Fernando de Ligório, A Alquimia Negra Do Culto de Exu
Fernando de Ligório, A Alquimia Negra Do Culto de Exu
A ALQUIMIA NEGRA DO
CULTO DE EXU
A TRADIÇÃO DAS SOMBRAS
TEXTO 3
PALAVRAS INICIAIS
SEÇÃO . I .
VEÍCULO PNEUMÁTICO
O sagrado comunica até ao corpo um eco A filosofia está unida à arte das coisas sa-
de sua própria qualidade: assim o corpo se gradas, já que esta arte se ocupa da purifi-
torna não só animado e intelectivo, mas cação do corpo luminoso e, se você separar
também divino. o pensamento filosófico dessa arte, desco-
brirá que ela não tem mais o mesmo poder.
Proclo, ELEMENTOS DA TEOLOGIA
Hierócles, IN CARMEN AUREUM
1 Do grego antigo αἴσθησις que significa percepção sensorial, sensação; do tronco αἰσθάνεσθαι que significa
perceber. Aqui a sensação entra como uma oposição direta a intelecção (noesis), quer dizer, entendimento e
também a dianóia, o pensamento discursivo. De modo geral, aesthesis se opõe a qualquer movimento intelecti-
vo. Para Platão, aesthesis pode ser classificada como visões, sonhos, odores, frio, calor, angústia, medo, prazer,
alegria etc. e incontáveis sensações sem nome (TEETETO, 156b). Para Plotino, a aesthesis do mundo da geração
só produz intelecção obscura (noesis) e a aesthesis dos planos noéticos são percepções puras e vívidas. Fílon de
Alexandria fala de uma aesthesis noética, relacionada ao nous, o Intelecto de Deus.
vida aestética que eles entram em contato com os deuses. Longe de escapar
do mundo da geração e do uso dos sentidos, o teurgo emprega a experiência
aestética como a necessária codificação e o veículo através do qual esta o-
correrá a deificação do corpo sutil da alma, o ochēma.2 No ritual teúrgico, o
ochēma, purificado pela oração diária, é preenchido com a luz dos deuses e
torna-se resplandecente, que dizer, o teurgo se torna um augoeides: uma in-
corporação do divino. O papel do ochēma não é tirar a alma do reino sublu-
nar; antes, o ochēma estando repleto de luz, ele se torna simultaneamente
um veículo para a descida do deus e a deificação da alma. Tornar-se um au-
goeides, portanto, é tornar-se idêntico aos deuses, compartilhar de suas vir-
tudes e luminosidade.
A arte da divinação3 tem como propósito a deificação da alma, por isso
oráculos eram tidos em alta medida aos filósofos e teurgos do passado. Por
meio da divinação a alma recebe um influxo divino que, como um presente
natural dos deuses (e não dos daimones) a eleva e leva na sua direção trans-
formando-a num veículo (ochēma) dos deuses. Devemos cuidar para não
confundir a divinação de origem divina daquela humana e Jâmblico é bastan-
te claro a este respeito. A divinação pode ser considerada como uma, entre
muitas maneiras, pelas quais os deuses se manifestam a nós. Porém, em to-
das elas deve-se ressaltar que é o deus quem realiza o trabalho divinatório e
não os homens,4 não podendo este trabalho se encaixar apenas na esfera da
palavra mas, sobretudo, na da ação e, portanto, da teurgia, não importando
saber o futuro, mas somente a vontade dos deuses.
Buscando definir a teurgia, nos deparamos com muitas definições, sen-
do que algumas delas parecem se desviar da essência daquilo que o termo
evoca, além do que ele significa. A definição baseada no entendimento de
Jâmblico, no entanto, é essa: a teurgia trata-se de uma manifestação muitas
vezes involuntária de um estado interior de santidade que deriva da combi-
nação de bondade e conhecimento no qual o primeiro elemento prevalece.
Dessa maneira, a teurgia representava a tentativa de Jâmblico de corrigir os
excessos de racionalização da filosofia dos seus contemporâneos gregos e
recuperar a sabedoria viva dos antigos recebida diretamente dos deuses.
