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A Identidade Do Outro-1

Este artigo discute a importância da alteridade para repensar os direitos humanos nas sociedades contemporâneas. Apresenta as perspectivas de Lévinas e Derrida sobre a relação entre o eu e o outro, e argumenta que o reconhecimento do outro é essencial para evitar visões etnocêntricas e compreender a diversidade cultural. Defende que é necessário resgatar o componente ético nos direitos humanos e na política para superar a ruptura entre ética e política na modernidade.

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A Identidade Do Outro-1

Este artigo discute a importância da alteridade para repensar os direitos humanos nas sociedades contemporâneas. Apresenta as perspectivas de Lévinas e Derrida sobre a relação entre o eu e o outro, e argumenta que o reconhecimento do outro é essencial para evitar visões etnocêntricas e compreender a diversidade cultural. Defende que é necessário resgatar o componente ético nos direitos humanos e na política para superar a ruptura entre ética e política na modernidade.

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Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

DO “EU” PARA O “OUTRO”: A ALTERIDADE COMO PRESSUPOSTO


PARA UMA (RE) SIGNIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

FROM THE “I” TO THE “OTHER”: ALTERITY AS A PRESUPPOSITION


FOR HUMAN RIGHTS RE-SIGNIFICATION

Por José Querino Tavares


Neto* e Katya Kozicki**

RESUMO: Cada vez mais se torna necessário ABSTRACT: Today it is very important that we study

estudar os direitos humanos, sua normatização e human rights – its juridical construction and
protection – taking into account alterity as an
proteção, tomando a alteridade como instrumento
analytical instrument. It is necessary to be aware of
de análise. O reducionismo a qualquer realidade,
the risks involved in the reductionist perspectives
seja cultural, étnica, racial, religiosa etc., expõe-nos
about any reality: cultural, ethnical, racial or a
ao etnocentrismo e a uma visão limitada da religious one. This kind of reductionism put us in
diversidade culturas e da realidade. O conhecimento danger of ethnocentrism and a limited

da nossa cultura passa inevitavelmente pelo comprehension about cultural diversity and reality.
The understanding about our culture is only possible
conhecimento das outras culturas. A compreensão
through the understanding of other cultures. The
do outro leva ao (re)conhecimento de que somos
comprehension of the other leads to the knowledge
uma cultura possível entre tantas outras, evitando a of that our culture is only one possibility among
arrogância racial, econômica e política. Neste others. Through the other’s recognition we can avoid
trabalho são analisadas as perspectivas de Lévinas the sense of racial, economics or political superiority.

e Derrida sobre a questão do outro e do eu (a In this paper we present Lévinas and Derrida’s
perspectives of the other and the self (a face-to-face
relação face a face) com o objetivo de (re) pensar o
relation) in order to re-think human rights in the
problema dos direitos humanos nas sociedades
contemporaries societies.
contemporâneas.
KEYWORDS: human rights; constitution;
alterity; identity; diversity.
PALAVRAS-CHAVE: direitos humanos;

constituição; alteridade; identidade; diversidade.


* Mestre e Doutora em Filosofia do Direito e do
Estado pela UFSC. Visiting Researcher Associate
no Centre for the Study of Democracy, University of
* Professor adjunto da Faculdade de Direito da
Westminster, Londres, 1998-1999. Professora titular
Universidade Federal de Goiás; do Mestrado em Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e
da UNAERP e do Mestrado em Desenvolvimento
Professora Adjunta da Universidade Federal do
Regional das Faculdades ALFA. Estágio pós-doutoral
Paraná. Pesquisadora do CNPq.
em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra,
bolsista CAPES. Bolsista da FUNADESP.

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O Cristo do Corcovado desapareceu, política, agora já não mais no campo


levou-o Deus quando se retirou para a eternidade, universalista da ética moderna. Neste
porque não tinha servido de nada pô-lo ali.
pressuposto – de que é possível e necessário –
Agora, no lugar dele,
fala-se em colocar quatro enormes painéis, reaproximar ética, direito e política, adotamos
virados às quatro direções do Brasil e do mundo, e como premissa uma ética não-universalista e
todos, em grandes letras, dizendo o mesmo:
fundada na idéia de alteridade, na qual o outro
um direito que respeite, uma justiça que
cumpra. (José Saramago) aparece como categoria central. O problema do
outro, ou a própria questão da alteridade, está

O processo de formação da modernidade no cerne das preocupações dos mais

é fortemente caracterizado pela ruptura entre importantes filósofos do século XX, e a partir

a ética e a política e compreendê-lo passa, dessas reflexões podemos buscar novas formas

necessariamente, por desvendar as condições de compreender a alteridade em um mundo

de tal ruptura e o problema do sujeito fortemente marcado pelo processo de

moderno, tanto no campo da filosofia quanto globalização.

no campo do direito, indagando quem é o Na mesma dimensão de importância se

sujeito de direito. Ao mesmo tempo, encontra o direito (principalmente o campo

compreender a construção teórica dos direitos teórico e normativo do direito constitucional e

humanos e tentar desvelar novos caminhos do constitucionalismo), que tendo por objeto a

para a sua realização pressupõe um resgate regulamentação das relações sociais, opera

do componente ético no qual se possa fundar numa perspectiva de prevenção/ repressão,

e (ou) fundamentar a ação política e também uma vez que atua tanto na tentativa

a atuação do direito nas democracias psicopedagógica, ou ao menos deveria ser de

contemporâneas. Nesse sentido é que formação do ser humano para a consciência e

entendemos a política e a democracia, e efetivação da justiça; como na ação pós-

também a realização do justo no plano jurídico factual para efetivação do justo, do correto, ou

como devir ético: o direito e a política (ou a pelo menos sua clara intenção, sem nos

ação política) entendidos como o momento iludirmos, pelos riscos da grande possibilidade

privilegiado da decisão, a passagem do de poder econômico. O Estado, como

indecidível para o campo da práxis estrutura organizada de poder, desempenha a

consubstanciada em um momento de função de garantir entre os homens uma

julgamento, de crítica. Se entendermos o convivência ordenada de forma harmoniosa e

direito e a política como criação artificial da segura, sobretudo a de manter a paz e a

ordem – este momento do julgamento, capaz segurança jurídicas.

