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As Quatro Concepções Do Homem

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AS QUATRO

CONCEPÇÕES DO
HOMEM
por Francis Wolff
Resumo
Das questões filosóficas, a da natureza humana é a mais importante, porque
todas as outras dependem dela. Sua verdadeira dimensão é dada pela
passagem da ideia de criatura divina à de animal social, distinga-se ele pelo
uso de utensílios ou linguagens. Tanto que é de tal definição que decorrem as
maneiras de ver a vida, a morte, a técnica, a moral, a política…

Convém, pois, extrair os princípios teóricos e as consequências práticas das


várias respostas dadas a tal questão, que foram, fundamentalmente, quatro.

A primeira delas busca definir o homem por sua essência fixa e eterna. Ela
domina os pensamentos antigo e medieval. Apoia-se sobre o gênero do ser
que é o homem – um vivente –, diferenciando-o dos outros da seguinte forma:
além dos animais e aquém dos deuses, o homem é político, racional ou dotado
de linguagem etc. Essa concepção fundamenta-se numa hierarquia do cosmos.
Mas quem é homem e quem não é? Toda definição essencialista do homem
não traz nela mesma a origem da discriminação entre o ser plenamente
humano e o não humano? Eis a questão prática que se põe a esse tipo de
resposta.

Na era clássica, ela foi, por sua vacuidade, criticada por Descartes, para quem
a única referência seria a consciência reflexiva. Eu penso, eu sou. E o que
sou? Uma substância pensante. Nada mais? Corpo, alma, a união deles, mas,
antes, o que distingue o homem é o pensamento em oposição à natureza.
Mais: para além desse ser que diz e pensa eu, existe um Deus, infinito em sua
matéria inerte, da qual, aliás, pode-se ser senhor através da ciência (ou física
matemática) e da técnica. Existe limite para essa potência de conhecimento e
de ação humanas sobre a natureza?

As concepções mais modernas, as dos séculos XX e XXI, podem ser


entendidas como duas possíveis respostas ao cartesianismo clássico ou ao
essencialismo antigo.

O século XX viu o apogeu das ciências humanas, nas quais o homem cessou
de ser tomado como o sujeito absoluto e último, senhor de si e da natureza,
para tornar-se objeto possível de diversos conhecimentos positivos, tais como
a história, sociologia, psicanálise, etnologia, economia etc. E o que há de
comum a todos esses “homens”? É o fato de acreditar no Homem,
transparente, tal como aparece. Ora, se isso é verdadeiro, se o homem é
apenas o ser determinado ou mistificado pelas ciências humanas, disso
decorrem novos problemas, a começar pelas palavras. Ainda fariam sentido
“liberdade”, “responsabilidade”, “moral”, “bem” e “mal”?

O século XXI institui-se, parece, através de uma crítica cerrada a tudo o que
havia, no último século, constituído a idade de ouro das ciências humanas em
contraste com as ciências duras. De um lado, há o que é humano, isto é,
cultura, linguagem articulada, regra, tudo o que é, enfim, histórica e
socialmente recebido, enquanto, de outro, o que é natural e biológico. O
paradigma “cognitivista”, atualmente dominante, repousa sobre uma nova
ciência que se quer também capaz de definir o homem. Não se trata mais da
cosmologia, como na Antiguidade, ou da mecânica, como no século XVII, ou
das ciências humanas, como no último século, mas da biologia. O pensamento
confunde-se com o cérebro, e o homem reduz-se a seu patrimônio genético.
Eis o fim da “especificidade humana” e sua sociedade, linguagem, história etc.
Não há mais deuses nem homens propriamente ditos, pois neste tudo é animal,
e todo animal é um vivente mais ou menos adaptado ao seu meio. E para isso
há, claro, um preço. Se não há mais humanidade definível, sobre o que se
fundam os valores, políticos ou morais? A divindade? A animalidade?

Disso surgem quatro maneiras incompatíveis de definir o homem. Como uma


essência entre outras essências, como sujeito pensante, como objeto que –
apesar de reconhecível – se ignora, como animal. Esses quatro modelos não
são apenas históricos. De certa maneira, estão vivos. E cada qual com sua
legitimidade científica. Também seu limite. Pensar o homem hoje é medir os
riscos práticos de cada uma dessas concepções.
Segundo Kant, as três perguntas fundamentais que o homem pode
se fazer são as seguintes: “O que devo fazer?” é a questão prática
(ou moral); “O que posso saber?” é a pergunta teórica (ou
especulativa); “O que posso esperar?” é a pergunta metafísica e
religiosa. Há, porém, ainda segundo Kant, uma pergunta mais
importante ainda, a pergunta das perguntas, que é a chave para
todas as outras: “O que é o homem?”
Pois da resposta dada a essa pergunta vão depender todas as
respostas que se pode dar a todas as outras perguntas. Imagine,
por exemplo, todas as consequências da definição do homem
enquanto “criatura”. Se o homem é essencialmente e nada mais
que uma criatura de Deus, então isso clareia o sentido da
existência humana, assim como as três outras perguntas; sei
que posso esperar pela imortalidade e pela salvação (ou
danação), sei o que posso saber (tudo o que foi revelado por Deus
aos homens) e, sobretudo, sei o que devo fazer e não fazer: tudo o
que é ditado ou proibido por Deus ou por determinado livro em
que suas vontades estão inscritas, desde a maneira de cozinhar a
carne ou a escolha do cônjuge até o tratamento a ser dado às
mulheres, aos ladrões e aos heréticos.
Poderíamos tomar outros exemplos: o homem somos “nós” em
oposição a “eles”, “nós, os arianos”, os únicos homens
verdadeiros, os outros sendo meros sub-homens; ou então “nós, os
ocidentais”, já que os outros não têm uma civilização universal;
ou ainda “nós, as pessoas da minha tribo”, visto que em muitos
idiomas só existe uma palavra para designar sua própria etnia e a
humanidade em geral. (E se os homens somos nós, então esses
bípedes vivos proferindo sons bizarros devem ser animais nocivos
ou talvez divindades maravilhosas.) Digame, portanto, como você
define o homem e lhe direi o que você acredita poder esperar,
poder saber e ter que fazer.
Obviamente, não se trata de analisar toda e qualquer concepção
possível do homem, apenas de conservar quatro delas pela sua
importância teórica na história das ciências e pela sua
dimensão prática, moral ou política. Vamos tentar evidenciar o
que cada uma dessas definições – seja ela antiga, moderna ou
contemporânea – permite saber e o que ela pode influenciar no
que deveríamos fazer (pois, como veremos, não há muito o
que esperar). Gostaríamos de mostrar que não há conhecimento
científico possível sem uma certa definição do homem; mas que
qualquer concepção sobre o homem traz certas consequências
práticas e até alguns riscos éticos.

A concepção antiga
Nada é mais importante para os antigos que a definição do
homem. Aristóteles é ao mesmo tempo aquele que elaborou uma
das teorias mais completas da definição em geral e aquele que nos
transmitiu a definição do homem mais influente de toda a história
do pensamento. Como definir? A lógica nos dá a resposta. Para
determinar a essência de uma coisa, é preciso situá-la primeiro no
seu gênero, ou seja, na classe à qual ela pertence, aquela cujos
integrantes compartilham as mesmas determinações essenciais. O
que é então o homem? Resposta: um ser vivo, zôon, palavra
geralmente traduzida por “animal”, mas que evoca de maneira
mais abrangente aquele que tem vida, zôe. De fato, todos os
homens são vivos, ao contrário das montanhas ou das estátuas, e,
logo depois de morto, um homem não é mais um homem
propriamente dito; antes um cadáver, um corpo, matéria inerte.
O homem é um zôon: resposta certa, é verdade, porém
incompleta. Ela nos fornece as condições necessárias, mas não
suficientes, para ser um homem. Pois todos os homens são seres
vivos, mas todos os seres vivos não são homens. É preciso,
portanto, responder a uma segunda pergunta, que faz com que a
primeira se encolha sobre si mesma. A pergunta original era: “O
que é o homem?” A segunda interroga a resposta “É um ser
vivo”: “Em que consiste ser um homem para um ser vivo?”, ou
seja, “O que significa viver como um homem?” Precisamos então
achar o que representa para o homem ser o que ele
é. Evidentemente, vamos precisar explicitar os traços
que distinguem o homem de todos os outros seres vivos, o que
chamaremos de “diferença específica”. Teremos assim uma
definição completa, constituída, do “gênero” e da “diferença”, o
conjunto formando o enunciado da essência completa (ou
“quididade”) do homem.
Eis a teoria. Ela é clara e perfeita, logicamente falando, embora
seja incerta e mais difícil de aplicar. Na verdade, Aristóteles
conhece muitas das propriedades do homem: por exemplo, é o
animal que possui o maior cérebro em relação ao tamanho do seu
corpo, ele tem suturas no crânio logo ao nascer, é capaz de rir, etc.
Caracterizar o homem é por conseguinte uma tarefa bastante fácil;
enunciar sua essência é muito mais difícil, pois é preciso
encontrar não apenas uma característica própria do homem, mas
também esse núcleo essencial, universal e necessário que
permita explicar as outras propriedades do homem: é nessas
condições que a definição poderá ser científica.
A essa questão da verdadeira diferença específica do homem
teríamos muita dificuldade de encontrar uma resposta nítida nos
textos de Aristóteles. Mas o que se guardou – ao longo dos dois
milênios em que seu pensamento serviu de referência científica –
está claro, embora não unívoco. Sempre foi dito que Aristóteles
definiu o homem como “animal político” ou como “animal
racional”. Contudo, Aristóteles não fala exatamente em animal,
antes em zôon, em ser vivo. A nuança é importante, porque, se
não podemos afirmar que os deuses são “animais” no sentido
próprio, podemos afirmar – e os gregos foram os primeiros a fazê-
lo – que os deuses são vivos. São imortais, porém vivos. De
maneira que há para os antigos em geral e para Aristóteles em
particular três tipos de zôa, de seres vivos, três espécies de
“faunas” que convivem no universo, cada uma no seu lugar: há os
animais, os homens e os deuses. A diferença desses últimos é
nítida: os deuses são seres vivos imortais, enquanto os animais e
os homens são seres vivos mortais. Mas o que diferencia os
homens dos animais? A pólis ou a razão? É aí que a tradição
hesita.
Na verdade, Aristóteles não dispõe de uma palavra para designar
o que chamamos de “razão”. Ele usa logos, que significa tanto
linguagem (capacidade de se comunicar) quanto razão
(capacidade de raciocinar). Ora, o que faz para ele a
especificidade da linguagem humana é o fato de que não se trata
de um simples meio de veicular informações ou de expressar
emoções, mas uma capacidade de formular enunciados com
“estrutura predicativa”, isto é: com afirmações ou negações,
proposições que permitem dialogar, opor-se um ao outro sobre a
mesma coisa etc. É o logos entendido assim que distingue a
“voz”, presente em outros animais, da fala humana.
Todavia, a diferença específica do homem não seria antes a
vida política? No sentido pleno do termo: o homem não é apenas
um animal social – Aristóteles sabe muito bem que existem outros
animais sociais (as abelhas, as formigas, as vespas, os grous etc.)
que não conseguem viver isoladamente sem o socorro da
coletividade. Viver politicamente é mais do que isso: significa
coexistir não para “sobreviver”, como esses animais, por razões
úteis (não morrer de fome ou ser aniquilado por outras espécies),
mas para “viver bem”, isto é: para ser feliz, a essência do homem
estando realizada perfeitamente somente por e dentro da
comunidade dos seus semelhantes. E essa é uma característica
propriamente humana.
De qualquer maneira, o homem pertence ao gênero “animal” e se
diferencia dos outros animais por uma propriedade essencial. Isso
encerra a questão do método. A lógica aristotélica é uma lógica de
inclusão de classes. Para poder pensar, é preciso categorizar as
coisas, situá-las dentro de classes com todas as que compartilham
a mesma identidade natural e poder incluir essas classes em outras
mais extensivas e assim por diante até as últimas “categorias”. É a
esse princípio que obedecem sua zoologia e sua classificação
sistemática dos animais, entre os quais os homens, classificação
cujas bases permanecerão firmes até Buffon, no século XVIII.
Nesse universo de inclusão de classes, tudo é harmonia, pelo
menos em princípio, pois a própria natureza comete às vezes o
erro de engendrar seres híbridos e até monstros. Mas na teoria
todos os seres possuem uma essêncía, a da espécie à qual
pertencem, e essa essência é concebida como a combinação de
alguns conceitos universais imutáveis.
A lógica, no entanto, não explica tudo, especialmente no caso do
homem ou até dos animais. Definir o homem significa, com
efeito, determinar o lugar e a função de um certo tipo de ser vivo
no universo. E esse cosmo não é apenas um conjunto de lugares,
uma série horizontal e sistemática de classes imbricadas umas nas
outras, mas uma relação de ordem, uma série vertical e
hierarquizada de seres colocados uns embaixo dos outros, do
mais elevado ao mais baixo: os deuses, seres vivos imortais, estão
encabeçando essa escala. Na terra, é o homem que ocupa essa
posição, porque ele dispõe de todas as faculdades possíveis de um
ser vivo mortal, subordinadas umas às outras. Todos os seres
vivos possuem assim a faculdade de se reproduzir, apenas os
animais no sentido próprio possuem a percepção; a maioria deles
é dotada da capacidade de se mover e de desejar; alguns possuem,
além disso, uma faculdade intelectual: a memória; outros têm a
capacidade de aprender e dispõem, portanto, de um conhecimento
empírico; e afinal, lá em cima, há aqueles que, como os homens,
têm acesso ao conhecimento racional.
Consequentemente, a concepção do homem como “animal
racional” (ou talvez como “animal político”) obedece às
exigências gerais de todas as ciências da natureza. O homem
possui uma essência, fixa, determinada, necessária, porque ele
tem um lugar e um só na natureza. Sua essência se encontra na
encruzilhada das exigências horizontais da lógica (inclusão
natural das classes uma na outra) e das exigências verticais da
cosmologia (hierarquia natural das funções no universo).

