A Palavra do Editor
Coletâneas de
Aconselhamento Bíblico
D a v i d W. S m i t h 1
Os autores dos artigos do primeiro Os artigos reunidos neste volume re-
volume de Coletâneas de Aconselhamento presentam parte do empenho destes dois
Bíblico, Edward Welch e David Powlison, autores para demonstrar que a Bíblia é, de
foram meus professores no programa de fato, a ÚNICA regra de fé e prática (2 Tm
doutorado em Aconselhamento Bíblico 3.16,17) para lidar com todos os proble-
há quase vinte anos. Três coisas impres- mas não-orgânicos do ser humano. Que o
sionaram-me naquela época: a seriedade e mesmo Deus, que tanto usou a vida e os
integridade destes homens nos mínimos ensinamentos destes autores em minha vida,
detalhes de seu andar com Deus, seu com- possa usá-los agora na sua vida por meio
promisso com a igreja local e seu empenho destes artigos traduzidos para o português,
como conselheiros e professores da Christian fortalecendo sua confiança no poder e nas
Counseling and Educational Foundation de riquezas da Palavra de Deus – a espada do
relacionar a Palavra de Deus aos problemas Espírito – a fim de que você seja “perfeito
humanos mais complexos, crendo que ela [maduro] e perfeitamente habilitado para
é totalmente suficiente para nos conduzir toda boa obra” (2 Tm 3.17).
“à vida e à piedade” (2 Pe 1.3,4). Estes três Na graça sobre graça do nosso amado
impactos ainda perduram. Senhor Jesus.
1
Dr. David Smith está envolvido ativamente no
Aconselhamento Bíblico há mais de 30 anos.
Durante 29 anos serviu como missionário no Brasil,
onde lecionou no Seminário Bíblico Palavra da Vida
e no Seminário Teológico Servo de Cristo. Atualmente é
professor no The Master´s College.
2 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Aconselham e n t o
Perguntas Raio-X:
Descobrindo os porquês e os motivos
do comportamento humano
D a v i d A . Po w l i s o n 1
“Por que eu fiz isso?” “Por que você sociais? Seus impulsos foram reforçados por
reagiu daquela maneira?” “Por que usou estímulos de recompensa? Você é do signo
aquelas palavras e aquele tom de voz?” “Por de Áries sob a influência de Júpiter? Você é
que pensou e sentiu daquela maneira?” um adulto co-dependente, que foi criado em
“Você consegue lembrar detalhes do que um lar conturbado que determinou sua ma-
aconteceu?” “Como você fez escolhas naque- neira de agir? Você está tentando compensar
la situação?” “Como chegou aos resultados um sentimento de inferioridade, buscando
que colheu?” elevar a sua auto-estima? Um demônio
A pergunta “Por quê?” desperta inúme- chamado Compulsão infiltrou-se em uma
ras teorias sobre a natureza humana. Por que brecha de sua personalidade? Você não tem
as pessoas fazem o que fazem? Cada uma um conhecimento doutrinário bom? O seu
das análises da personalidade humana e das temperamento é melancólico ou sanguíneo,
tentativas de solucionar o que aflige a raça pessimista ou otimista, introvertido ou ex-
humana está ancorada em alguma “resposta” trovertido? “Eu fiz, pensei ou senti de tal e
a esta pergunta. O ponto de vista sobre a mo- tal maneira porque...”. O comportamento
tivação humana estabelece cada detalhe das visível deve ter por trás alguma razão.
teorias e da prática. Você ficou bloqueado em As teorias a respeito do que faz as pessoas
algum ponto da hierarquia das necessidades? agirem de uma forma ou de outra tomam
Você é geneticamente predisposto à agressão? corpo nos modelos de aconselhamento.
Os hormônios são os culpados? Sua dinâmi- As explicações dirigem as soluções: tomar
ca psíquica entra em conflito com as regras medicação, expulsar um demônio, suprir
suas necessidades, não tomar decisões
1
Tradução e adaptação de X-ray questions: drawing out importantes em dias astrais desfavoráveis,
the whys and wherefores of human behavior. Publicado em
reprogramar o seu auto-papo, examinar a
The Journal of Biblical Counseling. v. 18, n.1, Fall 1999,
p. 2-9. sua dor. As causas presumidas e as respostas
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 3
apropriadas são debatidas entusiasticamente. durante toda a noite, limpar a casa. O que
Nas bibliotecas universitárias, centenas de está acontecendo?
prateleiras registram os debates. O Senhor Como cristão você declara que Deus
Deus tem muito a dizer sobre esta questão. controla todas as coisas e opera cada uma
Ele refuta ativamente os rivais e os imposto- delas para a glória dEle e o seu bem. Você
res, demonstrando que a motivação humana declara que Deus é a sua rocha e o seu refú-
tem a ver com Ele. O aconselhamento que gio, um socorro bem presente em qualquer
tem como alvo ser bíblico precisa fazer justi- dificuldade que você enfrente. Você declara
ça àquilo que Deus diz sobre os porquês e os que O adora, confia nEle, ama e obedece.
motivos do coração humano. As Escrituras Mas naquele momento – hora, dia, período
reivindicam “discernir os pensamentos e – de ansiedade, fuga ou desespero, você vive
propósitos do coração” de acordo com os como se você precisasse controlar todas as
critérios específicos com que Aquele que coisas. Você vive como se o dinheiro, a apro-
sonda os corações avalia o que Ele vê em vação de outros, o sermão bem-sucedido, seu
nós (Hb 4.12). diploma ou uma prova, a saúde perfeita, o
A lista de “perguntas raio X” que damos fato de evitar conflitos ou conseguir aquilo
a seguir ajuda a discernir os padrões da mo- que você quer ou...importasse mais do que
tivação humana. As perguntas têm por ob- amar a Deus e confiar nEle. Você vive como
jetivo ajudar a identificar e expor aquilo que se os bons sentimentos passageiros pudessem
ocupa posição de autoridade no coração. O ser um refúgio, como se suas ações pudes-
propósito é revelar os “deuses funcionais” – sem consertar o mundo. Seu deus funcional
na verdade, o que ou quem controla as ações, compete com o Deus que você professa. Os
os pensamentos, as emoções, as atitudes, as descrentes estão totalmente tomados por
memórias e as expectativas. Preste atenção: motivações não-piedosas. Os crentes sinceros
na prática diária, os seus “deuses funcionais” estão, com freqüência, seriamente compro-
costumam estar diametralmente opostos ao metidos com outros deuses, distraídos e
Deus a quem você declara adorar. divididos. Mas a graça pode nos dar uma
Pense em quando você fica ansioso, pre- nova orientação, purificar-nos e levar-nos
ocupado, tomado por inquietação. Alguma de volta para o Senhor.
coisa aconteceu – você não consegue tirar A obra de transformação que Cristo
esse problema da mente. Alguma coisa está opera em nossas vidas acontece simultanea-
acontecendo agora – você se deixa consumir mente em duas dimensões, a “vertical” e a
pela situação. Alguma coisa acontecerá ama- “horizontal”, o porquê e o como. Deus está
nhã – sua mente trabalha incansavelmente a reorientando continuamente tanto a nossa
questão, remoendo cada alternativa possível. adoração como a nossa caminhada, os nossos
À medida que o pecado da preocupação motivos bem como o nosso estilo de vida.
crava as garras em sua alma, talvez você Paulo resume o propósito do seu ministério
procure alívio instantâneo: assaltar a gela- nas seguintes palavras: “Ora, o intuito da
deira, assistir televisão, masturbar-se, ler um presente admoestação visa ao amor que
romance, fazer compras, jogar. Ou talvez procede de coração puro, e de consciência
você tente assumir o controle: completar boa, e de fé sem hipocrisia” (1 Tm 1.5). O
uma lista de tarefas e telefonemas, trabalhar amor resume a renovação dos relaciona-
4 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
mentos horizontais. Um coração puro, uma você pode fazer perguntas inteligentes do
boa consciência e uma fé sincera resumem tipo “Por que você está irado? Por que você
a reconfiguração do relacionamento verti- manipula outros? Por que você está ansioso
cal. Um coração impuro e dividido serve nessa situação? Por que você tem um pro-
a vários senhores. Uma consciência má ou blema de cobiça em determinado momento?
corrompida tira conclusões errôneas, avalia Por que você bebe em excesso?” A Bíblia – a
mal os fatos e engana, deixando de processar palavra penetrante e iluminadora dAquele
a vida como Deus quer. Uma fé hipócrita que sonda os corações – está preocupada
declara, canta e ora determinada coisa, mas em mergulhar abaixo dos comportamentos
confia em outra coisa quando sob pressão. e emoções para revelar as motivações e nos
As falhas no coração, na consciência e na fé expor perante Deus. Quando ficamos con-
produzem pecados específicos. A restauração victos dos enganos específicos que alimen-
do coração, da consciência e da fé produzem tamos em nossas mentes, a reorientação das
atos específicos de obediência. Este artigo motivações por meio da graça do evangelho
investiga a dimensão vertical que guia e im- costuma ser o passo seguinte.
pulsiona – causa – a dimensão horizontal. Estas perguntas podem ser aproveitadas
Perceba que cada pergunta gira ao redor de várias maneiras. Cada uma delas pode ser
da mesma questão básica: Quem ou o que usada como lente microscópica, para dissecar
é o seu deus funcional? Muitas das pergun- detalhes de um acontecimento específico
tas simplesmente derivam dos verbos que da vida da pessoa. Ou pode ser usada como
estabelecem nosso relacionamento com lente panorâmica, para fornecer uma visão
Deus: amar, confiar, temer, esperar, buscar, ampla e lançar luz em hábitos recorrentes
obedecer, refugiar-se, e assim por diante. que caracterizam várias facetas da vida da
Cada verbo traz uma lâmpada para nos pessoa. Você descobrirá ao longo do acon-
guiar Àquele que é o caminho, a verdade e a selhamento – e no seu próprio crescimento
vida. Mas cada verbo pode ser transformado em graça – que os detalhes e o panorama
também em uma pergunta, erguendo um complementam-se mutuamente. O pano-
espelho para nos mostrar em que estamos rama sozinho é muito geral; a mudança
errados. Cada pergunta conduz à mesma acontece em coisas específicas. Os detalhes
pergunta essencial. Em situações específicas isolados parecem triviais; o panorama dá um
– tempos, lugares e pessoas diferentes – uma significado amplo aos detalhes pequenos.
ou outra pergunta pode ser mais apropriada As referências bíblicas têm o propó-
e útil. Maneiras diferentes de formular as sito de incentivá-lo a pensar. Elas apenas
perguntas sobre motivação podem despertar arranham a superfície do material que a
pessoas diferentes. Bíblia oferece sobre a motivação humana.
As perguntas que vêm a seguir são per- Assegure-se de fazer a pergunta essencial: O
guntas “Por quê?”, formuladas de modo con- que está motivando você ou outra pessoa?
creto como perguntas “O quê?”. Elas podem Não corra para dar a “resposta bíblica certa”
ajudá-lo a perceber o que determina a direção antes de trabalhar árdua e honestamente para
da vida de uma pessoa. Você não pode ver analisar os “deuses funcionais”. O arrepen-
o que está no coração de outra pessoa, mas dimento que resulta de uma compreensão
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 5
desta questão fará com que a “resposta certa” tisfação”, “frustração”, “condicionamento”.
seja de fato certa e o amor de Jesus seja uma As pessoas são verbos na voz ativa.
fonte de alegria e esperança.
4. Sobre o que você alicerça a sua
1. O que você ama? O que você odeia?2 esperança?5
Esta pergunta baseada no “primeiro A dimensão de futuro destaca-se na
grande mandamento” sonda coração, alma, interpretação de Deus da motivação hu-
entendimento e força. Não há pergunta mais mana. As pessoas se sacrificam ativamente
profunda que possa ser feita a alguém. Não para alcançar aquilo que esperam – e o que
há explicação mais profunda para a razão que esperam? Pessoas desesperadas tiveram suas
nos leva a fazer o que fazemos. esperanças frustradas – e quais eram estas
esperanças?
2. O que você quer, deseja, anseia, cobiça?
A que desejos você obedece?3 5. O que você teme? O que você não
Esta pergunta resume a atuação in- quer? O que o deixa preocupado?6
terior da “carne” nas epístolas do Novo Temores pecaminosos são o inverso de
Testamento. “Seja feita a minha vontade” e anseios ardentes. Se você deseja evitar a todo
“Eu quero_____” estão sempre em pauta. custo alguma coisa – perda da reputação,
Os desejos que governam as pessoas são perda do controle, pobreza, doença, rejei-
variados. Portanto, saia em busca de deta- ção etc. – torna-se governado por medo e
lhes para esta pessoa, agora, nesta situação. cobiça.
Perceba que, às vezes, a vontade das outras
pessoas pode governá-lo (a pressão do grupo, 6. No que você sente prazer?7
o desejo de agradar, um comportamento de Esta pergunta abre caminho para a per-
camaleão). O anseio do seu coração, em tais gunta 2: O que você deseja? Ser “orientado
casos, é alcançar tudo quanto de bom outros por sentimentos” significa fazer dos seus
prometem e evitar qualquer mal que possa desejos o seu guia.
amedrontar: “Meu anseio é ser compreendi-
do, aceito, apreciado, admirado”. 7. Do que você precisa? Quais são as suas
“necessidades sentidas”?8
3. O que você procura, quer Se as perguntas 2 e 3 expõem os alvos em
alcançar, busca? Quais são seus alvos e termos de ação, esta pergunta revela os alvos
expectativas?4 em termos do que você espera receber. As ne-
Esta pergunta considera que a sua vida é cessidades que sentimos são freqüentemente
ativa e se move em uma direção. Nossa vida é mencionadas como se fossem auto-evidentes
dirigida por propósito. A motivação humana e destinadas a serem supridas, não como algo
não é passiva, como se fôssemos controlados que domina e escraviza sutilmente. Nossa
por forças externas que resultam em “insa- cultura, que enfatiza as necessidades, reforça
2
Mt 22.37-39; 2 Tm 3.2-4; Lc 16.13-14. 5
1 Pe 1.13; 1 Tm 6.17.
3
Gl 5.16-25; Ef 2.3, 4.22; 1 Pe 1.14, 2.11, 4.2; 2 Pe 6
Mt 6.25-32, 13.22.
1.4, 2.10; Tg 1.14-15, 4.1-3; Pv 10.3, 10.28, 11.6-7; Sl 7
Veja nota de rodapé 2.
17.14-15, 73.23-28. 8
Mt 6.8-15, 6.25-32.
4
Mt 6.32-33; 2 Tm 2.22.
6 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
os instintos e hábitos da carne. Na maioria dádivas. A ausência de bênçãos – rejeição,
dos casos, as necessidades sentidas são uma ostentação, insultos, doença, pobreza – é
linguagem comum para exigências idólatras com freqüência o contexto de provação em
de amor, compreensão, um senso de estar no que aprendemos a amar a Deus por quem Ele
controle, afirmação e realização. é. Em nossa idolatria, colocamos as dádivas
como bens supremos e fazemos do Doador
8. Quais são seus planos, a sua “agenda”, um office-boy para atender nossos desejos.
estratégias e intenções a se cumprirem?9
Esse é outro modo de avaliar o que você 10. Onde você encontra refúgio, seguran-
busca. O egocentrismo que espreita por trás ça, conforto, escape, alegria?11
dos planos aparentemente mais nobres pode Esta é a pergunta dos Salmos, penetran-
ser assustador. Ninguém costuma dizer: “A do em seu escapismo e sua falsa confiança.
expansão da nossa igreja em uma mega-igreja Ela é de ajuda no lidar com muitos dos “com-
irá me dar fama, prosperidade e poder”, portamentos compulsivos”, que costumam
mas estas motivações são fruto da natureza surgir no contexto de problemas e pressões
humana. Sua presença, mesmo acobertada, e funcionam como falsos refúgios.
perverte e macula as ações em um grau ou
outro. 11. Em quem ou no que você confia?12
Confiar é um dos principais verbos
9. O que mexe com você? O seu planeta se no seu relacionamento com Deus ou com
move ao redor de que sol? Onde está o seu os falsos deuses e as mentiras. Os Salmos
jardim encantado? O que ilumina o seu expressam confiança em nosso Pai e Pastor.
mundo? De qual fonte de satisfação você Em quê você está colocando a confiança
bebe? O que alimenta a sua vida? O que que ancora e dirige a sua vida? Em outras
de fato importa para você? Que castelos pessoas? Em suas habilidades e realizações?
você constrói nas nuvens? Você organiza a Em sua igreja ou tradição teológica? Nos
sua vida ao redor de quê? O que orienta o bens materiais? Na dieta, no exercício físico
seu mundo?10 ou no cuidado médico?
Muitas metáforas atraentes podem
expressar a pergunta “Qual a sua razão de 12. Qual a pessoa cujo desempenho é
viver?”. Perceba que ser governado, por assim importante para você? Sobre os ombros
dizer, por um grande anseio por intimida- de quem descansa o bem-estar do seu
de, realização, respeito, saúde ou bem-estar mundo?13
não define estes desejos como legítimos. Esta pergunta investiga a justiça própria,
Eles funcionam de maneira pervertida, a tendência a viver por meio de seus filhos
colocando-nos no centro do universo. Fomos ou colocar a esperança no casamento com
criados para ansiarmos predominantemente um cônjuge certo.
pelo próprio Senhor, pelo Doador e não as
9
Veja nota de rodapé 3. 11
Sl 23, 27, 31, e cerca de dois terços dos demais
10
Is 1.29-30; 50.10-11; Jr 2.13, 17.13; Mt 4.4, 5.6; Jo Salmos.
4.32-34, 6.25-69. 12
Pv 3.5, 11.28, 12.15.
13
Fp 1.6, 2.13, 3.3-11, 4.13; Sl 49.13.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 7
13. A quem você precisa agradar? Quais Se você conduzir a vida de acordo com o
as opiniões que contam a seu respeito? seu próprio entendimento ou “seus próprios
Você deseja a aprovação e teme a rejeição olhos”, você viverá como louco.
de quem? Qual o sistema de valores pelo
qual você se mede? Aos olhos de quem 17. O que faz com que você se sinta rico,
você está vivendo?14 seguro, próspero? O que o faria feliz?18
Quando você perde Deus de vista, você A Bíblia usa com freqüência a metáfora
entra em uma floresta de distorções. Você do tesouro para falar em motivações.
tende a viver diante dos próprios olhos ou
diante dos olhos de outros ou de ambos. Os 18. O que daria a você o maior prazer,
“ídolos sociais” assumem diversas formas es- felicidade, deleite? O que daria a maior
pecíficas: aceitação ou rejeição, pertencer ou dor e tristeza?19
ficar excluído do grupo, aprovação ou crítica, Bênção e maldição são a maneira bíblica
afeição ou hostilidade, adoração ou desprezo, de tratar da felicidade e da dor. Que expecta-
intimidade ou alienação, ser entendido ou tivas você tem sobre onde e como encontrar
ridicularizado. bênçãos? Estas expectativas revelam o que
governa a sua vida.
14. Quais os modelos que você segue? Que
tipo de pessoa você deseja ou quer ser?15 19. Que político poderia melhorar a si-
O seu “ídolo” ou “herói” revela quem tuação se assumisse o poder?20
você é. Esta pessoa encarna a imagem a que Cada vez mais as pessoas depositam
você aspira. esperança em uma mudança política.
15. Em seu leito de morte, o que a sua 20. Você ficaria feliz com a vitória ou o
vida resumiria como de valor? O que dá sucesso de quem? Como você define vitó-
sentido à sua vida?16 ria ou sucesso?21
Esta é a pergunta de Eclesiastes, o livro Que interesse pessoal a sua resposta
que examina um grande número de opções e revela? Algumas pessoas chegam a “viver ou
descobre que todas, menos uma, são vaidade. morrer” com base no desempenho de um
Traduza Eclesiastes 2 em seus equivalentes time esportivo, o sucesso financeiro de uma
atuais! empresa, os resultados acadêmicos obtidos
ou a aparência física.
16. Como você define sucesso ou fracasso
em determinada situação?17 21. O que você vê como seus direitos? O
Os padrões que você segue ou usa po- que você sente que tem direito de fazer?22
dem estar amplamente distorcidos. Deus Esta pergunta com freqüência lança luz
quer renovar a sua “consciência”, o padrão sobre os padrões motivacionais das pessoas
pelo qual você avalia a si mesmo e aos outros. iradas, aflitas, tomadas de justiça própria e
14
Pv 1.7, 9.10, 29.25; Jo 12.43; 1 Co 4.3-5; 2 Co 10.18. 18
Pv 3.13-18, 8.10ss, 8.17-21; Mt 6.19-21, Mt 13.45-46.
15
Rm 8.29; Ef 4.24; Cl 3.10. 19
Mt 5.3-11, Sl 1, Sl 35, Jr 17.7-8; Lc 6.27-42.
16
Eclesiastes.
20
Mt 6.10
21
Rm 8.37-39; Ap 2.7; Sl 96-99.
17
1 Co 10.24-27.
22
1 Co 9; Rm 5.6-10.
8 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
autopiedade. Nossa cultura reforça os ins- muitas coisas pelas quais você pode orar,
tintos e hábitos da carne. “Eu tenho direito em que você se concentra? A oração está
a________”. relacionada aos desejos; pedimos aquilo que
queremos. As suas orações refletem os desejos
22. Em que situações você se sente pres- da carne ou os desejos de Deus?
sionado e tenso ou confiante e descansado?
Quando você está pressionado, para onde 25. O que ocupa o seu pensamento com
se volta? O que você pensa a respeito? maior freqüência? O que o preocupa ou
Quais são os seus meios de escape? Do que que tipo de pensamento obsessivo você
você quer escapar?23 tem? Pela manhã, para o que a sua mente
Esta pergunta chega ao assunto por uma se volta instintivamente? Qual a sua
direção levemente diferente. Muitas vezes, maneira habitual de pensar?26
certos padrões de pecado dependem de Olhe no espelho as suas intenções e
situações. Insistir em olhar para diferentes as- acerte a direção!
pectos da situação pode colocar um espelho
diante dos motivos do coração. Quando falar 26. Sobre o que você costuma falar? O
em público “faz você ficar” tenso, é possível que é importante para você?27
que o seu coração esteja governado pelo seu Esta pergunta presume uma ligação es-
desempenho aos olhos de outros (temor ao treita entre motivações e comportamento.
homem e orgulho). Quando o pagamento Preste atenção ao que você e outros escolhem
das contas gera ansiedade, talvez haja um como assunto de conversa e como se expres-
forte amor ao dinheiro operando em você. sam. As nossas palavras proclamam aquilo
que o nosso coração adora.
23. O que você quer alcançar na vida?
Que recompensa você quer extrair da- 27. Como você usa o seu tempo? Quais
quilo que faz? O que você consegue com são as suas prioridades?27
isso?24 Preste atenção ao que você e outros es-
Esta é uma maneira bem concreta de colhem para fazer, pois revela as inclinações
reformular as perguntas 3 e 8, escavando do coração.
para desenterrar os seus alvos funcionais. Os
ídolos, as mentiras e os anseios do coração 28. Quais são as suas fantasias preferidas
prometem benefícios. Sirva a Baal, e ele (sejam elas agradáveis ou amedrontado-
garantirá fertilidade. Consiga fazer com que ras)? Com o que você sonha acordado?
aquele rapaz goste de você, e você se sentirá Qual o tema dos seus sonhos?29
bem a seu respeito. Consiga um salário alto, Somos seres humanos responsáveis
e você estará realizado diante dos outros. mesmo nestes momentos. As suas preocu-
pações habituais e os desejos são revelados
24. Pelo que você ora?25 nos devaneios.
Suas orações podem revelar um padrão
de falta de equilíbrio ou egocentrismo. Das 26
Cl 3.1-5; Fp 3.19; Rm 8.5-16.
27
Lc 6.45; Pv 10.19
23
Veja os vários salmos de refúgio.
24
Pv 3.13-18; Mt 6.1-5, 16-18. 28
Pv 1.16, 10.4, 23.19-21, 24.33.
25
Tg 4.3; Mt 6.5-15; Lc. 18.9-14. 29
Ec 5.3-7; veja notas de rodapé 1 e 4.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 9
29. Que crenças você sustenta a respeito 31. De que maneira você vive para si
da vida, de Deus, de si mesmo e de ou- mesmo?32
tros? Qual a sua cosmovisão, sua “mitolo- Esta é uma forma geral para fazer qual-
gia” pessoal que estrutura a sua maneira quer uma das perguntas acima.
de olhar para o mundo e interpretá-lo?
Quais as suas crenças específicas a respei- 32. De que maneira você vive escraviza-
to da situação? O que você aprecia?30 do pelo mal?33
Hebreus 4.12 fala de “pensamentos e A motivação humana não é puramente
intenções” do coração. Talvez possamos “psicológica”, “psicossocial” ou “psicossomá-
traduzir por “crenças e desejos”. Tanto as tica”. Quando você serve às mentiras, serve a
mentiras em que você acredita como as suas um inimigo que deseja enganar, escravizar e
paixões estão por trás dos pecados visíveis. matar. Você serve a Deus ou a outro senhor,
Nossas crenças controlam as nossas respostas. mas você está sempre servindo a alguém.
A sua maneira de entender a pessoa de Deus,
você mesmo, os outros, o certo e o errado, o
verdadeiro e o falso, o presente, o passado e 33. Como você implicitamente diz “Se
o futuro tem efeitos disseminados. apenas...” (alcançar o que você quer,
evitar o que você não quer, segurar o que
30. Quais são os seus ídolos ou falsos deu- você já possui)?34
ses? Em que você deposita a sua confiança Os “Se apenas...” são meios comuns de
ou coloca a sua esperança? Para o que expressão que podem revelar vários tipos de
você se volta ou o que você busca? Onde motivação com o propósito de promover
você se refugia? Quem é o salvador, juiz, auto-entendimento bíblico e arrependi-
controlador do seu mundo? A quem você mento.
serve? Que “voz” está no controle de sua
vida?31 34. O que instintivamente lhe pare-
Esta lista de perguntas investiga aquilo ce certo? Quais são as suas opiniões,
que usurpa o lugar de Deus. Cada uma delas quais as coisas que você sente que são
pode ser identificada com a metáfora de um verdadeiras?35
“ídolo a quem você é fiel”. As vozes que você Você não apenas “sente vontade” de
ouve imitam certas características específicas fazer algumas coisas (pergunta 6), mas você
de Deus: elas prometem bênçãos, ameaçam também “sente” que certas coisas são ver-
com maldições, ditam ordens. Comece a dadeiras. A sabedoria não é um sentimento
reparar cuidadosamente nestes aspectos. a ser seguido. Muito pelo contrário, ela é
30
Identifique ao longo de toda a Bíblia o propósito de 32
Lc 9.23-25
renovar a mente obscurecida pela falsidade. 33
Jo 8.44; Ef 2.2-3; 2 Tm 2.26; Tg 3.14-16.
31
Identifique ao longo de toda a Bíblia o propósito 34
1 Rs 21.1-7; Hb 11.25; Fp 3.4-11.
de livrar o homem de ídolos para servir ao Deus vivo 35
Jz 21.25; Pv 3.5, 3.7, 12.15, 14.12, 18.2; Is. 53.6; Fp
e verdadeiro; Ez 14.1-8; Cl 3.5; Ef 5.5; 1 Jo 5.21; Jr
3.19; Rm 16.18.
17.5; Tg 4.11-12.
10 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
corrigível à medida que se mantém sensível no ministério voltado para o crescimento
a ouvir e aprender. dos santos.
Terceiro, ao identificar como cada moti-
35. Onde você encontra a sua identidade? vação está relacionada a Deus, você percebe
Como você define quem você é? que aquilo que há de errado conosco requer
A Bíblia fala de modo radical sobre auto- uma solução também relacionada a Deus: a
conhecimento, identidade e auto-avaliação graça, a paz, o poder e a presença de Jesus
(“consciência”). As pessoas costumam buscar Cristo. A motivação humana diz respeito a
identidade em poços secos. uma dimensão vertical. As boas novas de
Esta lista de perguntas pode provocar Cristo não são apenas uma maneira “cristã”
um pensar frutífero sobre como a vida de satisfazer desejos e necessidades já existen-
relaciona-se exaustivamente com Deus. tes em nós. A fé viva em Jesus Cristo é a única
Antes de concluir, quero reforçar três pontos motivação aceitável, a alternativa radical para
que descobri serem particularmente úteis substituir as motivações pervertidas.
para manter minha bússola no rumo certo, A santificação tem o propósito de puri-
tanto no aconselhamento como na busca de ficar tanto o coração como os membros do
arrepender-me de meus próprios pecados. corpo, tanto as motivações como o compor-
Primeiro, minha norma prática é uma tamento. Ambos têm importância. Imagine-
pergunta dupla: “Quais mentiras e paixões se sentado na encosta de uma montanha, de
são expressas por meio desse padrão peca- onde pode-se ver um lago. Um barco a motor
minoso de vida?”. Investigue por detrás das corta as águas com rapidez. Você vê e ouve o
expressões de irritabilidade, egoísmo, falta de seu “comportamento”: ele acelera saindo do
esperança, escapismo, justiça própria, auto- ancoradouro, faz uma ampla volta, abre um
piedade, medo que incapacita, murmurações sulco na água em alta velocidade. De repente
– seja o que for – e você vai encontrar um o motor desliga, o barco aproxima-se de
mosaico de mentiras específicas e de anseios. uma ilhota, solta a âncora. Por que ele agiu
As Escrituras o equipam para trazer à luz esta desta maneira? Se você pudesse vê-lo com
questão e lidar com ela. uma câmara de aproximação, descobriria
Segundo, os verbos que expressam o os “motivos”. Você descobriria o que dava
relacionamento com Deus precisam se tor- força e direção ao barco: um motor V-8 de
nar uma parte ativa do seu pensar. Estamos 200 cavalos, um timão e uma roda de leme,
sempre fazendo algo com respeito a Deus. e a vontade do piloto. Mas por que o barco
Os seres humanos não têm escape: eles parou junto à ilha? Para procurar tesouros
amam a Deus ou amam alguma outra coisa. escondidos? Escapar da polícia? Fazer um
Refugiamo-nos em Deus, ou em alguma pic-nic em família? Testar o barco para
outra coisa. Colocamos nossa esperança em decidir sobre a compra? Sinalizar a falta de
Deus, ou em outra coisa. Tememos a Deus, combustível? Para entender e “ajudar” o
ou outra coisa. A aplicação das Escrituras à barco, você precisa considerar o visível e o
vida ganhará uma nova luz à medida que invisível, tanto o comportamento como a
você aprender a estar alerta aos verbos que motivação. A Bíblia também alcança am-
retratam o homem diante de Deus. Esta bos: os resultados e as causas. Para avaliar
perspectiva permite um entendimento eficaz e “aconselhar” o barco, você precisa buscar
tanto no aconselhamento evangelístico como tudo quanto pode ser conhecido.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 11
O Conhecedor de corações recompensa- exageradamente porque tinha medo de que
rá cada pessoa de acordo com suas ações (Jr eu também não fosse mais gostar dele. Es-
17.10). As Escrituras nunca fazem divisão ses pequenos fragmentos de fruto – atraso,
entre motivação e comportamento. O espe- agitação momentânea, pedidos de desculpa
lho das Escrituras revela ambos. A lâmpada excessivos – conduziram-nos a identificar o
das Escrituras orienta ambos. A graça e o padrão que governava a sua vida: as pessoas
poder de Jesus Cristo muda tanto as raízes eram grandes e Deus era pequeno demais
com os frutos. O “primeiro grande manda- (Pv. 29:25). Também nos conduziram a Jesus
mento” dirige-se sem rodeios às motivações: Cristo. As explicações apontaram para as
você ama a Deus de todo o coração, alma, soluções. Este homem encontrou o perdão
entendimento e força? Ou algo mais divide e o poder para confiar em um novo Senhor.
e rouba as suas afeições? O “segundo grande Ele aprendeu a progredir em mudanças prá-
mandamento” dirige-se sem rodeios ao com- ticas. Em lugar de esconder-se ou elevar-se
portamento: você ama ao próximo como a si demais, ele começou a amar aos outros com
mesmo? Ou você usa, domina, teme, evita, realismo e ternura crescentes à medida que
odeia, ignora o seu próximo? O evangelho cresceu na habilidade de vê-los semelhantes
de Jesus Cristo transpõe a escuridão e traz a a si mesmo.
luz. A graça transforma o nosso coração de Para concluir, vou ilustrar com um estu-
pedra; a graça transforma as mãos e a língua do de caso. Certa vez, aconselhei um homem
que operam para o mal e nos ensina a viver que escapava habitualmente das pressões da
de modo belo. vida por meio de televisão, comida, vídeo-
Qualquer uma destas 35 perguntas po- game, álcool, pornografia, coleção de peças
deria ser feita diretamente a uma pessoa na antigas, romances de ficção científica, espor-
forma em que se encontra aqui ou adaptada. tes. Ele negligenciava no amor para com sua
Mas nem sempre são perguntas que podemos esposa e os filhos, era relaxado no trabalho,
apresentar de forma direta a alguém. Às ve- evasivo e enganoso na comunicação com os
zes, é melhor simplesmente ouvir e observar, outros, fingido na igreja. Por onde começar?
e articular o estilo de vida da pessoa com base Havia tantos problemas, tantos pecados
nos frutos que revelam aquilo com que o seu por comissão e omissão. Como trabalhar
coração está comprometido. Lembro-me de biblicamente com seus problemas? Eu não
ter percebido como um homem que eu estava estava certo quanto ao que escolher. Então
aconselhando desculpava-se excessivamente, me ocorreu: tente os Salmos – como um
com agitação e angústia evidentes, cada vez todo! Quase todos os Salmos, de um modo
que chegava alguns minutos atrasado. Esses ou de outro, retratam o Senhor como refúgio
pequenos detalhes “encaixavam-se” com nas dificuldades, como o centro das nossas
outras peças do quebra-cabeça que ainda esperanças. Os Salmos, implícita e explici-
não estavam perfeitamente montadas no tamente, repreendem o refugiar-se em qual-
aconselhamento. Quando o quadro ficou quer outra coisa além de Deus; os Salmos
claro, percebi que ele se atrasava porque oferecem amor e misericórdia duradouros;
não conseguia se livrar de telefonemas ou os Salmos nos incitam a conhecer e obedecer
visitantes, por medo de que as pessoas não a Deus nos caminhos da vida. Este homem
fossem mais gostar dele. Ele se desculpava sentia-se vagamente culpado por alguns dos
12 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
seus maus hábitos. Mas ele não percebia o À medida que os seus padrões habituais
padrão de comportamento nem a seriedade ficaram evidentes, ele até mesmo começou
da questão. Ele ansiava por comodidade, a identificar pequenas manobras de escape
controle, conforto – e expressava seus anseios que antes não percebia nem havia relaciona-
em dezenas de maneiras diferentes. Seus do a pecados mais evidentes – maneiras de
esforços de mudança paravam pela metade usar (mal) o humor, arranjar desculpas sutis
e não eram bem-sucedidos. A convicção do ou sentir pena de si mesmo. Deus “parecia
pecado específico em seu coração – afastar- distante” no começo do processo, quando
se do Deus vivo para procurar refúgio em ele estava confuso. Deus pareceu muito
ídolos – despertou-o, e fez com que ele visse próximo, relevante e desejável à medida que
seus comportamentos pecaminosos de uma o processo desenrolou-se. A graça de Cristo
maneira nova. Sua necessidade daquilo que tornou-se muito real e necessária. Ele ficou
Deus oferecia – graça sobre graça, para uma motivado a uma mudança prática – encarar
vida de fé operando pelo amor – começou a as pressões e responsabilidades e aprender a
arder dentro dele. amar aos outros para a glória de Deus.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 13
Ac onselham e n t o
Exaltar a Dor? Ignorar a Dor?
O que fazer
com o sofrimento?
E d w a r d T. We l c h 1
“A igreja consiste de pessoas sentadas na Nossa proposta insere-se em um con-
piscina das próprias lágrimas”. Isso é o que texto em que os cristãos vêem-se atraídos
acredita um número crescente de pastores, para uma de duas direções: alguns exaltam
conselheiros e cristãos em geral. Não existem a dor, outros negam a dor. Alguns estão com
pesquisas nem estatísticas rigorosas para pro- o coração sangrando, outros são estóicos.
var esta afirmação, mas muitos cristãos não Alguns são “conselheiros da dor”, outros são
hesitariam em concordar. Mais importante “conselheiros do pecado”. Os conselheiros da
ainda é o fato de que a Palavra de Deus dor são peritos em fazer com que as pessoas
concorda, e dá um passo à frente afirmando sintam-se compreendidas; os conselheiros
que “toda a criação, a um só tempo, geme do pecado são peritos no entendimento do
e suporta angústias até agora” (Rm 8.22). chamado à obediência, mesmo diante da
A vida humana implica tristeza e mágoa. dor. Os conselheiros da dor correm o risco de
Relacionamentos quebrados, doenças enfatizar em demasia a dor, a tal ponto que
terminais, a perspectiva da própria morte, o alívio do sofrimento passa a ser o assunto
depressão, injustiça e atrocidade, o medo de primeira importância. Os conselheiros do
silencioso que paralisa, memórias de abuso pecado correm o risco de dar à dor pouca ou
sexual, a morte de um filho, e muitos outros nenhuma importância. Os conselheiros da
problemas dolorosos não poupam ninguém. dor podem ser lentos em levar os sofredores
Seria impossível minimizar a amplitude e a a responder ao evangelho de Cristo em fé
profundidade do sofrimento tanto na igreja e obediência. Os conselheiros do pecado
como no mundo. podem correr o risco de alimentar estóicos
cuja resposta de obediência ignora a grande
Tradução e adaptação de Exalting pain? Ignoring pain?
1 compaixão de Deus. Os conselheiros da dor
What do we do with suffering? podem prover um contexto que enfatiza a
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. transferência de culpa e a idéia da vítima
Glenside, Pa., v. 12 n. 3, Spring 1994. p. 4-19. inocente. Os conselheiros do pecado po-
14 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
dem estar tão preocupados em evitar que compulsivo [tradução: pecaminosamente]
a culpa seja lançada sobre outros que não porque esta é uma maneira de fazer cessar
desenvolvem adequadamente a teologia do a dor”. Em seguida, o autor descreve três
sofrimento. Há falhas em ambos os lados diferentes casos: um homem obcecado por
sexo e pornografia, outro pelo trabalho,
Exaltar a dor e outro ainda pelo álcool. “Em cada um
Aqueles que são propensos a exaltar a desses casos, o comportamento em si não
dor têm dito ou ouvido: “A Bíblia não fala era o problema real. O comportamento era
significativamente ao meu sofrimento”. A apenas um sintoma do problema. Todos eles
teologia bíblica do sofrimento parece não estavam se escondendo da dor. Aquilo que
“funcionar”. Eles já tentaram, mas a Bíblia faziam tinha o propósito de curar a mágoa
não lhes ofereceu respostas profundas. Foram resultante de algum sofrimento profundo
encorajados por conselheiros e amigos a ter em sua vida.”2
fé. Podem ter ouvido excelentes pregadores Esta é a conseqüência de exaltar a dor
e ensino bíblico a respeito do sofrimento, além dos limites bíblicos: o problema da dor
mas nada falou verdadeiramente à sua dor torna-se mais profundo do que o problema
profunda. do pecado. Fazemos uma revisão da nossa
Afirmar que a Bíblia não se dirige de teologia para dizer que dor é na verdade
modo significativo ao sofredor parece algo a causa do pecado. Mas é isso o que Deus
estranho se considerarmos que ela está re- diz? É verdade que a dor precede o pecado?
pleta de ensinamentos profundos sobre o Algumas vezes parece ser verdade. Muitas
sofrimento. Por que a Palavra de Deus parece pessoas que estão agindo com ira em seus
superficial a alguns cristãos sofredores? Por desentendimentos conjugais diriam que a
que eles procuram conselheiros que podem ferida e o desapontamento antecederam o
entender e penetrar sua dor, mas que não seu pecado. Mas há problemas significativos
conduzem ao evangelho de Cristo e aos quando atribuímos o lugar de destaque ao
propósitos de Deus em meio ao sofrimento? sofrimento. Biblicamente, o pecado nunca
Sem dúvida, uma razão é que muitos sofre- pode ser reduzido a dor, nem explicado pela
dores, à semelhança de Jó, foram feridos por dor. Pecado é exatamente pecado. Não po-
aqueles que lhe ofereceram conforto. Todos demos encontrar o culpado em outro lugar
nós já encontramos membros do corpo de a não ser em nossa própria transgressão. A
Cristo que lidam com o sofrimento de modo causa do pecado não está na ação de outras
acadêmico, distante, e cujo conselho pode ser pessoas ou no desejo de autoproteção de
resumido em “siga em frente”. Esses conse- uma dor maior. Outras pessoas certamente
lheiros e amigos não conhecem de verdade o nos infligem dor, mas essa dor nunca pode
que Deus diz àqueles que enfrentam a dor, de nos levar a pecar nem mesmo nos impedir
forma que são embaixadores incompetentes. de amar ao próximo.
Mas esta não é a única razão. Acreditar que a dor causa o nosso pe-
A igreja está se psicologizando, à medida cado e que o alívio da dor é a nossa maior
que a cura da dor é identificada como a necessidade tem implicações dramáticas.
necessidade mais profunda do homem! Con-
sidere este prefácio de um livro evangélico 2
GALLEGHER, Vicent. Three compulsions that defeat
popular: “Temos nos comportado de modo most men. Minneapolis: Bethany House, 1992. p. 29.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 15
Em primeiro lugar, o pecado é reduzido à imediatamente pensar em nos admoestar
autoproteção, ou seja, nosso maior pecado a perdoar o ofensor. Esse tema é crucial, e
é buscar proteção de uma dor ainda maior. certamente não há erro em incluir a questão
Isso desconsidera a natureza específica do do perdão no aconselhamento. No entanto,
pecado como transgressão contra Deus. Em estamos diante de um problema quando
segundo lugar, quando percebemos que não perdão é o único tema no aconselhamento.
temos na verdade proteção contra o sofri- Com freqüência, neste caso, o primeiro e o
mento, e quando descobrimos que a “cura” último conselho dado a uma mulher que
nunca nos livra completamente das garras do foi vítima de um abuso é que ela perdoe o
sofrimento, passamos a crer que Deus falhou agressor.
em Suas promessas, e sentimo-nos justifi- Para completar o problema, alguns
cados em nossa ira para com Ele. Também conselheiros podem juntar uma cláusula
acreditamos que a Palavra de Deus não tem adicional ao perdão, ou seja, que ele deve ser
respostas significativas para os problemas acompanhado de esquecimento. É um bom
mais profundos da vida. No entanto, Deus conselho se o esquecimento for entendido
nunca prometeu liberdade temporal do sofri- como não permitir que a visão que cultiva-
mento. Ele nos adverte quase que em todas mos do ofensor seja controlada pelo pecado.
as páginas das Escrituras para que estejamos No entanto, geralmente, os aconselhados
preparados para o sofrimento. Embora possa ouvem este conselho entendendo que eles
parecer difícil, o evangelho não elimina o so- cometerão pecado se pensarem a respeito do
frimento presente. O evangelho vai além. Ele sofrimento que lhes foi imposto. O resultado
cura nosso problema moral. Ele nos revela é que a vítima assume o papel de ofensor, e
realidades mais belas que a dureza do nosso se sente culpada quando menciona o fato de
sofrimento, de modo que possamos nos terem cometido contra ela um pecado que
alegrar mesmo em meio ao sofrimento. Ele ainda causa dor.
nos dá poder para uma nova obediência que Aqueles que minimizam o sofrimento
resiste sob sofrimento. A Bíblia não fornece pessoal podem errar também ao tentar
uma tecnologia para remover o sofrimento, recuperar rapidamente o sofredor. Os ho-
mas nos ensina a viver em meio a ele. Ensinar mens parecem estar mais inclinados para
qualquer coisa diferente seria comprometer esta direção. A intenção pode ser digna de
o evangelho. louvor, pois a maioria de nós deseja que os
sofredores recebam alívio. Mas a maneira
Ignorar a dor como isso é feito pode causar danos. Os
Aqueles que tendem na direção de mi- conselheiros podem ouvir apenas um pre-
nimizar a dor, ou chamar a uma aceitação fácio do sofrimento e logo se precipitar em
estóica da dor, são freqüentemente mais respostas. Os aconselhados, com freqüência,
precisos em suas formulações teológicas. reagem sentindo como se o conselheiro não
Mas eles podem ser culpados de ignorar te- quisesse ouvir a respeito de sua dor e como
mas bíblicos importantes, e assim deixar de se ela fosse, de alguma maneira, errada.
oferecer o inteiro conselho de Deus àqueles Outras vezes, a intenção de “consertar”
que sofrem. Por exemplo, se o sofrimento é o aconselhado pode não ser tão louvável.
resultado do pecado de outros contra nós, Algumas pessoas simplesmente não querem
aqueles que minimizam o sofrimento podem ouvir sobre o sofrimento alheio. Lágrimas
16 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
podem trazer muito desconforto em sua vida para prosseguir com a vida. Biblicamente,
confortável. “Agüente firme” é seu conselho. porém, não existe este limite; não existem
Um breve estudo da atitude compassiva estágios predeterminados de sofrimento e
de Jesus é uma repreensão profunda para pesar. Há tristezas que não serão eliminadas
esse tipo de egoísmo. A encarnação por si até o último dia (Ap 21.4). Os conselheiros
mesma foi um exemplo dramático de Deus devem ser pacientes com todos, chorar com
entrando na vida de Seu povo. Jesus era os que choram, e manter o alvo de auxiliar
movido por compaixão para com os oprimi- as pessoas a amarem aos outros e a Deus em
dos, desorientados, enlutados. Assim como meio ao sofrimento.
Jesus nos aconselhou a chorar com os que Dois perigos em potencial podem nos
choram, Ele chamou nossa atenção para a levar para longe de uma abordagem bíblica
Sua própria vida como exemplo. Os estóicos do sofrimento. Se exaltamos o sofrimento,
evitam ou ignoram esses temas evidentes nas ele passa a ser a causa do pecado, a autopro-
Escrituras. teção passa a ser o problema, e o alívio do
Pergunte às pessoas que passaram por sofrimento é a questão principal a ser trata-
sofrimento severo o que mais as ajudou. da. Se ignoramos o sofrimento, então a dor
Muitos responderão algo semelhante a “Ele torna-se um problema de pouca importância
estava aqui ao meu lado”. Um amigo ou con- a ser “consertado” e a compaixão torna-se um
selheiro esteve fisicamente presente durante passo temporário que tem por intenção pre-
os momentos de dor. Talvez o amigo não parar terreno para coisas mais importantes.
tenha oferecido grande quantidade de conse- Mesmo diante de um número considerável
lhos, mas estava disponível para que a pessoa de bons livros a respeito do sofrimento, há
aflita não se sentisse tão sozinha e se deixasse problemas que uma teologia atual do sofri-
consumir pelo sofrimento. Talvez isso signifi- mento precisa considerar. A teologia prática é
que ter a sua casa aberta ou fazer um convite falar com compaixão àqueles que enfrentam
para uma refeição, para que a pessoa que está a dor, apontando para realidades mais pro-
sofrendo tenha um lugar para conviver com fundas que a dor. A seguir, trabalharemos o
outras pessoas que se preocupam com ela e a assunto por meio de duas perguntas básicas:
compreendem. Talvez isso signifique sentar De onde vem o sofrimento? Como posso
ao lado da pessoa na igreja. Se o seu alvo ajudar aqueles que sofrem?
principal é “consertar” o sofrimento, fazer
com que a dor vá embora, provavelmente De onde vem a dor?
você intensificará o sofrimento. De onde vem o sofrimento? Quando a
Outro perigo comum aos estóicos é dor me atinge, de qual direção ela vem? É
quando o conselheiro tem um desperta- minha culpa? É iniciativa de Satanás? Ou é
dor interno que dispara anunciando que Deus o autor da dor? Estas perguntas são
já é tempo para o sofrimento acabar. Há diferentes de perguntas que costumamos
diferentes razões para isso. Pode ser que o fazer como: “Por que Deus não fez (ou não
conselheiro seja compassivo e queira aliviar faz) cessar a dor?” ou “Por que eu?”. Fran-
o sofrimento. Mas talvez o sofrimento seja camente, as perguntas “de onde vem” são
incômodo ao conselheiro. Ou ele pense as menos inquietantes para a maioria das
que há um limite bíblico de um mês ou pessoas. Mas elas merecem ser consideradas
um ano para a dor, sendo depois tempo porque resultam em respostas bíblicas im-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 17
portantes e ricas de possíveis aplicações no Certamente há cuidados que devemos
aconselhamento. tomar acerca do sofrimento que nos é im-
Outros. Uma das respostas para “De posto por outrem. Deus nos adverte contra
onde vem a dor?” é: “Ela vem de outras a justiça própria. Ele nos diz que o pecado
pessoas”. Um rei governa pela força, um de outras pessoas não pode ser desculpa para
marido abandona a esposa pela secretária, nossa desobediência ou falta de amor. E
uma esposa atinge seu marido verbalmente, Deus reitera que Ele, somente Ele, é o juiz;
uma criança é morta por um motorista bê- nós devemos confiar em Seu julgamento.
bado e uma mulher é estuprada por alguém Portanto, não pagamos mal por mal.
em quem ela confiava. Pessoas pecam contra Outro cuidado que devemos ter é que
nós, e isso dói profundamente. “outros” não são a única causa de sofrimen-
Desta forma, quando uma mulher viti- to. Ocasionalmente, as crianças reduzem
mada pergunta “por quê?”, você pode dar à sua dor a esta causa. Se elas erram e um dos
pergunta um tom de “de onde” e responder pais está por perto, dizem instintivamente
“devido à maldade de seu pai”. Talvez a “Papai”, como se seu pai fosse o responsá-
pergunta daquela mulher seja: “Por que vel. Adultos também fazem isso: transferem
Deus permite isso?”, mas a resposta ainda é sua culpa. Mas há outros lugares para onde
“Foi seu pai quem fez isso, devido ao pecado precisamos olhar.
dele”. Eu. Outra resposta óbvia é Eu Mesmo.
Com certeza, esta resposta bastante Eu sofro porque pequei. Estou grávida fora
óbvia não lida com todos os mistérios que do casamento porque saí de debaixo da se-
circundam o problema da dor, mas é uma gurança dos mandamentos de Deus. Meus
resposta importante. Muitos sofredores filhos me deixaram porque eu constantemen-
levantam-se contra Deus ou contra si mes- te os provoquei e fui duro com eles. Estou
mos, e ignoram o óbvio. Esta resposta, então, fisicamente doente pela inveja que me con-
oferece encorajamento porque diz claramen- some. Meu noivo rompeu o relacionamento
te à vítima que a causa de seu sofrimento é devido a meus acessos de ira. Estou com
outra pessoa, e não ela mesma. Embora isto enfisema pulmonar porque fumei dois maços
esteja evidente, aqueles que foram vítimas de cigarro ao dia durante quarenta anos.
parecem ter um instinto que diz: “Eu sou Perdi meu emprego porque fui surpreendido
o responsável”. Deus responde lembrando- roubando de meu empregador. Fui demitido
nos de que nós não causamos o pecado de porque tenho sido preguiçoso.
outra pessoa. Cada um é responsável pelo O encorajamento contido nesta resposta
próprio pecado. é que existe esperança de mudança. Deus
Essa resposta também pode nos encora- nos oferece não apenas completo perdão dos
jar porque ela aponta para o ponto central pecados em Cristo, mas também poder para
do amor: perdão de pecados. Como cristãos, nos despojarmos do pecado. Podemos mu-
não ficamos imobilizados quando outros dar! Não precisamos ser atormentados por
pecam contra nós. Pelo contrário, temos ira pecaminosa, luxúria, mentiras, hábitos
a oportunidade de crescer mediante uma dominadores ou preguiça. Foi-nos concedi-
atitude de perdão que esperamos conduza do o Espírito de poder que dá graça para o
ao perdão verbalizado, à reconciliação e à crescimento contínuo em Cristo.
restauração do relacionamento.
18 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Os cuidados com o sofrimento causado maldição é antecipar a volta de Jesus, quando
por “eu mesmo” são evidentes. Da mesma a maldição será removida. Estas três causas
maneira que outras pessoas não são a única representam as razões mais óbvias para nosso
causa do meu sofrimento, eu também não sofrimento; mas conforme revela o livro de
sou a única causa do meu sofrimento. Não Jó, há ainda outras duas.
há uma ligação óbvia entre o pecado pessoal Satanás. O sofrimento vem também
e o sofrimento, e precisamos ser cuidadosos de Satanás. Ele é “como leão que ruge pro-
para não presumir esta relação. Devemos nos curando alguém para devorar” (1Pe 5.8).
lembrar de que algumas pessoas - especial- Deleita-se em enviar sofrimento sobre o povo
mente aquelas que foram gravemente feridas de Deus. O livro de Jó aponta para Satanás
por suas famílias - assumem a pressuposição como um inimigo que usa o sofrimento para
do “eu mesma” em lugar de evitá-la. Elas levar avante os planos de seu reino. Ele é um
preferem culpar a si mesmas, pois se sentem homicida (Jo 8.44) que inflige sofrimento
incomodadas com a idéia de que pessoas pela dor física e pela perda. O tormento do
que deveriam ter sido amorosas foram até apóstolo Paulo por meio do “mensageiro de
mesmo muito maldosas. Com este tipo de Satanás” (2 Co 12.7) ilustra como Satanás
pensamento, a vítima é capaz de guardar a está claramente em cena no sofrimento fí-
ilusão de que o ofensor a amava. Novamente, sico. Mas Satanás pode infligir sofrimento
as Escrituras mostram que nós não causamos que vai além do tormento físico. Usando
o pecado de outra pessoa. Cada um é respon- mentiras e acusações, e promovendo divisão
sável pelo próprio pecado. no corpo de Cristo, Satanás esforça-se para
Adão. Uma terceira causa do sofrimento nos levar ao desânimo e ao questionamento
é Adão e a queda do homem. Embora partici- da bondade de Deus.
pemos do pecado de Adão (Rm 5), foi Adão Você fica furioso diante do sofrimento?
quem pecou e trouxe tristeza e morte a toda Satanás pode ser um alvo apropriado para sua
a sua descendência. Devido ao seu pecado, ira. Ele é enganador. Seu dedo no sofrimen-
experimentamos a maldição sobre toda a to está com freqüência encoberto. Aqueles
criação. Como resultado, passamos por aci- que sofrem precisam ser advertidos sobre os
dentes que ferem, doenças e fraqueza física, propósitos de Satanás para que possam estar
perda de pessoas amadas e trabalho árduo. alertas às suas mentiras e iniciar logo o com-
Esta pode ser a causa mais frustrante bate. Sim, este inimigo pode ser combatido.
do sofrimento. É como se ninguém tivesse A resistência mais forte consiste em confiar
cometido uma falta. Não há ninguém com em Deus e seguir a Cristo em obediência,
quem se reconciliar, ninguém a perdoar e mesmo em meio ao sofrimento.
nenhuma certeza de mudança. Na verdade, Aqui também devemos ter cautela.
remédios podem reduzir temporariamente Satanás não é a única causa de sofrimento.
alguns efeitos do pecado de Adão, mas os Por exemplo, mesmo que ele esteja ativo em
benefícios parecem superficiais. E nisto está todo sofrimento, sua presença não diminui
a advertência principal para nós: a maldição a responsabilidade de outras pessoas ou a
resultante do pecado de Adão deve fazer com nossa. Satanás nunca pode ser usado como
que não amemos demasiadamente o mundo. meio para dividir a responsabilidade pela
Devemos prever algo melhor. O encoraja- maldade do pecado. Ninguém pode dizer:
mento para aqueles que sentem o peso da “Satanás me fez fazer isso”. Não podemos
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 19
usar Satanás como uma desculpa para o É possível dizer que algum sofrimento
pecado pessoal, como também não podemos não esteja dentro da vontade de Deus? Deus
usá-lo para minimizar o pecado de outros. proíbe afirmarmos que algo está acima dEle.
Os assaltantes que saquearam os bens de Jó O mundo não é um cabo de força entre Deus
foram plenamente responsáveis por seu peca- e Satanás. Deus é soberano sobre tudo. Deus
do bárbaro e infame. Judas, e não Satanás no não é o autor do sofrimento e do pecado, mas
corpo de Judas, foi quem traiu Jesus. Satanás Ele está acima de todas as coisas, mesmo do
pode causar grande sofrimento, mas Ele não sofrimento. Ele “faz todas as coisas conforme
pode nos fazer pecar. o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).
Deus. Curiosamente, é raro Satanás ser Desde toda a eternidade e pelo
o alvo da frustração ou até mesmo ira do mui sábio e santo conselho de sua
sofredor. Mas Deus é. Parece que agnósticos própria vontade, Deus ordenou li-
e até mesmo ateus tornam-se teístas quando vre e inalteravelmente tudo quanto
passam pelo sofrimento e perguntam: “Por acontece, porém de modo que nem
que Deus está fazendo isso comigo?”, “O Deus é o autor do pecado, nem
que eu fiz a Ele?”. violentada é a vontade da criatura,
É verdade que Deus causa o sofrimento? nem é tirada a liberdade ou a contin-
Noemi certamente cria nisso. Voltando para gência das causas secundárias, antes
sua terra natal, depois de perder o marido estabelecidas.3
e os filhos, ela disse: “Grande amargura O encorajamento resultante é evidente.
me tem dado o Todo Poderoso” (Rt 1.20). Nosso Deus fiel reina. O mundo não está
E ela estava certa. Ela estava cega para o em caos. Nem Satanás nem os criminosos
plano completo de Deus, mas estava certa. perversos venceram. Mas os conselheiros
A mulher de Jó também cria na ação de precisam saber onde estão os limites teoló-
Deus no sofrimento quando aconselhou gicos. Conforme destacado pela Confissão
seu marido: “Amaldiçoa a Deus e morre” de Westminster, a soberania de Deus não
(Jó 2.9). Seu conselho era pecaminoso, rouba das criaturas a sua vontade própria.
mas seu entendimento de que Deus estava Isso é certamente um enigma. É um mis-
acima do sofrimento de Jó era verdadeiro. tério afirmar que Deus governa sobre todas
Lamentações e Habacuque são verdadeiros as coisas, significando que Ele as ordenou e
tratados a respeito de como a fé aceita e ao não apenas previu, e ao mesmo tempo afir-
mesmo tempo luta com a mão de Deus no mar que “a estultícia do homem perverte o
sofrimento. seu caminho” (Pv 19.3). Mas a grandeza de
Estudiosos da Palavra tentam distinguir Deus é tal que Ele estabeleceu um mundo
entre aquilo que Deus ordena e o que Ele ordenado, e que não é um robô.
permite, mas a distinção é algumas vezes uma Aqui está mais uma advertência. Nunca
clara tentativa de encontrar uma desculpa devemos pensar que Deus esteja de alguma
para justificar a Deus. Uma afirmação menos forma indiferente ao nosso sofrimento,
técnica poderia ser: quando o sofrimento visto Ele ter ordenado todas as coisas. O
nos atinge, é a vontade de Deus. “Por isso, evangelho deixa claro que Deus é movido a
também os que sofrem segundo a vontade
de Deus encomendem a sua alma ao fiel A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura
3
Criador, na prática do bem” (1 Pe 4.19). Cristã, 1994. p.17
20 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
grande compaixão diante do sofrimento de perceber que o sofrimento é um intruso que
Seu povo. Jesus Cristo compartilhou o nosso será um dia banido. Desta forma, podem
sofrimento (Hb 2.14-18). Talvez possamos prosseguir como servos de Deus sofredores,
dizer que a resposta emocional de Deus à que trabalham diligentemente e estão aptos
Sua criação é complexa e variada, mas nunca a tomar decisões sábias com respeito à sua
podemos dizer que Ele não se compadece de próxima semeadura. Uma revisão cuidadosa
nós diante do sofrimento. das cinco causas do sofrimento ajuda-nos a
ouvir a Palavra de Deus com mais sentido e a
encontrar uma resposta bíblica apropriada.
Mas essas respostas não aparecem sem-
pre ordenadas. O sofrimento raramente recai
apenas em uma dessas categorias. Com fre-
qüência, recai em todas elas. Muitos Salmos
movimentam-se entre uma causa e outra do
sofrimento. Em alguns casos, pode haver
maior ênfase em uma das partes visíveis da
tríade formada por “eu mesmo”, “outros” ou
“Adão”, mas ainda assim a ênfase pode ser
relativa. Por exemplo, no caso de vítimas de
abuso sexual, a ênfase está certamente em ter
sido alvo do pecado de outros. Mas isso não
exclui o fato de que a vitimização não teria
Figura 1. As causas do sofrimento acontecido se não tivesse sido pelo pecado de
Adão, e também não exclui que somos peca-
As cinco categorias (Figura 1) respondem dores que podem tirar proveito da disciplina
à pergunta: “De onde vem o sofrimento?”. de Deus na própria vida. Além de Jesus, não
Elas são importantes pelo seu efeito esclare- há sequer um sofredor inocente.
cedor para aqueles que sofrem, bem como Considere o caso da doença. A ênfase
pelas precauções que elas indicam. Identificar mais óbvia na tríade “eu mesmo”, “outros”
esta variedade de causas pode ser de imensa ou “Adão” seria a maldição associada ao pe-
ajuda para aqueles que enfrentam a dor, pois cado de Adão. Todavia, a doença pode estar
proporciona clareza bíblica que, por sua vez, relacionada a um pecado pessoal, e também
promove respostas bíblicas. Quando aqueles pode ser resultado do pecado de outros (p.
que estavam culpando a si mesmos percebem ex. a AIDS contraída por uma transfusão
que seu sofrimento foi conseqüência do de sangue).
pecado de outras pessoas, encontram alívio Recomende às pessoas que evitem
de um peso que não era seu. Eles também reduzir a questão do sofrimento a uma
podem responder aprendendo a perdoar; única causa. Se o sofrimento é reduzido a
e ainda podem considerar a possibilidade “outros”, transferimos a culpa para eles. Se o
de confrontar o ofensor em amor. Quando sofrimento é reduzido a “eu mesmo”, como
uma família perde a colheita devido a uma fizeram os conselheiros de Jó, então a culpa
seca ou enchente, seus membros não devem e a condenação estão sempre presentes. Se é
culpar a si mesmos ou a outrem. Eles podem apenas devido ao pecado de Adão, tornamo-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 21
nos fatalistas. Se é apenas devido a Satanás, Os personagens bíblicos que enfren-
tornamo-nos guerreiros espirituais que vêem taram o sofrimento podem nos orientar.
somente este lado da questão e ignoram os Quando os descobrimos nas Escrituras, é
propósitos de Deus e os aspectos interpes- como se eles viessem ao nosso encontro,
soais do sofrimento. O único “diagnóstico” tomassem-nos pela mão e nos conduzissem
seguro é que quando somos atingidos pelo às verdades que são mais profundas que o
sofrimento, esta é a vontade decretada de sofrimento. Em primeiro lugar, considere
Deus para a nossa vida. Ainda assim, não Jó, um companheiro para muitos sofredores.
podemos reduzir a causa do sofrimento uni- Em Jó 1.21, ele diz: “o SENHOR o deu e o
camente a Deus. Ele está acima do pecado e SENHOR o tomou; bendito seja o nome do
do sofrimento, mas não é seu autor. A pessoa SENHOR!”. Após terríveis perdas, esta é a
que faz de Deus a causa única do sofrimento primeira resposta de Jó. Ele adorou a Deus.
blasfema e se ira contra Ele. A Bíblia enfa- O peso da glória de Deus foi maior que o
tiza que o sofrimento, independentemente peso do seu sofrimento. Semelhantemente,
de sua causa, é um momento de lágrimas Sadraque, Mesaque e Abdnego disseram
e lutas, tempo para arrependimento, para diante da morte na fornalha: “Se o nosso
depositar a fé em Deus em meio à angústia, Deus, a quem servimos, quer livrar nos, ele
para segui-lO em obediência. Com este pano nos livrará da fornalha de fogo ardente e
de fundo teológico básico, estamos prontos das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó
para ajudar os sofredores. rei, que não serviremos a teus deuses, nem
adoraremos a imagem de ouro que levan-
Como ajudar os taste” (Dn 3.17,18). Deparando-se com
sofredores? o sofrimento, ou a ameaça de sofrimento
A estratégia bíblica é contrabalançar o e de morte, sabiam que eram chamados a
sofrimento. A princípio, todo o peso parece depender exclusivamente de Deus.
estar do lado do sofrimento. É como se os O apóstolo Paulo retomou o mesmo
sofredores fossem incapazes de ver alguma tema em 2 Coríntios 4.17. Seus sofrimentos
coisa além de sua dor. Gradualmente, fi- foram ultrapassados apenas pelos sofrimen-
xando os olhos em Jesus, eles descobrem tos de Jesus. Após narrar mais uma vez seus
pesos de glória cuja carga equilibra a do seu sofrimentos no primeiro capítulo, e antes de
sofrimento. Estes pesos de glória incluem relembrar maiores sofrimentos nos capítulos
os sofrimentos de Cristo, a alegria de ter onze e doze, Paulo disse: “Porque a nossa
os pecados perdoados, o contentamento de leve e momentânea tribulação produz para
obedecer a Cristo em pequenas coisas em nós eterno peso de glória, acima de toda
meio a uma grande provação, a presença de comparação”.
Deus em nossa vida, a esperança da eternida- Como você imagina que uma pessoa em
de. Para cumprir essa estratégia, os sofredores meio à dor responderia a esta declaração do
precisam ser surpreendidos tanto pelo amor apóstolo Paulo? Se não tivesse lido o con-
pessoal de Deus como pela glória transcen- texto, ela poderia dizer algo assim: “Leve e
dente de Deus; eles precisam ser ajudados momentâneo? Caia na real, Paulo. Você não
para que conheçam a Deus de forma que a conhece o meu sofrimento”. Mas quando
obediência, a confiança e a adoração a Deus reconhecemos a extensão do sofrimento de
tornem-se irresistíveis. Paulo, ele começa a ganhar a nossa atenção.
22 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Paulo é um sofredor credenciado, a quem falarem honestamente com Ele. Por que
precisamos ouvir. Ele não está oferecendo isso seria uma surpresa para muitos deles?
encorajamento fútil. Ele está falando de Eles tendem a se sentir solitários e isolados.
verdades que pesam mais que o sofrimento. Com freqüên-cia, pensam que Deus está
Chegar ao ponto em que podemos fazer eco muito distante. Mas Deus penetra neste
a estas palavras pode parecer uma jornada isolamento e nos impulsiona a colocar em
longa e impossível, mas Paulo aponta para palavras nossas experiências dolorosas. Não
um alvo que pode orientar nossas orações se trata, com certeza, de qualquer tipo de ex-
e meditações. Ele nos lembra que devemos pressão. Não é amargura. Não são lamentos
olhar para os pesos de glória bíblicos que pagãos lançados em um mundo onde não há
contrabalançam e aliviam o sofrimento. sentido. Deus nos encoraja a dirigir nossas
A estratégia de aconselhamento que ofe- palavras a Ele.
recemos a seguir consiste de cinco afirmações Esse é o padrão dos Salmos, e também
para orientar o apoio e o conselho dirigidos é o modelo traçado ao longo das Escrituras
àqueles que sofrem. Todas elas são introdu- em livros como Jó e Lamentações. Deus
zidas pela expressão “Deus diz” como meio nos encoraja a colocar os lamentos do nosso
de enfatizar que Deus fala claramente ao coração em palavras, e “toda conversa deve
sofredor por meio de Sua Palavra. Cada uma ser dirigida a Deus, que é o ponto de refe-
delas é um peso de glória que contrabalança rência final de toda a existência”.4 Embora
a dor pessoal. As cinco frases são: seja um desafio para o nosso entendimento,
Deus diz: “Expresse seu sofrimento Deus deseja ouvir as profundezas do coração.
em palavras”; Na verdade, quando somos incapazes de
Em casos de vitimação evidente, Deus nos pronunciar perante Ele, Deus nos dá
diz: “Pecaram contra você”; palavras para expressar estes silêncios. Deus
Deus diz: “Eu estou ao seu lado e amo “dá nome” aos silêncios do nosso coração;
você”; os lamentos inarticulados tomam a forma
Deus diz: “Saiba que Eu sou Deus”; de palavras.
Deus diz: “Há um propósito no so- Talvez a igreja esteja perdendo algo
frimento”; precioso por não cantar sistematicamente
Há uma lógica nesta ordem, mas estas os Salmos. Se o fizéssemos, saberíamos que
cinco afirmações não constituem um proces- Deus coloca nosso sofrimento em palavras.
so passo por passo. Elas se sobrepõem umas Os meus ossos estão abalados.
às outras. Sofredores não “completam” um Também a minha alma está pro-
passo para só então se moverem em direção fundamente perturbada; mas tu,
ao seguinte. Desta forma, enquanto você SENHOR, até quando? (Sl 6.2,3)
estiver enfatizando um dos temas, os demais Por que, SENHOR, te conser-
continuam presentes. vas longe? E te escondes nas horas
de tribulação? (Sl 10.1)
1. Deus diz: “Expresse seu sofri-
mento em palavras”.