de gerar estabilidade em meio ao caos – Numa sociedade claramente de auto-

somos levados a indagar o que justifica ou regulação intensiva (ZIPPELIUS, 1997), na qual

legitima tal momento. Esta passagem – da está em causa a efetividade das Constituições

impossível decisão – undecidable – para o como instrumento regulatório e previdente, em

campo da ação/decisão necessita novamente contradição com a insistente perpetuação de

ser pensada em termos éticos, o que impõe uma sociedade profundamente incoerente

repensar a relação entre ética o direito e a pela concentração de riqueza, o

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que de fato está em xeque é a própria e Jacques Derrida – a relação do eu com o


sobrevivência deste tipo de Estado outro (face à face) e categoria da identidade,
Constitucional. O que nos ocupamos aqui é tendo em vista questionar quem é o sujeito
procurar entender em que medida, ou melhor, concreto cujo discurso dos Direitos Humanos
qual a chance de transcendência/sobrevivência
visa proteger. Em seguida, passamos à
do Estado Constitucional ou sua superação da
reflexão sobre o Estado, e o
nova ordem global. Nossa hipótese para a
constitucionalismo, como possibilidade de
construção de uma sociedade mais coerente e
concretização daqueles direitos.
justa passa pela valorização da alteridade como
categoria de análise como elemento cimentar.
ALTERIDADE COMO ELEMENTO DE
Dito de outra forma, a sobrevivência do Direito
Constitucional e, mesmo o constitucionalismo,
COMPREENSÃO DA REALIDADE
passa pela assimilação dos direitos humanos A temática da alteridade sempre ocupou
como liame, reserva, para a (re)construção da
lugar privilegiado na problemática do
sociabilidade, e isso, numa dimensão local,
conhecimento. Trata-se da relação que
regional e global.
transcende a perspectiva de sujeito
Inicialmente, é importante salientar que,
cognoscente, que apreende a realidade como
para superação das questões etnocêntricas1
objeto cognoscível visto o conhecimento ser,
está a necessidade de reconhecimento das
de um lado, condicionado pelo sistema de
diferenças nas relações de gênero, étnicas,
valores de referência daquele que conhece e
raciais, religiosas, culturais, sociais etc. A
sua capacidade cognitiva pelos sentidos; de
sociedade, no tocante a tais demandas, na
outro, pela complexidade do objeto que se
realidade depara-se com o encontro – que
conhece ou se dá a conhecer.
não deve ser confronto – com o outro, com a
O argumento a ser explorado neste
diferença. Esta é a questão fulcral da
problemática em relação à temática dos trabalho funda-se na premissa de que

direitos humanos e sua imbricação com o somente por meio de um compromisso ético

direito constitucional, que no tocante ao com a justiça e o reconhecimento de uma

processo regulatório não pode prescindir nem infinita responsabilidade para com o outro 2
do Estado, sob pena de ilegalidade; nem da será possível administrar a contingência e a
sociedade, sob pena de ilegitimidade. diferenciação típicas deste início de século,
Nesse sentido, pretendemos discutir sem que o reconhecimento delas implique
inicialmente – principalmente a partir das
construções teóricas de Emmanuel Lévinas
2 “Finalmente, os conceitos de “eu” (reflexivo) e
“outro” não devem ser entendidos como referindo-se a
entidades fixas mas, ao contrário, como designando
1 Visão que toma a própria cultura como centro relações, respectivamente, de identidade, diferença ou
e medida de toda e qualquer comparação, alteridade.” (ROSENFELD, Michel. Deconstruction and
promovendo com isso tanto a valorização da cultura legal interpretation : conflict, indeterminacy and the
do que observa como a desvalorização do que é temptations of the new Legal formalism. Deconstruction
observado, sempre a partir de um sistema de and the possibility of justice, Cardozo Law Review, v.
valores aceitos pela cultura daquele que observa. 11, n. 5-6, p. 1228, jul./aug. 1990).

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negligência ética ou indiferença moral. Desde outro. Para Lévinas4, a justiça define e é
um verdadeiro compromisso com o outro e de definida por esta relação ética com o outro,
uma verdadeira busca pela justiça, em resposta ao sofrimento do outro, para com
é possível criar sentido num universo sem o qual o sujeito tem uma infinita
sentidos. A política, compreendida a partir da responsabilidade. Mas esta concepção ética
filosofia da diferença, está marcada por um de justiça também se coaduna com uma

compromisso ético inafastável para com este noção política de justiça, no sentido de que

outro. Porém, se a ética, entendida na toda relação ética é sempre situada em um

perspectiva de Emmanuel Lévinas, é afirmada determinado contexto sociopolítico, o qual


