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Identificação e histeria
Monique David-Ménard
Pelo que foi dito esta manhã, parece-me que o que eu gostaria de
dizer retomará, esclarecerá, dois pontos.
No fundo, houve inicialmente um momento na exposição de Julia
Kristeva em que eu pensei que o que queria falar referia-se à relação
entre o que ela chamou de convulsão de sua paciente e o dizer da
convulsão. Uma pergunta lhe foi feita sobre este ponto, após sua
exposição, que ela de fato não respondeu. Creio que é sobre isso que
eu gostaria de falar novamente. A pergunta, tal como a entendi, era:
por que essa paciente vinha lhe falar sobre as convulsões? O que há
de diferente entre uma crise histérica e o dizer dessa crise de histeria?
Questão que gostaria de esclarecer da seguinte maneira: a quem
estava dirigido o dizer dessa paciente sobre sua convulsão, e em que
sentido trata-se aqui de identificação? Este é o primeiro ponto em que
se fixa o que quero dizer a vocês.
O segundo ponto está ligado a algo dito por Jean Oury. Pareceu-
me que quando ele falava de identificação histérica, esta manhã,
retomou a terceira identificação freudiana, e, ao chamar de identifi
cação histérica a terceira identificação freudiana, ele se identificava
com a leitura de Lacan, que, no seminário s o b re i identificação * diz
que é exatamente isto a identificação histérica.
J. Lacan, “A Identificação” (1961-1962), seminário inédito.
70 As identificações
Mas a segunda identificação delimitada por Freud, da qual partirei,
também poderíamos chamá-la de identificação histérica, no sentido
que Freud a define em relação a Dora. No fundo, uma das questões
que eu gostaria de levantar é: será que podemos colocar juntas a
segunda e a terceira identificações referidas por Freud, e o que se
esconde por baixo disso?
Para falar de identificação histérica e do que a histeria permite
compreender sobre os processos identificatórios em geral, partirei
principalmente de uma observação de Freud, e também, depois, de
um mal-entendido ou de uma lacuna em minha leitura de Lacan.
Freud, a princípio, em Psicologia das massas e análise do eu,
refletindo conjuntamente sobre a histeria e a identificação, ou me
lhor, refletindo através da histeria sobre a identificação, distingue
dois casos relevantes. No primeiro deles, que se refere à identificação
de Dora com seu pai, pelo sintoma da tosse, falta de ar, diz que a
identificação é uma regressão da escolha de objeto. Nessa parte do
texto, Freud não diz que a regressão acompanhe a dificuldade de
renunciar ao objeto de amor incestuoso. Mas anteriormente isso
havia surgido como questão, a respeito do menino, no complexo de
Edipo, e será explicitamente tratado algumas páginas adiante, a
propósito da gênese da homossexualidade masculina — do abando
no, ou melhor, do abandono impossível da mãe como objeto sexual.
Freud escreve, então: o adolescente não abandona sua mãe, mas
se identifica com ela. Isto posto, Freud encontra apoio nesse contra
ponto entre identificação e renúncia a um objeto sexual incestuoso
para definir a relação entre o estado amoroso, a hipnose e a formação
das massas. Mas antes de deixar o incesto e passar às massas — se é
que posso me expressar assim — , Freud de repente muda de critério
para comparar, por um lado, o amor, e, por outro, a hipnose e as
massas. E uma outra alternativa que dá conta da essência dos fatos:
a outra alternativa é saber se o objeto é colocado no lugar do eu ou
do ideal do eu. A relação hipnótica é, certamente, um abandono
amoroso ilimitado, exceto que dele é excluída a satisfação sexual.
Mas essa diferença não é mais a essência do fenômeno, já que, se a
hipnose é uma multidão de dois, é porque o chefe, como hipnotiza
dor, nela ocupa o lugar de ideal do eu.
Identificação c histeria 71
Assim, é no momento em que Freud muda de ótica a respeito da
identificação que ele postula uma questão, subjacente ao primeiro
ponto de vista, questão que ele deixará de lado, ao que me parece;
essa questão é a seguinte: “Então, é certo que a identificação supõe a
renúncia ao investimento de objeto? Não pode haver identificação
conservando-se o objeto?”
E a respeito da histeria, e também da gênese do homossexualismo
masculino, que o tema das relações entre luto pelos objetos de amor
incestuoso e identificação tem a primazia, mas é deixado na indeter-
minação. Por quê? Esta será minha questão de hoje.
Trabalhando, durante vários anos, a especificidade da formação de
sintomas na histeria — que Freud designa pelo nome enigmático de
conversão de uma energia psíquica na inervação somática — , pare
ceu-me que não se poderia entender a histeria senão dirigindo a maior
atenção possível ao termo com que Freud nomeia a especificidade
dos sintomas. “Trata-se” — escreve ele em 1909, nas Considerações
gerais sobre o ataque histérico, que é, parece-me, o texto em que dá
mais e melhores explicações sobre as formulações energéticas e
fisicalistas — , “trata-se de uma apresentação plástica e figurativa do
gozo sexual, de fantasias atualizados e figuradas sob a forma de
pantomima.”
Esta formulação, apresentação plástica e figurativa, traduz a
palavra alemã Darstellung, termo que quer dizer muita coisa: quer
dizer representação teatral, mas die darstellende Künste significa
também as artes plásticas; o termo designa a atualização de alguma
coisa — por exemplo, aqui, da pulsão — e coloca em jogo tudo aquilo
que é da ordem figurativa e plástica. Dito de outra maneira, uma
Darstellung não é uma Vorstellung. E alguma coisa da ordem da
apresentação figurativa, e não uma representação.
Ora, normalmente, esta palavra é traduzida por representação. É
um termo que Freud emprega para designar as experiências onanis-
tas, o estatuto específico do sintoma na histeria e a figurabilidade das
imagens do sonho. Por exemplo, no tratamento do Homem dos
Ratos, quando o Homem dos Ratos se masturba frente a um espelho
esperando que surja seu pai morto, a palavra alemã utilizada e
Darstellung.
72 As identificações
Logo, esta figuração sob a forma de pantomima — que estaria em
jogo nas convulsões histéricas ou nos ataques histéricos — é alguma
coisa diferente da representação do desejo, é uma figuração plástica
do gozo. Tal é, parece-me, a posição inconsciente em que as histéri
cas estão fixadas, de maneira mais ou menos patológica. Mas, estan
do fixadas nisto, as histéricas se colocam como representantes do
excesso do gozo sexual em relação a toda programação significante.
