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A Cultura Do Cuidado Carolina

Este documento apresenta a tese de doutorado de Carolina de Carvalho Duarte Guimarães na Universidade Federal de Juiz de Fora intitulada "A cultura do cuidado: narrativas de reencantamento do mundo". A tese argumenta que a consciência do cuidado em nossas relações pode reencantar nossas percepções de mundo ao nos fazer perceber como um ser entre muitos na criação. A pesquisa é transdisciplinar e analisa mitos, narrativas contemporâneas e perspectivas de diversas áreas para propor uma espirit
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A Cultura Do Cuidado Carolina

Este documento apresenta a tese de doutorado de Carolina de Carvalho Duarte Guimarães na Universidade Federal de Juiz de Fora intitulada "A cultura do cuidado: narrativas de reencantamento do mundo". A tese argumenta que a consciência do cuidado em nossas relações pode reencantar nossas percepções de mundo ao nos fazer perceber como um ser entre muitos na criação. A pesquisa é transdisciplinar e analisa mitos, narrativas contemporâneas e perspectivas de diversas áreas para propor uma espirit
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

POS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO


DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Carolina de Carvalho Duarte Guimarães

A cultura do cuidado: narrativas de reencantamento do mundo

Juiz de Fora
2019
Carolina de Carvalho Duarte Guimarães

A cultura do cuidado: narrativas de reencantamento do mundo

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciência da Religião, área de
concentração: Tradições Religiosas e
perspectivas de Diálogo, da Universidade
Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutora em Ciência
da Religião.

Orientador: Prof. Dr. Faustino Luiz Couto Teixeira

Juiz de Fora
2019
Carolina de Carvalho Duarte Guimarães

A cultura do cuidado: narrativas de reencantamento do mundo

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Ciência da Religião, área de
concentração: Tradições Religiosas e
perspectivas de Diálogo, da Universidade
Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutora em Ciência
da Religião.

Aprovada em 30 de setembro de 2019

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Prof. Dr. Faustino Luiz Couto Teixeira (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora

_____________________________________________
Prof. Dr. Volney Berkenbrock
Universidade Federal de Juiz de Fora

_____________________________________________
Profa. Dra. Maria Cecília dos Santos Ribeiro Simões
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro
Universidade Federal Fluminense

_____________________________________________
Profa. Dra. Laura Cristina de Toledo Quadros
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Aos seres encantados, em sua ampla
diversidade.
AGRADECIMENTOS

À Terra e seus seres.

Ao meu orientador Faustino Luiz Couto Teixeira, meu querido mestre!

Às “meninas do Faustino”.

Aos maravilhosos professores do Departamento de Ciências da Religião da Universidade


Federal de Juiz de Fora. Especialmente à Volney Berkenbrock e Cecília Simões.

Aos coordenadores da pós-graduação Rodrigo Portela e Clodomir Andrade.

Aos meus filhos, Joana e Guido, maravilhosos amados.

Ao Mauro, por ser um pai a quem posso confiar meus filhos.

Aos meus queridos pais, Nádia e Roberto e ao meu padrinho Pedro. Vocês são fundamentais.

À Prof. Dra. Betânia Fernandes, minha saudade.

À Universidade Federal de Juiz de Fora e ao Departamento de Ciências da Religião.

Aos componentes da banca examinadora, Prof. Dr. Volney Berkenbrock, Profa. Dra. Cecília
Simões, Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro e Profa. Dra. Laura Quadros que aceitaram,
prontamente, o convite para avaliar a apresentação desta tese.

À CAPES que me concedeu a bolsa de doutorado e fez com que essa realização fosse possível.

Ao Tear.
RESUMO

O objetivo desta pesquisa é captar tons de cuidado emaranhados em nossas relações e


em nossas percepções, de maneira a explicitar a imagem do ser humano subjacente em nossas
visões de mundo e em nossas práticas sociais. Pretende-se assinalar como as histórias que
contamos sobre nós mesmos se transformam ao longo do tempo. Na medida em que o
emocionar que rege as interações humanas se transforma, acontece também uma mudança de
percepção de mundo, e com isso, na cultura. Essa qualidade emocional aponta também para os
objetivos almejados pelos homens e mulheres perante o mundo. Como criaturas e criadores,
travamos este diálogo entre nosso interior e nossas relações, configurando e sendo configurados
pelo o que chamamos de “realidade”. Nesta tese é feita uma re-leitura atenta de mitos de origem,
tanto da era judaico-cristã como de povos originários, e também de narrativas contemporâneas
nas quais se demonstra que a consciência do cuidado pode tecer uma concepção de
espiritualidade capaz de trazer ao ser humano a consciência de que é somente um entre os
diversos seres da criação e, assim, reencantar nossas percepções de mundo. Trata-se de uma
pesquisa transdisciplinar, pois busca abarcar olhares das Ciências da Religião, da Antropologia,
da Física Quântica, da Psicologia e da Biologia, configurando uma perspectiva espiritual-
ecológica acerca das relações dos diversos seres entre si e com a Terra, a qual é nomeada
Cultura do Cuidado.

Palavras-chave: Espiritualidade. Cultura do Cuidado. Ecologia. Gaia.


ABSTRACT

The purpose of this research is to capture care tones entangled in our relationships and
perceptions in order to clarify the underlying human image in our worldviews and social
practices. It is intended to point out how the stories we tell about ourselves change over time.
As the emotion that governs human interactions changes so does a change of perception of the
world and consequently a change in culture. This emotional quality also points to the goals
desired by men and women in the world. As creatures and creators, we have a dialogue between
our interior and our relationships, which configures us and is configured by us through what we
call “reality”. This thesis proposes the elaboration of an attentive rereading of myths of origin
from the Judeo-Christian era and of original peoples. Moreover, it is also proposed here to
reread contemporary narratives, in which it is demonstrated that the conscience of care can
weave a conception of spirituality capable of bringing to the human being the awareness that
he is only one among the various beings of creation and, thus reenchant our perceptions of the
world. This research is a transdisciplinary research as it seeks to encompass views of the
Sciences of Religion, Anthropology, Quantum Physics, Psychology and Biology. This sets up
a spiritual-ecological perspective on the relationships of the various beings with each other and
with the Earth, which is called Care Culture.

Keywords: Spirituality. Care Culture. Ecology. Gaia.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11

1 A CONSCIÊNCIA DO CUIDADO ....................................................................... 21

1.1 NOSSO TEMPO ................................................................................................. 27

1.1.1 O Melancolia .............................................................................................. 32

1.1.1 A falência das certezas .............................................................................. 36

1.2 NOSSAS HISTÓRIAS ....................................................................................... 44

1.2.1 A criação .................................................................................................... 46

1.2.2 As “entrelinhas” ........................................................................................ 49

1.2.3 Palavras de Francisco ............................................................................... 56

1.3 UM FUTURO POSSÍVEL .................................................................................. 60

1.3.1 Palavras de um Xamã Yanomami ............................................................ 61

1.3.2 Palavras de um Monge Vietnamita .......................................................... 69

CONSIDERAÇÕES ................................................................................................. 77

2 GESTOS DE CUIDADO ........................................................................................ 79

2.1 NOSSO CORPO ................................................................................................. 81

2.1.1 Sentidos e movimento ................................................................................ 88

2.1.2 Gestos de outros mundos .......................................................................... 93

2.2 NOSSA CASA .................................................................................................... 97

2.2.1 O mundo como imersão ou ao longo de... ................................................. 102

2.2.2 Moana ........................................................................................................ 109

2.3 NOSSAS CRIANÇAS ........................................................................................ 116

2.3.1 A liberdade e as estrelas ............................................................................ 120

2.3.2 A beleza do espanto ................................................................................... 124


CONSIDERAÇÕES ................................................................................................. 129

3 O RESGATE DA CULTURA DO CUIDADO ..................................................... 131

3.1 ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO ............................................................... 133

3.1.1 Espírito ....................................................................................................... 134

3.1.2 Espiritualidade .......................................................................................... 137

3.1.3 Cuidado ...................................................................................................... 138

3.2 O LEGADO FEMININO .................................................................................... 146

3.2.1 Feminismo em ondas ................................................................................. 150

3.2.2 O Sagrado Feminino: a mulher selvagem ................................................ 160

3.3 O REENCANTAMENTO DO MUNDO ............................................................ 169

3.3.1 Universo poliglota ..................................................................................... 173

3.3.2 Uma nova cosmologia ................................................................................ 177

CONSIDERAÇÕES ................................................................................................. 181

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 183

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 190


11

INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos quatro anos, minha atenção se voltou para o sentido, prático e
teórico, de uma única palavra: cuidado. Uma palavra que carrega em si múltiplos sentidos e
aspectos de ligação de tudo com tudo. Aos poucos ela foi tomando conta de meus passos, de
meus toques, foi permeando o tom de todas as outras palavras. Porém, me parece, que eu, como
pesquisadora não só em livros, mas através das relações, demorei para perceber como a minha
vida já estava preenchida pelo tom do cuidado, que, no fundo, habitava em mim. Demorei
também para permitir que o cuidado atuasse em minha pesquisa, em deixar que ele tomasse o
controle. E isso é muito interessante, pois ao falar, escrever ou pesquisar sobre o cuidado na
terceira pessoa, algo se perdia. Deslocava-se no tempo; perdia o aqui e agora, perdia a presença.
Demorei para perceber e aceitar que esta pesquisa precisa ser sobre o cuidado imbuído de si, na
primeira pessoa. Porque o cuidado é uma espécie de atenção, acontece de dentro para fora e em
plena intensidade. O cuidado é expansão, move a pessoa para tocar, acolher, permear, entranhar
o todo. É o reconhecimento de si no todo. Tem a ver com plenitude, com penetração, fusão. O
cuidado é o próprio pulsar da vida.
Cuidado tem um quê de relação e de amor. É algo que partindo de si inclui a
integralidade do outro; e tem um quê de silêncio, de algo que não se fala, mas que se faz e se
percebe. Tem um quê de alma, mas uma alma que se compreende comum, no sentido de simples
e no sentido de comunitária. Tem um quê de poesia, pois prima pela beleza, pela harmonia.
Tem um quê de ética, um quê de autenticidade, um quê de estética. Esta tese fala da propriedade
do cuidado que puxa o mundo, move as relações; o cuidado mantenedor da vida. Respiro,
respiro de novo. Percebo que o cuidado tem um quê de honra, porque cuidar de algo ou alguém
significa honrar aquela existência. É algo que se emociona e chora diante do encantamento
daquela, e da própria, existência. E mais, o cuidado tem um quê de anonimato, de bastidores,
de estrutura.
O sentido de cuidado carrega uma estrutura, um equilíbrio, um caminho. Carrega uma
espiritualidade sutil ligada à percepção da vida, do desenrolar da vida, um sentido de
continuidade. De algo que não está pronto e que precisa de sustentação, adubo e alimento
cotidianos. O cuidado é um ato corriqueiro, um gesto, um movimento. Algo que precisa ser
vivido todos os dias e não está alheio a nós; ele é intrínseco ao estado da vida, ao estar vivo, ao
se manter vivo. Além disso, o cuidado também tem um quê de angustia, porque nos coloca
desnudos diante dos mais grandiosos mistérios da vida...
12

O objetivo desta pesquisa é captar estes tons de cuidado emaranhados em nossas


relações e em nossas percepções, de maneira a “explicitar a imagem de ser humano subjacente
em nossas visões de mundo, em nossos projetos e nossas práticas” (BOFF, 2002, p. 36). Como
veículos para esta percepção serão utilizadas narrativas (fábulas, lendas, mitos ou contos:
histórias)1 que de forma sensível buscam preencher os homens e as mulheres com um sentido
de ligação, pertencimento e estrutura. Narrativas que alimentam nossas almas nos dias de frio
e sombra, que lembram nossa origem e apontam para futuros possíveis.
A mesmo tempo, pretendo apontar para como as histórias que contamos de nós mesmos
se transformam ao longo do tempo. Segundo Maturana (1993), à medida em que o emocionar
que rege as interações humanas se transforma, acontece também uma mudança de percepção
de mundo, e com isso, na cultura. Essa qualidade emocional aponta também para os objetivos
almejados pelos homens e mulheres perante o mundo. Como criaturas e criadores, travamos
este diálogo entre nosso interior e nossas relações, configurando e sendo configurados pelo o
que chamamos de realidade.
Martin Heidegger dedica um parágrafo de Ser e Tempo ao que ele chama de testemunho
pré-ontológico: a Fábula de Higino. Segundo o autor, embora a força argumentativa e probante
de um testemunho deste tipo seja “somente histórica”, seria também uma genuína expressão do
Dasein (Ser) sobre si mesmo. Afirma que:

Se o Dasein é “histórico” no fundo do seu ser, então uma enunciação que


provém de uma história e em si a ela remete, e, além disso, é anterior a toda
ciência, tem um peso particular se bem que nunca é verdadeiramente
ontológico. O entendimento-de-ser que reside no Dasein ele mesmo se
expressa de modo pré-ontológico (HEIDEGGER, 2012, p. 549)

A tentativa de entender o que o autor quis dizer me leva a afirmar que algumas
narrativas tocam um nível de compreensão humana muito primitivo e ao mesmo tempo
conhecido. Ao analisarmos o conteúdo dessas histórias ao longo do tempo, podemos questionar
os caminhos que temos trilhado como reprodutores, criadores e criaturas, de uma sociedade.
Faz-nos olhar para a História e principalmente para quais foram as ideias que fundamentaram
as atitudes humanas e nos trouxeram até o aqui e o agora. Ou seja, narrativas são recursos para

1
Não se pretende fazer aqui uma diferenciação entre as categorias de fábula, mito, conto etc., e, por
isso, toda e qualquer narrativa será chamada de história, com letra minúscula. Quando estiver me
referindo à História tida como oficial, usarei maiúscula.
13

transmitir conteúdos às vezes profundos, pesados, doloridos, de forma sutil. Trago aqui uma
linda ilustração do que acabo de afirmar:

A fábula da Verdade

Quando foi criada a mulher, foi criada também a Fantasia.


Um dia, a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E tinha que ser justo o
palácio onde morava o sultão Harun al-Rashid. Envoltas as lindas formas num
véu claro e transparente, ela foi bater na porta do rico palácio. Ao ver aquela
formosa mulher, quase nua, o chefe da guarda perguntou-lhe:
- Quem é você?
- Sou a Verdade! - Respondeu ela, com voz firme - Quero falar com o seu amo
e senhor, o sultão Harun al-Rashid!
O chefe da guarda, que cuida da segurança do palácio, apressou-se em levar a
nova ao grão-vizir.
- Senhor, - disse, inclinando-se humildemente, - uma mulher desconhecida,
quase nua, quer falar ao nosso soberano.
- Como se chama?
- Chama-se Verdade!
- A Verdade! - Disse o grão-vizir espantado. - A Verdade quer penetrar neste
palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade
aqui entrasse? A perdição, a desgraça! Diga a ela que uma mulher nua,
despudorada, não entra aqui!
Voltou o chefe da guarda com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:
- Aqui não pode entrar, minha filha. A sua nudez iria ofender nosso Califa.
Volta, pelo caminho de onde veio.
Porém, quando foi criada a mulher, criou-se também a Obstinação.
E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio.
Persistente, ela cobriu as peregrinas formas com um pano grosseiro como os
que usam os mendigos e foi novamente bater na porta do suntuoso palácio. Ao
ver aquela formosa mulher vestida tão grosseiramente com trapos, o chefe da
guarda perguntou-lhe:
- Quem é você?
- Sou a Acusação! - Respondeu ela, brava. - Quero falar ao seu amo e senhor,
o sultão Harun al-Rashid.
O chefe da guarda, que cuida da segurança do palácio, correu a entender-se
com o grão-vizir: - senhor, - disse inclinando-se humildemente -, uma mulher
desconhecida, com o corpo envolto em panos grosseiros, deseja falar ao nosso
soberano.
- Como se chama?
- Chama-se Acusação!
- A Acusação! – Disse o grão-vizir, aterrorizado. Que seria de mim, que seria
de todos nós, se a Acusação entrasse aqui? A perdição, a desgraça! Diga a ela
que aqui não, aqui não pode entrar! Diga-lhe que uma mulher, vestida com
panos grosseiros, não pode falar ao nosso amo e senhor!
Voltou o chefe da guarda com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade:
- Aqui você não pode entrar, minha filha. Com estas roupas rasgadas, próprias
de um beduíno rude e pobre, não podes falar ao nosso amo e senhor, o sultão
Harun al-Rashid! Volta, em paz, pelo caminho de onde veio.
Vendo que não conseguiria realizar seu intento, ficou ainda mais triste a
Verdade, e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso senhor.
Mas...quando foi criada a mulher, criou-se também o Capricho.
14

E a Verdade encheu-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. Vestiu-se


com riquíssimos trajes, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto em
um manto de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor.
Ao ver aquela encantadora mulher, o chefe da guarda perguntou-lhe:
- Quem é você?
- Sou a Fábula! - Respondeu ela, em tom meigo. - Quero falar com o sultão
Harun al-Rashid!
O chefe da guarda, que cuida da segurança do palácio, correu a entender-se
com o grão-vizir.
- Senhor, disse, inclinando-se humilde, uma linda e encantadora mulher,
vestida como uma princesa, solicita a audiência de nosso amo e senhor, o
sultão Harun al-Rashid, Emir dos crentes!
- Como se chama?
- Chama-se Fábula!
- A Fábula! Disse o grão-vizir, cheio de alegria. - A Fábula quer entrar neste
palácio? Que entre! Bendita seja a encantadora Fábula. Receberemos essa
mulher com flores e perfumes. Quero que a fábula tenha, neste palácio, a
acolhida digna de uma verdadeira rainha!
E foram abertas as portas do grande palácio de Bagdá e a formosa peregrina
entrou. E foi assim que, vestida de Fábula, a Verdade conseguiu entrar no
grande palácio do poderoso sultão Harun al-Rashid, Príncipe (MALBA, 1957,
p. 93-98).

As maiores verdades com que costumamos lidar em nosso dia a dia, as verdades que
sustentam nossas relações, ganham expressão viva através das narrativas – as que nos são
contadas e as que contamos.

Os mitos são linguagens para traduzir fenômenos profundos, indescritíveis


pela razão analítica [...] A linguagem consagrada na psicologia científica
vigente representa, em boa parte, um insulto à alma porque, na elaboração de
seus instrumentos de análise, deixa de fora as energias poderosas, verdadeiros
deuses e deusas que habitam a profundidade humana, as imagens e os
símbolos. Preferem os conceitos abstratos, extraídos de um paradigma que
privilegia a física e a mecânica. Devemos, pois, saber combinar inteligência
instrumental-analítica, donde nos vem o vigor científico, com inteligência-
cordial, donde derivam as imagens e os mitos (BOFF, 2002, p. 37).

Vivemos o séc. XXI da era comum. Eu, como pessoa pesquisadora, percebo e falo sobre
o mundo a partir das concepções que imperam sobre este tempo social. Porém, as percepções
de mundo disponíveis para mim também falam de um lugar. Vivo na América do Sul, no Brasil,
minha língua materna é o português. Nasci em meados da década de 1970, cresci em uma
metrópole praiana, em uma família cristã secularizada. Estudei psicologia, sou mãe. Sinto
necessidade de contextos, gosto de pensar sobre como certa ideia surgiu, com base em qual
emocionar. Isso porque a humanidade habita a Terra a muito mais tempo do que o tempo em
15

que minhas, ou nossas, ideias de mundo podem se manter. Temos acesso a resquício de muitas
outras civilizações humanas com valores completamente diferentes dos atuais. Temos também,
convivendo conosco, muitas culturas que entendem o mundo e as relações de formas diversas.
A diversidade é constituinte da riqueza da vida, mas o humano ocidental dos séculos XIX, XX
e XXI se pretende detentor e fundador da verdade sobre todos os humanos, sobre todos os seres
e sobre a Terra. Cunhamos o mundo e nossas relações com base em uma ideia de linearidade
que exclui em essência a experiência da diversidade inerente a vida: monocultura, megacidades,
pensamento acadêmico, tecnológico, verdades absolutas, técnicas de controle, assepsia, etc.
Estas parecem ter sido as ideias que fundamentaram as narrativas que contamos de nós
mesmos, como por exemplo: somos superiores, feitos à imagem e semelhança de Deus; a
capacidade do pensamento racional é a faculdade mais elevada e confiável: com base no
pensamento, evoluímos; A emoção não é mensurável ou previsível, então não se pode confiar
nela; Somos melhores que antes, estamos vivendo o ápice da evolução; A Terra, e tudo que há
nela, nos pertence, portanto, podemos dispor de tudo conforme nos convier.
Meu ponto é que essas ideais estão fundamentas e são propagadas por narrativas.
Algumas delas foram contadas por mestres religiosos ou escritas em livros sagrados, e neste
lugar, ganharam status de verdade. Aos poucos fomos passando a acreditar e passamos a agir
no mundo conforme essas ideias. Mesmo que a história tenha perdido o status de verdade com
a supervalorização moderna e contemporânea da ciência em detrimento da religião, a ideia de
base não foi questionada como explicação de mundo. Estas narrativas continuam agindo sobre
nós, mesmo que de forma inconsciente. Criamos mecanismos, tecnologias e filosofias que
“logicamente” pareciam confirmar estas crenças de base.
O Antropocentrismo foi o terreno fértil para o advento de outros “ismos”, culminando
no capitalismo, que se pretende hegemônico e homogeneizante. Mas algo está mudando nessa
relação de forças. A Terra dá sinais de falência e toda nossa busca tecnológica para solucionar
os desequilíbrios que causamos parecem somente agravar o problema. Por todos os cantos do
planeta, em todas as áreas de saber, inclusive do interior do capitalismo, emergem novas
narrativas, baseadas em novas ideias. Ou emergem novas leituras das velhas narrativas,
baseadas em novas ideias2.

2
Humberto Maturana e Ximena Dávila Yáñez, investigam como o modo de pensar e sentir humanos foi
se transformando através de um caráter cíclico e mítico, criando, assim, o que os autores chamam de
Eras Psíquicas, que sintetizariam o modo de operar de cada época. Segundo os autores, estamos vivendo
o limiar entre a Era Psíquica Pós-Moderna - quando impera o “domínio da confiança no saber que se
sabe o que se crê que se sabe. Tentação da onipotência, cegueiras no saber que se sabe o que se diz que
16

Esta tese coloca em perspectiva as ideias que subjazem em narrativas propagadas pelo
senso comum e ao mesmo tempo procura compor a evidência de que está em curso o que
Leonardo Boff chama de nova cosmologia3. O traço novidadeiro desta é que ela compreende o
cuidado como sentido para a manutenção da vida. Segundo o autor, “o cuidado serve de crítica
a nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de
convivialidade” (BOFF, 2002, p. 13). Para ele, o cuidado precisa ser “assumido como o ethos
fundamental do humano como compaixão imprescindível para todos os seres da criação”
(BOFF, 2002, p. 14). Colocando o cuidado a partir desta perspectiva, Leonardo Boff levanta o
sentido da vida como uma responsabilização do humano perante toda a comunidade de vida,
todos os seres sencientes.
Em 2015, a Carta Encíclica do papa Francisco, aponta na mesma direção. Nela o papa
questiona o exagero de uma ideia antropocêntrica4 e coloca o ser humano como guardião das
relações humanas, de nossa casa comum, bem como de todos os seres da criação:

Esta situação [o antropocentrismo moderno] leva-nos a uma esquizofrenia


permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que não reconhece aos
outros seres um valor próprio, até a reação de negar qualquer valor peculiar
do humano... Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser
humano novo. Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a
pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de
jogos do acaso ou de um determinismo físico, ‘corre o risco de atenuar-se, nas
consciências, a noção de responsabilidade (FRANCISCO, 2015, p. 74-75).

Na encíclica, Francisco se propõe um diálogo entre as perspectivas da singularidade


humana e o valor intrínseco de todas as criaturas para que se possa fazer emergir o que ele
chama de cultura do cuidado.
Com base nesses dois autores, Leonardo Boff e papa Francisco, abre-se espaço para que
no campo das Ciências da Religião possa caber uma pesquisa que abarque percepções sutis da
construção de uma inovadora percepção de mundo que se valida através de gestos do cotidiano;

se sabe” (2009, p. 43) -, e a Era Psíquica Pós-Pós-Moderna – quando seria possível o “surgimento da
reflexão e da ação ética consciente” (2009, p. 45). Esta seria a grande oportunidade.
3
Por cosmologia entendemos a visão de mundo – cosmovisão – que subjaz às ideias, às práticas, aos
hábitos e aos sonhos de uma sociedade. Cada cultura possui a sua respectiva cosmologia. Por ela se
procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo e definir o lugar do ser humano dentro
dele (BOFF, 2018, p. 101).
4
“Na modernidade, a partir do século XVI até hoje, a dominação sobre os mecanismos da natureza e da
exploração do mundo se fez em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser
antropocêntrica, mecanicista, determinística, atomística e reducionista” (BOFF, 2018, p. 101).
17

das relações que estabelecemos com o que há de mais próximo e íntimo em nós; da consciência
de estar vivo e da responsabilidade que carregamos. As histórias que contamos e criamos sobre
nós mesmos nos ligam diretamente a esse cotidiano próximo capaz de transformar ideias e
paradigmas em hábitos, e consequentemente, em cultura.
No primeiro capítulo trabalho o surgimento da ideia da consciência do cuidado e quais
narrativas podem ser compreendidas como testemunho sutil desse acontecimento em processo.
Trago a definição de ser a partir de Tim Ingold como um modo de conceber o humano levando
em consideração sua premência relacional. Sigo, então, discorrendo sobre o tempo em que
vivemos. Talvez o fim dos tempos. Momento em que nos encontramos diante de uma
complexificação das relações de tensão, de profundas incertezas e acirrados conflitos. O status
de ser contemporâneo traz uma marca do pensamento e, por conseguinte, do emocionar atual.
Neste tópico, o pensamento de alguns antropólogos com relação ao conceito de Antropoceno
também contribuirá para a demonstração do cenário em que vivemos. Nesse contexto, o filme
Melancolia, de Lars Von Trier, editado em 2011, é acrescentado à pesquisa como uma história,
um conto contemporâneo.
Em seguida investigo quais foram as histórias, como tradutoras de crenças fundantes,
que nos fizeram chegar até aqui. Neste momento histórico, temos um mito de origem que
embasa o que chamamos de Era Judaico-Cristã. Me dedico, então, a investigar essa história
como fundamento de nosso tempo e ressalto como ela se encontra ainda presente e pulsante.
Nossa Genesis pode ser tomada como um mito ainda vivo, contado e relembrado por uma
parcela gigantesca da população mundial e, por isso, capaz ainda de singularizar nossa cultura.
Posteriormente, proponho uma releitura deste mito à luz de papa Francisco na Encíclica
Laudato Si, além de outros exegetas, sob a égide do cuidado. Trata-se de explicitar a imagem
de ser humano subjacente ao mito de origem do Ocidente, no caminho de uma consciência
crítica capaz de, a partir de dentro, transformar a compreensão de ser humano.
Ao nos basearmos na consciência do cuidado emerge a possibilidade tanto de reescrever
antigas histórias, como de criar novas. Isto porque,

há muitos caminhos éticos fundados nas diferentes culturas da humanidade,


do Oriente, do Ocidente e dos povos originários. A ética ocidental que se
globalizou se funda na razão dos gregos com elementos da tradição judaico-
cristã. Mas não é a única” (BOFF, 2018, p. 119).