A concepção clássica
Essa definição do homem como “animal racional” e essa
concepção essencialista e hierárquica do universo sobreviveram
até a época clássica, apesar de várias revoluções na história das
ideias, sobretudo a do cristianismo. Essa corrente soube entretanto
se adaptar a essa definição, reinterpretando-a nos termos do
dogma da encarnação.
Foi a física moderna, aquela que conhecemos desde Galileu e
Descartes, aquela que formula em vez de definições dos seres
naturais leis matemáticas, da natureza, que contribuiu para
inverter essa concepção do homem.
Sabemos como a definição aristotélica do homem foi criticada por
Descartes, que a considerava vazia e vã. Em primeiro lugar por
causa do método usado na definição. “O que é que eu acreditava
ser até agora?”, ele se pergunta na Segunda meditação. “Sem
dificuldade, eu achei que eu fosse um homem. Mas o que é um
homem? Devo eu dizer que é um animal razoável? Claro que não:
pois seria necessário buscar depois o que é ‘animal’ e o que é
‘razoável’ e cairíamos assim insensivelmente com uma só
pergunta numa infinidade de outras, mais difíceis e mais
embaraçosas.” Em outras palavras, o método que consiste
em me definir como um homem, em encontrar depois o gênero do
homem e sua diferença específica, assim como ensinava
Aristóteles, não me acrescentaria nada e levaria na melhor das
hipóteses a uma regressão infinita. Será que não existe um método
de análise mais instrutivo do que aquele que consiste em colocar
os seres dentro de classes e essas dentro de outras classes? Esse
método será a análise metafísica, numa nova acepção do termo.
Descartes também vai instituir uma relação de necessidade entre
uma definição do homem e as ciências da natureza. Mas não é a
mesma. Sabemos que, querendo fundamentar todo o
conhecimento científico em algo “firme e seguro”, ele o baseia na
certeza de sua própria existência. Pois o fato de existir é
indubitável para cada um de nós, desde que tenhamos consciência
disso. “Penso, logo existo.” À primeira pergunta “O que existe
indubitavelmente?” a resposta é clara: eu próprio. Logo surge
uma segunda após a da existência, a pergunta da essência: “O que
é essa coisa que existe indubitavelmente?” E não mais – como em
Aristóteles – “O que é o homem, em geral?” (definição que
poderia valer para mim mesmo, já que sou um homem), mas, ao
contrário, “O que sou eu, em particular?” (definição que também
poderia valer para qualquer homem, já que todo homem pode
dessa maneira tomar consciência de si mesmo). A resposta de
Descartes é “Eu sou uma coisa que pensa”, e este homem, eu, é
definido antes de tudo pelo pensamento, coisa pensante: “Acho
aqui que o pensamento é um atributo que me pertence: é a única
coisa que não pode se desprender de mim. […] Precisamente
falando, eu sou então apenas uma coisa que pensa, ou seja, um
espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cujo
significado eu até então desconhecia.”
Vamos medir o abismo que separa a “coisa que pensa” de
Descartes do “animal racional” de Aristóteles. Lembramos que a
racionalidade (ou a linguagem) é para Aristóteles quando o
homem toma consciência de seu modo de vida, de sua
animalidade. Acontece que a racionalidade não é para Descartes
uma característica específica do animal ou do ser vivo que sou,
porque o pensamento se opõe traço por traço à animalidade, isto
é, ao corpo. Sou um ser pensante (e logo também racional) visto
que não sou animal, e os animais não são pensantes porque são
animais. Continuo sendo uma coisa pensante e sempre o serei,
quaisquer que sejam as modificações do meu corpo vivo e mesmo
que eu não possua um corpo vivo, o que talvez venha a ser o caso
se eu deixar de ser vivo: se eu morrer. Os animais ou até os
outros seres vivos não humanos não são pensantes, eles não
pertencem ao mesmo gênero ontológico que o homem, eles não
surgem da mesma substância. O homem é pensamento, ou seja,
consciência: esse é o próprio do homem.
Em que isso funda as ciências da natureza? Precisamente no fato
de que se o homem é pensante, se a natureza no homem é de
pensar, de pensar sem parar, de pensar assim que ele existe e de
existir assim que ele pensa, a natureza fora do homem não é de
pensar, aliás, é de não pensar nem um pouco: existe consciência
no homem, mas apenas nele. O homem é capaz de conhecer todo
o resto da natureza porque ele não tem a mesma natureza que o
resto da natureza. O homem é capaz de pensar, logo, de conhecer;
a natureza não é pensante e é por isso que ela é conhecível. Há
duas substâncias: a substância pensante (res cogitam) ou, se
preferir, sua alma, à qual todo homem pode fundamentalmente se
identificar; e a substância estendida (res extensa), ou seja, seu
corpo, de que é constituído tudo o que vemos ou tocamos.
Obtemos essas duas substâncias por subtração: o pensamento é o
que sobra quando eu suprimo tudo o que é corporal, dentro ou
fora de mim; o corpo é o que sobra quando suprimo tudo o que é
pensamento, ou seja, consciência. A alma é uma substância
completa sem o corpo, e isso é fundamental no plano metafísico,
mas o corpo é uma substância completa sem a alma, e isso é
fundamental no plano da física. O pensamento é inteiramente
interior, sem exterioridade, enquanto o corpo é inteiramente
externo, sem interioridade. A natureza só é corpo, isto é, uma
mesma e única matéria homogênea no espaço; ela só obedece às
leis universais da conservação e da transmissão do movimento,
leis expressáveis matematicamente como relações entre
tamanhos: não há nada a mais na natureza a não ser esses corpos
sem mistério; não há almas, qualidades ocultas, não há cores nem
cheiros, nada de obscuro ou de confuso, nenhum ser vivo,
nenhuma alma hierarquizada, somente uma corporeidade móvel,
como uma imensa máquina regulada por engrenagens que
transmitem em diversas direções e pouco a pouco movimentos
que representam toda a variedade aparente das espécies chamadas
de vivas.
Pois a vida não é a propriedade de certos seres, dos animais e dos
homens, ou até dos deuses, mas uma particularidade de algumas
mecânicas corporais. Um corpo vivo é como um relógio ou um
órgão de igreja, ou ainda como um autômato hidráulico: a
fisiologia é somente uma mecânica e a própria mecânica é
somente uma geometria. Os animais não pensam, mas isso não
significa que eles não tenham acesso ao raciocínio. Significa mais
radicalmente que eles não possuem nenhuma forma de
consciência, de percepção ou de sensibilidade e que nada os
diferencia fundamentalmente de qualquer autômato. Contudo, o
homem não é para Descartes um puro espírito racional, mas a
união muito estreita entre uma alma e um corpo, de maneira que
este pensamento ou seja, a consciência, que é de fato própria ao
homem – não é sempre essa racionalidade clara e distinta a que
ele pode se elevar quando aplica um método, mas ele é também
sentimento (isto é: percepção) e paixão (isto é: emoção) por causa
de sua relação substancial com um corpo específico. Apesar disso,
ainda podemos nos conceber como sendo unicamente uma coisa
pensante, o que comprova que a alma pode existir sem o corpo.
Logo, podemos ver como essa definição do homem pela
consciência é correlacionada a um projeto científico de
conhecimento da natureza. A natureza pode ser um objeto
conhecível pelo homem porque ela é apenas corpo sem nada de
misterioso: é simplesmente uma figura geométrica mensurável
animada por um movimento calculável; e o homem pode ser um
sujeito cognoscitivo, porque ele é só pensamento, que, aliás, não
tem nada de misterioso: é uma simples consciência de si e das
coisas. Na visão cartesiana do mundo, a definição do homem pelo
pensamento permite libertar a natureza de tudo o que não se
concebe matematicamente e, portanto, fundamentar toda a física
moderna.
Seria obviamente abusivo inferir disso que essas ciências – a
física matemática ou até a mecânica clássica – precisaram de uma
definição do homem desse tipo. Possivelmente, elas teriam
conseguido dispensar por completo a filosofia. Todavia, é notável
que o projeto cartesiano de fundamentação da mecânica clássica
em bases epistemológicas e metafísicas sólidas tenha feito desse
apoio seu ponto de Arquimedes.
Eis então duas definições da natureza do homem, a de Aristóteles
e a de Descartes. De um lado, em Aristóteles, por um método de
análise lógica, pode-se definir o homem classificando-o no seu
lugar, horizontal e vertical, entre as outras substâncias: as que são
naturais, as que são vivas, as que são animais e, finalmente, as
que, por serem políticas, usam a linguagem racionalmente. O
olhar sobre o homem é objetivo: é aquele do naturalista
observando seu objeto de fora, como se observa a natureza em
geral. É enquanto físico (“naturalista”) que se define o homem.
Do outro lado, em Descartes, por um método de análise
metafísica, não se procura uma definição do homem, mas sua
especificidade – a consciência – por meio de uma reflexão sobre
sua própria atitude de sujeito cognoscitivo e não através da
observação do homem e da comparação entre espécies naturais. A
característica própria do homem – o pensamento – permite que
ele seja sujeito das ciências naturais e exclui que ele possa ser
objeto delas. Eis então uma segunda definição do homem, que
também teve muitos herdeiros, sobretudo entre os filósofos e até o
século XX: o homem é pura consciência, é a única consciência, o
homem é sujeito, é o derradeiro sujeito, o homem é sujeito
pensante, cognoscitivo, ativo; todo o resto é objeto – de
conhecimento, de ação, de produção.
Em ambos os casos, a definição do homem permite fundar as
ciências da natureza. A física é possível, para os antigos e
principalmente para Aristóteles, porque nada é vão na natureza;
tudo tem uma função, uma finalidade; tudo tem um lugar
determinável e um só. A física é possível para os modernos e
principalmente para Descartes, porque tudo o que está fora de
nós, os homens, é um corpo sem qualidade, apenas mensurável e
quantificável, submetido à universalidade das leis da natureza e
apenas à causa motriz que permite saber por que o que acontece
(queda de um corpo, arco-íris, movimento de um pêndulo etc.)
ocorre necessariamente, mas também permite prevê-lo com toda
certeza, portanto, de produzi-lo e reproduzi-lo. A definição do
homem pelo pensamento é correlacionada a uma revolução para a
ciência moderna: a natureza pode ser pensada pela matemática, as
ciências da natureza se confundem com a geometria, ciência
universal. Essa mesma definição também constitui um passo
decisivo para a técnica moderna: pois se a natureza – e
consequentemente o que é vivo, e até o corpo humano – é
submetida apenas à causa motriz, basta conhecer a causa e a lei
matemática que a conectam ao efeito para poder reproduzir sem
fim esse efeito: é o que permite na idade clássica fabricar
autômatos cada vez mais aperfeiçoados, e mais tarde descobrir
remédios cada vez mais eficazes, ou ainda ir à Lua.