implica diferentes concepções éticas, levando
mediante essa relação com o outro, a
à necessidade da escolha entre estas, ou
passagem da ética para a política é marcada
de uma decisão. Em Totalidade e Infinito a
pela presença/chegada de um terceiro,
ética é entendida como uma relação de
significando “outros”, a multiplicidade de
responsabilidade, não totalizadora com o
sujeitos que fundam e constituem a polis.
outro. A relação do eu com o outro é
Partindo da obra de Emmanuel Lévinas,
notadamente uma relação de assimetria, de
Derrida considera ser a ética a primeira
radical desigualdade.5 A passagem da ética
filosofia, isto é, a ética como uma relação
para a política é caracterizada pela chegada
entre pessoas. A análise de Derrida situa a
de um terceiro, uma relação com todos os
ética na perspectiva da responsabilidade,
outros6. A relação com o outro é uma relação
tomando a própria linguagem e sua
de proximidade – face à face (face to face), de
construção como uma resposta ao outro.
responsabilidade que antecede qualquer
Anteriormente a qualquer decisão, a qualquer
questionamento. Já a política importa na
forma de mediação – seja a construção do
responsabilidade por questionar, no sentido
discurso político, seja a construção do de que indagação deve remeter à busca por
discurso jurídico –, a desconstrução
descortina a dimensão da responsabilidade
4 LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini.
subjacente a estas construções. O momento Paris: Livre de Poche, 1990.
ético dentro desta formulação pressupõe a 5 Nas palavras de Lévinas: “Na relação com o outro
responsabilidade para com o outro, uma este aparece para mim como alguém a quem eu devo algo,
em relação a quem eu sou responsável. Daqui a assimetria
afirmação infinita e completa da alteridade; o
da relação Eu/Você, uma relação de completa diferença
outro que se afirma em toda sua alteridade e entre mim e você, porque toda a relação com o outro é uma
relação de responsabilidade.” LÉVINAS, Emmanuel. Alterity
a impossível apreensão desta diferença.
and transcendence. New York: Columbia University Press,
A ética, tal como Lévinas3 a concebe, 1999. p. 101.

coloca em questão minha liberdade e 6 “Mas a aparente simplicidade desta relação entre
espontaneidade, minha subjetividade, e o mim e você, na sua completa assimetria, é perturbada
pela chegada de uma terceira pessoa, quem aparece ao
lado do outro, ao seu lado. Esta terceira parte é
também o vizinho, o rosto, uma inatingível alteridade.
3 A respeito conferir: CRITCHLEY, Simon. The
Ethics of Deconstruction. Derrida and Levinas. Aqui, com este terceiro, nós temos a proximidade de

Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. todos os homens.” Id ibid. p.101, grifos nossos.

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uma comunidade justa. A política é o devir da Na justiça existe comparação, e o outro não
ética (ainda que no inter-relacionamento entre tem nenhum privilégio em relação a mim.
Entre pessoas que adentram esta relação,
ética e política não exista uma relação de
uma outra relação deve ser estabelecida,
temporalidade, cronológica, no sentido de que que pressupõe a comparação entre eles, isto
uma antecede ou sucede a outra, uma vez que a é, pressupõe, justiça e cidadania. Limitação
daquela responsabilidade inicial, a justiça
relação ética é uma relação que ocorre em um
ainda assim marca uma subordinação do eu
espaço político). É com esta chegada, com a em relação ao outro. Com a chegada do
entrada em cena deste terceiro que se inaugura terceiro, o problema fundamental da justiça é
colocado, o problema do direito, que é
ou se instala a esfera política: é esta chegada
sempre do outro.8
(do terceiro) que, justamente, marca a transição
Embora interdependentes e inter-
da ética para a política em Lévinas. Pois aqui é
relacionados, direito, política e ética são
que surge a questão do julgamento, a própria
estruturas distintas. O direito é geral, contém
questão da justiça: “Quem é, nesta pluralidade, o
padrões gerais de conduta, enquanto a justiça
outro por excelência? Como eu posso julgar?
exige uma resposta singular, particular ao
Como comparar os outros – únicos e
caso em análise. De acordo com a concepção
incomparáveis?”7 Esta passagem é
ética de justiça que se está considerando, a
consubstanciada por uma transformação no
qual pressupõe uma infinita responsabilidade
próprio tipo de relação que se tem em mente: a
para com o outro, e tendo em vista que esta
relação ética caracterizada pela completa
jamais vai ser plenamente realizada, a justiça
diferença/assimetria; a relação política
jamais se realiza no presente, se constituindo
caracterizada pela reciprocidade/ igualdade entre
sempre em um à-venir, algo por acontecer. A
os membros da sociedade. A relação de infinita
justiça, compreendida como um compromisso
responsabilidade entre mim e você (you/toi) não
ético com o outro, não deixa de ter um
supõe reciprocidade, uma vez que a minha
componente político, uma vez que este
responsabilidade perante o outro não pressupõe
compromisso ético é sempre referido por um
qualquer correspondência (para Lévinas
contexto histórico-cultural e que o mesmo leva
qualquer correspondência ou reciprocidade
à necessidade de decisões, as quais implicam
excluiria a generosidade implicíta na idéia de
agir. Uma possibilidade é a ação política,
responsabilidade e a tornaria instrumental ou
capaz de satisfazer à obtenção da justiça
utilitária). E é precisamente aqui que surge a
política. Outra possibilidade pode ser
questão da justiça, como problema político e a
encontrada no universo jurídico, como cenário
partir dela se coloca a própria questão do direito
de regulamentação social e técnica de
e da política:
solução de conflitos. É justamente neste
cenário que se insere o questionamento sobre
Minha procura por justiça pressupõe uma
o sujeito de direito – não o sujeito em abstrato
nova relação, na qual todo o excesso de
e sim o sujeito concreto. Nesse sentido as
responsabilidade que eu devo ter perante o
outro é subordinado à questão da justiça. palavras de João Cabral de Melo Neto:

7 8
Id.ibiden, p. 102. Id. Ibiden, p.102.