Com o intuito de aprofundar em outras narrativas, trago o mito de origem vietnamita


publicado por Thich Nhat Hanh no livro O Príncipe Dragão: histórias e lendas de um Vietnã
desconhecido (2009). No mesmo caminho, destaco o mito de origem yanomami conforme
18

relatado por Davi Kopenawa (2015) em A queda do céu- palavras de um xamã yanomami.
Ambos autores trazem a riqueza das cosmologias de seus povos e evidenciam uma compreensão
de mundo atrelada à ideia da humanidade como guardiã da Terra. Demonstro também que ter
contato com histórias de origem de outras culturas pode nos conferir outro olhar sobre nós
mesmos, a ponto de abrir a possibilidade de seguirmos adiante em um caminho
excepcionalmente novo. Minha intenção é que talvez possamos valorizar o que temos em
comum e não o que nos difere, incorporando em nosso dia a dia as sutilezas nas narrativas
míticas.

A essas questões respondemos com nosso modo de viver, muitas vezes


largamente tributário do nosso mundo cultural. Mas, porque a narrativa mítica
aborda a seu modo essas mesmas questões essenciais, ela tem a capacidade de
abrir um espaço em que o leitor pode tornar-se consciente do modo como ele
próprio responde a tais questões de maneira mais ou menos implícita, mais ou
menos conforme ao que ela diz ou pensa. Em síntese, ao propor uma resposta
sob uma forma narrativa que jamais tranca o sentido, a narrativa convida o
leitor a dialogar com ela para pensar sua existência. Igualmente, interpretar
um mito corresponde a confrontar duas narrativas: a que está escrita – e requer
máxima atenção – e a que o leitor faz, de maneira mais ou menos consciente,
de sua própria vida a partir da qual ele chega ao texto (WÉNIN, 2011, p.14).

Com o sentido de refletir sobre o que estamos fazendo de nossas próprias vidas, o
segundo capítulo é dedicado a investigar os gestos de cuidado que estão entrelaçados ao
cotidiano de pessoas comuns. Primeiramente, viso desnaturalizar a ideia de corpo como
máquina. Utilizo o pensamento de Tim Ingold e Merleau-Ponty como guias para apresentar um
modo de se relacionar consigo mesmo a partir do contato com a Terra e com novas narrativas
que consideram as interações metabólicas de forma interrelacional, e contribuem para a
construção da concepção de corpo em sua integralidade. Isso implica em uma revisitação dos
conceitos de identidade, indivíduo, bem como da dicotomia entre natureza e cultura. Em
seguida, abarco a temática sobre o que significa habitar através do ideário comum de “casa”
como um local que também se encontra permeado por concepções de mundo. Aprofundo a ideia
de que no mundo moderno, principalmente nas grandes cidades, as casas ganharam uma
padronização característica que pode implicar, nas pessoas que as habitam, desconforto,
insegurança, confinamento e, em última instância, solidão. Já no terceiro tópico deste mesmo
capítulo destaco como os nossos olhares sobre a infância também são perpassados por uma
concepção de cuidado que acaba por tolher a espontaneidade natural das crianças. Aponto para
o fato de que os adultos modernos teriam muito a aprender com o mundo infantil,
19

principalmente no que tange ao resgate de uma alegre sensação de conexão com o Todo, a qual
parece ter sido perdida pelos adultos modernos de maneira geral.
O terceiro capítulo consiste em uma tentativa de demonstrar a construção do que poderia
ser chamado de Cultura do Cuidado como forma e força de um novo paradigma relacional. Para
tanto, começo definindo, separadamente, o que é espírito, espiritualidade e cuidado, para depois
desenhar a configuração da Espiritualidade do Cuidado como um conceito que pode abarcar as
sutilezas dessa inovadora concepção de mundo. Passo então a discorrer sobre a importância de
se incorporar o ponto de vista feminino sobre nossas sociedades. Atesto que tanto os
Movimentos Feministas em suas múltiplas facetas, como o movimento do Sagrado Feminino,
podem trazer ricas contribuições no sentido de aliarmos modos cuidadosos de ser no mundo.
Encerro a tese propondo o reencantamento de nossas visões sobre este mundo. Trata-se de uma
proposta de releitura de nós mesmos, imersos, e guiados pelo fio do cuidado. Isso porque “cada
criatura é sua história, sua tradição, e segui-la é realizar um ato de relembrança e, ao mesmo
tempo, prosseguir, em continuidade com os valores do passado” (INGOLD, 2017, [n.p.]).

O Dom da História

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão
que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a
Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem
acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.
Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente
às suas instruções. E Deus sempre veio. Na segunda geração, porém, as
pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal
Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial
da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a


fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo. E Deus
vinha.
Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira,
ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deviam ficar e,
finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma
pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo. E essa pessoa relatou
essa história em voz alta.
E Deus ainda veio... (ESTÉS, 1998, p. 8).

Muitas gerações se passaram desde que nos esquecemos da ligação primordial e


intransponível entre o humano e toda a criação. Os homens e as mulheres modernos, engajados
na busca por respostas intelectuais para os mistérios da vida, acabaram por desacreditar nos
20

gestos sutis que explicitavam essa relação de pertencimento. Mas, de alguma forma, continuam
recordando e contando as histórias. O dom essencial dessas narrativas apresenta, em vista disso,
“dois aspectos: que no mínimo reste uma criatura que saiba contar a história e que, com esse
relato, as forças maiores do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança sejam
continuamente invocadas a se fazer presentes no mundo” (ESTÉS, 1998, p. 9).
21

1 A CONSCIÊNCIA DO CUIDADO

O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso


que contemplamos na alegria e no louvor (FRANCISCO, 2015, p.15).

O que significa se dedicar ao exercício de estar atento às relações de cuidado e interações


com as quais estabelecemos contato constantemente? Esta pergunta está baseada na premissa
de que tais relações de cuidado acontecem o tempo todo, e que o humano deixou de percebê-
las por privilegiar a lógica da razão em detrimento de todas as outras formas de sabedoria.
O exercício de estar atento às relações de cuidado sustentadoras da vida implica um
esforço interno para uma mudança de olhar e para explicar o que se vê baseado em uma nova
consciência. Uma perspectiva que tenha por princípio integrar o que o velho paradigma5
separou conceitualmente, é aquilo que irei denominar “consciência do cuidado”.
Leonardo Boff é um dos autores que exalta a necessidade de que sejamos pautados por
um novo paradigma. Ele nos fala a respeito de dois valores que precisam passar a conduzir
nossas relações, ou seja, nossas escolhas como pessoas e como sociedade: sustentabilidade6 e
cuidado. Com efeito, Boff sublinha o fato de que a emergência desses valores deve ser
acompanhada por uma mudança de olhar dada através de um profundo questionamento sobre
nossas bases relacionais. Ele ainda argumenta ser necessário e urgente que interesses coletivos
e globalizantes sejam colocados em destaque sobre os pessoais, unitários, estatais e utilitários.
Revela-nos uma perspectiva na qual o cuidado é tido como substantivo, e sublinha a premência
da responsabilidade coletiva dos seres humanos. Este é o grande fio condutor do cuidado e será
tema recorrente nesta tese.
Destaco, então, um trecho do livro Saber Cuidar, do mesmo autor:

Pelo fato de ser simultaneamente sapiens (inteligente) e demens (demente), o


ser humano vive uma ambiguidade estrutural. Seu bem nunca é inteiramente
bom. Seu mal jamais totalmente mau. Mesclam-se bem e mal, diabólico e
simbólico, insensatez e sabedoria, cuidado essencial e descuido fatal. Essa
situação é, em sua totalidade, insuperável. Devemos carregá-la com realismo.

5
“Entendemos por paradigma toda a constelação de visões de mundo, de valores, de conceitos-chave,
de ciências, de saberes, de sonhos, de utopias coletivas, de práticas espirituais e religiosas e de hábitos
assumidos coletivamente, fatores que orientam uma determinada sociedade e lhe conferem sentido e a
necessária coesão interna” (BOFF, 2012, p. 70).
6
Sustentabilidade “significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejuízo do capital
natural, mantido em condições de sua reprodução e de sua coevolução, considerando ainda as gerações
futuras que também têm direito a um planeta habitável [...]. Como se pode inferir, a sustentabilidade
alcança a sociedade, a política, a cultura, a arte, a natureza, o planeta e a vida de cada pessoa” (BOFF,
2012, p. 20).
22

Nem chorar por ela, nem rir dela. Apenas apreender as lições que revela
(BOFF, 2002, p. 159).

Esse caráter de ambiguidade estrutural me parece ter sido mal interpretado por nosso
senso comum. Uma coisa ambígua é a que congrega múltiplas facetas e, assim, se torna difusa,
imprecisa, incerta. Porém, a maneira como nos coube explicar os eventos de nossa vida, da
sociedade e da vida dos outros seres é pautada pelo exercício da lógica cientifica que se
empenha em distinguir, classificar e opor essas diversas facetas, valorizando, então, o aspecto
dicotômico de nossa ambiguidade inerente.
Nós, indivíduos, não somos um diálogo eterno entre perspectivas opostas, contudo não
somos também uma perspectiva só. Somos um emaranhado sinuoso e dinâmico. Habitamos
lacunas existenciais, mas nada nos falta, e se a incompletude não nos conclui, ela pode nos
colocar em movimento. Porém, trata-se de um outro movimento, amplo e não linear, dando
menos ênfase às fronteiras que enxergamos entre as coisas, entre nós e as coisas, dentro de nós
mesmos.
Tim Ingold é o autor que, a meu ver, tem sido capaz de colocar esse novo paradigma em
movimento, conseguindo ultrapassar o ponto de somente falar sobre a possível mudança de
olhar, para passar a ver e narrar nossas experiências de outra forma. Ele oferece ar às nossas
ideias, tenta reverter o que chama de lógica da inversão e apresenta “uma concepção de ser
humano como um nexo singular de crescimento criativo dentro de um campo de
relacionamentos desdobrando-se continuamente” (INGOLD, 2011, p. 12, grifo meu).
Leia a frase acima novamente. Vamos voltar e tentar experimentar o que o autor quer
dizer. Tente vivenciar em seu corpo: “você é um nexo singular...” (INGOLD, 2011, p.12).
(Tome uma pausa). A percepção conceitual de ser um nexo singular te traz alguma experiência
sensível, corporal? Pode ser difícil experimentar ser um nexo singular com o corpo, mas, e se
trocarmos a palavra nexo pelo seu sinônimo7, vínculo? Então, você é um vínculo singular. Ou
seja, você é uma maneira única de estabelecer vínculo! Isso me parece essencialmente diferente
da palavra indivíduo, que poderia também acompanhar a percepção de ser um nexo singular.
Quando busquei o significado da palavra nexo, encontrei a palavra vínculo e um outro
espectro de sensações se abriu diante de mim e dentro de mim. Experimentei em meu corpo
uma sensação de abertura extremamente confortável. Isso porque pensar em ser uma
individualidade, um todo indivisível, me conclui, me limita e me move para dentro. Em um

7
Cf. AZEVEDO, F. F. S. Dicionário Analógico da Língua Portuguesa: Ideias Afins - Thesaurus. Rio
de Janeiro: Lexikon, 2010, verbete 45, p 20.
23

segundo momento traz uma sensação de que é preciso me defender do exterior para preservar
o interior. Conduz a uma certa rigidez relacional.
A ideia de individualidade enfatiza o eu e o outro, a fronteira, a cisão. No entanto, se eu
me percebo como uma maneira de fazer vínculo (única), algo diferente acontece. O vínculo me
expande e ao mesmo tempo me protege e conforta. Traz a experiência de pertencimento, de
semelhança, de ligação e suporte. Não vejo mais o que me separa do resto do mundo; só vejo o
que me liga a ele, só sinto o que me faz ser ele também.
Você é “um nexo singular de crescimento criativo...” (INGOLD, 2011, p.12). Você é
uma maneira única de estabelecer vínculos e que cresce criativamente. O que seria crescer
criativamente? A primeira ideia que me ocorre é que a vida humana se inicia de um encontro
de dois seres distintos, que se misturam e criam algo totalmente novo. Somos resultado desse
encontro criativo e a partir daí crescemos (tenho uma forte tendência a pensar sobre o início das
coisas). Porém, Ingold expande essa ideia ao seguir a linha do tema da criatividade que permeia
todo seu modo de pensar. Para ele, o crescimento é algo que se dá simplesmente em devir.

Trata-se de uma questão não de impor forma à matéria, como no chamado


modelo hilemórfico8 de criação, mas de intervir nos campos de força e fluxos
de material onde surgem e são sustentadas as formas das coisas. Assim a
criatividade do fabricar encontra-se na própria prática, em um movimento de
improvisação que realiza as coisas enquanto prossegue (INGOLD, 2011, p.
260).

O crescimento em si aponta para a diversidade. Traz o foco para o que acontece ao longo
do crescimento. O crescer criativo implica num “movimento gerador que é ao mesmo tempo
itinerante, improvisado e rítmico” (INGOLD, 2011, p.261). Carrega uma autenticidade em
expansão, uma transformação organísmica única, mas que ao mesmo tempo é inerente ao
próprio mundo. É um fluir com o mundo. É o mundo fluindo. Nossa consciência é apenas a
articuladora deste vir a ser. Isso porque: você é “um nexo singular de crescimento criativo
dentro de um campo de relacionamentos...” (INGOLD, 2011, p. 12). Ou seja, não somos
independentes, isolados. Existimos em um meio, constituímos e somos constituídos
simultaneamente. Esta afirmação oferece uma releitura à atitude humana de tentar se sobrepor,
ou de se opor, à natureza de forma imperativa. Somos e vivemos em uma “textura de fios
entrelaçados” (INGOLD, 2011, p. 12). Nesse sentido nos fala também papa Francisco, quando
nos convida a compreender o mundo que nos cerca aos olhos de São Francisco:

8
“A forma passou a ser vista como imposta por um agente com um determinado fim ou objetivo em
mente sobre uma matéria passiva e inerte” (INGOLD, 2012, p. 26).
24

Se nos aproximarmos da Natureza e do meio ambiente sem essa abertura para


a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da
beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do
dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais,
incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos
sentirmos intimamente unidos a tudo que existe, então brotarão de modo
espontâneo a sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São
Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais
radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio
(LS,11)9.

O pertencimento ao campo, ao meio ambiente, nos faz existir, ou seja, é o meio que nos
oferece o suporte necessário à existência. O campo se torna base para encontros criativos, nos
quais o sentido da presença faz com que estratégias de controle, garantias e previsões sejam
supérfluas. O encontro criativo – quando ninguém sabe o que vai acontecer – é sempre
transformador e, por isso, enriquece nossa percepção de mundo.
Ao que parece, as fronteiras que enxergamos não existem por si mesmas, são somente
a forma como nós explicamos a textura do mundo. Fazemos isso de forma arbitrária, supondo
que o mundo funcione da forma como enxergamos. Criamos verdades que de tão fixas, viraram
entidades. Portanto, é recorrente não nos darmos conta das sutilezas. Alguém consegue
delimitar exatamente em que momento a noite se transforma em dia? Alguém sabe onde está a
fronteira? Não damos conta da passagem, e quando percebemos já é dia claro, mas a fronteira
não estava lá. Fronteira é coisa inventada pelos humanos.
Em uma potente argumentação sobre objetos e coisas, Tim Ingold dá um ótimo exemplo
sobre a inexistência dessas fronteiras. Ele se pergunta se uma árvore seria um objeto e questiona
a respeito de quando terminaria a árvore e começaria o mundo.

Essas não são questões fáceis de responder – ao menos não tão fáceis como
parece ser o caso dos móveis no meu escritório. A casca, por exemplo, é parte
da árvore? Se eu retiro um pedaço e o observo mais de perto, constatarei que
a casca é habitada por várias pequenas criaturas que se meteram por debaixo
dela para lá fazerem suas casas. Elas são parte da árvore? E o musgo que
cresce na superfície externa do tronco, ou os liquens que pendem dos galhos?
Além disso, se decidirmos que os insetos que vivem na casca pertencem à
árvore tanto quanto a própria casca, então não há razão para excluirmos seus
outros moradores, inclusive o pássaro que lá constrói seu ninho ou o esquilo
para o qual ela oferece um labirinto de escadas e trampolins. Se considerarmos

9
Cf. FRANCISCO, P. Laudato Si’ Louvado sejas: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas,
Loyola, 2015. As citações à encíclica serão feitas com a sigla LS, acompanhada do número do parágrafo
citado.
25

que o caráter dessa árvore também está em suas reações às correntes de ventos
no modo como seus galhos balançam e suas folhas farfalham, então
poderíamos nos perguntar se a árvore não seria senão uma árvore-no-ar
(INGOLD, 2012, p. 2).

Cada um de nós e cada coisa no mundo seriam, então, um agregado de fios vitais
entrelaçados. Através de encontros de mútuo benefício, nós exercitamos nossa semelhança, não
só nossa distinção. Isso porque a semelhança é um atributo de diferenciação, ou seja, somos
todos semelhantes no tocante à vida, dentro de um campo de participação, e ao mesmo tempo
somos singulares. A vida, ela mesma, só da conta da constante transformação.
Retomemos a definição de ser de Ingold: você é um nexo singular de crescimento
criativo dentro de um campo de relacionamentos desdobrando-se continuamente (INGOLD,
2011, p.12).
Desdobrando-se... expandindo... continuamente.

A vida é um nascimento contínuo. Eu quero pregar isso na minha porta! Isso


vai ao cerne da questão. Elaborando: a vida, na ontologia anímica, não se trata
de uma emanação, mas de uma geração de ser, em um momento que não é
preordenado, mas incipiente, sempre à beira do atual (INGOLD, 2011, p. 117).

Agora, a partir dessa perspectiva de ligação e desdobramento à beira do atual, em


nascimento contínuo, é possível voltar à ideia de incompletude. Ingold segue argumentando:
“De Whitehead tomei a ideia de que o mundo que habitamos nunca está completo, mas supera-
se continuamente. A criatividade é inerente ao movimento de auto superação do mundo, ou o
que Whitehead chamou de ‘concrescência’” (INGOLD, 2011, p.39).
A ideia de movimento criativo de autossuperação do mundo aponta para uma
experiência de inacabamento, e em última instância, de vida. Em certo sentido, objetos ficam
prontos, acabados e arrematados. Já os organismos vivem e se transformam, não experimentam
seu acabamento. Nem mesmo a morte é tida como uma finitude, mas como uma transformação.
Sendo assim, essa criatividade renovadora traz e promove dentro de um campo de participação
o aumento do nosso senso de casa, de pertencimento. Um processo de enriquecimento de nossa
tessitura de afetos que se relaciona com tudo o que é vivo. E o magnífico é que isso se dá através
de nosso corpo.
Ingold sugere que este processo de crescimento equivale ao movimento do corpo, da
matéria, ao longo de um caminho de vida. E como é bela essa sugestão que irei aprofundar no
26

capítulo dois desta tese. Agora, com base no que foi dito antes, avançarei me dedicando à
Fabula-Mito de Higino, trabalhada tanto por Heidegger como por Boff.

Fábula de Higino

Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve
uma ideia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma.
Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse o espírito nele. O que Júpiter fez de bom
grado.

Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado,
Júpiter proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis


também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material
do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este


tomou a seguinte decisão que pareceu justa:

‘Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por
ocasião da morte dessa criatura.

Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo
quando essa criatura morrer.

Mas como você, Cuidado, foi que, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob
seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu:
essa criatura será chamada de homem, isto é, feita de húmus, que significa
terra fértil’.

(BOFF, 2002, p.46)10.

O aprofundamento do estudo sobre esta narrativa específica traz o tom inicial para a
tese, pois personifica o Cuidado como entidade capaz de sustentar e qualificar o tempo de vida
dos homens e das mulheres na Terra. Nosso corpo seria, então, terra, como todos os outros
corpos11. Porém, o corpo humano constituiria um punhado de terra que foi moldado pelas mãos

10
Escolhi usar aqui a versão feita por Leonardo Boff em detrimento da de Martin Heidegger, por ela
trazer a palavra “cuidado” e não “preocupação”, como ocorre na tradução feita em Ser e Tempo (1927),
do segundo autor.
11
“Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn2,7). O nosso corpo é constituído pelos
mesmos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”
(LS, 2).
27

do cuidado (cura12, preocupação13) e que somente depois teria recebido o espírito, vida, através
do sopro de Júpiter. Segundo Heidegger:

Esse testemunho pré-ontológico ganha particular significação não só por ver em


geral a ‘preocupação’ como algo a que o Dasein14 humano pertence durante todo seu
‘tempo de vida’, mas também porque essa precedência da ‘preocupação’ aparece em
conexão com a conhecida concepção do homem como compositum de corpo (terra)
e espírito. Cura prima finxit: esse ente tem a ‘origem’ de seu ser na preocupação.
Cura teneat quamdiu vixerit: o ente não é abandonado por sua origem, mas retido
por ela e submetido a seu domínio enquanto esse ente ‘é no mundo’(...) Esse ente
não recebe seu nome (homo) em referência a seu ser, mas em relação àquilo de que
é feito (humus). Onde se deve ver o ser ‘originário’ dessa formação está a decisão de
Saturno: no ‘tempo’. A determinação pré-ontológica da essência do homem expressa
na fábula desde o início fixou assim o olhar no modo-de-ser que domina sua
passagem temporal no mundo (HEIDEGGER, 2012, p. 553).

A fábula aponta para o exercício do cuidado como modo de ser em nosso caminho pelo
mundo. Destaca a importância do cuidado aplicado no tempo – como percurso – e do rastro que
deixamos pelo caminho.
No sentido de absorver melhor o ensinamento trazido por Saturno na fábula, irei dedicar
especial atenção aos legados históricos de cuidado que marcam cada tempo, a saber: presente,
passado e um futuro possível.

1.1 NOSSO TEMPO

Inicio este tópico com a imagem de Justine, personagem do filme Melancolia (2011),
de Lars Von Trier. Vestida de noiva, a mulher tenta caminhar em meio a uma floresta escura
com enormes fios de lã cinza agarrados aos seus pés. A cena acontece em câmera lenta, como
um adágio de esforço sobre-humano. Seus passos são quase imperceptíveis, como se o peso de
todo o mundo estivesse sobre seus ombros. Como se o tamanho da realidade, um planeta inteiro,
a fizesse se esquecer da possibilidade de sonhar.

“We often forget that the planet we are living on has all the elements that make up our bodies” (HANH,
2013, p.8). Tradução livre: “Nós frequentemente esquecemos que o planeta onde vivemos tem todos os
elementos que criam nossos corpos”.
12
Na tradução de Ser e Tempo feita por Márcia Sá Cavalcante Shuback (2006), é usada a palavra Cura.
Cf. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.
13
Na tradução de Ser e Tempo feita por Fausto Castilho (2012), é usada a palavra Preocupação. Cf.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, Campinas: Vozes, Unicamp, 2012.
14
Na tradução de Ser e Tempo (2006) o termo Dasein é traduzido como pré-sença.
28

Vivemos os anos finais da segunda década do século XXI. Pensar sobre nosso tempo é
acessar o inimaginável diante de todos os avanços tecnológicos e científicos que a humanidade
foi capaz de galgar. Porém, ao mesmo tempo, é entrar em contato com tudo aquilo de mais
velho e primitivo que a humanidade nunca foi capaz de transcender: guerras santas, chacinas,
corrupção, miséria, terrorismo, racismo, homofobia, machismo, fundamentalismo,
desigualdade etc.15. Vivemos imersos na velocidade do consumo ditada por um ideal movido
pelo capital e, enquanto isso, a Terra já dá claros sinais de seu esgotamento. Caminhamos
consideravelmente como civilização, mas a realidade lá fora faz sentir como se não tivéssemos
saído do lugar.
Vivemos um momento cuja grande parcela da população mundial (humana), percebe
que nosso projeto de futuro não deu certo. Projeto este que foi embalado por uma crença no
progresso, o qual de forma ilimitada supostamente nos levaria a sermos sempre melhores do
que já fomos. Sempre avante!
Segundo Christine Gruwez,

O marcante mito ocidental é o mito da ‘sociedade moderna’, que promete às


pessoas a melhor forma possível de vida (...). A crença no progresso significa
que o futuro será diferente do passado, e que essa mudança conduz
necessariamente a ‘algo melhor’. Portanto, progresso significa sempre
melhora, como também a mensagem implícita de que a melhora é irreversível
(2009, p. 16).

Terei, no transcorrer deste estudo, a oportunidade de aprofundar um pouco mais sobre


como aconteceu a formação deste mito. No entanto, pretendo explorar agora a sensação de que
vivemos hoje em um momento no qual já podemos perceber nosso próprio fracasso. Estamos
imersos em uma crise sem precedentes, que ignora fronteiras setoriais ou geográficas. Vivemos
sob a real ameaça de que talvez este seja o fim dos tempos. Período de profundas incertezas e
acirrados conflitos, tanto políticos, no campo das ideias, como internos, no campo da psique.
Tempo de uma polarização extrema entre o conservadorismo e a inovação libertária, instante
em que não se torna possível distinguir com clareza o bem e o mal, o justo e o injusto. Isso
porque, como salienta Latour (1994, p.9): “Nós mesmos somos híbridos”.

15
No livro A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991, Eric Hobsbawm afirma que o século XX
“foi sem dúvida o século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, frequência e extensão da
guerra que o preencheu, mal cessando por um momento na década de 1920, como também pelo volume
único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio
sistemático” (1995, p. 22). Já no livro Tempos interessantes: uma vida no século XX, o autor ressalta
que “O século XX terminou. O século XXI começa com crepúsculo e obscuridade” (2002, p. 448).
29

Nos encontramos diante de uma incalculável complexificação das relações de tensão e


dos problemas. Impera um sentimento difuso de perplexidade passiva, enquanto emergem
movimentos fundamentalistas de todas as ordens. Poucas são as respostas palpáveis.
Diante desse contexto, Isabelle Stengers propõe novas maneiras instigantes para o
aprofundamento da compreensão sobre o cenário atual em seu livro No Tempo das Catástrofes
(2015). A autora inicia com uma espécie de intervenção no caos quando afirma que “estamos
terrivelmente mal preparados para enfrentar o que está acontecendo” (STENGERS, 2015, p. 5).
Tal fato se dá porque, neste momento histórico, os alicerces que pareciam sustentar as ilusões
humanas de supremacia e invencibilidade, aliados à ideia de crescimento e progresso, estão
ruindo de mãos dadas com o clima do planeta. Ao afirmar que a época mudou (2015, p. 17), ela
aponta para o nosso desamparo como civilização.

