Artefatos de Arremesso Dos Campos Da América Um Estudo Das Boleadeiras
Artefatos de Arremesso Dos Campos Da América Um Estudo Das Boleadeiras
Porto Alegre
2009
VIVIANE MARGARETH POUEY VIDAL
Porto Alegre
2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 980
BANCA EXAMINADORA:
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A meu pai (in memorian), por me fazer acreditar que
os sonhos são possíveis àqueles que persistem!
A minha mãe, pela vida, amor, educação,
incentivo e dedicação.
“[...] Pedras e tentos, três estrelas, boleadeiras,
Almas chibeiras contrabandeando aos apartes.
A sina das artes dos Charrua boleadores,
Levando no tempo a força-vida dos combates.
Traste campeiro de luz própria, andarilha,
Adriano Medeiros
AGRADECIMENTOS
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13
1 INTRODUÇÃO
Meu interesse pelo estudo das boleadeiras surgiu no início do curso de Licenciatura
em História na PUCRS Uruguaiana, em março de 2003, quando decidi conhecer o Núcleo de
Pesquisas Arqueológicas (NUPA). Ao visualizar pela primeira vez os artefatos arqueológicos,
fiquei supresa ao descobrir que a grande maioria destes foi encontrada na minha cidade natal
onde nunca havia escutado falar da ocupação indígena. Desse modo, decidi realizar um
estágio no laboratório e conhecer um pouco mais sobre a origem dos objetos e sua relação
com as pessoas que os confeccionaram e os utilizaram. Durante a apresentação do laboratório
arqueológico, o coordenador procurou iniciar sua explicação a partir de um artefato que
estivesse diretamente relacionado à minha realidade local, foi quando o professor segurou a
bola de boleadeira na mão e exclamou: “Este artefato tu conheces! É a boleadeira que o
gaúcho usa. Pois os índios também a utilizavam, só que a boleadeira indígena era de pedra”
(Flamarion Gomes, Comunicação pessoal, Março de 2003).
Neste momento, percebi como a minha experiência pessoal poderia estar relacionada à
arqueologia, pois sendo filha de alambrador e neta de capataz de estância, conheci e
presenciei a vida no campo, o trabalho com o gado, a encilha do cavalo e o significado de
cada elemento da indumentária gaúcha. Ainda durante esta conversa no laboratório, o
arqueólogo me explicou o processo de continuidade das boleadeiras indígenas na cultura do
gaúcho, ressaltando que este instrumento passou por várias transformações morfológicas, mas
que seu caráter funcional poderia ser o mesmo nas atividades com o gado. Com base nas
minhas lembranças do cotidiano rural, afirmei ao professor que atualmente o gaúcho não
usava mais este instrumento com o gado domesticado por que poderia ferir o animal.
No entanto, lembrei que meu avô e meus tios jamais iriam a uma festa campeira, ou ao
Desfile Farroupilha em comemoração ao vinte de setembro, sem uma boleadeira presa na
cintura. Assim, percebe-se que a boleadeira perdeu apenas sua função técnica com o gado,
15
mas continua fazendo parte da vida do gaúcho como um símbolo que fala para eles, sobre
seus ancestrais, lembrando da sua cultura da vida no campo, das corridas de eguadas, das
atividades com gado bravo. José Hernandez (1879), em sua obra intitulada “La Vuelta de
Martin Fierro”, já ressaltava que: “El gaucho, semisalvaje y seminómada! Señor antes y
dueño de llanura y de la inagotable riqueza de sus rebaños, desdeñaba el trabajo manual,
como indigno de su hidalga estirpe”. Sendo necessário atrair o imigrante, que viu nos pampas
uma nova oportunidade de riqueza. Mais dócil e disciplinado, mais adaptável, foi desalojando
o gaúcho dos trabalhos rurais. Assim, até o fim do Séc. XIX, formou-se uma nova civilização.
“Obscurecióse su alma, al paso que iba trocando algunas de sus prendas tradicionales; bota de
potro por la alpargata, el chiripá por la bombacha, las boleadoras por el arado”
(HERNANDEZ, 1879, p. 18). O autor, nesta pequena estrofe, mostra as longas mudanças
históricas nas quais as boleadeiras estão inseridas, ou seja, a introdução de uma nova
indumentária à domesticação do gado bovino e eqüino para servir e alimentar o homem que
vai cuidar do cultivo da terra.
Ao longo do estágio no laboratório, efetuei um levantamento bibliográfico que me
proporcionou maior embasamento sobre a história das boleadeiras nos diferentes contextos
sociais. Entre as obras encontradas, pode-se mencionar como a mais detalhada a monografia
do arqueólogo argentino Alberto Rex González (1953), intitulada “La Boleadora. Sus áreas de
dispersión y tipos”. Esta pesquisa permitiu conhecer a classificação taxionômica das
boleadeiras e suas diferentes áreas de dispersão, contribuindo amplamente com as análises
tecno-tipológicas; no entanto, durante o desenvolvimento da monografia de conclusão do
curso de história, acabei deixando algumas lacunas. Ou seja, mesmo conhecendo o extenso
campo simbólico das boleadeiras e sendo a idéia inicial do projeto de pesquisa compreender
os significados da sua continuidade na vida do gaúcho, acabei seguindo a idéia central de
González (1953) de classificá-las, conhecer sua função no contexto indígena e sua área de
dispersão.
Posteriormente, na elaboração do projeto de mestrado, após dialogar com o meu atual
orientador professor Klaus Hilbert, compreendemos que era necessário mudar o enfoque que
abordei na monografia de conclusão, pois havia dedicado grande parte da pesquisa às análises
tecno-tipológicas das boleadeiras e seus aspectos funcionais. Sendo viável ressaltar que nesta
dissertação de mestrado não está se negando a importância das análises em laboratório e, sim,
propondo um novo olhar interpretativo para o estudo das boleadeiras. Nesse sentido, procura-
se pensar outros aspectos essenciais para o entendimento dos artefatos, buscando conhecer e
interpretar os significados simbólicos da continuidade deste elemento indígena na
16
indumentária do gaúcho, já que a boleadeira perdeu sua função técnica no trabalho com o
gado. Dessa maneira, foi analisada uma rede de contextos onde as boleadeiras continuam
presentes, procurando identificar seus significados na indumentária, no arreio do cavalo, no
CTG, na poesia, nas lendas, nas musicas, na dança, no cinema, no artesanato, na
ornamentação das lareiras das estâncias, etc.
Visando compreender os significados das boleadeiras e suas relações com as pessoas,
foi necessário conhecer alguns trabalhos que abordam o simbolismo dos objetos, assim
encontrou-se em Glassie (1999) a seguinte afirmação: “Os artefatos lembram a tecnologia
através da qual a natureza foi transformada em cultura, e eles encarnam a mente do criador”
(GLASSIE, 1999, p.42 apud JACQUES, 2007, p.1). Nesse caso, entende-se que a cultura
material é repleta de significados que se relacionam diretamente com as pessoas. Como
afirmou Clarisse Jacques (2007), “Por mais que o arqueólogo busque ações humanas
passadas, uma vez que ele constrói este passado no momento presente, a cultura material
segue relacionando-se com pessoas” (JACQUES, 2007, p.2).
A hipótese central nesta dissertação de mestrado é que as boleadeiras - artefatos de
origem indígena pré-colonial - ultrapassaram o tempo em um processo histórico contínuo sem
interrupção e permanecem no atual contexto do gaúcho. Compreende-se que, neste período de
longa duração, as boleadeiras são modificadas e aprimoradas, porém nunca descartadas. Se
por um lado, as boleadeiras perdem algumas de suas funções práticas como caçar e lutar, por
outro, elas transformaram-se em um símbolo gaúcho que representa e compõem a cultura
Riograndense. Para testar esta hipótese, além de se consultar os relatos dos cronistas e
viajantes, as fontes literárias, históricas, arqueológicas, antropológicas, etnoarqueológicas,
etnohistóricas, etnográficas patrimoniais, e semióticas, desenvolveu-se uma etnografia com os
gaúchos na cidade de Uruguaiana e uma etnoarqueologia na aldeia dos atuais Charrua de
Porto Alegre. A idéia de entrevistar os gaúchos e indígenas surgiu devido à necessidade de
conhecer a história das boleadeiras e sua agência simbólica no cotidiano e na memória dos
homens dos pampas. A metodologia de entrevista oral atualmente tem sido muito utilizada
nos trabalhos arqueológicos como um meio de conhecer os aspectos simbólicos por detrás do
caráter morfológico e funcional dos objetos. Fabíola Silva (2000, p.11) afirma que essa nova
forma de pensar o registro arqueológico é conhecida como Etnoarqueologia, pois seu sentido
mais amplo pode ser entendido como uma abordagem que visa proporcionar os meios para
que se possa interpretar o registro arqueológico, tendo como referencial a dinâmica do
contexto etnográfico. Ou seja: “[...] a partir do estudo de sociedades contemporâneas,
17
proporciona os meios para formular e testar hipóteses, modelos e teorizações que possibilitam
responder questões de interesse arqueológico” (SILVA, 2000, p.30).
A autora comenta, ainda, que a utilização de dados etnográficos sempre foi uma
constante nas pesquisas arqueológicas. No entanto, novos estudos têm influenciado os
arqueólogos a repensar suas análises tipológicas e as classes de objetos na formulação de
novas interpretações. Nesta perpectiva, procurou-se, através das fontes orais e bibliográficas,
compreender os diferentes contextos arqueológicos e históricos em que as boleadeiras
estiveram presentes, assim como proporcionar uma contribuição para os futuros trabalhos que
tratarão desta temática.
A dissertação foi estruturada fazendo aproximações em três capítulos:
No capítulo 1, procura-se compreender o papel simbólico das boleadeiras na
construção da identidade do gaúcho do Rio Grande do Sul, da Argentina e do Uruguai.
Apresenta-se a etnografia realizada na cidade de Uruguaiana/RS, na qual aborda-se as
memórias dos gaúchos que tiveram a oportunidade de utilizar a boleadeira com o gado
selvagem, nas corridas de cavalos e que, atualmente, preservam este elemento na sua
indumentária. Observa-se a importância das boleadeiras na construção do vestuário
tradicionalista, assim como sua harmonia com o contexto e o corpo do homem. Comenta-se a
expressiva representação da dança com as boleadeiras no folclore gaúcho, procurando
conhecer também a dimensão pessoal das boleadeiras no contexto Sul Meridional.
No capitulo 2, revisa-se as fontes arqueológicas, etnohistóricas e etnográficas que
mencionam a história das boleadeiras, organizando o capítulo em diferentes momentos.
Inicialmente, consulta-se os trabalhos arqueológicos, visando conhecer a maneira que os
pesquisadores discutem e explicam a presença das bolas de boleadeiras encontradas em suas
pesquisas. No segundo momento, analisam-se as fontes etnohistóricas com o interesse de
encontrar outras referências para se explicar as boleadeiras no contexto dos índios pampeanos.
Utilizam-se como principais referências os dois volumes da obra de Eduardo Acosta y Lara
com os índios Charrua (1961 e 1969/70), nos quais o autor apresenta os relatórios dos
cronistas e viajantes dos diferentes períodos da conquista. A pesquisa de Ítala Becker (1982),
na qual a autora tratou da ocupação dos índios Charrua e Minuano na Antiga Banda Oriental
do Uruguai, também contribuiu amplamente na construção deste capítulo.
Sendo importante ressaltar que nesta revisão etnohistórica o objetivo é compreender o
contexto em que viveram os Charrua que utilizaram as boleadeiras numa seqüência analítica e
cronológica. No terceiro momento, procura-se conhecer as etnografias dos indígenas da
Antiga Província do Uruguai e Argentina, utilizando como referências principais as obras de
18
em uma história contínua; porém, com novos olhares e significados. Acredita-se que novas
abordagens para análise dos objetos possam contribuir com as futuras pesquisas dedicadas à
temática, especificamente no que diz respeito ao simbolismo das boleadeiras nos encontros
étnicos gaúchos e indígenas.
20
A história da revolução farroupilha não pode ser vista como algo que apenas
aconteceu no passado, mas como uma história sobre o passado do gaúcho heróico. É uma
história útil que serve para afirmar sua identidade e para superar as derrotas, as tragédias e
transformá-las em conquista. É importante considerar que toda a história riograndense
contribui para esta mitificação do gaúcho, tanto a história oficial, relatada pelos historiadores
e acadêmicos, quanto a história poética e literária contada nas rodas de chimarrão, nos contos
e nos encontros dos contadores de causos. Em comparação com a história oficial e acadêmica,
1
Posteiro: é o vigia do gado. No CTG, é o responsável pela organização das pilchas.
22
a história literária é muito mais rica, detalhada, em que se encontram os mais diversos
personagens que atuam dentro deste mundo cotidiano do campo. Esta literatura regionalista
começou a desenvolver-se a partir da primeira metade do Séc. XIX e atribuiu a si todas as
características dos modelos vigentes. Nesse caso, destacando-se o modelo romântico de José
de Alencar, sendo o romantismo no Brasil a busca por fazer uma literatura nacional, com uma
temática própria do país. O regionalismo veio ancorar essa busca das “cores locais” do país.
No Rio Grande do Sul, essa “cor local”, até inicio do Séc. XX, era o pampa, o campo. E o
principal construtor desse cenário era o gaúcho riograndense a ser difundido ao restante do
país.
Mas, quem era este personagem? Era o gaúcho vaqueano ou estancieiro, que é
marcado na literatura regionalista como sendo o herói, auto-suficiente, que defende seus
ideais, a sua bandeira, até a morte. É o homem do campo que chegou a transformar-se em
mito devido à influência romântica na literatura. O discurso da figura mítica do gaúcho é
narrado como uma promessa gloriosa, herói que atravessou altivamente guerras e
adversidades, tipo humano rude, que assim se constituiu somente por uma necessidade
imposta pelo meio:
Embora rude, o gaúcho era extremamente gentil para com as mulheres e destemido
na defesa da honra dos indefesos. As constantes carneações, o churrasco meio cru,
sua familiarização à lida campeira constante, o contato com o sangue, tornava-o
sempre preparado para a guerra. [...] Na descendência telúrica encontramos as razões
para um ser tão rude, forte e corajoso, ligado profundamente à terra, que chamou,
carinhosamente, de Torrão (LAMBERTY, 2000, p.16).
2
Estância: grande extensão de terras com plantações e criações de animais.
24
3
A autora utiliza o termo “real gaúcho” para se referir ao gaúcho histórico. Acredita-se, entretanto, que ambos
gaúchos são reais, o literário e o histórico.
4
Bastos: sela de cavalo.
5
É importante destacar que o gaúcho na Revolução Farroupilha (1835 a 1845) carregava a faca e a boleadeira
na cintura, além do laço preso no arreio do cavalo.
25
como o de homem nômade, que não possui residência fixa, geralmente sendo encontrado nas
estâncias ou charqueadas:
Nota-se, no discurso de Saint-Hilaire (1974, p.62), que o autor não insere o gaúcho
como membro social e sim o apresenta como bandido e pilhador vivendo à margem da
sociedade. Em contrapartida, é possível notar uma mudança na vida do gaúcho enfatizada por
Dreys (1980, p.22), ao destacar o mesmo como trabalhador de estâncias ou de charqueadas,
mas não deixando de ser visto como marginal, devido a seus hábitos de gaudério e a sua
origem mestiça. Como enfatiza “[...] sem ordem e sem destino, com o gosto tão geral de uma
vida fácil e de perfeita liberdade. Sem chefes, sem leis e sem polícia, os gaúchos não têm
moral social, se não as idéias vulgares”. Desse modo, o gaúcho era percebido como elemento
de atraso na sociedade riograndense, denominado inicialmente como gaudério, expressão
pejorativa dada aos aventureiros e desertores paulistas, que adotaram a vida de vagabundos e
pilhadores de gado. Como afirma Flores (1992, p.349), eles pertenciam a um grupo social
marginalizado pela sociedade, assim como o negro e o índio, pois não possuíam propriedade,
nem cidadania e o emprego dependia do período de maior atividade nas estâncias.
Verli Silveira (2004) discorda da afirmação de diversos historiadores acima citados de que
a revolução farroupilha foi decisiva na construção do mito fundador do herói gaúcho. Ela
argumenta que, tanto antes quanto depois da Revolução Farroupilha, já havia um “confronto
discursivo” envolvendo a designação de gaúcho; afinal, não é de uma hora para a outra que o
“gaúcho bandido” passa a “gaúcho herói”. Ela entende que esse fato se tornou possível graças ao
fortalecimento mitológico. O contexto revolucionário, re-inventado constantemente pelo
imaginário social, contribui com o processo ressignificativo da denominação gaúcho, inserindo-
lhe novos significados, colaborando, assim, com a exclusão de sentidos pejorativos através da
mudança dos discursos. A atual exaltação à imagem do “gaúcho herói” é compreendida nesse
trabalho como um processo mitológico construído ao longo das mudanças históricas.
Essa ressemantização dos significados atribuídos a um determinado grupo social não
ocorreu somente com os gaúchos. Klaus Hilbert (2001), em seu artigo intitulado “Caçadores
da região do Prata, de vilão a herói”, apresenta as mudanças dos significados atribuídos aos
índios Charrua ao longo da história. Os mais antigos relatos escritos referentes aos indígenas
são a carta de Luiz Ramirez, de 1528, e o diário de bordo de Pero Lopez de Souza, de 1530,
26
honesto6.
ancestrais das populações indígenas atuais” [...]. (SILVA, 2002, p.185). Nessa perspectiva, a
presente etnografia procurou compreender e descrever os discursos do gaúcho morador do
campo e do gaúcho urbano, sendo uma maneira de conhecer não apenas uma noção geral das
boleadeiras, mas sim as diferentes percepções e atribuições de significados aos objetos.
Durante as entrevistas, evitou-se realizar muitas anotações ou utilizar o gravador para
impedir a inibição e a ocultação da fala dos informantes; a narrativa foi construída com base
em um diálogo entre o informante e o pesquisador. Dessa maneira, a solução foi transcrever
posteriormente os depoimentos.
Alguns dos entrevistados não somente utilizam e reconhecem as boleadeiras como
símbolos de identidade gaúcha, como também as confeccionam. O informante Jorge Bairros
(57 anos) há muitos anos exerceu o ofício de domador de cavalos, atualmente é trabalhador
rural e artesão, elaborando cordas para as correarias da cidade e também por encomenda aos
conhecidos8. Realiza um belo trabalho artesanal com as boleadeiras feitas em pedras, de tal
modo que foi difícil distingui-las das boleadeiras arqueológicas, pois ficam idênticas aos
artefatos confeccionados pelos indígenas pré-coloniais. Ao ser questionado sobre o que o
levou a confeccionar esses objetos, destacou que o motivo deve-se ao trabalho na campanha,
onde por diversas vezes encontrou as “bolas dos bugres”9, resolvendo assim reproduzir estas
armas antigas. De acordo com o artesão, “quanto mais antiga a boleadeira, mais demonstra a
tradição do homem da lida10 campeira”. Mencionou que, tendo como modelo as bolas
encontradas nos campos, sempre procura nas margens dos arroios ou no rio Uruguai seixos
que proporcionem bons artefatos. Ao levá-los para casa, inicia o lento e delicado trabalho,
descrevendo que o primeiro passo é lixar o seixo com a lima11, afunilando as pontas e dando-
lhe formato de limão. Quando a pedra, antes bruta e sem molde, ganha a forma de boleadeira,
com uma serrinha ele faz o sulco onde o couro é amarrado. As boleadeiras em madeira e as
revestidas no couro são vendidas aos conhecidos ou comercializadas com as correarias, que
sempre o procuram por seus artigos. Os instrumentos elaborados com a pedra são
confeccionados para uso próprio ou para pessoas muito próximas. Essa é uma maneira de
apresentar-se como diferente: “Se eu vender todos terão as armas iguais as minhas, assim não
terá graça”, denotando a importância que atribui à unicidade e à integridade simbólica do
artefato. Jorge Bairros se sente como único guardião das tradições e das habilidades de
confeccionar bolas de boleadeiras. Nesse sentido, considera-se viável ressaltar o trabalho de
8
Correaria: casa comercial de artigos gaúchos.
9
Bugre: modo como se refere aos indígenas.
10
Lida: trabalho.
11
Lima: espécie de lixa utilizada pelos artesões.
29
Baudrillard (1993, p.101) referente ao valor simbólico da unicidade dos objetos, utilizando
como exemplo a anedota narrada por Maurice Rheims:
12
Pilcha: veste-se.