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É difícil defender nem pergunta de onde vêm. A realidade


Só com palavras a vida socioeconômica mundial e seus marcos
(ainda mais quando ela é esta que vê, Severina)
estruturantes assumem o sujeito de direito
e o cidadão a partir de uma perspectiva de
É difícil defender, só com palavras, a vida.
igualdade formal, o sujeito sem rosto e nem
Eis o porquê de necessitarmos de um direito
identidade cujos direitos, em tese, são
que respeite, uma justiça que cumpra
salvaguardados nos limites concretos do
(como afirma Saramago na citação que
Estado de Direito. Mas essa perspectiva
abre este trabalho). Os direitos humanos,
formal não é suficiente para tornar os
como discurso e construção jurídica,
anônimos Joãos, Josés e Marias sujeitos
constituem um arcabouço importante mas
concretos. Em primeiro lugar, é necessário
não suficiente para que possamos
que reconheçamos quem é este sujeito de
efetivamente defender a vida, entendida
direito, situando-o concretamente na
esta não somente como existência física,
sociedade e individualizando a sua
em todas as suas manifestações concretas,
existência concreta, única e singular.
mas entendida também a partir das teias e
O (ou os) Severinos de quem nos fala o
tramas que nos tornam sujeitos únicos e
poeta João Cabral devem ser tornados
atores sociais diferenciados em nossas
concretos, para além da voz do poeta, e somente
singularidades e envolvimentos.
nessa perspectiva é que a enunciação jurídica
O discurso jurídico dos direitos humanos
dos chamados direitos humanos pode ganhar
deve ser pensado a partir da análise concreta
vida, para além de sua construção retórica. Falar
de quem são os seus sujeitos e os marcos
em direitos humanos pressupõe que sejamos
concretos de sua existência. Acompanhando
capazes de “ouvir a voz do outro” e acreditamos
Chico Buarque, na letra de O Brejo da Cruz
que o cenário democrático é aquele que melhor
A novidade se adequa a esta perspectiva. E também neste
Que tem no Brejo da Cruz cenário se pressupõe a realização da igualdade,
É a criançada se alimentar de luz
não a igualdade que anula o outro, esvazia a
Meninos ficando azuis
E desencarnando diversidade e a pluralidade, mas igualdade como
Mas há milhões desses seres pressuposto de efetivação dos direitos.
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
Como coloca Marilena Chauí: “a mera
De onde esta gente vem
declaração do direito à igualdade não faz

Se a vida não pode ser defendida com existir os iguais, mas abre o campo para a

palavras, as palavras talvez possam constituir criação da igualdade, através das exigências

um primeiro momento de reflexão sobre a e demandas dos sujeitos sociais. Em outras

própria vida e os meios de, talvez, defendê-la palavras, declarado o direito à igualdade, a

efetivamente. Mas se o que buscamos é a sociedade pode instituir formas de


defesa da vida, devemos pensar, primeiramente, reivindicação para criá-lo como direito real.
nos sujeitos concretos que a experimentam. (...) as idéias de igualdade e liberdade como

Estes sujeitos, tantos, que ninguém sabe e direitos civis dos cidadãos vão muito além

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Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, n.47, p.65-80, 2008.

de sua regulamentação jurídica formal. dos movimentos sociais, minorias, e não


Significam que os cidadãos são sujeitos de podem ser vistos como concessão, mas
direitos e que, onde tais direitos não estejam emancipação. Outro fator preponderante,
garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e nesta ótica, é a necessidade do direito, em

exigi-los. É esse o cerne da democracia.” 9 E sua acepção mais ampla, ser compreendido
como reflexo deste processo. O direito é
acreditamos também ser este o cerne da
regulatório e, portanto, não emancipatório de
construção dos direitos humanos.
per si. Não se pode olvidar a grande
contribuição do Direito, seja de ordem formal,
DIREITOS HUMANOS E ALTERIDADE:
moral, ética, política etc., mas transferir-lhe o
UMA CONCILIAÇÃO POSSÍVEL
caráter emancipatório é usurpação da missão

A juridicidade, a sociabilidade e a precípua da sociedade em seus mais diversos

democracia pressupõem uma base segmentos.10


jusfundamental incontornável, que começa A despeito de considerarmos os direitos
nos direitos fundamentais da pessoa e acaba humanos e fundamentais positivados como
nos direitos socais. (CANOTILHO, 2006, 146). inalienáveis, apesar de não absolutos, não
Postas essas questões, nossa intenção e devemos nos esquecer que estes direitos, em
aproximarmos a discussão dos direitos humanos sua qualidade de universalidade, devem ser
e sua possibilidade hermenêutica para uma considerados de forma paradigmática e

sociedade de alteridade. Dito de outra forma, limitadores que, no dizer de Canotilho, (2004,

nosso liame passa pela necessidade de p. 135), representam “(…) uma concepção

considerarmos a alteridade como elemento política do direito e da justiça informadora dos

cimentar para a (re)construção de uma princípios de direito e práticas internacionais”.

sociedade mais humana. Por mais recorrente


Evidentemente que na perspectiva da
alteridade devemos ter em mente que os
que pareça, na prática essa perspectiva não tem
direitos humanos devem ser relativizados em
se efetivado, pelo simples fato de nos
sua pretensa universalidade, considerando-se
acostumarmos com a perpetuação das
o risco de carga etnocêntrica. Exatamente a
aparências e não de essências. Os direitos
idéia de universalidade traz em sua essência
humanos não podem continuar como arriscado e
a própria condição de exclusão, mesmo que
ardiloso movimento reflexo, mas, numa inversão
na tentativa de inclusão, uma vez que
do curso, projeções de alteridade permanentes e
estamos tratando de conflito de civilizações,
de políticas públicas.
contracultura etc.
Os direitos fundamentais, são, acima de
Nesse sentido, Santos (2006) parece
tudo, fruto de conquistas históricas dos mais
engendrar uma proposta que vise a uma
diversos setores da sociedade, nomeadamente,
alternativa viável. Nas palavras do próprio autor,

9 CHAUÍ, Marilena. A sociedade democrática. 10 Para um maior aprofundamento da discussão,


In: Introdução ao Direito Agrário. Curso de Extensão sugerimos o texto de SANTOS, Boaventura de Souza.
Universitária, Série O Direito Achado na Rua, v. 3. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica
Brasília: Editora UnB, 2002, p. 334. de Ciências Sociais. n.º 65, maio de 2003, p. 3-77.

