A Cultura Do Cuidado Carolina
A Cultura Do Cuidado Carolina
Juiz de Fora
2019
Carolina de Carvalho Duarte Guimarães
Juiz de Fora
2019
Carolina de Carvalho Duarte Guimarães
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Faustino Luiz Couto Teixeira (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Volney Berkenbrock
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Profa. Dra. Maria Cecília dos Santos Ribeiro Simões
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Profa. Dra. Laura Cristina de Toledo Quadros
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Aos seres encantados, em sua ampla
diversidade.
AGRADECIMENTOS
Às “meninas do Faustino”.
Aos meus queridos pais, Nádia e Roberto e ao meu padrinho Pedro. Vocês são fundamentais.
Aos componentes da banca examinadora, Prof. Dr. Volney Berkenbrock, Profa. Dra. Cecília
Simões, Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro e Profa. Dra. Laura Quadros que aceitaram,
prontamente, o convite para avaliar a apresentação desta tese.
À CAPES que me concedeu a bolsa de doutorado e fez com que essa realização fosse possível.
Ao Tear.
RESUMO
The purpose of this research is to capture care tones entangled in our relationships and
perceptions in order to clarify the underlying human image in our worldviews and social
practices. It is intended to point out how the stories we tell about ourselves change over time.
As the emotion that governs human interactions changes so does a change of perception of the
world and consequently a change in culture. This emotional quality also points to the goals
desired by men and women in the world. As creatures and creators, we have a dialogue between
our interior and our relationships, which configures us and is configured by us through what we
call “reality”. This thesis proposes the elaboration of an attentive rereading of myths of origin
from the Judeo-Christian era and of original peoples. Moreover, it is also proposed here to
reread contemporary narratives, in which it is demonstrated that the conscience of care can
weave a conception of spirituality capable of bringing to the human being the awareness that
he is only one among the various beings of creation and, thus reenchant our perceptions of the
world. This research is a transdisciplinary research as it seeks to encompass views of the
Sciences of Religion, Anthropology, Quantum Physics, Psychology and Biology. This sets up
a spiritual-ecological perspective on the relationships of the various beings with each other and
with the Earth, which is called Care Culture.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11
CONSIDERAÇÕES ................................................................................................. 77
INTRODUÇÃO
Ao longo dos últimos quatro anos, minha atenção se voltou para o sentido, prático e
teórico, de uma única palavra: cuidado. Uma palavra que carrega em si múltiplos sentidos e
aspectos de ligação de tudo com tudo. Aos poucos ela foi tomando conta de meus passos, de
meus toques, foi permeando o tom de todas as outras palavras. Porém, me parece, que eu, como
pesquisadora não só em livros, mas através das relações, demorei para perceber como a minha
vida já estava preenchida pelo tom do cuidado, que, no fundo, habitava em mim. Demorei
também para permitir que o cuidado atuasse em minha pesquisa, em deixar que ele tomasse o
controle. E isso é muito interessante, pois ao falar, escrever ou pesquisar sobre o cuidado na
terceira pessoa, algo se perdia. Deslocava-se no tempo; perdia o aqui e agora, perdia a presença.
Demorei para perceber e aceitar que esta pesquisa precisa ser sobre o cuidado imbuído de si, na
primeira pessoa. Porque o cuidado é uma espécie de atenção, acontece de dentro para fora e em
plena intensidade. O cuidado é expansão, move a pessoa para tocar, acolher, permear, entranhar
o todo. É o reconhecimento de si no todo. Tem a ver com plenitude, com penetração, fusão. O
cuidado é o próprio pulsar da vida.
Cuidado tem um quê de relação e de amor. É algo que partindo de si inclui a
integralidade do outro; e tem um quê de silêncio, de algo que não se fala, mas que se faz e se
percebe. Tem um quê de alma, mas uma alma que se compreende comum, no sentido de simples
e no sentido de comunitária. Tem um quê de poesia, pois prima pela beleza, pela harmonia.
Tem um quê de ética, um quê de autenticidade, um quê de estética. Esta tese fala da propriedade
do cuidado que puxa o mundo, move as relações; o cuidado mantenedor da vida. Respiro,
respiro de novo. Percebo que o cuidado tem um quê de honra, porque cuidar de algo ou alguém
significa honrar aquela existência. É algo que se emociona e chora diante do encantamento
daquela, e da própria, existência. E mais, o cuidado tem um quê de anonimato, de bastidores,
de estrutura.
O sentido de cuidado carrega uma estrutura, um equilíbrio, um caminho. Carrega uma
espiritualidade sutil ligada à percepção da vida, do desenrolar da vida, um sentido de
continuidade. De algo que não está pronto e que precisa de sustentação, adubo e alimento
cotidianos. O cuidado é um ato corriqueiro, um gesto, um movimento. Algo que precisa ser
vivido todos os dias e não está alheio a nós; ele é intrínseco ao estado da vida, ao estar vivo, ao
se manter vivo. Além disso, o cuidado também tem um quê de angustia, porque nos coloca
desnudos diante dos mais grandiosos mistérios da vida...
12
A tentativa de entender o que o autor quis dizer me leva a afirmar que algumas
narrativas tocam um nível de compreensão humana muito primitivo e ao mesmo tempo
conhecido. Ao analisarmos o conteúdo dessas histórias ao longo do tempo, podemos questionar
os caminhos que temos trilhado como reprodutores, criadores e criaturas, de uma sociedade.
Faz-nos olhar para a História e principalmente para quais foram as ideias que fundamentaram
as atitudes humanas e nos trouxeram até o aqui e o agora. Ou seja, narrativas são recursos para
1
Não se pretende fazer aqui uma diferenciação entre as categorias de fábula, mito, conto etc., e, por
isso, toda e qualquer narrativa será chamada de história, com letra minúscula. Quando estiver me
referindo à História tida como oficial, usarei maiúscula.
13
transmitir conteúdos às vezes profundos, pesados, doloridos, de forma sutil. Trago aqui uma
linda ilustração do que acabo de afirmar:
A fábula da Verdade
As maiores verdades com que costumamos lidar em nosso dia a dia, as verdades que
sustentam nossas relações, ganham expressão viva através das narrativas – as que nos são
contadas e as que contamos.
Vivemos o séc. XXI da era comum. Eu, como pessoa pesquisadora, percebo e falo sobre
o mundo a partir das concepções que imperam sobre este tempo social. Porém, as percepções
de mundo disponíveis para mim também falam de um lugar. Vivo na América do Sul, no Brasil,
minha língua materna é o português. Nasci em meados da década de 1970, cresci em uma
metrópole praiana, em uma família cristã secularizada. Estudei psicologia, sou mãe. Sinto
necessidade de contextos, gosto de pensar sobre como certa ideia surgiu, com base em qual
emocionar. Isso porque a humanidade habita a Terra a muito mais tempo do que o tempo em
15
que minhas, ou nossas, ideias de mundo podem se manter. Temos acesso a resquício de muitas
outras civilizações humanas com valores completamente diferentes dos atuais. Temos também,
convivendo conosco, muitas culturas que entendem o mundo e as relações de formas diversas.
A diversidade é constituinte da riqueza da vida, mas o humano ocidental dos séculos XIX, XX
e XXI se pretende detentor e fundador da verdade sobre todos os humanos, sobre todos os seres
e sobre a Terra. Cunhamos o mundo e nossas relações com base em uma ideia de linearidade
que exclui em essência a experiência da diversidade inerente a vida: monocultura, megacidades,
pensamento acadêmico, tecnológico, verdades absolutas, técnicas de controle, assepsia, etc.
Estas parecem ter sido as ideias que fundamentaram as narrativas que contamos de nós
mesmos, como por exemplo: somos superiores, feitos à imagem e semelhança de Deus; a
capacidade do pensamento racional é a faculdade mais elevada e confiável: com base no
pensamento, evoluímos; A emoção não é mensurável ou previsível, então não se pode confiar
nela; Somos melhores que antes, estamos vivendo o ápice da evolução; A Terra, e tudo que há
nela, nos pertence, portanto, podemos dispor de tudo conforme nos convier.
Meu ponto é que essas ideais estão fundamentas e são propagadas por narrativas.
Algumas delas foram contadas por mestres religiosos ou escritas em livros sagrados, e neste
lugar, ganharam status de verdade. Aos poucos fomos passando a acreditar e passamos a agir
no mundo conforme essas ideias. Mesmo que a história tenha perdido o status de verdade com
a supervalorização moderna e contemporânea da ciência em detrimento da religião, a ideia de
base não foi questionada como explicação de mundo. Estas narrativas continuam agindo sobre
nós, mesmo que de forma inconsciente. Criamos mecanismos, tecnologias e filosofias que
“logicamente” pareciam confirmar estas crenças de base.
O Antropocentrismo foi o terreno fértil para o advento de outros “ismos”, culminando
no capitalismo, que se pretende hegemônico e homogeneizante. Mas algo está mudando nessa
relação de forças. A Terra dá sinais de falência e toda nossa busca tecnológica para solucionar
os desequilíbrios que causamos parecem somente agravar o problema. Por todos os cantos do
planeta, em todas as áreas de saber, inclusive do interior do capitalismo, emergem novas
narrativas, baseadas em novas ideias. Ou emergem novas leituras das velhas narrativas,
baseadas em novas ideias2.
2
Humberto Maturana e Ximena Dávila Yáñez, investigam como o modo de pensar e sentir humanos foi
se transformando através de um caráter cíclico e mítico, criando, assim, o que os autores chamam de
Eras Psíquicas, que sintetizariam o modo de operar de cada época. Segundo os autores, estamos vivendo
o limiar entre a Era Psíquica Pós-Moderna - quando impera o “domínio da confiança no saber que se
sabe o que se crê que se sabe. Tentação da onipotência, cegueiras no saber que se sabe o que se diz que
16
Esta tese coloca em perspectiva as ideias que subjazem em narrativas propagadas pelo
senso comum e ao mesmo tempo procura compor a evidência de que está em curso o que
Leonardo Boff chama de nova cosmologia3. O traço novidadeiro desta é que ela compreende o
cuidado como sentido para a manutenção da vida. Segundo o autor, “o cuidado serve de crítica
a nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de
convivialidade” (BOFF, 2002, p. 13). Para ele, o cuidado precisa ser “assumido como o ethos
fundamental do humano como compaixão imprescindível para todos os seres da criação”
(BOFF, 2002, p. 14). Colocando o cuidado a partir desta perspectiva, Leonardo Boff levanta o
sentido da vida como uma responsabilização do humano perante toda a comunidade de vida,
todos os seres sencientes.
Em 2015, a Carta Encíclica do papa Francisco, aponta na mesma direção. Nela o papa
questiona o exagero de uma ideia antropocêntrica4 e coloca o ser humano como guardião das
relações humanas, de nossa casa comum, bem como de todos os seres da criação:
se sabe” (2009, p. 43) -, e a Era Psíquica Pós-Pós-Moderna – quando seria possível o “surgimento da
reflexão e da ação ética consciente” (2009, p. 45). Esta seria a grande oportunidade.
3
Por cosmologia entendemos a visão de mundo – cosmovisão – que subjaz às ideias, às práticas, aos
hábitos e aos sonhos de uma sociedade. Cada cultura possui a sua respectiva cosmologia. Por ela se
procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo e definir o lugar do ser humano dentro
dele (BOFF, 2018, p. 101).
4
“Na modernidade, a partir do século XVI até hoje, a dominação sobre os mecanismos da natureza e da
exploração do mundo se fez em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser
antropocêntrica, mecanicista, determinística, atomística e reducionista” (BOFF, 2018, p. 101).
17
das relações que estabelecemos com o que há de mais próximo e íntimo em nós; da consciência
de estar vivo e da responsabilidade que carregamos. As histórias que contamos e criamos sobre
nós mesmos nos ligam diretamente a esse cotidiano próximo capaz de transformar ideias e
paradigmas em hábitos, e consequentemente, em cultura.
No primeiro capítulo trabalho o surgimento da ideia da consciência do cuidado e quais
narrativas podem ser compreendidas como testemunho sutil desse acontecimento em processo.
Trago a definição de ser a partir de Tim Ingold como um modo de conceber o humano levando
em consideração sua premência relacional. Sigo, então, discorrendo sobre o tempo em que
vivemos. Talvez o fim dos tempos. Momento em que nos encontramos diante de uma
complexificação das relações de tensão, de profundas incertezas e acirrados conflitos. O status
de ser contemporâneo traz uma marca do pensamento e, por conseguinte, do emocionar atual.
Neste tópico, o pensamento de alguns antropólogos com relação ao conceito de Antropoceno
também contribuirá para a demonstração do cenário em que vivemos. Nesse contexto, o filme
Melancolia, de Lars Von Trier, editado em 2011, é acrescentado à pesquisa como uma história,
um conto contemporâneo.
Em seguida investigo quais foram as histórias, como tradutoras de crenças fundantes,
que nos fizeram chegar até aqui. Neste momento histórico, temos um mito de origem que
embasa o que chamamos de Era Judaico-Cristã. Me dedico, então, a investigar essa história
como fundamento de nosso tempo e ressalto como ela se encontra ainda presente e pulsante.
Nossa Genesis pode ser tomada como um mito ainda vivo, contado e relembrado por uma
parcela gigantesca da população mundial e, por isso, capaz ainda de singularizar nossa cultura.
Posteriormente, proponho uma releitura deste mito à luz de papa Francisco na Encíclica
Laudato Si, além de outros exegetas, sob a égide do cuidado. Trata-se de explicitar a imagem
de ser humano subjacente ao mito de origem do Ocidente, no caminho de uma consciência
crítica capaz de, a partir de dentro, transformar a compreensão de ser humano.
Ao nos basearmos na consciência do cuidado emerge a possibilidade tanto de reescrever
antigas histórias, como de criar novas. Isto porque,
relatado por Davi Kopenawa (2015) em A queda do céu- palavras de um xamã yanomami.
Ambos autores trazem a riqueza das cosmologias de seus povos e evidenciam uma compreensão
de mundo atrelada à ideia da humanidade como guardiã da Terra. Demonstro também que ter
contato com histórias de origem de outras culturas pode nos conferir outro olhar sobre nós
mesmos, a ponto de abrir a possibilidade de seguirmos adiante em um caminho
excepcionalmente novo. Minha intenção é que talvez possamos valorizar o que temos em
comum e não o que nos difere, incorporando em nosso dia a dia as sutilezas nas narrativas
míticas.
Com o sentido de refletir sobre o que estamos fazendo de nossas próprias vidas, o
segundo capítulo é dedicado a investigar os gestos de cuidado que estão entrelaçados ao
cotidiano de pessoas comuns. Primeiramente, viso desnaturalizar a ideia de corpo como
máquina. Utilizo o pensamento de Tim Ingold e Merleau-Ponty como guias para apresentar um
modo de se relacionar consigo mesmo a partir do contato com a Terra e com novas narrativas
que consideram as interações metabólicas de forma interrelacional, e contribuem para a
construção da concepção de corpo em sua integralidade. Isso implica em uma revisitação dos
conceitos de identidade, indivíduo, bem como da dicotomia entre natureza e cultura. Em
seguida, abarco a temática sobre o que significa habitar através do ideário comum de “casa”
como um local que também se encontra permeado por concepções de mundo. Aprofundo a ideia
de que no mundo moderno, principalmente nas grandes cidades, as casas ganharam uma
padronização característica que pode implicar, nas pessoas que as habitam, desconforto,
insegurança, confinamento e, em última instância, solidão. Já no terceiro tópico deste mesmo
capítulo destaco como os nossos olhares sobre a infância também são perpassados por uma
concepção de cuidado que acaba por tolher a espontaneidade natural das crianças. Aponto para
o fato de que os adultos modernos teriam muito a aprender com o mundo infantil,
19
principalmente no que tange ao resgate de uma alegre sensação de conexão com o Todo, a qual
parece ter sido perdida pelos adultos modernos de maneira geral.
O terceiro capítulo consiste em uma tentativa de demonstrar a construção do que poderia
ser chamado de Cultura do Cuidado como forma e força de um novo paradigma relacional. Para
tanto, começo definindo, separadamente, o que é espírito, espiritualidade e cuidado, para depois
desenhar a configuração da Espiritualidade do Cuidado como um conceito que pode abarcar as
sutilezas dessa inovadora concepção de mundo. Passo então a discorrer sobre a importância de
se incorporar o ponto de vista feminino sobre nossas sociedades. Atesto que tanto os
Movimentos Feministas em suas múltiplas facetas, como o movimento do Sagrado Feminino,
podem trazer ricas contribuições no sentido de aliarmos modos cuidadosos de ser no mundo.
Encerro a tese propondo o reencantamento de nossas visões sobre este mundo. Trata-se de uma
proposta de releitura de nós mesmos, imersos, e guiados pelo fio do cuidado. Isso porque “cada
criatura é sua história, sua tradição, e segui-la é realizar um ato de relembrança e, ao mesmo
tempo, prosseguir, em continuidade com os valores do passado” (INGOLD, 2017, [n.p.]).
O Dom da História
O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão
que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a
Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem
acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.
Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente
às suas instruções. E Deus sempre veio. Na segunda geração, porém, as
pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal
Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial
da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.
gestos sutis que explicitavam essa relação de pertencimento. Mas, de alguma forma, continuam
recordando e contando as histórias. O dom essencial dessas narrativas apresenta, em vista disso,
“dois aspectos: que no mínimo reste uma criatura que saiba contar a história e que, com esse
relato, as forças maiores do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança sejam
continuamente invocadas a se fazer presentes no mundo” (ESTÉS, 1998, p. 9).
21
1 A CONSCIÊNCIA DO CUIDADO
5
“Entendemos por paradigma toda a constelação de visões de mundo, de valores, de conceitos-chave,
de ciências, de saberes, de sonhos, de utopias coletivas, de práticas espirituais e religiosas e de hábitos
assumidos coletivamente, fatores que orientam uma determinada sociedade e lhe conferem sentido e a
necessária coesão interna” (BOFF, 2012, p. 70).
6
Sustentabilidade “significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejuízo do capital
natural, mantido em condições de sua reprodução e de sua coevolução, considerando ainda as gerações
futuras que também têm direito a um planeta habitável [...]. Como se pode inferir, a sustentabilidade
alcança a sociedade, a política, a cultura, a arte, a natureza, o planeta e a vida de cada pessoa” (BOFF,
2012, p. 20).
22
Nem chorar por ela, nem rir dela. Apenas apreender as lições que revela
(BOFF, 2002, p. 159).
Esse caráter de ambiguidade estrutural me parece ter sido mal interpretado por nosso
senso comum. Uma coisa ambígua é a que congrega múltiplas facetas e, assim, se torna difusa,
imprecisa, incerta. Porém, a maneira como nos coube explicar os eventos de nossa vida, da
sociedade e da vida dos outros seres é pautada pelo exercício da lógica cientifica que se
empenha em distinguir, classificar e opor essas diversas facetas, valorizando, então, o aspecto
dicotômico de nossa ambiguidade inerente.
Nós, indivíduos, não somos um diálogo eterno entre perspectivas opostas, contudo não
somos também uma perspectiva só. Somos um emaranhado sinuoso e dinâmico. Habitamos
lacunas existenciais, mas nada nos falta, e se a incompletude não nos conclui, ela pode nos
colocar em movimento. Porém, trata-se de um outro movimento, amplo e não linear, dando
menos ênfase às fronteiras que enxergamos entre as coisas, entre nós e as coisas, dentro de nós
mesmos.
Tim Ingold é o autor que, a meu ver, tem sido capaz de colocar esse novo paradigma em
movimento, conseguindo ultrapassar o ponto de somente falar sobre a possível mudança de
olhar, para passar a ver e narrar nossas experiências de outra forma. Ele oferece ar às nossas
ideias, tenta reverter o que chama de lógica da inversão e apresenta “uma concepção de ser
humano como um nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de
relacionamentos desdobrando-se continuamente” (INGOLD, 2011, p. 12, grifo meu).
Leia a frase acima novamente. Vamos voltar e tentar experimentar o que o autor quer
dizer. Tente vivenciar em seu corpo: “você é um nexo singular...” (INGOLD, 2011, p.12).
(Tome uma pausa). A percepção conceitual de ser um nexo singular te traz alguma experiência
sensível, corporal? Pode ser difícil experimentar ser um nexo singular com o corpo, mas, e se
trocarmos a palavra nexo pelo seu sinônimo7, vínculo? Então, você é um vínculo singular. Ou
seja, você é uma maneira única de estabelecer vínculo! Isso me parece essencialmente diferente
da palavra indivíduo, que poderia também acompanhar a percepção de ser um nexo singular.
Quando busquei o significado da palavra nexo, encontrei a palavra vínculo e um outro
espectro de sensações se abriu diante de mim e dentro de mim. Experimentei em meu corpo
uma sensação de abertura extremamente confortável. Isso porque pensar em ser uma
individualidade, um todo indivisível, me conclui, me limita e me move para dentro. Em um
7
Cf. AZEVEDO, F. F. S. Dicionário Analógico da Língua Portuguesa: Ideias Afins - Thesaurus. Rio
de Janeiro: Lexikon, 2010, verbete 45, p 20.
23
segundo momento traz uma sensação de que é preciso me defender do exterior para preservar
o interior. Conduz a uma certa rigidez relacional.
A ideia de individualidade enfatiza o eu e o outro, a fronteira, a cisão. No entanto, se eu
me percebo como uma maneira de fazer vínculo (única), algo diferente acontece. O vínculo me
expande e ao mesmo tempo me protege e conforta. Traz a experiência de pertencimento, de
semelhança, de ligação e suporte. Não vejo mais o que me separa do resto do mundo; só vejo o
que me liga a ele, só sinto o que me faz ser ele também.
Você é “um nexo singular de crescimento criativo...” (INGOLD, 2011, p.12). Você é
uma maneira única de estabelecer vínculos e que cresce criativamente. O que seria crescer
criativamente? A primeira ideia que me ocorre é que a vida humana se inicia de um encontro
de dois seres distintos, que se misturam e criam algo totalmente novo. Somos resultado desse
encontro criativo e a partir daí crescemos (tenho uma forte tendência a pensar sobre o início das
coisas). Porém, Ingold expande essa ideia ao seguir a linha do tema da criatividade que permeia
todo seu modo de pensar. Para ele, o crescimento é algo que se dá simplesmente em devir.
O crescimento em si aponta para a diversidade. Traz o foco para o que acontece ao longo
do crescimento. O crescer criativo implica num “movimento gerador que é ao mesmo tempo
itinerante, improvisado e rítmico” (INGOLD, 2011, p.261). Carrega uma autenticidade em
expansão, uma transformação organísmica única, mas que ao mesmo tempo é inerente ao
próprio mundo. É um fluir com o mundo. É o mundo fluindo. Nossa consciência é apenas a
articuladora deste vir a ser. Isso porque: você é “um nexo singular de crescimento criativo
dentro de um campo de relacionamentos...” (INGOLD, 2011, p. 12). Ou seja, não somos
independentes, isolados. Existimos em um meio, constituímos e somos constituídos
simultaneamente. Esta afirmação oferece uma releitura à atitude humana de tentar se sobrepor,
ou de se opor, à natureza de forma imperativa. Somos e vivemos em uma “textura de fios
entrelaçados” (INGOLD, 2011, p. 12). Nesse sentido nos fala também papa Francisco, quando
nos convida a compreender o mundo que nos cerca aos olhos de São Francisco:
8
“A forma passou a ser vista como imposta por um agente com um determinado fim ou objetivo em
mente sobre uma matéria passiva e inerte” (INGOLD, 2012, p. 26).
24
O pertencimento ao campo, ao meio ambiente, nos faz existir, ou seja, é o meio que nos
oferece o suporte necessário à existência. O campo se torna base para encontros criativos, nos
quais o sentido da presença faz com que estratégias de controle, garantias e previsões sejam
supérfluas. O encontro criativo – quando ninguém sabe o que vai acontecer – é sempre
transformador e, por isso, enriquece nossa percepção de mundo.
Ao que parece, as fronteiras que enxergamos não existem por si mesmas, são somente
a forma como nós explicamos a textura do mundo. Fazemos isso de forma arbitrária, supondo
que o mundo funcione da forma como enxergamos. Criamos verdades que de tão fixas, viraram
entidades. Portanto, é recorrente não nos darmos conta das sutilezas. Alguém consegue
delimitar exatamente em que momento a noite se transforma em dia? Alguém sabe onde está a
fronteira? Não damos conta da passagem, e quando percebemos já é dia claro, mas a fronteira
não estava lá. Fronteira é coisa inventada pelos humanos.
Em uma potente argumentação sobre objetos e coisas, Tim Ingold dá um ótimo exemplo
sobre a inexistência dessas fronteiras. Ele se pergunta se uma árvore seria um objeto e questiona
a respeito de quando terminaria a árvore e começaria o mundo.
Essas não são questões fáceis de responder – ao menos não tão fáceis como
parece ser o caso dos móveis no meu escritório. A casca, por exemplo, é parte
da árvore? Se eu retiro um pedaço e o observo mais de perto, constatarei que
a casca é habitada por várias pequenas criaturas que se meteram por debaixo
dela para lá fazerem suas casas. Elas são parte da árvore? E o musgo que
cresce na superfície externa do tronco, ou os liquens que pendem dos galhos?
Além disso, se decidirmos que os insetos que vivem na casca pertencem à
árvore tanto quanto a própria casca, então não há razão para excluirmos seus
outros moradores, inclusive o pássaro que lá constrói seu ninho ou o esquilo
para o qual ela oferece um labirinto de escadas e trampolins. Se considerarmos
9
Cf. FRANCISCO, P. Laudato Si’ Louvado sejas: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas,
Loyola, 2015. As citações à encíclica serão feitas com a sigla LS, acompanhada do número do parágrafo
citado.
25
que o caráter dessa árvore também está em suas reações às correntes de ventos
no modo como seus galhos balançam e suas folhas farfalham, então
poderíamos nos perguntar se a árvore não seria senão uma árvore-no-ar
(INGOLD, 2012, p. 2).
Cada um de nós e cada coisa no mundo seriam, então, um agregado de fios vitais
entrelaçados. Através de encontros de mútuo benefício, nós exercitamos nossa semelhança, não
só nossa distinção. Isso porque a semelhança é um atributo de diferenciação, ou seja, somos
todos semelhantes no tocante à vida, dentro de um campo de participação, e ao mesmo tempo
somos singulares. A vida, ela mesma, só da conta da constante transformação.
Retomemos a definição de ser de Ingold: você é um nexo singular de crescimento
criativo dentro de um campo de relacionamentos desdobrando-se continuamente (INGOLD,
2011, p.12).
Desdobrando-se... expandindo... continuamente.
capítulo dois desta tese. Agora, com base no que foi dito antes, avançarei me dedicando à
Fabula-Mito de Higino, trabalhada tanto por Heidegger como por Boff.
Fábula de Higino
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve
uma ideia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma.
Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse o espírito nele. O que Júpiter fez de bom
grado.
Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado,
Júpiter proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
‘Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por
ocasião da morte dessa criatura.
Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo
quando essa criatura morrer.
Mas como você, Cuidado, foi que, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob
seus cuidados enquanto ela viver.
E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu:
essa criatura será chamada de homem, isto é, feita de húmus, que significa
terra fértil’.
O aprofundamento do estudo sobre esta narrativa específica traz o tom inicial para a
tese, pois personifica o Cuidado como entidade capaz de sustentar e qualificar o tempo de vida
dos homens e das mulheres na Terra. Nosso corpo seria, então, terra, como todos os outros
corpos11. Porém, o corpo humano constituiria um punhado de terra que foi moldado pelas mãos
10
Escolhi usar aqui a versão feita por Leonardo Boff em detrimento da de Martin Heidegger, por ela
trazer a palavra “cuidado” e não “preocupação”, como ocorre na tradução feita em Ser e Tempo (1927),
do segundo autor.
11
“Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn2,7). O nosso corpo é constituído pelos
mesmos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”
(LS, 2).
27
do cuidado (cura12, preocupação13) e que somente depois teria recebido o espírito, vida, através
do sopro de Júpiter. Segundo Heidegger:
A fábula aponta para o exercício do cuidado como modo de ser em nosso caminho pelo
mundo. Destaca a importância do cuidado aplicado no tempo – como percurso – e do rastro que
deixamos pelo caminho.
No sentido de absorver melhor o ensinamento trazido por Saturno na fábula, irei dedicar
especial atenção aos legados históricos de cuidado que marcam cada tempo, a saber: presente,
passado e um futuro possível.
Inicio este tópico com a imagem de Justine, personagem do filme Melancolia (2011),
de Lars Von Trier. Vestida de noiva, a mulher tenta caminhar em meio a uma floresta escura
com enormes fios de lã cinza agarrados aos seus pés. A cena acontece em câmera lenta, como
um adágio de esforço sobre-humano. Seus passos são quase imperceptíveis, como se o peso de
todo o mundo estivesse sobre seus ombros. Como se o tamanho da realidade, um planeta inteiro,
a fizesse se esquecer da possibilidade de sonhar.
“We often forget that the planet we are living on has all the elements that make up our bodies” (HANH,
2013, p.8). Tradução livre: “Nós frequentemente esquecemos que o planeta onde vivemos tem todos os
elementos que criam nossos corpos”.
12
Na tradução de Ser e Tempo feita por Márcia Sá Cavalcante Shuback (2006), é usada a palavra Cura.
Cf. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.
13
Na tradução de Ser e Tempo feita por Fausto Castilho (2012), é usada a palavra Preocupação. Cf.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, Campinas: Vozes, Unicamp, 2012.
14
Na tradução de Ser e Tempo (2006) o termo Dasein é traduzido como pré-sença.
28
Vivemos os anos finais da segunda década do século XXI. Pensar sobre nosso tempo é
acessar o inimaginável diante de todos os avanços tecnológicos e científicos que a humanidade
foi capaz de galgar. Porém, ao mesmo tempo, é entrar em contato com tudo aquilo de mais
velho e primitivo que a humanidade nunca foi capaz de transcender: guerras santas, chacinas,
corrupção, miséria, terrorismo, racismo, homofobia, machismo, fundamentalismo,
desigualdade etc.15. Vivemos imersos na velocidade do consumo ditada por um ideal movido
pelo capital e, enquanto isso, a Terra já dá claros sinais de seu esgotamento. Caminhamos
consideravelmente como civilização, mas a realidade lá fora faz sentir como se não tivéssemos
saído do lugar.
Vivemos um momento cuja grande parcela da população mundial (humana), percebe
que nosso projeto de futuro não deu certo. Projeto este que foi embalado por uma crença no
progresso, o qual de forma ilimitada supostamente nos levaria a sermos sempre melhores do
que já fomos. Sempre avante!
Segundo Christine Gruwez,
15
No livro A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991, Eric Hobsbawm afirma que o século XX
“foi sem dúvida o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, frequência e extensão da
guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década de 1920, como também pelo volume
único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio
sistemático” (1995, p. 22). Já no livro Tempos interessantes: uma vida no século XX, o autor ressalta
que “O século XX terminou. O século XXI começa com crepúsculo e obscuridade” (2002, p. 448).
29
Ninguém sabe o que se pode fazer, pois somente uma “tomada de consciência” não
basta. Seria necessário um mergulho nas entranhas de nosso modo de pensar para que a ideia
de progresso, crescimento, e consequentemente, de consumo fossem revistas. No entanto,
continuamos estarrecidos diante do contraste entre o que já é comumente sabido e o que nos
mobiliza à ação diante, contra ou em favorecimento da promessa de um futuro que Stengers
chama de barbárie (2015, p. 12).
Ao longo da construção de uma nova narrativa sobre os tempos atuais, Stengers vai
traçando uma interessante caracterização de personagens que estariam no comando de nossas
escolhas, pensamentos e ações, como entidades transcendentes e, portanto, onipresentes. Um
dos personagens principais é o Capitalismo e a tríplice faceta a ele inerente, denominada por
ela de “Nossos Responsáveis”: a Ciência, o Estado, os Empresários (Economistas). Todos estes
estariam em conflito com uma outra entidade transcendente suprema: Gaia16, a que faz a
intrusão.
16
Cito Stengers: “O que chamo de Gaia foi assim batizado por James Lovelock e Lynn Margulis no
início dos anos 1970. Eles incorporavam pesquisas que contribuem para esclarecer o denso conjunto de
relações, articulando o que as disciplinas científicas tinham o hábito de tratar separadamente: os seres
vivos, os oceanos, a atmosfera, o clima, os solos mais ou menos férteis. Dar um nome, Gaia, a esse
agenciamento de relações era insistir sobre duas consequências dessas pesquisas. Aquilo de que
30
Gaia, nomeada desta forma, não é mais aquela que devia ser cultuada para que nos
concedesse bênçãos de boas colheitas e clima ameno. Também não é mais a grande mãe que
tudo acolhe e tolera, nem mesmo é mais a Deusa que traz o sentido do justo e do injusto. Todas
essas maneiras de encarar Gaia falam mais de tentativas humanas de controle e busca de
garantias do que da própria Gaia. Esta que hoje passa a ser encarada como um ser vivo, coeso,
que diante das alterações climáticas lança mão de recursos próprios para restabelecer seu
equilíbrio organísmico. A maneira que ela faz isso é o que nós, humanos, chamamos de
catástrofe, e que nos revela nossa pequenez diante dela.
Pois a própria Gaia não está ameaçada... e é exatamente por não estar ameaçada que
faz com que as versões épicas da história humana pareçam caducas, quando o
Homem, em pé sobre duas patas, e aprendendo a decifrar as ‘leis da natureza’,
compreendeu que era mestre do seu destino, livre de qualquer transcendência. Gaia
é o nome de uma forma inédita, ou então esquecida, de transcendência: uma
transcendência desprovida das altas qualidades que permitiriam invocá-la como
árbitro, garantia ou recurso; um suscetível agenciamento de forças indiferentes aos
nossos pensamentos e aos nossos projetos (STENGERS, 2015, p. 40-41).
Gaia, a que faz a intrusão, nos é indiferente. Está além do bem e do mal, e se faz presente.
Ou seja, ao impor sua força de maneira descompromissada em relação às dores humanas - bem
como a dor dos outros seres vivos - transcende toda a nossa complexidade intelectual, afetiva e
moral com um simples sopro. E nós não temos resposta para isso, ou pelo menos não uma
resposta que nos faça poder voltar a viver como se nada estivesse acontecendo. Pela primeira
vez na história da humanidade cresce a consciência inquestionável e comum de nosso completo
desamparo. Como dizia Justine: “Estamos sós”, e Gaia nos incomoda.
Mas por que, então, a maioria esmagadora da população continua vivendo como se nada
estivesse acontecendo?
Papa Francisco fala sobre dois tipos de atitudes que dificultam nosso caminho para uma
solução. A primeira estaria na esfera da negação e da indiferença diante dos problemas; a
segunda seria movida por uma resignação acomodada ou uma confiança cega em possíveis
soluções tecnológicas. Ele clama por uma nova solidariedade universal, como uma base
concreta de um percurso ético e espiritual que deveria ser seguido, incluindo todos (LS, 14).
dependemos e que foi com frequência definido como ‘dado’, o enquadramento globalmente estável de
nossas histórias e de nossos cálculos, é produto de uma história de coevolução, cujos primeiros artesãos
e verdadeiros autores permanentes foram as inúmeras populações de micro-organismos” (2015, p. 38).
31
Também como resposta à pergunta acima, Stengers relata duas histórias com as quais
estamos lidando cotidianamente. A primeira é a história contada pelo Capitalismo sobre a
existência uma competição generalizada, de uma guerra de todos contra todos em que cada
indivíduo, empresa, nação, região do mundo, deve aceitar os sacrifícios necessários para ter
direito a sobreviver, se sobrepondo a seus concorrentes (STENGERS, 2015, p. 21).
Essa é uma história que ao ser contata e recontada, quase como uma ameaça, transforma-
se em profecia e passa a ditar as escolhas e comportamentos das pessoas que, de alguma forma,
estão inseridas nos sistemas capitalistas globais. Afogados nesse emaranhado sutil de um
discurso engenhoso, nos encontramos paralisados, passando a reproduzir comportamentos
automáticos de consumo como manifestação de atitudes de descuido com o todo e com os
desfavorecidos. Tais atos caracterizam-se por uma “perda do sentido de responsabilidade pelos
nossos semelhantes” (LS, 25).
Neste contexto, compartilharíamos uma sensação de tranquilidade com a possibilidade
de descarte. E aqui não só de descarte de excessos de consumo, lixo ou restos, mas de vidas,
sejam elas humanas ou não. É este tipo de pensamento que gera a possibilidade de se desmatar,
de se desapropriar terras e causar migrações em massa, desabrigando populações inteiras. E
também transpor rios, poluir o ar e as águas, envenenar a terra, tudo em nome do progresso.
Esta é a narrativa atual, uma “história da carochinha” na qual nos encontramos imersos, nos
alimentamos e somos alimentados.
Por outro lado, a segunda história ressaltada por Stengers vem sendo exercitada por
pessoas singulares, as quais constituem pontos de resistência contra o discurso hegemônico e
que produzem alguns oásis ainda difusos. São pessoas que, ao questionarem a cultura do
descarte, passam a experimentar um modelo circular de produção17. Começam a criar
alternativas para fugir da lógica capitalista com iniciativas como ecovilas18, hortas comunitárias
urbanas, jardins verticais e iniciativas de economia solidária, por exemplo.
Pessoas que cultivam espaços que tornam possível criar novas teorias ligadas à
economia, cujo capital passa a exercer um papel secundário em trocas de saberes e produtos,
são pessoas que marcam um retorno ao contato com os outros seres que habitam o mundo –
17
Papa Francisco destaca que o modelo circular de produção assegura recursos para todos e para as
futuras gerações, enquanto a cultura do descarte atende a um comando de exclusão do que aparentemente
não nos tem serventia (LS, 22).
18
Ecovila é um modelo de assentamento humano sustentável. São comunidades urbanas ou rurais de
pessoas que tem a intenção de integrar uma vida social harmônica a um estilo de vida sustentável. (Cf.
WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecovila>. Acesso em:
13 ago. 2018).
32
1.1.1 O Melancolia
Ainda no início da década atual, o filme Melancolia (2011), de Lars Von Trier, oferece
um interessante material para tentarmos compreender as diferentes maneiras de lidar com essa
ameaça transcendente, atualmente denominada por Stengers como “Intrusão de Gaia”.
Melancolia foi o nome dado, no contexto do filme, a um imenso planeta que estaria em rota de
colisão com a Terra.
A introdução do filme mostra um adágio do tempo cósmico, o qual já me referi no início
deste tópico. Uma sequência de cenas em câmera lenta, dentre as quais Justine aparece vestida
de noiva e caminha em uma floresta entrelaçada por gigantescos fios de lã. Esta cena, que é um
sonho da personagem, permite-nos entrar em contato com o que acontece no interior daquela
mulher. Revela sua experiência sensória e a expansão de seus sentimentos, acrescidos pela
experiência de desaceleração do tempo vivido pelos deprimidos. A lentidão das cenas dá conta
de deflagrar no expectador a angústia que lhe será constante. Fala da sensação de não se poder
fazer nada diante do imponderável e de um tempo que não passa.
A história é contada a partir da vida de duas irmãs. Justine é uma linda e bem-sucedida
mulher recém-casada, porém marcada pelo infortúnio da melancolia. Uma espécie de dom de
poder saber das coisas e das relações de maneira desnuda. A primeira parte do filme se passa
durante a festa do seu casamento, quando ela é a primeira a avistar o planeta. Ao longo da trama
tomamos contato com sua luta interna para parecer feliz, ou para não se deixar tomar pelo
sentimento de falta de sentido e senso de futuro.