Transmitidos através dos ritos de sacrifício e de divinação, a teurgia é uma
2 Literalmente, veículo; o barco que leva as Almas dos mortos, a carruagem da Alma no FEDRO de Platão. Em
Aristóteles, ochēma é entendido como pneuma – a sede da imaginação (phantasia), análoga àquele elemento de
que as estrelas são feitas. O ochēma-pneuma como um corpo astral funciona como um portador quase imaterial
da Alma irracional; os daimones têm um pneuma enevoado que altera sua forma em resposta a imaginação de
que o convoca e, assim, eles aparecem em formas sempre mutáveis. Para Jâmblico, o veículo etérico e luminoso
(aitherodes kai augoeides ochēma) é o receptor de phantasiai divinas. o ochēma leva a Alma ao estado de en-
carnação e se obscurece até se tornar completamente material e visível: o corpo material ou carnal é também
uma espécie de ochēma. Proclus distinguiu ochēma como: 1) o maior, imaterial e luminoso ochēma no qual
Demiurgo de Platão coloca a Alma (TIMEU, 41e) e; 2) o inferior, pneumatikon ochēma, que é composto dos qua-
tro elementos e serve como veículo da Alma irracional, sobrevivendo à morte corporal, vagando como um
Egun. É sse tipo de ochēma que comparece a maioria das reuniões kardecistas de mesa branca.
3 O termo divinação sugere uma forma de predição que vem de Deus. Inúmeros tradutores preferem utilizar o
termo adivinhação. Optamos pelo termo divinação em português porque o termo adivinhação parece se associ-
ar mais à magia e à predição de acontecimentos futuros livres do que a profecia, seu sentido mais profundo
enquanto predição que vem de Deus. Nos termos da teurgia e cultos de mistérios do passado, divinação implica
em incorporação, quando a consciência é solapada pela presença divina.
4 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 3, 7 [115].
atividade, uma experiência e uma revelação concreta através da qual os se-
res humanos recuperam a sua identidade divina ao se tornam veículos dos
deuses.
O termo teurgia não pode ser compreendido, a não ser quando se expe-
rimenta a transformação que a experiência promove na alma.5 É neste senti-
do que Jâmblico diz a Porfírio que ele jamais irá compreender como a alma é
arrebatada e possuída pelo divino, elevando-se ao nível dos deuses ao ser
transformada em um veículo da deidade, se não atuar o rito ele próprio.
Não obstante, não basta aprender apenas estas coisas, nem é o caso de que alguém
que saiba apenas estas coisas se torne mestre da ciência divina. Mas faz-se também
necessário saber o que é a possessão divina e como ela se dá. Assim, então, crê-se, fal-
samente, que seja um transporte da mente por inspiração daimônica. Pois o intelecto
humano não é nem arrebatado quando é realmente possuído, nem é o caso que a ins-
piração venha dos daimones, mas dos deuses. No entanto, não se trata sequer de êxta-
se puro e simples, mas de uma exultação e transferência rumo ao que é superior, ao
passo que o frenesi e o êxtase na verdade revelam uma perversão rumo ao que é infe-
rior. Mais ainda, aquele que representa este êxtase diz algo sobre a característica e-
ventual daqueles que estão inspirados, mas não coloca o dedo na ferida. Quer seja, eles
mesmos são totalmente possuídos pelo divino, consequência do que, é o êxtase. Mas
uma pessoa não deve supor com acerto que a possessão divina pertence à alma ou a
uma de suas faculdades, ou ao intelecto ou a uma de suas faculdades ou atividades, ou
às fraquezas corporais ou sua ausência. Nem se deveria supor razoavelmente que isso
se dê deste modo, pois ser transportado por um deus não é nem uma realização hu-
mana, nem isso baseia seu poder nas partes humanas (do corpo) ou atividades. Mas,
por outro lado, estes são, ao contrário, subordinados, e o deus usa-os como instrumen-
tos; por outro lado, toda a atividade da divinação (profecia) chega à sua realização a-
través do deus agindo por si, puramente desapegado de outras coisas, sem que a alma
ou o corpo se mova de modo algum. Daí que, as divinações, ao serem realizadas com
acerto, como já disse, ocorram realmente e verdadeiramente. Mas quando a alma toma
a iniciativa, ou é perturbada durante a divinação, ou o corpo interrompe e perverte a
harmonia divina, as divinações tornam-se turbulentas e falsas, e a possessão não é
mais verdadeira nem genuinamente divina.6
A Alma se torna precisamente aquilo que Todas as coisas no mundo da natureza não
vê são controladas pelo destino, pois a alma
tem um princípio próprio.