Uma surpresa inicial para muitas pes 4
HAUERWAS, S. Naming the silences: God, medicine, and
soas, e também um peso de glória, é des- the problem of evil. Grand Rapids: Eerdmans, 1990,
cobrir que Deus encoraja os sofredores a p. 82.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 23
Até quando, SENHOR? Esque- que estão conectados ao desejo de conhecer
cer-te-ás de mim para sempre? Até a Deus. São queixas que se dirigem a Deus,
quando ocultarás de mim o rosto? e não contra Deus.
Até quando estarei eu relutando O que você faz quando as queixas dos so-
dentro de minha alma, com tristeza fredores assemelham-se mais às más queixas
no coração cada dia? (Sl 13.1,2) de um ateu que às boas queixas que provêm
Por que se acham longe de da fé? Você permite que os Salmos estabe-
minha salvação as palavras de meu leçam o padrão. Você molda as queixas de
bramido? (Sl 22.1) maneira que elas se conformem mais e mais
Pois a minha alma está farta de com como Deus nos ensina a “dar nome”
males.... Puseste me na mais profun- aos silêncios do nosso coração.
da cova, nos lugares tenebrosos, nos Diante deste encorajamento à expressão,
abismos (Sl 88.3,6). o que você esperaria ouvir quando alguém
O aconselhamento que você oferece co- “dá nome” aos silêncios angustiantes? O
meça, portanto, com estar presente ao lado provável é que você ouça uma mistura com-
dos sofredores e encorajá-los a falar sobre seu plexa de emoções. Não será uma progressão
sofrimento, com você e com Deus. linear de emoções que vão de negação, para
Mas o que fazer se os aconselhados estão ira, negociação, depressão, até aceitação da
queixosos ou irados? Deveríamos encorajá- dor. Será mais semelhante a fragmentos ou
los a “dar nome” ao silêncio nesse caso? Na “cacos” de uma vidraça estilhaçada. Pode
leitura dos Salmos, você provavelmente haver dúzias de experiências, algumas delas
descobrirá que Deus dá mais espaço à nos- contraditórias, expressas simultaneamente.
sa expressão do que a maioria das pessoas Por exemplo, considere uma mulher
pensa. Ele nos dá espaço para dizer coisas que sofreu um abuso sexual. Ela pode estar
que alguns considerariam quase blasfêmia. temerosa, cheia de vergonha, sentindo-se
Mas há uma queixa boa e uma queixa má. impura e entorpecida. E esse é só o começo.
A queixa má é o choro daquele que não A culpa está quase sempre presente. Ela pode
reconhece quem Deus é. É o choro do co- se sentir responsável pelo que aconteceu,
ração egocêntrico que diz: “O Senhor deve assim como diz o antigo mito: “Coisas ruins
preencher as minhas necessidades”. A maior acontecem a pessoas ruins”. A vida de Jó
preocupação é o alívio do sofrimento, e não deveria ter mudado há muito tempo nossa
a glória de Deus. A queixa má não acredita maneira de pensar a este respeito, mas muitos
nas promessas de Deus; ela resmunga e se ainda acreditam que se algo ruim acontece
enfurece contra Deus. em sua vida, deve ser resultado de seu pró-
As boas queixas clamam “Por que o prio comportamento. Trata-se de uma culpa
Senhor esqueceu de mim?” com base no particularmente incômoda porque, em certo
conhecimento de Deus. Elas vêm de um sentido, ela está além do perdão. Em outras
coração que conhece o seu Deus e as Suas palavras, estas vítimas têm um forte senso de
promessas, e está perplexo porque Deus pare- que são responsáveis, mas não têm idéia do
ce tão distante. “Como pode isso acontecer, que confessar (pelo menos com respeito ao
quando meu Deus é o Deus fiel de Abraão, abuso sexual). E ainda que encontrem algo
Isaque, Jacó, e Moisés?”, grita a pessoa em a confessar, a culpa permanece. Se abando-
meio à dor. Boas queixas são choros de fé nadas à própria sorte, algumas chegam a
24 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
odiar e desprezar a si mesmas. Elas se sentem tempo você encorajará os sofredores a “dar
culpadas e objeto de desdém. nome” aos silêncios em sua alma? A respos-
O que mais você deve esperar encontrar ta é óbvia. Você terá compaixão durante o
no silêncio? Dor, raiva contra o ofensor, um tempo em que elas estiverem sofrendo. Você
senso de traição e de estar indefesa como uma encorajará as pessoas a falar enquanto elas
criança, mas também certo amor e o desejo guardarem partes de sua vida que não foram
de proteger o ofensor. Algumas vezes, são expressas diante de Deus. Isso não quer dizer
pessoas determinadas a não ter esperança. que elas nunca ouvirão. A expressão de seu
Esta é vista como um inimigo que, se des- coração é o começo do diálogo que consiste
pertado, resultará apenas em uma dor ainda em falar com Deus e ouvir a Deus.
maior. Os sentimentos e pensamentos que Diante da fragmentação da experiência
dizem respeito ao relacionamento com Deus de dor, você poderia pensar em um processo
estão mais escondidos. É quase inevitável que sem fim para tratar cada “caco” biblicamente.
surjam perguntas sobre a soberania de Deus: Mas guardando a perspectiva da centralidade
“Por que Ele não impediu?”, “Por que Ele da cruz de Cristo, você descobrirá que pode
me abandonou?”. Estas perguntas aparecem falar a todas estas experiências simultanea-
unidas a uma ira contra Deus, que assusta mente. Por exemplo, a cruz proclama poder
a própria pessoa. Tanto você como a vítima para o fraco, exaltação para os humildes,
ficarão provavelmente submersos em um vestimentas para o que está nu, amor para
número enorme de “cacos” emocionais. aqueles que têm sido odiados, redenção para
Expressar a sua empatia é com freqüên- os que são escravos, graça para os que estão
cia a melhor resposta inicial. Os sofredores tentando pagar por seus pecados, perdão
sentem-se isolados, como se ninguém en- para os pecadores e julgamento sobre os
tendesse a sua dor. Portanto, os conselheiros inimigos de Deus. Deus nos surpreende
devem ser tudo menos passivos durante este com a imensa amplitude de Sua obra de
tempo. Eles devem se mover ativamente para redenção bem como com Seu amor para
dentro do mundo do sofredor, procurando com o oprimido e a vítima. Mesmo assim,
compreender a vida pelos olhos do sofredor. muitos sofredores acreditam que Deus os
“Como esta pessoa está vendo a situação?” abandonou e que a cruz é algo distante, tão
é a pergunta do momento. Mais adiante, é distante que os benefícios da redenção não
crucial que os conselheiros expressem sua se estendem a eles.
resposta ao sofredor. Você está esmagado A tarefa do aconselhamento é surpreen-
pela complexidade do sofrimento? Diga isso der os sofredores com quem Deus é e o que
ao aconselhado. Está triste pelo que ouviu? Ele diz. Inicialmente, isso significa relembrar
Conte isso a ele. Você está irado com a mal- ao sofredor que Deus não apenas permite
dade da pessoa que causou o sofrimento? que falemos honestamente com Ele, mas
Expresse isso. Você está comovido? Chore nos encoraja a tanto. A verdade de Deus nos
com a pessoa que está sofrendo. ensina a sermos honestos, mesmo que pre-
Você fará isso durante uma hora? Um cisemos mudar o conteúdo da honestidade
mês? Anos? Por quanto tempo você terá para adequá-lo biblicamente.
compaixão da pessoa que sofre? Por quando
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 25
Idéias para tarefas práticas vítima de uma pessoa que tinha autoridade
a) Leia os Salmos através desta lente: sobre ela. Deus responsabiliza as autoridades,
Deus está encorajando o sofredor a falar sejam elas líderes de Israel (Jr 23, Ez 34),
honestamente com Ele. pastores, parentes ou outros adultos. Ainda
b) Coloque a sua dor em palavras, ver- mais, Deus diz que Ele é contra o opressor
balizadas a um amigo ou conselheiro, ou (Ex 22.21-24).
em um diário. Alguns preferem fazer um Alguns conselheiros são tímidos no uso
desenho que reúna a complexidade de suas da categoria bíblica de “vítima”, pois ela
experiências. parece muito semelhante a transferir a culpa
c) Percorra os Salmos destacando pala- para outros. Com freqüência, as pessoas que
vras, frases ou salmos inteiros que expressem foram oprimidas lançam sobre outros a culpa
o seu coração. por suas reações, justificando autopiedade,
d) Fale ou escreva suas experiências amargura, vingança, abuso de substâncias
diante de Deus, lembrando que Deus está tóxicas e outras respostas pecaminosas. As
presente e ouve. vítimas também são conhecidas por culpar os
e) Sofrimento vem pelo pecado de outras ofensores e tornar o mal por mal: “Meu furor
pessoas, o pecado de Adão e a maldição que suicida [ou homicida] é culpa daquela tal
recaiu sobre toda a criação. Sofrimento pode pessoa”. Muitas psicoterapias atuais reforçam
ser o resultado do seu próprio pecado. Sata- esta justiça própria. Desta forma, os conse-
nás também é o inimigo por detrás de todo lheiros têm razão em se preocupar para que
sofrimento, e Deus está acima do sofrimento pessoas não fiquem sem esperança bíblica,
e usa o sofrimento para um bom propósito. negando sua responsabilidade, alimentando
De onde vem o seu sofrimento? a ira. Mas as categorias de ofensor e vítima
são categorias bíblicas, e usá-las corretamente
2. Em casos de vitimação é parte do pensar bíblico. Quando evita-
evidente, Deus diz: mos estas categorias, ignoramos a palavra
“Pecaram contra você”. que Deus tem para pessoas em sofrimento.
Quando está obvio que a causa do Lançar a culpa sobre outros é um pecado
sofrimento foi o pecado de outras pessoas, com que todos estamos familiarizados. Mas
Deus fala às vítimas. Enquanto continua a a Bíblia é equilibrada. “Não retribua mal por
encorajá-las a falar honestamente, Ele as aju- mal” identifica as pessoas como sofredoras
da a identificar o verdadeiro responsável pela do mal ao mesmo tempo que as desafia a se
“violação”. Embora a vítima seja certamente responsabilizarem pelos próprios atos.
pecadora, como todos nós, a ênfase inicial de Se o sofrimento é em larga escala resul-
Deus é mostrar que Ele é a favor da vítima tado do pecado de outras pessoas, você vai
e da justiça. O amor consiste em “visitar provavelmente descobrir que identificar as
os órfãos e as viúvas nas suas tribulações” responsabilidades é muito importante. Não
(Tg 1.27). Será que as vítimas poderiam é possível montar o cenário para o perdão se
ter gritado mais alto, falado antes com um a vítima não acredita que ela precisa perdoar;
amigo, resistido mais, ou assim por diante? ao mesmo tempo, vítimas ficarão paralisadas
Talvez, mas isso não as faz responsáveis pelo em seu crescimento espiritual se guardarem
pecado de outras pessoas. Por exemplo, em um senso interior de que são responsáveis
caso de incesto na infância, a mulher foi pelo que aconteceu. Você ficará provavel-
26 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
mente surpreso ao descobrir o quanto é de achegarmos diante de Deus. Mais especifi-
fato difícil identificar as responsabilidades. camente, Deus nos chama agora a ver a Sua
As vítimas são conhecidas por tentar encon- bondade e o Seu amor expressos mediante
trar culpa em suas próprias ações: “Se eu ape- Seu Filho.
nas tivesse _________, aquela pessoas não Este olhar que se fixa em Cristo não vem
teria me ______”. Às vezes, podem chegar naturalmente. Satanás o grande enganador
a ponto de acreditar que são responsáveis - constantemente sopra aos nossos ouvidos
por simplesmente existir! É difícil prosseguir que Deus não é bom. O desejo de Satanás é
para outras verdades bíblicas até que as res- que nos tornemos para com Deus “amigos
ponsabilidades estejam definidas. dos tempos prósperos”, que apreciam as
bênçãos manifestas de Deus durante os bons
Idéias para tarefas práticas tempos e questionam a Sua bondade nos
a) Saiba o que a Bíblia diz a respeito maus tempos. Desta forma, à medida que
daqueles que praticam o mal contra outrem. o aconselhamento se volta para identificar
Leia Jeremias 23.1-8, Ezequiel 34.1-16, o amor de Deus em Cristo, os conselheiros
Lucas 17.1-2. precisam estar cientes de que o aconselha-
b) Quem você pensa ser o responsável do, com freqüência, estará relutante ou até
por aquilo que lhe aconteceu? O que Deus mesmo irado. O primeiro passo será expor
diz a esse respeito? Você acredita naquilo a batalha espiritual que impede que o acon-
que Deus diz? selhado ouça a Deus.
Considere a leitura de Gênesis 3.1-7.
3. Deus diz: “Eu estou ao seu Perceba como Satanás contradiz diretamente
lado e amo você”. a palavra de Deus a Adão. A serpente essen-
A dinâmica do aconselhamento bíblico cialmente chama Deus de mentiroso e sua
é voltada para fora. Ela dirige nosso coração implicação é que Deus está privando Seu
para o Senhor e nos conduz a amar a Deus povo de coisas boas. Satanás diz que Deus
e ao próximo. Os temas discutidos até aqui não é bom, mas o evangelho de Cristo é
expressam esta dinâmica. Vimos que verba- a afirmação definitiva de que Deus causa
lizar o sofrimento perante Deus procede da impacto em pessoas com o Seu amor. Essa
fé e é uma expressão de obediência. Não se é a batalha dominante que muitos sofredo-
trata de despejar emoções para aliviar a dor, res enfrentam, visto que Satanás usa com
mas de responder a Deus. Semelhantemente, persistência o sofrimento para desafiar a
em casos de vitimização evidente, identificar nossa fé.
com precisão o ofensor e a causa notória do Em conjunto com Satanás, outra dificul-
sofrimento pode ser uma parte importante dade que nos desafia é a famosa pergunta:
da tarefa de interpretar as circunstâncias “Por que eu?”. Há várias maneiras de lidar
biblicamente. Em lugar da vingança com com esta pergunta. Uma possibilidade é
base em justiça própria ou da aceitação de sugerir que o sofredor temporariamente a
toda a responsabilidade com base em auto- evite. Não estamos dizendo que se trata de
condenação para proteger o ofensor, saber uma pergunta sem importância. É que há
que alguém pecou contra nós pode ser um uma prioridade lógica nas perguntas que
passo fundamental para dar glória a Deus. fazemos a respeito de Deus. Antes de “Por
Agora é tempo de sair de nós mesmos e nos quê?”, devemos perguntar “Quem?”. Quem
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 27
é o Rei dos Reis que diz ser o Deus que nos Outros textos mais longos para medi-
ama? O sofredor pergunta: “Como posso tação são Isaías 40-53 e João 10-20. Alguns
saber que Ele me ama quando tudo quanto Salmos podem ser usados com esse propósi-
vejo é tristeza”? “Confie em mim”, diz o to, como o Cântico do Messias: o sofrimento
Deus de amor e poder, e para confiar nEle doloroso revelado nos Salmos encontra sua
precisamos conhecê-lo. expressão plena em Jesus fazendo-se pecado
Talvez você possa começar por perguntar por nós.
ao sofredor se ele gostaria de conhecer um Estas passagens bíblicas apontam para a
amigo sofredor. Você já percebeu que sofre- existência de algo mais profundo que o nosso
dores parecem mudar na presença de alguém sofrimento. De modo específico, o sofrimen-
que os entenda? E você já observou que o to de Cristo é mais profundo que o nosso
sofrimento é mais leve quando você está per- sofrimento. Deus não promete remover o
to de alguém cujo sofrimento é maior que o sofrimento, mas à medida que Ele aponta
seu? Você já conheceu pessoas atingidas pela para o Seu sofrimento relembramos que não
dor que foram visitar uma ala de oncologia vivemos diante de um Deus estóico que se
pediátrica, e o sofrimento que viram fez mantém distante de Suas criaturas. Vivemos
com que o próprio sofrimento se tornasse diante do Deus que sofreu. Suas palavras de-
suportável ou mesmo insignificante? Isso é o vem ter credibilidade para sofredores porque
que acontece quando somos apresentados ao elas vêm de Sua própria familiaridade com
Cordeiro de Deus. Todo o nosso sofrimento, a dor, e Seu entendimento e amor são ine-
embora grave, é menos monstruoso que gáveis. Diante disso, os aconselhados antes
aquele que atingiu o Filho de Deus. Jesus hesitantes podem agora estar mais abertos a
começa a transformar sofredores a partir do ouvir o que Deus diz.
Seu próprio sofrimento. Em seguida, Deus surpreende o sofredor
Aqui estão alguns textos bíblicos que dizendo: “Você me pertence, Eu sou o seu
podem ser úteis: Deus”. Essa é uma promessa preciosa para
todos quantos colocaram sua fé em Jesus,
Todavia, ao SENHOR agradou moê- mas pode ser especialmente significativa
lo, fazendo o sofrer (Is 53.10); para alguém que está enfrentando a dor. O
sofrimento isola. Os aflitos, com freqüência,
Então, [Jesus] começou ele a ensinar
sentem-se como se tivessem sido banidos
lhes que era necessário que o Filho do
da sociedade por terem experimentado
Homem sofresse muitas coisas, fosse
um tratamento ofensivo. Eles se sentem
rejeitado pelos anciãos, pelos principais
envergonhados e rejeitados. É como se não
sacerdotes e pelos escribas, fosse morto
fossem nem filhos nem servos, mas uma
e que, depois de três dias, ressuscitasse
espécie de filhos adotivos, como Cinderela.
(Mc 8.31);
Com freqüência, as vítimas sentem como
Porque convinha que aquele, por cuja se estivessem presas atrás de muros largos e
causa e por quem todas as coisas exis- impenetráveis que as separam do resto do
tem, conduzindo muitos filhos à glória, mundo. Jesus penetra esses muros e assegura
aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, aos sofredores que eles Lhe pertencem (1 Jo
o Autor da salvação deles (Hb 2.10). 3, Lc 15). Eles são parte de Sua família.
28 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Jesus ouve e compreende aqueles que contudo, ouve. Além do mais, “ouvir”, no
Lhe pertencem. Ele se compadece (Hb sentido bíblico, significa ouvir e responder.
4.15). Ele é o Pastor dos feridos e fracos, e Ouvir é acompanhado de ação. O amor de
os carrega em Seus braços (Sl 23, Jr 23; Ez Deus é expresso na promessa infalível de que
34, Jo 10). Ele promete nunca os deixar nem Sua ira é suscitada pela injustiça e opressão
abandonar (Hb 13.5), e Ele nos assegura que e que Ele governará com justiça (Is 1). Deus
nada pode nos separar de Seu amor (Rm age a favor de Seu povo, e Ele promete que
8.38,39). A promessa de Deus de que um haverá justiça final contra Seus inimigos
dia estaremos ao lado dEle é a solução final (Rm 12.19).
para o sofrimento (Ap 21.3,4). As perguntas “Por que eu?” e “Por que
Deus também cobre a vergonha daque- Ele não faz cessar o sofrimento?” podem ain-
les que sofreram com o pecado e a violação da estar vivas. E o pensamento “Se existe um
cometidos por outrem. A Bíblia está repleta relacionamento de Pai e filho, Deus tem um
de passagens que falam sobre vergonha (e jeito estranho de se expressar” é corriqueiro.
também violação, nudez, ou desonra). Ver- Mas quando você surpreende os sofredores
gonha é uma conseqüência de nosso próprio apontando para o sofrimento e a graça de
pecado, mas também há uma vergonha que Deus, muitos começam a ouvir a voz de
é conseqüência do pecado de outros contra Deus acima do som dissonante das próprias
nós. Por exemplo, em Gênesis 34, Diná foi perguntas. O peso do sofrimento pode ainda
envergonhada ou “violada” por Siquém. não estar completamente contrabalançado
No Salmo 79, o templo é envergonhado ou a esta altura; mas, como conselheiro, você
violado pelo contato com pessoas e objetos está começando a apontar o caminho para
impuros. Jesus mesmo experimentou este a resposta final ao problema do sofrimento:
tipo de vergonha na cruz (Hb 12.2). De fato, “confia em mim” é o apelo mais forte de
a Bíblia pode ser vista legitimamente como a Deus. O sofredor está agora começando a
história de Deus cobrindo a vergonha de Seu ver que pode confiar em Deus.
povo (cf. Is 61.10, Zc 3.1-5). A premissa é
que todos nós precisamos ser cobertos diante Idéias para tarefas práticas
de Deus. Seremos cobertos por montanhas
a) Lembra-se de seu inimigo? Satanás
que destroem (Lc 23.28-30) ou seremos
anda à espreita e quer enganá-lo levando-o
cobertos em Cristo (Rm.13.14). Deus, por
a pensar que Deus não é bom. Leias Gênesis
meio de sua graça, transforma o que está nu
3. Qual a estratégia de Satanás? Onde você
em uma noiva ricamente trajada (Ap 21).
pode identificá-la em sua vida? Como você
Uma outra característica do amor
pode combatê-la?
dAquele que nos adota como filhos é que
Ele não esquece nossos sofrimentos, e fará b) Leia os Salmos. Leia-os pela perspec-
justiça. Sofredores sentem-se esquecidos, tiva de Jesus. Afinal, Ele é o Salmista por
sem que haja ninguém disposto a resgatá- excelência. As palavras são as Suas palavras.
los da opressão. Suas queixas parecem não Dê particular atenção aos salmos em que Ele
ir além de seus lábios (p. ex. Sl 10) e, se fala sobre o Seu sofrimento. Volte aos salmos
foram vítimas, com freqüência expressam que captaram a sua experiência pessoal. Ago-
ira para com o ofensor e as testemunhas. É ra leia estes mesmos salmos como sendo as
uma ira que diz: “Vou fazer justiça”. O Pai, palavras de Jesus.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 29
c) Se sofrimento é uma característica A resposta bíblica, com certeza, é que
da vida de Jesus, o Filho unigênito, não Deus reúne ambas as coisas: Ele é amor, e
devemos nos surpreender se Deus não nos Ele é o Deus soberano sobre toda a criação.
proteger do sofrimento. Onde em sua vida Isso não faz de Deus o autor do pecado nem
você percebe a crença “Eu tenho direito a do sofrimento, mas revela que Ele está acima
menos dor ou sofrimento”? de tudo, operando todas as coisas para o
d) Leia o primeiro capítulo de Isaías. Per- propósito da Sua glória. Aparentemente, esta
ceba a preocupação evidente de Deus com a questão não era obstáculo para os persona-
justiça, e Sua ira contra a injustiça. gens bíblicos. José sugeriu que os planos de
Deus pesavam mais que a maldade de seus
4. Deus diz: “Saiba que Eu sou irmãos (Gn 50.20). Falando com exatidão,
Deus”. embora sem o pleno entendimento da gra-
Para consolidar a ênfase voltada para fora ça de Deus, Noemi disse: “o SENHOR se
do “eu”, e aumentar o peso para contrabalan- manifestou contra mim e o Todo-Poderoso
çar o sofrimento, Deus nos conforta com o me tem afligido” (Rt 1.21). Jeremias, um
fato de que o mundo não é caótico. Ele é o perfeito sofredor, disse: “Quem é aquele
Deus soberano que reina. Nem o sofrimento que diz, e assim acontece, quando o SE-
nem Satanás estão acima dele. NHOR o não mande? Acaso, não procede
É nesse ponto que muitas teologias do do Altíssimo tanto o mal como o bem?” (Lm
sofrimento fracassam. Elas abraçam a Deus 3.37,38). Em meio à perseguição, o Salmista
como um Deus de amor compassivo, mas encontrou descanso somente em Deus, e
não conseguem unir isso a um Deus que é disse confiante: “O poder pertence a Deus,
Todopoderoso. Elas dizem que é impossível e a ti, SENHOR, pertence a graça, pois a
juntar ambos os aspectos. Desta forma, o cada um retribuis segundo as suas obras”
pensamento atual eleva os arranjos da nossa (Sl 62.11,12).
mente acima das verdades da Palavra de Finalmente, Jó teve todas as suas per-
Deus. Quando encontramos uma dificul- guntas respondidas, ou pelo menos elas se
dade conceitual, nós a revisamos para que tornaram insignificantes, em uma conversa
se torne mais agradável. Talvez o exemplo em que apenas Deus teve a palavra, e dis-
mais conhecido seja o livro When Bad Things se: “Saiba que eu sou Deus” (Jó 38-41).
Happen to Good People (Quando Coisas Não há uma reflexão acadêmica, banhada
Ruins Acontecem a Pessoas Boas), de autoria em ceticismo: “Se Deus é Deus Ele não é
do Rabino Harold Kushner.5 Em seu comen- bom; se Deus é bom, Ele não é Deus”. Em
tário sobre o livro de Jó, ele diz: “forçados lugar disso, o peso esmagador da glória de
a escolher entre um Deus bom e que não é Deus fez o sofrimento de Jó parecer menor.
totalmente poderoso ou um Deus poderoso Quando Jó estava definhando, imerso na
e que não é totalmente bom, o autor do li- pergunta “Por que eu?” e estabelecendo um
vro de Jó escolheu acreditar na bondade de verdadeiro tribunal terreno para questionar
Deus”. E o livro foi um best-seller! o Todo-Poderoso, Deus o surpreendeu com
um tribunal onde Ele mesmo foi o promotor.
“Acaso, quem usa de censuras contenderá
5
KUSHNER, Harold. When bad things happen to good
people. New York: Avon, 1983. Eerdmans, 1990, p. com o Todo- Poderoso? Quem assim argúi a
82. Deus que responda” (Jó 40.1). Deus revelou
30 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
a Jó a Sua glória; e depois de ter visto a glória c) Pratique - talvez durante dez minutos
de Deus, Jó percebeu que havia realidades ao dia - a disciplina espiritual de aquietar
espirituais mais profundas que o seu sofri- as perguntas em sua mente e ouvir o que
mento. Na verdade, este peso de glória era Deus diz.
tão profundo que Jó ficou completamente
humilhado e calado. Ele se arrependeu de 5. Deus diz: “Há um propósito
justificar a si mesmo e acusar a Deus. Seus no sofrimento”.
problemas eram certamente “leves e momen- Em seu livro How to Handle Trouble
tâneos” à luz do poder revelado por Deus. (Como Lidar com as Dificuldades) 7, Jay
Isso coloca um fim à questão? Para Adams resume sua abordagem bíblica ao so-
muitas pessoas não. Com freqüência, mais frimento da seguinte maneira: Deus está no
uma pergunta levanta-se furtivamente na sofrimento, Deus está operando algo, e Deus
sombra: “Se Deus está sobre todas as coisas, está operando algo para o bem. Visto que
por que Ele permitiu que eu fosse acometi- Deus é o Deus do evangelho da graça, bem
do pelo mal?”. Surpreendentemente, Deus como o Rei acima de toda a criação, Ele tem
incentiva esta luta com Ele. Sua resposta, propósitos soberanos no sofrimento e Seus
todavia, continua a mesma: “Eu sou Aquele propósitos são para o bem. “Os leõezinhos
que lhe dá livramento, Eu sou o seu Salvador, sofrem necessidade e passam fome, porém
Amigo e Deus. Confie em mim. Em última aos que buscam o SENHOR bem nenhum
instância, a própria existência do mal proverá lhes faltará.” (Sl 34.10)
uma demonstração da minha glória, do meu O problema para muitos de nós é que o
amor e poder, porque eu salvarei meus filhos “bem” pode não incluir um cessar imediato
e destruirei meus inimigos.”6 Deus descor- do sofrimento. Mas o “bem” de que a Bí-
tina o panorama mostrando como nosso blia fala é que aquele sofrimento será usado
sofrimento precede a glória futura. por Deus para nos conformar à imagem de
Jesus e, como resultado, dar glória ao Pai.
Idéias para tarefas práticas Parafraseando C. S. Lewis, costumamos nos
a) Os pensamentos de Deus são mais conformar com muito pouco. Não queremos
altos que os nossos. Em meio ao sofrimento, mais que o alívio imediato do sofrimento,
Deus não fornece respostas profundas às quando Deus quer nos dar muito mais. Ele
perguntas “por quê?”, mas Ele nos conforta quer nos dar coisas que durarão para a eterni-
com o fato de que Ele é maior que o sofri- dade. Ele quer nos dar uma nova disposição
mento. Deus está no sofrimento, mas sem de obediência à Sua Palavra (Sl 119.67,71),
ser o autor do sofrimento. Leia Jó 38 a 41 santidade que conduzirá a justiça e paz (Hb
até que você possa ser confortado pelo fato 12.10,11), perseverança, caráter e esperança
do mundo não estar em caos. (Rm 5.3-5), e um conhecimento de Sua
b) Leia os julgamentos relatados em Eze- presença em nossa vida pelo Seu Espírito
quiel 1, Isaías 6 e Apocalipse 4. Quais são as (Jo 14-16). Em resumo, ele quer nos dar
respostas das testemunhas? Por quê? o Reino.
6
Para um tratamento mais completo do assunto, veja 7
ADAMS, Jay. How to handle trouble: God’s Way.
o livro de Jay Adams The grand demonstration. Santa Phillipsburg, N.J.: Presbyterian & Reformed, 1982.
Barbara, Calif.: EastGate, 1991.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 31
A esta altura, costumo apresentar ao damentos” (Dt 8.2). Isso não quer dizer que
aconselhado um trecho bíblico familiar, algum pecado pessoal é sempre a causa do
Romanos 8.28: “Sabemos que todas as sofrimento. Os conselheiros de Jó estavam
coisas cooperam para o bem daqueles que errados. Mas isso quer dizer que Deus usa
amam a Deus, daqueles que são chamados o sofrimento para provar e purificar aqueles
segundo o seu propósito”. O versículo 29, a quem Ele ama. Jó se arrependeu de sua
menos familiar, nos diz o que é esse “bem”: justiça própria.
“Porquanto aos que de antemão conheceu, Talvez você tenha ouvido cristãos
também os predestinou para serem confor- falarem a respeito do sofrimento: “Isso é
mes à imagem de seu Filho, a fim de que ele exatamente aquilo de que eu precisava”. Eles
seja o primogênito entre muitos irmãos”. estão se referindo a ter o seu pecado exposto,
Esta é a maneira mais significativa como o que com freqüência acontece durante o
Deus pode nos mostrar o Seu amor. sofrimento. Foi preciso aquele exato sofri-
À medida que se caminha com um mento para ensinar a depender de Deus em
aconselhado em direção a um melhor enten- lugar de depender de si mesmo. Ninguém é
dimento dos propósitos de Deus, é sábio não naturalmente grato por uma doença grave,
perder de vista os adversários: o mundo, a por um cônjuge que se mantém a distância
carne e o diabo. O mundo está comunicando no relacionamento ou por uma tragédia, mas
constantemente que a terra é a única mora- muitos aprenderam a ser gratos, e até a esta-
da que temos, e que merecemos liberdade rem alegres, pelo treinamento espiritual que
da dor enquanto estivermos aqui. A carne circunstâncias semelhantes produziram. Se a
encontra prazer na autonomia para com nossa carne pecaminosa e resistente não for
Deus e resiste a se submeter à Sua vontade. constantemente exposta, ficamos sossegados
E o diabo aproveita-se constantemente das com a idéia de que está tudo bem conosco
nossas circunstâncias de vida para sugerir - somos pessoas boas que ocasionalmente
que elas são a evidência de que Deus não fazem coisas que não são tão boas. Desta for-
é realmente bom, que Ele está contra nós e ma, o problema do mal torna-se algo que está
não nos ama. Com estes adversários, torna- “fora daqui” e não “aqui dentro”. O perigo
se óbvio que a batalha não pode ser travada assustador desse tipo de pensamento é que o
sem as orações do povo de Deus. evangelho de Cristo torna-se pouco mais que
um presente amável de Deus para pessoas
O sofrimento revela o coração. que já estavam caminhando razoavelmente
Deus usa o sofrimento para expor bem. Ele não é mais visto por aquilo que é:
nosso coração. Sofrimento é uma pressão o evangelho da graça oferecido a mendigos
que pode nos “espremer”, revelando nossa desesperados.
fé ou os fragmentos de falta de fé e pecado Esquadrinhando essa idéia no livro de
que estavam até então escondidos. As pro- Jó, diríamos que o sofrimento coloca-nos
vações testam a nossa fé (Tg 1.2,3). Como diante de um cruzamento espiritual. Quan-
disse Lutero, “onde a batalha é furiosa, ali a do todos os acontecimentos agradáveis da
lealdade do soldado é provada”. Deus usou vida forem removidos, adoraremos ainda a
o sofrimento do povo de Israel “para humi- Deus? Nos bons tempos, a resposta parece
lhar, para provar, para saber o que estava no fácil: “Claro que confiarei em Deus!”. Mas
coração, se guardariam ou não os Seus man- o sofrimento revela em nosso coração a falta
32 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
de fé e a adoração voltada para nós mesmos. com aqueles que enfrentam a dor, embora
Ele pode revelar que nossa fé é mais na base possamos também nos alegrar com sofredo-
de “você coça as minhas costas e eu coço as res que dão testemunho visível diante de si
suas”. Ele pode revelar que nossa obediên- mesmos, da igreja e do mundo de que são
cia aparente pode ser na verdade uma boa filhos de Deus.
coincidência, acontecendo quando os nossos
desejos incidentalmente coincidem com a lei O sofrimento revela a eternidade.
de Deus. Com isso em mente, o propósito Enquanto o sofrimento pode acender os
gracioso de Deus torna-se mais óbvio. Deus holofotes e expor o coração, ele pode tam-
usa o sofrimento para que saibamos quando bém emprestar claridade para identificarmos
estamos adorando a Deus por amor a Ele ou realidades mais amplas do reino de Deus. Ele
a nós mesmos. nos ajuda a ver a eternidade. Ele incentiva
O apóstolo Paulo mostrou que o sofri- a esperança. É como se o nosso sofrimento
mento nos força a responder à pergunta “Em nos incitasse mais para perto da eternidade
quem eu vou confiar?”. Sua resposta pessoal de modo que pudéssemos ver nossas aflições
foi: “Contudo, já em nós mesmos, tivemos a presentes a partir da perspectiva eterna. É
sentença de morte, para que não confiemos aqui que 2 Coríntios 4.16-18 ganha maior
em nós, e sim no Deus que ressuscita os brilho.
mortos” (2 Co 1.9). Paulo estava mais em- Por isso, não desanimamos; pelo contrá-
polgado com conformar-se com Cristo pela rio, mesmo que o nosso homem exterior se
fé que com um alívio imediato do próprio corrompa, contudo, o nosso homem interior
sofrimento. se renova de dia em dia. Porque a nossa leve
Um dos propósitos do sofrimento é pro- e momentânea tribulação produz para nós
duzir arrependimento, fé e obediência. Este eterno peso de glória, acima de toda compa-
é o tipo de resposta que dura eternamente, ração, não atentando nós nas coisas que se
agrada a Deus e traz a bênção da paz. Ela vêem, mas nas que se não vêem; porque as
também revela maiores pesos de glória que que se vêem são temporais, e as que se não
desequilibram a balança contra o sofrimento. vêem são eternas.
O peso de glória do perdão dos pecados é O peso de glória eterno contrabalança
maior que o peso de nossa aflição, e o peso de longe nossa dor momentânea. Ou como
de glória de ganhar sabedoria e compartilhar disse Madre Teresa, “do céu, a vida mais
a santidade de Deus passa a ser uma bonita triste na terra parecerá como uma noite mal
dádiva que altera ainda mais a escala da dormida em um hotel desconfortável”. E
balança. assim prossegue o processo de contrabalan-
Com certeza, o sofrimento não revela çar o sofrimento, resultado de uma teologia
apenas o pecado, mas pode também expor bíblica do sofrimento.
corações que estão cheios de fé. Muitos O encorajamento a ter esperança no
cristãos que foram surpreendidos pelo so- sofrimento é um tema marcante ao longo das
frimento surpreenderam-se também recor- Escrituras. É obvio que se o apóstolo Paulo
rendo imediatamente à Palavra de Deus em tinha um segredo, aqui está ele. A esperança
busca de conforto, e expressaram orações de na eternidade era mais profunda que a sua
lamento e louvor que competiram com as dor: “gloriamo nos na esperança da glória
do Salmista. Em tais casos, ainda choramos de Deus” (Rm 5.2). O problema, todavia, é
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 33
que somos uma geração presa ao presente. Depois repare na distância que há entre a
Preocupações com coisas temporais, como esperança atual do sofredor e a esperança de
as contas mensais, bem como com bênçãos Paulo ou Tiago. Perceba como esta distância
temporais, como paz e liberdade, fazem não pode ser superada a não ser pela oração,
com que seja cada vez menos natural para os meditação e prática da “disciplina da espe-
cristãos olhar para além. No entanto, é aqui rança”. Lembre aos aconselhados que a es-
que o sofrimento pode melhor trabalhar. perança não virá em uma semana, mas ela se
Sofrimento lembra-nos de que o mundo tornará mais e mais uma realidade mediante
não mantém suas promessas. Lembra-nos de encorajamento persistente e prática.
que não há nada neste mundo que não tenha Na leitura dos Salmos, pode parecer
sido manchado pelo pecado e pela maldição que a esperança surja instantaneamente.
da queda. Desta forma, a esperança pode se Em vários salmos, parece haver apenas um
tornar mais espontânea e tranqüilizadora, leve convite a esperar no Senhor, e logo em
pela graça de Deus. seguida o salmista irrompe em louvor. Os
Esperança é o gran finale do sofrimento. Salmos, todavia, oferecem esboços conden-
O sofrimento ajuda-nos a focalizar na espe- sados de um processo educativo. Além disso,
rança, portanto não devemos nos surpreen- eles foram escritos por pessoas que eram
der ao descobrir que algumas das passagens treinadas em esperança. Sim, esperança é
bíblicas mais conhecidas sobre o sofrimento uma habilidade. Não é uma experiência ins-
acabam em tom de esperança segura (Rm tantânea. É uma disciplina que requer força
5.3-5, 8.18-19, 1 Pe 4.12-14). Por exemplo, e encorajamento constante das Escrituras e
Romanos 5.3-5 fala sobre os propósitos do povo de Deus para que possa florescer
cumulativos do sofrimento. Para aqueles que (Rm 15.4).
foram treinados pelo sofrimento, tribulação
produz perseverança, perseverança produz Este é o centro do propósito de Deus
experiência, e experiência produz esperança. no sofrimento: revelar nosso coração, con-
E logo a seguir o apóstolo passa a argumentar templar o Salvador ressurreto e depositar
a garantia presente da nossa esperança. De confiança nEle, antecipando Sua volta e
acordo com Paulo, a esperança está selada aprendendo a obediência. No entanto, há
no testemunho da cruz de Cristo e de Sua mais um propósito que pode realmente
ressurreição. Testemunhamos Seu amor por entusiasmar algumas pessoas. Na situação
nós. Portanto, nossa esperança é garantida. de Jó, um dos propósitos do sofrimento
Paulo leva-nos de volta ao início da nossa era silenciar Satanás. Satanás, o inimigo e
teologia do sofrimento e nos lembra de que a causa proeminente do sofrimento e do
sofredores nunca devem tirar seus olhos da mal, ainda vive para nos acusar e persuadir
cruz e do amor nela revelado. Não há espe- a desobedecer ao Deus Altíssimo. O privi-
rança sem convicção do amor de Deus. légio do povo de Deus é combater Satanás,
Como podemos ganhar esperança em confiando em Deus e obedecendo mesmo
meio à dor? Podemos começar pela leitu- em meio ao sofrimento.
ra de passagens bíblicas sobre esperança. Enquanto estivermos aqui na terra, não
Maravilhe-se diante de como Paulo (Rm saberemos identificar plenamente quem são
5.3) e Tiago (Tg 1.2) alegraram-se em seu os inimigos de Deus. O único inimigo que
sofrimento enquanto esperavam em Deus. conhecemos com certeza é o próprio Satanás.
34 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Como um dos puritanos disse, nossa tarefa é escreveu o poema que transcrevemos abaixo.
“causar tanto dano a ele quanto possível”. Perceba como, mesmo em sua maior tristeza
O sofrimento certamente coloca em e depressão, ele descobriu que a esperança
evidência esta batalha da vida cristã; mas o em Cristo é profunda. Ele encontrou pesos
poder de Deus, Sua vitória sobre Satanás e de glória que lhe deram paz.
Sua iniciativa de nos persuadir com promes- Se paz a mais doce eu puder desfrutar,
sas preciosas, são mais que suficientes para se dor a mais forte sofrer,
conduzir a batalha com sucesso. Temos tam- oh, seja o que for, tu me fazes saber
bém o exemplo de Cristo, bem como o de que feliz com Jesus sempre sou!
homens e mulheres de fé no Antigo e Novo
Embora me assalte o cruel Satanás,
Testamentos que nos dão alento. E ainda
e ataque com vis tentações;
mais, há vidas de muitas pessoas ao nosso
oh, certo eu estou, apesar de aflições
redor que são merecedoras de imitação.
que feliz eu serei com Jesus!
Um exemplo bem conhecido de sofredor
que pode ser modelo para nós é Horatio Meu triste pecado por meu Salvador
Spafford, o escritor do hino “Sou feliz com foi pago de um modo total.
Jesus”. Em 1873 ele acenou adeus a sua espo- Valeu-me o Senhor, oh que amor sem
sa, Anna, e a seus quatro filhos que partiam igual!
para a França a bordo do transatlântico Ville Sou feliz, graças dou a Jesus.
de Havre. Ele tinha negócios a completar
A vinda eu anseio do meu Salvador.
nos Estados Unidos antes de poder se juntar
Ao céu Ele vai me levar;
à família na Europa. A viagem procedeu
em breve eu irei para sempre morar
tranqüila até que no meio da noite de 22
com os salvos por Cristo Jesus.8
de novembro o navio colidiu com outra
embarcação. A balança pende cada vez mais para um
As águas impetuosas separaram a senho- dos lados. O sofrimento ainda existe, e a dor
ra Spafford de seus três filhos mais velhos. pode ser grande, mas os pesos de glória ocu-
Ela ainda conseguiu agarrar a mais nova, pam em nosso coração lugar mais profundo
Tannetta, enquanto elas eram arrastadas para que a dor (figura 2).
dentro do Atlântico gelado. Repentinamen-
te, a criança lhe foi arrancada. Anna foi mais
tarde tirada das águas por marinheiros da
outra embarcação, enquanto que os quatro
filhos morreram afogados.
Poucos dias depois, Horatio recebeu um
telegrama dizendo que apenas a esposa so-
brevivera. Embora ele tenha experimentado
o que pareceu ser uma depressão implacável, Figura 2
logo partiu a bordo de um navio para encon-
trar sua esposa na Europa. A certa altura da
viagem, o capitão comunicou a passagem
pelo lugar onde estavam os destroços do
8
Hinário para o Culto Cristão. Rio de Janeiro: Juerp,
1991. n. 329.
naufrágio. Horatio foi para sua cabine e
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 35
Idéias para tarefas práticas sendo curadas da dor? Pessoas que foram
a) Considere a vida de José. Como você feridas e vitimadas? Ou somos pessoas que
identifica o propósito amoroso de Deus? precisam esquecer a dor e seguir em frente?
Preste atenção especialmente em Gênesis Precisamos ser uma espécie de cristãos mais
50.20. fortes que ignoram a dor e permanecem na
b) Considere a vida de Noemi no livro batalha?
de Rute. Como você identifica o propósito Deus claramente nos aponta outro
amoroso de Deus? caminho. A encarnação fala contra a super-
c) A caminhada da vida cristã costuma ficialidade dos estóicos. A presença de Jesus
ser resumida de várias maneiras: na terra mostra Sua solidariedade para com
“O fim principal do homem é glorificar os sofredores. Seu ministério foi cheio de
a Deus e gozar de comunhão com Ele para compaixão e entendimento. Seu ministé-
sempre”, rio também revelou a superficialidade dos
“Sêde santos como Deus é santo”, corações sangrentos. Ele demonstrou que
“Sêde imitadores de Cristo”. dor, sofrimento, condição de vítima e morte
De que maneira estas frases sugerem que não são os aspectos mais relevantes da vida.
há um propósito maior para a sua dor? Jesus nos dirige a realidades mais profundas,
d) Reúna uma coleção de cânticos de necessidades espirituais mais profundas.
adoração. Somos pessoas que foram alvo de mi-
e) Leia um livro bibliográfico sobre sericórdia. Isso certamente não é algo novo
sofrimento9. para nós. É uma identidade que até mesmo
f ) De que maneiras você pode silen-ciar crianças podem perceber nas Escrituras, mas
Satanás? banalizá-la prejudica nossa habilidade para
g) Dê início ao hábito de orar de acordo revolucionar a perspectiva do sofredor. Por
com versículos das Escrituras. Se Deus diz exemplo, pessoas que sofreram nas mãos de
algo que você não entende ou acredita, ore outras podem achar que a vida de vítima seja
que Ele faça a Sua Palavra viva para você. inevitável. Isso é o que elas são, e o máximo
Considere a possibilidade de começar com que elas podem fazer é tentar proteger a si
passagens a respeito de esperança. mesmas da dor. Mas Deus reorienta sofre-
h) Leia Hebreus 10.37 a 12.12. Como dores. Ele revela que a graça recebida não se
estas breves biografias podem encorajá-lo? compara à dor atual. A graça é algo de peso
Que perguntas esta passagem bíblica suscita na balança; o sofrimento é leve.
em sua mente? Considere também aquelas pessoas que
estão iradas porque acham que não merecem
Nem vítimas com coração par- a dor. Como recipientes de misericórdia
tido, nem estóicos, mas servos de e graça, elas podem ficar repentinamente
Deus sofredores que respondem à humilhadas quando descobrem o custo es-
Sua graça. tarrecedor da iniciativa do amor divino em
Então, quem somos? Qual é a nossa seu favor. Elas passam de vítimas que reagem
identidade? Pessoas da dor? Pessoas que estão a pessoas que respondem em amor. O fun-
damento para a vida do cristão é a graça de
9
O autor sugere A Step Further de Joni Eareckson Tada Deus, e não liberdade do sofrimento. Éramos
e Through Gates of Splendor de Elizabeth Elliot. inimigos de Deus que estavam nus e cegos, e
36 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Ele tomou a iniciativa para conosco: “Deus aconselhamento bíblico incentiva um mo-
prova o seu próprio amor para conosco pelo vimento em direção ao próximo e a Deus,
fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós tornando inevitável o passo do perdão. Per-
ainda pecadores” (Rm 5.8). doamos assim como fomos perdoados. Na
Talvez a expressão “pessoas que respon- mesma medida como Deus lidou conosco
dem” capte bem nossa nova identidade. Deus de modo “injusto”, ou seja, Ele nos amou
é o iniciador implacável da graça libertado- quando não o merecíamos, também amamos
ra. Nós respondemos à Sua graça pela fé. aos nossos inimigos.
Como pessoas que respondem a Ele, somos Como será este amor? Há dezenas de
definidos por Aquele que nos liberta e nos possibilidades. Às vezes assumirá a forma
tornamos Seus servos. Isso não remove o so- de confrontar a pessoa, por carta ou pesso-
frimento, visto que ele está ligado à vida aqui almente. Poderá também assumir a forma de
na terra, mas não somos mais definidos nem orar pelo ofensor e não perder a esperança de
controlados pelo sofrimento. Somos servos uma plena reconciliação. Ou então assumirá
sofredores que respondem a Deus. a forma de telefonar para o pastor e também
Aqui está um conselho curioso para os para 192 em busca de ajuda em meio à crise.
sofredores: caminhar olhando para fora, em Outras vezes assumirá a forma de ministrar
direção ao Deus trino, “olhando firmemente verdade e graça a outras pessoas que sofrem
para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o mágoas semelhantes. O amor de Deus pode
qual, em troca da alegria que lhe estava pro- inspirar muitas iniciativas criativas.
posta, suportou a cruz, não fazendo caso da
ignomínia, e está assentado à destra do trono Pessoas responsivas que amam a
de Deus” (Hb 12.2). Isso certamente não Deus.
significa que devamos ignorar o sofrimento, Na última ceia, Jesus contou aos discípu-
mas que nossas perguntas começam a mudar los que eles estavam prestes a experimentar
diante do peso de glória de Deus. A pergunta grande aflição, mas logo depois da dor have-
“Por que Deus não fez isso cessar?” torna-se ria uma alegria que nunca lhes seria roubada,
menos urgente. Começamos a perguntar mesmo durante as tremendas perseguições
“Como posso amar a Deus e aos outros que todos iriam enfrentar.
em resposta ao que Deus fez por mim?” Em verdade, em verdade eu vos digo
e “Como posso tratar outros da maneira que chorareis e vos lamentareis, e o mundo
como Cristo me tratou?”. A pergunta dos se alegrará; vós ficareis tristes, mas a vossa
sofredores passa a ser a mesma pergunta dos tristeza se converterá em alegria.A mulher,
demais cristãos: “Como posso cumprir os quando está para dar à luz, tem tristeza,
dois grandes mandamentos - amar a Deus e porque a sua hora é chegada; mas, depois
ao meu próximo como a mim mesmo?”. de nascido o menino, já não se lembra da
aflição, pelo prazer que tem de ter nascido
Pessoas responsivas que amam ao mundo um homem. Assim também agora
outras. vós tendes tristeza; mas outra vez vos verei;
Para aqueles que foram vítimas, este é o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria
o momento de falar a respeito de perdoar o ninguém poderá tirar. (Jo 16.20-22)
ofensor. “Não te deixes vencer do mal, mas Como poderiam entender: alegria
vence o mal com o bem” (Rm 12.21). O constante, mas sobrecarregada de aflição e
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 37
dor? Certamente é uma experiência difícil peso de glória para qualquer sofredor. Isso
de descrever; no entanto é verdadeira. Ela não coloca um fim ao nosso sofrimento ou
tem base na adoração do Cristo ressuscita- dor momentânea, mas significa que não
do. Jesus está vivo. Independentemente do vamos exaltar nem ignorar a dor. Vamos
que nos acontece, nosso grande Deus reina. exaltar a Deus em meio à dor.
Dificuldades pessoais e aflições não podem “Porque para mim tenho por certo
mudar a verdade da ressurreição. A maior que os sofrimentos do tempo presente não
alegria do cristão é o próprio Deus e o fato podem ser comparados com a glória a ser
de que nada pode nos separar dEle. revelada em nós”. (Rm 8.18)
A evidência desta alegria em meio ao
sofrimento pode ser vista nos funerais de Declarações sobre o problema do
muitos cristãos. Pode ser vista nas palavras sofrimento
da família de uma criança que morreu de A igreja necessita de uma declaração
câncer: de fé para o aconselhamento que defina o
Empreste sua canção celeste que cristãos devem ou não crer a respeito
para que se junte às nossas que do problema do sofrimento. Damos aqui
vêm da terra, querido filho, e adore algumas declarações preliminares, que es-
Àquele cujo amor O constrangeu peramos sejam refinadas em um processo
a morrer por pessoas como nós, de de discussão.
forma que você pudesse entrar no 1. Dor e sofrimento entraram no mun-
paraíso que agora desfruta e onde do após o pecado de Adão.
vive para sempre com Ele. Nós sen-
Afirmamos que:
timos sua falta, mas seremos fortes e
embora não tenhamos participado
seguiremos em frente, até o dia em
voluntariamente do pecado de Adão,
que o veremos, aí no céu.
compartilhamos a culpa e a deprava-
Há uma grande tristeza pela perda de
ção de Adão. Portanto, nunca somos
um amigo ou parente querido. Pode haver
sofredores inocentes;
até ira, pois a morte é uma intrusa que não
a dor é agora uma parte permanente
pertence à criação de Deus. Mas também
de nossa existência na terra devido à
há alegria. Alegria por saber que aquele que
maldição de Deus sobre o pecado;
morreu está em casa. Alegria por saber que
a dor atinge crentes e descrentes;
na ressurreição de Jesus o maior inimigo,
a dor é uma intrusa na criação de Deus,
a mais profunda causa de sofrimento, a
e um dia será banida por Cristo;
própria morte, “tragada foi pela vitória” (1
a dor, à semelhança do pecado, é uma
Co 15.54).
presença misteriosa em nosso mundo,
Existem realidades mais profundas que a
que não pode ser plenamente enten-
nossa dor. O amor de Jesus que se fez homem,
dida.
o perdão de nossos pecados, o conhecimento
de que Deus tem um propósito, são pesos de Negamos que:
glória que mudam o nosso sofrimento. Mas o
Deus é o autor do pecado (consideran-
maior de todos os pesos de glória é o próprio
do o pecado como causa da dor);
Deus. Conhecê-lo como o Deus verdadeiro
que deve ser louvado e adorado é o maior a dor é sempre a causa do pecado.
38 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
2. Dor e sofrimento podem ser atri- Negamos que:
buídos a Satanás, ao pecado de Adão, a soberania de Deus no sofrimento de
ao nosso pecado pessoal, a outros algum modo reduz o Seu grande amor
que pecam contra nós, e ao próprio por Seu povo.
Deus.
Afirmamos que: 5. O evangelho de Cristo transforma
as Escrituras enfatizam como viver obe- todas as coisas em nosso mundo, in-
dientemente em meio ao sofrimento, clusive o sofrimento.
em lugar de como discernir a causa Afirmamos que:
precisa do sofrimento. nos sofrimentos de Jesus encontramos
um sofrimento que é maior que o
Negamos que:
nosso;
o sofrimento é sempre um resultado
direto do pecado pessoal. no evangelho, Jesus vem a nós como
um sacerdote que entende amplamente
3. Independentemente da causa, dor
nossa dor;
e sofrimento devem mover o povo de
Deus à compaixão. redenção é a necessidade mais profun-
Afirmamos que: da do homem. Nosso problema com o
Jesus estava cheio de compaixão por pecado ultrapassa em muito o peso do
aqueles que sofriam; como imitadores nosso sofrimento. Como tal, as bênçãos
de Cristo, aqueles que compõem a Sua da redenção são mais profundas que o
igreja também devem responder ao nosso sofrimento;
sofredor com compaixão; compaixão
o sofrimento tem um propósito. Ele
expressase em palavras e ações;
testa e revela o coração humano, e ele
compaixão inclui encorajar sofredores coopera para o “bem” na medida em
a falar honestamente com Deus. que pode fortalecer os crentes e moldá-
los à imagem de Cristo;
Negamos que:
compaixão é um “estágio” no acon- os cristãos podem sofrer mais que os
selhamento. Ela é do começo ao fim descrentes. Eles sofrerão mais porque
a nossa atitude para com aqueles que sua compaixão se estenderá além dos
sofrem. limites de si mesmos e suas famílias.
Eles sofrerão por amor à justiça;
4. Deus está acima de todas as coisas,
inclusive da dor e do sofrimento. o sofrimento conduz à esperança. À
Afirmamos que: medida que crescemos por meio do
Deus está acima de Satanás, do pe- sofrimento, aprendemos a não nos
cado, das “casualidades”. Quando o contentar com o mundo presente e a
sofrimento nos atinge, é a vontade de antecipar a eternidade.Olhamos menos
Deus para a nossa vida; para a razão do sofrimento e mais para
sofrimento levanos a uma dependência nosso Redentor ressurreto.
humilde de Deus.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 39
Como Você se Sente?
D a v i d A . Po w l i s o n 1
Sentir, sentir, sentir. Vivemos em uma Como você se sente neste pântano de
sociedade onde a expressão “eu sinto” tor- sentimentos? As palavras “eu sinto” passaram
nou-se a moeda circulante na comunicação. a ser uma expressão de mil utilidades, usada
Sentimentos são hoje base para tomadas de para tudo quanto uma pessoa pode experi-
decisão e muito conselho popular. mentar, pensar ou querer. Neste artigo, em
- “Perdi qualquer sentimento de amor primeiro lugar, vamos atravessar a cortina
por meu marido”... portanto, não há mais de fumaça da linguagem para descobrir o
esperança para o casamento. que as pessoas querem dizer quando usam
- “Eu não sinto vontade de ler a Bíblia” a linguagem dos sentimentos. Em seguida,
... por isso não leio. veremos o que a Bíblia diz sobre este assunto
- “Sinto que Deus é um bicho-papão, e seu efeito redentor naquilo que chamamos
assim como meu pai” ... diga então a Deus de sentimento. Por último, consideraremos
que você está irado com Ele. como o processo de aconselhamento é en-
- “Diga-me o que você sente”... assim riquecido por informações que ganhamos
vamos conhecer de verdade um ao outro. ao prestar atenção àquilo que as pessoas
- “Esteja ciente de seus sentimentos” ... sentem.
pois sentimentos são a chave mágica para a
integridade pessoal. 1. Como entender a linguagem
- “Siga os seus sentimentos”... pois seus dos sentimentos
sentimentos são um guia seguro para que Alguns usos da linguagem dos sentimen-
você alcance satisfação pessoal. tos são simples. Se corto meu dedo enquanto
estou picando um tomate, eu sinto dor. A
expressão é clara. Mas vários outros usos de
“eu sinto” são vagos e até enganosos. Consi-
1
Tradução e adaptação de What do you feel?
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. dere esse parágrafo ligeiramente exagerado:
Glenside, Pa, v. 10 n. 3, Spring 1992. p. 50-61. “Quando eu me sinto ferida porque eu sinto
40 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
que meu marido errou para comigo, então eu ações dele como uma espada penetrante?
não sinto vontade de conversar com ele. Em Ou houve um pouco de cada coisa? Ela se
vez disso, eu sinto vontade de sair de perto “sentirá ferida” em qualquer dos dois casos.
dele porque eu sinto que ele não irá mesmo Os conselheiros bíblicos sábios não podem
me ouvir. Eu sinto que é justificável a ira que considerar nem mesmo as percepções senso-
sinto. Eu não sinto que a Bíblia tenha algo riais pelo valor nominal.
específico a dizer sobre o nosso conflito”.
Você já ouviu alguém falar assim? Você Em segundo lugar, “eu sinto” é
costuma falar assim? “Eu sinto” cria uma usado como expressão de emoções
nuvem vaga e poderosa de legitimidade ao Esta é uma extensão do primeiro uso
redor de uma dúzia de afirmações duvido- da palavra sentimento. Nós experimenta-
sas. É difícil argumentar com sentimentos. mos nossas emoções: “Eu me sinto irado...
Mas arraste todos estes sentimentos para a ou ansioso, deprimido, feliz, apaixonado,
luz do dia. Olhe de perto para eles. O que temeroso, culpado, grato, entusiasmado”.
você encontra quando desembrulha estes Mas aqui a palavra torna-se ainda mais
sentimentos e verifica o significado contido vaga. Por exemplo, dizer que “eu me sinto
internamente? No parágrafo acima, pode- irado” traz à luz uma parte importante do
mos identificar quatro usos diferentes de que está acontecendo. Mas esconde outra
“eu sinto”. parte significativa da questão da ira. Na
verdade, a pessoa ESTÁ irada. Ira, como as
Em primeiro lugar, “eu sinto” é demais emoções, é algo que envolve a pessoa
usado para a descrição de percep- por inteiro. Ira envolve componentes ativos
ções sensoriais. como pensamentos, atitude, expectativas,
Se você fizer um corte no dedo, sentirá palavras e ações, ao lado dos “sentimentos”
dor — você experimentou um evento exter- mais passivos de estar irado.
no, físico. Mas há também outros tipos de A psicologia popular atual diz: “A ira
experiências. Você experimenta fenômenos é apenas uma realidade, é um sentimento
internos — por exemplo, “sinto-me tenso” válido. Ela não é nem certa nem errada. Não
quando meus músculos se contraem e meu há razão para evitá-la. Portanto, vamos falar
estômago vira. Você experimenta fenômenos sobre a sua ira”. Isso talvez pareça ajudar à
interpessoais— por exemplo, palavras po- primeira vista. Esta explicação de ira é fre-
dem ser como pontas de espada (Pv 12.18). qüentemente usada para atingir pessoas que
Quando este tipo de palavras o atinge, você negam que estão iradas e ajudá-las a encarar
sente dor ou tristeza. Sentimento, em seu uso com honestidade suas experiências emocio-
simples, é um sinônimo para sensação, para nais. Mas ela engana as pessoas, levandoas a
aquilo que percebemos que nos acontece. crer na ilusão de que estão bem.
Mas mesmo este uso da palavra “senti- Uma abordagem bíblica cultiva a hones-
mento” tem suas complicações. Considere tidade pessoal por meio da verdade, e não da
a frase “sinto-me ferida porque sinto que ilusão: “A ira é uma resposta humana comum
meu marido agiu mal comigo”. Se ele de diante de erros que percebemos. Ela também
fato errou com a esposa, a dor é justificada? é parte de termos sido criados à imagem de
Ou será que ele teve dificuldade em atender um Deus moral. A ira pode ser certa ou er-
às expectativas dela, e ela interpretou as rada. Você deve encará-la. Vamos conversar
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 41
a respeito da sua ira”. O temor do Senhor é como sentimentos confunde mais do que
o princípio da sabedoria. A ira, na verdade, é esclarece. Opiniões estabelecem a verdade!
complexa. Biblicamente, ela pode ser justifi- Os pensamentos são tidos como intrinseca-
cável ou não. Pode ser expressa corretamente mente válidos se forem “sentidos”, ou seja,
ou não. É muito mais que uma emoção. A experimentados com um senso de convicção
ira humana é potencialmente correta, mas interior. Muitas pessoas vivem como se os
está comumente ligada ao pecado. “sinto que” estabelecessem convicções car-
A necessidade de uma avaliação objetiva regadas de autoridade. Este uso (“eu sinto
e moral fica ofuscada quando a ira é vista que”) deve ser reformulado para trazer à luz
apenas como um sentimento. Se a ira é uma o conteúdo implícito ou explícito.
inclinação, um sentimento que ocorre em Opiniões e crenças precisam ser avaliadas
mim, então ela é intrinsecamente legítima. à luz da verdade. O que aconteceu? O que
“Assim como eu sinto dor quando corto você pensa e acredita? Como você julga as
meu dedo, eu fico irado quando você me pessoas ou as situações? Quais são as suas
ofende. Eu preciso apenas admitir minha opiniões, convicções e atitudes? Finalmente,
ira e expressá-la de modo apropriado.” Mas o que você pensa é verdadeiro e correto, ou
quando a ira é avaliada pela Palavra de Deus falso e pecaminoso? Em lugar de levantar
(p. ex. Tg 1.19ss e 3.2-4.12), esta equação estas perguntas, “Eu sinto que...” anula a
simples vai por água abaixo. Devo reconhe- avaliação consciente de minhas idéias e jul-
cer a ira com o propósito de examiná-la à gamentos. Eu sinto isso. A minha verdade
luz da Palavra de Deus e neste processo, com substitui a verdade.
toda probabilidade, aprenderei a respeito de A Bíblia contém declarações arrasadoras
minha justiça própria, do controle que quero a respeito de apoiar-se no próprio entendi-
exercer e de minhas exigências. Serei levado mento, ser sábio aos próprios olhos, andar
a perceber a necessidade que tenho da graça pelo caminho que parece certo ao homem,
de Deus em Jesus Cristo. Mudarei a ma- ser alguém que se deleita em ventilar as pró-
neira como expresso a ira. Poderei discernir prias opiniões (veja Pv 3.5; 3.7; 14.12; 18.2).
as causas da luta que há em meu coração. O “sentir” que o dedo foi cortado por uma
Aprenderei a ser um pacificador. faca tem autoridade. Mas o “sentimento de
que algo é assim” é altamente discutível.
Em terceiro lugar, “Eu sinto” é
comumente usado para a comu- Em quarto lugar, “eu sinto” é
nicação de pensamentos, crenças e usado para a comunicação de
atitudes. desejos.
“Eu sinto que meu marido errou co- “Eu não sinto vontade de ir falar com ele.
migo. Eu sinto que ele não quer me ouvir. Eu sinto vontade de me afastar”. Este uso de
Eu me sinto justificada. Eu não sinto que “eu sinto” é também vago e problemático.
a Bíblia tenha algo a dizer com relação ao Ele acrescenta autoridade implícita a impul-
meu caso.” Esse uso de “eu sinto” é bastante sos, inclinações, vontades, desejos, anseios,
problemático. Com ele, aprendemos muito intenções, planos, escolhas, expectativas e
sobre a pessoa que está falando, mas pouco medos. Longe de ser uma inclinação a que
a respeito da verdade ou a respeito do que vamos obedecer, este “sentir vontade” é algo
ela deveria fazer. Falar de opiniões e crenças a ser examinado biblicamente. As palavras
42 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
“eu sinto vontade” com freqüência turvam armadilhas da linguagem dos sentimentos?
a nossa responsabilidade pelos desejos. As Sentimentos costumam revelar percepções,
pessoas agem como se “ter vontade” fosse um emoções, opiniões e impulsos que têm au-
impulso carregado de autoridade! Desejos toridade e podem ser considerados como
enganosos determinam escolhas. inclinações a seguir? Ou eles revelam facetas
O que queremos alcançar pode ser per- da vida humana a serem avaliadas bibli-
feitamente válido: “Sinto vontade de comer camente? Eles revelam o eu real, que deve
pizza com Pepsi-Cola, e não couve-flor com ser atualizado? Ou eles revelam a tendência
Coca-Cola”. Estes desejos são freqüentemen- do homem a afastar-se de Deus e voltar-se
te inocentes e nada problemáticos. (Embora para si mesmo, a carne, a autonomia e a
nem sempre! Relacionamentos têm sido subjetividade?
destruídos quando até mesmo estas pequenas Ao longo de mais de duas décadas, o
preferências passam a ser exigências que go- aconselhamento bíblico tem enfatizado
vernam a vida). O que queremos fazer pode que ser “orientado por sentimentos” é o
ser perfeitamente válido: “Eu sinto vontade problema principal do homem no que diz
de ir conversar com meu marido e resolver a respeito à motivação. E tem sido freqüen-
questão”. Pessoas que estão convencidas do temente mal compreendido e criticado por
certo, querem fazer o certo. pretensos conselheiros bíblicos que, por
Mas a Bíblia nos ensina que nossos “sin- sua vez, têm fracassado na compreensão
to vontade” são com freqüência desejos da da complexidade e profundidade da visão
carne. A maioria dos nossos “sinto vontade” bíblica do homem.
são desejos idólatras. Eles devem ser mor- Quando Jay Adams inicialmente disse
tificados pelo Espírito, e não alimentados que ser orientado por sentimentos é o pro-
com indulgência. Este é o caminho da vida, blema central do homem no que diz respeito
liberdade, sabedoria e alegria em Cristo! à motivação, ele queria dizer que pecadores
Os dois últimos usos de “sentir”, com são guiados por mentiras e cobiça. Sua afir-
referência a crenças e desejos, alcançam o mação tem sido, com freqüência, caricatu-
centro da motivação humana desorientada rada como se os conselheiros bíblicos fossem
pelo pecado. A inclinação da carne, com suas necessariamente hostis ou negligentes para
crenças falsas e desejos dominadores, cria com as emoções e experiências humanas.
os conceitos falsos e o pântano emocional Mas fazer uma análise bíblica da moti-
que complica os primeiros dois usos mais vação humana não significa posicionar-se
precisos da palavra sentimento. contra as emoções. Não significa ignorar as
experiências. Os conselheiros sábios têm o
Os conselheiros bíblicos e os sen- cuidado de conhecer aquilo que a pessoa está
timentos vivendo em suas experiências e emoções. Eles
“Sentimentos”. Que palavra difícil se preocupam em saber se o que a pessoa sen-
de definir! A mesma palavra é usada com te é verdadeiro ou não. Pensar claramente a
freqüência para comunicar quatro coisas respeito de coisas vagas significa ser contrário
diferentes: experiências, emoções, pensa- a elas? Espero que não. Uma análise cuidado-
mentos e desejos! Como você usa a expressão sa implica que sentimentos honestos devem
“eu sinto”? Como o seu aconselhado a usa? ser varridos para debaixo do tapete? Espero
Você pode encontrar uma saída em meio às que não. Nem implica que pessoas devam
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 43
engolir o que elas “sentem” honestamente. lhamento. Elas falam de experiências, emo-
Como você pode lidar com aquilo que não ções, pensamentos ou desejos. Problemas
conhece? Deus opera em realidades, não em sérios surgem por elas virem comumente
ilusões ou coisas encobertas. Como você carregadas de autoridade: “Se eu sinto, então
pode ser ouvido e ajudado se não reconhecer é inerentemente verdadeiro, certo e válido”.
honestamente o que está acontecendo? A O pensamento bíblico claro penetra na
verdade bíblica penetra em suas experiências, neblina de ambigüidade e autoridade que
emoções, crenças e desejos. Deus vai ao seu envolve os “sentimentos”. À medida que
encontro, onde você está. nossas mentes e corações são renovados pelo
A idéia de que as pessoas são orientadas Espírito da verdade, tudo quanto nos diz
por sentimentos não é uma idéia simplista, respeito é atingido.
pois explica aspectos complexos em vidas O que pode ser dito de positivo sobre o
embaraçadas. Um entendimento bíblico dos espaço conquistado pela linguagem contem-
“sentimentos” permite que olhemos além porânea dos “sentimentos”? Como se dá uma
da linguagem freqüentemente enganosa do renovação à imagem de Deus? Experiência,
cotidiano. Em sua concordância bíblica, você emoção, crença e desejo estão na esfera de
não encontrará muitas referências a “sentir” transformação interior que ocorre pelo poder
ou “sentimento”. Mas a carga que estas pa- e verdade do Espírito Santo. “Sentimento”
lavras carregam atualmente na linguagem não é, em geral, a melhor palavra a usar para
diária está presente em sua Bíblia. Podemos esta rica diversidade de aspectos. Há várias
tentar resolver a confusão, e convidar pessoas outras palavras mais vívidas e precisas.
a uma mudança inteligente à luz da verdade
bíblica e do poder do Espírito Santo. Suas experiências
A Bíblia vai direto à raiz do problema Você foi criado por Deus para expe-
dos “sentimentos”. A Palavra dAquele que rimentar prazer e dor. Leia o Salmo 107.
conhece os corações “é apta para discernir Perceba como as experiências de bênçãos
os pensamentos e propósitos do coração” e sofrimento são vividamente narradas.