Essa presença figurativa e plástica visa, então, atualizar um inatuali-
zável do gozo, e o mais interessante, parece-me, é que isso não
caracteriza somente o sintoma.
A Darstellung também define, da maneira mais aproximada, as
modalidades identificatórias na histeria. Eu diria que tal apresentação
plástica se confunde nessa zona de indecisão entre investimento de
objeto e identificação, o que levava Freud, em Psicologia das massas
e análise do eu, a se perguntar se a identificação não era, antes de
mais nada, compatível com a manutenção de uma esperança de
satisfação sexual proporcionada pelo outro.
Para dizer de outra maneira, a ambigüidade da Darstellung histé
rica é a própria ambigüidade da noção de identificação. A identifica
ção é a fixação em imagos que capturam o sujeito, prendem-no e o
ameaçam, uma espécie de identificação-prisão, da qual talvez fosse
possível se desprender em um processo de desidentificação.
Nós diremos, neste sentido, que Dora, a paciente de Freud, estava
completamente identificada com sua mãe — ou, mais precisamente,
com a psicose da dona-de-casa, de que sofria sua mãe — e que esta
fixação, não analisada com Freud, resultou no destino tão lamentável
de Dora, como testemunha Félix Deutsch, que foi chamado para
atendê-la em Nova York, em 1922. Ele relatou isto em um artigo do
Psycho-analytic Quarterly, em 1957, traduzido na Revue Françaisc
de Psychanalyse, em 1973.
Dora foi uma “chata”, segundo Félix Deutsch, durante toda a sua
vid a Ela se casou, seu marido preferiu morrer a se divorciar — é a
formulação de Félix Deutsch — , e ele acrescenta: “Não se poderia
imaginar senão um marido como aquele para Dora”. No momento em
que foi chamado para atendê-la, ela apresentava o que é designado,
em termos médicos, como síndrome de Ménière, quer dizer, sentia
Identificação e histeria 73
tonteiras, zumbidos nos ouvidos e desmaiava. Deutsch interpretou
essas perturbações assim: ela passava suas noites esperando o filho,
que voltava tarde — seu filho era músico — , e desmaiava porque
achava que ele retornaria muito tarde; ficava de ouvido atento a noite
toda. Após essas interpretações, os sintomas de Dora desapareceram.
Félix Deutsch não pensa ter tocado a estrutura histérica, mas
assinala isto de passagem em suas anotações sobre o caso Dora,
Assim, ou bem a identificação é uma identificação-prisão, ou bem
a identificação é o processo de formação de um indivíduo humano, a
causalidade psíquica, como dizia Lacan; ela consiste, então, na ma
neira pela qual um sujeito, para se constituir, toma seus os elementos
vindos de um outro, sendo que algo daquilo que o liga a esse outro
permanece recalcado, mas de tal maneira que esses elementos, reti
rados do outro, dados pelo outro ou impostos pelo outro, implicam ao
mesmo tempo, de algum modo, falta para o sujeito.
Ora, curiosamente, para ilustrar esse outro aspecto da identifica
ção, a histérica é tida ainda como um bom exemplo, principalmente
em Lacan. E aqui que intervém a “lacuna” que evoquei em minha
leitura de Lacan: eu lia, sem ver ou sem compreender, os textos em
que Lacan fala do desejo da histérica como desejo de ser privado(a).
Relendo, por exemplo, o sonho da Açougueira de que fala Freud,
Lacan isola o elemento da insatisfação da sonhadora. Ela, que o
marido tenciona satisfazer, produz um desejo insatisfeito. Ela pede a
seu marido para não lhe dar caviar no café da manhã, embora adore
caviar,^, agindo assim, ela se identifica com o significante da falta
no Outro, a outra mulher, sua amiga, que se priva da mesma maneira
do salmão defumado que ela adora; e é o salmão defumado que
aparece no discurso manifesto do sonho.
Que a identificação seja identificação com um significante do
Outro é, no fundo, para Lacan, uma redundância da tese segundo a
qual o desejo é desejo de ser privado. É somente se o Outro constitui
o sujeito por um traço, einziger Zug, que o sujeito está no elemento
da perda, da ausência, da castração.
No Seminário sobre A Identificação, Lacan esclarecerá que esse
traço do Outro é um golpe, um golpe que funda a repetição, e que os
jogos significantes pressupõem uma escrita pela qual o Outro marca
74 As identificações
o golpe, constituindo o sujeito. É por essa razão, assim me parece,
que Lacan reuniu os dois últimos modos de identificação distingui-
dos por Freud.
Creio que há uma enorme coerência no pensamento de Lacan
sobre esta questão, e é isto que o faz dizer, quando encontra a palavra
Darstellung, por exemplo a propósito da figurabilidade das imagens
do sonho, que é algo que não se concebe senão no interior de um
procedimento de escrita, quer dizer de uma Vorstellung. E nela que
eu não via coerência. Começo a vê-la: ainda é tempo. A histeria, o
que será que ela oferece, então? O modelo da identificação signifi-
cante, da representação do desejo. Não será mais necessário, então,
prestar atenção à Darstellung do desejo? Parece-me que ao remeter
assim, por princípio, a reivindicação de presença do gozo a uma
elaboração da ausência, ao compreender a Darstellung como uma
forma de Vorstellung, inscreve-se epistemologicamente a castração
em uma teoria do sintoma como escrita, mas, isso feito, provoca-se
um curto-circuito no processo pelo qual a identificação, em um
tratamento de histeria, aparece e se transforma.
A afirmação de que a identificação histérica é identificação com o
significante da falta no Outro desconsidera o fato de que, na transfe
rência, o Outro não falta e, em particular, não falta em absoluto à
paciente de Freud. Sabemos muito pouco sobre a Bela Açougueira e
sobre as modalidades de sua análise, mas parece ter sido um trata
mento ligeiro, cujas peripécias, aquelas, em todo o caso, de que
tratamos aqui, conseguem tomar um caminho lúdico. A paciente
propõe a Freud, com seu sonho, um desafio: você diz que todo sonho
realiza um desejo; pois bem, que dirá deste? E lhe apresenta as cartas
de seu desejo, não sem humor.