O empenho interno de Justine prima pela busca da aparência de felicidade e jovialidade
“eternas”, tema muito atual dentro de nossa sociedade do consumo, espetáculo, ou do culto da
performance, conforme denominação do sociólogo Alain Ehrenberg (2016). Justine é um
protótipo que alegoriza o estado o qual os indivíduos se encontram afetados pelas exigências
modernas de máxima excelência, ou eficiência irrestrita, ditadas por nosso modo atual de gerir
33
nossas vidas. Mostra como a premência de nos relacionarmos com nossas vidas como se
fossemos um empreendimento de sucesso acabaria por nos levar a lugares subterrâneos da alma.
A exemplo das cenas explicitadas no filme de Lars Von Trier, muitas pessoas acabam
desenvolvendo sintomas que elucidam uma crise de sentido atrelada ao excesso de estímulos e
responsabilidades. Compartilham um sentimento basal de que, para existir, é preciso ver e ser
visto, produzir, ganhar e comprar cada vez mais e em maior velocidade. Estas pessoas
permeadas de vazio acabam se confrontando com o fracasso, com uma sensação de
esvaecimento, similar ao da personagem.
Na trama, Justine busca apoio da mãe, uma mulher amarga que desqualifica qualquer
busca pela felicidade. Uma pessoa que não se sensibiliza mais, castradora de qualquer tentativa
de aproximação afetiva e que, como um ato de autodefesa, ataca. Justine busca apoio do pai,
um homem que poderia ser classificado como um “bobo alegre”, alguém que não se
responsabiliza com sentimentos profundos e simplesmente vai embora. Estão todos envolvidos
em diálogos internos, lidando com suas próprias fragilidades e desejos. E Justine acaba sendo
engolida pela melancolia, assim como a Terra será engolida pelo Melancolia, não há o que se
possa fazer para evitar.
Considero interessante a contextualização da situação familiar da protagonista de forma
a oferecer um panorama simbólico de como estamos vivendo nossas relações mais próximas.
Maria Rita Kehl (2009) coloca a depressão como um sintoma social contemporâneo que teria a
função de sinalizar para o “mal-estar na civilização”. Kehl ressalta que não há, entre os
discursos da vida contemporânea, nenhuma referência valorativa aos estados de tristeza e da
dor de viver, assim como do possível saber a que eles possam conduzir. “O mundo
contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o sofrimento dos depressivos com
sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos ideais em circulação” (KEHL, 2009, p. 16).
Essa recusa desvalorativa dos estados da tristeza aponta para um modo próprio de sofrer
na contemporaneidade. Ou melhor, um sofrimento que emerge a partir de algo que poderia ser
chamado de uma “compulsão falida” de se tentar evitar o sofrimento e a dor. Entretanto, como
é impossível evitá-lo de todo, acabamos por mascará-lo através de narrativas de negação
socialmente construídas e alimentadas, como por exemplo, pelo alto índice de medicalização
dos quadros de tristeza.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 300 milhões de pessoas
vivem com depressão. Isto representa um aumento de mais de 18% entre 2005 e 2015 de pessoas
diagnosticadas com a doença, que já é considerada a principal causa de problemas de saúde e
incapacidade em todo o mundo (OPAS, 2007, [N.P.]).
34
Retornarei a esta temática adiante; agora volto ao filme. A segunda parte da narrativa
tem Claire como foco. Uma mãe de família, cuidadora e preocupada com as aparências. É
casada e tem um filho de uns oito anos, aproximadamente. Ela vive numa linda casa, cercada
de mimos e sob o controle de John, seu marido. Ele, um homem rico e dominador, que acredita
piamente na ciência e nega com veemência a possibilidade da colisão interplanetária.
A essa altura, na trama, todos já sabem da existência do Melancolia e Claire se dedica a
tirar a irmã da depressão paralisante em que se encontra19. Porém, na medida em que Justine se
recupera, Claire começa a fazer contato com seus próprios temores relacionados ao fim
iminente. A diferença entre como cada um desses três personagens lida com a ameaça do fim
se mostra significativa.
John seria algo como o “tipo ideal” do homem moderno comum. Aquele que acredita
no progresso. Acredita que está no controle, ou que estamos, como humanidade, no controle.
Aquele que acredita que não existe nada cuja sabedoria humana não possa resolver. John está
fascinado pelo acontecimento, diz que se trata de Antares, um planeta que estaria atrás do Sol
e que apenas passaria perto da Terra, sendo essa passagem, então, um magnífico espetáculo.
John não compreende, ou nega os temores da esposa, proibindo-a de pesquisar na
internet sobre o que alguns chamam de “dança da morte”, mantendo, assim, o controle. Porém,
Claire passa por momentos de confiança e outros de medo profundo, enquanto tenta levar a
vida como se nada estivesse acontecendo.
Certo dia, como um único ato egoísta realizado por conta própria, Claire vai à vila e
compra remédios para poder matar a todos, caso os cientistas estejam errados. Enquanto isso,
Justine admira o planeta. Como se agora, com a verdade desvelada, ela pudesse habitar em seu
próprio corpo, em seu próprio tempo. Ela até parece mais feliz. Faz um verdadeiro mergulho
em sua melancolia e com isso se entrega ao Melancolia. É a única que não duvida de que o
planeta inevitavelmente colidirá com a Terra. É a única que não entra em desespero, pois
esperança já não havia. Afirma que a vida na Terra é má e que estamos sós. Afirma que só há
vida na Terra e por muito pouco tempo.
Quando percebe que está errado, John, o homem moderno e “cuidadoso” com a família,
usa todos os remédios comprados pela esposa e acaba com sua vida antes que o planeta chegue.
Mais um ato de negação, agora com requintes de covardia e abandono. Claire sente a falta do
marido pouco tempo depois, e ao constatar a aproximação de Melancolia vai buscar os
19
Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, citando Shaviro, afirmam: “a depressão de Justine
é uma espécie de interiorização [...] da verdade cósmica deflacionária da extinção planetária” (2014, p.
56).
35
remédios, sua primeira opção também. Como não os encontra, sai em busca do marido. Justine
a avisa que algo mudou, pois, os cavalos estão tranquilos. John é, então, encontrado por Claire
morto em uma cocheira, e ela assume sua mais comum persona, a de fingir que nada está
acontecendo. Cobre seu marido com palha seca e solta um dos cavalos para que as outras
pessoas pensem que ele foi à vila. Claire faz café para seu filho e Justine na intenção de tentar
manter a rotina, mas logo entra em pânico. Esforça-se em vão para fugir com o menino,
enquanto Justine a observa pacientemente. Esta tentativa de fuga fala também da dinâmica de
crença dessa personagem, que busca por algo maior que ela, no caso a vila. Desponta um desejo
de proteção, no entanto não havia certezas lá fora.
Ao se renderem ao inevitável, as irmãs conversam sobre como irão viver o fim. Claire
começa um planejamento, afirma querer fazer tudo certo, como se houvesse alguma
possibilidade de certeza. Justine mais uma vez aponta para a verdade nua e crua, dizendo que
não há como ser bom.
Na sequência, o menino fala para a tia que está com medo, porque o pai havia dito que
não teriam como se esconder. Justine lembra a ele sobre a existência de uma caverna mágica
que poderiam construir juntos. A história se encerra com os três, mãe, filho e tia, sentados dentro
de uma pequena cabana feita de gravetos, à espera do planeta.
Essa imagem indica o retorno ao lúdico e aos primórdios da tecnologia, quase uma
relação mítica com o nosso sentimento de desproteção diante de algo tão grandioso, como um
planeta em rota de colisão com a Terra, ou um sentimento abissal de falta de sentido de vida,
ou ainda nossa própria casa se rebelando contra nós. Uma alegoria ao fato de que mesmo tendo
acumulado tanto saber e complexidade, nada pode interferir no fato de que nós, humanos,
estamos indo de encontro à parede.
Uso esta narrativa absolutamente contemporânea como alegoria do mundo atual.
Pretendo chamar atenção para a maneira como estamos vivendo, quais tipos de escolhas temos
feito diante da sensação de múltiplas possibilidades, mas que se revelam em essência como
formas de tiranias, às vezes autotiranias, veladas. Vivemos a era da primazia do indivíduo, do
imperativo cientificista de explicações de mundo e da percepção extrema de uma sensação de
aceleração do tempo vivido20.
20
Maria Rita Kehl (2009) faz uma riquíssima análise sobre como o desenvolvimento do que a psicanálise
chama de dimensão temporal estaria na base da formação do psiquismo, humanamente constituído.
Aponta também para como a nossa percepção do tempo foi se transformando ao longo da história ao
ponto de ser, hoje, uma grande entidade onipresente pela a qual estamos todos comandados.
36
Esses fatores contribuem para o que pode ser chamado de um “modo de operar
anestesiado”, automático e desconectado das pessoas modernas, deflagrando um contexto no
qual o deprimido é aquele que se recusa a operar como a maioria. É aquele que experimenta
uma qualidade de tempo diversa, mais lenta e sutil. A psicóloga Rafaela Zorzanelli, em palestra
proferida para o programa Café Filosófico da TV Cultura, enquadra a depressão dentro de um
espectro de doenças que estão situadas no limite entre o psíquico e o físico. Zorzanelli (2009)
nos diz: “Talvez as doenças situadas no limite indivisível entre o físico e o mental tragam um
outro tipo de objetividade ou subjetividade que as máquinas e as tecnologias ainda não são
capazes de revelar”.
Farei um aprofundamento das questões corporais no próximo capítulo. Considero
importante ressaltar aqui que o vertiginoso aumento dos casos desse tipo de doença-sintoma
acontece de modo simultâneo ao momento em que muitas áreas de conhecimento passam a
questionar, e até mesmo desconstruir, as formas de explicação de mundo que colocam como
dado a separação entre natureza e cultura, bem como toda a percepção objetivista de mundo.
Vivemos a era do fim das certezas. Neste sentido, talvez, a tarefa de encarar os quadros
de tristeza como constituintes do contemporâneo possa nos ajudar a ampliar nossa potência de
transformação em tempos de fim de mundos. Isto porque, como ressalta Donna Haraway: “O
sofrimento é afetivo e efetivo; ele toca através da diferença; ele faz uma diferença. O sofrimento
constitui todos os seres no nó relacional” (HARAWAY, 2011, p.400). Ele possibilita o que a
autora chama de uma prática de “se-tornar-com”, e é isso que tanto carecemos nesses tempos.
Ainda sem nos desfazer do tom de cinza em nossos tempos, já que a sensação é de um
assunto inesgotável, retomo o pensamento de Maria Rita Kehl, quem nos apresenta um
panorama de como o conceito de melancolia foi, ao longo do tempo, dando lugar ao conceito
de depressão, e de como essa trajetória se liga à construção da ideia de indivíduo.
37
Diante de um mundo totalmente novo, o homem passou a se relacionar não mais com o
Outro – conhecido e previsível – mas com outros. Não havia mais o monopólio da verdade ou
da produção de certeza. Gradualmente, fomos nos dando conta da diversidade lá fora, e isso
possibilitou a descoberta da diversidade interior, que de forma horizontal se expressa em
múltiplas possibilidades de existir.
Na medida em que o Humanismo nos traz a dimensão da consciência de si e da
possibilidade de escolha, emerge também o sofrimento por meio da sensação do “peso de uma
consciência angustiada ante a insignificância de sua presença no mundo” (KEHL, 2009, p. 69).
Esta percepção leva a atitudes diversas e pouco convergentes. Como espécie, estamos
espalhados e dominamos todo o mundo. Cada comunidade interfere no equilíbrio da biosfera à
sua maneira, umas menos, umas mais, outras muito mais. Vivemos em um mundo globalizado
onde impera tanto o reconhecimento das diferenças entre os povos e culturas, como a realidade
de nossa interdependência, que se expressa de maneira inquestionável na esfera econômica, por
exemplo, mas não só nela.
Algo que começou com as grandes navegações, hoje encontra seu ápice com o advento
da internet. O indivíduo não está mais limitado em ou por seu território – cultural, social,
biológico –, mesmo que nunca saia de casa. E esta possibilidade de acessar o mundo sem sair
do lugar, aliada à ideia do individualismo, está cada vez mais ligada à experiência de solidão.
Estamos a um clique de qualquer coisa, mas parece que estamos desaprendendo a nos relacionar
com o próximo. Cada um de nós vive com os sentimentos concomitantes de insignificância e
38
magnitude, diante da pequenez e do poder humano. Com efeito, espalham-se conflitos de todas
as ordens.
Neste contexto de embate entre o local e o global, entre o Eu e os Outros, entre o meu e
o seu, entre uma liberdade aterrorizante e uma dependência sufocante, acontece uma discussão
muito potente e, talvez, através dela, possamos como espécie encontrar uma síntese viável, um
ponto de partida que nos ajude na produção de sentido.
O debate referido acima diz respeito aos direitos humanos, que em 2018 ganhou a
ordem do dia com a execução de Marielle Franco – vereadora negra, feminista, filha da favela,
lésbica. Ela reunia em si as pautas dessas minorias sob a bandeira dos Direitos Humanos
Universais. Seu assassinato fez com que o tema ganhasse a grande mídia nacional e
internacional. Assim, movimentos de lutas por direitos de setores aparentemente paralelos da
população, agora passaram a se unir sob a mesma bandeira. Fez com que ficasse evidente uma
intercessão entre as discussões de gênero, as lutas raciais, das periferias e dos excluídos de toda
a sorte: direitos da humanidade.
A história da busca pelos direitos humanos, ou para que se estabelecesse um acordo de
convívio em sociedade, remonta de longa data. A primeira declaração conhecida foi escrita por
Ciro, O Grande, Rei da antiga Pérsia em 539 antes de nossa era comum (AEC). Depois vieram
outras tentativas de limitar abusos de monarcas, a exemplo da Magna Carta assinada por Rei
João da Inglaterra em 1215. Sucedeu ainda a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
documento resultante da Revolução Francesa (1789-1799). Este último foi o que pela primeira
vez visava abarcar toda a humanidade, embora ainda não nomeasse as pautas feministas e
raciais. A história desses documentos conta como se desenrolou a dinâmica da disputa de
poderes e de direitos, mas fundamentalmente documenta como se desenvolveu a construção da
ideia de pessoa humana.
Em 1898, cem anos depois da Revolução Francesa, Émile Durkheim, em virtude do
Caso Dreyfus21, dá um grande passo em direção à definição de uma concepção de pessoa que
vai além da ideia de indivíduo, como parece imperar em nosso tempo. O inovador na
argumentação do autor é aliar a ideia de sacralidade à ideia de pessoa. Termo que ele busca
21
“O alto comando do Exército francês encenou um lance de espionagem e condenou um inocente. O
capitão Alfred Dreyfus, acusado de vender informações secretas aos alemães, recebeu pena de prisão
perpétua. O objetivo era desviar a atenção dos inimigos do verdadeiro segredo, um novo canhão, uma
superarma de guerra. Mas tudo foi descoberto. Indignados, os cidadãos exigiram a revisão do caso. A
França nunca mais seria a mesma”. Cf.: <https://super.abril.com.br/historia/caso-dreyfus-a-fraude-que-
revoltou-a-franca/>.
39
Há muito tempo, a vida dos seres humanos vem sendo e por razões
incompreensíveis ainda é dominada por costumes, usos e preconceitos que
perderam todo o sentido, se é que algum dia tiveram um. Desse modo, as
práticas atuais são concebidas como meras relíquias, às quais a época presente
se apega por inércia ou por corresponderem aos interesses de alguns
indivíduos (JOAS, 2012, p. 64).
41
Se referir a todo e cada ser humano através de uma declaração de direitos e liberdades
é ressaltar a necessidade do desenvolvimento de uma prática de qualidade de cuidado de cada
um e para todos nós; é trazer como valor inalienável o reconhecimento de cada ser humano
como uma pessoa em sua dignidade, de maneira tal que seja possível abarcar toda a diversidade
das expressões humanas e circunscrevê-las dentro da mesma perspectiva de dignidade
universal. Ou, como nos diz Joas:
Ora, essas verdades mais palpáveis e esses princípios mais simples consistem
em conceber as leis como “contratos entre pessoas livres” e explicitá-las
sistematicamente a partir de um único ponto de vista, a saber, o de acarretar
“a maior felicidade possível distribuída entre o maior número possível de
pessoas” (2012, p. 65).
Uma utopia, não é mesmo? Sem dúvida. Mas ouso dizer que em tempos de crescimento
da consciência ecológica e de um também crescente empalidecimento das fronteiras que antes
delimitavam os saberes e suas verdades, essa utopia se mostra ainda uma utopia pequena. Isto
porque paralelamente ao debate acalorado sobre os direitos humanos existe outra discussão em
curso.
A partir do crescimento das etnografias antropológicas, o homem ocidental se deparou
com o fato de que muitas culturas não explicam o mundo e as relações entre os seres a partir de
uma distinção entre natureza e cultura, bem como não trabalham com a ideia da
42
excepcionalidade humana sobre todos os outros seres. Segundo Philippe Descola, em Outras
naturezas, outras culturas (2016, p. 41), essas duas premissas formam as bases de crenças que
permitiram o desenvolvimento da ciência ocidental como temos hoje. O descolamento do
homem em relação a natureza transformou o mundo em um terreno de investigação e pesquisa.
Passamos então a fazer experimentos, criar teorias e principalmente tecnologias
potentes, que nos trouxeram respostas e nos possibilitaram resolver problemas e criar coisas
magníficas. Porém, ao mesmo tempo, nos colocaram em uma situação de ameaça real de
extinção em massa. Com a constatação de que talvez nossas premissas fundantes tenham
encontrado um limite, alguns autores, dentre eles o próprio Descola, e também Bateson (2014),
começaram a tecer outras narrativas sobre natureza e cultura, sobre humanos e não-humanos,
no sentido de criar novas formas de explicar a relação entre essas categorias.
A antropologia, disciplina que por excelência questiona o senso comum, é, a meu ver, a
ciência capaz de liderar o diálogo necessário entre as demais especialidades. Ela habita os
interstícios, compondo um tecido que transpassa fronteiras e cria alianças. Ao se dedicar a
conhecer o outro, acaba enriquecendo a si própria:
Somos hoje uma civilização capaz de questionar suas próprias bases através do espanto
provocado pela aproximação com outros modos de habitar e existir. Esta parece ser uma
oportunidade que a crise das certezas nos oferece. Ao ouvir o que os ameríndios, os aborígenes
e os orientais têm a nos dizer, passamos a reinserir a humanidade no espectro da natureza22, de
modo que a maneira que compreendemos as relações entre os seres e a função humana na Terra
pode ser radicalmente transformada.
Enquanto o humano moderno objetifica e diferencia todos os elementos da natureza, a
cosmovisão ameríndia os dota de uma subjetividade e acaba por deflagrar o caráter de
22
Sobre o tema: Cf. KOHN, Eduardo. Comment pensent les forêts. 2 ed. Bruxelas: Zones Sensibles,
2017.
43
semelhança entre todos os seres. Na concepção indígena, tudo tem um “eu”, tudo é sujeito e,
portanto, tudo carrega em si um valor característico.
Entramos aqui na esfera do Perspectivismo, que pode ser compreendido como a síntese
do pensamento ameríndio. Para esses povos, os animais e os seres da natureza se enxergam
como humanos e “possuem uma alma análoga a dos humanos” (DESCOLA, 2016, p. 13).
Portanto, pensam, sentem, e se comunicam como nós, apesar de sua “roupa” de animal23. Em
suma, os animais são gente como nós, e “o referencial comum a todos os seres da natureza não
é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” (DESCOLA, 1986, p.
120).
Não se trata aqui de discutir essa perspectiva como status de verdade absoluta, mas
como verdade anímica. Uma verdade que pode trazer um sentido de pertencimento mais amplo
a tudo o que é vivo. Constrói-se como uma narrativa que pode mover os alicerces da
humanidade para um lugar de inclusão e responsabilidade de outra ordem.
Se considerarmos a possibilidade de todos os seres da natureza ganharem status de
pessoa em nosso modo de pensar, e, consequentemente, dotados de valor intrínseco ou de uma
sacralidade no sentido de Durkheim, não podemos mais falar somente em direitos humanos. O
correto hoje seria falar em direitos característicos, ou seja, que todo ser vivo teria sua
legitimidade de existência. A partir desta nova concepção, seria preciso pensar a partir de uma
categoria mais ampla de “nós”24 - nós que estamos vivos e nos relacionamos nesse tempo. Nós,
contemporâneos.
23
Para aprofundar sobre o conceito de roupa dentro do Perspectivismo: Cf. VIVEIROS DE CASTRO,
E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 350.
24
“A diversidade humana, social ou cultura, é uma manifestação da diversidade ambiental, ou natural –
é ela que nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo próprio de interiorizar a
diversidade ‘externa’ (ambiental) e assim reproduzi-la. Por isso a presente crise ambiental é, para nós
humanos, uma crise cultural, crise de diversidade, ameaça à vida humana [...] Neste começo algo
crepuscular do presente século, vemos que, atém de mortais ‘nós, civilizações’, somos mortíferas, e
mortíferas não para nós. Nós, humanos modernos, filhos das civilizações mortais de Valéry, parece que
ainda não desesquecemos que pertencemos à vida, e não o contrário. Já soubemos disso. Algumas
civilizações sabem disso; muitas outras, algumas das quais matamos, sabiam disso” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2007, p. 256-257).
44
Para mim, usar a palavra “nós” é tanto um convite quanto uma pergunta: quem
será recolhido nesse “nós” para tornar mundos mais vivíveis juntos? Esse
“nós” é tal que merece um futuro ou ele é uma desculpa para não se aprofundar
o olhar nas condições de exploração necessárias para sustentá-lo?
(HARAWAY, 2011, p. 394). 25
25
No prefácio do livro Oltre natura e cultura. Paris: Gallimard, 2005, p. 16, de Philipe Descola, Nadia
Breda comenta que não foi criado ainda um termo dentro da cosmologia naturalista que abarque o
sentido que damos às palavras humanidade e ‘animalidade’ com relação ao mundo vegetal. Seria algo
como a ‘plantidade’ ou a ‘vegetalidade’.
45
Quais foram as narrativas atuantes como tradutoras de crenças fundantes, as quais nos
fizeram chegar até aqui? No sentido psicológico, as histórias que são contadas sobre nós
mesmos dentro das famílias e das comunidades, moldam a constituição de um sentido de si
mesmo, de nossas escolhas e sentimentos. Essas histórias se tornam ao mesmo tempo um lugar
de pertencimento e de profusão de profecias, como ideais de futuro.
No processo terapêutico caminho no sentido de revisitar, reler e ressignificar essas
profecias, com o intuito de tornar conscientes crenças e leituras de mundo que atuam em mim
e nos demais, muitas vezes de forma compulsória. Ao fazer este movimento de busca interna,
a pessoa pode se tornar autora ativa de sua própria vida. Do mesmo modo, as histórias de uma
sociedade qualificam as “verdades” pelas quais os valores de uma cultura são fundamentados.
Estes são traduzidos em escolhas baseadas em um sentir muitas vezes automático, introjetado
ou inconsciente.
Ressalto aqui a importância do mito como fundamento de uma percepção de mundo e
consequentemente como fonte de um sentido de atuação no cotidiano, ou seja, como uma
determinada tradição concebe a relação entre seus membros e os outros seres que coabitam a
existência.
Ao retomar os mitos que originaram a cultura branca ocidental, torna-se evidente que a
compreensão que prevaleceu leva a uma perspectiva que crê na excepcionalidade humana sobre
todas as outras formas de vida. Esta prerrogativa de primazia de uma única espécie sobre todas
as outras, aliada a ideias de controle e dominação, colaborou para gerar uma lógica de
pensamento que justificou, ao longo da história, um processo cada vez mais profundo de
segregação e exclusão.
1.2.1 A criação
Irei ao mito intercalado de comentários, nos quais destaco o que uma leitura superficial,
secularizada e literal pode trazer como compreensão da mensagem a ele relacionada:
Deus disse: “Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas
das águas”, e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que
estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus
chamou o firmamento de “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
Deus disse: “Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e
que apareça o continente” e assim se fez. Deus chamou ao continente “terra”
e à massa das águas “mares”, e Deus viu que isso era bom.
47
Deus disse: “Que a terra verdeje de verdura: ervas que deem sementes e
árvores frutíferas que deem sobre a terra, segundo sua espécie, frutos contendo
suas sementes” e assim se fez. A terra produziu verdura: ervas que dão
sementes segundo sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos
contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma
manhã: terceiro dia (Gn 1,6-13).
Nos dois dias que se seguem ao primeiro, o criador continua separando e nomeando
elementos. Chama atenção para o modo como no texto é dada uma ênfase à criação das plantas
dotadas de sementes para se reproduzirem “segundo a sua espécie”. Isto denota mais uma vez
a ideia da diferenciação entre as coisas do mundo, como se cada coisa existisse de forma
independente. Cada espécie obedeceria a um ciclo em si mesma, de forma individualizada. Não
há no mito menção à necessidade dos insetos e do vento para a polinização e consequente
reprodução das plantas, por exemplo.
Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a
noite: que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os
anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra” e assim
se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia
e o pequeno luzeiro para governar a noite e as estrelas. Deus os colocou no
firmamento do céu para iluminar a terra e governarem o dia e a noite, para
separarem a luz das trevas, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e
uma manhã: quarto dia (Gn 1,14-19).
No quarto dia Deus distingue e atribui funções geocêntricas aos elementos do céu. Não
há nenhuma menção à força que mantém estes elementos juntos: eles foram dados a existir para
satisfazer às necessidades dos seres viventes na terra.
Repteis e peixes que vieram das águas, aves que vieram do ar, multiplicai-vos segundo
a sua espécie. Novamente, nenhuma menção à interdependência entre as espécies ou à cadeia
alimentar. Há uma ideia de ocupação do espaço, como se a terra e o céu estivessem ali para
serem habitados pelos seres. Como se existisse o meio e, então, os seres que o ocupam. Não me
parece que a ideia de ocupação carrega em si a ideia de cuidado ou pertencimento e
interdependência.
48
Deus disse: “Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais
domésticos, répteis e feras segundo sua espécie” e assim se fez. Deus fez as
feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos
os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom.
Deus disse: “Façamos o homem a nossa imagem, como nossa semelhança, e
que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”.
Primeiramente é dito “que a terra produza seres vivos...”, mas no decorrer do texto, é
repetidamente afirmado que a criação foi feita por Deus. A intenção da existência dos humanos
seria para que estes se “multiplicassem” e, então, “dominassem” e “submetessem” a terra e
todos os outros seres vivos, fossem as plantas, as aves, os animais domésticos ou as feras.
Destaco também a ideia de que o homem - bem como a mulher, que aqui já aparece no
ato da criação - fossem feitos à imagem e semelhança dos seres superiores. No texto está escrito
“nossa semelhança” e em nota se atribui o uso do plural a uma semelhança com uma “corte
celeste” que incluiria os anjos, entre outros seres. Essa referência a direta relação dos humanos,
homens e mulheres, aos seres celestiais, dá uma ideia de que toda a criação, terra e seres vivos
teriam sido criados com o propósito de compor um habitat destinado ao patrimônio desta única
espécie. Ou como fim dessa única espécie, passando, assim, a ideia de um desencadear
evolutivo da criação, como se o humano fosse o ápice e destino final da existência da e na Terra.
Denota-se, então, um sentido antropocêntrico da existência.
Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército. Deus
concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de
toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele
descansou depois de toda a sua obra de criação. Essa é a história do céu e da
terra, quando foram criados (Gn 2,1-4).
que em nossa sociedade atual há pouco espaço ou atribuição de valor ao descanso contemplativo
após o cumprimento de uma tarefa.
Todos os dias da semana são passiveis de se trabalhar e, com o advento da internet e da
globalização, todas as horas do dia podem ser invadidas pelo trabalho. Tempo é dinheiro, dizem.
Todos os momentos precisam hoje estar dirigidos para algum tipo de utilidade, produção ou
consumo. Simbolicamente, é interessante constatar que o sentido do Shabbat passou a ser
desconsiderado.
Geocentrismo e antropocentrismo me parecem ser as ideias contidas no “Gênesis 1-3”.
Porém, a partir de uma leitura mais detalhada e cuidadosa, alguns autores tiram conclusões
diferentes. Passarei a relatá-las no próximo tópico, mas considero importante salientar aqui que
essa narrativa pode ter contribuído para as práticas humanas que ao longo da história seguiram
cada vez mais em direção a uma relação utilitarista e objetificante com o resto da criação.
1.2.2 As “entrelinhas”
26
A saber: “Assembleia do Conselho Ecumênico das Igrejas em Vancouver (1983), a Reunião
Ecumênica Europeia de Basiléia (15-21 de maio de 1989) e a Reunião Mundial sobre a Justiça, a Paz e
a Preservação da Criação em Seul, Coréia 5-15 de março de 1990) ” (GARMUS, 1992, p. 276).
50
necessidade de “nos debruçarmos novamente sobre os textos bíblicos para rever certas
interpretações errôneas e recuperar o respeito pela criação” (GARMUS, 1992, p. 277).
Para André Wénin, o retorno ao mito de origem cristão cumpre uma função semelhante:
Cria, assim, através de elementos móveis submetidos aos comandos de Deus, o ambiente
propício à vida. Do quarto ao sexto dia, Deus passa a povoar este ambiente: inicia pelo o céu,
com os luzeiros maiores e as estrelas, passa para as águas, o ar e, enfim, a terra, trazendo à
existência os animais terrestres, que inclui a humanidade – homem e mulher, macho e fêmea.
Um especial destaque precisa ser dado ao peso dessa obra organizadora movida pelo ato de
separar, pois, mesmo ao criar os seres vivos, cada obra vem acompanhada da expressão:
“segundo a sua espécie”:
Deus, ou Elohim – como prefere chamar Wénin – seria então um “estranho personagem
que separa” (2011, p. 30), distingue e, assim, organiza o caos pré-existente. O fato desta
característica aparecer com tamanha força no nosso mito de origem, falaria muito dessa nossa
característica. Somos humanos tementes à tal cartilha, tentamos compreender o mundo através
dessa mesma lógica de separação, distinção, dissecação, e em última instância, exclusão.
Neste ponto volto às separações sucessivas que, no texto, Deus opera para
desenhar pouco a pouco a realidade do mundo tal como o olhar humano pode
apreendê-la [...] O que este texto propõe não é, portanto, uma simples
“narrativa da criação”. É uma interpretação teológica de parâmetros
invariáveis que caracterizam toda a realidade, que se destaca do mundo criado
tal como é apresentado pelo ser humano: inscrição na linguagem, origem
inapreensível, alteridade, limite e relações (WÉNIN, 2011, p. 32).
O mito explica e estabelece uma organização da realidade conforme seu próprio olhar.
Wénin detalha nossa percepção de mundo quando apresenta um quadro que deve ser lido
verticalmente – três primeiros dias e os três subsequentes –, mas que também deve ser
observado horizontalmente. Ao fazê-lo, traça um paralelo entre o primeiro e o quarto dias: faz-
se a Luz e depois os lixeiros: cria-se, então, o ritmo do tempo.
O segundo dia estaria relacionado com o quinto: cria-se a abóboda dos céus – águas
abaixo e águas acima – e depois povoa-os com peixes e aves. O terceiro dia, então, remeteria
ao sexto. Eles têm em comum a realização de duas obras, em cada qual: terra seca/mares e
plantas; animais terrestres, humanidade e sementes para o cultivo e alimentação. O autor
sintetiza: “Ao observar que o esquema põe em evidência, compreende-se que está efetivamente
52
em obra um projeto consciente que Deus realiza de maneira coerente e progressiva segundo um
ritmo ao mesmo tempo amplo e regular” (WÉNIN, 2011, p. 22).
Porém, Wénin destaca um ponto curioso. Diz que essa narrativa se trata de uma obra de
ficção – já que nenhum ser humano foi testemunha da criação, aparecendo somente como
último feito de Deus. Então, ele se propõe a indagar quem seria o narrador do mito e conclui
que este narrador se põe a um exercício imaginativo, “relatando palavras e atos de um
personagem que ele designa como Elohim” (WÉNIN, 2011, p. 31). O relato seria, portanto, o
relato da constituição do mundo conforme o mundo em que nós mesmos vivemos. Ele ao
mesmo tempo construiria e reafirmaria nosso próprio modo de compreender o mundo. Ou seja,
Este projeto amplo contém ainda um último e totalmente diferente dia. O dia em que
Deus faz uma pausa contemplativa. Embora o sétimo dia represente uma ruptura, Wénin o
relaciona ao primeiro e ao quarto dias. Afirma que eles estariam dando conta de uma certa
marcação do tempo.
O primeiro marcaria o ritmo diário, o quarto os anos e as estações, o sétimo, contudo,
marcaria o ritmo semanal e instauraria a necessidade do descanso. Este último, não seria ditado
pelos elementos temporais: “Este ritmo, por conseguinte, não é ditado pelos astros: é, por assim
dizer, dado pelo criador. Assim, será necessária uma lei específica para que o povo da aliança
adote o ritmo que é o de Deus (Ex. 20,8-11)” (WÉNIN, 2011, p. 22).
Wénin é extremamente detalhista em sua análise do texto bíblico. Após discorrer sobre
uma contagem de vocábulos e de expressões que se repetem, chega à conclusão de que os sete
dias da criação se tratam, por um lado, da organização do espaço, e por outro, da passagem de
uma missão de governança:
Porém, Wénin percebe uma sutileza nessa missão de governança, bem como na forma
como o senso comum compreende o poder de Deus. Quanto a essas questões, primeiramente
chama atenção para o fato de que o Criador não destrói nada. Em essência, ele não aniquila o
caos ou nenhuma força hostil à vida, mas a organiza ao impor limites e criar uma harmonia.
Tudo se faz, contudo sem a instauração da violência (WÉNIN, 2011, p. 33).
O segundo ponto demonstrativo de uma qualidade desse poder de Deus se explicita
através de seu caráter doador; a abundância de Deus se expande através da possibilidade de
frutificar e multiplicar. Contudo, o detalhe sutil destacável no autor se deve ao fato de que no
sétimo dia o Criador se retira e deixa duas obras sem a frase conclusiva: “E Deus viu que isso
era bom”. Isso denotaria um tom de inacabamento da obra divina. Este Deus que se retira nos
apresenta um
Há ainda mais um ponto levantado pela atenta análise de Wénin. Quando se dedica a
compreender o que significa o homem e a mulher terem sido criados à “imagem” e
“semelhança” de Deus, uma interessante e talvez revolucionária versão interpretativa se mostra
evidente. Vamos ao texto, pois me sinto incapaz de transcrevê-lo com tamanha exatidão:
Elohim evoca a relação entre ele e o ser humano com a ajuda de duas palavras:
“imagem” (sèlèm) e “semelhança” (dᵉmût). Não são sinônimos em hebraico.
O primeiro é um termo concreto que designa uma imagem plástica, uma
escultura em particular (1Sm 6,5; 2Rs 11,18), inclusive estátuas de deuses (Ez
7,20; Am 5,26) que a lei proíbe (Dt 4,15-19). Trata-se, portanto, de uma
54
Assim, pois, quando a fórmula é omitida pela primeira vez, é porque a obra
permanece inacabada. Não será a mesma coisa para o ser humano? Em todo o
caso, isso poderia explicar o desaparecimento da “semelhança”: inacabado, o
humano traz certamente em si a imagem de Deus, mas essa não é (ainda)
semelhança. Porque o humano está próximo também dos animais com os quais
condivide uma sexualidade natural (“macho e fêmea”). Tudo se passa como
se fosse colocado em uma posição mediana entre divindade e animalidade,
[...] (WÉNIN, 2011, p. 38).
No versículo 28, Deus concede sua benção ao que pode ser compreendido como a
orientação para o ser humano alcançar a semelhança, que seria então, o caminho da salvação:
multiplicando-se, dominando e submetendo a terra e os animais. Então, caberia aos humanos
exercer sobre a terra e os outros seres um poder análogo ao de Deus. Uma ação que passa pelo
poder de organizar e dar sentido ao caos, um convite à responsabilidade.
Depois Deus concede os cereais e as frutas como alimento aos humanos. Wénin se
pergunta: “De fato, após a ordem de dominar com força os animais, o que pode sugerir o dom
de uma alimentação vegetal senão que os humanos têm a possibilidade de dominar o animal
sem matar”? (Wénin, 2011, p. 40). Para o autor, esta singela alusão ao mito, que normalmente
passa despercebida, seria um convite a um reconhecimento de autolimite. Ou uma dica de que,
para se assemelhar a Elohim, os humanos deveriam dominar, mas sem violência. Ou seja, o
mundo recém-criado e todos os seres nele viventes são entregues ao humano, mas não para
mandos e desmandos, e sim para que ele próprio tenha a oportunidade de alcançar a sua
semelhança com Deus.
Quando Deus se retira para o descanso contemplativo deixando o humano para fazer
suas próprias escolhas, ele faz uma demonstração de uma qualidade de poder libertário. Aposta
na possibilidade do desenvolvimento de uma consciência capaz de seguir seu exemplo e se
responsabilizar. Aqui, a palavra responsabilidade se torna prima-irmã da palavra cuidado.
Nessa atmosfera, as palavras “dominar” e “subjugar” ganham uma outra dimensão.
27
WÉNIN se refere à esta repetição: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou” (Gn 1, 27).
56
Após ter contato com essa análise do mito de origem judaico-cristão, me deparo com
um sentimento ampliado de busca e trabalho para que esta dita semelhança com Deus seja
alcançada. Porém, infelizmente, não me parece que estejamos, como coletividade, conscientes
desta missão. Vejamos agora o que nos diz nosso papa, líder atual desta discussão no interior
da Igreja Católica e exemplo para o mundo.
Em 2013, Jorge Mario Bergoglio foi eleito o novo papa após a renúncia de Bento XVI.
Esse acontecimento, segundo José Maria da Silva (2014, p. 7) configura “um processo de
desmistificação da figura do papado, mostrando o quão humano ele é”. Ao escolher o nome
Francisco, o novo “bispo de Roma” assume a liderança de uma proposta de reformulação da
própria Igreja. Proveniente de outro mundo, a saber, da América do Sul, gesta uma concepção
de religiosidade ligada à experiência
periférica, mais leve e colorida, mais flexível e que ganhou os tons e os sons
de sua encarnação nas diferentes culturas existentes no continente latino-
americano. Sente-se livre para um novo ensaio de Igreja que esteja à altura
dos desafios internos e externos, especialmente face à devastadora crise do
sistema-vida e do sistema-Terra que assola toda a humanidade e que não
poupa sequer a Igreja (BOFF, 2014, p. 122).
o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia
integral, vivida com alegria e autenticidade” [...] “Nele se nota até que ponto
são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o
empenho na sociedade e a paz interior (LS,10).
Nesta atmosfera de abundante reverência a todos os elementos, vivos ou não, nosso novo
papa faz duras críticas ao modo como os humanos se relacionam com sua própria casa. Chega
a afirmar que “crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados
a saqueá-la” (LS, 2). Nomeia alguns pontos que precisam de mais atenção, a exemplo do que
denomina um processo de “rapidación”. Tal ocorrência deflagraria um descompasso
contrastante entre a velocidade das ações humanas e a lentidão dos processos naturais,
58
biológicos, de recuperação ou regeneração da natureza. O papa afirma que mudança não pode
significar deterioração (LS, 18).
