RESENHAS
REVIEWS
Dulce C A . WHITAKER*
BRANDÃO, C R . — Casa de escola: cultura camponesa e educação rural. Campinas, Papirus, 1983.
248p.
Trabalhar com educação significa ho- público, apesar da "desobrigação" do Es-
je viver entre as denúncias que revelam a tado em chegar lá com seus aparatos edu-
escola como instância onde se reprodu- cativos, apesar de todas as carências ma-
zem as desigualdades sociais, ao mesmo teriais e técnicas, nos faz lembrar esta coi-
tempo em que se busca, nessa mesma es- sa tão simples hoje quase esquecida: o fa-
cola, o espaço das contradições, no qual to de que educação é processo de sociali-
se possam vislumbrar os instrumentos da zação e como tal existe antes da escola e
superação dessas mesmas desigualdades. independente dela. Aliás, o que sobressae
Para os cientistas sociais as pesquisas mesmo é a impotência da escola em condi-
sobre educação são focos de angústias e ções de exploração.
inquietações. Enquanto alguns estudio- De fato, o momento exemplar do seu
sos, como Philippe Aries, encontram na livro é aquele em que, avaliando a situa-
origem da escolarização da sociedade a ção dos índios mixtecos e dos camponeses
necessidade de segregar a infância e a ado- do México, que recebem, no alto da serra,
lescência, para submetê-las a um sistema uma escoridade mais extensa do que qual-
autoritário, outros como Louis Malassi, quer camponês brasileiro de beira de cida-
por exemplo, chamam atenção para o fa- de, o autor percebe que, nem por isso são
to de que a educação é cada vez mais reco- menos explorador do que nossos oprimi-
nhecida como um direito fundamental do dos menos escolarizados. "Não lhes po-
ser humano, domesticadora ou não, é ca- dendo devolver direitos, o Estado (Mexi-
da vez mais reivindicada pelo próprio cano) os inunda de educação, que é um
oprimido, que vê nela o instrumento para modo de fazê-lo aprender desde a infância
defender-se da mesma dominação da qual a conviver com o mundo desigual do "ho-
ela se faz igualmente instrumento. mem educado".
Diante desse quadro de teorias, dou- Mas existem alternativas para a Edu-
trinas e avaliações contraditórias, o livro cação. O Prof. Brandão nos mostra tais
do Prof. Carlos R. Brandão é um verda- alternativas e os obstáculos que as neutra-
deiro bálsamo. lizam, através de quatro textos "educati-
A visão antropológica da educação re- vos" que relatam pesquisas em diferentes
vela suas inúmeras possibilidades. Anali- regiões do Brasil Rural. Em cada uma de-
sar o processo educativo — como se faz las, as possibilidades "perdidas" de uma
em Casa de Escola, onde ele existe com educação em que se nega o próprio pro-
toda força, apesar dá ausência do poder cesso que se pretende apoiar.
* D e p a r t a m e n t o de S o c i o l o g i a — Instituto de L e t r a s , C i ê n c i a s S o c i a i s e E d u c a ç ã o — U N E S P — 14800 — A r a r a q u a r a — S P .
No primeiro deles — Os mestres da gor do que os seus seguidores" É um es-
Folga e da Folia — a cultura de resistência tudioso ali onde se pensa que não existe o
que conhecemos como catolicismo popu- ensino. Sobre esse poder deveríamos me-
lar, seus — mestres — e suas práticas "pe- ditar todos os que, mesmo sem o reconhe-
dagógicas" e as sobrevivências de um cer, possuímos uma parcela de poder em
tempo em que teatro, dança e música fa- nossa sociedade: professores, médicos,
ziam parte do cotidiano. Desse tempo, an- cientistas, e mais do que todos nós, os
terior á racionalização do trabalho pelo políticos.
capitalismo industrial triunfante, também Pelas páginas deste primeiro texto des-
nos fala Áries em sua História Social da filam mestres embaixadores, contra-
criança e da família. mestres, alferes de bandeiras, o gerente,
O caráter "ditático" da dança e da foliões é devotos de todos os tipos. Mas
música, que métodos pedagógicos moder- não nos deixemos entusiasmar apenas pe-
nos aconselham até como novidade — e lo caráter festivo desses personagens, por
que nossos professores burocratizados e que estão todos imbuídos de um "saber"
sobrecarregados não têm tempo de por que significa "trabalho". Aqui, aprender
em prática — se constituem e reconsti- e trabalhar são sinônimos porque apren-
tuem nas tradições do povo onde ele resis- der é processo ativo, motivado". A h ! o
te. E é preciso ressaltar aqui que a idéia de estudo motivado, sonho de todos os espe-
resistência pouco tem a ver com o concei- cialistas em metodologia do ensino que
to político de conservantismo, já que o nos cursos de formação de professores
conservador é justamente aquele que se preconizam o milagre. É irônico que tal
atualiza para conservar. milagre exista, mas fora da escola, no tra-
Mas como se dançava no catolicismo balho de um mestre que aprende e ensina.