Ora, toda a questão na histeria, parece-me, é saber para que serve
o endereçamento a um outro, a um homem. Apresenta-se freqüente
mente as histéricas como mulheres que apreciam, mais do que a
presença de um homem, as conversas cúmplices entre mulheres
sobre os homens. É, por exemplo, nessa direção que se dirigiu Octa ve
Mannoni, em Ficções freudianas * ao escrever uma carta, uma carta
O. M annoni, Ficções freudianas, Taurus, Rio de Janeiro, 1986.
Identificação e histeria 75
fictícia de Dora à Senhora K. Mas parece que aqui o sonho da Bela
Açougueira indica, talvez, outra coisa. O endereçamento a um ho
mem, a um homem de certa maneira presente na transferencia,
permite à histérica falar de sua identificação com uma mulher de
modo não muito ameaçador. A histérica se identifica com esse outro
assim como Dora com a fumaça de Freud e do Senhor K., ou será que
— aqui o “ou” não é sem dúvida de exclusão — ela se dirige a um
outro para conjurar a ameaça dessa relação com uma outra, que os
jogos significantes, por si sós, teriam dificuldade para sustentar se
não fossem oferecidos a um terceiro?
Uma resposta a essa pergunta nos é dada pela variante que consti
tui a mudança de sexo do analista. Quando uma mulher histérica faz
análise com uma analista, a ameaça das identificações arcaicas com
a mãe não pode se transformar e se manifestar tão facilmente como
em um desafio dirigido a um homem, nem pelo mesmo tipo de
sedução. O inominável — é curioso, esta palavra foi também várias
vezes pronunciada, esta manhã, por Julia Kristeva — , o inominável
da relação com a mãe se impõe como uma espécie de sustentação, de
violência transferenciai que não se liga, entretanto, a nada de preciso,
nem de limitado, e não chega a se elaborar como ódio.
E o que permite dizer às vezes que a histeria está próxima da
psicose. E verdade que, assim que cedem os sintomas da conversão
e essa outra forma de Darstellung que constitui o endereçamento a
um homem — que, por sua presença, possa separar do horror — não
é viável na transferência, fomentam-se formas delirantes da fantasia.
Penso em certa paciente que, ao longo dos anos de sua análise,
multiplicava, por intervenções médicas inúteis, as formas de escapar
daquilo que estava bloqueado, imóvel, imutável na relação transfe
renciai. Finalmente, ela se viu grávida do homem com quem vivia há
bastante tempo. Depois do nascimento de seu filho, formulei o que
me fora imposto durante a sua gravidez. Eu tinha a impressão de que
ela me dizia — eu hesitava entre duas formulações — : “E se eu jogar
uma criança em cima de você, ou entre as suas pernas, o que você
fará?” Em resposta, ela pôde dizer que havia esperado durante toda
sua gravidez que eu a proibisse de ter uma criança, ou que eu matasse
a criança. Somente a partir desse momento alguma coisa dessa
76 As identificações
exasperação recíproca em que consistia a relação transferenciai pôde
ser situada.
Ora, o problema era que dessa relação arcaica com a mãe — como
primeira aproximação, pode-se dizê-lo dessa maneira — , a paciente
não podia fazer nada, ela não podia transformar em nada essa relação,
na vida, na sua vida, que era um completo bloqueio.
Pode-se dizer, nessas condições, que uma paciente assim identifi
ca-se com um homem para se interrogar sobre a essência da femini
lidade, que seria o verdadeiro objeto de seu desejo, como Lacan
sugere com muita sutileza a respeito de Dora, por exemplo no
seminário O avesso da psicanálise?* Parece-me que não é suficiente
dizer isto, pois a ameaça ligada aqui à homossexualidade excluída do
discurso é tão absoluta e sem contornos que não pode ser questão do
objeto do desejo. O que a Darstellung histérica mascara mal é um
terror do maternal, do qual só dão idéia certas descrições de Melaníe
Klein sobre a identificação projetiva. Todavia, minha paciente não
era psicótica, pois a própria maneira que tinha de ser “chata”, na
transferência e fora da transferência, servia-lhe como limite para o
que para ela não era representável. Parece-me que por isso, no fundo,
não se pode reduzir a Darstellung a uma Vorstellung, as mises-en-
scène a uma significância do desejo, nem fazer da insatisfação sexual
a manifestação empírica da essência do desejo, que seria desejo de
ser privado, pois essas manifestações têm uma função que consiste
em inventar uma ponte que faça as identificações arcaicas com a mãe
se reunirem com o amor pelo pai, resolvido como identificação com
alguma coisa do pai. O que está em jogo na análise de uma histérica
é, sem dúvida, menos a identificação com um significante da falta no
Outro — primeiro em outra mulher — do que a capacidade de
inventar um meio termo entre dois tipos de identificações. Essas
identificações, os pacientes as apresentam inicialmente como sua
característica maternal ou paternal.
Uma outra paciente era atormentada, nos períodos de rupturas
afetivas e eróticas que demarcaram sua análise, por um ciúme para
nóico. De modo repetido, ela escolhia namorados e amantes casados,
J. Lacan, O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
Identificação e histeria 77
cujos nomes continham os de suas esposas ou do lugar onde mora
vam com suas esposas. A situação amorosa se desenrolava até o
ponto em que o homem, profundamente perturbado, preferia a esposa
em vez da amante. Minha paciente, que em tais momentos desenca
deava um comportamento catastrófico, cercava a outra mulher e
ameaçava se matar, denunciando a incapacidade de seu namorado de
sustentar a situação, de ser homem.
Esse dispositivo se repetiu até o dia em que, em uma de suas crises,
ela retomou uma atividade pela qual se identificava com os gostos de
seu pai. Mudou de trabalho e passou a fazer encadernação de livros.
Continuava com isso o amor de seu pai pela leitura silenciosa, que ela
opunha à abundância de palavras da mãe; continuava também a
predileção de seu pai por objetos de coleção. Naquele momento, no
tratamento, ela pôde como que suturar seu delírio de ciúme, usando
jogos de palavras sobre “ligar”. Religar era também ligar, lembrar e
conjurar o risco de ficar louca de ciúme, o risco de um desligamento.
A identificação com alguma coisa de seu pai lhe permitiu, desde
então, trabalhar e viver, mesmo tendo muita dificuldade para sociali
zar seus produtos e vendê-los, porque, dizia, eles não têm preço.