Francisco ressalta também a necessidade de passarmos de uma “cultura do descarte”
para um “modelo circular de produção” que assegure as gerações futuras (LS, 22) e que
reestabeleça em cada um de nós e em nossos governantes um sentido de responsabilidade por
nossos semelhantes (LS, 25). Nomeia problemas, como as migrações de populações inteiras em
busca de melhores condições de vida e por garantia de direitos (LS, 25); coloca a água como
direito fundamental da humanidade (LS, 30); a perda da biodiversidade como resultado de uma
ação onipresente dos humanos na terra, subjugando todos os outros organismos (LS, 34).
O papa fala também sobre o modo de viver nas grandes cidades, que contribui para uma
“profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento” (LS,
47); argumenta sobre o problema das desigualdades econômicas e de como isso contribui para
guerras (LS, 57) e ao mesmo tempo para uma espécie de ecologia superficial, que favoreceria
o desabrochar de “certo torpor e uma alegre irresponsabilidade” aliados a um processo de
negação da realidade (LS, 59). Finaliza o primeiro capítulo da Encíclica afirmando que, ao se
tornar desatenta para os elementos de ligação entre todos os seres e a própria terra, “a
humanidade frustrou a expectativa divina” (LS, 61).
O segundo capítulo dessa obra é todo dedicado ao Evangelho da Criação. O autor
justifica este feito como um chamado, para que todos os crentes tomem conhecimento dos
“compromissos ecológicos que brotam de nossas (cristãs) convicções” (LS, 64).
O papa propõe claramente, então, uma releitura das sutilezas contidas no Gênesis e em
outras narrativas bíblicas como modo acessível ao leitor comum. Traz a convicção de que “a
ciência e a religião, que oferecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num
diálogo intenso e frutuoso para ambas” (LS, 62), pois “ se tivermos presente a complexidade
da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem
vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade” (LS, 63). Ele realiza então
um ousado passo em direção a esse diálogo de maneira a reconfigurar a postura da Igreja de
forma engajada na temática de compreender qual a relação da humanidade com o resto da
Criação.
Ao longo desse capítulo, Francisco estabelece o alicerce para uma concepção de mundo
que enfatiza a dignidade infinita de toda e qualquer pessoa humana, mas, ao mesmo tempo e
com igual significação, afirma que os humanos estão ligados em aliança e pertencimento a todos
os outros seres e à terra. A palavra que se repete ao longo de toda a encíclica é interdependência.
Ele até mesmo cita uma passagem do Catecismo da Igreja Católica em que se diz:
59
Nossa existência estaria imersa, então, em três relações fundamentais e que me parecem
ser colocadas de forma horizontal: com Deus, com o próximo e com a terra (LS, 66). O papa
propõe que, ao reestabelecermos a consciência dessas relações fundantes da existência,
poderíamos compreender que o humano não é Deus, mas sim aquele que recebeu dele a
possibilidade da continuidade da fertilidade (LS, 67).
Uma fertilidade que viveria através de cada indivíduo e de todos os seres vivos, cujos
humanos possuem como dever garantir o equilíbrio para que se perpetuem. Nesse sentido,
qualquer ideia ligada a um antropocentrismo (LS, 68) irrestrito deveria ser combatida, porque
todos os seres têm valor pelo simples fato de existirem (LS, 69). Vale salientar que o
pensamento antropocêntrico tem colocado a vida na terra em risco quando dota seres e
organismos à categoria de objeto.
Na tradição judaico-cristã, dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque
tem a ver com um projeto do amor de Deus, em que cada criatura tem um
valor e um significado. A natureza entende-se habitualmente como um sistema
que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como
um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade
iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal (LS, 76).
Ao retomar a ideia de que a criação é mais do que a natureza, o papa retira da vida
comum o mérito por um projeto de autoafirmação, seja individual ou de espécie. A receita para
isso seria um retorno à louvação por este Pai Criador, mas não o dotado de uma onipotência
arbitrária, que estaria vigiando pronto para punir. Mas sim um patriarca que traria como
exemplo este amor que a tudo permeia e por isso traz a existência. Um Pai que nos envolve com
seu carinho (LS, 77). Essa qualidade de carinho salientada pelo Pontífice traz em si uma atitude
de entrega da Criação aos seres criados, para que ela possa continuar a ser desenvolvida. É
imprescindível destacar que tal entrega se configura como uma atitude de autolimite:
Talvez seja possível passar a contar também a história da conexão do ser humano com
todas as coisas e não a da separação, ou seja, talvez possamos valorizar o que temos em comum
e não o que nos separa como seres vivos. Para esse feito foram selecionadas duas mitologias a
título de exemplo e contemplação.
Destaca-se aqui o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu- palavras de
um xamã yanomami (2015). Nele, os autores trazem a riqueza da cosmologia dos povos
yanomami e demonstram uma compreensão de mundo atrelada à ideia da humanidade como
guardiã da Terra. Além disso, nos contam sobre a existência dos xapiri, entidades espirituais,
duplos astrais de todos os seres que compartilham a existência comum. Eles teriam a função de
cuidar e de curar os humanos, bem como de sustentar o céu em seu devido lugar.
No mesmo caminho, Thich Nhat Hanh, através de histórias e práticas, contribui para
uma outra visão de mundo. Ao publicar o livro O Príncipe Dragão: histórias e lendas de um
Vietnã desconhecido (2009), demonstra seu incômodo em relação à falta de literatura voltada
para crianças no Vietnã. Thich faz um minucioso trabalho de resgate da História de seu país
através de contos folclóricos combinados com a expressa intenção de criar uma narrativa que
transcenda o “pensamento bélico” dualista, identificado por ele na literatura infantil ocidental.
Como resultado, cria-se um belíssimo livro que consagra a criação do mundo e da humanidade
com o dom do cuidado.
Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que
ele nos deixou. São palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que
preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto
nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. [...]. Por isso não
conseguem entender nossas palavras (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.
390).
são todas as minorias que estão fora, de alguma maneira, dessa megamáquina
do capitalismo, do consumo, da produção, do trabalho 24 horas por dia, sete
dias por semana. Estes índios planetários nos ensinam a dispensar a existência
das gigantescas máquinas de transcendência que são o Estado, de um lado, e
o sistema do espetáculo do outro, o mercado transformado em imagem
(VIVEIROS, 2014, [n.p.]).
Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita as folhas e os rios
cuja água bebemos. Foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos [...]. No
começo, Omama e seu irmão Yoasi vieram à existência sozinhos. Não tinham
pai nem mãe. Antes deles, no primeiro tempo, havia apenas a gente que
chamamos yarori29. Esses animais eram humanos com nomes de animais e
não param de se transformar. Assim, foram aos poucos se tornando os animais
de caça que hoje flechamos e comemos. Então foi a vez de Omama vir a existir
e recriar a floresta, pois a que havia antes era frágil. Virava outra sem parar,
até que, finalmente o céu desabou sobre ela. Seus habitantes foram
arremessados para dentro da terra e se tornaram vorazes ancestrais de dentes
afiados a quem chamamos de aõpatari. Por isso Omama teve de criar uma
nova floresta, mais sólida, cujo nome é Hutukara. É também este o nome do
antigo céu que desabou outrora. Omama fixou a imagem dessa nova terra e
28
Omama é o demiurgo da mitologia Yanomami.
29
“Trata-se, na mitologia yanomami, de seres cuja forma pré-humana, sempre instável está sujeita a
uma irresistível propensão ao devir animal [...]. São as imagens (utupë) desses seres primordiais que são
convocadas como entidades (‘espíritos’) xamânicas (xapiri)” (KOPENAWA; ALBERT, 2010, nota 1,
p. 614).
63
A primeira parte do mito de origem Yanomami conta uma série de eventos que
antecederam a existência da Terra como temos hoje. Dá a ideia de que houve um
desencadeamento de tentativas e erros para que nossa morada ganhasse a estabilidade
necessária para sustentar a vida, qualquer tipo de vida física. A busca por estabilidade parece
ser mesmo uma tônica desses povos.
Antes os seres e a própria terra não paravam de se transformar. Foi necessário que o
demiurgo tomasse uma série de providências para que cada elemento da natureza ganhasse
solidez e para que a interação entre esses elementos entrasse em equilíbrio, ou seja, em
homeostase. Faz-se interessante notar que entre os Yanomami existe, desde a origem, uma
percepção da interligação entre tudo que compõe nosso mundo físico, bem como da importância
da manutenção de uma qualidade de constância para a conservação da vida. Como chamamos
atenção no tópico anterior, essa não foi a maneira como a percepção judaico-cristã se perpetuou.
30
“Placa circular de cerâmica utilizada para assar os beijus de mandioca (mahe)” (KOPENAWA;
ALBERT, 2010, nota 3, p. 614).
31
“Os yanomami descrevem o nível celeste (hutu mosi) como um tipo de abóbada apoiada no nível
terrestre (warõ patarima mosi) graças a pés (estacas) gigantescos” (KOPENAWA; ALBERT, 2010,
nota 4, p. 614).
32
Kopenawa explica sobre a importância do metal e traça sua explicação sobre terremotos e a
instabilidade da Terra: “Omama escondeu seu metal lá no meio dos morros das terras altas, onde também
fez jorrar os rios. É de lá que surgem os ventos e o frescor da floresta. É de lá que vêm sua fertilidade.
Quando fazemos dançar a imagem desse pai dos minérios, ela aparece a nós como uma montanha de
ferro subterrânea, cheia de imensas hastes fincadas em todos os lados. Omama a colocou nas
profundezas do solo para manter a terra no lugar e impedir que a ira dos trovões e dos raios a faça tremer
e a desloque. [...] Assim, esse ferro está enfiado na terra como raízes de árvores. Ele mantém firme como
espinhas fazem com a carne dos peixes e esqueletos com a de nosso corpo. Torna-a estável e solida,
como nosso pescoço faz nossa cabeça ficar reta. Sem essas raízes de metal, ela começaria a balançar e
acabaria desabando sob nossos pés. Isso não acontece em nossa floresta, pois ela está no centro da terra,
onde esse metal de Omama está soterrado. No entanto, entre os brancos, em seus confins, onde o solo é
mais friável, acontece às vezes de ela tremer e se romper, destruindo cidades” (2010, p. 360).
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O elemento água entra em cena para matar a sede de um filho. Como se antes da
existência dos filhos não houvesse sede no mundo. A partir da água passam a existir também
todos os seres. Consequentemente a vida começa na terra e o rio nas costas do céu dá lugar aos
mortos. Vida e morte que se atrelam aos ciclos das águas, aqui e além.
No início nenhum humano vivia ali. Omama e seu irmão Yoasi viviam
sozinhos. Nenhuma mulher existia ainda. Os dois irmãos só vieram a
conhecer a primeira mulher muito mais tarde, quando Omama pescou a filha
de Tepëresiki num grande rio. No início, Omama copulava na dobra do joelho
de seu irmão Yoasi. Com o passar do tempo, a panturrilha deste ficou grávida,
e foi assim que Omama primeiro teve um filho. Porém, nós, habitantes da
floresta, não nascemos assim. Nós saímos, mais tarde, da vagina da esposa de
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Omama, Tʰuëyoma, a mulher que ele tirou da água. Os Xamãs fazem descer
sua imagem desde sempre. [...] Era um ser peixe que se deixou capturar na
forma de mulher. Assim é (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).
Os humanos nascem do encontro do demiurgo com uma mulher das águas. Para os
povos yanomami o elemento feminino provém das águas, assim como toda a diversidade da
vida. Em outras partes do livro, Kopenawa conta sobre a existência de um outro “mundo”
submerso, onde moram o terrível Tepëreski e suas filhas e filhos.
Relata que são seres poderosos e que também auxiliam os xamãs em suas curas. Porém,
houve um primeiro filho, não humano, gerado por Omama na panturrilha de seu irmão –
portanto sem contato com o feminino. Este trecho fala da existência de um filho especial que
vem ao mundo e carrega uma missão para com todos os humanos.
Mais tarde, Omama ficou furioso com seu irmão Yoasi, porque este, contra
sua vontade, tinha feito surgir na floresta os seres maléficos das doenças, os
në wãri, e também os da epidemia xawara33, que, como eles, são comedores
de carne humana. Yoasi era mau e seu pensamento, cheio de esquecimento.
Omama era quem tinha criado o sol que não morre nunca. Não falo aqui do
sol motʰoka, cujo calor cobre a floresta, e que é visto pelas pessoas comuns
[gente que simplesmente existe (kuaporatʰëpë)], mas da imagem do sol.
Assim é. O sol e a lua têm imagens que só os xamãs [gente espírito
(xapiritʰëpë)] são capazes de fazer descer e dançar. Elas têm a aparência de
humanos, como nós, mas os brancos não são capazes de conhece-las
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).
Este trecho faz menção a existência de seres transcendentes aos quais as pessoas que
“simplesmente existem” não têm acesso. Considero importante destacar esta compreensão
sobre uma existência comum, corriqueira. Existir simplesmente seria uma forma de vida
limitada ao que os olhos físicos podem ver. Uma vida que não transcende a experiência do real,
o mundo da matéria. Em contrapartida, os olhos da “gente de espírito” enxergam um mundo
animado, rico em vida, ligações e complementaridades entre os vivos. Neste modo de ver, tudo
canta e dança, bem como tudo é passível de ser cantado e dançado. Os xamãs podem ver e se
relacionar com algo como uma essência que pulsa em cada ser ou objeto.
33
São assim nomeadas as doenças infecciosas que seriam propagadas pela fumaça: fumaça de epidemia
(Cf. KOPENAWA; ALBERT, 2015, nota 28, p. 613).
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realmente sólido. Por isso buscou na floresta uma árvore de madeira dura para
coloca-la de pé e imitar a forma de sua esposa. Escolheu para tanto uma árvore
fantasma pore hi, cuja pele se renova continuamente. Queria introduzir a
imagem dessa árvore em nosso sopro de vida, para que este permanecesse
longo e resistente. Assim, quando envelhecêssemos, poderíamos mudar de
pele e esta ficaria sempre lisa e jovem. [...] Era o que Omama desejava. No
entanto, Yoasi [...] tratou de colocar na rede da mulher de Omama a casca de
uma árvore fibrosa e mole, a que chamamos kotopori usihi. Então, a casca
acabou se dobrando num lado da rede e começou a pender para o chão.
Imediatamente, os espíritos tucano começaram a entoar seus pungentes
lamentos de luto. Omama ouviu-os e ficou furioso com o irmão. Mas era tarde
demais, o mal estava feito. Yoasi nos ensinou a morrer para sempre. Tinha
introduzido a morte, este ser maléfico, em nossa mente e em nosso sopro, que
por esse motivo se tornaram tão frágeis. Desde então, os humanos estão
sempre perto da morte (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).
O mito demonstra de forma bem marcada o antagonismo entre Omama e seu irmão
Yoasi. Um bom, o outro mau. Fala também da percepção da introdução da morte na vida como
um ato de descuido, uma trapaça, um engano. Não era essa a intenção do criador, mas uma vez
feito, não pode ser desfeito. Atesta a morte como um ser maléfico que nos acompanha e nos
torna frágeis.
Se faz interessante também a forma como os povos yanomami percebem a interação
entre os seres, ou a forma como as imagens dos seres podem se misturar agregando
características de um ao outro. O “sopro da vida”34, ou o que Kopenawa chama de imagem,
seria algo semelhante em todos os elementos que compõem a magnitude vivente e haveriam
canais de comunicação, troca e mistura. Para Pucheu, “instaurando a morte, Yoasi ensina a
ignorância do morrer necessário, Omama, instaurando a eternidade do “sopro de vida”, ensina
o saber, o “sopro de vida” enquanto sabedoria, enquanto o vigor da e na materialidade da
floresta” (2016, [n.p.]).
Por isso Omama criou os xapiri, para podermos nos vingar das doenças e nos
proteger da morte a que nos sujeitou seu irmão mau. Então ele criou os
espíritos da floresta urihinari, os espíritos das águas mãu unari e os espíritos
dos animais yarori. Depois, escondeu-os, até que seu filho se tornasse xamã,
no topo das montanhas e nas profundezas do mato [...]. O pai da minha esposa
conta também que foi a esposa de Omama, mulher das águas, quem primeiro
pediu que os xapiri fossem trazidos a existência. Somos seus filhos e nossos
antepassados tornaram-se numerosos a partir dela. Por isso, depois de ter
procriado, perguntou ao marido: ‘O que faremos para curar nossos filhos
quando ficarem doentes?” Essa era sua preocupação. O pensamento do
34
“Sopro da vida” ou wixia é traduzido por Kopenawa como “força ou riqueza”. Não é atribuído somente
à respiração, mas também à abundância de sangue e aos batimentos cardíacos, à essência vital da pessoa
(utupë) (Cf. KOPENAWA; ALBERT, 2010, nota 16, p. 612).
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marido, Omama, continuava esquecido. Por mais que seu espírito buscasse,
ele se perguntava em vão o que poderia criar. A mulher das águas lhe disse
então: ‘Pare de ficar aí pensando, sem saber o que fazer. Crie os xapiri, para
curarem nossos filhos!” Omama concordou: ‘Awei! São palavras sensatas. Os
espíritos irão afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos
doentes e as trarão de volta para seus corpos! Foi assim que ele fez aparecer
os xapiri, tão numerosos e poderosos quanto os conhecemos hoje
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 84).
A criação dos xapiri foi uma medida de cuidado materno contra todo o mal que poderia
assolar seus filhos. A presença dessa crença no cotidiano de um povo instaura um sentido de
pertencimento e reverência expressos por gestos de cuidado. Um tipo de atitude que, pela
maneira como é vivenciada no mito, pretende ser propagada como um sentimento de
responsabilidade de cada um para com o todo. Ao se aprofundar na explicação sobre a
existência dos xaripi ao longo do livro, Kopenawa descreve a floresta de uma maneira
absolutamente encantada, repleta de caminhos cintilantes e frágeis espelhos pelos quais esses
seres passam, dançam e vivem. Posso falar que após ler essas “imagens de papel” (letras/livros),
nunca mais entrei em uma floresta como antes. Hoje, carrego em mim a possibilidade
entusiasmada de que exista lá muito mais vida do que posso enxergar, e isso gera uma atitude
de extremo cuidado e reverência ao adentrar em sua morada sagrada.
Mais tarde, o filho de Omama tornou-se um rapaz e seu pai quis que ele
aprendesse a fazer dançar os xapiri para poder tratar os seus. Buscou uma
árvore yãkoana hi na floresta e disse ao filho: ‘Com esta árvore, você irá
preparar o pó de Yãkoana! Misture com as folhas cheirosas maxara hana e as
cascas das árvores ama hi amatʰ a hi e depois beba! A força da yãkoana revela
a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de
virar espírito!”. Depois soprou yãkoana nas narinas do filho com um tubo de
palmeira horoma. Omama então chamou os xapiri pela primeira vez e disse:
‘Agora, é sua vez de fazê-los descer. Se você se comportar bem e eles
realmente o quiserem, virão a você fazer sua dança de apresentação e ficarão
ao seu lado. Você será pai deles. Assim, quando seus filhos adoecerem, você
seguirá o caminho dos serem maléficos que roubam suas imagens para
combatê-los e trazê-las de volta! Você também fará descer o espírito japim
ayokora para regurgitar os objetos daninhos que você terá arrancado de dentro
dos doentes. Assim você poderá realmente curar os humanos!”. Foi desse
modo que Omama revelou a seu filho – o primeiro xamã – o uso da yãkoana
e lhe ensinou a ver os espíritos que acabara de trazer à existência [...]. O filho
de Omama escutou atentamente as palavras do pai e concentrou seu
pensamento nos xapiri. Entrou em estado fantasma e tornou-se outro. Então
pôde contemplar a beleza da dança de apresentação dos espíritos. Tornou-se
xamã depressa, porque soube demonstrar amizade a todos [...]. Podia fazê-los
descer, resplandecentes de luz, e escutar seus cantos melodiosos. Então,
exclamou! “Pai! Agora conheço os espíritos e eles se juntaram do meu lado!
De agora em diante, os humanos vão poder se multiplicar e combater
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O primogênito recebe o legado de cuidar de seus irmãos, bem como de repassar sua
sabedoria aos demais para que o maravilhamento das forças mantenedoras da vida pudesse se
perpetuar. Pode-se inferir que à essa altura existe uma semelhança entre os “personagens” do
filho de Omama e Jesus. Ambos frutos de uma concepção incomum que configura uma
irmandade para com os humanos, mas ao mesmo tempo estabelece uma diferença e suposta
superioridade. Ao serem relembradas, estas figuras de primeiro xamã ou de Cristo, oferecem
um exemplo a ser seguido por nós, seus descendentes. O filho primogênito de Omama é tido
também como o primeiro xamã. É quem inaugura uma sabedoria aliada a escuta das palavras
de Omama, expressas pela voz dos Xapiri, e entoada a todos pela atividade dos xamãs. Segundo
Kopenawa, Omama disse ao filho estas palavras:
Com estes espíritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais
numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos e as onças venham
devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças
de xawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos.
Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua.
Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe.
Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos trovões. Impeça o
ser tatu-canastra Wakari de cortar as raízes das árvores e o ser do vendaval
Yariporari de vir flecha-las e derrubá-las!”. Essas foram as palavras que
Omama deu ao filho. Por isso, até hoje, os xamãs continuam defendendo os
seus e a floresta (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 85-86).
Thich Nhat Hanh, carinhosamente chamado de Thay, é mais um entre tantos de nossos
contemporâneos que devemos ouvir carinhosa e atentamente. Monge vietnamita, foi obrigado
a viver no Ocidente devido ao fato de que suas ideias acerca da prática da não-violência não
foram aceitas e compreendidas pelos líderes de seu próprio país. Como refugiado, ele se engaja
no sentido profundo do que significa a busca por um senso de casa, ou do que, em língua
portuguesa, poderia ser compreendido como lar, e todos os seus desdobramentos.
Admirado por Martin Luther king e Thomas Merton, o Mestre Zen lidera o Plum
Village, uma comunidade espiritual na França que iniciou como uma pequena fazenda rural e
hoje é o maior e mais ativo mosteiro budista do Ocidente. Conta com mais de 200 monásticos
residentes e até 8.000 visitantes todos os anos, que vêm de todo o mundo para aprender
meditação, ou mindfulness.
Em suas falas lentas, sempre acompanhadas de um leve sorriso, Thay encanta pela
simplicidade com que consegue tocar conteúdos profundos. Isso é o que relata Odette Lara no
prefácio do livro Para viver em paz: o milagre da mente alerta:
Este mérito também pode ser atribuído aos textos do livro que serão contemplados neste
tópico. Um livro que integra lendas e contos folclóricos com a própria história do Vietnã e
trabalha a transição de uma cultura baseada em valores matriarcais para uma outra pautada em
valores patriarcais (HANH, 2009, p.11).
Importante ressaltar que se trata de uma escrita contemporânea. Uma reescrita a que o
Thich Nhat Hanh se propõe, com a clara intenção de propagar um novo modo de olhar e sentir
70
O Príncipe Dragão
Há muito tempo, quando a terra e o céu ainda estavam cobertos pelas trevas,
um grande pássaro com asas como cortinas da noite veio pousar na fria terra.
Ele ficou imóvel durante milhões de anos até que, finalmente, pôs dois ovos
enormes – um vermelho e outro marfim. Fortes rajadas de vento partiram de
suas asas majestosas e sacudiram céu e terra quando ele voou de volta para as
profundezas do espaço.
Depois, o ovo marfim começou a irradiar uma luz suave e tênue e também
rachou. A casca se rompeu em vários pedaços e um cisne enorme e gracioso
emergiu e voou para o céu.
Cada pássaro seguiu seu próprio rumo ao redor da terra. Uma luz suave e
morna fluía com brandura do cisne selvagem. As asas flamejantes do corvo
dourado arremessavam ao espaço fagulhas de chamas brilhantes e ele
grasnava como um trovão. As fagulhas permaneceram suspensas no céu,
cintilando como diamantes. Por milhões de anos, trevas frias haviam reinado.
Agora esses pássaros fantásticos traziam o conforto da luz.
A quente casca vermelha do corvo explodiu em chamas que arderam por sete
anos. Rochas derreteram e viraram areia fina, criando um deserto vasto.
Vapores subiram do mar e formaram uma cobertura de nuvens que protegiam
a terra dos raios mais violentos do corvo. O céu deleitava-se com o rico aroma
que subia da terra recém-aquecida (HANH, 2009, p. 21-22).
O brilho da luz chegou ao 36º céu, onde muitas deusas viviam. A deusa mais
jovem e amável, Au Co, afastou uma cortina de nuvens e viu a terra rósea lá
em baixo, circundada por um halo de luz. Ela gritou: “Venham, minhas irmãs,
vamos nos transformar em pássaros Lac brancos e descer para explorar este
novo planeta”!
Quando o primeiro pássaro tocou a terra, fechou suas asas e reassumiu a forma
da deusa. As outras deusas fizeram o mesmo. A terra nunca havia vivenciado
algo tão agradável! As deusas riam e cantavam e, de mãos dadas, subiam e
desciam as encostas cor-de-rosa. A terra sob seus pés era fofa como flocos de
algodão. Quando chegaram a grande campina, começaram a dançar. Foi a
primeira dança na terra. Antes daquele momento, a dança só era conhecida no
36º céu. Depois de um tempo, Au Co se afastou das irmãs, ajoelhou-se para
examinar a terra perfumada mais de perto e pegou um punhado nas mãos.
Como era suave! Que perfume bom! As outras deusas pararam de dançar e
também pegaram punhados de terra rosa.
De repente, Au Co quis saber se o gosto da terra era tão bom como o perfume
e levou a mão à boca. Outra deusa gritou: “Au Co, não faça isso!”. Mas era
tarde demais. Au Co já havia engolido um pequeno punhado da terra doce. A
deusa que gritou se separou das outras e correu em direção a Au Co. Ela
segurou a mão da jovem deusa.
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“Au Co, sua tola! Receio que seu ato não possa mais ser corrigido. O nosso
reino é da forma, não do desejo”.
“Precisamos voltar antes que o corvo dourado desapareça!” gritou uma deusa.
Ela se inclinou levemente e transformou-se mais uma vez em pássaro Lac,
branco como a neve. As outras fizeram o mesmo. Enquanto voavam para o
céu, as suas asas pareciam se despedir arrependidas da encantadora terra.
A luz desapareceu com o corvo dourado, mas logo o cisne selvagem voltou.
A sua luz morna e branca era uma transformação refrescante dos raios
brilhantes a às vezes ardentes do corvo dourado. O primeiro dia na terra
terminava. Durou o tempo correspondente a sete dos nossos anos atuais.
Agora começava a primeira noite. Era uma noite agradável e suave, iluminada
pela luz tênue do cisne (HANH, 2009, p. 22-24).
A terra é agraciada com o toque de pés divinos, nunca havia sentido nada tão agradável,
talvez somente ali tenha se revelado o sentido do tato. Sentia a terra também, e era uma
experiência muito agradável. E houve a primeira dança fazendo nascer a alegria. Além disso, o
primeiro dia é marcado pela união de um ser divino com a terra, e não pela singularização de
seus elementos. Desta vez, não é o elemento divino que adentra a matéria, e sim a terra que
passa a habitar o corpo de uma deusa que, movida pela curiosidade, a experimenta e instaura o
paladar. Com essa imagem mitológica, o campo sensório se completa. Deusa e terra não podem
mais se separar, pois cada uma não é mais como era antes, e essa união consagra um todo nunca
antes imaginado. Porém, esse evento é seguido por um arrependimento, pois houve um
rompimento das regras.
Sob essa luz, Au Co voava freneticamente para frente e para trás, sem
conseguir juntar-se às suas irmãs. Suas asas estavam pesadas demais e, mesmo
se esforçando, não conseguia mais voltar ao 36º céu. Assustada e sozinha, ela
afundou de volta à terra. Retomou a sua forma de deusa e recostou-se em uma
encosta para chorar.
Por toda a noite, suas lágrimas formaram um longo rio que serpenteava em
direção à praia, onde desaguava no mar. Sob as ondas, várias criaturinhas –
camarões, caranguejos, peixes e ostras, provaram a nova corrente de água
perfumada com a terra cheirosa. Eles compartilharam a sua descoberta com o
Príncipe Dragão, filho do Imperador Dragão do Mar, que se transformou num
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peixinho para seguir a corrente doce rio acima em busca da sua fonte. Embora
ele nadasse rápido, a primeira noite na terra acabou antes que ele chegasse à
costa.
Quando o Príncipe Dragão pôs a cabeça para fora da água, viu o corvo
dourado. [...]. O príncipe saltou para o ar. Como o céu era suave, límpido e
imenso – redondo e azul como o próprio mar. [...]
Ele saltou para a costa e se transformou em um belo jovem com testa larga,
pernas longas e olhos que brilhavam como estrelas. Ia passeando pela costa e
admirando a beleza ao redor. [...]. Resoluto a encontrar a nascente do rio, ele
se voltou para segui-lo no interior. Quanto mais andava, mais se embevecia.
Musgos brilhantes trapejavam as margens do rio. Florzinhas douradas e lilases
brotavam do verte tapete de grama. Sob o oceano haviam muitos tipos de
algas, plantas, flores e corais estranhos e encantadores, mas ele nunca havia
visto formas e cores tão delicadas como estas. Ele achou que deveria ser grato
à água doce, porque nenhuma vegetação nem flores cresciam fora do alcance
do rio.
O Príncipe Dragão desceu o declive da montanha onde o rio fluía. [...]. Então,
ele parou abruptamente. Diante de si surgiu uma visão diferente de tudo que
havia encontrado. Uma jovem estava recostada a uma encosta coberta de
musgo.
Embora o seu rosto estivesse voltado para a rocha, ele pode perceber que ela
chorava. Despida, ela era mais bonita do que qualquer criatura viva que ele
havia visto. [...]. Era Au Co, obrigada a permanecer no mundo inferior por ter
provado a terra doce. Ela estava chorando desde o cair da noite, um espaço de
mais de dez anos para nós (HANH, 2009, p. 24-26).
A alegria dá lugar ao peso do desespero e depois a uma profunda tristeza que se propaga
no tempo. A deusa chora e cria um rio de água doce, algo que não existia ainda na terra. Então,
o sofrimento de Au Co faz a terra habitada, cria uma enorme diversidade de seres em suas cores
e belezas. Se não há lama, não há lótus – como diz Thich Nhat Hanh – e o príncipe se torna
grato à água doce por criar coisas tão belas e diferentes das do fundo do mar. Faz-se importante
ressaltar aqui, novamente, que junto com as plantas surge o inseto. Aqui personificado na figura
da borboleta, que não sabe que é diferente de uma flor. Afinal, o Príncipe Dragão avista Au Co.
Novamente um ser do mar e um ser da terra protagonizam o início da humanidade.
O Príncipe Dragão não deu outro passo. Ele estava enfeitiçado e falou:
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Assustada com a voz do príncipe, ela parou de chorar e olhou para cima. Seus
olhos se arregalaram de surpresa ao contemplar o nobre homem. Ela sentou e
enxugou os olhos com a mecha de cabelo. Olhando firme nos olhos dele, ela
respondeu:
O Príncipe Dragão disse: “A terra só fica verde e bonita quando é nutrida pela
água doce das suas lágrimas. Não há árvores nem flores crescendo perto da
água do mar. Parece que as plantas da terra não vicejam na água do mar.
Deixe-me fazer chuva com as lágrimas restantes para reabastecer o rio”.
Au Co não sabia o que era chuva. Mas, antes que ela perguntasse, o príncipe
desceu até um riacho que ainda escorria pela areia branca e já havia quase
desaguado totalmente no mar. Ele pegou um pouco da água nas mãos e deu
75
três goles. Quando voltou para onde estava, disse: “Sente ali. Umedecerei a
terra com essa água maravilhosa. Não grite até ver a chuva. Olhe para o
oceano. Se vir algo estranho, não se preocupe. Embora você seja uma deusa e
eu, um dragão, não há nada a temer entre nós”.
O príncipe trouxe a chuva para a existência a partir da água que brotava no corpo de Au
Co. Deusa e terra se entregam às águas, como se o frescor tamborilante das gotas selasse a
interligação entre elas. O corpo original do dragão também é revelado, e apesar da diferença
entre os dois enamorados, não há por que temer. É possível e salutar o convívio entre diferentes,
e nessa atmosfera de adoração e interligação a vida brota em abundante diversidade.
o retorno do príncipe marinho. A voz dele, suave como a primeira luz do sol
matutina, havia aquecido o seu coração (HANH, 2009, p. 30).
Foi a interligação do elemento divino com a terra que trouxe vida e animou a matéria.
Já não há mais só terra ou só deusa. Já não se sabe mais em que ponto termina uma e começa a
outra. Agora são uma só, Deusa Terra – mãe, e as águas que permeiam. Estas que se tornam
presentes não mais em decorrência do sofrimento. Agora a vida na terra é alimentada pelo poder
estrondoso do masculino que se curva e coopera, apaixonado pelo poder colorido do feminino.
Essas imagens poéticas demonstram que a terra e todos os seus habitantes compõem um
grandioso e magnifico todo, cuja manutenção da vida requer harmonia. A vida é o resultado de
uma complexa e sutil conjunção de fatores, os quais podem ser explicados hoje de forma
científica, aos moldes metodológicos ocidentais, a exemplo da teoria da Autopiese, de Varela
e Maturana.
No entanto, o entrelaçamento de tudo o que é vivo se mostra de forma simples e explícita
em muitas mitologias de origens de povos oriundos dos mais diversos pontos do planeta. Como
diz Mauro Buhler, “a beleza não precisa de desculpas, justificativas ou explicações” (2018, p.
98). O que nos emociona e nos integra possui muita força, tanto quanto a mais avançada das
equações ou a mais complexa formulação lógica. Davi Kopenawa e Thich Nath Hanh, com suas
palavras, nos ensinam não só a ver um outro mundo, mas a sentir e a tomar consciência do
contato que temos com a natureza, porque a ela pertencemos.
Nós costumamos falar sobre a necessidade de entrarmos em contanto com a natureza.
Não temos necessidade de entrar em contato com a natureza. Precisamos nos tornar
constantemente conscientes desse contato, que é algo dado, mas que nós fomos habituados a
não dar importância, tão somente negligenciamos cuidado e atenção.
Este “Inter-ser”, como nomeia o nosso monge, é algo dado também. Não tem origem e
não tem fim, pois permeia a própria condição de existência sem precisar da nossa vã consciência
para que esteja lá. A questão é que com nossa perda de consciência dessa qualidade do estar
vivo, perdemos o sentido do estar vivo. Seguimos sem rumo como Au Co, quando se vê presa
à força da gravidade da terra, com lamentos pungentes como dos tucanos, quando Yoasi nos
apresenta a morte como companheira. O dragão tem a oportunidade de ver a terra de fora e ver
sua totalidade, enxerga Au Co, a pessoa amada. Precisamos fazer esse exercício de ver de fora
e de experienciar de dentro. Sentindo o amor que perpassa o existir.
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Alguns dizem que existe uma natureza e muitas culturas. Outros, que existe uma
cultura e uma multinatureza. Posso afirmar, existem muitas compreensões de mundo e muitas
naturezas.
CONSIDERAÇÕES
Neste capítulo foi feito um panorama geral através das concepções que nos
fundamentam e que parecem ter guiado os feitos humanos ao longo do processo civilizatório.
Foram apontados avanços e retrocessos de nosso tempo, transmitidos de geração em geração
através de narrativas e seus significados, bem como de nossos modos de compreensão. Longe
de pretender esgotar as possibilidades de bibliografia e análises possíveis desse complexo
momento em que vivemos, tentei compreender ideias de cuidado que embasam nossas
percepções de mundo. O primeiro capítulo desta tese teve como objetivo aquecer nosso coração
para o que está por vir.
Iniciei pela definição de “Ser”, trazida por Tim Ingold, com o intuito de perceber o tom
de movimento inerente ao ser humano. Um ser que não pode ser definido, sem o risco de
incorrer em um reducionismo ou em uma fixação. Através da ideia de movimento, que não é
só constituinte do humano, mas de todos os seres, tentei estabelecer novos alicerces de
pensamento. Terei oportunidade de aprofundar um pouco mais no pensamento do referido autor
mais adiante.
No segundo momento, passei a analisar o tempo em que vivemos dando destaque para
a concepção de indivíduo que impera hoje, em contraste com a ideia de pessoa. Passando pelo
tom de melancolia que nos parece ser característico, e pela luta por direitos universais, bem
como pela urgência de mudanças conceituais e práticas que o momento exige.
Posteriormente, discorri sobre o mito de origem judaico-cristão e as mitologias
provenientes de outras matrizes culturais. Neste caminho, tentei ampliar nosso horizonte para
que algo novo possa emergir da crise atual. E o que parece é que o novo traz em si uma parcela
de resgate também. Como se puxando uma linha do passado pudéssemos almejar diferentes
trajetos, como um grito de liberdade, cordialidade, paz e, claro, cuidado.
No próximo capítulo tratarei deste cuidado, que precisa entranhar o cotidiano de forma
mais presente e pulsante. Nossos gestos expressos nos corpos, em nossas casas, a Terra como
casa, e em nossas crianças. A consciência de si, que se expande em direção ao outro através da
nossa humanidade comum. Consciência de empatia e semelhança.
78
Deixo aqui uma leve e ao mesmo tempo desconcertante provocação de Mauro Bühler:
Acredito que todos estamos em busca daquilo que realmente nos reúna. Espero
que seja na criação e não na destruição.
O ladrão que invade a casa sabe que é parte da família. Nem ele, nem você,
nem eu lembramos. Todos nós nos esquecemos que somos parte de uma
grande família.
Nos ocupamos com essa estranha forma de valor. Um valor através de coisas
e mais coisas.
Talvez os ladrões nos libertem dos malditos objetos que nos transformam em
coisas. Talvez o façam em nome de um valor mais original, igualmente afeito
ao amor e ao caos.
2 GESTOS DE CUIDADO
Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo, mas sobre as pequenas eu
sei menos (BARROS, 2010, p. 101)
É evidente que há somente uma substância, que é comum não somente a todos
os corpos, mas também a todas as almas e espíritos, e que ela não é outra coisa
senão Deus. A substância de onde vêm todos os corpos se chama matéria; a
substância de onde vem toda alma se chama razão ou espírito. E é evidente
que Deus é a razão de todos os espíritos e a matéria de todos os corpos
(DINANT apud COCCIA, 2018, p.9)
Neste capítulo, a ideia é discorrer sobre o cuidado cotidiano, cada passo, cada gesto,
como busca da experiência do sagrado na vida. Uma busca por valorizar a simplicidade, o
conhecido, o próximo, aquilo que nos traz identidade e, ao mesmo tempo, por acolher o que se
mostra diverso, inquietante, distante. Como cativar uma espécie de olhar carinhoso voltado para
si mesmo e se perceber como uma integralidade que sente, que se emociona e que precisa do
outro, das relações e da comunidade de vida para se manter vivo. Se perceber como um ser de
afetos. Não somos máquinas programadas para interagir sempre da mesma maneira ou de
maneira adequada. Também não podemos desejar que o mundo e a vida se apresentem para nós
como algo programado, controlado, previsível. A vida é uma bela surpresa, um milagre diário
de uma riqueza incalculável, mas o humano moderno anda tão apressadamente que perde os
detalhes. E os detalhes, ah! São o que mais importa.
Vindo desde as suas origens nas distantes montanhas e após passar por
inúmeros acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente
alcançou as areias do deserto. E do mesmo modo como vencera outras
barreiras, o rio tentou atravessar esta de agora, mas se deu conta de que mal
suas águas tocavam a areia, nela desapareciam.
Estava convicto, no entanto, de que fazia parte de seu destino cruzar aquele
deserto, embora não conseguisse fazê-lo. Então uma voz misteriosa, saída do
próprio deserto arenoso, sussurrou:
- O vento cruza o deserto, o mesmo pode fazer o rio...