(Hb 4.12). Na linguagem moderna dos sen- Por um lado, você ouve falar de pessoas
timentos podemos dizer que a Bíblia expõe que enfrentam circunstâncias duras e que
e julga os “sinto que” e “sinto vontade de” experimentam fome, sede, fadiga, tristeza,
que determinam como as pessoas vivem na aflições, desespero, abatimento. Sofrimento
escuridão. Cada homem faz o que é certo conduz para perto de Deus em busca de
aos próprios olhos, o que sente. E que ma- ajuda e refúgio. Por outro lado, você ouve
ravilhosa alternativa recebemos: a verdade falar de pessoas que estão em circunstâncias
do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo abençoadas e que experimentam gratidão,
alcançanos em misericórdia e nos concede alegria, satisfação, sede saciada, segurança
poder para mudar! e paz. Bênçãos nos fazem voltar para Deus
em alegria.
2.Como redimir a experiência Com certeza, as experiências de vida são
humana registradas tanto em nosso corpo como em
Conforme vimos, as palavras ambíguas nossa alma. Nós sentimos. Seríamos pedras
“eu sinto” são comumente usadas de quatro se não fosse assim! A experiência do cristão
maneiras distintas nas situações de aconse- nunca implica liberdade da dor ou ausência
44 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
de prazer. Mais que um chamado a experi- pessoas para desfrutarem os alimentos com
mentar bênçãos, que promessa temos por gratidão, comendo e bebendo em sabedo-
parte de Deus? “Bem-aventurado o homem ria e sentindo prazer. Mas a nossa cultura
...cujo prazer está na lei do SENHOR...Ele contamina profundamente as pessoas. Ela
é como árvore plantada junto a corrente de cria consumidores de alimentos obcecados,
águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, culpados, ansiosos ou triviais, em lugar de
e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto alegres participantes de um banquete. Nossa
ele faz será bem sucedido” (Sl 1). Mais que cultura produz maníacos, glutões ou ascéti-
um chamado a experimentar tristeza, que cos. O alimento tem recebido várias tonali-
advertência recebemos? Aqueles que odeiam dades sinistras: salvador, causa de gordura,
a Deus “o seu verme nunca morrerá, nem o fonte de vários venenos, combustível para a
seu fogo se apagará; e eles serão um horror máquina humana. Você vai se deleitar em
para toda a carne” (Is 66.24). comer e beber no banquete de casamento
Todos nós já lemos a respeito e fomos do Cordeiro? Você pode, desde já, passar
relembrados de que o sofrimento é uma por uma transformação que lhe permita
experiência válida na vida cristã. Traição, sentir prazer com gratidão no alimento, no
pobreza, doença, acusações, luto e isolamen- casamento e em várias outras coisas boas? A
to são duros de enfrentar. Tentação é difícil Bíblia responde a ambas as perguntas com
de enfrentar. A luta com nosso próprio eu um sonoro SIM (1 Tm 4.3-6).
natural é difícil. Experimentamos todas essas
coisas como aflições. Suas emoções
Mas vamos pensar um pouco sobre A gama de emoções é ampla. Deus é o
os prazeres válidos como, por exemplo, o Ser mais irado e também o mais carinhoso da
casamento e o sexo. Em uma cultura em Bíblia. O Messias é o mais triste e também
que crescem a imoralidade, a hostilidade o mais exultante. Você está sendo renovado
interpessoal, o abuso e o divórcio, é compre- à imagem de Deus e de Cristo? Pois então,
ensível que o casamento e o sexo adquiram há bastante lamento, mesmo na vida do
conotações assustadoras ou sórdidas. Mas a homem redimido porque nosso Senhor foi
Bíblia, a voz do Redentor, compara a “voz um homem de dores, familiarizado com o
de júbilo e de alegria” à “voz de noivo e a de sofrimento. Esta vida é um vale de lágrimas
noiva” (leia Jr 33.11). Os prazeres sensuais à sombra da morte. Mas há também alegria
plenos, fruto da obediência e narrados em inexprimível e plenitude de glória, caracte-
Provérbios 5.15-19 e Cantares de Salomão, rísticas da verdadeira intimidade com Deus
quase não podem ser registrados em um e com outras pessoas.
diário de vida familiar! Leia Provérbios 5.19 Nesta vida temos grandes alegrias e
em uma versão sem censura. A lei santa de amostras daquilo que será a vida de ver-
Deus ordena que o amor erótico seja cheio dade. E também há ódio do mal naqueles
de deleites encantadores. Chega da idéia de que amam a luz. Quando Moisés irado
que guardar os mandamentos de Deus é algo despedaçou as tábuas de pedra, ele espelhou
enfadonho e legalista! a ira que o Deus Santo havia expressado
Considere também os prazeres das co- apenas minutos ou horas antes. Há culpa
midas e bebidas. O Espírito Santo renova as a ser sentida e reformatada de acordo com
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 45
padrões de sensibilidade verdadeiros. Há Pode-se acreditar no que é verdadeiro
gratidão a ser sentida, pois nosso Senhor é com paixão subjetiva. A objetividade bíblica
misericordioso. não é árida e abstrata. Conhecimento da ver-
Há uma ternura genuína que deve ser dade contém vida, compromisso e força. Fé
sentida pelos portadores da imagem de Deus. bíblica é bem mais que conhecimento árido,
Nosso Deus, cujo amor excede o de uma falar consigo mesmo, pensamento positivo
mãe e é como o de um pai misericordioso, ou concordância doutrinária intelectual. O
é um Deus ativamente terno (Is 49.15; Sl cristão que conhece com clareza, ama com
103.13). O homem cujo amor é manso e força, crê com vigor, pensa com paixão. Não
intenso, como o amor de uma mãe e de um apenas pensamos que Jesus é a videira. Nós
pai, é um homem ativamente terno (1 Ts pensamos de verdade, e habitamos nEle com
2.7-12). Podemos ir adiante. Os Salmos têm alegria e esperança (Jo 15).
sido os favoritos do povo de Deus porque
expressam experiência humana honesta e Seus desejos
emoção em um contexto de fé. O choro do Coração, alma, mente e poder—o ho-
necessitado e a canção de alegria são ambos mem pecador “sente” que cobiça é uma coisa
apropriados para possuidores da imagem da boa. A Bíblia nos diz que pecadores anseiam
glória de Deus. por dinheiro, prazer, segurança, significado,
saúde, alimento, justiça própria, valor, poder,
Suas crenças conhecimento, felicidade... toda sorte de
Coração, alma, mente e poder—o ho- bênçãos desperdiçadas com a queda. Pessoas
mem pecador “sente” que suas mentiras são que nasceram de novo em Cristo também
verdade. Crenças e opiniões cruciais estão têm desejos intensos. Mas os objetos de seus
profundamente enraizadas. O que “acredi- desejos foram todos transformados. Deus
tamos de verdade” não é casualmente descar- não é o office-boy do nosso desejo delirante
tado ou mudado. Mentiras e distorções são de possuir coisas boas.
teimosas, plausíveis, enganosas e arraigadas. A Bíblia diz que os filhos de Deus devem
Estamos comumente persuadidos de que buscar a Deus, ansiar por Ele e ter sede do
nossos “sinto que” são verdadeiros. próprio Deus (Sl 42; Lc 11.9-13). Devemos
O mesmo é verdadeiro do outro lado da querer andar em retidão e obediência perante
questão. Pessoas em Cristo aprendem a crer nosso Rei (Mt 5.6; 6.33). Devemos ansiar
de todo coração que a verdade que “sentem” pela vida ressuscitada que Jesus revelará (Rm
(?!) é verdadeira. De fato, ocasionalmente 8.18-25; Ap 22.20). As teologias populares
a linguagem dos sentimentos pode ser nomeiam os anseios do coração pecamino-
apropriada para expressar um pensamento so: saúde e riqueza, significado e segurança,
renovado em Cristo. Uma das obras princi- auto-estima, poder para conseguir o que se
pais do Espírito é criar a convicção sentida quer. Mas o Espírito Santo está operando
no coração de que as promessas de Deus são para mudar aquilo que você quer. Você de-
verdadeiras. Mas em geral, “eu sinto” é um veria querer aquilo que você pede na oração
substituto fraco para muitas palavras melho- do Pai Nosso? Sim e amém!
res. “Eu sinto” destaca o subjetivo em um Há riquezas a serem extraídas do solo
campo onde verdade, mentiras e opiniões em que o jargão atual dos “sentimentos”
precisam ser examinadas objetivamente. está pisando e se atolando. Entre e garim-
46 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
pe! A Bíblia ensina que à medida que você O Espírito Santo e a Palavra de Deus
desenvolve uma devoção simples e pura por nos libertam para viver de uma terceira
Cristo, descobre suas experiências, emoções, maneira, “modo verdade bíblica”, que não
crenças e desejos entrelaçados em um único nega a honestidade pessoal nem iguala esta
conjunto piedoso. Você pode dar frutos por honestidade à verdade. Você deve prestar
meio de boas obras preparadas de antemão atenção aos sentimentos (em todos os quatro
por Aquele que está recriando você à Sua significados)! Mas também não deve viver
imagem. ou aconselhar como se os seus sentimentos
ou os sentimentos dos outros fossem uma
3. Que papel a linguagem dos realidade suprema.
sentimentos deve desempenhar O que isso significa na prática? Para
no aconselhamento sábio? exemplificar, usarei duas perguntas chaves.
Exploramos as realidades existentes por A primeira é “Como podemos conhecer a
trás da linguagem popular dos “sentimen- fundo uma pessoa?”. A segunda é “Como
tos”. Para aprimorar o pensamento crítico, falar sabiamente às pessoas?”.
vimos especificamente como as pessoas
usam e abusam da expressão ambígua “eu Como conhecer uma pessoa?
sinto”. Exploramos como a Bíblia ilumina O que significa conhecer uma pessoa?
e redime aquilo que os “sentimentos” des- Como você conhece a si mesmo e aos ou-
crevem. Dando-nos a mente de Cristo, a tros? Em parte, procure conhecer o que as
Bíblia descortina diante de nós um mundo pessoas sentem (sem negligenciar o que as
de alegrias e sofrimentos. Vimos que desafiar pessoas fazem e pensam). Aprenda a prestar
nossa cultura e o coração do homem com atenção às experiências e emoções. Elas são
relação à autoridade dos sentimentos não componentes cruciais do ser humano. São
implica negar, ignorar ou menosprezar o que sinais que registram o que está acontecendo
as pessoas sentem. Nosso alvo é trazer luz e em seu interior.
vida a uma área vaga e escura da existência do Por exemplo, o “sentimento” de estar
homem. Quais seriam algumas implicações sendo demasiadamente solicitado, oprimido
práticas de como falamos uns com os outros, ou pressionado, é importante. Sugere que
como falamos com os aconselhados e como você faça perguntas importantes. Há cuida-
falamos de nós mesmos? dos para serem depositados em Deus? Há
Seja como indivíduo ou coletividade, prioridades erradas? Você está esquecendo
os seres humanos oscilam instintivamente do Deus que está no controle, dá descanso,
entre dois extremos pecaminosos. No “modo e o chama apenas para tarefas possíveis de
objetivo”, tipicamente negamos os sentimen- realizar? Você está fazendo demais ou ali-
tos e evitamos as realidades da vida interior. mentando expectativas muito altas? Ou você
Durante a maior parte do tempo as pessoas está simplesmente enfrentando tentações,
são pragmáticas, não-reflexivas, guiadas por sofrimento ou aflições? Você procrastinou?
pressões externas e por exigências, medos e Precisa pedir ajuda? Quais das alternativas
alvos não expressos. No “modo subjetivo”, anteriores ou todas?! A experiência de estresse
por outro lado, somos comumente indul- chama a sua atenção.
gentes para com os sentimentos e deixamos O sentimento de estar sendo atropelado
que ocupem o lugar principal. pela vida freqüentemente impulsiona pessoas
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 47
a Deus, à auto-avaliação, à procura de ajuda. caem sobre você quando pensa no passado,
Este sentimento também dispõe as pessoas a presente ou futuro?
reagirem com excesso de trabalho, suicídio, Estas são perguntas em “tom de senti-
ira, depressão, droga ou outros meios de mentos” que convidam as pessoas a serem
fuga. O sentimento é normativo? Não. Ele honestas. Até mesmo a pergunta de que mais
tem uma causa que você precisa descobrir, e abusamos (e, por outro lado, mais difama-
existe um “meio de escape” para não ceder a mos) “Como você se sente?” tem seu lugar
ele, pois “Deus é fiel”. O sentimento é im- como meio de abrir uma porta para entrar
portante? Certo que sim. Ele é a porta pela na vida de outra pessoa. Os conselheiros sá-
qual palavras de verdade e obras de amor bios não tratam as respostas recebidas como
podem entrar em contato com a pessoa. sagradas e inquestionáveis. Mas reconhecem
As experiências e as emoções costumam que perguntas como estas permitem ganhar
registrar o que está acontecendo de bom ou conhecimento valioso e expressar preocupa-
de ruim em nosso relacionamento com Deus ção amorosa. Elas indagam: “Quem é você
e o próximo. Vou dar dois exemplos breves. e qual é o seu mundo?”.
A ansiedade, que pode deixar uma pessoa Estas perguntas também preparam o
em pânico, pode também ser uma amiga, palco para amor, conselho, encorajamento,
um sinal de que você está vivendo como se confrontação e intercessão ou louvor a Deus.
não existisse um Deus soberano no universo. Elas são pontos de partida, e não pontos
A ira, que pode destruir relacionamentos, de parada. Elas podem abrir a porta para
pode motivá-lo a atacar os problemas de penetrar no comportamento de uma pessoa,
modo construtivo e encontrar paz. Ira e seu sistema de crenças, sistema de valores e
ansiedade são inclinações que devem apenas ainda mais. Em boa parte, as tarefas de casa
ser reconhecidas e expressas? Não, elas têm para coleta de dados que os conselheiros
uma causa. Elas podem ser transformadas de bíblicos tradicionalmente têm pedido aos
modo a que honremos a Deus. Elas são im- aconselhados encontram seu ponto de parti-
portantes? Sim. São a matéria prima a partir da nas emoções e experiências. Por exemplo,
da qual podemos produzir piedade. é lógico que um aconselhado em meio a
Um viver sábio envolve estar alerta lutas faça um registro de incidentes pro-
para experiências e emoções. O alvo desta dutores de ansiedade, estresse, ira, tristeza,
autopercepção não é uma autopreocupa- cobiça ou qualquer outro foco que deva ser
ção introspectiva. Conscientização é uma considerado no aconselhamento. Emoções e
questão de integridade e honestidade. Ela experiências são com freqüência o proverbial
deve conduzir você a duas “extrospecções”: “sinal vermelho no painel de controle” que
fé e amor. desperta o conselheiro e o aconselhado para
Duas das perguntas mais úteis para fazer questões significativas.
a si mesmo ou aos outros são:
1. Que alegrias, pontos altos, deleites, Como falar com as pessoas?
propósitos ou antecipações prazerosas Como dar um retorno sábio às pessoas?
tomam conta de você quando pensa no O conselho bíblico sábio atinge com seu
passado, presente ou futuro? ensino cada campo que as pessoas costu-
2. Que tristezas, pesares, culpas, frustra- mam distorcer pelo uso da linguagem dos
ções, aflições, lutas, preocupações ou medos sentimentos.
48 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Por exemplo, o aconselhamento dos “sentimentos” e ajuda o aconselhado a
bíblico encoraja uma forma piedosa de emo- ser mais preciso.
ção em várias ocasiões. Muitas pessoas não Em outra situação, as palavras “eu sinto”
sabem que é válido experimentar aflições, podem ser uma boa maneira para comunicar
dor e tentações quando alguém as ataca. uma tentativa de compreensão. No campo
Muitas pessoas pensam que o cristão ideal físico, a frase “Eu sinto como se minhas
é um estóico que não tem sentimentos ou pernas estivessem quebradas” comunica uma
alguém com um sorriso contínuo para Jesus. combinação de experiência e conjectura. No
Mas olhe para o próprio Jesus no jardim do aconselhamento, pode ser apropriado dizer:
Getsêmani. Escolha alguns Salmos. Conte “Eu sinto (eu imagino, minha intuição diz,
quantas vezes José chorou. Ouça o que Paulo suspeito, algo me diz) que há mais alguma
diz aos Filipenses. Ele escreveu a respeito da coisa acontecendo aqui”. Talvez esta seja uma
fonte de alegria que Epafrodito representava, maneira útil para mencionar os dados que
e no mesmo trecho disse que se seu amigo estamos colhendo pela linguagem corporal
tivesse morrido ele teria tido “tristeza sobre ou tom de voz. Talvez seja uma maneira de
tristeza”. Há alguns frutos surpreendentes lidar com a intuição de que “algo não está
da árvore da justiça que o aconselhamento perfeitamente certo aqui, mas não consigo
bíblico procura produzir pelo Espírito Santo. apontar o que é de fato”. “Eu sinto” expressa
Os “gemidos” de Romanos 8 são um alvo melhor uma combinação de pensamentos,
legítimo de sabedoria e piedade? Certamen- experiências e emoções, e comunica uma
te! incerteza em aberto, que precisa ser esclare-
Por outro ângulo, embora ciente dos cida. Não é uma palavra para coisas certas,
perigos, um conselheiro pode querer usar mas para uma suposição que precisa ser
a expressão “eu sinto” em determinadas verificada.
ocasiões. Por exemplo, ao ilustrar como Mas o uso popular da palavra “sentimen-
experiências e emoções diferem de crenças to”, indicando crenças e desejos, requer uma
e desejos (e freqüentemente derivam deles!), rápida tradução para que o aconselhamento
uma história na primeira pessoa do singular proceda à luz da Bíblia e não na confusão da
poderia ajudar um aconselhado “orientado carne e da psicologia popular. Certamente
por sentimentos” a colocar em ordem a parte do processo de conduzir gentilmente o
sua confusão. “Quando eu sou difamado, aconselhado envolve incorporar parte de sua
eu sinto dor. Em geral, sinto ira, sinto-me linguagem. Seria perfeitamente apropriado
desencorajado e amedrontado, e reajo. Se eu dizer “Você sente vontade de fazer...?” ou
creio que devo ser respeitado, e que todos “Você sente que..?” para esclarecer que estou
devem gostar de mim e concordar comigo, compreendendo a pessoa. Mas isto seria o
então a minha reação - e mesmo a minha prelúdio para uma reinterpretação bíblica
experiência - é intensificada e prolongada. dos desejos e crenças do aconselhado.
Quando me arrependo das mentiras e da
cobiça que controlam a minha reação diante Conclusão
da difamação, então fico livre para perdoar e Quando você está fazendo perguntas, e
para confrontar a situação de maneira cons- oferecendo ajuda tangível ou conselho bíbli-
trutiva”. A história traz a verdade a respeito co, há espaço, tempo, maneira e propósito
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 49
para comunicar a respeito de sentimentos. trabalhar cuidadosamente o cruzamento da
Você continuará a andar em linha reta, mes- linguagem da verdade com a linguagem da
mo em um mundo pronto a fazê-lo se voltar confusão.
à esquerda ou à direita? Você será sábio,
mesmo em um mundo pronto a fazer de você “A revelação das Tuas palavras esclarece
um estulto? Os conselheiros sábios devem e dá entendimento.” (Sl 119.130).
50 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Quem Somos?
Necessidades, anseios e a imagem de
Deus no homem.
E d w a r d We l c h 1
Quais são as suas necessidades? A respos- relacionadas entre si. Por exemplo, “eu ne-
ta depende de quem está fazendo a pergunta cessito de férias” é uma forma cultural para
e do momento em que ela é feita. Se você dizer que estamos cansados da rotina diária
estivesse perdido no deserto e morrendo de do trabalho. “Eu necessito do respeito da
sede, responderia: “Água”. Se o seu pastor minha esposa” revela a crença de que você
fizesse esta pergunta durante um sermão, estará psicologicamente deficitário se essa
e especialmente se ele dissesse: “Qual é a necessidade não for suprida. “Eu necessito
sua necessidade real?”, você provavelmente de água” expressa uma necessidade biológica
responderia: “Jesus”. Mas se você fizer essa real que, quando negada, resulta de modo
pergunta no seu escritório, durante um concreto em saúde precária ou morte. “Eu
aconselhamento, as respostas podem variar: necessito de sexo” geralmente expressa um
respeito, amor, compreensão, alguém que coração lascivo, mas que engana a si mesmo
me escute, auto-estima, crianças obedientes, pensando estar pedindo apenas o suprimen-
segurança, controle, excitação... A lista é to de uma necessidade biológica. Alguns
limitada apenas pela imaginação humana. significados são quase neutros: uma esposa
Bem-vindo à palavra necessidade, um diz a seu marido: “necessitamos de um litro
dos termos mais confusos da nossa língua de leite e um pão de forma”. Outros, trazem
e mais usado por todos nós. É uma das maiores implicações—o marido retruca: “eu
primeiras palavras do vocabulário infantil, necessito de que você largue do meu pé”. O
como descendente direta de “eu quero”. que queremos dizer com “necessitar”?
E tem um campo semântico amplo e am- Nosso primeiro passo é esclarecer o uso
bíguo, podendo expressar idéias em nada desta palavra tão popular. Em seguida, um
exame mais profundo e uma reflexão bíblica
1
Tradução e adaptação de Who are we? Needs, longings,
nos conduzirão a um dos temas mais críti-
and the image of God in man. Publicado em The Journal cos do aconselhamento: a imagem de Deus
of Biblical Counseling. Glenside, Pa., v. 13 n. 1, Fall no homem. Como disse Emil Brunner, “A
1994. p. 25-38.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 51
doutrina da imagem de Deus determina o mento, mas é menos provável que falem da
destino de toda teologia”. Podemos acres- experiência sexual como necessidade.
centar que as diferenças entre vários modelos Necessidade como hipérbole para desejo é
de aconselhamento supostamente bíblicos, provavelmente a definição mais comum do
sejam elas profundas ou superficiais, tam- termo, mas há uma amplitude de significa-
bém encontram aqui a sua origem. “De que dos mesmo aqui. Por um lado, necessidade
as pessoas necessitam?” A compreensão plena é às vezes uma maneira caprichosa para
só pode ser alcançada se pudermos responder expressar um desejo. Por outro lado, a idéia
a uma outra pergunta: “O que significa ser se sobrepõe à de necessidades biológicas, um
uma pessoa?”. Em primeiro lugar, examina- segundo sentido para a palavra. Necessidades
remos a “linguagem da necessidade” como biológicas, cuja satisfação é necessária para a
recurso introdutório ao estudo da doutrina continuidade da vida física, representam o
da imagem de Deus no homem. uso mais direto da palavra necessidade. Ne-
cessitamos de água e comida. Na maioria dos
O uso popular da palavra climas, precisamos também de abrigo e rou-
necessidade pas. Se essas necessidades não são supridas,
Vamos começar com algumas definições. morremos. Necessidades biológicas passa a
O uso da palavra necessidade como forma ser uma categoria confusa somente quando
exagerada para falar em desejos é bastante empurramos para dentro dela a categoria
comum. Necessidade expressa o fato de você de necessidade como desejo2. Por exemplo,
realmente querer alguma coisa, embora “eu necessito de uma cerveja” tem passado
saiba que pode viver sem ela. Dentro dessa da categoria de necessidade como hipérbole
categoria, você ouvirá comentários como “eu para desejo para a categoria de necessidade
necessito de uma barra de chocolate”, “eu biológica. Isto é, álcool não é mais um agente
necessito de férias” ou “eu necessito de sexo”. de satisfação para um desejo que resulta de
É interessante perceber que o pré-requisito experiência, prática e lascívia; a necessidade
para essas necessidades é um conhecimento de álcool é vista como um impulso bioló-
prévio do objeto ou atividade desejados. Por gico quase irresistível. Considere também
exemplo, uma pessoa só dirá “eu necessito a expressão popular “eu necessito de sexo”.
de uma barra de chocolate” se já tiver expe- Quando ela se movimenta da categoria de
rimentado chocolate alguma vez. Se você desejo para a categoria de necessidade bio-
falar a respeito da necessidade de chocolate lógica, presumimos que sexo seja uma ne-
com pessoas que nunca comeram chocolate, cessidade biológica quase idêntica à de água
elas não reconhecerão como “necessidade”. e comida. A racionalização consiste no fato
Semelhantemente, pessoas expressarão a de considerar o autocontrole sexual como
necessidade de sexo se conhecerem pela ex- contrário à natureza, por se tratar de uma
periência uma relação sexual ou a excitação necessidade biológica. Neste caso, a única
sexual por meio de pornografia. Aqueles que
não mantiveram relações sexuais nem foram
expostos a uma cultura altamente sexualizada
2
Ou quando necessidades biológicas tornam-se
absolutas e ocupam o lugar do nosso relacionamento
não definirão a sua expectativa na área sexual com Deus (veja Mateus 6.32-33, 10.28). Deveríamos
como uma “necessidade”. Estas pessoas chamar esta categoria de necessidades como hipérbole
podem almejar por relações sexuais no casa- para subsistência.
52 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
opção é praticar sexo seguro. Abstinência e sustentadora para podermos viver. Somos
não é apenas antiquada, mas biologicamente pessoas desesperadas e necessitadas - quer
insustentável diante de nossa necessidade. o saibamos ou não. Somos completamente
Desejos exagerados e necessidades bioló- incapazes de pagar a Deus o preço dos nossos
gicas não esgotam as definições de necessida- pecados e, por nós mesmos, somos incapazes
de. Necessidades psicológicas, uma terceira de seguir os Seus mandamentos. De fato, a
definição, são uma inovação relativamente essência da fé é a consciência de que temos
recente na linguagem das necessidades. necessidade de Deus e dependemos dEle:
A idéia de necessidades intra-psíquicas e “Bem-aventurados os humildes de espírito”
psicossociais vem da psicologia do século (Mt 5.3).
XX e tem recebido, pelo menos no mundo Essa categoria bíblica distinta, necessi-
ocidental, uma acolhida entusiasta. Afirma- dade de bênçãos objetivas por parte de Deus,
se que assim como temos certas necessida- é suprema — ela faz com que todas as
des biológicas que precisam ser supridas demais sejam relativas. Mas à semelhança
para não morrermos fisicamente, temos das necessidades biológicas, a categoria de
também necessidades psicológicas que pre- necessidades espirituais tem sido muito
cisam ser satisfeitas para não nos tornarmos esticada em uso contemporâneo. De um
psicologicamente famintos e debilitados, e lado, está a necessidade objetiva e contínua
começarmos a agir mal. Em outras palavras, de perdão dos pecados e de outras bênçãos da
felicidade, estabilidade psicológica e com- redenção. Mas de outro lado, a categoria de
portamento social construtivo dependem necessidades espirituais tem se sobreposto à
da satisfação dessas necessidades. A lista das categoria de necessidades psicológicas, agora
supostas necessidades psicológicas pode ser redefinidas como necessidades espirituais.
longa, mas geralmente contém desejos vin- Os psicólogos seculares definem as neces-
culados a como avaliamos a nós mesmos ou sidades psicológicas como aquelas a serem
ao que obtemos por meio do relacionamento satisfeitas por meio de relacionamentos,
com outros: significado, aceitação, respeito, reestruturação cognitiva, realizações apro-
admiração, amor, pertencer, auto-estima, e priadas, experiências de auto-atualização. E
assim por diante. Essas necessidades, pro-
vavelmente, encaixam-se melhor em algum
lugar entre a necessidade como hipérbole para
desejo e a necessidade como hipérbole para
subsistência. Mas no uso popular, elas estão
certamente em expansão como categoria
própria: necessidade como hipérbole para um
sentido de bem-estar psicológico e social.
Há pelo menos mais um campo se-
mântico para a palavra necessidade. Esta
quarta categoria tem uma longa história:
necessidades espirituais. Necessitamos de
justiça e santidade. Necessitamos de per-
dão e poder para mudar. Necessitamos de
Jesus. Necessitamos de Sua graça redentora Figura 1. O uso popular da palavra necessidade
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 53
atualmente, muitos cristãos crêem que essas Folheie o índice de qualquer texto teológico
necessidades intra-psíquicas e psicossociais tradicional, e você não encontrará as neces-
devem ser satisfeitas no relacionamento sidades psicológicas. O único lugar em que
com Cristo. As necessidades espirituais mais elas podem ser encontradas é na história da
tradicionais, relacionadas à redenção, têm psicologia secular, com empréstimos ocasio-
sido esticadas para incluir a necessidade de nais da biologia e medicina.
auto-estima, amor e significado. A medicina tem uma longa história a
esse respeito. Por exemplo, desenvolvemos
Uma breve história das doenças quando determinadas necessidades
necessidades do nosso corpo não são satisfeitas. O corpo
Dentro do campo semântico amplo que necessita de alimento. Mais especificamente,
reúne os significados populares da palavra necessita de determinados tipos de alimento.
necessidade, quero limitar a minha discussão Insuficiência de vitamina C causou escorbu-
às necessidades psicológicas e à sua inter- to em muitos marinheiros. Insuficiência de
secção com necessidades espirituais. Com cálcio faz com que os ossos fiquem fracos e
certeza, a discussão das fronteiras cada vez frágeis. A boa saúde depende de atender às
mais indefinidas entre necessidades como necessidades do corpo. A Bíblia reconhece
desejo e necessidades biológicas é um tema este tipo de necessidades especialmente em
crítico para a igreja. Mas ele tem sido tratado Mateus 6.25-34. No que concerne à alimen-
em abordagens bíblicas do alcoolismo e da tação e vestuário, “vosso Pai celeste sabe que
homossexualidade3 enquanto o estudo das necessitais de todas estas coisas” (Mt 6.32).
necessidades psicológicas tem sido negli- O modelo de necessidades deficitárias, que
genciado. funcionou tão bem para a medicina, foi
Parece que esta categoria de necessidades mais tarde aplicado à psicologia. Entre os
entrou no pensamento cristão contemporâ- que tomaram esta metáfora por empréstimo,
neo sem qualquer consulta bíblica prévia. É Freud é o mais conhecido. Seu treinamento
uma intrusão compreensível, considerando na medicina lhe deu conhecimento das
que necessidades psicológicas é uma expe necessidades ligadas ao funcionamento do
riência quase universal. Afinal, como você se corpo, e foi preciso apenas um leve incen-
sente quando é decepcionado por um amigo, tivo para que ele aplicasse a mesma teoria
criticado injustamente ou manipulado por ao processo psicológico. Embora Freud não
alguém? As reações que estas experiências tenha usado estes mesmos termos, ele tem
provocam em você são consideradas ma- sido considerado o pai da “necessidade de
nifestações de necessidades psicológicas. expressão sexual” e da “necessidade de pais
Mas a questão é que independentemente permissivos”. As linhas básicas de seu modelo
do quanto estas experiências possam ser refletem essencialmente uma visão deficitária
comuns, as supostas necessidades que elas do ser humano necessitado.
revelam são difíceis de localizar na Bíblia. Os primeiros behavoristas, como
Dollard e Miller, tomaram por empréstimo
3
BAHNSEN, Greg. Homosexuality: a biblical view. as idéias de Freud. Eles ampliaram o modelo
Grand Rapids, Mich.: Baker, 19878. behaviorista de resposta a estímulos com a
WELCH, Edward. Addictive behavior. Grand Rapids, noção de que temos impulsos básicos que
Mich.: Baker, 1995. nos motivam, especialmente associados à
54 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
comida e ao sexo. Estes impulsos primários são uma parte essencial do ser humano, e (3)
podem estar associados a uma variedade de quando não são supridas, resultam em algum
experiências interiores, resultando em uma tipo de patologia. A esses pontos essenciais
série complexa de necessidades psicológicas podemos somar mais uma característica da
que gritam por satisfação. teoria das necessidades psicológicas defici-
Mas quem de fato deu popularidade tárias: elas são distintamente ocidentais. As
às necessidades psicológicas foi Abraham teorias das necessidades podem prosperar
Maslow. Sua teoria de autoatualização diz apenas em um contexto em que a ênfase
que temos, desde o nascimento, uma hie- está no indivíduo e não na comunidade, e
rarquia de necessidades. De acordo com onde o consumismo é um meio de vida. Se
Maslow, as necessidades mais básicas são você perguntar a um asiático ou africano a
as biológicas e de segurança. Quando essas respeito de suas necessidades psicológicas, ele
necessidades são satisfeitas, podemos passar não vai nem mesmo entender a pergunta!
para a satisfação das necessidades psicológi- À medida que a noção de necessidades
cas básicas: necessidade de pertencer e amar, psicológicas adentrou a cultura ociden-
necessidade de ser estimado por outros e tal, muitos cristãos foram imediatamente
necessidade de auto-estima. atraídos a ela. De fato, ela parece rastrear
O que faz com que as pessoas fi- o caminho para as experiências da vida e,
quem neuróticas? Minha resposta... especialmente com Freud e Maslow, ofere-
era, resumidamente, que neurose cer uma explicação para as experiências do
parecia ser em seu âmago, a prin- homem mais profunda que aquela até então
cípio, uma doença resultante de extraída da Bíblia. Por exemplo, uma esposa
uma deficiência: ela surgia a partir sofredora e carente de amor pode ter seu
da privação de certas satisfações senso de necessidade legitimado e explicado
que eu denominei necessidades, no pela adaptação de teorias psicológicas – a
mesmo sentido que água, aminoá- necessidade de amor é uma das necessidades
cidos e cálcio são necessidades - isto mais profundas com que Deus a criou. É
é, sua ausência provoca doenças. A possível, finalmente, compreender que fo-
maioria das neuroses envolviam... mos criados com necessidade de amor e que
desejos insatisfeitos de segurança, se esta não for satisfeita por meio de pessoas
pertencer, identificação, relaciona- significativas, estaremos em déficit e precisa-
mentos íntimos e amorosos, respeito remos procurar amor em algum outro lugar.
e prestígio.4 Todo tipo de pecado e dor pode resultar de
Estas três principais escolas de pensa- necessidades psicológicas não satisfeitas.
mento da psicologia secular focalizam a Escritores famosos no movimento cris-
experiência da necessidade. Embora cada tão de recuperação emocional têm admitido
uma delas tenha estabelecido um conceito as necessidades psicológicas e ajudado a
diferente para necessidades (ou estímulos), firmá-las como um guia interpretativo para
elas concordam em três pontos básicos: (1) as experiências da vida. Por exemplo, Sandra
necessidades psicológicas existem, (2) elas Wilson em seu livro, Released from shame
4
MASLOW, Abraham. Toward a psychology of being. 2nd
ed. New York: Van Nostrand, 1968. p. 21.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 55
(Liberta da vergonha), afirma em poucas abalam nosso senso de segurança e
palavras aquilo que muitas pessoas sentem: significado. O psicólogo Larry Cra-
feridas do passado colocam em evidência as bb propõe que estas são nossas duas
nossas necessidades psicológicas. necessidades emocionais principais.
Quando criança, Sara foi emo- Elas podem ser tão fortes quanto
cionalmente abandonada pelos nossas necessidades biológicas de
pais, e ela aprendeu a abrir mão alimento e sono.6
de sua necessidade legítima de As influentes Clinicas Minirth e Meier
companheirismo, encorajamento e concordam na existência de necessidades
conforto....O problema é que temer psicológicas ou de relacionamentos que
e negar necessidades e sentimentos têm base bíblica e raiz biológica. Love is a
naturais do ser humano nos impede Choice (O Amor é uma Escolha) declara de
de sermos tudo quanto Deus ten- modo claro:
cionou que fôssemos. Mas como ... temos necessidade de rece-
podemos ser mais verdadeiros, mais ber amor. É uma necessidade dada
plenamente humanos? Comecemos por Deus e que nasce com cada
por nos apropriar daquelas neces- criança. Ela é legítima e precisa ser
sidades dolorosas não supridas e satisfeita do berço até o túmulo. Se
a experimentar as emoções que as crianças são privadas de amor - se
acompanham.5 esta necessidade básica de amor
Em termos mais bíblicos, essa ilustração não for satisfeita - elas carregam as
mostra que a família de Sara pecou contra cicatrizes para o resto da vida.7
ela, e que as feridas não saram com rapidez. Em seguida, os autores oferecem uma
Mas será que Deus a criou com certas ne- metáfora para o ser humano. No mais pro-
cessidades psicológicas de companheirismo, fundo do homem há um tanque que neces-
encorajamento e conforto? Parece que Deus sita ser enchido de amor. Somos tanques que
nos criou desta maneira. Parece haver ta- se sentem vazios.
manha evidência a favor das necessidades A igreja evangélica anda lado a lado com
psicológicas, que talvez nem questionemos os teóricos seculares até este ponto, e depois
se elas foram descobertas por psicólogos que acrescenta à teoria de Maslow uma mudança
não conheciam nada da Palavra de Deus. significativa. O ponto de vista evangélico
Por que cremos que as Escrituras se man- popular, à semelhança do secular, é que os
têm relativamente caladas a respeito destes problemas surgem devido a necessidades de
aspectos supostamente centrais da condição relacionamento não satisfeitas. Todavia, a
humana? forma como estas necessidades são satisfei-
O livro evangélico Love Gone Wrong tas é distintamente evangélica. Em lugar de
(Amor Desviado) também reconhece tais procurar outro relacionamento ou algum
necessidades.
As catástrofes que levam à vul- 6
WHITEMAN, Tom, PETERSEN, Randy. Love gone
nerabilidade emocional geralmente wrong. Nashville: Thomas Nelson, 1994. p. 90.
7
HEMFELT, Robert, MINIRTH, Frank, MEIER,
WILSON, Sandra. Released from shame. Downers
5
Paul. Love is a choice. Nashville: Thomas Nelson,
Groove, Ill.: InterVarsity, 1990. p. 110. 1989. p. 34.
56 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
tipo de amor próprio para satisfazer estas etapa da história das teorias das necessida-
necessidades, os teóricos cristãos mostram des relevante para o presente. Atualmente,
que Cristo pode satisfazê-las. Cristo oferece as necessidades psicológicas são seriamente
amor incondicional e um senso de signifi- questionadas no meio secular. A adoção da
cado; Cristo satisfaz nossa necessidade de noção de necessidades e vazio interior não
companheirismo, apoio e conforto. é vista como saudável nem para o indivíduo
A princípio, isto parece plausível bibli- nem para a cultura. Por exemplo, a mídia
camente. Cristo é um amigo; Deus é um Pai critica as teorias que falam em necessidades
amoroso; crentes experimentam um senso identificando-as como justificativas teóricas
de significado e confiança por conhecer para o egoísmo implacável de nossa cultura
o amor de Deus. Isto faz com que Cristo e a vitimização crônica. Muitos observaram
seja a resposta para nossos problemas. Mas que se é verdade que temos a forma de um
desde que estas necessidades continuam sem tanque, então somos recipientes passivos
base bíblica, devemos parar para considerar em vez de intérpretes ativos e atores respon-
a possível existência de uma outra expli- sáveis em nosso mundo. A culpa nunca é
cação bíblica para a sensação de vazio. A nossa porque toda patologia é resultado de
experiência é verdadeira, mas encaixá-la em relacionamentos passados deficitários. No
necessidades constitucionais e psicológicas mínimo, diz a mídia, isto cria um caos no
pode estar errado sistema judiciário. “Não vai demorar muito
Avalie, por exemplo, alguns frutos deste até que a sentença compulsória para um
modelo psicológico evangélico. Essencial- crime violento seja um abraço.”8 A imprensa
mente, ele cria dois evangelhos diferentes: acadêmica também está desafiando a adoção
um para necessidades espirituais e outro para do tanque vazio como definição atual para
necessidades psicológicas. As boas novas para o homem. Em um artigo significativo no
necessidades espirituais são que nossos peca- American Psychologist (Psicólogo Americano),
dos estão perdoados, somos adotados como Philip Cushman argumenta que o self vazio
filhos de Deus mediante a fé e recebemos é um produto perigoso de uma cultura que
vida eterna. As boas novas para necessida- quer ser satisfeita física e materialmente.9
des psicológicas são que Cristo nos confere Os culpados, aponta Cushman, são os psi-
identidade, significado, respeito e valor pes- cólogos e a indústria publicitária. Ambos
soal. Ele nos faz sentir bem a nosso respeito. procuram criar um sentido de necessidade
Mas isto é de fato o evangelho? Será que o para vender seus produtos. Além do mais, a
evangelho, em seu sentido real, não nos alivia venda das necessidades psicológicas resultou
da preocupação com nossa própria pessoa, em uma geração de indivíduos vazios, frágeis
equipando-nos para que nos preocupemos e deprimidos.
com amar a Deus e ao próximo? É possível Este breve panorama histórico do de-
que a busca de valor pessoal ou significado senvolvimento das teorias das necessidades
seja um alvo mal orientado em sua essência? mostra que elas surgiram mais de uma cultu-
Deveríamos fazer outras perguntas como, ra afável que de uma predisposição dada por
por exemplo, “Porque estou tão interessado
em mim mesmo?”. 8
The Economist, February 26, 199, p. 15
Antes de desenvolver a fundo esta 9
CUSHMAN, Philip. Why the self is empty. American
questão, precisamos identificar mais uma Psychologist, May, 1990, p. 599.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 57
Deus. Elas podem existir confortavelmente substâncias: o corpo, a alma e o espírito. A
apenas em uma cultura orientada para o idéia comum é que o corpo físico tem ne-
indivíduo mais que para o grupo, para viti- cessidades físicas, a alma tem necessidades
mização mais que responsabilidade, e para psicológicas e o espírito tem necessidades
consumir mais que produzir. Se isto for ver- espirituais, de modo que a pessoa que tem
dade, nossa tarefa ainda consiste em explicar necessidades físicas vai ao médico, aquela que
biblicamente a experiência da necessidade, tem necessidades psicológicas vai ao psicólo-
mas não há premência em localizá-las no ato go, e a que tem necessidades espirituais vai
criativo de Deus, visto não serem necessaria- ao pastor. Essas três categorias oferecem um
mente inerentes ao ser humano. encaixe perfeito para a definição popular de
necessidades.
A teologia das necessidades: uma No entanto, embora a fórmula básica
experiência em busca da catego- pareça simples e bíblica, ela está cheia de
ria bíblica. implicações problemáticas. Ela tem dado
Conquanto existam críticas no meio permissão à psicologia secular para formatar
evangélico à categoria “necessidades um terço do ser humano. Alma passa a ser
psicológicas”,10 a noção tem persistido. Uma uma categoria em branco a ser preenchida
razão é que a maioria das pessoas sentem este com constructos da psicologia. Assim como
senso de necessidade, e é difícil argumentar a medicina tem contribuído com muitos
com o que as pessoas sentem. Outra razão é detalhes para a categoria corpo, também
que muitos cristãos acreditam que a teoria a psicologia secular pode agora contribuir
das necessidades já foi provada biblicamente. para o entendimento da categoria alma. A
Sabem que não é possível encontrar “necessi- pergunta, porém, é: será que temos uma
dades psicológicas” na concordância bíblica, alma distinta do espírito?
ou em textos teológicos, mas acreditam que
essas necessidades podem ser inferidas de A imagem de Deus no homem
categorias bíblicas de destaque: a pessoas Uma segunda categoria bíblica usada
como corpo, alma e espírito e a pessoa criada como pano de fundo para as necessidades
à imagem de Deus. psicológicas é a imagem de Deus no homem.
Esta é a doutrina central para a compreensão
A pessoa como três substâncias da pessoa. Se as necessidades psicológicas
Uma visão tricotômica do homem foi não puderem ser identificadas aqui, então
a primeira categoria aparentemente bíblica não são necessidades dadas por Deus na
escolhida para carregar o peso das necessi- criação.
dades psicológicas. Basicamente, essa visão Larry Crabb é o teórico cristão que esta-
diz que a pessoa consiste de três partes ou beleceu a ligação mais clara e explícita entre o
nosso sentido de necessidades psicológicas e
o fato de sermos criados à imagem de Deus.
10
Por exemplo, Tony Walters apresentou uma primeira Ele está plenamente ciente de que se vamos
crítica a ser seriamente considerada em Need: the New
considerar a experiência da necessidade
Religion (Downers Grove, Ill.: InterVarsity, 1986). Uma
crítica secular desafiadora foi apresentada por Wallach como parte da essência humana, ela deve
& Wallach em Psychology’s Sanction for Selfishness (San estar fundamentada na compreensão bíblica
Francisco: W. H. Freeman, 1983). da imagem de Deus no homem. Enunciando
58 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
a questão com muita clareza em seu livros para uma tarefa significativa, um desejo de
De Dentro para Fora e Como Compreender saber que somos capazes de dominar o nosso
as Pessoas,11 Crabb afirma que a imagem mundo e fazer algo valioso, e fazê-lo bem”15.
de Deus no homem tem a ver com o que é Crabb não esclarece como esta sede de im-
semelhante entre Deus e o homem. E o que pacto encontra semelhança em Deus nem
é semelhante, segundo Crabb, é que Deus procura oferecer uma base bíblica. Na falta
é uma pessoa e nós também somos pessoas. de apoio exegético, este aspecto da imagem
Ser uma pessoa significa ter anseios profun- de Deus no homem ganhou menor evidência
dos por relacionamento: “Todos temos um nos trabalhos teóricos posteriores de Crabb.
anseio que Deus colocou em nós quando No final, anseio por relacionamento foi o
nos criou: gozar relacionamentos livres de único sobrevivente, de modo que a imagem
tensões, caracterizados por uma terna acei- de Deus no homem resumiu-se ao fato de
tação mútua e por oportunidades de sermos que as pessoas são criadas para estabelecer
importantes para outrem”12. relacionamento e anseiam por relacionamen-
Anseios profundos, no modelo de Cra- to. Se este anseio não for satisfeito, seremos
bb, são a essência que define tanto Deus tanques vazios.
como o homem. Por sua vez, esses anseios são
definidos como uma experiência subjetiva
que é mais profunda que a emoção. É uma
paixão por relacionamento. Quanto a Deus,
significa que Ele existe em relacionamento
harmonioso consigo mesmo - Pai, Filho e
Espírito Santo. Também significa que Ele
“anseia pela restauração do relacionamento
com Seu povo”13. Quanto a nós, esse anseio
é mais passivo. Ele significa que “cada um de
nós deseja fervorosamente que alguém nos Figura 2. O modelo da imagem como relacionamento
veja da forma exata como somos, com todos
os nossos defeitos, e ainda nos aceite”14. Os anseios básicos são a explicação prin-
A esse anseio por amor e aceitação, cipal para os sentimentos e o comportamen-
Crabb adiciona uma segunda necessidade to do homem. Como lidar com os anseios é a
básica. Nós também ansiamos por fazer pergunta fundamental da existência humana.
uma diferença no mundo. Temos, de acordo De acordo com Crabb, respondemos a esta
com Crabb, uma “sede por impacto”. Isso é pergunta de duas maneiras. As pessoas agem
definido como “um desejo de ser adequado independentemente de Deus e buscam satis-
fação por conta própria em outros objetos
CRABB, Lawrence J. Jr. Como compreender as pessoas.
11 ou pessoas, ou olham para Cristo em atitude
São Paulo: Vida, 1998. dependente e encontram nEle satisfação para
CRABB, Lawrence J. Jr. De dentro para fora. Venda
12
seus anseios de relacionamento (veja figura
Nova, MG: Betânia, 1992.p 60. 2). Este é o modelo básico da imagem de
13
CRABB, Lawrence J. Jr. Como compreender as pessoas. Deus no homem que Como Compreender
São Paulo: Vida, 1998. p. 106.
Idem, p. 127
14 15
Idem, p. 129
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 59
as Pessoas ensina, e provê a estrutura teórica No entanto, é possível que sejamos
para o modelo de aconselhamento de Crabb. chamados a amar não tanto porque outras
É também a teologia que está no alicerce de pessoas estão vazias e necessitam de amor,
muito do que acontece no aconselhamento mas porque amor é uma das maneiras de
cristão contemporâneo. imitarmos a Cristo, revelar a Sua Pessoa pelo
Quando esse modelo é avaliado à luz nosso viver e glorificar a Deus? É também
da nossa experiência de vida, ele parece fa- possível que o centro de gravidade de um
zer pleno sentido. À semelhança de outros relacionamento baseado em necessidades seja
modelos influentes no aconselhamento, ele eu mesmo, e não Deus, como deveria ser se
parece “funcionar”. Todavia, ele tem nu- fôssemos levar a sério nossa identidade como
merosas implicações que não estão obvias possuidores da imagem de Deus? Abaixo do
à primeira vista. Por exemplo, esse modelo compromisso de amar aos outros, e da grati-
faz uma declaração forte a respeito de nosso dão a Deus por Ele satisfazer nossas necessi-
problema mais profundo: ele consiste de dades em Cristo, está um âmago de anseios
anseios e não de pecado. Mais adiante, o desesperados que focalizam essencialmente
modelo afirma que a intenção mais profunda o eu. O foco enfatizado é minha necessidade,
do evangelho é satisfazer necessidades psico- e não a perfeição de Deus, cuja imagem eu
lógicas. O “âmago oco” de anseios passa a ser fui criado para refletir. A diferença pode
nosso problema básico, e não o pecado. A parecer sutil, mas estas teorias apontam para
conclusão lógica é que Cristo, em primeiro pessoas mais que para Deus. Isso certamente
lugar, é um supridor de necessidades (para não quer dizer que Crabb e outros teóricos
nossas necessidades mais profundas) e de- cristãos não estejam interessados na glória de
pois, secundariamente, um redentor (para Deus. Mas significa que suas teorias, devido
as formas erradas como reagimos à nossas ao entendimento deficiente da imagem de
necessidades mais profundas). Deus no homem, não esclarecem que o
Os relacionamentos humanos também cristão deve fixar os olhos em Deus por
são afetados por esse fundamento teórico. Quem Ele é, e não simplesmente em busca
Por exemplo, o casamento e outros relaciona- de alguém que esteja à sua disposição para
mentos passam a ser uma forma de satisfação satisfazer minhas necessidades.
mútua para necessidades psicológicas. Com A teoria da imagem como relacionamen-
certeza, Crabb mostra que as pessoas não são to encontra pouco apoio exegético. Nem
capazes por si mesmas de satisfazerem aquilo Como Compreender as Pessoas nem outra
que somente Deus pode satisfazer, de forma qualquer discussão evangélica desta versão da
que não temos a responsabilidade plena de imagem de Deus no homem conseguiu esta-
satisfazer os anseios de outrem. Ainda assim, belecer um fundamento bíblico claro. Pelo
a estrutura básica do casamento consiste de contrário, como o próprio Crabb admite,
duas pessoas psicologicamente necessitadas essa categoria teológica tão crucial é desen-
que se satisfazem mutuamente como expres- volvida a partir de inferências nas Escrituras.
são da satisfação mais perfeita oferecida por Falando sobre os anseios com que fomos
Deus. Isso parece calhar bem na experiência criados, Crabb diz: “As Escrituras, contu-
do casamento, e também parece se ajustar à do, parecem não dizer nada a respeito”16. É
perspectiva bíblica de amor. Pessoas devem
amar porque outros precisam de amor. 16
Idem, p. 125
60 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
devido a esta falta de apoio exegético que é é composto de duas substâncias, corpo ma-
essencial reexaminarmos o tema bíblico da terial e alma imaterial: “Não temais os que
imagem de Deus no homem. matam o corpo [substância material] e não
podem matar a alma [substância imaterial].
Um exame bíblico das 1 Coríntios 7.34 também diz que somos
necessidades formados de duas substâncias - material e
Em contraste com a perspectiva trico- imaterial - mas elas são identificadas como
tômica do homem17 e um entendimento da corpo e espírito, e não como corpo e alma.
imagem de Deus no homem baseado em Tiago 2.26 é consistente com esta dualidade
necessidades, há alternativas que se apóiam e usa os termos corpo e espírito: “o corpo
em um fundamento exegético sólido. sem espírito é morto”.
As duas passagens citadas com maior fre-
A pessoa como dualidade qüência para a visão tricotômica são Hebreus
A visão tricotômica tem origem na exis- 4.12 e 1 Tessalonicenses 5.23. Hebreus 4.12
tência de diferentes nuanças de significado afirma: “Porque a palavra de Deus é viva, e
para os termos espírito e alma. Como muitas eficaz, e mais cortante do que qualquer es-
outras palavras, estas duas têm limites vagos. pada de dois gumes, e penetra até ao ponto
Elas não são palavras técnicas como elétron, de dividir alma e espírito, juntas e medulas,
mas são mais semelhantes à palavra neces- e é apta para discernir os pensamentos e pro-
sidade, derivando muito de seu significado pósitos do coração”. Alguns acreditam que o
do contexto. A questão, todavia, é se estas texto esteja se referindo a dissecar o homem
nuanças de significado são suficientes para em partes. Ou seja, se a Palavra de Deus pode
indicar que há duas substâncias distintas separar a alma do espírito, então estamos
criadas por Deus. Ou será que espírito e diante de duas substâncias distintas. Mas se
alma (como coração, mente, consciência) a intenção da passagem é falar tecnicamente
não são perspectivas ligeiramente diferentes sobre as partes que constituem o homem,
do homem interior imaterial (2 Co 4.16)? então ela cita pelo menos quatro substâncias
Um número considerável de passagens que fazem parte do todo: alma, espírito,
bíblicas indicam que o homem é melhor corpo e coração; e o coração ainda poderia
entendido como duas substâncias - material ser dividido em pensamentos e propósitos.
e imaterial - “que formam uma unidade em- Parece mais correto dizer que esta passagem
bora possuam a capacidade de se separar”18. afirma que Palavra de Deus penetra nos as-
De acordo com esta posição, espírito e alma pectos indivisíveis do homem. Ela alcança o
têm ênfases diferentes, mas são essencial- mais profundo do ser humano. Ela penetra
mente duas perspectivas intercambiáveis no interior da substância do homem, não en-
para a parte imaterial do homem. Por tre substâncias, fatiando em pedaços distin-
exemplo, Mateus 10.28 diz que o homem tos. O fato de se fazer referência ao homem
interior como alma, espírito e coração é um
recurso poético comum para enfatizar que o
17
Nem todos os teólogos que sustentam a visão
homem é considerado como um todo. Por
tricotômica forçam uma distinção técnica e precisa
entre alma e espírito. exemplo, Marcos 12.30 indica que devemos
GUNDRY, Robert. Soma in biblical theology. Cambridge:
18 amar a Deus “de todo o coração, de toda a
Cambridge University Press, 1976. alma, de todo o entendimento e de toda a
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 61
força”. O acúmulo de termos é usado para quem Deus é, e depois para como o homem
expressar inteireza. É uma maneira forte de se assemelha a Ele.
enfatizar que amar a Deus é uma resposta
do homem por inteiro. Quem é Deus e qual
Talvez o máximo que a Bíblia pode dizer a Sua paixão?
sobre a distinção entre alma e espírito é que Deus e Seu reino, em resumo, dizem
alma enfatiza a pessoa em sua existência fra- respeito a Deus. O Pai se compraz no Filho.
ca, terrena, e espírito destaca nossa vida como O Filho está absorto no Pai e não quer nada
derivada de Deus. Nenhum dos termos a não ser a vontade do Pai. O prazer maior de
afirma que temos necessidades psicológicas Deus está em Si mesmo.19 Isso pode parecer
e moralmente neutras. Em vez disso, elas estranho a princípio, mas como poderíamos
são palavras que se sobrepõem referindo-se esperar que Deus fosse consumido com qual-
ao homem interior, o aspecto imaterial do quer coisa que não Sua própria perfeição e
ser humano ou da pessoa que vive diante do santidade? O alvo de Deus é a própria glória,
Deus Santo. e a glória de Deus é o próprio Deus. Ele quer
magnificar o Seu grande nome. “Porque
A imagem de Deus no homem dele, e por meio dele, e para ele são todas
Um entendimento bíblico da doutrina as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.
da imagem de Deus no homem igualmente Amém!” (Rm 11.36).
se distancia do entendimento baseado em Perceba a diferença entre o que acaba-
necessidades. A compreensão apropriada da mos de dizer e aquilo que ouvimos e lemos
imagem de Deus nos ensina a ver o homem, sobre a imagem de Deus definida em termos
em sua verdadeira essência, como um ser que de anseios. Na psicologia das necessidades,
vive diante de Deus e para Deus. Os seres a expressão de louvor a Deus tem base na-
humanos não são definidos essencialmente quilo que Ele fez por mim. Mas a Bíblia diz
como pessoas que anseiam por relaciona- que, embora Deus mereça agradecimento
mento. humilde por aquilo que Ele fez por mim, Ele
Para estabelecer uma base exegética sóli- é digno de louvor simplesmente porque Ele é
da, consideraremos duas perguntas cruciais Deus. Nossos pensamentos devem descansar
feita por Crabb: “Quem é Deus” e “Como naturalmente no grande “Deus da glória” (At
o homem se assemelha a Deus?”. Imagem 7.2), e não em nossos anseios pessoais. Vista
tem a ver com semelhança, produto, ou e entendida de maneira correta, esta glória é
analogia (p. ex., Gn 5.3), de modo que consumidora. Os israelitas não irromperam
qualquer doutrina da imagem de Deus pre- em cânticos porque seus anseios foram satis-
cisa considerar o conhecimento de Deus e feitos; eles exaltaram a Deus simplesmente
o conhecimento do homem. Somente após porque Ele é exaltado: “Ó SENHOR, quem
adquirir um correto entendimento de Deus é como tu entre os deuses? Quem é como
é que podemos começar a perguntar “Quem tu, glorificado em santidade, terrível em
é o homem?”. Como João Calvino disse,
“homem algum pode fazer um exame de si
mesmo sem ter que imediatamente se voltar 19
Uma abordagem útil a respeito deste tema encontra-
para a contemplação do Deus em quem ele se no livro de John Piper The Pleasures of God
vive e se move”. Olharemos primeiro para (Multnomah: Multnomah Press, 1991).
62 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
feitos gloriosos, que operas maravilhas?” dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua
(Ex 15.11). glória” (Is 6.3).
Olhe por um momento para esta glória. Essa gloriosa santidade imponente cer-
Ela é arrasadora. Veja-a em sua grandeza tamente expressa a natureza transcendente
acima de todos os maiores e mais poderosos de Deus, deixando óbvio que Ele é único e
reis da terra, em Seus sinais extraordinários sem par, e enfatizando que Ele é intocável
diante de Faraó e Seu controle até mesmo so- e distinto de Suas criaturas. Todavia, Sua
bre a sanidade de Nabucodonozor. O trono alteridade transcendente não capta comple-
de Deus está acima de todos os demais. Isaías tamente Sua santidade gloriosa. Embora seja
ficou assombrado diante da grande glória de verdade que Deus é incomparável e deve ser
Deus (Is 6). E a visão da Sua glória registrada temido, Sua santidade gloriosa é manifestada
por Ezequiel (Ez 1) e o apóstolo João (Ap 4) em atos poderosos de envolvimento íntimo
é espantosa, quase impossível de ser descri- com Seu povo. De modo bem concreto, as
ta. Sempre que Deus apareceu a Seu povo, duas expressões principais desse envolvimen-
foi em glória. Sua glória enche toda a terra to íntimo e diário de Deus com Seu povo são
(Nm 14.21). Até mesmo a criação faz eco ao Seu amor e Sua justiça.20 Deus é gracioso e
clamor celeste de “glória” (Sl 8, 148, 150). compassivo, lento para se irar e abundante
Quando Deus apareceu aos israelitas mur- em amor, mas Ele também não deixa o
muradores, “eis que a glória do SENHOR culpado sem punição (Ex 34.7). O Novo
apareceu na nuvem” (Êx 16.10)— um brilho Testamento é a história do amor encarnado,
que era intenso como o fogo e vital como mas Jesus também reivindicou para Si um
o sol. Quando o tabernáculo foi levantado, ministério de justiça e julgamento. Diante
“Moisés não podia entrar na tenda da con- disso, Paulo pede que consideremos “a bon-
gregação, porque a nuvem permanecia sobre dade e a severidade de Deus” (Rm 11.22).
ela, e a glória do SENHOR enchia o taberná- Seria possível considerar anseio por
culo” (Ex 40.35). Agora que esse tabernáculo relacionamento como um dos atributos
tomou forma humana na pessoa de Cristo, centrais de Deus, como se Deus tivesse um
e à medida que nós refletimos Sua glória, o déficit a ser preenchido nesta área? Esta idéia
maior desejo de Deus é que esta glória seja distancia-se do retrato bíblico do Deus da
conhecida por toda a terra. glória, e motiva a ortodoxia a se preocupar
Vários termos são usados quase que de em defender a verdade da auto-existência de
modo permutável com glória: santidade, Deus. Em lugar de ansiar por relacionamen-
honra, brilho, Seu grande nome, beleza, es- to, na busca de conseguir algo que O possa
plendor, e majestade. O principal entre estes satisfazer, Deus opera ativamente nos relacio-
é santidade. A santidade gloriosa de Deus namentos arruinados pelo pecado humano.
resume Sua Pessoa. O Santo dos Santos é o A atividade do Deus de amor reconcilia e
lugar de Sua presença. O livro de Levítico restaura estes relacionamentos, ensinando
é um livro de santidade, e resume a tarefa pessoas egoístas a amar a Ele e a outrem.
do homem dentro da aliança como “sereis Olhe mais uma vez para a santidade
santos, porque eu sou santo”(Lv 11.44). gloriosa de Deus. Ela é expressa não apenas
Um olhar de relance na sala do trono é 20
Richard Loverace, em seu livro Renewal (Downer
acompanhado inevitavelmente pelo ressoar Grove, Ill.: InterVarsity, 1985), usa amor e justiça como
do coro: “Santo, santo, santo é o SENHOR resumo dos atributos de Deus.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 63
do original. Eu sou um pai porque Deus é
um pai. Eu sou um trabalhador porque Deus
é o trabalhador original (figura 3).
Todos estes retratos se juntam em um
único quando presenciamos a santidade
gloriosa em Jesus Cristo, a imagem da glória
de Deus (Hb 1.3). “E o Verbo se fez carne e
habitou entre nós, cheio de graça e de ver-
dade, e vimos a sua glória, glória como do
unigênito do Pai.” (Jo 1.14) Ele é chamado
“o Santo de Deus” (Mc 1.24; Jo 6.69). Sua
paixão, como era de se esperar, foi a glória
do Pai, e não um anseio por relacionamento
Figura 3. Um resumo dos atributos de Deus abstrato. Por exemplo, antes da crucificação,
Sua oração foi: “Pai, glorifica o Teu nome”
por cenas imponentes que retratam Seu tro- (Jo 12.28). Em Sua oração, pouco antes
no, mas também é comunicada por figuras de ser preso, Jesus pediu a Seu “Pai justo”
mais familiares. Por exemplo, Ele é o noivo (Jo 17.25) que glorificasse o Filho para que
amoroso que espera a noiva imaculada. Ele este, por sua vez, pudesse glorificar o Pai. O
é o anfitrião que convida a todos para o desejo mais profundo do coração de Jesus
banquete, mas espera que os participantes era a glória de Seu Santo Pai, e esse desejo
vistam as roupas que lhes foram dadas. Ele foi expresso em amor e justiça. Este é Aquele
é o redentor que redime Sião com justiça (Is em quem devemos fixar os olhos em busca
1.27). Ele é o juiz sobre toda a terra, e Seu de sermos possuidores da imagem do Deus
próprio Filho fez-se advogado de Seu povo Altíssimo.
inglório. Ele é o pai, a mãe, o filho submis-
so, o servo sofredor, amigo, pastor, oleiro, Quem é o homem?
e assim por diante. Certamente, imagens Munido de um entendimento de Deus,
e retratos de Deus estão por toda parte na a pergunta “Quem é o homem?” passa a
Bíblia, e cada retrato é uma expressão de Sua ser perfeitamente viável. Como o homem
santidade gloriosa. se assemelha ao Deus Criador? O objeto
Essas fotos instantâneas que Deus nos da maior afeição de Deus é Ele mesmo: o
dá de Si mesmo são muito mais que uma Pai, o Filho e o Espírito. Como resultado
acomodação da Sua Pessoa à linguagem hu- deste grande amor pela Sua glória, Deus
mana. Deus não está usando o nosso enten- quer que a Sua glória encha toda a terra. O
dimento da palavra servo para dizer que Ele é homem é semelhante a Deus no sentido de
semelhante a um servo. Não, Deus é o servo, que o objeto de suas afeições deve ser Deus,
o marido, o pai, o irmão e o amigo. Qualquer assim como o próprio Deus se agrada nEle
semelhança com o mundo criado devese mesmo. Isso é expresso mediante uma paixão
simplesmente à glória de Deus derramada por proclamar a glória de Deus. Devemos
na criação e nas criaturas. Toda vez que você fazer o Seu nome famoso, ou seja, santificá-
reconhecer essas imagens em outras pessoas, lO ao redor do mundo; devemos declarar
embora distorcidas, elas são um tênue reflexo a vinda do Seu reino glorioso. Como diz o
64 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Catecismo de Westminster, o fim principal da Sua vontade; o outro, para longe de Deus
do homem é glorificar a Deus e desfrutá-lo como servos de nossos anseios.
para sempre. Uma diferença óbvia entre a imagem
Em lugar de um tanque de amor ou um como necessidade de relacionamento e a
âmago oco, a imagem mais precisa é aquela imagem como reflexo de glória está em onde
de Moisés literalmente refletindo a glória de situamos a própria imagem. A teoria das
Deus (Ex 34.29-32). Moisés estava radiante necessidades diz que a imagem de Deus no
porque fora convidado à presença de Deus homem é um lugar dentro do próprio ho-
e presenciara a santidade gloriosa de Deus mem. É um ponto - um âmago oco - passivo
bem como fora protegido dela. Conquanto e facilmente prejudicável. Mas a imagem
isso possa parecer maravilhoso, Deus fez os como promotora ativa de glória define o ho-
possuidores renovados da Sua imagem ainda mem como um ser ativo, que glorifica a Deus
mais gloriosos que Moisés. O povo de Deus ou a si mesmo. Neste sentido, a imagem de
certamente ainda depende de Sua presença Deus no homem é um verbo. Fé, o meio pelo
para ser possuidor da Sua glória, mas a qual refletimos a imagem, é expressa pela
Sua presença não é mais dada por meio de nossa maneira de viver, em vários sinônimos:
teofanias ocasionais nem é dependente do imitar a Deus (Ef 5.1), representar a Deus
tabernáculo. O povo de Deus entra hoje em (2 Co 5.20), espelhar ou refletir a glória de
Sua presença pela fé. O Espírito Santo vem Deus (Ex 34.29-35), amar a Deus, e viver de
habitar em nós pela fé e, como resultado, acordo com a Sua vontade. Sempre que estas
podemos nos tornar cada vez mais radiantes, expressões de ação aparecem nas Escrituras,
tomados de um brilho que não desvanece. atrás delas está a doutrina da imagem de
“E todos nós, com o rosto desvendado, con- Deus no homem.
templando, como por espelho, a glória do Será que anseio por relacionamento é de
Senhor, somos transformados, de glória em fato um dos atributos centrais do homem,
glória, na sua própria imagem, como pelo como se tivéssemos um déficit a ser preenchi-
Senhor, o Espírito” (2Co 3.18). do no que diz respeito a necessidades? Assim
Isso significa que a essência da imagem como vimos que isso não é verdadeiro com
de Deus no homem está em nos alegrarmos relação a Deus, também não é verdadeiro
na presença de Deus, amarmos a Ele acima para o homem criado à imagem de Deus.
de tudo mais, e vivermos para a glória de A verdade bíblica é que todas as pessoas
Deus, não para a nossa. À medida que apren- já existem em relacionamento com Deus
demos a amar a Deus e ao próximo pela gra- e o próximo: maus relacionamentos. Estes
ça, expressamos a imagem gloriosa de Deus. relacionamentos são maus por uma razão
O centro de gravidade no universo de Deus específica: o pecado e a distorção da imagem
é Sua santidade gloriosa - não os nossos an- de Deus. A Bíblia conduz nossa atenção para
seios. E a pergunta mais básica da existência a causa, e não para o resultado ou para nosso
humana passa a ser “Como posso glorificar desejo de que o resultado fosse diferente. Po-
a Deus?”, em lugar de “Como meus anseios demos ansiar por gozar de relacionamentos
serão satisfeitos?”. Essas diferenças produzem livres de tensão e cheios de profunda aceita-
uma luta no nosso coração: um lado atrai- ção amorosa. Mas a preocupação com este
nos constantemente para Deus como servos anseio afasta-nos da questão principal: será
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 65
que nós mesmos amamos, aceitamos a ou- coração das Escrituras: “a fé atua pelo amor”
trem e somos pacificadores? Jesus resumiu a (Gl 5.6). Os possuidores da imagem de Deus
questão central da vida humana não em uma expressam-se em atos sinceros de obediência,
declaração sobre nossos anseios, mas nos aparentemente pequenos, mas que têm im-
dois Grandes Mandamentos. Estes mostram plicações eternas. Os possuidores da imagem
exatamente como fracassamos em refletir a de Deus amam a Deus e ao próximo. Esta é
imagem de Deus. Mas Jesus, o possuidor a idéia básica: a glória de Deus é manifestada
perfeito da imagem de Deus, encarnou o por meio de atos concretos de amor e justiça,
amor a Deus e ao próximo quando suportou e como possuidores da Sua imagem devemos
relacionamentos desgastantes, traição e atro- imitar a Deus em amor e justiça.
cidades nas mãos de homens, e finalmente Como podemos expressar amor e justi-
o cálice da ira de Deus. Jesus exemplificou ça? Imitando, em nome de Cristo, os vários
a imagem renovada de Deus, mas não o fez retratos de Deus fornecidos nas Escrituras.
buscando em Deus a satisfação de anseios Um pai que, por Cristo, joga futebol com
seus filhos está refletindo a imagem de Deus
que investe tempo em Seu povo. Um filho
que arruma a mesa ou lava a louça do jantar
em obediência a Cristo está refletindo a ima-
gem do Deus servo, e glorificando a Deus.