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A minha tese é que, enquanto forem concebidos qua non, no campo da construção teórica e
como direitos humanos universais em abstracto, proteção dos direitos humanos, não passa de
os direitos humanos tenderão a operar como
uma sublevação de expectativas. De um lado,
localismo globalizado e, portanto, como uma
forma de globalização hegemónica. Para enquanto não houver uma alteração nos
poderem operar como de cosmopolitismo estatutos, e, portanto, da ontologia e teleologia
insurgente, como globalização contra- das Nações Unidas, e conseqüentes alterações
hegemónica, os direitos humanos têm que ser
de ordem estrutural, inclusive sua localização
reconceptualizados como interculturais.
Concebidos como direitos universais, como tem geográfica, padeceremos de efetividade e
sucedido, os direitos humanos tenderão sempre legitimidade dos direitos humanos universais; de
a ser um instrumento do «choque de outro, a urgência de o Ocidente (re) considerar
civilizações» tal como o concebe Samuel
sua superioridade e prepotência cultural. Não se
Huntington (1993, 1997), ou seja, como arrma
do Ocidente contra o mundo («the West against
trata de concorrência pelo monopólio mas de
the rest»), como cosmopolitismo do Ocidente concorrência para finalidade em face do
imperial prevalecendo contra quaisquer esgotamento, hoje observado, das
concepções alternativas de dignidade humana.
metanarrativas e da ausência de referencial
Por esta via a sua abrangência global será
emancipatório, decorrentes principalmente da
obtida à custa da sua legitimidade local. Pelo
contrário, o multiculturalismo emancipatório, tal pulverização do poder e do processo de
como eu o entendo e especificarei adiante, é a globalização.
pré-condição de uma relação equilibrada e
A Declaração dos Direitos do Homem e do
mutuamente potenciadora entre a competência
global e legitimidade local, os dois atributos de
Cidadão, da ONU, é o grande documento
uma política contra-hegemónica de direitos político-ideológico, mas não elucidatório, da
humanos no nosso tempo. (SANTOS, 2006, p. discussão contemporânea dos direitos
409)
humanos. Mesmo assim podemos afirmar sua
O que se coloca é a dificuldade de contribuição, juntamente com o avanço do
representatividade instrumental e legítima pelo processo integratório europeu (relativizado
Estado na sua função precípua ocidental de atualmente), para a institucionalização e
irradiação de normas (GALTUNG, 1998) e, numa internacionalização dos direitos humanos
projeção internacioanal, a Assembléia Geral das como elemento-chave de interpretação das
Nações Unidas, principalmente com a sociedades do pós-Guerra.
Declaração Universal dos Direitos do Homem e O ponto nevrálgico, ou mesmo de
documentos reflexos. Ao menos merece estrangulamento da problemática, está no
reservas a pretensa representação universal das Estado e sua proximidade com a sociedade
Nações Unidas, quer pela sua composição, quer civil organizada, evidentemente que se
pela projeção excessiva, para não dizer levando em conta os demais mecanismos de
autoritária, do Conselho de Segurança da ONU e representação social local, regional e global.
sua famigerada composição e regimento. Da É que ali se trava a gestão dos direitos
importância das Nações Unidas e dos Estados humanos e sua possibilidade de efetivação,
para a efetivação dos direitos humanos não há seja pela via democrática, que não depende
qualquer equívoco, mas projetar-lhes condição em princípio de fatores externos, como
sine coercitiva e (ou) convencimento pela via

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diplomática e valorativa. Nossa hipótese já tão debatidas como a cubana, mas


assume a importância do Estado como geopolíticas residuais em estado de afirmação
articulador primordial dos processos de e a pouca efetividade da ONU paralisada
conscientização e efetivação dos direitos facilmente pela própria natureza11. Assim, a
humanos em conjunto com a sociedade tão sonhada democracia birmanesa parece
civil, tendo a alteridade como referencial esbarrar na necessidade de o processo se
hermenêutico. desenrolar no domínio do Estado – com suas
É fato que não podemos excluir a vertente contradições internas – e na possibilidade da
internacional, aliás, cada vez mais crescente na organização de Estados como elemento que
problemática dos direitos humanos. O ponto não confere legitimidade.12
é este. Parece-nos plausível a crescente Tendo em vista o alto grau de complexidade
afirmação da jurisdição internacional dos direitos e diferenciação das sociedades contemporânea,
humanos, o que consideramos não apenas bem como o processo de globalização e
viável e inevitável, mas, principalmente, transformação da noção clássica de soberania
necessário e urgente. Mas é na esfera do Estado estamos, pela primeira vez na história, passando
que se efetiva concretamente sua por um processo de conscientização
implementação, ainda mais se levarmos em – forçada – dos riscos do fim do Estado e do
conta as inúmeras deficiências de um sistema nosso “mundo” (conceito absolutamente
internacional fundado na legalidade/legitimidade limitado da realidade em que estamos
das Nações Unidas como pretensa inseridos). Em face da sociedade de riscos
representatividade universal. compartilhados (BECK,1998, 2006), coloca-se
Dito de outra forma, qual seja o na ordem do dia o tema do meio ambiente, do
argumento fulcral deste, precisamos desenvolvimento sustentável, da jurisdição
fortalecer o Estado como interlocutor internacional para os crimes contra a
privilegiado com a sociedade civil e demais
atores locais, regionais e globais, visando à
efetivação dos direitos humanos na ordem 11 Referimo-nos ao já tão desgastado processo
decisório das Nações Unidas e seu Conselho de
global atual, seja na dimensão do respeito Segurança que precisam de reformas urgentes.
aos direitos humanos negativos, seja na 12 Essa problemática não está afeita apenas à já
dimensão dos direitos humanos positivos. combalida ONU, mas presente nas mais diversas formas de
organizações de Estados que padecem de legitimação
O recente caso do Mianmar é altamente
estatutária, como o MERCOSUL, União Européia etc. O
esclarecedor. É no Estado que está concentrada exemplo europeu é sintomático desta dificuldade. Por meio

a crise de representatividade, do poder, da de referendo, França e Holanda votaram contra a