Plotino
Jâmblico
7 Veja, por exemplo, o tom irônico de Jâmblico onde ele diz que as suposições de Porfírio sobre deuses e dai-
mones estão tão distantes de delinear as características próprias de suas essências que alguém seria incapaz de
sequer conjeturar qualquer coisa sobre elas. DE MYSTERIIS, 49, 9-13. Veja também 156, 3-5; 26, 12-14.
8 Jâmblico sentia que sua tradição estava ameaçada pela heresia do intelectualismo. Foi precisamente contra
essa heresia que ele dirigiu seus esforços, procurando proteger o núcleo revelador do platonismo daqueles que
o reduziriam a uma estrutura de abstrações.
9 Os neoplatônicos compartilham da crença de que a sabedoria não pode ser transmitida por pensamento ou
linguagem racional. Dessa maneira, os neoplatônicos se engajam em intensa reflexão racional que visa não
esboçar verdades dogmáticas, mas diferente disso, despertar o elemento não-discursivo e simbólico em um
exercício ritual. Jâmblico dizia ser este exercício ritual o modo simbólico de discurso.
10 A noção de que a teurgia era uma tentativa de competir com o cristianismo continua a atrair mesmo erudi-
tos eminentes como Pierre Hadot. Ele rejeita o elemento ritual da teurgia como supersticioso e pueril, uma
tentativa infeliz de competir com o cristianismo. Em O QUE É FILOSOFIA ANTIGA?, Edições Loyola, 2014. Quanto à
tendência entre os gregos sobre a arrogância racional e instabilidade intelectual, veja Jâmblico, DE MYSTERIIS,
259, 5-14. Veja também Algis Uždavinys, PHILOSOPHY & THEURGY IN LATE ANTIQUITY (Angelico Press, 2010); Olavo
de Carvalho, FILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS (Vide Editorial, 2012).
11 Plotino, ENÉADA, I.2; 6.3.
12 Como demonstrado no texto TEURGIA & GOÉCIA, o que difere teurgia de goêteia não se trata do método execu-
tado, mas da intenção do executor. Tradições como o Iṣeṣe Lagba são altamente teúrgicas, estando dentro do
tronco xamanismo ou teurgia africana (cabala crioula).
viam se tornado. Enganados pela arrogância do poder discursivo, filósofos
como Porfírio acreditavam que sua capacidade de pensar abstratamente os
libertava das restrições do domínio material. Na opinião de Jâmblico, suas
construções conceituais e falta de piedade13 tinham exatamente o efeito o-
posto: as separavam da divindade do mundo da geração e da comunhão com
os deuses. DE MYSTERIIS é a tentativa de Jâmblico em demonstrar a importân-
cia da recepção dos deuses no ritual teúrgico e a transformação do corpo
sutil da alma, o ochēma, através de atos de divinação e sacrifícios.
Porfírio solicitou a Jâmblico uma explicação sobre como, precisamente,
os deuses se fazem presentes na divinação uma vez que o teurgo perde a
consciência. Ele explicou:
Esta é a maior evidência; para muitos, mesmo quando o fogo é aplicado a eles, não são
queimados, já que o fogo não os toca por causa de sua inspiração divina. E muitos que
são queimados não reagem, porque neste momento eles não estão vivendo a vida de
uma criatura [mortal]. E alguns que são perfurados não têm consciência disso, nem
outros que são golpeados nas costas com machados; ainda outros cujos braços são
cortados com facas não sentem nada. Suas ações não são de forma alguma humanas,
porque o que é inacessível torna-se acessível sob a possessão divina [inspirada]. Eles se
lançam no fogo e andam através do fogo, e andam sobre rios como a sacerdotisa em
Castabala. A partir desses exemplos, fica claro que aqueles que são [divinamente] ins-
pirados não estão conscientes de si mesmos e não levam nem a vida de um ser huma-
no nem um animal vivo no que diz respeito à sensação ou apetite; eles trocam sua vida
por uma outra vida mais divina, pela qual eles são inspirados e pelos quais são com-
pletamente possuídos.14
13 No sentido grego, piedade significa prestar honra aos deuses da forma devida.
14 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 110, 4-111, 2.