13
Bugre: modo como eram chamados os indígenas pampeanos.
30
14
chica, pedra menor que o peão segura para girar as outras duas. A comparação do artefato
com as estrelas evidencia o simbolismo atribuído ao objeto, sendo necessário destacar a
possibilidade da existência de significados religiosos ao chamarem as boleadeiras de “Três
Marias” (Jorge Bairros, comunicação pessoal, janeiro de 2008).
É importante ressaltar que o trabalho que o artesão realiza com as boleadeiras é uma
espécie de arqueologia experimental, pois os objetos são verdadeiras réplicas dos artefatos
arqueológicos. Essa manutenção do conhecimento das técnicas culturais também ocorre em
contextos indígenas. É o caso dos Asurini contemporâneos que encontram as lâminas de
machados deixadas pelos seus ancestrais e sabem exatamente como encabá-las (SILVA, 2002,
p.181). Sendo indispensável mencionar que enquanto os Asurini apenas interferem nos
artefatos, dando a eles um encabamento, o gaúcho confecciona o artefato por inteiro, tendo o
total domínio das técnicas do artesanato na pedra.
O informante José Adir Pouey (50 anos) é capataz de uma estância no interior da
15
cidade . No início do diálogo, mencionou que: “As boleadeiras vieram dos índios que viviam
nos campos abertos, pois não podiam utilizar as boleadeiras no mato, como arremessar o
instrumento sem prendê-los nas árvores”. É importante enfatizar essa noção do informante em
relação ao ambiente propício para a utilização das boleadeiras, reforçando sua relação com os
14
Chica: a bola chica é outra forma de chamar a maniclã, a bola menor.
15
Capataz: responsável pela organização da estância e coordenação dos peões.
31
campos abertos dos pampas e com o peão gaúcho. Ele entende que os indígenas utilizaram as
boleadeiras inicialmente para caçar emas, depois gado e cavalos; dessa maneira, quebravam
as patas dos animais, pois o golpe da arma os atingia na corrida adquirindo assim maior força.
Afirmando que, por esse motivo: “atualmente, o gaúcho não usa mais a boleadeira na lida
com os animais, pois não existe a necessidade de machucar o gado; também tem o IBAMA16
que proíbe”. A entrevista com este informante possibilitou perceber outro aspecto importante
que é o nível de consciência dos trabalhadores rurais em relação às leis de proteção aos
animais. Estas proíbem o uso de uma arma terrível como a boleadeira no trabalho com o gado
domesticado.
José Pouey considera a boleadeira como um patrimônio simbólico do gaúcho, mas
compreende que o gaúcho não é descendente do índio. Eles mantiveram contato com os índios
nos pampas, ocorrendo assim a troca dos conhecimentos17, como esclarece: “o índio passou a
boleadeira para o gaúcho, mas também aprendeu muito com ele nas estâncias”. O informante
fez questão de mencionar diversas vezes, durante a entrevista, que a boleadeira pertence a
“própria tradição gaúcha”, descrevendo o processo de modificações no cotidiano campeiro e
o aperfeiçoamento do artefato. Através das suas lembranças, comenta: “Nos campos, ainda se
encontra bolas de pedra dos índios, elas têm um sulco em volta, esse era para passar o couro,
nessa época só caçavam emas e avestruzes”. Ele entende que a introdução do gado no Rio
Grande do Sul pelo homem branco facilitou a confecção das armas: “foi bem mais fácil, eles
dão um retovo18 para as pedras e não precisam mais fazer o sulco”. Sendo solicitado a
descrever o significado das boleadeiras na sua vida, enfatiza: “Para mim, a boleadeira é um
símbolo da tradição gaúcha, algo do passado que devemos preservar como um tesouro
importante, que ficará para sempre como relíquia”.
No discurso do informante, nota-se que as boleadeiras remetem as pessoas às suas
memórias, possibilitando um elo entre o passado e o presente dos gaúchos através dos seus
significados. Como compreende Baudrillard (1993, p.83), o objeto antigo não é aquele que
atualmente é isto, e sim aquele que foi, ou seja, este objeto é para mim o signo do presente
que mergulha no tempo. Na medida em que se integra no sistema cultural atual, o objeto
antigo vem do passado significar no presente dimensão vazia do tempo. Sobre a
temporalidade do instrumento na cultura gaúcha, o informante ressalta: “mesmo a boleadeira
não sendo mais uma arma para o trabalho, não me desfaço dela, pois a considero uma relíquia
16
IBAMA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
17
Esse processo de transculturação é abordado por Arno Kern (1991). O autor narra a contribuição indígena na
formação do gaúcho, levando para as estâncias o churrasco, o chimarrão e as boleadeiras.
18
Retovo: forro em couro cru que a boleadeira recebe.
32
de três pedras “três marias como as estrelas”. Atualmente, afirma que as boleadeiras usadas
no trabalho são feitas em madeira para evitar ferir os animais. José Pouey confecciona suas
boleadeiras da seguinte forma: “coloco a madeira no torno até dar uma forma esférica, depois
furo com a pua para passar o couro”. O informante argumenta que as boleadeiras em madeira
por serem mais leves foram utilizadas para caçar aves e também na corrida de cavalos,
evitando assim quebrar os ossos dos animais que são bem mais frágeis que o do gado (José
Pouey, comunicação pessoal, maio de 2008).
Com relação a corrida de cavalos e com a necessidade de usar “bolas menores, as três
marias e a estética dos artefatos”, os relatos dos informantes coincidem com o conto “Correr
Eguada”, de Simões Lopes Neto, descrito por Moysés Velhinho (1957, p.52).
[..] Mas, como quera, era sempre um divertimento macanudo, uma volteada de
baguais! Ah! Não há nada como tomar mate e correr eguada! [...] E a gauchada
quase toda em pêlo. Uns de bombacha, ’outros de chiripa; muitos sem chapéu,
muitos de lenço na cabeça, tudo em mangas de camisa e faca atravessada. O mais
maula19 levava pelo menos dois pares de bolas, três pares, isso era a rôdo, e havia
torena que chegava a levar cinco: um na mão e outros na cintura. E tudo
boleadeiras mui bem feitas, de pedra pequena; porque Vancê sabe que o cavalar
tem o osso mais quebradiço que a rês-e vai, se toma um bolaço pesado, aí no mais
19
Maula: covarde, frouxo.
33
[...] Maru Daku herdou do seu avô as "sementes de sabedoria" que são produzidas
por meio de uma mistura, feita na boca com saliva e embrulhadas com a unha do
polegar para mascar. Ele juntou sementes e histórias em um pequeno saco de tecidos
que ele levava ao longo de sua vida (HOSKINS, 1998, p.26).
Segundo Janet Hoskins (1998, p.26), Maru Daku usou a “bolsa de betel” como uma
metáfora das suas experiências. Afinal, este objeto biográfico incentivou suas recordações
ancestrais mediando novas percepções. O significado dado por Maru Daku à “bolsa de betel”
foi evidenciado por Hoskins em três momentos da sua narrativa. Ele apontou a transmissão de
conhecimento por gerações: “recordações do seu avô, do seu irmão e do seu filho favorito”.
Ultrapassando gerações, o objeto biográfico permite um elo com o passado. A “bolsa de
betel” é para Maru Daku instrumento de registro dos momentos considerados significativos na
sua história de vida.
Nesse sentido, percebe-se que a boleadeira, assim como a “bolsa de betel” descrita
pela autora, é um objeto com biografia que permite um posicionamento reflexivo do
informante, facilitando a elaboração de narrativas por meio da atribuição de sentidos aos
vários detalhes do objeto apresentado. João descreve as bolas de boleadeiras como um
patrimônio simbólico da sua identidade gaúcha e afirma que elas estão na sua família há
gerações, antes foram do seu avô, que o presenteou, mas seu pai também as usou no trabalho
com o gado. Esse objeto é uma herança familiar, um símbolo afetivo e cultural de longa
duração, que reafirma sua identidade gaúcha, além de fazê-lo relembrar do passado, de sua
história de vida e dos bons momentos com o pai e o avô. Recorda também da convivência
como os amigos no campo, do trabalho com o gado, das disputas que faziam com as
boleadeiras na corrida de cavalos. Mencionando que seu avô o ensinou arremessar as armas,
quando era apenas um menino, pois precisava de um longo treinamento para tornar-se ágil no
manejo das boleadeiras. Sendo os pais, ou avôs, que preparavam seus filhos e netos para o
trabalho do campo. João conta ter visto na estância onde trabalhou há quarenta anos os filhos
dos peões arremessarem boleadeiras que seus pais confeccionavam: “eles brincavam no pátio
das casas na mesma fazenda, treinando em cavaletes e também nos cachorros”20. Os homens
faziam as boleadeiras, amassando os papéis da embalagem do cigarro “Ascot”. Esta caixa
tinha na frente a imagem de um homem em uma charrete com dois cavalos, ou seja, tudo
estava relacionado com o contexto pampeano. “A bolinha de papel era revestida com sola, ou
couro curtido, deixando o instrumento leve, facilitando assim o arremesso das crianças.”
Nesse caso, pode-se pensar num processo de iniciação, devido ao manejo com as armas exigir
20
Cavaletes: espécie de cabide reproduzido na madeira com quatro patas para dependurar os arreios.
35
prata e marfim na cintura, o que despertava a atenção de todos na cidade”, sugerindo que as
mesmas deveriam estar no museu. Durante a visita ao museu, Dr. Pedro Marini verificou-se
que as mesmas se encontravam no espaço do gaúcho e eram exatamente como o informante as
descreveu, em marfim e prata; realmente um admirável instrumento que, infelizmente, a
responsável pelo museu não permitiu que fosse fotografado.
João compreende que o gaúcho Coutinho se destacou na cidade de Uruguaiana,
afirmando sua autenticidade gaúcha através da indumentária tradicional. E um dos
importantes elementos que colaboraram com a construção do seu corpo e sua identidade
foram as boleadeiras, as quais expressavam a sua paixão pelo tradicionalismo, valorização da
cultura gaúcha, além de revelarem seu status na sociedade (João Rodrigues da Silva,
comunicação pessoal, maio de 2008). 21
21
Em Uruguaiana/RS, foi fundado o CTG Pedro Coutinho em homenagem ao tradicionalista.
37
argentinos, um pequeno rebenque, com um cabo muito curto de “prata maciça”. O cabo e a
bainha de sua faca-punhal são também de “prata”. O viajante estabelece uma comparação
entre os homens do campo do Rio Grande do Sul e os “Gauchos” argentinos e orientais. Ele
enfatiza que ambos andam sempre armados e valorizam bastante suas montarias, sendo que os
brasileiros ostentam ainda mais luxo sobre seus cavalos do que os outros (ISABELLE, 1983,
p.65-66).
Até o presente momento, buscou-se evidenciar as diferentes visões de gaúchos,
verdadeiros homens do campo, que ainda usaram e confeccionaram bolas de boleadeira. A
história de Sirineu Scolars (53 anos) é diferente. Sirineu é um gaúcho da cidade. Ele participa
das festividades campeiras, preserva e respeita os costumes da tradição gaúcha, sem nunca ter
vivido no campo. A sua entrevista permitiu conhecer outras percepções sobre as boleadeiras,
percepções que relacionam o homem do campo com o homem urbano através do mesmo
objeto: a bola de boleadeira. Sirineu reproduz um discurso que repete as fórmulas e narrativas
aprendidas com os homens do campo. As histórias que ele conta não foram vividas por ele,
mas ele se sente atingido e identificado como gaúcho. A sua vestimenta gaúcha, apesar de ser
roupa de trabalho rural, expressa um caráter festivo e de identidade. Além das boleadeiras,
outro artefato de uso campeiro importante que compõe a roupa do gaúcho é a faca22, que é
usada tradicionalmente junto com a boleadeira, na cintura do gaúcho, até mesmo quando vai
ao centro da cidade. Evidentemente, sem a intenção de utilizá-la, mas sim porque faz parte do
costume de “se pilchar” usando todos os adornos tradicionalistas.
O informante entende que os pampas no passado: “eram terras não demarcadas,
permitindo assim o contato dos gaúchos com os índios”. Também acredita que, antigamente,
as boleadeiras eram usadas para capturar o gado selvagem, “pois o golpe quebrava o animal”.
Admitindo não ser tarefa fácil manejá-las, adverte: “É preciso muita preparação, ou a própria
pessoa pode se ferir”. Na continuidade do seu discurso, deteve-se na importância da
ornamentação corporal, que possibilita a identificação das boleadeiras na cultura gaúcha como
um forte elemento de expressão cultural e estética, que compõe e transforma o corpo do
homem.
Esta relação de expressão cultural e estética do gaúcho pode ser perfeitamente
observada no desfile da Semana Farroupilha que acontece todos os anos no mês de setembro.
22
Cezimbra Jacques (1883) destaca que a faca e a boleadeira são, muitas vezes, as únicas armas que os gaúchos
têm e nunca o gaúcho é visto sem elas: “O gaúcho é exímio em manejá-las; com elas, assenhoreia-se do
jaguar, da onça, do boi, do cavalo, da avestruz e vimos, no Camaquã, um rapaz matar com as bolas um abutre
voando”.
38
“No desfile, eu acho bonito andar de laço e boleadeira que não é para laçar, mas para
representar a tradição. O uso nos dias comuns acho feio, pois vejo que fazem isso só para
chamarem a atenção, mostrarem-se mais gaúchos, auto-afirmarem-se”. Ele ainda critica que
“muitos utilizam a bola de boleadeira na cintura sem nunca ter testado o arremesso, pois essa
arma foi utilizada somente no tempo dos meus pais e dos avôs”.
Por ser um gaúcho urbano, Sirineu nunca utilizou suas boleadeiras nas atividades com
o gado, mas sempre como adorno e como símbolo de identidade na cintura, durante o desfile
na Semana Farroupilha. Jamais emprestaria ou doaria suas boleadeiras para outra pessoa
desfilar. Nos anos em que não desfilou na Semana Farroupilha, por motivos de trabalho,
chegou a emprestar seus arreios aos conhecidos “mas ninguém usa minhas boleadeiras para se
mostrar na avenida, em 20 de setembro”. Denotando assim seus sentimentos de afeto e de
posse pelos artefatos, além de seu orgulho de possuir este símbolo e mostrá-lo ao público. O
informante compreende que “as boleadeiras são símbolos gaúchos, uma herança cultural” e
reconhece que “a arma precisa ficar exposta no CTG, junto à chama crioula, expressando a
garra gaúcha”, ou seja, ele percebe a força simbólica destes dois elementos gaúchos: a chama
e a boleadeira (Sirineu Scolars, comunicação pessoal, maio de 2008).
Nessa etnografia, consideram-se os relatos dos informantes como forma de
representação da realidade social do gaúcho rural e do gaúcho urbano, mantendo suas
especificidades, o que leva a pensar nas narrativas discursivas e imaginárias de cada
entrevistado que reforça sua posição para falar sobre o gaúcho. Percebe-se também que os
mesmos identificam-se com o gaúcho mitológico, ou seja, o herói, bravo guerreiro, corajoso,
veloz. Entende-se que a história não deve ser desvencilhada do imaginário e do simbólico que
39
confiada aos sesmeiros e fazendeiros, que normalmente proviam, com seus peões, a
sustentação de numerosas milícias de segunda-linha, suplementares das forças regulares do
exército. Percebe-se que a busca por homens ágeis e valentes não seria apenas para o trabalho
com o gado, mas também para prepará-los para dar respaldo ao exército na proteção das
terras, das fronteiras e do gado dos seus patrões.
Ao iniciar o povoamento da América do Sul, o colonizador que chega às terras vestido
a moda européia encontra, nos campos, índios cavaleiros Mbaia-Guarani, Charrua, Minuano,
Yaro e os Gê-guaranizados, vivendo nas Reduções Jesuíticas nos Sete Povos das Missões. Já
os padres vestiam-se de acordo com a severa moral religiosa. José Saldanha (1786/87), que
entrevistou os cinco mais reconhecidos caciques Minuano (Batu, Maulei, Salteinho, Tajuy e
D. Miguel de Caray), referindo-se a sua indumentária destaca: “os índios cavaleiros usavam
duas peças da indumentária consideradas como originais; são elas o chiripa e o cayapi.”23 O
chiripa é uma espécie de saia constituída por um retângulo de pano enrolado da cintura até os
joelhos, muito utilizado na Fronteira Oeste do Estado. O “cayapi” dos Minuano era couro de
boi inteiro e bem sovado, que se usava nas costas como manto, ou capa, com o pêlo para o
interior e o carnal para fora, pintado com listas verticais e horizontais, em cinza e ocre, à noite
servia de cama estirado no chão. “Os Charrua os chamavam ‘quillapi’ ” (SALDANHA, apud
FAGUNDES, 2001, p.13).
Portanto, a indumentária gaúcha é resultante da união entre peças do vestuário
indígena e ibérico. Antonio Fagundes (2001) identifica o primeiro vestuário do gaúcho sendo
composto de quatro trajes fundamentais, cada conjunto indumentário possui uma peça que se
destaca entre as demais: 1)chiripá primitivo, 2)bragas, 3)chiripá farroupilha24 e 4)bombachas.
As primeiras vestimentas introduzidas pelas sociedades ibérica, português ou espanhol
constavam basicamente de botas fortes de couro curtido feitas por sapateiros; às vezes, essas
botas subiam à meia coxa, com canos altos, que também se dobravam abaixo do joelho,
formando campânulas. As esporas medievais eram muito simples, com pequenas rosetas
pontiagudas. Posteriormente, apareceu a espora mais elaborada chamada de “nazarena
gauchesca”. Um costume da época eram as ceroulas compridas, os calções justos nas coxas,
terminando logo abaixo dos joelhos, conhecidos pelos portugueses por “bragas”. Um antigo
ditado português faz menção às “bragas” como metáfora para significar que o bom resultado
exige sacrifício: “não se pescam trutas as bragas enxutas”. Essas bragas eram confeccionadas
23
A melhor descrição dessa indumentária foi elaborada por D. José de Saldanha, (1787), que entrevistou os
cinco mais importantes caciques Minuano (Batu, Maulein, Salteinho, Tajuy e D. Miguel de Caray).
24
Chiripa farroupilha: devido ao fato de ter sido uma das peças mais utilizadas na Revolução Farroupilha.
(FAGUNDES, 2001).
41
25
A bombacha é considerada no RS, em 1947, elemento de sarcasmo e discórdia. O homem que a vestia podia
ser barrado em clubes, no cinema. Já usada há muito tempo na vida rural pela sua funcionalidade nas tarefas
campeiras. Somente em 1989 a rejeitada bombacha se transforma em traje de honra no Estado.
42
26
Despilchados: mal vestidos e sem dinheiro ou bens. Essa citação denota mais uma vez a representação do
status social através da vestimenta.
27
No museu da cidade de Eva Perón se encontra um exemplar de boleadeira em marfin, colecionada por
Frenguelli (GONZÁLEZ, 1953, p.160).
28
Nessa pesquisa, p.18, encontra-se a descrição de Arsene Isabelle do luxo dos arreios dos cavalos do gaúcho
riograndense.
43
gaúchos já utilizavam uma peça que proporcionasse harmonia com os demais acessórios da
sua indumentária e com as atividades cotidianas.
maneira de afirmar e resgatar a tradição gaúcha” (Sirineu Scolars, comunicação pessoal, maio
de 2008).
José Pouey (50 anos), capataz de estância, ao ser questionado se a boleadeira poderia
ser utilizada com uma peça que não fosse à bombacha, mostrou-se surpreso com a pergunta,
contestando-a da seguinte maneira: “Como isso? Jamais! Não pode! Tem que ser só com as
bombachas, ou estaria fora da realidade. Deve seguir o padrão do tradicionalismo e sempre
combinar”. Sua resposta demonstra claramente os reflexos do efeito Diderot no cotidiano
social, o qual impõe a necessidade de manter o equilíbrio harmônico entre o corpo do homem,
sua vestimenta e o contexto em que se apresenta. O informante explica ainda o processo atual
de construção do corpo com as boleadeiras. Relata que o gaúcho escolhe as boleadeiras mais
bonitas e decoradas para usar junto com o tirador, dessa forma: “mostrando que é pachola, ele
quer ser notado, pois cada gaúcho quer se pilchar mais que o outro”.29 Lembrando que o
gaúcho, ao transformar o corpo com todas as peças da indumentária, colocando as
“boleadeiras na cintura, que é o próprio símbolo da tradição gaúcha, sente-se faceiro, feliz e
exibido”. Observa, também, que alguns gaúchos dançam com as boleadeiras de fogo, sendo
elas uma grande atração no CTG (José Pouey, comunicação pessoal, maio de 2008).