Constituição Européia, colocando novo tempero nas
legitimidade/legalidade. Evidentemente que são pretensões de efetivação confederativa européia. Talvez o
fundamentais os mecanismos de pressão processo careça de elementos objetivos que justifiquem a
suposta democratização do(in)democratizável, uma vez que
internacional para uma mudança de mentalidade
trata-se de um tratado de Estados-membros, e, portanto,
no país. Mas isso pode não ter o efeito desejado, merece reservas a este tipo de consulta. A questão

nem mesmo após embargos e sanções é recorrente, visto que a problemática da proposta de
uma Constituição para União Européia passa pela
econômicas e mesmo militares. Isto porque não
necessidade, ou não, de democratizar o processo. Mas
estamos apenas diante de questões se não há um povo europeu, como falar em democracia.

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humanidade, e de forma muito contundente citação sobre Ferrajoli, “En la atualidade, los
os direitos humanos como categoria de derechos humanos ya no son solo un límite
análise hermenêutica para as dimensões interno del poder soberano, sino que se han
econômica/política/cultural/social/jurídica no constituido en un límite sustentado en el
início deste novo século. derecho internacional y que llega a modificar
A alteridade provoca uma nova jurisdição el concepto mismo de soberanía del Estado”.
que, apesar de ainda estar em formação, já O que se ressalta é a necessidade de
passa a contar com novos centros decisórios, controle hermenêutico sensorial das sociedades

sobretudo por meio da jurisdição contemporâneas por meio da categoria dos

constitucional e do surgimento de tribunais direitos humanos. Esta perspectiva põe em

internacionais, os quais vêm promovendo um causa o processo de globalização descendente


13
processo de desterritorialização dos direitos (FALK, 1999) , visto não ser possível tratamento

humanos (MORAIS, 2002). Isso é resultado, unânime das condições materiais e imateriais de

principalmente, da impotência do Estado em cada sociedade.

julgar e administrar estas demandas (muitas Nesse diapasão, apresenta-se-nos em

vezes por ser o próprio Estado o principal sintonia fina a contribuição de Lévi-Strauss

agente violador de certos direitos) ou, em (1980). O sentido das sociedades

outros casos, pela luta pelo poder no seu contemporâneas precisa ser recolocado nos
trilhos da unidade da organização social, em que
interior – regimes, revoluções, ausência
a diversidade se afirma no todo, nomeadamente
institucional, guerras etc.
no outro, como elemento referencial de
Concordamos com Arnauld (2006, p. 76) que o
estruturas preexistentes. Assim, os direitos
conceito de mundialização não se sustenta nesta
humanos como categoria de análise ganham luz
sociedade de riscos compartilhados e com um
própria, como possibilidade e necessidade de
grau de controle diferente. O que se verifica é a
transcendência realística da ordem global
transferência de competências, como no caso do
devastadora e subordinatória dos valores, pela
Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, o
descentralização do poder econômico e inclusão
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o
do outro como componente cimentar da
Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos
sociedade.
Povos. A ONU, a despeito de suas limitações e
Assim, o Direito Constitucional nacional
desvios, servia de precoce controle de legalidade
e global (CANOTILHO, 2006), apresenta-se
e legitimidade política. Agora, porém, temos uma
como instrumento essencial e regulatório que,
clara jurisdição internacional que, com sua
com a participação da sociedade em suas
institucionalização, vem promovendo um
múltiplas representações (HÄBERLE, 2002),
engessamento da agenda local e regional,
converge os interesses no interior do Estado,
reflexo da preponderância da agenda
vinculado ao poder originário. Esta nova
internacional. Por isso a recorrência ao discurso
dos direitos humanos – que como projeto
emancipatório permite a realização da alteridade 13 O autor denomina Globalização descendente aquele
“conjunto de forças e de perspectivas legitimadoras situado,
– como contraponto na sociedade global. No
em vários aspectos, fora do alcance efectivo da autoridade
dizer de Prado (2007, p. 6), em territorial que alistou a maioria dos governos como parceiros
tácitos” (1999, p. 221).

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concepção de Estado vem sendo denominada chamado “constitucionalismo evolutivo”;


de Good Governance e, para Chevallier (2005, na substituição do esquema hierárquico-
p. 145), “O direito de governança não deve, normativo do direito constitucional por um
portanto, ser percebido como um substituto ao sistema multipolar de “governance”
direito clássico: na realidade, a governança constitucional (CANOTILHO, 2006, p. 283).
“associa, segundo modalidades infinitas, O ponto premente é que o sujeito

direito “duro” (hard law), escrito, com efeitos paradigmático do Estado constitucional

claros, e direito “mole” (soft law), móvel, mudou. O Estado-nação traveste-se de novas

evolutivo”. O que nos parece evidente é a formas, merecendo uma (re)adequação

urgência de modelos alternativos à rigidez constitucional à nova ordem, exatamente para