O homem das “ciências humanas”


O homem não está na natureza, ele está fora dela para poder
conhecê-la e dominá-la. Toda a física moderna, pelo menos até
meados do século XX, nasceu desse gesto. O homem não é um
objeto científico, ele é o sujeito da ciência. No entanto, e de certa
maneira em decorrência dessa revolução científica da idade
clássica, o homem também vai poder se tornar objeto científico.
Como o mostra M. Foucault em As palavras e as coisas, “antes
do fim do século XVIII, o homem não existia”, no sentido de que
ele ainda não tinha adquirido o estatuto de uma entidade
conhecível cientificamente, embora várias disciplinas já tivessem
estabelecido como objetivo o estudo dos fatos propriamente
humanos, por exemplo, a “riqueza” ou a “gramática”. Todavia,
logo na virada do século XVIII para o XIX, o estatuto
epistemológico do homem muda. O homem deixa de ser o sujeito
soberano do saber da idade clássica, ele chega a essa “posição
ambígua de objeto de um saber e de sujeito cognoscitivo”.
Já no século XIX, de fato, e ao longo de todo o século XX, vão
ser desenvolvidas novas ciências que tomam o homem como
objeto e que vão, por conseguinte, redefini-lo de uma maneira
completamente diferente. Essas ciências não estudam o homem
em geral, mas o que nele há de propriamente humano: as
instituições ou as relações sociais para a sociologia, a cultura para
a etnologia ou a antropologia cultural, o destino dos povos para a
história, as funções intelectuais para a psicologia, o inconsciente
para a psicanálise, a linguagem articulada para a linguística etc. É
verdade que num certo sentido todos esses objetos já tinham sido
estudados, sob outras formas ou sob outros nomes, pela reflexão
clássica. O que muda com as “ciências humanas” é a imagem
global do homem, e ela leva na sua mutação todos os objetos
esparsos que giravam em torno dele. Pois as novas ciências,
inovadoras no século XIX e triunfantes no século XX, se baseiam
todas, apesar de estarem dispersas, em dois pressupostos comuns
sobre o homem: seu anticartesianismo e seu antinaturalismo.
Contra Descartes, o homem não é sujeito. E, longe de ser um ser
natural como os outros, o homem conquista sua própria natureza
contra a própria natureza.
A ideia de ciência humana implica, com efeito, que o homem não
é sujeito, nem sujeito cognoscitivo (ele não sabe o que é, e cabe
então à ciência dizê-lo) nem sujeito de ação (pouco importa o que
ele pensa, ele não domina suas próprias ações, e a ciência mostra
isso). O homem não sabe o que ele é. Seria trivial afirmar que isso
significa apenas que ele desconhece o que é: desde a Antiguidade,
a história lhe lembra um passado esquecido, a gramática lhe
mostra feições despercebidas de sua própria língua. Mas, para as
novas ciências humanas, há muito mais: o homem não está
somente na ignorância de seu ser, mas também está na ilusão
sobre esse ser. Além de o homem não ter acesso a si mesmo
espontaneamente, o que está ao seu alcance é necessariamente
enganador. Todas as ciências preenchem as ignorâncias da
consciência, mas as ciências humanas fazem mais: elas
denunciam as mistificações sofridas pela consciência. A história
tem que mostrar de agora em diante como o homem se tornou na
verdade o que ele acredita ser desde sempre; a sociologia tem que
mostrar que seu ser verdadeiro não é aquele que ele percebe, mas
que depende do parentesco, do grupo social, da classe, das
relações sociais; a psicanálise deve revelar quais os desejos
inconscientes que estão no centro da vida psíquica etc.
Tomemos alguns exemplos. Durkheim, fundador da sociologia,
enuncia que a primeira Regra do método sociológico consiste em
estudar os fatos sociais como coisas; (e não como estados da
consciência humana) porque são externos ao indivíduo e devem
ser explicados “pelas modificações do meio social interno e não
pelos estados da consciência individual”. F. de Saussure, um dos
fundadores da linguística, dá-lhe como objeto a língua, realidade
cujo sistema e cuja evolução escapam à consciência e à vontade
dos indivíduos como à das comunidades. Outros linguistas da
mesma linhagem, como Benveniste, se aventuraram mesmo assim
no terreno do discurso tal como é proferido pelo indivíduo; mas é
para insistir no fato de que o pensamento humano é sem querer
modelado, pré-formado pelas estruturas linguísticas, já que
“pensar significa manusear os signos da língua”.
Qualquer homem acredita que pode dizer o que pensa, mas na
verdade é o contrário: ele só pode pensar o que consegue dizer e
porque uma determinada língua lhe permite que o diga. É uma
verdadeira inversão do cartesianismo: não é porque penso que
consigo dizer o que penso; é porque posso dizer “eu” que consigo
dizer, e inclusive acreditar, que sou uma coisa pensante. Freud é
obviamente a encarnação por excelência dessa nova concepção do
homem. Ele não para de colocar sua obra na linhagem de todos
esses cientistas que abalaram o egocentrismo humano: Copérnico
mostrou que a Terra onde o homem reside não é o centro do
mundo; Darwin mostrou que ele é apenas mais uma espécie entre
outras na ordem natural. A psicanálise inflige um terceiro golpe à
megalomania humana, mostrando “ao ego que ele nem manda na
própria casa e que ele tem que se contentar com informações raras
e fragmentadas sobre o que está acontecendo fora de sua
consciência na sua vida psíquica”.
Nem consciência transparente sobre si mesmo, nem autor
soberano de seus próprios atos, o homem se transforma de agora
em diante em sujeito. As ciências humanas enunciam – e às vezes
denunciam – as mistificações dessa consciência que acredita ser
sujeito. Mas é porque se engana achando que é sujeito que o
homem pode ser objeto, visto que é a distância entre o que ele é e
o que acha que é que constitui o próprio objeto das ciências
humanas.
Esse homem das ciências humanas possui outra característica,
dessa vez mais antiaristotélica que anticartesiana. Ele se define
em oposição ao resto da natureza. Ele não é apenas um animal
diferente dos outros, ele é um animal desnaturado. Tudo o que
lhe é característico é determinável por negação ao que é
característico da natureza. A natureza se caracteriza pelas leis
universais, a cultura se caracteriza por regras infinitamente
variáveis segundo os grupos humanos, de maneira que nenhuma
delas é universal. Eis o que funda a antropologia cultural: o
animal se nutre do que encontra, o homem cozinha seus alimentos
e se impõe várias restrições e proibições em relação aos
alimentos; o animal se reproduz com parceiros sexuais erráticos, o
homem se impõe regras de casamento exogâmicas e se proíbe
vários atos, como o incesto etc.
Ao instinto natural dos animais se opõem as instituições sociais,
eis o que a sociologia analisa. Em oposição à evolução espontânea
das espécies naturais, o destino propriamente humano dos povos,
eis o que a história estuda, pois o homem é todo histórico, tudo
nele é herdado.
Em oposição à comunicação animal, na qual qualquer sinal se
refere a uma e única situação externa, o sinal humano é arbitrário:
ele varia segundo os idiomas e se define em relação a todos os
outros sinais da língua etc. Em oposição à necessidade animal,
biológica, como a fome, a sede ou o cio, que se esgotam na
possessão de seu objeto e na sua satisfação, há o desejo
propriamente humano, indefinido, insaciado, recalcado,
sublimado, que volta sob formas deslocadas, condensadas,
simbólicas: eis o objeto da psicanálise.
É assim que as ciências humanas, sobretudo as ciências sociais,
não raro precisam, para defender sua própria existência, insurgir-
se contra a “ilusão naturalista” que consiste em recorrer a uma
explicação de tipo biológico ou mais geralmente extrassocial para
explicar fenômenos sociais: apelo à hereditariedade ou à genética
(explicações biológicas), mas também ao ambiente natural
(explicação ecologista), às faculdades humanas gerais (explicação
cognitivista). Nesse embate, as ciências sociais se apoiam no fato
inegável de que o procedimento comum de justificação moral de
certas práticas, normas, proibições (por exemplo, a sexualidade
monogâmica heterossexual, a opressão das mulheres, a
desigualdade social etc.) consiste em alegar que, sendo essas
práticas “naturais”, sua transgressão ou contestação seria
“anormal” e consequentemente inadmissível. Daí a vontade
simétrica, por parte das ciências sociais, de mostrar que as
instituições nada devem à natureza, e que de modo mais geral
nenhuma norma humana é natural. Mais concretamente, para
poder modificar ou abolir determinada concepção considerada
moralmente inaceitável ou politicamente injusta, as correntes
mais militantes das ciências sociais acreditam que devem mostrar
que essa concepção é socialmente “construída”.
Mas, mesmo que essa posição seja inversa ideologicamente em
relação à·anterior, ela é baseada na mesma confusão, a do
“sofisma naturalista”: acreditar que o natural, em qualquer sentido
do termo (genético, universal, nato, espontâneo, não escolhido
etc.), é por isso mesmo legitimado; confundir o descritivo com o
normativo, o ser com o dever-ser. Podem defender, moralmente
ou politicamente, qualquer norma ou instituição porque ela é
natural – ou justamente porque ela não o é! A natureza não é em
si uma fonte de legitimidade – nem de desvalorização, aliás.
Que o “egoísmo” seja “natural” ou não, em qualquer sentido da
palavra, não é um motivo para não combatê-lo pela educação; o
fato de que o infanticídio seja natural (visto que é frequente na
maioria das espécies de primatas próximas a nós, como nos
chimpanzés ou nos gorilas, por parte dos machos dominantes ou
até, às vezes, das fêmeas) não o legitima. Inversamente, que a
homossexualidade seja “natural” ou não (em que sentido:
universal? Nata?) não é um motivo para combater as segregações
homofóbicas. Seria preciso combatê-las por razões meramente
morais e políticas, por exemplo, pelo direito à orientação sexual,
pela luta contra as diferentes formas de segregação, etc.
Mais profundamente, o antinaturalismo no qual se fundamentam
as ciências humanas tem raízes tão profundas e constitutivas
quanto seu anticartesianismo. Elas precisaram encontrar um modo
de existência para seu objeto, o homem, que lhes permitisse
diferenciar seu próprio tipo de científicidade: o homem se engana
necessariamente sobre quem ele é, o que ele faz, e cabe a elas
mostrá-lo. Além disso, elas precisaram encontrar um modo de
existência para si mesmas que as diferenciasse do outro modo de
cientificidade existente, o das ciências naturais. O homem que
elas estudam, no seu psiquismo, na sua língua, na sua vida social,
na sua cultura, só podia ser antinatural. Ele tinha que ser
antissujeito para se tornar objeto científico e antinatureza para se
tornar objeto das ciências humanas.
Eis então uma terceira definição do homem, a das ciências
humanas: o homem é esse ser que não pode se dar conta do que
ele é, nem dominar o que ele faz, e cuja natureza própria consiste
em se opor à natureza fora dele. Essa definição responde,
portanto, às duas perguntas anteriores, à de Aristóteles e à de
Descartes. Contudo, e como elas, ela é correlacionada a uma
exigência científica, marcando o nascimento de um novo grupo de
ciências e justificando-as: não a lógica e a cosmologia nem as
ciências físicas matemáticas, mas dessa vez as ciências humanas.
Todavia, como o paradigma cartesiano se opusera ao paradigma
aristotélico e triunfara na época clássica na ordem das ciências
naturais, um novo paradigma talvez esteja triunfando hoje sobre
aquele das ciências humanas, na ordem do conhecimento do
homem. O que nos levaria a uma quarta definição do homem.