Conhecendo o efeito Diderot no cotidiano das pessoas, tornou-se possível
compreender as normas estabelecidas na maioria dos CTGs (Centro de Tradições Gaúchas).
Para freqüentar o CTG, o gaúcho deve estar pilchado, mantendo assim o equilíbrio simbólico
e harmônico entre o vestuário e o contexto em que se apresenta. Em alguns centros
tradicionalistas, o gaúcho até pode freqüentar sem vestir a típica indumentária gaúcha, mas é
extremamente proibido dançar. Tivemos exemplo em Uruguaiana /RS, onde jovens durante a
Semana Farroupilha vestiam bombachas com tênis e boné, passando a visitar as entidades por
curiosidade ou fascínio pela tradição30. Desconhecendo as regras, tentaram dançar, sendo
convidados a se retirar do salão de baile pelo patrão31 do CTG. Nessa medida, compreende-se
a indumentária gaúcha como uma mediadora das relações e negociações sociais, expressando
e comunicando múltiplos significados simbólicos. A colaboração dos entrevistados foi
essencial para a percepção da agência simbólica das vestimentas e adornos no cotidiano do
gaúcho. Denotando, também, que sua indumentária e costumes possuem aspectos que os
identificam com um determinado grupo e os diferenciam dos demais. Como ressalta o
sociólogo Paulo Sérgio (2001, p.192), as pessoas possuem uma necessidade própria de auto-
29
Pachola: gaúcho faceiro, contente, alegre.
30
Fatos presenciados nos CTGS em Uruguaiana.
31
Patrão: responsável legal pela entidade tradicionalista.
46
afirmação; desse modo, a preocupação com a própria imagem assume uma importância
especial nesse momento da vida, principalmente porque permite exibir sinais seguros de
pertencer a um determinado grupo e definir uma identidade.
32
É importante mencionar que a dança do malambo é outro contexto em que a mulher utiliza as boleadeiras.
33
Reportagem Jornal Zero Hora, 27 de outubro de 2007, elaborada por Ane Meira.
47
34
Invernada: grupo de danças gaúchas
35
O Malambo é uma dança específica do sexo masculino. Trata-se de um desafio de sapateios também
realizados com as boleadeiras, dança típica dos gaúchos argentinos e uruguaios (FAGUNDES, 2001).
36
É necessário destacar que a dança com as boleadeiras é típica do sexo masculino, mas na Argentina algumas
mulheres já violaram essa regra e dançam o malambo. Essa dança nem sempre é realizada com boleadeiras de
fogo.
37
Vaca parada: cavalete feito em madeira. Atualmente, continua sendo utilizado para o treino do tiro do laço.
38
Gado Xucro: gado solto no campo, não domesticado.
48
passou a treinar os passos da dança. Na sua primeira apresentação, estava ansioso, mas foi
questão de pouco tempo para se acostumar com o público: “hoje é só eu me pilchar e pegar as
boleadeiras que a dança sai.” A narrativa do bailarino denota a importância do equilíbrio entre
seu corpo e a indumentária na realização da dança.
Esta experiência etnográfica visou conhecer quais eram os significados da dança com
as bolas de boleadeiras para os gaúchos. José, ao comentar a respeito do sentido em dançar
com as boleadeiras, ressalta: “dançar com as boleadeiras faz parte da minha vida, pois eu já
brincava com as bolas no campo e na dança. Continuo a brincadeira que me diverte e alegra
quem assiste. Para mim, a boleadeira é um símbolo de identidade gaúcha”. José, porém,
afirma que não as utiliza apenas na dança. Ele também coloca as boleadeiras na cintura no
desfile em comemoração a Semana Farroupilha, em vinte de setembro. Reforçando, desse
modo, a importância das boleadeiras na cultura riograndense “pois elas foram temíveis armas
utilizadas pelos homens na formação do Rio Grande do Sul, auxiliando-os na sobrevivência
nos campos, como caçar o gado e defender-se nas freqüentes disputas por fronteiras”. O
informante destaca, também, que o gaúcho ao pilchar-se colocando as boleadeiras na cintura
“está querendo ser notado, chamar a atenção para seu corpo, mostrar que é pachola e muito
campeiro, pois ele tem as armas da lida39 com o gado”. Antonio Fagundes (2001, p.16)
reforça esta relação simbólica entre corpo e boleadeira, relatando que: “em ocasiões especiais,
o homem usava dois ou mais pares de boleadeiras, na cintura e nos arreios”. A transformação
do corpo com vários pares de boleadeiras é uma maneira que o gaúcho encontrou para afirmar
sua identidade e fortalecer sua relação com o tradicionalismo.
39
Lida: trabalho no campo.
49
40
Projeto “Rompe Cabeças”: a idéia é abrir a consciência das pessoas para a preservação do meio ambiente.
41
Um artefato de boleadeira com protuberâncias com formato de uma estrela.
50
em bronze, ouro e prata, demonstrando o prestígio aos objetos, paixão pela tradição e o status
do morador.
Neste contexto, as boleadeiras estão relacionadas a uma série de significados
simbólicos e mágicos que o gaúcho pretende expressar através do culto ao instrumento. Em
um extremo desta linha de significâncias, está o comércio relacionado ao turismo. Os artesões
confeccionam chaveiros com bolas em miniaturas, réplicas perfeitas dos instrumentos no
tamanho convencional. As boleadeiras também estão expressas em artesanatos com ferro e
porcelana, ilustrando o trabalho do homem do campo com o gado. Esse comércio é sustentado
tanto pelos gaúchos que se identificam com os objetos, como pelos turistas que visitam o Rio
Grande do Sul. Para registrar e comprovar sua visita ao Rio Grande do Sul, o turista leva estas
“lembrancinhas” representativas para outros estados ou países. Dessa maneira, acontece a
expansão da cultura gaúcha, através dos objetos de valor turístico, mas também sua
vulgarização. Muitas vezes, o turista desconhece os profundos significados dos símbolos da
identidade gaúcha. Ele percebe estes objetos como recordações que substituem vozes,
impressões e sentimentos relacionados com sua visita ao estado gaúcho. Greenblat (1991)
explica que esta ressonância representa o poder de um objeto exposto em atingir um universo
mais amplo para além de suas fronteiras formais, e que tem o poder de evocar no expectador
as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o
expectador, o representante. (GREENBLATT, 1991, p.42, apud GONÇALVES, 2005, p.2).
Na outra ponta desta sequência de significados relacionados aos objetos feitos pelos
artesãos, estão as boleadeiras como mediadoras das relações sócio-simbólicas vulgarizadas.
Exemplo dessa popularização do símbolo encontra-se nas lojas de artigos tradicionalistas em
Porto Alegre. Estas comercializam bolas de boleadeiras decoradas com emblemas de clubes
51
de futebol, cores da bandeira ou com as armas do Estado. Essa junção de símbolos, sem
dúvida, visa somar a força de dois ou mais símbolos gaúchos. Por outro lado, estabelece uma
ruptura entre os gaúchos, pois os símbolos de clubes de futebol, por exemplo, são altamente
seletivos. Por um lado, representa uma identidade gaúcha, provoca um sentimento de
aproximação, mas por outro divide as torcidas. O comprador de uma boleadeira com o
símbolo do Sport Club Internacional jamais se identificaria com uma boleadeira com o
emblema do outro time, mesmo sendo este também gaúcho.
Outro aspecto simbólico importante está no nome desta entidade tradicionalista. Não
se trata de uma boleadeira de madeira, ou pedra, mas sim de uma boleadeira de prata.
Entretanto, porque esse piquete recebeu o nome “Boleadeira de Prata” e não somente
boleadeira? Novamente, observou-se a soma de dois valores simbólicos. Supõe-se que a
escolha do nome da entidade foi devido à necessidade que os gaúchos sentem em se
expressarem através dos seus objetos. Ou seja, a representação dos seus valores mediante a
posição sócio-cultural concorre para o status do grupo em que é representada a
intencionalidade simbólica num artefato valioso de prata, esteticamente perfeito e
diferenciado dos demais. Nesse contexto, as boleadeiras também mediam relações entre
pessoas de um mesmo nível social, do mesmo modo em que os diferenciam dos demais.
Surgem assim aproximações e distanciamentos sociais através dos objetos. Considerando
todas as coisas como mediadoras de relações sociais e possuidoras de uma pluralidade de
significados, Hodder (1994, p.138) entende que “um objeto nunca significa por si mesmo,
mas por uma teia de relações com outras coisas que compõem um contexto, um campo de
significações, um material equivalente a um idioma”. Ian Hodder destaca a importância de se
realizar a leitura dos objetos, sendo necessário antes de ler os significados em voz alta
interpretar uma complexa corrente de significações materiais inseridas nos objetos nos
diferentes contextos.
53
vamos supor que, dando uma volta pela praia, nós encontrássemos uma pedra
lascada. É talvez um machado de mão pré-histórico? Mesmo que concluíssemos que
a pedra lascada, transformada em machado, tornando-se uma ferramenta, não tenha
sido feita por um artesão pré-histórico, e tendo levado isso para casa, o
consideramos um ornamento. Decidindo expor o artefato em uma prateleira,
colocando-o em nosso contexto social, esse machado passa a ser um índice da nossa
agency.
42
É importante destacar que o Senhor Negrinho doou sua coleção ao NUPA: Núcleo de Arqueologia da PUCRS
Campus Uruguaiana.
54
relação dos visitantes com as bolas de boleadeiras, o Sr. Negrinho as expôs por tipologias e
tamanhos. Quando questionado sobre as boleadeiras, demonstrava um apreço pelos objetos e
sua história, ressaltando que: “Essas bolas de boleadeiras são dos índios que viveram nessa
região, são muito antigas, os bugres as usavam para caçar e lutar, mas o gaúcho também as
usou com o gado xucro. Hoje, ela é um símbolo do Rio Grande do Sul” (Adalberto Martins,
comunicação pessoal, 2004).
Observa-se que os colecionadores conhecem a história dos objetos e a sua importância
para a sociedade gaúcha, sendo eles, de certo modo, os intercessores das relações mediadas
pelos objetos. Esse trânsito de comunicação permite que esses artefatos falem. Thomas (1996,
p.62) ressaltou que o contexto do significante é constituído de acordo com a imaginação e a
interpretação das pessoas sobre os objetos, iniciando com os diálogos que elas realizam com
as coisas, e as coisas com elas, no momento que passam a fazer parte do seu mundo social e
incentivar seus discursos. Desse modo, observando a narrativa que os gaúchos constroem
sobre as boleadeiras, é possível notar que eles se identificam com os objetos e, ao dialogar
com eles, constroem narrativas. O artefato arqueológico inserido no seu contexto social
contemporâneo adquire significados simbólicos e intencionais que vão, além de suas
características funcionais, motivando a maneira das pessoas perceberem as coisas, como
repletas de significados, informações, sentimentos, idéias e motivações. É comum
demonstrarem um determinado fetiche sobre a cultura material que deixa de ser uma simples
boleadeira isolada na superfície de um sítio arqueológico e passa a fazer parte da sua
“agency” social e cultural. Nessa perspectiva, Julian Thomas demonstra que existe uma série
complexa de relações entre as pessoas e as coisas, e que existem relações impenetráveis da
sociedade com o mundo material. Os objetos enquanto heranças culturais dinâmicas retêm
significados do passado, ao mesmo tempo em que adquirem outros quando de releituras.
Thomas (1996, p.58) destaca que: “o mundo é composto de seres humanos e coisas e está
continuamente em movimento, integrando-se em si mesmo”.
Visando compreender as bolas de boleadeiras como uma herança social, foi possível
utilizar a perspectiva de patrimônio de Marcel Mauss, a que Reginaldo Gonçalves (2005,
p.136-137) se refere quando diz que muitos objetos podem ser entendidos como patrimônios
na “medida em que, pela sua ressonância43 junto à grande parte da população brasileira,
realizam mediações importantes entre o passado e o presente, entre o imaterial e o material,
entre a alma e o corpo, entre outras”. No Rio Grande do Sul, tem-se outro exemplo da
43
Poder mágico do objeto (MAUSS, 2003).
55
ressonância das boleadeiras como patrimônio cultural e simbólico. Essas são coletadas da
superfície dos sítios arqueológicos, sendo expostas com destaque nas lareiras das estâncias. O
estancieiro, colocando as boleadeiras em um ambiente destinado ao aconchego da família,
demonstra o prestigio que atribui ao artefato. Os gaúchos transformam a boleadeira em uma
arte mobiliar, um patrimônio que se faz notar, em uma história contínua, mas com diferentes
olhares e múltiplas interpretações sobre os mesmos objetos.
reunidas pelo professor José Figueira, no final do Séc. XIX. González denota que este
agrupamento de numerosos exemplares serviria de base para estabelecer a tipologia e a
distribuição geográfica das formas mais comuns, já que a temporalidade dos objetos é
impossível de estabelecer pela carência de estudos estratigráficos na arqueologia daquela
época. Na construção de um conjunto tipológico, foi necessário conhecer a variedade e a
forma de manejo das boleadeiras. Desse modo, González também recorreu às fontes históricas
Sul americanas, especialmente das regiões pampeanas consideradas como áreas típicas de seu
uso. Mas a consulta a estas fontes teve como único objetivo buscar informações morfológicas
e funcionais das boleadeiras.
González comprende que: “La boleadora fué el arma de guerra y de caça por
excelencia del indígena de las planícies. En manos del criollo fué, también instrumento de
labor. Las llanuras infinitas fueron el centro geográfico de su mayor extension.”
(GONZÁLEZ, 1953, p.135). Os trabalhos etnográficos e arqueológicos anteriores ao de Rex
González não haviam elaborado uma nomenclatura das variedades das bolas de arremesso.
Isto provocou vários debates e contradições. González observa que alguns autores cometeram
o engano de agrupar armas distintas na mesma categoria tipológica. É necessário destacar que
o termo “bola”, no plural “bolas de boleadeiras”, é usado como sinônimo. O primeiro é mais
utilizado pelos autores de língua inglesa; no Brasil, na Argentina e no Uruguai, são utilizados
ambos os termos. González (1953, p.136) menciona que o uso do termo bola de boleadeira
deve-se limitar ao objeto arqueológico “es decir cuando se halla aislado, desprovisto de sus
correas, tal como nos llega de las estaciones o yacimientos arqueológicos a las que se
denomina también “piedras de boleadora”. Ressalta ainda que o termo boleadeira deva ser
utilizado na denominação do instrumento etnográfico, ou seja, quando está completa com
duas ou três pedras amarradas à correia.
Nesta pesquisa, pretende-se comentar as tipologias mais características apresentadas
na taxionomia elaborada por González (1953). O autor organizou os tipos em categorias
alfabéticas e as classes por números arábicos. O tipo “A” reúne as bolas esféricas que
apresentam um bom polimento, que foram revestidas por couro e amarradas pelo cordão no
próprio forro. Este instrumento, provavelmente, foi a bola de funda conhecida também como
“la Honda”, com apenas uma bola presa ao cordão, que foi mencionada por vários cronistas
do período da conquista. A seguinte citação denota a antiguidade destes artefatos:
Las piedras de boleadoras lisas, y más o menos esféricas que constituyen este tipo,
son muy comunes en los a yacimientos arqueológicos la republica Argentina. Estas
piezas debieron ser usadas provista en una envoltura de cuero, unida directamente al
torzal. En la parte correspondiente hemos visto que fuera de América también se
58
hallan piedras esféricas más o menos lisas, siendo especialmente notables las del
musteriense europeo. En América no tenemos, hasta fecha, pruebas de que piedra de
boleadora lisa haya precedido el tiempo a la provista de surco. En efecto, las piezas
más antiguas, halladas e imputadas a este género de instrumentos, llevan surco, a si
la de Cueva del Manzano como las halladas por Bird e Capas antiguas de la
Patagonia (GONZÁLEZ, 1953, p.167).
Os artefatos do tipo “C” são menos incidentes, apresentam sulco duplo e foram
publicados por Leguizamón (1919). Seis exemplares, entre eles um procedente de Pigüé, e
outro, mais ou menos esférico, encontrado em Neuquén. Outes (1897), citado em González
(1953, p.210), afirma conhecer o sétimo exemplar e Ameghino (1918), outros três
44
Sulco: cavidade para prender o couro e arremessar o artefato.
59
exemplares.
Os tipos “D” são peças eriçadas com protuberâncias simétricas conhecidas como bolas
perdidas, massas ou rompe-cabeças. Essa tipologia é mais freqüente no Uruguai, pois em
Buenos Aires apenas um artefato dentro dessa classificação foi encontrado, sendo procedente
da região de Trenque Lauquen, e que estava em poder de J. Mayo, que doou para a coleção do
Museu de La Plata. Para Orbigny (1949), a região pampeana, que abrange a Patagônia, o Rio
Grande do Sul e o Uruguai, possui, sem dúvida, relações arqueológicas evidenciadas através
destes instrumentos líticos:
Las bolas erizadas se caracterizan por tener una serie de mamilos e protuberancias
agudas y más o menos salientes del núcleo central de la pieza. A menudo fueron
trabajadas con dos o tres surcos que se entrecruzan y delimitan las salientes; otras
veces solo se advierte sin surco, por lo que la cuerda debió amarrar-se en forma un
tanto irregular entre las depresiones dejadas por las mamelones, los que pueden
guardar un cierto orden simétrico o disponerse irregularmente alrededor del núcleo
(D’ORBIGNY, 1949, p.58).
As bolas de tipo “E” são raras. Até o presente momento, apenas dois exemplares desse
tipo foram encontrados. Tratando-se de duas esferas unidas pelos sulcos. O primeiro artefato
pertence à coleção Alemandri, procedente do Lago Viedma, território de Santa Cruz; o
segundo é procedente de Ongamira e foi ilustrado por Leguizamón (1919). Este exemplar é
diferente do primeiro que possui um segundo sulco transversal ao primeiro.
O tipo “F” é um exemplar raro, mas importante. González comenta que nestes
artefatos não existem sulcos. Compostos por três bolas, contam com perfurações centrais por
onde passa o cordão que permite o arremesso. Estas são bolas típicas entre os Esquimós e
60
Chuckchees, mas também foram encontradas em diferentes áreas geográficas assim como
Chile, Patagônia e Terra do Fogo. Para o tipo “F”, existe a classe 1 que se refere às bolas
pequenas elaboradas em bronze e prata. O cordão é preso através de uma cavidade transversal
no interior da peça. As bolas esféricas podem estar decoradas com figuras zoomorfas. O
mesmo ocorre nas boleadeiras esquimales. As fontes etnográficas denotam estas modalidades
de instrumentos com figuras zoomorfas no Peru e no Noroeste Argentino. Para explicar a
presença destes artefatos também no Noroeste Argentino, as fontes históricas mostram uma
coincidência com a ocupação Inca na região (GONZÁLEZ, 1953, p.165).
É necessário recordar que Rex González (1953) percebia a necessidade de um novo
olhar para o estudo das bolas de boleadeiras que abordasse a continuidade cronológica e seus
significados na vida dos gaúchos. Porém, devido à inexistência de uma nomenclatura dos
diversos tipos de pedras de arremesso, o arqueólogo optou em sua pesquisa por desenvolver
uma monografia destinada às análises tipológicas e à dispersão destes artefatos na América
Sul Meridional.
Após se comentar a taxionomia das boleadeiras criada por Rex González, o objetivo
desta pesquisa é conhecer como os arqueólogos adotam as metodologias de outros
pesquisadores para responder os seus questionamentos teóricos. Visando perceber, também,
como eles discutem as tipologias, adotam e ampliam as técnicas arqueológicas no processo de
construção das suas pesquisas.
A taxionomia das bolas de boleadeiras organizada por Rex González (1953) foi,
posteriormente, adaptada às peculiaridades brasileiras pelo arqueólogo Pedro Ignácio Schmitz
e seus colaboradores (1971). O objetivo do artigo de Schmitz, intitulado “Bolas de Boleadeira
no Rio Grande do Sul”, foi apresentar os artefatos de diversas áreas do Rio Grande do Sul e
estabelecer as possíveis conexões com as áreas próximas, em que as mesmas também
ocorrem. Utilizando a obra de González (1953) como guia de referência, Schmitz e os demais
autores não discutiram os princípios teóricos da classificação adotada. Quando encontraram
um artefato não classificado por Rex González, estes autores apenas o descreviam
detalhadamente. Por outro lado, se nas coleções estudadas não aparecem algum dos tipos, ou
sub-tipos da obra guia, o mesmo não é mencionado.