salvaguardar-se em seu núcleo essencial,
centralizadora dos Estados, numa nova
ante os novos sujeitos da ordem global que,
composição de forças no interior dele com os
em preservando os aspectos essenciais das
movimentos sociais e uma pluralidade de
cartas políticas dos Estados, deverá atuar
atores sociais. Sob a coordenação desse
como interlocutor, articulador/
novo grupo de agentes, deve ser reforçada a
moderador/regulador de estatutos mais
importância do Estado de Direito na
abrangentes e eficientes para o tratamento de
composição de interesses para uma agenda
questões que transcendem as fronteiras
comum em torno da priorização do meio
tradicionais do Estado, mormente aquelas
ambiente, do desenvolvimento sustentável, da
ligadas aos direitos humanos (CANOTILHO,
transparência da coisa pública e dos direitos
2003, p. 1370), ao meio ambiente e ao direito
humanos como componente hermenêutico
penal e à Jurisdição Transnacional.
condicionante da esfera pública e privada.
O problema de fundo e mediato de maior
importância está consubstanciado na
A este propósito, Richard Falk (1999, p.252)
necessidade de atualização epistemológica,
propõe a globalização ascendente, a qual
metodológica e paradigmática, envolvendo a
preconiza a convergência de interesses
releitura do direito constitucional num
difusos no interior do Estado-nação e este
referencial crítico e interdisciplinar, tendo os
como interlocutor/mediador entre a sociedade
direitos humanos, o meio ambiente e o direito
civil local e a sociedade civil global.
penal internacional como categorias de
Esse fenômeno vem sendo designado de
análise do próprio direito, na função de
constitucionalismo moralmente reflexivo
instrumental regulatório14 nas sociedades
(CANOTILHO, 2006, p. 125-9) . Este movimento,
contemporâneas.
consciente das dificuldades de um Estado
garantista, propõe uma nova leitura do
constitucionalismo à luz da nova ordem 14 Acolhemos a sugestão de Chevallier (2003),
global, sustentado na “superação do esquema pela qual a regulação funciona nas sociedades
contemporâneas de maneira associada a elementos
paradigmático Constituição-Estado; na
teleológicos numa estreita relação com a governança –
necessidade de ultrapassar as teorias de meio de legitimação dos poderes estabelecidos e motor
“momentos constitucionais” isolados e únicos de mudança política –, visto que prevalece a noção de
conjunto e, portanto, de superação de concorrência do
e apreender o sentido e os limites do poder pela confluência de interesses.

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Vivemos sob o efeito contundente da direitos humanos, sobretudo pela confusão,


emergência dos direitos humanos como no sentido jurídico, entre jurisdição efetiva de
categoria de análise para a própria (re) um lado e desvio de finalidade, de outro. O
afirmação do Estado no âmbito de uma que queremos dizer é que o grau de interesse
15 pela efetividade jurisdicional dos direitos
sociedade global e sua necessidade/
legitimidade/possibilidade/disposição, humanos esbarra na ausência de interesse do
tanto em apresentar-se como articulador, Estado, tanto pelos poucos benefícios
defensor e operacionalizador dos direitos políticos que representa aos gestores, como
humanos, bem como principal sujeito pelo Estado ainda se constituir no principal
respeitador (LIORENTE, 2006, p. 206). violador dos direitos humanos.
Nisso se concentra uma das grandes Assim, a jurisdição, tão imperiosa e
dificuldades no processo de efetivação dos contundente em outras áreas (como a
tributária, administrativa, penal etc.), padece
ainda de efetividade no âmbito dos direitos
15 Segundo Ulrich Beck, o fenômeno da globalização humanos. Que o Estado ainda se constitui no
comporta dimensões distintas, mas intimamente
maior detentor de condições contributivas
relacionadas. Beck diferencia três tipos de dimensões no
fenômeno. “Por Globalismo entiendo la concepción según la para efetivação dos direitos humanos, dada
cual el mercado mundial desaloja o sustituye al quehacer suas condições institucionais e relacionais no
político; es decir, la ideología del dominio del mercado
mundial o la ideología del liberalismo. Ésta procede de âmbito interno e externo, parece crível; o que
manera monocausal y economicista y reduce la não se evidencia é a eficiência de suas ações
pluridimensionalidad de la globalización a una sola
dimensión, la económica (...) (1998, p. 27). La Globalidade
e mesmo capacidade de controle e gestão
significa lo siguiente: hace ya bastante tiempo que vivimos desta emergente causa. Dito de outra
en una sociedad mundial, de manera que la tesis de los
maneira, o Estado tem se demonstrado
espacios cerrados es ficticia. No hay ningún país ni grupo
que pueda vivir al margem de los demás.(...). Así, “sociedad carecedor de legitimidade no tratamento dos
mundial” significa la totalidad de las relaciones sociales que
direitos humanos, justamente por ser o maior
no están integradas en la política del Estado nacional ni
están determinadas a través de ésta (1998, p. 28). Por su violador deles ao longo da história, não
parte, la Globalización, significa los procesos en virtud de los somente de forma efetiva, mas também como
cuales los Estados nacionales soberanos se entremezclan e
imbrican mediante actores transnacionales y sus respectivas
cúmplice silente das inúmeras violações.
probabilidades de poder, orientaciones, identidades y Em face de uma nova ordem global, que
entramados varios” (1998, p. 29).
impõe processos desintegradores e nefastos,
Existe uma mútua interdependência entre as emerge a questão dos direitos humanos (sem
distintas globalizações e, deste modo, não podem ser
que nos esqueçamos de outras necessárias
reduzidas a apenas uma dimensão. Encontramos na
proposta de Globalismo de Beck, liame privilegiado em demandas – como o meio ambiente, o direito
nossa proposta de análise; nomeadamente, pela
irrupção deste modelo subordinatório do Estado-nação
penal internacional16 etc...), que transcendem
e seu documento político delimitatório/programático
essencial, a Constituição, aos desígnios do mercado.
Ora, entendemos o processo de globalização em suas 16 Reportamo-nos aqui ao direito penal em sua
possíveis dimensões (Santos, 2005, p. 26), numa lógica de tendência de internacionalizar e institucionalizar os crimes
inclusão e não de exclusão de efeitos. Isto significa o caráter contra a humanidade, sobretudo pela incapacidade de o
dinâmico da vida social pós-moderna numa dialética local/ Estado lidar com esta problemática, tendo em vista que
global, alterando todas as relações: intimidade versus normalmente os autores praticarem este tipo de crime no
publicidade com conexões de grande amplitude. exercício do poder público ou em sua função. Também