da colonização. O aburguesamento da O texto é denso. Nele se casam admi-
Igreja expulsou dos seus espaços tais prá- ravelmente a erudição do professor e o
ticas, mas o antropólogo vai buscar-lhe o humanismo do antropólogo. Respeito e
caráter pedagógico em toda parte onde ele admiração pelo seu objeto de estudo, que
seja praticado — do Litoral Norte do In- acima de tudo são sujeitos do seu saber,
terior de Goiás. A complexidade, por eis a marca principal das suas interpreta-
exemplo, da organização e funcionamen- ções. Talvez por isso falte no seu texto
to de uma companhia de Santos Reis, nos uma denúncia mais contundente dos com-
revela, para além do mundo da festa — promissos históricos que levaram a Igreja
"ruptura da rotina da vida cotidiana" — oficial a expulsar esses rituais do seu inte-
o "saber" que cultivam aqueles que estu- rior, bem como uma análise crítica da
dam piedosamente o ritual, a partir do marginalização da mulher nesses ritos, o
qual surgem inclusive os controles espon- que apenas constata, em alguns momen-
tâneos que garantem a permanência e o tos, segundo observou, a mulher pode ser
desenvolvimento da sociabilidade dentro a proprietária de uma Companhia (que,
da "ruptura". Mas nem se pensa que tal tal como as nossas empresárias, herda, em
"saber" por se tornar poder (forma de geral, pela morte, do pai ou do marido)
controle) seja algo arbitrário como se po- mas nunca desempenha os papéis rituais
deria pensar a partir de nossas experiên- importantes da Folia. Muito pelo contrá-
cias educacionais burocratizadas. O mes- rio, o aprofundamento do mestre (sempre
tre, conhecedor dos segredos de um ver- homem), em todos os aspectos do rito e
dadeiro sacerdócio "comanda porque sa- da doutrina é algo que se procura com to-
be obedecer, melhor do que todos, o códi- do empenho porque pode ocorrer que se
go do rito, a que se submete com mais ri- precise usá-los com toda força do "sa-
ber" para enfrentar os malefícios da feiti- público. Esse fenômeno emerge natural-
çaria e da magia, que desafinam violas e mente, mas sobre ele não se detém o an-
cortam a voz do mestre. Ora, tais artes tropólogo. O que ele busca é explicar e
maléficas aparecem nos depoimentos dos apreender seres humanos e suas motiva-
mestres como praticadas por mulheres. ções: afinal realizam um trabalho sem ter
Claro, este seria um tema para novas pes- a profissão. Aliás, tendo outras profissões
quisas. Mas, se conforme a teoria antro- — "lavrador, pescador diarista, trabalha-
pológica, tais significações fazem parte de dor braçal".
um universo simbólico que se compõe de E aí o antropólogo desvenda o espaço
explicações legitimadoras da ordem insti- social em que tal ambigüidade se realiza e
tucional como um todo, e baseando-se em descobre nele a resistência do camponês
corpos de tradição teórica, são capazes de que incorpora a escola, lutando por ela,
integrar amplas zonas de significados di- mas percebe nela uma agência de domina-
ferentes, talvez as moças e mulheres não ção. É um espaço onde se pode sentir o
se sintam mal no papel simbólico que a contraponto entre o domínio da cultura
tradição lhes reservou e que implica tam- externa (a cidade, "eles", os políticos, as
bém numa forma de poder. autoridades educacionais, o médico, o
O que importa neste texto é ressaltar o agrônomo etc.) e o domínio da cultura in-
papel do folião como elo das inúmeras ca- terna (a vila, " n ó s " , parentes e vizinhos,
deias de trabalho coletivo que recriam a rezadores e artesãos). A estes espaços se
devoção e estabelecem o sistema de trocas justapõe e se integra o mundo do trabalho
através do qual circula a cultura porque (-o homem e suas relações com a natureza,
entre si eles "se ensinam e aprendem". o rio, o mandioca! e o guaranazal que sâo
Quem de nós, professores em geral, pode- também o lugar do " n ó s " ) . E , finalmen-
ria afirmar que tais sistemas de aprender e te, para além da mata, o mundo das tro-
ensinar ocorrem em nossa prática pedagó- cas com a natureza (a coleta, os bichos)
gica? também "eles", porque é hostil, por ser o
Dirão alguns que a Divisão do Traba- não-dominado.
lho e a racionalidade da moderna socieda- Tais espaços formam linhas que ora se
de industrial tornaram impossível uma encontram ora se opõem, como as quatro
educação que não seja a disciplina e o vozes de uma Fuga de Bach. E aqui é de se
controle do futuro trabalhador da fábrica perguntar. Quando os programas educa-
ou do escritório. E para que então estudar cionais levarão em conta esses espaços,
outras práticas? Só para nos frustrarmos suas necessidades e contradições? Pode
com o seu desaparecimento? Ou seria líci- um processo educacional penetrar tão
to pensar numa ordem social mais rica de profundamente uma comunidade sem
valores humanos onde as lições dos mes- desvendar-lhe a dominação? Que desdo-
tres da folga pudessem ser recuperadas? E bramentos traria tal pedagogia antropoló-
que notáveis lições! gica?