Schmitz (1971) não relacionou os artefatos arqueológicos com as fontes etno-
históricas e etnográficas. Sua preocupação foi adequar a tipologia de González aos artefatos
encontrados no Rio Grande do Sul. Schmitz (1971, p.64) menciona que: “a boleadeira é um
elemento pampeano, e ele foi aceito pelos grupos vizinhos, mesmo que o modo de vida e o
ambiente fossem muito diferentes”. Destacando, também, que, em sítios de Tradição
61
45
PRONAPA: Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas.
62
grandes intervenções nos sítios em tão curto tempo. Essas metodologias de campo seguiram
os pressupostos criados por James Ford (1962), que propôs, em sua tese de doutorado, o
método quantitativo para estabelecer cronologias culturais. Dias ressalta que Ford, baseado
nos pressupostos histórico-culturalistas, percebe as capacidades humanas enquanto fatores
restritivos ao livre desenvolvimento dos processos culturais. Dias, além de discutir e repensar
a tradição Umbu, realiza as análises tecno-tipológicas dos artefatos líticos associados aos
contextos arqueológicos desta tradição. Ao comentar a tipologia e a confecção das
boleadeiras, assegura que: “A produção de uma boleadeira demanda a confecção de um sulco
central, através de picoteamento, necessitando também o emprego de polimento para o
acabamento da superfície” (DIAS, 1994, p.124). Dias comenta que encontrou um artefato de
boleadeira nas escavações no sítio RS-C-43, a 40 cm de profundidade, relacionado com as
perturbações estratigráficas dos cortes externos. A arqueóloga destaca que este artefato é
tradicionalmente associado à tradição Umbu. Na continuidade de suas pesquisas nos sítios de
caçador-coletor da região do Alto Rio dos Sinos, Dias (2003) identificou, entre os demais
artefatos líticos, duas boleadeiras presentes nos sítios (RS-S-327 e RS-358)46. A autora
também se dedica a descrever a tipologia das boleadeiras da seguinte maneira: “Ambas são
confeccionadas em basalto e apresentam formato esférico, sulco periférico produzido por
picoteamento e polimento” (DIAS, 2003, p.251).
Flamarion Gomes (2002) afirma que as bolas de boleadeiras freqüentemente
encontradas na superfície dos sítios arqueológicos estão diretamente relacionadas a grupos
indígenas associados à Tradição Umbu. Porém, ainda que sua presença seja menor em sítios
Guarani, impossibilitando maiores estudos, não deve ser negligenciada. Para o arqueólogo, os
artefatos líticos Guarani tendem a ser confeccionados com matéria prima local. Como os
Guarani ocuparam grandes extensões de terras não existe uma especialização em determinado
tipo de rocha: “O tipo de trabalho no lítico é semelhante à técnica dos caçadores pampeanos,
variando entre o lascado e o polido” (GOMES, 2002, p.75). Gomes não comentou as fontes
etnohistóricas para explicar o uso das boleadeiras pelas etnias indígenas, mas com base nas
análises tipológicas considerou as técnicas no lítico polido como características similares
entre os índios Guarani e os Pampeano.
Gustavo Wagner (2004), estudando o sistema de ocupação dos grupos ceramistas pré-
coloniais do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, menciona os sítios arqueológicos
denominados por Schmitz (1958) como “paradeiros guaranis”. Wagner descreve estes sítios e
46
As datações para esses sítios arqueológicos com boleadeiras não estão disponíveis na tese da autora.
64
apresenta os resultados das análises das coleções realizadas por Schmitz. O arqueólogo
comenta que os dois assentamentos estão situados em meio a um sistema de dunas móveis
ligadas a uma cadeia de lagoas. O material coletado em ambos os sítios é idêntico e por essa
razão Schmitz descreveu-os em conjunto: “[...] grande quantidade de cerâmica, dezenas de
pontas de flechas, [...] machados polidos, regular número de machados lascados prontos ou
em preparo, simples lascas aproveitadas como machados ou facas, uma bola de charrua47 [...]”
(SCHMITZ, 1958, p.115). Pela primeira vez, Schmitz relaciona diretamente a boleadeira com
a etnia Charrua, fugindo de suas características tipológicas. Devido à presença de bolas de
boleadeiras e pontas de flechas, Wagner relaciona estes artefatos aos caçadores-pescadores
das “Zonas de Paisagens Abertas” 48, e compreende que os sítios arqueológicos referidos por
Schmitz provavelmente foram reocupados pelos horticultores do Planalto e, finalmente, pelos
horticultores Guaranis, como indicam os fragmentos de cerâmica associadas ao concheiro.
Wagner49 também não utiliza fontes etnohistóricas para explicar a reocupação dos sítios
arqueológicos, mas interpreta as boleadeiras e as pontas de flechas encontradas nestes locais
como índices da presença de índios caçadores.
47
A bola de boleadeira recebe de Schmitz (1958) o nome da etnia indígena Charrua.
48
Denominação atribuída por Arno Kern (1994).
49
O autor também se refere à presença de bolas de boleadeiras no sítio arqueológico Sambaqui de Itapeva.
65
no Séc. XVIII. O avanço do contato permite relatórios mais consistentes como o do português
José Saldanha (1787) e do espanhol Felix de Azara (1783-1806).
Ítala Becker (1982), ao revisar as fontes históricas, constata que, somente após o
desaparecimento dos grupos indígenas pampeanos, cresce entre os antropólogos e
historiadores uruguaios, brasileiros e argentinos o interesse em estudar e resgatar sua história.
Estes pesquisadores tinham como objetivo tanto descrever os grupos etnográficos dentro do
enfoque da ciência antropológica (TESCHAUER, 1929; SERRANO, 1936, 1947; PORTO,
1954; ACOSTA y LARA, 1961, 1969-1970, entre muitos outros), como revelar a sua
contribuição no surgimento dos povos platinos. Eles demonstram também que, no mesmo
território, apesar da presença dos índios Charrua e em desfavor deles, estabeleceu-se a
República Oriental do Uruguay. Becker afirma que os índios Charrua e Minuano são dois
grupos de pescadores e coletores que partilham a antiga Banda Oriental do Uruguay com dois
outros grupos conhecidos como Chaná e Guarani. Os Charrua e Minuano seriam física,
cultural, econômica e socialmente semelhantes a caçadores do sul da Argentina. Quando o
contato com o branco se intensificou, os caçadores seriam uns 2.000 indivíduos, os quais se
dividiam entre 1.100 Charrua e uns 900 Minuano; os primeiros eram habitantes de ambas as
margens do Rio Uruguai, os segundos situavam-se ao longo da costa atlântica, desde a Lagoa
Mirim até a altura de Montevideo (BECKER, 1982).
A autora enfatiza que, devido à ocupação branca nos seus territórios iniciais,
ocorreram deslocamentos, mas suas posições originais sempre ficaram relacionadas à Banda
Oriental del Uruguay. Becker explica que, embora o colonizador muitas vezes unisse os
Charrua com os Minuano confundindo-os, tratava-se de duas populações bem diferenciadas,
que ocupavam espaços separados, apresentavam aspectos culturais e sociais inconfundíveis e
seguiam líderes independentes. Entretanto, não está claro se falavam línguas ou dialetos
diferentes. O ambiente dos dois grupos são os campos, intercalados de bosques, sempre
próximos aos córregos de água, onde há fartura de recursos animais e vegetais.
Diferentemente dos grupos horticultores Guarani, que foram rapidamente aldeados ou
entregues ao colonizador sob forma de “encomienda”, os índios pampeanos conseguiram
manter sua vida na periferia da civilização por mais três séculos.
Os Charrua e Minuano continuaram sendo caçadores, enquanto o colonizador não
conseguiu, por si, ocupar e incorporar o território indígena. O território colocado entre as duas
fronteiras em expansão, a portuguesa e a espanhola, ficou quase dois séculos uma “terra de
ninguém”, onde o nativo podia continuar sem ter a sua economia ameaçada. Os índios
pampeanos eram solicitados para trabalharem para os colonizadores, mas em ocasiões
66
esporádicas, sendo também combatidos por estes, mas sem poder ser totalmente exterminado
porque mantinha o seu território, que lhe garantia certa liberdade. Com a intensificação do
contato, os indígenas tiveram acesso aos elementos inseridos pelo colonizador; inicialmente,
ao cavalo, com o qual se tornaram ágeis cavaleiros; depois, ao gado das vacarias espanholas.
Os pampeanos ao dominarem “a montaria usavam as bolas de boleadeiras e o laço,
instrumentos comuns, e necessários aos campeiros que nestes campos vadeiam, neles tiveram
a sua origem, com estes apanham no campo várias éguas e potros bravos” (BECKER, 1982,
p.95). As boleadeiras, além de serem as armas que acompanharam os índios pampeanos
durante toda sua vida, continuam presentes na sua mobília funerária. Lope de Sousa (1530)
revela a localização de um cemitério nas proximidades de Maldonado (Uruguai), com trinta
índios Charrua enterrados em covas individuais, e junto às mesmas estavam os seus pertences,
sendo a única forma de propriedade indígena. Becker (1991) comenta que os corpos eram
enterrados em covas rasas, cobertas com pedras ou ramas. Sobre esse pequeno acúmulo, eram
colocadas as boleadeiras; a lança ficava plantada no lado oposto ao qual deixavam o cavalo. A
autora menciona que Azara (1936) argumentou que o cavalo era sacrificado sobre a sepultura,
por desejo expresso de seu proprietário. Serrano (1936, p. 351) o contestou, pois acredita que
o cavalo era deixado vivo ao lado da cova para a viagem que o defunto deveria realizar.
No final do Séc. XVIII, e nas primeiras décadas do Séc. XIX, a população espanhola e
portuguesa ocupa em definitivo o território que explora economicamente, restringindo cada
vez mais o espaço dos pampeanos. Os indígenas perderam o gado para os fazendeiros; sem a
caça e sem o território, só lhe restava a opção de se empregar com os brancos, dos quais se
tornaram dependentes. Inicialmente, estes eram contratados para defenderem as fronteiras,
após a independência das colônias: “o índio e toda a sua família se fez guerreiro e os caciques
se fizeram comandantes militares” (BECKER, 1982, p. 12). Ainda era possível a vida tribal,
mas esta já muito deteriorada. Havia também trabalho nas estâncias; porém, poucos
aceitavam, pois teriam que se afastar do grupo e do seu ambiente natural. As guerras de
fronteiras acabaram e o território foi todo ocupado pelo conquistador. Num pequeno espaço
de tempo, na República Oriental do Uruguai, no Rio Grande do Sul e nos campos de
Corrientes, não havia mais espaço para a vida tribal de um grande grupo indígena. Os índios,
recusando-se a mudar seu modo de vida e a servir o branco, passaram a invadir as estâncias
para roubar o gado armados com suas bolas de boleadeiras. Teschauer (1929, p.212-213)
comenta que o conflito dos pampeanos não era só com os espanhóis, mas também com os
Guarani aldeados: “Estes, por muito tempo, foram inimigos jurados das reduções guaraníticas,
que sofreram deles diversos e contínuos assaltos como de Yapeyú y la Cruz”. Becker afirma
67
que os pampeanos não abandonaram suas armas primitivas embora modificadas com os
elementos inseridos pelos conquistadores, pois utilizaram nas freqüentes disputas pontas de
flechas e bolas de boleadeiras. Neste período de conflitos, a vida indígena se desorganizou,
pois os recursos estavam cada vez mais escassos, os toldos não lhes garantiam mais
segurança. Os movimentos são freqüentes, os cavalos cada vez mais estropiados, os indígenas
morriam em grande número nos combates. As epidemias de varíola contribuiram para a
redução da população indígena. Mesmo assim, os pampeanos resistiram às tentativas de
aldeamento pelo colonizador e, devido a essa insistência de manterem o seu modo de vida
primitivo no espaço, já todo dominado pelo branco, foram exterminados pelo exército
uruguaio. O exército Uruguaio, sob o comando do General Fructuoso Rivera, pressionado
pelos proprietários de terras que temiam pelas suas vidas e bens, preparou a emboscada de
Salsipuedes, em 11 de abril de 1831, em que mataram os homens Charrua a fio de espada. As
mulheres e crianças foram distribuídas entre a população branca para lhe prestarem serviço e
aprenderem a cultura colonial espanhola. Deste massacre, sobraram ainda uns trinta índios
destribalizados, sem história, perdidos no meio da população européia. A miscigenação para o
trabalho como peões nas estâncias foi à única opção de sobrevivência que lhes restava. Como
haviam se tornado ágeis cavaleiros, contribuíram muito no trabalho com o gado, inserindo
suas bolas de boleadeiras nas atividades rurais. Atualmente, a boleadeira continua na
indumentária do gaúcho como uma herança cultural da história dos índios pampeanos.
Van de una parte á otra corriendo la caza, y llevan consigo sus mujeres é hijos, é las
mujeres van cargadas de todo que tienen, é los hombres van siguiendo su montería é
matando los ciervos y avestruces, arrojándoles unas bolas de piedra con trayllas ó
pendientes de una cuerda, como ya en otra parte la historia ha hecho mención de
tales armas. También usan algunos arcos é garrotes en su montería. Estos indios
50
Francisco de Puerto é o grumete que escapou da matança da expedição de Solís e que virou prisioneiro dos
índios, incorporando-se anos depois à expedição de Gaboto como intérprete da língua indígena.
51
Oviedo não é muito claro ao definir qual é o rio a que se refere, já que no parágrafo anterior havia falado no
rio Paraguai. Porém, a imediata menção do rio Negro leva a pensar que o rio que Oviedo está se referindo é o
Rio da Prata (1535, p.4).
52
Jacroa “há sido ya aceptado como sinónimo de “charrua”. A maioria dos autores atribui a erros de traduções e
de interpretações fonéticas das variantes dos “gentilicios”, especialmente em relação a letras iniciais de ambos
os vocábulos” (ACOSTA y LARA, 1961).
70
Acosta y Lara (1961) ressalta que, em ordem cronológica, seria esta a primeira
menção histórica aos Charrua53; porém, é possível contar também com as descrições do
navegante Diego García54, que havendo conhecido as costas brasileiras no mesmo período que
Gaboto, refere-se a estes indígenas. Diego Garcia (apud ACOSTA y LARA, 1961, p.4) relata,
em 1530-31, que, no Cabo Santa Maria, atual Punta del Este: “yentoda esta costa no parece
yndio ny alderredordelcavo mas luego ay adelante ay una generación qsellama los chaurruaes
questos no comen carne umana manttienense de pescado e caza de otra cosa no comen”. E
repete esta citação quando se refere aos grupos indígenas que conheceu em sua viagem: “los
charruases de la vanda del norte, estos comen pescado e cosa de cá e no tienen outro
manteniym”. Acosta y Lara acredita que Garcia provavelmente não tenha visto pessoalmente
os Charrua, mas que soube deles através dos Guarani, ou pelos timbúes, três dos quais levou
consigo ao regressar a Espanha.55 Ao final de 1531, visitou o Rio da Prata o português Pero
Lope de Sousa que, ao se referir aos grupos indígenas que encontrou, conta que eram três
grupos. O primeiro estava na Bahia de Maldonado, ao Oeste do Cabo Santa Maria, (Punta del
Este), lugar onde Garcia afirmou a presença dos “chaurruaes”. Sobre os indígenas, Pero Lope
de Sousa (1531, p.5, apud ACOSTA y LARA, 1961, p.306) enfatiza que estes receberam os
portugueses “com grandes choros e cantigas mui tristes”. Lope de Sousa indica também o
costume de amputar os dedos. É muito provável que os índios que encontraram foram os
Charrua devido a este costume e a sua localização na mesma zona mencionada por García e
Ruy Díaz de Guzmán.
Com Lope de Sousa (1531) termina o ciclo de descobrimento e com Pedro de
Mendoza inicia a conquista. A magnífica expedição deste último chegou ao Rio da Prata no
início de 1536, ancorando seus quatorzes navios em San Gabriel, colônia, ou seja, na mesma
hospedagem que Magalhães utilizara dezesseis anos antes. Neste local, Schmidel (1534-1554)
se refere aos “Zechuruass”; quando regressou à Alemanha, publicou as experiências que viveu
53
Os Charrua recebem dos cronistas diversas nomeações, isto se deve às diferentes nacionalidades dos
informantes.
54
Diego Garcia de Moguer (1532 apud ACOSTA y LARA, 1961, p.6), apresentado por alguns historiadores
como português e por outros como espanhol, já havia vindo ao Rio da Prata com Solís, e pela terceira vez com
a frota do adelantado Pedro de Mendonza.
55
A síntese feita em Sevilha (1530) para investigar a origem e o destino dos índios levados à Espanha pela
expedição de Gaboto. Garcia (apud ACOSTA y LARA, 1961, p.178) declarou que estes três timbúes -
“ätamburures” - haviam sido comprados no “Rio Solís” de outros índios inimigos seus - os “guaraníes, que los
come”.
71
naquela expedição. O alemão destacou em sua obra tão conhecida pelos pesquisadores da
história indígena “Allí encontramos con un pueblo de Indios llamados Zechuruass que
constaba como de 2.000 hombres, y que no tenían más de comer que pescado y carne”.
Schmidel faz mais duas menções aos Charrua. A primeira é ao falar da indumentária dos
Querandi “carendies, su vestir era como el de los Zechurg del ombligo á las rodillas”
(SCHMIDEL, 1986, p.147). E a segunda quando enumera os grupos indígenas que se aliaram
para atacar o povoado de Buenos Aires “Carendies, Barenis, Zechuruass y Zechenais
Diembus”, (SCHMIDEL, 1986, p.154)56 Acosta y Lara (1961), consultando as crônicas do
alemão Schmidel57, adverte que não é possível afirmar que os indígenas que ele menciona são
os Charrua, pois o alemão não conheceu a Banda Oriental, mas se realmente ele fez contato
com esta etnia foi com o grupo que interferiu ao ataque a Buenos Aires (SCHMIDEL, 1986,
p.6).
Acosta y Lara considera que os primeiros europeus que realmente estabeleceram
contato com os índios Charrua na Banda Oriental do Uruguai foram os membros da expedição
de Juan Ortiz de Zaráte (1573). Nos primeiros contatos entre Charruas e espanhóis, não
ocorreram desavenças, mantendo-se o espírito de paz. Nesta expedição, veio como capelão o
acerdiano Martin Del Barco Centenera. Nas importantes observações de Centenera, expostas
em seu poema “La Argentina” (1836), Acosta y Lara resgatou várias informações sobre o
contato dos espanhóis com os Charrua. Centenera, além de narrar o contato com os índios
Charrua e descrever hábitos, comenta a penosa estadia dos expedicionários em Santa Catalina.
Nesta expedição, a miséria e a fome se agregaram à humilhação de uma oficialidade despótica
repressora dos gestos de insatisfação dos viajantes. Em meio a tantos erros e divergências,
ocorreu o inesperado. Chegando a São Gabriel, os espanhóis foram surpreendidos por um
temporal vindo do Sul. Este foi tão violento que: “pilotos y maestres, marineros, grumetes,
pajes, frailes y soldados, mujeres y muchachos, pasajeros, andaban dando voces muy
turbados. Los gritos y alaridos mensajeros allí son de una nave a otra enviados, Y cada cual
socorro demandaba.” (canto X). Ao mencionar os índios Charrua, Centenera os denomina da
seguinte maneira: “la gente que aqui habita en esta parte charruahas se dicen, de gran brío, a
quien ha repartido el fiero Marte su fuerza, su valor y poderío”. Estes índios eram altos e
habilidosos nas guerras e nas batalhas, atrevidos e corajosos.
56
Índios, Querandíes, Guaraníes, Charruas y Chaná-timbúes.
57
Schmidel (1986, p.196) é bem conciso ao expressar que os indígenas de San Gabriel não puderam ser
encontrados, ou seja, que não foram vistos. E que estes haviam fugido com a chegada dos espanhóis. Mendoza
somente em outra oportunidade pisou em terra uruguaia.
72
58
Sobre as incidências ocorridas na expedição de Zárate com os Charrua, é possível ampliar os detalhes na carta
de Hernando de Montalvo (1576), tesoureiro da expedição.