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as categorias de análise tradicionais do Contra essa concepção de exclusivismo


Estado e do direito. do direito no Estado, ou dito de outra
Uma das possíveis e conseqüentes forma, do Estado como detentor do
relações de propostas analíticas dos direitos monopólio do direito, surgem novos
humanos como categoria de análise para uma atores que contribuem diretamente na
sociedade de alteridade é sua estreita e formação e validação do direito.
imbricada relação com democracia. Por isso, A discussão dos direitos fundamentais está

podemos afirmar que seu surgimento como posta na necessidade – e (ou) possibilidade

proposta de construção analítica da realidade, conciliatória – entre a visível e importante

e possibilidade de (re)afirmação e valoração do indivíduo na crescente

sustentabilidade – social, jurídica, política, judicialização dos mecanismos de proteção dos

somente se possibilita na equação entre estes direitos humanos de um lado, e de outro, a

elementos condicionantes. A probabilidade de emergente e urgente postulação comunitária

(re)afirmação dos direitos humanos em fundada na concepção social do ser humano.

processos políticos autoritários decresce Sem nos furtarmos ao reconhecimento

diametralmente na mesma medida que sua das origens liberais das acepções de direitos

possibilidade afirma-se em processos humanos (que de certa forma foram

democráticos. Evidentemente que democracia fundamentais na afirmação do indivíduo em

não significa necessariamente eficácia de face do Estado e da própria sociedade),

direitos humanos e nem sua inversa situação, verificamos a inevitabilidade da emergência

ineficácia, sobretudo pelo forte teor ideológico de conciliação com o aspecto social,

que subjaz nesta problemática. comunitário dos direitos humanos e isto nos

Um dos mais sensíveis e emergentes coloca frente a frente com o tema da limitação

núcleos de resistência ao processo de dos direitos humanos, ou pelo menos, o seu

globalização descendente (FALK, 1999), é o (re)dimensionamento teórico-prático, sob pena

despertar dos direitos humanos como de desfiguração da própria concepção

categoria de análise. Cada vez mais se fala originária dos direitos humanos.

nos direitos humanos, como núcleo essencial


do direito constitucional, como instrumento CONSIDERAÇÕES FINAIS
legitimador para a própria sobrevivência,
Cada vez mais se torna necessário estudar
relevância e justificativa do Estado.
os direitos humanos, sua normatização e
proteção, tomando a alteridade como
instrumento de análise. Se nos prendermos
não devemos nos esquecer da dificuldade de
tratamento do tráfico internacional de drogas, de órgãos, apenas a uma realidade, seja cultural, étnica,
pessoas, escravidão etc., além dos crimes econômicos, racial, religiosa etc., corremos o risco de nos
fronteiriços, terrorismo, sexuais etc. É a questão da
tornarmos cegos em relação à cultura do outro,
jurisdição internacional, polícia internacional etc.,
amenizada com a aprovação do Estatuto e criação do mas também míopes em relação
Tribunal Penal Internacional, mas conservando-se a
à nossa própria cultura e realidade. O
querela reincidente e recorrente da não adesão de
todos os Estados, mormente os EUA. conhecimento da nossa cultura passa,

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inevitavelmente, pelo conhecimento das Finalmente, fundamental é a mudança


outras culturas. Enquanto acreditarmos de mentalidade: de um hábito de violência e
que nossa cultura é a referência única, força, devemos nos esmerar no uso da
em detrimento das demais, corremos o persuasão dos valores e da dignidade
risco do etnocentrismo que parece ter humana como categorias de análise para a
sido recriado nas novas versões nova sociedade global.
extremistas religiosas, culturais, políticas, Postas essas questões, fica evidente a
ideológicas, as quais vêm desafiando questão dos direitos humanos e sua
nossa sociedade neste início de milênio. possibilidade hermenêutica para uma sociedade
Acreditamos que a melhor forma de de alteridade. Dito de outra forma, nosso liame
buscar uma nova articulação de forças no passa pela necessidade de considerarmos a
cenário global (e, conseqüentemente, mais alteridade como elemento cimentar para a
eficácia à proteção dos direitos humanos) seja
(re)construção de uma sociedade mais humana.
mediante a compreensão e o respeito ao
Por mais recorrente que pareça, na prática esta
outro, ao mesmo tempo em que a alteridade
perspectiva não tem se efetivado, pelo simples
seja tomada efetivamente como pressuposto
fato de nos acostumarmos com a perpetuação
de (re)organização das relações humanas. A
das aparências e não de essências. Os direitos
compreensão do outro não apenas leva ao
humanos não podem continuar como arriscado e
reconhecimento de que somos uma cultura
ardiloso movimento reflexo, mas, numa inversão
possível entre tantas outras, mas evita a
do curso, projeções de alteridade permanentes e
arrogância racial, cultural, econômica, política
de políticas públicas.
e religiosa; esta última, elemento-chave
explicativo, jamais justificador da lógica
17
própria do terrorismo .
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como parte da mesma realidade.
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17 Sobre esta discussão, ver Morikawa (2006). Joaquim Gomes e STRECK, Lenio Luiz
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