O homem, ser natural entre outros


Vimos como, para Foucault, um novo objeto científico se
constitui a partir do fim do século XVIII: o homem. Quando ele
escreve As palavras e as coisas, no início dos anos 1960, as
ciências humanas (sobretudo a etnologia, a linguística e a
psicanálise) vivem sua época de ouro em torno do paradigma
estruturalista e do conceito do simbólico.
Sabemos, no entanto, com que palavras – e elas na época
causaram um pequeno escândalo – acaba. As palavras e as
coisas: “O homem é uma invenção e a arqueologia de seu
pensamento mostra bem sua origem recente e talvez seu fim
próximo.” Foucault sem dúvida tinha razão: essa “morte do
homem” que ele predisse vem acontecendo desde a virada do
século. Um novo paradigma está se impondo em detrimento das
ciências humanas triunfantes no século XX. Uma nova imagem
do homem torna cada vez mais obsoleto o homem das ciências
humanas e com ele a onipotência do “simbólico”, do inconsciente
representativo, da cultura em oposição à natureza ou do “social”
em oposição ao biológico; ela não nasce de fora das ciências
humanas, mas se deve ao prodigioso desenvolvimento das
ciências dos seres vivos e de suas várias dependências:
neurociências (apoiadas nas imagens cerebrais digitais e nas
novas técnicas da biologia molecular, que permitem observar o
cérebro em ação), biologia da evolução, primatologia, etologia,
paleoantropologia, assim como disciplinas mais “polêmicas”, tais
como a sociobiologia, a psicologia evolucionista etc.
No caso das ciências cognitivas, podemos tranquilamente falar
num novo “paradigma” que está substituindo aquele das ciências
humanas de meados do século passado. Como as últimas, as
primeiras se revelam capazes de reunir um conjunto muito vasto
de disciplinas, ainda mais vasto do que o paradigma estruturalista
do século passado: trata-se da linguística, da psicologia, da
antropologia, mas também das neurociências, da informática e da
lógica, entre outras. As ciências cognitivas determinam programas
de pesquisa científica ambiciosos (a psicologia evolucionista ou a
biossemântica, por exemplo) e geram teorias filosóficas locais ou
globais (filosofia do espírito) que pegam carona com elas.
Em comum, elas têm uma orientação metodológica (naturalista),
um mesmo pressuposto metafísico (o monismo materialista), uma
mesma ideia do homem (uma espécie biológica) e um mesmo tipo
de objeto: é o pensamento, seja ele humano, animal ou artificial,
ou, mais genericamente, todo o sistema de aquisição, de
conservação ou de uso dos conhecimentos (percepção, memória,
raciocínio, cálculo), cujo modelo continua sendo o cérebro
humano. As controvérsias que as opõem às ciências humanas em
torno dessa nova imagem do homem – como em todos os casos de
concorrência entre paradigmas científicos – acrescentam aos
embates epistemológicos e às disputas metodológicas debates
ideológicos e políticos, chegando até a imputações recíprocas,
condenações e anátemas. A fim de caracterizar em uma palavra
esse conceito do homem que surgiu na virada do século XXI,
podemos dizer: é um ser natural como todos os outros, é um
animal, nem mais, nem menos.
Porém, não se trata em nenhum momento de um retorno a uma
posição aristotélica. Em primeiro lugar, Aristóteles é um
naturalista fixista que pensa que todas as espécies – definidas
como conjuntos de indivíduos essencialmente idênticos e
suscetíveis de se reproduzir entre si – são definidas uma vez por
todas, sem poder evoluir, mutar, se transformar umas nas outras,
surgir, se extinguir, etc. É porque é fixista que ele consegue dar
uma definição das espécies e sobretudo do homem, por
combinação de conceitos universais: o homem tem para si uma
essência eterna e necessária.
O naturalismo contemporâneo é evolucionista. Lembramos que o
gênero chamado Homo teria aparecido há dois milhões de anos
segundo as estimativas, mas que o Homo sapiens moderno só
apareceu há algumas dezenas de milhares de anos; e hoje sabemos
que ele conviveu durante vários milhares de anos com outras
espécies humanas, entre elas os neandertais, desaparecidos há
cerca de vinte mil anos, talvez exterminados pelos nossos
ancestrais, quando eles eram na época pelo menos tão “humanos”
quanto eles: os neandertais andavam eretos numa bipedia perfeita
(ao contrário de nossos primos hominídeos, os chimpanzés e os
bonobos, que têm uma bipedia apenas ocasional), eles tinham
uma capacidade craniana superior a 1.500 centímetros cúbicos,
um crânio arredondado e uma face achatada, assim como uma
vida cultural e social, ferramentas de pedra talhada aperfeiçoadas
e diversificadas (bifaces, raspadores), o domínio do fogo e
provavelmente preocupações metafísicas, visto que praticavam
ritos funerários.
No novo paradigma cognitivista, portanto, o estudo do homem
não é separado de uma perspectiva comparativista (confronta-se a
vida social ou cultural dos humanos com a das espécies próximas
ou desaparecidas) nem de uma perspectiva evolucionista
(pergunta-se como e por que determinada capacidade humana
surgiu). Um programa recente de pesquisa, a “psicologia
evolucionista” (variante cognitivista da sociobiologia) parte, por
exemplo, do fato de que a maior parte da evolução humana
ocorreu em circunstâncias que não mais existem hoje e de que o
nosso tipo de cérebro apareceu como fruto da seleção natural
durante o Pleistoceno para explicar por que certos
comportamentos e estados internos que nos caracterizam hoje não
são mais adaptados ao nosso ambiente contemporâneo. De fato, o
prazer de comer açúcar e gorduras nasceu da escassez desses
recursos energéticos no ambiente pré-histórico. Ocorre que esses
alimentos hoje são de fácil acesso e que esse gosto natural por
açúcar e gorduras pode ter consequências deletérias
(antiadaptativas) no ambiente atual (obesidade, diabetes). O
homem é um animal como os outros, e isso implica que ele não
possui essência fixa.
A segunda grande diferença com o naturalismo antigo é a
seguinte: ela se deduz da diferença anterior. A humanidade não
pode mais ser definida como uma espécie no sentido clássico,
pela combinação lógica de traços constantes e universais que
todos os membros possuem de maneira idêntica e que lhes são
próprios. É uma população no sentido em que ela é estudada pela
genética de Mendel, ou seja, um conjunto de indivíduos que
mostram uma alta probabilidade de cruzar entre si, porém entre os
quais não há nem permanência nem identidade. No máximo uma
semelhança global inseparável de diferenças individuais
indefinidas e graduais, seja no conjunto considerado num dado
momento ou entre duas gerações. O homem é um animal como os
outros, o que implica então que ele não possui nenhuma essência
universal e necessária.
Isso não quer dizer, no entanto, que não existam traços
propriamente humanos. Com efeito, qualquer espécie se
diferencia das outras por meio de propriedades específicas.
Existem, por exemplo, muitas espécies chamadas de “eussociais”,
isto é: organizadas em castas com uma rainha – única fêmea
reprodutora -, um pequeno harém de reprodutores machos e uma
imensa população de soldados e de operários estéreis. Mas todas
as espécies eussociais, as formigas ou os cupins, por exemplo, são
insetos, com exceção dos ratos-toupeiras-pelados do chifre da
África. Podemos dizer então que elas se singularizam, dentro dos
mamíferos, pelo seu modo de vida eussocial, e dentro das outras
espécies pelo seu estatuto de mamíferos. Todavia, não é porque
uma espécie possui traços específicos que ela é menos natural do
que outra, e não há nenhum motivo para afirmar que as
características consideradas próprias do homem – e que às vezes o
são, outras vezes não – se definem em oposição a suas
características naturais.
Tomemos alguns exemplos das novas abordagens dessas
propriedades supostamente humanas. A mente? Sabemos hoje
com certeza, contra Descartes, que o homem não é o único ser
consciente. Também sabemos que quase nenhuma das faculdades
do espírito humano não pode ser presente em outros cérebros.
Tomando como hipótese condutora a ideia segundo a qual os
fenômenos mentais só constituem uma classe específica de
fenômenos naturais, as ciências cognitivas recusam a ideia de
uma dualidade irredutível entre o físico e o mental. Outro traço
supostamente típico do humano: a racionalidade. Mesmo que se
encontre uma definição indiscutível dessa faculdade, ela
provavelmente não constitui uma “diferença específica” da
humanidade: o cérebro dos chimpanzés parece não somente capaz
de performances intelectuais comparáveis às dos homens, como
os computadores podem efetuar tarefas puramente intelectuais
bem superiores a qualquer cérebro humano.
Pode-se objetar que foi justamente o homem quem foi capaz, com
seu cérebro de hoje, de conceber e realizar o computador – o que
é totalmente correto. Será que isso comprova, no entanto,
capacidades intelectuais superiores àquelas que foram necessárias
aos neandertais para fabricar ferramentas de pedra talhada na
época musteriense, há 30 mil anos? Provavelmente não, se
lembrarmos que as capacidades cognitivas e, consequentemente, a
inteligência dos homens parecem estar estáveis há pelo menos 50
mil anos (época da última mutação genética do cérebro).
Quais são então as diferenças entre os primatas superiores e nós?
E como explicar o computador? O computador se explica por uma
característica muito peculiar da cultura: seu caráter acumulador.
Mas a cultura, considerada nesse sentido, não se opõe em nada à
natureza. É um modo de transmissão peculiar dos conhecimentos
e das práticas da espécie, que não é biológico e que já é presente,
sob uma forma não cumulativa, em algumas espécies de primatas.
Pensem na maneira como os macacos do Japão se mostraram
capazes de transmitir de uma geração para outra a técnica de
lavagem das batatas-doces, descoberta pela fêmea Imo em 1950:
alguns anos mais tarde, quase todos os membros do grupo eram
capazes de lavar seus alimentos.
Apenas os que tinham mais de dez anos na ocasião da descoberta
nunca aprenderam, provavelmente porque não olhavam muito
para os mais jovens. Depois, a tradição foi transmitida de mãe
para filhotes: esses aprendem seguindo sua mãe na água e
pegando os pedaços que ela deixa cair. A diferença entre a cultura
animal e a humana parece antes de grau que de natureza, e essa
própria diferença (isto é: o crescimento exponencial da cultura
humana) deve poder se explicar pelas leis da evolução biológica.
Quanto aos modos de difusão de um traço cultural dentro de uma
determinada população, é possível analisá-los usando os próprios
modelos da difusão genética, assim como várias teorias
concorrentes tentam mostrar atualmente.
Sobra talvez uma faculdade propriamente humana, a linguagem.
Mas é preciso analisar sua especificidade com precisão. Muitas
espécies animais, como os macacos-verdes, dispõem de sistemas
de comunicação complexos, que, contudo, não passam de códigos
de sinais mais ou menos aperfeiçoados. A cada mensagem, um
único sinal: um determinado grito para avisar da presença de uma
serpente; outro para avisar da presença de um guepardo; outro
ainda para avisar da presença de uma ave de rapina. O que é
específico à linguagem humana é sua capacidade ilimitada:
apenas algumas dezenas de sons podem ser combinados entre si
para formar alguns milhares de palavras, as quais podem por sua
vez ser combinadas entre si seguindo as regras da sintaxe para
formar uma infinidade de frases; até que uma criança seja capaz
de entender o tempo inteiro frases que ela nunca ouviu ou de
produzir frases novas, o que não tem mais nada a ver com um
código de sinais. Essa propriedade singular da linguagem foi de
fato descoberta pela linguística do século XX.
Porém, quando analisadas pela linguística cognitivista, as
questões que a linguagem coloca não são as mesmas do que sob o
paradigma estruturalista. Por exemplo: como uma mesma sintaxe
universal, naturalmente implantada na mente humana, permite a
criação de um número indefinido de idiomas? Quais são os traços
invariáveis desses idiomas? Ou ainda: por que não foi mais
vantajoso do ponto de vista adaptativo fixar no genoma o idioma
em si em vez de uma faculdade de aquisição dos idiomas?
Então, existem realmente duas imagens opostas do homem, que
correspondem a dois paradigmas científicos: de um lado, o
homem é um não sujeito antinatural; do outro, ele é um animal
como os outros, provavelmente com particularidades singulares,
todas elas tão naturais quanto a de todas as demais espécies.
Vão perguntar: por que opor essas duas ideias do homem? Será
que é impossível dizer simplesmente que o homem é um ser ao
mesmo tempo natural e não natural; que uma parte dele é
hereditária, dependendo de fatores biológicos, logo, inatos; e que
outra parte é herdada, dependendo de fatores culturais, logo,
adquiridos? Sim, dizer isso é fácil. Mas o problema está mal
colocado. De fato, com proposições tão genéricas a respeito do
homem, todo mundo vai estar de acordo: o que está em jogo é
pequeno demais, quase inexistente. Mas não se trata de definir o
homem de maneira abstrata ou meramente especulativa: trata-se
de saber qual é o conceito suposto do homem que fundamenta as
ciências estudando esse homem. E as divergências de fundo
começam logo com as primeiras perguntas concretas, e em
qualquer área. Como, por exemplo, explicar o autismo e a partir
daí propor uma maneira de tratá-lo?
Será que devemos nos referir a uma teoria psicanalítica (distúrbio
da relação com a mãe, carência de simbolização) ou a uma teoria
cognitivista (distúrbio da “agentividade”, de origem genética,
ausência de “teoria da mente” no autista)? Como analisar os
fenômenos religiosos contemporâneos? Por um lado, com
Durkheim e a maioria de seus sucessores sociólogos, eles podem
ser considerados um fenômeno social fundamental que tem por
função conectar ou até cimentar os homens numa comunidade.
Mas, por outro lado, com os antropólogos cognitivistas (Pascal
Boyer ou outros), as crenças religiosas podem ser analisadas
como manifestações de certas peculiaridades da mente humana
em geral. Como, por exemplo, sua necessidade de imaginar
agentes sobrenaturais, dotados de um intelecto e de uma força de
vontade, com os quais mantemos interações espirituais, sobretudo
a respeito da dimensão moral de nossas ações – se for certo que
todas as religiões, apesar de sua imensa variedade, têm como
traço comum a representação dos espíritos interessados pelas
ações do homem. Claro, há outras possibilidades. Mas o que
importa é que não existem um único problema, um único
conceito, uma única prática humana para os quais não se possa
propor pelo menos duas teorias científicas – é sempre possível
encontrar uma teoria ou duas sobre qualquer coisa -, mas de
maneira genérica dois grandes tipos de abordagens metodológicas
opostas, antinaturalista ou naturalista, congregando elas mesmas
diversas teorias possíveis ou até diversas abordagens
disciplinares.
Finalmente, dispomos de quatro conceitos do homem. Poderíamos
descrevê-los segundo um esquema evolutivo: o homem da ciência
moderna, pensado na primeira pessoa, foi edificado para extirpar
o homem da velha ciência natural e principalmente para ajustar
essa última ao pensamento matemático e à causalidade mecânica;
o homem das ciências humanas foi erguido contra a onipotência
atribuída classicamente à consciência, transparente e soberana, e
principalmente para poder construir ciências das quais o homem
possa ser ao mesmo tempo sujeito e o objeto de conhecimento; o
homem das ciências cognitivas foi edificado contra o homem
separado da natureza pelas ciências humanas e esquartejado entre
suas diferentes disciplinas, segundo um duplo projeto de
naturalização e de reunificação do homem.
Mas esse esquema evolucionista, parcialmente legítimo, não deve
ser confundido com uma visão “progressista”, segundo a qual o
novo seria sempre melhor que o antigo. Pois, se formos
considerá-los em si, abstratamente, cada um desses quatro
conceitos do homem parece tão “verdadeiro” quanto o outro.
Parece verdadeiro que o homem seja um animal racional ou
político e não menos verdade que ele seja dotado de uma
consciência reflexiva; parece verdadeiro também que sua
consciência e seus atos sejam determinados por causas psíquicas,
históricas ou sociais; trata-se mesmo assim de um ser natural
como os outros, submetido à evolução e às exigências adaptativas
de seu meio. Dizer que parecem igualmente verdadeiros equivale
a dizer que são provavelmente “falsos”, isto é: eles são
discutíveis. E vão continuar infinitamente discutíveis enquanto
forem considerados fora de seu contexto científico. Recolocados
no seu contexto, não ganham verdade, antes legitimidade. E essa
é igual em cada um dos quatro casos.
É preciso agora passar do plano científico – ou seja, teórico – para
o plano ético – ou seja, prático. Se esses quatro conceitos são
igualmente legítimos de um ponto de vista científico, como ficam
de um ponto de vista ético? Quais as problemáticas morais, as
consequências práticas, os riscos dessas quatro visões do homem?