73
A memorável notícia que da fronteira do Rio pardo chegou a esta Villa, de serem
tomados aos castelhanos seis povos de Missões, explica-se da maneira seguinte: Do
75
Acosta y Lara (1969/1970), no seu segundo volume, intitulado “La Guerra de los
Charrúas em La Banda Oriental” (período pátrio), realizou uma continuidade de suas
pesquisas publicadas em 1961. Com novas fontes documentais, o autor visou ampliar suas
investigações até a primeira presidência do General Fructuoso Riveira (1830-1834), na qual,
59
O professor Uruguaio Flavio A. Garcia publicou um trabalho sobre o estado geral da Banda Oriental em 1803,
baseado especialmente nos documentos que consultou no Arquivo Histórico Nacional de Madrid. Sua leitura
ilustra amplamente sobre o tema em questão nesta pesquisa (ACOSTA y LARA, 1961, p.218).
76
como sabemos, foram exterminados os últimos grupos de Charrua infiéis que restavam dentro
do território nacional Uruguaio.
De acordo com o autor, além dos Charrua e Minuano, antigos habitantes da Banda
Oriental, os Guaycurú e os Abipón também participaram da revolução de Artigas em 1811-
1820. Acosta y Lara comenta que os Charrua, neste período, ainda conservavam suas
características culturais primitivas e, desde o início, atuaram como fiéis patriotas na
revolução. Os índios pampeanos eram nômades e caçadores, que com a colonização
aprenderam a utilizar o cavalo e a caçar o gado chimarron. E, sem dúvida, aderiram à revolta
artiguista nos anos de 1812. Esta adesão dos Charrua e Minuano às idéias de Artigas teve
aspectos muito singulares, já que não obstante estes índios concordam com certas formas de
convivência nas ordens patrióticas, mantendo dentro delas sua condição de selvagens e
independentes. Acosta y Lara afirma que consultou os relatos do General Antonio Díaz
“Apunte varios sobre los charrúas” (1891), e que este diário contém importantes informações
sobre a temática. Díaz relatou que, em 1812: “hicieron los charruas, una especie de pacto y
alianza con el Gral. Artigas a q.n.tenian respeto ofreciendo pelear contra los realistas. En
consecuencia se Le incorporaron”. Diaz destaca que os Charrua eram muito receosos e
desconfiados devido ao seu caráter independente e retraído, estes acompanhavam o exército
espanhol a distância “y de repente alzaban la toldería y no vovian al campo en mucho tiempo.
Sin embargo nunca la abandonaron del todo” (DÍAZ, 1891, apud ACOSTA y LARA, 1961,
p.3).
Os Charrua durante 300 anos estiveram em incessantes guerras com os espanhóis, sem
um só dia de paz nem trégua, até o ano de 1812, quando se uniram a Artigas. Os indígenas
fizeram com Artigas uma espécie de pacto e aliança, mas conservaram sua independência,
seus costumes e hábitos ferozes. Díaz (1891) mencionou, em sua pesquisa, o individualismo
dos Charrua dentro das ordens artiguistas e a persistência do uso de armas primitivas com
exclusão total da arma de fogo. Ele explica que, enquanto os Guarani missioneiros usavam o
fuzil e pistolas e, inclusive, realizavam ensaios para a fabricação de pólvora, os Charrua
continuaram se valendo das suas armas tradicionais. Suas armas “son la Lanza, la flecha, la
honda y las bolas. La primera y última son de caballería, ambas temibles, pues la lanza tiene
en su punta una espada entera muy bien asegurada que compran a los Portugueses a cuenta de
caballos” (DÍAZ, 1891, apud ACOSTA y LARA, 1961, p.6). As boleadeiras usam contra os
jinetes, jogando-as nas patas dos cavalos. Acosta y Lara descreve o relato do capitão
Francisco B. Laguardia (1812) como uma maneira de comprovar a continuidade do uso das
armas primitivas pelos índios pampenos aliados a Artigas: “Sobre los efectivos de Artigas en
77
Muitas foram as pesquisas sobre os motivos para o extermínio dos Charrua, ato
realizado no governo do General Fructuoso Rivera (1830). Acosta y Lara reuniu e ordenou
uma série de documentos e referências em que os responsáveis pela emboscada de
Salsipuedes tentam justificar suas atitudes.
Com o país Uruguaio livre no período pátrio II (1830-1834) e a atuação do General
Rivera como Presidente do Uruguai (24 de outubro de 1830), as providências começam a
serem tomadas contra os Charrua, que continuam nos campos a saquear as estâncias,
recusando-se a abandonar sua vida nômade. Devido à barbárie realizada pelos índios nas
estâncias, foi necessário o envio de um corpo de expedicionários que restabelecesse a ordem e
a legalidade, normalizando as condições de vida no meio rural. Esta expedição causou uma
série de disputas com os Charruas, que continuaram cada vez mais resistentes a abandonar seu
modo de vida primitivo. Acosta y Lara destaca que reduzir os indígenas, dentro das ordens
nacionais, seria árdua tarefa para qualquer líder que assumisse a presidência do país. Os
compradores das terras exigiam que estas estivessem sem a presença de índios. Acosta y Lara
considera que a repressão de 1831 se deve às imprudências dos indígenas como citado acima,
mas também às negociações políticas da época. O autor ressalta que o mesmo é afirmado nos
escritos de Carlos Anaya e Antonio Diaz (filho). Estas informações se encontram em uma
carta de Rivera ao Coronel Manuel Lavalleja (1831): Rivera (apud ACOSTA y LARA, 1961,
p.69) advertiu que “los caciques charrúas apoyarían a una eventual revolución contra su
Gobierno, decidiéndose entonces a ponerlos bajo control o a borrarlos del mapa”. O General
Rivera organizou duas etapas na campanha de 1831. A primeira consistiu em uma manobra
envolvente que ocupou grande número de couros clandestinos, prendendo os que trabalhavam
com eles, já que muitos eram desertores do exército ou acusados de outros delitos comuns. A
ação de Rivera se completou com um minucioso inventário dos depósitos de couros que havia
nas estâncias, povos e lugares de embarque, confiscando toda existência cuja origem não fora
devidamente justificada. A segunda etapa da campanha contra os Charrua só foi viável porque
os atraíram a uma cilada, já que não tinham como os deter e nem se animaram a enfrentá-los
em um combate honesto a campo aberto. Coube ao General Laguna a tarefa de internar-se no
deserto e firmar contato com alguns dos principais caciques a mando do General Rivera. A
falsa proposta foi convidá-los para apoiar o governo uruguaio na suposta próxima guerra
79
contra o Brasil. A hierarquia do General Laguna e sua amizade com o Cacique Charrua Juan
Pedro proporcionou bons resultados. Os Charrua, convencidos da suposta guerra, migraram
até as pontas de Queguay, Potrero de Salsipuedes, onde o Presidente os esperava para
esclarecer os planos do evento. As negociações foram realizadas com grande sigilo, nada era
transparente ao público, nem as negociações de Laguna, nem os acontecimentos dos três dias
que os Charrua permaneceram acampados com as tropas, nem os detalhes do combate em si.
As notícias do massacre de Salsipuedes, fornecidas a imprensa da capitania, limitaram-se a
justificar o ato do governo de Rivera (apud ACOSTA y LARA, 1961, p.70): “el desenfreno
criminal” de las “hordas salvajes y degradadas, sus recientes y horribles crimenes, no habían
dejado al Gobierno más alternativa que la de atacarlas y destruirlas”. Acosta y Lara enfatiza
que, em razão da ausência de maiores informações e relatos dos participantes da batalha de
Salsipuedes, contou com os aportes históricos como a “Memória”, escrita pelo coronel
Manuel Berro Lavalleja (1948), publicada anos após por Mariano Berro, e uma série de
referências obtidas pelo General Antonio Díaz, que residia em Montevideo durante a
campanha de Rivera. Em suas informações, basearam-se Antonio Díaz (filho) e Eduardo
Acevedo Díaz, nas suas respectivas versões do episódio. Porém, Acosta y Lara considera
estas versões um pouco tendenciosas devido à filiação política dos autores. O certo é que
nenhum outro fato contribuiu tanto para confirmar o extermínio dos Charrua como o conteúdo
das cartas enviadas pelo próprio Rivera ao General Laguna, convocando-o para estabelecer
contato com os líderes indígenas nas jornadas anteriores ao encontro.
Com o massacre de Salsipuedes, o General Rivera deu por vitorioso os objetivos da
sua campanha, permitindo que as tropas do exército uruguaio que haviam participado do
combate se reintegrassem aos seus postos. Algumas unidades foram licenciadas e outra, a
mando do coronel Bernabé Rivera, saíram em busca do restante dos Charrua que haviam
escapado do massacre. Em 27 de junho de 1832, o coronel Bernabé permitiu um choque
armado aos Charrua, na barra de Mataojo com o Arepay, em que os Charrua, apesar da sua
eficiência guerreira, tiveram quinze mortos e oitenta e dois prisioneiros, enquanto nas forças
do governo uruguaio não foi registrada nenhuma baixa. Os prisioneiros do combate de
Mataojos foram levados a Montevideo, conforme os planos do general Rivera. Os indígenas
foram integrados à população da capital. Acosta y Lara encontrou documentos relativos a
pedidos de liberdade dos Charrua; porém, não se sabe se estes foram repartidos ao público
como fizeram com os prisioneiros de Salsipuedes. O que se sabe ao certo, em relação aos
últimos Charrua, é que cinco foram levados à França, sendo eles: “Ramón Mataojo, Vaimaca
Perú, Senaqué, Laureano Tacuabé y Micaela, Guyunusa” (RIVET, 1930). É necessário
80
esclarecer que o cidadão francês Monsieur de Curel levou para exposição apenas quatro
indígenas; Micaela é a filha do casal Tacuabé e Guyunusa que nasceu em Paris. Entretanto,
não se sabe o que o que aconteceu com ela e com o pai. Os outros três morreram em menos de
um ano de cativeiro e seus restos foram mantidos no Museu de História Natural de Paris até
1998, quando gestões do governo uruguaio conduziram o seu repatriamento.
Antonio Serrano (1936) desenvolveu uma etnografia “De La Provincia Del Uruguay”.
O objetivo do autor foi conhecer as etnias indígenas que habitaram o país. Serrano apresentou
um quadro completo da etnologia e etnografia da antiga Província do Uruguai, além de
resolver certos problemas relacionados à língua e a localização dos Charrua. O antropólogo
também pesquisou as etnias Chaná, Guaynás, Caarós, Tupis de Azara, Kaigangue e Tupi-
Guarani. Em 1947, na continuidade de suas pesquisas, o autor publicou “La Etnografia de los
Aborígenes Argentinos”, baseado nas fontes etnohistóricas e etnográficas, em que se dedicou
a estudar as diferentes parcialidades indígenas e sua provável forma de organização no
momento da conquista espanhola.
Serrano considera que a história destes indígenas é o resultado de lentas
transformações culturais. Ele acredita que o principal fator transformador da organização
primitiva foi a colonização que introduziu novas formas de economia, estabeleceu colônias e
cidades, impôs o trabalho servil, deslocou grande parte da população e provocou entre os
aborígenes guerras e alianças. Nesta pesquisa, optou-se por selecionar apenas alguns dos
grupos indígenas pesquisados por Antonio Serrano (1936 /1947) em seu mapa étnico e
geográfico. De uma forma analítica e sucinta, comentaram-se as etnias que, de acordo com
82
Serrano (1936) afirma que os Charrua ocuparam ambas as costas do rio Uruguai,
desde Yapeyú até quase todo o território uruguaio, com exceção de sua parte oriental, onde,
sem dúvida, entravam durante suas migrações. Em tempos históricos, os Charrua estenderam
seus domínios, chegando até a costa do Paraná, e ocuparam também maior parte do estado do
Rio Grande do Sul. Serrano comenta que os Charrua mantiveram relações de contato com
outras etnias. Para o autor, as nações Chana e Charrua falavam o mesmo idioma; porém, com
muitas formas dialetais. Essa unidade de dialetos foi contestada por Félix Outes (1913),
afirmando que este idioma “tiene estrechas vinculaciones con el de los actuales kaingangs
(modernos guayanás)”. Serrano (1936, p.66) comenta que, além do idioma, os Chana e os
Charrua possuíam outras características em comum: não eram “agricultores, el tipo de
vivienda era el mismo y todos tenían por costumbre amputarse una falange a la muerte de
cada pariente”. Porém, as etnias também apresentam características que as diferenciam. Os
Chana eram canoeiros e pescadores, as mulheres usavam adornos corporais e os homens
tembetás e adornos nasais. Enterravam seus mortos “en cementerios ex-profesos”. Enquanto
os Charrua não usavam adornos “auriculares y sus muertos (los huesos) eran llevados en
continuo peregrinaje en sus correrías” (SERRANO, 1936, p.67). Culturalmente, os Charrua se
assemelhavam muito aos indígenas de “la Pampa y los Chaná a los antiguos Guayanás”.
Porém, em “La Pampa”, especialmente na região dos Chechehet, os adornos labiais e
auriculares são abundantes e as referências históricas sobre o uso destes adornos pelos
Chechehet levaram Serrano (1936, p.68) a pensar em possíveis afinidades entre os índios
Pampas e os Ge Meridionais.
De acordo com Serrano, o resultado destas afinidades entre as culturas são os grupos
étnicos Pampa-Chaná e Charrua-Guayaná, cuja discussão deveria ser encarada livre dos
preconceitos que até hoje pesam na etnologia antiga do Rio da Prata. Após revisar os
vocabulários indígenas meridionais, Serrano concluiu que os idiomas dos Chaná e Guenoa
estão vinculados entre si e ambos se referem a um tronco lingüístico comum. Serrano
mencionou, ainda, que os trabalhos mais relevantes que consultou sobre a língua dos Charrua
foram as obras de Wilhelm Schmidt (1926, apud SERRANO, 1936, p.260) e Paul Rivet
(1924, apud SERRANO, 1936, p.680), os quais consideraram o idioma dos Charrua como
língua isolada. “Los más probable dice el primero-es que forme un idioma aislado pero no se
83
puede asegurar nada” (SERRANO, 1936, p.68). É necessário ressaltar que Serrano
(1936/1947) utiliza as informações do cronista Félix de Azara (1923) como uma das suas
principais referências na construção da etnografia sobre os índios Charrua. Azara (1923, apud
SERRANO, 1936, p.76) relata que os Charrua usavam tembetás: “Es este-dice, un pequeño
pedazo de madera de cuatro a cinco pulgadas de largo y de dos líneas de diámetro”. Estes
também tinham o costume de amputar “uma falanje de los dedos a la muerte de cada pariente
y Souza dice que vió hombres que solo tenían el pulgar”. As mulheres igualmente amputavam
seus dedos na perda de seus familiares (AZARA, 1923, apud SERRANO, 1936, p.79).
Percebe-se, nas descrições feitas por Azara (1923), que ao construir a sua narrativa sobre os
índios pampeanos recorreu ao diário de Pero Lope de Sousa (1530-1532), um dos primeiros
cronistas a falar sobre os índios Charrua e seus rituais funerários. A tatuagem facial foi um
dos distintivos desta nação, porém similar ao que acontece em outras nações indígenas, mas
cada parcialidade tem suas características próprias. Por exemplo, os Minuano tatuavam três
linhas azuis que iam desde a raiz dos cabelos até o extremo do nariz, enquanto os Charrua
tatuavam linhas transversais que iam de uma face a outra em torno dos olhos. Serrano,
novamente se utilizando das informações dos cronistas, considera que os índios que
D’Orbigny viu em 1828, nas proximidades de Montevideo, não foram os Charrua e sim os
Minuano, pois os Charrua desta região já haviam retornado ao norte do Rio Negro, onde eram
conhecidos como “antiguos charrúas”. Entretanto, os intrusos Minuano de “Entre Rios”,
havendo ocupado estes territórios, foram chamados de Charrua (D’ORBIGNY, 1839).
D’Orbigny (1839) relatou que os Charrua tinham uma estatura média de 1m68cm. Suas
vestimentas consistiam no clássico manto de peles de pequenos mamíferos, cujos couros
sovavam com graxa e logo pintavam com figuras geométricas. D’Orbigny comenta ainda que
esta vestimenta era comum ente os índios Patagones. As mulheres andavam nuas, apenas no
inverno vestiam mantos, ou se cobriam com pequenas telas, sem dúvida adquiridas com os
Guaranis.
Os Charrua pintavam as mandíbulas de branco nas ocasiões de guerra e também nas
festas, das quais participaram a convite dos Jesuítas. Serrano (1936, p.74) também buscou em
Schmidel (1534-1554) referências sobre a cultura material dos Charrua: “Los Hombres
usaban un manto de píele, las mujeres además de este manto de pieles usaban una pampanilla
de algodón que les cubría desde la cintura hasta las rodillas”. As armas dos Charrua foram “el
arco y la flecha con empleo de carcaj, las boleadoras, la honda y la lanza” (SCHMIDEL,1986,
p.101). O padre Catáneo citou a “maza” que deve ser a macana. As flechas eram de pontas de
pedra que talhavam com muita habilidade. As bolas eram de duas e de três pedras; no geral,
84
3.3.2 Minuano
De acordo com Serrano (1947), os Minuano foram confundidos, por diversas vezes,
com os últimos Guenoas: “los cuales los españoles comienzan a llamar también minuanes”.
No Séc. XVII, os Minuano, sendo perseguidos pelos jesuítas, migraram para o Uruguai e
começaram a ocupar a Banda Oriental do país e parte do território Riograndense, ao Sul do
Ibicuy. Em 1730, este grupo fez aliança com os Charrua que “maloqueavam” as estâncias da
costa do Paraná, entre Bajada e Santa Lucía. Suas armas eram as mesmas que usavam os
Charrua “el arco, la Lanza, la honda y las boleadoras de caballería” (LARRAÑAGA, 1924,
apud SERRANO, 1947, p.128).
3.3.3 Guénaken
Chechehet, a região das serras; por isso, receberam o nome de Serranos. Suas armas foram
arco e flecha, com o uso de carcaj e boleadeiras. Posteriormente, adaptaram dos araucanos o
uso da lanza. É possível que as boleadeiras não tenham sido armas antigas desta etnia, pois os
Guénaken, habitantes das serras bonaerenses, chamavam-nas de: “piedras del diablo y
creyeran que el surco que presentaban lo hacía este con la uña de su dedo pulgar”
(SERRANO, 1947, p.184).
Os índios moradores das serras, companheiros de viagem e missão do Padre José
Cardiel (1748) ao Rio Grande del Sauce, informaram-lhe que: “los toelches (chechehet),
llevan muchas de esas bolas a vender al Volcán para bolear fieras...” (CARDIEL, 1930, apud
SERRANO, 1947, p.259). Eles se referem às inúmeras pedras de boleadeiras com sulco, que
são facilmente encontradas nos paradeiros antigos do Sul de Buenos Aires.
3.3.4 Querandi
Serrano (1947) comenta que o nome Querandi aparece nas primeiras crônicas do Rio
da Prata. Diego García (1528) o menciona em sua clássica carta e, desde então, é citado sem
interrupção nos documentos históricos até 1678. Posteriormente, o nome Querandi só tem
valor histórico. As mais antigas informações sobre estes grupos correspondem a Sebastián
Gaboto (1527), informante da investigação judicial feita a bordo do navio “Santa Maria del
Espinar” a sua chegada a Sevilla”; porém, as mais completas são de Ulrico Schmidel (1534-
1554), mercenário alemão já mencionado nesta pesquisa, que viveu entre os indígenas e lutou
contra eles. Serrano descreve que os Querandi eram bem altos, os homens andavam nus e
muitas mulheres “llevaban un pequeño delantalcillo de paño que les tapaba hasta las rodillas”.
Durante o invieno “se combrian con mantos feitos de couro de nutria, similar os dos Charrua
e Patagones” (SERRANO, 1947, p.210). Suas armas eram arco, flechas e boleadeiras. As
boleadeiras dos Querandi eram de pedra e “las manejaban al igual que los charrúas y pampas,
aunque también usaban la de una piedra.” (SERRANO, 1947, p.211).