O rio objetou estar se arremessando contra as areias, sendo assim absorvido,
enquanto o vento podia voar, conseguindo, dessa maneira, atravessar o
deserto.
- Arrojando-se com violência, como vem fazendo, não conseguirá cruzá-lo.
80
Essa história nos oferece uma linda metáfora da luta humana ao longo de uma vida.
Digo luta porque me parece que estamos em constante embate tentando manter nosso sentido
de segurança ligado a buscas por garantias, estabilidade, coerência e diferenciação. O rio, na
lenda, se considera uma identidade e insiste em se manter dentro dos parâmetros conhecidos,
ou seja, ser como sempre foi. Se relaciona com as características do ambiente como obstáculos
a serem transpostos, vencidos, deixados para trás. Age em sua majestade, até que encontra um
desafio maior que ele próprio e sente medo. Um medo atávico que fala da própria constituição
da ideia de indivíduo, da ideia de identidade, que se pretende algo fixo, perene e independente.
A partir de uma consciência de si acordada, de uma atenção voltada para como a
presença do outro ou do ambiente me afeta, ao tentar clarear que tipo de resposta emerge em
mim nas relações, se inicia um processo individual de responsabilização por meu próprio
81
A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A
publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa
(GALEANO, 2001, p.109)36.
Neste tópico dedicarei um olhar ao corpo como esfera fundante e principal cenário dos
gestos de cuidado. Terreno onde germina a singularidade e que ao mesmo tempo possibilita a
relação. Nosso corpo é uma porção de matéria animada. É uma coisa que pulsa e que se mantém
pulsando de uma determinada forma, sendo assim capaz de compor uma integralidade ao longo
de uma trajetória relacional. Neste sentido, não há nada que diferencie os corpos humanos de
todos os corpos de seres denominados por nós como “outros”.
A integralidade que compõe o corpo humano ganhou, ou gerou, uma certa configuração
capaz de se tornar consciente de sua própria existência e de pensar sobre ela, criando, assim,
uma série de teorias que pretendem explicar o mundo, os outros e a si mesmo. De maneira
35
“Constantia – isto significa posição e uma direção firmes, firmeza de posição, mas também
perseverança, consequência, resistência, intrepidez, coragem” (KÜNG, 1993, p. 133).
36
“A Iglesia dice: El cuerpo es una culpa. La ciencia dice. El cuerpo es una máquina. La publicidad
dice: El cuerpo es un negocio. El cuerpo Ldice: Yo soy una fiesta” (GALEANO, 2001, p.109).
82
resumida, pode-se afirmar que, historicamente, o modo que o humano encontrou para suas
investigações foi desenvolvido através de um movimento de separação e individualização de
organismos, sistemas, seres, transformando tudo em objetos passíveis de análise. As teorias que
prevaleceram e ganharam status de verdade foram se especializando cada vez mais, criando
nichos de saber tidos como independentes, a ponto de perdermos, como espécie, a noção de
nossa integralidade e interdependência.
Este tipo de explicação sobre o funcionamento do corpo humano se mostra de forma
alarmante quando usamos a metáfora da máquina para nos descrever37. Talvez esta seja uma
metáfora cabível em alguns sentidos, mas de maneira nenhuma esgota todas as possibilidades
e sutilezas do ser humano, nem de qualquer ser além-dos-humanos. Estou querendo chamar
atenção para o modo de pensar. Uma máquina consiste em uma série de mecanismos que
quando bem encaixados e ligados a uma fonte de energia, passa a funcionar. As ciências
médicas se utilizam de um vocabulário semelhante ao relacionado às maquinas para descrever
os corpos. O Conselho Federal de Medicina reconhece hoje 55 áreas de saber como
especialistas38, fora a odontologia e suas especialidades, que se caracteriza como outra área de
saber39. Porém, não se pode supor que um organismo seja o resultado de uma série de
mecanismos que quando bem encaixados e ligados a uma fonte de energia passam a funcionar.
O caminho que o conhecimento da complexidade dos organismos tomou foi o de dar
uma espécie de zoom às partes e de insinuar que elas podem “funcionar” de maneira isolada.
37
Na música “Cérebro Eletrônico” (1969), Gilberto Gil ressalta a primazia do corpo vivo sobre a
máquina. Cf. GILBERTO GIL, 1969. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Universal, 1969. Disponível em:
<http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4>. Acesso em 12 ago. 2019.
38
Dados da Demografia Médica no Brasil 2018. Cf.: <http://www.flip3d.com.br/web/temp_site/edicao-
97e48472142cfdd1cd5d5b5ca6831cf4.pdf>. Acesso em 11 nov. 2018.
39
“Há algum tempo, na república das ciências, reina uma etiqueta muito severa: essa regra de ouro não
escrita impõe uma, e apenas uma, disciplina apropriada para cada objeto de conhecimento e,
inversamente, afirma que cada disciplina tem um número definido e limitado de objetos e de questões
que convém conhecer. Como toda forma de disciplina, essa etiqueta também tem uma natureza e,
sobretudo, uma finalidade especificamente morais e não gnosiológicas: serve para limitar a vontade de
saber, castigar seus excessos, refreá-los não do exterior, mas do interior do sujeito. Aquilo a que se
chama especialismo compreende um trabalho sobre si, uma educação cognitiva e sentimental oculta ou,
no mais das vezes, esquecida e recalcada. Essa ascese cognitiva não tem nada de natural; pelo contrário,
é o resultado instável e incerto de longos e penosos esforços, o fruto envenenado de um exercício
espiritual praticado sobre si mesmo, de uma prolongada castração da própria curiosidade. O
especialismo não define um excesso de saber, mas uma renúncia consciente e voluntária ao saber dos
“outros”. Não é a expressão de uma curiosidade desmedida por um objeto, mas o respeito timorato e
escrupuloso de um tabu cognitivo. E todo convite a considerar os diversos conhecimentos humanos
como ontológica e categoricamente separados em disciplinas é a expressão de um verdadeiro kashrut
cognitivo: ‘Considerareis impuro todo conhecimento que não provier do mesmo objeto e do mesmo
método que o vosso’” (COCCIA, 2018, p. 111, grifos do autor).
83
Essa lógica não abarca as sutilezas e muito menos as dimensões que o cuidado com nossos
corpos pode ganhar caso a percepção desses atravessamentos sutis seja incorporada.
Assim, pode bem ser afirmado que nenhuma pessoa que se veja apenas como
um “caso” pode ser realmente tratada e nenhum médico pode ajudar um ser
humano a superar uma enfermidade grave ou leve, com a qual ele tem de lidar,
se esse médico empregar apenas o ser-capaz-de-fazer rotineiro de sua
especialidade40. Em ambas as perspectivas somos parceiros de um mundo-de-
vida (Lebenswelt) que nos carrega (GADAMER, 1993, p. 108).
40
Na obra Corpo e subjetividade na medicina, Liana Albernaz de Melo Bastos assinala que “o
pensamento hegemônico na medicina ocidental contemporânea, ao desconhecer outras dimensões que
não as do corpo maquínico, não permite aos médicos lidar com o sofrimento presente no adoecer” (2006,
p. 56).
41
Sobre essa quebra de dicotomias ver também: DECOLA, Philippe. Oltre natura e Cultura. Firenze,
Seid, 2014, p 19 e 21; _____. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 7-27.
84
Essa divisão que nos constitui como humanos pode ser observada e analisada por
múltiplos vieses. Porém, aqui, sigo a linha de destacá-la como um fenômeno que se desenvolveu
ao longo do processo do relacionar humano no mundo vivido, através das explicações que
emergiram pela experiência42. Tim se indaga sobre se essa diferenciação funcional entre pés e
mãos é algo inerente à espécie ou se pode ter sido construída ao longo do nosso caminho como
civilização. Neste ponto é preciso ressaltar que embora as mãos e os pés humanos sejam
característicos e, portanto, facilmente diferenciáveis dos pés e mãos dos nossos irmãos mais
próximos, como os macacos por exemplo, a função dada a estes membros varia de acordo com
a comunidade e o processo civilizatório pelo qual cada humano passa em sua comunidade de
vida. Ou seja, a habilidade dos pés e mãos na Índia ou na África são bem diferentes das dos
habitantes da Europa ou da América do Norte. É notório que as pessoas que vivem em
comunidades que mantêm vivas suas ligações com a terra conservam em seus pés habilidades
que foram perdidas por pessoas que cresceram em regiões mais urbanizadas e desenvolvidas
cientificamente.
Ao que parece, a forma como o trato com seu próprio corpo ganha contornos de
costumes de vida embasados em crenças que são traduzidas pelo gestual e acabam sendo
tomadas como dadas, inerentes ao mundo. Porém, na verdade seriam criações de uma
determinada forma de lidar e habitar o mundo, no mundo, com o mundo.
42
“Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo
ou meu ‘psiquismo’, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como simples objeto da
biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que
sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo
sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é constituído
sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência em rigor, apreciar exatamente seu sentido
e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão
segunda” (MERLEAU-PONTY,1999, p. 3).
85
Ingold faz uma detalhada análise de como algumas tecnologias modernas 43 foram aos
poucos transformando nossa relação e consciência corporal – espacial e temporal. Inicia falando
sobre o advento dos calçados, que podem ser compreendidos como a primeira camada de
tecnologia que instaura, no campo perceptivo, uma cisão entre o humano e a terra. Passamos,
como civilização, a não ter mais contato tátil com o chão através de nossos pés. Esta simples
mudança de hábito parece ter causado uma revolução no nosso modo de habitar.
Neste ponto, peço licença para apresentar um relato pessoal. Após minha primeira
leitura do terceiro capítulo da obra supracitada de Ingold (2011, p.70-94) tive a oportunidade
de ir ao Parque Estadual do Ibitipoca em Minas Gerais. Trata-se de uma reserva com uma
vegetação caracterizada como campos rupestres, repleta de cachoeiras onde o chão é formado
de quartzito – o que corresponde sensorialmente a pequenas pedrinhas pinicantes. O fato é que
resolvi fazer minha longa caminhada descalça e sugeri que meu companheiro, no passeio,
também o fizesse. Andamos o dia todo por diferentes tipos de superfícies e temperaturas.
Ao final da caminhada, já com os pés doloridos, resolvemos colocar nossos tênis
modernamente confeccionados para o conforto. Imediatamente percebi que a velocidade das
passadas se alterou completamente. Esta percepção me causou espanto. Meu companheiro
concluiu: “o cuidado mudou!”. Neste momento, nos demos conta de que enquanto
caminhávamos com os pés em contato com o chão todo nosso sistema sensorial ganhou uma
qualidade e atenção mais lenta e detalhista. Os passos eram mais cuidadosos, olhávamos para
o solo e por isso notávamos pequenas flores, pedras, cores e texturas que, ao colocarmos os
sapatos, perdemos de perspectiva. Calçados, passamos a olhar mais longe enquanto
caminhávamos. Toda a configuração do “se colocar ereto” foi alterada – todos os sentidos, o
equilíbrio, as sensações térmicas. Houve uma nova dinâmica perceptiva que se revelou
primeiramente como uma experiência de conexão direta no mundo e, posteriormente, como
uma outra forma de conexão. O que estou chamando de conexão direta com o mundo se iniciou
a partir do contato tátil dos meus pés com a terra, mas o espantoso foi que todos os outros
sentidos “acompanharam” o tato, formaram uma dinâmica de equilíbrio diferente44. Duas
43
Faz-se interessante ressaltar que cada nova tecnologia criada tem como fundo o objetivo de marcar
um certo status social do usuário, e que com o tempo o advento se populariza trazendo, então, a
“necessidade” de que novas tecnologias demarcadoras de diferenças sejam criadas.
44
O desenrolar da vida/obra de Lygia Clark propõe uma forma de conhecimento interior através da
interação com objetos. Nessa interação o espectador vai aos poucos sendo inserido no processo criativo
da artista, como participante que experiencia sua obra. Em um de seus últimos trabalhos, Lygia descreve
seu modo de criar/viver: “Sempre que inicio uma nova fase de meu trabalho, sinto todos os sintomas da
gravidez. E logo que a gestação começa, sofro verdadeiras perturbações físicas como a vertigem, por
exemplo, até o momento em que consigo afirmar meu novo espaço-tempo no mundo. Isso acontece na
medida em que chego ao ponto de identificar, reconhecer essa nova expressão de minha obra no meu
86
dia-a-dia. O Caminhando, por exemplo, só passou a ter sentido para mim quando, atravessando um
campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma totalidade no tempo, uma totalidade sendo,
se fazendo sob meus olhos, na imanência do momento. Era o momento a coisa decisiva. Outra vez,
contemplando a fumaça do meu cigarro, senti como se o tempo fizesse incessantemente seu próprio
caminho, se aniquilando e se refazendo em ritmo contínuo... Já experimentei isso no amor, nos meus
gestos. E cada vez que a expressão ‘caminhando’ surge na conversa, nasce em mim um verdadeiro
espaço e me integro no mundo. Sinto-me salva” (CLARK, 1999, p. 152).
45
“O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura
como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis,
mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1989, p.15).
87
Outra grande revolução tecnológica que atingiu nossos gestos corporais foi a
pavimentação dos caminhos e ruas nas cidades. Cobrimos nossos pés e depois uniformizamos
os trajetos. Podemos andar sem cuidado, olhando somente para a frente. Peito ereto, avante e
em marcha. Possibilitamos posturas corporais que são, na verdade, expressões de um sentir
dominador do mundo. Vivemos sobre camadas civilizatórias que, aos poucos, preencheram
com formas retas e lineares uma espacialidade que antes era curva e irregular.
A maneira como nossas cidades foram e são ainda construídas materializa um certo
modo de pensar profundamente ocidental. Nossos antepassados europeus linearizaram nossa
experiência de mundo. Organizaram os espaços de forma a concretizar na matéria uma ideia
88
que hoje, nós, nascidos neste ambiente, reconhecemos como realidade dada46. Nosso
pensamento se pretende reto, limpo, claro, mapeado, uniforme, como o projeto de nossas
cidades. Neste contexto, a grande maioria dos avanços tecnológicos que foram desenvolvidos
apontam para um ideal que alia conforto a atitudes de menos esforço e até a uma certa
imobilidade.
Ingold também ressalta uma diferença constitucional entre a experiência de caminhar
de um local ao outro e a experiência de ser transportado de um local ao outro. Argumenta que
o ato de caminhar inclui o caminho na experiência corporal. Enquanto ser transportado, enfatiza
o local de origem e o de destino, deixando o caminho dominado por uma passividade. Hoje
verifica-se uma grande redução na
experiência de pedestre, que talvez tenha atingido seu auge na atual era do
carro, é o culminar de uma tendência que já estava estabelecida com a
mecanização do pé através da bota, a proliferação da cadeira e o advento da
viagem orientada para um destino (INGOLD, 2011, p. 85-86).
Era uma vez um menino que nasceu para ser Rei. Quando ele era um
garotinho, todos o chamavam de “Pequeno Príncipe” e ele ganhou uma coroa
dourada para usar na cabeça.
Como todos os meninos, Pequeno Príncipe sempre gostava de explorar e
escalar, correr, pular e aventurar-se. O dia inteiro ele brincava nos jardins e na
floresta do palácio com seus amigos. Sua coroa brilhava na luz do sol e seus
amigos adoravam brincar perto dessa luz dourada.
Entretanto, um dia, quando ele estava brincando com seus amigos perto do
muro do palácio, um menino mais velho começou a ser violento na
brincadeira. De repente, empurrou o Pequeno Príncipe tão forte que ele caiu
da beirada e foi parar embaixo nas pedras. Ele quebrou muitos ossos – as duas
pernas e braços.
O Pequeno Príncipe foi salvo pelos empregados do palácio e carregado para o
seu quarto dentro do palácio. Os médicos enfaixaram suas pernas e braços
46
“O pensamento objetivo ignora o sujeito da percepção. Isso ocorre porque ele se dá o mundo
inteiramente pronto, como meio de todo acontecimento possível, e trata a percepção como um desses
acontecimentos. Por exemplo, o filósofo empirista considera um sujeito X prestes a perceber e procura
descrever aquilo que se passa: existem sensações que são estados ou maneiras de ser do sujeito e que, a
esse título, são verdadeiras coisas mentais. O sujeito perceptivo é o lugar dessas coisas, e o filósofo
descreve as sensações e seu substrato como se descreve a fauna de um país distante – sem perceber que
ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal como ele a vive, desmente tudo
o que ele diz da percepção em geral” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 279).
89
com fortes bandagens e, por um longo tempo, ele teve que ficar deitado na
cama esperando que seus ossos colassem. Na verdade, o Pequeno Príncipe
ficou deitado na cama por tanto tempo que quando seus ossos colaram, ele
tinha esquecido como andar. Ele só queria ficar deitado na cama, e apesar de
sua mãe e seu pai pedirem para ele levantar-se, ele nem mesmo queria tentar
se mover.
Certo dia, sua avó teve uma ideia. Ela levou seu espelho grande de mão para
o quarto do Pequeno Príncipe e sentou-o na cama. Então ela segurou o espelho
na frente dele. “Você nasceu para ser Rei”, ela disse, “e você tem uma coroa
dourada na sua cabeça que gosta de brilhar na luz do sol. Mas olhe para ela
agora!”.
O Pequeno Príncipe olhou no espelho e ficou chocado ao ver que a sua coroa
dourada, na luz escura de seu quarto, parecia embaçada e cinza. “Eu tenho que
ser levado lá fora”, ele falou, “para que minha coroa brilhe na luz do sol
novamente”.
“Não, você não precisa ser carregado”, respondeu a Avó, “você deve andar
sozinho até lá fora... mas se você me der a mão, eu o ajudarei a caminhar”.
O Pequeno Príncipe estendeu a mão e sua Avó o ajudou lentamente a mexer
suas pernas da cama para o chão. Juntos eles saíram do quarto escuro,
passaram pelos corredores e chegaram ao lado de fora, no jardim à luz do sol.
Levou muitas semanas antes que o Pequeno Príncipe pudesse correr e pular e
escalar e aventurar-se como antes, mas todo dia seus amigos vinham segurar
suas mãos e ajuda-lo a andar. Quanto mais ele passeava pelo jardim, mais
dourada sua coroa brilhada na luz do sol. Logo ele estava brincando todo dia
como antes. Sua Avó sentava-se num canto do palácio e observava ele com os
amigos. Ela estava muito orgulhosa de seu neto, o Pequeno Príncipe, que sabia
que tinha nascido para ser Rei! (PERROW, 2008, p. 267-268).
Selecionei este conto infantil para ilustrar as percepções sensoriais imersas no mundo.
Acredito que nele estejam contidos alguns apontamentos significativos sobre como precisamos
viver a partir de uma percepção de nossa integralidade e permeabilidade. Trata-se nitidamente
de um conto aos moldes dos antigos contos de fadas provenientes da Europa. Porém, é um conto
atual, escrito como uma história pedagógica para uma criança que tinha sofrido um abuso, ainda
enquanto pequena e estava vivenciando as consequências deste trauma. Então, apesar de
considerar que a narrativa traz a ideia de uma superioridade humana individualista 47 – pois o
protagonista é um menino que tinha nascido para ser rei – percebo outros detalhes que podem
ser ressaltados e endossam meu argumento sobre a importância da experiência corporal para o
desenvolvimento do intelecto como forças indissociáveis.
Entendo que quanto mais o menino brinca – corre, pula, escala, explora – mais sua coroa
brilha ao sol, mais a luz da razão se desenvolve e, de forma simultânea, mais vivo e alegre o
menino se sente. Acolhido e interagindo de forma espontânea, ele cresce e se sente mesmo
47
Sobre a questão da excepcionalidade que acompanhou a ideia de superioridade: Cf. KOHN, Eduardo.
Comment pensent les forêtes. 2 ed, Le Kremlin-Bicêtre: Zenes sensibles, 2017.
90
nascido para ser rei. Porém, a partir do momento em que fica imobilizado, fechado em um
quarto escuro por um longo tempo, sua coroa perde o viço e ele se esquece de como andar. No
desenrolar da história, pela intervenção da avó, ou seja, da ancestralidade, fica claro que o
menino precisa passar por um reconhecimento de si – usando um espelho – para que a coroa
volte a brilhar. Não era a coroa que precisava ser colocada ao sol. Era o menino que precisava
retornar ao movimento, um movimento próprio. Ele mesmo tem que se engajar novamente,
com intensão de busca pelo sol. Somente assim é possível reencontrar sua alegria e brilho, aqui,
como oriundos de sua integralidade.
“Trata-se quase de um truísmo dizer que não percebemos com os olhos, os ouvidos ou
a superfície da pele, mas com o corpo todo” (INGOLD, 2011, p. 87). Ou, nas palavras de Lygia
Clark: “Toda minha visão não é puramente ótica, mas está visceralmente ligada à minha
vivência do sentir, não somente no sentido imediato, mas, mais ainda, no sentido profundo que
não se sabe onde está a sua origem” (1998, p. 111). Entretanto, a maneira como atualmente
costuma-se explicar os modos de percepção dá a entender que processos sensórios acontecem
de forma desconexa e até mesmo hierarquizada, como se quando um sentido estivesse desperto
os outros ficassem desligados. Ingold (2000) demonstra a interação entre os corpos e o mundo,
através da percepção dos sentidos, de um modo diferente. Usando o exemplo dos alertas
colocados diante de uma linha de trem, em que se diz: “pare, olhe e escute”, o autor discorre
sobre como este alerta não corresponde ao que de fato acontece com o corpo ao se deparar com
um trem em sua direção. Argumenta que o ato de “ver” e “ouvir” é o que de fato se faz: é todo
o corpo que percebe e isto gera uma ação integrada. Não somos um conjunto unitário isolado
do mundo. Estamos absolutamente entrelaçados no mundo.
48
“I do mean to suggest, however, that the way in which they are posed bears the imprint of a certain
way of imagining the human subject – namely, as a seat of awareness, bounded by the skin, and set over
against the world – that is deeply sedimented in the Western tradition of thought. The problem of
perception, thus, is one of how anything can be translated or ‘cross over’ from the outside to the inside,
from the macrocosm of the world to the microcosm of the mind. This is why visual and aural perception
are usually described, in the writings of philosophers and psychologists, as processes of seeing and
hearing” (INGOLD, 2000, p. 243).
91
O que acontece é que um sentido se alia aos outros, mesmo que em alguns momentos,
para nossa consciência, aconteça uma dinâmica descrita pela Teoria da Gestalt como “figura e
fundo”49. Meu ponto é que, mesmo quando não percebemos conscientemente algo, existe uma
ampla conversão de forças, sentidos e interligações atuando em nós e através de nós. Como
ressalta Ingold, “[...] por trás da descoberta, visual ou auditiva, de um mundo já criado lá reside
um nível de percepção pré-objetivo mais profundo, um nível em que a consciência sensorial
que governa como em uma cúspide do próprio movimento do vir-a-ser do mundo”50 (2000, p.
245).
A partir dessas considerações, pode-se compreender que nossos sentidos funcionam
como um grande sistema, um colaborando com o outro através de dinâmicas de movimento e
equilíbrio de forma a estruturar nosso modo de estar vivo51. Porém, em contrapartida, é no corpo
que se inserem as disciplinas e a força dos padrões socialmente aceitos. Vivemos um momento
de pleno debate social das políticas sobre o corpo, sobre os desejos e a formação da identidade
legitimada pelas leis, sejam elas dos homens ou de Deus.
As mulheres determinam: “meu corpo, minhas regras!”. Os grupos LGBTQ+ encontram
cada vez mais espaço social para expressar sua existência. Os pedagogos e profissionais
envolvidos com a infância clamam pelo brincar livre. O povo negro reconstrói uma estética que
legitima sua beleza e afirma seu lugar de existência. Os povos indígenas se unem em gritos de
guerra defendendo suas tradições. Pessoas de múltiplas tradições e origens abandonam suas
vidas de robô nas cidades em busca de um retorno ao que é importante... E contra todas essas
vozes emerge uma corrente tradicional fundamentalista que ainda tenta controlar e até mesmo
combater as intempéries das “novas” ideias e práticas corporais. Vivemos um tempo violento,
49
“Na relação figura/fundo, a figura tem pregnância, brilho, clareza, vivacidade, e se destaca de um
fundo difuso e amorfo. O fundo diz respeito ao campo perceptual, isto é, a tudo que é relativo ao
organismo e ao meio ambiente. O significado da figura é sempre dado pela relação contextual com o
fundo” (D’ACRI, G.; LIMA, P.; ORGLER, S, 2007, p. 112).
50
“[...] behind the discovery, whether visual or auditory, of a world already made there lies a deeper,
pre-objective level of perception, a level at which sensory awareness rides on the cusp of the very
movement of the world’s coming-into-being (INGOLD, 2000, p. 245).
51
Acredito que este é um ponto do trabalho realizado por Ingold, a saber, uma investigação
fenomenológica sobre a percepção incluida no ambiente, poderia ser muito aprofundada e relacionada
inclusive com outras teorias pouco exploradas academicamente. Destaco aqui o trabalho de Rudolf
Steiner, intitulado Os doze sentidos e os sete processos vitais (1997), no qual discorre sobre doze
sentidos, sete a mais, portanto, do que os reconhecidos pela ciência comum. Dentre estes doze, estariam
inclidos o movimento e o equilíbrio como sentidos sensório perceptivos de nosso corpo. Infelizmente,
o aprofundamento nessa articulação abriria campo para uma outra tese, em virtude do tamanho e
complexidade argumentativa da imaginada tarefa. Destaco aqui apenas como uma articulação possivel.
92
e a violência se mostra no corpo e nas doutrinas sobre o corpo. Porém, que corpo é esse? Essa
é minha pergunta inquietante. Um corpo moribundo mecânico, um corpo vibrante, vivo?
Gadamer, ao investigar o caráter oculto da saúde dentro do âmbito da medicina, aponta
para uma compreensão interessante:
Para que a esfera organísmica dessa corporalidade vibráril seja resgatada, faz-se
necessário compreender o corpo como espaço da justa medida, do equilíbrio. Lugar da busca
pelo que é suficiente, seu autolimite. Um corpo como o território da experiência com o que se
diz sagrado, mas também com o que se diz profano. O ponto da integração entre o profundo e
denso com o leve e sutil em movimento. É necessário abarcar a esfera dos sentidos que nos
capacitam a perceber a nós mesmos, o outro e as ideias de mundo.
Neste contexto, a respiração, como exercício de relação olfativa, transforma o distante
em próximo, dita o pulsar da vida. “Respirar significa estar imerso num meio que nos penetra
com a mesma intensidade com que nós o penetramos” (COCCIA, 2018, p. 17) – este penetrar
purifica e nutre. A digestão, e todas as experiências ligadas ao sabor, provocam uma verdadeira
metamorfose transformando o que é considerado proveniente de fora, em nós mesmos – purifica
e nutre. Somos um conjunto de ossos, tecidos, fluidos e ritmos. Somos um conjunto de
incontáveis outros seres que nos habitam. Um emaranhado52 que quando unido cria um todo
singular, uma identidade. Uma integralidade que tem cheiros, movimento, voz, sente, pensa,
cria e encontra, se relaciona, constrói uma trajetória de vida que inclui uma série de pequenas
mortes e renascimentos.
52
A ideia em Tim Ingold é de que o nosso ambiente é um “domínio de emaranhamentos” (2015, p. 120-
121).
93
Não sei se serei uma conformista, mas acho que, desde que o mundo é mundo,
o homem não mudou nem mudará. Ele existe na base das polaridades e só
funciona em relação a elas. Se há injustiça, haverá a justiça, a fome, a bonança,
etc. Como querem eles suprimir esta realidade que é o próprio homem? E se
chegarem a fazê-lo onde botaria o homem toda sua agressividade? Isto é o
lado imediato da vida e deve ser respeitado pois é dentro disto que se
estabelece o equilíbrio (CLARK, 1998, p. 144).
Pois nossos primeiros antepassados não deram passos largos sobre a terra com
botas pesadas, mas caminharam sobre ela com leveza, com destreza e,
principalmente, com os pés descalços (INGOLD, 2015, p.94)
53
Do verbo to hold: sustentar, conter, dar um suporte. Cf. MELLO, J. O ser e o viver: uma visão da
obra de Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, p. 33.
94
Aparecida Vilaça, no livro Paletó e eu: memórias de meu pai indígena (2018), relata
como a esfera do cuidado, embalada pela intimidade física, acontece entre os Wari’ – povo por
ela pesquisado, povo por ela vivido. Explicando que o tema da sexualidade é tratado por eles
de forma bem livre e espontânea, afirma que tudo sobre o corpo é experimentado de forma
pública. Eles mostram uns aos outros atos que a nós, ditos civilizados, são interditados pela
força da aculturação e da educação normativa, tal como o pum, o arroto e a meleca. Não
consideram suas necessidades fisiológicas como “defeito da máquina”. A partir disso, a autora
nos oferece o seguinte relato/reflexão:
Catar piolho é uma forma de conversa e não precisa pedir licença; a cabeça do
outro é sempre franqueável. No início, sofri com a falta de piolhos, porque tão
logo alguém começava a mexer na minha cabeça, desinteressava-se. Um dia
fui surpreendida pelo interesse de uma mulher ao finalmente encontrar em
mim um piolho e me tornei uma participante legítima dessa conversa muda,
pelo corpo. Tenho duas lindas fotos de meus filhos. Em uma delas, Francisco,
com seus quatorze anos, de camiseta azul e calça comprida, tem a cabeça
deitada em um grande saco cheio de castanha, sobre um estrado de paxiúba, e
um livro fechado nas mãos. Ao redor de sua cabeça estavam a avó To’o, a tia
Ja e uma menininha, mexendo atentamente em seus cabelos à cata de piolhos.
Ele tem os olhos semicerrados e um sorriso. Na outra foto está André, com
uns cinco anos, vestido com uma camisa listrada supercolorida e uma calça
vermelha. Está com a cabeça deitada no colo de uma moça, sentada sobre um
estrado de paxiúba, que mexe em seus cabelos. Tem na boca uma grande
carambola amarela, que segura com as mãos.
Essas lembranças subitamente me remetem a um contexto completamente
diferente, muitos anos depois, quando me dei conta de que o acesso não
mediado por palavras à cabeça dos outros era de fato uma deliciosa
particularidade dos Wari’. Estava em uma casa de massagem em Siem Riep,
no Camboja, que se chamava Lemon Grass (Capim-Limão), onde nos serviam
o chá dessa planta enquanto esperávamos. O povo daquele país, especialmente
os habitantes das montanhas, me lembravam os Wari’, por seus traços físicos
e suas casas cobertas de palha, e volta e meia me via pensando neles, e em
palavras em sua língua, como se pudesse me fazer entender usando-as ali.
Depois de já viciada em foot massage, decidi fazer uma massagem de corpo,
que corria maravilhosa como as outras, quando fui surpreendida pela pergunta,
em inglês: “Posso tocar sua cabeça?”. Sim, por favor (VILAÇA, 2018, p. 124-
125).
Encontra-se aí uma poética dos corpos que conversam sem palavras e que comungam
de uma linguagem própria sedimentada na intimidade. Nos espaços abertos, onde compartilhar
os toques, as dores, os odores, os bichinhos, é uma forma de irmandade cotidiana e de pertença.
Para nós, modernos, pode parecer loucura uma cabeça só ser interessante quando é habitada por
piolhos. Nós, movidos por um princípio higienista, desenvolvemos tecnologias que acabaram
por apartar do cotidiano a relação com seres ditos peçonhentos/nojentos.
95
Logicamente, esse movimento visa a saúde, e não estou aqui pregando uma volta aos
piolhos, porém, talvez esteja, em certo sentido. O conceito de saúde que impera em nossa
sociedade, que visa a esterilidade, sem dúvida contribuiu para o funcionamento e duração de
nossos corpos como organismos54. Haja vista o aumento da expectativa de vida em todo o
mundo civilizado. Porém, gostaria de contribuir com uma reflexão a partir do que se perdeu
com este modo de ser moderno. Quero apontar para o que este conceito de saúde deixou de
considerar. Assim como todo remédio tem seu efeito colateral, me parece que em nível social
certos adventos tecnológicos afetaram colateralmente nossos gestos de cuidado como
mamíferos relacionais sem que nos déssemos conta.
Resgato aqui uma reflexão que já surgiu em minha dissertação. Pedi para que algumas
mulheres me relatassem um momento quando, na interação com seus filhos, sentiram uma
espécie de conexão especial. Recebi o seguinte testemunho:
Esses dias, M. teve uma infestação de piolhos e eu decidi não usar veneno e ir
catando até acabar... Catando as lêndeas, eu ia tocando a cabecinha dela,
sentindo cada curva, cada pedacinho com a ponta dos meus dedos, cheirava o
cabelo, via os fios dourados contra a luz do Sol... e imediatamente me veio a
lembrança tátil da cabeça dela dentro de mim, saindo, e o cheiro rápido de
pouco vérnix que eu senti dela ao nascer... foi tão lindo que chorei (D.
12/2014) (GUIMARÃES, 2016, p. 181).
A potência que se revela após uma mãe decidir prestar cuidados amorosos a
uma criança com piolhos fez pensar sobre a quantidade de carinhos que foram
desperdiçados com o advento dos remédios para matar e controlar as
infestações. Em todos os carinhos desperdiçados com o advento de
antitérmicos que desobrigaram as mães e os pais de vigiar a febre fazendo
compressas de álcool nas articulações para controlar a temperatura. Fez pensar
nos bolos que deixaram de ser batidos à mão. Fez pensar na quantidade de
memórias afetivas que não serão criadas por essa geração moderna de crianças
conectadas mais na televisão, na internet, nos joguinhos, etc. do que em
interações afetivo-sociais (GUIMARÃES, 2016, p. 182).
Hoje, após o mergulho pelo pensamento de Tim Ingold, percebo que neste relato de mãe
contém algumas outras preciosidades. Consigo perceber que através da escolha de um gesto de
cuidado comandado pelo tato, ela pode fazer emergir uma sinergia entre quase todos os seus
sentidos; a oportunidade do toque levou ao despertar do olfato e da visão dos detalhes inundados
54
Cf. VASCONCELOS, 2005, p. 19.
96
pela luz do Sol, que sincronicamente levaram ao resgate de uma memória. Um simples gesto
fez presente uma conexão ampla de um com outro – mãe e filha –, do perto e do distante – o
reflexo do sol nos cabelos da menina –, do presente com o passado – resgate das memórias do
nascimento da filha –, e enfim, com o futuro – certamente foi criada uma experiência
memorável no corpo desta criança.
Trata-se de um relato que deflagra um momento de convergência, de imersão, que em
um segundo traz a percepção da união dos eventos que são costumeiramente descritos
separadamente – imanência. E, nesse caso em particular, não posso deixar de destacar a
presença de um inseto que, como já foi dito antes, parece exercer uma função de elemento de
ligação entre as espécies. Além das abelhas polinizadoras e dos mamíferos catadores de
bichinhos uns nos outros, ressalto também a imagem do passarinho que pousa no lombo do boi
para se alimentar de seus carrapatos, além das moscas55 que usam a pele de outros animais
como útero etc. Ao eliminarmos os insetos e os microrganismos de nosso cotidiano,
eliminamos também a percepção sensória de nossa interdependência como seres-no-mundo.
Finalizo este tópico sobre um certo aglomerado de histórias que se inserem em nossos
corpos com uma carta/poema de Lygia Clark:
A Miguel Tristão.
Era uma vez, vezes existem aos milhares, podendo ser ontem, há mil anos
atrás ou o momento que falo na história. História de quê? É a história sem
história. É a história do vazio, tudo pode acontecer. Havia um homem, homens
existem aos milhares, podendo ser eu, você, o outro. É a história, história de
quê? Já existe o homem embora seja qualquer um. Ele pensa. Ele pensa. Pensa
o quê? Qualquer coisa, pois existe a história, história de quê? De um homem
que pensa. Pensa o quê? Só você sabe, procure pensar como este homem
pensaria. Ele sai, sai de onde? De qualquer parte, o mundo é vasto nos seus
espaços.
55
“Bem-aventurada a pequena criatura que sempre permanece no seio que a criou; ó tu, mosca feliz, que
saltas interiormente ainda mesmo nas núpcias: o ventre é tudo” (RILKE, 2013, p. 71).
97
história, história de quê? Qualquer história com qualquer homem que pensa
qualquer coisa e vai a qualquer lugar. Este homem vê, vê o quê? O mundo é
vasto dentro do seu tempo.
Ele pode ver o que você está vendo, ou qualquer coisa que o homem viu há
dois mil anos ou ainda o que o homem verá a um século. Escute, é a história,
história de quê? De qualquer homem, em qualquer época, que pensa qualquer
coisa e vai a alguma parte e vê alguma coisa. Escute, é a história, este homem
sente coisas, o quê? Qualquer coisa que você já possa ter sentido ou sente
neste instante. Escute, é a história, ela não pode determinar o que ele sente,
pois, a história não tem história. É a história do anonimato sem herói, pode ser
a sua história ou a de outro qualquer. Já existe, pois, um homem embora possa
ser qualquer um, ele pensa qualquer coisa, ele sente uma das coisas que você
conhece, ele vai a alguma parte que talvez nem esteja dentro desta época.
Escute, é a história. História de quê? Do vazio que não pode ser preenchido
senão por você (1998, p. 161-162).
Ande como se estivesse beijando a terra com seus pés, como se estivesse
massageando a terra. As suas pegadas serão como marcas de um selo imperial
chamando o agora de volta ao aqui; para que a vida esteja presente; para que
o sangue traga a cor do amor ao seu rosto; para que as maravilhas da vida se
manifestem, e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria (HANH,
2018, p.57)
Nosso corpo é nossa primeira casa, porém a casa que me refiro agora é aquela habitada
por um corpo. Um lugar conhecido, onde os eventos mais íntimos acontecem. Um espaço
através do qual nós, humanos, nos reconhecemos e comungamos com os nossos. Lugar da
família, dos animais domésticos e de objetos, todos nossos. A casa é a encarnação mais concreta
da propriedade privada. É o sonho de conquista de qualquer cidadão comum: a casa própria –
com as parcelas quitadas, de preferência. Um lugar onde o elemento de posse se torna mais
notório. Neste sentido, ela se torna uma extensão organizadora de nosso corpo. Casa é onde a
gente mora. Morar é um ato, um verbo intransitivo. Independentemente do adjunto adverbial
que possa acompanhá-lo, todo mundo mora, habita56.
Roberto DaMatta fala que dentro do espaço íntimo das casas acontece um ciclo de
reciprocidade, um lugar que conserva valores diferentes do espaço público:
56
“Habitar, em contrapartida, é intransitivo: concerne à maneira como os habitantes, isoladamente e em
conjunto, produzem as suas próprias vidas, e como a vida, prossegue” (INGOLD, 2011, p. 34).
98
ordens, cada vez mais produtos atrelados normalmente a autocuidados, que também, muitas
vezes, são destinados a disfarçar odores.
No âmbito dos espaços compartilhados há um espaço reservado ao convívio. Nele se
encontram normalmente pelo menos um sofá posicionado diretamente à frente de uma enorme
tela de televisão, que são cada vez maiores mesmo que os tamanhos das salas sejam cada vez
menores. Logo ao lado, se couber, precisa haver uma mesa e algumas cadeiras para reunir
pessoas em momentos festivos de refeição. No dia a dia é cada vez mais comum se alimentar
sentado ao sofá enquanto se assiste alguma coisa na TV.