Esse sem preço das identificações simbólicas mostra mais clara
mente, parece-me, a dificuldade, o bloqueio das identificações na
histeria. A identificação com o pai, que separa da pregnância das
imagos maternas, não se resolve na perda com a qual em geral se
conotam, na linguagem psicanalítica, as atividades simbólicas e su-
blimatórias, Fala-se freqüentemente da dificuldade das histéricas em
sublimar e de suas exigências impossíveis de serem satisfeitas. Pois
o que elas pedem a um homem, que sem dúvida não tira proveito
disso, é que imponha limite às identificações arcaicas — e, para tal,
que esteja presente.
Uma atividade sublimatória ou uma identificação sublimatória
não tem sentido fora do endereçamento a um outro, que a torna
possível como um tesouro, desde logo impossível de negociar e de
trocar. A dificuldade na histeria, e talvez na sexualidade feminina em
geral, é que não é no lugar mesmo da identificação aprisionante e
ameaçadora que são possíveis transformações. As pacientes atribuem
ao pai aquilo que as separa de suas mães, mas, de imediato, elas não
78 As identificações
têm nenhuma razão para separar-se dele, e suas atividades sublima-
tórias não se realizam inteiramente, elas não têm preço.
Ao mesmo tempo, a angústia que acompanha o recalque da relação
com a mãe dá à demanda que elas dirigem aos homens esse caráter
de exigência insaciável. Dito de outra maneira, o bloqueio dos pro
cessos identificatórios consiste em que uma identificação permite o
recalque de uma outra identificação, sem que a primeira seja, ela
mesma, transformada. Não é o delírio de perseguição ou o ciúme
homossexual que se transformam em outra coisa, não são as ameaças
e as temidas delícias da relação com a mãe que dão lugar a atividades
sublimatórias. O destino da identificação com a mãe faz parte do
desejo da criança, o que significa que para o resto isto é deixado de
lado. Nenhuma identificação se transformará em sublimação, uma
vez que todo destino sublimatório é atribuído ao pai.
Parece-me que Melanie Klein, se não explicitou, ao menos cha
mou a atenção para essa dificuldade, que ela atribui, aliás, às m ulhe
res em geral, e não somente às histéricas, em um artigo em 1929
sobre “As situações de angústia da criança e seu reflexo em uma obra
de arte e no arrebatamento criador”.* Esse texto me fora indicado há
três ou quatro anos, talvez mais, por Patrick Guyomard, que aguçara
minha curiosidade, dizendo: “E o melhor texto que conheço sobre as
relações das mulheres com suas mães.” Imediatamente comecei a
lê-lo; logo de início, fiquei um pouquinho decepcionada, mas depois
repensei-o bastante, aliás mais do que ele, porque perguntei-lhe há
pouco se ele se lembrava do texto, e disse-me: “Não mesmo”.
Nesse artigo, o destino da identificação com a mãe não se pode
afirmar que seja claramente analisado, porque não se trata de um
relato de uma análise. No início do artigo, Melanie Klein faz um
paralelo entre o que acontece em um atendimento a meninos em
situações de angústia muito precoces e um texto, o texto de uma
fantasia lírica, em que há um menininho que quebra tudo: nesse caso,
estamos mais próximos do estabelecimento de uma correspondência,
In Melanie KJein, Amor, culpa e reparação, Imago, Rio de Janeiro, 1994 (no
prelo). Lacan refere-se a este artigo no Seminário, livro 1: A ética dapsicaná-
itseyJ. Zahar, Rio de Janeiro, 1992.
Identificação e histeria 79
parece-me, entre o conteúdo próprio de uma obra literária e o que se
passa em uma análise.
Ora, no que vou-lhes contar, trata-se da história de uma pintora,
não da história de uma mulher que fez uma análise. Trata-se, então,
das relações entre a identificação e a sublimação. Trata-se talvez do
que Maud Mannoni chamava, ontem à tarde, de ética da sublimação,
que estaria ligada ao final da análise, mas não sei se foi isso que Maud
Mannoni quis dizer.
Não se trata de um tratamento, nesse texto de Melanie Klein, mas
da história de uma mulher que se tornou pintora de um dia para o
outro, e sem saber como. Tornou-se pintora porque um dia, frente a
uma parede vazia, abandonada, tendo-se desprendido o quadro que
normalmente lá ficava, ela teve um insuportável sentimento de que
essa parede zombava dela, o que provocou o retorno de uma terrível
depressão, que lhe era habitual. Mas, dessa vez, sua angústia teve um
outro destino, pois ela cobriu a parede com um quadro, um quadro de
uma negra nua. Um pintor experiente e reconhecido não quis acredi
tar que era ela a autora daquela tela, que, entretanto, foi exposta, com
outras que a ela se seguiram, em uma galeria.
Melaine Klein interpreta o preenchimento do espaço vazio da
parede; e, nessa mulher, tal preenchimento não teria sido possível
senão como reparação do corpo da mãe.
Não se poderia, antes, dizer que a atividade pictórica permite que
esse vazio apareça sob a forma de um objeto intercambiável, que,
com efeito, a separa de sua mãe? Nessa maneira de dar forma a uma
ameaça de destruição e de desaparecimento não se trata de uma
identificação com o significante da falta no Outro, trata-se, ao con
trário, da produção de um traço da falta que não é, parece-me, nem
signo, nem significante, em todo caso no sentido que Lacan dá a estes
termos.
Não há signo já que, como diz ele, o signo é alguma coisa para
alguém, e, se as convulsões podem ser algo para alguém, a produção
desse objeto supõe, ao contrário, um momento no qual a pintora não
se dirige mais a ninguém.
Nem significante, porque me parece que o decisivo aí não é o
efeito de sujeito produzido pela diferença entre dois significantes
80 As identificações
implicados numa cadeia significante, mas a existência do vazio, sua
existência sob a forma de um objeto que o torna suportável, que o
torna, eu ia dizendo, identificável, mas este não é propriamente o
termo. De qualquer modo, o que me parece certo é que nesse caso a
sublimação só é possível se o sujeito não mais se apoia sobre nada do
outro; dependendo do seu momento, a sublimação enfrenta a mais
radical angústia e não se apoia em nenhuma identificação para daí
produzir uma figura. Sob tal condição, essas produções podem ser
expostas, quer dizer, socializadas, elas têm um preço. Um amigo
escritor me disse um dia: assim que escrevo, estou cercado. Pois bem,
essa pintora de que fala Melanie Klein não estava de modo algum
cercada. Não era sobre a base de uma identificação previsível que ela
podia pintar, mas defrontando-se com o vazio, quer dizer, do ponto
de vista sob o qual toda identificação falta.