O caráter intrinsecamente “insustentável’ desse desenvolvimento, que alguns


anunciam há décadas, tornou-se agora saber comum. E é precisamente este
saber, hoje comum, que cria o sentido distinto de que outra história começou.
O que sabemos agora é que, se aguentarmos firme e continuarmos a ter
confiança no crescimento, vamos, como se diz, “dar de cara com a parede”
(STENGERS, 2015, p. 9).

Ninguém sabe o que se pode fazer, pois somente uma “tomada de consciência” não
basta. Seria necessário um mergulho nas entranhas de nosso modo de pensar para que a ideia
de progresso, crescimento, e consequentemente, de consumo fossem revistas. No entanto,
continuamos estarrecidos diante do contraste entre o que já é comumente sabido e o que nos
mobiliza à ação diante, contra ou em favorecimento da promessa de um futuro que Stengers
chama de barbárie (2015, p. 12).
Ao longo da construção de uma nova narrativa sobre os tempos atuais, Stengers vai
traçando uma interessante caracterização de personagens que estariam no comando de nossas
escolhas, pensamentos e ações, como entidades transcendentes e, portanto, onipresentes. Um
dos personagens principais é o Capitalismo e a tríplice faceta a ele inerente, denominada por
ela de “Nossos Responsáveis”: a Ciência, o Estado, os Empresários (Economistas). Todos estes
estariam em conflito com uma outra entidade transcendente suprema: Gaia16, a que faz a
intrusão.

16
Cito Stengers: “O que chamo de Gaia foi assim batizado por James Lovelock e Lynn Margulis no
início dos anos 1970. Eles incorporavam pesquisas que contribuem para esclarecer o denso conjunto de
relações, articulando o que as disciplinas científicas tinham o hábito de tratar separadamente: os seres
vivos, os oceanos, a atmosfera, o clima, os solos mais ou menos férteis. Dar um nome, Gaia, a esse
agenciamento de relações era insistir sobre duas consequências dessas pesquisas. Aquilo de que
30

Gaia, nomeada desta forma, não é mais aquela que devia ser cultuada para que nos
concedesse bênçãos de boas colheitas e clima ameno. Também não é mais a grande mãe que
tudo acolhe e tolera, nem mesmo é mais a Deusa que traz o sentido do justo e do injusto. Todas
essas maneiras de encarar Gaia falam mais de tentativas humanas de controle e busca de
garantias do que da própria Gaia. Esta que hoje passa a ser encarada como um ser vivo, coeso,
que diante das alterações climáticas lança mão de recursos próprios para restabelecer seu
equilíbrio organísmico. A maneira que ela faz isso é o que nós, humanos, chamamos de
catástrofe, e que nos revela nossa pequenez diante dela.

Pois a própria Gaia não está ameaçada... e é exatamente por não estar ameaçada que
faz com que as versões épicas da história humana pareçam caducas, quando o
Homem, em pé sobre duas patas, e aprendendo a decifrar as ‘leis da natureza’,
compreendeu que era mestre do seu destino, livre de qualquer transcendência. Gaia
é o nome de uma forma inédita, ou então esquecida, de transcendência: uma
transcendência desprovida das altas qualidades que permitiriam invocá-la como
árbitro, garantia ou recurso; um suscetível agenciamento de forças indiferentes aos
nossos pensamentos e aos nossos projetos (STENGERS, 2015, p. 40-41).

Gaia, a que faz a intrusão, nos é indiferente. Está além do bem e do mal, e se faz presente.
Ou seja, ao impor sua força de maneira descompromissada em relação às dores humanas - bem
como a dor dos outros seres vivos - transcende toda a nossa complexidade intelectual, afetiva e
moral com um simples sopro. E nós não temos resposta para isso, ou pelo menos não uma
resposta que nos faça poder voltar a viver como se nada estivesse acontecendo. Pela primeira
vez na história da humanidade cresce a consciência inquestionável e comum de nosso completo
desamparo. Como dizia Justine: “Estamos sós”, e Gaia nos incomoda.
Mas por que, então, a maioria esmagadora da população continua vivendo como se nada
estivesse acontecendo?
Papa Francisco fala sobre dois tipos de atitudes que dificultam nosso caminho para uma
solução. A primeira estaria na esfera da negação e da indiferença diante dos problemas; a
segunda seria movida por uma resignação acomodada ou uma confiança cega em possíveis
soluções tecnológicas. Ele clama por uma nova solidariedade universal, como uma base
concreta de um percurso ético e espiritual que deveria ser seguido, incluindo todos (LS, 14).

dependemos e que foi com frequência definido como ‘dado’, o enquadramento globalmente estável de
nossas histórias e de nossos cálculos, é produto de uma história de coevolução, cujos primeiros artesãos
e verdadeiros autores permanentes foram as inúmeras populações de micro-organismos” (2015, p. 38).
31

Também como resposta à pergunta acima, Stengers relata duas histórias com as quais
estamos lidando cotidianamente. A primeira é a história contada pelo Capitalismo sobre a
existência uma competição generalizada, de uma guerra de todos contra todos em que cada
indivíduo, empresa, nação, região do mundo, deve aceitar os sacrifícios necessários para ter
direito a sobreviver, se sobrepondo a seus concorrentes (STENGERS, 2015, p. 21).
Essa é uma história que ao ser contata e recontada, quase como uma ameaça, transforma-
se em profecia e passa a ditar as escolhas e comportamentos das pessoas que, de alguma forma,
estão inseridas nos sistemas capitalistas globais. Afogados nesse emaranhado sutil de um
discurso engenhoso, nos encontramos paralisados, passando a reproduzir comportamentos
automáticos de consumo como manifestação de atitudes de descuido com o todo e com os
desfavorecidos. Tais atos caracterizam-se por uma “perda do sentido de responsabilidade pelos
nossos semelhantes” (LS, 25).
Neste contexto, compartilharíamos uma sensação de tranquilidade com a possibilidade
de descarte. E aqui não só de descarte de excessos de consumo, lixo ou restos, mas de vidas,
sejam elas humanas ou não. É este tipo de pensamento que gera a possibilidade de se desmatar,
de se desapropriar terras e causar migrações em massa, desabrigando populações inteiras. E
também transpor rios, poluir o ar e as águas, envenenar a terra, tudo em nome do progresso.
Esta é a narrativa atual, uma “história da carochinha” na qual nos encontramos imersos, nos
alimentamos e somos alimentados.
Por outro lado, a segunda história ressaltada por Stengers vem sendo exercitada por
pessoas singulares, as quais constituem pontos de resistência contra o discurso hegemônico e
que produzem alguns oásis ainda difusos. São pessoas que, ao questionarem a cultura do
descarte, passam a experimentar um modelo circular de produção17. Começam a criar
alternativas para fugir da lógica capitalista com iniciativas como ecovilas18, hortas comunitárias
urbanas, jardins verticais e iniciativas de economia solidária, por exemplo.
Pessoas que cultivam espaços que tornam possível criar novas teorias ligadas à
economia, cujo capital passa a exercer um papel secundário em trocas de saberes e produtos,
são pessoas que marcam um retorno ao contato com os outros seres que habitam o mundo –

17
Papa Francisco destaca que o modelo circular de produção assegura recursos para todos e para as
futuras gerações, enquanto a cultura do descarte atende a um comando de exclusão do que aparentemente
não nos tem serventia (LS, 22).
18
Ecovila é um modelo de assentamento humano sustentável. São comunidades urbanas ou rurais de
pessoas que tem a intenção de integrar uma vida social harmônica a um estilo de vida sustentável. (Cf.
WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ecovila>. Acesso em:
13 ago. 2018).
32

animais, plantas e insetos – e carregam o profundo sentimento de nossa interdependência como


seres vivos, viventes na e da Terra. Afinal, “todas as criaturas estão interligadas, deve ser
reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados,
precisamos uns dos outros” (LS, 42).

1.1.1 O Melancolia

Ainda no início da década atual, o filme Melancolia (2011), de Lars Von Trier, oferece
um interessante material para tentarmos compreender as diferentes maneiras de lidar com essa
ameaça transcendente, atualmente denominada por Stengers como “Intrusão de Gaia”.
Melancolia foi o nome dado, no contexto do filme, a um imenso planeta que estaria em rota de
colisão com a Terra.
A introdução do filme mostra um adágio do tempo cósmico, o qual já me referi no início
deste tópico. Uma sequência de cenas em câmera lenta, dentre as quais Justine aparece vestida
de noiva e caminha em uma floresta entrelaçada por gigantescos fios de lã. Esta cena, que é um
sonho da personagem, permite-nos entrar em contato com o que acontece no interior daquela
mulher. Revela sua experiência sensória e a expansão de seus sentimentos, acrescidos pela
experiência de desaceleração do tempo vivido pelos deprimidos. A lentidão das cenas dá conta
de deflagrar no expectador a angústia que lhe será constante. Fala da sensação de não se poder
fazer nada diante do imponderável e de um tempo que não passa.
A história é contada a partir da vida de duas irmãs. Justine é uma linda e bem-sucedida
mulher recém-casada, porém marcada pelo infortúnio da melancolia. Uma espécie de dom de
poder saber das coisas e das relações de maneira desnuda. A primeira parte do filme se passa
durante a festa do seu casamento, quando ela é a primeira a avistar o planeta. Ao longo da trama
tomamos contato com sua luta interna para parecer feliz, ou para não se deixar tomar pelo
sentimento de falta de sentido e senso de futuro.
O empenho interno de Justine prima pela busca da aparência de felicidade e jovialidade
“eternas”, tema muito atual dentro de nossa sociedade do consumo, espetáculo, ou do culto da
performance, conforme denominação do sociólogo Alain Ehrenberg (2016). Justine é um
protótipo que alegoriza o estado o qual os indivíduos se encontram afetados pelas exigências
modernas de máxima excelência, ou eficiência irrestrita, ditadas por nosso modo atual de gerir
33

nossas vidas. Mostra como a premência de nos relacionarmos com nossas vidas como se
fossemos um empreendimento de sucesso acabaria por nos levar a lugares subterrâneos da alma.
A exemplo das cenas explicitadas no filme de Lars Von Trier, muitas pessoas acabam
desenvolvendo sintomas que elucidam uma crise de sentido atrelada ao excesso de estímulos e
responsabilidades. Compartilham um sentimento basal de que, para existir, é preciso ver e ser
visto, produzir, ganhar e comprar cada vez mais e em maior velocidade. Estas pessoas
permeadas de vazio acabam se confrontando com o fracasso, com uma sensação de
esvaecimento, similar ao da personagem.
Na trama, Justine busca apoio da mãe, uma mulher amarga que desqualifica qualquer
busca pela felicidade. Uma pessoa que não se sensibiliza mais, castradora de qualquer tentativa
de aproximação afetiva e que, como um ato de autodefesa, ataca. Justine busca apoio do pai,
um homem que poderia ser classificado como um “bobo alegre”, alguém que não se
responsabiliza com sentimentos profundos e simplesmente vai embora. Estão todos envolvidos
em diálogos internos, lidando com suas próprias fragilidades e desejos. E Justine acaba sendo
engolida pela melancolia, assim como a Terra será engolida pelo Melancolia, não há o que se
possa fazer para evitar.
Considero interessante a contextualização da situação familiar da protagonista de forma
a oferecer um panorama simbólico de como estamos vivendo nossas relações mais próximas.
Maria Rita Kehl (2009) coloca a depressão como um sintoma social contemporâneo que teria a
função de sinalizar para o “mal-estar na civilização”. Kehl ressalta que não há, entre os
discursos da vida contemporânea, nenhuma referência valorativa aos estados de tristeza e da
dor de viver, assim como do possível saber a que eles possam conduzir. “O mundo
contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o sofrimento dos depressivos com
sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos ideais em circulação” (KEHL, 2009, p. 16).
Essa recusa desvalorativa dos estados da tristeza aponta para um modo próprio de sofrer
na contemporaneidade. Ou melhor, um sofrimento que emerge a partir de algo que poderia ser
chamado de uma “compulsão falida” de se tentar evitar o sofrimento e a dor. Entretanto, como
é impossível evitá-lo de todo, acabamos por mascará-lo através de narrativas de negação
socialmente construídas e alimentadas, como por exemplo, pelo alto índice de medicalização
dos quadros de tristeza.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 300 milhões de pessoas
vivem com depressão. Isto representa um aumento de mais de 18% entre 2005 e 2015 de pessoas
diagnosticadas com a doença, que já é considerada a principal causa de problemas de saúde e
incapacidade em todo o mundo (OPAS, 2007, [N.P.]).
34

Retornarei a esta temática adiante; agora volto ao filme. A segunda parte da narrativa
tem Claire como foco. Uma mãe de família, cuidadora e preocupada com as aparências. É
casada e tem um filho de uns oito anos, aproximadamente. Ela vive numa linda casa, cercada
de mimos e sob o controle de John, seu marido. Ele, um homem rico e dominador, que acredita
piamente na ciência e nega com veemência a possibilidade da colisão interplanetária.
A essa altura, na trama, todos já sabem da existência do Melancolia e Claire se dedica a
tirar a irmã da depressão paralisante em que se encontra19. Porém, na medida em que Justine se
recupera, Claire começa a fazer contato com seus próprios temores relacionados ao fim
iminente. A diferença entre como cada um desses três personagens lida com a ameaça do fim
se mostra significativa.
John seria algo como o “tipo ideal” do homem moderno comum. Aquele que acredita
no progresso. Acredita que está no controle, ou que estamos, como humanidade, no controle.
Aquele que acredita que não existe nada cuja sabedoria humana não possa resolver. John está
fascinado pelo acontecimento, diz que se trata de Antares, um planeta que estaria atrás do Sol
e que apenas passaria perto da Terra, sendo essa passagem, então, um magnífico espetáculo.
John não compreende, ou nega os temores da esposa, proibindo-a de pesquisar na
internet sobre o que alguns chamam de “dança da morte”, mantendo, assim, o controle. Porém,
Claire passa por momentos de confiança e outros de medo profundo, enquanto tenta levar a
vida como se nada estivesse acontecendo.
Certo dia, como um único ato egoísta realizado por conta própria, Claire vai à vila e
compra remédios para poder matar a todos, caso os cientistas estejam errados. Enquanto isso,
Justine admira o planeta. Como se agora, com a verdade desvelada, ela pudesse habitar em seu
próprio corpo, em seu próprio tempo. Ela até parece mais feliz. Faz um verdadeiro mergulho
em sua melancolia e com isso se entrega ao Melancolia. É a única que não duvida de que o
planeta inevitavelmente colidirá com a Terra. É a única que não entra em desespero, pois
esperança já não havia. Afirma que a vida na Terra é má e que estamos sós. Afirma que só há
vida na Terra e por muito pouco tempo.
Quando percebe que está errado, John, o homem moderno e “cuidadoso” com a família,
usa todos os remédios comprados pela esposa e acaba com sua vida antes que o planeta chegue.
Mais um ato de negação, agora com requintes de covardia e abandono. Claire sente a falta do
marido pouco tempo depois, e ao constatar a aproximação de Melancolia vai buscar os

19
Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, citando Shaviro, afirmam: “a depressão de Justine
é uma espécie de interiorização [...] da verdade cósmica deflacionária da extinção planetária” (2014, p.
56).
35

remédios, sua primeira opção também. Como não os encontra, sai em busca do marido. Justine
a avisa que algo mudou, pois, os cavalos estão tranquilos. John é, então, encontrado por Claire
morto em uma cocheira, e ela assume sua mais comum persona, a de fingir que nada está
acontecendo. Cobre seu marido com palha seca e solta um dos cavalos para que as outras
pessoas pensem que ele foi à vila. Claire faz café para seu filho e Justine na intenção de tentar
manter a rotina, mas logo entra em pânico. Esforça-se em vão para fugir com o menino,
enquanto Justine a observa pacientemente. Esta tentativa de fuga fala também da dinâmica de
crença dessa personagem, que busca por algo maior que ela, no caso a vila. Desponta um desejo
de proteção, no entanto não havia certezas lá fora.
Ao se renderem ao inevitável, as irmãs conversam sobre como irão viver o fim. Claire
começa um planejamento, afirma querer fazer tudo certo, como se houvesse alguma
possibilidade de certeza. Justine mais uma vez aponta para a verdade nua e crua, dizendo que
não há como ser bom.
Na sequência, o menino fala para a tia que está com medo, porque o pai havia dito que
não teriam como se esconder. Justine lembra a ele sobre a existência de uma caverna mágica
que poderiam construir juntos. A história se encerra com os três, mãe, filho e tia, sentados dentro
de uma pequena cabana feita de gravetos, à espera do planeta.
Essa imagem indica o retorno ao lúdico e aos primórdios da tecnologia, quase uma
relação mítica com o nosso sentimento de desproteção diante de algo tão grandioso, como um
planeta em rota de colisão com a Terra, ou um sentimento abissal de falta de sentido de vida,
ou ainda nossa própria casa se rebelando contra nós. Uma alegoria ao fato de que mesmo tendo
acumulado tanto saber e complexidade, nada pode interferir no fato de que nós, humanos,
estamos indo de encontro à parede.
Uso esta narrativa absolutamente contemporânea como alegoria do mundo atual.
Pretendo chamar atenção para a maneira como estamos vivendo, quais tipos de escolhas temos
feito diante da sensação de múltiplas possibilidades, mas que se revelam em essência como
formas de tiranias, às vezes autotiranias, veladas. Vivemos a era da primazia do indivíduo, do
imperativo cientificista de explicações de mundo e da percepção extrema de uma sensação de
aceleração do tempo vivido20.

20
Maria Rita Kehl (2009) faz uma riquíssima análise sobre como o desenvolvimento do que a psicanálise
chama de dimensão temporal estaria na base da formação do psiquismo, humanamente constituído.
Aponta também para como a nossa percepção do tempo foi se transformando ao longo da história ao
ponto de ser, hoje, uma grande entidade onipresente pela a qual estamos todos comandados.
36

Esses fatores contribuem para o que pode ser chamado de um “modo de operar
anestesiado”, automático e desconectado das pessoas modernas, deflagrando um contexto no
qual o deprimido é aquele que se recusa a operar como a maioria. É aquele que experimenta
uma qualidade de tempo diversa, mais lenta e sutil. A psicóloga Rafaela Zorzanelli, em palestra
proferida para o programa Café Filosófico da TV Cultura, enquadra a depressão dentro de um
espectro de doenças que estão situadas no limite entre o psíquico e o físico. Zorzanelli (2009)
nos diz: “Talvez as doenças situadas no limite indivisível entre o físico e o mental tragam um
outro tipo de objetividade ou subjetividade que as máquinas e as tecnologias ainda não são
capazes de revelar”.
Farei um aprofundamento das questões corporais no próximo capítulo. Considero
importante ressaltar aqui que o vertiginoso aumento dos casos desse tipo de doença-sintoma
acontece de modo simultâneo ao momento em que muitas áreas de conhecimento passam a
questionar, e até mesmo desconstruir, as formas de explicação de mundo que colocam como
dado a separação entre natureza e cultura, bem como toda a percepção objetivista de mundo.
Vivemos a era do fim das certezas. Neste sentido, talvez, a tarefa de encarar os quadros
de tristeza como constituintes do contemporâneo possa nos ajudar a ampliar nossa potência de
transformação em tempos de fim de mundos. Isto porque, como ressalta Donna Haraway: “O
sofrimento é afetivo e efetivo; ele toca através da diferença; ele faz uma diferença. O sofrimento
constitui todos os seres no nó relacional” (HARAWAY, 2011, p.400). Ele possibilita o que a
autora chama de uma prática de “se-tornar-com”, e é isso que tanto carecemos nesses tempos.

1.1.2 A falência das certezas

O forte papel que a euforia, as distrações e seus parceiros químicos cumprem


no sentido de nos auxiliar a suportar a realidade emocional revela a grande
fragilidade de nosso modelo de consciência.
A individualidade, tão celebrada pela sociedade contemporânea, declara um
sentido de liberdade, porém muitas vezes, pouco nos importamos com o que
isto realmente significa (BÜHLER, 2018, p. 75).

Ainda sem nos desfazer do tom de cinza em nossos tempos, já que a sensação é de um
assunto inesgotável, retomo o pensamento de Maria Rita Kehl, quem nos apresenta um
panorama de como o conceito de melancolia foi, ao longo do tempo, dando lugar ao conceito
de depressão, e de como essa trajetória se liga à construção da ideia de indivíduo.
37

É no Renascimento que encontramos, na melancolia, o protótipo de uma


subjetividade que prenuncia o surgimento do sujeito moderno. Do século XV
em diante, foi o campo do Outro que se desarticulou e perdeu a unidade
mantida durante séculos sob a hegemonia da Igreja Católica. O desajuste que
o melancólico sinalizava, nesse caso, seria efeito da impossibilidade de
reconstruir uma unidade no campo do Outro, dada a multiplicidade de
acontecimentos, descobertas e saberes que se abriam de maneira irrevogável
diante dele. Enumero rapidamente a Reforma protestante, que abalou as
certezas dos fieis em relação aos caminhos da fé; a revolução copernicana, que
deslocou a terra e o homem do centro do universo; o alargamento das
fronteiras do mundo conhecido por efeito das navegações e do comércio; o
surgimento das primeiras cidades, que promoveram o convívio entre
desconhecidos e abalaram a segurança da vida comunitária característica das
aldeias medievais; a redescoberta do mundo greco-romano, aliada à invenção
da imprensa, que permitiu a circulação de outras ideias, não controladas pelas
autoridades eclesiásticas; a invenção dos primeiros instrumentos científicos
de abordagem do mundo sensível, que abalaram os dogmas da Igreja a respeito
da obra de Deus (KEHL, 2009, p. 68-69).

Diante de um mundo totalmente novo, o homem passou a se relacionar não mais com o
Outro – conhecido e previsível – mas com outros. Não havia mais o monopólio da verdade ou
da produção de certeza. Gradualmente, fomos nos dando conta da diversidade lá fora, e isso
possibilitou a descoberta da diversidade interior, que de forma horizontal se expressa em
múltiplas possibilidades de existir.
Na medida em que o Humanismo nos traz a dimensão da consciência de si e da
possibilidade de escolha, emerge também o sofrimento por meio da sensação do “peso de uma
consciência angustiada ante a insignificância de sua presença no mundo” (KEHL, 2009, p. 69).
Esta percepção leva a atitudes diversas e pouco convergentes. Como espécie, estamos
espalhados e dominamos todo o mundo. Cada comunidade interfere no equilíbrio da biosfera à
sua maneira, umas menos, umas mais, outras muito mais. Vivemos em um mundo globalizado
onde impera tanto o reconhecimento das diferenças entre os povos e culturas, como a realidade
de nossa interdependência, que se expressa de maneira inquestionável na esfera econômica, por
exemplo, mas não só nela.
Algo que começou com as grandes navegações, hoje encontra seu ápice com o advento
da internet. O indivíduo não está mais limitado em ou por seu território – cultural, social,
biológico –, mesmo que nunca saia de casa. E esta possibilidade de acessar o mundo sem sair
do lugar, aliada à ideia do individualismo, está cada vez mais ligada à experiência de solidão.
Estamos a um clique de qualquer coisa, mas parece que estamos desaprendendo a nos relacionar
com o próximo. Cada um de nós vive com os sentimentos concomitantes de insignificância e
38

magnitude, diante da pequenez e do poder humano. Com efeito, espalham-se conflitos de todas
as ordens.
Neste contexto de embate entre o local e o global, entre o Eu e os Outros, entre o meu e
o seu, entre uma liberdade aterrorizante e uma dependência sufocante, acontece uma discussão
muito potente e, talvez, através dela, possamos como espécie encontrar uma síntese viável, um
ponto de partida que nos ajude na produção de sentido.
O debate referido acima diz respeito aos direitos humanos, que em 2018 ganhou a
ordem do dia com a execução de Marielle Franco – vereadora negra, feminista, filha da favela,
lésbica. Ela reunia em si as pautas dessas minorias sob a bandeira dos Direitos Humanos
Universais. Seu assassinato fez com que o tema ganhasse a grande mídia nacional e
internacional. Assim, movimentos de lutas por direitos de setores aparentemente paralelos da
população, agora passaram a se unir sob a mesma bandeira. Fez com que ficasse evidente uma
intercessão entre as discussões de gênero, as lutas raciais, das periferias e dos excluídos de toda
a sorte: direitos da humanidade.
A história da busca pelos direitos humanos, ou para que se estabelecesse um acordo de
convívio em sociedade, remonta de longa data. A primeira declaração conhecida foi escrita por
Ciro, O Grande, Rei da antiga Pérsia em 539 antes de nossa era comum (AEC). Depois vieram
outras tentativas de limitar abusos de monarcas, a exemplo da Magna Carta assinada por Rei
João da Inglaterra em 1215. Sucedeu ainda a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
documento resultante da Revolução Francesa (1789-1799). Este último foi o que pela primeira
vez visava abarcar toda a humanidade, embora ainda não nomeasse as pautas feministas e
raciais. A história desses documentos conta como se desenrolou a dinâmica da disputa de
poderes e de direitos, mas fundamentalmente documenta como se desenvolveu a construção da
ideia de pessoa humana.
Em 1898, cem anos depois da Revolução Francesa, Émile Durkheim, em virtude do
Caso Dreyfus21, dá um grande passo em direção à definição de uma concepção de pessoa que
vai além da ideia de indivíduo, como parece imperar em nosso tempo. O inovador na
argumentação do autor é aliar a ideia de sacralidade à ideia de pessoa. Termo que ele busca

21
“O alto comando do Exército francês encenou um lance de espionagem e condenou um inocente. O
capitão Alfred Dreyfus, acusado de vender informações secretas aos alemães, recebeu pena de prisão
perpétua. O objetivo era desviar a atenção dos inimigos do verdadeiro segredo, um novo canhão, uma
superarma de guerra. Mas tudo foi descoberto. Indignados, os cidadãos exigiram a revisão do caso. A
França nunca mais seria a mesma”. Cf.: <https://super.abril.com.br/historia/caso-dreyfus-a-fraude-que-
revoltou-a-franca/>.
39

diferenciar da ideia de individualismo utilitário, que estaria enquadrado dentro de um espectro


egoísta. Eis o texto:
A pessoa humana, cuja definição é como a pedra de toque por meio da qual o
bem se distingue do mal, é considerada sagrada por assim dizer, no sentido
ritual do termo. Ela possui alguma dessa majestade transcendente que as
igrejas de todos os tempos emprestam a seus deuses; concebemo-la como
investida dessa propriedade misteriosa que cria um vazio em torno das coisas
santas, que as subtrai aos contatos vulgares e as retira da circulação comum.
É precisamente daí que vem o respeito que se lhe destina (DURKHEIM, 2016,
p. 45).