Há também um local reservado à preparação das refeições e seus múltiplos utensílios
domésticos. Geladeira e fogão são os mais comuns, seguidos de um micro-ondas – utensílios
básicos. Batedeira, multiprocessador, liquidificador, centrífuga... Lava-louças é um luxo.
Encontram-se também aparatos culinários: pratos, panelas e talheres diversos, copos, potes,
espumadeira, espátula de silicone, assadeiras e por aí vai. Em um armário guardam-se os
alimentos super industrializados. Existe também um espaço que é chamado de área de serviço,
onde fica uma máquina de lavar roupas, um tanque e alguma forma de varal. Em moradias
construídas até o final do século passado, é possível encontrar ali também um quarto chamado
“quarto de empregada”. Porém, nos apartamentos e casas mais modernos, este espaço foi
subtraído.
A partir desta breve e genérica descrição do que seria o espaço físico de uma casa,
gostaria de primeiramente chamar atenção para o fato de ela agrupar uma série de objetos e
utensílios com os quais nos relacionamos cotidianamente. Alguns destes objetos precisam ser
adquiridos para que haja um certo funcionamento da casa, como possibilidade de habitação,
outros marcam memórias, encontros, e transferem ao espaço um sentido estético decorativo que
incluem sinais de conforto e acolhimento. Então, em certa medida, quando alguém adentra o
espaço de sua própria casa, sua percepção corporal de expande e abarca a totalidade daquele
lugar que personifica em objetos um sentido de familiaridade, de repouso e relaxamento, de
retorno. É o lugar para onde se retorna ao final de um dia para adormecer. Para que este processo
aconteça é necessário que haja, no habitante, um sentimento de confiança e segurança neste
local.
Para além dos objetos, a casa pode ser também o espaço das relações mais íntimas. Ela
abriga os familiares. Pessoas, humanas e não-humanas, que por escolha ou por nascimento, o
universo físico e afetivo da existência é compartilhado. Estas múltiplas relações agregam um
sentido de pertencimento. Através da criação de hábitos no cotidiano relacional, um modo
próprio de ver e habitar o mundo vai sendo construído. É nesta dinâmica de entrelaçamentos
100
que nasce e cresce nossos hábitos de cuidado. A casa, assim como as relações, demanda uma
atenção, manutenção, toque, carinho. Neste microuniverso, espaços não visitados e sentimentos
não ditos vão gerando acúmulos desnecessários57.
Vou me deter à questão da casa por mais um instante. Este ideal de moradia descrito
acima atende a um comando moderno implícito que pode ser traduzido por um ditado popular
no Brasil. Costuma-se dizer: “quem casa quer casa”. Como em todo ditado, neste pode-se
destacar uma série de valores implícitos que são paulatinamente transformados em
comportamentos. O primeiro valor está atrelado à ideia de família nuclear composta por uma
parelha e seus filhos, cada vez menos numerosos. Então, quando um casal se forma58 torna-se
necessária a criação de uma nova moradia, e junto com isso vem a necessidade de que todos
aqueles objetos e utensílios que compõem uma casa sejam adquiridos.
O segundo valor que gostaria de destacar é que este novo núcleo, idealmente, irá se
prover de forma autônoma e irá viver longe de sua família de origem. Utilizo a palavra “longe”
aqui não como um atributo espacial, mas anímico, ou seja, mesmo que as pessoas morem perto
de seus familiares, o que é implicitamente passado pelo ditado é que esta nova célula precisa se
manter de forma independente. Ser independente financeiramente significa ser capaz de
comprar e manter sozinho tudo o que for necessário para sua sobrevivência, o que inclui se
alimentar, lavar roupas, pagar contas, fazer escolhas, cuidar dos filhos, entre outros.
O terceiro ponto é que este primado da independência não tem mais se aplicado somente
a um casal, mas a toda pessoa adulta, seja de qual gênero for. Ser adulto, a grosso modo, é ter
um trabalho que pague as contas, morar sozinho ou autonomamente, e não depender de
ninguém.
Não foi sem razão que evitei recorrer a autores que confirmassem as afirmações e
descrições acima. O objetivo era discorrer sobre o senso comum. Sobre um modo de viver que
leva a escolhas pautadas em comportamentos tidos como naturais, mas que na verdade são
muito recentes e estão trazendo sequelas de múltiplas ordens. Trata-se de mais uma vertente
pela qual é possível adentrar a questão do imperativo individual-capitalista moderno, ampliada
pela ideia de meritocracia. Pode-se citar que o sonho das classes mais privilegiadas vai mais
57
Certa vez, li em algum lugar que um grande percentual da poeira que varremos das casas é composta
por células mortas de nossos próprios corpos. Não tenho agora como verificar a veracidade desta
informação, e nem sinto necessidade. Trago aqui como uma imagem simbólica: nosso próprio corpo vai
se espalhando pelo chão, paredes e ar de nossas casas. Quando varridas, ajudam a compor o
macromundo...
58
Não importando o formato do casal na contemporaneidade, ou seja, independente de questões de
gênero e sexualidade.
101
59
Reforço que falo do projeto de vida do privilégio, que claramente também influencia os moradores da
periferia e das favelas. Esses, sem condições de viver esse modelo, compartilham quartos, comem juntos
e, financeiramente, até os idosos com suas aposentadorias acabam sendo os provedores da família. A
privacidade é uma exceção nessas comunidades.
60
Para saber mais sobre este conceito: <https://www.cohousing.org/node/5056>.
102
interdependência: expandir os ditames do EU-TU para o NÓS. Acredito que essa possibilidade
está ganhando forma na medida em que algumas narrativas que transcendem as separações as
quais estamos confinados emergem tanto no âmbito da ciência como no senso comum.
O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto
ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é
inesgotável. “Há um mundo”, ou “há o mundo”; dessa tese constante de minha
vida não posso nunca inteiramente dar razão (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
14).
61
“Hoje, com o processo de mundialização e de encontro de todas as culturas, observamos, como nunca
antes na história do pensamento, que a palavra grega ethos assume seu pleno sentido. Para os gregos,
ethos significava fundamentalmente a moradia humana, não em sua materialidade, mas em seu sentido
mais existencial, como aquela porção de natureza (physis) que reservamos para nós, para a organizarmos
e a cuidarmos de tal modo que se transforme em nosso habitat, o lugar onde “nos sentimos em casa”,
protegidos e vivendo em harmonia com todos que nela habitam, com os vizinhos e com a natureza
circundante” (BOFF, 2018, p. 119)
103
Tim Ingold dedica sua obra a trazer vida de volta aos pensamentos conceituais
antropológicos. Usa a imagem de um rio e afirma que não podemos mais nos contentar em
habitar as margens, mas nos perceber submersos no fluxo das águas (INGOLD, 2011, p. 41).
Neste processo, inicia investigando o conceito de produção, passando pelos conceitos de
história e habitação, até chegar ao conceito de linhas.
Constrói uma argumentação que passa pelos pensamentos de Marx, Engels e Sahlins,
os quais explicam a vida humana como um caráter finalístico, ou seja, como a primazia humana
de produção com base em um planejamento para um fim. Segundo Ingold, estes autores
diferenciavam o ser humano dos outros animais através do argumento de que os não-humanos
não trabalham em seu ambiente a fim de mudá-lo (INGOLD, 2011, p. 28). Marx e Sahlins
tentavam ligar diretamente a produção ao consumo, e debatiam sobre quem vinha primeiro. No
entanto, Marx aponta para o fato de que o trabalhador também se modifica através da
experiência da produção. A partir disto, Ingold destaca a qualidade de movimento atentivo da
produção de um ser consciente como um vir a ser, inerente ao ato de produzir – ato de trazer à
existência. Neste sentido, “a produção ‘deve ser entendida intransitivamente, não como uma
relação transitiva de imagem com objeto” (INGOLD, 2011, p. 29). Se não há uma
intencionalidade pré-existente a própria ação,
já não há qualquer motivo para restringir as fileiras dos produtores aos seres
humanos apenas. Produtores, tanto humanos como não humanos, não tanto
transformam o mundo, imprimindo seus projetos preconcebidos sobre o
substrato material da natureza, quanto fazem a sua parte dentro da
transformação de si mesmo no mundo. Crescendo no mundo, o mundo cresce
neles. E com isso, a questão acerca da produção dá lugar a outra, desta vez
acerca do sentido da história (INGOLD, 2011, p. 30).
Ademais, sendo certo de que nem todos os produtores são humanos, é fácil
inverter o argumento e mostrar como vários não humanos contribuem, em
ambientes específicos, não apenas para seu próprio crescimento e
104
Este processo evolucionário, conforme Ingold descreve, não cabe mais na teoria
evolucionista darwiniana que supõe a forma orgânica como preexistente aos processos que a
originaram. Ele enfatiza “a primazia do processo sobre o produto; da vida sobre as formas que
ela assume, sejam secretas (como imagem mental ou genótipo) ou abertas (como objeto
material, ou fenótipo) (INGOLD, 2011, p. 33). Isso transforma totalmente a maneira como a
ciência vem explicando a existência e nossas relações, pois ao voltarmos nossa atenção para o
processo de vida e de estar vivo, o que emerge é o puro movimento ou o puro mover-se
entrelaçado.
Significa antes essa imersão dos seres nas correntes do mundo da vida, sem a
qual atividades como concepção, construção e ocupação simplesmente não
poderiam acontecer. Conforme os indivíduos produzem suas vidas, declaram
Marx e Engels (1977:42), assim eles o são [...]. ‘Eu moro, você mora’ é
idêntico a ‘eu sou, você é’ (Heidegger, 1971:147) [...] ‘Apenas se formos
capazes de habitar, só então podemos construir’ (p.160) (INGOLD, 2011, p.
34).
virtual para o real” (INGOLD, 2011, p. 35, grifos do autor). Não há, como considerava
Heidegger, uma primazia da criação da mente humana sobre o ato de construir; o que há é a
existência enquanto habita, enquanto transforma e é transformada ao longo de seu percorrer no
mundo. Neste ponto, Ingold está falando de qualquer forma de existência:
Eu mesmo não me filiaria a uma divisão tão aguda entre humano e animal,
mundo e meio ambiente, ser e existência. Ao contrário, um dos meus objetivos
ao desenvolver a perspectiva da habitação era demonstrar que organismo-e-
meio-ambiente e ser-no-mundo oferecem pontos de partida para nosso
entendimento que são ontologicamente equivalentes, e dessa maneira unir as
abordagens da ecologia e da fenomenologia dentro de um único paradigma
[...] Tanto os seres humanos, quanto os não humanos, eu objetaria, realizam-
se habilmente dentro e através de seu entorno, empregando capacidades de
atenção e resposta que têm sido, pelo seu desenvolvimento, encaradas através
da prática e da experiência (INGOLD, 2011, p. 36).
Não há, então, como o humano se apartar do mundo para conhecê-lo, nem fisicamente
nem virtualmente. Estamos, como os animais, imersos no mundo. Ingold afirma que após ter
compreendido o processo de habitação a partir de Heidegger, passou a pensar sobre a teoria da
percepção a partir de James Gibson, e que dela obteve a compreensão de que a percepção se dá
fundamentalmente pelo movimento de um organismo inteiro enquanto percorre seu ambiente
(INGOLD, 2011, p. 37). Porém, este ambiente do qual Ingold fala não se trata de algo rígido,
pronto para ser percorrido por seres móveis. Trata-se do mundo todo, ele mesmo, em pleno
fluir:
Na busca por estabelecer uma sinergia entre ser e existir – habitar e ser habitado –
em/por um mundo que se move ao mesmo tempo em que é movido, que provoca movimento
ao mesmo tempo em que o movimento lhe é provocado, Tim Ingold chega ao pensamento de
Merleau-Ponty. Através de estudos fenomenológicos sobre a percepção, um amplo
aprofundamento sobre o que significa estar vivo, este autor chama atenção para o fato de que
existe um mundo, também vivo, a ser percebido, e que o processo mesmo da percepção se trata
de uma mistura. A conclusão de Merleau-Ponty, nas palavras de Ingold é:
106
[...] uma vez que o corpo vivo está primordial e irrevogavelmente costurado
no tecido do mundo, nossa percepção do mundo não é nem mais nem menos
do que a percepção do mundo de si mesmo – em e através de nós. Esta é só
mais uma maneira de dizer que o mundo habitado é sensiente [...]. Ser
sensiente [...] é abrir-se a um mundo, render-se ao seu abraço, e ressoar em
seu ser interior as suas iluminações e reverberações. Banhado na luz,
submerso no som e arrebatado em sentimento, o corpo sensiente, ao mesmo
tempo percebedor e produtor, traça caminhos do devir do mundo no curso
mesmo da contribuição para a sua contínua renovação” (INGOLD, 2011, p.
38, grifos do autor).
62
“Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que as linhas
segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de figa faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. É por isso que não se pode contar com um dualismo ou uma
dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p.
25-26).
107
Esta percepção do mundo como algo vivo e sensível pode mudar os nossos parâmetros
de cuidado na medida em que nos coloca como participantes e dependentes do ambiente que
nos cerca. Neste ponto introduzo o pensamento de Emanuele Coccia e sua proposta de uma
metafísica da mistura a partir da observação do modo de viver e provocar vida das plantas.
Trata-se de uma interessante argumentação que parte da descrição das plantas como os seres
mais aderidos ao mundo circundante. Ele parte do modo de vida dos vegetais para contemplar
o mundo em sua totalidade, um mundo que coincide com sua própria substância (COCCIA,
2018, p. 13).
Apontando para a primazia da vida como formadora do que chamamos mundo, Coccia
segue explicando sua teoria sobre a imersão de todos os seres e toma o exemplo das plantas
para quebrar a hierarquia com que costumamos classificar valorativamente os diferentes modos
de vida que habitam e vivificam nosso planeta. Segundo este autor, foi a partir do surgimento
das plantas e do impacto que elas foram capazes de produzir no clima do planeta, que a vida
em terra pôde se proliferar e se diversificar. Faz lindas descrições sobre a magia inerente ao
processo das transformações gasosas que, com o tempo, acabaram por gerar a nossa atmosfera
– mundo no qual estamos imersos e ao qual somos parte e conteúdo, graças ao que se
desenvolveu de forma explícita nos animais terrestres e que chamamos de respiração.
Essa identidade entre mundo e natureza está longe de ser banal. Pois natureza
designava não o que precede a atividade do espírito humano, nem o oposto da
cultura, mas o que permite a tudo nascer e devir, o princípio e a força
responsáveis pela gênese e pela transformação de todo e qualquer objeto,
coisa, entidade ou ideia que existe e existirá. Identificar natureza e cosmos
significa antes de tudo fazer da natureza não um princípio separado, mas
aquilo que se exprime em tudo o que é. Inversamente, o mundo não é o
conjunto lógico de todos os objetos, nem uma totalidade metafísica dos seres,
mas a força física que atravessa tudo o que se engendra e se transforma. Não
há nenhuma separação entre a matéria e o imaterial, a história e a física. Num
plano mais microscópico, a natureza é o que permite estar no mundo, e,
inversamente, tudo o que liga uma coisa ao mundo faz parte de sua natureza
[...]. Todo conhecimento cósmico é um ponto de vida (e não apenas um ponto
de vista), toda verdade é o mundo no espaço de mediação do vivente [...]. Para
conhecer o mundo é preciso escolher em que grau da vida, em que altura e a
partir de que forma se quer olhá-lo e, portanto, vivê-lo (COCCIA, 2018, p. 22-
25).
Isso porque toda verdade está ligada a toda outra verdade, assim como toda
coisa está ligada a toda outra coisa. Essa ligação, essa conspiração universal
das ideias, das verdades e das coisas, é, aliás, aquilo a que chamamos mundo:
63
Um exemplo bonito desse ser habitado pelo mundo encontramos no depoimento de Ailton Krenak,
no livro Encontros (2015). Perguntado se havia natureza nele em São Paulo, ele responde: “Ela existe
em cada uma das células do meu corpo. Ela existe em cada um dos pequenos, no ar que eu respiro,
naquelas plantinhas que estão ali no quintal, na chuva que cai, nos raios de sol que atravessam todos
esses concretos e cimentos e passam por este buraquinho da janela azul. Ela bate com a mesma força e
intensidade com que faz uma cachoeira lá no meio do Amazonas ou uma geleira no Alaska. Porque a
natureza é a vida mesmo. Não há natureza apenas num parque, num jardim” (KRENAK, 2015, p. 83).
109
o que atravessamos e o que nos atravessa a cada instante, cada vez que
respiramos. Se os conhecimentos querem permanecer mundanos,
conhecimentos e saberes deste mundo, deverão respeitar sua estrutura. No
mundo, tudo está misturado com tudo, nada está ontologicamente separado do
resto. O mesmo ocorre com os conhecimentos e com as ideias. No mar do
pensamento, tudo comunica com tudo, cada saber penetra e é penetrado por
todos os outros. Todo e qualquer objeto pode ser conhecido por toda e
qualquer disciplina; todo e qualquer conhecimento pode dar acesso a todo e
qualquer objeto (COCCIA, 2018, p. 115).
Neste sentido, não me parece mais o bastante afirmar que a Terra é um ser vivo e que
respira. Sinto necessidade, porque percebo em meu corpo e posso alcançar com as ideias, que
a Terra é a vida.
2.2.2 Moana
No início havia só o oceano, até que a ilha mãe emergiu: Te Fiti. Seu coração
continha o maior de todos os poderes. Podia até criar a vida. E Te Fiti
compartilhou com o mundo, mas com o tempo, alguns cobiçaram o coração
de Te Fiti, achando que quem o possuísse teria o poder da criação.
Então, um dia, o mais ousado de todos, atravessou o vasto oceano para pegá-
lo. Era o semideus do vento e do mar. Era um guerreiro, um trapaceiro. Um
ser transmorfo que podia mudar sua forma com o poder do seu anzol mágico.
Seu nome era Maui.
110
O desenrolar da trama já está inserido no início, quando poderíamos supor que se trata
de mais um conto infantil da Disney que fala de príncipes e princesas que salvam o mundo de
seres nefastos. Porém, considero que nesta história estão inseridas profundas transformações
sociais que já estão em curso aqui e ali, mas que ao serem reverberadas pela força de “formadora
de opinião” de escala global como o cinema americano, ganham status de uma nova verdade
sendo construída no senso comum.
Moana é a filha do chefe de uma tribo da Oceania. Sua comunidade vive em uma ilha
fértil protegida por recifes e aparentemente isolada do resto do mundo. Não fica claro em que
época exata a história se dá, mas definitivamente não é na atual.
Moana, ainda bem pequena, demonstra um encantamento em relação ao mar e o mar em
relação a ela. Uma das cenas mais bonitas acontece logo após a narração do mito. Moana,
fascinada pela história contada pela avó, despista seu pai e vai para a beira da praia. A água
começa, então, a brincar com ela. O mar se abre para recebê-la enquanto ela é atraída por
conchas que aparecem sempre um pouco mais adiante, até que uma pedra verde com uma
espiral gravada no centro é atraída, ou levada, até a mão da menina. Porém, subitamente a magia
é interrompida pelo Pai de Moana que chama por ela. As águas então a levam de volta à areia,
mas a menina acaba soltando a pequena pedra ao ser carregada pelo pai para longe da praia.
Como pai, protetor e carinhoso, busca evitar a todo custo que a menina ouça o chamado das
águas.
As cenas seguintes dão conta de explicar o modo de vida daquele povo na ilha enquanto
o chefe afirma que lá tem tudo o que precisam para viver, mas também demonstram o conflito
interno vivido por Moana enquanto vai crescendo dividida entre o dever de ser chefe e sua
fascinação pelo mar e pelas histórias contadas pela avó, anciã tida como louca.
Moana, agora adolescente, passa um tempo tentando se adequar às tarefas e desejos que
cabem a um chefe. Desenvolve uma capacidade de liderança e resolve uma série de problemas
111
espalhando generosidade. Seus dois grandes companheiros são um filhote de porco e um galo
franzino que come pedras e não se adequa às características que se espera de um frango.
A vida dos habitantes da ilha parecia se desenrolar muito bem, até que a colheita de
cocos começa a apodrecer e os pescadores não encontram mais peixes nas redondezas. Moana
sugere, então, que eles passem a pescar além dos recifes, em alto mar. Esta possibilidade cria
um conflito entre pai e filha. Ele relembra a regra máxima da ilha que proíbe qualquer um de
ultrapassar os limites que os protegem. Moana se cala inconformada diante da autoridade
paterna. Pensa que o pai não a compreende, como se fosse uma típica adolescente. Então,
acontece um diálogo com sua mãe, que pede para a garota compreender as atitudes do pai.
Conta que ele mesmo quando jovem tinha esse ímpeto curioso de cruzar os recifes, mas que no
dia que o fez foi surpreendido por uma terrível tempestade. Ondas gigantes levaram seu grande
amigo que o acompanhava na aventura, e o pai não conseguiu salvá-lo. Com uma fala doce, a
mãe explica que a dor da culpa pela morte do amigo fez com que o pai, chefe, tentasse proteger
a todos através da lei máxima de proibir a navegação, e declara: “Às vezes o que queremos ser
e o que queremos fazer simplesmente não é o nosso destino” (MOANA..., 2017).
Após um breve período de considerações internas, Moana e seu amigo porco são
tomados por um impulso, pegam uma pequena embarcação e tentam cruzar os recifes. Porém,
são arremessados ao fundo do mar por uma onda e são levados de volta à praia, sobrevivendo
somente com escoriações leves ao que poderia ter sido um grave acidente. O porco foge
correndo de medo e é a vez da avó, guardiã dos segredos da ilha, entrar em cena: “Não sei o
que aconteceu, mas não coloque a culpa no porco” (MOANA..., 2017). A menina se levanta
tentando esconder seu machucado, mas a avó o aponta. Moana pergunta se ela irá contar ao seu
pai e a avó diz: “Eu sou a mãe dele, não preciso contar nada” (MOANA..., 2017). Neste ponto,
uma outra dinâmica hierárquica é colocada. Existe uma sabedoria a qual os chefes da tribo não
têm acesso. Aliviada, a menina conclui que o pai está certo e que deve mesmo assumir a função
de chefe. A avó, provocativa, se encaminha para o mar e é cercada por arraias que parecem
dançar para ela. A menina questiona o porquê de a avó não tentar impedi-la. Mas a avó continua
brincando e dançando com os seres marinhos. Somente afirma que quando morrer vai voltar
como uma delas. Moana pergunta porque ela está agindo como maluca e a resposta é
maravilhosa: “Eu sou a louca da aldeia, este é meu trabalho” (MOANA..., 2017).
Após provocar o interesse da neta, a anciã mostra a ela o grande segredo que foi
escondido de todos da vila. As duas se encaminham até uma caverna onde se encontram
guardados grandes barcos. Esta memória Moana terá que resgatar sozinha conduzida pelo
próprio destino. No passado, os habitantes daquela ilha tinham sido grandes navegadores,
112
cruzavam os mares com coragem e destreza. Porém, após Maui – o semideus – ter roubado o
coração de Te Fiti e a escuridão ter começado a se espalhar, os chefes da tribo resolveram
esconder os barcos e se abrigar atrás dos recifes como medida de proteção. A avó afirma:
“Agora esquecemos de quem realmente somos e a escuridão continua se alastrando, espantando
os peixes e drenando a vida de ilha após ilha” (MOANA..., 2017). Neste momento a cena mostra
que a escuridão finalmente chegou à ilha em que elas viviam supostamente protegidas, e a anciã
emenda: “Mas um dia, alguém vai cruzar os recifes, achar Maui e restaurar o coração de Te
Fiti” (MOANA..., 2017). Então ela entrega a pequena pedra verde com uma espiral nas mãos
de Moana. Aquela que lhe havia sido entregue pelas águas quando pequenina. Com a pedra na
mão, a menina recebe do mar um carinho; consegue agora se comunicar com as águas e sua
missão fica clara: o oceano a havia escolhido para cruzar o mar e restaurar o coração de Te Fiti.
Moana tenta levar essa ideia para uma reunião do conselho da aldeia e inicia uma
discussão com seu pai, porém o debate é interrompido quando descobrem que a avó está
morrendo. A anciã, em seu leito de morte, pede que a neta vá e cumpra seu destino. Ela hesita
e diz que não deixará a avó sozinha agora. Mas a avó garante que a acompanhará na viagem.
Segue-se uma linda cena de Moana zarpando em um pequeno barco e sendo guiada por
uma gigantesca arraia brilhante, sua avó. Posteriormente, a menina descobre que também segue
em companhia de seu galo maluco.
A saga ganha ares de aventura em que parece que tudo vai dar errado até que Moana
pede uma ajuda ao oceano, e, após uma tempestade, ele acaba a levando para o exato lugar onde
ela encontra Maui. Neste momento, compreendemos que o semideus roubou o coração de Te
Fiti para entregá-lo a humanidade, para que ela tivesse o poder da criação em si mesma e, claro,
para que ele fosse adorado por isso. Ele passa a se gabar de todos os seus feitos na tentativa de
distrair a menina para prendê-la em uma caverna, enquanto tenta fugir com seu barco sozinho.
Moana consegue escapar e acontece um diálogo no qual a menina tenta convencê-lo a aceitar a
missão de restaurar o coração de Te Fiti e, para isso, ela conta com uma expressa ajuda do
oceano. Maui a deixa na ilha, o oceano a leva para o barco. Ele a joga do barco, o oceano faz
com que ela volte. Ele tenta fugir do barco e o oceano novamente os colocam juntos. Podemos
perceber que na narrativa há uma incrível sinergia de vários elementos da natureza em prol da
vida de todos.
Até que aparecem criaturas, coquinhos vivos, que entram em embate com Moana e Maui
para roubar-lhes o coração. Este é o momento que os dois passam a agir juntos e uma parceria
começa a se consolidar.
113
Nessa história, para que o poder de criar a vida de forma ilimitada seja restaurado é
necessário que um homem “semideus” – dotado de poderes mágicos proveniente de um artefato
– e de uma a uma mulher, chefe e não princesa, de uma aldeia que preserva a sabedoria mais
simples ligada aos elementos da natureza. É preciso que os dois se unam e usem suas sabedorias
e poderes de forma complementar.
Seguem-se alguns diálogos em que Maui tenta diminuir Moana com jargões comuns
ligados à suposta inferioridade feminina. Ele tenta compreender porque um povo enviaria uma
menina para uma missão tão importante. E ela conta que foi o oceano que a enviou. Ao longo
desta longa conversa que reconstitui as relações de poder entre um homem e uma mulher, entre
um semideus e uma humana, entre animais e elementos da natureza, entre seres do bem e seres
monstruosos, os dois protagonistas vão enfrentando grandes perigos em busca do anzol mágico
de Maui. Só é possível vencer Te Ka – o monstro que espalha a escuridão – com o auxílio deste
artefato, e Maui só consegue reavê-lo graças à ajuda de Moana, e aí a conversa vai se
transformando. A menina começa a ganhar o respeito do semideus. Porém, isso acontece porque
ele vai perdendo a autoestima, mesmo em posse do anzol. Maui não consegue mais manejá-lo
como antes. Assim, começa a duvidar de sua capacidade de enfrentar Te Ka.
Os dois acabam por compartilhar suas próprias fragilidades, e essa é a vez de Moana
ajudar seu amigo a ressignificar sua história. Ele conta que não havia nascido semideus. Nasceu
humano e foi rejeitado por sua família, jogado ao mar e depois achado por deuses e
transformado em “Maui”, e então lhe deram o anzol mágico. A partir de aí passou a buscar ser
amado de todas as formas. Entregou o fogo, as ilhas, os cocos à humanidade. Até mesmo roubou
o coração de Te Fiti pensando que isto iria ajudá-los. Todavia, sente que nada é o suficiente.
Ela compartilha que também não sabe porque foi escolhida pelo oceano, mas sente que deve
haver uma razão. Após palavras de conforto de ambos os lados, uma nova aliança é formada.
Uma relação entre um homem e uma mulher que compartilham sentimentos e se apoiam, uma
verdadeira amizade, sem nenhum sinal de romance, em prol do bem de cada um e da vida como
um todo.
Decidem então enfrentar o desafio. Maui deixa que Moana comande o barco e ensina a
ela tudo o que sabe sobre navegação. Um pouco antes de chegarem à ilha pretendida, ele diz a
ela que sabe porque o oceano a escolheu:
Moana agradece e entrega o coração à Maui e diz: “Vá salvar o mundo” (MOANA...,
2017). Contudo, não era ele quem deveria salvar o mundo. Essa tentativa contra o enorme
monstro de lava chamado Te Ka fracassa e o anzol mágico de Maui acaba gravemente avariado.
Ele então desiste da missão afirmando não ser ninguém sem seu artefato. Iniciam uma discussão
de culpabilização mútua. Ela diz que eles só estão nessa situação porque ele roubou o coração.
Ele diz que só estão ali porque o oceano disse a ela que era especial e ela acreditou. A discussão
se encerra com Maui afirmando que o oceano escolheu errado e indo embora na forma de um
falcão.
Moana, agora sozinha no meio do nada, pergunta ao oceano porque ela foi escolhida.
Pede ao mar que escolha outra pessoa e lhe entrega o coração. Porém, assim que o coração
submerge, surge no horizonte a gigantesca cintilante arraia, que se aproxima do barco e aparece
como o espírito da Avó de Moana. Segue-se um diálogo no qual a avó dá a menina o direito de
escolha. Afirma que estará com ela por onde for. Acontece um movimento de resgate de missão
e pertencimento. A menina percebe que não está sozinha. É acompanhada por sua avó e por
todos os seus ancestrais. Reafirma seu nome: Moana de Motunui! Mergulha e vai ao fundo do
oceano para pegar novamente o coração. Retorna ao barco, agora habitada por uma força de
propósito de um povo inteiro e parte para sua grande aventura.
A menina e seu pequeno barco chegam à ilha onde vive a terrível Te Ka. Pensa que
precisa passar pelo monstro para chegar ao local destinado ao coração. Após uma série de
embates e manobras, quando Te Ka está prestes a acertar o barco, Maui reaparece e salva a
menina. Moana se surpreende e, aliviada, agradece. O semideus olha para ela e diz: “Vá salvar
o mundo!” (MOANA..., 2017).
Ajudada também pelo oceano, Moana finalmente consegue chegar ao local que acredita
haver uma espiral, mas não há nada mais lá, apenas a sombra de uma mulher deitada em posição
fetal. Então a menina percebe que a tal espiral está no centro do peito da própria Te Ka. Este
monstro de lava sedento é o próprio corpo de Te Fiti que, subtraído de sua razão de ser, espalha
morte e destruição. É a própria Gaia que, aviltada, se torna intrusa.
Moana compreende tudo. Chama atenção de Te Ka pelo brilho de seu coração e pede
para que o oceano se abra para que o monstro possa de aproximar dela. E assim é feito. Monstro
e menina se reconhecem, se cumprimentam, e o coração é devolvido a seu lugar de origem.
Imediatamente Te Ka começa a se transformar em Te Fiti; seu corpo de forma humana, que
estava pedregoso e quente como lava, começou a brotar em plena diversidade. Suas maravilhas
115
vão aos poucos alcançando todos os pontos da terra. Moana, em reverência, recebe o carinho e
reconhecimento de Te Fiti. Maui recebe um novo anzol mágico.
Essa história voltada para crianças se mostra como um conto contemporâneo que
promete se tornar um clássico. Ouso afirmar que ela pode ser uma releitura, ao molde pagão,
da busca pelo Santo Graal. Uma odisseia que apesar de obedecer a certos ditames da jornada
do herói, que são característicos dos filmes da Disney, carrega alguns elementos novos que
podem ser destacados. Basicamente, os personagens principais lidam com conflitos internos de
tal forma que é difícil distinguir na trama os mocinhos dos vilões. A já tradicional dicotomia
entre bem e mal aparecem como faces de um mesmo ser.
Te Fiti e Te Ka são a mesma pessoa. Uma, com o coração plantado, tem forma humana
com características indígenas e é capaz de criar a vida a partir de si mesma. A outra, desprovida
de coração, transforma-se em um ser monstruoso, raivoso e sedento, capaz de destruir tudo a
partir de sua própria morte, porém é possível notar que mesmo transformada, ela ainda guarda
características da forma humana. Neste ponto é importante também destacar que não é o
coração que tem o poder de gerar vida, mas o coração no lugar certo que faz a vida de, e em Te
Fiti proliferar. A pedra isolada de sua fonte não tem serventia nenhuma. Pelo contrário, a cobiça
pelo dom de proliferar a vida é o que provoca o desequilíbrio.
Maui, um semideus carente e inseguro, pretende ser adorado pelos humanos e faz de
tudo para agradá-los. No entanto, ele deixa de perceber que o poder da vida em si mesma não
pode pertencer somente aos humanos. A vida pertence a ela mesma e ao ser deixado em paz;
prolifera em abundância, diversidade e generosidade criando todos os seres.
Percebo que a história como um todo traz uma tradução de uma perspectiva na qual o
humano não se destaca da natureza nem como superior, nem como isolado. Neste contexto,
Moana também vive um conflito interno: seguir os mandatos de sua cultura ou seguir um
chamado vago que ela não entende bem onde a levará? O que se mostra interessante, a meu ver,
é que a menina é escolhida para salvar o mundo, mas não poderia ter feito isso sozinha. Recebe
a ajuda do oceano, dos animais, de sua avó, de um semideus, visita o mundo dos monstros e
sobrevive a ele etc. Enfim, acontece uma sinergia do mundo para que o equilíbrio seja
restaurado. Tudo isso contado de forma contagiante para crianças, já crescendo imersas em um
novo paradigma interrelacional.
116
Houve um momento que, para mim, simbolizou todo o ato: as mães e seus
bebês/crianças subiram na escadaria para cantar #elenao. De repente, no
microfone, uma das mulheres grita por uma criança perdida: “Atenção,
Uimael, sua mamãe está aqui na escada!”. A multidão imediatamente começa
a gritar: “Uimael, Uimael, Uimael”. Longos segundos de espera. Nada do
menino. Alguém então grita no microfone aquilo que, no povaréu da
Cinelândia, parecia impossível: “Pessoal, por favor, abaixa para gente poder
procurar pelo Uimael”. As pessoas foram se abaixando, se agachando no chão,
ficando a uma altura de criança. Uma multidão com altura de criança. Até que
alguém ergueu um guri no colo e estrondou: “Ele está aqui!”. Explosão geral
de alegria. Uma multidão que se agache pelo Uimael: #elenao é sobre isso.
Compaixão sem fim.
(Relato publicado no Facebook)
Cada um de nós, humanos, chegou ao mundo após ter passado um tempo no interior de
uma mulher. Neste período nosso corpo foi formado e alimentado, bem como alguns de nossos
sentidos começaram a despertar. Um bebê na barriga já experimenta o mundo aqui fora, ou seja,
um bebê ainda do lado de dentro já está no mundo. Em minha dissertação de mestrado fiz um
aprofundamento sobre a obra de Winnicott no tocante à espiritualidade do cuidado na relação
mãe-bebê. Sinto que seja necessário retomar alguns pontos para que se possa avançar sobre
uma reflexão acerca das crianças.
Winnicott (1990) afirma que o bebê ainda no útero vive um estado de pré-existência,
algo que pode se aproximar do conceito de devir – um estado de pleno vir a ser. O neném
vivencia uma completa entrega e dependência ao meio, pois, embalado no ventre, não tem ainda
consciência de sua própria existência, nem mesmo da existência do ambiente que o envolve e
lhe oferece o suporte nutricional e emocional necessários para a manutenção de sua vida e
materialização do seu corpo. Olhando aqui de fora, podemos perceber que há uma fusão total
entre o neném e seu meio. “Mas se olharmos através dos olhos do bebê, veremos que ainda não
117
há um lugar a partir do qual olhar [...] Nesse estágio, a unidade é o conjunto meio-indivíduo”
(WINNICOTT, 1990, p. 153). Winnicott chama este estado de não-integração.64
A partir dos pensamentos de Ingold ou Coccia, posso afirmar que a imagem de um bebê
ainda no ventre de sua mãe pode ser encarada como uma forma didática de perceber a amplitude
dessa perspectiva da existência como imersão. O bebê crescendo no ventre está totalmente
fusionado ao corpo da mãe, escuta o som de seus órgãos, é embalado por seus movimentos e
respiração, recebe diretamente todos os hormônios liberados na corrente sanguínea dela e se
comunica fisiologicamente com ela também. No decorrer da gestação, o bebê passa a ser
afetado por estímulos externos e já pode responder rudimentarmente com gestos que podem ser
traduzidos por nós aqui fora como dor e prazer. Além disso, o bebê no útero alterna ciclos de
sono e vigília. Em resumo, o bebê vive lá dentro. Nós, cada um de nós, já viveu um tempo lá
dentro.
O fato de não termos memória desse período de nossa existência e nem mesmo dos
primeiros anos de nossas vidas, faz inferir que a consciência – como a reconhecemos no âmbito
da humanidade – vai se desenvolvendo ao longo dos anos. Ou seja, a criança ainda se encontra
em um estado de desenvolvimento neurológico diferente do dos adultos. Diz-se que se trata de
um estado ainda imaturo.
Ao longo dos primeiros anos da infância cada ser humano vai apreendendo o mundo
que o cerca e passa a desenvolver explicações sobre seu exterior de acordo com a comunidade
em que vive. Vai ganhando e gerando o que chamamos de consciência, e imerso em uma espécie
64
Este estado de fusão total é anterior à integração – quando o indivíduo passa a se perceber como uma
unidade e pode, então, se relacionar com o outro como um não-eu. O autor diferencia o estado de não-
integração do estado de desintegração. A desintegração consiste em uma perda da integração – quando
o ambiente de alguma maneira provoca um rompimento na continuidade de ser do indivíduo e ele passa
a reagir ao ambiente de forma adaptativa, desenvolvendo sintomas e dificuldades relacionais. Ou seja,
a não-integração inerente ao período de pré-existência do indivíduo está ligada a uma plenitude, uma
solidão essencial que nos lança a este paradoxo: tal solidão só pode existir em condição de dependência
máxima (GUIMARÃES, 2016, p. 40-41).
118
de jogo de tentativas e erros, vai se adequando. Pelo senso comum, a tarefa dos adultos que
cuidam de crianças é promover essa adequação através da educação. Seja qual for o formato
que tal educação assuma, a criança vai sendo adaptada através de limites - castigos,
reprimendas, conselhos ou carinhos - mas especialmente através de exemplos. Muitas vezes o
que fica mais marcado nas explicações de mundo das crianças não são as coisas que são ditas,
mas o que elas experimentam em seus corpos e o que vivenciam através de um agudo sentido
de observação e percepção de sutilezas em relação aos adultos. Ou seja, é com base no
“emocionar” adulto que as crianças aprendem. Ou melhor, a primeira camada de imersão das
crianças é o “emocionar” vivido pelos adultos que cuidam dela.
Com base no pensamento de Humberto Maturada e Gerda Vender-Zöller, é possível
afirmar que a educação ocidental está calcada em uma dinâmica de relação de poder, controle,
apego e culpabilização. Algo que os autores chamam de “espaço psíquico da apropriação”
(MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2011, p. 22). Como “espaço psíquico” compreendem
algo que pode se aproximar a ideia de imersão, como uma atmosfera psíquica a qual também
pertencemos, criamos e co-criamos.
Nós, seres humanos, existimos num domínio relacional que constitui nosso
espaço psíquico como âmbito operacional no qual nosso viver biológico, toda
a nossa fisiologia, fazem sentido como forma de viver humano. O espaço
psíquico é o domínio em que ocorre a existência humana como modo de
relacionamento com os outros e consigo mesmo. Este relacionamento
acontece entre seres que existem no conversar. Com efeito, aprendemos a
viver como seres humanos vivendo em tal espaço a multidimensionalidade do
viver humano. Como dizemos, não se ensina às crianças o espaço psíquico de
uma cultura – elas se formam neste espaço (MATURANA; VERDEN-
ZÖLLER, 2011, p. 23).