Até agora, fui levada por vezes a me distanciar um pouco em
relação à correspondência entre as identificações e as figuras paren-
tais. Dificilmente se escapa, na análise das histéricas, da idéia de que
o simbólico — no meu exemplo: os livros, a troca e o saber; o pai de
minha paciente era comerciante — , da idéia, então, de que o simbó
lico está do lado dos homens, dos homens e pais, e o real, do lado das
mães ou das mulheres e mães. Ora, essa idéia é um mito. A necessi
dade desse mito baseia-se em que, de fato, o pai permite um esboço
de separação em relação à mãe.
Mas todo o problema é saber como dizer as coisas. Será que por
estar do lado da função simbólica um pai separa da mãe? Ou então,
será que chamamos de simbólico o próprio fato da separação?
O analista, parece-me, sempre corre o risco de dar crédito a esse
mito, que não faz senão repetir a fantasia com a qual as histéricas
tentam construir para si mesmas uma história. Quer dizer, o recurso
àquilo que na cultura caracteriza os homens estaria, em si, do lado da
separação, do lado, como diz Lacan, da palavra como morte da coisa.
Ora, preciso combinar dois dados da experiência analítica. O primei
ro é que um pai, de fato, permite alguma separação da mãe; e
chamaremos então de simbólico isso que opera a separação. O segun
do é que nas análises dos homens, contudo, não se pretende que o
saber, ou a troca, ou a circulação sejam em si mesmos masculinos.
Identificação e histeria 81
Para muitos homens em análise, a mãe é a receptadora do saber e é
isso que os impede de ter acesso a ele. Não será a idéia de que os
homens estão do lado do simbólico somente uma formulação pela
qual nossa cultura e, em particular, os psicanalistas, em seu conjunto,
se reafirmam? E certo, de qualquer maneira, que não se pode escutar
as histéricas a não ser compartilhando — mas pela metade — essa
convicção que lhes permite constituir o dispositivo de seu desejo.
Se não é então evidente, como no que diz Lacan, que por seus
sintomas exagerados, suas exigências e suas recusas, e também suas
provocações, as histéricas pedem que as privem, ou antes, se não é a
um outro homem ou a um analista que elas podem pedir que as
privem, resta compreender de outra forma a insatisfação histérica.
A insatisfação histérica é uma maneira de exercer o erógeno,
apesar de tudo, até os confins do horror. As coisas nem sempre se
passam tão suavemente como parecem se passar no sonho da Bela
Açougueira. As vezes, a rede tecida do endereçamento a um homem,
em nome do excesso de gozo, não chega a fixar em suas malhas a
ameaça de uma desagregação. O desafio lançado a um outro, quando
desperta o excesso de seu desejo, é, para uma histérica, um baluarte
levantado contra a idéia fixa de situações de pura violência, em que
nenhuma lei vale e cujos lugares concentracionários fornecem fre
qüentemente o significante nos sonhos.
Tornar-se a representante do excesso do gozo a contratempo,
quando um outro o quer ignorar, é assim uma espécie de achado para
sexualizar apesar de tudo a ameaça de uma violência inominável que
dá à transferência sua coloração específica. A histeria, enquanto se
mantém, consiste pois em representar o erógeno até os confins do
horror. A extrema dependência com relação a um outro, e mais
precisamente com relação a alguma coisa do desejo de um pai, por
exemplo, é uma maneira de poder recalcar o horror, sexualizando
aquilo de que se trata. A insatisfação histérica, longe de ser aquilo por
que ela se dá — a saber, uma recusa do outro sexo — não será essa
sexualização a todo custo, essa sexualização apesar de tudo?
Para melhor entender, convém, justamente, renunciar ao mito
segundo o qual todo o arcaico se encontraria do lado das identifica
ções com a mãe, e o pai representaria o simbólico, uma vez que
82 As identificações
permite uma separação. A Darstellung histérica, essa erotização
apesar de tudo, é uma espécie de resposta às incertezas simbólicas
que concernem tanto à relação com o pai quanto à com a mãe.
Voltemos à minha analisanda encadernadora. Perguntando-se, em
um momento da análise, se iria se tornar analista, ela teve o seguinte
sonho. Uma de suas amigas, ou melhor, uma de suas conhecidas, da
qual não gostava muito, mas com quem tinha em comum o fato de
seus pais terem mudado de nacionalidade, ia a um hospital psiquiá
trico ver mortos-vivos se beijando. Ora, minha paciente fazia um
estágio em um hospital, onde se aleiçoou a uma paciente internada
que tinha o mesmo nome que sua mãe, e que eu mesma. O que as
manifestações histéricas, e mais particularmente a paranóia de ciú
me, serviam para afastar — e o conseguiram — era não só a relação
arcaica com a mãe, mas também as incertezas identificatórias e
simbólicas a que seus pais estavam ligados.
O ciúme delirante era então um achado que erotizava uma incer
teza e uma violência mais fundamentais. Ele tinha a funçãd que têm
os delírios nas psicoses: construir, de algum modo, ali onde falta no
outro aquilo que permite a identificação; tanto que — e é uma
diferença decisiva — a Darstellung histérica tem mais sucesso, pois,
parece-me, a histérica não está devotada ao gozo de um Outro.
Mesmo se os pais são sempre um pouco ou muito perversos, eles não
o são o bastante para que a posição histérica não seja obra do próprio
sujeito, assim como as histéricas podem, em um desafio de saber
dirigido a um outro, jogar com o elemento do saber: na psicose o jogo
serve mais para afastar o saber e, quando o saber se estilhaça, não se
joga mais.
Uma histérica não está então devotada ao gozo de um Outro, ela
se dirige, em nome do gozo, a um Outro que não quer saber nada
disso. Esse desafio serve-lhe para poder ignorar que o gozo sexual se
decide nos confins daquilo que é, para um sujeito, o mais traumático.
Identificação e histeria 83
D iscu ssão *
J a c q u e s S ch o tte
Como se pode notar, eis aqui recolocado o mais antigo problema
originário de toda a psicanálise e a questão da identificação na
histeria.
Quem quer a palavra?...