Retirando a ideia de pessoa de sua circulação comum, corriqueira e desatenta, o autor


chama atenção para uma característica de fundo que nos liga em torno de algo que nos é
compartilhado: nossa humanidade. Durkheim afirma que:

é a humanidade que é respeitável e sagrada, mas ela não está exclusivamente


nele [no indivíduo], pois está espalhada em todos os seus semelhantes. Por
conseguinte, ele não pode tomá-la como objetivo de seu comportamento sem
ser obrigado a sair de si mesmo e expandir-se (DURKHEIM, 2016, p. 49).

Disponibilizar-se para fora e estabelecer relações em um campo comum. Conclamando


os sentimentos de simpatia e piedade para todas as dores e misérias humanas, em tom profético,
Durkheim afirma que com o crescimento da população e da diversidade de hábitos, crenças e
línguas, chegaria um dia em que membros de um mesmo grupo não teriam mais nada em
comum, a não ser sua condição de humanidade, a qual ele declara ser sagrada: “E como cada
um de nós encarna algo da humanidade, cada consciência individual carrega em si algo de
divino, e se encontra assim marcada por um caráter que a torna sagrada e inviolável para os
outros” (DURKHEIM, 2016, p. 55).
Infelizmente as belas e coerentes palavras de Durkheim não foram suficientemente
proclamadas ainda para criar um sentimento hegemônico de pertencimento a algo comum. A
humanidade “pós-Durkheimiana” continuou e continua cometendo e vivendo atrocidades com
seus semelhantes. Até mesmo a noção de pessoa humana conceituada pelo filósofo continuou
sendo criticada, debatida e aprofundada por outros autores da Antropologia e Sociologia que o
sucederam. Porém, em pleno pós-guerra, nasce a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948:

Os princípios contidos na Declaração foram estabelecidos logo após a


Segunda Guerra Mundial, o genocídio cometido pelos nazistas e a explosão
da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki pelos Estados Unidos. Foram
40

estabelecidos, portanto, com o objetivo de definir um ideal capaz de se


contrapor à realidade e de motivar as pessoas, os povos e as nações a
modificarem uma realidade indesejável, marcada pela falta de liberdade, de
igualdade e de fraternidade. Todos os Estados que fazem parte da Organização
das Nações Unidas e assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos
se comprometeram a desenvolver esforços para modificar essa realidade,
promovendo e protegendo os princípios da liberdade, da igualdade e da
fraternidade (SNDH/MJ, 2001, p. 28).

Embora a mais recente declaração dos direitos e liberdades resgate valores


consideravelmente antigos e tão amplamente debatidos como os da Revolução Francesa, ela
também não é uma unanimidade. Nem todos os países signatários garantem o cumprimento de
todos os seus artigos. Ainda lidamos com a escravidão, o trabalho infantil, a tortura, as guerras
santas; nem todos os seres humanos têm acesso à justiça; muitos ainda são perseguidos e mortos
por suas ideias; cada vez mais é recusado asilo a refugiados. Muitas pessoas são arbitrariamente
privadas de sua propriedade; muitas outras não recebem remuneração igual pelo mesmo
trabalho; muitos não têm garantida uma existência compatível com a dignidade humana; muitos
não têm direito a férias remuneradas, etc.
Faz-se necessário que a devida atenção seja dada aos artigos I e VI da dita declaração.
O primeiro fala sobre a obrigatoriedade de se garantir a igualdade e a dignidade. O sexto diz:
“Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante
a lei” (ONU, 1948, [n.p.]). A meu ver, este é o cerne da questão: que tipo de gente é, na prática,
considerada “pessoa” pelos Estados signatários? Não só pelo poder público. Esta é uma questão
muito mais próxima de nosso dia a dia, uma questão de foro íntimo. Trata-se do preconceito
entranhado em cada um de nós, que nos faz constantemente distinguir entre o “eu” e o “outro”
como uma maneira de segregação subjetiva.
Eliane Brum (2014) reflete sobre a existência de um discurso subliminar que separa os
“cidadãos de bem”, ou os “humanos de verdade”, do “resto”. Um discurso sinuoso que acaba
por justificar atrocidades cometidas por pessoas ou organizações que se entendem como
detentoras de uma excepcionalidade sob a alcunha do “Bem”. Segundo Hans Joas, este mal
travestido de bem seria um resíduo do passado que ainda carregamos:

Há muito tempo, a vida dos seres humanos vem sendo e por razões
incompreensíveis ainda é dominada por costumes, usos e preconceitos que
perderam todo o sentido, se é que algum dia tiveram um. Desse modo, as
práticas atuais são concebidas como meras relíquias, às quais a época presente
se apega por inércia ou por corresponderem aos interesses de alguns
indivíduos (JOAS, 2012, p. 64).
41

Trata-se da inexistência de um profundo reconhecimento da nossa qualidade comum de


humanidade. Ou de vivermos hoje sob a égide de um individualismo que se compreende como
valor último, desinvestido de qualquer ligação ou responsabilidade para com os outros, sejam
próximos ou distantes. Perdemos – e por isso carecemos – um sentido de pertencimento, pois,
em verdade, fazemos parte de uma malha de ligação de mútuos cuidados. Encontrei em um
manual do governo brasileiro sobre direitos humanos algo semelhante ao que Durkheim
formulou:

Qual o significado de sermos livres e iguais em dignidade? Nessa afirmação


há o reconhecimento de que todo e cada ser humano traz a humanidade inteira
dentro de si. Ou, em outras palavras, que a humanidade está representada em
todo e cada ser humano, que realiza de uma forma específica, singular,
característica da liberdade. Assim, respeitar todo e cada ser humano é respeitar
a dignidade humana. Qualquer ser humano que sofra violação de seus direitos
– ainda que apenas um – é como se a humanidade toda houvesse sido
desrespeitada (SNDH/MJ, 2001, p. 79).

Se referir a todo e cada ser humano através de uma declaração de direitos e liberdades
é ressaltar a necessidade do desenvolvimento de uma prática de qualidade de cuidado de cada
um e para todos nós; é trazer como valor inalienável o reconhecimento de cada ser humano
como uma pessoa em sua dignidade, de maneira tal que seja possível abarcar toda a diversidade
das expressões humanas e circunscrevê-las dentro da mesma perspectiva de dignidade
universal. Ou, como nos diz Joas:

Ora, essas verdades mais palpáveis e esses princípios mais simples consistem
em conceber as leis como “contratos entre pessoas livres” e explicitá-las
sistematicamente a partir de um único ponto de vista, a saber, o de acarretar
“a maior felicidade possível distribuída entre o maior número possível de
pessoas” (2012, p. 65).

Uma utopia, não é mesmo? Sem dúvida. Mas ouso dizer que em tempos de crescimento
da consciência ecológica e de um também crescente empalidecimento das fronteiras que antes
delimitavam os saberes e suas verdades, essa utopia se mostra ainda uma utopia pequena. Isto
porque paralelamente ao debate acalorado sobre os direitos humanos existe outra discussão em
curso.
A partir do crescimento das etnografias antropológicas, o homem ocidental se deparou
com o fato de que muitas culturas não explicam o mundo e as relações entre os seres a partir de
uma distinção entre natureza e cultura, bem como não trabalham com a ideia da
42

excepcionalidade humana sobre todos os outros seres. Segundo Philippe Descola, em Outras
naturezas, outras culturas (2016, p. 41), essas duas premissas formam as bases de crenças que
permitiram o desenvolvimento da ciência ocidental como temos hoje. O descolamento do
homem em relação a natureza transformou o mundo em um terreno de investigação e pesquisa.
Passamos então a fazer experimentos, criar teorias e principalmente tecnologias
potentes, que nos trouxeram respostas e nos possibilitaram resolver problemas e criar coisas
magníficas. Porém, ao mesmo tempo, nos colocaram em uma situação de ameaça real de
extinção em massa. Com a constatação de que talvez nossas premissas fundantes tenham
encontrado um limite, alguns autores, dentre eles o próprio Descola, e também Bateson (2014),
começaram a tecer outras narrativas sobre natureza e cultura, sobre humanos e não-humanos,
no sentido de criar novas formas de explicar a relação entre essas categorias.
A antropologia, disciplina que por excelência questiona o senso comum, é, a meu ver, a
ciência capaz de liderar o diálogo necessário entre as demais especialidades. Ela habita os
interstícios, compondo um tecido que transpassa fronteiras e cria alianças. Ao se dedicar a
conhecer o outro, acaba enriquecendo a si própria:

A partir daí, na tentativa de se identificar com o que os outros que têm um


modo de experiência distinto do seu para compreendê-los melhor, no interior,
dividindo suas alegrias e tristezas e as razões que alegam para fazer o que
fazem, você será necessariamente levado, por contraste, a questionar a
evidência dos hábitos de vida de sua própria comunidade. Você se tornará um
pouco diferente e, dependendo do tempo que passar longe de casa, poderá se
tornar quase um estrangeiro ao que era antes. Você questionará certas
evidências que pareciam inerentes ao bom senso em sua comunidade de
origem (DESCOLA, 2016, p. 10).

Somos hoje uma civilização capaz de questionar suas próprias bases através do espanto
provocado pela aproximação com outros modos de habitar e existir. Esta parece ser uma
oportunidade que a crise das certezas nos oferece. Ao ouvir o que os ameríndios, os aborígenes
e os orientais têm a nos dizer, passamos a reinserir a humanidade no espectro da natureza22, de
modo que a maneira que compreendemos as relações entre os seres e a função humana na Terra
pode ser radicalmente transformada.
Enquanto o humano moderno objetifica e diferencia todos os elementos da natureza, a
cosmovisão ameríndia os dota de uma subjetividade e acaba por deflagrar o caráter de

22
Sobre o tema: Cf. KOHN, Eduardo. Comment pensent les forêts. 2 ed. Bruxelas: Zones Sensibles,
2017.
43

semelhança entre todos os seres. Na concepção indígena, tudo tem um “eu”, tudo é sujeito e,
portanto, tudo carrega em si um valor característico.
Entramos aqui na esfera do Perspectivismo, que pode ser compreendido como a síntese
do pensamento ameríndio. Para esses povos, os animais e os seres da natureza se enxergam
como humanos e “possuem uma alma análoga a dos humanos” (DESCOLA, 2016, p. 13).
Portanto, pensam, sentem, e se comunicam como nós, apesar de sua “roupa” de animal23. Em
suma, os animais são gente como nós, e “o referencial comum a todos os seres da natureza não
é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição” (DESCOLA, 1986, p.
120).

Assim, se nossa antropologia popular vê a humanidade como erguida sobre


alicerces animais, normalmente ocultos pela cultura – tendo outrora sido
‘completamente’ animais, permanecemos, ‘no fundo’, animais -, o
pensamento indígena conclui ao contrário que, tendo outrora sido humanos,
os animais e outros seres do cosmo continuam a ser humanos, mesmo que de
modo não-evidente (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 356).

Não se trata aqui de discutir essa perspectiva como status de verdade absoluta, mas
como verdade anímica. Uma verdade que pode trazer um sentido de pertencimento mais amplo
a tudo o que é vivo. Constrói-se como uma narrativa que pode mover os alicerces da
humanidade para um lugar de inclusão e responsabilidade de outra ordem.
Se considerarmos a possibilidade de todos os seres da natureza ganharem status de
pessoa em nosso modo de pensar, e, consequentemente, dotados de valor intrínseco ou de uma
sacralidade no sentido de Durkheim, não podemos mais falar somente em direitos humanos. O
correto hoje seria falar em direitos característicos, ou seja, que todo ser vivo teria sua
legitimidade de existência. A partir desta nova concepção, seria preciso pensar a partir de uma
categoria mais ampla de “nós”24 - nós que estamos vivos e nos relacionamos nesse tempo. Nós,
contemporâneos.

23
Para aprofundar sobre o conceito de roupa dentro do Perspectivismo: Cf. VIVEIROS DE CASTRO,
E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 350.
24
“A diversidade humana, social ou cultura, é uma manifestação da diversidade ambiental, ou natural –
é ela que nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo próprio de interiorizar a
diversidade ‘externa’ (ambiental) e assim reproduzi-la. Por isso a presente crise ambiental é, para nós
humanos, uma crise cultural, crise de diversidade, ameaça à vida humana [...] Neste começo algo
crepuscular do presente século, vemos que, atém de mortais ‘nós, civilizações’, somos mortíferas, e
mortíferas não para nós. Nós, humanos modernos, filhos das civilizações mortais de Valéry, parece que
ainda não desesquecemos que pertencemos à vida, e não o contrário. Já soubemos disso. Algumas
civilizações sabem disso; muitas outras, algumas das quais matamos, sabiam disso” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2007, p. 256-257).
44

Nessa maneira de ver, não existem outros a serem dominados, subjugados ou


estranhados. Se o que nos une é nossa humanidade, e se a humanidade inclui uma imensa e
inesgotável diversidade, não há o estrangeiro. Os animais, os insetos, os rios, o mar, o vento, o
trovão, o fogo: Nós. Neste sentido, precisamos considerar o que Donna Haraway tem a nos
dizer:

Para mim, usar a palavra “nós” é tanto um convite quanto uma pergunta: quem
será recolhido nesse “nós” para tornar mundos mais vivíveis juntos? Esse
“nós” é tal que merece um futuro ou ele é uma desculpa para não se aprofundar
o olhar nas condições de exploração necessárias para sustentá-lo?
(HARAWAY, 2011, p. 394). 25

A autora convida a pensar em termos de multiespécies humano-animal-vegetal. Permito


a inclusão aqui da Hipótese de Gaia, que engloba a perspectiva de um macrocosmo (o planeta),
um microcosmo (as bactérias) e o mesocosmo (a mente) (THOMPSON, 2014, p. 10) – e nos
convida a um tornar-se-com, ainda em construção (HARAWAY, 2011, p. 393).
Voltarei a esta argumentação em hora oportuna. Passarei agora para um tópico em que
me dedicarei a entender como as ideias que nos movem hoje tiveram início. No próximo tópico
irei refletir sobre as narrativas que fundamentam nossa sociedade atual ao privilegiarem a
criação do mundo conforme nos relata o Gênesis.

1.2 NOSSAS HISTÓRIAS

Quem são os meus contemporâneos? Pergunta-se Juan Gelman.


Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos
Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus
contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um
poema sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada
e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do
pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim,
que eles sim: que este poema, esse pastor e essa mulher são seus
contemporâneos (GALEANO, 2014, p.242).

25
No prefácio do livro Oltre natura e cultura. Paris: Gallimard, 2005, p. 16, de Philipe Descola, Nadia
Breda comenta que não foi criado ainda um termo dentro da cosmologia naturalista que abarque o
sentido que damos às palavras humanidade e ‘animalidade’ com relação ao mundo vegetal. Seria algo
como a ‘plantidade’ ou a ‘vegetalidade’.
45

Quais foram as narrativas atuantes como tradutoras de crenças fundantes, as quais nos
fizeram chegar até aqui? No sentido psicológico, as histórias que são contadas sobre nós
mesmos dentro das famílias e das comunidades, moldam a constituição de um sentido de si
mesmo, de nossas escolhas e sentimentos. Essas histórias se tornam ao mesmo tempo um lugar
de pertencimento e de profusão de profecias, como ideais de futuro.
No processo terapêutico caminho no sentido de revisitar, reler e ressignificar essas
profecias, com o intuito de tornar conscientes crenças e leituras de mundo que atuam em mim
e nos demais, muitas vezes de forma compulsória. Ao fazer este movimento de busca interna,
a pessoa pode se tornar autora ativa de sua própria vida. Do mesmo modo, as histórias de uma
sociedade qualificam as “verdades” pelas quais os valores de uma cultura são fundamentados.
Estes são traduzidos em escolhas baseadas em um sentir muitas vezes automático, introjetado
ou inconsciente.
Ressalto aqui a importância do mito como fundamento de uma percepção de mundo e
consequentemente como fonte de um sentido de atuação no cotidiano, ou seja, como uma
determinada tradição concebe a relação entre seus membros e os outros seres que coabitam a
existência.
Ao retomar os mitos que originaram a cultura branca ocidental, torna-se evidente que a
compreensão que prevaleceu leva a uma perspectiva que crê na excepcionalidade humana sobre
todas as outras formas de vida. Esta prerrogativa de primazia de uma única espécie sobre todas
as outras, aliada a ideias de controle e dominação, colaborou para gerar uma lógica de
pensamento que justificou, ao longo da história, um processo cada vez mais profundo de
segregação e exclusão.

Nós, então, nos vemos como alienígenas em relação ao mundo. Como se a


gente tivesse uma relação com o mundo diferente da relação dos outros seres
vivos, como se os humanos fossem especiais. Não deixa de ser uma coisa
importante na tradição do catolicismo e do cristianismo. O homem tem um
lado que não é mundano, um destino fora do mundo. Isso faz com que ele trate
o mundo como se fosse para ser pilhado, saqueado, apropriado (BRUM, 2014,
[n. p.]).

Passo, então, a investigar a narrativa que embasa, mitologicamente, a origem do mundo


dentro do que chamamos de Era Judaico-Cristã. Esta história é tida como fundamento de nosso
tempo contemporâneo e se encontra ainda presente e pulsante. Nossa Gênesis pode ser tomada
como um mito ainda vivo, contado e relembrado por uma parcela gigantesca da população
mundial e, por isso, capaz de ainda singularizar nossa cultura.
46

Busco encontrar qual a imagem de ser humano subjacente ao mito de origem do


Ocidente, que foi assimilado pelos cidadãos comuns e de certa maneira transformado em prática
cultural, social e relacional. Tal imagem idealizada do humano foi também substancialmente
absorvida pelos ideais modernos e materialistas. Busca-se o caminho de uma consciência crítica
capaz de, a partir de dentro, transformar a nossa compreensão de ser humano.
Ressalto que minha proposta com a releitura dos mitos não enquadra uma busca por
uma verdade no que foi dito, e sim uma análise do que foi compreendido e colocado em práticas
de atuação no mundo. Por isso, minha pesquisa não abrange uma ampla investigação exegética,
ou quanto à qualidade da tradução e exatidão dos sentidos empregados em cada palavra.
Embora, adiante, recorra a alguns autores que fizeram tal investigação para mostrar o esforço
realizado por teólogos e biblistas no sentido de aprofundar as percepções superficiais dos
comandos de Deus, este não é meu foco principal. Busco compreender como as palavras
ganharam sentido de prática e conduta reafirmadas em nosso cotidiano.

1.2.1 A criação

Irei ao mito intercalado de comentários, nos quais destaco o que uma leitura superficial,
secularizada e literal pode trazer como compreensão da mensagem a ele relacionada:

Primeiro relato da criação – No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a


terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo e um vento de Deus
pairava sobre as águas. Deus disse: “Haja luz” e houve luz. Deus viu que a luz
era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou a luz de “dia” e às
trevas “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia (Gn 1,1-5).

O primeiro dia instaura a ideia da polaridade. Inaugura a percepção e a vivência dos


opostos primordiais: luz e trevas, noite e dia; desde já classifica o que é bom e
consequentemente o que não é. A luz, o claro, o dia, são bons. As trevas, a noite, o escuro,
ocultamente são maus. Desde o princípio temos, então, aclamada a ideia de bom e mau como
constituintes da existência.

Deus disse: “Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas
das águas”, e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que
estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus
chamou o firmamento de “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia.
Deus disse: “Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e
que apareça o continente” e assim se fez. Deus chamou ao continente “terra”
e à massa das águas “mares”, e Deus viu que isso era bom.
47

Deus disse: “Que a terra verdeje de verdura: ervas que deem sementes e
árvores frutíferas que deem sobre a terra, segundo sua espécie, frutos contendo
suas sementes” e assim se fez. A terra produziu verdura: ervas que dão
sementes segundo sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos
contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma
manhã: terceiro dia (Gn 1,6-13).

Nos dois dias que se seguem ao primeiro, o criador continua separando e nomeando
elementos. Chama atenção para o modo como no texto é dada uma ênfase à criação das plantas
dotadas de sementes para se reproduzirem “segundo a sua espécie”. Isto denota mais uma vez
a ideia da diferenciação entre as coisas do mundo, como se cada coisa existisse de forma
independente. Cada espécie obedeceria a um ciclo em si mesma, de forma individualizada. Não
há no mito menção à necessidade dos insetos e do vento para a polinização e consequente
reprodução das plantas, por exemplo.

Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a
noite: que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os
anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra” e assim
se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia
e o pequeno luzeiro para governar a noite e as estrelas. Deus os colocou no
firmamento do céu para iluminar a terra e governarem o dia e a noite, para
separarem a luz das trevas, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e
uma manhã: quarto dia (Gn 1,14-19).

No quarto dia Deus distingue e atribui funções geocêntricas aos elementos do céu. Não
há nenhuma menção à força que mantém estes elementos juntos: eles foram dados a existir para
satisfazer às necessidades dos seres viventes na terra.

Deus disse: “Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves


voem acima da terra, sob o firmamento do céu” e assim se fez. Deus criou as
grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham
nas águas segundo sua espécie, e as aves aladas segundo sua espécie, e Deus
viu que isso era bom. Deus os abençoou e disse: “Sede fecundos, multiplicai-
vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra”.
Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia (Gn 1, 20-23).

Repteis e peixes que vieram das águas, aves que vieram do ar, multiplicai-vos segundo
a sua espécie. Novamente, nenhuma menção à interdependência entre as espécies ou à cadeia
alimentar. Há uma ideia de ocupação do espaço, como se a terra e o céu estivessem ali para
serem habitados pelos seres. Como se existisse o meio e, então, os seres que o ocupam. Não me
parece que a ideia de ocupação carrega em si a ideia de cuidado ou pertencimento e
interdependência.
48

Deus disse: “Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais
domésticos, répteis e feras segundo sua espécie” e assim se fez. Deus fez as
feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos
os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom.
Deus disse: “Façamos o homem a nossa imagem, como nossa semelhança, e
que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”.

Deus criou o homem à sua imagem,


à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.

Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra


e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os
animais que rastejam sobre a terra”. Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas
que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores
que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a
todas as aves do céu, a tudo que rasteja sobre a terra e que é animado de vida,
eu dou como alimento toda a verdura das plantas e assim se fez. Deus viu tudo
que tinha feito: e era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia
(Gn 1,24-31).

Primeiramente é dito “que a terra produza seres vivos...”, mas no decorrer do texto, é
repetidamente afirmado que a criação foi feita por Deus. A intenção da existência dos humanos
seria para que estes se “multiplicassem” e, então, “dominassem” e “submetessem” a terra e
todos os outros seres vivos, fossem as plantas, as aves, os animais domésticos ou as feras.
Destaco também a ideia de que o homem - bem como a mulher, que aqui já aparece no
ato da criação - fossem feitos à imagem e semelhança dos seres superiores. No texto está escrito
“nossa semelhança” e em nota se atribui o uso do plural a uma semelhança com uma “corte
celeste” que incluiria os anjos, entre outros seres. Essa referência a direta relação dos humanos,
homens e mulheres, aos seres celestiais, dá uma ideia de que toda a criação, terra e seres vivos
teriam sido criados com o propósito de compor um habitat destinado ao patrimônio desta única
espécie. Ou como fim dessa única espécie, passando, assim, a ideia de um desencadear
evolutivo da criação, como se o humano fosse o ápice e destino final da existência da e na Terra.
Denota-se, então, um sentido antropocêntrico da existência.
Assim foram concluídos o céu e a terra, com todo o seu exército. Deus
concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou, depois de
toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele
descansou depois de toda a sua obra de criação. Essa é a história do céu e da
terra, quando foram criados (Gn 2,1-4).

Ao concluir a criação, Deus descansou. Em nota na Bíblia de Jerusalém (1973) explica-


se que o vocabulário Shabbat foi evitado porque o sábado só era exigido no Sinai. Não pretendo
analisar o que isso significa em termos bíblicos ou religiosos, mas considero interessante atestar
49

que em nossa sociedade atual há pouco espaço ou atribuição de valor ao descanso contemplativo
após o cumprimento de uma tarefa.
Todos os dias da semana são passiveis de se trabalhar e, com o advento da internet e da
globalização, todas as horas do dia podem ser invadidas pelo trabalho. Tempo é dinheiro, dizem.
Todos os momentos precisam hoje estar dirigidos para algum tipo de utilidade, produção ou
consumo. Simbolicamente, é interessante constatar que o sentido do Shabbat passou a ser
desconsiderado.
Geocentrismo e antropocentrismo me parecem ser as ideias contidas no “Gênesis 1-3”.
Porém, a partir de uma leitura mais detalhada e cuidadosa, alguns autores tiram conclusões
diferentes. Passarei a relatá-las no próximo tópico, mas considero importante salientar aqui que
essa narrativa pode ter contribuído para as práticas humanas que ao longo da história seguiram
cada vez mais em direção a uma relação utilitarista e objetificante com o resto da criação.

1.2.2 As “entrelinhas”

Sua prática reside em reconhecer, na pluralidade, a forma natural de revelação


da força divina. Ela está em mim e em você, ela só não é encontrada onde sou
incapaz de reconhecê-la (BÜHLER, 2018, p. 85).

Na tentativa de aplacar um certo sentimento de irresponsabilidade ligado às minhas


afirmações no tópico anterior, fui buscar saber o que os exegetas dizem a partir de uma
interpretação mais profunda dos primeiros capítulos do Gênesis. Notei que há uma preocupação
crescente, relacionada às questões da ecologia, no interior da Igreja Católica. Geralmente essa
inquietude conduz organicamente a um retorno e a uma releitura do seu mito de origem.
A Revista Grande Sinal do ano de 1992, intitulada “Ecologia: A Terra, nossa Casa”,
mostra que há quase trinta anos o assunto vem sendo emblematicamente abordado no Brasil.
Em seu artigo na referida revista, Frei Ludovico Garmus nos coloca a seguinte pergunta “Até
que ponto a ordem dada por Deus de ‘subjugar’ a terra e ‘dominar’ os animais (Gn1, 26-28) é
a grande responsável pela situação calamitosa que vivemos? ” (1992, p. 276). Após um breve
histórico de reuniões ecumênicas que aconteceram nos anos anteriores26, o autor aponta para a

26
A saber: “Assembleia do Conselho Ecumênico das Igrejas em Vancouver (1983), a Reunião
Ecumênica Europeia de Basiléia (15-21 de maio de 1989) e a Reunião Mundial sobre a Justiça, a Paz e
a Preservação da Criação em Seul, Coréia 5-15 de março de 1990) ” (GARMUS, 1992, p. 276).
50

necessidade de “nos debruçarmos novamente sobre os textos bíblicos para rever certas
interpretações errôneas e recuperar o respeito pela criação” (GARMUS, 1992, p. 277).
Para André Wénin, o retorno ao mito de origem cristão cumpre uma função semelhante:

Uma narrativa mítica – e as primeiras páginas do Gênesis apresentam uma


delas – fala de fato do que é constitutivo do humano, e o que tocam é central.
Lugar do ser humano no mundo e em relação ao que o transcende; vida e
morte, amor e sexualidade; verdade e mentira; mal, sofrimento, violência;
trabalho, vestimenta, alimentação; vida em conjunto, leis, costumes: tal é o
objetivo de um escrito desta espécie. Fala, por conseguinte, de coisas
conhecidas do leitor, experimentadas no concreto da existência. Mas ao
propor-se como uma narrativa permite ao leitor tomar distância e questionar
suas evidências, suas maneiras espontâneas, naturais – culturais na verdade –
de pensar e viver essas realidades (2001, p. 13).