O avesso do homem de Aristóteles


Para Aristóteles, os homens possuem uma essência: até aí, tudo
bem. Todos são animais políticos ou racionais: tudo bem também.
Mas como pensar a extrema diversidade dos seres humanos senão
como a impossível identificação dos homens com sua própria
essência? O drama da essência é que ela lida mal com a variedade
dos indivíduos. Digamos que todos os homens sejam “políticos”
por natureza. Existe, contudo, uma grande diversidade de
regimes, alguns melhores que outros, pois estão em conformidade
com o interesse geral: pode-se deduzir então que alguns regimes
(como a tirania ou a oligarquia), embora “políticos” num certo
sentido, não estão em conformidade com a essência política do
homem; pode-se concluir também que alguns outros (como a
aristocracia ou a realeza), embora em conformidade com essa
essência, são menos autenticamente políticos que outros, como a
“república”. Logo, entre todos os regimes políticos, alguns são
mais políticos que outros.
Assim que introduzimos um critério normativo (o melhor e o não
tão bom) entre todas as coisas que supostamente compartilham a
mesma essência, vemos que essa variedade é interpretada como
graus na realização da essência. Além do mais, todos os homens
vivem politicamente; mas já que “político” significa “apto a viver
numa pólis”, alguns homens, como os gregos, que realmente
vivem em pólis, são autenticamente políticos; outros, como os
persas, que vivem em grandes reinos, alguns bárbaros que vivem
em tribos selvagens, são, logo, menos políticos e, portanto, menos
homens que os gregos. Vemos então que, entre todas as coisas
que supostamente compartilham a mesma essência, o grau de
realização da essência permite introduzir um critério normativo e
por isso hierárquico: os gregos são superiores aos bárbaros. Então,
o homem é um animal político; todavia, certos regimes, certos
povos, são mais políticos que outros; logo, certos homens são
mais homens que outros. Ora a norma é interpretada como
realização da essência, ora a realização da essência é interpretada
como norma.
Assim acontece com a outra definição possível do homem: o
animal racional. Segundo a visão vertical e hierárquica da ordem
do mundo, que coloca os homens entre os deuses e os animais,
todos os seres naturais são submetidos a esse princípio que diz
que o superior deve mandar no inferior. Todos os homens são
racionais então, mas alguns têm faculdades intelectuais e morais
que os tornam naturalmente aptos ao comando, outros à
obediência, como o corpo obedece à alma, como o desejo é feito
para obedecer ao intelecto, a criança ao parente, o animal ao
homem: igualmente, a mulher é naturalmente feita para obedecer
ao homem e o escravo ao mestre.
Está em conformidade com a harmonia do conjunto da natureza:
tudo no universo obedece a uma feliz e beneficente hierarquia, o
inferior sendo submetido ao superior e o não tão bom ao melhor.
A essa primeira forma de justificação vem se acrescentar uma
segunda: qualquer forma de dominação entre homens é legitimada
tanto pelo interesse dos dominados quanto pelo dos dominadores;
é obrigatoriamente bom para o “escravo natural” obedecer,
porque ele não tem a mente desenvolvida o suficiente para
mandar em si mesmo, do mesmo modo que uma criança
desprovida de pais não pode ser autônoma. Portanto, a essência
do homem se realiza diversamente segundo os homens, para o
bem de cada um e para o bem do Todo.
O que constatamos em Aristóteles? A lógica, a metafísica e o
conhecimento científico da natureza, notadamente a biologia e a
cosmologia, necessitam de uma definição universal – logo, a
priori igualitária – do homem. A natureza do homem é uma,
sempre a mesma, idêntica em todos os homens, e ela é
determinada pelo lugar único do homem no conjunto da natureza.
Mas essa mesma definição tem seu lado sombrio: pois permite
justificar no plano moral e político diversas formas de dominação
entre os homens, dos gregos sobre os bárbaros, dos homens sobre
as mulheres, dos mestres sobre os escravos. Dirão que essa visão
escravagista é própria a Aristóteles ou pelo menos à Antiguidade.
É em grande parte verdade. No entanto, é preciso notar duas
coisas.
Primeiro, a visão hierarquizadora do mundo e do homem vai
muito além da Antiguidade. Todos os argumentos de Aristóteles a
favor da escravidão e particularmente sua concepção dos escravos
“naturais” (isto é, não os que foram conquistados sobre o inimigo
nem comprados na feira, mas naturalmente feitos para obedecer
porque sua natureza não lhes permite politicamente mandar em si
mesmos) foram retomados palavra por palavra no momento da
conquista das Américas, na ocasião da controvérsia que chamam
de Valladolid, entre Sepúlveda, defensor da escravidão dos índios,
e Bartolomeu de las Casas. De fato, apoiando-se em Aristóteles,
Sepúlveda afirma que os ameríndios são “bárbaros, simples,
iletrados, sem educação(…), cheios de vícios e cruéis, de uma
espécie tão ruim que ela seria mais bem governada por outrem”.
O conjunto do universo justifica a dominação exercida pelo
superior sobre o inferior, em nome da própria natureza do
dominado.
Segundo, o que leva Aristóteles à legitimação da dominação é a
articulação de dois princípios: um naturalismo essencialista
(vertical) e uma visão hierárquica (horizontal) da natureza. É o
cruzamento desses princípios que é moralmente perigoso, como
se pode ver sistematicamente em toda a história das ideias. Assim
que se coloca que o homem tem uma essência e uma só, somos
necessariamente levados a pensar que a diversidade dos homens
se explica pela sua proximidade maior ou menor com a essência.
Até agora, nenhum problema. Mas logo que se enraíza esse
afastamento da essência na natureza considerada um conjunto, ou
na natureza de determinados povos, de determinadas culturas, de
um determinado sexo, de determinados indivíduos, cai-se
obrigatoriamente na visão hierárquica do mundo.
É o que acontece, por exemplo, com todos os que definem a
priori os homens como criaturas iguais de Deus, de um único e
mesmo Deus. Igualitarismo de essência, portanto. Porém, vemos
claramente a posteriori que os homens praticam religiões
diferentes. Devemos então concluir que os que não reconhecem o
único e mesmo Deus, o de todos os homens, não reconhecem sua
própria essência e não adotam a verdadeira religião. Então, são
menos homens que os autênticos fiéis, afinal de contas. Temos
que exigir deles (por convicção, por imposição, pela conquista,
pela guerra) que reconheçam sua autêntica essência de homens,
criaturas do verdadeiro e único Deus. O igualitarismo se adapta
finalmente muito bem a uma discriminação real, a desigualdade
de fato não contradiz a identidade da essência. Sempre foi assim.
Quando a essência se baseia numa natureza, ela implica uma
visão hierárquica do mundo. Reciprocamente, quando a essência
cruza um critério de valor, ela sofre da mesma ambiguidade que a
“natureza”: é para descrever como as coisas são ou como elas
devem ser? Eis o avesso dos princípios que governam essa
imagem do homem – que esse seja considerado “animal racional”,
“animal político” ou como se quer. Vemos que eles vão muito
além do seu contexto aristotélico ou até antigo.

