-kimbanda.
Na feitiçaria tradicional brasileira o feiticeiro almeja alcançar por me-
recimento admissão na legião de Exus que compõem as Falanges de V.S. o
Maioral de Quimbanda, Chefe Império dos Reinos de Exu. O feiticeiro-
kimbanda solicita a V.S. o Maioral que lhe conceda um Exu Tutelar que tanto
lhe admite como aluno, é agente de magia e guardião. Com seu auxílio, o fei-
ticeiro almeja conquistar admissão às Hordas de Exus e Pombagiras através
de um trabalho de profunda transformação espiritual. Para tal propósito o
feiticeiro produz uma alquimia em seu ochēma (corpo astral) de tal modo
que ele se torna um Ovo Negro de Luz. Essa alquimia quem opera é Exu com
as vibrações emanadas do Trono de V.S. o Maioral e dos Sete Reinos da feiti-
çaria tradicional brasileira: encruzilhadas, cruzeiros, almas, matas, cemité-
rios, lira e praias. O Exu Tutelar do feiticeiro-kimbanda é o agente de comu-

41 Jake Stratton-Kent, THE TESTAMENT OF CYPRIAN THE MAGE. Scarlet Imprint, 2014. Os colchetes são meus.
nicação e transmutação entre o ochēma do feiticeiro e as poderosas forças
dos Sete Reinos de Exus e Pombagiras. O glifo que representa essa alquimia
negra da alma é a imagem da deusa Baphomet.

Baphomet por Asenat Manson.

Essa alquimia negra sobre a alma desperta suas potências. Como temos es-
tudado, um genuíno praticante do caminho da mão esquerda não depende
das virtudes dos deuses em planos de luz e perfeição para agregar a sua al-
ma uma quantidade considerável de luz para torná-la um augoeides, quer
dizer, um Ovo de Luz luminoso e resplandecente. Através do veneno da ser-
pente o feiticeiro arranca das covas de sua alma suas potências inatas. Ele
caminha, portanto, sobre suas próprias pernas. Por outro lado, Exu é puro
dinamismo. Se há algo que Exu é inimigo, é a estagnação. É este dinamismo
que o Exu Tutelar compartilha com o feiticeiro-kimbanda. Para cavar as pro-
fundezas obscuras da própria alma o feiticeiro-kimbanda precisa de intenso
ímpeto dinâmico. Compartilhando do poder dinâmico de seu Exu Tutelar, o
feiticeiro-kimbanda cava mais fundo as profundezas da alma, buscando o
despertar de sua Chama Negra.
A feitiçaria tradicional brasileira é, portanto, uma medicina para alma.
Através do contato com Exus e Pombagiras é possível despertar as potências
inatas da alma através de um processo de cura espiritual. Diferente da igno-
rância generalizada, a feitiçaria tradicional brasileira é uma Arte Negra que
opera uma alquimia na alma através da feitiçaria. Exus e Pombagiras podem
ser convocados para aniquilação de medos e traumas, para organização da
mente e cultivo da vontade, para libertação de vícios e maus hábitos, além de
agentes de magia para todos os fins, ataque, defesa, energização ou purifica-
ção.
Assim, na busca pela sabedoria e poder de seu Exu Tutelar o feiticeiro-
kimbanda se coloca na mesma jornada do feiticeiro dos papiros gregos; uma
jornada, no entanto, universal, típica da tradição da magia em culturas di-
versas. Ao avaliarmos as funções do paredros e sua relação com o feiticeiro
nos papiros (I.42-195), temos:

1. Poder de causar invisibilidade.


2. Poder de libertar uma pessoa de amarras na prisão e abrir portas.
3. Poder de mudar a forma do mago para animais que voam, quadrúpe-
des e répteis.
4. Poder de elevar o mago aos céus.42
5. Poder de conferir ao mago riquezas.
6. Poder de ser adorado como um deus caso o mago tenha com esse
deus certa intimidade.
7. O paredros torna-se o companheiro do mago, vive, come e dorme com
ele.
8. O paredros revela com clareza tudo o que o mago precisa saber.
9. O paredros executa qualquer tarefa que o mago lhe apontar.
10. O paredros é um espírito aéreo, deslocando-se de um canto ao outro
da Terra.
11. O paredros é capaz de se manifestar como um animal aéreo ou aquáti-
co, réptil ou quadrúpede.
12. O paredros se apresenta com daimones para auxiliar o mago.