Enquanto que a essência do platonismo é que o Bem é a razão última da
alma encarnada no reino da geração, é seguro dizer que a essência do neo-
platonismo é o retorno da alma ao Bem, o que consiste em um trabalho duro
sobre a própria alma, sua salvação. Para os neoplatônicos, portanto, a teur-
gia consiste em uma ferramenta de operação sobre a alma através de seu
veículo, o ochēma. Nesse caminho, ele cumpre três funções:
śūnya, o nada ou vazio, ganhando controle sobre as ações e reações inconscientes dos sentidos e da mente,
interrompendo assim suas interações. Śūnya é apenas a transição de um estado de meditação para o outro, da
consciência para concentração e a concentração se inicia com dhāraṇā. Veja o texto O ELO PERDIDO DO YOGA,
Fernando Liguori.
16 Pierre Hadot, O QUE É FILOSOFIA ANTIGA? (Loyola, 2014).
17 Todas as técnicas de visualização para desdobramento do Corpo de Luz na modernidade estão baseadas
neste princípio fundamental, assim como na consagração de uma estátua ou talismã com o veículo pneumático
de um deus. Quando o teurgo coloca o veículo pneumático de um deus em uma estátua ou talismã, está ani-
mando, infundindo pneuma no objeto consagrado.
nação é um processo compreensível como qualquer fenômeno natural ou
técnica humana capaz de ser analisada pelo pensamento discursivo.
Pois, de acordo com a essência da sua pergunta, você acredita em algo como isto sobre
a presciência: que ela pode vir a existir, e está entre as coisas existentes na natureza.
Mas não é uma das coisas que vêm à existência, e não se comporta de maneira alguma
como uma mudança natural, nem é um artefato inventado para uso na vida cotidiana,
nem é, em geral, uma conquista humana.18
100. 8; 101, 2. Platão usa ἀλεξιφάρµακον de maneira semelhante para indicar um antídoto para visões errô-
neas. Aqueles que legislam devem possuir os escritos do legislador divino e usá-los como um talismã
(ἀλεξιφάρµακον) contra todos os outros discursos. Veja AS LEIS, 957d.
21 Ao longo do DE MYSTERIIS Jâmblico argumenta que a presença dos deuses – através de suas teofanias ou
sunthēmata – eleva a Alma aos reinos de luz e perfeição. A apoteose da alma na teurgia é imaginada como uma
subida (anagōgē) aos deuses. Mas é precisamente como devemos entender essa ascensão teúrgica e como
Jâmblico a compreendia o tema central dessa primeira parte de nosso estudo.
semântica que, nos termos de Jâmblico, era ativada através da teurgia.22 En-
tão, para clarear a função teúrgica do ochēma como um veículo purificado
adequado a ascensão da alma aos reinos de luz e perfeição, seria mais inte-
ressante vê-lo não como um veículo de ascensão, mas como um veículo de
descida, por onde os deuses se revelam na alma e através dela. Desta forma,
o ochēma cumpre o objetivo da vida platônica, transformando teurgos em
deuses: não como estátuas elevadas e inertes erguidas acima da poluição do
mundo, mas como deidades que vivem e respiram em carne na região sub-
lunar.23
O aspecto corporificado e vívido da divinação teúrgica pode ser mensu-
rado nas palavras de Jâmblico para Porfírio depois de explicar as revelações
nos santuários de Asclépio:
Mas por que passar por tais ocorrências, uma por uma, quando os eventos que aconte-
cem todos os dias (καθ’ἡµέρανἀεὶσυµπιπτόντων) oferecem uma clareza maior do que
qualquer explicação (κρείττονατοῦλόγου)?24
22 Jâmblico afirma que, embora a henosis não ocorra sem conhecimento, esse conhecimento só é útil se nos
levar além do conhecimento, pois a união e a purificação divina vão além do conhecimento (DE MYSTERIIS, 98, 7-
10). Esse aspecto não-semântico do neoplatonismo, tão difícil e muitas vezes negligenciado, está presente em
vários neoplatônicos. Por exemplo, em Plotino, sua significação do Uno, o Princípio Absoluto, não era semanti-
camente significativa.
23 E este é o cerne da questão. Exotericamente pensamos no ochēma como um veículo de ascensão da alma e
essa ascensão metafórica libera em nós a presença divina que se torna mais real, mais presente e mais encar-
nada. Ao se tornar como o divino, o teurgo entra em contato com o imortal e, por meio dessa participação,
torna-se divino, cheio de piedade e maravilhamento espiritual. E nessa experiência transformadora do subir
mortal à imortalidade, em um momento distintamente teúrgico e teofânico, a perspectiva muda: não é mais o
mortal alcançando a imortalidade, mas o contrário. O divino toma um corpo mortal e essa descida é inteira-
mente dependente de prover a ele um receptáculo adequado, um ochēma poroso para receber a luz divina. A
subida e a descida da alma, embora discursivamente distintas, são esotericamente simultâneas e copresentes.