Em De Adão a Abraão ou as errâncias do humano (2001), o referido autor nos apresenta


uma minuciosa análise dos primeiros sete dias da criação. Aprofunda a compreensão sobre
muitos dos pontos que foram destacados por mim no tópico anterior e ainda acrescenta alguns
outros.
Wénin prossegue no percurso de compreender o sentido e a função do humano que o
mito em essência propõe. Bem como Frei Garmus, Wénin chama atenção para o fato de o mito
relatar como Deus dá ordem a um caos pré-existente. Através da fala do Criador, cada coisa vai
ganhando seu lugar de existência, e o leitor é convidado a participar: “o mundo aí se desenha,
de maneira que o leitor se sente convidado a partilhar a serena admiração do criador” (WÉNIN,
2011, p. 17).
De fato, a apreciação que André Wénin faz do mito é um convite à participação do leitor.
Mas não uma participação passiva – de mero expectador –, nem mesmo de intérprete. Segundo
o autor, o texto bíblico convoca-nos a interpretar nossa própria realidade (WÉNIN, 2011, p.
31). Primeiramente, chama atenção para uma cadência do relato da criação vivenciada a partir
de algumas frases que se repetem no início e ao final de cada ato criador: “E Deus disse”; “E
houve uma tarde e uma manhã. Dia X” (WÉNIN, 2011, p. 20).
O autor se propõe a perceber o sentido contido “nas entrelinhas” através de uma simetria
rítmica, que se singulariza ao observarmos o que acontece nos três primeiros dias, e depois nos
três subsequentes. Nos três dias inaugurais, “Deus procede aí essencialmente por separações:
distingue luz de trevas, depois separa espaço, primeiro verticalmente (alto e baixo), depois
horizontalmente (água e terras)” (WÉNIN, 2011, p. 20).
51

Cria, assim, através de elementos móveis submetidos aos comandos de Deus, o ambiente
propício à vida. Do quarto ao sexto dia, Deus passa a povoar este ambiente: inicia pelo o céu,
com os luzeiros maiores e as estrelas, passa para as águas, o ar e, enfim, a terra, trazendo à
existência os animais terrestres, que inclui a humanidade – homem e mulher, macho e fêmea.
Um especial destaque precisa ser dado ao peso dessa obra organizadora movida pelo ato de
separar, pois, mesmo ao criar os seres vivos, cada obra vem acompanhada da expressão:
“segundo a sua espécie”:

O fato de separar, de distinguir é, portanto, uma característica permanente da


ação criadora do Elohim de Gênesis 1. E essas separações que instituem as
coisas e os seres em sua alteridade são a condição para que do mundo criado
ele diga: “muito bem!” cada coisa distinta estando em seu lugar, numa justa
relação com o todo (WÉNIN, 2011, p. 31).

Deus, ou Elohim – como prefere chamar Wénin – seria então um “estranho personagem
que separa” (2011, p. 30), distingue e, assim, organiza o caos pré-existente. O fato desta
característica aparecer com tamanha força no nosso mito de origem, falaria muito dessa nossa
característica. Somos humanos tementes à tal cartilha, tentamos compreender o mundo através
dessa mesma lógica de separação, distinção, dissecação, e em última instância, exclusão.

Neste ponto volto às separações sucessivas que, no texto, Deus opera para
desenhar pouco a pouco a realidade do mundo tal como o olhar humano pode
apreendê-la [...] O que este texto propõe não é, portanto, uma simples
“narrativa da criação”. É uma interpretação teológica de parâmetros
invariáveis que caracterizam toda a realidade, que se destaca do mundo criado
tal como é apresentado pelo ser humano: inscrição na linguagem, origem
inapreensível, alteridade, limite e relações (WÉNIN, 2011, p. 32).

O mito explica e estabelece uma organização da realidade conforme seu próprio olhar.
Wénin detalha nossa percepção de mundo quando apresenta um quadro que deve ser lido
verticalmente – três primeiros dias e os três subsequentes –, mas que também deve ser
observado horizontalmente. Ao fazê-lo, traça um paralelo entre o primeiro e o quarto dias: faz-
se a Luz e depois os lixeiros: cria-se, então, o ritmo do tempo.
O segundo dia estaria relacionado com o quinto: cria-se a abóboda dos céus – águas
abaixo e águas acima – e depois povoa-os com peixes e aves. O terceiro dia, então, remeteria
ao sexto. Eles têm em comum a realização de duas obras, em cada qual: terra seca/mares e
plantas; animais terrestres, humanidade e sementes para o cultivo e alimentação. O autor
sintetiza: “Ao observar que o esquema põe em evidência, compreende-se que está efetivamente
52

em obra um projeto consciente que Deus realiza de maneira coerente e progressiva segundo um
ritmo ao mesmo tempo amplo e regular” (WÉNIN, 2011, p. 22).
Porém, Wénin destaca um ponto curioso. Diz que essa narrativa se trata de uma obra de
ficção – já que nenhum ser humano foi testemunha da criação, aparecendo somente como
último feito de Deus. Então, ele se propõe a indagar quem seria o narrador do mito e conclui
que este narrador se põe a um exercício imaginativo, “relatando palavras e atos de um
personagem que ele designa como Elohim” (WÉNIN, 2011, p. 31). O relato seria, portanto, o
relato da constituição do mundo conforme o mundo em que nós mesmos vivemos. Ele ao
mesmo tempo construiria e reafirmaria nosso próprio modo de compreender o mundo. Ou seja,

Elohim não é, pois, um personagem que, como qualquer outro personagem de


narrativa, intervém e age no interior do único mundo da história narrada. O
que diz e faz na narrativa é pôr no lugar e em ordem o mundo que o leitor pode
observar na realidade. Elohim transcende, portanto, os limites entre ficção e
realidade, enquanto a ficção da narrativa aparece de chofre suscetível de ter
uma incidência sobre o real do leitor (WÉNIN, 2011, p. 31).

Este projeto amplo contém ainda um último e totalmente diferente dia. O dia em que
Deus faz uma pausa contemplativa. Embora o sétimo dia represente uma ruptura, Wénin o
relaciona ao primeiro e ao quarto dias. Afirma que eles estariam dando conta de uma certa
marcação do tempo.
O primeiro marcaria o ritmo diário, o quarto os anos e as estações, o sétimo, contudo,
marcaria o ritmo semanal e instauraria a necessidade do descanso. Este último, não seria ditado
pelos elementos temporais: “Este ritmo, por conseguinte, não é ditado pelos astros: é, por assim
dizer, dado pelo criador. Assim, será necessária uma lei específica para que o povo da aliança
adote o ritmo que é o de Deus (Ex. 20,8-11)” (WÉNIN, 2011, p. 22).
Wénin é extremamente detalhista em sua análise do texto bíblico. Após discorrer sobre
uma contagem de vocábulos e de expressões que se repetem, chega à conclusão de que os sete
dias da criação se tratam, por um lado, da organização do espaço, e por outro, da passagem de
uma missão de governança:

A organização interna desse conjunto de palavras divinas não é deixada ao


acaso, pode-se imaginá-lo. Sem pretender ser exaustivo, notar-se-á somente
que a narrativa dos seis dias é composta de duas partes de igual exatidão, como
se disse. Elas possuem uma estrutura interna análoga em que os vegetais
fazem a figura de elétron livre, se assim nos é permitido dizer. As cinco
primeiras palavras, cujo tema é sublinhado pelo verbo ‘separar’, são
enquadradas por obras de luz que escandem o tempo (v.3-5 e 14-19), a
53

estruturação do espaço ocupando o centro; a isto se acrescentam as plantas


(v.6-13). Nas cinco palavras da segunda metade do texto, trata-se dos ‘seres
vivos’. A criação e a benção dos animais do mar e do ar de uma parte (v.20-
23) e as da humanidade da outra (v.26-28) se correspondem literalmente e
cercam a produção dos animais na terra (v.24-25); as plantas reaparecem em
complemento no fim (v.29-30). Pode-se acrescentar que, em cada parte, a
última obra recebe uma missão de ‘governo’: os astros para os tempos (v.16-
18) e a humanidade para os animais (v.26-28) (WÉNIN, 2011, p. 25).

Porém, Wénin percebe uma sutileza nessa missão de governança, bem como na forma
como o senso comum compreende o poder de Deus. Quanto a essas questões, primeiramente
chama atenção para o fato de que o Criador não destrói nada. Em essência, ele não aniquila o
caos ou nenhuma força hostil à vida, mas a organiza ao impor limites e criar uma harmonia.
Tudo se faz, contudo sem a instauração da violência (WÉNIN, 2011, p. 33).
O segundo ponto demonstrativo de uma qualidade desse poder de Deus se explicita
através de seu caráter doador; a abundância de Deus se expande através da possibilidade de
frutificar e multiplicar. Contudo, o detalhe sutil destacável no autor se deve ao fato de que no
sétimo dia o Criador se retira e deixa duas obras sem a frase conclusiva: “E Deus viu que isso
era bom”. Isso denotaria um tom de inacabamento da obra divina. Este Deus que se retira nos
apresenta um

Paradoxo de um Deus que, para completar sua criação, não a imobiliza em


uma perfeição estéril, mas assume o risco de deixar reticências, manifestando
assim novamente seu desejo de não monopolizar o controle de sua obra.
Agindo dessa forma, Elohim prepara, desde o início, o terreno para a aliança
que supõe parceiros autônomos que optam por assumir seus limites para abrir
espaço à vida e à liberdade do outro [...] Neste sentido, a “onipotência” de
Deus nada mais é que a suavidade daquele que permanece senhor de seu
próprio poder (WÉNIN, 2011, p. 35).

Há ainda mais um ponto levantado pela atenta análise de Wénin. Quando se dedica a
compreender o que significa o homem e a mulher terem sido criados à “imagem” e
“semelhança” de Deus, uma interessante e talvez revolucionária versão interpretativa se mostra
evidente. Vamos ao texto, pois me sinto incapaz de transcrevê-lo com tamanha exatidão:

Elohim evoca a relação entre ele e o ser humano com a ajuda de duas palavras:
“imagem” (sèlèm) e “semelhança” (dᵉmût). Não são sinônimos em hebraico.
O primeiro é um termo concreto que designa uma imagem plástica, uma
escultura em particular (1Sm 6,5; 2Rs 11,18), inclusive estátuas de deuses (Ez
7,20; Am 5,26) que a lei proíbe (Dt 4,15-19). Trata-se, portanto, de uma
54

representação, um retrato. Quanto ao termo abstrato dᵉmût, ele deriva do verbo


damah, que significa “ser como, assemelhar-se”. Designa a “semelhança”
entre duas realidades comparáveis pelo aspecto (Ez 1,26; 2Cr 4,3) ou entre
uma cópia e seu original (Is 40,18; Ez 23,15). Quando o narrado relata que
Deus faz, no versículo 28, emprega duas vezes o termo “imagem”. Essa
repetição atrai a atenção para a variação. Onde, pois, apresenta-se a
semelhança? (WÉNIN, 2011, p. 37).

Na tentativa de responder à pergunta: “Como se apresenta a semelhança”? O autor nos


relembra a menção feita por Deus de que ele cria o homem “macho e fêmea”, assim como
quando cria os animais. Nesse sentido, o humano, sendo feito à imagem do criador, ao mesmo
tempo carrega consigo algo dos animais: a sexualidade e animosidade.
Em seguida ressalta um ponto que me passou despercebido. Esse ponto já foi
mencionado acima, mas sinto necessidade de ressaltá-lo novamente: “a criação do homem não
é seguida, como as outras, do refrão: ‘E Deus viu: está bem!” (WÉNIN, 2011, p. 37). Ou como
na tradução que utilizei nesta tese: “E Deus viu que isso era bom”. Wénin aponta para a falta
do mesmo refrão no final do segundo dia, após Deus separar as águas de baixo e de cima,
criando a abóbada do céu (v.8). O autor argumenta que os exegetas atribuem essa falta no v. 8
ao fato de a criação da abóbada não ser suficiente para a criação da vida. Faltava ainda a terra
seca, enfim:

Assim, pois, quando a fórmula é omitida pela primeira vez, é porque a obra
permanece inacabada. Não será a mesma coisa para o ser humano? Em todo o
caso, isso poderia explicar o desaparecimento da “semelhança”: inacabado, o
humano traz certamente em si a imagem de Deus, mas essa não é (ainda)
semelhança. Porque o humano está próximo também dos animais com os quais
condivide uma sexualidade natural (“macho e fêmea”). Tudo se passa como
se fosse colocado em uma posição mediana entre divindade e animalidade,
[...] (WÉNIN, 2011, p. 38).

A partir desta percepção do humano como um ser inacabado, os verbos “dominar” e


“submeter” podem ganhar uma outra compreensão. Ou melhor, um entendimento de sentido
similar, mas com uma mudança de objeto. Explico: uma leitura superficial do mito nos leva a
crer que Deus simplesmente dá o comando e autorização ao ser humano de dominar e subjugar
a terra e os animais. Porém, para Wénin, a grande missão dada ao ser humano por Deus não é
dominar e submeter, mas sim alcançar a “semelhança”. Ou seja, o que é dado ao homem e à
mulher é a possibilidade de alcançar esta semelhança:
55

Em suma, onde o leitor espera que, como Elohim, o narrador fale de


semelhança, ele repete o que acaba de dizer27, como para sugerir que falta a
semelhança. A frase que ele acrescenta induz a uma explicação: o humano não
se assemelha a Deus, porque ele vive também uma proximidade com o animal
(WÉNIN, 2011, p. 38).

No versículo 28, Deus concede sua benção ao que pode ser compreendido como a
orientação para o ser humano alcançar a semelhança, que seria então, o caminho da salvação:
multiplicando-se, dominando e submetendo a terra e os animais. Então, caberia aos humanos
exercer sobre a terra e os outros seres um poder análogo ao de Deus. Uma ação que passa pelo
poder de organizar e dar sentido ao caos, um convite à responsabilidade.
Depois Deus concede os cereais e as frutas como alimento aos humanos. Wénin se
pergunta: “De fato, após a ordem de dominar com força os animais, o que pode sugerir o dom
de uma alimentação vegetal senão que os humanos têm a possibilidade de dominar o animal
sem matar”? (Wénin, 2011, p. 40). Para o autor, esta singela alusão ao mito, que normalmente
passa despercebida, seria um convite a um reconhecimento de autolimite. Ou uma dica de que,
para se assemelhar a Elohim, os humanos deveriam dominar, mas sem violência. Ou seja, o
mundo recém-criado e todos os seres nele viventes são entregues ao humano, mas não para
mandos e desmandos, e sim para que ele próprio tenha a oportunidade de alcançar a sua
semelhança com Deus.

Isso implica que, como Deus, o humano saiba impor-se um limite: o do


respeito à vida e ao lugar do animal. Tal é o caminho de complemento que
Elohim propõe nas palavras que dirige à humanidade: um dever de domínio
acompanhado do convite discreto a contê-lo, a moderá-lo de modo que o outro
– o animal – encontre um espaço onde possa desenvolver sua própria vida.
Assim compete aos humanos “criados” à imagem de Elohim “trabalhar” para
aprender a assemelhar-se a essa imagem cujo vestígio trazem em si mesmos.
(WÉNIN, 2011, p. 41).

Quando Deus se retira para o descanso contemplativo deixando o humano para fazer
suas próprias escolhas, ele faz uma demonstração de uma qualidade de poder libertário. Aposta
na possibilidade do desenvolvimento de uma consciência capaz de seguir seu exemplo e se
responsabilizar. Aqui, a palavra responsabilidade se torna prima-irmã da palavra cuidado.
Nessa atmosfera, as palavras “dominar” e “subjugar” ganham uma outra dimensão.

27
WÉNIN se refere à esta repetição: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou” (Gn 1, 27).
56

Ao lembrar-nos que carregamos, cada um de nós, algo de divino e de animal, e ao nos


dotar de liberdade, o mito clama por mais que uma responsabilidade e cuidado genéricos, mas
por autorresponsabilidade e autocuidado. Em última instância, solicita uma liberdade que se
autolimita quando se percebe parte de algo muito maior que ela mesma. Porque, “para realizar-
se à imagem de Deus, é preciso que assumam essa animalidade interior dominando-a. Isso vale
tanto para indivíduos como para as coletividades” (WÉNIN, 2011, p. 42).
O convite de Deus, ao criar a humanidade e deixá-la, seria então a concretização de uma
“realidade em devir” (WÉNIN, 2011, p. 42). Algo que precisa ser conquistado por cunho
próprio. Para finalizar, o autor conclui:

O humano realiza a si mesmo a imagem de Deus na medida em que,


esforçando-se por dominar seu próprio domínio de maneira que contenha a
violência, contribui para o advento de um mundo pacificado e harmonioso,
com essa suavidade que é renúncia às ilusões do poder sem limites e abertura
dinâmica à alteridade. Dessa forma, o humano se torna um vivente que suscita
a vida e se torna capaz de aliança, precisamente, à imagem de Elohim criador
(WÉNIN, 2011, p. 44).

Após ter contato com essa análise do mito de origem judaico-cristão, me deparo com
um sentimento ampliado de busca e trabalho para que esta dita semelhança com Deus seja
alcançada. Porém, infelizmente, não me parece que estejamos, como coletividade, conscientes
desta missão. Vejamos agora o que nos diz nosso papa, líder atual desta discussão no interior
da Igreja Católica e exemplo para o mundo.

1.2.3 Palavras de Francisco

Em algum lugar nasce um homem.


Seu irmão toca, escuta e cultiva a terra.
Reunindo o espírito na terra e no homem.
Em movimento, transcende a todas as coisas, presenteando um quase
insuportável sentido de beleza.
Tocados pela beleza, descansamos em paz.
Nasce Francisco. Somos todos capazes de tanta beleza.
(BÜHLER, 2018, p. 42).
57

Em 2013, Jorge Mario Bergoglio foi eleito o novo papa após a renúncia de Bento XVI.
Esse acontecimento, segundo José Maria da Silva (2014, p. 7) configura “um processo de
desmistificação da figura do papado, mostrando o quão humano ele é”. Ao escolher o nome
Francisco, o novo “bispo de Roma” assume a liderança de uma proposta de reformulação da
própria Igreja. Proveniente de outro mundo, a saber, da América do Sul, gesta uma concepção
de religiosidade ligada à experiência

periférica, mais leve e colorida, mais flexível e que ganhou os tons e os sons
de sua encarnação nas diferentes culturas existentes no continente latino-
americano. Sente-se livre para um novo ensaio de Igreja que esteja à altura
dos desafios internos e externos, especialmente face à devastadora crise do
sistema-vida e do sistema-Terra que assola toda a humanidade e que não
poupa sequer a Igreja (BOFF, 2014, p. 122).

Fortemente ligado aos ensinamentos de Francisco de Assis, o novo pontífice busca


construir pontes através do exercício do diálogo, como ressalta Faustino Teixeira (2014, p. 67).
Clama pela necessidade de que novas respostas sejam obtidas através de um encontro com o
outro, com o diferente, com o estranho, para que assim, tanto a Igreja como cada um de nós
possa habitar o mundo de forma mais inclusiva e cuidadosa.
“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e
produz variados frutos com flores e verduras” (LS, 1). São as palavras de Francisco de Assis
que iniciam a primeira encíclica de papa Francisco (2015) que versa essencialmente sobre o
cuidado da nossa casa comum. Nela, o Bispo de Roma explica que adotou o nome do Santo de
Assis por considerá-lo

o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia
integral, vivida com alegria e autenticidade” [...] “Nele se nota até que ponto
são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o
empenho na sociedade e a paz interior (LS,10).

Nesta atmosfera de abundante reverência a todos os elementos, vivos ou não, nosso novo
papa faz duras críticas ao modo como os humanos se relacionam com sua própria casa. Chega
a afirmar que “crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados
a saqueá-la” (LS, 2). Nomeia alguns pontos que precisam de mais atenção, a exemplo do que
denomina um processo de “rapidación”. Tal ocorrência deflagraria um descompasso
contrastante entre a velocidade das ações humanas e a lentidão dos processos naturais,
58

biológicos, de recuperação ou regeneração da natureza. O papa afirma que mudança não pode
significar deterioração (LS, 18).
Francisco ressalta também a necessidade de passarmos de uma “cultura do descarte”
para um “modelo circular de produção” que assegure as gerações futuras (LS, 22) e que
reestabeleça em cada um de nós e em nossos governantes um sentido de responsabilidade por
nossos semelhantes (LS, 25). Nomeia problemas, como as migrações de populações inteiras em
busca de melhores condições de vida e por garantia de direitos (LS, 25); coloca a água como
direito fundamental da humanidade (LS, 30); a perda da biodiversidade como resultado de uma
ação onipresente dos humanos na terra, subjugando todos os outros organismos (LS, 34).
O papa fala também sobre o modo de viver nas grandes cidades, que contribui para uma
“profunda e melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento” (LS,
47); argumenta sobre o problema das desigualdades econômicas e de como isso contribui para
guerras (LS, 57) e ao mesmo tempo para uma espécie de ecologia superficial, que favoreceria
o desabrochar de “certo torpor e uma alegre irresponsabilidade” aliados a um processo de
negação da realidade (LS, 59). Finaliza o primeiro capítulo da Encíclica afirmando que, ao se
tornar desatenta para os elementos de ligação entre todos os seres e a própria terra, “a
humanidade frustrou a expectativa divina” (LS, 61).
O segundo capítulo dessa obra é todo dedicado ao Evangelho da Criação. O autor
justifica este feito como um chamado, para que todos os crentes tomem conhecimento dos
“compromissos ecológicos que brotam de nossas (cristãs) convicções” (LS, 64).
O papa propõe claramente, então, uma releitura das sutilezas contidas no Gênesis e em
outras narrativas bíblicas como modo acessível ao leitor comum. Traz a convicção de que “a
ciência e a religião, que oferecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num
diálogo intenso e frutuoso para ambas” (LS, 62), pois “ se tivermos presente a complexidade
da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem
vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade” (LS, 63). Ele realiza então
um ousado passo em direção a esse diálogo de maneira a reconfigurar a postura da Igreja de
forma engajada na temática de compreender qual a relação da humanidade com o resto da
Criação.
Ao longo desse capítulo, Francisco estabelece o alicerce para uma concepção de mundo
que enfatiza a dignidade infinita de toda e qualquer pessoa humana, mas, ao mesmo tempo e
com igual significação, afirma que os humanos estão ligados em aliança e pertencimento a todos
os outros seres e à terra. A palavra que se repete ao longo de toda a encíclica é interdependência.
Ele até mesmo cita uma passagem do Catecismo da Igreja Católica em que se diz:
59

A interdependência das criaturas é querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e


a florzinha, a águia e o pardal: o espetáculo das suas incontáveis diversidades
e desigualdades significa que nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só
existem na dependência umas das outras, para se completarem mutuamente,
no serviço umas das outras (VATICANO, 340).

Nossa existência estaria imersa, então, em três relações fundamentais e que me parecem
ser colocadas de forma horizontal: com Deus, com o próximo e com a terra (LS, 66). O papa
propõe que, ao reestabelecermos a consciência dessas relações fundantes da existência,
poderíamos compreender que o humano não é Deus, mas sim aquele que recebeu dele a
possibilidade da continuidade da fertilidade (LS, 67).
Uma fertilidade que viveria através de cada indivíduo e de todos os seres vivos, cujos
humanos possuem como dever garantir o equilíbrio para que se perpetuem. Nesse sentido,
qualquer ideia ligada a um antropocentrismo (LS, 68) irrestrito deveria ser combatida, porque
todos os seres têm valor pelo simples fato de existirem (LS, 69). Vale salientar que o
pensamento antropocêntrico tem colocado a vida na terra em risco quando dota seres e
organismos à categoria de objeto.
Na tradição judaico-cristã, dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque
tem a ver com um projeto do amor de Deus, em que cada criatura tem um
valor e um significado. A natureza entende-se habitualmente como um sistema
que se analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como
um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade
iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal (LS, 76).

Ao retomar a ideia de que a criação é mais do que a natureza, o papa retira da vida
comum o mérito por um projeto de autoafirmação, seja individual ou de espécie. A receita para
isso seria um retorno à louvação por este Pai Criador, mas não o dotado de uma onipotência
arbitrária, que estaria vigiando pronto para punir. Mas sim um patriarca que traria como
exemplo este amor que a tudo permeia e por isso traz a existência. Um Pai que nos envolve com
seu carinho (LS, 77). Essa qualidade de carinho salientada pelo Pontífice traz em si uma atitude
de entrega da Criação aos seres criados, para que ela possa continuar a ser desenvolvida. É
imprescindível destacar que tal entrega se configura como uma atitude de autolimite:

De certa maneira, quis limitar-Se a si mesmo, criando um mundo necessitado


de desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos males, perigos ou
fontes de sofrimento, na realidade, fazem parte das dores de um parto que nos
estimulam a colaborar com o Criador (LS, 80).
60

Essa atitude autolimitante se desenvolve no humano através de posturas ligadas à


reverência, contemplação e admiração ao espetáculo que consiste a vida na Terra. Seria um
retorno à valorização da simplicidade, por meio de uma simples e até pueril forma de viver o
cotidiano.
Diante das análises feitas por André Wénin e papa Francisco, pode-se notar que está em
curso a construção de novas narrativas em relação ao lugar e à função do humano na Terra.
Considero que uma maneira de ampliar essa nova percepção de mundo é tomarmos contato
com narrativas provenientes de povos que, a partir de olhares diversos, traduziram a
organização da vida na Terra a partir da percepção de outras dinâmicas de forças relacionais.
Ou seja, explicaram o mundo de outra forma e, com isso, podem relativizar nossas crenças
fundantes.

1.3 UM FUTURO POSSÍVEL

Uma coisa, no entanto, é estar familiarizado com um modelo; outra bem


diferente é este modelo estar tão internalizado a ponto de estruturar o próprio
pensamento de alguém sobre o mundo (INGOLD, 2015, p. 157).

As ideias, da mesma forma que as uvas, crescem em cachos (THOMPSON,


2014, p. 7).