87
3.3.5 Pampas
Serrano (1947) ressalta que os índios “Pampas”, como eram denominados os índios
argentinos, foram descritos pelo Padre Joseph Sánchez, em 1772, que explicou que estes não
se tratavam propriamente de uma única nação: “Son pues los pampas-dice-una junta de
parcialidades de los indios que se reconocen en las tierras australes” (SERRANO, 1947,
p.200). Sem dúvida, através da literatura do final do Séc. XVIII e início do XIX,
especialmente, observa-se que a designação “Pampa” se reservava aos Guénaken, moradores
iniciais dos pampas, que haviam desaparecido, ou já estavam completamente absorvidos, e
não a todos os indígenas estabelecidos nas alturas. Serrano adverte que o nome Pampa: “no
sirve, pues, para designara a los primitivos habitantes de la llanura bonaerense y
circunvecinas, porque este nombre no involucra un sentido étnico sino geográfico”
(SERRANO, 1947, p.201). O Padre Diego Rosales (1666), que ingressou com a “compañia de
Jesus” ao Chile, relata que as armas dos índios Pampas foram: “la boleadora, el arco y la
flecha. Algunos misioneros han citado el uso de la honda para los del sur de Córdoba
(taluhet)”. As boleadeiras dos índios “Pampas” eram de duas bolas com sulco, atadas com um
tento de couro de vaca. Uma delas era menor e servia de “maniclã”. Pedro Lozano (1755)
lembra que a boleadeira era revestida em couro. As pontas de flechas eram feitas de perdenal,
mas era comum encontrá-las de madeira. Posteriormente, agregaram a lança e o coleto
defensivo como armas de guerra (SERRANO, 1947, p.204).
As mais antigas fontes sobre os índios Patagones consistem no breve relato de Antonio
Pigaffeta (1520), escrivão italiano da viagem de Fernão de Magalhães. Pigaffeta comentou
que seu capitão, depois de descrever os “gigantes” que os expedicionários encontraram no
Porto de San Julián, chamou-os de “Patagones” (SERRANO, 1947, p.214). Estes também
eram conhecidos por “Chonecas” como eram denominados os indígenas que povoaram o
extremo meridional do território. Sua área de dispersão compreendia toda a Patagônia ao Sul
dos Guénaken até o estreito, cujo litoral dividiam com as zonas de seus irmãos de raça e
idioma e, até certo ponto, de cultura. As armas deste grupo consistiam em arco e flecha. “Las
flechas de caña pequeñas que por un extremo tenían plumas como las nuestras y por el otro,
en lugar de hierro una punta de pedernal blanco y negro” (SERRANO, 1947, p.215). Pigaffeta
relata que: “La boleadora generalmente empleada como arma de caza, se considera entre os
Chónecas una adaptación reciente, debida a su contacto con las tribus de la Patagonia
Septentrional”. O cronista compreende que provavelmente a boleadeira já era utilizada há
muito tempo pelos parentes de raça e cultura dos Chónecas.
(1534-1554) apresentam os índios Querandi pela primeira vez. Nesta ocasião, o autor narra
um combate entre os Querandi e os espanhóis. Schmidel (1986, p.31) relata que Don Pedro de
Mendonza, o líder da expedição, mandou seu irmão Don Diego de Mendoza com trezentos
soldados e trinta cavalos bem equipados invadir o território dos Querandi, matá-los e ocupar
seu povoado. Entretanto, quando chegaram ao local, havia quatro mil homens, pois tinham
pedido auxílio aos amigos. Ao serem atacados, os Querandi resistiram aos espanhóis com
tanta força que chegaram a matar vinte soldados, seis fidalgos e a Don Diego de Mendonza.
Ulrich Schmidel que participou desta batalha afirma que os venceram, mas não puderam
capturar nenhum Querandi, pois os índios já haviam retirado suas mulheres e filhos do local.
Schmidel descreve também as armas que os Querandi utilizaram no combate:
Esses Querandis usam como armas uns arcos e dardos, que são uma espécie de lança
média com um perdenal aguçado na ponta. Usan também bolas de pedras atadas a
uma larga corda. Lançando estas bolas nas patas dos cavalos e cervos, os fazem
cair. Foi dessa maneira que mataram nosso capitão e os fidalgos. Os soldados
mataram com os dardos (SCHMIDEL, 1986, p.32). [Grifo nosso].
O mercenário alemão deixa explícito que as armas que utilizaram nessa batalha foram
as boleadeiras, pois as mesmas amarraram-se as patas dos animais. Como se sabe, a bola de
“honda”, por possuir uma única pedra, não realiza o mesmo efeito (SCHMIDEL, 1986, p.33).
Nos relatos anteriores, é quase impossível distinguir a qual arma se referem ao falar das
“pelotas de piedras”, pois em alguns momentos os cronistas se contradizem chamando as
boleadeiras de funda, ou bola perdida. Esta confusão na terminologia tem suas origens nos
nomes que os próprios cronistas usaram para descrever estes objetos. Eles procuravam os
termos equivalentes a seu contexto cultural. Outro motivo que contribui para estas
contradições está na tradução dos textos em alemão, espanhol ou holandês para o português.
No primeiro documento iconográfico das boleadeiras, registrado por Hendrick Ottsen, em sua
viagem ao Rio da Prata (1598-1601), o comerciante holandês ilustra dois índios Querandi: um
deles vestindo capa de couro, vestimenta usada no inverno; o outro, sem roupa, segurando a
“honda”60 O autor usa esta nomenclatura de forma metafórica para se referir às fundas, armas
conhecidas no seu contexto e usadas há mais de 2000 anos no Oriente Médio.
60
Expressão de origem holandesa usada por Ottsen é “Slingher”.
90
Lothrop (1932), baseado nos relatos de Lozano (1874), ressalta que os Querandi
utilizaram como armas: arcos, flechas, dardos, “fundas e bolas”. O autor enfatiza que os
indígenas eram peritos no manejo dessa última, com o que provocaram grandes perdas na
cavalaria espanhola (LOZANO, 1874 apud LOTHROP, 1932, p.99). As bolas a que Lothrop
se refere são as boleadeiras, pois somente uma arma com duas ou três pedras poderia amarrar-
se as patas dos cavalos.
Devido às inúmeras contradições apresentadas nos relatos sobre as bolas de
boleadeiras, decidiu-se especificar, neste trabalho, o que se considera boleadeira, bola perdida
e honda. Considera-se como boleadeiras os artefatos com duas e três bolas, sendo
indispensável destacar que a arma com a terceira pedra só começa a aparecer nas crônicas a
partir da segunda metade do Séc. XVIII. O instrumento com apenas uma pedra foi
classificado, na tipologia de González descrita acima, como “bola perdida”, podendo ser lisa,
aguçada em seu extremo ou eriçada com protuberâncias, sendo também denominada como
rompe-cabeças ou massas. Estas bolas quando apresentavam protuberâncias possuíam um
grande poder traumático, podiam ser arremessadas para atingir o alvo à distância e, se este
estivesse próximo, davam o golpe sem soltar o instrumento que estava revestido no extremo
por manejos de plumas. O que as diferencia das boleadeiras de duas e três pedras é seu
impacto, pois as boleadeiras imobilizam o adversário enquanto a bola perdida pode derrubá-lo
pelo golpe, mas não se amarra no alvo. O instrumento com apenas uma bola esférica, ou
lenticular, é conhecido como “bola de funda ou la honda”. Seu uso é universal e, ao contrário
do que alguns pesquisadores sugerem, a honda não é um artefato ancestral da boleadeira.
Estas três armas de arremesso que se menciona, ou seja, boleadeira, honda, bola perdida, são
diferentes instrumentos que estiveram em atividade nos pampas em um mesmo período, mas
91
com diferentes funções. Conhecendo as três armas, foi possível se perceber que Martiniano
Leguizamón (1919), baseado nos relatos dos cronistas, inclui todos os tipos de bolas de
arremesso em um mesmo grupo como se todas fossem boleadeiras. Além do mais, ele critica a
atitude dos arqueólogos em classificarem os artefatos como diferentes armas, enfatizando:
[...] un punto oscuro acerca de las boleadoras és cierta confunsion entre los autores
es la generalizada manera de considerar como tipos distintos de dicha pieza
arqueológica, a lo que se ha dado em denominar piedra de honda, bola perdida y
bola arrojadiza o mejor dito boleadoras (LEGUIZAMÓN, 1919, p.18).
não trazem otra cosa consigo senan pelles e redes para caçar: trazem por armas hum
pilouro de pedra do tamanho d'hum falcão, e delle sae hum cordel de hûa braça e
mea de comprido, e no cabo hûa borla de penas d'ema grande; e tiram com elle
como com funda: e trazem hûas azagaias feitas de páo, e hûa porra de páo do
tamanho de hum côvado (LOPE DE SOUSA, 1839, p.54).
A arma que Pero Lope de Sousa descreve é a bola perdida e não a boleadeira. A
diferença funcional das armas também pode ser identificada no diário do comissário espanhol
Juan Francisco de Aguirre enviado pelo seu país para demarcar as fronteiras entre Espanha e
Portugal, no Rio da Prata (1793-1796). Ele comenta o uso da bola perdida da seguinte
maneira: “la bola perdida los indígenas la atan un pedazo largo como vara más el otro
extremo que es por donde la toman para manejar ponen plumas de avestruz”. Na continuidade
do seu relato, Aguirre menciona que existem outras armas similares à bola perdida,
descrevendo o modo como os indígenas as utilizavam: “la volean sobre la cabeza como la
honda y la despiden con bastante distancia”. […] bolas de piedra o madera, puestas en lazo
largo como los otros, solo sirven para enredar los animales.” (1950, p.251). As bolas que
Aguirre mencionou por último se tratam das boleadeiras. Este relato reforça o uso da
boleadeira, da bola perdida e da honda em um mesmo período e contexto geográfico.
92
demonstra sua valentia esperando o golpe com a cabeça baixa sem retirá-la. Muitas vezes, no
primeiro golpe, o individuo é morto. Uma das regras para os sobreviventes é que as feridas
causadas pela boleadeira não devem ser curadas, havendo também grande festa para o
vencedor. Acredita-se que esse relato apresenta uma evidente contradição e exagero, pois
conhecendo a força do golpe da boleadeira o indígena jamais se submeteria a esse tipo de
aposta, colocando sua vida em risco.
A utilização da boleadeira como massa é também descrita no contexto da caça por
George Musters (1911), marinheiro inglês que viveu entre os índios patagônios e não somente
aprendeu a manejar as boleadeiras como a fabricá-las. Ele ressalta em seu livro intitulado
“Vida entre los Patagones” a função da boleadeira como massa na caça de um zorro (1911,
p.27) e também de um puma (1911, p.55). Porém, na imagem que Musters edita o indígena
que está caçando o puma já o boleou com a boleadeira que se visualiza sobre o dorso do
animal, mas a arma que aponta para o golpe é a bola perdida, ou talvez a boleadeira com duas
pedras com uma maniclã muito pequena, que se torna impossível de ser visualizada:
cuando la ofensa es leve, y el ofensor pobre, el ofendido suele azotarlo en el lomo y las
costillas con la boleadora” (FALKNER, 1911, p.108 apud GONZÁLEZ, 1953, p.154).
Alguns crânios araucanos, disponibilizados pelo Museu de La Plata para as análises de
González, apresentam feridas frontais cicatrizadas. Segundo González, estas classes de lesões,
freqüentemente encontradas em crânios da patagônia, devem-se a golpes com a boleadeira, ou
a bola perdida (1953, p.155).
O uso da boleadeira como massa também é narrado no poema de José Hernández, no
qual ele descreve a luta do seu personagem “El Gaúcho Martin Fierro” com um índio armado
de boleadeiras, expressando o valor do gaúcho e a habilidade do índio com as boleadeiras:
[...] Desató las boleadoras y aguantó con vigilancia. Peligro era atropellar y era
peligroso el huir: y más peligroso seguir. Esperando de este modo. Pues otro pedían
venir y caniarme allí entre todos. Las bolas la manejaba aquel bruto con destreza las
recogía con presteza y me volvía a largar. Haciéndomelas silbar arriba de la cabeza.
[...] La bola en manos del indio Es terrible e muy ligera hace de ella lo que quiere
saltando como una cabra. Mudos, sin decir palabra. Peliábamos como fieras. Al fin
Le corte una soga y lo empecé a aventajar (HERNÁNDEZ, 1948, Canto X).
esféricas. Ou seja, os instrumentos a que o autor se refere são a bola de honda e a boleadeira,
também conhecida como “avestruzeira” ou bola “arrojadiza”. Apenas em 1769, Antoine
Joseph Pernetty faz referência às boleadeiras com duas pedras e às “três marias”, nomeação
dada pelo gaúcho às boleadeiras com três pedras. Felix Outes (1905, p.389), baseado nas
informações do Padre Florian Paucke (1767), acredita que, na província de Buenos Aires,
provavelmente a boleadeira com três pedras também foi utilizada no Séc. XVIII, assim como
na província de Santa Fé, pelos índios Mocobies. No início do Séc. XIX, Outes já encontrara
informações concretas do uso das boleadeiras com três ramais em Phillip Parke King (1826),
comandante britânico que partiu como a Beagle para explorar e demarcar as costas sul-
americanas entre o Rio da Prata e a ilha do Chiloé, no Chile. Depois, Robert Fitz Roy (1833),
que comandava a Beagle na segunda expedição, dedicou-se a transcrever o diário da primeira
viagem do comandante Parke King (1826) para completar as informações do seu relato
expedicionário, publicada em 1839. Da mesma expedição, participou o naturalista Charles
Darwin.
Entretanto, Denebetti e Casa Nova (1917) afirmam que a boleadeira com três pedras já
era conhecida em períodos pré-coloniais. Estes arqueólogos, durante as escavações realizadas
no noroeste argentino, em uma Tumba em Tinticonte, encontraram três pedras de boleadeiras
do mesmo formato e destacam que estas pertenciam a um mesmo instrumento. Porém,
compreende-se que nada se pode constatar devido à decomposição do ramal em couro que
unia as bolas.
Antonio Larrañaga (1923) afirma que os Minuano, também denominados como
Güenoa, que aparecem nas crônicas somente a partir do Séc. XVII, muito se assemelham aos
Charrua. O autor destaca ainda que estes também haviam se transformado numa tribo eqüestre
de cavaleiros inimitáveis e suas boleadeiras consistiam num: “conjunto de três bolas de
aproximadamente meia libra cada uma, havendo também boleadeiras menores para caças de
emas” (LARRAÑAGA, 1923, p.174-175). Porém, não se pode afirmar que a boleadeira de
três pedras foi uma invenção dos índios Minuano, pois sobre este grupo existem raras fontes
que apresentam inúmeras contradições.
No entanto, as informações que se encontrou sobre as boleadeiras dos índios Charrua
nos Séc. XVII e XVIII destacam que o instrumento continua sendo composto por duas pedras:
“eran apenas duas bolas amarradas a una correia de cerca de quatro metros. As bolas eran de
pedra, não embrulhadas en couro, mas con cercadura para se amarrar o cabo” (IHERING,
1895, p.211; BECKER, 1982, p.136). Estas eram usadas para a guerra e para a caça como
arma de arremesso. Também utilizavam “uma espécie de funda que lhes parece peculiar, a
96
funda é una arma de tiro largo con la cual se arrojaban guijarros puntiagudos” (SERRANO,
1936, p.101).
O etnohistoriador uruguaio Eduardo Acevedo Díaz (1891), ao falar das armas dos
índios Charrua, no Séc. XIX, não comenta o número de pedras das boleadeiras, mas afirma
que: “Sus armas continúan sendo o arco e flecha, que carregan numa aljava de couro,
boleadoras, pedra de funda, lança, porrete e faca flamenga”. O mesmo autor comenta ainda a
participação dos Charrua como aliados às tropas portuguesas nas guerras por territórios.
Afirmando que os índios Charrua mesmo estando unidos aos conquistadores e tendo acesso a
armas de fogo não as utilizaram, pois em nenhum momento abandonaram suas armas
tradicionais: “Estes índios lutaram sim a favor dos portugueses, mas com suas flechas e bolas
de boleadeira as quais foram eficientes armas, pois os indígenas eram excelentes manejadores
dos instrumentos de arremesso” (DÍAZ, 1891 apud SERRANO, 1936, p. 102).
Klaus Hilbert (1991), baseado nas fontes deixadas pelos cronistas, afirma que, com o
avanço da colonização européia, ocorreram muitas mudanças no modo de vida dos índios
Charrua. Porém, alguns dos seus hábitos continuaram inalteráveis até a sua extinção; como
exemplo, comenta a substituição da sua alimentação antes baseada na pesca, na caça e na
coleta de frutos pela carne do gado chimarron. A inserção do cavalo contribuiu com este
processo. Como conseqüência há também uma modificação no armamento: “A los arcos y
flechas se le suman largas lanzas con puntas de hierro, al mismo tiempo se le agregan las
boleadoras con 3 bolas, adecuándose éstas mejor para la caza de ganado cimarrón”
(HILBERT, 1991, p.6).
Arno Kern (1994) compreende que a história dos índios Charrua e Minuano parece ter
sido caracterizada pelas constantes reações aos invasores de seus territórios, inicialmente os
Guarani, depois os europeus. Porém, apesar de terem resistido incessantemente às invasões,
seu espaço ficou cada vez mais limitado e seu modo de vida primitivo ameaçado:
“Finalmente, em 1835, os últimos nômades que ainda não haviam sido integrados na
sociedade local, foram definitivamente eliminados e uma considerável parcela dessa cultura
[...] sobreviveu, através da mestiçagem” (1994, p.103). Kern afirma que estes indígenas
atualmente são reconhecidos nas fisionomias indiáticas de muitos gaúchos dos pampas do
Uruguai e do Rio Grande do Sul. Para o autor, os pampeanos deram à sociedade colonial duas
contribuições importantes. Em primeiro lugar, “um colorido na tez e um olhar especial, pois
colaboraram de maneira inquestionável para a formação étnica dos primeiros habitantes das
estâncias de gado, peões ou filhos dos proprietários”. Em segundo, contribuíram com os
hábitos e elementos culturais: as reuniões em torno do fogo de chão, o chimarrão, o churrasco,
97
4.1 A ETNOARQUEOLOGIA
globalização. Devido a esta situação, em que a maioria dos casos é real, que muitos
pesquisadores consideram que as sociedades atuais não podem servir como referencial
análogo das sociedades do passado. Politis ressalta que esta crítica é, sem dúvida,
injustificada, pois a investigação etnoarqueológica opera nos princípios da argumentação
analógica e, portanto, os elementos da analogia (a fonte e o sujeito) não devem ser iguais.
Neste caso, não seria necessário uma investigação analógica e sim devem ter certas condições
de comparabilidade. Para Politis (2002, p.63), a força da analogia gerada a partir da
Etnoarqueología não reside no grau de semelhança entre a fonte “(en este caso, la sociedad
presente) y el sujeto (la sociedad pasada percibida a través del registro arqueológico) sino en
la estructura lógica de la argumentación y en la similitud entre los términos de la relación”. É
óbvio que, quanto maior for a semelhança entre a fonte e o sujeito, a argumentação analógica
tem um maior potencial; porém, este grau de semelhança por si só não garante a consistência
da argumentação na veracidade e nos enunciados. Do ponto de vista étnico, a Etnoarqueologia
tem sido questionada tanto por antropólogos como por arqueólogos. Em 1991, um professor
de antropologia da Universidade de Bogotá expressou, em uma reunião de departamento, seu
descaso com a etnoarqueologia, pois disse que não sabia muito sobre esta subdisciplina;
porém, não lhe parecia bom “ir a molestar a los indios vivos para entender los que le pasaba a
los índios muertos” (POLITIS, 2002, p.64).
Gustavo Politis explica que estes posicionamentos extremos são incorretos, pois a
arqueologia assim como a etnografia, ou qualquer outra área das ciências antropológicas, tem
como um dos seus principais objetivos estudar a variabilidade das sociedades humanas e
entender os processos culturais. Portanto, é totalmente correto estudar as sociedades presentes
para abordar de maneira direta a estes fins ou de forma mais indireta mediante a identificação
de referentes análogos que sirvam para entender as sociedades do passado. David Kramer
(2001) afirmou que as múltiplas dimensões da sociedade humana têm cada vez mais um papel
na Etnoarqueologia moderna. O autor considera que esta subdisciplina atua nas sociedades
vivas e deve se sujeitar às mesmas estreitas regras éticas da etnografia contemporânea e não
desenvolver nenhum tipo de atividade ou investigação sem o consentimento dos atores sociais
envolvidos (DAVID e KRAMER, 2001, p.84-89).