P a trick G uyom ard
Escutando o que você falava e fazendo um paralelo com o que
Lacan diz, a partir de Freud, sobre o sonho da Bela Açougueira, e o
que você retomou do texto de Melanie Klein, coloca-se a questão de
dois estatutos diferentes de identificação da falta.
Melanie Klein levantava a questão de um além da nomeação da
falta. Existe uma falta que se pode nomear e identificar e que nada
produz, ou que eventualmente produz uma repetição; e há uma outra
falta que pode ser nomeada e identificada, como no exemplo de
Melanie Klein, de modo que é possível uma produção, uma criação.
Dito de outra maneira, a análise não pode se deter nem se limitar à
simples questão da falta e da nomeação dessa falta. A questão da
identificação histérica talvez sofra algumas vezes um bloqueio, por
que se diz: “Bem, é certo, existe a falta”; a partir do momento em que
ela é nomeada, já é o suficiente. Mas a nomeação de uma falta não
significa, necessariamente, sua simbolização.
M o n iq u e D a vid -M é n a rd
De fato, eu observava que nesse exemplo é a falta que está em
jogo, mas não conseguia dizer como. Você propõe, creio, uma ma-
Intervenções não revistas pelos autores.
84 As identificações
neira de situar reciprocamente o que disse Lacan e o que me parece
ser relevante no exemplo que Melanie Klein nos dá, assim, de
repente, que é ao mesmo tempo muito rico e não-analisado. Eu tinha
tentado dizer isto ao diferenciar a falta pela diferença entre dois
significantes, tal como pode ser marcada na fala, e o fato de que,
quando algo é produzido a partir da falta, o que importa é que isso
existe.
Eu não sei como seria possível tornar isso compatível com o que
você disse, mas deve ser feito.
P a trick G uyom ard
É realmente difícil falar da falta sem falar da questão da separação.
Há uma simbolização da falta que permite uma separação, e outra que
não a permite.
O que falávamos esta manhã — que me parece fundamental —
sobre não confundir identidade e identificação, gira em torno dessa
questão da separação. Na análise ocorre também uma separação, e
não simplesmente a nomeação de uma falta. Trata-se de uma separa
ção e, então, é necessário introduzir alguma coisa a mais, aquilo que
representa a pintura no exemplo de Melanie Klein.
M o n iq u e D a vid -M én a rd
De fato, poderíamos dizer, em certo sentido, que a separação é tão
intolerável que se torna necessário algo que, ao mesmo tempo, faça
bem. E a função que tem, nitidamente, na história dessa pintora, o
fato de ter ela produzido um quadro.
Na análise, trata-se de saber o que pode dar condições de existên
cia, uma existência tolerável, às mais radicais situações de angústia,
de tal forma que isso seja manejável.
M aud M annoni
Lacan, com relação ao sonho da Bela Açougueira, falou da insa
tisfação própria da histérica (desejo de ter um desejo insatisfeito).
Mas ele insistiu também em uma outra vertente: a identificação com
o Outro se faz por intermédio do desejo. Ele lembrou, nessa ocasião,
Identificação e histeria 85
que é pelo Outro e para o Outro que Alcebíades quer fazer Sócrates
tomar conhecimento de seu amor.
A questão abordada por vocês, dessa mulher que se tornou pintora
em um momento preciso de sua trajetória, lembrou-me a história de
Mary Barnes, no Kingsley Hall. Mary Bames foi considerada psicó
tica. Entretanto, o verdadeiro esquizofrênico era seu irmão, com
quem havia-se identificado. Ela entrou no Kingsley Hall para “regre
dir”, a fim de poder, a partir daí, ajudar seu irmão. Começou a sujar
as paredes do seu quarto com excrementos. Um dia, Laing veio vê-la
e lhe disse: “E bonito, mas falta cor.” Foi exatamente a partir dessas
palavras que ela tomou dos pincéis e tornou-se pintora.
M o r tiq u e D a v l d - M é n a r d
O que você acaba de dizer me faz pensar que, no exemplo citado
por Melanie Klein, há também uma espécie de ajuda que permite o
descolamento e que é, de todo modo, da ordem da identificação. O
que eu não mencionei é que essa pintora tinha um cunhado pintor.
M a r c B ra u n s c h w e ig
Que entende você por identificação-prisão? Podemos articulá-la
como uma abertura com a asserção do sujeito no tempo lógico de
Lacan? Trata-se da inserção do sujeito no tempo lógico?
M o n iq u e D a v id - M é n a r d
Posso responder somente à primeira parte da pergunta, pois não
tenho presente na memória o texto sobre o tempo lógico para poder
estabelecer uma relação entre os dois. Mas o tempo certamente é
relevante naquilo que eu chamo de identificação-prisão.
As identificações-prisão, que eu opunha em pensamento, ao escre
ver esse artigo, às identificações-passaporte, são aquelas de que um
sujeito só pode falar quando se desidentifíca. Quando está aterroriza
do por qualquer coisa que remete a uma identificação, ele não sabe
disso, só percebe por meio de algumas formas de angústia ou de
inibição. Assim, se só se pode falar dessas identificações a partir da
86 As identificações
desidentificação, quer dizer que existe o lempo, que há um efeito
retroativo.
Um in te rlo c u to r
Gostaria de fazer uma pergunta a vocês, talvez ingênua, mas fiquei
um pouco surpreso com a afirmativa: UA histérica tem o desejo de ser
privada.” Não sei se é uma fórmula de Lacan, mas conheço aquela
em que ele diz que a histérica não pode sustentar seu desejo a não ser
quando insatisfeito. Parece-me que não é o mesmo, mas talvez eu
tenha esbarrado na ambigüidade que vocês ressaltaram.
M o n iq u e D a vid -M é n a rd
No que me lembro, parece-me que há duas formulações em Lacan,
mas seria necessário verificar.
Quero dizer que a privação não desempenha sempre o mesmo
papel. Será que ela é de fato o que constitui o desejo? Ou será ela que
permite que o desejo se constitua enquanto desejo, nãô assumido, se
quisermos, fazendo com que possa se sustentar justamente por não
ser satisfeito? Não sei se é exatamente no nível da identificação-pas-
saporte, mas de qualquer modo ela só pode viajar com um passaporte
que não esteja em seu nome. Penso naquela outra fórmula em que
Lacan diz, a respeito de Dora, que o desejo da histérica é o desejo do
pai, a ser sustentado em seu estatuto — creio que ele coloca dessa
maneira.