24 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 109, 1-3.
25 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 124, 1-2.
26 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 238, 11-12.
27 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 238, 13; 239, 10.
Para suportar os códigos de luz dos deuses é preciso se tornar divino. Na
oração teúrgica, a alma é libertada das oposições da vida corporificada: a
dianoia28 fragmentada é substituída pela noese29 unificada e as tendências
contrárias do veículo pneumático também são unificadas, o que quer dizer
que o veículo pneumático da alma assume completamente a forma esférica,
como os corpos dos deuses celestes.30
O corpo etéreo [dos deuses celestiais] está isento de toda contrariedade e está livre
de toda mudança [...]. É totalmente liberado de qualquer tendência centrípeta ou
centrífuga porque não tem tendência nem porque é movido em círculo.31
Em seu comentário sobre o TIMEU, Jâmblico diz que o Demiurgo cria a alma
com um veículo produzido de todo o éter (pantos tou aitheros) [...] [e] possu-
indo um poder criativo.32 Mas diferente dos deuses celestiais, no exercício
desse poder, nos tornamos autoalienados (allotriōthen). Quando em corpos
animados, perdemos nossa forma esférica e ficamos presos nas oposições da
vida material: as divisões, colisões, impactos, reações e mudanças que Jâm-
blico diz serem as experiências inevitáveis da vida no reino da geração.33 Na
oração teúrgica, equilibramos essas oposições no veículo pneumático de
nossa alma, recebendo a partir daí a noese dos deuses. Como diz Jâmblico:
nosso ochēma é feito esférico e é movido circularmente sempre que a alma é
especialmente assimilada ao Nous.34 O ochēma tem uma função crítica nessa
assimilação. É o vaso no qual nos tornamos deuses e o vaso onde os deuses
tomam posse de nossos corpos. Como disse Jâmblico: o deus usa nossos cor-
pos como seus órgãos.35 Mas, para se tornar um órgão do deus, o ochēma de-
ve ser purificado e preenchido com luz, um processo que o neoplatônico
Damascius no Séc. VI chama de saturação fotônica. Ele diz:
Como uma esponja, a alma não perde nada de seu ser, mas se torna porosa, rarefeita
ou densamente compactada. O mesmo acontece com o corpo imortal da alma [...] [que]
às vezes fica mais esférico e às vezes menos; às vezes é preenchido com luz divina e às
vezes preenchida com as manchas de atos generativos.36
inflama-te em oração. É precisamente aqui que o conceito se aplica. Através da fervorosa oração, o ochēma é
purificado e assume completamente a forma esférica ovalada que permite a recepção dos códigos de luz dos
deuses.
31 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 202, 10; 203, 1.
32 Veja John M. Dillon, IAMBLICHI CHALCIDENSIS, p. 196.
33 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 217.
34 Veja John M. Dillon, IAMBLICHI CHALCIDENSIS, p. 152.
35 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 115, 4-5.
36 Citado em John M. Dillon, IAMBLICHI CHALCIDENSIS, p. 174.
37 Jâmblico, DE MYSTERIIS, 238, 8.
que o ochēma deve escapar da geração, mas não é o caso. Para Jâmblico, a
ascensão da alma é realizada como a descida do deus: no vaso alquímico do
ochēma, o deus se torna carne. A descida e ascensão da alma não são opos-
tas, mas estão misteriosamente ligadas. Jâmblico diz: Não há oposição entre
a descida da alma e sua ascensão [...]. A liberdade [do reino da] geração está
em harmonia com nossa preocupação com a vida gerada.38 Jâmblico aprova a
visão dos platonistas do Séc. II. que ensinaram que o propósito da descida da
alma é para manifestar a vida divina, que a vontade dos deuses é revelar-se
(ekphainesthai) nas almas humanas.39 Essa visão teofânica da existência hu-
mana não era nova em Jâmblico. Era uma tradição reconhecida dos filósofos
pré-socráticos, platônicos, aristotélicos e estóicos: enquanto permaneciam
mortais, eles se tornavam deuses. Mas na era de Jâmblico, o propósito hierá-
tico dessa tradição – enraizado na experiência não discursiva – estava sendo
perdido devido a o intelectualismo e o dualismo metafísico que depreciam a
vida corporificada.