Gustavo Politis (2002, p.64) comenta ainda que algumas pesquisas atuais, quando
recorrem aos modelos gerados pela Etnoarqueología, habitualmente restringem as abordagens
aos aspectos tecno-economicos das sociedades do passado. O autor considera que o enfoque
etnoarqueológico tem um potencial significativamente maior do que vem sendo utilizado,
principalmente na América do Sul, onde existem várias sociedades indígenas e abundantes
100
Gustavo Politis (2002, p.67) destaca que muitos têm sido os questionamentos que
buscam saber o que é a Etnoarqueologia e para que ela serve. O autor comenta que a
Etnoarqueologia tem sido entendida e definida de várias maneiras e se tem proposto também
outros vocábulos como sinônimos, tais como “arqueologia viva”, “etnografia arqueológica”
ou “arqueoetnografía”. As primeiras definições a consideravam como a comparação entre os
dados arqueológicos e etnográficos (GOULD, 1978; STILES, 1977). Para Stanislawsky
(1977), a Etnoarqueología é “a coleção de informação etnográfica original para ajudar a
interpretar a informação arqueológica”. Para Steensberg (1980; RAVN, 1993) “és o uso
controlado da informação etnográfica para explicar o registro arqueológico”. Atualmente,
conta-se com uma variedade de definições; entre as mais simples, Politis cita a definição de
Hanks (1983, p.351) que expressa que a Etnoarqueologia “é a aplicação de métodos
arqueológicos a dados etnográficos”. Entre as mais complexas, está a definição de David
(1992), que Politis aponta como uma de suas preferidas:
Em geral, as definições apresentam rígidos conceitos que deveriam ser mais flexíveis,
porém têm um caráter operativo e comunicacional inegável. Considerando as distintas
definições e se baseando no desenvolvimento corrente da disciplina, Gustavo Politis (2002,
p.68), de uma maneira flexível e aberta, define a etnoarqueologia como uma subdisciplina da
arqueologia e da antropologia social que obtém informação sistemática a partir da dimensão
material da conduta humana, tanto de ordem ideacional como fenomenológica. Politis (2002,
p.69) ressalta que a arqueologia e a antropologia são disciplinas “mãe” da Etnoarqueologia,
mesmo que o desenvolvimento desta seja quase exclusivo da arqueologia. “Esto no sólo esta
relacionado a que los arqueólogos son quienes hacen Etnoarqueología, sino que son casi los
101
Miguel das Missões e Porto Alegre. No ato do reconhecimento dos indígenas, Ana Elisa de
Castro Freitas, Coordenadora do Núcleo de Políticas Públicas para os Povos Indígenas, da
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (SMDHSU), lembrou que os
índios Charrua foram removidos pela Secretaria do Meio Ambiente (SMAM), em maio de
2006, por encontrarem-se em área de risco no Morro do Osso, em Porto Alegre/RS.
Figura 20: Discurso da Cacique Acuab por ocasião do reconhecimento da etnia Charrua
Foto: Élson Sepé (nov. 2007)
61
As informações foram obtidas em “comunicação pessoal com a cacique Acuab”, e no site da Câmara
Municipal de Porto Alegre, em 30/08/2008.
103
62
Ver: Serrano (1947); Maruca Sosa (1957); Acosta y Lara (1969/70).
104
Barrial Posada, em 1874. Porém, no atual contexto Charrua, a representação original foi
alterada, pois acrescentaram à mão do indígena uma boleadeira com três pedras e pontas de
flechas, ou seja, elementos que estão diretamente relacionados à sua cultura. Entretanto, no
painel rupestre do Arroio de La Virgen, o que existe são representações humanas ao lado de
um Tatu-mulita (Dasypus hybridus), pequeno animal campestre, que indica a caça, mas não
ilustra nenhuma espécie de arma. É viável destacar que não possuímos essa imagem do mural
transformado, pois nas visitas a aldeia os Charrua não permitiram que fotografasse o cenário.
Os painéis também apresentam desenhos geométricos.
ilustrações indígenas, ela exclamou: “Não consultamos nada, isto tudo está na nossa memória
desde muito antigo, nosso parentes já faziam estas pinturas e o cacique Guaiamá foi quem
pintou”. Nesse caso, percebeu-se uma afirmativa contraditória na narrativa da cacique Acuab,
pois os painéis não foram pintados pelo grupo, pois fazem parte do cenário construído pela
escultora de Porto Alegre Adriana Xaplin para as gravações do documentário “Perambulantes.
A vida do povo de Acuab em Porto Alegre”. Nesse caso, é viável ressaltar que não é nosso
interesse construir uma crítica sobre a narrativa da cacique Acuab, mas sim demonstrar como
eles estão se apropriando dos diferentes elementos materiais para afirmar a sua identidade
Charrua.
Nesta mesma visita, a cacique Acuab me convidou a conhecer o interior da sua casa.
Na sala, havia um quadro com a imagem de um índio Charrua, provavelmente retirado da
obra de Maruca Sosa (1957, p.125) e uma faixa com a seguinte frase: Í.N.D.I. A (Integrador
Nacional dos Descendentes dos Povos Indígenas Americanos), associada a uma ponta de
flecha. Acuab comentou que a flecha é o símbolo do seu povo, pois ela afirma que: “foram os
Charrua que treinaram os lanceiros negros”. Acuab menciona ainda ser descendente do
“grande cacique Charrua Polidoro Sepé, amigo de Sepé Tiaraju, líder Guarani” (Acuab,
comunicação pessoal, agosto de 2008). A cacique comentou que seu povo leva a bandeira
como um símbolo da cultura Charrua a todos os encontros que participam. Na imagem, pode
se visualizar a visita da comitiva Charrua ao Palácio Piratini. Os atuais Charrua buscam o
reconhecimento da sua identidade indígena, interagindo com a sociedade ocidental. Eles
estabelecem redes de apoio, de solidariedade, nas quais não só é valorizada a denominada
cultura tradicional indígena, mas também se busca um tipo de apoio dessa mesma cultura fora
dos limites da aldeia. Esta interação representa um processo auto-afirmativo, demonstra como
eles estão reconstruindo sua cultura, mesmo que a custa de invenções e ressignificações das
tradições perdidas. No diálogo com os Charrua, foi possível perceber a maneira como eles
justificam as suas experiências e seu modo de vida como sendo “legítimo Charrua”. Na sua
narrativa, prevalece o mito do índio autêntico, sem o qual não há auto-afirmação possível.
Clarice Novaes Mota (2008, p.24) comenta que “as comunidades recém re-constituídas vivem
a busca e a validação de uma cultura tradicional como verdadeiro capital cultural, que lhes há
de valer na hora de provar aos órgãos oficiais que têm direitos a terra e aos apoios
institucionais”.
106
Estamos produzindo mais agora, ainda não temos produção em massa, futuramente
faremos uma exposição da nossa cultura. Ainda não expomos, também nunca
levamos para o brique da Redenção, lá tem outros parentes com seus trabalhos,
como os “Kaingangue e os Guarani” (Cacique Sergio, comunicação pessoal
agosto/2008).
108
A reunião com a FUNAI da qual participei na aldeia Charrua tinha como finalidade
discutir e resolver situações como vagas nas escolas para as crianças, encaminhamento
médico, construção da aldeia, incentivo ao uso da terra para plantação, já que até o momento
os indígenas vivem de doações. Neste dia, os Charrua receberam os representantes
institucionais com cocares, rosto pintado, faixas no cabelo, expuseram na varanda da casa o
seu conjunto de cultura material composto de cuia, laço, boleadeiras, cocar, sementes de
urucum, etc. Os Charrua também presentearam um dos membros da FUNAI com um cocar,
que, segundo a cacique Acuab, “estava protegido pelas orações Charrua”. Eles apresentaram,
ainda, algumas danças, como pode ser visualizadas na imagem abaixo, que denominam
“rituais de danças do povo Charrua” (Comunidade Charrua, comunicação pessoal, Set/2008).
deve ser pensado como uma desconstrução em termos do que os indígenas ressurgidos
imaginavam ser seu próprio destino dentro das aldeias. O autor afirma que os indígenas
“encontraram uma forma de reconstruir – desconstruindo, transformando – suas bases
culturais antigas enquanto vivem à custa de suas novas performances e ofícios dentro dos
parâmetros de uma nova era capitalista” (PAIVA, 2001, p.113-114). Marilyn Halter (2000,
p.14), ainda tratando dos indígenas inseridos numa sociedade capitalista, ressalta que “o
consumismo ao mesmo tempo desagrega e promove uma comunidade étnica, podendo
mostrar-se tanto subversivo como hegemônico”. O que a autora enfatiza é que as
comunidades podem tanto ganhar como perder com a mercantilização de sua cultura e saber,
porque é possível que os consumidores possam tanto desestruturar o plano original da
comunidade, com seus significados próprios, como também exaltar e reforçar a identidade
étnica. Um exemplo da mercantilização da cultura indígena é a venda dos seus artesanatos.
O grupo Charrua está no processo de confecção de seus artesanatos, por isso ainda não
os comercializam. Porém, em Porto Alegre/RS, pode-se mencionar os artesanatos dos índios
Guarani e Kaingang no centro e no Parque da Redenção onde, além de expor sua cultura
material, os indígenas apresentam rituais de danças, o que encanta grande parte da população.
A apreciação da sua cultura pela sociedade ocidental colabora com o processo auto-afirmativo
do grupo, assim como lhes garante a subsistência através do consumo dos artesanatos e das
doações. Sendo este um evidente exemplo de como o consumismo contribui para reinvenção
da identidade indígena. Clarice Novaes Mota (2002), observando o comércio dos artesanatos
dos índios Kariri-Xocó de Alagoas, questiona-se sobre “o que dizer sobre os não indígenas
que desejam “ser índio” e pagam para isso? São eles ingênuos por reificarem a visão
romântica do “bom selvagem” ou ameaçadores pela possibilidade de apropriar-se de bens
alheios?” (MOTA, 2002, p.24).
passado e o presente não só em termos de espaço e tempo, mas também como um elo entre
tipos de cultura passada e a atual, ou seja, entre a arqueologia e a etnologia”. Nesta
perspectiva, observa-se que a boleadeira é para os Charrua um elo entre o passado e o
presente da sua cultura. A cacique Acuab, ao falar-me sobre o instrumento, construiu uma
história referente ao modo como viviam seus ancestrais. Acuab comenta que seus antigos
parentes viviam da caça e da pesca e, por isso, precisavam das boleadeiras para caçar os
“avestruzes e depois o gado”. Eles possuem três artefatos de boleadeiras em pedra e um
instrumento que denominam como a boleadeira do gaúcho revestida em couro. A cacique
afirma que a boleadeira é a prova que o gaúcho adotou a cultura dos Charrua. Para Acuab,
foram os seus antigos parentes que usaram as primeiras boleadeiras, “antes eram de pedra
com uma cercadura para amarrar o cordão do arremesso. Os Charrua giravam as boleadeiras
sobre a cabeça e jogavam nas patas dos animais e nas lutas davam golpes no corpo do
inimigo” (Cacique Acuab, comunicação pessoal, Set/2008).
antigos Charrua, a atual etnia e os Gaúchos. Acuab também comenta que a boleadeira Charrua
possuía apenas duas pedras e que foram os gaúchos que inseriram no instrumento a terceira
bola, ou seja, a maniclã. Durante nosso diálogo, a cacique Acuab me perguntou se eu já havia
visto alguém arremessar a boleadeira? Respondi nunca ter visto, mas que gostaria de
presenciar o arremesso. Nesse momento, ela pegou a boleadeira que estava exposta na mesa,
segurou duas pedras na mão direita e a maniclã na esquerda pedindo que eu me afastasse,
“pois o golpe é perigoso e os antigos parentes Charrua eram muito rápidos no arremesso”.
Como estávamos na varanda da casa, a cacique movimentou as correias do instrumento,
lançando-as sobre uma das colunas e as boleadeiras enredaram-se rapidamente. Após a
apresentação, Acuab exclamou: “Viu? Sabemos como viveram nossos antigos parentes, eles
deixaram tudo na nossa memória” (Acuab, comunicação pessoal, Set/2008). Ao assistir o
arremesso das boleadeiras pela cacique fiquei surpreendida, pois como sabemos nas
sociedades de caçadores coletores eram os homens os responsáveis pela caça e somente eles
quem utilizavam as boleadeiras. Outro aspecto observado foi a nova maneira que Acuab criou
para arremessar a arma. Esta antes era girada sobre a cabeça, como ela mesma afirmou ao
descrever a utilização do instrumento pelos seus antigos parentes. Nesse caso, analisando o
processo de afirmação e construção da identidade Charrua, pode-se identificar que,
diferentemente das antigas organizações indígenas, onde o cargo de cacique só era concedido
aos homens, na atual sociedade Charrua a liderança pertence a uma mulher.
João Pacheco de Oliveira Filho (1995) considera a reivindicação étnica como uma
forma dos indígenas defenderem sua memória e identidade frente ao processo de
transculturação realizado pelos europeus, no qual os índios foram obrigados a abandonar seus
hábitos. Conseqüentemente, os indígenas buscaram ocultar seus costumes e tradições sob a
forma de representações simbólicas. De acordo com Jacques Le Goff (1984), as sociedades
criaram, ao longo da história, instituições e mecanismos para preservar a memória coletiva. O
autor destaca cinco grandes momentos diferenciados pelas formas de conservação e
transmissão:
1. A memória oral, que ele denomina de memória étnica, presente nas sociedades
sem escrita.
113
Etnoarqueologia, mencionada por Schiffer (1978, p.30), como “o estudo da cultura material
no contexto etnográfico e arqueológico com o objetivo de adquirir informações tanto
específicas como gerais que serão aproveitadas pela investigação arqueológica”.
Outro exemplo do uso da memória indígena na compreensão do passado dos seus
ancestrais e da cultura material arqueológica é observado no trabalho da etnoarqueóloga
Fabíola Silva com os Asurini do Xingu (2002). Silva analisa a interpretação que os Asurini
fazem sobre os vestígios arqueológicos existentes na aldeia, elaborando uma importante
reflexão sobre as diferentes possibilidades interpretativas do passado desta etnia. Ela aborda
os vários sujeitos desta interpretação, através da narrativa oral dos Asurini, constatando que
eles “se inter-relacionam e incorporam os vestígios arqueológicos como sendo os testemunhos
da existência e presença de seus ancestrais míticos”. Regina Müller (1990, p.134) já havia
mencionado que a cosmologia dos Asurini “é repleta de seres que vivem em mundos distintos,
mas, ao mesmo tempo, podem se apresentar e relacionar com os humanos seja durante rituais,
seja no cotidiano”. Segundo a autora, é preciso observar também a noção de concomitância de
planos de pensamentos Asurini, ou seja, “a idéia de universo transformacional e da
multiplicidade de mundo na cosmologia” (MÜLLER, 1990, p.199). Fabíola Silva afirma que
é preciso entender a incorporação dos vestígios arqueológicos no cotidiano Asurini:
Revolução dos Farrapos (1835-1845). O ultimo combate desta guerra ocorreu dentro do
território Uruguaio, a margem direita do Cuaró, onde uma partida legalista a mando do major
Vasco Alves Pereira derrotou a outra republicana comandada pelo coronel Bernardino Pinto,
em dezembro de 1844. Entretanto, os Charrua, há vários anos já viviam às margens da
hostilidade.
Acosta y Lara (1981, p.16) compreende que as declarações do major Benito Silva,
citadas pelo Dr. Vilardebó: “El mês de Noviembre de 1840 ya se hallaba tan reducido el
número de ellos que no eran más que diez y ocho”. Os homens adultos não eram mais que
oito. Entre eles havia um cacique chamado Sepé, outro chamado Barcelona e um vaqueano
muito fraco do tempo de Artigas. Estavam guarnecidos na costa do arroio Sacá, Serra do
Caverá província do Rio Grande do Sul, protegidos pelos Republicanos do rio Pardo. Silva
esteve oito dias com eles: “y Le regalaron bolas, quillapis y um caballo. Al irse, Le
recomendaron que les obtuviese uma licencia para volver a la pátria” (GOMEZ HAEDO,
1937, p.350 apud ACOSTA y LARA, 1981, p.17). Acosta y Lara afirma que desconhece as
circunstâncias em que os Charrua regressaram ao Uruguai. Porém, destaca que não foi quando
o General Oribe (1835-38) abriu as fronteiras aos exilados lavallejistas, já que em 1840,
constava nas declarações de Benito Silva que ainda permaneciam no Brasil.
Em 1857, os Charrua estavam vivendo nos campos de José Paz Nadal, localizados a
oito léguas ao sul da Villa de Tacuarembó. Modesto Polanco foi quem avistou os Charrua
nesse local e escreveu uma carta a Eduardo Acevedo Díaz, em agosto de 1890, expressando:
“A um Kilómetro del establecimiento estaba la toldería em perfecto estado primitivo, com sus
ranchitos de rama arqueada como toldo de carreta”. Parece evidente que Sepe era “el jefe
indiscutido do grupo” (POLANCO, 1890 y LARA, 1981, p.17). Posteriormente, Lavalleja
Valdez (1941) afirmou que Sepé havia sido envenenado por paisanos que “le dieron a beber
caña mezclada com arsênico, ocurriendo ésto en la pulpería de Dutilh y Christy, em 1866”. O
corpo de Sepé foi enterrado em uma ladeira próxima a sua casa, que desde então passou a ser
chamada de Baixada do Charrua. No fim da Revolução Tricolor (1875), uma caravana
cientifica exumou seus restos e levou o crânio ao Rio de Janeiro (VALDEZ, 1941). Com
referência aos descendentes de Sepé, Valdez descobriu que seus filhos Avelino e Santana
foram contaminados com a epidemia de rubéola registrada em 1854. No ano de 1855, o filho
de Sepé reaparece em Tacuarembó com o nome de Avelino Charrua; sobre sua filha Santana
os historiadores não resgataram nenhuma outra informação.
Acosta y Lara comenta que se passaram longos anos até os historiadores retornarem a
falar sobre os descendentes de Sepé. Somente em janeiro de 1949, o diário “La Mañana”
117
publicou uma interessante nota relativa a um deles, Lino García. O jornal baseou-se no
material gráfico e informativo enviado de Tacuarembo pela educadora Estela Soares Netto de
Helguero, diretora da Escola Granja N. 74, “El Paraíso”.
Na sua carta, Estela disse: “Don Lino García, desciende de Sepe, un indio charrua, de
los pocos sobrevivientes de esa raza, que murió en los campos de nadal”. Destacando ainda
que este: “Vive actualmente em Rincón de Tranqueras, cerca de la desembocadura del Arroyo
de esse nombre com el rio Tacuarembó Chico. Cuenta em la actualidad 82 años, pero se
conserva fuerte y animoso”. A professora enfatiza na carta que o índio Charrua havia perdido
uma irmã há pouco tempo e que esta viveu mais de cem anos.
Acosta y Lara ressalta que guardou esta informação por mais de vinte anos e somente
foi visitar a região em 1973, quando um responsável pelo do diário “El Dia”, radicado em
Tacuarembó, o Sr. Abel Gomez, publicou a noticia do falecimento do ancião neto do cacique
Sepé. Acosta y Lara comenta que comissionado pelo diretor do Museu Nacional de História
Natural viajou para o Rincão de Tranqueras, em companhia do senhor Gomez. Eles
entrevistaram os vários filhos de Lino García, que forneceram fotografias e informações, não
só de seu pai, mas também da irmã dele Gregória, falecida em 1970, aos 105 anos. Em relação
ao parentesco com Sepé, os filhos de Lino García só souberam afirmar que o pai dizia ser neto
do cacique. Porém, sempre muito reservado, nunca contou detalhes à família sobre seus
antepassados indígenas. Acosta y Lara, após revisar a documentação histórica e entrevistar os
descendentes de Lino García, enfatiza que a carência de documentos comprobatórios o leva a
considerar esta tradição familiar como aceitável, no entanto, por apenas duas gerações, que
tanto Lino García como suas irmãs, Juana e Gregória, falecidos com 116, 102 e 105 anos,
eram descendentes de Sepé. “Muy probablemente los nietos que según consta vivían em
Tacuarembó en los últimos decênios del siglo pasado”. Este grupo familiar deve constituir a
única “linhaje Charrua que há logrado prolongarse en el tiempo y hasta nosotros”. Dos outros
Charruas, após 150 anos do combate de Salsipuedes, Acosta y Lara (1981, p.20) afirma que
“se han integrado, sin dejar rastro, a todos niveles de la sociedad uruguaya”. Nesse sentido, se
Acosta y Lara afirma que a última linhagem dos Charrua descendentes de Sepé permanecia no
Uruguai até a década de 70, como Acuab que se afirma descendente deste cacique nasceu no
Rio Grande do Sul na década de 50?
Nesse capítulo, após a revisão das fontes históricas, compreende-se que a cacique
Acuab consultou as pesquisas de Acosta y Lara (1981) para construir a sua narrativa sobre os
ancestrais Charrua e assumiu o papel de descendente do cacique Sepé. É viável ressaltar que
“a comunidade Charrua do Uruguai não reconhece o grupo de Porto Alegre como Charrua,
118
eles afirmam que os Charrua estão todos no Uruguai” (Cacique Sergio A’varela, comunicação
pessoal, setembro, 2008).