Um trabalhador que cumpre sua tarefa no
mundo com o desejo de servir a Cristo está
refletindo a imagem do Filho que trabalhou
por nós (figura 4).
Munidos de um entendimento bíblico
do que significa refletir a imagem de Deus,
podemos identificá-la agora em toda a Escri-
tura. A Bíblia passa a ser a história da imagem
de Deus desfigurada e mais tarde renovada.
Em Gênesis 1, o homem é chamado a glo-
rificar a Deus ou representá-lO, refletindo
Figura 4. Relacionamento e semelhanças
entre Deus e o homem a Sua imagem ao administrar o reino e se
reproduzir. A necessidade central de Adão
instintivos por relacionamento e aceitação. era ter prazer na presença de Deus, amar e
Pelo contrário, Ele o fez mediante a fé, glorificar a Deus. Esse amor era expresso no
preenchendo as condições para ser aceito. cuidado para com a criação, na reprodução
Hoje somos aceitos pela graça, porque Ele e na obediência à ordem de não comer da
foi aceito, e somos transformados progressi- árvore proibida. Mas refletir a imagem de
vamente pela graça para sermos semelhantes Deus é algo que não podemos fazer sozinhos,
a Ele na fé e obediência. é algo que compartilhamos com outros.
Quando o fato de sermos possuidores da Apenas Deus a possui por completo. Em
imagem de Deus determina nossa maneira um sentido prático, a ordem de Deus para
de viver, em lugar de determinar aquilo que reproduzir, como meio de Lhe dar glória, não
queremos receber, chegamos diretamente ao podia ser cumprida por um único indivíduo.
66 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Por isso Deus criou o homem e a mulher à Será que a origem dos anseios psicológicos
Sua imagem. está na recusa de amar a Deus e receber o
Necessitamos uns dos outros, mas não Seu amor? Será que, a partir de Adão, o
para satisfazer necessidades psicológicas ímpeto da vida humana não começou a se
deficitárias. Precisamos uns dos outros por- mover para dentro, em direção aos desejos
que a ordem para se reproduzir e exercer do eu, em lugar de para fora, em direção a
mordomia sobre a criação, bem como sua desejar conhecer e fazer a vontade de Deus?
companheira neotestamentária - a Grande Não queremos dizer com isso que o pecado
Comissão - não pode ser cumprida por uma original consistiu em gostar de ser amado.
pessoa sozinha. Necessitamos de outros para Certamente não foi. E também não quere-
nos ajudarmos “uns aos outros” a crescer à mos dizer que a ferida profunda que resulta
imagem de Deus. A glória de Deus é mani- de uma experiência de rejeição é algo errado.
festada em sua plenitude pelo corpo e não Não é. Encontrar prazer em receber amor e
apenas pelo indivíduo. Necessitamos de mis- ter satisfação quando da execução de um tra-
sionários, mães, pais, pastores, professores de balho são dádivas boas, e ficar ferido quando
escola dominical e zeladores para que a igreja outros pecam contra nós é como deveríamos
funcione de acordo com o propósito de Deus reagir. Mas como toda idolatria, a questão
(1 Co 12.12-27). Os possuidores da imagem não é tanto o que desejamos, mas o quanto
de Deus não são solitários. o desejamos e porque.
A história das Escrituras fala de imagem Anseios têm muito a ver com cobiça.
caída. Embora o homem continue a ser Elevar nosso desejo de amor, impacto ou
possuidor da imagem de Deus, a desobedi- outros prazeres a ponto de serem necessida-
ência de Adão resultou em mudanças fun- des é gritar: “EU QUERO. Eu preciso ter.
damentais. A direção do coração humano se Meus desejos são o alicerce do meu mundo”.
voltou de Deus para si mesmo. No jardim, Estes anseios não existiriam se estivéssemos
o homem começou a repetir um refrão que dispostos a amar a Deus e não a nós mes-
persistirá até a volta de Cristo: “Eu QUE- mos. Uma resposta bíblica a estas paixões é
RO”. “Eu quero glória para mim, em lugar arrependimento, e não a busca de satisfação,
de dar toda a glória a Deus.” “Amarei meus mesmo que um senso temporário de satis-
desejos pessoais, em lugar de amar a Deus.” fação possa ser aparentemente encontrado
Essa disposição é conhecida como idolatria, em Cristo. Digo “temporário” porque as
e definida como insensatez: renunciamos paixões nunca podem ser completamente
a nosso status de possuidores da imagem satisfeitas, e porque o Cristo verdadeiro está
de Deus e trocamos a glória de Deus pela trabalhando para destruir os anseios arden-
imagem de criaturas (Jr 2.11; Os 4.7, Rm tes, em lugar de satisfazê-los. O tanque de
1.21-25). necessidades psicológicas deve ser quebrado,
Até aqui, a Bíblia parece se manter ca- em lugar de enchido.
lada sobre as necessidades psicológicas. Ela Quando certo filme cristão sugeriu que
diz que dependemos de Deus para todas um adolescente pode ser atraído a Cristo
as coisas, mas mantém silêncio quanto aos pela isca de notas melhores após a conversão,
anseios por amor e significado. Será que o não estaria fazendo um apelo às paixões em
“EU QUERO” de Adão teria sido a primei- lugar de apontar para o perdão de Cristo
ra expressão de necessidades psicológicas? para aquelas paixões? O evangelismo dos
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 67
israelitas nunca chamou os vizinhos idóla- “raça eleita, sacerdócio real, nação santa,
tras à adoração do Deus verdadeiro porque povo de propriedade exclusiva de Deus (1Pe
Yahweh proporcionaria melhores colheitas 2.9), além de que desempenham o papel de
que seus ídolos. Na Palavra de Deus, as bonitas vestes nupciais que o povo de Deus
pessoas eram chamadas, e são chamadas, a vestirá na consumação dos tempos, quando
se voltarem de seus ídolos porque a idolatria Ele tiver completado o processo de renovação
é contrária a Deus. da imagem.
Muito embora desde Adão o homem No Novo Testamento, os livros que tra-
procure satisfazer os próprios desejos em lu- tam com maior profundidade da doutrina da
gar de obedecer a Deus, Deus ainda tenciona imagem de Deus no homem são Romanos e
glorificar a Si mesmo, e isso é exatamente o Efésios. Romanos 1.18-23 é o texto clássico
que Ele fez no Antigo Testamento. O fato do Novo Testamento que resume a imagem
do homem ter perdido o status de possuidor desfigurada. Ele mostra que todos nós - cren-
da imagem de Deus resultou, na verdade, tes e descrentes - conhecemos a Deus (1.21).
em maior glória para Deus. Deus recolheu Conhecemos a natureza divina de Deus e
os destroços, escolheu para Si homens que seus decretos justos, mas seguimos a ídolos
foram chamados pelo Seu nome - como Sete, em lugar de viver para a glória de Deus. A
Noé e Abraão - e destes fez surgir uma na- conseqüência é que todos os possuidores da
ção chamada a ser representante dEle como imagem ficam aquém da glória que teriam
possuidora da Sua imagem:“Santos sereis, se confiassem apenas em Deus (3.23). O
porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou apóstolo Paulo contrapõe a este cenário a
santo” (Lv 19.2). graça de Deus, que dá vida. O resultado é
Como prévia daquilo que haveria de que somos feitos Sua descendência.
vir, Deus escolheu sacerdotes de entre o O livro de Efésios também se detém nes-
povo para que O representassem servindo ta doutrina. Ele mostra que fomos adotados
exclusivamente diante dEle no tabernáculo. “para louvor da glória de sua graça” (1.6) e
No entanto, à semelhança de Adão e Eva, “somos feitura dele, criados em Cristo Jesus
os sacerdotes estavam nus e envergonhados para boas obras” (2.10). Espelhamos a Cristo
diante de Deus. Eles necessitavam da cober- com maior clareza quando há unidade entre
tura de Deus para ministrar em Sua presença. o povo de Deus (2.19-22). Somos descen-
Deus fez então vestes que em nada deviam dência de Deus (3.15). Podemos andar na
a trajes reais. Estas vestes conferiram-lhes escuridão, vivendo por nós mesmos, ou
“glória e ornamento” (Ex 28.2) e incluíam, podemos andar na luz (4.17ss). Deus está
entre outros itens que refletiam a imagem de criando em nós um “novo homem, criado
Deus, “uma lâmina de ouro puro gravada à segundo Deus, em justiça e retidão proce-
maneira de gravuras de sinetes: Santidade ao dentes da verdade” (4.24). Como isso acon-
SENHOR” (Êx 28.36). tece? Deus nos deu vida em Cristo, e agora
No Novo Testamento, em Cristo, estas nós O imitamos (5.1) com passos fiéis de
vestes estão disponíveis a todos. Elas são obediência diária, tais como falar a verdade,
dadas livremente, mas precisam ser usadas. trabalhar diligentemente, falar palavras que
Elas são essenciais para glorificar a Deus. Elas edificam, amar a esposa, submeter-se ao
também instituem o povo de Deus como marido e obedecer aos pais.
68 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Necessidades revisadas Outras explicações para este vazio têm
Então, qual é a nossa necessidade real? origem no fato de vivermos em um mundo
As Escrituras dizem, em algum lugar, que pecaminoso que está debaixo de maldição,
necessitamos de relacionamento para sa- e onde outros pecam contra nós. Por exem-
tisfazer anseios? Elas dizem que temos um plo, quando um cônjuge morre, o vazio é
anseio por significado e valor dado por Deus? uma reação bíblica apropriada. Algo belo
Não. As Escrituras mostram que necessita- foi removido da vida (necessidade como
mos de Deus, mas necessitamos dEle como desejo). Há um grande senso de perda. Esse
imagem que devemos refletir, necessitamos vazio, todavia, é conseqüência da maldição
dEle porque temos necessidades espirituais, estampando-se em nossa psique, e não o
e necessitamos dEle para o próprio fôlego resultado de termos sido criados com anseios
de vida. As Escrituras também mostram que psicológicos.
necessitamos uns dos outros, mas não para E quanto à crença comum de que temos
preencher um vazio de criação. Necessitamos um coração com a forma exata de Deus,
uns dos outros para refletir a glória de Deus, que pode ser saciado apenas por Deus? É
visto que a comissão que Ele deu a Seu povo certamente uma verdade. Mas o vazio, neste
deve ser cumprida corporativamente. caso, é uma expressão de que necessitamos
E então, por que muitas pessoas se sen- da justiça de Deus para substituir nossa
tem vazias? De onde vêm estas necessidades? condição espiritual deficitária. Ainda mais,
Existem algumas possibilidades bíblicas. A o senso de vazio lembra-nos de que não
maneira bíblica mais óbvia de reestruturar temos nenhuma capacidade para reparar
a noção popular de necessidades é que os nossos próprios pecados. Não encontramos
anseios ou necessidades, especialmente nada em nós mesmos que alcance a retidão
necessidades psicológicas, podem ser um de Deus. Todavia, quando nos voltamos do
eufemismo para paixões e idolatria. Anseios pecado para Cristo, há um senso de satisfa-
podem revelar uma preocupação excessiva ção divina que nos faz transbordantes - mais
com o eu e seus desejos. que cheios - do amor de Cristo. Qual é a
Também é possível que o vazio e o senso nossa verdadeira necessidade? Necessita-
de necessidade psicológica sejam um ressoar mos ser atingidos pela a glória de Deus, ser
distante do conhecimento universal de Deus cativados por Seu amor, e ser fiéis à medida
e de Sua santidade de acordo com Roma- que andamos em obediência a Ele, mesmo
nos 1. Ou seja, nós de fato estamos vazios no sofrimento.
diante de Deus, mas visto se tratar de uma
verdade tão assustadora, preferimos que ela Aconselhando possuidores da
seja reprimida e experimentada como uma imagem de Deus
necessidade de relacionamento com pessoas Que diferença prática faz a idéia de que a
(necessidades psicológica) e não com Deus imagem de Deus no homem expressa-se por
(necessidade espiritual). De acordo com esta glorificarmos ativamente a Ele? Na criação
perspectiva, a preocupação com a baixa auto- de filhos, significa dirigir-se à consciência da
estima é mais precisamente um eco distante criança (o conhecimento inato de Deus e do
da lei de Deus que diz que, por nós mesmos, certo e errado) mais que a um senso de an-
não estamos à altura da lei de Deus. seios insatisfeitos. Quando você chama seus
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 69
filhos à obediência, você quer atingir o mais pecado cometido contra nós é quase que um
profundo do seu coração e lembrar que eles tiro mortal que danifica o âmago do nosso
estão servindo a Cristo, e não a si mesmos. ser, a dor é intensificada. Por exemplo, se
Aos adolescentes apontamos a grandeza de alguém nos rouba uma jóia preciosa, é muito
Deus e as necessidades espirituais, em lugar triste; mas se aquela jóia era o único recurso
de apontar a maneira como Jesus pode financeiro para a aposentaria, então a perda
satisfazer a cobiça por significado. No acon- sentida é muito maior. Uma das primeiras
selhamento, levamos as pessoas a necessitar tarefas do aconselhamento é fazer distinção
menos e amar mais. Em lugar de identificar entre a dor real e a dor ampliada por nossas
os anseios e esperar que Cristo os satisfaça, paixões e anseios. O resultado será uma
alguns desses anseios são mortificados. tristeza natural, piedosa.21
Nancy é uma esposa de 25 anos, mãe Considerando com Nancy aquilo que
de duas crianças. Ela conviveu com um pai Deus diz aos que sofrem, a pergunta pode
que costumava estar bêbado e uma mãe que ser “De que você necessita?”. No contexto
ignorava suas súplicas quando o pai a tratava de Nancy, a resposta mais provável seria:
com crueldade. Nancy cresceu sentindo-se “Necessito de que meu marido me escute e
sem valor e vazia. Ela procurou aconselha- satisfaça minhas necessidades emocionais”.
mento por achar que seu marido não estava Uma outra pergunta pode vir a seguir:
satisfazendo as suas necessidades; em con- “Nancy, você já percebeu que tendemos a ser
seqüência, ela se expressava alternadamente controlados pelas coisas de que necessitamos?
com ira ou depressão. Talvez fosse melhor perguntar ‘De que você
Sem dúvida, é triste presenciar uma his- necessita?’ de uma maneira diferente: ‘O que
tória de crueldade e negligência na própria controla a sua vida?’ ou ‘Em quem ou no que
família, e Nancy precisava entender o que você deposita a sua confiança?’”.
Deus diz àqueles que foram prejudicados Gradualmente, à medida que Nancy
por outrem. Mas se o senso de falta de valor começa a perceber que o problema principal
e vazio levou Nancy a crer na idéia de que está em decidir em quem ela irá confiar, sua
interiormente ela tinha o formato de um necessidade de marido pode ser identificada
tanque vazio de amor, então ela precisava com o termo bíblico temor ao homem. À
também ser reformatada em outro tipo de semelhança de muitos outros crentes, Nancy
recipiente - uma abordagem fiel às Escrituras deixou que pessoas controlassem a sua vida.
e também capaz de aliviar seu sofrimento. Ela passou a temer as pessoas, colocando
Uma razão que leva os cristãos a respon- nelas a sua esperança. Além do mais, como
derem positivamente à psicologia das neces- em todo temor ao homem, havia em Nancy
sidades é porque ela leva a sério a dor. Mas uma forte preocupação consigo mesma. Ela
trata-se de uma perspectiva que, na verdade, confiava em outros porque entendia que
agrava a dor. Ela intensifica a complexidade tinham poder para lhe dar aquilo que ela
da questão, afirmando que os pecados de queria. Mais uma vez, vemos aqui a sutileza
outrem não apenas ferem profundamente, da psicologia das necessidades, levando
mas também nos privam da satisfação de as pessoas a se voltarem para si mesmas.
uma necessidade - um direito necessário à
vida. Ser ferido profundamente já é duro o 21
Veja o artigo do mesmo autor Exaltar a dor? Ignorar
suficiente, mas quando acreditamos que o a dor? O que fazer com o sofrimento?
70 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Necessitamos de pessoas devido àquilo que completamente dominada por Sua majesta-
queremos. Tememos ao homem porque de. Nancy precisa também aprender a amar
esperamos que outros nos satisfaçam. seu marido, refletindo a Pessoa de Deus, à
O temor ao homem não tem origem medida que responde à Sua graça.
em uma necessidade com a qual fomos Você tem um versículo favorito que fale a
criados. O temor ao homem vem de nosso respeito de Deus? Considere passagens como
próprio pecado. Consiste em adorar a ou- Isaías 6, Ezequiel 1ou o livro de Apocalipse.
tros para nosso benefício pessoal. Uma vez Você pode pedir a Nancy para começar
estabelecida esta questão, a resposta é mais a ler as Escrituras com esta pergunta em
do que simplesmente voltarse para Cristo mente: “Como posso ver a glória de Deus
para a satisfação de necessidades. Isso seria na Bíblia?”. Bons livros devocionais podem
fazer de Jesus um ídolo pessoal a serviço de ajudar. Livros como a coleção de Crônicas de
nossos propósitos. A resposta é, em primei- Nárnia de C. S. Lewis também podem con-
ro lugar, permitir que Deus quebre nossos tribuir para um conhecimento mais nítido
desejos egoístas e nos ensine o que significa de Deus. Às vezes, descobrir nossas necessi-
temer somente a Ele. A pergunta não é mais dades mais profundas por meio do estudo
“Onde posso encontrar valor pessoal?”, mas e uso das orações das Escrituras também
“Por que estou tão preocupado comigo pode exaltar a Cristo e acabar com o senso
mesmo?”A pergunta não é “Como Deus de necessidades psicológicas. Por exemplo,
pode satisfazer minhas necessidades?”, mas a oração do Senhor começa pedindo que o
“Como posso ocupar-me com a glória de nome de Deus seja glorificado e santificado.
Cristo a ponto de esquecer as necessidades Ela mostra que nossa necessidade mais pro-
que sinto?”. funda é ter um coração ardente pelo reino
A esta altura, uma passagem bíblica de Deus. Talvez Nancy possa criar o hábito
como Jeremias 17.5-10 pode resumir a ex- de orar sinceramente o Pai Nosso e outras
periência de Nancy. Ela mostra que temor ao orações das Escrituras.
homem é uma maldição que nos faz sentir Nancy também precisa entender a sua
necessitados ou vazios. A alternativa, a con- verdadeira forma. A figura do tanque vazio
fiança em Deus, é uma bênção que conduz deve ser eliminada, embora os anseios por
à vida e à plenitude. A causa desse vazio, to- amor provavelmente ainda venham à tona
davia, é que “enganoso é o coração, mais do muitas vezes, e precisa ser substituída por
que todas as coisas” (17.9) e não “o coração figuras bíblicas de possuidores da imagem
é necessitado e precisa ser satisfeito”. de Deus. Há muitos destes retratos nas
Nossa tarefa consiste em aprender a Escrituras, incluindo as figuras de amigo,
temer a Deus. É preciso mostrar a Nancy sábio, profeta, sacerdote, rei, cônjuge. Al-
que seu marido, embora possa ter errado gumas podem calhar melhor que outras,
para com ela, é também um de seus deuses. dependendo da pessoa, mas há uma grande
Ela o escolheu para satisfazer os seus desejos. quantidade de figuras repetidas ao longo
A resposta de Nancy a Deus deve ser voltar das Escrituras que nos contam algo sobre
as costas a estes desejos egoístas e saber que nós mesmos, nossa tarefa ou nosso Deus. A
Ele é muito maior que qualquer outro deus principal é “cristão” - um símbolo para “filho
forjado pelo homem. A resposta é olhar de Deus”. O cristão abriu mão de seu nome
para os retratos de Deus na Bíblia até estar e assumiu o nome de Cristo. Sua identidade
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 71
está intimamente ligada à de Jesus, e Seu Finalmente, um dos maiores privilé-
propósito é fazer o nome de Cristo afama- gios de aconselhar Nancy é abençoá-la em
do. Este era o propósito da adoção entre os nome de Cristo dizendo-lhe que “o amor
romanos. À medida que Deus adota Seus de Deus é derramado em nosso coração
filhos e eles passam a levar Seu nome, não pelo Espírito Santo, que nos foi outorga-
há razão para se orgulhar de si mesmo, mas do” (Rm 5.5). Isso pode parecer estranho
há plena razão para se orgulhar e encontrar se considerarmos que estamos rejeitando
grande prazer no amor dAquele que deu a a noção de tanque de amor sustentada
nós o Seu nome. pela psicologia das necessidades. Será que
Um retrato menos popular, mas as Escrituras estão dizendo que, afinal de
igualmente freqüente nas Escrituras, é o contas, somos tanques de amor? Não é
de “servo” ou “escravo”. Embora livres em certo impormos a noção de necessidades
Cristo, os filhos de Deus são Seus servos. psicológicas ao texto de Romanos 5.5.
Nossa liberdade consiste em não estarmos Embora o autor tenha em vista a metáfora
mais sob o domínio de Satanás e de nos- de um recipiente, estamos diante de um
sos desejos descontrolados. Agora somos recipiente com necessidades espirituais e
livres para servir a Deus. A característica não psicológicas. O contexto esclarece a
desta figura é que ela pode simplificar a natureza específica desse amor: “Mas Deus
vida que foi complicada quando os impul- prova o seu próprio amor para conosco
sos assumiram o comando. A pergunta é: pelo fato de ter Cristo morrido por nós,
“Qual o meu dever para com o Deus que sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8).
me amou?” No caso de Nancy, seu dever Quando reconhecemos que as pessoas
inclui várias coisas. Como fruto de amor, chegam a Deus na forma de pecadores
ela pode fazer o bem a seu marido, falar desesperadamente necessitados de graça,
com seu marido se ele errar para com ela, como conselheiros vamos procurar “inun-
identificar as traves em seu próprio olho dar” o aconselhado com o amor de Cristo.
antes de apontar ao marido os argueiros Esta deve ser nossa maior alegria: derra-
no olho dele, obedecer de coração a mar o amor de Deus sobre aqueles que
Deus gozando do companheirismo de estão espiritualmente sedentos. Afinal,
seu marido. Seja qual for a expressão que daremos grande glória ao nome de Cristo.
o serviço amoroso possa assumir, Nancy “Portanto, quer comais, quer bebais ou
deve manter os olhos postos nAquele que façais outra coisa qualquer, fazei tudo para
a serviu (Jo 13.1-7). a glória de Deus” (1Co 10.31).
72 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
E se Você Não Foi
Amado por seu Pai?
D a v i d Po w l i s o n 1
Nisto consiste o amor: não em qual clamamos: Aba, Pai. O pró-
que nós tenhamos amado a Deus, prio Espírito testifica com o nosso
mas em que ele nos amou e enviou espírito que somos filhos de Deus
o seu Filho como propiciação pelos (Rm 8.15,16).
nossos pecados (1Jo 4.10). Como chegamos a conhecer o amor
de Deus Pai? Os versículos das Escrituras
Se Deus é por nós, quem será citados acima mencionam dois aspectos.
contra nós? Aquele que não poupou Primeiro, há um fato histórico claro de que
o seu próprio Filho, antes, por todos não podemos escapar: Jesus Cristo veio ao
nós o entregou, porventura, não nos mundo para sofrer morte angustiante por
dará graciosamente com ele todas as amor aos pecadores. Segundo, há uma di-
coisas? (Rm 8.31,32). nâmica interior poderosa: o Espírito Santo
derrama em nosso coração o amor de Deus
O amor de Deus é derramado para gerar a confiança de que somos Seus
em nosso coração pelo Espírito filhos. Deus nos amou? Deus nos ama? Sim,
Santo, que nos foi outorgado (Rm e amém. O amor de Cristo - que transforma
5.5). inimigos em filhos agradecidos - inclui tanto
angústia como glória. Aquele que usou a
Porque não recebestes o espírito coroa brutal de espinhos usa agora uma
de escravidão, para viverdes, outra coroa radiante de glória. O amor de Deus é
vez, atemorizados, mas recebestes eficiente ontem e hoje.
o espírito de adoção, baseados no Mas o que dizer de pessoas que parecem
desconhecer tanto o fato como a dinâmica
1
Tradução e adaptação de What if your father didn’t love
interior do amor de Deus? Você conhece pes-
you?. Publicado em The Journal of Biblical Counseling. soas assim. Eu as conheço. Ficam indiferen-
Glenside, Pa., v. 12 n. 1, Fall 1993. p. 33-42. tes diante da coroa de espinhos. Encolhem
80 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
os ombros aos gritos da cruz. Consideram o afirmem que tal deus não é digno de confian-
Espírito Santo uma teoria. Em seu coração ça nem amoroso. A afirmação nº1 coincide
há pouco ou nenhum lugar para “Aba, Pai”. de modo razoável com um fato comum: “Eu
Como atingi-las? Como Deus atinge tais tive um pai detestável. Eu penso que Deus
pessoas? é detestável”. Mas a ligação plausível entre
Ouça o que eu tenho ouvido repetidas estes fatos é real? Você precisa indagar mais
vezes de conselheiros e de cristãos com lutas a fundo. Pessoas distorcem sua perspectiva
interiores: “Você não pode compreender de Deus porque tiveram pais que pecaram ou
verdadeiramente a paternidade de Deus se por alguma outra razão? Há pessoas cujos
não teve um bom relacionamento com seu pais foram maus e que ainda assim têm um
pai”. Esta afirmação relaciona-se a outra bom relacionamento com Deus? Há pessoas
sobre métodos de aconselhamento e cres- que não têm um bom relacionamento com
cimento cristão: “Se a sua história de vida Deus, embora seus pais tenham sido bons?
inclui problemas com seu pai, você precisa A afirmação nº2 também coincide plau-
ter uma nova experiência paternal ou uma sivelmente com um fato comum: “Fez real-
experiência emocional correlata. Você precisa mente diferença encontrar uma pessoa em
do amor de um pai-substituto, terapeuta, quem posso confiar e, como resultado, meu
mentor ou grupo de apoio para ser capaz de relacionamento com Deus cresceu”. Sem
conhecer a Deus como um Pai amoroso”. dúvida, bons amigos, cuidadosos e sábios,
Essas afirmações são verdadeiras? Se o são um auxílio tremendo para mudança.
seu pai abusou de você, foi exigente, crítico, Um conselheiro piedoso é de muitas manei-
negligente ou egoísta, você está impossibi- ras semelhante a um pai piedoso. Mas será
litado de conhecer a Deus como um Pai que a explicação plausível para a mudança
amoroso? Você precisa antes experimentar é a certa? Mais uma vez, há necessidade de
um relacionamento paternal humano que indagação. Relacionamentos humanos enco-
corrija o anterior para que então “Deus é rajadores corrigem o problema de uma visão
meu Pai” venha a ser uma realidade que errada de Deus, ou há uma solução diferente?
traz alento? Há pessoas que conhecem alguém em quem
Quando devidamente examinadas, podem confiar, e ainda assim continuam a
ambas as afirmações mostram-se falsas. Elas não crer em Deus? O relacionamento com
distorcem a natureza do coração humano e alguém em quem confiamos poderia nos
a razão pela qual as pessoas acreditam em enganar ainda mais a respeito de Deus?
mentiras a respeito de Deus, negam com-
pletamente o poder e a verdade da Palavra Deus é meu Rei, Pastor, Mestre,
de Deus e do Espírito Santo e substituem Salvador e Deus
o Deus Todo-poderoso por um terapeuta, Comece a pensar na seguinte questão:
cuja tolerância e afirmação reformatam o no curso normal da vida, nenhuma das
coração. palavras que Deus usa para descrever a Si
Não queremos, com isso, dizer que pes- mesmo costuma ter experiências maravi-
soas cujos pais falharam não projetam com lhosas correspondentes. Pais pecadores não
freqüência as imagens humanas no Deus são os únicos a representar mal a Deus. Por
verdadeiro. É comum que imaginem um exemplo, pense na expressão “Deus é Rei”.
deus semelhante a Satanás, e (naturalmente!) Os governantes humanos são com freqüência
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 81
corruptos, tiranos, distantes ou incapazes. pessoas podem apontar com alegria para um
Para quem olhamos para exemplificar Deus “pastor piedoso que teve um grande impacto
Rei: a rainha Elizabeth? Bill Clinton? Sadam em minha vida”. Mas outras pessoas cresce-
Husseim? os juízes do Supremo Tribunal ram sob falsos mestres, cobiçosos, arrogantes
Federal? Os governantes que refletem a ima- e descuidados, como Ezequiel 34 descreve.
gem de Deus sempre foram notoriamente Isso quer dizer que você não pode ser con-
raros. A sua experiência com políticos e fortado por Deus como Pastor até que você
governantes incapacita-o para conhecer a tenha a experiência de conhecer um pastor
Deus como Rei e Juiz? Não necessariamen- piedoso? Ezequiel 34 e João 10 afirmam o
te. Deus fala em Sua Palavra a respeito de contrário. Deus presume que podemos ou-
reis maus, medíocres e bons, de modo que vir palavras de conforto vindas diretamente
possamos distinguir entre eles. Ele fala sobre dEle, mesmo que tenhamos sido traídos: “Eis
o justo e o injusto, o honesto e o desonesto, que eu estou contra os pastores... Eis que eu
o consistente e o instável. A Bíblia mostra o mesmo procurarei as minhas ovelhas e as
tipo de rei que é Deus, e fala a Seu respeito. buscarei. Eu mesmo apascentarei as minhas
Você permite à Palavra ou à experiência ditar ovelhas e as farei repousar, diz o SENHOR
a sua percepção de Deus? Se você costuma Deus” (Ez 34.10,11,15). A existência da
projetar a experiência humana em Deus, perversidade não nos faz cegos à pureza. Você
corre sério risco. Mas para os que ouvem o continuará a crer na experiência com homens
Espírito Santo, Ele argumenta pela Palavra e ímpios, ou a verdade de Deus mudará a sua
reinterpreta a experiência de vida. A verdade vida? Segure primeiro o que vem antes. O
progressivamente instrui a vivência. Espírito Santo, com freqüência, usa pastores
Considere outro exemplo: “O Senhor é o piedosos, mas não necessita deles. Ele é po-
meu pastor”. Os pastores podem fornecer um deroso o suficiente para revelar o Supremo
modelo duvidoso. Poucos são como Phillip Pastor mesmo que não haja modelos huma-
Keller, que retratou de modo cativante o nos correspondentes.
cuidado e a sabedoria do ofício de pastor2. Considere agora que “O Senhor é o meu
O que aconteceria se os pastores que você mestre, e eu sou escravo sob seu jugo”. Qual a
conheceu na vida real fossem subalternos nossa experiência comum com figuras de
ignorantes ou beberrões indolentes? Ou se autoridade - professores, chefes, superviso-
tudo quanto você conhece são ilustrações de res, administradores? Com freqüência, há
livros que retratam cenas de jovens formosos distanciamento, rivalidade, manipulação
cuidando de cordeiros em pastos verdejantes? e suspeita entre autoridades e seus subor-
Será que estas figuras descrevem a Deus? O dinados. A escravidão, literalmente, está
Salmo 23 não tem poder para fortalecê-lo repleta de degradação e ressentimento. Ainda
até que você conheça um pastor de ovelhas assim, Deus escolheu esta palavra carregada
como Phillip Keller? Claro que não. de experiências negativas para representar
Considere também os pastores do reba- Seu relacionamento conosco, e espera que
nho de Deus que você conheceu. Algumas nós a experimentemos com satisfação. Ele
retrata a Si mesmo como senhor bondoso,
2
KELLER, Phillip. Nada me faltará: o Salmo 23 à luz
e nós como Seus escravos voluntários. Que
das experiências de um pastor de ovelhas. Venda Nova, choque a linguagem de escravidão usada por
MG: Betânia, 1984. Paulo deve ter causado a escravos ressentidos
82 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
e desesperados! Mas traz profunda liberta- e verdadeiro se gastei minha vida ouvindo e
ção quando corretamente entendida. Mais adorando estas imagens falsas? A Bíblia in-
uma vez, determinados tipos de experiência teira repudia essa idéia e se dispõe a abrir os
podem produzir verdades bilaterais. Há olhos do homem para convertê-lo das trevas
bons e maus relacionamentos entre senhor para a luz (At 26.18). Deus está empenhado
e escravo. Você vai acreditar em Deus ou em mudar a mente das pessoas, e não é im-
no mundo que conhece? O Espírito Santo pedido por distorções. Ele pode revelar a Si
é poderoso para renovar mentes. mesmo, “resplandecendo em nosso coração,
Considere a seguinte figura bíblica: para iluminação do conhecimento da glória
“Deus é meu Salvador, Resgatador e Aju- de Deus, na face de Cristo” (2 Co 4.6). Ele
dador”. Quem são os seres humanos que não precisa de pessoas que preparem o prato
representam o papel de salvador, resgatando principal, para que Ele chegue mais tarde
ou recuperando outros? Talvez tenham um com a sobremesa. Deus é poderoso. A expe-
“complexo de messias”. Podem ser orgulho- riência de vida não tem poder supremo, e
sos, intrometidos, cheios de justiça própria, as pessoas podem se arrepender de ter crido
controladores. Não é nada engraçado ser aju- em mentiras.
dado por ajudadores de faz de conta! Ou tal- Em cada um dos exemplos acima, é ab-
vez eles sejam capacitadores que, na verdade, surdo dizer que a experiência de vida dita a
alimentam o problema com auto-confiança, maneira como a pessoa conhece a Deus. Na
um alto nível de responsabilidade, temores e verdade, a própria experiência de desapon-
sentimentalismo. São salvadores que ficam tamento e distorção de imagem pode fazer
deprimidos ou amargurados com facilidade. com que se aspire a conhecer o verdadeiro
Mas será que o fato de você ter conhecido Rei, Pastor, Senhor, Salvador e Deus. “Meu
apenas pseudo-salvadores em sua vida o pastor nunca foi modelo de Deus para mim.
impossibilita conhecer ricamente a Cristo Como me alegro em saber que Hebreus
como seu Salvador? Surpreendentemente, 13.20-21 é verdade, que o grande Pastor de
de alguma forma Deus parece ser capaz de todas as ovelhas derramou Seu sangue por
revelar a Si mesmo como um Deus piedoso mim e me ensinou a fazer a Sua vontade.
em sua plenitude sem que seres humanos Meu chefe é manipulador e enganador.
tenham necessariamente exemplificado a Como me alegro em saber que Efésios 6.5-8
piedade. é verdade para mim e que eu posso servir a
Considere um último exemplo, o princi- Cristo com integridade em lugar de me re-
pal: “O Senhor é Deus”. Qual é a experiência moer em amargura e medo. O Deus de quem
comum do homem com “Deus”? Dependen- ouvi falar durante meus anos de crescimento
do da pessoa a que você ouve, Deus pode ser assemelhava-se a um desmancha-prazeres
uma abstração filosófica, um poder mais ele- distante. Louvo a Deus porque o Salmo 36 é
vado, um ídolo, uma experiência resultante verdade, e Ele é refúgio bem presente e fonte
de meditação, um tirano distante, um bom de amor, luz e alegria.”
companheiro, uma energia criativa, um vovô O Espírito Santo pesa mais que as ex-
bondoso, ou até você mesmo. Todos esses periências frustradas. Então por que para
retratos de “Deus” deformam grosseiramente tantas pessoas “Deus é Pai” parece ser uma
a Deus. É impossível conhecer o Deus vivo exceção? Será que seu próprio pai é quem
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 83
precisa ditar o significado desta frase até fé era: “A igreja está cheia de hipócritas, por
que um pai-substituto lhe confira um novo isso eu não quero saber de Deus”. A variação
colorido? atual volta-se mais para a auto-piedade: “Pa-
rece que eu não consigo confiar em Deus”.
Mas Deus é meu pai? Mas o efeito final é o mesmo. Nenhum
Os conceitos de nossa cultura psicolo- clamor “Aba, Pai” brota do coração. Nenhu-
gizada saturam a maneira como as pessoas ma dinâmica de pacificação característica
- mesmo aquelas que são crentes em Cristo dos “filhos de Deus” (Mt 5.9) ocorre nos
- pensam a respeito de si mesmas e de outros. conflitos da vida. “Meu pai não me amou,
A fonte intelectual da idéia de que a expe- portanto, o egocentrismo, a auto-piedade e
riência com seu pai determina a perspectiva a descrença que me caracterizam têm uma
que você tem do Pai celestial é a psicologia razão básica. Alguém causou meu problema;
psicodinâmica e não a Bíblia. A idéia foi alguém precisa remediá-lo”.
desenvolvida por homens como Sigmund As técnicas terapêuticas seguem logi-
Freud e Erik Erikson, que observaram pesso- camente a premissa. “Seu pai foi distante e
as fabricarem seus próprios deuses. A teoria desinteressado. Você pensa que Deus é dis-
psicodinâmica fez do “de baixo para cima” a tante e desinteressado. Eu, o seu terapeuta,
explicação normativa para a noção de Deus. mostrarei interesse e darei atenção a você.
Ela nega que o Deus verdadeiro revelou a Si Conhecer o meu amor permitirá que você
mesmo “de cima para baixo”, combatendo pense em Deus como semelhante a mim,
com a verdade as idéias vãs. O deus psico- interessado e atencioso. Que afirmação cho-
dinâmico nada mais é que uma projeção da cante! (É por esta razão que ela é geralmente
psichê humana, e várias versões populares e apenas insinuada, de modo que atinja as
variações dessa maneira de pensar inspiram pessoas de mansinho, sem assustar). Perceba
nossa cultura. com cuidado o que eu quero dizer. Esta idéia
“Se meu pai não me amou, eu não posso de pai-substituto não apenas despreza a Pala-
conhecer a Deus como um Pai amoroso.” vra e o Espírito, mas substitui uma imagem
Certamente esta idéia soa bem ao coração falsa de Deus por outra igualmente falsa.
humano. Como pecadores, tendemos a pro- A imagem de um deus insatisfatório criada
duzir imagens falsas de Deus, e nossos pais pela alma humana, supostamente devido à
são os primeiros candidatos para o retrato. impiedade dos pais, pode agora ser recriada
Como pecadores, somos rápidos em omitir à imagem de um terapeuta satisfatório.
nossa responsabilidade pela própria falta de É fácil perceber que o Deus vivo e ver-
fé, gostando do papel de vítimas. Quando dadeiro não é semelhante a um pai abusivo,
projetamos em Deus mentiras e imagens temperamental, que rejeita. O Deus verda-
falsas, preferimos apontar para nossos pais deiro enviou Jesus Cristo em uma missão
como sendo a causa em lugar de olhar para o de amor para salvar pessoas que não eram
nosso próprio coração. O insight psicológico aceitáveis. No entanto, Deus também não
favorece a expressão da tendência pecamino- se assemelha ao terapeuta benigno que a
sa. Gostamos de encontrar desculpas para a todos aceita. O Deus verdadeiro se ira e tem
nossa falta de fé. padrões imutáveis, e as pessoas a quem Ele
Em gerações anteriores, uma das des- ama são “fracas, ímpias, pecadoras, inimigas”
culpas humanas disponíveis para a falta de (Rm 5). O Deus verdadeiro não é diabó-
84 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
lico. Mas Ele também não é Carl Rogers. ventre? Mas ainda que esta viesse a se esque-
A metodologia da paternidade substitutiva cer dele, eu, todavia, não me esquecerei de
tem uma idéia errada de quem é o Pai e de ti. Eis que nas palmas das minhas mãos te
como um pai deve ser. Ela sabe que tirania gravei. (Is 49.13-16)
e negligência são erradas. Mas substitui estes Não nos trata segundo os nossos peca-
pecados por outros, com extrema confiança dos, nem nos retribui consoante as nossas
no poder do terapeuta e (geralmente, com iniqüidades. Pois quanto o céu se alteia
algumas exceções) nos afagos ao eu. acima da terra, assim é grande a sua miseri-
É uma versão do amor em que não há córdia para com os que o temem. Quanto
uma verdade absoluta, a morte para o eu dista o Oriente do Ocidente, assim afasta
nem o Salvador crucificado. Certamente não de nós as nossas transgressões. Como um
estamos querendo dizer que os conselheiros pai se compadece de seus filhos, assim o
atenciosos e preocupados são irrelevantes SENHOR se compadece dos que o temem.
para a mudança. Não precisamos fazer uma (Sl 103.10-13)
escolha eliminatória entre verdade e amor: Estas palavras são verdadeiras - tanto
pessoas crescem de acordo com a descrição em promessas como cumprimento. Deus
de Efésios 4.15. A questão aqui é simples- fala aos temores e ansiedades de sofredores
mente colocar as coisas na ordem certa para e pecadores.
que a nossa visão do amor humano esteja em Será que as pessoas chegam a conhecer
sintonia com o amor de Deus, em lugar de este Deus porque conselheiros habilidosos
competir com ele. tornam-se para elas pais-substitutos? Não, e
Mudança acontece quando o Espírito a própria tentativa de fazer disso um para-
Santo derrama abundantemente o amor de digma de aconselhamento é idolatria. Mas
Deus no coração por meio do evangelho. será que os bons conselheiros não são como
Todo aquele que recebe o Espírito de adoção pais (e mães)? Sim, certamente.
como filho de Deus aprende a clamar “Aba, Tornamo-nos carinhosos entre
Pai”. Pessoas mudam quando assumem vós, qual ama que acaricia os pró-
responsabilidade por aquilo que crêem a prios filhos; assim, querendo-vos
respeito de Deus. As experiências da vida muito, estávamos prontos a ofere-
não são desculpa para crer em mentiras; o cer-vos não somente o evangelho
mundo e o diabo não desculpam a carne. de Deus, mas, igualmente, a própria
Pessoas mudam quando a verdade bíblica é vida; por isso que vos tornastes
vista em cores e com som Dolby, mais viva e muito amados de nós. Porque, vos
em tom mais alto que as experiências da vida. recordais, irmãos, do nosso labor e
As pessoas mudam quando elas têm ouvidos fadiga; e de como, noite e dia labu-
para ouvir e olhos para ver o que Deus nos tando para não vivermos à custa de
diz a respeito de Si mesmo. nenhum de vós, vos proclamamos
O SENHOR consolou o seu povo e o evangelho de Deus. Vós e Deus
dos seus aflitos se compadece. Mas Sião diz: sois testemunhas do modo por que
O SENHOR me desamparou, o Senhor se piedosa, justa e irrepreensivelmente
esqueceu de mim. Acaso, pode uma mulher procedemos em relação a vós outros,
esquecer-se do filho que ainda mama, de que credes. E sabeis, ainda, de que
sorte que não se compadeça do filho do seu maneira, como pai a seus filhos, a
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 85
cada um de vós, exortamos, conso- Olhando para alguns casos
lamos e admoestamos, para viverdes Vamos descrever brevemente dois ca-
por modo digno de Deus, que vos sos. Sandra é uma mulher de 28 anos que
chama para o seu reino e glória (1Ts cresceu em um lar abusivo. Quando ado-
2.7-12). lescente, ela foi abusada sexualmente pelo
Por que um conselheiro deve ser assim? pai. Isso acrescentou um glacê amargo em
Porque Deus é assim. A diferença entre Paulo um relacionamento que já era azedo. Sandra
e a terapia da paternidade substitutiva é evi- converteu-se durante o segundo grau. “Mas
dente. Será que Paulo foi um pai-substituto durante anos eu senti que nunca poderia
para os tessalonicenses para que, conhecendo conhecer a Deus como Pai porque tive um
o amor do apóstolo e transformados por este relacionamento péssimo com meu pai. Eu
conhecimento, eles pudessem ser capazes pensava em Deus como sendo semelhante
de imaginar a Deus como Pai amoroso? De a meu pai: uma pessoa em quem eu não
forma alguma. Esta idéia chega a ser uma podia confiar, exigente, sem misericórdia e
blasfêmia. imprevisível. Então percebi que meu maior
Paulo foi enérgico, cuidadoso e exer- problema era eu, e não Deus nem meu pai.
ceu autoridade como um pai-conselheiro Meu sistema de crenças estava de ponta
levando a mensagem do Pai. O amor do cabeça. Eu estava projetando mentiras na
Pai transforma pessoas; transformou Paulo. Pessoa de Deus e deixando de acreditar na
Conhecendo o amor divino, Paulo ofereceu verdade a respeito dEle!”
amor, um amor que era tanto fruto como Sandra alimentou a sua fé com a ver-
veículo da mensagem que ele transmitia a dade. Deus Pai é digno de confiança, mise-
seus ouvintes. Deus está em primeiro lugar; ricordioso, consistente. Ele pacientemente
o agente humano é significativo, mas secun- trabalhou em sua vida, ensinando-lhe a
dário. O terapeuta atual reverte esta ordem. verdade a respeito do Pai. Sandra pôde ver
O conselheiro está em primeiro lugar; Deus é que a sua noção de Deus não era causada
significativo (talvez, dependendo do enfoque pelas suas experiências de vida, mas por
pessoal), mas secundário. A questão que está aquilo que o seu coração havia feito a partir
em jogo não é se o conselheiro deve ou não da experiência que a prejudicou. À medida
ser paciente, bondoso e assim por diante. 1 que Sandra se arrependeu e sua mente foi
Coríntios 13 já estabeleceu isso. A questão é renovada, ela se libertou progressivamente
determinar quem é o ator principal e quem dos antigos desapontamentos, amarguras,
o coadjuvante no drama divino da redenção. temores e exigências. Ela se tornou capaz
Se precisamos da aceitação humana para de dizer de todo coração: “Rendei graças ao
conhecer o amor de Deus, o psicoterapeuta SENHOR, porque ele é bom, porque a sua
passa a ser o ator principal. misericórdia dura para sempre”.
Se você não recebeu o amor de seus Guilherme é um homem de 36 anos
pais, você pode conhecer o amor do Pai. Um cuja família foi abandonada pelo pai quando
conselheiro piedoso (assim como um pai ou ele tinha apenas três anos. Ele é um cristão
um amigo) pode ser um instrumento. Mas a comprometido, maduro em vários aspectos,
chave para mudança está entre você e Deus, e que faz uso de seus dons. Mas ele procurou
não entre você e outra pessoa. aconselhamento, queixando-se de uma sen-
86 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
sação antiga de que “Deus é distante, como mica havia transformado o relacionamento
meu pai era”. Em poucas palavras, havia três passado com os pais numa varinha de condão
componentes significativos a trabalhar. Em para explicar todas as facetas da vida. A Bíblia
primeiro lugar, Guilherme percebeu que, ofereceu a Guilherme uma explicação mais
assim como a maioria de nós, ele deixou concreta e capaz de gerar mudança.
que a sua experiência de vida operasse como Em terceiro lugar, Guilherme encontrou
uma novela emocionante, a cores e com som alguns bons amigos e modelos (Pv 13.20; 1
Dolby. Em comparação, a Bíblia parecia um Ts 2.7-13). Ele estivera isolado, mas encon-
filme mudo, em branco e preto, sem graça. trou pessoas para conhecer e ser conhecido,
A carne produz este efeito, interpretando a para amar e ser amado. Essas pessoas não
vida pela lente de suas mentiras e desejos. substituíram a Deus nem mesmo substitu-
Guilherme começou por acreditar em duas íram o pai que Guilherme não havia tido.
verdades centrais a respeito de Deus Pai. A Assim como Guilherme, eram filhos de Deus
primeira, que Deus É abundantemente mise- que procuravam crescer à imagem do Pai.
ricordioso (Sl 103, 2Co 1.2 ss.). A segunda, Com isso, Guilherme começou a ver a Pessoa
que Deus ESTÁ comprometido diretamente de Deus em sua experiência de vida - confiar
com Seus filhos para ensinar, abençoar e em Deus e obedecê-lO, em lugar de continu-
transformar (Jo 15.2; Hb 12.1-14). Gui- ar vê-lO a partir de suas experiências. Não é
lherme meditou nestas verdades e orou pela de surpreender que seu relacionamento com
aplicação delas em sua vida. À medida que Deus tenha passado por uma transformação
ele aprendeu a se arrepender das mentiras tanto objetiva como experimental.
em que havia acreditado, ele descobriu que É possível você (e seu aconselhado)
a imagem do Pai tornava-se viva. conhecer a Deus como Pai mesmo que seu
Em segundo lugar, Guilherme passou pai tenha sido violento, enganador, frio...
pelo processo de encarar os pecados que ele ou mesmo que ele o tenha desapontado oca-
estava evitando ver. A carne é enganosa. Ele sionalmente? A Bíblia responde SIM! Ouça,
descobriu que sua frase “Deus é distante, acredite, e junte-se a outros filhos do Pai!
como meu pai era” em parte veio como Damos aqui um esboço simples de como
resultado da influência da psicologia: um crescer no conhecimento de Deus Pai mesmo
diagnóstico conveniente. É verdade, Deus que seu pai tenha pecado contra você.
parecia mesmo distante. E o pai de Gui- 1. Identifique mentiras específicas,
lherme tinha estado ausente. Mas quando crenças falsas, desejos, expectativas e te-
examinadas, as duas coisas provam estar mores que o governam e envenenam o seu
minimamente relacionadas, quase o mesmo relacionamento com Deus. Assuma sua
que dizer “Estou irada porque sou do signo responsabilidade.
de Áries”. Na verdade, no início da vida 2. Procure na Bíblia verdades específi-
cristã de Guilherme, Deus não lhe parecia cas que se opõem às suas mentiras e falsas ex-
nem um pouco distante. Mas alguns padrões pectativas. Deixe estas verdades competirem
específicos de pecado - fantasias sexuais, com suas mentiras e anseios. Deve haver uma
manipulação e distanciamento de pessoas, batalha interior diá-ria à medida que a luz e
preguiça, amor ao dinheiro - estavam na raiz o amor de Deus combatem a escuridão.
da distância persistente que Guilherme sen- 3. Volte-se para Deus para alcançar
tia com relação a Deus. A teoria psicodinâ- misericórdia e ajuda, de modo que o Es-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 87
pírito da verdade o renove, derramando o mal cometido contra você e o mal su-
livremente seu amor. postamente percebido por você.
4. Identifique os pecados específicos 7. Medite nas boas coisas que seu pai
que você tem cometido contra seu pai e, fez para você. Com freqüência, a amargura
como hábito generalizado, contra outras e o desapontamento embaçam a visão e
pessoas: guardar amargura, ser obstinado, não permitem perceber o que há de bom.
distanciar-se, transferir a culpa, remoer o Há alguns pais que parecem encarnar o
erro, temer ou agradar pessoas, difamar, mal. Mas a maioria apresenta uma mistura
mentir, alimentar autopiedade etc. Assu- de amor e egocentrismo.
ma sua responsabilidade. 8. O Pai o capacita para retribuir
5. Volte-se para Deus para alcançar mal com bem, e não mal com mal. Ele
misericórdia e ajuda, de modo que o Es- conforma seus filhos à semelhança de Seu
pírito de amor o capacite a produzir Seu Filho Jesus. Planeje então as mudanças
fruto com gratidão. específicas que você pode colocar em prá-
6. Identifique pecados específicos tica para lidar com seu pai e os erros que
que foram cometidos contra você. Um pai ele cometeu: perdoar, amar, pedir perdão,
egoísta ou hostil, mentiroso ou traidor, confrontar construtivamente, focalizar
que não assumiu sua responsabilidade, corretamente a sua atenção, investir suas
agiu mal. O amor de Deus dá coragem energias naquilo a que Ele o chama etc.
para você olhar o erro de frente. Identi- 9. Procure crentes sábios que possam
ficar o pecado ajuda você a saber o que orar com você, encorajá-lo, aconselhá-lo, e
deve perdoar. Pode também esclarecer os a quem você possa prestar contas. A fé em
aspectos que Deus quer que você traba- Deus nosso Pai é contagiosa. A sabedoria
lhe construtivamente. Além disso, você para viver como um pacificador, filho de
precisa ser humilde para reconhecer que Deus, também é contagiosa. “Quem anda
alguns erros são percebidos em função com os sábios será sábio”.
de suas expectativas - sem que sejam de O Pai está procurando adoradores e
fato erros. Arrepender-se de seus pecados produzindo filhos que O conheçam. Peça,
clareia a sua mente para distinguir entre procure, bata à porta.
88 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Crítica aos
Integracionistas Atuais
D a v i d Po w l i s o n 1
O aconselhamento bíblico alicerça-se são consideradas como substancialmente
na confiança de que Deus falou de modo deficientes para promover entendimento a
abrangente sobre o homem e ao homem. Sua respeito dos problemas do homem e pos-
Palavra ensina a verdade. O Espírito Santo sibilitar sua mudança. A igreja, portanto,
capacita para o ministério efetivo e amo- necessita absorver de forma sistemática
roso. Nossa vocação, em sentido positivo, elementos fundamentais das ciências sociais
constitui-se em buscar e promover a verdade para conhecer a verdade e estar capacitada
e os métodos bíblicos no aconselhamento. para um ministério efetivo e amoroso na
Como aplicação desta vocação, em dimensão área de aconselhamento. Integracionistas
secundária, os conselheiros bíblicos têm feito pretendem trazer para a igreja o conteúdo
uma oposição consistente ao movimento intelectual e as práticas psicoterapêuticas
“integracionista”. da psicologia, guardando uma consistência
Os integracionistas tentam casar a com a fé bíblica.
psicologia secular com o cristianismo con- Por outro lado, os conselheiros bíblicos
servador porque acreditam que as Escritu- têm reivindicado que o produto importado
ras não são abrangentes o suficiente. Elas da psicologia prejudica consistentemente a fé
1
Tradução e adaptação de Critiquing Moder n muito; certamente devemos aprender. A resposta
Integrationists. Publicado originalmente em The Journal o surpreende, não é? Se for assim, você tem sido
of Biblical Counseling. Glenside, Pa., v. 11, n. 3, Spring levado a acreditar, sem dúvida, que os conselheiros
1993. p. 24-34. bíblicos são obscurantistas que nada vêem de bom
Sobre o relacionamento com a psicologia, veja Jay na psicologia.” Adams prossegue esclarecendo
Adams em What About Nouthetical Counseling? Grand aquilo a que ele se opõem, o que aceita, e o porquê.
Rapids, Mich.: Backer, 1976. p. 31. À pergunta: “Você Veja também as páginas finais do artigo de Adams
não acha que podemos aprender alguma coisa com os Counseling and the Sovereignty of God em The Journal of
psicólogos?”, ele responde: “Sim, podemos aprender Biblical Counseling, v. 11, n. 2, Winter 1993, p. 4-9.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 89
bíblica e o ministério2. Não queremos dizer da Christian Association for Psychological
com isso que se deve ignorar ou descartar Studies (CAPS). A fundação da Fuller Gra-
as várias psicologias seculares. Mas quando duate School of Psychology, na metade da
olhamos para a psicologia, não podemos década de 60, foi o ponto culminante desta
deixar de considerar seriamente a capacidade fase inicial.
de infiltração das pressuposições seculares e a
nocividade de seus conceitos. Por esta razão, 2. Fase profissional
a possível utilidade da psicologia secular deve Durante os 25 anos seguintes, em
ser avaliada com cuidado. Integracionistas, parte como reação à crítica de Jay Adams,
no entanto, não são suficientemente cuida- o movimento integracionista consolidou-se
dosos, e importam da psicologia enganos intelectual e institucionalmente. Seus líde-
fundamentais, cooperando para tornar ainda res alcançaram posições de influência por
mais intensa a “psicologização” da vida hu- meio de textos publicados e de afiliações
mana, em lugar de curá-la. institucionais.
A intenção deste artigo é criticar o As instituições de destaque que de-
estado atual do pensamento e da prática senvolveram e divulgaram o pensamento
integracionistas. Antes porém, daremos e as práticas integracionistas foram: Fuller
um breve pano de fundo histórico. O mo- Graduate School of Psychology; Rosemead
vimento integracionista desenvolveu-se em School of Professional Psychology e The Jour-
três fases3. nal of Psychology and Theology; CAPS e The
Journal of Christianity and Psychology; Ame-
1. Fase preliminar rican Association of Christian Counselors e
O surgimento do movimento “inte- The Christian Journal of Psychology and Coun-
gracionista” entre os cristãos que declaram seling; departamentos integracionistas em se-
sua fé na Bíblia data da década de 50 com minários e faculdades cristãs como Wheaton
destaque para Clyde Narramore e a fundação College, Dallas Seminary, Trinity Evangelical
Divinity School e Liberty University; insti-
2
Esta parte do artigo é um resumo do capítulo tuições como Minirth Meier Clinics, Rapha
Integração ou Inundação, publicado no livro de Michael e Focus on the Family.
Horton (ed.) Religião de Poder (São Paulo: Cultura Destacaram-se como líderes do movi-
Cristã, 1999). Para ampliar o conhecimento a respeito mento integracionista: Clyde Narramore,
do relacionamento entre o aconselhamento bíblico e
H. Newton Maloney, Paul Tournier, Bruce
os psicólogos cristãos integracionistas, veja o artigo de
Jay Adams Reflections on the History of Biblical Counseling Narramore, John Carter, Harold Hellens,
em Practical Theology and the Ministry of the Church, 1952- Gary Collins, Larry Crabb, Frank Minirth
1984: Essays in Honor of Edmund P. Clowney, editado e Paul Meier, James Dobson, Vernon
por Harvie Conn (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Grounds, David Seamands, Robert Schuller
Reformed, 1990). Como leitura complementar veja E.
Brook Holifield. A History of Pastoral Care in America: e Robert McGee.
from Salvation to Self-Realization (Nashville: Abington,
1983). O subtítulo de Holifield já fala por si. Ele 3. Fase popular
termina sua narrativa por volta de 1960; o movimento Em meados da década de 80, o pensa-
integracionista nas igrejas conservadoras de lá para
mento integracionista ultrapassou os limites
cá é uma ilustração adicional da tese de Holifield. O
aconselhamento bíblico é um movimento que rema das instituições educacionais e da psicotera-
contra a maré. pia profissional. A psicologia popular entrou
90 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
nas igrejas evangélicas por meio dos movi- 1. “O Mercado das Pulgas”: o
mentos de cura interior (“co-dependentes, integracionismo caótico
famílias disfuncionais, 12 passos de recupe- Esse é o integracionismo vendido nas
ração de Alcoólatras Anônimos, grupos de ruas, que salta das prateleiras das livrarias
apoio”) e cura de memórias, bem como pela para as mãos e o coração de crentes que
contribuição de vários autores populares. estão à procura de algo que possa ajudá-los
Com freqüência crescente, o púlpito e os a solucionar os problemas da vida. Entre os
membros das igrejas, bem como as editoras muitos que poderiam ser citados, damos
evangélicas, começaram a falar uma mesma alguns exemplos:
linguagem psicológica para explicar a expe- Frank Minirth, Paul Meier e Robert
riência humana e solucionar os problemas Hemfelt - Love is a Choise: Recovery
da vida. A intenção declarada dos integra- for Codependent Relationships (Amor
cionistas assumidos é tomar emprestado da É uma Escolha: Recuperação para Co-
psicologia teorias e práticas para serem en- dependentes)
tretecidas com a fé cristã. Os integracionistas
disfarçados ou despercebidos não declaram David Seamands - Cura para os Trau-
esta intenção, simplesmente efetuam o em- mas Emocionais
préstimo. O resultado é que o erro secular Robert Schuller - Self-Esteem: The
anula a verdade bíblica, gerando sistemas de New Reformation (Auto-estima: a
aconselhamento controlados por conceitos Nova Reforma)
falsos sobre a natureza humana, a obra de
Cristo e o processo de mudança. William Backus e Marie Chapian - Fale
a Verdade Consigo Mesmo.3
Integracionistas atuais O que está no centro do coração
Qual o estado atual do integracionis- do homem?
mo? O movimento integracionista não está Aqui está uma amostra das respostas
estático nem monolítico. Embora haja temas oferecidas no Mercado das Pulgas:
recorrentes, temos visto com freqüência ên-
fases e correntes divergentes e conflitantes. É Minirth, Meier e Hemfelt: necessidade
possível identificar três correntes principais. legítima de ser amado, fome de amor, e
Dentro de cada uma delas, podem-se desta-
car duas questões cruciais ao redor das quais
os temas gravitam. Em primeiro lugar está
3
MINIRTH, Frank, MEIER, Paul, HEMFELT,
Robert. Love is a choise: recovery for codependent relationships.
a pergunta: o que está no centro do coração Nashville: Thomas Nelson, 1989.
do homem? ou qual a natureza do homem
SEAMANDS, Davi A. Cura para os traumas emocionais.
(antropologia)? E em segundo lugar, como Venda Nova, MG: Betânia, 1984.
sabemos o que de fato é verdadeiro? ou qual SCHULLER, Robert. Self-esteem: the new reformation.
o conceito de conhecimento (epistemolo- Waco, Tex.: Word, 1982.
gia), especialmente no que diz respeito à BACKUS, William, CHAPIAN, Marie. Fale a verdade
psicologia secular? consigo mesmo. Venda Nova, MG: Betânia, 1989.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 91
um recipiente vazio de amor, resultante critério para estabelecer a verdade é uma
do fracasso de outros em nos amar (p. versão descuidada de “cada um faz o que
ex. p. 33-40); parece certo aos próprios olhos”. Não há
uma tentativa de pensar sistematicamente a
Seamands: a necessidade de sentir-se
respeito do ser humano, com uma exegese
bem consigo mesmo, o coração como
cuidadosa, de modo a extrair a verdade das
um depósito de feridas reprimidas e
Escrituras (exegese), em lugar de acrescentar
privações (p. ex. p. 48-54, 60, 138).
às Escrituras (eisegese).
Schuller: uma necessidade não preen-
chida de auto-estima é base para todo 2. O “Grande Guarda-Chuva”:
o comportamento humano; amor pró- o integracionismo sofisticado
prio, dignidade, valor pessoal e auto- Esse é o integracionismo altamente
estima constituem a mais profunda refinado, que articula a perspicácia inte-
necessidade do ser humano; o pecado lectual da filosofia integracionista. Vamos
principal é a falta de auto-estima; em descrevê-lo, portanto, em maiores detalhes.
seu nível mais profundo, pecado é a É o integracionismo das faculdades cristãs
rejeição de si mesmo e o abuso psico- de psicologia. Ele busca apropriar-se das
lógico auto-imposto, que resulta em teorias da psicologia secular e avaliá-las de
pecados exteriorizados (p. ex. p. 15, maneira eclética sob a orientação de “crenças
33ss, 98ss.). reguladoras” cristãs. O Grande Guarda-
Chuva integra tudo - de Freud a Skinner,
Backus e Chapian: a necessidade de
do exorcismo à cura de memórias, de Carl
sentir-se bem consigo mesmo, de ser
Rogers a Jay Adams, da criança interior ao
feliz, de sentir-se amado e importante
arrependimento do pecado.
(p. ex. p. 9ss, 40, 51, 109, 111).
O integracionismo sofisticado tende
Em cada um dos casos, alguma va- a ser um crítico da psicologia popular do
riante do “coração necessitado e/ou ferido” Mercado das Pulgas. Por exemplo, Stanton
é base para a teoria. A necessidade de amor Jones e Richard Butman escrevem: “Muito
e de auto-estima predomina na literatura do do que se passa por integração nos dias de
Mercado das Pulgas. Pecado e tristeza são hoje é anêmico bíblica ou teologicamente
conseqüências secundárias de necessidades e tende a ser pouco mais que uma versão
profundas não satisfeitas. espiritualizada do pensamento típico da
área da saúde mental” e “o integracionis-
Como conhecemos a verdade? mo cristão tem merecido muito da crítica
Cada um dos livros acima menciona- recebida por parte daqueles que apedrejam
dos constitui-se em uma mistura eclética de a psicologia”.4
experiências pessoais, elementos colhidos Um desdobramento impressionante
em várias psicologias, e versículos bíblicos dentro do integracionismo moderno e
tomados ao acaso (quase que invariavel- sofisticado é que ele procura abraçar Jay
mente usados de forma não correta). O Adams debaixo do Grande Guarda-Chuva.
4
JONES, Stanton, BUTMAN, Richard. Modern
psychoterapies: a comprehensive Christian appraisal. Downers
Grove, Ill.: InterVarsity, 1991. p. 411 e 29ss.
92 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
O integracionismo acadêmico não tem para psicólogos e filósofos com freqüência
com Adams a hostilidade que caracterizou chamam de self” (p. 46).
o integracionismo da década de 70. Ele
Tan: anseios psicológicos e espirituais
acredita ter domesticado a mensagem “radi-
ou necessidade de significado, amor e
calmente bíblica”, assimilando Adams como
esperança (p. 34-37, 50ss).
uma contribuição a mais em sua mistura
eclética. Por exemplo, o sistema de aconse- Uma variedade de teorias da necessida-
lhamento para leigos de Siang-Yang Tan é de está na base de seu entendimento sobre a
um sincretismo de Jay Adams, Larry Crabb motivação humana, embora o egocentrismo
e Gary Collins. Dois exemplos de literatura não seja proclamado de modo descarado
recente do Grande Guarda-Chuva são: como no Mercado das Pulgas.
Stanton Jones & Richard Butman - Há diferenças entre Tan e Jones &
Modern Psychoterapies: A Comprehen- Butman. Tan tem uma afinidade declarada
sive Christian Appraisal (Psicoterapias com a visão de coração desenvolvida por
Atuais: uma Avaliação Cristã Abran- Larry Crabb. Quanto a Jones & Butman,
gente). destacamos aqui dois aspectos esclarecedores
de seu conceito de motivação humana.
Siang-Yang Tan - Lay Counseling: Equi-
Em primeiro lugar, o comentário “A
pping Christian for a Helping Ministry.
Bíblia não fala muito a respeito da motivação
(Aconselhamento Leigo: Equipando os
humana” surpreende. Como alguém pode
Crentes para um Ministério de Ajuda)5
dizer isso? A Bíblia que temos em mãos trata
da motivação humana de modo fundamental
O que está no centro do coração e amplo. Como é possível Jones & Butman
do homem? não verem nas Escrituras nada que diga
Esta é a maneira como os autores acima respeito à questão da motivação humana?
citados apresentam as questões essenciais da O que eles procuram - e não encontram na
natureza humana: Bíblia - é a espécie de definição de motivação
Jones & Butman: “a Bíblia não diz que a psicologia secular adota, definindo
muito a respeito da motivação huma- listas de impulsos, necessidades ou desejos
na”, mas podemos ver em Gênesis 2 centrais motivadores sem levar em conta o
que o homem tem necessidades fun- relacionamento do homem com Deus. O que
damentais de exercer uma atividade se procura é definir a natureza humana com
com propósito e de relacionar-se de relação ao próprio homem e não a Deus;
modo amoroso com outros (p. 47- analisar o coração em si mesmo e não com
49). “Biblicamente, coração é o que os relação a Deus. Exemplos de abordagens a
respeito da motivação humana que poderiam
preencher os critérios de Jones & Butman
quanto a “falar mais” seriam a hierarquia de
5
JONES, Stanton, BUTMAN, Richard. Modern necessidades de Maslow, a distinção com-
psychoterapies: a comprehensive Christian appraisal. Downers
Grove, Ill.: InterVarsity, 1991.
portamental entre estímulos primários e
TAN, Siang-Yang. Lay counseling: equipping Christian
secundários, as definições freudianas de Eros
for a helping ministry. Grand Rapids, Mich.: e Tanatos e os conflitos entre ego e superego.