O avesso do homem de Descartes


Descartes também é “essencialista”. Ele pensa que a natureza do
homem é constituída pela estreita união entre a alma e o corpo,
mas que a verdadeira essência do homem está somente no
pensamento, somente na alma, separável do corpo, e,
logicamente, no puro exercício do pensamento, na razão, livre da
influência do corpo e de suas paixões. Ele também pensa que os
homens diferem uns dos outros, que eles são mais ou menos
conforme com o que deveriam ser, dependendo do seu grau de
submissão ou de liberdade às suas paixões. Isso, no entanto, não o
leva a uma visão hierárquica dos homens ou dos povos. Para ele,
as diferenças entre os homens estão somente na sua maneira
de conduzir sua razão, o que funda por um lado um método
científico accessível a todos, e por outro, um método moral para
dominar suas paixões, esse também acessível a todos.
Existe, contudo, uma espécie de hierarquia entre os seres do
mundo: Deus, o homem, o resto do mundo. Mas Deus está
infinitamente afastado de nós, a tal ponto que permanece
completamente incompreensível, já que seu entendimento é
infinito quando o nosso é limitado. E, da mesma forma, o resto da
natureza fora de nós (animais, vegetais, minerais, astros etc.) está
infinitamente afastado de nós, seres pensantes: com efeito, abaixo
de nós, só há matéria bruta e uniforme, sem hierarquia possível
entre os diferentes seres que a compõem, visto que os seres vivos,
os animais também, são como o resto: apenas corpos mecânicos.
A natureza fora de nós não nos oferece entre os seres algo que
possa servir de fundamento para uma hierarquia entre os homens.
O essencialismo de Descartes está, portanto, a salvo de qualquer
risco de deslize igualitarista.
Todavia, essa infinita distância que nos afasta do resto da
natureza, esse reducionismo que junta todos os outros seres,
notadamente animais e plantas, num único e mesmo nível, o do
corpo – assim como o correlato científico dessa redução, ou seja,
o mecanismo-, também têm consequências práticas e, logo, riscos.
Como vimos, o fato de que tudo esteja submetido à potência da
única força motriz permite não somente saber como as
coisas ocorrem necessariamente na natureza, mas permite
também produzi-las, e reproduzi-las ao nosso bel-prazer. Se eu
sei como o movimento ou a luz percorrem os corpos segundo uma
lei necessária, a relação de causa e efeito se torna para mim uma
relação de meio e fim, e também sei fabricar autômatos que
obedecem às mesmas leis. Se eu sei como funciona a máquina dos
corpos, também posso tentar fabricar máquinas baseadas no seu
modelo ou esperar curar os corpos doentes de uma disfunção,
assim como se conserta um relógio.
Daí o projeto, a ambição e a esperança de uma concepção e de um
empreendimento desses, inscritos num famoso texto da 6ª parte
do Discurso do método, no qual Descartes explica que do seu
projeto científico de física matemática ele pretende extrair
“conhecimentos que sejam muito úteis para a vida”,
especialmente os sobre a força e a ação de todos os corpos, que
“poderíamos empregar (…) para todos os usos que lhes são
próprios e assim nos tornar como os mestres e donos da
natureza”. Viram muitas vezes nesse texto a origem do projeto
moderno da submissão absoluta da natureza pela onipotência da
técnica.
É verdade, em parte pelo menos, embora os principais benefícios
que Descartes espera dessa “filosofia prática” sejam progressos na
medicina, o que podemos louvar: basta comparar as condições de
vida e de higiene no século XVII e agora.
O risco não está de fato nos progressos técnicos que permitem um
conhecimento científico cada vez mais preciso das leis físicas; ele
está antes na ideia de que eles podem ser “sem limites”; e essa
ideia se baseia na redução de toda a natureza a uma mera
corporeidade da qual nós mesmos somos excluídos, já que
somos pensantes. Por isso, assim como seria absurdo acusar
Aristóteles de ser o “responsável” de certa forma pelo extermínio
dos índios, pelo tráfico dos escravos africanos ou pelo
colonialismo, seria igualmente absurdo acusar Descartes de ser o
“responsável” pela bomba atômica, pela criação industrial de
animais, pela destruição da biodiversidade ou pelo aquecimento
climático.
No entanto, podemos ainda atribuir os riscos do “tecnicismo sem
limites” a certos princípios gerais presentes na filosofia de
Descartes, subjacentes à sua concepção do homem. É a
combinação de um dualismo que opõe o homem à natureza com
um reducionismo que coloca todos os seres naturais num mesmo
plano, enquanto os considera como sendo de uma essência
completamente diferente da nossa. Aproxima-se o perigo de
considerar a natureza um simples instrumento ao nosso eterno
dispor, entregue desenfreadamente à saciedade dos nossos
desejos, com riscos para nós mesmos ou nossos descendentes,
visto que não temos mais o limite que constituiria pelo menos o
respeito de uma hierarquia dos seres naturais: por exemplo, o
valor dos seres vivos em relação à matéria inerte, a dos animais
em relação às plantas, a dos animais que nos são próximos em
relação aos outros e assim por diante. Qualquer corpo, seja ele
orgânico ou não, é apenas uma coisa. Tudo o que não é a gente se
torna consumível, explorável e destrutível ao nosso bel-prazer.
Não é esse perigo que ronda as ciências humanas. Elas não
correm o risco nem de levar à destruição da biosfera que ameaça a
visão cartesiana do homem nem às discriminações que ameaçam a
visão aristotélica do homem. Pelo contrário: o fato de uma das
principais lições da antropologia cultural no século XX ter sido
um relativismo evidenciando as diversas maneiras – sem
hierarquia possível entre elas – que o homem tem de lidar com
seu ambiente e de moldá-lo pôde servir de escudo potente contra
as ideologias não igualitárias ou racistas. O fato de uma das
principais lições da psicanálise ter sido a de relativizar a oposição
entre loucura e normalidade, mostrando que todo homem tem
desejos mais ou menos recalcados – que voltam sob diversas
formas, nos sonhos, na vida cotidiana ou através de sintomas -,
também contribuiu bastante para neutralizar o preconceito secular
que diz existir uma barreira absoluta entre as condutas ou as
fantasias naturais, normais, legítimas, e as condutas ou fantasias
condenáveis, por serem anormais ou não naturais; isso também
contribuiu para nos tornar muito mais tolerantes com as outras
maneiras de desejar, sem rejeitá-las a priori na barbárie. Será que
as ciências são apenas uma escola de tolerância? Será que estão
imunes a qualquer risco?
Nem um pouco. O perigo vem da imagem comum que todas as
ciências humanas devem propor do homem para defender a
legitimidade de seu projeto científico. Elas precisam que o
homem não seja um sujeito. Melhor: é imprescindível que os
homens estejam na ilusão sobre o que são e o que fazem: somente
a ciência pode esclarecer isso. A consequência é que todos os seus
conteúdos sobre consciência são mistificados, logo suas crenças e
opiniões também; na melhor das hipóteses, elas são apenas o
efeito ou o reflexo de um determinismo social: o habitus., a
educação, o meio social, cultural, ou, ainda, os desejos
inconscientes, as fantasias, o destino de suas pulsões.
O que está ameaçado por essa visão do homem são as bases da
democracia, isto é, a confrontação das opiniões, o pressuposto de
sua equivalência, a posição segundo a qual “a cada homem, uma
voz”, a que lhe dita sua convicção individual e apenas ela. Como
conciliar esse homem da democracia, necessariamente sujeito de
suas opiniões, com essa concepção da consciência como o lugar
de todas as ilusões? Que sentido dar à ideia de uma educação dos
cidadãos à liberdade, pelo domínio de seu idioma e pelas
ferramentas de sua própria cultura, se toda educação se contenta
em transmitir o habitus de uma classe e não pode fazer nada
contra os determinismos (familiares, sociais, culturais) aos quais
os indivíduos são necessariamente submetidos?
Essa ilusão da consciência não se manifesta somente
nas crenças de cada sujeito (logo, nas suas convicções), mas
também nos seus atos e consequentemente nas suas vontades,
intenções, no seu consentimento. Não é mais a democracia que
está ameaçada por esse não sujeito, é o edifício todo do direito
racional que se apoia nas noções de responsabilídade individual,
em que cada um (e não a coletividade, o povo, a nação) pode ser
considerado responsável pelo que fez com consciência, pelo que
quis, deliberadamente, e não pelo que foi levado a fazer, contra
sua vontade, por um determinismo psíquico qualquer (como o
homem que está sob o domínio de uma droga ou de uma crise de
demência) ou por um determinismo social qualquer (como a
criança que foi ensinada a roubar ou a matar e que repete o que
aprendeu maquinalmente).
Mas se o direito e, de maneira mais geral, a responsabilidade, se a
própria noção de ato fazem sentido, é preciso que a consciência
em ação, logo, o agente, seja, pelo menos em grande parte, mestre
de si, do que ele faz, do que ele quer. Que sentido dar à oposição
entre um assassinato premeditado e um homicídio por
imprudência se de qualquer forma e mesmo no segundo caso é
sempre a força de um desejo inconsciente do sujeito que se
manifesta? Que sentido dar à distinção entre relações sexuais
consensuais e estupro se de qualquer forma o sujeito nunca sabe o
que ele realmente quer e se engana sempre sobre seus verdadeiros
desejos? Parece óbvio que esse homem das ciências humanas, não
sujeito, não pode ser nem autor de suas convicções nem
responsável por seus atos.
Seria evidentemente absurdo tornar as ciências humanas também
responsáveis pelas ameaças que pesam ou pesaram ao longo do
século XX sobre os fundamentos da democracia e da
responsabilidade penal. Com efeito, não é tanto o homem das