CONCLUSÃO DA SEÇÃO . I .
O CAMINHO DA MÃO ESQUERDA EM JÂMBLICO
SEÇÃO . I I .
DA TEURGIA GREGA A TEURGIA BRASILEIRA
40 E deidades negras adversárias como Lilith, Ahriman e outros deuses antigos. O feiticeiro-kimbanda não é
proibido de invocar outros deuses caso queira com eles travar comércio. Na tradição de Quimbanda Exu abre
linha. Isso significa que seguindo a doutrina universal do espírito tutelar, o Exu ou diabo pessoal dá acesso a
outros espíritos e forças espirituais.
falam de incorporação consciente e semiconsciente, querendo dizer que de
certo modo o médium/feiticeiro participa do processo.
É através do ochēma que o teurgo recebe as virtudes dos deuses na al-
ma. Isso é deveras importante ao comprometimento espiritual do teurgo
com sua alma. Ao receber as virtudes dos deuses no ochēma, o que chama-
mos também de enriquecimento de alma, ele se torna um veículo pneumático
luminoso (augoeides) através do qual a alma é deificada. É através do ochē-
ma que a alma se alimenta, de tudo. Eu costumo dizer que a região sublunar,
o reino da geração, é um grande mar onde tudo come tudo. Larvas astrais
que perambulam pela região do plano astral tanto são devoradas por espíri-
tos mais fortes quanto usam como carapaças, conchas invadidas, corpos as-
trais em decomposição, quando se tornam cascões astrais. Nós nos alimen-
tamos e também servimos de alimento para tudo e todos, isso significa que
influenciamos e somos influenciados por homens e os espíritos de todas as
coisas. Mas existe uma forma de nos protegermos, de fortificarmos o ochēma
para que ele se alimente apenas do que precisa para deificação da alma: o
conhecimento e a conversação com o espírito tutelar. Este espírito tutelar na
tradição de Quimbanda é o Exu Tutelar; na teurgia clássica neoplatônica, o
daimon pessoal; na feitiçaria dos papiros gregos, o paredros.
A possessão daimônica, inspiração divina ou incorporação mediúnica é
uma das ferramentas fundamentais da feitiçaria tradicional brasileira.
Quando Jâmblico explica o fenômeno da inspiração divina, se vê obrigado a
descrever os ritos de teurgia que possibilitam o fenômeno. Em sua descrição
ele fala do uso de instrumentos musicais como tambores, pandeiros e flautas
que induzem um estado de receptividade no ochēma, permitindo sua expan-
são e a partir disso a possessão divina. Ao conhecedor de cabala crioula, a
descrição de Jâmblico não difere em nada de uma gira de Quimbanda onde
Exus e Pombagiras são convocados a invadirem o veículo pneumático dos
feiticeiros.
Para continuarmos, vamos considerar alguns pontos importantes em
nossa jornada:
Para iniciarmos essa terceira seção, vamos começar pelas definições: i. o pa-
redros da feitiçaria grega dos papiros é qualquer espírito assistente (tutelar),
seja um espírito da natureza, a alma de um morto deificada (como os Exus e
Pombagiras da feitiçaria tradicional brasileira) ou deidades diversas, que
inclui deuses e demônios; ii. o Exu/Pombagira Tutelar (ou mestre) é um an-
cestral, a alma de um morto deificada, dotada de sabedoria e poder de magi-
a.
No Curso de Filosofia Oculta, no nosso primeiro ano de estudo, Módulo
1: Magia na Antiguidade, nós estamos nos debruçando sobre os primórdios
da magia goécia como compreendida e praticada na Antiguidade tardia e
cujo epicentro foi a magia hermética dos PAPIROS MÁGICOS GREGOS. Nas pri-
meiras lições nós chamamos atenção para a grande similaridade que existe
entre a magia dos papiros e a cabala crioula da África Setentrional. Nos pri-
meiros séculos de nossa era, a região do Mediterrâneo tornou-se um caldei-
rão fervilhante onde as culturas mágico-religiosas do Egito, Grécia e Roma se
encontraram com as culturas da Suméria, Babilônia, Acádia e Assíria. Todas
essas culturas e cultos mágico-teúrgicos influenciaram profundamente a
magia hermética dos papiros, que apresenta uma feitiçaria tipicamente goé-
tica: a conjuração de espíritos para diversos fins.