O termo que Maturana usa para singularizar o espaço psíquico no qual vivemos
atualmente é Patriarcal-Matriarcal, que pode ser explicitado através da imagem de um espaço
psíquico da apropriação, que com outros nomes tem sido abarcado ao longo da tese: este modo
de operar que naturaliza relações de separação, exclusão, hierarquização, dominação e controle.
O autor contrapõe o espaço do Patriarcado-Matriarcado ao espaço Matrístico, onde as operações
relacionais se dariam por cooperação entre os seres e onde, somente aí, pode acontecer o
cuidado como forma de amar.
65
Palavra usada no original.
119
apegos que surjam nela. Medo, cobiça, ambição, inveja, competitividade são
emoções que restringem o olhar e abrem o espaço ao apego. O amar é a única
emoção que expande o olhar em todas as dimensões relacionais e amplia o
ver, o ouvir, o tocar. De fato, como o amar consiste precisamente no abandono
das certezas, das expectativas, das exigências, dos juízos e dos preconceitos,
é a emoção que consiste na realização do caminho do desapego em todas as
dimensões do viver como resultado espontâneo de seu mero ocorrer na
aceitação unidirecional da legitimidade de tudo no viver, inclusive a rejeição
do que não se quer que aconteça (MATURANA; YÁÑEZ, 2009, p. 86).
Voltando ao universo infantil, e a título de resumo do que foi dito antes, pontuo que as
crianças partem de um estado de total fusão com o ambiente e posteriormente se inserem em
um mundo, em uma atmosfera física e psíquica que é anterior a existência delas66; e que todo o
processo da educação visa a adaptação gradual delas ao modo de viver e de se emocionar da
comunidade que as acolhe. E mais, este processo de adaptação e desenvolvimento da
consciência de uma criança costuma ser considerado, por nós adultos, como um processo de
amadurecimento, ou seja, como um dado evolutivo destinado a um fim de normalidade.
Porém, para acrescentar algumas nuances a este debate gostaria de propor algo diferente:
e se pudéssemos deixar de atribuir uma escala de valor aos estágios de desenvolvimento? Se,
ao contrário, fosse possível imaginar que a maneira de ver o mundo que as crianças têm seja
também uma forma de pensamento e que este tem valor? Mais ainda: se pensarmos que
podemos aprender sobre o mundo e sobre nós mesmos ao ouvirmos e convivermos com crianças
sem tentar controlá-las e doutriná-las? Será que podemos levar a maneira como as crianças
percebem e interagem entre si e com o mundo como um modo de ser, como uma verdade que
se tornou estranha a nós?
Faço estas perguntas porque considero que talvez as crianças tenham uma percepção de
sua imersão no mundo ainda mais aguçada que os adultos. Talvez, algo que havia lá na infância
tenha sido subtraído do mundo adulto. Não sem razão Rilke vai dizer no início da oitava elegia
de Duíno que algo se perdeu: “Desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre
perdemos, ah, esse espaço profundo” (RILKE, 2013, p. 67). Então ficamos presos às descrições
66
“A primeira relação com o mundo exterior a nós é sem distância, de profunda passividade ativa: sentir
o mundo, os outros e o eu como uma totalidade uma e complexa, dentro do mundo como parte dele e,
todavia, vis-à-vis a ele, como distinto para vê-lo, pensa-lo e molda-lo. Fundamentalmente, é um estar
com e não sobre as coisas, é um con-viver dentro de uma totalidade ainda não diferenciada” (BOFF,
2018, p. 132-133). Ver o artigo de Michelazzo, “As habitações do humano como expressões do tempo:
diálogo entre Heidegger e Dogen”, presente no livro de Faustino Teixeira, Mística & literatura (Fonte
Editorial, 2015). Sobretudo a parte em que ele fala do Humano indistinto: o pensamento pré-metafísico.
Essa primeira experiência, segundo Winnicott é, de fato, “experiência de ser”, de um “identificar-se
com”. A experiência da separação e da diferença vem depois, à medida que o bebê cresce.
120
literais de mundo. Como escreveu Nelson Job: “O Mundo Literal é uma convenção em que os
possíveis estão esgotados [...] Habitar apenas as perspectivas da normalidade é tão ‘louco’
quanto habitar apenas o mundo dos sonhos” (2013, p. 200-201).
Trago esta história como uma alegoria às possibilidades de mundo compostas pelo
universo das crianças. Nós, adultos, vivemos enclausurados em uma percepção linear,
higienista, mercadológica, meritocrática, em um tempo acelerado e rígido, ao mesmo tempo
tedioso e melancólico. É como se nosso eixo de mundo, nossa coluna, nossas vértebras,
estivessem comprimidas por um espaço psíquico-imagético que não comporta nosso tamanho.
Nos adaptamos, nos tolhemos, nos podamos para dar conta de exigências de consumo e
conquistas que estão gradualmente dissecando nossas capacidades de pensar, imaginar, criar e
experienciar. No mundo moderno, os adultos autômatos adaptados aos horizontes pequenos
reclamam de dor, cansaço, solidão, de excesso de tarefas, de falta de dinheiro etc.
É possível notar que esse sentimento adentrou e transformou a lida dos cuidados e dos
ideais de normalidade relacionados à infância. A vida urbana de maneira geral não oferece
espaços nem físicos nem anímicos para que as crianças brinquem em liberdade e, ao mesmo
tempo, muitas práticas do ideal moderno estão voltadas para aquietar o movimento espontâneo
dos corpos infantis e deixar os adultos focados em dinâmicas de lucro e produção. Cuidar dos
próprios filhos definitivamente não é valorizado pelo mundo capitalista, pelo contrário. Licença
maternidade/paternidade são consideradas supérfluas pelo mundo empresarial, estranhamente
chamado de liberal. Creches e escolas recebem crianças cada vez mais cedo, pois seus pais
precisam voltar ao trabalho. Foram criados uma série de dispositivos para manter as crianças
paradas e “seguras”, tais como televisores, celulares, tablets, joguinhos. Fora do horário escolar,
o tempo delas é preenchido por uma série de atividades extras como esportes, aprendizado de
outras línguas, instrumentos etc. As crianças urbanas estão a todo tempo sendo dirigidas por
um adulto, real ou virtual, em “atividades” que são oferecidas como forma de distração ou de
122
aprendizado, mas que a grosso modo oferecem mesmo uma contenção, tanto física como
cognitiva.
Essas formas modernas de entretenimento usadas em excesso geram crianças com
energia contida e com a criatividade embotada. Isso se transforma em comportamentos que são
tratados como sintomas: raiva, mal humor, inquietude, ansiedade, hiperatividade, dificuldade
de lidar com a frustração, apatia, excesso de competitividade, baixa autoestima. A partir daí
surgem novas categorias de doença, bem como medicamentos que prometem adequar nossos
pequenos aos moldes que lhes são exigidos. Parece que esquecemos de nossa própria infância.
Lembro-me da primeira vez que, como mãe, me dei conta desse processo em curso.
Minha filha devia ter em torno de quatro anos, meu filho algo como dois anos. Não tínhamos
televisão e o celular ainda era só um telefone. A sala da minha casa era um grande playground,
vivia desarrumada, mas nunca foi tão colorida. Meu sofá costumeiramente servia como pula-
pula. Eu ficava ao lado, somente para conter uma possível queda. Um dia recebemos a visita de
uma amiguinha deles, cuja idade regulava com a da minha filha. Quando meus dois filhos
começaram a pular no sofá, a menina se colocou ao meu lado, cruzou os braços e disse: “Pular
no sofá não é legal”, isso com um ar de reprovação, como uma miniadulta. Me espantei com
aquela cena. Ofereci minha mão a ela e disse: “Pular no sofá é muito legal, experimenta!”. Ela,
desconfiada e hesitante, segurou minha mão e se juntou aos outros. Pulou algumas vezes ainda
me segurando, mas aos poucos foi se soltando e eu pude ver seu semblante sisudo se transformar
em um sorriso largo e depois em gargalhadas. Logo estava solta pulando e cantando. Logo a
seriedade foi contagiada pela alegria. Logo voltou a ser criança67.
O clamor das crianças e pelas crianças pode trazer de volta ao mundo adulto as coisas
que brilham, como as estrelas da história acima, como as “crises de risos” tão comuns entre os
pequenos. Para isso precisamos voltar a cuidar deles. No entanto, o cuidado a que me refiro é o
cuidado de protegê-los de nós mesmos, de nossos medos, de nossas amarras, de nossa pressa,
de nossa tecnologia, de nossa alimentação rica em o que nos empobrece. Precisamos protegê-
los de nosso próprio esquecimento, de nosso próprio empalidecimento, de nossa própria
tristeza. Como conta a história das crianças que conseguiram levantar o céu, talvez, se
permitirmos, nossas crianças e a energia que elas carregam possam oferecer ao mundo adulto
uma espécie de cuidado apropriado.
67
Adoro esta palavra: criança. Carrega algo que cria e algo que dança. Vou repeti-la muitas vezes e não
quero atender à exigência de buscar por sinônimos. A meu ver o mundo fica mais bonito com criança
nele.
123
Trabalho neste sentido com inúmeras mães e seus bebês em um grupo que coordeno em
Juiz de Fora, chamado Amar e Brincar (parafraseando o livro homônimo de Humberto
Maturada e Gerda Verden-Zöller no qual me fundamento). Minha proposta às vezes parece
simplória diante do que algumas mães desavisadas buscam. Elas chegam até a mim e me pedem
fórmulas ou manuais que façam seus bebês e crianças funcionem de acordo com o esperado, ou
seja, para que não chorem, durmam oito horas por noite, comam bem, controlem os esfíncteres,
não mordam, aceitem a chegada de um novo irmão, não se masturbem, entre outros pedidos.
Uma das primeiras coisas que procuro mostrar a essas mães é que bebês e crianças são
pessoas, e que pessoas não costumam se encaixar em fórmulas generalistas. Manuais sobre
criação e educação não conseguem abarcar as singularidades transversais que compõem a
atmosfera em que vivemos. Então, se faz necessário compreender em sentido amplo o que está
acontecendo com cada criança ou bebê em particular. Logo depois pontuo que o mundo da
criança pequena, mesmo aqui do lado de fora, continua a ser o corpo de sua mãe, ou o corpo da
pessoa que se dispõe a desenvolver por aquela criança algo que foi denominado por Winnicott
(2006) como devoção – isto significa alguém que se empenhe em se identificar com a criança
como um modo de cuidado. Esse mundo infantil, que é o corpo da mãe, lhe oferece, ou pode
lhe oferecer o substrato fundamental para que duas formas de “emocionar” básicas do humano
brotem: confiança e intimidade.
A partir destas ponderações teóricas, que a princípio parecem distantes da lida diária,
começamos juntas, no grupo, eu, mães e bebês, a criar dinâmicas, jogos e brincadeiras que
possibilitam despertar no corpo esses sentimentos de intimidade, pertencimento e confiança
mútuas. São instantes em que conseguimos nos fazer imersas na atmosfera em que as crianças
vivem. Aqueles momentos de uma explosão contagiante, algo integrador. Algo que compõe e
descompõe, que beira o caos e toca a mística. Lampejos de uma liberdade que não consigo
colocar em palavras. Procuro promover nas mães aquilo que aconteceu com a menina que não
124
sabia que sofá era também pula-pula. Aos poucos, as mulheres vão se despindo de como as
coisas deveriam ser ou funcionar e, como em um leve despertar, se emocionam e são
contagiadas pela alegria68 que emana do universo vibrante que seus filhos ainda habitam. Minha
proposta, simplória, é apenas proporcionar bons encontros, no sentido de Spinoza.
As crianças, mesmo as não tão livres, mesmo as sofridas, conseguem acessar a alegria
de forma mais direta e plena que os adultos. O mundo é todo novo para elas. Estão ainda e por
algum tempo protegidas de nossas amarradas explicações de mundo. São protegidas por sua
própria “imaturidade neurológica”. O olhar das crianças, diferente do olhar infantil carente, traz
um sentimento de maravilhamento. Através de uma ainda livre conexão entre o pensar, o sentir
e o movimento, elas fazem perguntas e criam suas próprias teorias, as quais muitas vezes
abalam as certezas que consolidam o mundo adulto69. Se os grandes dedicarem algum tempo
de suas vidas corridas a contemplar essa qualidade de alegria expansiva e barulhenta dos
pequenos, até o ponto de se deixarem emaranhar por ela, talvez o céu possa subir como na
história acima. Talvez os adultos possam esticar seus corpos e mentes, talvez eles possam
relaxar no fluir dessa potente sabedoria infantil abarcando novos “possíveis”. Pois, na esfera
da imaginação alegre, “os possíveis ganham coexistências paradoxais, você passa a estar e não
estar nos locais, sentir ódio e amor ao mesmo tempo sem que isso se torne contradição, e realizar
tarefas até então improváveis e até impossíveis” (JOB, 2013, p. 201). A criança no livre brincar
– que por si só é incoerente, desconexo, sem razão determinada, caótico e singular – pode fazer
despertar o adulto. Tirá-lo do esquecimento de si, do outro e do todo, pode trazê-lo de volta a
uma forma de ser-no-mundo aliada ao modo do mundo-ser-em-nós.
68
“A Alegria, é uma paixão pela qual a potência de agir do corpo é acrescida ou favorecida; a Tristeza,
ao contrário, uma paixão pela qual a potência de agir do corpo é diminuída ou reduzida; e, por
consequência, a Alegria é boa diretamente” (SPINOZA, 1985, p. 262).
69
“Para mim as crianças denunciam a brutalidade do país que criamos para elas, fazendo as perguntas
que os adultos preferem não fazer a si mesmos. Não sabemos que pessoas serão estas que crescem entre
muros e que aprendem a escanear o outro, o diferente, como ameaça” (BRUM, E. 2015, [n. p.]).
70
“Mas tudo o que é belo é tão difícil, como raro” (SPINOZA, 1985, p. 341).
125
Rilke (2013) já dizia, na oitava Eligia, que às crianças, às vezes, é dada a possibilidade
de enxergar e experienciar a abundância do aberto e se espantar, se maravilhar. Compreendo
que esta capacidade de maravilhamento acontece por elas se encontrarem ainda em um estado
de abertura como o todo. Isto lhes permite serem afetadas pelos acontecimentos como eventos
que se desenrolam a partir de uma outra percepção de tempo. Não precisam se empenhar em
distinguir entre o real e o imaginário. Para elas tudo é real na medida em que as afeta, e como
não sabem ainda como as coisas “deveriam ser”, vivem na ordem do espanto.
Em um belo artigo intitulado Sonhando com dragões: sobre a imaginação da vida real
(2017), Ingold discorre sobre como as ideias de Francis Bacon embasam o modo de operar
contemporâneo, especialmente quando se trata da científica “busca interminável da verdade
através da eliminação do erro” (INGOLD, 2017, p. 26) e sobre como “com nossas esperanças
e sonhos submersos no éter da ilusão, a vida parece diminuída” (INGOLD, 2017, p. 26). O autor
afirma que mesmo com o esforço de gerações e gerações, não há como fazer esta separação,
pois a vida se dá na imbricação. Na medida em que habitam nossa imaginação, coisas ganham
existência ao modo de afetos.
Ingold conta a história de um monge que encontra um dragão. Sabemos que o dragão
em si não existe, mas o sentimento do medo, este existe, e toma forma de dragão para que
possamos lidar com ele. A maneira moderna de traduzir os afetos simplesmente afirma:
“dragões não existem” ou “foi apenas um sonho”. Estas frases visam fazer a pessoa que imagina
voltar ao “mundo real”, mas isto, a grosso modo, desqualifica a existência do medo ou de
qualquer outra emoção que toma a forma que lhe convier para se fazer concreta – imagem.
Sentimentos se transformam em cenários visíveis e de certa forma palpáveis ao longo de nossas
trajetórias de vida. O hábito moderno de explicá-los de forma a enquadrá-los dentro de uma
categoria classificatória ou de “não existência” não faz com que desapareçam. Eventualmente
adormecem somente para retornar em outras imagens ou formas, até que seja possível lidar com
126
eles. Nossos sentimentos retornam como fenômenos, algo “saturado a totalidade da experiência
fenomênica” (INGOLD, 2017, p. 30).
Relatando que outros povos consideram o limite entre o sonho e a realidade bem mais
tênue do que nós ocidentais compreendemos, Ingold afirma que a imaginação, onírica ou em
vigília, pode estar de fato se comunicando conosco. “Este cosmos é poliglota, uma mistura de
vozes através das quais diferentes seres, em seus próprios idiomas, anunciam sua presença, se
fazem sentir e produzem efeitos” (INGOLD, 2017, p. 31).
Neste sentido, afirmo que as crianças, ainda aprendendo nosso idioma, se preservam
poliglotas, pois elas se juntam aos fluxos:
O chão é lava
Quando uma criança pode se movimentar livremente, quase nunca seu corpo
traça uma longa e constante linha reta. Suas linhas retas são quase sempre
curtas ou percorridas com rapidez, na direção do que detectou como urgente
ou muito interessante.
Com outras pessoas, assim como com coisas e com ideias, faz alianças muitas
vezes temporárias, outras vezes recorrentes, e ajuntamentos se desfazem com
a mesma facilidade com que se formam, dando ensejo a novas associações e
a relações de diferentes intensidades e durações.
Uma cartografia dos movimentos livres das crianças pode nos surpreender e
nos dizer muito sobre elas, não como objeto de uma teoria sobre a infância,
mas como expressões singulares e ativas.
A educação que não leva em conta o movimento desejante das crianças é lava,
é cimento sobre sementes, corredor que mutila experiências vivas. (FERRO,
2019, [n. p.]).
Ingold (2011), após uma complexa argumentação que descreve o mundo como um
nascimento contínuo dentro da percepção do que ele chama Ontologia Anímica, faz um breve
destaque em que diferencia “espanto” de “surpresa”, o que pode ajudar a pensar essa educação
que desconsidera as sementes que as crianças, seres desejantes, espalham ao longo de caminhos
de nascimento. Mais precisamente, como nós adultos podemos nos deixar permear.
127
Penso que espanto seja [...] a própria abertura para o mundo que tenho
mostrado ser fundamental para a maneira anímica de ser. Trata-se do
sentimento de admiração oriundo de se montar na crista do contínuo
nascimento do mundo. No entanto, juntamente com a abertura vem a
vulnerabilidade (INGOLD, 2011, p. 125).
Ou seja, esse estado de abertura, que considero ser próprio da infância, carrega em si a
vulnerabilidade, que também considero ser própria da infância, e que no adulto – moderno,
cartesiano, científico, ocidental – se pretende suprimida através de planejamentos e previsões,
busca de garantias tanto físicas como espirituais. Então “o espanto foi banido dos protocolos da
investigação racional conceitualmente conduzida” (INGOLD, 2011, p. 125), dando lugar ao
elemento da surpresa que emerge quando o mundo não obedece ao que foi programado.
busca de respostas e com isso nos esquecemos de que a vida é para além de nós. Começou
muito antes e não teremos como saber quando, como, ou se terminará. À esta sensação de
pertencimento e segurança que devemos obediência e reverência71. Isso porque:
71
Como afirmou Heschel: “...insistimos que é indigno do homem não tomar conhecimento do sublime.
Talvez mais significativo que o fato de nossa percepção da realidade cósmica seja nossa consciência de
termos que ser conscientes disso, como se houvesse um imperativo, uma necessidade de prestar atenção
àquilo que está além do nosso alcance (1974, p.15-16).
72
Cf.: <https://www.youtube.com/watch?v=1dYukOrq5RI>.
129
CONSIDERAÇÕES
Ao longo deste segundo capítulo discorri sobre três esferas que considero serem
instauradoras de gestos de cuidado mais próximos do cotidiano e que são também as que
colocam o humano em movimento ao longo de seu caminhar pelo mundo.
Primeiro, o corpo foi visto como esfera fundante do cuidado e como modo de contato
com o que se diz exterior. Aos moldes de Ingold, debati como alterações no mundo afetam os
sentidos e a forma de se portar dos corpos, gerando, assim, outras leituras de mundo que vão se
desenrolando, se transformando. Procurei mostrar como o movimento é uma qualidade
premente para todo o desenrolar da vida e como os ideais contemporâneos têm feito emergir
uma série de artifícios que aliam a ideia de conforto com a imobilidade. Ouso dizer que é preciso
que a qualidade do movimento seja considerada também uma forma de cuidado, de toque e de
relação.
Depois, apresentei a esfera da casa como lugar da intimidade, do conhecido e de
pertencimento, e tentei ampliar esta compreensão para a ideia de mundo, traduzindo novas
narrativas sobre quem são, como interagem e vivem os organismos da terra como um todo. O
objetivo foi exagerar no tom da importância de que a percepção de nossa interdependência
como seres vivos precisa adentrar os modos de agir e pensar sobre a vida na Terra.
130
Chegando às crianças, quis abarcar a alegria que elas podem doar ao mundo pelo seu
simples modo-de-ser-no-mundo. Pelo encantamento e maravilhamento com que adentram a
vida, revisando tudo, inclusive as certezas dos adultos.
No próximo capítulo, seguirei entre espantos e surpresas, percebendo como todo o
processo de leitura e escrita desta tese tem me transformado. Trata-se de uma tentativa de um
resgate da espiritualidade do cuidado dentro do campo das Ciências da Religião. O cuidado
ganha status de fundamento, de valor humano: atenção, contemplação. A espiritualidade
aparece aqui como conceito chave para o enfrentamento da aridez e das adversidades dos
tempos modernos, nas grandes cidades, na agilidade das mudanças climáticas, na busca por esta
nova cultura do cuidado. A partir da percepção de que as respostas fundamentadas na lógica
humana se mostram limitadas e limitantes, proponho uma contemplação somada ao conceito
da espiritualidade.
131
Nosso papa e Leonardo Boff são dois entusiastas do surgimento do que Francisco chama
de Cultura do Cuidado. Ambos argumentam que a perspectiva da interligação e da
interdependência de todos os seres da terra está evidente e aliada a ideia de que a Terra é em si
um organismo vivo que espontaneamente gera os suprimentos necessários para garantir a
sustentabilidade da vida, toda e qualquer forma de vida. Uma qualidade de vida cíclica
retroalimentada em uma dinâmica de homeostase.
É possível notar que o cuidado, como forma de experimentar e narrar nossas relações,
vem sendo entoado por múltiplas áreas de saber e práticas humanas. Neste sentido, algumas
outras palavras estão sendo usadas para traduzir esse modo-de-ser-cuidadoso. São palavras que
nos religam à nobreza de alma, à ética, à espiritualidade e até mesmo ao amor.
Sinto necessidade de fazer uma leitura minuciosa deste pequeno trecho da Encíclica de
Francisco para compreender melhor a proposta de cuidado como cultura. Primeiramente, ele
traz o amor e o cuidado de forma indissociável. Afirma ser o amor repleto de pequenos gestos
de cuidado mútuo: se há amor, há cuidado; se há cuidado, há amor. Ou seja, o cuidado é a
expressão do amor, é o amor colocado em movimento.
Em seguida, duas outras palavras se destacam: compromisso e caridade. Por
compromisso compreendo uma certa qualidade de propósito, pertencimento e confiança. Algo
que poderia ser traduzido em imagem através das linhas entrelaçadas de um tecido, as quais
somente se mantendo juntas e firmes podem compor uma integralidade. Por caridade
compreendo que áreas mais delicadas ou danificadas deste tecido precisam ser cuidadas, pois
rasgos, manchas e emaranhamentos comprometem o todo e acabam por atingir cada fio
individualmente. Assim, o amor, como gesto cuidadoso, abrange o próximo e o distante, o civil
e o político, e colocado da forma como foi, abrange uma noção de engajamento – “o amor social
é a chave para um desenvolvimento autêntico” (LS, 231): esta frase poderia ser um mantra, pois
carrega uma verdade profunda.
Neste ponto, a imagem do tecido a que me referi não é mais têxtil. É preciso fazer
emergir a imagem de um tecido vivo - orgânico, celular, a pele, por exemplo. Quando um tecido
biológico se rompe, isto caracteriza uma ferida, uma mácula, causa sofrimento e dor a todo o
corpo. E então o organismo se mobiliza para curar e restaurar sua integralidade, nenhuma parte
é deixada de fora. Nenhuma parte é tida como mais ou menos importante. Compreendo que
Francisco está se referindo a um corpo social que habita uma biosfera e que este corpo deveria
seguir a uma outra lógica, a lógica inerente ao próprio processo que mantém a vida na terra.
Para Leonardo Boff “a vida é parte essencial do planeta Terra, um componente que
transforma as irradiações cósmicas em energia terrestre ativa. A vida não pode ser
compreendida sem as relações indissociáveis com os fenômenos físico-químicos que ocorrem
no planeta” (BOFF, 2018, p. 99). Essa qualidade de fenômenos que “magicamente” interagem
no sentido de sustentar a constância de uma incontável variedade de vidas pode ser
compreendida por espírito: algo que sustenta o bio na esfera e que se faz palco para todas as
complexidades humanas. Emanuele Coccia aprofunda um pouco mais essa percepção e
acrescenta a ideia de que o clima, ou este espírito que vive, se sustenta a partir de uma mistura
dos elementos que compõem o mundo a partir de um estado de fluidez, e assim rompe com as
dicotomias e fronteiras:
133
Ao concebermos a ideia de que existe algo que fluidamente circula e que garante,
sustenta e mantém a vida; ao passarmos a experimentar essa mistura em nossas relações; ao
habitarmos o mundo de forma a desfazer os contornos e deixar fluir, nos tornamos mundo,
continente e conteúdo, coabitantes, ao mesmo tempo um e múltiplo. Acredito que quando papa
Francisco diz que o reconhecimento da vocação de Deus para intervir junto a dinâmicas sociais
se trata de sua espiritualidade, uma caridade como processo de cura, ele nos diz para como
sociedade imitarmos essa lógica da “fluidez climática biológica”. Aqui, então, pode emergir o
conceito da Espiritualidade do Cuidado.
Os primeiros pios dos pássaros que despertam marcam o point virge da aurora
sob o céu ainda desprovido de luz. É um momento de tremor reverente e de
inexplicável inocência, quando o Pai, em perfeito silêncio, lhes abre os olhos.
Eles começam a falar-lhe, não em um cantar fluente, mas com uma pergunta
despertadora que é o estado da aurora deles, seu estado no point virge. Sua
condição pergunta se é o tempo para eles de “ser”. Ele responde “sim”. Então,
um por um, eles despertam e se tornam passarinhos. Manifestam-se como
passarinhos e começam a cantar. Dentro em pouco, eles se tornarão
plenamente o que são, e até voarão (MERTON, 1970, p. 151).
134
A Espiritualidade do Cuidado é uma ideia que têm me acompanhado há sete anos, desde
que entrei como estudante no campo da Ciência da Religião e recebi de meu orientador,
Faustino Teixeira, este termo como síntese de minha pesquisa. Ao longo do último ano, quando
passei a de fato concretizar a escrita da tese, percebi que a Espiritualidade do Cuidado como
um conceito ainda não tinha sido trabalhada por outros autores. Em pesquisas encontramos
espiritualidade no cuidado, geralmente relacionada a alguma categoria ou objeto específicos,
como por exemplo a espiritualidade no cuidado com pacientes, na enfermagem etc.
Nem mesmo Leonardo Boff, que é meu autor de base relacionado ao cuidado e à
espiritualidade, usa o termo “Espiritualidade do Cuidado” da maneira como tal conceituação
foi crescendo em minha pesquisa e prática ao longo dos anos de estudos. Percebi, então, que
caberia a mim delimitar as características que fundamentam o nascimento deste termo como
uma nova cosmovisão, a partir dos autores que me alimentaram nessa caminhada.
3.1.1 Espírito
73
C.P. – comunicação pessoal.
74
“A massa inicial das células deve ter sido submetida no seu interior, desde o primeiro instante, a uma
forma de interdependência que não seria já um simples ajustamento mecânico, mas um começo de
“simbiose” ou vida comum [...] Simples reaparecimento, em fim das contas, sob uma forma e numa
ordem mais elevada, de condições muito mais antigas que, como vimos, já presidiam ao nascimento e
ao equilíbrio das primeiras substâncias polimerizadas à superfície da Terra juvenil. E também simples
prelúdio à solidariedade evolutiva, muito mais avançada, cuja existência, tão manifesta nos seres vivos
superiores, nos obrigará cada vez mais a admitir a natureza propriamente orgânica das ligações que
reúnem num todo no seio da Biosfera (CHARDIN, 1970, p. 83-84).
136
Porque ele vai ficando mais complexo e cria ordens mais sofisticadas. A
consciência que atravessa todo esse processo ganha no ser humano a dimensão
de autoconsciência. Então o espírito é tão ancestral quanto o corpo. O corpo
surge no primeiro momento quando os dois primeiros quarks e hádrons
interagem. Depois átomos se relacionam, trocam informações entre eles e vão
criando sistemas e ordens e redes de relações [coerentes e constantes].
E o que é o espírito? É a capacidade que as energias primordiais e as partículas
originárias têm de se relacionar. A relação sempre implica uma troca de
informação. Então aqui entra uma compreensão diferente de toda a
compreensão moderna até Einstein e Einstein inclusive. Para a física quântica,
existe a matéria, que tem massa. A matéria tem energia, desde a energia
elétrica, energia gravitacional, energia nuclear. Mas a partir dos anos
cinquenta descobriram a terceira qualidade da massa, que é energia da
informação. Porque a energia não é matéria, é informação. Ela carrega uma
informação que surge através do jogo das relações. E aí vem a afirmação
básica de Heisenberg75 e de todos os físicos quânticos: “o universo não é o
conjunto dos seres existentes. O universo é o conjunto das relações, das
redes”. Tudo é rede.
Eu tive o privilégio de assistir o último semestre das aulas de Heisenberg e
uma frase que sempre voltava nele era essa: tudo é relação, não existe nada
fora da relação e tudo tem a ver com tudo em todos os pontos, em todos os
movimentos em todas as circunstâncias. Então, a caneta que cai aqui, pela
força da gravidade [da relação] afeta a galáxia mais distante que está lá [pela
rede de informações]. Esta capacidade de criar relações e com as relações criar
ordens cada vez mais complexas, até chegar à ordem humana, isto é o espírito!
E é próprio do espírito criar totalidades significativas. E no ser humano, é a
capacidade de ele sentir-se parte desse todo, poder elaborar uma dinâmica
dessa totalidade (BOFF, 2014, C.P.).
75
Princípio da Incerteza de Heisenberg: “Para a física quântica tanto ondas como partículas são
fundamentais. Uma e outra são modos pelo quais a matéria se manifesta e as duas juntas são o que a
matéria é [...] segundo o princípio da incerteza, as descrições do ser como onda [energia] e como
partícula [matéria] se excluem mutuamente. Embora ambas sejam necessárias a compreensão integral
do que o ser é, somente uma está disponível num determinado momento do tempo” (ZOHAR, 1990, p.
26).
137
A partir de uma perspectiva holística, que alia a sabedoria tradicional religiosa com as
mais modernas descobertas da física, conclui-se que o espírito é aquilo que dá a liga, por assim
dizer. Mantém a coesão de elementos que separadamente obedecem a padrões individuais, mas
que compostos criam algo novo, uma mistura relacional. Totalidades e mais totalidades, em um
eterno fluir cósmico inter-relacionado. Considero interessante salientar que embora se verifique
uma direção relacional no sentido da complexificação como um “imperativo cósmico” que cria
a vida e depois a vida consciente, esse movimento não se configura em uma linha reta na qual
uma complexidade mais ampla seria sobreposta a outra de menor grau. Em essência, o que
aprece acontecer é que as composições mais complexas precisam de interações relacionais
menos complexas que também constituem a integralidade em questão, como o ambiente –
clima, atmosfera – que ela habita.
3.1.2 Espiritualidade
O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós,
as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se
desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a
salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de
religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é
pouca, talvez não me chegue (ROSA, 2019, p. 19).
Uma vez considerando a concretude de um espírito como força relacional que anima a
matéria e compõe integralidades diversas que coabitam, criam e são criadas por seu ambiente,
a espiritualidade seria a consequência, na vida humana, de se experimentar o fato de que embora
sejamos pessoas, sujeitos singularizados, estamos imersos em uma ampla dinâmica relacional.
Mais que isto, somos constituídos e dela dependemos.
É possível afirmar que esta experiência – chamada aqui de espiritualidade – que de
maneiras diversas é vivenciada por todo e qualquer ser humano, trata-se de uma qualidade que
agrega um sentido à vida dentro dessa dinâmica de consciência. Dito de outra forma, essa
experiência levou e ainda leva todo e qualquer ser humano, em todas as épocas e lugares da
biosfera, a se engajar em uma busca de sentido para suas vidas – dores, alegrias e rotinas. Este
sentido daria contorno/coerência, constância/segurança, propósito e explicações para os eventos
percebidos pela consciência, ou seja, vividos pelo corpo.
138
A partir dessa experiência que nos é dada como seres viventes em uma atmosfera
comum como coparticipantes, emerge a premissa do cuidado como elemento fundante e guia
de cada ato da consciência humana. Seja qual for o nome que seja atribuído a este todo, a
experiência dele e nele é da ordem do que nos é semelhante. E, neste contexto, a percepção de
um atributo de semelhança entre todos os seres vivos e da Terra como nosso continente precisa
ser aprofundada, sentida e reverenciada a ponto de fazer emergir dinâmicas relacionais
cuidadosas.
Segundo Dalai Lama, a espiritualidade está:
3.1.3 Cuidado
Desde que o feto começara a se formar dentro de si, perdera certos trejeitos,
ganhara outros, ousara avançar em certos pensamentos. Parecia-lhe que até
então vivera mentido. Seus movimentos eram mais libertos do corpo, como se
agora houvesse mais espaço no mundo (LISPECTOR, 2013, p,168)
Em seu mais recente livro, Leonardo Boff (2018) faz uma maravilhosa síntese de toda
sua trajetória como pensador e teólogo, abarcando os termos ecologia, espírito, espiritualidade
versus religião, e cuidado em diferentes momentos. Chama atenção para a necessidade do
nascimento de uma ética comum, nomeada por ele de cordial, que embase uma nova
cosmovisão da humanidade pautada no paradigma do cuidado. Postula também, com base em
Heidegger, o cuidado como sentido ontológico do humano, sua característica fundante e
fundamental. Afirma que “a existência jamais é pura existência; é uma coexistência, sentida e
afetada pela ocupação e pela pre-ocupação, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo
com os outros, pela alegria ou pela tristeza, pela esperança ou pela angústia” (BOFF, 2018, p.
132).
A partir dessa premissa de coexistência cuidadosa, passo então a relatar algumas outras
pérolas que compõem minha compreensão de Cuidado.
Segundo Ibn Al-Arabi (2012) as coisas do mundo manifesto são as palavras divinas, ou
seja, os atos de Deus (2012, p. 59). Sendo assim, o autor investiga e aprofunda o sentido dos
nomes que são atribuídos a Ele na tradição islâmica. O nome Al-Muhaymin, traduzido como se
segue, elucida uma compreensão interessante que destacarei abaixo:
76
“El Celador, El Amparador, El Protector, El Vigilante: La funcipon del divino amparo
(muhayminiyya) consiste em la supervisión, em dar testimonio de todas las cosas (al-sahãda adà l-asya)
protegiéndolas y cuidando de ellas, em virtude de lo cual están implícitamente contenidos em éste los
nombres em Preservador (al-Hafiz) y el Vigilante (al-Raib), ya que ‘testimonio presencial’ (suhud)
quiere decir preservación (hifz) y atenta observancia (mura a) de cuanto acontece, ya sean movimentos
(harakat) o reposos (sahanat)” (AL-ARABI, 2012, p.58).
140
Ao resgatar esta passagem, a qual traz uma ideia de prática que aos olhos ocidentais
pode parecer algo impossível, imediatamente me recordei de que entre os costumes dos
Yanomami descritos por Davi Kopenawa, está a premissa de que os caçadores dessa tradição
não comem a sua própria caça. Entre eles, o gesto de caçar e compartilhar o alimento com os
outros integrantes de sua comunidade, sem reverter para si os frutos de seu trabalho, é visto
como generosidade tanto pelas pessoas, como pelos espíritos e pelos próprios animais que se
oferecem alegremente aos caçadores que preservam tal costume. Gestos de bravura são
diretamente ligados a construção de uma ética cunhada pela generosidade, pela partilha e pela
confiança de que todos estarão sempre nutridos.
77
“A doença significa um dano à totalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou eu, em minha
totalidade existencial, que sofro” (BOFF, 2002, p. 143).
141
Essa confiança de que todos estarão sempre nutridos me parece o cerne de uma
percepção de mundo completamente antagônica à nossa percepção e experiência de mundo
ocidental do século XXI. Davi nos diz: “Nós nunca morremos de fome na floresta. Só morremos
da fumaça de suas epidemias” (KOPENAWA, 2015, p. 486). Os indígenas, vivendo em sintonia
e em profundo respeito às forças generosas da natureza, nunca passam fome e por isso não
precisam competir, estocar, garantir o seu pedaço de comida em detrimento dos outros. O que
fundamentalmente os povos originários sempre vivenciam em seu modo de habitar a terra é um
elemento de sincronia entre os eventos da natureza, nos quais eles mesmos estão incluídos.
Como nos diz Philipe Descola, “na verdade, o ser humano não se basta mais, como espécie
solitária e autossuficiente: a natureza e a cultura não mais se distinguem; a sociedade e o
ambiente fazem parte de um mesmo itinerário” (DESCOLA, 2013, p. 97).
Aliando as ideias de “viver como um ato de testemunho” à uma “ética de generosidade”
dentro de uma compreensão de mundo em que “sociedade e ambiente fazem parte de um mesmo
itinerário”, começamos a desenhar uma outra cultura baseada nos seres vivos como forças
relacionais dentro do que estou chamando de Espiritualidade do Cuidado.
Dalai Lama é outro autor que carrega a esperança por uma mudança de cultura através
da criação de uma ética secular. Em seu livro mais recende, Além da Religião: uma ética por
um mundo sem fronteiras (2016), argumenta que as religiões como um todo oferecem muitos
benefícios em relação à orientação moral e a um sentido para a vida, mas que “no mundo secular
de hoje, a religião sozinha não é mais adequada como base para a ética” (2016, p. 15). E
continua:
Este livro se apresenta como um verdadeiro convite à ação. Uma espécie de movimento
que chegue ao mundo, mas que parta de um aprofundamento interno através da presença e de
valores éticos fecundos comum a todos, com o firme propósito de não contradizer nenhuma
religião e nem mesmo a ciência. Assim, o autor justifica o uso do termo “secular” a partir do
que acontece na Índia, onde “implica em um profundo respeito e tolerância a todas as religiões,
como também uma atitude inclusiva e imparcial que agrega os que não têm uma fé” (DALAI
142
LAMA, 2016, p. 22). Ou seja, uma ética secular não seria uma oposição à religiosidade em prol
de uma visão de mundo materialista ou científica aos moldes ocidentais, mas sim uma atitude
de valores inclusivos e tolerantes em benefício do que nos é comum.
Sinto que o que Sua Santidade está nos trazendo se aproxima do que pretendo
caracterizar como espiritualidade do cuidado – o ato de considerar a legitimidade de existência
do outro em uma profundidade complementar a nossa própria existência. Para tanto, o autor
cita o imperador Ashoka, que viveu no terceiro século antes de Cristo: “Honre a religião alheia,
porque assim irá fortalecer tanto a própria quanto a do outro” (DALAI LAMA, 2016, p. 25).