Zondervan, 1991. A Bíblia não fala muito sobre motivação hu-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 93
mana conforme Jones & Butman imaginam, Cada uma destas esferas da atividade
pois Deus define as questões do coração à luz humana encontra ilustrações abundantes
do relacionamento do homem com Ele. na Bíblia. Todavia, listá-las ou priorizá-las
Jones & Butman definem “a ação” da torna-se relativamente incoerente para o
motivação humana como uma necessidade entendimento da motivação humana. As
de exercer atividade que confira propósito Escrituras subordinam tudo a uma cate-
e de manter relacionamento amoroso com goria principal de motivação: o homem
outros. Cremos que estas coisas são melhor é uma criatura religiosa que adora, serve,
entendidas quando consideradas como es- ama, espera em, busca, confia em, teme...
feras auto-evidentes da atividade humana. alguma coisa - seja Deus ou um substituto
Certamente os seres humanos operam den- para Deus. Desta forma, há um divisor no
tro de relacionamentos interpessoais e rea- que diz respeito à natureza social do homem:
lizações produtivas. Isso é um truísmo, não as pessoas estão comprometidas com serem
uma verdade significativa para dar direção a amadas ou com amar. Há um divisor no que
um sistema. Jones & Butman não percebem diz respeito à natureza econômica do ho-
a questão de motivação, ou de relacionamen- mem: as pessoas estão comprometidas com
to com Deus, envolvida nesta e em todas as tirar vantagem financeira ou com praticar
demais esferas do funcionamento humano. gratidão, contentamento e generosidade. Há
Se esferas de atividade são tão importantes, um divisor básico, um divisor religioso, em
por que limitar a lista àquelas que dizem cada esfera. Jones & Butman, à semelhança
respeito ao homem como ser social (que dos psicólogos seculares que modelam para
deseja ser amado) e ser produtivo (que deseja eles a idéia de como deve ser uma teoria da
realizar alguma coisa)? Poderíamos facil- motivação, dão muita atenção ao mosquito
mente adicionar outras esferas de atividade e ignoram o camelo. Para eles, as Escrituras
humana, todas significativas e instintivas. são deficientes no que concerne à motivação
O homem é obviamente um ser somático, humana porque Deus não se preocupou em
continuamente voltado a experimentar a providenciar um catálogo sistemático de
sensação de conforto ou desconforto, dor ou mosquitos!
prazer. O homem é um ser que produz algo Em segundo lugar, como deveríamos
com sentido, que está sempre ordenando e entender o comentário de Jones & Butman
interpretando a vida. O homem é um ser sobre a equivalência do coração mencio-
econômico, orientado para dinheiro e bens nado na Bíblia com o conceito secular
materiais. O homem é um ser político, que de self? Este ponto ilustra bem a fraqueza
se envolve instintivamente com questões de essencial da antropologia e da epistemolo-
poder, autoridade e submissão. O homem é gia integracionistas. Integracionistas vêem
um ser moral, que sempre avalia de acordo sinônimos onde um olhar mais cuidadoso
com critérios de certo ou errado, bom ou revela antônimos. Na antropologia bíblica,
mau. O homem é um ser preocupado com o coração tem a ver como o relacionamento
glória, alerta para questões de status e suces- do homem com Deus ou com falsos deuses
so. O homem é um ser estético, criativo e do mundo, a carne e Satanás. A questão
sensível à beleza, metáforas, ritmo e ordem. essencial do coração é a pergunta: “Quem
O homem é... São muitas as facetas. ou o que me governa? A que vozes eu dou
94 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
ouvido?” Contrariamente ao que Jones & às vezes de teorias e sistemas que seriam caso
Butman afirmam, nem mesmo um só dos contrário incompatíveis, bem como esforçar-
psicólogos ou filósofos aos quais eles se re- se para encontrar elementos válidos em todas
portam entendem “o homem com respeito as doutrinas e teorias e combiná-los em um
a Deus” quando falam do self como o centro todo harmonioso.”6 A integridade daquele
da identidade do homem. Eles entendem o que executa a integração é a principal garan-
homem com relação a si mesmo - uma idéia tia da verdade; a mente e a prática daquele
absolutamente estranha à Bíblia, a não ser que executa a integração é o principal centro
quando se leva em consideração a descrição onde a verdade é forjada. Procedendo desta
que pecadores gostariam de poder dar a seu forma, o Grande Guarda-Chuva nega que
respeito. Devido à própria natureza secular as Escrituras fornecem o “todo harmonioso”
de seu pensamento, os pensadores seculares sobre os seres humanos do ponto de vista de
preferem interpretar o homem como self e Deus - a Verdade.
não como um coração perante Deus. Para Jones & Butman, a exegese não
O conceito de self na filosofia e psi- desempenha papel algum nas trincheiras
cologia seculares não é equivalente ao con- da teoria e da prática do aconselhamento.
ceito bíblico de coração. É um equivalente Aquilo que identificam como crenças cris-
funcional, ou seja, uma falsificação e um tãs reguladoras são generalidades teológicas
substituto. Dizer “O coração de que a Bíblia superficiais e abertas a uma aplicação espe-
fala é o que psicólogos e filósofos freqüen- culativa e idiossincrática. Após afirmar o fato
temente chamam de self” equivale a dizer óbvio de que a Bíblia não é uma enciclopédia
“Quimicamente, açúcar é o que as pessoas exaustiva (ela não contém todos os fatos),
em dieta chamam de sacarina”. Não faz sen- eles concluem que a Bíblia é útil apenas de
tido. Trata-se de coisas diferentes. O segundo modo geral:
funciona como substituto e falsificador do Embora a Bíblia nos forneça as res-
primeiro. Por outro lado, faz perfeito sen- postas principais e mais importantes,
tido que nenhum pensador secular veja o bem como o ponto de partida para
arrependimento em Cristo, o novo coração conhecer a condição do ser humano,
e o poder do Espírito Santo como central ela não é um guia suficiente para
para uma mudança significativa, visto que a disciplina do aconselhamento.
sua antropologia proíbe tais respostas e pres- A Bíblia é inspirada e preciosa,
creve outras. Jones & Butman subestimam mas é também uma revelação com
seriamente o efeito noético do pecado nos propósito limitado, cuja principal
sistemas seculares elaborados para descrever, preocupação é religiosa no que diz
explicar e mudar os seres humanos. respeito à apresentação do plano
redentor de Deus para seu povo e
Como conhecemos a verdade? às grandes doutrinas da fé.7
Jones & Butman (capítulo 15) ensinam Palavras bonitas para dizer que a Bíblia
um ecletismo franco, mas declaradamente é deficiente. Eles entendem mal a natureza
“responsável”, que Tan exemplifica (capí-
tulos 3 e 4). “Faz pleno sentido selecionar e 6
JONES, Stanton, BUTMAN, Richard. Op. Cit. p.
combinar de maneira ordeira características 382.
compatíveis provindas de diferentes fontes, 7
Idem, p. 27
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 95
da Palavra de Deus. Enquanto a teologia o que nos impressiona é exatamente a
de Jones & Butman está cheia de amplas amplitude de propósito das Escrituras e a
generalizações, a teologia bíblica prendenos relevância dos seus detalhes. A vida humana
ao exame do detalhes das lutas que caracteri- é essencialmente religiosa nos detalhes de
zam a vida real dos seres humanos. Jones & comportamento, pensamento, emoção e
Butman ignoram aquilo para que a Bíblia é motivação, e as Escrituras são perfeitamen-
verdadeiramente útil quando tratam do su- te aplicáveis a cada um destes aspectos. As
posto ensino de 2 Timóteo 3.16 ss e afirmam grandes doutrinas da fé - e a multidão de
que a Bíblia é apenas um recurso “útil” entre pequenos detalhes também - incluem todas
vários recursos.8 as categorias para o entendimento dos seres
Certamente os conselheiros bíblicos humanos e todas as práticas pastorais que
concordam que a Bíblia não é uma enci- Deus usa para transformar pessoas. Em
clopédia exaustiva. Usamos e buscamos última análise, o “ecletismo responsável” de
informações extra-bíblicas continuamente. Jones & Butman é simplesmente uma versão
Colhemos dados de um casal em confli- sofisticada de “cada um faz o que lhe parece
to, por exemplo, buscando ansiosamente reto aos próprios olhos”.
aqueles detalhes extra-bíblicos que podem O integracionismo sofisticado procura
acionar o uso da verdade bíblica! Podemos distanciar-se das mercadorias grotescas mas-
comentar: “Guilherme, quando você disse cateadas no Mercado das Pulgas. Mas com
aquelas coisas para Susana em tom irado...”. freqüência, um forasteiro “ingênuo” percebe
Não precisamos pedir desculpas por estar com maior clareza as roupas do imperador. É
enfileirando quatro dados não bíblicos (Gui- o caso do sociólogo James Hunter, que anali-
lherme, as coisas ditas, Susana e o tom irado). sa em American Evangelicalism a acomodação
Mas nosso entendimento é diametralmente do evangelicalismo contemporâneo à cultura
oposto ao de Jones & Butman quando dize- moderna.9 Ele compara em seu livro as dife-
mos que as Escrituras não são um catálogo renças entre a psicologização grosseira da fé
exaustivo de fatos sobre todas as pessoas, em evangélica e a psicologização sofisticada:
todo tempo e em todo lugar. Eles diferem no grau de sofisticação.
Nós sabemos - e eles não acreditam - Em certo nível está a psicologização grosseira
que a Bíblia é suficiente em seu conteúdo da linguagem e das ilustrações bíblicas...
como guia para a disciplina do aconselha- Num nível mais elevado, está a síntese do
mento. As Escrituras orientam as perguntas biblicismo com o secularismo ou a psico-
feitas na coleta de dados; elas explicam e logia freudiana... Ainda assim, a diferença
expõem os motivos da ira de Guilherme; elas substancial é superficial, pois o que eles
dão o mapa detalhado para o caminho da todos compartilham é um Cristocentrismo
pacificação. Por exemplo, Tiago 3 e 4, Efésios psicológico...”10
4, Mateus 7 e 18, e Gálatas 5 e 6 falam do
que está acontecendo no relacionamento de 9
HUNTER, James Davison. American evangelicalism:
Guilherme e Susana, e no relacionamento conservative religion and the quandary of modernity.
de cada um deles com Deus. Na verdade, New Brunswick, N.J.: Rutgers University, 1983. Em
especial o capítulo Accommodation: The Domestication of
Belief e, em particular, às p. 91-99.
Idem, p. 26
8 10
Idem, p. 95.
96 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Ele descreve esta fé psicologizada como gicos Para Desenvolver Relacionamentos
subjetiva, preocupada com o self e a “saúde Saudáveis.13
mental”, hedonista, narcisista e voltada para
as “necessidades” e os sentimentos do ho-
O que está no centro do coração
mem moderno11. A fé psicologizada ensina
do homem?
um tipo de auto-exame que se afasta de como
Crabb tem a seu favor o fato de ser
os protestantes tradicionalmente sondavam
muito crítico para com o integracionis-
suas vidas motivados por uma preocupação
mo descuidado do Mercado das Pulgas e
primordial com “o domínio do pecado na
também o integracionismo cuidadoso do
vida do homem e o processo de mortificação
Grande Guarda-Chuva. Mas é difícil ignorar
e santificação”12. Apesar de todas as dife-
a existência de um paralelo entre Crabb e os
renças declaradas entre o integracionismo
demais integracionistas.
caótico e o sofisticado, eles possuem em
A explicação que Crabb oferece para a
comum alguns pontos essenciais: (1) uma
motivação humana pressupõe necessidades
visão antropocêntrica daquilo que constitui
ou anseios por amor e por realizações signi-
o âmago do ser humano, e (2) um abraçar
ficativas. Exigências idólatras e estratégias de
sistemático das “riquezas” da psicologia secu-
vida pecaminosas são reações secundárias e
lar devido à inadequação das Escrituras para
compensações, maneiras erradas de buscar o
promover auto-entendimento e mudança
suprimento destas necessidades.
significativos. Logicamente, eles também
A teoria de Crabb sobre necessidades
compartilham um terceiro ponto básico:
não é portadora do egocentrismo declarado
uma versão revisada do evangelho que faz de
do Mercado das Pulgas. Mas seu sistema
Cristo um servo das necessidades emocionais
ainda gira ao redor da experiência humana
e psicológicas do ser humano.
de anseios ou sofrimento. O coração neces-
sitado, ferido, cheio de anseios do “círculo
3. “Boas intenções, apesar de pessoal” de Crabb tem prioridade sobre o
tudo”: o integracionismo pecado. A perspectiva bíblica a respeito do
encoberto coração caminha em direção oposta: a vida
Este é um integracionismo aparente- gira em torno do nosso relacionamento
mente involuntário - ele reivindica opor- com Deus ou com falsos deuses, não ao
se à psicologia e trabalhar em categorias redor de necessidades idólatras sentidas por
bíblicas. Mas as categorias da psicologia pecadores.
acabam escorregando para os fundamentos
do modelo de aconselhamento bíblico. O Como conhecemos a verdade?
exemplo principal é: Para Crabb, a exegese das Escrituras é
reconhecidamente o ponto de partida.14
Larry Crabb - Como Compreender as As categorias bíblicas são suficientes
Pessoas: Fundamentos Bíblicos e Psicoló- para responder às perguntas do conselheiro...
13
CRABB, Lawrence Jr. Como compreender as pessoas:
fundamentos bíblicos e psicológicos para desenvolver
Idem, p. 99.
11
relacionamentos saudáveis. São Paulo: Vida, 1998.
Idem, p. 94
12 14
Idem, p. 65ss.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 97
[Nossa tarefa] é pensar sobre a vida dentro da natureza humana e uma epistemologia
das categorias que as Escrituras fornecem. A funcional defeituosa. Para os integracionis-
autoridade para nosso pensamento depende tas, o pecado nunca é a questão específica
de em que grau ele brota das categorias bíbli- que está na base dos problemas da vida.
cas claramente ensinadas.15 Essas afirmações E as categorias que emergem da exegese
podem ser assinadas por qualquer conse- cuidadosa das Escrituras nunca são as cate-
lheiro bíblico. gorias significativas para entender e ajudar
Na verdade, de onde Crabb extrai as as pessoas.
categorias que moldam o seu sistema? As
Escrituras não trazem o conceito de Crabb 1. “O que está no centro do
sobre “anseios profundos/necessidade de coração do homem?”: a questão
relacionamento e impacto”, nem o Jesus que da antropologia
Crabb apresenta como vindo ao nosso en- Biblicamente, o coração do homem é
contro em primeiro lugar como um supridor o cadinho onde o Primeiro Grande Manda-
de necessidades, nem sua análise reducionista mento é testado: você ama, teme, serve, ouve
da psique em quatro círculos - emocional, e confia em Deus? Ou você ama, teme, serve,
volitivo, racional e pessoal, nem mesmo sua ouve e confia em ídolos, em si mesmo, em
distinção entre anseios casuais, críticos e cru- outras pessoas, no desempenho, nas riquezas,
ciais, ou ainda sua definição de feminilidade em Satanás e em desejos descontrolados (de
e masculinidade ontológicas. Essas idéias são amor, importância, auto-estima, controle,
o carro-chefe e a característica distintiva do entre uma multidão de outras coisas)? Em
sistema de Crabb. Ao mesmo tempo são uma outras palavras, a lei de Deus atinge as ques-
negação explícita dos alvos estabelecidos por tões mais profundas da vida do homem, e
Crabb. Elas são exegética e teologicamente não com teorias que voam nas alturas, mas
insustentáveis. “Cada um fazia o que achava com os pés no chão do cotidiano: compor-
mais reto”. Boas intenções não são cercas de tamento, pensamento, emoções, prioridades,
proteção contra os efeitos noéticos do pecado relacionamentos, atitudes, consciência,
nos sistemas de pensamento. desejos e tudo mais.
J. C. Ryle comenta com perspicácia:
A crítica fundamental: Há muito poucos erros e doutrinas
o que une estas formas aparente- falsas cujo início não se reporta a
mente diferentes de integracionis- uma visão incorreta da corrupção da
mo? natureza humana. Perspectivas er-
Tanto o Grande Guarda-Chuva como radas quanto a uma doença sempre
Boas Intenções Apesar de Tudo odeiam os trazem consigo perspectivas erradas
excessos do Mercado das Pulgas e procuram quanto ao remédio. Perspectivas
manter distância tanto de uma teologia erradas quanto à corrupção da natu-
visivelmente ruim como do uso descuidado reza humana sempre trazem consigo
da psicologia. Mas em última análise, todo perspectivas erradas quanto ao antí-
integracionismo revela uma visão defeituosa doto e cura de tal corrupção.
É impressionante como as três formas
de integracionismo - caótico, sofisticado e
Idem, p. 78. Ênfase do autor.
15
encoberto - unem-se no definir sua visão do
98 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
âmago do homem. Apesar de suas diferen- mentos errados. Os conselheiros bíblicos têm
ças, todas elas estão centradas no homem. muitas falhas. Mas creio que pela graça de
Os integracionistas sistematicamente fazem Deus costumamos estar fundamentalmente
das necessidades e desejos do homem algo certos e ocasionalmente errados, loucos ou
fundamental. Eles nomeiam certas formas de cegos. Que Deus possa dispor nosso cora-
cobiça da carne como “necessidades”. Desta ção para avaliar o que temos feito, e para ir
forma, apresentam teorias sobre necessidades adiante, arrependendo-nos de nosso pecado
em lugar de teorias sobre o pecado, e focali- e crescendo em sabedoria. Por outro lado,
zam a atenção em supostas necessidades bá- os integracionistas costumam estar funda-
sicas de receber amor, sentir-se bem consigo mentalmente errados e, pela graça de Deus,
mesmo ou realizar algo de valor. Segundo a ocasionalmente certos, sábios e percepti-
lógica de cada uma dessas teorias, o coração vos. Esta diferença é tremenda. Que Deus
humano é fundamentalmente bom, mas possa lhes conceder um coração disposto a
devido ao caminho árduo no mundo caído, deixar-se dissuadir de um erro fundamental
os corações tornam-se vazios, necessitados, e destrutivo.
cheios de anseios e feridos.
Em sua profissão de fé cristã, todos os 2. “Como conhecermos a verda-
integracionistas concordam que o pecado de?”: a questão da epistemologia
é um fato. Todos professam acreditar na As Escrituras são amplamente sufi-
responsabilidade humana. Ao longo do cientes para entender os aspectos da natureza
caminho, acidentalmente, alguns fazem humana e os processos de mudança que são
comentários que são sábios e perceptivos. essenciais para um aconselhamento sábio e
(Naturalmente, estas “felizes inconsistências” efetivo.
são mais freqüentes em alguns do que em É impressionante como as três formas
outros). de integracionismo - caótico, sofisticado e
Todos professam crer em Marcos encoberto - unem-se também na maneira
7.21-23: “ Porque de dentro, do coração dos como constroem suas idéias básicas. Apesar
homens, é que procedem...”, mas a lógica de de suas diferenças, cada um dos modelos
um sistema psicologizado define esse coração integracionistas é fundamentalmente eclé-
de tal modo que “de dentro de um coração tico e obstinado no erro, em lugar de ser
ferido, necessitado, legitimamente cheio de exegética e sistematicamente submisso à
anseios é que procedem...”. A RAZÃO FI- Palavra de Deus. Todos são receptivos à
NAL de nossos problemas está logicamente má interpretação do ser humano oferecida
naquelas pessoas que nos prejudicaram, pela psicologia secular. Todos falham em
que não supriram nossas necessidades, que construir um sistema consistentemente
deixaram nossos anseios insatisfeitos. bíblico, e firme exegética e teologicamente.
Nossa ênfase aqui está na lógica do As grandes doutrinas da fé são ignoradas de
ensino integracionista. As “felizes inconsis- modo variável, transigidas, amalgamadas
tências” que encontramos nos trabalhos dos com idéias estranhas a elas. A tendência
escritores integracionistas são questões pela eclética da mente integracionista não anseia
quais Deus pode ser louvado. Mas é difícil por alimento sólido para o corpo de Cristo.
aplaudir autores que tentam com tanta per- Os integracionistas não trabalham na exegese
sistência construir seus sistemas sobre funda- da Palavra; eles impõem suas idéias à Palavra
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 99
e buscam textos para prová-las, algumas vezes (“Você está sobretudo ofendendo a MIM”)
temerariamente. e as implicações estabelecidas (“Eu tenho o
direito de estar irada com você”) refletem o
Como os conselheiros pecado dela mesma contra Deus. Ela não
bíblicos devem encarar tem idéia de como o evangelho pode mudar a
a psicologia e usá-la? ambos. Ela não tem idéia de como ganhar ou
Depois de criticar o uso da psicologia confrontar o marido de modo piedoso. Seu
pelos integracionistas, o que pode ser dito a esquema de interpretação não inclui Deus -
respeito de como os cristãos fiéis à Palavra ou melhor, coloca o intérprete no lugar de
devem encarar a psicologia? Esta é uma ques- Deus. As implicações de “aconselhamento”
tão crucial, pois a crítica ao integracionismo que ela estabelece servem aos interesses de
emerge de um entendimento positivo de sua autonomia com respeito a Deus. Os
como a Bíblia nos chama a interagir com conselheiros bíblicos viram pelo avesso suas
o erro. Também é uma questão ampla, e observações e preocupações, e as devolvem
desenvolveremos aqui apenas os contornos de ponta-cabeça. A partir daquilo que ela
gerais de uma resposta. disse, aprendemos várias coisas úteis e provo-
As assim chamadas “verdades” da psi- cativas a respeito dela e possivelmente de seu
cologia são análogas à “verdade” que uma marido (pois precisamos verificar). Mas não
esposa descrente irada pode dizer ao amal- aceitamos o seu esquema interpretativo nem
diçoar seu marido crente pecador: “Você se mesmo por um minuto, porque as Escrituras
casou com seu trabalho, não comigo, você é nos dão um conjunto diferente de lentes.
um *%*#! Cada palavra que sai da sua boca À medida que fazem observações,
é cortante e mesquinha. Eu queria que você formulam teorias e as aplicam na prática, os
fosse apenas um pouco amável e compre- psicólogos assemelham-se a esta aconselhada
ensivo comigo e com as crianças.” Será que irada. Eles percebem muitas coisas, mas as
ela disse a “verdade”? Como conselheiros torcem para evitar relacionar com Deus aqui-
bíblicos, respondemos “sim” e “não”, e vamos lo que vêem. A pedra angular da interação
cuidadosamente explicar o que queremos bíblica com a psicologia é o reconhecimento
dizer. da antítese entre a verdade bíblica e a psico-
Essa mulher pode estar tremendamente logia. E contrário ao que se pensa, não foram
certa a respeito de seu marido em determi- os conselheiros bíblicos que deram início a
nados aspectos. Ela vê o cisco que está no esta hostilidade! Os psicólogos opõem-se à
olho (análogo à precisão descritiva de muitas verdade de Deus à medida que expressaram
observações feitas pela psicologia). Mas ela de maneira sistemática o efeito noético de
ignora muitos outros elementos relevantes seu pecado. A priori, a pressuposição de
a respeito da situação (assim como fazem os que eles podem dar explicações corretas a
psicólogos). E suas conclusões são atiradas respeito das pessoas, sem fazer referência a
com erro mortal e necessitam de uma rein- Deus, prendeos ao erro.
terpretação drástica feita por um conselheiro Qual o papel - se é que há algum - que
sábio. Ela nem imagina que aquilo que des- a psicologia deve ter em nosso modelo de
creveu de modo perceptivo é em primeiro aconselhamento? Ela não deve ter papel em
lugar o pecado de seu marido contra Deus. nosso modelo de aconselhamento. Mas as
Muito menos ela sabe que sua explicação observações seculares podem ter um papel
100 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
ilustrativo, quando radicalmente reinter- que as lentes das Escrituras nos equipam para
pretadas, fornecendo exemplos e detalhes utilizar reinterpretando construtivamente:
que ilustram o modelo bíblico e completam as observações daquela aconselhada
nosso conhecimento. Elas podem também irada ou qualquer outro aconselhado
ter um papel provocativo, desafiando-nos a que não esteja pensando biblicamente.
desenvolver nosso modelo em áreas sobre Os conselheiros bíblicos reinterpretam
as quais não temos pensado ou que esta- continuamente os dados que ouvem,
mos negligenciando. Jay Adams faz esta classificando em categorias bíblicas
consideração de modo sucinto em seu livro os detalhes colhidos. Esse trabalho
Conselheiro Capaz. A psicologia pode ser reinterpretativo está no centro tanto da
um “acessório útil” de duas maneiras: (1) tarefa de aconselhar como do processo
“para ilustração, para preencher com dados de crescimento e amadurecimento
específicos as generalizações”; e (2) “para ministerial do conselheiro;
desafiar as interpretações errôneas das Escri-
romances em que cobiça, orgulho,
turas, forçando assim o estudioso a reestudar
medo luxúria e muitos outros temas
a Bíblia”.16
são retratados em ação. A ficção de
Fazendo uma retrospectiva dos últi-
qualquer tipo não deve ser lida como
mos quinze anos de The Journal of Pastoral
se tivesse autoridade epistemológica.
Practice, ficamos admirados em ver como os
Mas se as categorias bíblicas estão no
escritores foram consistentes em destacar a
controle, esse material amplia o sorti-
antítese fundamental entre as pressuposições
mento de nossas aplicações bíblicas e
bíblicas e seculares, e em utilizar a psicologia
nos força a pensar sobre coisas em que
e outras fontes seculares atribuindo-lhes
talvez não havíamos pensado antes ou
papel ilustrativo e provocativo.18
a perceber coisas que talvez não havía-
Os papéis ilustrativo e provocativo da
mos percebido;
psicologia não são diferentes dos papéis que
os conselheiros bíblicos sábios atribuem o jornal diário, impregnado de adora-
a qualquer outra fonte de conhecimento ção à riqueza, poder político e mentiras
extra-bíblico. Damos aqui alguns exemplos sobre o pecado. Os pregadores bíblicos
de conhecimento extra-bíblico distorcido podem citar o jornal não porque ele
16
ADAMS, Jay E. Conselheiro capaz. 4. ed. São Paulo: as crítica de Szasz e Mowrer à psiquiatria— serve
Fiel, 1984. P.18. como adjunto à crítica normativa das pressuposições
Compare com outros escritos de Adams: O Manual seculares a partir das Escrituras. O fato de que algumas
do conselheiro cristão. São Paulo: Fiel, 1982. p. 76-101; pessoas no mundo secular percebem que certas
Counseling and the sovereignty of God, e Integration em teorias seculares não são verdadeiras e que certas
The Journal of Pastoral Practice, v. 1, n.1, 1983, p. 3-7, práticas seculares não são de ajuda ilustra e fortalece
inseridos em How to help people change. Grand Rapids, nossa crítica. Entre os críticos da psicologia, Martin e
Mich.: Zondervan, 1986. p. 33-40. Deidre Bobgans são aqueles que com maior freqüência
usam as críticas da própria psicologia como aliadas
18
Adams e outros conselheiros bíblicos também ilustrativas. Eles freqüentemente coletam dados de
usaram a psicologia de uma terceira maneira: como pesquisa feita por psicólogos seculares e os usam
aliada na batalha. A crítica que um psicólogo faz ao como prova para desmascarar as psicologias que os
outro, dentro do próprio campo profissional—p. ex. cristãos estão bebendo.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 101
tenha autoridade, mas porque ilustra a “Aqui está um aspecto da ira que eu nunca
verdade bíblica e pode nos fazer parar havia visto antes.” Cada uma delas pode nos
para pensar em coisas que nunca haví- provocar a pensar biblicamente a respeito
amos considerado antes; de algo que não havíamos considerado com
atenção: “Como encarar este problema ou
a pesquisa médica a respeito das doen-
ajudar esta pessoa?”. Uma vez desmascara-
ças psicossomáticas e sua ocorrência.
dos em suas pretensões de conhecimento
Não compramos suas categorias, mas
especializado ou “ciência”, os psicólogos
podemos considerar - e reinterpretar
têm a mesma percepção distorcida e irreal
- suas observações como ilustrações
de qualquer outro grupo de pecadores. Eles
do relacionamento “fisiológico-espi-
podem talvez fazer um trabalho empírico de
ritual”;
observação que não precisamos repetir, mas
sociologia, história, arqueologia, antro- que devemos reinterpretar radicalmente de
pologia comparada etc. Assim como faz acordo com a verdade bíblica. Esse trabalho
com a psicologia, o cristão bíblico não reinterpretativo - seja ele feito no escritório
aceita que estas disciplinas estabeleçam de aconselhamento, a sós ou durante a leitura
normas. Esses estudos sobre a vida do - é uma extensão lógica do ato de perceber as
ser humano - quando explicitamente antíteses entre a verdade bíblica e as teorias
baseados em pressuposições bíblicas ou seculares. O que psicólogos - e aconselha-
quando consistentemente reinterpreta- dos, romancistas, médicos e outros - estão
dos pelas lentes de pressuposições bíbli- realmente enxergando?19
cas - podem ser usados para descrever Vamos dar um último exemplo. A
determinadas pessoas em determinada utilidade das observações da psicologia não
época.18 é diferente da possível “utilidade” da leitura
de um romance como Fogueira das Vaidades
auto-conhecimento de meus pecados
de Thomas Wolfe. Wolfe retrata em ação
e tentações. Minha aplicação pessoal
alguns pecados e idolatrias próprios do ser
de 1 Coríntios 10.12,13 não cria uma
humano (coisas que conheço pela Bíblia),
verdade, mas ilustra, explica em por-
dando-lhes uma cor e detalhes típicos de
menores, e personaliza a verdade.
“Nova Iorque dos anos 80” (coisas que eu
Nenhuma dessas fontes acrescenta algo não conhecia previamente, por não viver em
ao modelo bíblico da natureza humana e
ao aconselhamento. Cada uma delas ilustra
em detalhes exuberantes, intencionalmente 19
Para um retrato mais completo de como as
ou não, o modelo bíblico do ser humano: pressuposições bíblicas nos constrangem a ver
as antíteses e capacitam para um trabalho de
reinterpretação, consulte Jay E. Adams em O manual
do conselheiro cristão. São Paulo: Fiel, 1982. P. 76-101.
18
Para uma discussão da utilidade descritiva da Para exemplos específicos de reinterpretação de
sociologia quando subordinada às pressuposições observações seculares, veja os seguintes artigos de
bíblicas, consulte os livros de Jay Adams More than David Powlison: Human defensiveness: the third way em
redemption: a theology of Christian counseling. Phillipsburg, The Journal of Pastoral Practice, v. 8, n.1, 1985, p. 40-55;
NJ Presbyterian & Reformed, 1979. p. 101; Consulte também o livro de David Powlison Ídolos do
Communicating with 20th century man. Phillipsburg, NJ: coração e Feira das Vaidades. Brasília: Refúgio, 1996, e o
Presbyterian & Reformed, 1979. p. 33. artigo nesta coletânea Como você se sente? .
102 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Nova Iorque). Será que Fogueira das Vaidades estilos de vida e como eles se desenvolvem.
“ajuda-me” a aconselhar alguém da sociedade Com freqüência, no aconselhamento ou
nova-iorquina? Pessoalmente, já me ajudou. durante a leitura - e até no aconselhar a nós
Não porque aceitei o esquema interpretativo mesmos! - precisamos dar passos reinterpre-
de Thomas Wolfe ou saboreei aquilo que tativos que viram todos os dados pelo avesso
ele descreveu, mas porque o modelo bíblico e os devolvem de ponta-cabeça21
prontamente explicou as observações que ele Os conselheiros bíblicos que falham
fez a respeito das pessoas. na compreensão cuidadosa da natureza da
Os conselheiros bíblicos enfrentam um epistemologia bíblica correm o risco de atuar
desafio duplo: reter fielmente as categorias como se as Escrituras fossem exaustivas,
da verdade bíblica e crescer na perspicácia e não abrangentes; como se as Escrituras
aplicativa aos diferentes seres humanos. Jay fossem um catálogo enciclopédico de todos
Adams fala disso da seguinte maneira: os fatos significativos, e não a revelação di-
Por conseguinte, o pecado, em todas as vina de fatos cruciais, ricamente ilustrados,
suas dimensões, é evidentemente o problema que produzem uma cosmovisão suficiente
com que o conselheiro cristão se vê a braços. para interpretar quaisquer outros fatos que
As dimensões secundárias - as variações do encontramos; como se as Escrituras fossem
tema comum - é que tornam o aconse- um conjunto de elementos isolados, e não
lhamento algo tão difícil. Apesar de todos a lente pela qual interpretamos todos os
os homens terem nascido pecadores e se elementos. Os integracionistas vêem as
ocuparem das mesmas práticas pecaminosas Escrituras como um pequeno conjunto de
evasivas, cada qual desenvolve o seu próprio elementos e a psicologia como um grande
estilo de pecado. Os estilos (combinações de conjunto de elementos.
pecados e evasões) são peculiaridades de indi- A lógica da epistemologia integracio-
víduo para indivíduo; porém, abaixo desses nista é essa: una os dois conjuntos, elimine
estilos ficam os temas comuns. O trabalho os elementos obviamente ruins da psicologia,
do conselheiro consiste em descobrir esses e você terá um conjunto maior. E esta é a
temas abaixo das individualidades.20 lógica também de pretensos conselheiros bí-
Só a Bíblia nos torna sistematicamente blicos, que acabam vendo as Escrituras como
sábios nos temas comuns da vida humana. um simples conjunto de dados. Na verdade,
Esta sabedoria amadurece e se expressa na sua epistemologia difere da epistemologia
aplicação prática à nossa própria vida, à integracionista apenas em quantidade, não
vida dos aconselhados e àquilo que lemos. em qualidade, e ela conduz a formas absurdas
Cada conselheiro bíblico sábio está engaja- de uso de textos bíblicos para provar idéias
do de modo informal, quando não formal, próprias (“Deve haver aqui um versículo
em uma pesquisa empírica ao longo de sua sobre anorexia em algum lugar”), à substi-
vida. Nesse processo, psicólogos, sociólogos, tuição da sabedoria pastoral por respostas
historiadores, aconselhados, os vizinhos des-
crentes, o jornal e Agatha Christie podem
contribuir para que percebamos os diferentes
21
Se considerarmos desde o início as categorias
bíblicas, não precisaremos usar sempre esse passo
reinterpretativo. O ideal é colhermos dados a respeito
20
ADAMS, Jay E. O manual do conselheiro cristão. São das pessoas operando desde o início dentro de
Paulo: Fiel, 1982, p. 123. categorias bíblicas.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 103
que oferecem encorajamento superficial (“O A suficiência não nos permite descansar
texto de 1 Timóteo 4.3-5 diz para comer na mentalidade de “enciclopédia” ou “con-
com ação de graças; arrependa-se, portanto, cordância”. Tenho encontrado conselheiros
por ter deixado de comer, e siga este plano bíblicos que agem como se um problema
de alimentação”), ou ainda a uma rendição não mencionado na Bíblia não fosse de fato
ao integracionismo diante do fracasso do um problema. Eles falham no apreciar o
aconselhamento (“Talvez a Bíblia não conte- âmbito da suficiência bíblica. Eles falham
nha mesmo todos os elementos; ela é apenas em perceber que tais problemas estão listados
um recurso útil, entre muitos outros, para implicitamente - dentro de “coisas seme-
adquirir alguns elementos”).22 lhantes a estas” e “toda obra do mal”. Eles
As Escrituras nos dão tanto as lentes falham no trabalho de pensar arduamente
(categorias interpretativas verdadeiras) como para demonstrar como os temas comuns da
um amplo número de exemplos concretos. verdade bíblica estão na raiz da complexi-
Mas a Bíblia em nenhum momento preten- dade idiossincrática do pecado humano, da
de fornecer todos os exemplos. Deus quer tristeza, do caos e da confusão.
que nos apropriemos de nossas lentes e nos Também tenho encontrado várias
dediquemos ao trabalho de pensar correta pessoas que no passado foram “conselhei-
e biblicamente a respeito das pessoas. Por ros bíblicos”, mas ficaram desiludidas e se
exemplo, pondere as implicações de Gálatas voltaram para o integracionismo e para as
5.19-21. Paulo lista 15 exemplos representa- “riquezas” da psicologia secular. São pessoas
tivos das obras que a carne quer produzir. Ele cuja epistemologia contém erros graves. A
insere esta lista entre dois comentários que sua epistemologia de “conjunto de fatos”
nos lembram que devemos usar nossas lentes faz a Bíblia prometer mais do que promete
bíblicas, olhar ao redor e reparar em outros (ser uma enciclopédia exaustiva) e também
115 (ou 1015!) exemplos: “Ora, as obras da prometer menos do que promete (ser apenas
carne são conhecidas e são... e coisas seme- uma enciclopédia exaustiva!). Quando seu
lhantes a estas, a respeito das quais eu vos entendimento da Bíblia se mostra insufi-
declaro”. Considere 1 Timóteo 6.10: quais ciente diante do pecado e do sofrimento
as formas específicas e incontáveis de pecado humano, a psicologia penetra na brecha,
que o amor ao dinheiro produz? Considere e a abundância de fatos que ela oferece faz
Tiago 3.16: quais são as variações incontáveis com que teorias e técnicas seculares - seme-
de caos e pecado que surgem quando as pes- lhantes a lentes distorcidas ou a uma “casa
soas estão absorvidas em si, mergulhadas em dos espelhos” - pareçam maravilhosamente
orgulho e exigências pessoais? A suficiência persuasivas.
das Escrituras nos desafia a pensar a fundo Devemos lembrar que a maioria dos
e a observar de perto tanto os indivíduos integracionistas eram anteriormente cristãos
como a cultura. bíblicos conservadores. Durante os anos de
estudo superior, diante de problemas pes-
soais ou deparando-se com os problemas
dos aconselhados, a Bíblia tornou-se repen-
Para uma abordagem que investiga o problema da
22
anorexia usando as lentes bíblicas, veja o artigo de tinamente insuficiente, e rendeu-se diante
Elyse Fitzpatrick Como ajudar mulheres com bulimia em de uma “sabedoria” secular aparentemente
Coletâneas de Aconselhamento Bíblico, v2. melhor. Essa mesma dinâmica continuará
104 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
a acontecer entre conselheiros bíblicos construir uma estratégia apropriada para
a menos que definamos precisamente o lidar com seu ouvinte:23
significado da suficiência das Escrituras. A 1. A Bíblia nunca ensina que “baixa
Bíblia é um conjunto de fatos ou é a lente auto-estima” é a questão crucial. Ganhar um
da verdade - incluindo inúmeros fatos autoconhecimento e um conhecimento de
ilustrativos - pela qual Deus corrige nossa Deus biblicamente precisos é crucial.
visão tingida pelo pecado? A habilidade dos 2. A Bíblia nunca ensina que precisa-
conselheiros bíblicos para lidar sabiamente mos amar a nós mesmos. Ela presume que
com seu pecado, aconselhar sabiamente e amamos a nós mesmos desmedidamente e
defender sua posição com firmeza depende estamos absorvidos em nós mesmos (mesmo
desta resposta. quando “odiamos” a nós mesmos). Nossa
necessidade é aprender a amar a Deus e ao
Ministrando a pessoas próximo.24
psicologizadas 3. As categorias usadas por pessoas
Como você pode convencer um inte- psicologizadas são uma miscelânea eclética
gracionista de que há uma maneira melhor absorvida de fontes que ignoram a Deus:
de entender as pessoas e ajudá-las? Normal- Alcoólatras Anônimos, movimento de
mente você vai encontrar dois tipos de inte- recuperação, psicologia psicodinâmica e
gracionistas em sua igreja ou escola: cristãos humanista25.
com problemas e cristãos que querem ajudar Como usar estas três convicções fun-
pessoas com problemas. Em geral, trata-se damentais? Poucas pessoas psicologizadas
mais de integracionistas ingênuos (do tipo ficam convencidas ao receber estas verdades
caótico ou “boas intenções, apesar de tudo”), servidas cruas. Como você pode cozinhá-las,
que de integracionistas filosoficamente com- ornamentar e servir, para aplicar a verdade
prometidos. São cristãos que não pararam em um ministério efetivo?
para pensar sistematicamente a respeito do
que acreditam, e então acumularam um mis-
tura eclética de idéias contraditórias sobre a 23
Consulte o artigo de Jay E. Adams Adaptation through
vida, os problemas e as soluções. Muitos se audience analysis em The Journal of Biblical Counseling v.
11, n. 3, Spring 1993, p. 35-37. Este artigo, juntamente
mostrarão abertos à verdade bíblica. com o livro de Adams Studies in Preaching: Audience
Como você pode ministrar a Palavra a adaptation in the sermons and speeches of Paul, apresenta
essas pessoas? Vamos dar um exemplo. Uma ao ministro da Palavra o desafio de trabalhar e adaptar
pessoa em sua igreja vem ao seu encontro a verdade sem acomodá-la.
e diz: “Sou co-dependente, tenho baixa 24
A respeito desses dois primeiros pontos, veja o livro
de Jay E. Adams The biblical view of self-esteem, self-love,
auto-estima e preciso aprender a amar a
self-image. Eugene, Ore: Harvest, 1986. Veja também
mim mesmo de verdade devido às profun- os artigos de John Bettler Gaining an accurate self-image,
das feridas que minha família disfuncional partes 1 a 6 em The Journal of Pastoral Practice,
provocou em minha criança interior.” Ou 25
Veja o artigo de Edward Welch Codependency and
então um suposto conselheiro em sua igreja the cult of self no livro de Michael Horton (ed.) Power
expressase a respeito de outra pessoa: “Ele ou religion. Chicago: Moody , 1992. p. 219-243. Consulte
também os livros de William Playfair The useful lie.
ela é co-dependente...”. Convicções bíblicas Wheaton, Ill. Crossway, 1991, e Martin e Deidre
e alguns fatos históricos lançam um funda- Bobgan 12 Steps for Destruction. Santa Barbara, Calif.:
mento importante sobre o qual você pode East Gate: 1991.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 105
Em primeiro lugar, orientado pela cados específicos (Tiago 1.14ss, 3.16): ira,
verdade que você conhece, colha fatos. Você murmuração, medo, ansiedade, autopieda-
não está participando de um debate onde as de, culpar outros, escapismo, manipulação,
idéias são lançadas de modo abstrato. Você bajulação, comportamento tipo “camaleão”,
está conversando com uma pessoa compro- imoralidade... Somente quando o “temor do
metida, pelo menos temporariamente, com Senhor” penetrar é que a sabedoria começará
idéias falsas. Você precisa alcançá-la. Por a se manifestar.
exemplo, “Diga-me o que você entende por O arrependimento inteligente e a hu-
estas palavras com que você acaba de descre- milhação diante de Deus serão possíveis, e a
ver a si mesma. Que experiências específicas, luz penetrará na escuridão. Você encontrará
emoções e pensamentos você tem em mente? uma pessoa que tem absorvido explicações
Quando você se sente “deprimida”? Em que falsas da cultura que a tem enganado e
circunstâncias você “odeia a si mesma?” mantida presa (implicação da convicção
O que você diz a si mesma? O que você 3). A verdade virá como luz e meio de li-
faz ou deixa de fazer porque você se sente bertação: “Agora vejo uma maneira muito
tão “insegura”? Como você se envolve em melhor de entender a mim mesma. Essa
“relacionamentos prejudiciais”? Quando, realidade faz sentido, lá onde aqueles outros
onde e com quem esses relacionamentos rótulos apenas me faziam sentir presa e sem
acontecem? Como é sua família, quais são esperança”.
seus erros, suas crenças e valores, quais os O conselheiro que trabalha sabiamente
modelos?” À medida que você, conselheiro, está capacitado para ajudar uma pessoa con-
mergulhar em meio aos rótulos distorcidos, fusa e indecisa a renovar sua mente, arrepen-
encontrará realidades concretas que podem der-se, e encontrar a luz da verdade, o amor
ser reinterpretadas biblicamente. e a vida. À medida que ele passa a conhecer
Você encontrará, com freqüência, uma melhor a pessoa, ganha a habilidade de afiar
pessoa que não sabe que está vivendo peca- as setas da verdade e alvejá-las com precisão
minosamente, que está buscando a aprova- naquela vida, atingindo seus pensamentos
ção humana, seguindo os próprios padrões e abrindo a porta para que o evangelho de
de realização como forma de justiça própria, Cristo possa penetrar. As verdades básicas
tentando controlar as circunstâncias da vida gerais são trabalhadas e aplicadas para expor
para tirar o máximo de vantagem pessoal e à luz convicções falsas específicas, manifesta-
conforto (uma implicação da convicção 1 ções de cobiça e pecados cometidos.
mencionada acima). Terá início, então, um O alvo de uma reinterpretação bíblica
autoconhecimento preciso. A ignorância da experiência humana é o ministério da Pa-
dominante - no sentido bíblico - pode ceder lavra que converte o coração. Podemos dizer
ao verdadeiro conhecimento. algo além de “a psicologia e a psicoterapia
Você encontrará uma pessoa que ama estão sistematicamente erradas”. Podemos
estas coisas que acabamos de descrever, que mostrar exatamente em que elas estão er-
as ama “de todo coração, alma e entendi- radas, e mostrar em detalhes a alternativa
mento”, ou seja, mais que a Deus, além bíblica que desafia e converte.
de amar a si mesma mais que ao próximo Por um lado, os integracionistas não
(uma implicação da convicção 2). Estas enxergam que a recompensa de uma inte-
atitudes e desejos dão origem a vários pe- ração bíblica válida com a psicologia deve
106 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
ser a conversão do psicologizado. De outro psicologia popular cristianizada. Algumas
lado, os conselheiros bíblicos que não se formas são mais polidas, acadêmicas e mesmo
dão ao trabalho árduo de reinterpretar o dizem algumas coisas agradáveis sobre seus
erro, atingindo-o em cheio, perdem uma críticos—o Grande Guarda-Chuva do integra-
oportunidade de ministério efetivo. A psi- cionismo teórico. Algumas formas parecem
cologia é para a nossa sociedade o que o harmonizar com a autoridade e suficiência
islamismo é para a sociedade de Marrocos. bíblica—aqueles que com Boas Intenções,
Devemos empunhar a espada evangelística Apesar De Tudo, ainda constroem sistemas
com eficácia. com molde secular. Mas em cada uma de suas
formas, o paradigma integracionista é um
Uma palavra final paradigma não-bíblico, tanto para a prática do
Os integracionistas atuais dão con- aconselhamento como para a interação com o
tinuidade ao integracionismo que os mundo da psicologia secular. Os conselheiros
precedeu. Algumas formas são mais bíblicos devem viver a alternativa bíblica e
grotescas—o Mercado das Pulgas da ensiná-la à igreja.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 107
Déficit de
Atenção/Hiperatividade:
O que você precisa saber
E d w a r d T. We l c h 1
Pais preocupados têm contribuído para juntar as peças aparentemente soltas em sua
que o Transtorno de Déficit de Atenção/ vida. A literatura sobre o assunto é campeã
Hiperatividade esteja entre os diagnósticos em promover a idéia de que “Então, esse é o
psiquiátricos mais investigados dos últimos meu problema!”.
tempos. Livros sobre o assunto não param Os cristãos devem assimilar essa in-
muito nas prateleiras. No esforço de en- formação com discernimento bíblico, à
tender melhor seus filhos e ajudá-los, os semelhança do que fazem com as demais
pais saem à procura de seminários sobre o informações que lêem e ouvem. O material
assunto e das últimas novidades divulgadas sobre Transtorno de Déficit de Atenção/
pelos meios de comunicação. A Internet tem Hiperatividade é geralmente interessante
aberto espaço considerável para o assunto. e útil, mas pode estar propenso a pressu-
Muitos adultos estão descobrindo que o posições não bíblicas e erros. Por exemplo,
Transtorno de Déficit de Atenção /Hipe- alguns livros sobre Transtorno de Déficit de
ratividade aplica-se a eles também, o que Atenção/Hiperatividade excluem as palavras
aumenta o interesse geral. Os adultos que são “mal” ou “pecaminoso”. Outros livros estão
intelectualmente capazes, mas “nunca atuam menos voltados para uma interpretação
à altura de seu potencial”, encontram no objetiva da pesquisa, e mais interessados
Transtorno de Déficit de Atenção/Hipera- em fazer todo o possível para elevar a auto-
tividade uma categoria que parece conseguir estima da criança. Outros ainda usam uma
abordagem biológica, reivindicando que o
funcionamento cerebral explica todo tipo
de comportamento. Daremos a seguir um
1
Tradução e adaptação de What you should know about
attention deficit disorder (ADD). Publicado em The Journal
panorama do assunto e algumas diretrizes
of Biblical Counseling. Glenside, Pa., v. 14, n. 2, Winter bíblicas para o entendimento do Transtorno
1996. p. 26-31. de Déficit de Atenção/Hiperatividade.
108 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Definições do Transtorno de (g) com freqüência perde coisas
Déficit de Atenção/Hiperativi- necessárias para tarefas ou ativida-
dade des (por ex., brinquedos, tarefas
A definição técnica do Transtorno de escolares, lápis, livros ou outros
Déficit de Atenção/Hiperatividade evoluiu materiais);
ao longo das últimas décadas. Sua forma (h) é facilmente distraído por estí-
atual destaca dois sintomas: desatenção e mulos alheios à tarefa;
hiperatividade-impulsividade2. (i) com freqüência apresenta es-
quecimento em atividades diárias;
A. Ou (1) ou (2) (2) seis (ou mais) dos seguintes sintomas
(1) seis (ou mais) dos seguintes sintomas de hiperatividade persistiram por pelo menos
de desatenção persistiram por pelo menos 6 6 meses, em grau mal-adaptativo e inconsis-
meses, em grau mal-adaptativo e inconsis- tente com o nível de desenvolvimento:
tente com o nível de desenvolvimento:
Hiperatividade
Desatenção (a) freqüentemente agita as mãos e
(a) freqüentemente deixa de prestar os pés ou se remexe na cadeira;
atenção a detalhes ou comete erros (b) freqüentemente abandona sua
por descuido em atividades escola- cadeira em sala de aula ou outras
res, de trabalho ou outras; situações nas quais se espera que
(b) com freqüência tem dificuldades permaneça sentado;
para manter a atenção em tarefas ou (c) freqüentemente corre ou escala
atividades lúdicas; em demasia, nas situações em que
(c) com freqüência parece não es- isso é inapropriado (em adolescentes
cutar quando lhe dirigem a palavra e adultos, pode estar limitado a sen-
(d) com freqüência não segue ins- sações subjetivas de inquietação);
truções e não termina seus deveres (d) com freqüência tem dificuldade
escolares, tarefas domésticas e/ou para brincar ou se envolver silencio-
deveres profissionais (não devido samente em atividades de lazer;
a comportamento de oposição ou (e) está freqüentemente “a mil” ou
incapacidade de compreender ins- muitas vezes age como se estivesse “a
truções); todo vapor”;
(e) com freqüência tem dificuldade (f ) freqüentemente fala em demasia;
para organizar tarefas e atividades;
(f ) com freqüência evita, antipatiza Impulsividade
ou reluta a envolver-se em tarefas (g) freqüentemente dá respostas pre-
que exijam esforço mental constante cipitadas antes de as perguntas terem
(como tarefas escolares ou deveres sido completadas;
de casa); (h) com freqüência tem dificuldade
para aguardar a sua vez;
2
A definição da American Psychiatric Association, (i) freqüentemente interrompe ou se
amplamente adotada no Brasil, é encontrada no
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. DSM-
mete em assuntos de outros (por ex., in-
IV. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 77-84. tromete-se em conversas ou brincadeiras).
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 109
B. Alguns sintomas de hiperativida- Elas podem provocar a mãe ou se envolver
de/impulsividade ou desatenção que em alguma atividade perigosa apenas para
causaram prejuízo estavam presentes tornar a vida mais interessante. Quando
antes dos 7 anos de idade. adultos, esses indivíduos são muitas vezes
caracterizados como pessoas que têm dificul-
C. Algum prejuízo causado pelos dade crônica para cumprir prazos, mudam
sintomas está presente em dois ou de emprego com freqüência (ficam ente-
mais contextos (por ex., na escola [ou diados ou são demitidos), tomam decisões
trabalho] e em casa) impulsivas, não têm uma percepção clara
de seus pontos fortes e fracos, e de como as
D. Deve haver claras evidências de outras pessoas reagem a eles.
prejuízo clinicamente significativo Com esta descrição, é mais fácil enten-
no funcionamento social, acadêmico der porque há tanto interesse no Transtorno
ou ocupacional. e Déficit de Atenção/Hiperatividade. Pais,
Estas crianças (e adultos) parecem bem como adultos que se enquadram nesse perfil,
ter bocas (e braços, mãos e pernas!) que estão em busca de algo que os possa ajudar.
correm à frente de seu pensamento. Ou seu
pensamento distrai-se e corre de um lugar Cautelas com o Transtorno de
para outro, e seu corpo tenta acompanhar. Déficit de Atenção / Hiperativi-
Cuidar de meninos que se encaixam nesta dade
descrição faz com que você se sinta como se Antes de esboçar um plano bíblico de
estivesse equilibrando uma dúzia de pratos ação, queremos destacar duas cautelas que
no ar. Os pais, freqüentemente, administram devemos ter em mente com o Transtorno
o problema afastando seus filhos de situa- de Déficit de Atenção/ Hiperatividade. Em
ções que os poderiam colocar em apuros ou primeiro lugar, Transtorno de Déficit de
provocar acidentes com outras crianças. No Atenção/Hiperatividade não é um conjunto
caso das meninas, os sintomas tendem a ser de sintomas definido com precisão. O termo
menos perceptíveis, pois embora elas possam “freqüentemente” está sempre presente nos
se distrair com muita facilidade, têm menor critérios de diagnóstico e revela a amplitude
probabilidade de serem hiperativas. Conse- dos contornos do Transtorno de Déficit de
qüentemente, elas fixam o olhar nas janelas Atenção/Hiperatividade, além de explicar a
da sala de aula, não atrapalham os colegas, razão deste diagnóstico ser tão usado3. Quase
e passam despercebidas por anos.
Crianças mais velhas podem deixar os 3
As fronteiras amplas de diagnóstico do Transtorno
adultos exasperados, pois conseguem ficar de Déficit de Atenção/Hiperatividade são apenas um
diante da TV durante horas a fio, mas não dos motivos por que ele é tão popular nos Estados
Unidos. Outra razão é a cultura em si. Embora haja
conseguem se concentrar na lição de casa crianças ao redor do mundo que demonstram altos
nem mesmo por dez segundos (TV e Nin- níveis de atividade, dificuldade para concentrar
a atenção e impulsividade, nem todas as culturas
tendo oferecem a elas movimento rápido e consideram estas coisas problema. Em algumas
excitação; lições de casa não). Em outros sociedades, este comportamento pode ser um ponto
termos, sua atenção é melhor qualificada positivo. Nos Estados Unidos e em outras culturas
ocidentais, o sistema educacional é mais condizente
como inconsistente que como taxativamente com o ouvinte quieto que com o indivíduo ativo,
deficiente. Para estas crianças, tédio é morte. espontâneo, criativo.
110 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
qualquer pessoa poderia ser enquadrada Déficit de Atenção/Hiperatividade pode lhe
nestes parâmetros - pelo menos em deter- revelar comportamentos que você não havia
minados dias. Devido à falta de precisão, considerado antes. Ainda assim, esta catego-
seria mais cuidadoso ver os comportamen- ria descritiva é limitada em sua utilidade. Ela
tos associados ao Transtorno de Déficit de não seria útil se alguém perguntasse: “Por que
Atenção/Hiperatividade como parte de um seu filho não pára quieto na cadeira?”. Se você
continuum, que fazer uma declaração de tudo respondesse “É porque ele tem Transtorno de
ou nada: “Sim, ele tem Transtorno de Déficit Déficit de Atenção/Hiperatividade”, isso não
de Atenção/Hiperatividade”ou “Não, ele seria diferente de dizer “Ele não pára quieto
não tem Transtorno de Déficit de Atenção/ na cadeira porque ele se mexe”. Você estaria
Hiperatividade”. Cada um pode se encontrar meramente descrevendo o comportamento
em algum ponto do continuum, embora não com palavras diferentes.
tenhamos como negar que algumas pessoas É importante distinguir entre descrição
estão de modo mais consistente em uma e explicação porque a literatura sobre Trans-
extremidade ou outra. torno de Déficit de Atenção/Hiperatividade,
Em segundo lugar, Transtorno de geralmente, não faz esta distinção. Muito
Déficit de Atenção/Hiperatividade é uma do debate sobre Transtorno de Déficit de
descrição de um comportamento, e não uma Atenção/Hiperatividade presume que a lista
explicação. A medicina, por meio do Ma- descritiva equivale ao estabelecimento de
nual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos um diagnóstico médico. A pressuposição
Mentais DSM-IV, tenta descrever sintomas popular de que há uma causa básica bioló-
e não explicar a causa desses sintomas. Tenta gica para os comportamentos é infundada.
responder à pergunta: “O que esta criança Embora haja dúzias de teorias biológicas para
está fazendo?”, mas não “Por que esta criança explicar o Transtorno de Déficit de Atenção/
está fazendo isso?”. Estas duas perguntas são Hiperatividade, não há até o momento in-
diferentes. Por exemplo, se você fosse um dicadores concretos para comprová-las; não
novato no mundo do automobilismo e per- há exames médicos que possam detectar sua
guntasse a respeito de um carro que acabara presença. Aditivos químicos em alimentos,
de passar em alta velocidade, uma resposta problemas de parto, problemas na audição,
descritiva seria “Este é um Ford Taurus verde diferenças cerebrais, são algumas das teorias
metálico, com motor 2.0”. Uma resposta ex- que têm deixado os pesquisadores intriga-
plicativa incluiria uma revisão dos conceitos dos, mas não há apoio evidente. Cada uma
de combustão do motor e de mecânica da pode ter algum mérito em casos específicos,
transmissão automática. mas não há uma teoria biológica que possa
A descrição do Transtorno de Déficit explicar consistentemente os sintomas. Até
de Atenção/Hiperatividade responde o que agora, não podemos dizer que alguém tem
a criança está fazendo, e não o porquê. Essas Transtorno de Déficit de Atenção/ Hipera-
descrições do que podem certamente ser tividade assim como dizemos que alguém
úteis. Por exemplo, se você quer compreen- tem uma virose.
der quais são os comportamentos específicos Por que então as explicações biológicas
que contribuem para que seu filho tenha estão tão entrelaçadas com as descrições?
um rendimento escolar sofrível, a lista de Em primeiro lugar, para algumas pessoas, as
sintomas associados ao termo Transtorno de explicações biológicas são presumivelmente a
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 111
única explicação disponível para o compor- que consideramos como personalidade.
tamento. Elas desconhecem outras causas. O coração deixa evidente que vivemos
Em segundo lugar, os pesquisadores diante de Deus e adoramos a Deus em fé
estão preocupados com o fato de que um e obediência ou seguimos nossos próprios
julgamento moral possa prejudicar uma desejos. Quando adoramos e obedecemos a
criança, pois têm visto muitas delas agredidas Deus, nosso coração expressa-se em amor,
pela punição inconsistente (e não bíblica) alegria, paz, paciência, bondade, mansidão
aplicada a “crianças más”. Para elevar a “auto- e domínio próprio (Gl 5.19-23). Quando
estima” da criança, querem evitar qualquer estamos comprometidos com nossos desejos
sugestão de que ela seja responsável pelos pessoais e os adoramos, os atos da natureza
comportamentos descritos no Transtorno de pecaminosa tornam-se evidentes, incluindo
Déficit de Atenção/Hiperatividade. contendas, murmuração, ciúmes, explosões
Visto que há uma ligação tão íntima de ira, imoralidade sexual, desobediência
entre a classificação Transtorno de Déficit aos pais.
de Atenção/ Hiperatividade e as hipóteses Em muitos casos de crianças enqua-
biológicas, devemos estar atentos ao uso que dradas no Transtorno de Déficit de Aten-
fazemos desta expressão. ção/Hiperatividade, a arena do coração é
ignorada. É possível que algo daquilo que
Como ajudar identificamos como Transtorno de Déficit de
Se alguém diz que seu filho (ou você) Atenção/Hiperatividade seja auto-indulgên-
apresenta comportamentos condizentes com cia e indolência pecaminosas? É possível que
o Transtorno de Déficit de Atenção/Hipe- uma causa significativa dos comportamentos
ratividade, não entre em pânico. Traduza a envolvidos seja um coração que exige que as
expressão Transtorno de Déficit de Atenção/ coisas aconteçam a seu modo? Certamente
Hiperatividade como “É hora de desenvolver é possível. A verdade é que o Transtorno de
um entendimento mais profundo a respeito Déficit de Atenção /Hiperatividade situa-
dessa pessoa”. se no ponto de interseção entre o físico e
Há pelo menos duas áreas que preci- o espiritual. A causa básica pode ser física
sam ser investigadas: a espiritual e a física. ou espiritual. Normalmente, ambas estão
Ambas devem ser levadas a sério. Se você presentes.
ignora o aspecto espiritual, nunca haverá Pode parecer duro afirmar que o
lugar para arrependimento e fé na vida de pecado seja uma das causas daquilo que é
seu filho. O comportamento pecaminoso identificado como Transtorno de Déficit
será desculpado. O poder do evangelho será de Atenção/Hiperatividade. Será que tal
ignorado. Se você ignora o aspecto físico ou explicação prejudicaria as crianças, como
os pontos fortes e fracos do funcionamento alguns pesquisadores seculares dizem? Não
cerebral, você nunca encontrará os métodos acreditamos nisso. Se o pecado é chamado de
criativos de que precisa para ajudar seu filho pecado, há esperança de mudança. E além do
a aprender. Ele ficará confuso e perderá a mais, muitas crianças têm uma consciência
esperança. alerta ao certo e ao errado. Dizer que algo
O aspecto espiritual é a arena do está errado, é contar-lhes algo de que já sus-
coração. É a verdadeira essência de nosso peitam. O que pode ser prejudicial e gerar
ser, mais profundo até mesmo que aquilo confusão é identificar pecado e erro naquilo
112 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
que poderia ser chamado com mais precisão A fraqueza física, algumas vezes mani-
de limitação ou fraqueza física. festada na criança enquadrada no Transtor-
Uma maneira de evitar a confusão entre no de Déficit de Atenção/Hiperatividade,
pecado e limitação ou fraqueza física é fazer a inclui:
seguinte pergunta: “Estou certo de que este memória auditiva e visual fracas (di-
comportamento transgride a lei de Deus?”. ficuldade para reter palavras lidas ou
Se a resposta for positiva, então o compor- ouvidas);
tamento tem uma raiz espiritual. Digamos,
dificuldade para cumprir uma seqüên-
por exemplo, que seu filho esteja batendo
cia de comportamentos ou estabelecer
em outra criança porque a outra criança está
passos para cumprir uma tarefa;
brincando com o brinquedo dele. Trata-se
claramente de um problema espiritual. Seu dificuldade para estabelecer priorida-
filho pode também lutar com desatenção des;
e hiperatividade/impulsividade, mas estas
dificuldade para manter a atenção
não são desculpas para tal comportamento.
quando as atividades não são intrinse-
Problemas físicos não forçam uma criança
camente interessantes;
a pecar, mas certamente eles influenciam o
comportamento. Além do mais, eles podem dificuldade para filtrar estímulos irre-
ser confundidos com problemas espirituais. levantes;
Portanto, ao mesmo tempo que você procura
dificuldade de mudar de uma maneira
compreender a orientação do coração do
de pensar para outra.
seu filho (orientado para Deus ou para si
mesmo), você também tentará entender as Um exemplo desta última limitação é
forças e fraquezas físicas (determinadas pelo a criança que é barulhenta e ativa em casa
cérebro) próprias de seu filho. e transporta o mesmo comportamento para
O físico é a pessoa material - músculos, a sala de aula. Essa criança tem dificuldade
ossos, cérebro, genes. Em certo sentido, quando as regras mudam. Ela pode ser es-
nosso corpo físico é um instrumento para o piritualmente sensível ao aprendizado, mas
nosso coração. Ele dá ao coração um meio mentalmente inflexível.
de se expressar no mundo físico. O físico Embora as categorias física e espiritual
diferencia-se do coração no sentido de que sejam distintas, discernir como cada uma
o coração é obediente ou pecaminoso, en- delas contribui para o comportamento
quanto o físico é forte ou fraco. inoportuno pode ser um desafio. Por exem-
Em crianças enquadradas no Transtor- plo, digamos que você peça a seu filho para
no de Déficit de Atenção/Hiperatividade, os arrumar o quarto. Quando você volta, vinte
pontos fortes físicos (talentos, habilidades) minutos mais tarde, ele ainda está brincan-
podem incluir: do em meio a um caos. É um problema
espiritual? À primeira vista, parece eviden-
um alto nível de energia;
temente que sim. Seu filho transgrediu o
criatividade além do habitual; mandamento de obedecer aos pais. Ainda
assim, seu comportamento pode ter outras
uma disposição para assumir riscos;
explicações. Talvez seu filho não saiba como
uma personalidade extrovertida. “arrumar o quarto” - a idéia pode lhe parecer
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 113
muito geral e abstrata. Talvez o quarto pareça criar seu filho no temor do Senhor. Inde-
perfeitamente em ordem aos olhos dele, ou pendentemente dos pontos fortes ou fracos
talvez ele começou a arrumar e depois se de seu filho, ele tem os mesmos problemas
distraiu com seu brinquedo favorito. Em ou- espirituais de qualquer pessoa: seu coração
tras palavras, o que você pode estar vendo é está em guerra entre o ego-centrismo e a
uma fraqueza na habilidade de seu filho para obediência a Cristo. Com que armas ele
seguir instruções e completar uma tarefa, em luta? Com o conhecimento de Cristo e a
lugar de desobediência intencional. obediência a Cristo. O conhecimento de
Há uma diferença entre dizer a uma Cristo consiste em aprender sobre a grandeza
criança para “arrumar o seu quarto” e para da justiça e do amor de Deus revelados na
“não bater em seu irmão”. A criança possui morte e ressurreição de Jesus. A obediência
uma consciência ativa e sabe intuitivamente a Cristo é nossa resposta a estas boas novas.
que não deve bater em outros como expres- Ela consiste em praticar o mandamento de
são de sua ira. Tal ato seria errado até mesmo amar ao próximo como a si mesmo, um
se os pais não tivessem dito “não bata nele”. mandamento exemplificado nos Dez Man-
Mas a criança não tem uma consciência que damentos e em outros princípios claros das
lhe diz que é moralmente errado deixar o Escrituras.
quarto bagunçado. O quarto desarrumado é, Para as crianças que tendem a ser mais
tecnicamente, uma violação do mandamento impulsivas em suas palavras e ações, há
de obedecer aos pais, mas em alguns casos alguns princípios bíblicos que precisam me-
desobediência não é a categoria bíblica que se recer maior ênfase. A tarefa dos pais consiste
aplica em primeiro lugar. Um entendimento em estabelecer prioridades entre os vários
do coração da criança pode indicar que o princípios bíblicos e focalizar, primeiramen-
problema são as limitações físicas e a falta te, aqueles que são mais importantes para as
de entendimento, e não a rebeldia espiritu- necessidades espirituais de seu filho. É mais
al. Em outras palavras, a ira pecaminosa e sábio destacar um princípio e trabalhá-lo in-
o comportamento não amoroso para com tensivamente durante alguns meses, do que
o próximo nunca são desculpáveis, mas há trabalhar superficialmente dez princípios,
momentos em que há desculpas para não deixando-os sem desenvolvimento, sem o
arrumar o quarto. devido esclarecimento, e esquecendo de levá-
E se uma criança não se comportar bem los regularmente a Deus em oração.
durante uma refeição? Pode ser que ela seja Tiago 1.19 é o versículo que está no
naturalmente mais ativa, mas que também topo da lista de muitos pais. Ele é perfeito
não esteja disposta a ouvir as instruções dos para aqueles que tendem a lutar mais com
pais. Em tais casos, os pais devem saber como a desatenção e a impulsividade: “Todo ho-
abordar tanto o coração pecaminoso como a mem, pois, seja pronto para ouvir, tardio
natureza ativa. Ser pai tornase inesperada- para falar, tardio para se irar”. Esta tríade
mente complicado! Mas a perspectiva bíblica pode levar anos para ser aprendida. No
simplifica as coisas. Educar um filho exige entanto, se Deus requer este tipo de compor-
tempo, e requer ouvir conselhos de outros, tamento, Ele dará graça para praticá-lo.
mas não é necessariamente complicado. À medida que estas crianças alcançam a
Tendo em mente a distinção entre adolescência e a idade adulta, outros princí-
problemas físicos e espirituais, dê passos para pios podem se tornar importantes. Visto que
114 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
os adolescentes têm mentes que costumam estilo de pensamento caótico, desorganizado
voar de uma coisa para outra e preferem a es- e pouco confiável, a estrutura estabelece uma
pontaneidade ao planejado e ordeiro, é mui- compensação e oferece controle externo.
to importante que eles aprendam o princípio Sem estrutura, a mudança constante e as
bíblico da perseverança. Outros adolescentes expectativas ambíguas agravam as dificul-
e adultos podem ter extrema dificuldade para dades.
priorizar tarefas ou avaliar corretamente sua Estrutura significa ter regras previsíveis,
habilidade para cumpri-las. Estas pessoas claras, simples, por escrito. Essas regras preci-
precisam aprender o princípio bíblico de ser sam ser revistas semanalmente com a criança
sensível ao aprendizado e buscar o conselho e consistentemente reforçadas. Evite expli-
de outros: “Onde não há conselho fracassam cações longas e abstratas. Se você precisa de
os projetos, mas com os muitos conselheiros tempo para desenvolver um ensino específico
há bom êxito” (Pv 15.22). ou explicar uma forma de disciplina, tente
À medida que você se torna mais capa- dialogar com seu filho de modo a prender
citado a cuidar da vida espiritual de seu filho a sua atenção. Faça perguntas. Peça-lhe
e a discipulá-lo, volte sua atenção para os para ler a Bíblia em voz alta. Peça-lhe para
pontos fortes e fracos que lhe são caracterís- explicar em que ele desobedeceu. Quando
ticos. Comece por reunir a maior quantidade for dar instruções, assegure-se de que ele está
possível de informação a respeito de seu filho. ouvindo; peça-lhe que olhe para você e que
Não sinta constrangimento: converse com os repita as instruções. Não se esqueça de revisar
professores da escola que seu filho freqüenta, com ele o plano de execução.
com os professores da escola dominical, com Estrutura significa que em lugar de
os amigos que convivem com ele. Submeta-o reagir constantemente a problemas, o que
a testes de avaliação educacional. Quanto pode aumentar o senso de caos, você vai
mais você puder compreender seus pontos antecipar os problemas. Embora seu filho
fortes e fracos, tanto maior será a criatividade possa ter dificuldade para perceber com an-
com que você poderá ensinar e aplicar os tecedência os problemas, você precisa estar
princípios bíblicos relevantes. Por exemplo, alerta aos pontos em que ele habitualmente
se seu filho trabalha melhor com imagens e tropeça. Pela experiência, você sabe onde
objetos, dê preferência a explicações visuais e estão as dificuldades. Se a situação difícil
não a instruções orais. Você pode dramatizar não pode ou não deve ser evitada, prepare
como ser bondoso com o irmão mais novo seu filho para enfrentá-la em oração e na
em lugar de lhe dizer: “seja bondoso”. “Ouça, prática. Depois, quando tudo tiver passado
veja, faça” é o método prático para os pais e (ex., lições de casa, tarefas domésticas), faça
os educadores. uma avaliação junto com ele para que ele
Muitas das sugestões práticas para lidar possa ver em que progrediu.
com aqueles que facilmente se distraem ou Para o adulto que tende a ter dificul-
tendem a mudar de uma atividade para outra dade para prestar atenção ou fazer planos,
podem ser resumidas na palavra estrutura. estrutura significa estabelecer rotinas tais
Estrutura diz respeito a fronteiras, orienta- como fazer três coisas difíceis, mas necessá-
ções, lembretes e limites. rias, antes de passar ao trabalho agradável.