Parece-me que Lacan diz justamente que o desejo de Dora é o
desejo do pai. Ela se identifica com o pai idealizado, que é também o
pai castrado, e essa identificação lhe serve para interrogar-se sobre a
Senhora K., e também sobre ela própria. E muito sutil e, em certo
nível, muito apropriado, mas me parece que é necessário também
inverter as coisas. De um lado, porque não creio que se possa dizer
que a Senhora K. seja o objeto do desejo de Dora, pois há algo de
muito não-representado nessa relação para que se possa falar de
objeto. Por outro lado, porque diria de bom grado, sobre a questão da
insatisfação que funda o desejo, que se tem discutido isso bastante e,
em certo sentido, a possibilidade de satisfação é também um dos
Identificação e histeria 87
riscos de uma análise, e em particular da análise de uma histérica,
sem que por isso se anule o desejo.
O c ta v e M a n n o n i
Lembrando de minhas experiências com as histéricas, observo que
elas se curam quando têm sucesso, um sucesso marcante. O sucesso,
creio que é ele que as cura. Uma vez que obtêm um determinado
sucesso, elas se destacam. Isso me fez pensar que o sucesso as livrava
dos problemas, permitindo-lhes que se identificassem com elas mes
mas. Elas são elas, quando têm sucesso. E preciso que seja um
sucesso visível, é claro.
O problema da identificação nas histéricas é muito complicado.
Ele se origina no nascimento, ou quase: “Essa criança não é como
deveria ser.” E por isso que há muito mais moças histéricas do que
rapazes: “Nós queríamos um menino, não foi como deveria ser.” A
histérica se encontra presa a um problema de identificações sucessi
vas que se expulsam umas às outras e, na minha limitada experiência,
as histéricas que se curaram conseguiram isso graças a um sucesso
visível, que os outros pudessem reconhecer. Eu não acredito que
tenha sido de outro modo, que o trabalho da análise as tenha transfor
mado dessa maneira. Mas ele lhes permitiu a transformação.
J a c q u e s S ch o tte
É importante insistir na diferença entre Vorstellung e Darstellung,
termos freqüentem ente traduzidos pela mesma palavra: repre
sentação.
Comumente, ou seja, fora da pregnância desse contraste no voca
bulário freudiano, o termo que se impõe para Darstellung é repre
sentação. Mas surge então uma completa homofonia com a tradução
obrigatória de Vorstellung.
Queria simplesmente mencionar as ressonâncias que essa lem
brança me trouxe, fazendo referência a uma questão histórica, bem
semelhante. Trata-se dos problemas que podem ocorrer em torno da
noção grega de mímesis. Este termo é freqüentemente traduzido por
“imitação”, ou seja, aquilo que representa alguma coisa que antes já
estava presente.
88 As identificações
Sabe-se agora que a palavra mímesis desempenha um importante
papel na estética tradicional, quando se fala de imitação da natureza.
Ora, sabemos hoje, creio que de forma inteiramente definitiva, que o
sentido primeiro de mímesis nada tem a ver com a imitação de uma
figura que já estaria dada em algum lugar, e que nos introduz num
tipo de perspectiva representativa e representadora.
O sentido original de mímesis provém do universo da dança. Ele
traduz o aspecto “dançante” da representação, no sentido teatral, no
sentido da dramatização, E, então, um certo pôr-em-ação no qual
poder-se-ia dizer que alguém chega a se identificar consigo mesmo,
e não identificar-se no sentido de qualquer processo que seja. Nesse
último caso, teríamos ainda, de fato, a conotação de uma imitação ou
de uma representação.
Isto me parece uma referência interessante para mostrar até que
ponto existe um horizonte muito distante na problemática de nossos
conceitos, e também como tendemos a cair numa certa simplificação
dos fenômenos quando empregamos noções insuficientes. Para o
pensamento, ao contrário, toda a importância está dada à possibilida
de de fazermos as necessárias distinções.
A restituição dessa diferença entre Vorstellung e Darstellung
prova, uma vez mais, que o pensamento analítico sempre pode buscar
seus recursos pelos lados da histeria.
O c ta v e M a n n o n i
Sim, uma das falas de que eu não esqueço, por ser chocante por
parte de uma histérica, é o que uma pessoa me disse, sem perceber a
contradição: “Se eu fosse como a rainha da Inglaterra, seria como
todo m undo/’ Ela enunciava o fundamento da histeria. Quer dizer, se
eu fosse alguém que eu pudesse de fato exibir e dar importância,
alguém com quem pudesse me identificar de maneira sólida, eu não
seria histérica.
M o n iq u e D a v id - M é n a r d
Gostaria justamente de dizer uma palavra sobre um ponto muito
particular que diz respeito à Darstellung histérica e à mímesis.
Lacan parece não gostar do uso da palavra mime (imitação), que é
Identificação e histeria 89
a expressão freudiana para designar a apresentação no estilo da
pantomima. Esforçando-se por evitar a linguagem energética em sua
leitura de Freud, Lacan transforma o termo pantomima em semiolo-
gia figurativa.
Dito de outra maneira, ou se tem uma “semiologia figurativa”, ou
se tem uma escrita. Como Lacan contesta qualquer semelhança
realista ou empírica nos modos de significância do desejo, ele inter
preta a Darstellung no interior da Vorstellung, quer dizer, a apresen
tação figurativa no interior da representação.
Esta maneira de ver foi provavelmente necessária, em certo m o
mento da história da psicanálise, para desvincular Freud de uma
interpretação energética realista.
Penso que em nenhuma Darstellung pode-se supor uma imitação,
no sentido realista do termo. Nenhuma convulsão histérica ganha o
sentido de reprodução realista de algo.
Tudo se passa como se Lacan tivesse tido necessidade de pensar a
questão com apenas duas possibilidades: a semelhança ou a escrita.
Parece-me que o que temos que compreender a respeito desse proble
ma é que não se trata de nenhuma dessas possibilidades, mas de algo
entre as duas.
Isto é, enfim, bastante banal, porque é também o que está em
questão na pintura. Nenhum pintor reproduz qualquer coisa. Entre
tanto, em francês, quando se trata de dar conta dessa atividade do
pintor, empregam-se termos que provêm ao mesmo tempo da ordem
da escrita e do automatismo da repetição.