Eu diria: honre o ponto de vista alheio, pois ele não diminui em nada a legitimidade de
existência do seu ponto, somente acrescenta um fio precioso agregando um colorido novo ao
tecido amplo e inconclusivo da realidade. E, nesse sentido, cabe acrescentar tons de humildade
e obediência às nossas propostas de explicações da realidade, resgatando o fato de que existem
perguntas grandiosas demais78 para um único ponto de vista79. É preciso que se leve em conta
que existem pontos cegos e pontos de conhecimento imagéticos:
Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente
se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles
pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma
ideia de como ele era. Um apalpou a tromba e declarou que o animal parecia
um cano de água; outro apalpou a orelha, e disse que deveria ser um leque
enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu
dorso e declarou que o animal deveria ser como um grande trono. De acordo
com a parte que apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal.
Um, por assim dizer, chamou-o de Dal e outro de Alif [Alif e Dal – Primeira e
quarta letras do alfabeto árabe (alifato)] (RUMI, 1992, p. 155-156).
Somente unindo os pontos de vista poderemos ter uma noção da grandiosidade do todo,
porém, mesmo que houvesse mãos suficientes para tocar todos os detalhes de uma existência,
78
“Uma pergunta é irrespondível quando não é possível responde-la operando desde as coerências
experienciais do domínio do vier do observador em que se formula, e na urgência de responde-la torna-
se necessário inventar princípios explicativos a priori para fazê-lo (como o Ser e o Real). A invenção
de princípios explicativos a priori abre caminho a um conviver que pode levar-nos à cegueira na
antroposfera que geramos em nosso conviver, ante a presença de outros seres humanos, de outros seres
vivos, oi da própria biosfera, como de fato tem ocorrido, ao gerar ideologias conscientes ou
inconscientes que nos levam a esquecer nossos fundamentos humanos de nosso habitar na Biologia do
Amar” (MATURANA; YÁÑEZ, 2009, p. 25).
79
Leonardo Boff fala em ecologização dos saberes: saber de saberes entre si relacionados criando uma
comunidade de vida (BOFF, 2019, p. 98).
143
a junção das percepções não abarcaria o todo. A união de uma tromba, quatro patas, duas orelhas
e um dorso faz a ideia de um elefante, mas não faz um elefante, nem em sua singularidade e
muito menos em sua coletividade.
Neste sentido, nos fala Coccia:
A ideia de cuidado assim colocada fala de uma perspectiva inclusiva do que nos é
semelhante e do que nos é característico, singular. Do que nos é próximo, seguro, conhecido e
reconfortante, somado ao que nos é distante, novo, inquietante e desafiador. É carregar e
amparar a legitimidade de existência incondicional e necessária da diversidade. Não como um
relativismo difuso e superficial, mas como um desinvestimento na busca por universalizações
absolutistas. Somos ao mesmo tempo únicos e comuns, vivendo em sincronia a partir da
relação, inter-relação. Isto é o que também nos revela as já não tão recentes descobertas da
física moderna80 no tocante aos experimentos acerca da dualidade onda-partícula.
Danah Zoahr, no livro O ser quântico: uma visão revolucionária da natureza humana
e da consciência baseada na nova física (1990), sustenta a tese de que tanto a consciência como
a matéria emergem de um mesmo e único processo chamado de “mundo dos acontecimentos
quânticos”. Isto implicaria em uma compreensão de que seríamos ao mesmo tempo partícula,
portanto matéria, e onda, portanto frequência (1990, p. 22).
80
Vou entrar nesta seara com bastante cautela, mas sinto que minha reflexão não poderia deixar de tocar
a física quântica. Primeiro porque Leonardo Boff é o autor que me trouxe esta indicação; depois porque,
ao me aprofundar mais nesta temática, passo a enxergar a física quântica como a parte mística da ciência.
Assim como na religião temos a parte exotérica e a esotérica, agora temos a parte mística da ciência da
matéria. A parte mística de toda e qualquer tradição religiosa é aquela que dá conta de descrever,
primordialmente por relatos de experiências, aquele momentum no qual, por uma fração de segundos,
um ser mergulha em si mesmo em tal potência que se torna capaz de tocar a unidade, o grande mistério.
144
oceano. Mais que isso, a física quântica prossegue dizendo que nenhuma das
duas descrições tem real precisão quando isolada e que tanto o aspecto onda
como o aspecto partícula do ser devem ser levados em conta quando se
procura compreender a natureza das coisas [...] A ‘substância’ quântica é,
essencialmente, ambos: o aspecto onda e o aspecto partícula simultaneamente
(ZOHAR, 1990, p. 24-25).
Prótons e elétrons são ao mesmo tempo algo de matéria e algo de etéreo. Porém, não é
possível medir essa simultaneidade. Quando se mede a onda, a partícula se perde. Quando se
mede a partícula, a onda se perde. E mais curioso ainda é o fato de que as substâncias
subatômicas enquanto se manifestam como onda, se comportam como coletividades, se
misturando e criando totalidades mais complexas; e enquanto se manifestam como partícula, se
individualizam.
Esta afirmação abre campo para muitas reflexões filosóficas que não pretendo esgotar
aqui, mas especialmente me remete à definição de “ser” absolutamente contemporânea feita por
Tim Ingold, trabalhada no primeiro capítulo. Ele diz que “somos um nexo singular”, uma
maneira singular de se vincular. Percebo que lá, Ingold abarca essa dimensão do ser, de nós e
de todos, que é ao mesmo tempo única e plural, individual e social, imanente e transcendente.
Esta percepção me leva a resgatar as formulações de Ibin Arabi sobre dois termos da tradição
Islâmica: tanzih – é o termo usado para designar Deus como o Absoluto, o Princípio, o
Inalcançável, a transcendência pura; e tasbih, que dá conta da imanência, da autorrevelação
divina através de suas criações e criaturas.
Tradicionalmente estes dois termos são tratados de forma excludente e incompatíveis.
Tanzih fala de um Deus absolutamente transcendente e completamente alheio a matéria. Porém,
Ibn ‘Arabi nos apresenta uma nova percepção. Afirma que qualquer crença religiosa que pregue
a imperiosa distância entre a força criadora e sua criação acaba por limitar a Deus. “‘Purificar’
a Deus até este ponto e reduzi-lo a algo que nada tem a ver com as criaturas é mais uma maneira
de delimitar a divina Existência, que é, na realidade, infinitamente vasta e infinitamente
profunda” (IZUTSU, 2004, p. 65):
Ibn Arabi considera esses termos de uma maneira muito original, embora
consiga, de alguma forma, manter o sentido que eles têm no contexto
teológico. Resumidamente: tanzih, em sua terminologia, indica o aspecto de
"absoluto" (itlaq) do Princípio, enquanto tasbih se refere ao seu aspecto de
"determinação" (taqayyud). Ambos são, nesse sentido, compatíveis e
mutuamente complementares, e a unica atitude correta, no nosso caso, é a de
afirmar ambos ao mesmo tempo e com igual enfase (IZUTSU, 2004, p. 64).
145
Meu primeiro contato com a cosmologia de Ibin ‘Arabi foi através das aulas com o
Professor Pablo Beneito, que esteve no PPCIR em 2013. Ele trabalhou os conceitos de Tanzih
e Tasbih dentro desta perspectiva da complementaridade da imanência e da transcendência, e
dizia algo mais ou menos assim: quando Deus parecer muito distante e inalcançável, você se
sentir muito sozinho neste mundo, lembre-se de que Ele está também próximo e se revela nos
pequenos milagres do cotidiano. Quando você se sentir muito poderoso e materialista, lembre-
se de que você é pequeno diante da magnitude do transcendente. Tomei estas palavras como
um conselho de um mestre.
Cuidado, então, agrega a consciência de nossa vida como uma experiência que é ao
mesmo tempo, e necessariamente, relacional e individual (como ondas e partículas);
transcendente e imanente (como tanzih e tasbih); vertical e horizontal (pés na terra, braços
estendidos para o próximo, cabeça nas alturas); obediente e libertária (reverente e criativa).
Diante do movimento que é o próprio fluir da vida, é preciso que a consciência humana não se
limite a apenas um dos pontos nessas polaridades. E, repito, o amor é o cuidado colocado em
movimento. O cuidado é o despertar do altruísmo na confiança de que a vida se dá e se sustenta
a partir da diversidade relacional, e de que se assim for, todos serão nutridos.
No final da Encíclica Laudato Si, papa Francisco nos presenteia com uma oração que
incorpora a perspectiva do cuidado como imperativo humano:
Deus Onipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequena das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres da terra.
146
#Não, é não.
Sinto cada passo da escrita desta tese como um passo revolucionário em direção a
minhas próprias entranhas. Talvez este que inicio agora tenha sido o mais subestimado. Achava
que já sabia exatamente o que iria escrever. Minha intuição de partida é que existe uma
sabedoria emaranhada ao elemento feminino do mundo que, caso seja valorizada, pode fazer
emergir o cuidado como prática e como forma de cultura81. Porém, uma afirmação feita deste
modo, em nosso tempo e contexto, ou seja, diante das diversas discussões e pautas feministas,
pode parecer irresponsável, universalizante e até preconceituosa. Espero conseguir chegar a
uma esfera argumentativa de conciliação em que minha intuição de base possa ter lugar de
legitimidade sem enfraquecer os diversos outros pontos de vista. Embora acredite que este
talvez seja um trabalho para uma vida toda.
Então, primeiramente esclareço meu lugar de fala. Me identifico como mulher. Nunca
questionei em mim este modo de existir, portanto, sou cis82. Branca, de classe média alta,
nascida em meados da década de 70 em São Paulo, mas me considero carioca, pois foi no Rio
de Janeiro onde vivi os primeiros trinta anos de minha vida. Sou filha de uma feminista, não
uma ativista, mas uma mulher que ocupou e foi bem-sucedida em ambientes que ainda hoje são
81
Teilhar percebeu isso com clareza em seu livro Il cuore della matéria (2007), no qual dedica uma
parte ao tema do Feminino como “Unitivo”. Diz que à construção de sua visão interior faltaria um
elemento (uma atmosfera) essencial se não captasse esse feminino. Diz: “comecei a despertar-me e a
formular-me verdadeiramente a mim mesmo (...) sob o olhar e um influxo feminino” (CHARDIN, 2007,
p. 49). Dizia que não há como chegar à maturidade e plenitude espiritual fora deste influxo sentimental
que sensibiliza a inteligência e excita suas potências de amor (CHARDIN, 2007, p. 50).
82
Cisgênero (Cis) é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos,
com o seu “gênero de nascença”.
147
majoritariamente masculinos e machistas. Minha mãe relata que até tinha alguns “privilégios”
nesses ambientes, juntamente pelo fato de ser mulher. Tínhamos “empregada”, babá, motorista,
carro, tudo financiado por homens que tinham a intenção de que ela fosse o mais eficiente
possível para a empresa do mercado publicitário. Ela é mesmo uma pessoa brilhante. Pode ser
considerada uma feminista da Terceira Onda, que galgou e alcançou espaço e notoriedade em
nossa sociedade.
Porém, em minha experiência infantil, minha mãe trabalhava o tempo todo. Sentia falta
dela e cobrava muito sua presença. Sentia como abandono o fato de ela chegar sempre atrasada
nos eventos da escola e não valorizava o fato de ela cozinhar para a família toda nos finais de
semana. Não valorizava o fato de que justamente o trabalho que me tirava sua presença era o
que possibilitava uma série de oportunidades ligadas a consumo, estudos, viagens e ideias de
mundo. Não enxergava claramente a mulher massacrada que habitava sob aquela carapaça
poderosa e admirada por todos. Cresci com o imperativo expresso de que mulheres tinham que
ser fortes. Neste contexto, ser forte significava não depender financeiramente de ninguém,
principalmente de nenhum homem. Simultaneamente, captava nas sutilezas das escolhas de
minha mãe um enorme desejo de “formar família”, o que incluía casamento e maternidade, e
também sua dependência emocional com relação aos homens. Passei de menina a mulher imersa
em uma certa cisão interna e só pude reconhecê-la quando passei a expressá-la em minhas
próprias escolhas. Um detalhe importante que forja meu ser mulher, profissional e feminista foi
que assisti minha mãe grávida duas vezes, quando tinha dez e quinze anos. Na primeira vez
meu irmão nasceu prematuro extremo e passou uma “eternidade” internado em uma UTI. Na
segunda vez, minha irmã nasceu a termo, mas faleceu com três meses. Meu olhar infantil
entendia que tudo aquilo era culpa do trabalho, e talvez em alguma medida fosse mesmo.
Quanto a meu pai, sua ausência, embora fosse amplamente sentida, era perdoada. Me
acompanhava um discurso difuso de que ele não era forte o suficiente e de que fazia o que
podia. Estranhamente cresci sentindo que mulheres eram fortes e homens fracos, tanto
financeiramente como emocionalmente.
Escolhi estudar psicologia. Neste percurso, resgatei a imagem e a relação com meu pai.
Fui fazendo contato com as sutilezas das forças e das fragilidades do ser humano, não só como
homens e mulheres, mas como pessoas vivendo em um contexto de extremas exigências de
sobrevivência e desejos de felicidade. Percebi que no fundo, todos, e cada um de nós, faz o
melhor que pode, o que dá conta, diante das múltiplas narrativas de verdades contemporâneas.
Me tornei profissional, esposa e mãe no mesmo ano, nessa ordem. Isto me causou um
imperativo de forças e desejos desconexos simultâneos. Me apaixonei pela maternidade a tal
148
ponto que na impossibilidade de vivê-la unicamente, fiz dela minha profissão. Estranhamente
convivo com um sentimento quase inconfessável de que as mulheres que podem ser “só mães”
são dotadas de um grande privilégio. Pessoalmente e emocionalmente sou uma feminista
esquisita porque ao mesmo tempo em que apoio todas as pautas do feminismo, sinto que por
conta de algumas delas fui privada de meu desejo mais profundo e que muitas vezes não me
senti incluída neste movimento.
Espero que esteja claro que escrevo uma tese a favor da legitimidade de existência, de
todas as existências, e de que compreendo que o fundamental é que encontremos como seres
vivos estratégias de sobrevivências cuidadosas que abarquem todas as nossas complexidades.
Porém, dentro do meu lugar de fala e de meu sentir profundo, cabe lembrar e dar o devido valor
ao fato de que a mulher é a ponte, ou o portal, entre os mundos. Pelo menos entre o de antes e
o daqui. Cabe lembrar que ao corpo da esmagadora maioria das mulheres se agrega a potência
criativa máxima de poder gerar, sustentar, nutrir e fazer surgir um novo ser humano. Este fato
não deve ser considerado de forma restritiva em relação às mulheres, mas sim como ponto de
partida para uma proposta de compreender simbolicamente o que as singulariza. Ou melhor,
tentar compreender que qualidades de percepções de mundo podem emergir a partir da
valorização simbólica da condição feminina que se compõe a partir da possibilidade de iniciar
e sustentar mundos em sua própria barriga. Como essa potencialidade assim valorizada afeta
suas atuações no mundo, seus modos de ver, sentir e produzir práticas e conhecimentos?
Trago aqui uma história que pode ilustrar a tomada de consciência das mulheres sobre
seu poder no mundo. Nela fica evidente a capacidade de fazer escolhas e de construir e
descontruir mundos. A capacidade de uma mulher de se negar a ocupar o papel que é imposto
a ela pelo imperativo social. Trata-se de uma introdução imagética sobre o pensamento
feminista, mas também sobre as dores do feminino:
Moça Tecelã
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas
da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando
entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o
horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete
que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na
penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos
longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à
janela.
149
É possível identificar que as primeiras insurreições de mulheres pegam carona nos ideais
da Revolução Francesa (1789-1799) e se concretiza como algo mais palpável quando Olympe
de Gouges escreve a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã em 1791. Este documento
marca o surgimento de um questionamento sobre o aspecto androcêntrico de nossa percepção
de mundo. Sinto que toda a trajetória feminista está sendo capaz de produzir uma qualidade de
conhecimento, portanto uma nova narrativa, que vem perpassando camadas cada vez mais
profundas e amplas sobre o que significa desnaturalizar a centralidade do pensamento
151
83
E não sou uma mulher? – mote do discurso feito por Sojourner Truth em uma convenção de mulheres
em Akron, Ohio, em 1851. Continua sendo uma das mais citadas palavras de ordem do movimento de
mulheres do século.
152
feminina estava posta e aos poucos iria reverberar pelo mundo como semente que brota em terra
fértil.
A Segunda Onda acontece entre 1960 e 1980, em meio ao movimento da Contracultura.
Nesse momento, a maioria dos países ocidentais já tinha garantido por lei o direito de igualdade
entre homens e mulheres, porém, na vida prática e política ainda se verificava uma forte
submissão delas em relação aos homens. Nos Estados Unidos, Carol Hanisch funda o
Feminismo Radical ou Movimento de Liberação de Mulheres, o qual pretende transformar pela
raiz as relações de poder. Com o mote “o pessoal é político”, em 1969 o movimento passa a
discutir a similaridade entre as opressões vividas pelas mulheres nas esferas pública e privada.
O mito da “mulher moderna”, que já havia sido apontado por Simone, e que foi sedutoramente
construído e consolidado pelo mundo capitalista para mantê-las na esfera do privado, começa
a ser colocado em xeque.
No Brasil, embora haja registos de ações de mulheres desde os tempos de colônia, é
somente entre as décadas de 1960 e 1980 que o feminismo começa a ganhar força como
movimento social. Em meio a ditadura militar, mulheres se uniram em prol da democracia,
valorização do trabalho da mulher, direito ao prazer e contra a violência sexual. Começaram a
se organizar em pequenos focos de estudos e resistência por todo o país. Aos poucos, foram se
articulando e travando diálogos com o Ministério da Saúde. Em 1984 foi criado do Programa
de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e em 1991 a Rede Feminista de Saúde e
Direitos Reprodutivos (MELO; SCHUMAHER, 2017), entre outras ações.
A Terceira Onda Feminista tem início na década de 1990 e traz como característica
principal a percepção de que mulheres têm demandas específicas. A partir da escuta das
singularidades vividas por mulheres em dinâmicas de realidade diversas, passou a ser
impossível e inoportuno falar em “a mulher”, no singular. Nasce o que se convencionou chamar
o “Feminismo da Diferença”, baseado em leituras pós-estruturalistas e pelo fortalecimento dos
diversos movimentos de mulheres negras em vários pontos do globo.
Angela Davis é um dos grandes ícones desta geração. Em 1981, lança o livro Women,
race and class que, embora só ganhe uma tradução para o português em 2016, se torna um
marco na discussão sobre a necessidade de se entrecruzar os conceitos de gênero, raça e classe84
84
“Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi
desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere
a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo. Além
disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso
considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade”
(RIBEIRO, 2016, p. 18).
153
para abarcar uma dimensão mais clara da dinâmica de opressões sofridas pelas diferentes
populações, especialmente as mulheres negras. Segundo Djamila Ribeiro escreve no prefacio
do livro, Angela Davis
pensa as diferenças como fagulhas criativas que podem nos permitir interligar
nossas lutas e nos coloca o desafio de conceber ações capazes de desatrelar
valores democráticos de valores capitalistas. Essa é sua grande utopia. Nessa
construção, para ela, cabe às mulheres negras um papel essencial, por se tratar
do grupo que, sendo fundamentalmente o mais atingido pelas consequências
de uma sociedade capitalista, foi obrigado a compreender, para além de suas
opressões, a opressão de outros grupos (RIBEIRO, 2016, p. 20).
85
Nesse contexto, Gayle Rubin é considerada a pioneira destro dos estudos de gênero. No texto
Pensando sexo: notas para uma teoria radical da sexualidade, afirma: “É impossível pensar com clareza
as políticas da raça ou gênero porquanto estas são pensadas como entidades biológicas ao invés de
construtos sociais. Similarmente, a sexualidade é inacessível à análise política enquanto for concebida
primariamente como um fenômeno biológico ou um aspecto da psicologia individual. A sexualidade é
tão produto da atividade humana como o são as dietas, os meios de transporte, os sistemas de etiqueta,
formas de trabalho, tipos de entretenimento, processos de produção e modos de opressão. Uma vez que
o sexo for entendido nos termos da análise social e entendimento histórico, uma política do sexo mais
realista se torna possível. Uma pessoa pode então pensar as políticas sexuais nos termos de fenômenos
como populações, vizinhanças, padrões de ajustamento, migração, conflito urbano, epidemiologia, e
tecnologia política. Estas são categorias de pensamento mais frutíferas do que aquelas mais tradicionais
como pecado, doença, neurose, patologia, decadência, poluição, ou a ascensão e queda de impérios”
(RUBIN, 1984, p. 13).
154
Outra pensadora que se torna referência sobre o tema é Judith Butler, que lança o
polêmico livro Gender Trouble: Feminism and lhe Subversion of Identity, em 199086, no qual
procura “observar o modo como as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua
denominação errônea de fatos naturais” (BUTLER, 2003, p. 12). A autora cria a Teoria da
performatividade de gênero87. Postula a liberdade de gênero como a liberdade fundamental.
Argumenta que é necessário prestar atenção às pessoas que sofrem quando não podem, ou
simplesmente não querem, se adequar às expectativas que a sociedade atribui ao seu gênero.
86
Este livro foi traduzido para o português pela primeira vez apenas em 2003.
87
“Se o corpo não é um ‘ser’, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é
politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de hierarquia do gênero e
heterossexualidade compulsória, então que linguagem resta para compreender essa representação
corporal, esse gênero, que constitui sua significação “interna” em sua superfície? Sartre talvez chamasse
este ato de “estilo de ser”; Foucault, de “estilística da existência”. Em minha leitura de Beauvoir, sugeri
que os corpos marcados pelo gênero são “estilos da carne”. Esses estilos nunca são plenamente originais,
pois os estilos têm uma história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades.
Consideremos o gênero, por exemplo, como um estilo corporal, um “ato”, por assim dizer, que tanto é
intencional como performativo, onde "performativo” sugere uma construção dramática e contingente do
sentido” (BUTLER, 2003, p. 198-199).
155
Aparentemente foi a luta feminina por espaço, voz e direitos que trouxe para o debate
público algo que antes era reservado ao espaço doméstico. Foi o feminismo que começou a
questionar os padrões de comportamento estabelecidos para homens e mulheres, que, impostos
da maneira como são, desconsideram as particularidades e os desejos de cada pessoa. E quando
as mulheres reivindicam o direito de não serem condenadas aos estereótipos de seu gênero, elas
abrem para todos novas possibilidades de ser no mundo. Essas novas possibilidades estão
pautadas no imperativo, ao meu ver absolutamente revolucionário, da inclusão.
Nesse contexto, no início da segunda década do século XXI, emerge o que vem sendo
chamado de Quarta Onda Feminista, caracterizada por uma proposta de relação com o próprio
corpo, que é da ordem da insubordinação e da indignação, como uma postura política que entoa
156
narrativas de incômodos. Heloisa Buarque de Hollanda, feminista veterana, descreve assim essa
nova onda:
Essa nova geração parece estar experimentando na prática toda a revolução teórica feita
pelas feministas das ondas anteriores. Unidas em rede e pela rede, as mulheres parecem, agora,
dar mais importância ao que as une do que ao que as individualiza. É a vez do coletivo, dos
coletivos diversos, abarcando temáticas diversas, que se espalham por todo o mundo, nas ruelas,
nos bares, na academia, nas igrejas, nas favelas, nos bairros ou nos condomínios, silenciosa e
anonimamente. E podem se unir em grandes manifestações mundiais através de criativos
protestos contra eventos pontuais, como o caso de um estupro no México ou a proposta de
alteração de leis para dificultar o acesso ao aborto no Brasil, por exemplo.
O que se passa pelo mundo a fora desde 2008 não constitui uma série sem
coerência de erupções absurdas que ocorrem em espaços nacionais
herméticos. É uma única sequência histórica que se desenrola numa estrita
unidade de espaço e de tempo, da Grécia ao Chile. E só um ponto de vista
sensivelmente mundial permite elucidar o seu significado. [...]. Qualquer
insurreição, por mais localizada que seja, emite sinais para lá de si própria,
contendo de imediato qualquer coisa de mundial. Nela, elevamo-nos juntos à
altura da época presente. Mas a época é também o que encontramos no fundo
de nós mesmos quando aceitamos descer até lá, quando interrogamos aquilo
que vivemos, vemos, sentimos, percebemos. Há aí um método de
conhecimento e uma regra de ação; e há aí também a explicação da conexão
subterrânea entre a pura intensidade política do combate de rua e a presença
em si sem a maquilhagem solitária. É no fundo de cada situação e no fundo de
cada um que há que procurar a época. É aí que “nós” nos encontramos, é aí
que se fazem os verdadeiros amigos, dispersos pelos quatro cantos do globo,
mas que caminham juntos (COMITÊ INVISÍVEL, 2015, p.12).
As reflexões feitas por Maria Bogado para o livro de Heloisa Buarque de Hollanda sobre
as narrativas feministas expressas nas ruas do Brasil a partir de 2015 demonstram que a potência
157
Mulheres têm se organizado em marchas. Não são passeatas; não são cortejos, não são
paradas e muito menos procissões. São marchas que proporcionam um diálogo contínuo entre
as pessoas que estão perto – e carregam palavras de ordem desenhadas em seus próprios corpos
ou pequenos cartazes – e as pessoas que estão longe – através das mídias sociais e das multidões
que marcham juntas, mesmo estando espalhadas por toda a parte do globo. Neste cenário passou
a acontecer um fenômeno novo, o qual considero sintetizar a tônica de uma mudança relacional
atrelada à necessidade de cuidado inerente aos novos movimentos de mulheres. Trata-se do
microfone-humano88, que é “um método de propagação da voz que tem o corpo humano como
tecnologia. São como jograis, funcionam com a multidão repetindo o que diz uma só pessoa,
de modo que torne a fala mais audível à distância” (BOGADO, 2018, p.35). Essa ferramenta
88
O microfone-humano vinha sendo usado para decidir pautas do movimento ou para emitir
comunicados breves como as decisões de trajeto de um protesto ou de organização prática de grupo de
trabalho. Contudo, no uso do microfone-humano apropriado pelas recentes manifestações no Brasil, as
singularidades pessoais emergem com mais ênfase. Assim as ruas passam a reverberar claramente a
experiência em primeira pessoa, em discursos propagados por campanhas nas redes sociais, como
aconteceu com a hashtag #PrimeiroAssédio (BOGADO, 2018, p. 35).
158
aparece no movimento feminista com uma variação interessante. Ofereço aqui as palavras de
uma moça que traduziu de forma brilhante o acontecimento:
Imagine poder ver e ouvir uma história pessoal sua ser propagada de forma respeitosa
por uma multidão sensível, que não só escuta, mas que, ao repetir, passa a carregar sua
experiência em seus próprios corpos. Imagine o poder de cura deste eco em que uma voz se
torna múltipla e coletiva.
O poder de fala, escuta, escrita e leitura proclamado e em larga escala conquistado pelos
feminismos em todas as suas vertentes, vem discutir os sentidos da humanidade e busca por
novos marcos civilizatórios. Garante o lugar de fala como lugar social, tradicionalmente negado
a muitos e muitas de nós. Traz como imperativo que passemos a pensar sobre as produções do
159
sul do mundo, das mulheres negras do mundo marcadas pela violência da escravidão, dos povos
originários marcados pela tragédia dos genocídios. Tirá-los do “Epistemicídio89”, como diz
Sueli Carneiro.
O feminismo atual assume um legado de luta coletiva e inclusiva que ao longo do tempo
foi ganhando contornos cada vez maiores. O feminismo atual não fala de mulheres, fala de uma
revolução que passa pela ideia de mulher, pelo corpo das mulheres, pela voz e ação das
mulheres, mas que se pretende e se compromete com o todo. Ângela Davis, em 27 de janeiro
de 2019, em uma conferência intitulada Frameworks For Radical Feminism, afirma a
premência de que as múltiplas vozes sejam ouvidas no sentido de uma transformação profunda
diante do sistema patriarcal-capitalista-neoliberal-heteronormativo de supremacia branca:
Meu ponto é que qualquer feminismo que pode nos ajudar a transformar o
mundo de hoje, precisa ser capaz de incluir perspectivas de desafiam a
supremacia branca e o patriarcado heteronormativo, o capitalismo, o
complexo industrial da prisão, ataques ao meio ambiente, o militarismo e as
guerras. O que aprendemos sobre a necessidade de conhecimento e do trabalho
em contesta o caráter estrutural do racismo, também deveria ser aplicada ao
sexismo e a misoginia. Em todas as minhas falas eu procuro ser crítica à
tendência de esquecermos que mesmo que haja muito desenvolvimento sobre
esses temas aqui nos Estados Unidos, vivemos em um mundo muito maior.
Então, não podemos falar com confiança sobre o Feminismo Negro sem
mencionar o papel das mulheres negras no Brasil, ou Marielle Franco que foi
assassinada pouco mais de um ano atrás por trabalhar contra o racismo e a
violência policial e homofobia. Também quero mencionar, antes de concluir,
a importância de nós organizarmos conferências para olharmos para o
movimento das mulheres Curdas. A maioria de nós, neste país, sabe
absolutamente nada sobre o movimento das mulheres Curdas. Elas estão
lutando por mudanças revolucionárias e simultaneamente lutam pela liberdade
feminina e este é um movimento extraordinário. E finalmente precisamos ser
solidarias com a Palestina. Já pensaram a importância de incorporarmos a
consciência feminista em nossa luta contra o complexo industrial, como é
importante enfrentar a carceragem feminina que é um marco de assimilação
e, finalmente, conservador do status quo. Um feminismo que assume que
podemos proteger mulheres simplesmente mandando homens para a prisão.
Podemos também perceber que a contestação internacional do racismo precisa
incluir o racismo expresso pelos aparelhos de estado, que são o Estado dos
EUA, também o Estado da França, o Estado do Brasil e também o Estado de
Israel. Então, vou concluir dizendo que justiça é invisível e divisível como
Martin Luther King disse: “injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça
em todo lugar (DAVIS, 2019).
89
Sobre epistemicídio Cf: https://www.geledes.org.br/epistemicidio/
160
E para encerrar este ponto, trago uma fala atual de Donna Haraway, que em sua trajetória
como ativista do feminismo passa agora a enriquecer as vozes que falam a partir de uma
perspectiva que inclui as relações humanas com suas, assim chamadas, “espécies
companheiras”. A partir de um reconhecimento de sua, ou nossa, semelhança com todos os
seres que coabitam a Terra, a autora afirma que o feminismo é o modo de pensar capaz de fazer
emergir uma consciência sensível de que de fato somos interdependentes.
começam a coletar os fragmentos de uma narrativa feminina contida nos contos de fadas e nas
mitologias ainda vivas ao redor do mundo, principalmente em comunidades que preservam
costumes originários de outras épocas90. Um dos principais nomes dessa esfera de
conhecimento é Clarissa Pinkola Estés, analista Junguiana, que em 1992 lança o livro Mulheres
que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Esta obra, fruto
de vinte anos de pesquisa, oferece uma consistente leitura da psique feminina e rapidamente se
espalha por todo o mundo. A autora investiga o arquétipo da mulher selvagem, aquela que não
se enquadra nos padrões de fragilidade e submissão exigidos pela sociedade moderna, mas que
também se reconhece como fêmea e guardiã de uma sabedoria sagrada.
A partir deste livro, entre outros, muitas mulheres passaram a se reunir em círculos para
partilhar experiências íntimas, contar histórias, cantar, dançar, estudar etc. Muitas vezes tais
encontros agregam, de alguma forma, uma estética de espiritualidade e de reconexão com os
elementos da natureza, como o sol, a lua, o fogo, os cristais, cada um a seu modo. Não existe
uma guiança de formato específico. Não se trata de uma religião, embora as vezes haja um
resgate da Terra como grande mãe ou Deusa. Alguns encontros são mais terapêuticos, outros
mais próximos ao que se convencionou chamar de “nova era”. O que a maioria deles tem em
comum é o fato de mulheres se reunirem com o intuito de criarem uma rede, ou tecido, de ajuda
mútua. Uma espécie de irmandade que compartilha assuntos próprios do feminino: sororidade.
Especialmente o movimento do Sagrado Feminino trata do reconhecimento de uma
natureza cíclica da mulher, chamada por Estés de “ciclo vida-morte-vida91”. Transcrevo então
90
“Foi a essa altura que a Mulher Selvagem foi derrubada e enterrada nas profundezas da terra e o lado
selvagem das mulheres começou não só a definhar como a precisar ser mencionado aos sussurros e em
locais secretos. Em muitos casos, as mulheres que amavam a Mãe Selvagem tiveram de proteger sua
vida com cuidado. Finalmente, esse conhecimento somente transparecia em contos de fadas, no folclore,
em estados de transe e nos sonhos. E graças a Deus por isso” (ESTÉS, 1992, p. 535).
91
“Dispor da semente significa ter acesso à vida. Conhecer os ciclos da semente significa dançar com a
vida, dançar com a morte, dançar de volta à vida. A natureza da Mulher Selvagem nas mulheres é a da
vida e da morte em sua forma mais antiga. Como gira nesses ciclos constantes, eu a chamo de mãe da
vida-morte-vida” (ESTÉS, 1994, p.51).
163
uma das histórias mais preciosas que trata sobre a capacidade feminina de morrer e renascer;
de resistir pela ação do cuidado:
Era um a vez, há alguns dias, um homem que ficava na estrada e que ainda
possuía uma pedra enorme de fazer farinha com a qual moía cereal da aldeia.
Esse moleiro estava passando por dificuldades e não restava nada além da
enorme pedra de moinho num barracão e da grande macieira florida atrás da
construção.
Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de prata
para cortar lenha, um velho estranho surgiu atrás de uma árvore.
— Não há necessidade de você se torturar cortando lenha – disse o velho em
tom engabelador – posso adorná-lo de riquezas se você me der o que está atrás
de seu moinho.
— O que está atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? – Perguntou-
se o moleiro, concordando com a proposta do velho.
— Dentro de três anos, virei buscar o que é meu – disse o estranho rindo a
socapa, e foi embora a mancar, desaparecendo entre os troncos das árvores.
O moleiro encontrou sua mulher no caminho. Ela havia saído correndo de
dentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.
— Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógio
mais bonito, nossas cadeiras rústicas forma trocadas por cadeiras de veludo,
nossa pobre despensa está repleta de carne de caça, nossas arcas e baús
transbordam de tão cheios. Diga-me, por favor, como isso aconteceu. – E
nesse exato momento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo
foi puxado e preso num arco dourado.
— Ah, disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a ser
de cetim. Diante dos seus olhos, seus sapatos de madeira com salto tão gastos
que ele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos
sapatos. – Bem, isso foi um desconhecido – disse ele, ofegante.
— Deparei-me com um homem estranho, com uma sobrecasaca escura. E ele
me prometeu enorme fortuna se eu lhe desse o que está atrás de nosso moinho.
Ora mulher, claro que podemos plantar outra macieira.
— Ai, meu marido! – Lamentou-se a mulher dando a impressão de ter levado
um golpe mortal. – O homem de casaco escuro era o Diabo e o que está atrás
do moinho é a árvore, sim, mas nossa filha está lá varrendo o quintal com uma
vassoura de salgueiro.
E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas sobre seus
belos trajes. A filha permaneceu sem se casar durante três anos e tinha o
temperamento como uma das primeiras maçãs doces da primavera. No dia que
o Diabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e ficou parada
num círculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o Diabo
estendeu a mão para agarrá-la, uma força invisível o lançou para o outro lado
do quintal.
— Ela não pode mais se banhar – berrou ele. – Ou não vou conseguir-me
aproximar dela - Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram
em que ela ficou sem se banhar, até que o cabelo ficou emaranhado; suas
unhas, negras; suas roupas encardidas e duras de sujeira.
Então, como a donzela parecia cada vez mais com um animal, surgiu mais
uma vez o Diabo. No entanto, a menina chorou e suas lágrimas escorreram
pelas mãos e pelos braços. Agora suas mãos e seus braços estavam alvíssimos
e limpos. O diabo ficou furioso.
164
avermelhados e ressecados. Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada,
mas uma força maior do que ele o ajudou a se manter vivo.
Afinal ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta. A mulher de
branco convidou-o a entrar, e ele se deitou de tão cansado. A mulher colocou
um véu sobre o rosto dele, e ele adormeceu. Quando ele chegou à respiração
do sono mais profundo, o véu escorregou aos poucos do seu rosto. Ao
despertar, ele encontrou uma linda mulher e uma bela criança que o
contemplavam.
— Sou sua esposa, e este é seu filho. – O rei queria acreditar, mas via que a
donzela tinha mãos. – Com todas as minhas aflições e com meus bons
cuidados, minhas mãos voltaram a crescer – disse a donzela. E a mulher de
branco trouxe as mãos de prata que estavam guardadas como um tesouro numa
arca. O rei ergueu-se e abraçou a mulher e o filho, e naquele dia houve uma
alegria imensa na floresta.
Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um belo banquete.
Depois, o rei, e rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um
segundo casamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram
essa história para outros cem, que contaram essa história para outros cem,
exatamente como vocês fazem parte dos outros cem a quem eu estou contando
(ESTÉS, 1994, p. 481-406).
Segundo Estés, este é um conto especial porque não termina com “e foram felizes para
sempre”. Em sua continuidade, ele abrange uma séria de mortes e renascimentos de uma
mulher. A história destaca também, com riqueza de detalhes simbólicos, a variedade de
“ajudantes psíquicos” que a acompanham esta jornada. A análise feita pela autora é longa e
profunda, e não me cabe abarcá-la completamente. Ressaltarei apenas alguns aspectos que
considero mais significativos com relação ao cuidado.
Trata-se de um conto de iniciação e amadurecimento da mulher através do rito da
resistência – endurecer, tornar firme, robusto, fortalecer. Ela primeiramente é “traída” por seus
cuidadores primordiais (pai e mãe) e se nega a aceitar o pacto com aspecto de si mesma que a
manteria prisioneira. Se entrega ao mundo sem suas próprias mãos, ou seja, sem a confiança de
que seria capaz de cuidar de si mesma, sem consciência de seu próprio valor ou de sua riqueza
subjetiva92. Mergulha então em uma viagem sombria e iluminada, animalesca e etérea, lida com
as sujeiras da floresta que trazem a pureza da alma. Habita dois mundos simultaneamente e por
isso recebe, ou percebe, a guiança – do espírito e das peras. Encontra, e é reconhecida, pelo
92
“Quando dizemos que as mãos da mulher foram decepadas, queremos dizer que ela está forçosamente
afastada da possibilidade de se consolar, de promover uma cura imediata; está completamente
incapacitada de fazer qualquer coisa que não seja seguir o caminho antiquíssimo. Portanto, é correto que
continuemos a chorar durante esse período. É a nossa proteção simples e poderosa contra o demônio tão
lesivo que nenhuma de nós consegue compreender totalmente sua motivação ou razão de ser [...] ela é
forte na sua insistente tristeza, e isso faz com que se afaste daquilo que a quer destruir (ESTÉS, 1994,
p.505-506).
167
elemento masculino que a acolhe, protege e fecunda, mas parte, pois ela ainda precisa cumprir
mais alguns estágios do processo, e ele também.