ciências humanas propriamente dito que está em causa, mas,
como nos casos anteriores, os princípios gerais nos quais elas se
baseiam. Todo conhecimento do homem supõe obrigatoriamente
que a consciência seja ignorante sobre si mesmo ou, como diria
Espinosa, ignorante das causas que, independentemente dela
mesmo, a determinam a pensar e querer o que ela pensa e quer.
Não é esse conhecimento nem esse homem que são perigosos
para o exercício da democracia e o funcionamento do direito.
Arriscada é, antes, a ideia muito mais radical (frequentemente
defendida pelas ciências humanas) de que a consciência não
somente ignora as causas que a determinam mas é também
mistificada pelas suas crenças, e, sobretudo, que é preciso que ela
esteja mistificada para que “funcione”. Para que o que funcione?
A História, que para funcionar supõe que os homens acreditem
que são sujeitos que fazem sua própria história quando ela sempre
escapa deles. Ou a sociedade, que para funcionar supõe que os
homens tenham a ilusão biográfica de serem os sujeitos de uma
vida que formaria um conjunto; ou ainda as relações sociais, que
para funcionar supõem que os homens acreditem em certas
ideologias mistificadoras, por exemplo, no mito da unidade do
corpo social, na fábula do contrato social, na impostura da
igualdade dos direitos; ou finalmente: a estrutura psíquica, que
para funcionar supõe que o sujeito esteja iludido sobre o que ele é
e o que ele deseja. No fundo, o deslize arriscado das ciências
humanas começa assim que não se trata mais unicamente
de esclarecer a consciência, de abranger seu campo de
conhecimento e de ação – que é o velho projeto humanista dos
Iluministas -, mas de negá-la como lugar possível de
conhecimento e de ação. Eis como o projeto subjacente às
ciências humanas pode às vezes levar ao pior. Isso explica porque
o paradigma naturalista das ciências cognitivistas não corre o
mesmo risco, embora ele também esteja baseado na tese deter
minista para a qual a consciência – ou a mente – ignora as causas
que a determinam e para a qual a ciência tem como dever
evidenciá-las. O naturalismo não ataca a consciência, ele tenta
explicá-la, como qualquer outro fenômeno natural. Será que ele
próprio é sem risco?
Uma resposta vem imediatamente à mente: será que não é o
naturalismo evolucionista em si que representa o maior perigo?
Será que não deveríamos desconfiar quando pretendem explicar o
homem em termos biológicos, quando pretendem reduzi-lo a seus
genes? Será que não deveríamos ficar desconfiados,
especialmente quando recorrem a argumentos evolucionistas?
Afinal de contas, em que se baseia o racismo, ou até a crença em
raças, se não na essencialização das diferenças naturais e na
imisção dessas diferenças naturais na vida social? Em que se
apoiam a eugenia e as ideologias mais sombrias do século XX se
não na ideia da pureza do sangue, na crença de que a evolução das
espécies deve levar às raças superiores, até ao super-homem, na
convicção (desviada de Darwin, mas realmente inspirada pelas
teses evolucionistas) de que a natureza estaria “mostrando” que é
preciso eliminar os mais fracos? O nazismo se inspira no
darwinismo social de Herbert Spencer, que interpreta a teoria
evolucionista em termos de “seleção dos mais aptos” e conclui
que os povos menos “adaptados” à luta pela sobrevivência teriam
ficado “parados” no estágio primitivo. Daí a luta pela existência
entre a raça germano-ariana produtiva e a raça judia parasita.
Nesse delírio racista e eugenístico, será que é o próprio
naturalismo que está sendo questionado? Afinal de contas, ser
naturalista significa pensar que qualquer explicação boa deve
permanecer imanente à natureza e que não há nisso nada de
perigoso; seria, pelo contrário, sinal de uma atitude racional, sã.
Diremos então que o que constitui um perigo moral, político e
ideológico não é a explicação naturalista dos fenômenos
humanos, mas antes o uso que é feito do evolucionismo. Todos os
seres vivos, entre os quais a espécie humana, são submetidos à
evolução natural. Porém, não basta. O que torna o evolucionismo
perigoso, o que faz com que essa teoria autenticamente científica
possa se transformar numa ideologia perniciosa, é quando querem
casá-la com uma ideia cientificamente incompatível: o
essencialisrno, isto é, a ideia de que o homem é isso. O que
permite a passagem entre “o que é” e “o que deve ser”, como já
vimos, é o fato de crer que os indivíduos, apesar de suas
diferenças, têm uma identidade de essência que, mesmo que ela
não consiga definir o que eles são (já que são todos diferentes),
indica o que eles deveriam ser: determinada cultura, determinado
povo ou indivíduo não seriam somente diferentes dos outros,
como o são todos os indivíduos de uma população espalhada,
mas seriam mais ou menos próximos ou afastados da essência da
espécie. É assim que certas nações acham que são raças, que
certas supostas “raças” acham que são superiores, e que alguns
acham que são “superhomens”, qualificando os outros de “sub-
homens”.
A prova de que não é o essencialismo naturalista em si que é
perigoso, mas realmente a essencialização das diferenças naturais,
é que esse mesmo essencialismo, quando casado com um
evolucionismo culturalista, se torna igualmente perigoso e
sinistro. De fato, se associarmos a ideia de evolução necessária à
ideia de que a essência do homem é a cultura ou a sociedade ou
até a história e não a natureza, teremos então o equivalente
totalitário do nazismo. Pensemos na Rússia stalinista, na China
maoísta ou no Camboja de Pol Pot: há nesses casos a expressão
de uma vontade prometeica de construir urna ordem nova,
conforme com o progresso inelutável – não da natureza, mas da
história humana -, e de produzir com todas as forças um homem
que finalmente corresponderá à sua essência; para tanto, é preciso
reeducar ou até eliminar os indivíduos “impuros” – não pela sua
origem natural, mas pela sua classe social (como os cúlaques) ou
pela sua educação (os intelectuais durante a Revolução Cultural
chinesa) ou pelo seu ambiente cultural (os moradores das cidades
no Camboja).
Nesse caso, não é a evolução natural que permite determinar a
essência do homem e dizer o que ele deve ser, é a
evolução histórica; ela própria não é determinada por uma
identidade natural (a do sangue ou da raça), mas por uma
identidade social (a da classe social); e o totalitarismo chamado
de “comunista” não foi buscar essa essência purificada de toda
influência patógena num passado mítico qualquer (o da raça
ariana antes da miscigenação), mas num futuro tão mítico quanto
(o do homem novo dos amanhãs radiosos, após o sacrifício de
algumas gerações).
Então, nem o evolucionismo nem o naturalismo constituem um
perigo em si, enquanto não forem associados a um princípio
essencialista ou a uma ideologia hierárquica (o que dá no mesmo,
na maioria das vezes). Será que a nova imagem do homem, um
animal como os outros, não corre perigo? Sabemos que sim. Mas
o verdadeiro perigo não é esse.
Essa definição do homem (“um animal como os outros”) com
certeza determina um programa de pesquisa científica sólido e
fecundo e talvez cumpra a promessa de uma reintegração das
ciências humanas ao seio das ciências naturais, que foi o sonho do
próprio Freud ou de Lévi-Strauss. Alguns temem que ela também
determine um programa de pesquisa tecnológica: clonagem,
manipulações genéticas etc. Aspectos sobre os quais os jornais ou
as narrativas de ficção científica nos alertam. Apesar de algumas
fantasias, esse risco talvez não seja diferente por natureza ou mais
grave que aquele da exploração sem limites da natureza à qual
estamos acostumados há muito tempo. O verdadeiro problema
não reside nisso, mas no risco que essa definição do homem seja
tomada – aliás, já está sendo tomada assim, e cada vez mais –
como um programa de redefinição da ética. Partindo do fato –
incontestável em si – de que o homem é um animal como os
outros, estão chegando a duas consequências morais
inadmissíveis.
A primeira consiste em tomar pura e simplesmente essa
proposição cientificamente fecunda como uma proposição dotada
de sentido moral. A nova definição do homem pode contribuir
para nossos conhecimentos, mas ela não pode servir de
fundamento para nossas condutas. O risco seria o de reduzir a
aspiração humana a “viver bem” ao simples desejo animal de
“viver”: viver, no sentido de sobreviver, limitando na medida do
possível nossas dores e aumentando se possível nossos prazeres,
assim como o exige a moral utilitarista mais comumente ligada à
naturalização do homem. Com efeito, se o que torna um ser
moralmente digno de respeito moral ou lhe permite ser um sujeito
de direitos é apenas sua sensibilidade ao prazer e à dor, como o
quer a moral utilitarista cada vez mais dominante no movimento
naturalista, então somos na verdade seres moralmente tão
respeitáveis quanto ratos ou porcos. Mas a moral humana não se
reduz a “não sofrer e não fazer sofrer”, nem a ter “direitos
naturais”. Ela também consiste em ideais de generosidade, de
beleza, de dedicação, de sacrifício; ela também se fixa objetivos
políticos de justiça, de liberdade, de igualdade, e tudo isso é
irredutível à oposição do prazer e da dor, no sentido animal do
termo. Portanto, a proposição segundo a qual o homem é um
animal como os outros não pode em nenhum caso ser considerada
um programa moral, por mais minimalista que seja.
A segunda consequência ética que podemos às vezes ser levados a
tirar do fato de que o homem é um animal como os outros é que
seria legítimo, até necessário, tratar moralmente todos os animais
como devemos tratar o homem. É a recíproca da conclusão
anterior: não devemos mais aos homens do que aos animais, mas