É uma cerca que pode ajudar a conter e Significa estabelecer prazos razoáveis (sob a
a dirigir. Visto que algumas crianças têm um orientação de outros) e cumpri-los. Listas de
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 115
“o que fazer”, estabelecendo prioridades, são está clara. A Ritalina não trata deficiência
um ótimo recurso. nenhuma no cérebro da criança. Ninguém
precisa de Ritalina. A analogia mais geral
Tratamento médico seria dizer que os medicamentos do tipo da
Se você colocou em prática diligente- Ritalina agem como a aspirina; eles elimi-
mente estas sugestões, mas ainda está tendo nam os sintomas em algumas pessoas, mas
problemas com o grau de severidade da não curam.
hiperatividade ou desatenção de seu filho, e Muitos especialistas concordam que
especialmente se estes comportamentos estão medicamentos do tipo da Ritalina são re-
afetando de modo significativo o rendimento ceitados em excesso. Eles sustentam que o
escolar, você precisa consultar um médico. próprio Transtorno de Déficit de Atenção/
Há alguns problemas orgânicos que provo- Hiperatividade é diagnosticado em demasia,
cam sintomas semelhantes aos do Transtorno que nossa cultura é rápida em tratar qualquer
de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Por comportamento com medicamentos e que
exemplo, problemas de tiróide podem afetar os médicos são rápidos em receitar uma
o nível de energia, e a diminuição da capa- droga relativamente segura a crianças cujos
cidade auditiva ou visual pode prejudicar o pais estão em busca de uma solução rápida.
nível da atenção. Um bom exame médico Isso não significa que devemos evitar os
pode eliminar estas possibilidades. medicamentos. Significa, no entanto, que
A maioria das crianças enquadradas os medicamentos devem ser considerados
no Transtorno de Déficit de Atenção/Hipe- somente após avaliar outros fatores na vida da
ratividade apresenta resultados normais nos criança, conforme recomenda a Associação
exames clínicos, mas vários médicos indi- Americana de Pediatras.
cam mesmo assim o uso de medicamentos. Pais crentes devem levar em conta
Normalmente são usados medicamentos estes medicamentos no tratamento de seus
estimulantes como a Ritalina ou antidepres- filhos? Se fizermos uma pesquisa de opinião
sivos como o Norpramin (Desipramine) ou entre um grupo representativo da população
o Prozac4. evangélica, ouviremos “certamente que sim”,
O uso de drogas estimulantes parece e também “definitivamente não, em quais-
ser um paradoxo. Seria normal esperar que quer circunstâncias”, além de muitos outros
as crianças ficassem ainda mais excitadas pareceres intermediários. Tais diferenças de
física e mentalmente. No entanto, com as opinião entre crentes comprometidos e sérios
doses normais receitadas, todos tendem a ter indicam, no mínimo, que as Escrituras não
um melhor rendimento em certos tipos de dizem claramente “não”. Uma pergunta mais
tarefas mentais, e as crianças, em particular, apropriada seria “É sábio usá-los?”, em lugar
parecem ficar menos irrequietas. de “É errado usá-los?”.
Como age a Ritalina? Sabemos que ela Para fazer uma escolha sábia, há infor-
afeta determinadas áreas do cérebro, mas seu mações que você deve considerar. A Ritalina
modo de ação é incerto. Uma coisa, porém, é um dos medicamentos mais seguros. Foi
primeiramente usado em crianças hipera-
4
NT. No Brasil são usados com freqüência o Tofranil tivas nos anos 30, tendo, portanto, uma
e o Cylert. longa história. Hoje em dia, é receitado a
116 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
mais de dois milhões de pessoas, de modo crianças respondem pecaminosamente.
que estamos familiarizados com seus efeitos Quando a tentação é removida, a criança
colaterais. parece menos propensa a certos tipos de
Os efeitos colaterais mais comuns da pecado.
Ritalina são a supressão do apetite e a perda Se você decidiu provar o tratamento
do sono. Visto que estes efeitos estão relacio- com medicamentos, o mais importante é
nados à dose, eles podem ser controlados pela manter em mente que esta opção não deve
diminuição da quantidade de medicamento. eliminar a sua diligência no cuidado espi-
Outro efeito colateral incômodo, mas raro, ritual. Independentemente de uma maior
são as contrações musculares involuntárias. ou menor intensidade, as fraquezas físicas
Estas também podem desaparecer com a não podem impedir seu filho de crescer no
diminuição da dose. Caso contrário, desapa- conhecimento de Cristo e na obediência a
recerão quando o medicamento for retirado. Ele. Esse fato oferece-lhe esperança e enco-
Na melhor das hipóteses, a Ritalina pode rajamento no processo de educar seu filho,
ajudar uma pessoa a ganhar maior concen- bem como mantém em perspectiva adequada
tração, manter-se ocupada com uma tarefa as suas expectativas quanto àquilo que os
por uma período maior de tempo, manter medicamentos podem fazer por ele.
um humor estável e reduzir a desatenção. Alguns pais adotam outros tipos de
Na pior das hipóteses, ela pode ter efeitos tratamento como dietas ou o uso de vita-
colaterais e não trazer benefícios. minas. Sabedoria é novamente o critério. Se
Primeiramente, presumiu-se que a você seguir estes tratamentos, não deixe que
Ritalina aumentasse o rendimento escolar, eles substituam o cuidado espiritual, e seja
mas não há prova disso. Embora a Ritalina criterioso com relação ao tempo e dinheiro
seja elogiada por muitos professores, e al- investidos, lembrando que eles são de ajuda
gumas crianças demonstrem uma mudança apenas em alguns casos.
de comportamento significativa, há pouca Educar filhos com sintomas de Trans-
evidência de que ela eleve o desempenho na torno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
escola. Depois de dois anos tomando Rita- é, afinal de contas, semelhante a educar
lina, muitas crianças apresentam o mesmo qualquer outra criança: você precisa adaptar
nível de rendimento das que não receberam os ensinos bíblicos à capacidade de seu filho
o medicamento. para recebê-los. Com crianças que não dife-
É imperativo destacar que os medi- rem muito de nós, trata-se de um processo
camentos não mudam o coração de uma relativamente imediato, pois entendemos de
criança. Se ela parece mais obediente quando modo instintivo quais são os pontos fortes e
toma Ritalina, é porque um fator de influên- fracos. As crianças cujos pontos fortes e fra-
cia em sua vida sofreu alteração. Ou seja, da cos estão fora do habitual exigem observação
mesma maneira como outros fatores podem mais cuidadosa e ensino criativo. Ao lidar
influenciar o coração, também o corpo pode com uma destas crianças, lembre-se de que
influenciar. O corpo produz prazer ou dor, ela também tem pontos fortes concedidos
clareza ou confusão mental, concentração ou por Deus, e quaisquer que sejam seus pontos
desatenção. Estas mudanças físicas podem fracos, estes não impedirão o seu crescimento
atuar como uma tentação à qual algumas naquilo que é mais importante.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 117
Sua Aparência:
O que os padrões atuais dizem
e as imagens retratam
D a v i d Po w l i s o n 1
Uma das obsessões mais notáveis na um “infomercial” de meia hora, dirigido a
nossa cultura é a busca da beleza física. A pre- homens que sofriam de calvície. Enquanto
ocupação com a aparência impregna nosso pulava de canal, seguindo um jogo de bei-
relacionamento social e nos seduz a todos, sebol e as notícias internacionais, fui pego
homens e mulheres, em intensidade variada. pelo comercial apresentado por um canal
O impacto da cultura costuma ser como o intermediário e parei para assistir.
efeito da poluição do ar: o que respiramos
tende a produzir mudanças em nós, devagar Mentiras carecas
mas com constância. Nossa cultura nos cerca Fui apresentado a um homem de apa-
com vozes que falam sobre nossa aparência, rência desajeitada, aparentando trinta anos.
o aspecto que devemos ter, e os louvores e Suas roupas eram desalinhadas e estavam dez
críticas que supostamente acompanham o anos atrasadas com relação à moda. Sua face
sucesso ou o fracasso. A mídia massificante era pastosa. Os olhos furtivos e envergonha-
sorrateiramente nos ilude com os mesmos dos eram escuros, com bolsas nas pálpebras
padrões visuais. Televisão, revistas, filmes nos que acentuavam ainda mais sua aparência
ensinam qual “aparência” deve ser valorizada pouco saudável. Longas e finas tiras de cabe-
e qual “aparência” deve ser estigmatizada. lo ao lado de sua cabeça estavam penteadas
Somos ensinados a distinguir entre o “bem de maneira a cobrir o topo, na tentativa
e o mal” em nossa aparência pelo que ouvi- fracassada de esconder a careca.
mos e vemos. Logo percebi que estava deprimido. Ele
Identifiquei a questão com bastante contava como sua auto-estima havia caído
clareza há vários anos atrás, quando assisti a nos últimos anos enquanto perdia seus
cabelos e a aparência jovem. Não tinha na-
1
Tradução e adaptação de Your looks: what the morada; seus fins de semana eram solitários.
voices say and the images portray. Publicado em Ele era vendedor, mas os negócios andavam
The Journal of Biblical Counseling. Glenside, Pa.,
v. 15, n. 2, Winter 1997. p. 39-43. mal. Não vendia nada, e seus dias eram
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 73
frustrantes. A causa fundamental dos seus pré-estréia”. Mas não havia engano. Alguém
problemas? A calvície progressiva. estava pagando por aquela meia hora de co-
Seu argumento era que amava ir à praia, mercial na TV. Aquele número 0800 devia
mas não ousava mais ir. Ao sair da água, as atrair consumidores em número suficiente
tiras de cabelo com as quais tentava escon- para que o negócio fosse rentável. Vozes e
der sua careca iriam ou emplastar no topo imagens entraram nas casas com a seguinte
da cabeça ou escorrer sobre suas orelhas e mensagem: “Se você tiver cabelos no alto
pescoço. O efeito - ilustrado ante meus olhos da cabeça, você será bem sucedido e feliz,
atônitos - era repugnante. terá vida social duradoura e ganhará muito
A câmera então mudou para o vendedor dinheiro”. De certa maneira, a coisa toda
responsável pelo patrocínio do show. Ele parecia boba. Porém, funcionava, comuni-
tinha a cabeça repleta de cabelos bem ali- cava. Atingia esperanças, medos, sonhos e
nhados e explicava com detalhes um proce- frustrações de pessoas prontas a fazer aquela
dimento novo para restaurar os cabelos, que ligação e pagar.
certamente resolveria o problema da calvície
masculina. Um número 0800 aparecia na Fisgando o coração
tela, e operadores estavam de plantão para Esse comercial dá um exemplo não mui-
atender todos que ligassem. to sutil de como vozes e imagens ilusórias
Finalmente, a apresentação voltou ao atuam. Repare que a magia deve atrair al-
homem que havia previamente contado sua guma coisa já residente no coração humano,
história do “antes”. A história do “depois” seja com abordagem sutil ou grotesca. Um
era um testemunho brilhante, retratando um comercial de TV não tem poder para me
homem novo. Ele agora parecia o “Sr. Cabe- fazer acreditar em sua mensagem ou ligar
lo”! O retrato do “antes”, em branco e preto, para 0800. Sua bagagem de mentiras agita
era mostrado ao lado do vídeo de um homem os anseios da carne e auxilia na satisfação
confiante e bronzeado, cheio de cabelos, que daquilo que já reside no coração do ho-
usava roupas da moda, bem talhadas, com mem: neste caso, anseios por popularidade,
ombros ajustados. Parecia alto e olhava os intimidade, felicidade, dinheiro, liberdade,
espectadores nos olhos. Disse que nunca a fonte da juventude. O apelo do comercial
havia se sentido tão bem consigo mesmo. joga com a predisposição do coração caído
Quase fora cortado do setor de vendas, mas para acreditar em “mentiras” apresentadas
agora concorria para vendedor do ano. Sua de milhares de maneiras diferentes. Uma
vida social? Palavras não poderiam descrever. análise daquilo que facilmente engana as
Eu o via correndo pela praia com não uma, pessoas sempre conduz ao coração crédulo
mas duas garotas de maiô, uma de cada lado! e desejoso de se agarrar a uma mentira. Se
Uma nova cabeleira havia feito tudo isso por quisermos expor as mentiras para dar lugar
ele. A cena final do testemunho mostrava-o à verdade, devemos aprender a compor o
mergulhando nas ondas e retornando com mosaico de crenças e necessidades falsas que
sua gloriosa juba brilhando ao sol. Ele havia levam as pessoas à escravidão.
deixado os problemas para trás e desfrutava Perceba também como idéias e padrões
vida e vigor. Enquanto assistia a tudo isso, falsos sempre definem ou ofuscam as noções
pensei: “Eles estão brincando, certo? Isso é de bem e mal, sucesso e fracasso, valor e
uma comédia do Saturday Night Live, em estigma. Se estiver lidando com “pressão da
74 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
turma”, com “influência da mídia” ou com deve ser perfeita, sem falhas, seja o que for
“processo de aculturação ou socialização” que isso queira dizer. Um grande número de
(para falar mais tecnicamente), a chave para mulheres são estigmatizadas imediatamente.
entender o que acontece é trazer à luz a men- Talvez uma tenha sido um bebê vítima da
tira. As mentiras próprias da cultura usurpam talidomida, que nasceu sem o braço direito.
o papel da verdade de Deus. Elas prometem Outra tem uma marca de nascença na face,
bênção e advertem sobre a maldição. Elas cor de vinho, ou lábio leporino. Outra ainda
definem o “bem” (nesse caso, cabelos) e o tem uma cicatriz no rosto resultante de uma
“mal” (calvície). Se você conseguir o bem, queimadura com água quente aos quatro
terá alcançado a bênção. A mentira cria uma anos de idade. Malditas! Fracassadas! Este
visão falsa de vida e de morte, de significado sistema de valores mostra o perfil clássico da
e de futilidade, de felicidade e de infelicida- tentação: balance a isca e disfarce o anzol. Ele
de. Para ajudar as pessoas a corrigirem suas diz: “Se você tiver esse visual, será feliz”. E
visões distorcidas, mostre-lhes como foram então a maldição chega e rejeita um grande
moldadas por imagens e opiniões persuasivas número de mulheres como defeituosas.
de seu contexto. Segundo, o sistema de valores prescreve
as dimensões da face e a aparência corporal.
Padrão de beleza na O que acontece se suas orelhas sobressaem,
aldeia global seu nariz é pontudo ou você se assemelha
Diante da pergunta “Como vai a sua mais a uma pera do que à Barbie? Você é um
aparência?”, as mulheres geralmente so- fracasso, mesmo que esta tenha sido a forma
frem mais que os homens. As mulheres são como Deus a fez. Você deve se parecer com
bombardeadas com vozes que dizem que a algo que se encaixe na forma “ideal” - um
aparência define a pessoa. A cultura massi- ideal que promete bênçãos. Imediatamente,
ficante da mídia tem grande impacto aqui. outra grande porcentagem de mulheres
A tentação de se preocupar com a aparência fracassa.
física sempre existiu, mas hoje os veículos de Terceiro, esse visual, essa imagem, essas
tentação são bem mais intensos e propositais. vozes que ditam às mulheres a aparência que
Em 1890, as mulheres podiam se comparar elas devem ter, fazem algo mais que desvalo-
com outras dez de sua idade que moravam na rizar a maneira como Deus as fez. Também
mesma aldeia. Em nossos dias, as mulheres presumem que as mulheres têm tempo livre
se comparam com as fotos da propaganda e dinheiro. É necessário ter dinheiro para
da indústria mundial da moda. As imagens ser capaz de seguir as tendências da última
estão em todas as capas de revista: revistas moda; é necessário ter horas vagas para poder
para homens ensinam o que procurar, re- gastar tempo cultivando a aparência. Não
vistas para mulheres ensinam qual visual se há como uma mãe de crianças em idade
deve ter. A imagem é a mesma em todas as pré-escolar, e que possivelmente passou a
capas, seja qual for o leitor alvo. Ela define noite em claro ao lado de um filho doente,
valores e os estigmatiza, e tem um efeito combinar com essa imagem-padrão. Cansa-
destrutivo selvagem. ço e aparência desgastada não são admitidos.
Considere os elementos do sistema Mãos de quem lava louça, sua para ganhar
de valores exposto diante dos seus olhos. a vida, trabalha na fábrica ou no campo
Primeiro, os padrões atuais dizem que você não são permitidas. A “aparência” implica
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 75
riqueza, tempo livre e criados - pessoas para atingir o ideal cultural consegue susten-
para polir suas unhas, aplicar emolientes no tar o sucesso por um tempo limitado. Chega
rosto e tomar conta das crianças! Mais uma o dia em que aquelas que vivem o bastante
vez, as bênçãos do ideal transformam-se em ganham aparência de vovó: velha, enrugada,
maldição para aquelas que ficam aquém: a com cabelos brancos, fraca e corcunda. Você
maioria dos seres humanos. está em uma corrida contra o tempo na qual
Quarto, o ideal também traz embutido todos perdem. Se você abraçar o sistema de
um forte preconceito racial. Há variações valores, um dia você cairá na desgraça, não
culturais, mas cada cultura tende a valori- importa como. Esta é a ilustração perfeita de
zar o visual de determinado grupo étnico e como as imagens e vozes falsas operam: elas
desprezar outros. A cultura americana revela, nos enganam e deslumbram. Damos crédito
em geral, uma propensão caucasiana. Pessoas a elas, ansiamos pelas bênçãos que prometem
com antepassados asiáticos, hispânicos ou e tememos suas ameaças; elas nos controlam
negros que se destacam na mídia costumam e, finalmente, nos matam.
ter traços fisionômicos caucasianos. Por
exemplo, Connie Chung é chinesa, mas seu O sonho impossível
rosto não é classicamente asiático; a estrutura Certa vez, eu estava conversando sobre
facial é caucasiana. Modelos afro-americanos essas coisas com um grupo de pessoas,
como Iman, Naomi Campbell e Tyra Banks quando uma mulher disse: “Eu tenho al-
são variações exóticas de ideais de beleza mais guma coisa a mais para acrescentar à sua
caucasianos que negros. É raro ver na mídia lista. Eu trabalhei na indústria da moda em
negros com características básicas da raça ne- Nova Iorque. Você sabia que nem mesmo as
gra; Oprah Winfrey é uma exceção, mas ela modelos se parecem com suas fotografias?
está na televisão mais por sua personalidade Quando tiramos uma foto de uma modelo
que por sua beleza. Preconceitos raciais têm para a capa de uma revista, nós a colocamos
o mesmo efeito que os demais componentes no computador para reformatar sua imagem.
do ideal de beleza: milhões de mulheres são Alongamos a linha do maxilar, fazemos uma
imediatamente estigmatizadas. leve depressão nas bochechas, afinamos
Um quinto aspecto desse falso padrão as coxas e o quadril; criamos alguém que
traz uma maldição para toda mulher: a idade nunca existiu. Se encontrarmos essa modelo
em que a mulher é fisicamente atraente vai na vida real, ela parecerá baixa e gorda em
dos 15 aos 35 ou 40 anos. Não há como evi- comparação com sua aparência na capa da
tar os pés-de-galinha que aparecem aos redor revista!”.
dos olhos, as rugas na testa, os inexoráveis Na capa da revista, a modelo parece a
efeitos da gravidade: o envelhecimento e a Barbie. Na vida real, parece uma pessoa de
maternidade fazem com que aquilo que antes verdade. Pense nesse contra-senso. Milhões
era firme comece a pender. Elizabeth Taylor de mulheres olham-se no espelho e compa-
pôde se submeter a incontáveis lifts, plásticas ram seu visual com uma face e uma imagem
e alterações cosméticas, mas a garota de 16 corporal ideais, obcecadas pela aparência que
anos do National Velvet não é mais a mesma não têm. Mas... nem mesmo as modelos
nem nunca mais será. O corpo começa a pa- têm aquela aparência! É o engano extremo.
recer velho e nada pode reverter o processo. Aquela mulher ainda acrescentou: “Está se
Até mesmo a mulher bem-sucedida na luta tornando cada vez mais popular em alguns
76 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
segmentos da indústria da moda usar traves- e “fracasso” são freqüentemente reduzidos a
tis como modelos para roupas femininas em acidentes de nascimento.
desfiles ao vivo. O corpo masculino costuma Finalmente, esses padrões são também
não ter quadril marcado, enquanto as mu- variáveis ao longo da história. Mesmo na
lheres têm quadris largos. Os homens têm a América do Século XX, houve grandes
aparência magra que queremos promover nas mudanças no tipo ideal de corpo. Nos anos
mulheres”. No auge da perversão, a mentira 20, a mulher “varapau” - alta e magra - era
estimula as mulheres a formatar o corpo de mania coletiva. Por volta dos anos 40, a mu-
acordo com um contorno que não é natural lher ideal parecia ter saído de um quadro de
ao seu gênero! Rubens, com bastante carne sobre os ossos.
Algumas observações a mais podem Nos anos 90, as mulheres adequadas aos anos
dar vida ao assunto. Os padrões estéticos 40 são consideradas gordas! Nesse caso, o
variam muito de cultura para cultura. Mui- “sucesso” ou o “fracasso” são definidos por
tas mulheres americanas estão deprimidas e nascimento. A perfeição tem vida curta, e fi-
dominadas pela sua aparência, mas em outra nalmente é substituída por um novo modelo.
cultura seus “defeitos” podem ser o grande Nos anos 80 e 90, os americanos começaram
trunfo. Em culturas do Terceiro Mundo, a aspirar por uma imagem impossível: a da
por exemplo, o sistema de valores sempre boneca Barbie. Como pudemos ver, pessoas
tende para a grandeza como ideal. O grande reais não se parecem com uma boneca - a
confere prestígio, o pequeno não, porque não ser que haja intervenção de silicone,
grande significa ter alimento e magreza cono- lipoaspiração e cirurgias.
ta pobreza. Seu volume, e não sua magreza,
revela que você tem fortuna e tempo livre. Escravos de um padrão
Quando fui a Uganda numa viagem missio- Procuramos analisar os falsos padrões
nária, havia uma mulher no grupo que era de beleza que nos atraem. O que acontece
bastante atraente de acordo com os padrões quando um crente adota esses padrões? Ele
americanos. Ela nos contou que as senhoras passa a viver fora da lógica de sua fé, de
ugandenses chegavam até ela, apertavam seus muitas maneiras. É comum que as mulheres
braços e balançavam a cabeça: “Pobre garota, sintam uma leve mas constante ansiedade
seu marido não tem dinheiro suficiente para sobre sua aparência. Isso pode se manifestar
alimentála? Seu pai é pobre? Seu marido de formas sutis como gastar minutos extras
não a ama? Por que você é tão magra?”. Os em frente ao espelho tentando consertar
mesmos valores aparecem mais formalizados o que parece inaceitável ... ou remoer in-
em Tonga, onde o ideal de beleza feminino ternamente lamentos como “se apenas...”.
pesa aproximadamente 130 quilos. Gor- Remendos da aparência, imaginários ou
dura significa marido rico o suficiente para verdadeiros, podem consumir considerável
empanturrar a esposa com fruta-pão, peixe energia e tempo. Ou talvez após o culto, uma
e papaias. Essas observações transculturais mulher atente para a aparência das demais
revelam mentiras de outras culturas que se e se compare a elas. Este olhar que se fixa
equiparam às de nossa cultura. Ajudam-nos em outras é instruído por uma hierarquia
a ser imparciais e perceber como é errado ter de valores definida pelos padrões de beleza,
o coração manipulado pelo conjunto de ima- e vem acompanhado de ciúme, desprezo de
gens e opiniões que nos assaltam. “Sucesso” si mesma, competitividade, comparações
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 77
de inferioridade/superioridade, e assim por dam a lidar com as mentiras que idolatramos
diante. e que pedem nossa lealdade. Isaías critica a
É provável que essa mulher saia em busca adoração falsa, zombando dos ídolos: “Você
de alterações em sua aparência: cor dos cabe- pode acreditar? O homem corta uma árvore
los, perda de peso, roupas novas, cosméticos, em dois. Com uma metade esculpe um deus
operações plásticas. Talvez deslize para um e se inclina para adorá-lo. A outra metade
transtorno alimentar. Talvez mergulhe no ele talha e usa como lenha para fazer o
desespero e desista, ganhando muitos qui- jantar. Que tolice!”. O Salmo 115 diz algo
los, tornando-se desalinhada e feia. “Eu sou semelhante: “Por que servir a deuses que não
um fracasso” registra a manifestação de sua são deuses? Eles têm boca, mas não falam;
devoção à mentira. Todas essas preocupações têm mãos, mas não podem fazer nada. Não
roubam-lhe a alegria e liberdade da fé em podem abençoar nem amaldiçoar. Por que
Cristo, o Senhor, e minam as energias que servir a mentiras? Por que servir a coisas
poderiam ser gastas em amor e consideração mortas que não têm nenhum poder? Você
pelos outros. pode servir ao Deus Vivo que trabalha, anda,
A Palavra de Deus fala amplamente vê e fala. Sirva a Deus!”. Zombar dos ídolos
sobre a questão de “aculturação” ou es- e revelar sua falsidade são maneiras de livrar
cravidão aos falsos padrões e opiniões do as pessoas de sua influência e de promover
mundo e seus sistemas distorcidos de valores amor e adoração a Deus. A Palavra de Deus
e estigmas. Em vários textos, as Escrituras sempre mostra o que é falso, libertando-nos
destacam com clareza a questão da beleza. para a adoração dAquele que é verdadeira-
Provérbios 31.30-31 retrata a beleza ver- mente belo, glorioso e admirável. Em Isaías
dadeira do temor e amor ao Senhor nosso 44 e no Salmo 115 gritos de alegria em Deus
Deus, e comenta sobre a graça enganosa e a tomam o lugar da escravidão, superstição e
formosura vã. Beleza de caráter verdadeira e ilusão da adoração falsa.
duradoura, tranqüilidade, sabedoria e amor Uma das minhas intenções com este
exalam desses provérbios. I Pedro 3.1-6 artigo é ajudar a livrar pessoas de opiniões e
define igualmente a beleza, contrastando padrões enganosos com respeito à aparência.
o padrão cultural (“os adornos exteriores”) As páginas anteriores expõem características
com o padrão verdadeiro e duradouro de da mentira e revelaram o absurdo e o enga-
Deus (“o coração”). A verdadeira beleza não no dos padrões de beleza. Fizemos piadas.
teme; nunca é devastada pelo tempo ou afli- Zombamos das coisas vãs que laçam a mui-
ção; não se torna insegura. É o tipo de beleza tos, para que as pessoas que foram feitas à
que pode ser mais radiante aos noventa anos imagem de Deus possam ser libertas para
do que aos dezoito, e melhora com o tempo, buscar a semelhança e a voz de Deus com
em lugar de se deteriorar. alegria e vigor. Por que perder tempo com
frivolidades que desapontam e condenam,
Um padrão alternativo quando a verdade substancial está cheia de
A Palavra de Deus está repleta de pas- alegria genuína e duradoura?
sagens maravilhosas direcionadas a renovar
mentes e corações, fazendo-nos servir e O despertar da fé
almejar padrões diferentes. Isaías 44, por Minha esposa e eu temos tido o privilégio
exemplo, ilustra como as Escrituras nos aju- de ver mulheres passarem por uma verdadei-
78 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
ra transformação nessa área. Uma de nossas outras pessoas. A vida desta mulher é um
amigas esteve escravizada por sua aparência retrato maravilhoso da maneira detalhada
mais que qualquer outra pessoa que conhe- como a redenção trabalha em todas as áreas
ci. Ela lutou com transtornos alimentares de nossa vida. Ela deu bons frutos específi-
durante muitos anos; desde a adolescência, cos, feitos sob medida para sua situação e
nunca havia saído de casa sem maquiagem, lutas pessoais.
sem “colocar seu rosto” como ela dizia. Ela se A preocupação com a aparência física
olhava no espelho dez a quinze vezes antes de expressa-se em vários frutos maus: fantasias,
sair. Quando estava junto de outras pessoas, transtornos alimentares, desespero, inveja
era altamente sensível e comparava-se com e comparações, gastos fora de controle,
outras mulheres, preocupando-se com o que insatisfação consigo mesmo e com outros.
os homens pensavam a seu respeito. Para ajudar as pessoas que lutam com esses
Assim que Deus começou a quebrar essa problemas, tenha certeza de olhar para qua-
mentira, sua vida começou a florescer e o tro direções.
fruto visível e doce brotou. Sua fé em Cristo 1. Exponha as mentiras que são fonte
prosperou. Sua alegria no Salvador, que lhe de engano. Ajude a pessoa a identificar as
havia concedido perdão e a estava livrando influências absorvidas regular e impercepti-
da idolatria, era evidente. Ela começou a se velmente, à semelhança do ar poluído que
interessar por outras pessoas e a alcançá-las respiramos.
em amor, ao invés de ser consumida por 2. Exponha o coração que acredita em
ansiedade e preocupação. mentiras e anseia por um falso padrão de
Uma noite, ela veio jantar conosco e, beleza. Os enganos do mundo encontram
antes de sair, fez um comentário: “Vocês solo fértil e a mudança precisa começar pelo
não notaram nada? Eu não estou usando coração.
maquiagem pela primeira vez em 20 anos!”. 3. Mostre a beleza e a glória da graça
Este foi um passo de fé que ela deu, entre de Cristo. Ele veio para perdoar e livrar os
outros. Continuou a contar como Deus a escravos da escuridão. Em nossa cultura
convenceu de que deveria olhar no espelho atual, onde reinam padrões massificantes,
apenas duas vezes: a primeira vez para ver se propagandas manipuladoras e a indústria
estava tudo em ordem e a segunda, antes de da moda, vemos a armadilha da beleza física
sair de casa, para ter certeza de que não havia como um grande campo onde Seu livramen-
esquecido nada. Falou também de como seus to pode atuar.
alvos com relação a outras pessoas estavam 4. Indique o caminho para mudanças
mudando. Antes de sair para a igreja ou para práticas, redirecionamento de prioridades,
o trabalho, ela simplesmente pedia a Deus e um estilo de vida amoroso ao invés de
para mostrar a quem amar e como fazê-lo. preocupação consigo mesmo.
Os frutos da justiça ficaram evidentes As obsessões mais visíveis na nossa
em cada detalhe: livramento da “necessi- cultura são um excelente lugar onde a
dade” de maquiagem, menos tempo diante beleza de Cristo pode brilhar com maior
do espelho, mudança de atitude para com intensidade.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 79
Transtorno
Dissociativo de Identidade
Insight bíblico
E d w a r d T. We l c h 1
Anteriormente conhecido como Trans- Personalidade Múltipla: “Que venham os
torno de Personalidade Múltipla, o Transtor- problemas conjugais ou de criação de filhos;
no Dissociativo de Personalidade necessita mas se o Transtorno de Personalidade Múl-
de insight bíblico. Atualmente, é visto como tipla bater à porta, não estou em casa”. No
um problema singular, que requer soluções entanto, essa disposição para evitar o assunto
peculiares e complexas que vão muito além ou pressa de passar adiante é potencialmente
da competência da maioria dos conselheiros. perigosa. Significa que o Transtorno de
Alguns diriam que tratá-lo como leigo ou Personalidade Múltipla precisa encontrar
pastor beira o antiético. Você estaria atuando ajuda fora da igreja. Significa que cremos na
em um campo em que é ignorante, e sem ter existência de alguns problemas que ultrapas-
a sofisticação técnica necessária para enten- sam o propósito das Escrituras. Infere que
der ou ajudar. Além disso, na tentativa de as Escrituras têm resposta para uma ampla
ajudar, você poderia prejudicar a pessoa. variedade de problemas, mas não pretende
Para muitos de nós, esta colocação lidar com os diagnósticos atuais.
parece razoável. Se há algo que, com prazer, Na verdade, estamos diante de uma
deixamos aos especialistas, é o Transtorno de oportunidade para insight bíblico. Insight,
como sugere Jay Adams, é ver o velho no
novo2. Insight bíblico é encontrar categorias
1
Tradução e adaptação de Insight into Multiple teológicas consagradas ao longo do tempo
Personality Disorder. Publicado em The Journal of Biblical que são suficientes para entender o novo, o
Counseling. Glenside, Pa., v. 14 n. 1, Fall 1995. p. 18-26.
bizarro ou aquelas observações que não são
Contribuição de Philip More para pesquisas
mencionadas nas Escrituras. Certamente,
Embora o diagnóstico atual seja Transtorno
Dissociativo de Personalidade (DSM-IV), usaremos ao limitar-se a insight não é o alvo. O alvo é o
longo do artigo o termo Transtorno de Personalidade insight bíblico aplicado, que ajude as pessoas
Múltipla, por ser mais conhecido. a viverem como servas de Deus.
118 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
O que é o Transtorno Dissocia- Em geral, pessoas diagnosticadas como
tivo de Personalidade ou Trans- portadoras do Transtorno de Personalidade
torno de Personalidade Múlti- Múltipla são de sexo feminino (9 mulheres
pla? para cada homem), com idade inferior a 45
Insight inclui ouvir o que as pessoas anos, casadas, com uma história de abuso
estão dizendo. O que elas estão observando sexual ou físico. Costumam estar familia-
que, à primeira vista, demanda estratégias rizadas com o sistema de saúde mental,
extra-bíblicas? Esse ouvir não significa que tendo recebido diagnósticos psiquiátricos
o “livro da natureza” possui a mesma auto- anteriores variando de ansiedade a esqui-
ridade que as Escrituras. Quer dizer apenas zofrenia ou depressão maníaca. Receberam
que devemos entender o que as pessoas estão aconselhamento de cinco a sete anos, em
dizendo para poder examinar biblicamente. média, antes que se tenha pensado e falado
Todas as observações são avaliadas pela lente em personalidades alternativas.
das Escrituras e ficam debaixo das Escrituras, Os critérios oficiais para o Transtorno
e não a par com elas. Nossa tarefa é trazer de Dissociativo de Personalidade são:4
volta à autoridade bíblica esse diagnóstico A. Presença de duas ou mais iden-
apóstata, que tem ganho popularidade no tidades ou estados de personalidade
meio evangélico. distintos (cada qual com seu próprio
O Transtorno de Personalidade Múl- padrão relativamente persistente de
tipla atraiu a atenção em nossos dias com o percepção, relacionamento e pen-
livro e o filme The Three Faces of Eve (As Três samento acerca do ambiente e de si
Faces de Eva). mesmo).
Eva pareceu momentaneamente pa- B. Pelo menos duas dessas identi-
ralisada. Sua postura começou a mu- dades ou estados de personalidade
dar de repente. Seu corpo enrijeceu assumem recorrentemente o contro-
vagarosamente até que ela se sentou le do comportamento da pessoa.
rigidamente ereta. Uma expressão C. Incapacidade de recordar in-
estranha, inexplicável, veio então formações pessoais importantes,
sobre sua face. Repentinamente demasiadamente extensas para ser
mudou para uma extrema palidez... explicada pelo esquecimento co-
Ela descansou em uma atitude de mum.
conforto que o médico nunca havia D. A perturbação não se deve aos
visto antes nesta paciente. Um par efeitos fisiológicos diretos de uma
de olhos azuis brilhantes se abriram. substância (por ex., blackouts ou
Houve um sorriso rápido, incansá- comportamento caótico durante
vel. Com voz estranha, faiscante, a a Intoxicação com Álcool) ou de
mulher disse, “Olá doutor.”3 uma condição médica geral (por ex.,
crises parciais complexas).
ADAMS. Jay E. Insight and creativity in counseling. Grand
2 Nota: Em crianças, os sintomas
Rapids, Mich.: Zondervan, 1982. não são atribuíveis a companheiros
3
TIGHPEN, Corbett H., CLEKLEY, Hervey M.
The three faces of Eve. New York: McGraw-Hill, 1957. 4
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. DSM-
p. 23. IV. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 463.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 119
imaginários ou outros jogos de tinha mais que oito. Mais recentemente, Si-
fantasia. bila tinha 16 personalidades e Eva, 22. Nos
Os terapeutas que freqüentemente anos 80, foram registrados casos com 200,
diagnosticam o Transtorno de Personalidade 300 e até 1.000 personalidades. E enquan-
Múltipla costumam adicionar outros sinto- to que as identidades alternativas de 1944
mas: uma história de perda no tempo, com- eram principalmente opostas às principais
portamentos presenciados por outros e que (recatadas versus promíscuas), as identidades
a pessoa não consegue lembrar, tendência de alternativas atuais incluem o sexo oposto,
alternar personalidades durante situações es- idosos, crianças e até mesmo animais.
tressantes (sem que a personalidade principal O aumento tanto em número de casos
esteja aparentemente ciente da mudança), e como em número de identidades alternativas
o uso do coletivo “nós” no falar. encontra paralelo no aumento de publica-
Na história da psiquiatria, os critérios ções sobre o Transtorno de Personalidade
de diagnóstico surgiram muito vagarosamen- Múltipla. Em 1983, uma revisão de lite-
te, ao lado da emergência de uma categoria ratura encontrou 350 artigos.8 Em 1991,
distinta identificada como Transtorno de uma nova revisão de literatura encontrou
Personalidade Múltipla. Antes de 1980, a um total de 847 artigos.9 Alguns sugerem
personalidade múltipla era listada como um que essas mudanças são resultado da histeria
sintoma de histeria. Entretanto, a partir do médica — médicos e terapeutas vêem um
fim da década de 70, houve um aumento rá- fenômeno onde não há nada para ver ou
pido do número de diagnósticos de Transtor- induzem os sintomas em pacientes vulnerá-
no de Personalidade Múltipla. Em 1944, os veis mediante sugestão.10 A recompensa para
casos publicados totalizavam 76.5 Nas duas o terapeuta é a publicação de um trabalho
décadas seguintes, cinqüenta novos casos ou, no mínimo, um caso interessante com
foram publicados.6 Mas em 1987, seis mil que lidar; a recompensa para o paciente é
casos foram registrados ao longo do ano.7 que ele pode evitar o problema real e ainda
Ao lado desse aumento do número receber intenso interesse e apoio profissional.
de casos registrados, há um crescimento Críticas seculares também apontam que o
curioso no número de identidades alterna- Transtorno de Personalidade Múltipla está
tivas relatadas em cada caso de Transtorno simplesmente refletindo uma tendência
de Personalidade Múltipla. Nos 76 casos da social baseada na política sexual dos anos 80
literatura de 1944, 48 tinham apenas duas e 90. Ou seja, é uma conseqüência natural
identidades alternativas e somente um deles de premissas e crenças sociais a respeito de
opressão e vitimização sexual. “Assim como
uma epidemia de bruxaria serviu para provar
5
TAYLOR W. S., MARTIN M. F. Multiple personality,
Journal of Abnormal and Social Psychology , v. 39, 1944,
p. 281-300.
NORTH et. al., Multiple personalities, multiple disorder:
6 8
BOOR, Coons. Comprehensive bibliography of
Psychiatric classification and media influence. New literature pertaining to multiple personality, Psychological
York: Oxford, 1993. Reports, v. 53, 1983, p. 295-310.
7
RICHEPORT, M. M. The interface between multiple 9
NORTH et. al., op. cit. p. 13.
personality, spirit mediumship, and hypnosis. American E.g., Multiple Personality continues to be controversial
10
Journal of Clinical Hypnosis, v. 34, n. 3, 1992, p. 171. among psychiatrists. Psychiatric News, Nov. 20, 1992.
120 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
a chegada de Satanás a Salém, em nossos dias uma idéia impossível. Mas o fato da Bíblia
uma epidemia de Transtorno de Personalida- não o citar não é razão suficiente para
de Múltipla é usada para confirmar que um descartá-lo. É verdade que a Bíblia não
grande número de adultos foram abusados menciona o Transtorno de Personalidade
sexualmente (...) durante a sua infância”, Múltipla, mas também não menciona a
sugere o Dr. Paul McHugh, da Universidade anorexia nem a doença de Alzheimer. Só
Johns Hopkins.11 Ainda assim, deveríamos porque a Bíblia não o trata por nome, não
resistir ao impulso de rejeitar imediatamente significa que o Transtorno de Personalidade
os fenômenos que dão origem a esse diag- Múltipla seja um fenômeno impossível. A
nóstico. Não levar em conta as inúmeras Bíblia dá categorias pelas quais podemos
observações sobre o Transtorno de Perso- entender e ajudar os anoréxicos e os pa-
nalidade Múltipla seria esquivarmo-nos do cientes com Alzheimer. E a não ser que ela
nosso chamado a olhar tudo através da lente nos dê razões para duvidar da existência do
interpretativa das Escrituras. Mesmo sendo Transtorno de Personalidade Múltipla, ela
verdade que o Transtorno de Personalidade oferecerá respostas claras para este problema
Múltipla pode ser induzido por alguém que também.
esteja à sua procura, isso não significa que Antes de investigar essas respostas
todo Transtorno de Personalidade Múltipla é com maior atenção, olharemos para um
fruto de sugestão. E conquanto seja verdade breve resumo das abordagens seculares de
que o diagnóstico de Transtorno de Persona- tratamento, algo a que também devemos
lidade Múltipla ganhou notoriedade e força oferecer uma resposta bíblica. Visto que
em um momento de forte conscientização da o Transtorno de Personalidade Múltipla
opressão e vitimização sexual (ou até mesmo costuma ser considerado como uma estra-
obsessão com o assunto), isso não significa tégia para dissociar memórias e emoções
que o Transtorno de Personalidade Múltipla indesejáveis de pensamentos presentes, o
seja tão passageiro como a última moda, alvo do tratamento é integrar fragmentos de
ainda que tenha precisado de determinado memória em um todo unificado. Em geral,
ambiente social para ser reconhecido. o tratamento tem início com a identificação
A única razão pela qual seríamos cons- ou “mapeamento” do sistema de identida-
trangidos a negar a existência do Transtorno des alternativas do aconselhado. Usando
de Personalidade Múltipla é se a Bíblia a hipnose, com freqüência, os terapeutas
afirmasse com clareza que sua existência é procuram uma identidade alternativa que
impossível. Em tal caso, o Transtorno de esteja ciente de todas as demais e conheça
Personalidade Múltipla seria como a fonte a razão de sua existência. Essa identidade
da juventude ou o purgatório: uma idéia alternativa costuma ser chamada de auto-
forjada por homens, mas impossível à luz ajudador interno ou observador oculto.12
da Palavra. À primeira vista, como nada é Com as informações fornecidas pela
dito a seu respeito na Bíblia, o Transtorno personalidade ajudadora, e dialogando com
de Personalidade Múltipla pode até parecer as identidades alternativas, os terapeutas
MCHUGH, Paul. American scholar. Citado em
11 ROSIK, C. Conversations with an internal self-
12
Psychiatric News, nov. 20, 1992. helper. Journal of Psychology and Theology, v. 20, 1992,
p. 217-223.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 121
tentam fazer com que todas as identidades sua existência contradiz as Escrituras, então
fiquem cientes do inteiro conjunto de in- nossa resposta à literatura sobre o Transtorno
formações. Às vezes, o alvo é uma fusão de de Personalidade Múltipla será que o termo
personalidades em uma personalidade inte- é produto do trabalho de pesquisadores bem
grada; mas “consciência”, sem integração, já intencionados, mas iludidos pela observação
é aceitável para a maioria dos terapeutas. Em de pessoas que perderam o auto-controle.
seguida, os terapeutas trabalham para dar aos Para sustentar a inexistência do fenô-
aconselhados novas habilidades de lidar com meno, alguns têm argumentado que Deus
a vida para que eles não continuem a frag- criou cada um de nós como uma persona-
mentar seus pensamentos e sentimentos.13 lidade única; portanto, qualquer sugestão
da existência de mais de uma personalidade
Insight bíblico para o Transtor- no mesmo indivíduo é fantasia ou possessão
no de Personalidade Múltipla demoníaca. Personalidade múltipla é uma
Com esta breve visão panorâmica do impossibilidade a não ser em pessoas pos-
Transtorno de Personalidade Múltipla, mui- sessas. No entanto, não há como sustentar
tas mentes cristãs já devem estar trabalhando. este argumento biblicamente. Embora cada
É possível uma pessoa ter duas personalida- um de nós seja de fato uma pessoa única, a
des? Como saber se as memórias são dignas Bíblia nunca afirma a existência de um estilo
de confiança, especialmente quando algumas pessoal unificado em todas as situações. Em
das lembranças dizem respeito a abuso em algumas situações podemos ser sociáveis,
ritual satânico? Todas as personalidades pre- em outras, podemos gostar de privacidade.
cisam ser evangelizadas para que a pessoa seja Algumas memórias podem nos deixar tristes,
salva? Será que a Bíblia não fala sobre esse outras indignados. Outras ainda podem
fenômeno como possessão demoníaca? provocar ambos os efeitos. A idéia de que
podemos ter uma resposta perfeitamente
O Transtorno de Personalidade previsível para todas as situações não é um
Múltipla existe? conceito bíblico. Devemos ter uma resposta
A lista das perguntas possíveis é longa, bíblica para as situações, mas não temos uma
revelando como é importante alcançar uma garantia bíblica para exigir que a resposta de
compreensão bíblica que simplifique o uma pessoa se conforme às nossas expectati-
Transtorno de Personalidade Múltipla. Mas vas de normalidade.
essas perguntas são irrelevantes se a existência E quanto à reivindicação de que algu-
do fenômeno não for viável biblicamente. mas identidades alternativas não estão cien-
Nossa primeira pergunta, portanto, deve ser: tes do que as outras estão fazendo? Como
o Transtorno de Personalidade Múltipla real- explicar isso? Uma resposta bíblica diria que,
mente existe? Se pudermos demonstrar que apesar dos lapsos de memória alegados serem
inusitados e difíceis de entender, eles não são
biblicamente proibidos. A Bíblia nunca diz
13
Um tratamento mais completo de estratégias comuns que é essencial para a nossa condição de seres
de aconselhamento pode ser encontrado em BRAUN, humanos possuir uma memória perfeita da-
B. G. et. al. Treatment of Multiple Personality. Washington quilo que fizemos ontem ou uma hora atrás.
D.C.: American Psychiatric Press, 1986. Também,
FRIESEN, Gary. Uncovering the mystery of MPD. San E não diz que sempre saberemos explicar a
Bernardino, CA: Here’s Life, 1991. razão por que agimos de determinada manei-
122 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
ra. É certamente estranho guardar somente identidades amedrontadas. Uma abordagem
uma vaga memória de eventos significativos. bíblica pode evitar a complexidade esclare-
Às vezes é útil saber a razão por que fizemos cendo que o comportamento pecaminoso é
certas coisas, mas memórias vagas ou um uma expressão do coração (p. ex., Mt 12.34;
entendimento deficiente da nossa motivação 15.18-20). Na prática, isso significa que
não é uma violação das Escrituras. um irmão ou irmã pode lembrar à pessoa
O que viola as Escrituras é afirmar que com capacidade dissociativa que o coração
não somos responsáveis pelo nosso compor- é enganoso (Jr 17.9), e ao mesmo tempo
tamento pecaminoso. As Escrituras não dão não ignorar o medo e a dor que ela está
margem a equívocos. Eu sou responsável experimentando, pois as Escrituras exigem
pelo “bem ou mal que tiver feito por meio compaixão ao encontrarmos uma pessoa
do corpo (2 Co 5.10). Se o instrumento foi o contra quem outros pecaram. Mas mesmo
meu corpo, eu sou moralmente responsável. quando a pessoa se sente amedrontada e
Não importa se eu me chamo alternadamen- ferida, há em seu coração enganos profun-
te “João”, “Susana”, “Vovó” ou “Aninha”, dos que incluem rebeldia. Uma abordagem
eu ainda sou a mesma pessoa. Essas perso- bíblica, portanto, protege o aconselhado de
nalidades são todas partes de mim. Se uma transferir a culpa para outros, mas também
personalidade mente, a pessoa inteira mentiu orienta os conselheiros para que tenham
e é responsável, mesmo que não tenha uma compaixão.
memória clara da mentira.
Em linhas gerais, muitos observadores Como acontece o Transtorno de
do Transtorno de Personalidade Múltipla Personalidade Múltipla?
concordariam com o princípio da respon- Se o Transtorno de Personalidade
sabilidade pessoal, mas adicionariam uma Múltipla é possível, de onde ele vem? Como
qualificação significativa. Eles diriam que as pessoas desenvolvem personalidades
cada personalidade é responsável pelo seu distintas?
comportamento. A personalidade 1 é mo- Persistindo no alvo de obter insight
ralmente responsável pela personalidade 1, bíblico, considere esta afirmação importante:
e a personalidade 2, pela personalidade 2. as pessoas com diagnóstico de Transtorno de
Portanto, a personalidade 1 não é responsá- Personalidade Múltipla são mais semelhantes
vel pela personalidade 2. Afinal de contas, a nós do que diferentes de nós. Quando
eles dizem, como pode uma identidade procuramos entender comportamentos que
alternativa de criança ser responsável pelas parecem bizarros, devemos lembrar que a
ações da identidade alternativa de adulto Bíblia enfatiza nossas semelhanças mais que
maldoso que furta todas as vezes que entra nossas diferenças: somos pecadores que ne-
em uma loja? cessitam constantemente da graça de Deus.
Este ponto de vista faz certo sentido. Certamente, em níveis mais superficiais,
Parece cruel forçar uma identidade alterna- pode haver diferenças significativas entre a
tiva de criança assustada a que confesse as nossa pessoa e alguém diagnosticado como
ações de uma identidade alternativa rebelde. portador de Transtorno de Personalidade
Também parece simplista, pois há algumas Múltipla, assim como há diferenças entre
identidades alternativas que estão prontas a todas as pessoas. Mas somos semelhantes em
confessar qualquer coisa, principalmente as níveis mais básicos. Portanto, os elementos
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 123
que nos ajudam a alcançar uma compreensão tenha se sentido abandonado por aqueles
bíblica a nosso respeito nos ajudam também que poderiam ter ajudado, isolado daqueles
a compreender o Transtorno de Personalida- cuja vida parecia estar livre de problemas, ou
de Múltipla. ainda rejeitado por Deus. Essas são somente
A psiquiatria americana entra em algumas das experiências possíveis.
conflito com esse princípio. Diagnósticos No caso do Transtorno de Personalida-
psiquiátricos são considerados técnicos e de Múltipla, geralmente estamos diante de
definidos; você se enquadra ou não em de- pessoas que vivenciaram ou testemunharam
terminadas categorias. Em contraste, uma pecados terríveis. À semelhança do que acon-
perspectiva bíblica coloca as várias diferenças teceria com todos nós, suas respostas foram
interpessoais em um continuum: pessoas es- complexas. É como se tivessem sido fratu-
tão em diferentes pontos de uma escala. Isso radas ou fragmentadas, e cada fragmento
é relevante para pecados, dons espirituais, representasse uma reação diferente ao abuso.
fraquezas e qualidades de caráter. Algumas respostas podem ter sido pecami-
De fato, “esticar” uma categoria para nosas como, por exemplo, ira injusta. Mas
que inclua a pessoa “comum” é uma estratégia muitos desses “fragmentos” são respostas
bíblica normal para auxiliar na compreensão que possuem um precedente nos Salmos e
do coração humano. Por exemplo, a maioria poderiam estar dentro dos limites da fé.
das pessoas não vêem a si mesmas como as- Poderíamos até dizer que o fenômeno
sassinas ou adúlteras; nós nos consideramos da mente fragmentada é parte da nossa
“fora” dessa categoria técnica. Mas no Ser- existência como seres humanos que habitam
mão do Monte (Mt 5-7), Jesus amplia essas na terra. Por exemplo, se você for ao funeral
categorias até o ponto em que percebemos de um cristão, provavelmente experimentará
que estes “diagnósticos” mais severos nos des- reações opostas e concomitantes. Haverá
crevem em meio às circunstâncias normais uma grande alegria, sabendo que Deus está
da vida. No que diz respeito ao coração do sobre todas as coisas e que a pessoa falecida
homem, a Bíblia enfatiza que há basicamente está com o Senhor. Mas também haverá uma
pouca diferença entre o assassino e o santo. tristeza grande porque você perdeu alguém
Todos são pecadores, todos vivem neste que amava. Ao mesmo tempo, você poderá
mundo debaixo da maldição, todos vivem sentir esperança, um senso de isolamento, e
como criaturas responsáveis perante Deus, e até ira por lembrar que a morte não era o
todos são incapazes, por si mesmos, de viver propósito inicial de Deus para a Sua criação.
de modo que agrade a Deus. Repare nas reações aparentemente contradi-
Com isso em mente, considere algumas tórias do apóstolo Paulo na segunda carta aos
experiências pessoais que podem esclarecer Coríntios. Ele fala extensivamente sobre seus
o Transtorno de Personalidade Múltipla. sofrimentos, mas também sobre a glória de
Relembre uma ocasião em sua vida quando servir a Cristo e o prazer que encontra nos
alguém pecou descaradamente contra você sofrimentos.
ou você testemunhou um crime cometido Nossas experiências comuns estão em
contra outra pessoa. É provável que suas um continuum em que consta o “patológico”
respostas tenham sido bastante complexas, e o bizarro. As reações complexas que temos
incluindo ira diante da injustiça, compaixão diante do mal nos ajudam a entender as
pela vítima ou pena do agressor. Talvez você reações complexas daqueles que são diag-
124 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
nosticados como portadores do Transtorno ao pecado são às vezes personificadas para se
de Personalidade Múltipla. Experiências tornarem mais concretas. Para alguns, este
simultâneas e opostas não são inusitadas, parece ser o único caminho para colocar em
assim como nossas emoções podem mudar ordem a cacofonia de vozes em suas cabeças.
rapidamente de acordo com os acontecimen- Por exemplo, a ira contra um dos pais é
tos em que pensamos. personificada em “Irado”. Medo torna-se
O que vimos até aqui ainda não explica “Medroso”, ou é expresso por identidades
como algumas dessas experiências estão apa- alternativas representando crianças de várias
rentemente tão isoladas umas das outras em idades, cada uma associada ao momento
pessoas que manifestam o chamado Trans- quando algo muito assustador aconteceu.
torno de Personalidade Múltipla. Podemos Amor pelo pai torna-se “Papai”. O senti-
entender que nossa vida inclui um arranjo mento de vergonha é personificado como
complexo de “fragmentos” emocionais, mas “Estúpido” ou algum outro nome humi-
a idéia de que esses fragmentos são autô- lhante que talvez tenha sido usado contra a
nomos parece incompreensível. De fato, o pessoa. Mais adiante, com o uso habitual,
processo exato que há por trás desta divisão esses nomes começam a ganhar vida própria
é misterioso; mas há um número de pistas e são utilizados como recurso para manejar
provenientes de nossa própria experiência mentalmente as experiências que suas per-
que fornecem insight. sonificações representam.
Uma pista é nossa tendência a pensar Ainda assim, como essas emoções per-
concretamente. Com isso quero dizer que sonificadas tornam-se tão isoladas umas das
nossa linguagem está salpicada de metáforas outras? Mais uma vez, considere um exemplo
e analogias ligadas a nossos sentidos. Tenta- que está mais perto da experiência da maioria
mos compreender coisas obscuras em termos de nós. Conversei certa vez com uma mulher
daquilo que podemos ver ou tocar. Rela- solteira que estava deprimida a ponto de que-
cionamentos são entendidos em termos de rer se suicidar. Ela estava atormentada por-
energia (faíscas, eletricidade) e loucura (“Eu que, há pouco tempo, estivera sexualmente
estou ficando maluco com você!”). O tempo envolvida com um homem. Certamente ela
é transformado em algo concreto usando estava descontente por causa do seu pecado;
metáforas como dinheiro (investir tempo mas ela também não conseguia acreditar que
em) ou objetos (o tempo voa). As idéias se pudesse ter feito tal coisa. Ela imaginava a si
comparam a plantas (precisam ser nutridas, mesma espiritualmente perfeita e acima da
desenvolvidas) e alimento (mastigue-as, fatos possibilidade de cometer um pecado seme-
crus). No clássico cristão O Peregrino, esta lhante. Usando a analogia do Transtorno de
tendência é ainda mais elaborada, apresen- Personalidade Múltipla, “Pecadora” estava
tando a vida cristã e suas lutas como pessoas presente nela, mas não era reconhecida. Este
e lugares. Por exemplo, “Fiel” torna-se uma aspecto de si mesma estava fora de sua auto-
pessoa, como também “Flexível”, “Gigante compreensão geral. Foi necessária uma queda
Desespero” e “Muito-amedrontado”. De amarga para fazê-la ciente de sua cobiça na
modo semelhante, as crianças personificam área sexual e de sua auto-justificação.
ou concretizam as suas experiências. Podemos nos separar de certas verda-
No Transtorno de Personalidade Múl- des por inúmeras razões. Talvez nossos pais
tipla, as reações complexas à vitimização e tenham dito que era errado chorar, e assim
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 125
nós nos divorciamos da dor. Nossa teologia esperança, porque guia o povo de Deus a
imprecisa pode ter-nos impedido de recorrer responder em gratidão à Sua graça e ensina
a Deus quando alguém pecou contra nós, e a amar os inimigos. A compaixão jamais es-
assim negamos qualquer expressão de “Por traga o processo do aconselhamento bíblico,
que me abandonaste?”. Um acontecimento mas a falta de compaixão, sim.
pode ter sido tão doloroso que queremos su- Em segundo lugar, as memórias são in-
primir a memória para evitar dor futura. Tal- terpretadas. Elas não são simples transcrições
vez tenhamos que conviver com uma pessoa mentais de eventos passados. Assim como
que odiamos, e escolhemos negar a verdade acontece com freqüência no casamento,
de que cultivamos uma ira pecaminosa. Para duas pessoas podem ter versões completa-
muitos de nós, certas respostas estão simples- mente diferentes sobre um acontecimento.
mente fora dos limites cristãos, e portanto Portanto, quando você ouve falar sobre o
escolhemos evitá-las ou desconsiderá-las. passado, você está ouvindo uma perspectiva
Para algumas pessoas, especialmente aquelas dos eventos passados. Isso é especialmente
com poucos recursos bíblicos disponíveis relevante se o aconselhado decidir confrontar
no momento da vitimação, essa separação o agressor. Tal confrontação, a menos que
é mais óbvia. haja confirmação clara, deveria ser prefaciada
por um “Eu lembro”, e não por “Você fez”.
As memórias são confiáveis? A confrontação também deveria incluir uma
Podemos confiar nas memórias? Quase abertura à perspectiva da outra pessoa.
sem exceção, as pessoas que apresentam Em terceiro lugar, as memórias são
sintomas semelhantes aos do Transtorno de falíveis. Como criaturas, nossa memória não
Personalidade Múltipla revelam uma história é perfeita. Esse princípio é particularmente
de vida muito difícil, crivada de narrativas importante se transcorreram mais de dez
de abuso sexual. Essas histórias geralmente anos de amnésia desde a suposta vitimação,
parecem fidedignas e verdadeiras. Algumas se a família inteira nega o fato (e um membro
delas podem incluir imagens bizarras de da família for o suposto agressor), se não há
abuso em ritual satânico, sexo forçado com padrões de pecado evidentes na família, ou
animais, crianças sacrificadas, e outros even- se há uma história de terapia que assumiu a
tos terríveis. Como saber se estes realmente vitimização no passado. Se qualquer desses
aconteceram? Quando ouvir alguém falando critérios for preenchido, então o amor bíbli-
sobre o passado, considere as diretrizes que co deve levantar perguntas sobre a realidade
damos a seguir. dessas memórias (ao mesmo tempo que reco-
Em primeiro lugar, compaixão é a nhece que existe um senso de angústia).
regra. Sua primeira reação não deve ser ques- As memórias são investigadas por amor
tionar as memórias. Deve ser simplesmente à vítima e ao agressor. Entretanto, há ocasiões
sentir compaixão da pessoa. em que a confirmação é impossível devido a
Alguns podem discordar de que este morte, distância ou ausência de testemunhas.
seja um princípio básico, pois temem que Nesses casos, vamos simplesmente acreditar
se a memória for falsa, reconhecê-la poderia na pessoa, mesmo se as memórias incluí-
firmá-la ainda mais. Mas um aconselhamen- rem abuso em ritual satânico, e orientá-la
to nitidamente bíblico protege os aconselha- a ouvir o que Deus diz a pecadores contra
dos de serem marcados como vítimas sem quem outras pessoas pecaram. Essa resposta
126 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
não viola o princípio bíblico de ter duas tade, a orientação do nosso coração. O que
testemunhas, pois essas testemunhas eram ele pode fazer é transtornar nossa vida. Ele
requeridas em caso de ação legal contra o pode nos afligir fisicamente, tentar, acusar,
agressor (Dt 19.15). mentir e enganar. De suas estratégias, a mais
A preocupação básica do aconselha- perigosa consiste em procurar nos persuadir
mento é o cuidado pastoral para com alguém de que Deus não é nem soberano nem bom,
que não está caluniando o suposto ofensor e cochichar aos nossos ouvidos que ainda es-
nem tratando a memória de forma não-sábia. tamos cheios de culpa e vergonha, a despeito
Independentemente da veracidade e precisão do que ocorreu na cruz. Sem dúvida, Satanás
dos detalhes da memória, o conselho bíblico usa essas táticas com aqueles que são diag-
conduzirá ao mesmo ponto: crescer no amor nosticados como portadores de Transtorno
a Deus e ao próximo (ou inimigo).14 de Personalidade Múltipla.
E que táticas melhores ele poderia usar?
E o demonismo? Os supostos portadores do Transtorno de
Agora vamos à pergunta mais óbvia Personalidade Múltipla, com freqüência,
sobre o Transtorno de Personalidade Múl- são pessoas que foram gravemente feridas e
tipla. Não se trata de um caso evidente de traídas por amigos ou parentes. Eles se sen-
possessão demoníaca? Qualquer pessoa que tem abandonados. Como deve ser tentador
tenha testemunhado as mudanças de per- acreditar nas mentiras de Satanás. “Por que
sonalidade que ocorrem no Transtorno de Deus não impediu isso? Talvez Ele não tenha
Personalidade Múltipla não pode deixar de poder.” E se mentiras contra Deus não fun-
alimentar esse tipo de questionamento. Al- cionam, então é hora de direcionar mentiras
gumas identidades alternativas são profanas contra a própria pessoa. “Você deve ter feito
e expressam ira contra Deus, algumas são as- coisas horríveis para merecer esse tipo de
sustadoras, algumas parecem não se satisfazer tratamento.” “Você não sabe que coisas más
com nada senão a morte, e algumas parecem acontecem a pessoas más?”
reagir contra as Escrituras. Precisaríamos de Satanás é certamente o inimigo, e ele
maiores evidências? Não seria um caso de está sempre trabalhando com zelo contra
possessão demoníaca moderna, revestida aqueles que apresentam sintomas de Trans-
de uma terminologia secular? Antes de dar torno de Personalidade Múltipla. Mas per-
uma resposta, considere algumas verdades a ceba que seu papel tende a passar desperce-
respeito de Satanás e dos demônios. bido. Ele trabalha na surdina. Cochicha aos
Quanto a Satanás, é certo que ele não ouvidos. Usa de engano. Não deveríamos nos
pode nos fazer pecar, e também não pode nos surpreender, portanto, se ele nos distraísse
impedir de crer. Tanto o pecado como a fé com algo fantástico e bizarro, enquanto faz
provêm do coração humano; a fé foi plantada seu trabalho real longe das nossas vistas. Em
por Deus. Não há evidência nas Escrituras de outras palavras, não devemos ser distraídos
que Satanás possa mudar, contra nossa von- pelo inusitado. O fato de algo (como o
Transtorno de Personalidade Múltipla) pare-
cer estranho, não significa que é demoníaco.
14
Alguns conselheiros sugerem uma ruptura completa O inusitado pode ser um acobertamento
de laços familiares durante o processo de “cura”. Esse para a obra do mal a nível mais profundo,
tipo de conselho não tem orientação bíblica. mais enganador e mais comum.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 127
Tente ver o comum no inusitado. o evangelho e limitando a capacidade da
Por exemplo, se seu amigo repentinamen- pessoa para distinguir entre a hipocrisia do
te ficasse muito irado por uma razão não agressor e a verdade libertadora da Palavra.
aparente, você pensaria imediatamente em Talvez ela odeie a Deus, ou odeie quem ela
possessão demoníaca? Provavelmente não. pensa ser Deus. Não estamos querendo dizer
Sua primeira pergunta poderia ser: “Parece que evitar a Palavra de Deus seja desculpá-
que você mudou. O que aconteceu?”. Você vel. Entretanto, a avaliação de uma reação
provavelmente iria querer saber porque seu contrária às Escrituras pode nos levar para
amigo ficou tão irado. Você disse alguma uma direção muito mais proveitosa do que
coisa? Sobre o que ele começou a pensar? repreender um suposto demônio.
No Transtorno de Personalidade Múl- Outra razão pela qual culpar o demô-
tipla, como em todos os padrões de caos nio pode provocar estragos é que aqueles
pecaminoso, Satanás está sempre falando identificados como portadores do Transtor-
mentiras a respeito de Deus, da própria no de Personalidade Múltipla já costumam
pessoa e de outros, mas ele pode não estar possuir um senso de perda de controle.
operando nas manifestações mais bizarras. Impor um paradigma demoníaco pode
Na verdade, se procurarmos sempre iden- piorar a situação. O que eles precisam é de
tificar Satanás nos aspectos mais inusitados verdade bíblica que ensine sobre Deus, sobre
do Transtorno de Personalidade Múltipla, si mesmos e os outros, e que os conduza à
provavelmente o que faremos será prejudicar simplicidade da fé e da obediência.
mais que ajudar. Rotularemos imediata- Transtorno de Personalidade Múltipla é
mente todas as palavras maliciosas como uma ocasião para falar especificamente sobre
demoníacas e encorajaremos ainda mais a o diabo. Sua atividade e sua habilidade para
transferência da culpa (“Foi Satanás quem mentir e atormentar podem ser resistidas
fez isso”). Ou deixaremos de entender que pela graça de Cristo.15
palavras iradas podem ser tentativas de
manter o conselheiro a uma distância segura, Aconselhando pessoas com diag-
proteger-se de maiores dores ou talvez ma- nóstico de Transtorno de Perso-
nipular. Esses propósitos são pecaminosos. nalidade Múltipla
Eles nos dirigem a um material bíblico rico, A perspectiva que estabelecemos não
que não a repreensão de demônios. responde a todas as perguntas associadas
E quanto à reação contrária às Escri- ao Transtorno de Personalidade Múltipla,
turas manifestada por algumas identidades mas ela nos dá categorias bíblicas básicas
alternativas? Não seria uma evidência segura que são suficientes para nos habilitar para o
de possessão demoníaca? Diante de uma aconselhamento. Sabemos que o Transtorno
reação contrária às Escrituras, um diagnós- de Personalidade Múltipla revela com nitidez
tico rápido de demonismo nos impediria a fragmentação emocional que pode estar as-
de compreender o porquê de tal reação.