J a c q u e s S c h o t te
Vou me unir a tudo o que você acaba de dizer. Uma outra fórmula
me surge para exprimir o sentido de mímesis. Mesmo qüe haja algo
de imitação, de reprodução, de representação na pintura, ela, segundo
o pensamento de Paul Klee, “imita” não os resultados da natureza,
mas os processos próprios de criação da natureza.
O m e s m o in te r lo c u to r
Está bem, mas isso é metafórico, e não podemos utilizá-lo na
interpretação.
90 As identificações
J a c q u e s Sch o tte
Você tem razão. Mas existe um outro ponto que gostaria de
ressaltar- O sentido desgastado de imitação parte sempre de uma
espécie de dado preliminar. Se quisermos descobrir em Lacan algu
ma coisa que vá no sentido da diferenciação que você faz, creio que
não será no que ele fala de mime (imitação) ou de pantomime
(pantomima). É antes na primeira parte do Discurso de Roma* que
ele estabelece o contraste entre a dramatização histérica como regis
tro da intersubjetividade dramática, em oposição à decadência de
uma certa técnica psicanalítica que ele censura naquele momento;
técnica cujo modelo é induzido sobretudo por uma mecânica de
representações projetadas na análise.
V a lérie S c h m id t
No campo da pintura, o único em que posso intervir, eu me
pergunto se, no caso relatado por Melanie Klein, não é um pedido de
permissão o que essa mulher vem fazer. Ela não perde a oportunidade
de “m ostrar”. Eu trabalho com pintura, recebo pessoas. Octave Man-
noni me encaminha aquelas que têm problemas. Sempre fico impres
sionada, e também surpresa, com o fato de que venham pedir (mesmo
que sejam agressivas e pareçam seguras de si mesmas) uma permis
são: a de pintar, de se mostrar. Pouco importa se o nosso relaciona
mento é bom ou mau.
Portanto, será que a histérica não pede permissão para mostrar,
para se mostrar? Tal como para Barnes, que aproveitou a oportunida
de de se mostrar, do modo que sabemos. Nos dois casos, isso acon
tece muito rapidamente. Acredito que houvesse um desejo de pintar,
talvez inconsciente, mas fica-se inteiramente abalado por isso.
Recebi recentemente um pintor enviado por Octave Mannoni, um
senhor que desenhava. Ele me trouxe dez desenhos, mas havia ainda
outros dois que estavam escondidos. Dez não tinham qualquer inte
resse; nos dois últimos, em que não havia lá grande coisa, três
J. Lacan, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” , \x\ Escritos,
Perspectiva, São Paulo, 1983.
Identificação e histeria 91
pequenos traços demostravam um grande domínio. Eu lhe disse: “Por
esses três pequenos traços, eu acredito que você pode pintar.” Há
aproximadamente quinze dias — três meses após sua primeira visita
— , ele voltou com uma pintura, e fiquei inteiramente perplexa: uma
pintura nova, com um perfeito domínio, demonstrando perfeita téc
nica. Então olho e não digo nada. Ele me diz: “Felizmente você não
disse nada, porque agora eu vou-lhe dizer. Da primeira vez, tinha
vindo pedir permissão — eu sabia pintar, mas me proibia. E de fato
surpreendente!”
Portanto, não sei se não será preciso abolir rótulos como “histéri
ca” e se livrar da idéia de que isso acontece como Lacan disse, com
as receitas que temos. Talvez devêssemos tentar escutar bem em
função de um não-saber, tentar esquecer que sabemos, que conhece
mos um negócio que vai funcionar. Eu peço desculpas por dizer isso,
mas este é o único problema: essa mulher pintou, ela não perdeu a
ocasião de mostrar que seu desejo era de se mostrar e de pintar.
W la d im ir G r a n o ff
Tendo a intervenção precedente redirecionado a discussão para o
tema da exposição, tenho certo escrúpulo em fazer algumas con
siderações que não dizem respeito à histeria, mas que são dirigidas
discretamente a Schotte. Você chamou a atenção para a relação,
difícil de ser transposta em francês, entre a Vorstellung e a Darstel-
lung.
Mas se nos remetemos ao texto freudiano, a tarefa pode se revelar
menos desesperadora. Esses termos são relativos às diferentes etapas,
que podemos chamar técnicas, da constituição de um texto ou de um
processo de teorização; o que dá no mesmo, em se tratando de Freud.
Esse processo, que acabará, quando se complete, com uma Deutung
(interpretação) ou uma Erklãrung (explicação), passará necessaria
mente por uma etapa que precederá e tornará possíveis, eventualmen
te, os dois últimos tempos. E essa etapa, que utilizará o produto da —
ou das — Darstellung(en) realizada(s) com a(s) Vorstellung(en), é a
Beschreibung — literalmente, a descrição: a constituição de um
escrito, cujo objetivo será o de dar conta.
A cada etapa do processo encontram-se as dificuldades que lhe são
92 As identificações
inerentes. Mas seu reconhecimento se efetua segundo um ritmo vindo
de fora, na ocorrência do progresso — ou das etapas, ainda presentes
— da reflexão teórica entre os analistas.
Conhecemos assim, há uns 30 anos, uma discussão em tomo da
questão da Vorstellung. Há uns 15 anos, a questão da Darstellung e
da Darstellbarkeit (a representabilidade, a figurabilidade), que re
quereu uma atenção mais viva, E me parece que em nossa época,
enfim, é a questão da Beschreibung— mesmo se, como tal, não tenha
sido ainda nomeada — que, na França e no exterior, mobiliza um
crescente interesse. Freud a assinala desde o início de sua obra, nas
cartas a Fliess.
É a problemática da bissexualidade, cuja acuidade é tão forte nas
origens, que propicia o seu surgimento. A bissexualidade, que não
coloca nenhum problema no nível da Vorstellung, em que a Darstel
lung é possível, vai causar no nível da Beschreibung dificuldades
quase insuperáveis... “Sie belastet unsere Beschreibung. ” Ela pesa,
ela sobrecarrega nossa descrição. E por isso que, na minha opinião,
um questionamento sobre a Vorstellung e a Darstellung requer a
convocação e o emprego desse terceiro termo, que designa um tempo
fundamental do processo, a Beschreibung.
J a c q u e s S c h o tte
Para esta última parte de nossa jornada de trabalho, Conrad Stein
propôs-se a nos apresentar algumas identificações do psicanalista.
Passo-lhe a palavra.