Entra em cena, então, a figura de uma velha sábia que nutre e guarda a donzela enquanto
ela gesta e pari o filho do Rei. Porém, ela permanece em solo seguro somente por um período,
até que esteja pronta ou seja obrigada a seguir seu caminho novamente. Parte em uma jornada
de sete anos, quando vive em meio aos hábitos simples dos seres elementais da floresta. A
história não detalha o que exatamente acontece neste período ou quais cuidados ela recebe, mas
o fato é que as mãos da donzela podem crescer novamente, atestando um grandioso poder de
regeneração da alma feminina. Neste meio tempo, o rei retorna de sua viagem e descobre o
acontecido. Movido pelo desespero e pela esperança, passa a vagar pelo mundo a fim de
reencontrar sua esposa e filho. Este trecho demonstra que o elemento masculino também precisa
passar por um processo de iniciação no mundo profundo e resgatar seu lado selvagem e puro,
para que esteja pronto a reconhecer, mais uma vez, a nova mulher que o espera, bem como seu
filho agora crescido.
Segundo a interpretação deste conto feita por Estés (1994, p. 518), as artimanhas do
Diabo representam as seduções do mundo moderno que trazem conforto e garantem supostas
seguranças, mas na verdade nos aprisionam e nos esquivam de nós mesmos. Se a donzela se
deixasse persuadir, perderia a capacidade de crescer e viveria como uma espécie de sonâmbula.
A história ilustra a necessidade humana de habitar os dois mundos e de respeitar sua natureza
cíclica. Esta, que se apresenta de maneira bastante evidente no corpo da mulher pelo fato de ela
menstruar, mas cabe ao homem também se tornar consciente desta característica nele mesmo.
Em termos práticos, o que está acontecendo é que muitas mulheres estão “fazendo as
pazes” com as peculiaridades de seus próprios corpos através da observação de seus ciclos
menstruais. Pode parecer coisa de bruxa, e talvez seja, afinal, um dos motes dessa geração de
mulheres é: “somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”. O fato é que, em
estado de saúde, a cada vinte e oito dias a lua muda e as mulheres sangram. Hoje, são produzidos
estudos e pesquisas ligados à assim chamada “Ginecologia Natural”, ou “Ginecologia
Autônoma”, que visa compreender como a natureza metamórfica da mulher se alinha com os
ciclos do planeta através das estações do ano e com as fases da Lua. Passa a ser evidente que a
tentativa de estancar esses ciclos, baseada em padrões lineares e masculinos de compreensão
de mundo, provoca desconexão com algo precioso, algo que nos evidencia que somos Terra.
Neste movimento, mulheres estão abrindo mão da tão aclamada pílula anticoncepcional
ou do uso de qualquer outro tipo de hormônio que evite uma gestação. Tomando para si uma
responsabilidade em relação ao autoconhecimento, resgatam antigos métodos de controle de
168
compartilhar este espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos
iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pela
nossa diferença, que deveria guiar nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não
isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi
só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos
(KRENAK, 2019, p. 33).
Este tópico consiste em um convite: viver e deixar viver; viver, não sobreviver. Não
somos máquinas. Não somos homens e mulheres da mercadoria. As relações encantadas entre
as pessoas e entre os seres podem ser encontradas como fio de cuidado sutil que alinha todas as
histórias, todos os autores, e os questionamentos levantados ao longo desta tese.
Neste sentido, tomar o Cuidado como condutor relacional fundamental passa por um
engajamento em reencantar nosso olhar, nossa maneira de ver. Então, corroboro com as ideias
de Nancy Mangabeira Unger:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que
descobrisse o mar. Viajaram para o Sol. Ele, o mar, estava do outro lado das
dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas
alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus
olhos. E foi tanta imensidão do mar. E tanto seu fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: - Me ajuda a olhar! (GALEANO, 2014, p. 15, grifo do autor).
“Por detrás do mero caráter ordinário da visão das coisas reside o grande espanto de ser
capaz de ver” (INGOLD, 2011, p.196). Quando é possível realmente ver, faltam palavras diante
da imensidão da existência. O sentimento transborda e a respiração cessa por um momento.
Nossas moléculas vibram, nos mostram a própria vida assim, de repente, como se fôssemos
atingidos por um raio que nos recoloca à dimensão que temos, pequenos e reverentes, diante do
170
Pellegrino nos brinda com um abrangente resumo do que seria a função do fenômeno
religioso e de uma espiritualidade no momento atual: tirar o humano de seu estado de aridez da
alma. Realinhar a existência como um exercício da vocação do cuidado. Isso porque, falar sobre
93
“Poderíamos ter aprendido há muito tempo do exemplo das sociedades primitivas o que significa a
perda do numinoso: elas perdem a razão de ser, o sentido de sua vida, sua organização social e, então,
se dissolvem e decaem. Encontramo-nos agora na mesma situação. Perdemos algo que nunca chegamos
a entender direito [...] Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e
espirituais” (JUNG, 2015, p. 96-97).
171
94
Para nós, humanos modernos, só é possível conhecer o mundo se nos apartarmos dele; para os povos
originários, isso não faz o menor sentido. E os sonhos são compreendidos por muitos povos como uma
possibilidade de comunicação entre o que sonha e o mundo.
95
A religião é uma poderosa fonte inspiradora desses valores, mas eles podem existir também para além
dela, na cultura e nos comportamentos das pessoas a-religiosas. O ser humano precisa voltar, como filho
pródigo da parábola evangélica, à Mãe Terra da qual se exilou e sentir-se guardião e cuidador. Então
será refeito o contrato natural, e se ainda se abrir ao Criador, saciará sua sede infinita e colhera como
fruto a paz e o descanso do coração (BOFF, 2017, p. 112).
172
Religar-se aos mistérios do mundo através de diversos modos de ler é ampliar a nossa
compreensão do que é sabedoria. Trata-se de ouvir, ver e assimilar o que nos dizem e mostram
os intelectuais provenientes de “outros mundos”, sem deixar que nossa compreensão
categorizante limite nossa capacidade de escuta e apreensão.
Cumprir esta vocação, como dizia Pellegrino, significa viver em potência. O que
significa habitar nossa própria vida em pura potência? Cumprir a saga? Como se pergunta Boff
(2002, p. 57), citando Jung. Talvez seja encontrar com o sagrado no cotidiano, em qualquer
circunstância, viver o espanto. Realizar um trabalho que traga alimento simbólico e sentido à
vida. O presente, a presença, o sentir e o pensar. O pensar a partir do sentimento e dos sentidos
perceptivos. Desenvolver uma Inteligência Sensível e com ela ser capaz de respirar. Habitar o
lugar do “pré-sentimento” da ligação de tudo com tudo. Não de maneira abstrata, mas
simplesmente ser-no-mundo.
Muito se escreve sobre isso atualmente. De certo modo, o Ocidente absorveu os
conceitos de presença, meditação, estar no aqui e agora, provenientes do Oriente. Porém,
173
acredito que o homem típico ocidental ainda não alcançou o grau de maturidade que este tipo
de vivência exige. Podemos afirmar que vivemos certa orientalização do Ocidente, mas isso se
dá muito mais no discurso do que na prática.
Ao reler e transcrever estas palavras, senti que precisava de uma pausa. Respirei fundo.
Como fazer estas palavras habitarem em mim? – Me perguntei. Fiz um chá de folhas da
amoreira que eu mesma plantei e com isso me lembrei do privilégio que tenho de morar em
meio a uma pequena mata na cidade. Dia de inverno, Sol lindo. Fui deitar no chão do quintal
para olhar o céu e sentir o vento. Os gatos se acercaram, gostosos companheiros. Aos poucos
fui distinguindo o som e o movimento de inúmeros passarinhos. Bem-te-vis, andorinhas,
maritacas, uma paineira lá no fundo com plumas que saltavam para alcançar a terra. Cores e
mais cores que bailavam e com isso me embalavam. Senti o peso do céu sobre mim. Estiquei
as costas, pressionando contra o solo, alonguei os braços e pernas tentando criar espaço, crescer,
tocar mais longe. Ou ser tocada mais fundo. O mundo fala o tempo todo. “Crescemos no mundo
à medida que o mundo cresce em nós”96 (INGOLD, 2017, p. 14), me lembrei.
“Crescendo no mundo, o mundo cresce neles” (INGOLD, 2015, p. 30); “Growing into the world, the
96
filosófica e cultural acabou por nos privar da possibilidade de interagir com o que é considerado
óbvio por essas pessoas.
Em um programa de entrevistas, Ailton Krenak responde de forma contagiante às
perguntas mais profundas de nossas buscas filosóficas:
Krenak, o que é a natureza? – A natureza, não tem como nós que somos poros
da terra, nomear ela. Não tem como a gente nomear a natureza. A natureza é
uma abstração de um mundo de ideias. Em nenhuma tradição antiga, essa
coisificação da natureza se sustenta. Ela só existe como uma idealização de
uma cultura que quer incidir sobre a vida na terra para alterar essa paisagem,
se apropriar dela. É o negócio do general [que diz]: eu vim aqui comprar sua
terra. Só essa mentalidade é que pensa a natureza.
E o que é o tempo? – É a duração da nossa experiência de observador aqui no
mundo.
O que é a vida? – Eu só experimento alguma coisa sobre isso, mas da mesma
maneira que eu não sei nomear a natureza, eu não sei nomear o que é a vida.
É uma experiência maravilhosa que eu estou passando por ela aqui.
Indescritível. Viver é a coisa mais maravilhosa que um vivo pode
experimentar, mas está cheio de zumbi por aí, né? Os zumbis devem ficar
pensando: pô, esses caras vivendo por aí, são preguiçosos, ficam vivendo,
andando na floresta. Talvez o grande drama seja isso: tem gente vivendo e tem
gente zumbizando (KRENAK, 2019).
Para alguns ameríndios brasileiros, nós que vivemos nas cidades e obedecemos aos
ditames de um tempo artificial, estamos zunbizando. Ou, como diz Kopenawa, falamos uma
língua de fantasmas97 (KOPENAWA, 2015, p. 77), com “a cabeça cheia de esquecimento”
(KOPENAWA, 2015, p. 10). Perdemos a capacidade, ou a oportunidade, de simplesmente
viver. Obedecemos a um cronograma que constantemente nos afasta de nós mesmos, vivemos
à base de aparelhos, dando importância ao que realmente não tem importância98. Com isso,
perdemos a dimensão do maravilhamento e da admiração.
Neste contexto, Davi Kopenawa e Ailton Krenak se destacam como grandes
embaixadores e porta-vozes das mensagens de outro mundo, físico e também encantado. Um
mundo onde as relações de causalidade são descritas apontando para os pontos mais frágeis de
nossa branca compreensão de mundo. “Eles são engenhosos, é verdade, mas carecem muito de
sabedoria” (KOPENAWA, 2015, p. 65).
97
“a gente comum, que só tem olhos de fantasmas” (KOPENAWA, 2015, p. 111).
98
Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio de A queda do Céu, atesta: “Esse é talvez, o juízo mais cruel
e preciso até hoje enunciado sobre a característica antropológica central do ‘povo da mercadoria’ [...]
Os brancos, em suma, sonham com o que não tem sentido. Em vez de sonharmos com o outro, sonhamos
com o ouro” (2015, p. 38).
175
Por isso quero mandar minhas palavras para longe [...]. Se as escutarem com
atenção, talvez os brancos parem de achar que somos estúpidos. Talvez
compreendam que é seu próprio pensamento que é confuso e obscuro, pois
nas cidades ouvem apenas o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores e
máquinas. Por isso suas ideias costumam ser obscurecidas e enfumaçadas.
Eles dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa
(KOPENAWA, 2015, p. 76).
Ao contrário de nós, esses povos são capazes de ouvir e compreender os cantos da Terra.
Leonardo Boff também nos relembra da importância de aprendermos a escutar o que a natureza
nos fala através das nuvens, do canto dos pássaros, do relevo, da cor, do movimento e da
temperatura das águas, do vento, e assim por diante99. Diz que “só dominamos a natureza,
obedecendo-a; quer dizer, escutando o que ela nos ensina. A surdez nos dará amargas lições”
(BOFF, 2018, p. 148). Embora eu considere que o desejo de dominação da natureza devesse
passar a ser considerado como patológico e com cuidado nos consultórios psiquiátricos, trago
essa citação pela ideia de obediência. Ser obediente é bem diferente de ser servil. Os povos
ligados ainda às sabedorias da Terra são obedientes a uma força experienciada como maior que
eles. Nós, modernos, em nossa ânsia de dominação, somos servis a um sistema de consumo que
nos coloca dentro de uma dinâmica insaciável de aquisição de mercadorias. Na passagem a
seguir, Krenak dá um exemplo de obediência:
Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama
da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem
uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De
manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se
o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara
do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando
ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando sua cabeça,
toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o
que quiser” [...] No equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos
Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe,
pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as
pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão
comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por que essas
narrativas não nos entusiasmam? Por que que elas vão sendo esquecidas e
apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar
a mesma história para a gente? (KRENAK, 2019, p. 18-19)
99
Para os primeiros filósofos, pensar a partir da coisa presente no mundo ao redor é pensar o fogo, a
água, o ar, o ser, a transformação de umas em outras, o nascer e o perecer. O rio heraclítico não é
puramente simbólico: é banhando-se no rio concreto que percebemos a estrutura contraditória das coisas
que são (UNGER, 2000, p.32).
176
Não pensem que a floresta é vazia. Embora os brancos não vejam, vivem nela
multidões de espíritos, tantos quanto animais de caça [...]. Tampouco pensem
que as montanhas estão postas na floresta à toa, sem nenhuma razão. São casas
de espíritos, casas de ancestrais. Omama as criou para isso. São muito valiosas
para nós. É do topo delas que os xapiri descem para as terras baixas, por onde
vêm a nós quando bebemos yãkoana para chama-los e fazê-los danças [...].
Mas estas são palavras que os brancos não compreendem. Pensam que a
floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda.
Então dizem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear suas
casas, os caminhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem! Não querem
ouvir nossas palavras nem as dos espíritos. Preferem permanecer surdos
(KOPENAWA, 2015, p. 118-476).
Embora nós brancos, em sua grande maioria, tenhamos sido ensinados a não ver e até
mesmo a repudiar explicações de mundo que levem em consideração a possível existências de
seres e coisas que não podem ser comprovadas, pondero que, a partir de uma inteligência
sensível, este tipo de explicação de mundo pode se tornar plausível. Pelo menos
imageticamente. Pelo menos pelo respeito à tradição desses povos. Davi Kopenawa nos revela
também sua explicação sobre como surgem os cantos usados pelos xamãs para curar os doentes
e também segurar o céu no lugar. Trata-se de uma explicação repleta de encantamento e beleza:
Os cantos dos espíritos se sucedem um após o outro, sem trégua. Eles vão
colhê-los nas árvores de cantos que chamamos amoa hi. Omama criou essas
árvores de línguas sábias no primeiro tempo, para que os xapiri possam ir lá
buscas suas palavras. Param ali para coletar o coração de suas melodias, antes
100
A nova espiritualidade reconcilia o ser humano com o universo. Ele não precisa ter vergonha de suas
raízes cósmicas. Antes, pelo contrário, afirma-as como forma de comunhão com o todo. Este ser da
classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie
sapiens e da ‘hecceitas’ transcendente, em uma palavra, o ser humano concreto, não é, certamente, meio
para nada. Ele é um fim. Mas não um fim último. Nem coroa da criação. É um irmão e uma irmã das
lesmas e das estrelas (BOFF, 2000, p.14).
177
Essa imagem da árvore cheia de lábios que canta para nós de modo ininterrupto pode
ser uma alegoria dessa qualidade poliglota do mundo e que, caso reconhecida e valorizada,
contribui para o caminhar conjunto fortalecido pela diversidade. Esta é a imagem de uma árvore
da vida, presente em tantas outras tradições, que alimenta a beleza e o cuidado. Trata-se de uma
compreensão de mundo no qual cada elemento tem seu lugar e propósito pelo simples fato de
existirem ou de serem criados em nossos sonhos. Trata-se de uma compreensão de mundo que
visa escorar cada existência em seu lugar e propósito. E, principalmente, que descreve a
interação entre seres e coisas que podem ser vistos e seres e coisas que não podem ser vistos
como o pilar principal da vida. Para eles, o que nós, “civilizados”, estamos (re)descobrindo
agora – ou seja, a interdependência e interação de tudo – é vivido, é fundado na experiência.
Não precisa de comprovação “extra-sensorial científica”. Trata-se de um modo de compreensão
de mundo que revela e sustenta o mistério em estado de perplexidade e reverência. Escutá-los
e deixar com que as palavras destes povos habitem em nós é o nosso grande desafio101:
Per-plexo está aquele que se abre à estranheza do presente, aquele que ama a
trama. Nesta entrega, aquele que tece é também tecido na rede de um real em
constante mutação. Entrelaçamento de múltiplos fios na composição da trama,
toda tessitura é evocação do Um e do múltiplo, de identidade e diferença. Aos
tecelões perplexos de um pensar no presente, o trabalho da trama, a alegria da
criação e o desa-fio de sua interminável renovação (UNGER, 2000, p. 33).
A projeção da utopia no passado ou sua projeção no futuro pode ter seu valor
como paradigma (UNGER, 2000, p.32).
101
“Deixar-se hospedar pelo outro, com todos os desdobramentos aí envolvidos, é o caminho que se
abre nesse tempo sombrio das afirmações identitárias e dos fundamentalismos nefastos. Para tanto,
firma-se o passo do diálogo” (TEIXEIRA, 2017, p. 19).
178
Imaginar não significa colocar uma imagem inerte e imaterial diante dos
olhos, mas contemplar a força que permite transformar o mundo e uma porção
de sua matéria em uma vida singular. Imaginando, a semente torna necessária
uma vida, deixa seu corpo se emparelhar com o curso do mundo. A semente é
o lugar onde a forma não é um conteúdo do mundo, mas o ser do mundo, sua
forma de vida. A razão é uma semente, pois, diferentemente do que a
modernidade se obstinou em pensar, não é o espaço da contemplação estéril,
não é o espaço da existência intencional das formas, mas a força que faz existir
uma imagem como destino específico de tal ou qual indivíduo ou objeto. A
razão é o que permite a uma imagem ser um destino, espaço de vida total,
horizonte espacial e temporal. É necessidade cósmica e não capricho
individual (COCCIA, 2018, p.21).
O ser humano moderno insiste em brincar de Deus. Cada um de nós faz isso quando, a
partir de um ponto de vista, que é sempre restrito, se acha no direito, e muitas vezes no dever,
de categorizar o que é bom e mau, o que é certo e errado, traçando verdades tidas como
absolutas, imutáveis e universais. E, neste contexto, o mau sempre é o outro, o estranho, o
diferente. Dificilmente alguém se auto intitula mau ou reconhece o mau que o habita102.
Entramos em um processo de negação de uma parcela que também nos é característica, e assim
ela acaba agindo por si só. Este processo pode ser sintetizado pela descrição que Eliane Brum
faz em relação ao tema do excepcionalismo humano, presente em nossas mais corriqueiras
atitudes.
Nós começamos por nos considerarmos especiais em relação aos outros seres
vivos. Isso foi o primeiro passo para, em seguida, alguns de nós começar a se
achar melhores do que os outros seres humanos. E nisso começou uma história
maldita em que você vai cada vez excluindo mais. Você começou por excluir
os outros seres vivos da esfera do mundo moral, tornando-os seres em relação
aos quais você pode fazer qualquer coisa, porque eles não teriam alma. Esse é
o primeiro passo para você achar que alguns seres humanos não eram tão
humanos assim. O excepcionalismo humano é um processo de monopolização
do valor. É o excepcionalismo humano, depois o excepcionalismo dos
brancos, dos cristãos, dos ocidentais... Você vai excluindo, excluindo,
excluindo... até acabar sozinho, se olhando no espelho da sua casa (BRUM,
2014, p. 18-19).
102
“A grande questão disposta no livro é aquela que acompanha o itinerário de Riobaldo: existe ou não
o Demo? Para o narrador, a grande questão “é a existência dele: existe ou não? Em princípio, sente que
é um nome atribuído à parte torva da alma”31. Na conversa com o interlocutor, Riobaldo esclarece:
“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado,
ou o homem dos avessos” (GSV: 15)32. Esses conflitos de Riobaldo no plano subjetivo correspondem
nitidamente aos conflitos universais pelos quais passa todo ser humano. Não há quem não tenha essa
ambiguidade dentro de si. Faz parte do drama de estar situado no mundo, da busca do “sentido da
vida”33. São dramas humanos que Guimarães Rosa, com sua arte, consegue sensibilizar o leitor”
(TEIXEIRA, 2019, [n.p.]).
179
“Não tiro sombras dos buracos” (ROSA, 2019, p. 53), já dizia Riobaldo em Grandes
Sertões: veredas. É chegada a hora de encararmos de frente as sombras que a Era das Luzes
nos deixou. É chegada a hora de compreendermos que nossas ações na biosfera são fonte e
causa de muito sofrimento. Isso porque talvez ainda tenhamos a oportunidade de refundar nossa
compreensão de mundo com base em uma ética que possibilite a continuidade da vida. Espero
ter conseguido demonstrar ao longo desta tese que já está em curso o surgimento de uma nova
mentalidade, ainda em bolsões de consciência aqui e ali, mas que aos poucos têm se alinhado
em o que Leonardo Boff chama de “ecologização dos saberes”103 (2018, p. 98). Este tópico
consiste em uma tentativa de sistematizar essas ideias como força de paradigma.
Ainda no início do século XX, ressurge, então, para a mentalidade ocidental, a ideia da
interdependência elementar que funda e sustenta a vida na Terra. Afirmo que é um
ressurgimento porque há indícios de que o sentido de interdependência foi algo que se perdeu
ao longo do tempo, mas que nunca submergiu completamente. Davi Kopenawa nos fala a este
respeito:
Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o centro das palavras que os
brancos chamam de ecologia. É verdade! Muito antes de essas palavras
existirem entre eles e de começarem a repeti-las tantas vezes, já estavam entre
nós, embora não chamássemos do mesmo jeito. Eram desde sempre, para os
xamãs, palavras vindas dos espíritos, para defender a floresta [...]. Se
tivéssemos livros, os brancos entenderiam o quanto são antigas para nós! Na
floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto
nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento
e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o
que ainda não tem cerca (KOPENAWA, 2015, p. 479-480).
Ou seja, segundo Davi, nós, que ele chama de brancos, precisamos criar um termo novo
para designar algo que já é profundamente experimentado como modo de vida dos povos que
103
Ecologização dos saberes: saber de saberes entre si relacionados criando uma comunidade de vida
(BOFF, 2018, p. 98).
180
não reconhecem nossas cercas, as conceituais e as físicas. Ele está mesmo muito atento às
palavras que usamos e aos sentidos sutis que elas carregam. Faz isso como um exercício de
diálogo em que aponta novamente para a fragilidade de nossos conceitos:
Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma outra palavra:
meio ambiente. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da
terra e da floresta ferida por máquinas. É o que resta de tudo o que eles
destruíram até agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve ser
recortada pelo meio. [...]. Prefiro que os brancos falem de natureza ou de
ecologia inteira. Se defendermos a floresta por inteiro, ela continuará viva. Se
a retalharmos para proteger pedacinhos que não passam da sobra do que foi
devastado, não vai dar em nada bom. Com um resto das árvores e dos rios, um
resto dos animais, peixes e humanos que nela vivem, seu sopro ficara curto
demais [...]. Os brancos já desmataram quase toda a sua terra. Mantiveram
apenas alguns retalhos de sua floresta e puseram cerca em volta deles. Acho
que pretendem fazer o mesmo com a nossa. (KOPENAWA, 2015, p. 484-
485).
Este trecho se configura como uma brincadeira com as palavras, em que Davi se refere
a lógica implícita que levou a ideia de natureza como uma amplidão selvagem envolvendo ilhas
de civilização, contra a ideia de meio ambiente, e da qual surgem as reservas, ou seja, resíduos
de natureza cercados – parques nacionais e espaços verdes – ilhados em um espaço
industrializado englobante (KOPENAWA, 2015, p. 681, nota 44).
Leonardo Boff sintetiza quatro tendências básicas da nova cosmologia: a) Ecologia
ambiental – que toma como premissa que a garantia da qualidade de vida está ligada a harmonia
com todas as coisas, primeiramente com a família, com a natureza, com as águas, com as
montanhas e com a economia de subsistência (2018, p. 110); b) Ecologia político-social – ouvir
tanto os gritos da Terra como o grito dos pobres. Levar em consideração a sustentabilidade e
permitir atender às necessidades humanas e animais, presentes e futuras, bem como às
necessidades de repouso e regeneração da Terra (2018, p. 111); c) Ecologia mental – mentes e
corações – passar a considerar a Terra como um superorganismo vivo e a partir da razão cordial
fazer nascer atitudes de cuidado, respeito, compaixão e amor a tudo o que vive (2018, p. 113);
d) Ecologia integral-espiritual – trata-se da ecologia profunda que nos coloca como parte do
universo e que este seria o espírito ordenador da deslumbrante harmonia. Dessa experiência
primal (que é um sentido de reverência) nasce em nós a espiritualidade, tão acentuada no final
da encíclica sobre a ecologia integral, do papa Francisco (2018, p. 115).
181
Nessas quatro esferas estão inseridas as “motivações que levam a uma espiritualidade,
para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo [...] e isso é impossível sem uma mística
que nos anima [...] e dá sentido a uma ação pessoal e comunitária” (LS, n. 216).
CONSIDERAÇÕES
Ao longo deste capítulo final de minha tese, procurei apontar para o que considero ser
a possibilidade da emergência de uma cultura baseada no cuidado. Espero ter conseguido
mostrar como este novo modo de ser no mundo precisa estar fundamentado em uma perspectiva
ética-espiritual que abarque a todos os seres e a própria Terra em seu valor intrínseco. Isto
porque, segundo Eduardo Kohn, trata-se do desafio aliado a nosso tempo: aprender a conviver
como distintos e contínuos ao mesmo tempo:
CONCLUSÃO
Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo Mistério.
O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe mesmo
quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente
sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um
sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer céu porque quer um fim”
(ROSA, 2019, p. 50).
Esta tese foi escrita sob a atmosfera de muita angústia. Isso se deve em parte ao fato de
eu ter percebido, ao longo de meu percurso de estudos e de vida, que quase tudo que está sendo
dito aqui, na verdade, se trata de um redizer. Redizer, relembrar, recontar, reafirmar modos de
pensar que já foram formulados ao longo de todo o caminho da humanidade, mas que ainda não
se tornaram expressos no sentir e agir mais íntimo de nós, seres humanos. E talvez nunca se
tornem.
A angústia se agravava também por uma ambivalência interna entre uma tendência
pessoal de pensar de forma romântica e utópica, contra uma evidência, trazida pela pesquisa,
pela fala dos autores referendados, de que qualquer reflexão esperançosa tenderia a ser
superficial. O objetivo desta tese era relatar narrativas que emergem em torno da função do
cuidado dentro de nossas relações, de como a ideia do cuidado pode tecer uma concepção de
espiritualidade capaz de trazer ao ser humano a consciência de que é somente um entre os
diversos seres da criação. Considero que neste ponto ela é bem-sucedida. É possível afirmar
que seja qual for a causa que tomemos como nossa, chegaremos à questão do cuidado como
imperativo no momento atual. Sinto que esta tese consiste em uma espécie de pupurri de
possibilidades neste sentido.
Porém, hoje, diante do que foi escrito e dos fatos que ocorreram no mundo nos últimos
quatro anos, percebo que a barbárie, como diz Isabelle Stengers (2015, p. 13), alcança uma
magnitude que talvez seja irreversível. Além disso, percebo que a angústia que me moveu
durante a pesquisa – o sentimento de indignação e a forçosa resistência – pode representar o
mais potente modo-de-ser-no-mundo hoje. É preciso re-existir através dos modos, pensamentos
184
e sentimentos que levam a uma assimilação pessoal e coletiva da Cultura do Cuidado. Mesmo
que não tenhamos a menor garantia de sucesso. Mesmo que talvez esta guerra já esteja perdida,
como diz Bruno Latour (2012, p. 483).
ENTRE
Um homem vai por um caminho, chega à bifurcação. Hesita longamente entre
um lado e outro. Afinal, a poder de foice, abre no meio dos dois um terceiro
caminho (COLASANTI, 2013, [n.p.]).
Esta parece ser a tarefa de nosso tempo: encontrar, abrir a foice, ou até, como força de
um automergulho, inventar um terceiro caminho. Segundo Stengers, nossa missão atual
consiste em uma emancipação contra uma forma clandestina de transcendência que se
materializa como o direito de não ter cuidado (2015, p. 54). Não há mais como continuar
vivendo como se nada estivesse acontecendo.
Chegamos ao limite do antropocentrismo despótico (LS, 68) e do paradigma
tecnocrático (LS, 108). A deterioração ética, cultural e espiritual a que estamos submetidos –
que na verdade se inicia antes de nós, habitantes atuais do planeta, mas a qual mantemos em
cada uma das mais simples escolhas do cotidiano104 – está diretamente ligada a uma crise
ambiental sem precedentes desde que histórias passaram a ser contadas. Conforme foi
trabalhado na tese, esta crise fundamenta e ao mesmo tempo é fundamentada por uma profunda
desconexão do humano moderno em relação às suas fontes de sentido. Sejam elas seu próprio
corpo, sua casa, seu cuidado com a infância, um senso de segurança proveniente de relações
comunitárias; sejam elas sua conexão com a Terra, seus ciclos e belezas. Neste contexto,
podemos constatar que Heschel tem razão quando diz que “o avançar da civilização comporta
quase necessariamente o declínio do senso da maravilha. E este fato constitui um alarmante
sintoma do nosso estado de ânimo” (2001, p. 45). A maioria de nós segue melancolicamente
imerso em um complexo e catatônico estado de impotência coletiva.
Contudo, e ainda bem, algumas vozes se levantam como fonte de luz, de resistente
insistência e de ação. Esta tese se configura como uma proposta de escuta de algumas das
narrativas construídas por essas pessoas. E, ao vê-las aqui reunidas e propagadas, cresce a
sensação de que provavelmente existem muito mais vozes engajadas em um reencantamento
do mundo, e que felizmente esse assunto não se esgota nestas páginas.
104
“Nas grandes cidades do Brasil e do mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos
atos cotidianos se fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos obrigados a questionar a origem
da roupa que vestimos ou a origem da comida que comemos” (BRUM, 2019, [n.p.]).
185
Uma das pessoas que se dedica à insistente resistência é Leonardo Boff, cujo
pensamento pode ser sintetizado nas seguintes passagens:
Esta, assim nomeada por Boff, nova era ecozoica, recebe um nome diferente a partir do
pensador que a consagra. Entretanto, se trata do mesmo e grandioso fenômeno que passa a
invadir nosso ideal de mundo neste momento histórico: precisamos fazer retornar a Terra ao
centro do universo. Pelo menos do nosso universo. Isso porque, assim como todos os outros
habitantes do planeta, nós humanos não existiríamos sem a Terra e seu frágil, precioso e preciso
equilíbrio que propiciou o surgimento e a manutenção da vida até agora. E para que a
importância do cuidado com a terra seja recolocada, se faz necessário um desinvestimento do
modo de pensar que eleva o humano a um lugar excepcional diante de todos os não-humanos,
sejam eles rochas, plantas, animais, seres reconhecidamente vivos ou não: seres de todas as
ordens.
Trata-se de nos tornarmos capazes de fazer novas perguntas, transgredir nossa lógica,
habitar o campo da incerteza e não cair na tentação de tentar dominá-lo. Não abrir mão da
angústia saudável que provém do espanto, do encontro com o novo, com o mistério: entrar em
um devir criança, devir mulher, devir índio, devir louco, devir rio, devir montanha, devir
passarinho, etc. Gostaria de ter podido explorar mais este campo e sugiro como pontos de
investigação/vivência vindouros. Assim como a função dos sonhos em nossas construções de
mundo. Tanto no campo onírico, como a possibilidade de sonhar acordados. Deleuze foi um
186
autor que margeou minhas investigações, mas com o qual ou sobre o qual não fui capaz de
aprofundar, infelizmente. Porém, intuitivamente, considero que esta tese trate de uma
possibilidade de abertura de um campo de compreensão que descentralize nossas certezas e
contribua para retirar de nós a tendência quase inata de sermos universalizantes, colonizadores
do outro, como um propósito quase consciente de excluir o estranho para proteger a nós mesmos
da angústia que emerge do auto estranhamento. Espero até mesmo ter conseguido provocar o
estranhamento, aquele sentimento que possibilita tocar as inseguranças, aquelas que fazem com
que fronteiras rígidas sejam erguidas para apartar qualquer fenômeno que nos tire da zona de
zumbi, ou fantasma, como nomeiam Krenak e Kopenawa, respectivamente.
Uma pergunta chave a ser colocada é: como habitar o desconhecido e aberto de nós-no-
mundo em respeito e reverência? Não sei a resposta, academicamente falando. Porém, intuo
que uma possibilidade de resposta passa pela peregrinação por vivências, e não por respostas
conclusivas; passa pelo imperativo da presença, ou seja, por uma ausência da busca pela
finalidade ou por resultados. Algo que significa habitar o lugar do espanto, como diz Ingold.
O aqui-e-agora que nos lembra que estamos todos vivos e que “estar-aqui é esplendor”!
(RILKE, 2013, p. 61). Algo que nos leve a colocar a vida como imperativo de legitimidade em
si mesma e a aceitar que tudo que acontece no mundo se relaciona, de alguma maneira, com
cada um de nós e ao mesmo tempo conosco, com nossa coletividade: “Cada ser vivo, cada
espécie viva, é uma manifestação da bondade do Criador” (GARMUS, 1992, p. 280).
IT’S WILD
Ecoa de passagem, no silêncio da reserva, a música vinda de um jipe de
turistas. “Baby, baby, it’s a wild world!”. Canta Cat Stevens.
E a leoa tranquiliza sua cria: “Liga não, filho, não é a nós que ele se refere”
(COLASANTI, 2013, [n.p.]).
Stengers levanta a questão: “há, agora, a ideia de que tentar pensar o futuro coletivo é
um direito legítimo?” (2015, p.121). Esta tese procura demonstrar que a resposta a esta
indagação é positiva. Emerge um modo de pensar que coloca o futuro de nossa coletividade
como prioridade absoluta e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que qualquer ação
proveniente desta mentalidade precisa ser local. Não haverá uma solução única capaz de abarcar
toda a ampla complexidade dos seres viventes. As sabedorias, as crenças, os valores e as
necessidades de cada povo-pessoa precisam basicamente ser consideradas para a construção de
um futuro que seja amplamente coletivo e passível de ser vivido. Conceitos como o
ecocentrismo e a florestania contribuem sobremaneira neste sentindo. Porém, Stengers salienta
que neste caminho é fundamental que cada pessoa aprenda a pensar. Que a passividade seja
substituída pela ação inclusive no pensamento.
É vital que “as pessoas” pensem, e essas pessoas não são os “outros”, aqueles
de que falam “nossos responsáveis” sem jamais se incluir dentre eles.
Aprender a pensar, a colocar as próprias questões, a se situar escapando da
evidência do “qualquer um” nunca é um conteúdo a ser adquirido, definindo
uma elite contra o rebanho submisso. A única coisa que se pode adquirir é o
gosto e a confiança no pensamento. E aqueles e aquelas que os adquirem hoje
conhecem a “oportunidade” que têm, podem narrar o encontro ou o
acontecimento aos quais devem essa experiência, cuja possibilidade a escola
e a mídia lhes tinha feito ignorar: não “eu penso”, mas “algo que faz pensar”
(STENGERS, 2015, p. 125).
A ideia então seria um esforço, pessoal e coletivo, em fazer uma releitura de nossas
narrativas e de nossa História, com o objetivo de ressaltar as nuances de engajamento, de
pensamento coletivo, de ajuda mútua, de busca de soluções horizontais e comunitárias.
Consistem em modos de contar o reencantamento do mundo passando pela consideração de
causas comuns que incluem singularidades e que nos libertam das amarras que o modo linear
de pensar nos oferece. Considero que esta tese represente um passo para este feito quando
transita entre autores de diferentes disciplinas e áreas de saber. Quando busca lampejos dessa
nova consciência que se mostra presente, ainda que de forma difusa, disseminada e
diversificada. Talvez, com isso, a reunião dos escritos desta tese possa ter ferido algumas regras
preexistentes e ultrapassado algumas fronteiras. Principalmente no que tange ao fato de ter
incluído relatos de minha experiência pessoal em meio a argumentações teóricas. Fiz isto com
dois objetivos: um deles foi apresentar o modo processual como meu próprio pensamento foi
sendo construído e acolhendo tanto o engajamento, quando o encantamento. O outro é que
considero que este processo passa necessariamente pelo corpo e pela lembrança e releitura de
nossas memórias, portanto, é preciso que passemos a considerar relatos pessoais, experiências
sensoriais e em última instância, afetos, como pertinentes dentro de nossas buscas acadêmicas.
Tim Ingold era um autor que eu não conhecia antes de começar os estudos do doutorado.
Ter contato com seu modo de pensar foi fundamental para que eu pudesse desenvolver a tese
da forma como foi construída. Ele esclarece que ao ter contato com uma disciplina, um livro ou
189
uma teoria não devemos pensar só na bibliografia textual que fundamenta seus argumentos,
mas na vida que se insere nela.
Porque reconhecemos apenas fontes textuais, mas não o chão em que pisamos,
os céus em constante mudança, montanhas e rios, rochas e árvores, as casas
nas quais habitamos e as ferramentas que usamos, para mencionar os inúmeros
companheiros, tanto animais não humanos quanto os outros seres humanos,
com os quais e com quem compartilhamos nossas vidas? Eles estão
constantemente nos inspirando, nos desafiando, nos dizendo coisas. Se o
nosso objetivo for ler o mundo, como eu acredito que deva ser, então o
propósito de textos escritos deve ser enriquecer nossa leitura para que
possamos ser melhor aconselhados pelo mundo e capazes de responder ao que
nos está dizendo (INGOLD, 2011, p. 12).
Considero que este autor me deu os recursos necessários para que eu pudesse traduzir,
encontrar um fio de coerência e expressar em palavras o que precisava nascer em minha
pesquisa. Junto com ele pude compreender que o objetivo é o próprio caminho e que uma
trajetória é formada por ciclos de inícios e fechamentos, mas que profundamente há uma
continuidade. E neste ponto é preciso fechar o meu caminho doutoral. Considero que a melhor
maneira de concluir será entoando a alegria. Este que aprecio ser sentimento que precisa se
tornar o símbolo da resistência neste nosso tempo, o sentimento que se bem sentindo, pode
encantar nosso olhar com o dom do cuidar do mundo. Fecho com a alegre provocação de
Stengers para o bem viver, e com o sentido de preservação do mistério, de Rumi:
A alegria é transmitida não de alguém que sabe a alguém que é ignorante, mas
de um modo em si mesmo produtor de igualdade, alegria de pensar e de
imaginar juntos, com os outros, graças aos outros. Ela é o que me faz apostar
em um futuro em que a resposta a Gaia não seria o triste decrescimento, e sim
o que os objetores de crescimento já inventam quando descobrem juntos as
dimensões da vida que foram anestesiadas, massacradas, desonradas em nome
de um progresso hoje reduzido ao imperativo de crescimento. Talvez,
finalmente, ela seja o que pode desmoralizar nossos responsáveis, leva-los a
abandonar sua triste pose heroica e a trair o que os aprisionou [...] Não se está
dizendo que tudo então acabará bem, pois Gaia ofendida é cega para nossas
histórias [...] Tal resposta, que ela não ouvirá, confere à sua intrusão a força
de um apelo a vidas que valem ser vividas (STENGERS, 2015, p. 153).
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