Talvez a pessoa esteja se distanciando da
Palavra de Deus porque esta a faz se sentir 15
cf. POWLISON, David. Confrontos de Poder :
mais culpada. Talvez um agressor tivesse o resgatando a verdade bíblica sobre a batalha espiritual.
costume de citar as Escrituras, pervertendo São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
128 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
sociada à vitimização ou outras dificuldades a manter um foco correto sobre seu proble-
da vida.16 Sabemos que a responsabilidade ma. Damos aqui um exemplo:
pessoal e a capacidade espiritual de responder Eu me sinto em cacos. É difícil para eu
a Deus permanecem intactas. Sabemos que entender, e é difícil para eu descrever a outros
as mudanças virão gradualmente, como em o que acontece. Por isso, às vezes, sinto-me
qualquer processo de santificação. E sabemos muito sozinho. Mas todas as peças fazem
que o aconselhamento, à semelhança dos parte de mim mesmo. Agora eu quero ouvir
demais ministérios, pode acontecer apenas o que Deus diz a estes cacos. Eu sei que eu
dentro de um relacionamento em que há posso resistir a Deus e deixar de ouvir o que
amor e compromisso. Ele diz. Quando eu agir assim, quero con-
O aconselhamento daqueles que vêm fessar meu erro e voltar a ter fé. Eu também
a você com o diagnóstico de Transtorno quero estar alerta às mentiras do inimigo.
de Personalidade Múltipla sempre começa Eu sei que ele tenta questionar o poder e
como todos os demais aconselhamentos: o amor de Deus, e eu devo combater esses
você ouve e compreende a pessoa. E aqui ataques lembrando-me da cruz de Jesus. Meu
a metáfora de Transtorno de Personalidade alvo é crescer no amor a Deus, entender a
Múltipla pode ser útil. Esta categoria de mim mesmo de acordo com a perspectiva
diagnóstico lembra-nos de que a pessoa não de Deus, e amar as pessoas mais do que
está simplesmente com medo. Ela se sente precisar delas.
amedrontada, vulnerável, ferida, moída, O prefácio pode ser ampliado e me-
irada, envergonhada, culpada, abandonada, lhorado à medida que a pessoa continua a
amaldiçoada e tomada pelo desejo de vingan- crescer em Cristo, e deveria ser revisado a
ça. Ela não odeia simplesmente seu agressor, cada sessão de aconselhamento. Pessoas com
mas também sente pena, amor e quer manter o diagnóstico de Transtorno de Personalida-
um relacionamento íntimo com aquele que a de Múltipla costumam lembrar pouco das
feriu. Pode ser que você jamais alcance uma sessões de aconselhamento, por isso uma
compreensão de todas essas “peças”, mas declaração por escrito é mais importante em
você deveria estar ciente do “mapa” básico seu caso que em outros.
da vida da pessoa. Conselheiros podem também consi-
À medida que você adquire maior derar a formulação de seu próprio prefácio,
compreensão do aconselhado, você pode talvez redigido em colaboração com o
apresentar uma declaração escrita, abran- aconselhado.
gente, cuja leitura precederá as sessões de Eu sei que você está atravessando um
aconselhamento. Este prefácio pode servir período de confusão. Meu desejo é levá-lo
como uma liturgia para ajudar o aconselhado à clareza bíblica e a respostas bíblicas. Eu
tentarei não reagir em excesso quando você
fizer coisas inusitadas, e procurarei sempre
16
Vitimação não é pré-requisito. A fragmentação falar a verdade. Durante a semana, orarei por
pode resultar da tentativa de lidar com a maldição da você, e pedirei a outras pessoas da igreja para
queda sem usar de recursos espirituais. Por exemplo, a
fazerem o mesmo. Eu não o abandonarei, e
suposta fragmentação de “Eva”, teve início depois de
ter beijado a sua avó falecida (apesar de que evidências tratarei você como um irmão (ou irmã).
posteriores sugerem que outros acontecimentos O aconselhamento tem seqüência
também tiveram parte no problema). semelhante à de qualquer outro. Equipado
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 129
com amor divino, uma teologia bíblica do a esta altura, e começar a trabalhar em um
sofrimento17, disposição para perseverar prefácio escrito em conjunto que diga que “as
mesmo quando o aconselhado tentar afastá- identidades alternativas são eu mesmo”.
lo para longe, o evangelho misericordioso de É certo chamar a pessoa pelo nome da
Jesus Cristo, e a oração de outros, você está identidade alternativa? Não há lei para isso;
mais que preparado para o aconselhamento mas desde que você quer encontrar o comum
bíblico. Tarefas de casa, uma parte essencial no inusitado, provavelmente seja sábio mo-
da maioria dos aconselhamentos bíblicos, ver a linguagem da pessoa para uma direção
são particularmente importantes. Considere mais normal. Por exemplo, ao invés de pedir
a possibilidade de encontrar um parceiro para falar com “Ira”, você pode pedir - “Por
que possa acompanhar o aconselhado na favor, fale-me sobre a sua ira”.
execução das tarefas designadas.
Algumas questões dizem respeito espe- Como o conselheiro e o aconse-
cificamente ao Transtorno de Personalidade lhado apresentam o problema à
Múltipla e precisam ser consideradas. igreja?
Visto que o aconselhamento eficaz e
É certo usar os nomes das várias bíblico tem base na igreja, o que o conse-
identidades alternativas? lheiro e o aconselhado devem dizer à igreja
Pode parecer estranho ouvir alguém se sobre o Transtorno de Personalidade Múlti-
referir a si mesmo usando um nome alterna- pla? Na maioria dos casos, é desnecessário
tivo. O que fazer? Pedir à pessoa que use o chamar a atenção para o problema. A igreja,
seu próprio nome? Ou simplesmente tentar como um todo, deve tratar esta pessoa como
entender essa faceta da pessoa e não ficar faria com qualquer outra pessoa. Entretan-
preocupado imediatamente com a questão to, é provável que exista na igreja um grupo
do nome? Ou seria certo usar os nomes das menor de pessoas capazes de compreender
diferentes identidades alternativas como as mudanças peculiares no estilo pessoal,
forma de mostrar compreensão? e que podem orar mais especificamente e
Nos primeiros estágios do aconselha- ministrar com amizade. Também é sábio ter
mento, pode ser melhor não repreender a um grupo pequeno (de até cinco pessoas)
pessoa por usar um nome alternativo. Ao que esteja ciente do que acontece durante
invés disso, considere o nome como um meio as sessões de aconselhamento e possa se unir
de expressão - “Eu me sinto como seu eu ao pastor conselheiro para acompanhar o
fosse ______”. Use isso como uma maneira aconselhado nas questões significativas
de entender a pessoa. Se você está aconse- tratadas em cada sessão. Esse acompa-
lhando alguém que foi doutrinado em um nhamento é muito importante, visto que
paradigma de Transtorno de Personalidade pessoas com o diagnóstico de Transtorno
Múltipla, ele ou ela desejarão manter os no- de Personalidade Múltipla costumam ter
mes. Talvez seja melhor evitar a confrontação uma memória fraca.
Cf. WELCH, Edward. Exaltar a Dor? Ignorar a Dor?
17
O que fazer com o sofrimento?
130 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
E se a pessoa causar transtornos todos preocupados com a pessoa. Esteja
na igreja? alerta, ore por unidade, ensine ativamente
O portador do diagnóstico de Trans- a sabedoria bíblica a respeito do assunto, e
torno de Personalidade Múltipla pode causar assegure-se de que as pessoas envolvidas no
transtornos na igreja. Por exemplo, pode cuidado pastoral saibam que tipo de conse-
falar em voz alta durante um momento lho está sendo dado.
de oração e agir de forma notoriamente
inusitada durante a Escola Dominical ou o Quem deveria aconselhar a pes-
louvor. Em situações semelhantes, lide com soa com diagnóstico de Transtor-
esta pessoa assim como você lidaria com no de Personalidade Múltipla?
qualquer outra: converse em particular, e Se alguém em sua igreja conhece as
mostre que ela está distraindo as demais. Escrituras, tem uma compreensão bíblica
Talvez você possa pedir a alguém de sua do Transtorno de Personalidade Múltipla,
confiança para sentar-se ao lado da pessoa e experiência no assunto, então esta pessoa
no fundo do auditório e estar pronto para seria um bom conselheiro ou coordenador
sair em caso de necessidade (mas lembre para o caso. Se não há na igreja pessoas que
que agir de forma inusitada na igreja não é preencham esta descrição, isso ainda não é
necessariamente pecaminoso). Ore com a um motivo suficiente para procurar ajuda
pessoa. Repreenda-a se seu comportamento de fora. Vivemos em uma época em que há
for pecaminoso. Na maioria das situações, uma distinção exagerada entre especialistas
você precisa tentar compreender porque ela e leigos ou entre um profissional habilitado
está agitada, e lhe ensinar que a participação e um amigo crente. Precisamos lembrar
nas reuniões da igreja é uma oportunidade que Deus concede Seu Espírito a todos os
para praticar o autocontrole e amor ao próxi- que confiam em Jesus. Com freqüência, as
mo. Se ela persistir em seu comportamento, pessoas com menor grau de instrução acham
talvez precise limitar o envolvimento na que têm menos a contribuir que aquelas que
igreja até que demonstre maior autocontrole. possuem graus acadêmicos. Certamente isso
Entrementes, procure alternativas para que não é verdade. Os maiores instrumentos de
ela receba alimento espiritual e mantenha mudança costumam ser um sermão, uma
comunhão com outros crentes. Se você palavra de encorajamento de um amigo du-
avaliar que o comportamento é pecaminoso, rante um estudo bíblico ou um convite para
e outros concordarem, então os estágios de jantar, e não o conselho de um especialista.
disciplina aplicada pela igreja constituem a No caso do Transtorno de Personalidade
melhor maneira de amar e restaurar. Múltipla, esse princípio deveria até ganhar
Outra circunstância em que pessoas maior destaque porque especialistas não
com diagnóstico de Transtorno de Persona- compreendem o problema.
lidade Múltipla podem causar transtor-nos A pessoa escolhida para conduzir o caso
na igreja - apesar da falha não ser delas - é deve ser alguém que conheça as Escrituras,
quando membros da igreja discordam sobre não se deixe distrair pelo inusitado, e tenha
como aconselhá-las. Por exemplo, um grupo tempo para pastorear o aconselhado durante
de aconselhamento bíblico, um grupo de alguns anos. Se não for o pastor, este deve
batalha espiritual e um grupo que confia supervisionar o aconselhamento e a equipe
nos especialistas da psicoterapia podem estar pastoral que estiver envolvida.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 131
Identidades alternativas que fragmentada e isolada de certos aspectos dela
parecem ignorar o evangelho mesma, deveríamos esperar que a experiência
precisam de conversão? de desintegração desapareça?
Uma questão peculiar ao Transtorno de A unidade intrapessoal não é o alvo
Personalidade Múltipla é se as identidades principal, mas você perceberá que o evan-
alternativas que parecem ignorar o evange- gelho tende a expor tudo à luz. A vergonha
lho precisam ser evangelizadas. Parece ser que estava escondida não é mais desonra (Is
uma idéia estranha; mas se você se deparar 54.1-5). A culpa é lavada, e não há mais ne-
com um caso de Transtorno de Personali- cessidade de buscar um falso acobertamento.
dade Múltipla, certamente pensará a esse A ira muda de vingança para confiança no
respeito. Deus que será o justo Juiz. O temor ao ho-
Se você se lembrar do continuum entre mem transforma-se em amor pelo próximo.
o normal e o bizarro, a resposta é imediata. A dor pode ainda existir, mas quando unida
Há alguns cristãos professos e batizados que à esperança, ela não amedronta mais.
não demonstram frutos em sua vida. De À medida que o aconselhamento pro-
acordo com 1 João, eles provavelmente de- gride, é possível perceber que as fragmenta-
veriam examinar sua profissão de fé. Há ou- ções artificiais não são mais necessárias.
tros cristãos que agem como pagãos, muito
embora tenham feito uma clara profissão de Quanto tempo é necessário? Pos-
fé. Esses cristãos não precisam de conversão, so esperar que a pessoa se torne
eles precisam de arrependimento. “integrada”?
Mas até mesmo fazer estas distinções é Conquanto um entendimento da
complicado. Felizmente, nós não temos que pessoa e das categorias bíblicas relevantes ao
dar um veredito a esse respeito. A pessoa pro- problema possa ser alcançado rapidamente,
fessou publicamente a sua fé e foi batizada? devemos esperar que o cuidado pastoral
Se a resposta for não, ela deve ser conduzida intensivo dure alguns anos. O aconselhado
em direção a estes passos. Caso contrário, levou anos para desenvolver um estilo de
você deve apontar a ela, em todo o tempo, vida que separa e distancia certas verdades.
a Pessoa de Jesus como seu Salvador, exem- Desenvolver o hábito de pensar biblicamente
plo, objeto de sua fé, e Senhor. Além disso, implica trabalho árduo. Certamente, durante
você deve levá-la a descrever as identidades esse tempo, o aconselhado tanto será minis-
alternativas chamando, por exemplo, “Ira” trado como ministrará a outros.
de “minha ira pecaminosa”, e conduzi-la Os insights que procuramos dar não
constantemente ao arrependimento. têm a intenção de retratar o aconselhamento
como um processo elementar. Quem já teve
Qual é o alvo do aconselha- a oportunidade de pastorear uma dessas pes
mento? soas sabe que não é assim. Mas a compreen-
O alvo do aconselhamento com pes- são do problema tem a intenção de mostrar
soas fragmentadas é o mesmo de qualquer que verdades bíblicas simples são ricas na
aconselhamento bíblico: “glorificar a Deus e aplicação: há esperança de crescimento es-
desfrutá-lo para sempre”. Mas está implícito piritual para aqueles diagnosticados como
na pergunta algo sobre a “integração” das portadores de Transtorno de Personalidade
identidades alternativas. Se a pessoa parece Múltipla. Uma compreensão bíblica também
132 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
tem a intenção de romper com a distinção gos cheios de sabedoria. Não há como apoiar
contínua entre o aconselhamento especiali- esta idéia biblicamente. Deus é o Especialista;
zado e o aconselhamento pastoral. e o povo de Deus, ao buscar as Escrituras e o
Com demasiada freqüência recebemos conselho sábio de outros crentes, é o agente
a mensagem de que especialistas em saúde de mudança de Deus. O Transtorno de Per-
mental são superiores aos pastores e aos lei- sonalidade Múltipla pertence à igreja.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 133
Homossexualismo
Pensamento atual e diretrizes bíblicas
E d w a r d T. We l c h 1
Homossexualismo2 é o assunto quente mesmo sexo3; sob o título de “pluralismo”,
das últimas décadas. Somente uma pessoa todas as formas de expressão sexual serão
muito ingênua pode evitar uma questão consideradas igualmente válidas; aqueles que
de tão amplo alcance social e que preocupa contraírem AIDS pelo contato homossexual
a tantos. Trata-se de um assunto que con- ainda exercerão papel de modelos; líderes da
frontará a Igreja ao longo da atual geração, igreja continuarão a ser “ultrapassados”; um
possivelmente mais que a questão do abor- número maior de denominações farão uma
to. Represálias políticas serão impostas às revisão da exegese de passagens bíblicas para
instituições que se recusarem a contratar permitir relacionamentos homossexuais4; e
homossexuais; homossexuais provavelmente aqueles que costumam levar a Bíblia a sério
terão “seu lugar à mesa” com o reconheci- em outras áreas da vida deixarão as igrejas
mento civil dos casamentos entre pessoas do que identificarem o homossexualismo como
“pecado”. Certamente, ao longo de sua his-
tória, a igreja tem enfrentado perseguição e
crítica do mundo, mas em tempo algum ela
1
Tradução e adaptação de Homosexuality: current thinking foi tão freqüentemente denunciada como
and biblical guidelines. “má” por sustentar aquilo que parecem ser
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. princípios bíblicos.
Glenside, Pa., v. 13 n. 3, Spring 1995. p. 33-42.
2
Homossexualismo pode ser definido no adulto
como pensamentos ou ações motivados por uma
atração definidamente erótica (sexual-genital) por BAWER, Bruce. A place at the table: the gay individual in
3
membros do mesmo sexo, resultando geralmente, American society. New York: Poseidon, 1994.
mas não necessariamente, em relações sexuais 4
As declarações sobre o homossexualismo feitas
com tais pessoas. Embora haja diferenças entre o por mais de 45 diferentes denominações americanas
homossexualismo masculino e feminino, usaremos podem ser encontradas no livro de J. Gordon Melton
o termo “homossexual” para nos referir a homens e The Church Speaks out on: homosexuality. Detroit: Gale
mulheres, salvo indicação específica. Research, 1991.
134 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Então, prepare-se. Não confie naquele do em escala maior que o do homossexual.
seu estudo bíblico sobre homossexualismo Uma aplicação apropriada deste princípio
feito uma década atrás. Não presuma que bíblico pode perfeitamente desarmar alguém
está familiarizado com algumas críticas às que esteja procurando uma briga, visto que
pesquisas científicas mais recentes sobre o é difícil discutir com uma pessoa espiritual-
homossexualismo significa ter um preparo mente humilde. Lamentavelmente, embora
adequado. Atualmente, novas interpretações a teoria seja clara, a prática é difícil e nada
das Escrituras e estudos científicos sofistica- comum.
dos estão nos desafiando para que pensemos Muitos cristãos conseguem admitir
com maior clareza. Pessoas de alto nível que são pecadores, porém não colocam
intelectual estão se convencendo de que rela- os seus pecados na mesma categoria do
cionamentos homossexuais são biblicamente homossexualismo. Por ser considerado um
permitidos desde que haja compromisso. Em pecado “contrário à natureza”, o homos-
resposta a esta situação, podemos expressar sexualismo é visto como anormal mesmo
arrependimento e esclarecer que interpreta- entre os pecados. Os cristãos heterossexuais
mos mal as Escrituras ou podemos sustentar estão freqüentemente iludidos com relação
uma posição que é compassiva, biblicamente a esta questão. A maioria pode reconhecer
correta e capaz de interpretar as observações no seu coração a semente de quase todos os
das pesquisas atuais. Se mantivermos a idéia demais pecados, mas não pode nem imaginar
de que homossexualismo é pecado, então a possibilidade de ser tentado pelo homosse-
precisaremos não só defender essa posição, xualismo. No entanto, as Escrituras nunca
mas também desenvolver uma estratégia destacam o homossexualismo como objeto
de sair em busca de homossexuais para de uma reprovação especial. Ele procede do
incentivá-los ao arrependimento. mesmo coração que gera ganância, inveja,
A defesa pode ser montada mediante desentendimento, desobediência aos pais e
estudo cuidadoso do assunto, em oração. difamação (Rm 1.29-32).
O resgate de homossexuais, porém, não é Com arrependimento e espírito sub-
fácil. A dificuldade que encontramos na misso, poderemos persistir na busca daqueles
abordagem da comunidade homossexual é que praticam o homossexualismo, e faremos
que muitas conversas prolongam-se demais isso sem sombra de justiça própria. A Escri-
antes que a Bíblia seja aberta. A igreja, por- tura condena tal espírito de julgamento, e os
tanto, deve prestar atenção não só ao que é homossexuais são ágeis em detectá-lo.
dito, mas a como é dito. O arrependimento pessoal, porém, é
apenas o começo da nossa preparação para
Como estabelecer o diálogo o diálogo. Devido à nossa solidariedade
bíblico com todos quantos se chamam cristãos,
O como do diálogo bíblico começa com há pecados coletivos que compartilhamos.
o arrependimento pessoal. Antes de confron- Será que a igreja tem revelado uma atitude
tar o pecado alheio, devemos começar pela de justiça própria diante dos homossexuais?
identificação do pecado em nossa própria Há “homofobia” em algumas de nossas
vida. De acordo com Mateus 7.1-5, a Bíblia congregações, medo ou até mesmo ódio?
nos exorta a deixar que o Espírito sonde o Será que temos a tendência de pensar no
nosso coração até que vejamos o nosso peca- homossexualismo como pior que as fofocas
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 135
e idolatrias pessoais que são implacáveis na os homossexuais a continuar o diálogo com
igreja? Será que a igreja tem deixado de ser você, em nome de Jesus.
receptiva para com os homossexuais incré- Aberto o canal de diálogo, prepare-se
dulos, mas que estão em busca da verdade para ingressar numa das conversas mais desa-
espiritual? A resposta a estas perguntas é fiadoras. Você penetrará em um campo onde
“Sim”. Mais especificamente, a resposta é, pressuposições dão um sentido diferente às
“Sim, nós temos pecado”5. palavras, e métodos de interpretação bíblica
E o que dizer se você pessoalmente não parecem completamente estranhos. Pode ser
pecou contra os homossexuais? Talvez você de ajuda entender os homossexuais como um
nunca tenha encontrado alguém envolvido “povo” singular e usar uma abordagem mis-
num estilo de vida homossexual. O arre- sionária. Os homossexuais têm sua própria
pendimento coletivo é apropriado mesmo identidade, cultura, processo de socialização
assim? De acordo com os livros de Daniel e epistemologia. O que parece biblicamente
e Neemias, embora não sejamos pessoal- claro para muitos cristãos pode ser com-
mente culpados de certos pecados, existe preendido de modo bem diferente por um
uma unidade entre os membros da igreja. homossexual. Dialogar não consiste em
Devido a esta unidade, compartilhamos os simplesmente abrir a Bíblia e ler passagens
pecados dos demais cristãos, e é apropriado sobre o homossexualismo. Palavras funda-
confessá-los. mentais como “pecado” podem significar
Orei ao SENHOR, meu Deus, con- uma coisa para você, mas outra coisa para
fessei e disse: ah! Senhor! Deus grande um homossexual. Para você, pecado significa
e temível, que guardas a aliança e a desobedecer ao Senhor. Para um homos
misericórdia para com os que te amam sexual, pode significar prejudicar outras pes-
e guardam os teus mandamentos; temos soas. Você recorre à Bíblia como regulador
pecado e cometido iniqüidades, proce- da conversa; o homossexual pode recorrer
demos perversamente e fomos rebeldes, a sentimentos e a certos direitos pessoais e
apartando-nos dos teus mandamentos políticos presumidos. Estas diferenças de
e dos teus juízos; e não demos ouvidos pressuposição certamente conduzem a uma
aos teus servos, os profetas, que em teu má compreensão, a não ser que estejamos
nome falaram aos nossos reis, nossos preparados e atentos.
príncipes e nossos pais, como também a No início de qualquer debate, a igreja
todo o povo da terra. (Dn 9.4-6) deve deixar claro que, embora ela possa errar
Este é o ponto de partida para conver- na interpretação da Bíblia e esteja pronta a
sar com homossexuais: deixar que apontem se deixar corrigir de bom grado, ela continua
para os pecados da instituição a que você submissa à Palavra de Deus. Não se pode
pertence. É o momento de você lhes per- ceder espaço na questão de autoridade das
guntar como a igreja tem pecado contra os Escrituras. Precisamos, sim, admitir que
homossexuais. E se você achar mesmo um nem sempre é fácil aplicar a Palavra de
pequeno grão de verdade no que lhe for Deus. Mas contando com o Espírito Santo
respondido, peça perdão e então convide como intérprete, devemos esperar unidade
entre aqueles que verdadeiramente querem
5
Certamente isso não significa que vamos pedir conhecer o que Deus diz acerca deste assunto
desculpas por aquilo que a Bíblia diz.
importante. O alvo é descobrir “Assim diz o
136 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Senhor...”.6 Nossas pressuposições não estão outro, contrário à natureza; seme-
fundamentadas em sentimentalismo, mas no lhantemente, os homens também,
ensino das Escrituras. deixando o contato natural da
mulher, se inflamaram mutuamente
A informação bíblica em sua sensualidade, cometendo
Mesmo com pontos de vista diferentes, torpeza, homens com homens, e
é razoavelmente fácil concordar em um pon- recebendo, em si mesmos, a me-
to: a Bíblia é consistente em suas proibições recida punição do seu erro. (Rm
contra o homossexualismo e não dá margem 1.26, 27)
a ambigüidades. Sempre que ela menciona Não vos enganeis: nem impuros,
o homossexualismo, ela o condena como nem idólatras, nem adúlteros,
pecado. nem efeminados, nem sodomitas
Com homem não te deitarás, como (arsenokoitai)... herdarão o reino de
se fosse mulher; é abominação. (Lv Deus. (1 Co 6.9,10)
18.22) Não se promulga lei para quem é
Se também um homem se deitar justo, mas para transgressores e re-
com outro homem, como se fosse beldes, irreverentes e pecadores, [...]
mulher, ambos praticaram coisa impuros, sodomitas (arsenokoitai),
abominável; serão mortos; o seu [...] para tudo quanto se opõe à sã
sangue cairá sobre eles. (Lv 20.13) doutrina. (1Tm 1.9,10)
Enquanto eles se alegravam, eis que Como Sodoma, e Gomorra, e as ci-
os homens daquela cidade, filhos dades circunvizinhas, que, havendo-
de Belial, cercaram a casa, batendo se entregado à prostituição como
à porta; e falaram ao velho, senhor aqueles, seguindo após outra carne,
da casa, dizendo: Traze para fora o são postas para exemplo do fogo
homem que entrou em tua casa, eterno, sofrendo punição. (Jd 1.7)
para que abusemos dele. O senhor Alguns estudiosos das Escrituras
da casa saiu a ter com eles e lhes dariam preferência a ouvir a proibição do
disse: Não, irmãos meus, não façais homossexualismo nas palavras de Jesus para
semelhante mal; já que o homem que a questão fosse mais conclusiva. Jesus
está em minha casa, não façais tal não falou especificamente contra o homos-
loucura. (Jz 19.22,23) sexualismo, mas há vários comportamentos
Por causa disso [idolatria], os entre- sexuais sobre os quais Ele também não falou
gou Deus a paixões infames; porque especificamente como, por exemplo, incesto,
até as mulheres mudaram o modo bestialidade e estupro. Isto não significa que
natural de suas relações íntimas por a prática fosse permitida. Jesus manteve a lei
do Antigo Testamento. Além do mais, Ele
6
O professor Allistair McGrath da Universidade indicou que a única alternativa ao casamento
de Oxford destaca corretamente que vivemos heterossexual era o celibato (Mt 19.10).
numa época em que “abertura e relevância são A resposta de muitos homossexuais a
mais importantes que a verdade. Isso, todavia, é
superficialidade intelectual e irresponsabilidade
essas passagens bíblicas costuma ser: “O que
moral”. Michael Foucault afirmou que “verdade” isso tem a ver comigo?”. É como se você
no mundo pós-moderno é nada mais que um elogio. estivesse falando a um grupo de pastores do
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 137
século XX sobre animais puros e impuros. O te a uma cultura em que a procriação era
texto bíblico é considerado irrelevante, pois fundamental. Qualquer que seja a variação,
a hermenêutica homossexual dá a entender a hermenêutica homossexual consiste em
que os versos falam apenas àqueles que dois pontos: (1) existe uma orientação ho-
participam de relações sexuais “contrárias à mossexual “natural” que não é tratada nas
natureza” e sem compromisso. As proibições, Escrituras e (2) as proibições bíblicas contra
em seu ponto de vista, não se aplicam a rela- o homossexualismo não são aplicáveis aos
cionamentos estáveis e amorosos. “casamentos” homossexuais atuais.
Seu raciocínio funciona da seguinte Esta hermenêutica pode parecer absur-
forma: a Bíblia não fala de um homossexu- da para muitos cristãos. Soa como a lógica
alismo “natural”. Ela só trata da prostituição de um bêbado que diz que todas as passa-
masculina cultual ou “contrária à natureza”, gens bíblicas acerca dos beberrões não são
praticada por pessoas com orientação hete- relevantes para ele, pois ele é um alcoólatra.
rossexual7. A Bíblia não fala especificamente Mas esta lógica não pode ser descartada tão
de pessoas com orientação homossexual. rapidamente. À primeira vista, não lhe parece
Portanto, para desenvolver uma teologia que muitos homossexuais não escolhem o
bíblica do homossexualismo, outras passa- homossexualismo, mas têm esta orientação
gens mais relevantes devem ser examinadas desde o nascimento? Também não é verdade
como, por exemplo, os ensinamentos sobre que há diferenças entre o tempo bíblico e os
relacionamentos heterossexuais. O princípio dias de hoje? Não costumamos considerar al-
bíblico destacado é que o comportamento gumas passagens bíblicas como limitadas em
sexual é privilégio dos relacionamentos de sua aplicação a determinado tempo e cultura,
amor e compromisso. Para os heterossexu- ao invés de serem verdades morais eternas?
ais, relações sexuais acontecem somente no Por exemplo, muitas igrejas não exigem que
contexto de casamento. Para os homosse- as mulheres usem véu ou fiquem em silêncio.
xuais, na ausência de permissão legal para o Por quê? Porque a igreja de Corinto era parte
casamento, as relações sexuais devem ocorrer de uma cultura que tinha maneiras distintas
somente quando há algum tipo de amor de expressar submissão. O princípio é sub-
ou fidelidade ao parceiro do mesmo sexo. missão, e não o véu. Mas se podemos fazer
Relações hetero e homossexuais ocasionais isto com o véu, por que não podemos fazer
são erradas, mas sexo no casamento ou em o mesmo com o homossexualismo?
relações semelhantes ao casamento é bom.
Encontramos variações desta lógica. Será que o homossexualismo bí-
Por exemplo, alguns dizem que o homosse- blico era “contrário à natureza”,
xualismo é proibido nas culturas do Antigo enquanto o homossexualismo
e Novo Testamentos, mas que tais diretrizes atual é “natural”?
não permanecem válidas para os dias de Os argumentos atuais tendem a se
hoje porque eram aplicáveis principalmen- apoiar fortemente na idéia de que o homos-
sexualismo atual é “natural”. É uma orien-
tação dada por Deus, em nada diferente do
7
Por exemplo, consulte o artigo de J. Nelson
fato de ser canhoto. Homossexualismo não
Homosexuality and the Church: Towards a Sexual Ethics
of Love, em Christianity and Crisis, n. 37, 1997, p. diz respeito a algo que o homem moderno
63-69. faz, mas a algo que ele é. As “paixões infames”
138 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
mencionadas em Romanos 1.2 dizem respei- conseqüências são profundas. Por exemplo,
to ao homossexualismo irresponsável ou ao admita uma orientação homossexual não
comportamento homossexual praticado por pecaminosa, e você encorajará a igreja a
alguém que possui uma orientação heteros- procurar constantemente um meio para
sexual. Este argumento é fundamental para escapar do conteúdo bíblico. Afinal, como
a posição homossexual: homossexualismo Deus poderia responsabilizar pessoas que
é uma identidade. Ninguém escolheu ser nunca escolheram ser homossexuais? Não se
homossexual. Simplesmente acontece. O trata de uma escolha de Deus? A igreja não
homossexualismo é tão natural para os ho- pode conviver com a idéia de uma orientação
mossexuais quanto o heterossexualismo para homossexual natural sem que, em algum
os heterossexuais. E como podem os cristãos momento, precise reinterpretar as Escrituras
esperar que alguém mude sua identidade? para que possam parecer mais de acordo
Como pode Deus esperar que aqueles que com a perspectiva que ela tem do caráter
Ele criou orientados para o homossexualismo de Deus. O resultado é que, no mínimo, a
contrariem a sua natureza? igreja se afastará de advertências severas das
Embora muitos cristãos não concor- Escrituras como a de que os homossexuais
dem com a atividade homossexual, eles fo- não herdarão o Reino de Deus (1 Co 6.10).
ram afetados pelo argumento homossexual o Esta advertência certamente parece muito
suficiente para crer em algum tipo de tendên- dura para pessoas que estão feridas e preci-
cia homossexual. O Ramsey Colloquium, sam de cura (em contraste com pecadores
um grupo de estudiosos judeus e cristãos, carentes de arrependimento).
certamente pensa desta forma quando diz: Outro resultado da aceitação da
Apesar de sermos iguais perante Deus, orientação homossexual (embora ainda dis-
não nascemos iguais em termos de pontos cordando do comportamento homossexual)
fortes e fracos, tendências e disposições, é que o melhor conselho a ser dado àqueles
natureza e ambiente. Não podemos inverter com tendência homossexual seria: “Olhe,
totalmente a mão com a qual temos maior mas não toque”. “Você sempre pensará nisso,
habilidade por herança e circunstâncias fa- desejará isso, mas não pratique o homos
miliares, mas somos responsáveis pelo modo sexualismo.” As vítimas de tais conselhos
como usamos esta mão.8 nunca teriam o privilégio de lutar contra
Até mesmo autores evangélicos bem o pecado e arrancar suas raízes da imagina-
conhecidos como Tony Campolo têm sim- ção, além de que acabariam achando justo
patizado com esta idéia9. Mas precisamos estarem iradas com Deus por lhes dar uma
ser muito cuidadosos neste ponto, pois as orientação e depois se recusar a permitir que
ela seja colocada em prática.
A igreja precisa estar instruída no que
8
Morality and Homosexuality. In The Wall Street Journal,
diz respeito à questão da orientação homos-
feb.24, 1999, p. 3. sexual, pois é justamente este o ponto crítico
9
Veja os artigos de Anthony Campolo A Christian para engajar a comunidade homossexual no
sociologist looks at homosexuality. In The Wittenburg debate bíblico. A idéia de uma orientação
Door, Oct.-Nov. 1977, p. 16-17. e de Tony Evans homossexual não encontra fundamento
Homosexuality: Christian Ethics and Psychological Research. algum que possa ser discutido. Ela não se
In The Journal of Psychology and Theology, n. 3, 1975, p.
94-98. baseia em informação bíblica nem em pes-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 139
quisa médica, mas é uma posição política que Por exemplo, a ausência de castidade era pu-
pretende garantir direitos para os homosse- nida com maior severidade e a prostituição
xuais, e está alicerçada em experiência pessoal era ilegal, em lugar de ser regulamentada.
diante da qual nem a informação bíblica Considerando o fato de que a atitude para
nem a refutação de literatura médica serão com os atos homossexuais era de modo ge-
persuasivas. No fundo, a maioria dos homos- ral negativa em lugares como Egito, Assíria
sexuais simplesmente apelam para os seus e Babilônia10, estaria completamente fora
sentimentos e para as experiências de outros de sintonia com o caráter da lei do Antigo
homossexuais. “O homossexualismo parece Testamento proibir o homossexualismo
adequado a nós, portanto é algo natural. É associado à adoração de ídolos e permiti-lo
parte da nossa constituição.” Ainda assim, para outros propósitos. Além do mais, mes-
uma ausência potencial de sensibilidade às mo que uma passagem como Levítico 18.22
Escrituras não deve nos impedir de examinar fizesse referência à prostituição cultual, o fato
os argumentos biblicamente. de que o homossexualismo estava associado
Do ponto de vista bíblico, é possível à prostituição cultual o tornaria, em geral,
que algumas passagens do Antigo Testamen- ainda mais repugnante.11
to sobre homossexualismo tivessem como O que mais podemos dizer quanto ao
objetivo, pelo menos em parte, afastar os uso da expressão “contrário à natureza”? Seria
israelitas das práticas dos cananeus. Uma possível que os textos bíblicos ignorassem a
destas práticas pode ter sido a prostituição orientação homossexual e estivessem se refe-
masculina que era parte da religião dos cana- rindo a uma prática homossexual “contrária
neus (Dt 23.17,18). Este homossexualismo à natureza” porque os participantes teriam
“contrário à natureza” era condenado. Mas orientação heterossexual? Isto equivaleria
seria esta a única forma de atividade homos- a afirmar que os homossexuais praticantes
sexual condenada? Se as proibições do Anti- mencionados na Bíblia estavam envolvidos
go Testamento focalizavam exclusivamente com homossexualismo contra à sua orien-
a prostituição cultual, porque então o Novo tação natural. Mas biblicamente, a natureza
Testamento as manteria? A igreja do Novo do pecado é voluntária - as pessoas pecam
Testamento não tinha em vista afastar-se das porque elas querem pecar (Tg 1.13-15). O
práticas religiosas dos cananeus. Ela queria, pecado vem dos nossos desejos. Ninguém
porém, demonstrar a santidade de Deus em peca esperneando e gritando. O homos
seu comportamento sexual de tal forma que sexualismo existia nos tempos bíblicos
se distanciasse da licenciosidade generalizada porque as pessoas o apreciavam, e eram
presente em sua cultura.
Sustentar a idéia de que Levítico estava 10
BAILEY, D. Sherwin. Homosexuality and the western
interessado unicamente na prostituição mas- Christian tradition. London: Longmans, Green & Co.,
culina seria promover um distanciamento 1955.
sem precedentes do tom geral das proibições Greg Bahnsen também destaca: “Um raciocínio
11
sexuais contidas na Bíblia. Muitas das leis paralelo nos conduz a julgar a bestialidade [mencionada
contidas em Levítico eram parecidas com as em Levítico 12:23] moralmente aceitável quando fora
do contexto religioso ou de culto—uma conclusão
das nações vizinhas, mas o código israelita era que deveria chocar nossa sensibilidade ética”.
evidentemente mais forte na questão moral Homosexuality: a biblical view. Grand Rapids, Mich.:
e mais detalhado que os das nações pagãs. Baker, 1978, p. 45.
140 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
atraídas a ele pelos seus próprios corações a decisões racionais, conscientes. Talvez a
(Mc 7.21-23). Fazer uma distinção artificial igreja tenha perdido de vista o fato de que
entre a prática e a tendência homossexual o pecado é parte da estrutura humana e ele
contraria a constante ligação que a Bíblia atua em um nível silencioso e profundo.
faz entre desejo/tendência e prática. Se a
prática era proibida nas Escrituras, o desejo As proibições bíblicas são re-
também era. levantes no caso de relaciona-
Homossexuais comprometidos com mentos homossexuais em que há
uma maneira bíblica de pensar podem come- compromisso?
çar a ser desafiados em suas idéias acerca da Mas será que não se trata mesmo de
tendência homossexual. Mas uma pergunta amor? - alguns perguntam. (E como ar-
bastante significativa persiste: Por que o gumentar contra isso?) As Escrituras não
homossexualismo lhes parece natural? A proíbem apenas os relacionamentos sexuais
resposta bíblica é relativamente direta. Como ocasionais e destituídos de amor? Ou como
muitos outros pecados, o homossexualismo alguém propôs: “A igreja deve manter uma
não precisa ser aprendido. Assim como uma atitude aberta para como as várias orienta-
criança que nunca presenciou um acesso de ções sexuais e formas humanas de relacio-
raiva pode ter um desempenho profissional namento... desde que sejam praticadas de
no assunto, o homossexualismo pode ser maneira amorosa e responsável.12
uma habilidade instintiva do coração huma- Fazer esta sugestão seria acreditar que as
no. Em outros termos, o homossexualismo é proibições bíblicas não estão claras, e que de-
tão natural quanto a ira e o egoísmo. Todos vemos então apelar à lei do amor que parece
eles estão “embutidos” em nossa natureza ser mais clara. Mas as passagens de Levítico
humana. O homossexualismo é de fato parecem ser bem claras. Levítico 18.22 diz:
“natural”, mas só no sentido de que é uma “Com homem não te deitarás, como se fosse
expressão natural da natureza pecaminosa e mulher; é abominação”. O termo “mulher”,
não uma espécie de constituição moralmente neste contexto, refere-se evidentemente a um
neutra dada por Deus. relacionamento conjugal sancionado biblica-
O fato de que muitos homossexuais mente. Sendo assim, o texto indica que um
não conseguem se lembrar de terem feito homem não deve se deitar com um homem,
uma escolha consciente pelo homossexua- independentemente da lealdade ou amor de
lismo é também facilmente explicado pelas um para com o outro. O que se condena é o
Escrituras. A maior parte dos pecados atua ato sexual em si, e não apenas a atitude do
em um nível onde não percebemos que ofensor. Levítico 20.13 expressa-se de forma
estamos fazendo uma escolha consciente. semelhante, mas inclui a punição para os
Nosso pecado pode ser “não intencional”, relacionamentos homossexuais: “Se também
mas isto não nos faz menos responsáveis pela um homem se deitar com outro homem,
violação da vontade de Deus (Lv 5.14-19, como se fosse mulher, ambos praticaram
Nm 15.22-30). coisa abominável; serão mortos; o seu sangue
Em resumo, é possível que a própria
igreja tenha aceito a categoria orientação DOSTOURIAN, A. Gayness: a radical Christian
12
homossexual por não ter compreendido bem approach. In: CREW, L. (edit). The gay academic. Palm
a natureza do pecado. O pecado foi reduzido Springs: ETC, 1978, p. 347.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 141
cairá sobre eles”. A severidade da punição de haver amor e lealdade, também não há
enfatiza a natureza moral do ato. ninguém aparentemente prejudicado, como
A hermenêutica homossexual levanta no caso de relações sexuais pré-conjugais? A
várias objeções. “Seria possível que os autores resposta é que este tipo de relacionamento
das Escrituras simplesmente não conheces- não expressa o amor bíblico. O amor não é
sem relacionamentos homossexuais com- simplesmente a ausência de prejuízo evidente
prometidos?” Afinal, o preconceito contra contra outrem. Por exemplo, pensamentos
o homossexualismo era forte, deixando os críticos não resultam em vítimas, mas são
homossexuais com pouca oportunidade para errados. Limitar o amor a circunstâncias
relacionamentos comprometidos. Tal argu- em que ninguém é prejudicado seria escapar
mento sugere certa ingenuidade do Antigo completamente do ensinamento bíblico.
Testamento quanto às relações sexuais. No O amor deve ser entendido não pela
entanto, uma leitura rápida dos capítulos nossa definição, mas pela de Deus. Bibli-
18 a 20 de Levítico mostra algo diferente. camente, ele é definido como obediência a
Conquanto os detalhes das práticas sexuais Deus. Não somos nós que decidimos por
do tempo do Antigo Testamento não estejam conta própria a forma que o amor deve ter.
claros, o número abundante de proibições Deus nos diz como amar. Quando amamos
indica que a multiplicidade de expressões dentro dos nossos termos, e não dentro dos
na área sexual não é um fenômeno atual. termos de Deus, estamos pecando. Mesmo
Além do mais, o conhecimento das práticas que nosso pecado pareça não estar atingindo
sexuais do tempo neotestamentário, que está outro ser humano, ele ainda é pecado. Se o
mais disponível a nós, assegura-nos que as pecado fosse limitado a prejudicar outrem,
culturas grega e romana apresentaram todo então seríamos moralmente perfeitos se nos
tipo de homossexualismo imaginável. Ainda isolássemos das demais pessoas. O pecado,
assim, o apóstolo Paulo não dá margem a no entanto, não está primariamente no plano
nenhuma exceção quando proíbe o homos- do homem-contra-homem. O pecado está
sexualismo. no plano do homem-contra-Deus.
É verdade que, em certo nível, pode
haver grande afeição e compromisso em As proibições relativas ao ho-
relacionamentos homossexuais, mas isto mossexualismo não são parte
não significa que o relacionamento seja do código cerimonial do Antigo
aprovado por Deus. Um homem pode estar Testamento a cujo cumprimento
divorciado fora dos parâmetros bíblicos e não estamos mais sujeitos?
se casar com uma mulher que ele acredita Uma outra objeção levantada pelos
amar verdadeiramente, mas ainda assim esta homossexuais é que as proibições de Levítico
união é errada. Relacionamentos adúlteros são cerimoniais, estabelecidas para serem
podem ser “amorosos e comprometidos”, cumpridas apenas durante um período espe-
mas ainda assim são errados. E com este cífico da história de Israel. À semelhança da
último argumento muitos homossexuais lei que declara impuros certos animais, as leis
estão prontos a concordar, visto que alguém relativas ao homossexualismo também não se
está sendo vitimado pelo adultério - em aplicam aos nossos dias. Isso é insustentável
geral, a esposa não-adúltera. Mas eles le- por duas razões que já mencionamos. Em
vantam outro argumento: e quando além primeiro lugar, a punição no caso de vio-
142 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
lação da lei era a morte. Essa era a punição companheirismo ordenada por Deus. É a
para violações morais e não violações de leis união de duas pessoas que se “encaixam”
cerimoniais. Em segundo lugar, os escritores para formar uma só carne. O casamento
do Novo Testamento consideraram que a lei estéril não é deficiente nem imoral, mas há
deveria ser aplicada. uma violação moral quando o plano divino
para o casamento é violado.
As proibições relativas ao ho- Isso nos leva de volta à questão da
mossexualismo não dizem res- validade do relacionamento homossexual
peito ao mandamento de encher comprometido e amoroso. Não se trata de
a terra, o que não é mais rele- uma aliança de companheirismo? Como
vante em um mundo ampla- podemos dizer que duas pessoas do mesmo
mente povoado? sexo, que se amam mutuamente, não podem
Uma quarta objeção à permanência da gozar do privilégio da sexualidade conjugal?
validade da proibição do homossexualismo Mais uma vez reiteramos que Deus é Quem
é que ela foi escrita para uma cultura que define a maneira como devemos amar uns
sentia o peso do mandato de encher a terra e aos outros.
dominá-la. O homossexualismo, por não re-
sultar em procriação, não seria politicamente A posição bíblica
correto naquele contexto. Com a vinda de Antes de dar início a esta breve ar-
Cristo, segundo alguns sugerem, o manda- gumentação bíblica, precisamos lembrar
to foi interpretado como uma ordem para que todos nós somos capazes de encontrar
evangelizar, assumindo o caráter de encher a respaldo para quase tudo nas Escrituras.
terra espiritualmente, em lugar de enchê-la Nossos corações agradam-se do pecado e
pela procriação. Além do mais, agora que o estão prontos para a racionalização e o auto-
mundo parece um tanto apertado, não existe engano. Seria possível enganarmo-nos ao
mais a necessidade de enfatizar o aspecto de consultar as Escrituras por acharmos que o
procriação. homossexualismo é ameaçador e diferente?
À primeira vista, pode parecer uma Sim, seria. A resposta a este perigo é sondar
tábua de salvação improvisada, mas parte nosso coração em oração e ir às Escrituras
deste argumento poderia ser aceitável para em atitude de oração. Acredito ser isto o que
muitos crentes. Por exemplo, quantas pessoas estamos fazendo.
usam algum tipo de recurso para controle da Seria possível também que os homosse-
natalidade? Não seria isso uma violação do xuais se enganassem por quererem satisfazer
mandamento de encher a terra? E o que dizer seus desejos mais que obedecer a Deus?
de casais que escolhem não ter filhos? Estas Seria possível que, como bons advogados
pessoas são, por acaso, excluídas da igreja? de defesa, eles estivessem tentando plantar
Em que uma união homossexual difere de uma semente de dúvida para liberar suas
uma união heterossexual que escolhe não consciências e praticar aquilo que desejam?
procriar? Esta possibilidade deve ser considerada com
O argumento homossexual teria al- bastante seriedade porque a hermenêutica
gum mérito se o propósito do casamento homossexual discorda de uma leitura literal
fosse simplesmente a procriação. Mas não das Escrituras, é contrária à história da inter-
é assim. O casamento é uma aliança de pretação bíblica, e é uma reminiscência do
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 143
uso distorcido da lei praticado pelos fariseus publicado na revista Science.13 O pesquisa-
no Novo Testamento. dor principal, Simon LeVay, examinou os
A posição bíblica é que a sexualidade cérebros de dezenove homossexuais mascu-
humana faz parte da ordem da criação. O linos que morreram de AIDS e de dezesseis
plano ordenado por Deus para o relacio- homens supostamente heterossexuais, dos
namento sexual é homem-mulher. Os atos quais seis morreram de AIDS. Os resulta-
homossexuais e os desejos homossexuais, dos obtidos mostraram que o cérebro dos
seja no caso de homens ou mulheres, são heterossexuais tinha mais neurônios em
uma violação daquilo que Deus ordenou determinada área (INAH3) supostamente
na criação e são pecaminosos. Cabe à igreja relacionada ao comportamento sexual.
advertir e repreender aqueles que se cha- Considerando a suposição de que o homos-
mam de cristãos, mas persistem na prática sexualismo é determinado biologicamente,
homossexual, e também ensinar ativamente a conclusão é que o homossexualismo está
que a tendência homossexual é pecamino- localizado no cérebro.
sa. A igreja nunca pode dizer que há uma Cristãos e não-cristãos têm percebido
orientação homossexual moralmente neutra com freqüência que os resultados deste es-
e constitucional. Suplicar àqueles que lutam tudo não estabelecem de forma alguma um
com desejos homossexuais que simplesmente vínculo de causa entre a atividade cerebral e
se abstenham de colocá-los em prática seria o comportamento homossexual. Até mesmo
pecar contra estes irmãos e irmãs. LeVay reconhece as limitações de seu estudo,
afirmando que ele é pouco mais que um con-
Causas biológicas vite a maiores pesquisas. Ele sabe que suas
A pesquisa científica tem sido usada observações não passam de meras tentativas
para sustentar a pressuposição de que há uma até que sejam confirmadas por outros pes-
orientação homossexual predestinada. Ou quisadores, e esta confirmação ainda não se
seja, ela é usada para sustentar o argumento deu. Ele reconhece que a AIDS talvez tenha
de que a homossexualidade é parte da nossa interferido nos resultados, que o tamanho
constituição biológica e não da nossa natu- da amostragem foi muito pequeno para se
reza pecaminosa. chegar a conclusões claras, e que suas medi-
Já que as Escrituras indicam consisten- das poderiam ser propensas a erro. Além do
temente que a homossexualidade é expressão mais, três dos cérebros de homossexuais não
de um coração pecaminoso, deveríamos apresentaram distinção em áreas específicas
prever certos resultados encontrados na quando comparados aos de heterossexuais.
literatura científica. De um ponto de vista Até mesmo a suposição de que há uma rela-
negativo, a observação científica não será ção entre INAH3 e o comportamento sexual
capaz de estabelecer uma causa biológica da nunca foi claramente estabelecida.
homossexualidade. De um ponto de vista A conclusão, portanto, é que não
positivo, a ciência deveria ser aliada da posi- podemos concluir nada com base neste
ção bíblica. E esta, de fato, é a situação real: estudo. A revista Science chegou até mesmo
em lugar de desafiar a perspectiva bíblica, as
descobertas científicas lhe oferecem apoio. 13
LeVAY, Simon. A difference in hypothalamic
Talvez o estudo mais divulgado acerca structure between heterosexual and homosexual men.
da biologia do homossexualismo tenha sido Science, n. 253, 1991, p. 1034-1037.
144 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
a publicar uma carta ao editor que criticava INAH3 menor e outros, um INAH3 maior.
a publicação prematura de um artigo de Em segundo lugar, até mesmo escritores
qualidade duvidosa.14 Digamos que um seculares iriam afirmar, como já fazem, que
dia venha a ser realizada uma pesquisa que biologia não é destino. A resposta sexual
estabeleça de fato alguma conexão entre o do ser humano é muito complexa para ser
INAH3 e o homossexualismo. Ainda assim, reduzida a um déficit de neurônios. Em ter-
LeVay reconhece que “os resultados não nos ceiro lugar, os cristãos continuariam firmes
permitem decidir se o tamanho do INAH3 na sua posição de que a biologia não é capaz
em um indivíduo é causa ou conseqüência de nos fazer pecar. No melhor dos casos, a
de sua orientação sexual”. Em outras pala- biologia é semelhante a um amigo que nos
vras, do ponto de vista de LeVay, é provável tenta a pecar. Em certos casos o amigo pode
que as possíveis diferenças encontradas no nos perturbar, mas podemos repreendê-lo e
cérebro sejam resultado do homossexualismo resistir a ele.16
e não causa.15 Uma outra maneira de estudar as bases
Embora seja difícil de acontecer nos biológicas do homossexualismo é observar a
próximos cinqüenta anos, devido aos proble- ocorrência de homossexualismo em gêmeos,
mas metodológicos inerentes a tal pesquisa, a fim de sugerir uma tendência genética
vamos supor que alguém fosse capaz de para o comportamento. Um exemplo fre-
demonstrar que o INAH3 tem participação qüentemente citado deste tipo de pesquisa
efetiva na determinação do desejo sexual foi realizado por Michael Bailey e Richard
e que esta área do cérebro é menor desde Pillard.17
o nascimento em pessoas que mais adiante O estudo realizado com 56 homosse-
tornam-se homossexuais. Em outras pala- xuais masculinos gêmeos idênticos mostrou
vras, o cérebro não estaria revelando padrões que em 52% dos casos ambos os irmãos
de neurônios como resultado de uma expe- eram homossexuais. A percentagem era de
riência homossexual, visto que o tamanho 22% entre gêmeos não idêntico, 9% entre
reduzido do INAH3 estaria evidente antes irmãos não gêmeos, e 11% entre irmãos
de qualquer atividade homossexual. Se tal por adoção. O grupo de pesquisa também
pesquisa existisse, cristãos e muitos não- levantou dados estatísticos semelhantes entre
cristãos fariam pelo menos três observações. mulheres.18 O que esperaríamos se houvesse
Em primeiro lugar, sempre haverá exceções à um componente genético determinante do
regra. Alguns heterossexuais podem ter um homossexualismo é que, de fato, quanto mais
14
Carta de Joseph M. Carrier e George Gellert 16
Esta analogia é aplicável também a outras situações
publicada em Science, n. 254, 1991, p. 630. como, por exemplo, a síndrome pré-menstrual.
15
Outra possibilidade é que as diferenças observadas 17
BAILEY, J. Michael, PILLARD, Richard C. A genetic
no cérebro não sejam nem causa nem resultado. Por study of male sexual orientation. Archives of General
exemplo, pessoas que se expressam em ira pecaminosa Psychiatry, n. 48, 1991, p. 1089-1097.
poderiam apresentar padrões diferentes de atividade 18
BAILEY, J. Michael, PILLARD, Richard C. NEALE,
cerebral daquelas que são mansas devido à sua fé em Michael C., AGYEI, Yvonne. Heritable factors
Cristo. Mas tal observação não significa que o cérebro influence sexual orientation in women. Archives of
é responsável por sermos irados. Simplesmente General Psychiatry, n. 50, 1993, p. 217-224.
significa que o cérebro é uma representação física de
um intento do coração.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 145
perto a relação genética, mais alto o índice compartilham semelhanças mais acentuadas
de homossexualidade compartilhada. que outros irmãos. Portanto, não é raro que
Com toda franqueza, este estudo é compartilhem os mesmos pecados. A única
irrelevante. Ainda que ignoremos a parcia- maneira de fortalecer a pesquisa seria estudar
lidade na seleção de amostras para pesquisa gêmeos que foram separados por ocasião do
(as pessoas foram recrutadas por intermédio nascimento.
de publicações homossexuais) e o fato de Vamos supor, porém, que esta pesquisa
que nenhum outro pesquisador encontrou se apoiasse em estudos melhor estruturados.
percentagens tão altas entre gêmeos idên- E se ela descobrisse que gêmeos idênticos
ticos, o estudo não é de importância. Isto compartilham o homossexualismo com
porque gêmeos idênticos costumam ter maior freqüência mesmo sem ter contato um
uma profunda influência um sobre o outro. com o outro? Se isso viesse a acontecer, ainda
Se um dos gêmeos descobre algo novo, é ilustraria a verdade bíblica. Em primeiro
provável que ele envolva o outro na mesma lugar, nunca haverá um índice de 100% de
atividade. E por que irmãos adotivos, que ocorrência. Em segundo lugar, o princípio
não têm relação genética, apresentam, se- bíblico é que o corpo físico é nosso contexto
gundo as pesquisas, um índice tão alto de de vida. Devemos esperar, então, que o corpo
homossexualismo? A taxa de incidência de (o cérebro neste caso) tenha alguma maneira
11% é cinco vezes maior do que o esperado de representar biologicamente os intentos
(acredita-se que o índice de incidência de do coração. É até possível que um certo tipo
homossexualismo ativo na população geral de cérebro seja necessário para manifestar
seja em média 2%).19 O estudo seria mais a tendência homossexual. Este cérebro ou
adequado se usado para provar a influência “hardware genético” não é suficiente para
das companhias no desenvolvimento do causar o homossexualismo, mas pode ser
homossexualismo. necessário. Em outras palavras, uma certa
Os pesquisadores estão cientes de que predisposição genética pode ser necessária
a única coisa que eles realmente provaram para a orientação homossexual, mas não é
é que o homossexualismo não é causado determinante.
apenas por fatores genéticos. Se a genética É importante tratar esta questão
fosse o único elemento contribuinte para com precisão. Pode parecer que estamos
a atividade homossexual, a incidência em afirmando que biblicamente é possível o
gêmeos idênticos seria de 100%. Se um dos corpo causar a homossexualidade; e de
gêmeos fosse homossexual, o outro sempre fato é assim. Mas o termo “causar” neste
seria homossexual. Visto que a estatística contexto significa “modelar ou influenciar
se mantém bastante abaixo do esperado, a biologicamente”, não “compelir irresistivel-
homossexualidade não pode ser um traço mente”. Especificando o uso do termo, não
diretamente genético. O estudo não é capaz há nada chocante em nossa afirmação. Ela
de provar nada além disso. Gêmeos idênticos está simplesmente dizendo que a expressão
do coração pecaminoso em determinado
comportamento é resultado de centenas
19
BILLY, John O., TANFER, Koray, GRADY, William
de fatores, entre os quais o biológico. Uma
R., KLEPINGER, Daniel H. The sexual behavior of
men in the United States. Family Planning Perspectives, pessoa cujo coração pecaminoso se manifesta
n. 25, 1993. P. 52-61. em homicídio pode ter sido influenciada por
146 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
tratamento injusto, por pais que lhe permi- sofisticação devem impedir que o cristão
tiram ventilar sua ira, e pelo encorajamento afirme a autoridade funcional das Escrituras
incessante de Satanás. No entanto, nenhuma sobre a informação científica.
destas influências remove a responsabilidade Assim como nos outros dois estudos
pessoal. A causa final do pecado é sempre um previamente mencionados, neste também há
coração pecaminoso. falhas metodológicas. Ele não foi reprodu-
Usando termos mais científicos como zido, e por enquanto há ainda muito pouco
necessário e suficiente, o fator biológico a ser dito. E ainda que os homossexuais
pode ser necessário de certa forma para o praticantes fossem geneticamente distintos
homossexualismo, mas o fator biológico dos heterossexuais, isso não faria do homos-
não é uma causa suficiente. Considere a sexualismo um comportamento com base
seguinte ilustração. Para lavar meu carro, biológica pelo qual as pessoas não seriam
vou precisar de um balde de água. O balde moralmente responsáveis.
de água com sabão será necessário, pois se Estes três estudos são os mais recentes
eu não dispuser dele, não terei como lavar o de uma tentativa relativamente longa, mas
carro. É claro que há um número de outras infrutífera, de localizar o homossexualismo
condições necessárias como um dia de bom no nível biológico. Um médico que fez uma
tempo, o tempo disponível para a tarefa e revisão de literatura sobre o assunto disse:
um carro sujo. Nenhuma destas condições, “Estudos recentes admitem fatores bioló-
no entanto, são suficientes para a tarefa de gicos como a base primária da orientação
lavar o carro. Nenhuma delas pode me sexual. No entanto, não há evidência até o
forçar irresistivelmente a lavar o carro. Eu momento para comprovar um teoria bioló-
tenho que querer fazer a tarefa.20 No caso do gica, bem como não há evidência para apoiar
homossexualismo, esta condição suficiente é qualquer explicação psicossocial distinta.”22
função do coração, e é algo pelo qual eu sou A única certeza que podemos ter é que a
sempre responsável. sexualidade humana é complexa demais para
Um terceiro tipo de pesquisa sobre as ser reduzida ao trabalho do cérebro.
bases biológicas do homossexualismo tam- Visto que o comportamento é me-
bém focaliza informação genética, mas olha diado (não causado) por fatores biológicos,
para o gene. A equipe de pesquisa mais co- não ficaríamos surpresos se tomássemos
nhecida é a do National Institute of Health conhecimento de estudos que oferecessem
(Instituto Nacional de Saúde), liderada por melhores evidências para um vínculo entre
Dean Hamer.21 Trata-se de um trabalho al- biologia e comportamento. Mas as Escrituras
tamente técnico que está em fase inicial, mas são claras: nosso corpo não pode nos fazer
nem o amadurecimento da pesquisa nem a pecar. O corpo é fraco, mas não é a causa do
pecado. Este é um princípio inviolável que,
quando usado coerentemente, pode trazer
Quando eu era jovem, meu pai obrigava-me a lavar
20
esclarecimento à pesquisa sobre o cérebro.
o carro; freqüentemente contra a minha vontade.
Não podemos traçar, porém, uma analogia com a
experiência homossexual
HAMER, Dean H. et al. A linkage between DNA
21
22
BYNE, William, PARSON, Bruce. Homosexual
markers on the X chromosome and male sexual orientation: the biologic theories reappraised. Archives
orientation. Science, n. 261, 1993, p. 321-327. of General Psychiatry, n. 50, 1993. P. 228-239
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 147
As ciências que estudam o cérebro podem tem se deixado enganar. Ao mesmo tempo
oferecer observações emocionantes, mas que temos olhado para a pesquisa médica e
estas observações só podem ser corretamente sido implacáveis em nossas críticas, temos
interpretadas quando as Escrituras providen- permitido que as explicações psicológicas
ciam os limites. entrem pela porta dos fundos. Queremos
enfatizar que o homossexualismo é aprendi-
Um modelo bíblico do homosse- do em lugar de ser biologicamente inato; e
xualismo já que é aprendido, pode ser desaprendido.
Conquanto a igreja tem sido rápida em Mas perceba o problema: o que fazemos é
refutar a literatura científica, ela tem sido mostrar que a orientação homossexual tem
lenta no aplicar os mesmos princípios às início um pouco após o nascimento em lugar
teorias da psicologia. Por diferentes razões, de antes do nascimento. Ficamos quase que
muitos tendem a se sentir mais confortáveis empatados com as teorias da biologia, visto
com as teorias da psicologia que com as da que a orientação ainda é estabelecida por
biológica. Perceba, por exemplo, como o forças externas a nós, e a orientação precede o
livro Homosexuality: a New Christian Ethic pecado (figura 1). O problema real, o proble-
(Homossexualismo: Uma Nova Ética Cristã)23
é bem recebido por muitos cristãos. A autora,
Elizabeth Moberly afirma que por trás de
quase todo homossexualismo, masculino ou
feminino, há um relacionamento deficitário
com o genitor do mesmo sexo. A teoria é que
há uma necessidade planejada por Deus de
receber amor, afirmação, aceitação do geni-
tor de mesmo sexo e estabelecer um vínculo
com ele. Quando estas supostas necessidades
afetivas normais não são satisfeitas, elas
tomam uma forma erótica na puberdade.
Homossexualismo é um impulso em direção
Figura 1. Um entendimento comum, embora não
a estabelecer um relacionamento que supra bíblico, do desenvolvimento do homossexualismo
estas necessidades.
Se olharmos de perto para as aplicações ma profundo, continua sendo a orientação
desta e de outras explicações da psicologia,24 homossexual. Um diagnóstico do pecado e
vamos começar a nos perguntar se a igreja uma cura que inclui arrependimento tendem
a ser considerados pela própria igreja como
superficiais.
23
MOBERLY, Elizabeth. Homosexuality: a new Christian Uma perspectiva bíblica reconhece que
ethic. Stony Point, SC: Attic, 1983. há várias influências psicológicas e biológicas
24
Outros tem sugerido que o homossexualismo é o atuando no desenvolvimento do homossexu-
resultado de vitimização. HURST, E., JACKSON, D. alismo, e nos adverte a não nos limitarmos
Overcoming homosexuality. Elgin, Ill.: David C. Cook, na consideração das diversas influências
1987. PAYNE, Leanne A broken image. Westchester, Ill.:
Crossway, 1981. PAYNE, Leanne. Crisis in masculinity. possíveis. Ainda assim, a Bíblia é inflexível
Westchester, Ill.: Crossway, 1985. no dizer que não é aquilo que nos influencia
148 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
que nos torna “impuros”. Pelo contrário, “de Ouvir é um bom ponto de partida.
dentro, do coração dos homens, é que pro- Além do mais, como podemos levar a verda-
cedem os maus desígnios, a prostituição.... de a uma pessoa a menos que a conheçamos?
Ora, todos estes males vêm de dentro e con- Precisamos, então, fazer perguntas. Como a
taminam o homem” (Mc 7.21-23) (Figura pessoa encara sua luta com o homossexualis-
2). Isso significa que a orientação pecami- mo? Quais as circunstâncias que moldaram
nosa tem inúmeras expressões em nossa vida. a expressão atual de homossexualismo? A
Para alguns é cobiça ou inveja, para outros pessoa foi estuprada? Ela foi manipulada
é ira pecaminosa, para outros ainda podem para ter atividade sexual com uma pessoa
ser desejos homossexuais. mais velha? O fato de ter sido vítima de
outros não explica o homossexualismo nem
O processo de mudança faz com que a pessoa deixe de ser responsável
À semelhança dos demais pecados, no por seus pensamentos e ações no futuro. Mas
nível de desejos do coração, o homossexua- Deus certamente fala com compaixão àque-
lismo não cede fácil nem rapidamente. Ele é les que foram alvo do pecado de outros, e os
mortificado ao longo do tempo, no processo homossexuais precisam ouvir isso.25 De que
forma a pessoa foi prejudicada em relacio-
namentos? O quanto tem sido doloroso para
ela manter um estilo de vida homossexual?
O que significa ser confrontada de repente
com a realidade de afastar-se de amigos ín-
timos, companheiros de longa data ou uma
comunidade que lhe oferece apoio? “Eu sen-
tia dores em todo corpo como resultado da
agitação emocional”, disse um homem que
havia deixado seu companheiro. “Mas vários
homens cristãos heterossexuais puseram-se à
minha disposição de dia e de noite para me
ajudar. Eu estou vivo porque estas pes-soas
Figura 1. Um entendimento comum, embora não
bíblico, do desenvolvimento do homossexualismo me amaram.”26
É nesse contexto que apresentamos
progressivo de santificação. Mas mudança é o conhecimento de Deus, e especialmente
certamente possível. “Tais fostes alguns de o perdão que Deus oferece aos pecadores.
vós” (1 Co 6.11) é repetido com freqüência É isso que atrai e muda aqueles que estão
para relembrar que há esperança de vencer lutando com o homossexualismo. Alguns
tanto os atos como os desejos homossexu- dizem que ensinamos o suficiente sobre o
ais. O método para promover mudança é amor de Deus, mas esquecemos de ensinar
familiar, não prescinde de técnicas especiais,
mas consiste em ministrar simultânea e equi-
libradamente dois temas: o conhecimento 25
Veja o artigo do mesmo autor Exaltar o dor? Ignorar
de nós mesmos e o conhecimento de Deus. a dor? O que fazer com o sofrimento?