não devemos menos aos animais do que aos homens. De repente,
parece anódino. Soa até “generoso”: será que não significa
estender o alcance da moral além da humanidade, até às outras
espécies? Será que não significa ser mais “moral” ainda do que a
moral “humanista”? Eis a armadilha: pois a proposição que diz
que devemos tratar os animais como devemos tratar o homem é
logicamente equivalente à proposição inversa, que diz
que devemos tratar o homem como devemos tratar os
animais;. Sob essa forma, é possível sentir o perigo de imediato.
Colocada nesses termos, fica claro que essa concepção, longe de
ser uma extensão da moral humanista, é na verdade sua própria
negação.
É preciso distinguir nitidamente a tese científica, reguladora do
paradigma cognitivista, segundo a qual o homem é (também,
primeiro, antes de tudo) um animal como os demais, da ideia
moral segundo a qual o homem deve ser “tratado” como os outros
animais. Mas de onde vem essa ideia, que se impõe cada vez
mais, para o melhor e provavelmente também para o pior? Ela
possui muitas fontes. Vamos citar algumas. Está claro, para
começar, que o desenvolvimento exponencial das técnicas, a
mercantilização imoderada dos seres vivos, assim como a
mecanização desenfreada da agricultura e da criação de animais –
preço a pagar pela imagem do homem definido como soberano
onipotente da natureza (vejam o que imputam a Descartes) –
tiveram como consequência o rebaixamento frequente de animais
a meros objetos: daí uma reação sã em favor da defesa da biosfera
e da biodiversidade.
Além do mais, os progressos consideráveis da urbanização, a
perda de qualquer contato com a vida selvagem para a maioria da
humanidade, a vitória aparente (ou provisória) nos países
desenvolvidos dos homens na sua luta secular contra certos males
naturais – ataques de animais selvagens, epidemias trazidas pela
fauna -, o crescimento do número de animais domésticos nas
grandes cidades ocidentais: todas essas manifestações da
modernidade tiveram como consequência a imposição de uma
representação cada vez mais adocicada da natureza, como se ela
fosse apenas um cenário de conto de fadas, o reino da harmonia
preestabelecida, tal como a vemos nos desenhos animados da
Walt Disney: os ratos não são portadores da peste,
é Ratatouille; os grilos não devastam as colheitas, é o Grilo
Falante, etc.
Por um lado, então, a modernidade tecnicista “coisificou” e
“mercantilizou” os seres naturais; por outro, e em grande parte em
reação contra essa “coisificação”, a natureza é remitificada,
sacralizada e até santificada como fonte absoluta e intrínseca de
valores: os seres naturais seriam sempre bons, acredita-se,
enquanto continuarem sendo naturais. (Novo exemplo da
confusão entre o natural e o legítimo.) A isso vem se acrescentar a
divulgação muito midiatizada dos progressos da biologia: a ideia,
por exemplo, de que o homem compartilha 98% de seu
patrimônio genético com os macacos e 90% com o camundongo é
muitas vezes interpretada como se existissem apenas diferenças
menores, negligenciáveis, entre nós e os macacos, entre nós e os
camundongos inclusive, e assim por diante, entre nós e as moscas
ou tudo o que você quiser, e que, por conseguinte devêssemos
tratar todos esses animais, tão próximos da gente, como tratamos
nossos familiares.
Daí o progresso considerável de todos esses movimentos, às vezes
simpáticos (como as poderosíssimas associações vegetarianas, em
permanente crescimento nos Estados Unidos, na Inglaterra ou na
Austrália), às vezes muito menos simpáticos (como os
movimentos terroristas que se autoproclamam de libertação
animal); daí o sucesso de todas essas formas de militância, meio
políticas, meio filosóficas a favor do antiespeciesismo, isto é: a
doutrina que diz que a espécie à favor da qual um ser pertence não
é um critério pertinente para decidir como tratá-lo ou para
determinar o respeito que lhe é devido. Os diversos sofismas do
antiespeciesismo são, no entanto, óbvios. Os primeiros se situam
nesse raciocínio aparentemente lógico: do mesmo modo que o
fato de pertencer a determinado sexo, a determinada religião ou
raça não deve ser um critério de como os seres devem ser
considerados moralmente, o fato de pertencer a determinada
espécie, à humana, por exemplo, tampouco serve de critério. Mas
seria esquecer que o antirracismo apenas é a forma negativa do
universalismo humanista: se não devo discriminar ninguém em
função de sua raça é porque devo tratar todos os
homens igualmente. Porém, nenhum tipo de universalismo pode
por hipótese ser estendido a todas as espécies animais (e os ratos?
E os piolhos?), menos ainda a todas as espécies vivas (será que
devo deixar de usar antibióticos ou de lutar contra os vírus?). Sem
contar que o universalismo humanista não se baseia somente na
ideia de igualdade, mas também na da reciprocidade: tenho que
tratar todos os homens como eles deveriam me tratar. É nessa
ideia de reciprocidade que se fundamentam muitos dos nossos
preceitos morais, a começar pelo conceito de justiça. Posso
constituir uma comunidade com qualquer homem e, logo, uma
comunidade justa, porque recíproca. Que reciprocidade esperar do
crocodilo ou do mosquito? Que comunidade moral ou política é
possível imaginar com eles com tranquilidade? O antiespecista
comete outro sofisma, menos visível embora mais pernicioso,
visto que ele entra obrigatoriamente em contradição com seus
próprios princípios. De fato, nada é mais antropocentrista que o
antiespeciesismo.
Com efeito, ele não respeita a natureza em nada, já que, ao
contrário de todas as outras espécies naturais, ele pretende tratar
todas com o mesmo respeito. Porém nenhuma espécie natural
respeita naturalmente as outras. Ocorre geralmente o contrário,
inclusive, como o mostra com precisão a biologia evolucionista.
Mas o fato de que nenhuma espécie natural seja antiespecista,
embora alguns queiram que o homem o seja – e somente ele em
toda a natureza-, prova uma coisa essencial: é o homem – e
somente ele – a fonte de qualquer moral (até da antiespecista), e
não a natureza.
Se tivermos então que preservar as condições ambientais da vida
na Terra, para o bem dos homens e especificamente o das
gerações futuras; se tivermos que preservar a biodiversidade na
medida do possível, que nos abster da crueldade inútil para com
os animais no respeito das condições da boa convivência humana;
se tivermos que denunciar a criação industrial de animais ou a
comercialização das espécies ameaçadas: isso surge da moral
humana, puramente humana, que é sempre feita, colocada ou
criada pelo homem em nome de uma ideia do homem. Isso não
quer dizer que ela deva necessariamente ser
concebida somente em proveito do homem, mas que ela deve
sempre ser concebida em primeiro lugar em proveito do homem
(e não de Deus ou dos animais) e contanto que ela se aplique
universalmente a todos, os homens. É isso que é moral,
justamente porque não é natural, justamente porque vai contra o
comportamento natural. Que se trate do comportamento das
outras espécies entre si ou do comportamento dos homens em
relação aos outros homens, pois o homem é naturalmente quem
mais massacra, não a natureza, mas o próprio homem. A moral
não pode se fundamentar na natureza. Seu valor reside justamente
no fato de que ela não é natural.
Eis talvez o que se pode dizer depois desse século XX que foi
provavelmente o dos maiores genocídios (armênio, judeu, cigano,
tutsi etc.) e de todas as formas de crimes em massa (Hiroshima,
Kolyma, Katyn, Srebrenica, etc.). Não mais do que as outras
espécies naturais, os homens se
comportam naturalmente, seguindo princípios de um humanismo
universalista. É justamente o contrário! É logo isso que faz o
valor desses princípios.
Em suma, encontramos quatro concepções do homem. Cada uma
tem um fundo de verdade. Todas são legítimas, visto que
fundaram novas disciplinas científicas: cosmologia, física,
matemática, ciências humanas, ciências cognitivas. Consideradas
por si mesmas, porém, independentemente desse contexto
científico, todas têm seu avesso ético. O avesso do essencialismo
hierárquico ou do animal racional é que ele pode levar a todas as
formas de discriminação; a “coisa pensante” pode conduzir à
destruição do mundo natural; o não sujeito pode tornar crível a
irresponsabilidade individual; o animal humano (ao contrário da
coisa pensante) pode fazer com que as pessoas achem que não há
limite nítido separando o humano do não humano e que a moral
pode consequentemente se basear na própria natureza, ou seja, em
qualquer coisa.
Com efeito, quando não é mais o homem que está no horizonte de
nossas condutas, então qualquer coisa pode de fato servir: a
natureza (que nunca diz nada, já que nela encontramos tudo e seu
contrário), por exemplo, ou qualquer livro que seja chamado de
sagrado, ou ainda qualquer imagem que as pessoas acreditem ser
imposta pela “Ciência”: mas a ciência também é muda sobre o
que devemos fazer, o que tem valor, o que deveria ser; sobre a
natureza ou o Céu. Pois a moral é autossuficiente. Ela não precisa
de autoridade externa a ela: natureza, ciência ou Deus. É uma
característica própria do homem, e talvez seja sua única
característica própria autêntica. Por conseguinte, ela só pode ter
como princípio e fim o próprio homem. Há evidentemente sempre
um abismo entre o que os homens fazem geralmente e o que
deveriam fazer sempre. Sim, a espécie humana é a única que se
automassacra sistematicamente, essa é sua “natureza”. Sim, a
espécie humana também é a única que pode agir em função de
normas universais: essa é sua “moral”. Existe de fato um
precipício entre essa natureza e essa moral. Esse precipício, esse
abismo, é justamente a condição humana.
Tradução de Yves Bergougnoux

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