Acredita-se ainda que é praticamente impossível que os atuais Charrua de Porto
Alegre estejam se utilizando de memórias adquiridas na infância na reconstrução da sua
identidade, devido ao longo período de rompimento cultural entre eles e os antigos Charrua.
Pois provavelmente seus pais e avôs, miscigenando-se para o trabalho nas estâncias, sofreram
um processo transculturativo63 e não exerciam mais a vida nômade dos pampeanos e nem
usavam as mesmas vestimentas e armas. Ou seja, os hábitos e costumes foram modificados ao
longo do tempo e a memória Charrua possui uma ampla interrupção. Observa-se que, do
mesmo modo que os Charrua contribuíram com alguns elementos materiais na construção da
identidade do gaúcho, nos quais se pode citar a boleadeira, o churrasco, o chimarrão, eles
também tiveram que abandonar seus hábitos primitivos e se adaptar aos costumes coloniais.
Nesta perspectiva, acredita-se que, do mesmo modo que os arqueólogos e cronistas consultam
outras fontes para construir a sua concepção sobre os indígenas, os atuais Charrua também
estão buscando apoio dos antropólogos, historiadores, arqueólogos e catálogos etnográficos
na construção da sua memória cultural. Como afirmou Joseph Fontana (1998), a história de
um grupo humano é a sua memória coletiva e cumpre a respeito dele a mesma função que a
memória pessoal num indivíduo: “a de dar-lhe um sentido de identidade que o faz ser ele
mesmo e não outro, daí sua importância. Porém, convém compreender qual é a natureza da
memória” (FONTANA, 1998, p.267). Para o autor, a memória é o fio condutor ligando as
gerações umas com as outras e dando um caráter de continuidade à vida. Já as semelhanças e
as diferenças entre os povos se traduzem por manifestações, sejam elas materiais ou
espirituais.
Nas entrevistas com os Charrua, foi possível perceber que eles estão construindo esta
memória através das apropriações que fazem das fontes orais, escritas, ilustrativas e também
dos artefatos arqueológicos e etnográficos. É viável destacar como exemplo dessa assimilação
dos objetos na afirmação da sua identidade o discurso que Acuab construiu sobre as
boleadeiras, relacionando-as com o cotidiano doméstico e cultural dos seus ancestrais
caçadores - coletores. A boleadeira é para Acuab um patrimônio cultural, um símbolo Charrua
que ultrapassa o tempo e fala para eles sobre o passado dos seus ancestrais. Outro exemplo é a
assimilação que os Charrua fizeram dos murais etnográficos pintados na aldeia pela escultora
Adriana Xaplin, afirmando que foram eles os autores das representações e que estas são
63
Transculturação: termo utilizado por Arno Kern (1991, p.129).
119
Nos painéis, observei mãos ilustradas e questionei o Cacique Guaimá sobre o que
significava aquela representação na parede? Ele afirmou que eram as mãos de uma menina da
aldeia que ele havia pintado, ressaltando: “As mãos das crianças têm que fazer parte das
pinturas Charrua por que elas são muito importantes para nós” (Cacique Guaimá,
comunicação pessoal, agosto de 2008).64 No entanto, no sítio arqueológico “Arroyo Moles
Del Chamanga”, pesquisado por Augustin Larrauri (1905) e comentado por Maruca Sosa
(1957, p.261), existem pinturas rupestres com representações similares as que a Adriana
Xaplin pintou e o cacique Guaimá se apropriou como sendo imagens “legítimas da sua
memória Charrua”.
64
É necessário destacar que os Charrua não permitiram que os murais fossem fotografados, mas as ilustrações
comentadas encontram-se nas paredes da residência de Acuab.
121
nos artesanatos que os Charruas estão confeccionando, ou seja, nas faixas para o cabelo, nas
pulseiras e tornozeleiras. O cacique Guaimá ao mostrar-me seu quillapí enfatizou que o
considera um símbolo da cultura Charrua, afirmando, ainda que ele mesmo o confeccionou.
No entanto, observa-se que a autoria dos desenhos também pertence à Adriana Xaplin que
provavelmente, as retirou das ilustrações de Paul Rivet (1930), publicadas em Maruca Sosa
(1957, p.270- 275).
Figura 31: Reconhecimento dos Charrua pela FUNAI Figura 32: Imagem: Guyunusa e
(Nov. 2007) Tacuabé vestindo o quillapí. Paul Rivet
Foto: Élson Sepé “Les Derniers Charrua (1930)
Como se pode observar nas imagens acima, Acuab veste quillapí similar ao da índia
Guyunusa, porém com desenhos geométricos ilustrados nas cartas do baralho de truco
confeccionadas em couros bovino e eqüino. Segundo Paul Rivet (1930), a autoria dessas
cartas é atribuída ao índio Charrua Tacuabé. Trata-se de desenhos simples, no entanto muito
originais, que o artista indígena elaborou inspirado nos naipes espanhóis que já possuíam
devido ao intercâmbio com os espanhóis por objetos indígenas, ou por serviços prestados. Os
baralhos originais foram estudados por Dumoutier no ano 1833. A imagem foi adquirida por
Luis A. Musso do livro “Lês derniers Charruas”. Estas cartas não existem mais no Museo do
homem, provavelmente foram destruídas na invasão das águas do Rio Sena, que inundou o
subsolo do Museu (RIVET, 1930 apud SOSA, 1957, p.270).
123
Assim como os atuais Charrua do Rio Grande do Sul, o grupo Charrua do Uruguai
também está construindo a sua própria identidade através de um conjunto de comportamentos
coletivos e de elementos culturais que selecionaram como símbolos da cultura dos seus
ancestrais. Como se mencionou no primeiro capítulo dessa pesquisa, no Uruguai, até o
massacre de Salsipuedes, os Charrua eram percebidos como vilões, selvagens, indomáveis e
saqueadores de gado. Após esse triste acontecimento, os índios Charrua tornaram-se um
símbolo nacional e representam para a população uruguaia o espírito de luta, a “garra
Charrua”, como um dos elementos da sua identidade. (HILBERT, 2001, p.113). As pessoas
que se denominam Charrua no Uruguai confeccionam artesanatos e inserem em seus objetos
as mesmas imagens da arte rupestre do Arroio Del Chamanga. Ou seja, os dois grupos
Charrua apropriaram-se do contexto arqueológico pré-histórico como um elemento
patrimonial da identidade indígena, mesmo que de fato essa arte não possa ser atribuída
diretamente aos Charrua. Na imagem a seguir, visualizam-se os símbolos do Centro de
pesquisa de Arte Rupestre do Uruguai.
124
Ao longo desta pesquisa, compreende-se que a memória dos atuais Charrua está
diretamente relacionada à necessidade de construção da sua identidade étnica. Nesse processo
construtivo, eles se apropriam dos diversos elementos materiais e imateriais que consideram
serem originários dos seus ancestrais, elaborando sobre eles uma narrativa simbólica e auto-
afirmativa. Os objetos arqueológicos e etnográficos no contexto da atual aldeia Charrua
tornam-se índices simbólicos da sua identidade étnica, levando-os a buscar uma memória
sobre seus ancestrais. Como afirmou Michael Pollack (1992), ao caracterizar a relação entre
memória e identidade, a memória é um fenômeno construído (consciente ou inconsciente)
como resultado do trabalho de organização (individual ou socialmente). A memória é para
Pollack um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva,
é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade de uma pessoa
ou de um grupo em sua reconstrução. Pollack, referindo-se a identidade, define-a como a
imagem que a pessoa adquire ao longo da vida relativa a si mesma, a imagem que ela constrói
e apresenta aos outros e a si própria para acreditar na sua própria representação e também para
ser percebida da maneira que quer por outros. O autor destaca, ainda, que a construção da
identidade é um fenômeno que se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de
admissibilidade, de credibilidade e que se faz por meio da negociação direta com outros.
Memória e identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais e em
conflitos que opõem grupos políticos diversos.
Nelly García Gavidia (1996) destaca que as identidades são produzidas e configuradas
em um jogo de dinâmicas coletivas que regem o social na intersubjetividade, implicando os
atores sociais. Ou seja, são reconstruções parciais e contínuas e estão sujeitas a constantes
modificações, reinvenções e negociações. Cada autor social vai configurando, em sua
experiência de vida, uma multiplicidade de identidades, dependendo do grau de pertencimento
do indivíduo a múltiplos agrupamentos sociais, que esteja em disposição permanente de
recompor e definir seus entornos identitários (GAVIDIA, 1996, p.11).
126
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas tengo por çierto que de aquella arma.., que los indios usan en las comarcas y
costas del Rio Paranaguai (Alias Rio de la Plata), nunca los chrispstianos la
supieron, leyeron, ni los moros la alcançaron, ni antiguos ovieron notiçia, ni se hay
oydo ni visto otra en todas las armas sivas tan dificultosa de exerçitar; porque aun
donde los hombres la usan, los menos son hábiles para la exerçer (OVIEDO, 1851
apud GONZÁLEZ, 1953, p.1).
São poucos os trabalhos que se dedicaram a contar a história das boleadeiras, armas de
arremesso de origem indígena Sul Meridional. Até o presente momento, o trabalho mais
detalhado consultado foi a monografia elaborada por Alberto Rex González (1953),
mencionada por diversas vezes nesta pesquisa. Em sua obra, o arqueólogo se dedicou a
compreender as tipologias e as áreas de dispersão das boleadeiras. Nesta dissertação, entende-
se que as boleadeiras possuem outros aspectos científicos a serem revistos, ampliados e
aprofundados. Sendo assim, o principal interesse foi tratar de seus atuais significados
simbólicos no contexto cultural Sul Meridional. De uma forma ativa, procurou-se conhecer a
importância das boleadeiras na construção da tradição gaúcha, ou seja, perceber como os
gaúchos se apropriaram deste elemento indígena pampeano na constituição e afirmação da sua
identidade. Visando alcançar este objetivo, apresentou-se, no capítulo 1, a etnografia que se
realizou com os gaúchos na cidade de Uruguaiana/ RS.
Considerou-se a metodologia etnográfica como eficaz e necessária na medida em que
permite a inovação do olhar do arqueólogo que busca perceber a relação das pessoas com os
seus objetos. A partir do trabalho de campo com os gaúchos em Uruguaiana/RS, foi possível
conhecer diferentes olhares e diversas histórias sobre as boleadeiras preservadas na memória
dos trabalhadores rurais e do gaúcho da cidade. Com o objetivo de preservar estas lembranças
já pouco trabalhadas, optou-se por transformar suas narrativas em textos. Desse modo,
apresenta-se a seguir uma breve revisão dos resultados obtidos, já mencionados ao longo do
trabalho.
Ao serem analisados os discursos dos peões campeiros, pode-se identificar que as
boleadeiras são para eles um símbolo que compõe, transforma e representa sua tradição
gaúcha. As boleadeiras, no atual contexto do homem do campo, são consideradas patrimônios
familiares herdados de pais para filhos como um objeto simbólico e afetivo. É viável
mencionar que a boleadeira é para este gaúcho um artefato biográfico, pois está repleta de
lembranças do contexto em que viveram seus ancestrais, ou seja, a boleadeira possui uma
127
agência simbólica na vida das pessoas na medida em que as faz lembrar de um passado
interiorizado em sua memória. Ao analisar o discurso do gaúcho da cidade, percebe-se que
este possue um olhar diferenciado sobre as boleadeiras, ou seja, como ele não trabalhou no
campo, a boleadeira não o remete a um passado vivenciado. Para o entrevistado, a boleadeira
é um símbolo que representa a tradição riograndense; no entanto, ele considera que os
gaúchos utilizam este artefato nas festas campeiras e nos desfiles em comemoração ao 20 de
setembro como um elemento que afirma e fortalece a sua cultura.
Com relação à construção do vestuário tradicionalista, entende-se que as boleadeiras
foram escolhidas como elementos simbólicos que representam um resgate da tradição de seus
ancestrais. Desta maneira, as boleadeiras dos indígenas foram mantidas no contexto do
gaúcho como uma força simbólica que os faz relembrar e refletir sobre a formação do Rio
Grande do Sul. Através da utilização da teoria do “efeito de Diderot e na unidade Diderot”
abordada por Grant McCracken (2003), compreende-se a harmonia das boleadeiras com o
corpo e o contexto social do gaúcho. Analisando as vestimentas e os instrumentos de trabalho
do gaúcho do campo, percebe-se que ele escolheu utilizar elementos que estivessem
relacionados com o ambiente em que vive. Pode-se afirmar que, na maioria das vezes, o
conjunto indumentário do gaúcho é confeccionado com couro retirado dos animais criados
para o consumo nas estâncias onde trabalham, ou seja, está relacionado com o seu cotidiano,
mantendo assim a consistência cultural interna. Entre os objetos elaborados com esta matéria
prima local, pode-se citar as boleadeiras, o laço, o tirador, a guaiaca, as botas, etc. Outro
elemento da indumentária do gaúcho analisado nesta pesquisa é a harmonia das bombachas
largas com o uso das boleadeiras e do laço no cotidiano do peão campeiro. Através da
narrativa dos informantes, conclui-se que as atividades rurais como montar, laçar e bolear os
animais exige do homem muita agilidade e flexibilidade. Desse modo, os gaúchos afirmam
que foi necessária a inserção da bombacha larga na sua indumentária por lhes proporcionar a
sensação de liberdade.
No folclore gaúcho, identifica-se a ampla expressão simbólica das boleadeiras,
evidenciando a utilização do artefato na dança conhecida como Malambo, sendo a principal
atração das churrascarias do Sul Meridional. Constata-se que, atualmente, este culto ao
tradicionalismo através da boleadeira é difundido pelo Brasil e exterior como uma extensão da
cultura e da identidade gaúcha.
Ao se pensar na relação das pessoas com os objetos, identifica-se a dimensão pessoal
das boleadeiras através da análise do seu potencial simbólico. Durante a etnografia, percebeu-
se que algumas pessoas expõem as bolas de boleadeiras nas estantes e lareiras, transformando
128
diferentemente da maioria dos arqueólogos, estes pesquisadores buscam nas fontes históricas,
etnohistóricas, etnográficas e antropológicas outras informações para explicar o cotidiano
doméstico e social das etnias indígenas do Sul Meridional. O interesse ao revisar as pesquisas
de Acosta y Lara (1961 e 1969/1970) e Ítala Becker (1982) foi conhecer o caminho que estes
etnohistoriadores percorreram para construir uma história analítica e cronológica dos índios
Charrua e Minuano. As obras dos etnohistoriadores demonstram que eles tiveram acesso às
importantes e preciosas fontes dos cronistas e viajantes do Rio da Prata, evidenciando ainda
que eles, do mesmo modo que os arqueólogos, também trocam informações entre si, o que
proporciona uma consistente narrativa étnica sobre os índios pampeanos. Com base nos
trabalhos dos etnohistoriadores, no capítulo 2 desta dissertação, também são comentados os
diferentes momentos vividos pelos índios Charrua e Minuano. Entretanto, nestas
considerações finais, apresentam-se somente alguns aspectos sobre a temática, já discutida ao
longo do capítulo:
Acosta y Lara (1961 e 1969/1970) e Ítala Becker (1982) concordam que os índios
Charrua e Minuano possuíam semelhanças físicas, econômicas e culturais; porém, tratavam-se
de duas parcialidades indígenas diferenciadas que seguem líderes independentes e ocupam
espaços separados na antiga Banda Oriental do Uruguai. Os autores afirmam que, devido à
invasão colonizadora em seu território, ocorreram deslocamentos; entretanto, suas posições
originais sempre estiveram relacionadas à Banda Oriental do Uruguai. Os etnohistoriadores
também concordam que, após a colonização, os índios Charrua e Minuano continuaram sendo
caçadores coletores e que seu território, dividido entre as fronteiras portuguesa e espanhola,
continuou por quase dois séculos sendo considerado terra sem dono. Esta certa liberdade em
permanecer em seu território permitiu que os indígenas evitassem por longos anos as
imposições dos colonizadores estancieiros que buscavam mão de obra indígena para o
trabalho com o gado. Através do contato, os indígenas tiveram acesso aos novos elementos
inseridos pelo colonizador; inicialmente, o cavalo com o qual se tornaram excelentes jóqueis,
motivo pelo qual eram tão solicitados para o trabalho com o gado nas estâncias. Os Charrua,
dominando a montaria, usavam o laço e as boleadeiras para saquear o gado das fazendas dos
colonizadores. Com base nos relatos dos cronistas, os etnohistoriadores afirmam que, até o
final do Séc. XVIII e início do XIX, os espanhóis e portugueses ocupavam definitivamente o
território, dominando cada vez mais os espaços dos indígenas. Com o domínio do gado pelos
fazendeiros, os indígenas não encontraram outra escolha a não ser empregarem-se nas
estâncias como peões campeiros. Nessa medida, é viável comentar que, durante este processo
de trocas culturais, as boleadeiras foram introduzidas nas estâncias, tornando-se uma arma
130
apresentar como indígenas, ou seja, percebe-se que eles sentem uma maior necessidade de se
auto-afirmarem indígenas para os órgãos institucionais. Exemplo disso foi a maneira como
receberam os representantes da FUNAI, pois além de apresentarem uma narrativa étnica,
simbólica e auto-afirmativa, os indígenas estavam vestidos a caráter, com cocares, colares,
corpo pintado e até dançaram para os visitantes. No entanto, quando se apresentam para os
pesquisadores, eles também se reconhecem como legítimos Charrua, porém buscam adquirir
outros conhecimentos sobre a história do seu povo. Nesta pesquisa, considera-se que
provavelmente os Charrua trocam informações com os pesquisadores, fortalecendo assim a
sua narrativa étnica. Outro aspecto que foi abordado é a maneira que os indígenas se
apropriaram dos murais etnográficos pintados pela escultora Adriana Xaplin que consultou a
obra de Maruca Sosa (1954) e associou as imagens da arte rupestre presente nos sítios
arqueológicos uruguaios à cultura Charrua.
Os painéis expressam cenas de caça, de guerra, do cotidiano etc., e foram elaborados
para as gravações do documentário “Perambulantes. A vida do povo de Acuab em Porto
Alegre”, lançado no auditório da UFRGS, em dezembro de 2008. No entanto, o Cacique
Guaimá afirma serem representações próprias da sua memória Charrua. Nesse sentido, no
capítulo 3, procurou-se identificar onde este grupo está buscando referências para construir
esta nova identidade Charrua, já que durante os diálogos eles negaram qualquer consulta às
fontes etnográficas, etnohistóricas ou antropológicas. Discutiu-se, ainda, a provável criação
desta memória Charrua, devido ao longo período de rompimento cultural entre o atual grupo e
seus possíveis ancestrais, exterminados nos massacres de Salsipuedes e Mataojos no Uruguai.
O estudo do simbolismo das boleadeiras no atual contexto do gaúcho levou a
conclusão que o artefato que se originou no cotidiano das etnias indígenas pampeanas tornou-
se patrimônio cultural e simbólico que constrói e afirma a identidade dos gaúchos do Rio
Grande do Sul, Argentina e Uruguai. As entrevistas realizadas permitiram conhecer a agência
simbólica das boleadeiras na vida do gaúcho na medida em que os faz relembrar de histórias
preservadas na sua memória cultural. Foi possível observar também que a incorporação das
bolas de boleadeiras arqueológicas no cotidiano dos Charrua do presente, independente de
uma continuidade histórica entre eles e as pessoas que as confeccionaram, é utilizada como
um índice de manutenção da sua identidade étnica na medida em que são objetos que falam
para eles sobre os seus ancestrais e contribuem para construção da sua memória cultural.
A ampla revisão bibliográfica realizada para a construção desta dissertação demonstra
que a arma que despertou a atenção dos cronistas dos diferentes períodos históricos pela sua
temível eficácia nas mãos indígenas trata-se da boleadeira. Assim, pode ser considerada como
133
uma das armas de arremesso mais antigas do Sul Meridional. Através da utilização das
metologias etnográficas e etnoarqueológicas, foi possível conhecer os significados simbólicos
e funcionais das boleadeiras nos diferentes contextos sociais. Porém, observou-se que, devido
a raridade de pesquisas sobre a temática das boleadeiras, existem muitos outros aspectos a
serem analisados e compreendidos. Nesse sentido, considera-se esta dissertação apenas o
primeiro passo para os futuros olhares arqueológicos, que além de abordarem os aspectos
tipológicos e funcionais dos artefatos de boleadeiras, estejam interessados em desvendar seus
significados simbólicos.
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