A partir da consciência do cuidado – aquela que se faz presente e atenta às conexões


relacionais – emerge a possibilidade tanto de reescrever antigas histórias, como de criar novas.
Isto é o que pretende Leonardo Boff ao fazer renascer a Fábula-Mito de Higino sobre o Cuidado
que perpassa todas as relações, desde o início de tudo, por exemplo.
O objetivo deste tópico é propor uma breve contemplação sobre mitologias de origens
que pertencem a outras matrizes culturais, diferentes da nossa judaico-cristã. Não será feita aqui
uma análise aos moldes de Lévi-Strauss, pois minha proposta não é encontrar semelhanças entre
os mitos, tampouco analisar suas estruturas. O que pretendo é acrescentar ao nosso modo de
ver ocidental uma maneira díspar de explicar o início da vida e a relação entre os viventes.
Ofício que se dá como modo de ampliação criativa do modo Ocidental de ver o mundo, e assim,
quem sabe, possamos iniciar a relativizar nossas certezas e a nós mesmos.
61

Talvez seja possível passar a contar também a história da conexão do ser humano com
todas as coisas e não a da separação, ou seja, talvez possamos valorizar o que temos em comum
e não o que nos separa como seres vivos. Para esse feito foram selecionadas duas mitologias a
título de exemplo e contemplação.
Destaca-se aqui o livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu- palavras de
um xamã yanomami (2015). Nele, os autores trazem a riqueza da cosmologia dos povos
yanomami e demonstram uma compreensão de mundo atrelada à ideia da humanidade como
guardiã da Terra. Além disso, nos contam sobre a existência dos xapiri, entidades espirituais,
duplos astrais de todos os seres que compartilham a existência comum. Eles teriam a função de
cuidar e de curar os humanos, bem como de sustentar o céu em seu devido lugar.
No mesmo caminho, Thich Nhat Hanh, através de histórias e práticas, contribui para
uma outra visão de mundo. Ao publicar o livro O Príncipe Dragão: histórias e lendas de um
Vietnã desconhecido (2009), demonstra seu incômodo em relação à falta de literatura voltada
para crianças no Vietnã. Thich faz um minucioso trabalho de resgate da História de seu país
através de contos folclóricos combinados com a expressa intenção de criar uma narrativa que
transcenda o “pensamento bélico” dualista, identificado por ele na literatura infantil ocidental.
Como resultado, cria-se um belíssimo livro que consagra a criação do mundo e da humanidade
com o dom do cuidado.

1.3.1 Palavras de um Xamã Yanomami

Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que
ele nos deixou. São palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que
preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto
nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. [...]. Por isso não
conseguem entender nossas palavras (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.
390).

Segundo Eduardo Viveiros de Castro e Debora Danowski: “verdadeiros especialistas


em fins do mundo, os Mayas, como todos os demais povos indígenas das Américas, têm muito
a nos ensinar” (2014, p. 142, grifo dos autores). Isso porque, ainda segundo Viveiros de Castro
em entrevista concedida a Eliane Brum, “os índios”
62

são todas as minorias que estão fora, de alguma maneira, dessa megamáquina
do capitalismo, do consumo, da produção, do trabalho 24 horas por dia, sete
dias por semana. Estes índios planetários nos ensinam a dispensar a existência
das gigantescas máquinas de transcendência que são o Estado, de um lado, e
o sistema do espetáculo do outro, o mercado transformado em imagem
(VIVEIROS, 2014, [n.p.]).

Nesse contexto, Davi Kopenawa se destaca como um grande embaixador e porta-voz


das mensagens de um outro mundo, que é físico, mas também encantado. Um mundo onde as
relações de causalidade são descritas apontando para os pontos mais frágeis de nossa branca
compreensão de mundo. Como ressalta Alberto Pucheu (2016), a primeira frase do livro de
Davi é: “Faz muito tempo, você veio viver entre nós e falava como um fantasma”. Fantasmas
no caso somos nós, em oposição aos povos indígenas. Vivemos nossas vidas imersos no
esquecimento, segundo a percepção de Davi Kopenawa.
O objetivo de se debruçar sobre o mito de origem dos Yanomami, não como uma
proposta de retorno, mas de maneira atualizada, é de oferecer uma outra ideia de cuidado. Não
um cuidado imbuído de um ideal romântico maternal, ocidental, mas um cuidado ligado à noção
de responsabilidade e de interdependência. A intenção de Davi ao desnudar e entregar as
palavras de Omama28 a seu interlocutor branco – Bruce, o antropólogo e amigo – para que
fossem colocadas em “imagens de papel” e, portanto, compreensíveis por nós, é que possamos
dar vida a novos pensamentos. Para que pudéssemos entrar em um “devir índio”, cada um de
nós, antropólogos e não antropólogos.
Vamos ao relato do mito intercalado por comentários:

Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita as folhas e os rios
cuja água bebemos. Foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos [...]. No
começo, Omama e seu irmão Yoasi vieram à existência sozinhos. Não tinham
pai nem mãe. Antes deles, no primeiro tempo, havia apenas a gente que
chamamos yarori29. Esses animais eram humanos com nomes de animais e
não param de se transformar. Assim, foram aos poucos se tornando os animais
de caça que hoje flechamos e comemos. Então foi a vez de Omama vir a existir
e recriar a floresta, pois a que havia antes era frágil. Virava outra sem parar,
até que, finalmente o céu desabou sobre ela. Seus habitantes foram
arremessados para dentro da terra e se tornaram vorazes ancestrais de dentes
afiados a quem chamamos de aõpatari. Por isso Omama teve de criar uma
nova floresta, mais sólida, cujo nome é Hutukara. É também este o nome do
antigo céu que desabou outrora. Omama fixou a imagem dessa nova terra e

28
Omama é o demiurgo da mitologia Yanomami.
29
“Trata-se, na mitologia yanomami, de seres cuja forma pré-humana, sempre instável está sujeita a
uma irresistível propensão ao devir animal [...]. São as imagens (utupë) desses seres primordiais que são
convocadas como entidades (‘espíritos’) xamânicas (xapiri)” (KOPENAWA; ALBERT, 2010, nota 1,
p. 614).
63

esticou-a aos poucos, cuidadosamente, do mesmo modo como espalhamos o


barro para fazer placas de cerâmica mahe30. Em seguida cobriu-a com
pequenos traços apertados, pintados com tinta de urucum, parecido com
desenhos de palavras. Depois, para evitar que desabasse, plantou nas suas
profundezas imensas peças de metal, com as quais também fixou os pés do
céu31. Sem isso a terra teria ficado arenosa e quebradiça e o céu não teria
permanecido no lugar. Mais tarde, com o metal que ficou, depois de fazer com
que ficasse inofensivo, Omama também fabricou as primeiras ferramentas de
nossos ancestrais32. Finalmente, assentou as montanhas na superfície da terra,
para evitar que as ventanias de tempestade a fizessem tremer e assustassem os
humanos. Também desenhou o primeiro sol, para nos dar luz. Mas era por
demais ardente e ele teve que rejeitá-lo, destruindo sua imagem. Então, criou
aquele que vemos até hoje no céu, bem como as nuvens e a chuva, para poder
interpô-lo quando esquenta demais. Isso ouvi os antigos contarem
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 81).

A primeira parte do mito de origem Yanomami conta uma série de eventos que
antecederam a existência da Terra como temos hoje. Dá a ideia de que houve um
desencadeamento de tentativas e erros para que nossa morada ganhasse a estabilidade
necessária para sustentar a vida, qualquer tipo de vida física. A busca por estabilidade parece
ser mesmo uma tônica desses povos.
Antes os seres e a própria terra não paravam de se transformar. Foi necessário que o
demiurgo tomasse uma série de providências para que cada elemento da natureza ganhasse
solidez e para que a interação entre esses elementos entrasse em equilíbrio, ou seja, em
homeostase. Faz-se interessante notar que entre os Yanomami existe, desde a origem, uma
percepção da interligação entre tudo que compõe nosso mundo físico, bem como da importância
da manutenção de uma qualidade de constância para a conservação da vida. Como chamamos
atenção no tópico anterior, essa não foi a maneira como a percepção judaico-cristã se perpetuou.

30
“Placa circular de cerâmica utilizada para assar os beijus de mandioca (mahe)” (KOPENAWA;
ALBERT, 2010, nota 3, p. 614).
31
“Os yanomami descrevem o nível celeste (hutu mosi) como um tipo de abóbada apoiada no nível
terrestre (warõ patarima mosi) graças a pés (estacas) gigantescos” (KOPENAWA; ALBERT, 2010,
nota 4, p. 614).
32
Kopenawa explica sobre a importância do metal e traça sua explicação sobre terremotos e a
instabilidade da Terra: “Omama escondeu seu metal lá no meio dos morros das terras altas, onde também
fez jorrar os rios. É de lá que surgem os ventos e o frescor da floresta. É de lá que vêm sua fertilidade.
Quando fazemos dançar a imagem desse pai dos minérios, ela aparece a nós como uma montanha de
ferro subterrânea, cheia de imensas hastes fincadas em todos os lados. Omama a colocou nas
profundezas do solo para manter a terra no lugar e impedir que a ira dos trovões e dos raios a faça tremer
e a desloque. [...] Assim, esse ferro está enfiado na terra como raízes de árvores. Ele mantém firme como
espinhas fazem com a carne dos peixes e esqueletos com a de nosso corpo. Torna-a estável e solida,
como nosso pescoço faz nossa cabeça ficar reta. Sem essas raízes de metal, ela começaria a balançar e
acabaria desabando sob nossos pés. Isso não acontece em nossa floresta, pois ela está no centro da terra,
onde esse metal de Omama está soterrado. No entanto, entre os brancos, em seus confins, onde o solo é
mais friável, acontece às vezes de ela tremer e se romper, destruindo cidades” (2010, p. 360).
64

Omama criou também as árvores e as plantas, espalhando no solo, por toda a


parte, as sementes de seus frutos. Os grãos germinaram na terra e deram
origem a toda a floresta em que vivemos desde então. [...] No início seus
galhos eram nus. Depois, frutos se formaram. Então, Omama criou as abelhas,
que vieram morar nelas e sorver o néctar das flores que produzem seus vários
tipos de mel (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 81-82).

Considero interessante a menção feita à criação dos insetos personificados na figura da


abelha. Sabe-se hoje da primordial função exercida por estes pequenos seres para polinização
de diferentes espécies de plantas, bem como para o surgimento de novas espécies. Primeiro
Omama cria as plantas, depois as sementes e frutos que podem germinar e, como elemento de
ligação, cria as abelhas e os insetos. Como se supostamente fizessem parte de um mesmo
sistema o qual suponho que façam. Os insetos seriam, então, uma medida de sustentabilidade
da existência das florestas em toda sua diversidade.

No início, também não existiam os rios; as águas corriam debaixo da terra,


bem fundo. Só se ouvia seu ronco, ao longe, como de fortes corredeiras.
Formavam um enorme rio que os xamãs nomeiam de Motu uri u. Certo dia
Omama trabalhava na roça com o filho, que começou a chorar de sede. Para
matar-lhe a sede, ele perfurou o solo com uma barra de metal. Quando a tirou
da terra, a água começou a jorrar violentamente em direção ao céu e jogou
para longe o menino que se aproximava para bebê-la. Lançou também para os
céus todos os peixes, arraias e jacarés. Subindo tão alto que um outro rio se
formou nas costas do céu, onde vivem os fantasmas de nossos mortos. Em
seguida a água foi se acumulando na terra e começou a correr em todas as
direções, formando os rios, os igarapés e os lagos da floresta (KOPENAWA;
ALBERT, 2015, p. 82)

O elemento água entra em cena para matar a sede de um filho. Como se antes da
existência dos filhos não houvesse sede no mundo. A partir da água passam a existir também
todos os seres. Consequentemente a vida começa na terra e o rio nas costas do céu dá lugar aos
mortos. Vida e morte que se atrelam aos ciclos das águas, aqui e além.

No início nenhum humano vivia ali. Omama e seu irmão Yoasi viviam
sozinhos. Nenhuma mulher existia ainda. Os dois irmãos só vieram a
conhecer a primeira mulher muito mais tarde, quando Omama pescou a filha
de Tepëresiki num grande rio. No início, Omama copulava na dobra do joelho
de seu irmão Yoasi. Com o passar do tempo, a panturrilha deste ficou grávida,
e foi assim que Omama primeiro teve um filho. Porém, nós, habitantes da
floresta, não nascemos assim. Nós saímos, mais tarde, da vagina da esposa de
65

Omama, Tʰuëyoma, a mulher que ele tirou da água. Os Xamãs fazem descer
sua imagem desde sempre. [...] Era um ser peixe que se deixou capturar na
forma de mulher. Assim é (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).

Os humanos nascem do encontro do demiurgo com uma mulher das águas. Para os
povos yanomami o elemento feminino provém das águas, assim como toda a diversidade da
vida. Em outras partes do livro, Kopenawa conta sobre a existência de um outro “mundo”
submerso, onde moram o terrível Tepëreski e suas filhas e filhos.
Relata que são seres poderosos e que também auxiliam os xamãs em suas curas. Porém,
houve um primeiro filho, não humano, gerado por Omama na panturrilha de seu irmão –
portanto sem contato com o feminino. Este trecho fala da existência de um filho especial que
vem ao mundo e carrega uma missão para com todos os humanos.

Mais tarde, Omama ficou furioso com seu irmão Yoasi, porque este, contra
sua vontade, tinha feito surgir na floresta os seres maléficos das doenças, os
në wãri, e também os da epidemia xawara33, que, como eles, são comedores
de carne humana. Yoasi era mau e seu pensamento, cheio de esquecimento.
Omama era quem tinha criado o sol que não morre nunca. Não falo aqui do
sol motʰoka, cujo calor cobre a floresta, e que é visto pelas pessoas comuns
[gente que simplesmente existe (kuaporatʰëpë)], mas da imagem do sol.
Assim é. O sol e a lua têm imagens que só os xamãs [gente espírito
(xapiritʰëpë)] são capazes de fazer descer e dançar. Elas têm a aparência de
humanos, como nós, mas os brancos não são capazes de conhece-las
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).

Este trecho faz menção a existência de seres transcendentes aos quais as pessoas que
“simplesmente existem” não têm acesso. Considero importante destacar esta compreensão
sobre uma existência comum, corriqueira. Existir simplesmente seria uma forma de vida
limitada ao que os olhos físicos podem ver. Uma vida que não transcende a experiência do real,
o mundo da matéria. Em contrapartida, os olhos da “gente de espírito” enxergam um mundo
animado, rico em vida, ligações e complementaridades entre os vivos. Neste modo de ver, tudo
canta e dança, bem como tudo é passível de ser cantado e dançado. Os xamãs podem ver e se
relacionar com algo como uma essência que pulsa em cada ser ou objeto.

Omama queria que fôssemos imortais, como o sol chamado de Motʰokari


pelos xamãs. Queria fazer bem as coisas e pôr em nós um sopro de vida

33
São assim nomeadas as doenças infecciosas que seriam propagadas pela fumaça: fumaça de epidemia
(Cf. KOPENAWA; ALBERT, 2015, nota 28, p. 613).
66

realmente sólido. Por isso buscou na floresta uma árvore de madeira dura para
coloca-la de pé e imitar a forma de sua esposa. Escolheu para tanto uma árvore
fantasma pore hi, cuja pele se renova continuamente. Queria introduzir a
imagem dessa árvore em nosso sopro de vida, para que este permanecesse
longo e resistente. Assim, quando envelhecêssemos, poderíamos mudar de
pele e esta ficaria sempre lisa e jovem. [...] Era o que Omama desejava. No
entanto, Yoasi [...] tratou de colocar na rede da mulher de Omama a casca de
uma árvore fibrosa e mole, a que chamamos kotopori usihi. Então, a casca
acabou se dobrando num lado da rede e começou a pender para o chão.
Imediatamente, os espíritos tucano começaram a entoar seus pungentes
lamentos de luto. Omama ouviu-os e ficou furioso com o irmão. Mas era tarde
demais, o mal estava feito. Yoasi nos ensinou a morrer para sempre. Tinha
introduzido a morte, este ser maléfico, em nossa mente e em nosso sopro, que
por esse motivo se tornaram tão frágeis. Desde então, os humanos estão
sempre perto da morte (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).

O mito demonstra de forma bem marcada o antagonismo entre Omama e seu irmão
Yoasi. Um bom, o outro mau. Fala também da percepção da introdução da morte na vida como
um ato de descuido, uma trapaça, um engano. Não era essa a intenção do criador, mas uma vez
feito, não pode ser desfeito. Atesta a morte como um ser maléfico que nos acompanha e nos
torna frágeis.
Se faz interessante também a forma como os povos yanomami percebem a interação
entre os seres, ou a forma como as imagens dos seres podem se misturar agregando
características de um ao outro. O “sopro da vida”34, ou o que Kopenawa chama de imagem,
seria algo semelhante em todos os elementos que compõem a magnitude vivente e haveriam
canais de comunicação, troca e mistura. Para Pucheu, “instaurando a morte, Yoasi ensina a
ignorância do morrer necessário, Omama, instaurando a eternidade do “sopro de vida”, ensina
o saber, o “sopro de vida” enquanto sabedoria, enquanto o vigor da e na materialidade da
floresta” (2016, [n.p.]).

Por isso Omama criou os xapiri, para podermos nos vingar das doenças e nos
proteger da morte a que nos sujeitou seu irmão mau. Então ele criou os
espíritos da floresta urihinari, os espíritos das águas mãu unari e os espíritos
dos animais yarori. Depois, escondeu-os, até que seu filho se tornasse xamã,
no topo das montanhas e nas profundezas do mato [...]. O pai da minha esposa
conta também que foi a esposa de Omama, mulher das águas, quem primeiro
pediu que os xapiri fossem trazidos a existência. Somos seus filhos e nossos
antepassados tornaram-se numerosos a partir dela. Por isso, depois de ter
procriado, perguntou ao marido: ‘O que faremos para curar nossos filhos
quando ficarem doentes?” Essa era sua preocupação. O pensamento do

34
“Sopro da vida” ou wixia é traduzido por Kopenawa como “força ou riqueza”. Não é atribuído somente
à respiração, mas também à abundância de sangue e aos batimentos cardíacos, à essência vital da pessoa
(utupë) (Cf. KOPENAWA; ALBERT, 2010, nota 16, p. 612).
67

marido, Omama, continuava esquecido. Por mais que seu espírito buscasse,
ele se perguntava em vão o que poderia criar. A mulher das águas lhe disse
então: ‘Pare de ficar aí pensando, sem saber o que fazer. Crie os xapiri, para
curarem nossos filhos!” Omama concordou: ‘Awei! São palavras sensatas. Os
espíritos irão afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos
doentes e as trarão de volta para seus corpos! Foi assim que ele fez aparecer
os xapiri, tão numerosos e poderosos quanto os conhecemos hoje
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 84).

A criação dos xapiri foi uma medida de cuidado materno contra todo o mal que poderia
assolar seus filhos. A presença dessa crença no cotidiano de um povo instaura um sentido de
pertencimento e reverência expressos por gestos de cuidado. Um tipo de atitude que, pela
maneira como é vivenciada no mito, pretende ser propagada como um sentimento de
responsabilidade de cada um para com o todo. Ao se aprofundar na explicação sobre a
existência dos xaripi ao longo do livro, Kopenawa descreve a floresta de uma maneira
absolutamente encantada, repleta de caminhos cintilantes e frágeis espelhos pelos quais esses
seres passam, dançam e vivem. Posso falar que após ler essas “imagens de papel” (letras/livros),
nunca mais entrei em uma floresta como antes. Hoje, carrego em mim a possibilidade
entusiasmada de que exista lá muito mais vida do que posso enxergar, e isso gera uma atitude
de extremo cuidado e reverência ao adentrar em sua morada sagrada.

Mais tarde, o filho de Omama tornou-se um rapaz e seu pai quis que ele
aprendesse a fazer dançar os xapiri para poder tratar os seus. Buscou uma
árvore yãkoana hi na floresta e disse ao filho: ‘Com esta árvore, você irá
preparar o pó de Yãkoana! Misture com as folhas cheirosas maxara hana e as
cascas das árvores ama hi amatʰ a hi e depois beba! A força da yãkoana revela
a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de
virar espírito!”. Depois soprou yãkoana nas narinas do filho com um tubo de
palmeira horoma. Omama então chamou os xapiri pela primeira vez e disse:
‘Agora, é sua vez de fazê-los descer. Se você se comportar bem e eles
realmente o quiserem, virão a você fazer sua dança de apresentação e ficarão
ao seu lado. Você será pai deles. Assim, quando seus filhos adoecerem, você
seguirá o caminho dos serem maléficos que roubam suas imagens para
combatê-los e trazê-las de volta! Você também fará descer o espírito japim
ayokora para regurgitar os objetos daninhos que você terá arrancado de dentro
dos doentes. Assim você poderá realmente curar os humanos!”. Foi desse
modo que Omama revelou a seu filho – o primeiro xamã – o uso da yãkoana
e lhe ensinou a ver os espíritos que acabara de trazer à existência [...]. O filho
de Omama escutou atentamente as palavras do pai e concentrou seu
pensamento nos xapiri. Entrou em estado fantasma e tornou-se outro. Então
pôde contemplar a beleza da dança de apresentação dos espíritos. Tornou-se
xamã depressa, porque soube demonstrar amizade a todos [...]. Podia fazê-los
descer, resplandecentes de luz, e escutar seus cantos melodiosos. Então,
exclamou! “Pai! Agora conheço os espíritos e eles se juntaram do meu lado!
De agora em diante, os humanos vão poder se multiplicar e combater
68

doenças!”. Omama era o único a conhecer os xapiri e os deu ao filho porque,


se morresse sem ter ensinado suas palavras, jamais teria havido xamã na
floresta. Não queria que os humanos ficassem sem nada e causassem dó. Por
isso, fez se seu filho o primeiro xamã. Deixou-lhe o caminho dos xapiri antes
de desaparecer. Foi o que ele quis (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 84-85).

O primogênito recebe o legado de cuidar de seus irmãos, bem como de repassar sua
sabedoria aos demais para que o maravilhamento das forças mantenedoras da vida pudesse se
perpetuar. Pode-se inferir que à essa altura existe uma semelhança entre os “personagens” do
filho de Omama e Jesus. Ambos frutos de uma concepção incomum que configura uma
irmandade para com os humanos, mas ao mesmo tempo estabelece uma diferença e suposta
superioridade. Ao serem relembradas, estas figuras de primeiro xamã ou de Cristo, oferecem
um exemplo a ser seguido por nós, seus descendentes. O filho primogênito de Omama é tido
também como o primeiro xamã. É quem inaugura uma sabedoria aliada a escuta das palavras
de Omama, expressas pela voz dos Xapiri, e entoada a todos pela atividade dos xamãs. Segundo
Kopenawa, Omama disse ao filho estas palavras:

Com estes espíritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais
numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos e as onças venham
devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças
de xawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos.
Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua.
Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe.
Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos trovões. Impeça o
ser tatu-canastra Wakari de cortar as raízes das árvores e o ser do vendaval
Yariporari de vir flecha-las e derrubá-las!”. Essas foram as palavras que
Omama deu ao filho. Por isso, até hoje, os xamãs continuam defendendo os
seus e a floresta (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 85-86).

Os xapiri são também os representantes do cuidado que pretendem manter o equilíbrio


das interações das forças na natureza e evitar o caos que ocorreu no “primeiro tempo”, quando
o céu desabou sobre a terra. Segundo os relatos de Davi, parece que toda a cultura yanomami
gira em torno dos xamãs e de seu poder de fazer os xapiri dançarem. Atuam como elementos
de cura, cuidado e também como preservação de normas de conduta.
Para se tornar um xamã a pessoa passa por uma série de interditos que visam purificar
os aspirantes, preservado os costumes e valorizando a própria cultura. Acima de tudo, essa
mitologia de origem busca ressaltar um sentido da vida humana atrelado a atitudes como
cooperação entre todos os seres. Evoca um sentido de interdependência e sentimentos de
reverência e gratidão aos antepassados.
69

1.3.2 Palavras de um Monge Vietnamita

Whatever nationality or culture we belong to, whatever religion we follow,


whether we’re Buddhists, Christians, Muslims, Jews, or atheists, we can all
see that Mother Earth is a great bodhisattva. When we see her in this way, with
all her many virtues, we will walk more gently on her and treat her and all her
children more gently (HANH, 2013, p. 27).

Thich Nhat Hanh, carinhosamente chamado de Thay, é mais um entre tantos de nossos
contemporâneos que devemos ouvir carinhosa e atentamente. Monge vietnamita, foi obrigado
a viver no Ocidente devido ao fato de que suas ideias acerca da prática da não-violência não
foram aceitas e compreendidas pelos líderes de seu próprio país. Como refugiado, ele se engaja
no sentido profundo do que significa a busca por um senso de casa, ou do que, em língua
portuguesa, poderia ser compreendido como lar, e todos os seus desdobramentos.
Admirado por Martin Luther king e Thomas Merton, o Mestre Zen lidera o Plum
Village, uma comunidade espiritual na França que iniciou como uma pequena fazenda rural e
hoje é o maior e mais ativo mosteiro budista do Ocidente. Conta com mais de 200 monásticos
residentes e até 8.000 visitantes todos os anos, que vêm de todo o mundo para aprender
meditação, ou mindfulness.
Em suas falas lentas, sempre acompanhadas de um leve sorriso, Thay encanta pela
simplicidade com que consegue tocar conteúdos profundos. Isso é o que relata Odette Lara no
prefácio do livro Para viver em paz: o milagre da mente alerta:

Lembro-me de como o esquema intelectual de aprendizado a que estamos


habituados era inteiramente desarmado pela forma incomum e dinâmica com
que Thich Nhât Hanh conduzia suas aulas. Estas estavam longe de serem um
cabedal de conhecimento para se levar para casa, estudar e arquivar para uso
futuro. Elas nos faziam reagir ao novo conhecimento, no próprio momento em
que estava sendo transmitido (LARA, 2001, p. 14).

Este mérito também pode ser atribuído aos textos do livro que serão contemplados neste
tópico. Um livro que integra lendas e contos folclóricos com a própria história do Vietnã e
trabalha a transição de uma cultura baseada em valores matriarcais para uma outra pautada em
valores patriarcais (HANH, 2009, p.11).
Importante ressaltar que se trata de uma escrita contemporânea. Uma reescrita a que o
Thich Nhat Hanh se propõe, com a clara intenção de propagar um novo modo de olhar e sentir
70

essas histórias e as origens as quais elas se remetem. O prefácio do livro apresenta um


argumento para tanto: “A mitologia é criada pelo povo. As pessoas que viveram antigamente
são como as de hoje. Os mitos foram criados para explicar o universo e o papel da humanidade
nele. Os mitos não são simples criações da imaginação sem relação com a realidade”
(WARREN, 2009, p. 10). Nesse ponto de vista, um mito pode ser considerado como apenas
uma maneira de contar uma história.
Dedicaremos atenção aqui somente ao mito de origem. Vamos a ele, intercalado de
comentários:

O Príncipe Dragão

Há muito tempo, quando a terra e o céu ainda estavam cobertos pelas trevas,
um grande pássaro com asas como cortinas da noite veio pousar na fria terra.
Ele ficou imóvel durante milhões de anos até que, finalmente, pôs dois ovos
enormes – um vermelho e outro marfim. Fortes rajadas de vento partiram de
suas asas majestosas e sacudiram céu e terra quando ele voou de volta para as
profundezas do espaço.