No segundo texto temos anotações de Veja-se, por exemplo, a análise que o
viagens sobre escolas e comunidades dos autor faz da cada vez maior subordinação
rios da Amazônia. Ao contrário das análi- do trabalho do guaranazal ao grande ca-
ses de pedagogos, que em geral registram pital. O processo de subordinação formal
as deficiências do professor leigo e inefi- é ainda transição, mas de repente o antro-
cácia do sistema escolar, o autor procura pólogo é o profeta visualizando os tempos
aprender tais professores nas suas ambi- em que barcos de "turmeiros" percorre-
güidades. Não que ele negue ineficácia da rão os rios comandando "bóias-frias" en-
escola rural cujo balanço é de domínio quanto os discursos do poder falarão em
progresso. Diante de tais processos, que com o desencanto das conclusões do estu-
escola pode assumir alternativas? Basta do final: " A rigor não existe educação ru-
que se veja o que se anda a fazer por aí ral; existem fragmentos da educação esco-
com o método Paulo Freire. lar urbana introduzidos no mundo ru-
No terceiro texto, o Prof. Brandão ral". É do poder da cidade que emanam
aprofunda a análise da "visão dos venci- tais fragmentos. Observa então o autor
dos". Tomando a fala do lavrador de um que as famílias desses trabalhadores não
pequeno município de Mato Grosso Goia- querem da escola uma educação rural.
no reconstrói a História na sua perspecti- Querem que a escola lhes transmita os in-
va: a ambigüidade das avaliações entre o trumentos do poder dominante que per-
"antigamente" e o "hoje"; a coerção e o mita outros horizontes a seus filhos: ler,
autoritarismo de ontem, quando, no en- escrever, contar... Isto é a totalidade do
tanto, havia fartura e solidariedade, subs- ensino que esperam trabalhadores que
tituídos pela exploração que aprofunda o "estudam e vivem na escola uma outra
autoritarismo. Na sua fala, o subalterno forma de trabalho".
que valoriza os "direitos" de hoje, substi- E enfim sua conclusão sobre a escola
tutos da coerção de outrora, acaba desco- rural "a escola é um lugar triste" onde,
brindo que alguns aumentaram "injusta e aparentemente livre do trabalho, a crian-
opressivamente" seus direitos. ça se entrega a um outro trabalho também
O avanço do "progresso" que nada penoso, que é o de reproduzir um conhe-
mais é do que o a.vanço do Capital, apare- cimento desvinculado da sua realidade.
ce claramente na fala dos explorados que Faltou ao autor nesse momento reafir-
descrevem a expropriação dos pequenos mar que não precisa ser assim. Basta que
proprietários e a expulsão dos trabalhado- se veja a fé que anima seu primeiro texto.
res que migram para a cidade — agrega- Para que não se termine a leitura com esse
dos, parceiros, meeiros. Mas lá permane- vazio final, cumpre recomeçar, ao final, a
cem lavradores e seu destino .é o trabalho leitura, para "beber" no texto inicial as
volante. Com tal evolução histórica que possibilidades da educação.
papel positivo pode desempenhar a escola Casa da Escola sugere inúmeras linhas
enquanto instituição oficial? Este é o te- de pesquisa, não só em relação à educação
ma do quarto e último texto, onde o autor rural, como em relação a toda educação
relata uma pesquisa através da qual se que se "outorga" a todos os tipos de opri-
procurou captar o que pensam lavradores midos.
e migrantes do rural urbano sobre "a edu- Gostaria de acrescentar ainda um últi-
cação dos seus filhos, a mesma que eles mo comentário. Torna-se cada vez mais
próprios nunca tiveram ou que viveram comum "descobrir" que os trabalhadores
aos pedaços por um ano, dois, ou três". querem aprender a ler, escrever e fazer as
As ambigüidades das avaliações são a quatro operações. Mas na realidade,
constante: entre aspirações subjetivas e quem, em sã consciência, aconselharia
possibilidades objetivas (o sonho e a reali- uma escola que não ensinasse tais coisas?
dade), a escola rural aparece como um ca- Por mais profissionalizante que seja um
minho para fugir às condições cruéis da ensino, tais técnicas estarão lá através das
exploração do trabalho rural. As contra- disciplinas obrigatórias com seus conteú-
dições sâo muitas e levam melancolica- dos universais em termos de cultura. O
mente o autor a um balanço final negati- que se necessita não são propriamente
vo. currículo, mas uma metodologia de ensi-
Contrasta a euforia dos depoimentos no que permita as trocas do aprender e en-
dos mestres da folia do primeiro texto sinar a partir da cultura, tal como propõe
Paulo Freire. O que não se pode pôr de la- isso não impede que alguns consigam rea-
do é que tais métodos exigiriam formação lizar tais proezas pedagógicas. E para
em ciências humanas e mais um espaço de conhecê-las, Casa da Escola é livro funda-
transformação política inexistente. Mas mental.