Muitas dessas funções atribuídas ao paredros como espírito tutelar podem


ser relacionadas tanto a Exu quanto a Pombagira nos Sete Reinos da feitiça-
ria tradicional brasileira.

1. Poder de causar invisibilidade. O Exu Tutelar (ou outros Exus Patro-


nos) protege o feiticeiro-kimbanda com sua capa e tridente, escon-
dendo-o e protegendo-o de seus inimigos e desafetos.
2. Poder de libertar uma pessoa de amarras na prisão e abrir portas. O
Exu Tutelar protege o feiticeiro-kimbanda de prisões físicas ou psico-
sociais, libertando-o. Há muitas rezas de Exu para esse tipo de pro-
blema.

42 Neste caso, elevar no ar significa levar a alma do mago para longe do cativeiro do submundo após a morte.
3. Poder de mudar a forma do mago para animais que voam, quadrúpedes
e répteis. Exu pode se metamorfosear em muitas formas. Por exemplo,
Exu Panteira Negra é um caboclo da mata que às vezes se manifesta
como uma pantera. Esse é um poder licantrópico de Exus e Pombagi-
ras. Este poder pode ser transferido ao feiticeiro-kimbanda que pode
a partir disso metamorfosear seu ochēma, tomando a forma de seus
animais de poder.
4. Poder de elevar o mago aos céus. Era uma crença na Antiguidade que o
paredros poderia auxiliar o mago na deificação de sua alma. Exu auxi-
lia na deificação da alma do feiticeiro-kimbanda, quando ele passa a
fazer parte das Legiões de V.S. o Maioral.
5. Poder de conferir ao mago riquezas. Os Exus e Pombagiras do Reino da
Lira (ou qualquer reino) podem auxiliar o feiticeiro-kimbanda a obter
conforto financeiro.
6. Poder de ser adorado como um deus caso o mago tenha com esse deus
certa intimidade. Essa é uma crença baseada na ideia de que o pare-
dros compartilha de seus poderes com o mago. Na Antiguidade, feitos
taumatúrgicos conferiam notoriedade, daí ser adorado como um deus.
Exus e Pombagiras compartilham de suas virtudes com o feiticeiro-
kimbanda.
7. O paredros torna-se o companheiro do mago, vive, come e dorme com
ele. Ao assentar Exus e Pombagiras em casa ou no templo, o feiticeiro-
kimbanda traz o espírito da Legião para morar com ele. O espírito
torna-se, portanto, um familiar.
8. O paredros revela com clareza tudo o que o mago precisa saber. O Exu
Tutelar trabalha diretamente com o feiticeiro-kimbanda através de
oráculos como búzios, ossos e cartas.
9. O paredros executa qualquer tarefa que o mago lhe apontar. O Exu Tu-
telar ou outros Exus e Pombagiras patronos auxiliam e socorrem o fei-
ticeiro-kimbanda quando este necessita, seja para fins de alquimia na
alma ou magia de ataque e defesa.
10. O paredros é capaz de se manifestar como um animal aéreo ou aquáti-
co, réptil ou quadrúpede. Novamente, o poder licantrópico do Exu. Veja
no. 3 acima.
11. O paredros se apresenta com daimones para auxiliar o mago. Exus e
Pombagiras se apresentam com uma Legião de espíritos para auxilia-
rem as demandas do feiticeiro-kimbanda.

Soldo: O Exu Tutelar da feitiçaria tradicional brasileira é o típico paredoi,


espírito assistente ancestral dos PAPIROS MÁGICOS GREGOS.

Laroyê Exu é Mojuba!

Fernando de Ligório
© 2020 Fernando Liguori

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