Milhares de anos depois, o ovo vermelho começou a se iluminar. Uma luz


brilhante jorrava do ovo, dispersando a densa neblina que havia coberto as
montanhas e ocupado os vales por tanto tempo. Com um ruído estrondoso o
ovo vermelho rachou, liberando um resplandecente corvo dourado cuja luz
brilhante ofuscava a terra e o céu.

Depois, o ovo marfim começou a irradiar uma luz suave e tênue e também
rachou. A casca se rompeu em vários pedaços e um cisne enorme e gracioso
emergiu e voou para o céu.

Cada pássaro seguiu seu próprio rumo ao redor da terra. Uma luz suave e
morna fluía com brandura do cisne selvagem. As asas flamejantes do corvo
dourado arremessavam ao espaço fagulhas de chamas brilhantes e ele
grasnava como um trovão. As fagulhas permaneceram suspensas no céu,
cintilando como diamantes. Por milhões de anos, trevas frias haviam reinado.
Agora esses pássaros fantásticos traziam o conforto da luz.

A quente casca vermelha do corvo explodiu em chamas que arderam por sete
anos. Rochas derreteram e viraram areia fina, criando um deserto vasto.
Vapores subiram do mar e formaram uma cobertura de nuvens que protegiam
a terra dos raios mais violentos do corvo. O céu deleitava-se com o rico aroma
que subia da terra recém-aquecida (HANH, 2009, p. 21-22).

A primeira parte do mito relata os primórdios da terra. O nascimento, e não o surgimento


do Sol e da Lua. Tudo teve início a partir de um grande pássaro que ficou imóvel durante
milhões de anos, esperando o tempo lento e próprio das transformações grandiosas. Depois, ele
coloca dois ovos, que permanecem imóveis por outros milhares de anos. Essa menção a uma
qualidade de tempo lento e da imobilidade, aludindo à postura da meditação, é bem
71

característica da cultura oriental e da experiência de vida do autor. Para os povos tradicionais


do oriente as coisas se desenvolvem através do desenvolvimento da paciente atenção. No mito,
desde o início, os elementos que estruturam o universo são experienciados através das imagens
vívidas da história, como seres vivos que buscam seu lugar na grande ordem. Sol e Lua pairando
no céu; Terra, antes fria e escura, agora aquecida e iluminada, segue em transformação, dando
lugar à areia e aos vapores que formam as nuvens protetoras.
Faz-se interessante notar que no desencadear dos eventos vão despertando também os
sentidos sensórios. Primeiro o tato, através da sensação da terra fria; depois a audição, com o
estrondo das asas enormes batendo; em seguida a visão, com a iluminação do ovo, que dispersa
a neblina, e o nascimento do corvo que ofusca terra e céu. A conclusão se efetua com o olfato
despertado através do rico aroma da terra agora aquecida e úmida. Fica faltando somente o
paladar, como veremos. O que ressalto aqui é que a forma como o mito é construído abrange a
compreensão de que os eventos davam conta do nascimento de um corpo sensitivo, senciente
se quiserem, que passava a se animar, mesmo antes de ser habitado.

O brilho da luz chegou ao 36º céu, onde muitas deusas viviam. A deusa mais
jovem e amável, Au Co, afastou uma cortina de nuvens e viu a terra rósea lá
em baixo, circundada por um halo de luz. Ela gritou: “Venham, minhas irmãs,
vamos nos transformar em pássaros Lac brancos e descer para explorar este
novo planeta”!

Sem hesitação, as deusas se transformaram em pássaros brancos como a neve


e voaram até a terra rósea. Foi uma descoberta realmente maravilhosa. Como
pássaros Lac, elas sobrevoaram o mar esmeralda, surpresas com o próprio
reflexo dançando na água. A luz quente do corvo dourado era agradável. Elas
planaram vagarosamente sobre as montanhas rosadas e foram descansar em
uma encosta coberta de terra tão fina como pó.

Quando o primeiro pássaro tocou a terra, fechou suas asas e reassumiu a forma
da deusa. As outras deusas fizeram o mesmo. A terra nunca havia vivenciado
algo tão agradável! As deusas riam e cantavam e, de mãos dadas, subiam e
desciam as encostas cor-de-rosa. A terra sob seus pés era fofa como flocos de
algodão. Quando chegaram a grande campina, começaram a dançar. Foi a
primeira dança na terra. Antes daquele momento, a dança só era conhecida no
36º céu. Depois de um tempo, Au Co se afastou das irmãs, ajoelhou-se para
examinar a terra perfumada mais de perto e pegou um punhado nas mãos.
Como era suave! Que perfume bom! As outras deusas pararam de dançar e
também pegaram punhados de terra rosa.

De repente, Au Co quis saber se o gosto da terra era tão bom como o perfume
e levou a mão à boca. Outra deusa gritou: “Au Co, não faça isso!”. Mas era
tarde demais. Au Co já havia engolido um pequeno punhado da terra doce. A
deusa que gritou se separou das outras e correu em direção a Au Co. Ela
segurou a mão da jovem deusa.
72

“Au Co, sua tola! Receio que seu ato não possa mais ser corrigido. O nosso
reino é da forma, não do desejo”.

Assustadas, as outras deusas rapidamente sacudiram todas as partículas de


terra rosa das mãos delicadas. Agruparam-se em torno de Au Co.

“O que vamos fazer?” perguntou uma delas.

“Vamos embora agora e não contaremos a nossa saída a ninguém”, sugeriu


outra.

Alarmadas, elas perceberam que estava escurecendo. O corvo dourado quase


havia desaparecido atrás das montanhas e a luz se esvanecia com ele.

“Precisamos voltar antes que o corvo dourado desapareça!” gritou uma deusa.
Ela se inclinou levemente e transformou-se mais uma vez em pássaro Lac,
branco como a neve. As outras fizeram o mesmo. Enquanto voavam para o
céu, as suas asas pareciam se despedir arrependidas da encantadora terra.

A luz desapareceu com o corvo dourado, mas logo o cisne selvagem voltou.
A sua luz morna e branca era uma transformação refrescante dos raios
brilhantes a às vezes ardentes do corvo dourado. O primeiro dia na terra
terminava. Durou o tempo correspondente a sete dos nossos anos atuais.
Agora começava a primeira noite. Era uma noite agradável e suave, iluminada
pela luz tênue do cisne (HANH, 2009, p. 22-24).

A terra é agraciada com o toque de pés divinos, nunca havia sentido nada tão agradável,
talvez somente ali tenha se revelado o sentido do tato. Sentia a terra também, e era uma
experiência muito agradável. E houve a primeira dança fazendo nascer a alegria. Além disso, o
primeiro dia é marcado pela união de um ser divino com a terra, e não pela singularização de
seus elementos. Desta vez, não é o elemento divino que adentra a matéria, e sim a terra que
passa a habitar o corpo de uma deusa que, movida pela curiosidade, a experimenta e instaura o
paladar. Com essa imagem mitológica, o campo sensório se completa. Deusa e terra não podem
mais se separar, pois cada uma não é mais como era antes, e essa união consagra um todo nunca
antes imaginado. Porém, esse evento é seguido por um arrependimento, pois houve um
rompimento das regras.

Sob essa luz, Au Co voava freneticamente para frente e para trás, sem
conseguir juntar-se às suas irmãs. Suas asas estavam pesadas demais e, mesmo
se esforçando, não conseguia mais voltar ao 36º céu. Assustada e sozinha, ela
afundou de volta à terra. Retomou a sua forma de deusa e recostou-se em uma
encosta para chorar.

Por toda a noite, suas lágrimas formaram um longo rio que serpenteava em
direção à praia, onde desaguava no mar. Sob as ondas, várias criaturinhas –
camarões, caranguejos, peixes e ostras, provaram a nova corrente de água
perfumada com a terra cheirosa. Eles compartilharam a sua descoberta com o
Príncipe Dragão, filho do Imperador Dragão do Mar, que se transformou num
73

peixinho para seguir a corrente doce rio acima em busca da sua fonte. Embora
ele nadasse rápido, a primeira noite na terra acabou antes que ele chegasse à
costa.

Quando o Príncipe Dragão pôs a cabeça para fora da água, viu o corvo
dourado. [...]. O príncipe saltou para o ar. Como o céu era suave, límpido e
imenso – redondo e azul como o próprio mar. [...]

Ele saltou para a costa e se transformou em um belo jovem com testa larga,
pernas longas e olhos que brilhavam como estrelas. Ia passeando pela costa e
admirando a beleza ao redor. [...]. Resoluto a encontrar a nascente do rio, ele
se voltou para segui-lo no interior. Quanto mais andava, mais se embevecia.
Musgos brilhantes trapejavam as margens do rio. Florzinhas douradas e lilases
brotavam do verte tapete de grama. Sob o oceano haviam muitos tipos de
algas, plantas, flores e corais estranhos e encantadores, mas ele nunca havia
visto formas e cores tão delicadas como estas. Ele achou que deveria ser grato
à água doce, porque nenhuma vegetação nem flores cresciam fora do alcance
do rio.

Era o segundo dia na terra.

Um grupo de borboletas apareceu de repente. Primeiro o Príncipe Dragão as


confundiu com flores. Ele nunca havia visto criaturas tão frágeis. Eram leves
como o ar, exibindo a luz do sol em suas asas enquanto esvoaçavam entre as
flores. Sem dúvida, ele pensou, elas achavam que as flores eram criaturas
iguais a elas.

O Príncipe Dragão desceu o declive da montanha onde o rio fluía. [...]. Então,
ele parou abruptamente. Diante de si surgiu uma visão diferente de tudo que
havia encontrado. Uma jovem estava recostada a uma encosta coberta de
musgo.

Embora o seu rosto estivesse voltado para a rocha, ele pode perceber que ela
chorava. Despida, ela era mais bonita do que qualquer criatura viva que ele
havia visto. [...]. Era Au Co, obrigada a permanecer no mundo inferior por ter
provado a terra doce. Ela estava chorando desde o cair da noite, um espaço de
mais de dez anos para nós (HANH, 2009, p. 24-26).

A alegria dá lugar ao peso do desespero e depois a uma profunda tristeza que se propaga
no tempo. A deusa chora e cria um rio de água doce, algo que não existia ainda na terra. Então,
o sofrimento de Au Co faz a terra habitada, cria uma enorme diversidade de seres em suas cores
e belezas. Se não há lama, não há lótus – como diz Thich Nhat Hanh – e o príncipe se torna
grato à água doce por criar coisas tão belas e diferentes das do fundo do mar. Faz-se importante
ressaltar aqui, novamente, que junto com as plantas surge o inseto. Aqui personificado na figura
da borboleta, que não sabe que é diferente de uma flor. Afinal, o Príncipe Dragão avista Au Co.
Novamente um ser do mar e um ser da terra protagonizam o início da humanidade.

O Príncipe Dragão não deu outro passo. Ele estava enfeitiçado e falou:
74

Sol brilhante reluz

Céu e mar azuis

Borboletas voam contentes

Perto de novas águas correntes

De onde você vem?

Por que chora, sem ninguém?

Assustada com a voz do príncipe, ela parou de chorar e olhou para cima. Seus
olhos se arregalaram de surpresa ao contemplar o nobre homem. Ela sentou e
enxugou os olhos com a mecha de cabelo. Olhando firme nos olhos dele, ela
respondeu:

Corvo dourado brilhante

Terra nova fragrante

Como pássaros Lac brancos

Para baixo voamos

Terra nova provei

Voar não mais poderei

A partida de minhas irmãs rememoro

Espero sozinha e choro.

Em terra estranha, em extravio

Minhas lágrimas viram um rio (HANH, 2009, p. 26-27).

Em forma de pergunta e lamento surgem as primeiras palavras da terra. Au Co, exilada


e em extravio, se põe a falar após um período de solidão sem sentido. Ao explicar sua sorte, as
palavras brotam sob a forma cálida de uma poesia.

De mãos dadas, eles desceram a montanha. De repente, o príncipe marinho


ficou alarmado. Quase todo o rio havia escoado para o mar. As plantas e flores
aos pés deles estavam murchando. Não havia borboletas à vista. O corvo
dourado pairava sobre suas cabeças e as suas sombras se encurvavam. Era
meio dia e os raios do corvo eram violentos e ardentes.

O Príncipe Dragão disse: “A terra só fica verde e bonita quando é nutrida pela
água doce das suas lágrimas. Não há árvores nem flores crescendo perto da
água do mar. Parece que as plantas da terra não vicejam na água do mar.
Deixe-me fazer chuva com as lágrimas restantes para reabastecer o rio”.

Au Co não sabia o que era chuva. Mas, antes que ela perguntasse, o príncipe
desceu até um riacho que ainda escorria pela areia branca e já havia quase
desaguado totalmente no mar. Ele pegou um pouco da água nas mãos e deu
75

três goles. Quando voltou para onde estava, disse: “Sente ali. Umedecerei a
terra com essa água maravilhosa. Não grite até ver a chuva. Olhe para o
oceano. Se vir algo estranho, não se preocupe. Embora você seja uma deusa e
eu, um dragão, não há nada a temer entre nós”.

Rapidamente, ele correu de volta ao mar. Au Co observava enquanto ele unia


as palmas como um botão de lótus. Ele mergulhou na água e logo desapareceu
de vista. Em alguns momentos, nuvens negras se avolumaram de um mar
revolto. Elas foram se empilhando cada vez mais até o céu azul se obscurecer.
[...]. A luz do corvo dourado ficou mais fraca e Au Co mal podia ver o que
estava acontecendo. De repente, um trovão bramiu das profundezas do mar e
um dragão dourado gigantesco eclodiu das ondas. O seu maravilhoso e
extenso corpo retorceu-se graciosamente até desaparecer nas nuvens escuras.
Um relâmpago cruzou o céu negro e depois houve um estrondo ensurdecedor.

Assustada, Au Co levantou, mas nada conseguia ver. Então, ela imediatamente


teve uma sensação agradável na pele, algo molhado, titilante, delicado e
refrescante ao mesmo tempo. Milhares de gotinhas caiam sobre seu corpo.
Chuva! O Príncipe Dragão fez chuva!

O tamborilar firme era como o som do canto. Lembrava Au Co da voz calorosa


e reconfortante do príncipe marinho. Ela ergueu os braços para receber as
gotas refrescantes e depois ofereceu o seu cabelo e ombros, o seu corpo
inteiro, à tranquilizante chuva. Sob seus pés nasciam brotos e o rio logo se
reabasteceu (HANH, 2009, p. 28-30).

O príncipe trouxe a chuva para a existência a partir da água que brotava no corpo de Au
Co. Deusa e terra se entregam às águas, como se o frescor tamborilante das gotas selasse a
interligação entre elas. O corpo original do dragão também é revelado, e apesar da diferença
entre os dois enamorados, não há por que temer. É possível e salutar o convívio entre diferentes,
e nessa atmosfera de adoração e interligação a vida brota em abundante diversidade.

A chuva durou algum tempo. Quando quase todas as nuvens se dissiparam e


a luz do sol voltou a brilhar, o dragão dourado contemplou a terra. Muitos rios
e riachos novos apareceram. A grama não apenas crescia tenra e verde ao
longo das margens dos rios, mas agora cobria as colinas, montanhas e campos.
Flores – lilases, douradas, rosadas e brancas – pontilhavam a paisagem. A face
da terra resplandecia com inimaginável beleza. Porém o que era ainda mais
miraculoso para o príncipe marinho, enquanto ele observava de cima das
últimas nuvens, era o contorno dos rios ter assumido a forma de Au Co – suas
pernas longas alcançando o mar, seu cabelo fluindo sobre todas as colinas e
montanhas. A imagem dela ficou para sempre marcada nos campos verdes da
tenra e encantadora terra. Au Co, tão bela e cheia de vitalidade, era o próprio
coração fértil da terra.

O dragão dourado voou de volta à terra, transformando-se de novo em um belo


jovem. Segurava um lótus branco. Estava ansioso por ver a jovem deusa de
novo. Ele realmente se apaixonou por ela assim que a viu. Au Co aguardava
76

o retorno do príncipe marinho. A voz dele, suave como a primeira luz do sol
matutina, havia aquecido o seu coração (HANH, 2009, p. 30).

Foi a interligação do elemento divino com a terra que trouxe vida e animou a matéria.
Já não há mais só terra ou só deusa. Já não se sabe mais em que ponto termina uma e começa a
outra. Agora são uma só, Deusa Terra – mãe, e as águas que permeiam. Estas que se tornam
presentes não mais em decorrência do sofrimento. Agora a vida na terra é alimentada pelo poder
estrondoso do masculino que se curva e coopera, apaixonado pelo poder colorido do feminino.
Essas imagens poéticas demonstram que a terra e todos os seus habitantes compõem um
grandioso e magnifico todo, cuja manutenção da vida requer harmonia. A vida é o resultado de
uma complexa e sutil conjunção de fatores, os quais podem ser explicados hoje de forma
científica, aos moldes metodológicos ocidentais, a exemplo da teoria da Autopiese, de Varela
e Maturana.
No entanto, o entrelaçamento de tudo o que é vivo se mostra de forma simples e explícita
em muitas mitologias de origens de povos oriundos dos mais diversos pontos do planeta. Como
diz Mauro Buhler, “a beleza não precisa de desculpas, justificativas ou explicações” (2018, p.
98). O que nos emociona e nos integra possui muita força, tanto quanto a mais avançada das
equações ou a mais complexa formulação lógica. Davi Kopenawa e Thich Nath Hanh, com suas
palavras, nos ensinam não só a ver um outro mundo, mas a sentir e a tomar consciência do
contato que temos com a natureza, porque a ela pertencemos.
Nós costumamos falar sobre a necessidade de entrarmos em contanto com a natureza.
Não temos necessidade de entrar em contato com a natureza. Precisamos nos tornar
constantemente conscientes desse contato, que é algo dado, mas que nós fomos habituados a
não dar importância, tão somente negligenciamos cuidado e atenção.
Este “Inter-ser”, como nomeia o nosso monge, é algo dado também. Não tem origem e
não tem fim, pois permeia a própria condição de existência sem precisar da nossa vã consciência
para que esteja lá. A questão é que com nossa perda de consciência dessa qualidade do estar
vivo, perdemos o sentido do estar vivo. Seguimos sem rumo como Au Co, quando se vê presa
à força da gravidade da terra, com lamentos pungentes como dos tucanos, quando Yoasi nos
apresenta a morte como companheira. O dragão tem a oportunidade de ver a terra de fora e ver
sua totalidade, enxerga Au Co, a pessoa amada. Precisamos fazer esse exercício de ver de fora
e de experienciar de dentro. Sentindo o amor que perpassa o existir.
77

Alguns dizem que existe uma natureza e muitas culturas. Outros, que existe uma
cultura e uma multinatureza. Posso afirmar, existem muitas compreensões de mundo e muitas
naturezas.

CONSIDERAÇÕES

Neste capítulo foi feito um panorama geral através das concepções que nos
fundamentam e que parecem ter guiado os feitos humanos ao longo do processo civilizatório.
Foram apontados avanços e retrocessos de nosso tempo, transmitidos de geração em geração
através de narrativas e seus significados, bem como de nossos modos de compreensão. Longe
de pretender esgotar as possibilidades de bibliografia e análises possíveis desse complexo
momento em que vivemos, tentei compreender ideias de cuidado que embasam nossas
percepções de mundo. O primeiro capítulo desta tese teve como objetivo aquecer nosso coração
para o que está por vir.
Iniciei pela definição de “Ser”, trazida por Tim Ingold, com o intuito de perceber o tom
de movimento inerente ao ser humano. Um ser que não pode ser definido, sem o risco de
incorrer em um reducionismo ou em uma fixação. Através da ideia de movimento, que não é
só constituinte do humano, mas de todos os seres, tentei estabelecer novos alicerces de
pensamento. Terei oportunidade de aprofundar um pouco mais no pensamento do referido autor
mais adiante.
No segundo momento, passei a analisar o tempo em que vivemos dando destaque para
a concepção de indivíduo que impera hoje, em contraste com a ideia de pessoa. Passando pelo
tom de melancolia que nos parece ser característico, e pela luta por direitos universais, bem
como pela urgência de mudanças conceituais e práticas que o momento exige.
Posteriormente, discorri sobre o mito de origem judaico-cristão e as mitologias
provenientes de outras matrizes culturais. Neste caminho, tentei ampliar nosso horizonte para
que algo novo possa emergir da crise atual. E o que parece é que o novo traz em si uma parcela
de resgate também. Como se puxando uma linha do passado pudéssemos almejar diferentes
trajetos, como um grito de liberdade, cordialidade, paz e, claro, cuidado.
No próximo capítulo tratarei deste cuidado, que precisa entranhar o cotidiano de forma
mais presente e pulsante. Nossos gestos expressos nos corpos, em nossas casas, a Terra como
casa, e em nossas crianças. A consciência de si, que se expande em direção ao outro através da
nossa humanidade comum. Consciência de empatia e semelhança.
78

Deixo aqui uma leve e ao mesmo tempo desconcertante provocação de Mauro Bühler:

O melhor é que aqueles que nos agridem sejam abençoados e não


amaldiçoados.

A paz é um exercício, mais um dever que um direito. Em um mundo tão


excludente, a violência estranhamente se torna o último recurso de
honestidade das muitas pessoas em desespero.

Acredito que todos estamos em busca daquilo que realmente nos reúna. Espero
que seja na criação e não na destruição.

O ladrão que invade a casa sabe que é parte da família. Nem ele, nem você,
nem eu lembramos. Todos nós nos esquecemos que somos parte de uma
grande família.

Nos ocupamos com essa estranha forma de valor. Um valor através de coisas
e mais coisas.

Talvez os ladrões nos libertem dos malditos objetos que nos transformam em
coisas. Talvez o façam em nome de um valor mais original, igualmente afeito
ao amor e ao caos.

Historicamente ninguém roubou melhor do que Cristo, que morreu junto a


dois outros ladrões. Ele nos roubou do pecado, um crime inventado pelo
homem para se aproveitar de outros homens.

Poder sobre o outro é como se chama o nosso esquecimento de Deus e, por


conseguinte, da criação do homem.

Nascemos livres e podemos viver presos em nossas próprias armadilhas de


poder e dominação.

Ao ladrão que rouba as coisas, agradeço o assalto ao esquecimento do valor


da vida (2018, p. 94).
79

2 GESTOS DE CUIDADO

Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo, mas sobre as pequenas eu
sei menos (BARROS, 2010, p. 101)

É evidente que há somente uma substância, que é comum não somente a todos
os corpos, mas também a todas as almas e espíritos, e que ela não é outra coisa
senão Deus. A substância de onde vêm todos os corpos se chama matéria; a
substância de onde vem toda alma se chama razão ou espírito. E é evidente
que Deus é a razão de todos os espíritos e a matéria de todos os corpos
(DINANT apud COCCIA, 2018, p.9)

Neste capítulo, a ideia é discorrer sobre o cuidado cotidiano, cada passo, cada gesto,
como busca da experiência do sagrado na vida. Uma busca por valorizar a simplicidade, o
conhecido, o próximo, aquilo que nos traz identidade e, ao mesmo tempo, por acolher o que se
mostra diverso, inquietante, distante. Como cativar uma espécie de olhar carinhoso voltado para
si mesmo e se perceber como uma integralidade que sente, que se emociona e que precisa do
outro, das relações e da comunidade de vida para se manter vivo. Se perceber como um ser de
afetos. Não somos máquinas programadas para interagir sempre da mesma maneira ou de
maneira adequada. Também não podemos desejar que o mundo e a vida se apresentem para nós
como algo programado, controlado, previsível. A vida é uma bela surpresa, um milagre diário
de uma riqueza incalculável, mas o humano moderno anda tão apressadamente que perde os
detalhes. E os detalhes, ah! São o que mais importa.

A Lenda das Areias

Vindo desde as suas origens nas distantes montanhas e após passar por
inúmeros acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente
alcançou as areias do deserto. E do mesmo modo como vencera outras
barreiras, o rio tentou atravessar esta de agora, mas se deu conta de que mal
suas águas tocavam a areia, nela desapareciam.
Estava convicto, no entanto, de que fazia parte de seu destino cruzar aquele
deserto, embora não conseguisse fazê-lo. Então uma voz misteriosa, saída do
próprio deserto arenoso, sussurrou:
- O vento cruza o deserto, o mesmo pode fazer o rio...
O rio objetou estar se arremessando contra as areias, sendo assim absorvido,
enquanto o vento podia voar, conseguindo, dessa maneira, atravessar o
deserto.
- Arrojando-se com violência, como vem fazendo, não conseguirá cruzá-lo.
80

Assim desaparecerá ou se transformará num pântano. Deve permitir que o


vento o conduza a seu destino.
- Consentindo em ser absorvido pelo vento.
Tal sugestão não era aceitável para o rio. Afinal de contas, ele nunca fora
absorvido até então. Não desejava perder sua individualidade. Uma vez a
tendo perdido, como poderia saber se a recuperaria mais tarde?
- O vento desempenha essa função - disseram as areias. - Eleva a água, a
conduz sobre o deserto e depois a deixa cair. Caindo na forma de chuva, a
água novamente se converte num rio.
- Como é que posso saber se isso é verdade?
- Pois assim é, e se não acredita, não se tornará outra coisa senão um pântano,
e ainda isso levaria muitos e muitos anos, e um pântano não é certamente a
mesma coisa que um rio.
- Mas não posso continuar sendo o mesmo rio que sou agora?
- Você não pode, em caso algum, permanecer assim - retrucou a voz. - Sua
parte essencial é transportada e forma um rio novamente. Você é chamado
assim, ainda hoje, por não saber qual é a sua parte essencial.
Ao ouvir tais palavras, certos ecos começaram a ressoar nos pensamentos mais
profundos do rio. Recordou vagamente um estágio em que ele, ou uma parte
dele, não sabia qual, fora transportada nos braços do vento. Também se
lembrou, ou lhe pareceu assim, de que era isso o que devia fazer, conquanto
não fosse a coisa mais natural. Então o rio elevou seus vapores nos
acolhedores braços do vento, que suave e facilmente o conduziu para o alto e
para bem longe, deixando-o cair suavemente tão logo tinham alcançado o topo
de uma montanha, milhas e milhas mais longe. E porque tivera dúvidas, o rio
pôde recordar e gravar com mais firmeza em sua mente os detalhes daquela
sua experiência. E ponderou:
- Sim, agora conheço a minha verdadeira identidade.
O rio estava fazendo seu aprendizado, mas as areias sussurraram:
- Nós temos o conhecimento porque vemos essa operação ocorrer dia após dia
e porque nós, as areias, nos estendemos por todo o caminho que vai desde as
margens do rio até a montanha. E é por isso que se diz que o caminho pelo
qual o Rio da Vida tem que seguir em sua travessia está escrito nas Areias.
(PERROW, 2013, p.272)

Essa história nos oferece uma linda metáfora da luta humana ao longo de uma vida.
Digo luta porque me parece que estamos em constante embate tentando manter nosso sentido
de segurança ligado a buscas por garantias, estabilidade, coerência e diferenciação. O rio, na
lenda, se considera uma identidade e insiste em se manter dentro dos parâmetros conhecidos,
ou seja, ser como sempre foi. Se relaciona com as características do ambiente como obstáculos
a serem transpostos, vencidos, deixados para trás. Age em sua majestade, até que encontra um
desafio maior que ele próprio e sente medo. Um medo atávico que fala da própria constituição
da ideia de indivíduo, da ideia de identidade, que se pretende algo fixo, perene e independente.
A partir de uma consciência de si acordada, de uma atenção voltada para como a
presença do outro ou do ambiente me afeta, ao tentar clarear que tipo de resposta emerge em
mim nas relações, se inicia um processo individual de responsabilização por meu próprio
81

movimento de busca. Acontece um engajamento aos encontros e desencontros do caminho de


vida. Segundo Leonardo Boff (2002, p. 33), cuidado é uma atitude e te coloca em movimento.
Envolve uma cotidianidade, uma constância35 disciplinar ligada a um senso de obediência, um
envolvimento afetivo.
Neste sentido, estão emergindo novas narrativas – ou antigas narrativas reconfiguradas,
tanto científicas como poéticas – que atestam uma outra dinâmica de relação entre os seres
vivos e os modos de habitar. Me parece que este embrionário movimento de recontar nossos
modos de relação traz o cuidado como fundamento. O lugar que habita o cuidado é o corpo. O
lugar que o corpo habita é a casa, juntamente a todos os seus utensílios materiais e relações que
lhe dão sentido e significado; em última instância, nossa casa é este planeta, rico em diversidade
e inter-relações. Estar vivo pode carregar a energia e a alegria de uma grande brincadeira de
criança.