Afiliada a Tradição Ocidental de Mistérios, a Quimbanda ou feitiçaria
tradicional brasileira trata-se de uma genuína tradição de feitiçaria que her-
da uma gama variada de tecnologias espirituais da feitiçaria dos PAPIROS MÁ-
GICOS GREGOS. O estilo de vida goético que culminou na feitiçaria tradicional
brasileira chegou ao Brasil via Portugal no Séc. XVI, quando as primeiras fei-
ticeiras condenadas e exiladas pelo Santo Ofício começaram a aportar em
nossas terras. A magia ibérica daquele período já trazia uma grande influên-
cia da magia dos papiros, que cruzava sistemas e tradições livremente, onde
vemos cristianismo, judaísmo e paganismo greco-egípcio misturados em fei-
tiços diversos.
A maioria dos métodos e técnicas usados pelas bruxas dos tempos antigos tem pouca
semelhança com aqueles usados pelas bruxas neopagãs de hoje. Muitas vezes o povo
astuto praticava a observância da fé dual e os encantos, amuletos, orações e encanta-
mentos que eles usavam invocavam Jesus, a Virgem Maria, a Trindade e a companhia
dos santos. Os salmos eram usados para propósitos mágicos como feitiços e ainda es-
tão em alguns círculos de feitiçaria tradicionais modernos. Com a chegada da nova fé
do cristianismo e a supressão das antigas religiões pagãs, objetos como crucifixos,
medalhões dos santos, a hóstia e a água benta foram amplamente usados pelos magos
populares porque acreditavam possuir «virtude» ou energia mágica e poder de cura
inerente. O simbolismo cristão era usado em rituais de magia popular envolvendo pro-
teção psíquica, contra-magia e cura. Muitos dos antigos encantos pagãos foram cristi-
anizados e alguns dos santos assumiram os atributos anteriores de deuses e deusas
pagãos. As nascentes sagradas, anteriormente dedicadas às deusas, por exemplo, eram
voltadas para a Virgem Maria ou para as mulheres, como Winefrede ou Bride. Os en-
cantos de cura substituíram os nomes das divindades pagãs, como Woden, Loki e
Thor, pelos de Deus, de Jesus e do Espírito Santo. Muitos dos grimórios [medievais]
usados pelas bruxas e praticantes da magia popular também continham inevitavel-
mente o simbolismo judaico-cristão.
Algumas bruxas tradicionais modernas ainda seguem a observância da fé dupla u-
sando os salmos para propósitos mágicos, trabalhando com a companhia de santos e
empregando imagens cristãs, simbolismo e liturgia, muitas vezes de maneira herética
e subversiva. A bruxa neo-pagã fala de maneira que não prejudique ninguém, enquan-
to que a bruxa tradicional moderna – em comum com as astúcias das bruxas do passa-
do – pode tanto curar quanto amaldiçoar quando surgir a necessidade. Aqui a magia,
enquanto cristã, é indubitavelmente autêntica, e não um renascimento romântico. Prá-
ticas semelhantes podem ser encontradas no Vodu, Hoodoo, Santeria, Macumba, Ju-ju
e Obeah nas Américas e na África. Um modelo católico do universo, incluindo o céu, o
purgatório e o submundo, influenciou a aceitação congolesa e o uso do catolicismo em
suas práticas mágicas, como Palo Mayombe. É tão útil na necromancia ocidental.41
41 Jake Stratton-Kent, THE TESTAMENT OF CYPRIAN THE MAGE. Scarlet Imprint, 2014. Os colchetes são meus.
nicação e transmutação entre o ochēma do feiticeiro e as poderosas forças
dos Sete Reinos de Exus e Pombagiras. O glifo que representa essa alquimia
negra da alma é a imagem da deusa Baphomet.