Esses temas são apresentados em amor e com DAVIES, Bob. Will we offer hope? Moody, Maio
26
disposição para ouvir o homossexual. 1994, p. 16.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 149
sobre a justiça de Deus e o Seu ódio para Deus pela lealdade para com ídolos. Quais
com o pecado. Isso pode ser verdade, mas são nossos ídolos? Conforto, prazer, poder,
não é motivo para sacrificar a grandeza da significado pessoal, auto-estima, e assim por
doutrina da graça. Os homossexuais estão diante. As possibilidade são inúmeras, mas
numa posição complexa: eles estão em re- todas têm uma coisa em comum: uma leal-
beldia contra o Deus Santo; mas eles estão dade para com o próprio eu. Somos rebeldes
também, até certo ponto, cientes de seus para com Deus e escolhemos viver para a
pecados e receosos da ira de Deus (Romanos nossa glória em lugar de viver para a glória
1). Eles não acreditam que Deus possa de de Deus. Escolhemos obedecer aos nossos
fato perdoar homossexuais. Como disse C. desejos em lugar de obedecer à Palavra de
John Miller, “não há fator mais importante Deus. Os desejos e a atividade homossexual
na transformação de um homossexual do que são uma expressão dos instintos idólatras do
a fé sólida no fato de que seus pecados foram nosso coração.
completamente perdoados por Deus”.27 A pessoa com que estamos tratando
Para conhecer a graça do perdão de tem perguntas a respeito da orientação ho-
Deus, os homossexuais precisam conhecer mossexual? Ela tem a impressão de que está
a verdade a respeito de si mesmos: eles são sempre mais interessada em relacionamentos
pecadores necessitados da graça. Embora com pessoas do mesmo sexo? Se for assim,
tenham certo conhecimento disso, falta- insista em esclarecer a questão da tendência
lhes, com freqüência, uma clareza bíblica e homossexual até que a pessoa possa pensar
um conhecimento mais amplo do pecado. biblicamente a respeito. É muito fácil con-
A carne não quer ver o pecado em toda a cordar com a ausência de comportamento
sua feiúra; ela opera para encobrir a torpeza. homossexual e não se preocupar com as
O que cria uma névoa ainda maior sobre o atitudes. Lembre-se de que é na questão da
pecado é o mito de que existe uma orien- orientação homossexual que o mundo, a
tação homossexual criada por Deus. Esses carne e Satanás convergem. O mundo, com
dois fatores operam com toda força contra seu ponto de vista não bíblico, decidiu que
o conhecimento da verdade a respeito de si o homossexualismo é normal. A carne quer
mesmos. desculpar as fantasias homossexuais. E Sata-
O processo de expor o coração vem nás está ao lado de ambos, sussurrando seus
pela aplicação das Escrituras operada pelo enganos. O engano quanto à neutralidade da
Espírito Santo. O alvo é entender o que Deus orientação homossexual deve ser exposto e
diz. O alvo é aprender a “pensar o que Deus corrigido. É um ensino falso que vai produzir
pensa”. Uma maneira de penetrar na Palavra maus frutos. Nós certamente temos uma
é entender que existe, na verdade, algo mais “orientação”, mas é uma orientação espi-
profundo que o homossexualismo. Confor- ritual contrária a Deus. Não é simplesmente
me resumido em Romanos 1, o homossexua uma tendência física.
lismo é uma expressão de um coração idóla- À medida que o Espírito Santo expõe
tra. Este é o nosso problema mais profundo. estas questões cruciais, Ele também revela
Nosso instinto substitui a lealdade para com mais do conhecimento de Deus. O tema do
amor de Deus tem continuidade, enfatizan-
MILLER, C. John. The gay ‘80’s. Eternity, nov. 1986,
27 do que se trata de um amor santo. Santo quer
p. 18. dizer que não encontra paralelo na experiên-
150 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
cia humana. Não há nada semelhante a ele. firmemente para o Autor e Consu-
Está além da compreensão, e não pode ser mador da fé, Jesus. (Hb 12.1,2)
superado. É distinto do nosso amor. Inspira Que expectativas deve haver de mu-
respeito por parte de quem o descobre. Esse dança? Qual é o alvo? O alvo, mais uma vez,
é o começo do temor do Senhor. Quando é pensar os pensamentos de Deus em lugar
testemunhamos Seu perdão, aprendemos dos nossos. Isso significa que podemos nos
o temor do Senhor (Sl 130.4). Quando os engajar na batalha quando vemos a verda-
discípulos viram o poder do Senhor sobre deira semente da tentação homossexual (Tg
o vento e as ondas, ficaram “possuídos de 1.13-15). Podemos crescer no sentido de
grande temor” e cresceram no temor do Se- nos tornar capazes de odiar tudo quanto tem
nhor (Mc 4.41). Quando Isaías viu a Deus traços de rebeldia para com Deus. Podemos
assentado sobre um trono alto e sublime, ficar libertos da obsessão homossexual. E
exclamou: “Ai de mim! Estou perdido!” (Is podemos entender que o casamento de um
6.5). O conhecimento da majestade santa de homem com uma mulher é uma das boas dá-
Deus e do perdão por Ele concedido firmou divas de Deus. Isso não quer dizer que todas
Isaías no temor do Senhor para o resto de as pessoas que uma vez foram homossexuais
seu ministério como profeta. Certamente o devem buscar o casamento. Em alguns casos,
temor do Senhor é o começo de uma vida Deus dá graça para o celibato. Mas visto
sábia, e também o alvo. que o casamento é uma boa dádiva, e que
Uma das grandes bênçãos do temor do Deus se agrada com o casamento em moldes
Senhor é que ele pode nos ensinar a odiar bíblicos, então os homossexuais encontram
o mal (Pv 8.13). O conhecimento do Santo prazer naquilo com que Deus se compraz à
pode nos mobilizar, e pode nos tornar guer- medida que crescem no desenvolvimento da
reiros contra as tendências da nossa natureza mente de Cristo.
pecaminosa. Essa posição agressiva com Quanto tempo é necessário? Se uma
relação ao pecado é crucial, visto que nosso pessoa está disposta a seguir a Cristo, e
problema é gostarmos do pecado. Se não encontra o apoio de uma igreja, o compor-
extirparmos este gosto pelo pecado, estamos tamento homossexual pode cessar imedia-
garantindo que a tentação esteja sempre por tamente. “A graça de Deus se manifestou
perto extremamente poderosa. O temor do salvadora a todos os homens, educando-nos
Senhor pode nos manter prontos para a para que, renegadas a impiedade e as paixões
batalha. Com o trono celestial em vista, nós mundanas, vivamos, no presente século,
combatemos o “pecado que tenazmente nos sensata, justa e piedosamente” (Tt 2.11,12).
assedia” (Hb 12.1). Ninguém deve pensar, porém, que os desejos
Assim corro também eu, não sem homossexuais costumam ceder tão rápido.
meta; assim luto, não como desfe- A pessoa que teve uma longa história de
rindo golpes no ar. Mas esmurro o prática homossexual lutará por alguns anos.
meu corpo e o reduzo à escravidão, O poder de escravidão dos pensamentos
para que, tendo pregado a outros, homossexuais é derrotado gradualmente,
não venha eu mesmo a ser desqua- mas uma divagação homossexual pode vol-
lificado. (1Co 9.26,27) tar décadas depois de terem cessado os atos
Corramos, com perseverança, a car- homossexuais. Isso é desencorajador? Indica
reira que nos está proposta, olhando a necessidade de um livramento? Não, signi-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 151
fica que Deus está operando, dando poder com homossexuais (por exemplo, grupos de
para lutar, relembrando-nos de que a luta é apoio), ou ministérios mais gerais dirigidos
normal, santificando-nos progressivamente, a pessoas que querem deixar a escravidão
e dando-nos o privilégio de depender de sexual em suas mais variadas formas.
Cristo constantemente pela fé. Uma igreja eficaz tem lugar para ho-
Para que estes alvos sejam trabalhados mossexuais! Por causa do amor de Cristo,
com segurança, os homossexuais necessitam a igreja deve buscar os homossexuais. E
de algo mais que um conselheiro. Como to- exaltando a Cristo na pregação, na oração
dos nós, eles precisam do corpo de Cristo e e na adoração, a igreja deve atrair homos-
de oportunidades variadas de relacionamen- sexuais. Ela deve ministrar a Palavra para
to. Homens precisam de outros homens que aqueles que já estão na igreja, trazendo à luz
os amem, escutem, e modelem diante deles o auto-engano, expondo a desonestidade,
relacionamentos fraternos. Mulheres preci- confrontando a rebeldia, oferecendo perdão
sam de outras mulheres com que possam aos que carregam culpa, e dando esperança.
estabelecer relacionamentos íntimos, mas A igreja deve também dar as boas-vindas
não obsessivos nem com expressão sexual. e prender a atenção daqueles que lutam
Ambos, homens e mulheres, precisam de com o homossexualismo, mas que nunca
relacionamentos piedosos com pessoas do fizeram parte da igreja. Com relação a estas
sexo oposto e com líderes e pastores que pos- pessoas, podemos acrescentar que a igreja
sam fielmente orar e, se necessário, aplicar deve ministrar surpreendendo-as com o
disciplina como meio de correção amorosa. amor, um senso de família, e a ausência de
Outros relacionamentos podem crescer em um julgamento baseado em justiça própria.
pequenos grupos com casais e solteiros, Ela deve oferecer a verdade de modo con-
grupos de prestação de contas com pessoas vincente, atraente e radicalmente diferente
do mesmo sexo, grupos de oração. Algumas de qualquer outra coisa que o homossexual
igrejas podem ter ministérios específicos tenha jamais ouvido.
152 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Devemos nos Casar?
Cinco perguntas que precisamos fazer a nós
mesmos antes de assumir um compromisso.
D a v i d A . Po w l i s o n e Jo h n Ye n c h k o 1
A televisão americana exibiu alguns ser feitas. Existe uma manutenção preventiva
anos atrás um comercial de filtros de óleo que pode evitar que você chegue mais tarde
para motores. Um mecânico estava em pé na oficina com um motor fundido. Afinal de
entre dois carros – um deles encontrava-se contas, você só pode apreciar um passeio de
na oficina para troca de óleo e revisão de carro se o motor estiver funcionando bem.
rotina; o outro estava com o motor fundido. Vamos propor a você e àquela pessoa
“Existe uma maneira fácil e uma maneira com quem você está pensando em se casar
mais complicada para manter seu carro em cinco perguntas que precisam fazer a si
funcionamento”, explicava o mecânico. mesmos e discutir em conjunto. Responder
“Você pode me pagar agora [...] ou pode a estas perguntas os ajudará a tomar uma
pagar mais tarde. O custo agora é apenas o decisão com os pés no chão: “Devemos nos
de um filtro de óleo. Mais tarde, o custo será casar?”. Estamos convencidos de que a hora
bem maior: a troca do motor devido à falta de fazer algumas perguntas sérias é antes de
de manutenção preventiva”. fazer o pedido mais sério: “Você quer se casar
Se você estiver pensando em se casar, comigo?” Considerar estas perguntas antes
deve tratar a questão com a mesma sabedoria de assumir um compromisso pode prevenir
e precaução de um dono de carro que se a dor de reparos maiores no futuro.
mantém alerta o suficiente para filtrar o óleo
colocado no motor. Não queremos eliminar 1. Ambos são crentes?
com isso o romance ou aquela atração espe- Casamento é um compromisso de
cial entre duas pessoas. Mas quando chegar a companheirismo. Duas pessoas dispõem-se
hora de você pensar em casamento, há algu- a andar juntas, lado a lado, em sintonia. Se
mas perguntas fundamentais que precisam ambas dão a Deus o primeiro lugar em sua
vida, elas podem responder com convicção:
1
Tradução e adaptação de Should We Get Married? Five “Sim, nós temos a Jesus como nosso Sal-
“Pre-engagement” Questions to Ask Yourselves. vador e O seguimos como nosso Senhor”.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 153
Ambas submetem-se ativamente à liderança É comum que as pessoas cheguem ao
do Pastor. Debaixo do senhorio de Cristo, casamento com expectativas irreais. Sem
serão capazes de enfrentar com confiança dúvida, o casamento vai mudar e afetar
tudo quanto surgir em seu caminho. sua vida de diferentes maneiras, mas não
Ser crente é algo mais que confessar sua espere que o casamento faça o que somente
fé em Jesus Cristo. É também algo mais que Jesus pode fazer. Idéias irreais e distorcidas
ser membro de uma igreja. Ser crente é um a respeito do casamento podem resultar
estilo de vida. Na prática, significa que você em decepção, frustração, raiva e desespero
ama a Jesus e está pronto a depender dEle quando o parceiro desapontar e provar que
mais que de seu cônjuge. é um santo de barro.
Você vive como crente? Ou será que O casamento será sua fonte de alegria
você coloca o casamento em posição de e felicidade? Dará sentido à sua vida? O ca-
importância acima de Jesus? Pergunte a si samento é uma bênção. É o relacionamento
mesmo e a seu futuro cônjuge: “Jesus é o mais rico e íntimo que podemos apreciar.
SENHOR da sua vida? Ele é a sua prio- No bom casamento, há potencial para re-
ridade nº 1? Ele é o Mestre a quem você ceber muitas coisas boas: amizade intima,
ouve? Aquele em quem você confia acima encorajamento, prazer sexual, satisfação de
de qualquer outro?”. trabalhar em equipe, filhos, liberdade para
Podemos identificar, no mínimo, qua- se expressar com a certeza de ser totalmente
tro maneiras como a liderança de Jesus em conhecido e aceito por alguém. Mas seu
nossa vida pode ficar facilmente comprome- cônjuge não resolverá seus problemas pes-
tida quando chega a hora de decidir se e com soais nem satisfará todos os seus desejos.
quem devemos ou não nos casar. Casamento deve ser em primeiro lugar o
compromisso de aprender a abençoar o
Você está olhando para o casa- cônjuge, mesmo quando a caminhada estiver
mento como algo que vai trazer difícil. Se você basear sua vida nas promessas
felicidade, dar identidade ou e bênçãos de Deus em Jesus Cristo, você será
propósito? capaz não só de prever as tempestades, mas
Quando isso acontece, Cristo deixa de de crescer em maturidade e amor em meio
ser Senhor de modo prático. Com certeza, às tempestades.
o casamento é um presente maravilhoso Seja honesto consigo mesmo. Bem
de Deus. Mas será que você pensa que o lá no fundo, você olha para o casamento
casamento proverá significado à sua vida? pensando naquilo que espera receber? Ou
Direção? Segurança? Auto-respeito? Você você está ciente do que deve dar, pois você
espera que o casamento remova a sensação de já recebeu de Deus aquilo de que realmente
desespero, inadequação, fracasso, amargura necessita? “Tudo quanto, pois, quereis que
ou isolamento? Você costuma dizer a si mes- os homens vos façam, fazei-o vós também à
mo: “Se eu pudesse encontrar um marido, eles” (Mt 7.12) . Com certeza você quer re-
seria feliz” ou “Se eu me casar, finalmente ceber as bênçãos de um bom casamento. Mas
encontrarei amor, aceitação e segurança” ou será que o seu desejo de edificar a própria
‘Minha vida será um fracasso a não ser que vida em Jesus e depois compartilhar essas
eu me case”? bênçãos com seu cônjuge é ainda maior?
154 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Um estilo de vida doador é a única maneira Você deve se firmar na verdade de que
de construir uma casa sobre a rocha firme, Jesus Cristo é mais importante que o casa-
uma casa capaz de resistir quando surgirem mento e a pessoa que você ama. Longe de
as decepções. O voto tradicional expressa ofuscar sua alegria de viver, isto conduzirá
muito bem esta idéia: “Serei fiel na riqueza você a uma alegria maior e poupará muita
ou pobreza, na saúde ou doença, para amar dor.
e cuidar, até que a morte nos separe”.
Você traz marcas de casamentos
Você está pensando em se casar ou relacionamentos anteriores?
com um incrédulo? Em nossa sociedade, as coisas vêm e vão
A Bíblia ensina com clareza que crentes com facilidade. Casamento, sexo e filhos não
não devem se colocar em “jugo desigual” (2 são vistos com a mesma santidade que Cristo
Co 6.14-16). A visão nítida, preto no branco, Jesus os via. Se Cristo é o Senhor de sua vida,
de 2 Coríntios 6 – justiça ou iniquidade, luz você precisa determinar de acordo com a Sua
ou trevas, Cristo ou o Maligno, crente ou Palavra se está livre para o casamento.
incrédulo, Deus ou ídolos – não dá margem Existe um divórcio legal que Jesus vê
a erro! Ainda assim, costumamos encontrar como ilegítimo (Mt 19.1-9). Às vezes Deus
pessoas que falham nesse ponto. Elas ten- nos ordena perseverar em busca da recon-
tam encontrar uma desculpa para não se ciliação, em vez de pensar no recasamento
submeter à liderança de Jesus. Quando isso (1 Co 7.10-11), embora haja situações em
acontece, seu compromisso com Cristo está que uma pessoa está livre para considerar
em jogo. um novo casamento (1 Co 7.39; Rm 7.2-3).
O cristão pode ser mesmo tentado a Tratar os prós e contras destas questões vai
escolher o lado preto de 2 Coríntios 6. Mas além do objetivo do presente artigo. Se elas
se ele decide se casar contra a vontade de precisarem ser consideradas em seu caso,
Cristo, é sinal de que o romance, o desejo procure aconselhamento com pessoas que
intenso de alcançar realização como cônjuge o ajudem a olhar para o texto bíblico com
ou o medo de nunca se casar, tomaram conta seriedade.
de sua vida. Isso é idolatria.
Uma versão mais sutil desse proble- Deus lhe deu o dom do celibato?
ma ocorre quando você quer se casar com A Bíblia deixa claro que Deus pode
alguém cuja declaração de fé é suspeita. Por chamar alguns para um ministério frutífero
exemplo, é comum encontramos a situação na condição de solteiros ou solteiras. Esta
em que um rapaz não comprometido com possibilidade é considerada por dois soltei-
Cristo quer se casar com uma moça crente. ros bem conhecidos – Jesus e Paulo (cf. Mt
No curso de seu relacionamento, ele desco- 19.11-12; 1 Co 7.1-9 e 7.17-40).
bre que ela só casará com um crente, e então As pessoas solteiras podem se dedicar às
pensa: “Ótimo! Vou me tornar membro coisas do reino de Deus, livres das limitações
de sua igreja”. O que está acontecendo? A impostas pelas responsabilidades familiares.
motivação principal do rapaz não é entregar O casamento tem seu preço: aqueles que se
sua vida a Jesus, mas conquistar a moça. Essa casam enfrentam preocupações com o côn-
cena acontece com muita freqüência. E eles juge e os filhos (cf. 1 Co 7.28). Alguém que
estarão unidos em jugo desigual. saiba usar bem de sua condição de solteiro
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 155
ou solteira tem flexibilidade e liberdade O casamento é um dom maravilhoso.
para fazer coisas que uma pessoa casada Não há dúvida quanto a isso. É uma alegria
não pode sequer considerar. Lembre-se de ter um companheiro ou uma companheira.
que por mais de mil anos o cristão ideal era Mas há um perigo: casamento não é o maior
solteiro! O celibato talvez tenha sido valori- dos dons e não provê a alegria mais profunda
zado excessivamente na igreja medieval, em e segura. “Graças a Deus pelo seu dom ine-
detrimento do casamento. Mas em nossa fável!” (2 Co 9.15). Esse dom é Jesus, e não
sociedade, a igreja geralmente caminha em seu namorado ou namorada! Não deixe que
direção ao outro extremo, esquecendo-se de o desejo de se casar venha a ser um ídolo.
que alguns dos ministérios mais frutíferos Certifique-se de que Jesus ocupa o pri-
na igreja contemporânea necessitam para meiro lugar na sua vida e na vida da pessoa
sua realização da liberdade que o celibato com quem você está considerando se casar.
proporciona. Com Ele como alicerce, ambos sentirão
John Stott, o renomado escritor e prazer em construir um relacionamento de
pregador inglês, teve liberdade como sol- amor duradouro. Se o casamento é a decisão
teiro para ministrar a muitos em redor do acertada para vocês, é imprescindível que
mundo. Em nossa igreja local, vemos os ele seja construído sobre o alicerce firme do
solteiros como singularmente capacitados amor cristão fraternal.
para atender a necessidades difíceis do acon-
selhamento, envolver-se com adolescentes, Para discussão
dedicar tempo ao trabalho com pessoas 1. Jesus Cristo é chamado de Salvador e
carentes, ajudar em diferentes tarefas ou no Senhor. O que isso significa em sua vida?
cuidado das crianças. Uma pessoa solteira
pode ter tempo para trabalhar como vo- 2. Como você costuma orar com re-
luntária em hospitais, asilos ou atividades lação ao casamento – “Senhor, dá-me um
sociais. Ela está livre de algumas pressões marido/esposa para que eu seja feliz” ou
financeiras características da vida familiar, “Senhor, ajuda-me a estar mais preparado
e pode deliberar com generosidade sobre o (a) para o casamento”?
uso de seu salário. 3. Você está fingindo ser cristão para
Pode ser que você tenha o dom do conseguir um marido ou uma esposa?
casamento. Em tal caso, você se realizará 4. Você já fez uma profissão de fé
plenamente constituindo uma família. Mas pública em uma igreja que segue fielmente
gaste tempo para considerar se você não tem a Bíblia?
o dom do celibato. Quais são os seus dons
e as oportunidades de ministério? Qual a 5. Você está livre de impedimentos
força do seu impulso sexual, e como você o no que diz respeito a relacionamentos do
mantém sob controle? Qual a importância passado?
de ter filhos e como isso se relaciona às suas 6. Um de vocês, ou ambos, tem o dom
atividades? Quais as vantagens e desvanta- de celibato? O casamento contribuiria ou
gens de permanecer solteiro? Qual o custo e seria empecilho para sua utilidade nas mãos
quais os benefícios de se casar? do Senhor?
156 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
2. Vocês têm um histórico que Você sabe resolver problemas
testemunha de sua habilidade biblicamente?
para solucionar problemas bibli- Você é uma pessoa sábia? Uma pessoa
camente? madura é capaz de pensar a respeito da vida
Problemas surgem em todos os relacio- e seus problemas do ponto de vista de Deus
namentos. Você está habituado a solucioná- e da Palavra de Deus.
los biblicamente? Esta pergunta pode ser Um casal de namorados não pode
mais difícil de responder que a anterior. antecipar todos os problemas que virão pela
Visto que somos todos pecadores e temos frente. Mas será que vocês têm um conhe-
problemas, ninguém tem um histórico isento cimento geral de como a Bíblia se dirige de
de falhas. Se você for honesto responderá modo prático às principais áreas da vida:
“Às vezes” ou “Não”. O ponto chave não é compromisso, comunicação, perdão mútuo,
a perfeição. O seu “Não” está se tornando adversidades, relações sexuais, educação de
“Às vezes” e o seu “Às vezes” está se tornando filhos, finanças etc.? A Bíblia trata desses as-
“A maioria das vezes”? Há uma tendência suntos e vocês devem ter um conhecimento
crescente ao “Sim”? Essa progressão indica básico a respeito do que ela diz, aliado a uma
sua maturidade. disposição contínua para aprender mais.
Diante de problemas (contrariedades, Um casal cristão com quinze anos de
desentendimentos, decepções, decisões ou casamento procurou aconselhamento devido
dissabores), você age como adulto centrado a problemas conjugais sérios. Depois de vá-
em Deus ou como uma criança ensimesma- rias sessões, a esposa acanhadamente se deu
da? O casamento não é para crianças. conta de que ela nunca havia parado para
A questão da maturidade no casamento pensar sobre sua responsabilidade de fazer
envolve três pontos: do marido uma prioridade em sua vida! Ela
1. Você sabe resolver problemas bibli- havia casado sem qualquer compreensão
camente? do que a Bíblia diz a respeito da natureza
2. Você resolve os problemas biblica- do compromisso conjugal. Muitos anos de
mente? dor, solidão e desentendimento poderiam
3. Se não, em que aspectos você precisa ter sido evitados se eles tivessem começado
mudar e crescer? seu relacionamento conhecendo as diretrizes
Em Mateus 7.24-25, Jesus diz: “Todo do Senhor para construir um casamento
aquele, pois, que ouve estas minhas palavras sólido e feliz.
e as pratica será comparado a um homem
prudente que edificou a sua casa sobre a Você coloca em prática o que a
rocha; e caiu a chuva, transbordaram os rios, Bíblia diz?
sopraram os ventos e deram com ímpeto Esta pergunta o leva a deixar o terreno
contra aquela casa, que não caiu, porque fora da teoria e olhar para o que você faz na prá-
edificada sobre a rocha”. Jesus fala a respeito tica! Qual é o seu padrão habitual em lidar
de conhecer Suas palavras – a Bíblia. Mas é com problemas?
claro que isso não é suficiente. Ele fala em O fracasso em resolver problemas bi-
colocá-las em prática. Problemas virão, mas blicamente manifesta-se de várias maneiras
se você aprender a enfrentá-los biblicamente, óbvias. Você manipula? Você evita encarar
Jesus promete que você permanecerá firme. os problemas? Você deixa as coisas de lado
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 157
até que elas caiam no esquecimento? Você cionamento a dois, vocês estão tentando um
tapa o sol com a peneira fazendo de conta ao outro sexualmente? ou vocês são críticos
que tudo está bem? Você guarda ressenti- um para com o outro? Você mente? Você
mentos? Você fica emburrado? Você sempre gasta seu dinheiro impulsivamente? Você
joga a culpa nos outros e arranja desculpas, está amargurado com seus pais? Você tem
apontando o dedo para outras pessoas ou medos profundos? Você tem lidado com seus
circunstâncias? Você persiste em fazer o que pecados e com pecados de outros contra você
a Bíblia diz que é errado? de forma introspectiva?
Talvez você já tenha aprendido noções Você precisa ser honesto consigo mes-
da arte de resolver problemas. Mas será mo e com seu futuro cônjuge, encarando
que você já adquiriu o hábito de encarar as essas questões à luz da misericórdia e da
questões e conversar sobre elas? Você pede graça de Cristo. São áreas nas quais é possível
ajuda a Cristo? Você gasta tempo pensando crescer. Mas se não houver crescimento e os
a respeito do que é certo fazer? Você pede problemas continuarem sem solução, de uma
perdão pelo seu erro, independentemente ou ambas as partes, então vocês não devem
do quanto a outra pessoa tenha contribuído se casar. Não estamos falando em perfeição
para o problema? Você está pronto a perdoar? – se fosse assim, quem poderia se casar?!
Depois de perdoar, você deixa o passado para Estamos falando em progresso consistente
trás e volta a expressar amor? Você mantém e bem direcionado. Lembre-se do filtro de
a linha de comunicação continuamente óleo: “Você pode pagar agora ou pagar (um
aberta para prevenir o desenvolvimento de preço bem mais alto) depois”.
problemas? Por que preocuparmo-nos tanto com
Se um horticultor deseja colher ver- isso? Problemas habituais não desaparecem
duras em sua horta, ele precisa inicialmente quando nos casamos. Pelo contrário, eles
de sementes, fertilizante, enxada e regador. se agravam e as conseqüências dolorosas
Se um cônjuge quer desfrutar as bênçãos multiplicam-se. Por exemplo, um homem
do casamento, ele precisa cultivar a arte de solteiro irascível pode aborrecer seus amigos
solucionar problemas e desenvolver hones- e se tornar detestável aos olhos dos compa-
tidade e confiança. nheiros. Mas sua ira será algo aterrador e pe-
rigoso para a esposa e os filhos. Se o problema
Em que aspectos você precisa for tratado antes que o casal assuma um
mudar e crescer para se tornar compromisso, muita dor será evitada. Um
uma pessoa mais sábia? homem que aprende que sua vontade não é
Se você não tem o hábito de solucionar deus, que aprende a ser honesto e a lidar com
problemas biblicamente, isso não significa seus pecados, que está ciente da necessidade
que você deva imediatamente terminar o de crescer no autocontrole, torna-se alguém
relacionamento. Mas significa que há um com quem vale a pena se casar.
sinal de alerta e vocês precisam trabalhar Até aqui expusemos o lado negro da
juntos nas áreas de dificuldade e, possivel- questão. Há também um lado bonito que
mente, recorrer a um aconselhamento pré- acompanha a resposta positiva à pergunta
matrimonial. “Você tem o hábito de solucionar problemas
A questão é muito séria. Existem biblicamente?”. Os hábitos positivos tam-
hábitos pecaminosos em sua vida? No rela- bém persistem quando você se casa. Se vocês
158 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
passarem juntos por momentos difíceis, seu marido ou sua esposa, pode estar na
ainda que pequenos, e virem sinceridade, outra categoria. Deus alegra-se em chamar
compaixão, paciência e confiança crescer um cônjuge para amar o outro de modo
entre vocês, então há base para crer que o apropriado num relacionamento de uma só
Espírito Santo continuará a trabalhar Seu carne, isto é, sexualmente. Ele até mesmo
fruto em vocês. ordena isto! Em outras palavras, todas as
Precisamos ressaltar mais dois aspectos mulheres exceto uma – a sua esposa – estão
do amadurecimento cristão. Em primeiro lu- na categoria de mãe, avó, irmã, filha. Sua
gar, como vai sua vida de oração, individual namorada ou noiva é, em primeiro lugar,
e em conjunto com seu futuro cônjuge? A uma irmã e deve ser tratada como tal. Todos
oração é a expressão mais objetiva de depen- os homens, exceto um – o seu marido – estão
dência de Deus. na categoria de pai, avô, irmão, filho. Seu
Ausência de oração? Ausência de de- namorado ou noivo é, em primeiro lugar,
pendência! um irmão. Qualquer atitude que insira um
Oração egocêntrica? Deus é seu office-boy! elemento sexual no relacionamento familiar
Oração verdadeira? “ Bem-aventurados viola o amor.
os humildes de espírito, porque deles é o A pergunta “Até onde podemos ir sem
reino dos céus”. pecar?” é na verdade uma pergunta intei-
Vocês já aprenderam a buscar juntos a ramente errada. Vocês deveriam perguntar
face de Deus? Têm pedido que Ele ocupe o “Como podemos honrar, respeitar, encorajar a
lugar central na vida de vocês? Invoquem a pureza mútua, e não tentar um ao outro?”. Se
bênção de Deus sobre seu relacionamento, vocês forem capazes de desenvolver esse tipo
independentemente de ele resultar ou não de amor um pelo outro antes do casamento,
em casamento. Peçam a Deus sabedoria e terão um alicerce sólido para a vida sexual
graça para decidir se o casamento é a escolha alegre e leal dentro do casamento e estarão
correta. preparados para as fases de abstinência que
O segundo elemento chave refere-se certamente virão em algumas ocasiões dentro
ao seu comportamento sexual enquanto do relacionamento conjugal.
solteiros. Casais de namorados freqüen- Nenhum casamento está livre de pro-
temente pecam na área sexual. Aquela blemas. Mas queremos que você e seu futuro
famosa pergunta – “Até onde podemos ir cônjuge tenham confiança na capacidade de
sem pecar?” – não é tão difícil de responder enfrentar e resolver os problemas biblicamen-
se verificarmos o tipo de expressão de afeto te. Isto traz um alívio indescritível. Imagine
que é apropriado no relacionamento com seu poder prometer “Até que a morte nos separe”,
irmão ou irmã. Aos olhos de Deus, há dois sabendo que pela graça de Deus você terá
tipos de relacionamento amoroso entre ho- condições de fazer com que tal afirmação se
mens e mulheres. Quase todos os membros concretize. O casal que tem o hábito de so-
do sexo oposto devem ser considerados como lucionar problemas biblicamente pode fazer
sua família e amados de modo apropriado esta promessa. Jesus Cristo é a força motriz
a um relacionamento familiar, ou seja, de em sua vida e ambos estão atentos à Sua voz
modo não sexual. Somente uma pessoa, de comando.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 159
Para discussão Vocês não precisam ter sido moldados na
1. Listem três problemas ou diver- mesma forma. Duas pessoas muito diferentes
gências que vocês enfrentaram no passado. podem ter um casamento maravilhoso, mas
Conversem a respeito de como vocês lidaram há alguns aspectos em que o acordo é ne-
com estas situações. cessário para que um homem e uma mulher
2. Listem três problemas que vocês possam se unir um ao outro.
estão enfrentando agora. Elaborem uma É hora de vocês fazerem uma avaliação
proposta para resolvê-los biblicamente. objetiva de suas semelhanças e diferenças,
3. Estudem juntos Gálatas 5.13-6.10. e traçarem planos realistas com respeito ao
Em que aspectos vocês percebem tendências futuro. Jesus diz que devemos avaliar o pre-
pessoais ao pecado? Em que aspectos vocês ço de nossas decisões (Lc 14.28-29). Amós
têm praticado o amor cristão? diz: “Andarão dois juntos, se não houver
4. Conversem sobre sua vida de oração entre eles acordo?” (Am 3.3). Sugerimos aos
e devocional. casais que estão considerando o casamento
5. Conversem sobre como vocês têm que trabalhem as perguntas sobre deixar e
tratado um ao outro na área sexual. Leiam se unir, olhando um para o outro de forma
1 Timóteo 5.1-2 e percebam como todos os objetiva e realista.
relacionamentos, à exceção do casamento,
são caracterizados por termos familiares. Perguntas referentes ao deixar
Percebam a exortação específica a Timóteo,
um homem solteiro, para que trate as mu- Há disposição para romper o
lheres mais jovens “como irmãs, com toda laço emocional com seus pais?
a pureza”. Vocês precisam pedir perdão um O fracasso em romper o laço emocio-
do outro e redefinir os seus parâmetros de nal com seus pais pode resultar em alguns
acordo com o amor e não o desejo? problemas: o homem que visita sua mãe
diariamente antes de voltar para casa; o ho-
3. Vocês têm o mesmo alvo de mem que não defende sua esposa das críticas
vida? dos seus pais; a esposa que insiste para que
Quando a Bíblia fala a respeito do ca- todas as férias sejam passadas em companhia
samento, menciona quatro vezes a expressão de seus pais; a esposa que vai para a casa da
“deixar e unir-se”. Deixar significa cortar mamãe – por telefone ou presença física –
o laço com o direcionamento estabelecido ao primeiro sinal de dificuldade. Deixar os
pelos pais. Unir-se significa escolher andar pais significa construir uma nova unidade
na mesma direção de seu cônjuge. familiar.
Com certeza nunca haverá total acordo
e uniformidade entre duas pessoas. Afinal, Há disposição para romper o
você não vai se casar consigo mesmo, mas laço financeiro?
com alguém que deve completá-lo! Não Você está pronto a assumir a responsabi-
estamos falando aqui da questão de compa- lidade de cuidar da nova unidade familiar e res-
tibilidade – tão discutida no mundo secular. ponder pelos seus compromissos financeiros?
160 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Há disposição para romper o amigos; você vai trabalhar; você ainda será
laço com seus amigos e a vida um indivíduo. Mas haverá uma redefinição
de solteiro? do lugar que cada um desses aspectos ocupa
O marido não pode sair três vezes por em sua vida.
semana com os colegas. A esposa não pode
fazer de suas melhores amigas a fonte de toda Perguntas referentes ao unir-se
a sua satisfação emocional e espiritual.
O que você tem feito de sua
Há disposição para romper o vida?
laço com seu trabalho? Quais são seus dons e interesses minis-
Em um mundo direcionado pela teriais? O que você está fazendo para servir
carreira profissional, você entende que seu ao Senhor? Você tem condições de caminhar
cônjuge tem prioridade sobre sua atividade em alegria ao lado de seu futuro cônjuge?
profissional, e que você não pode negligen- Que tipo de trabalho você tem ou pretende
ciar seu cônjuge em função de seu trabalho ter em breve?
ou estudo?
Como é o seu estilo de vida?
Há disposição para romper o Quais os seus hábitos de trabalho e sua
laço com o direito que as pes- carga horária? Como você prefere se divertir
soas solteiras têm de tomar as e gastar o tempo livre? Como você passa
próprias decisões, andar como seus sábados? A que horas você acorda e
melhor lhe apraz e manter o levanta? Quantas horas você gasta em frente
grau de privacidade que mais à televisão – uma hora por semana ou quatro
lhe agrada? horas por noite? Que tipo de comida você
Escolher deixar pai e mãe significa prefere – você faz parte da geração saúde ou
também escolher tornar-se uma só carne é um consumidor de alimentos enlatados?
com outra pessoa. A vida pessoal será com- Como você costuma usar o domingo – ou
partilhada com o cônjuge. As decisões serão seja, o equivalente a um sétimo de sua futura
tomadas em conjunto. 1 Coríntios 7 ensina vida a dois? Existem coisas que vocês gostam
que há um preço para a aquisição da inti- de fazer juntos?
midade e do companheirismo conjugal – a
perda da liberdade individual. Obviamente, Quais as suas expectativas na
deve haver um equilíbrio ao considerar área material e financeira?
cada uma dessas perguntas. Não estamos Como você lida com o dinheiro? Que
entendendo um romper no sentido absoluto. porcentagem do seu rendimento é entregue
Você precisa reorganizar as suas prioridades, ao Senhor atualmente? Onde vocês preten-
valores e compromissos em função da nova dem morar – em uma residência modesta de
posição de casado ou casada. Com certe- um bairro urbano ou em um condomínio
za, você continuará a amar seus pais e há afastado da cidade? Em que localização
maneiras convenientes deles participarem geográfica – Uganda, Rio de Janeiro ou
da vida do casal; você não vai ignorar seus Amazonas?
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 161
Qual o nível e tipo de envolvi- sumida no presente é a melhor maneira de
mento que vocês desejam ter com se prever o futuro.
a igreja local? Olhe de frente para você e para o rela-
Vocês pretendem ir ao culto uma vez cionamento, seja realista. Por um lado, existe
por semana ou estão dispostos a gastar quatro um sinal vermelho indicando que algumas
noites da semana em atividades da igreja? dessas questões não foram resolvidas em sua
vida ou na vida da outra pessoa? Resista à
Vocês concordam em aspectos tentação de deixá-las passar em branco! Por
teológicos básicos? outro lado, existe um sinal verde indicando
Qual sua posição em assuntos como que vocês estão cada dia mais caminhando
autoridade das Escrituras, calvinismo, movi- na mesma direção? Se a resposta for “Sim”,
mento carismático, batismo, escatologia etc? anime-se!
O voto do casamento pode ser feito
Qual seu ponto de vista sobre com muita alegria se vocês estiverem firmes
o papel do homem e o papel da na certeza de que ambos estão prontos a
mulher, do marido e da esposa? deixar e se unir para o resto da vida.
Ambos, marido e esposa, trabalharão
fora de casa? Como serão tomadas as deci- Para discussão
sões? Conversem sobre as perguntas referen-
tes ao deixar e se unir.
Quantos filhos vocês querem ter?
Nenhum, dois, ou quanto mais me- 4. O que pensam a respeito do
lhor? Como cuidar das crianças e amá-las? seu relacionamento aquelas pes-
Como deve ser a disciplina dos filhos? Quais soas que os conhecem bem?
ofensas merecem disciplina? Quem faz o que Tomar a decisão de se casar é uma esco-
com a criança? lha das mais importantes, pois o casamento
afetará o resto de sua vida aqui na terra. Você
Qual será a freqüência das visitas seria tolo se comprasse uma casa sem antes
aos pais? recorrer a um perito para verificar a solidez
Onde vocês preferem passar as tempo- da construção. Mas infelizmente, muitas pes-
radas de férias e os feriados? Quanto tempo soas não tomam a mínima providência em
dedicarão aos amigos? busca de informação para uma boa escolha
O que demos aqui é um exemplo do do cônjuge.
tipo de perguntas que acreditamos que casais Em geral, não conseguimos ver a nós
que caminham em direção ao casamento mesmos com tanta nitidez, como as outras
devem fazer a si mesmos. Talvez você possa pessoas nos vêem. É fácil ficarmos obcecados
pensar em outras! a tal ponto por uma pessoa que não vemos
Vamos repetir: ambos caminham na o todo com clareza. Embora não devamos
mesma direção? Esta pode ser uma questão permitir que outras pessoas tomem decisões
difícil para casais jovens. É fácil dizer: “Sim, por nós, a Bíblia deixa bem claro que não
nós andaremos na mesma direção; daremos podemos ser lobos solitários que dependem
um jeito”. Mas observar qual a direção as- apenas de si mesmos na busca de sabedoria.
162 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
Duas (ou três, ou quatro, ou...) cabeças cionamento entre você e seu futuro côn-
pensam melhor que uma. Provérbios 15.22 juge podem fazer considerações úteis. Em
diz: “Onde não há conselho fracassam os segundo lugar, recorra a pessoas que sabem
projetos, mas com os muitos conselheiros o que faz um casamento funcionar. Escolha
há bom êxito”. Romanos 15.14 nos diz que pessoas experientes, mais velhas e mais sábias
à medida que crescemos no conhecimento que você, cujas opiniões e sabedoria você
de Deus, tornamo-nos aptos para aconselhar respeita. Ainda que não sejam crentes, pais,
uns aos outros. parentes, amigos de família e outras pessoas
Pode ser difícil encontrar equilíbrio que convivem com você podem contribuir
entre estas duas verdades: você precisa do com observações que vale a pena considerar.
conselho de outros e, ao mesmo tempo, você Em terceiro lugar, dirija-se a pessoas que
deve tomar a decisão final. Encontramos, possam ajudar a ver o casamento de um
com freqüência, três tipos de pessoas: em ponto de vista cristão. Seu pastor, um líder da
primeiro lugar, temos o lobo solitário, total- igreja local, um amigo cristão sábio podem
mente independente e que recusa qualquer ajudar a pensar biblicamente a respeito dos
informação ou conselho de outros. Ele diz: aspectos envolvidos no casamento. Receber
“Eu tomo minhas próprias decisões”. Em aconselhamento bíblico pré-matrimonial é
segundo lugar, encontramos o escravo da extremamente importante, seja de modo for-
opinião alheia, totalmente dependente, que mal ou informal. Em quarto e último lugar,
anda em busca de quem possa tomar decisões ouça seus pais. Eles o conhecem bem. Eles já
por ele. Ele diz implicitamente: “Decidam viveram bem mais que você. Eles se impor-
por mim”. tam com o que acontecerá em sua vida.
Tal pessoa é jogada de um lado para Precisamos falar um pouco mais sobre
outro pelas mais diversas opiniões que ouve, conversar com os pais, visto que muitos jo-
e tem medo de tomar qualquer decisão. Em vens adultos têm um relacionamento tenso
terceiro lugar, temos a pessoa biblicamente com seus pais. Pode ser que na infância ou
livre, que é capaz de usar bem os conselhos adolescência você tenha desenvolvido o há-
que recebe. Ela sabe que a decisão final lhe bito de ignorar ou desprezar os conselhos e
pertence, mas também está ciente de suas idéias de seus pais. Ou talvez um ou ambos
limitações e de que pode falhar. Reconhe- os pais pecaram contra você por meio de
cendo que necessita de Cristo e de outras críticas, abuso físico, divórcio ou qualquer
pessoas, ela está livre para considerar todo outro comportamento não bíblico, e existe
e qualquer conselho que a possa ajudar a agora uma distância entre vocês. A essa altura
tomar uma decisão sábia. da vida, quando se prepara para o casamento,
A quem devemos pedir conselhos? você tem uma oportunidade maravilhosa de
Certamente não estamos dizendo: “Converse tratar a ferida. É hora de se aproximar para
com a primeira pessoa que lhe vier à frente. ter uma conversa profunda com seus pais,
Se ela der o sinal verde, prossiga”. Escolha ouvir suas idéias, mostrar respeito, e levá-
bem os seus conselheiros. Você deve estar los a sério. Resolver assuntos pendentes do
atento a quatro aspectos. passado proporciona a segurança de que você
Em primeiro lugar, dirija-se a pessoas não levará bagagem emocional do passado
que o conhecem bem. Pessoas que têm para dentro do casamento. A reconciliação
oportunidade de observar de perto o rela- com seus pais facilitará a entrada de seu côn-
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 163
juge na família, pois ele não precisará sofrer egocêntricas, ou se você está comprometido
as pressões e tensões do seu passado. Pode em amar a outra pessoa. Bons conselhos
haver casos em que a reconciliação seja im- ajudam a identificar problemas em potencial
possível, mas esta é uma situação que merece e tratá-los agora, antes que você esteja com-
oração e uma conversa franca com o futuro prometido a ponto de se tornar embaraçoso
cônjuge. Na maioria dos casos, porém, temos voltar atrás. Bons conselhos também ajudam
visto o contrário, resultando em aproxima- a identificar se você sabe resolver problemas
ção e cultivo de um respeito de adulto para e enfrentar dificuldades biblicamente, e se
adulto. As paredes de desconfiança e dor de está caminhando na mesma direção de seu
ambas as partes caem diante um novo amor futuro cônjuge.
e compreensão, e o casamento torna-se uma “O caminho do tolo é reto aos seus
ocasião para entregar a noiva ou despedir o próprios olhos, mas o que dá ouvidos ao
noivo com grande alegria. Vá aos seus pais conselho é sábio” (Pv 12.15). O que pensam
com humildade. Deus tem boas dádivas para a respeito do seu relacionamento aquelas
os seus filhos, e a cura do conflito de gerações pessoas que o conhecem bem? Como estas
é uma delas. pessoas avaliam a sua maturidade? O que
Como ponderar os conselhos recebi- acham de seus planos e alvos? Não permita
dos? Muito do que você ouve pode contri- que o orgulho ou a timidez impeçam um
buir para um entendimento mais nítido de pedido de ajuda.
suas motivações e alvos. Mas buscar conselho
não é como procurar respostas em estatísti- Para discussão
cas: “Sete entre doze pessoas disseram que eu 1. Quem poderia nos ajudar? Façam
devo me casar com fulana, portanto me casa- uma lista!
rei”. Alguém pode questionar a sua escolha e 2. Como podemos marcar encontros
se opor a ela por motivos incertos; perguntas com essas pessoas?
e críticas podem ser injustas; opiniões podem
ser parciais; pressões podem ser fruto de uma 5. Você quer mesmo se casar com
motivação errada. Mas você deve ser capaz esta pessoa? Vocês estão dispostos
de responder com convicção até mesmo aos a aceitar um ao outro como são?
questionamentos que refletem pontos de
vista com os quais você discorda. A Bíblia diz que a decisão de casar é
Há muito conselho duvidoso ao seu uma escolha pessoal. As perguntas finais que
redor. Alguns vão animá-lo por razões er- você deve fazer a si mesmo são: “Eu quero
radas: “Vá em frente, ela é bonitinha” ou mesmo me casar com essa pessoa?” e “Essa
“Vá em frente, ele vai ficar rico”, “O Senhor pessoa quer se casar comigo?”.
me disse que você deve se casar com ele/ Alguns podem pensar que esse tipo
ela”. Outros vão desanimá-lo por razões de pergunta não é espiritual, como se Deus
também erradas: “Não entre nessa. Você vai tivesse a obrigação de revelar miraculosa e
perder sua liberdade de solteiro”. Mas há misticamente se e com quem você deve se
também bons conselhos a serem ouvidos. casar. O casamento é um milagre! E Deus
São conselhos que ajudam a pensar e decidir realmente conduz o seu povo! Mas Ele nos
cuidadosamente, e em oração. Eles revelam conduz dando-nos sabedoria e permitindo-
se suas razões principais para o casamento são nos fazer escolhas. O casamento é de fato
164 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
uma escolha pessoal: você é quem assumirá à quinta pergunta, depois de refletir bastante
os votos e dirá “Sim”. e a sós, um dos dois disse: “Eu realmente não
Semelhantemente, você deve respeitar quero me casar agora”. Eis alguns motivos
a individualidade da outra pessoa e sua porque as coisas chegam até esse ponto: “Mi-
responsabilidade de tomar uma decisão nha mãe realmente quer que eu me case” ou
pessoal com respeito ao casamento com “Meu namorado tem me pressionado muito
você. Não somos robôs nem fantoches uns e disse que isso é o certo” ou “Nós dormimos
dos outros, nem mesmo do Espirito Santo. juntos e me sinto culpado e obrigado a isso,
Somos filhos que vivem pela fé, que têm um como se já fôssemos casados” ou “Todos di-
Pastor e um Pai que os orienta no processo de zem que formamos um casal perfeito e fomos
fazer escolhas baseadas na sabedoria bíblica. feitos um para o outro, mas...” ou “Tenho
Desta forma, as perguntas que estamos lhe medo de deixar passar essa oportunidade e
fazendo pressupõem que caberá a você o nunca mais ter outra”.
compromisso final. Medo, culpa, pressão da sociedade não
Destacamos a importância da escolha são razões para se casar. É importante trazer
pessoal porque temos visto pessoas ficarem à tona quaisquer dúvidas que você possa ter.
bastante confusas e caminharem em direção Às vezes, podemos lidar com as dúvidas de
a casamentos incertos porque alguém lhes maneira que você venha a ser capaz de dizer
disse: “Eu sei que a vontade de Deus é que “Sim” de todo coração. Outras vezes, a dú-
você se case com fulano de tal”, ou porque os vida é apenas uma razão para dizer “Não”. É
seus pais ou outra pessoa a quem respeitavam muito melhor dizer “Não” antes do noivado
as pressionou. Também já vimos pessoas do que fazê-lo vinte anos após o casamento:
paralisadas pela indecisão por acharem que “Eu subi ao altar com dúvidas secretas, e me
necessitam de algum sinal para confirmar se arrependi desde então.”
devem ou não se casar. As primeiras quatro O tempo para decidir se você quer ou
perguntas que fizemos têm por objetivo ga- não se casar é antes do noivado. Embora seja
rantir que você não correrá para o casamento muito comum, em nossa cultura, o noivado
simplesmente por vontade própria. Mas há ser considerado como um período em que
um momento apropriado para perguntar a “Eu ainda vou decidir”, escrevemos este ar-
si mesmo: “Eu quero?”. tigo para esclarecimento e aconselhamento
1 Coríntios 7.25-40 é passagem a mais não de noivos, mas de um homem e uma
longa da Bíblia que fala claramente a respeito mulher que se tornaram amigos e querem
da decisão de se casar. Você pode encontrar pensar em casamento. Sem dúvida, noivado
frases como: “Faça o que quiser. Não peca.”; não quer dizer que você já está casado ou que
“...fica livre para casar com quem quiser, tomou uma decisão irreversível. Todavia,
mas somente no Senhor”. Pode haver algo considerar o noivado como um período
mais claro? Deus espera que você tome a de teste é bastante enganoso. Muitos casais
decisão. Deus promete abençoar e cumprir poderiam ter evitado a dor e a vergonha de
a vontade dEle em sua vida por meio de um noivado desfeito se tivessem respondido
suas decisões. honestamente a essas perguntas antes de
Conhecemos casais que trabalharam assumir o compromisso.
nas primeiras quatro perguntas, e todo o pro- Dúvidas não são a única questão que
cesso parecia andar bem. Quando chegamos deve vir à tona. Lembre-se de que o seu
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 165
“Sim” é dirigido a uma pessoa, e não à mulher Conclusão
de seus sonhos ou ao homem em que ele vai se Casamento é um dos melhores dons
transformar! Pergunte a si mesmo: “Estou que Deus deu ao ser humano. A união da
disposto a aceitar esta pessoa da maneira noiva com o noivo é com certeza um dos
como ela realmente é? Eu quero me casar símbolos mais significativos de alegria. Nossa
com esta pessoa?”. Tenha certeza de que você oração é que Deus permita a muitos de vocês
não está entrando no casamento com um conhecer pessoalmente esta alegria.
plano secreto, esperando mudar o cônjuge O tempo que você gastar na reflexão e
depois da cerimônia de casamento. Você discussão das perguntas que sugerimos será
está dizendo “Sim” a uma pessoa real, com tempo bem aproveitado. Trata-se de algo
fraquezas e pontos fortes, pecados e dons? mais que percorrer uma lista de itens a con-
Dizer “Sim” com firmeza nos liberta. ferir. É um tempo de descoberta a respeito
Por isso insistimos para que você gaste tempo da outra pessoa, que fará crescer seu amor
sondando o próprio coração e orando ao Se- por ela. É um tempo de investimento em sua
nhor. “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra alegria futura. A Bíblia diz: “A piedade para
vez digo: alegrai-vos. ... em tudo, porém, tudo é proveitosa, porque tem a promessa
sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas da vida que agora é e da que há de ser” (1
petições, pela oração e pela súplica, com Tm 4.8). Cada uma dessas perguntas ajudará
ações de graças” (Fp 4.4-6). Aproveite este você a crescer na piedade, cultivar pensamen-
tempo para se alegrar no Senhor. Purifique tos corretos e viver habilidosamente.
sua motivação e dê a Deus o primeiro lugar Algum dia, a morte o separará de seu
na sua vida. Aquiete-se diante dEle, buscan- cônjuge. Mas você estará preparado até mes-
do a Sua sabedoria. Derrame seu coração mo para isso. Sua alegria estará firmada na
perante Ele. Peça a Sua bênção. Talvez você esperança de uma vida futura. Em tempos
queira separar um dia especial para jejum e difíceis, mesmo na morte, você terá recursos
oração, além de seu tempo devocional corri- de esperança, força e encorajamento em
queiro. Pense. Faça a si mesmo as perguntas Cristo, se Ele ocupar desde já o lugar central
que sugerimos. Medite nas implicações em sua vida e seu casamento.
de sua decisão. Tome então a sua decisão, Você percebe que há alguém a quem
confiando na bondade de Deus para com você deve amar muito mais que a seu marido
Seus filhos. “Eu é que sei que pensamentos ou sua esposa? Jesus disse: “Se alguém vem
tenho a vosso respeito, diz o SENHOR; a mim e ama a seu pai, e mãe, e mulher, e
pensamentos de paz e não de mal, para vos filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria
dar o fim que desejais” (Jr 29.11). vida, mais do que a mim não pode ser meu
discípulo” (Lc 14.26 NVI).
Para reflexão pessoal Talvez você esteja pensando que esta é
1. Você quer se casar com esta pessoa? uma maneira estranha de concluir nossa con-
2. Você está disposto a aceitar esta versa a respeito da decisão de se casar! Mas
pessoa exatamente como ela é? dê ouvidos a Jesus. Ele ama Sua noiva com
166 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
intensidade e profundeza inigualáveis (cf. Ef Se você amar a Jesus acima de qualquer outra
5.2, 25; Ap 19.6-9). Um discípulo de Cristo coisa, saberá amar a seu cônjuge de verdade,
é alguém que está aprendendo a amar com com o amor de Cristo. Você será alguém que
a mesma intensidade. Se você amar a seu vale a pena ter como cônjuge!
cônjuge acima de qualquer outra coisa, será Você será uma fonte de alegria para ou-
um egoísta, medroso, amargo e desiludido. tra pessoa? Com a ajuda de Jesus,... SIM!
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 167
Perguntas e Respostas
“Amor Incondicional”
D a v i d A . Po w l i s o n 1
Tenho ouvido pessoas usarem a expressão preocupação que Ele tem com você é grande
“amor incondicional” com certa freqüência, demais para ser incondicional.
mas não me sinto à vontade com este termo. É Imagine-se como um pai que está
uma maneira adequada para descrever o amor olhando seu filho brincar em meio a um
de Deus e o tratamento que as pessoas devem grupo de crianças. Talvez o cenário seja uma
dar umas às outras? creche ou uma sala de aula, um play-ground
O autor desta pergunta percebeu que ou um jogo de futebol. Você está certo ao
alguma coisa o incomodava na maneira dizer que tem amor incondicional por aque-
como as pessoas falam sobre o amor de las crianças como um todo; você não abriga
Deus e o amor que devemos ter uns para nenhuma hostilidade específica, você lhes
com os outros. Eu também não me sinto deseja o bem. Mas para com seu filho, algo
à vontade com o termo amor “incondicio- mais acontece. Você presta maior atenção.
nal”. Raramente uso esta expressão, pois o Um ferimento, o perigo de se machucar, uma
amor de Deus é diferente e bem melhor que briga ou uma injustiça despertam em você
incondicional. Amor incondicional, em sua fortes sentimentos de proteção — porque
definição contemporânea, começa e acaba você ama. Se seu filho tem um acesso de raiva
com simpatia e empatia, com aceitação ou se envolve em uma briga, você logo se
resignada. Eu o aceito como você é, sem levanta para intervir — porque você ama. Se
expectativas. Mas pense um pouco no amor seu filho é bem-sucedido, você fica alegre —
de Deus por você. Deus não olha favoravel- porque você ama. Claro que cada uma destas
mente para você em atitude de afirmação. A reações pode ser manchada pelo pecado.
Orgulho, medo da opinião de outros, forte
desejo de alcançar sucesso, superioridade,
Tradução e adaptação de “Unconditional Love?”
1 ambição ou egocentrismo podem deformar
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. o amor paterno. Mas imagine estas reações
Glenside, Pa., v. 12 n. 3, Spring 1994. p. 45-48. não manchadas pelo pecado. Leia o Salmo
168 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
121, os capítulos 11 e 14 de Oséias, Isaías lan não é um leão domesticado”. O amor do
49... a vida de Jesus. O Senhor olha para você. Senhor não é um amor domesticado, não
Ele se preocupa com você. O que Seus filhos é uma técnica terapêutica2. E nós somos
fazem e o que lhes acontece tem importância. chamados a ter esse mesmo tipo de amor
Olhar, preocupar-se e considerar importante uns pelos outros: “Andem em amor assim
é algo intenso, complexo, específico, pessoal. como Cristo nos amou” (Ef 4.32-5.2). É
Amor incondicional não é um termo muito um amor real, forte e complexo, e também
apropriado nem convincente. Pelo contrário, difícil de praticar. É muito diferente de “Eu
é algo distante, geral, imparcial. O amor de o aceito assim como você é. Eu o aceito as-
Deus é muito mais que incondicional. sim como aceito a todos os demais. Eu não
Deus é ativo. Ele decidiu amar, quan- vou julgá-lo nem impor meus valores sobre
do poderia simplesmente condenar. Ele se você. A atmosfera de aceitação que eu crio
envolve em sua vida, é misericordioso e não pode liberar a força de autorealização que
apenas tolerante. Ele odeia o pecado, mas há no seu interior.” Este amor incondicional
busca os pecadores pelo nome. Deus está tão substitui o rei dos animais por um ursinho
comprometido em perdoá-lo e transformá- de pelúcia. Ursinhos de pelúcia fazem com
lo, que Ele enviou Jesus para morrer em seu que você se sinta bem; eles não rebatem o
lugar. Ele dá boas vindas ao pobre de espírito, que você diz.
com alegria e festa. Deus é imensamente pa- Será que o cuidado ativo de Deus
ciente e persevera incansável, intrometendo- pode ser chamado de amor incondicional,
se em sua vida. um termo cujo significado é moldado pelo
O amor de Deus é ativo em busca do distanciamento calmo de um psicoterapeuta
seu bem. É um amor carregado de sangue, e cujo valor central é não impor valores? Que
suor, lágrimas. Deus sofre por você, luta palavras descreveriam o amor de Deus que é
por você — em sua defesa. Ele também rico em aceitação, e ainda assim obstinado,
luta com você. Ele o busca com grande exigente e intrometido?
ternura, com o propósito de promover “Pois o amor de Cristo nos constrange,
mudança em sua vida. Ele é ciumento, não julgando nós isto: um morreu por todos;
é distante. Sua empatia e compaixão falam logo, todos morreram. E ele morreu por
alto: palavras de verdade para livrá-lo do todos, para que os que vivem não vivam mais
pecado e da miséria. Deus o disciplina para si mesmos, mas para aquele que por
como prova de que o ama. Ele habita em eles morreu e ressuscitou.” (2Co 5.14,15)
você, derramando Seu Santo Espírito em Que palavras poderiam descrever um amor
seu coração, para que você O conheça. que se dirige ao ímpio e ao mesmo tempo
Ele também o capacita. O amor de Deus mantém uma expectativa de piedade? Ou
contém até mesmo ódio: ódio do mal, pra- um amor que me alcança exatamente onde
ticado contra você ou por você. E o amor estou e me incentiva a crescer? Um amor
de Deus exige uma resposta de sua parte: que aceita, sim, mas também inclui uma
crer, confiar, obedecer, agradecer com agenda de mudança para o restante da vida?
coração alegre, desenvolver a sua salvação
com temor, ter prazer no Senhor. 2
Muitas passagens das Escrituras retratam as facetas do
C. S. Lewis comentou a respeito do amor de Deus: Lucas 16, Mateus 18, Salmo 103, Êxodo
Senhor em um de seus livros infantis: “As- 34, 1 João 4, Romanos 1-11, Isaías 49, Isaías 53.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 169
É útil aplicar o rótulo “amor incondicional” que minhas mãos fazem” pode me fazer me-
àquilo que Deus faz e a que de alguma forma recedor do amor de Deus. A palavra incondi-
esperamos que pais e conselheiros piedosos cional é escolhida para codificar esta bênção
façam, falem, modelem? imerecida, para derrotar o legalismo.
Não me sinto à vontade com este ter- Em quarto lugar, Deus o recebe assim
mo, embora muitas pessoas falem em amor como você é: pecador, sofredor, confuso. Em
incondicional com boas intenções, tentando poucas palavras: “Ele vai ao seu encontro
juntar quatro verdades significativas e rela- onde você está”. Não conserte a sua vida para
cionadas entre si que veremos a seguir. só depois ir a Deus. Vá. A palavra incondi-
Em primeiro lugar, “amor condicional” cional é escolhida para falar do convite que
é uma coisa ruim. Não é amor, de jeito ne- Deus faz a pessoas rudes, sujas, arrebentadas,
nhum, mas uma expressão do ódio rotineiro e para combater o desespero e o medo que
e do egocentrismo do coração humano. Seria fariam recuar e deixar de pedir ajuda a Deus
melhor chamá-lo de “aprovação condicional e ao povo de Deus.
e manipuladora”. “Se você me agradar e jogar Estas verdades são preciosas. O adjetivo
no meu time, vou sorrir para você. Se você incondicional tem uma linhagem teológica
não me agradar, vou agredi-lo ou evitá-lo”. nobre no que diz respeito à graça perseve-
A palavra incondicional é escolhida para rante e liberalmente concedida por Deus.
contrastar com esta manipulação, exigência Será que eu deveria me sentir à vontade
ou atitude de julgamento. Seu propósito é com a maneira como ele é comumente
denunciar uma forma pecaminosa de relacio- usado? Será que o uso atual expressa esta
namento humano, e dizer: “Amor verdadeiro carga teológica prática? Incondicional é um
não é bem assim”. equivalente satisfatório para estas quatro
Em segundo lugar, o amor de Deus é maravilhosas verdades? Eu creio que não,
paciente. Ele e aqueles que O imitam têm por quatro razões.
paciência e suportam em esperança. Deus Em primeiro lugar, há maneiras mais bí-
não sai de campo. Visto que Ele persevera, blicas e vívidas para captar cada uma das quatro
Seus santos perseverarão até o fim e entrarão verdades que acabamos de mencionar.
na glória. A palavra incondicional é escolhida
para dar incentivo durante o processo de O oposto de manipulação não é be-
mudança, em lugar de pular fora quando nignidade imparcial. O amor verda-
o caminho é árduo. Seu propósito é gerar deiramente bondoso inclui zelo, auto-
esperança. sacrifício e um chamado à mudança (Is
Em terceiro lugar, o amor verdadeiro é 49.15,16; 1 Ts 2.7-12).
um dom de Deus. É uma iniciativa de Deus
O chamado para que você dê apoio
e uma escolha dEle, não condicionada pelo
às lutas de uma pessoa pode ser assim
meu desempenho. O evangelho de amor de
expresso: “O amor é paciente”, “...
Deus não é um salário; é uma dádiva. É algo
sejais longânimos para com todos” (1
que não posso comprar; mais que isso, é algo
Co 13.4; 1 Ts 5.14).
que eu nem mesmo mereço. Deus ama ao
fraco, ao ímpio, ao inimigo pecador. O dom “Graça” e “dádiva” captam a qualida-
de Deus levanta-se contrário à minha dívida, de de livre e imerecido do amor de
visto que eu mereceria a morte. “Nada do Deus com menos ambigüidade que
170 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
incondicional (2 Co 9.15; Rm 6.23; ção de transformar as pessoas que a recebem.
Ef 2.4-10). Há algo errado com você. Da perspectiva
de Deus, você não apenas necessita de que
Deus dá as boas-vindas ao ímpio, e diz:
alguém morra em seu lugar para que você
“Cristo Jesus veio ao mundo para salvar
seja perdoado; você precisa de mudança. A
os pecadores” (1 Tm 1.15). “Cristo
palavra incondicional pode ser uma forma
nos amou e se entregou a si mesmo
aceitável de expressar as boas-vindas de
por nós” (Ef 5.2). O evangelho é uma
Deus. Falha, porém, em comunicar o senti-
história de ação, não uma atitude de
do desta aceitação: uma reabilitação ampla,
aceitação.
que durará para toda a vida no aprendizado
O que presenciamos hoje é o uso do da “santificação, sem a qual ninguém verá o
termo incondicional de modo vago e abstrato, Senhor” (Hb 12.14). As pessoas geralmente
quando a Bíblia nos dá palavras, metáforas e usam o termo incondicional para persuadi-lo
histórias mais específicas e vívidas. de que “Você está Ok”, despojando o amor
Em segundo lugar, está claro que a — tanto de Deus, como de um conselheiro
graça imerecida não é estritamente incondi- ou de um pai — de seu verdadeiro signifi-
cional. Embora o amor de Deus não dependa cado. Você “se volta” para receber o amor de
daquilo que você faz, ele depende muito do Deus; você nada faz para receber aceitação
que Jesus fez por você. Neste sentido, ele é passiva ou incondicional.
altamente condicional. Ele custou a vida a Em quarto lugar, e mais sério, amor
Jesus. incondicional traz uma bagagem cultural. À
O amor de Deus, conforme definido medida que você leu os parágrafos anteriores,
na Bíblia, envolve o cumprimento de duas você percebeu como a palavra incondicio-
condições: obediência perfeita e substituição. nal está ligada a palavras como tolerância,
Jesus, pela sua obediência ativa à vontade de aceitação, afirmação, benignidade. Ela está
Deus, demonstrou e recebeu o veredito “Jus- ligada a uma filosofia que diz que o amor não
to”. Sua obediência consistente às condições deve impor valores, expectativas ou crenças
de Deus é imputada a nós pela graça, quando sobre outrem. Eu poderia ter usado a frase
Deus justifica o ímpio. Em sua obediência técnica da psicologia humanista: “considera-
passiva como Cordeiro substitutivo, Jesus ção positiva incondicional”. Muitas pessoas
suportou a pena de morte como condição reportam-se a este conceito quando pensam
para nossa liberdade e vida, de tal forma em amor incondicional: “Você no fundo está
que o amor de Deus é oferecido livremente bem; Deus o aceita exatamente como você é.
a você e a mim pelo cumprimento de ambas Deus sorri para você, mesmo que você não
as condições. O amor de Deus contém a obra faça nada de extraordinário. Você tem valor
de vida e morte dAquele que foi tanto Servo inerente. Deus o aceita. Você pode descansar
como Cordeio de Deus. Amor incondicio- em Deus, e deixar que o seu eu essencialmen-
nal? Não, algo muito melhor. As pessoas que te bom venha à tona.” Esta é uma filosofia de
hoje usam a palavra incondicional comuni- vida ou uma teologia prática completamente
cam, em geral, uma aceitação imparcial que estranha ao verdadeiro amor de Deus.
diminui a obra de Cristo. O oposto de condicional pode parecer
Em terceiro lugar, a graça de Deus é incondicional. O oposto de expectativas
algo mais que incondicional: ela tem a inten- altas e excêntricas pode parecer ausência de
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 171
expectativas. O oposto de ser mandão pode Podemos fazer algo melhor. Dizer que
parecer não ser diretivo. Com certeza, amor “o amor de Deus é um amor incondicional”
condicional é ódio, e não amor. Mas amor é quase como dizer “a luz do sol ao meio-dia
incondicional — usado com o significado é como uma luz de flash na escuridão”. A
que o termo hoje carrega — é um engano luz produzida por um bulbo de flash admite
mais sutil. Leitores que queiram mergulhar certa analogia com a luz do sol. Amor incon-
mais a fundo nesta questão podem tirar dicional admite certa analogia com o amor
proveito da leitura de “O caso de Herbert de Deus. Mas porque começar pela luz do
Bryant” relatado por Carl Rogers3. Esse flash, e não pelo sol fulgurante? Visto mais
conhecido caso de aconselhamento — uma de perto, o amor de Deus é bem diferente da
transcrição de 180 páginas de diálogo com “consideração positiva incondicional”, a se-
comentários — mostra como o incondicional menteira da noção contemporânea de amor
de Rogers e o método não-diretivo funcio- incondicional. Deus não me aceita como eu
nam na prática. Um jovem libertino com sou; Ele me ama a despeito do que sou; Ele
uma consciência mórbida passa a ser um me ama como Jesus é; Ele me ama o sufi-
pecador mais civilizado e satisfeito consigo ciente para dedicar a vida para me renovar à
mesmo. O amor incondicional de Rogers, imagem de Cristo. Este amor é muito, muito
na verdade, mascara um esquema poderoso melhor que incondicional! Talvez possamos
e insidioso: criar pessoas felizes, civilizadas chamá-lo de amor “contracondicional”.
e anestesiadas para com Deus. De maneira Ainda que eu não preenchesse as condições
velada, Rogers é inteiramente diretivo. para receber as bênçãos de Deus, Ele me
Não me sinto à vontade com o termo abençoou porque Seu filho as preencheu. E
amor incondicional porque trata-se, com agora eu posso começar a mudar, não para
freqüência, de uma fuga da realidade. Ele faz conquistar amor, mas por amor.
companhia a ensinos que dizem “paz, paz”, Poucos ainda usam o termo amor in-
quando do ponto de vista de Deus, não há condicional com o velho sentido teológico
paz (Jr 23.14, 16,17). Recebendo aceitação intacto. O propósito, em geral, é incentivar
plena, você não precisa de arrependimen- que as pessoas se preocupem umas com as
to. É só aceitar. E esta aceitação o satisfaz, outras, e também tranqüilizar aqueles que
sem humilhá-lo. Ela lhe dá descanso, sem vêem a Deus como um grande crítico a quem
aborrecê-lo a respeito de si mesmo nem servem penosamente ou de quem fogem por-
fazê-lo vibrar com Cristo. Ela faz com que que nunca conseguem agradar. E não tenho
você se sinta aquecido, sem levar em conta a dúvida de que a frase tem sido útil a alguns,
angústia de Jesus no jardim e na cruz. É fácil, apesar das riquezas que ela deixa do lado de
e nada exige. Não insiste nem trabalha em fora e da bagagem que geralmente carrega.
mudançaem sua vida. Engana-o a respeito Mas a Bíblia ainda nos conta histórias mara-
de si mesmo e de Deus. Precisamos admitir vilhosas, menciona metáforas emocionantes,
que muitos falam de amor incondicional e e desenvolve uma teologia detalhada para nos
aspiram por amor incondicional com uma informar a respeito do amor de Deus. Você
ampla dose desta bagagem cultural. precisa de algo melhor que amor incondicio-
nal. Você precisa da coroa de espinhos. Você
ROGERS, Carl. Counseling and Psychotherapy. Boston:
3 precisa de um toque de vida à semelhança
Houghton, Mifflin, 1942. p. 262-437. do filho da viúva de Naim. Você precisa da
172 Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1
promessa que foi feita ao ladrão arrependido. Agricultor, um Pastor, um Pai, um Salvador.
Você precisa ouvir que “De maneira alguma Você precisa se tornar semelhante Àquele
te deixarei, nunca jamais te abandonarei”. que ama você. Você precisa do melhor do
Você precisa de perdão. Você precisa de um amor de Jesus.
Coletânea de Aconselhamento Bíblico Volume 1 173