Essa alquimia negra sobre a alma desperta suas potências. Como temos es-
tudado, um genuíno praticante do caminho da mão esquerda não depende
das virtudes dos deuses em planos de luz e perfeição para agregar a sua al-
ma uma quantidade considerável de luz para torná-la um augoeides, quer
dizer, um Ovo de Luz luminoso e resplandecente. Através do veneno da ser-
pente o feiticeiro arranca das covas de sua alma suas potências inatas. Ele
caminha, portanto, sobre suas próprias pernas. Por outro lado, Exu é puro
dinamismo. Se há algo que Exu é inimigo, é a estagnação. É este dinamismo
que o Exu Tutelar compartilha com o feiticeiro-kimbanda. Para cavar as pro-
fundezas obscuras da própria alma o feiticeiro-kimbanda precisa de intenso
ímpeto dinâmico. Compartilhando do poder dinâmico de seu Exu Tutelar, o
feiticeiro-kimbanda cava mais fundo as profundezas da alma, buscando o
despertar de sua Chama Negra.
A feitiçaria tradicional brasileira é, portanto, uma medicina para alma.
Através do contato com Exus e Pombagiras é possível despertar as potências
inatas da alma através de um processo de cura espiritual. Diferente da igno-
rância generalizada, a feitiçaria tradicional brasileira é uma Arte Negra que
opera uma alquimia na alma através da feitiçaria. Exus e Pombagiras podem
ser convocados para aniquilação de medos e traumas, para organização da
mente e cultivo da vontade, para libertação de vícios e maus hábitos, além de
agentes de magia para todos os fins, ataque, defesa, energização ou purifica-
ção.
Assim, na busca pela sabedoria e poder de seu Exu Tutelar o feiticeiro-
kimbanda se coloca na mesma jornada do feiticeiro dos papiros gregos; uma
jornada, no entanto, universal, típica da tradição da magia em culturas di-
versas. Ao avaliarmos as funções do paredros e sua relação com o feiticeiro
nos papiros (I.42-195), temos:
42 Neste caso, elevar no ar significa levar a alma do mago para longe do cativeiro do submundo após a morte.
3. Poder de mudar a forma do mago para animais que voam, quadrúpedes
e répteis. Exu pode se metamorfosear em muitas formas. Por exemplo,
Exu Panteira Negra é um caboclo da mata que às vezes se manifesta
como uma pantera. Esse é um poder licantrópico de Exus e Pombagi-
ras. Este poder pode ser transferido ao feiticeiro-kimbanda que pode
a partir disso metamorfosear seu ochēma, tomando a forma de seus
animais de poder.
4. Poder de elevar o mago aos céus. Era uma crença na Antiguidade que o
paredros poderia auxiliar o mago na deificação de sua alma. Exu auxi-
lia na deificação da alma do feiticeiro-kimbanda, quando ele passa a
fazer parte das Legiões de V.S. o Maioral.
5. Poder de conferir ao mago riquezas. Os Exus e Pombagiras do Reino da
Lira (ou qualquer reino) podem auxiliar o feiticeiro-kimbanda a obter
conforto financeiro.
6. Poder de ser adorado como um deus caso o mago tenha com esse deus
certa intimidade. Essa é uma crença baseada na ideia de que o pare-
dros compartilha de seus poderes com o mago. Na Antiguidade, feitos
taumatúrgicos conferiam notoriedade, daí ser adorado como um deus.
Exus e Pombagiras compartilham de suas virtudes com o feiticeiro-
kimbanda.
7. O paredros torna-se o companheiro do mago, vive, come e dorme com
ele. Ao assentar Exus e Pombagiras em casa ou no templo, o feiticeiro-
kimbanda traz o espírito da Legião para morar com ele. O espírito
torna-se, portanto, um familiar.
8. O paredros revela com clareza tudo o que o mago precisa saber. O Exu
Tutelar trabalha diretamente com o feiticeiro-kimbanda através de
oráculos como búzios, ossos e cartas.
9. O paredros executa qualquer tarefa que o mago lhe apontar. O Exu Tu-
telar ou outros Exus e Pombagiras patronos auxiliam e socorrem o fei-
ticeiro-kimbanda quando este necessita, seja para fins de alquimia na
alma ou magia de ataque e defesa.
10. O paredros é capaz de se manifestar como um animal aéreo ou aquáti-
co, réptil ou quadrúpede. Novamente, o poder licantrópico do Exu. Veja
no. 3 acima.
11. O paredros se apresenta com daimones para auxiliar o mago. Exus e
Pombagiras se apresentam com uma Legião de espíritos para auxilia-
rem as demandas do feiticeiro-kimbanda.
Fernando de Ligório
© 2020 Fernando Liguori
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