2.1 NOSSO CORPO

A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A
publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa
(GALEANO, 2001, p.109)36.

Neste tópico dedicarei um olhar ao corpo como esfera fundante e principal cenário dos
gestos de cuidado. Terreno onde germina a singularidade e que ao mesmo tempo possibilita a
relação. Nosso corpo é uma porção de matéria animada. É uma coisa que pulsa e que se mantém
pulsando de uma determinada forma, sendo assim capaz de compor uma integralidade ao longo
de uma trajetória relacional. Neste sentido, não há nada que diferencie os corpos humanos de
todos os corpos de seres denominados por nós como “outros”.
A integralidade que compõe o corpo humano ganhou, ou gerou, uma certa configuração
capaz de se tornar consciente de sua própria existência e de pensar sobre ela, criando, assim,
uma série de teorias que pretendem explicar o mundo, os outros e a si mesmo. De maneira

35
“Constantia – isto significa posição e uma direção firmes, firmeza de posição, mas também
perseverança, consequência, resistência, intrepidez, coragem” (KÜNG, 1993, p. 133).
36
“A Iglesia dice: El cuerpo es una culpa. La ciencia dice. El cuerpo es una máquina. La publicidad
dice: El cuerpo es un negocio. El cuerpo Ldice: Yo soy una fiesta” (GALEANO, 2001, p.109).
82

resumida, pode-se afirmar que, historicamente, o modo que o humano encontrou para suas
investigações foi desenvolvido através de um movimento de separação e individualização de
organismos, sistemas, seres, transformando tudo em objetos passíveis de análise. As teorias que
prevaleceram e ganharam status de verdade foram se especializando cada vez mais, criando
nichos de saber tidos como independentes, a ponto de perdermos, como espécie, a noção de
nossa integralidade e interdependência.
Este tipo de explicação sobre o funcionamento do corpo humano se mostra de forma
alarmante quando usamos a metáfora da máquina para nos descrever37. Talvez esta seja uma
metáfora cabível em alguns sentidos, mas de maneira nenhuma esgota todas as possibilidades
e sutilezas do ser humano, nem de qualquer ser além-dos-humanos. Estou querendo chamar
atenção para o modo de pensar. Uma máquina consiste em uma série de mecanismos que
quando bem encaixados e ligados a uma fonte de energia, passa a funcionar. As ciências
médicas se utilizam de um vocabulário semelhante ao relacionado às maquinas para descrever
os corpos. O Conselho Federal de Medicina reconhece hoje 55 áreas de saber como
especialistas38, fora a odontologia e suas especialidades, que se caracteriza como outra área de
saber39. Porém, não se pode supor que um organismo seja o resultado de uma série de
mecanismos que quando bem encaixados e ligados a uma fonte de energia passam a funcionar.
O caminho que o conhecimento da complexidade dos organismos tomou foi o de dar
uma espécie de zoom às partes e de insinuar que elas podem “funcionar” de maneira isolada.

37
Na música “Cérebro Eletrônico” (1969), Gilberto Gil ressalta a primazia do corpo vivo sobre a
máquina. Cf. GILBERTO GIL, 1969. Gilberto Gil. Rio de Janeiro: Universal, 1969. Disponível em:
<http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4>. Acesso em 12 ago. 2019.
38
Dados da Demografia Médica no Brasil 2018. Cf.: <http://www.flip3d.com.br/web/temp_site/edicao-
97e48472142cfdd1cd5d5b5ca6831cf4.pdf>. Acesso em 11 nov. 2018.
39
“Há algum tempo, na república das ciências, reina uma etiqueta muito severa: essa regra de ouro não
escrita impõe uma, e apenas uma, disciplina apropriada para cada objeto de conhecimento e,
inversamente, afirma que cada disciplina tem um número definido e limitado de objetos e de questões
que convém conhecer. Como toda forma de disciplina, essa etiqueta também tem uma natureza e,
sobretudo, uma finalidade especificamente morais e não gnosiológicas: serve para limitar a vontade de
saber, castigar seus excessos, refreá-los não do exterior, mas do interior do sujeito. Aquilo a que se
chama especialismo compreende um trabalho sobre si, uma educação cognitiva e sentimental oculta ou,
no mais das vezes, esquecida e recalcada. Essa ascese cognitiva não tem nada de natural; pelo contrário,
é o resultado instável e incerto de longos e penosos esforços, o fruto envenenado de um exercício
espiritual praticado sobre si mesmo, de uma prolongada castração da própria curiosidade. O
especialismo não define um excesso de saber, mas uma renúncia consciente e voluntária ao saber dos
“outros”. Não é a expressão de uma curiosidade desmedida por um objeto, mas o respeito timorato e
escrupuloso de um tabu cognitivo. E todo convite a considerar os diversos conhecimentos humanos
como ontológica e categoricamente separados em disciplinas é a expressão de um verdadeiro kashrut
cognitivo: ‘Considerareis impuro todo conhecimento que não provier do mesmo objeto e do mesmo
método que o vosso’” (COCCIA, 2018, p. 111, grifos do autor).
83

Essa lógica não abarca as sutilezas e muito menos as dimensões que o cuidado com nossos
corpos pode ganhar caso a percepção desses atravessamentos sutis seja incorporada.

Assim, pode bem ser afirmado que nenhuma pessoa que se veja apenas como
um “caso” pode ser realmente tratada e nenhum médico pode ajudar um ser
humano a superar uma enfermidade grave ou leve, com a qual ele tem de lidar,
se esse médico empregar apenas o ser-capaz-de-fazer rotineiro de sua
especialidade40. Em ambas as perspectivas somos parceiros de um mundo-de-
vida (Lebenswelt) que nos carrega (GADAMER, 1993, p. 108).

Neste sentido, encontrei no pensamento de Tim Ingold uma reconfiguração da análise


desses atravessamentos sutis que pode abrir caminhos para novas formas de percepção dos
corpos como forças relacionais, nas quais o conceito de identidade se expande para a inclusão
da percepção do ser vivo imerso no ambiente. A premissa básica desse autor é de que existe
uma sinergia entre os organismos e seu meio ambiente, e que, consequentemente, não podemos
mais nos pautar em teorias que separam natureza e cultura (INGOLD, 2000, p. 9)41. A partir de
uma análise do que é considerado corporalmente como um diferencial entre humanos e outros
animais – a saber, o tamanho do nosso cérebro, a oposição dos polegares nas nossas mãos e o
andar sobre os dois pés –, Ingold conclui que esses três fatores anatômicos deram condições
para o caminhar ereto e, consequentemente, para a liberação das mãos para a manufatura de
objetos e ferramentas, e, com isso, a amplitude da criatividade e do pensar humanos.

A evolução humana foi retratada como a ascensão e finalmente triunfo da


cabeça sobre os calcanhares [...] Diferentemente do quadrúpede, com quatro
pés plantados solidamente no chão da natureza, o bípede é apoiado apenas por
dois, enquanto os braços e as mãos, liberados de suas funções anteriores de
apoio e locomoção, tornam-se capazes de responder ao apelo da razão.
Marchando com a cabeça sobre os calcanhares – meio na natureza, meio fora
– o bípede humano figura como uma criatura constitucionalmente dividida. A
linha divisória, aproximadamente ao nível da cintura, separa as partes superior
e inferior do corpo. Enquanto os pés, impelidos pela necessidade biomecânica,
embasam e impulsionam o corpo dentro do mundo natural, as mãos estão
livres para entregar os projetos inteligentes ou concepções da mente sobre ele:
para os primeiros, a natureza é o meio através do qual o corpo se move; para
o último apresenta-se como uma superfície a ser transformada. E neste
potencial de transformação, inerente ao acoplamento de mãos e cérebro,

40
Na obra Corpo e subjetividade na medicina, Liana Albernaz de Melo Bastos assinala que “o
pensamento hegemônico na medicina ocidental contemporânea, ao desconhecer outras dimensões que
não as do corpo maquínico, não permite aos médicos lidar com o sofrimento presente no adoecer” (2006,
p. 56).
41
Sobre essa quebra de dicotomias ver também: DECOLA, Philippe. Oltre natura e Cultura. Firenze,
Seid, 2014, p 19 e 21; _____. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 7-27.
84

encontram-se as condições para o domínio e controle do homem sobre o seu


ambiente material (INGOLD, 2011, p. 72-73, grifos do autor).

Essa divisão que nos constitui como humanos pode ser observada e analisada por
múltiplos vieses. Porém, aqui, sigo a linha de destacá-la como um fenômeno que se desenvolveu
ao longo do processo do relacionar humano no mundo vivido, através das explicações que
emergiram pela experiência42. Tim se indaga sobre se essa diferenciação funcional entre pés e
mãos é algo inerente à espécie ou se pode ter sido construída ao longo do nosso caminho como
civilização. Neste ponto é preciso ressaltar que embora as mãos e os pés humanos sejam
característicos e, portanto, facilmente diferenciáveis dos pés e mãos dos nossos irmãos mais
próximos, como os macacos por exemplo, a função dada a estes membros varia de acordo com
a comunidade e o processo civilizatório pelo qual cada humano passa em sua comunidade de
vida. Ou seja, a habilidade dos pés e mãos na Índia ou na África são bem diferentes das dos
habitantes da Europa ou da América do Norte. É notório que as pessoas que vivem em
comunidades que mantêm vivas suas ligações com a terra conservam em seus pés habilidades
que foram perdidas por pessoas que cresceram em regiões mais urbanizadas e desenvolvidas
cientificamente.
Ao que parece, a forma como o trato com seu próprio corpo ganha contornos de
costumes de vida embasados em crenças que são traduzidas pelo gestual e acabam sendo
tomadas como dadas, inerentes ao mundo. Porém, na verdade seriam criações de uma
determinada forma de lidar e habitar o mundo, no mundo, com o mundo.

Paradoxalmente, parece que, com a marcha adiante da civilização, o pé tem


sido progressivamente retirado da esfera de atuação do intelecto, que tem
regredido ao status de aparato meramente mecânico, e, além disso, que esse
desenvolvimento é uma consequência – não causa – do avanço técnico em
calçados. Botas e sapatos, produtos da cada vez mais versátil mão humana,
aprisionam o pé, constringindo a sua liberdade de movimento e embotando
seu sentido tátil [...] Graças a suas mãos e a suas botas pesadas o homem
civilizado, ao que parece, é cada centímetro um cientista em cima, mas uma
máquina em baixo (INGOLD, 2011, p. 74).

42
“Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo
ou meu ‘psiquismo’, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como simples objeto da
biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que
sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo
sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é constituído
sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência em rigor, apreciar exatamente seu sentido
e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão
segunda” (MERLEAU-PONTY,1999, p. 3).
85

Ingold faz uma detalhada análise de como algumas tecnologias modernas 43 foram aos
poucos transformando nossa relação e consciência corporal – espacial e temporal. Inicia falando
sobre o advento dos calçados, que podem ser compreendidos como a primeira camada de
tecnologia que instaura, no campo perceptivo, uma cisão entre o humano e a terra. Passamos,
como civilização, a não ter mais contato tátil com o chão através de nossos pés. Esta simples
mudança de hábito parece ter causado uma revolução no nosso modo de habitar.
Neste ponto, peço licença para apresentar um relato pessoal. Após minha primeira
leitura do terceiro capítulo da obra supracitada de Ingold (2011, p.70-94) tive a oportunidade
de ir ao Parque Estadual do Ibitipoca em Minas Gerais. Trata-se de uma reserva com uma
vegetação caracterizada como campos rupestres, repleta de cachoeiras onde o chão é formado
de quartzito – o que corresponde sensorialmente a pequenas pedrinhas pinicantes. O fato é que
resolvi fazer minha longa caminhada descalça e sugeri que meu companheiro, no passeio,
também o fizesse. Andamos o dia todo por diferentes tipos de superfícies e temperaturas.
Ao final da caminhada, já com os pés doloridos, resolvemos colocar nossos tênis
modernamente confeccionados para o conforto. Imediatamente percebi que a velocidade das
passadas se alterou completamente. Esta percepção me causou espanto. Meu companheiro
concluiu: “o cuidado mudou!”. Neste momento, nos demos conta de que enquanto
caminhávamos com os pés em contato com o chão todo nosso sistema sensorial ganhou uma
qualidade e atenção mais lenta e detalhista. Os passos eram mais cuidadosos, olhávamos para
o solo e por isso notávamos pequenas flores, pedras, cores e texturas que, ao colocarmos os
sapatos, perdemos de perspectiva. Calçados, passamos a olhar mais longe enquanto
caminhávamos. Toda a configuração do “se colocar ereto” foi alterada – todos os sentidos, o
equilíbrio, as sensações térmicas. Houve uma nova dinâmica perceptiva que se revelou
primeiramente como uma experiência de conexão direta no mundo e, posteriormente, como
uma outra forma de conexão. O que estou chamando de conexão direta com o mundo se iniciou
a partir do contato tátil dos meus pés com a terra, mas o espantoso foi que todos os outros
sentidos “acompanharam” o tato, formaram uma dinâmica de equilíbrio diferente44. Duas

43
Faz-se interessante ressaltar que cada nova tecnologia criada tem como fundo o objetivo de marcar
um certo status social do usuário, e que com o tempo o advento se populariza trazendo, então, a
“necessidade” de que novas tecnologias demarcadoras de diferenças sejam criadas.
44
O desenrolar da vida/obra de Lygia Clark propõe uma forma de conhecimento interior através da
interação com objetos. Nessa interação o espectador vai aos poucos sendo inserido no processo criativo
da artista, como participante que experiencia sua obra. Em um de seus últimos trabalhos, Lygia descreve
seu modo de criar/viver: “Sempre que inicio uma nova fase de meu trabalho, sinto todos os sintomas da
gravidez. E logo que a gestação começa, sofro verdadeiras perturbações físicas como a vertigem, por
exemplo, até o momento em que consigo afirmar meu novo espaço-tempo no mundo. Isso acontece na
medida em que chego ao ponto de identificar, reconhecer essa nova expressão de minha obra no meu
86

sensações se transformaram completamente quando nos calçamos: a velocidade do caminhar e


o fato de olharmos para o alto. Como se ao “cegar” meus pés, eu precisasse confiar mais em
meus olhos.
Resolvi trazer este relato por considerar que experienciei em meu corpo, de forma bem
evidente, o que Tim Ingold descreve como esta cisão entre os pés e as mãos nos indivíduos
civilizados. Experienciei como o fato de usar sapatos pode liberar nossas cabeças,
especialmente o sentido visual, para outros horizontes, e de como isso altera o cuidado com que
tocamos e lidamos com o solo, bem como nosso campo sensório motor.
Ainda no referido capítulo, Tim Ingold segue discorrendo e exemplificando acerca de
outros adventos tecnológicos que foram, ao longo da história, transformando nossa relação com
o meio ambiente e nosso campo de sentidos. Após a proliferação dos sapatos – que desconectam
e imobilizam os pés, liberando mãos e olhos –, temos a criação e disseminação do uso de
cadeiras que imobilizam nossas pernas e evitam também o contato de nossa bacia – e dos
ventres femininos – com a terra. Primeiramente sinal de realeza, hoje as cadeiras e bancos estão
presentes em quase todos os lares. O humano ocidental quase não fica agachado; até as crianças
são rapidamente ensinadas a “se comportarem bem”, sentadas em cadeirinhas e cadeirões.
Atualmente também permanecemos muito pouco em pé. Nos movimentamos somente para nos
deslocarmos de uma cadeira para outra. Somos corpos preguiçosos e com excesso de agilidade
mental. No meio, fica a angústia de um sentir sem lugar apropriado.

É como se, para os habitantes da metrópole, o mundo de seus pensamentos,


seus sonhos e suas relações com os outros flutuasse como uma miragem acima
da estrada em que pisam em sua vida material real. Uma famosa afirmação
antropológica neste sentido vem de Clifford Geertz. “O homem”, ele declarou,
“é um animal suspenso em teias de significado que ele mesmo teceu”. Penso
que talvez devêssemos alterar essa declaração, dizendo que somente o homem
calçado e sentado, artificialmente insultado – seja em movimento ou em
repouso – do contato direto com o solo, se consideraria assim suspenso
(GEERTZ,1973:5; cf. INGOLD,1997:238)45. (INGOLD, 2011, p.79).

dia-a-dia. O Caminhando, por exemplo, só passou a ter sentido para mim quando, atravessando um
campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma totalidade no tempo, uma totalidade sendo,
se fazendo sob meus olhos, na imanência do momento. Era o momento a coisa decisiva. Outra vez,
contemplando a fumaça do meu cigarro, senti como se o tempo fizesse incessantemente seu próprio
caminho, se aniquilando e se refazendo em ritmo contínuo... Já experimentei isso no amor, nos meus
gestos. E cada vez que a expressão ‘caminhando’ surge na conversa, nasce em mim um verdadeiro
espaço e me integro no mundo. Sinto-me salva” (CLARK, 1999, p. 152).
45
“O homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura
como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis,
mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 1989, p.15).
87

Esse “sentido de suspenção” ou de “amarração” (conforme a tradução do livro de Geertz


citado em nota) pode ser percebido como apreendido dentro de universos nos quais as técnicas
corporais se mostram mais declaradamente. Os treinamentos militares, por exemplo, moldam
os corpos de tal maneira uniformizante, a ponto de trazer para a matéria todo um campo de
artifícios simbólicos ligados a ideia de intimidação do inimigo e prontidão para o ataque. Outro
exemplo é o Balé Clássico, em que as bailarinas dançam nas pontas dos pés e quase alçam voo
nos braços dos bailarinos. Levitam em sinal de leveza e delicadeza (INGOLD,2011, p. 84).

Wiktor Stoczkowski descobriu a valorização simbólica da postura ereta, ainda


tão proeminente na paleoantropologia, em uma grande variedade de fontes
clássicas do início da era cristã: Platão, Xenofonte, Aristóteles, Plínio o Velho,
Vitrúvio, Ovídio, Cícero, Prudêncio e Gregório de Nissa. A ideia expressa em
todas elas é a de que o ser humano, ao colocar-se de pé, pode olhar para os
céus, conhecer os deuses (ou Deus), e exercer domínio sobre todas as outras
criaturas (STOCZKOWSKI, 2002:73-74). Para esses pensadores ocidentais,
bastante diferentemente do que pensam seus contemporâneos japoneses, a
conquista do bipedalismo foi essencial para elevar os seres humanos acima do
limiar da natureza e para estabelecer a superioridade da condição humana
sobre os animais. O quadrúpede, aos seus olhos, era necessariamente um ser
inferior ao homem (INGOLD, 2011, p. 81).

Outra grande revolução tecnológica que atingiu nossos gestos corporais foi a
pavimentação dos caminhos e ruas nas cidades. Cobrimos nossos pés e depois uniformizamos
os trajetos. Podemos andar sem cuidado, olhando somente para a frente. Peito ereto, avante e
em marcha. Possibilitamos posturas corporais que são, na verdade, expressões de um sentir
dominador do mundo. Vivemos sobre camadas civilizatórias que, aos poucos, preencheram
com formas retas e lineares uma espacialidade que antes era curva e irregular.

[...] como o geógrafo Miles Ogborn mostrou em seu estudo sobre a


pavimentação das ruas de Westminster na cidade de Londres, durante meados
do século XVIII, a construção de pavimentos ofereceu aos pedestres uma
superfície de rua que era lisa e uniforme, regularmente limpa, livre de
desordem e devidamente iluminada. Acima de tudo, as ruas foram feitas
abertas e retas, criando um ambiente adequado para o que era considerado o
exercício adequado da mais elevada faculdade da visão – ver e ser visto
(INGOLD, 2011, p. 82).

A maneira como nossas cidades foram e são ainda construídas materializa um certo
modo de pensar profundamente ocidental. Nossos antepassados europeus linearizaram nossa
experiência de mundo. Organizaram os espaços de forma a concretizar na matéria uma ideia
88

que hoje, nós, nascidos neste ambiente, reconhecemos como realidade dada46. Nosso
pensamento se pretende reto, limpo, claro, mapeado, uniforme, como o projeto de nossas
cidades. Neste contexto, a grande maioria dos avanços tecnológicos que foram desenvolvidos
apontam para um ideal que alia conforto a atitudes de menos esforço e até a uma certa
imobilidade.
Ingold também ressalta uma diferença constitucional entre a experiência de caminhar
de um local ao outro e a experiência de ser transportado de um local ao outro. Argumenta que
o ato de caminhar inclui o caminho na experiência corporal. Enquanto ser transportado, enfatiza
o local de origem e o de destino, deixando o caminho dominado por uma passividade. Hoje
verifica-se uma grande redução na

experiência de pedestre, que talvez tenha atingido seu auge na atual era do
carro, é o culminar de uma tendência que já estava estabelecida com a
mecanização do pé através da bota, a proliferação da cadeira e o advento da
viagem orientada para um destino (INGOLD, 2011, p. 85-86).

2.1.1 Sentidos e movimento

Nascido para ser Rei

Era uma vez um menino que nasceu para ser Rei. Quando ele era um
garotinho, todos o chamavam de “Pequeno Príncipe” e ele ganhou uma coroa
dourada para usar na cabeça.
Como todos os meninos, Pequeno Príncipe sempre gostava de explorar e
escalar, correr, pular e aventurar-se. O dia inteiro ele brincava nos jardins e na
floresta do palácio com seus amigos. Sua coroa brilhava na luz do sol e seus
amigos adoravam brincar perto dessa luz dourada.
Entretanto, um dia, quando ele estava brincando com seus amigos perto do
muro do palácio, um menino mais velho começou a ser violento na
brincadeira. De repente, empurrou o Pequeno Príncipe tão forte que ele caiu
da beirada e foi parar embaixo nas pedras. Ele quebrou muitos ossos – as duas
pernas e braços.
O Pequeno Príncipe foi salvo pelos empregados do palácio e carregado para o
seu quarto dentro do palácio. Os médicos enfaixaram suas pernas e braços

46
“O pensamento objetivo ignora o sujeito da percepção. Isso ocorre porque ele se dá o mundo
inteiramente pronto, como meio de todo acontecimento possível, e trata a percepção como um desses
acontecimentos. Por exemplo, o filósofo empirista considera um sujeito X prestes a perceber e procura
descrever aquilo que se passa: existem sensações que são estados ou maneiras de ser do sujeito e que, a
esse título, são verdadeiras coisas mentais. O sujeito perceptivo é o lugar dessas coisas, e o filósofo
descreve as sensações e seu substrato como se descreve a fauna de um país distante – sem perceber que
ele mesmo percebe, que ele é sujeito perceptivo e que a percepção, tal como ele a vive, desmente tudo
o que ele diz da percepção em geral” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 279).
89

com fortes bandagens e, por um longo tempo, ele teve que ficar deitado na
cama esperando que seus ossos colassem. Na verdade, o Pequeno Príncipe
ficou deitado na cama por tanto tempo que quando seus ossos colaram, ele
tinha esquecido como andar. Ele só queria ficar deitado na cama, e apesar de
sua mãe e seu pai pedirem para ele levantar-se, ele nem mesmo queria tentar
se mover.
Certo dia, sua avó teve uma ideia. Ela levou seu espelho grande de mão para
o quarto do Pequeno Príncipe e sentou-o na cama. Então ela segurou o espelho
na frente dele. “Você nasceu para ser Rei”, ela disse, “e você tem uma coroa
dourada na sua cabeça que gosta de brilhar na luz do sol. Mas olhe para ela
agora!”.
O Pequeno Príncipe olhou no espelho e ficou chocado ao ver que a sua coroa
dourada, na luz escura de seu quarto, parecia embaçada e cinza. “Eu tenho que
ser levado lá fora”, ele falou, “para que minha coroa brilhe na luz do sol
novamente”.
“Não, você não precisa ser carregado”, respondeu a Avó, “você deve andar
sozinho até lá fora... mas se você me der a mão, eu o ajudarei a caminhar”.
O Pequeno Príncipe estendeu a mão e sua Avó o ajudou lentamente a mexer
suas pernas da cama para o chão. Juntos eles saíram do quarto escuro,
passaram pelos corredores e chegaram ao lado de fora, no jardim à luz do sol.
Levou muitas semanas antes que o Pequeno Príncipe pudesse correr e pular e
escalar e aventurar-se como antes, mas todo dia seus amigos vinham segurar
suas mãos e ajuda-lo a andar. Quanto mais ele passeava pelo jardim, mais
dourada sua coroa brilhada na luz do sol. Logo ele estava brincando todo dia
como antes. Sua Avó sentava-se num canto do palácio e observava ele com os
amigos. Ela estava muito orgulhosa de seu neto, o Pequeno Príncipe, que sabia
que tinha nascido para ser Rei! (PERROW, 2008, p. 267-268).

Selecionei este conto infantil para ilustrar as percepções sensoriais imersas no mundo.
Acredito que nele estejam contidos alguns apontamentos significativos sobre como precisamos
viver a partir de uma percepção de nossa integralidade e permeabilidade. Trata-se nitidamente
de um conto aos moldes dos antigos contos de fadas provenientes da Europa. Porém, é um conto
atual, escrito como uma história pedagógica para uma criança que tinha sofrido um abuso, ainda
enquanto pequena e estava vivenciando as consequências deste trauma. Então, apesar de
considerar que a narrativa traz a ideia de uma superioridade humana individualista 47 – pois o
protagonista é um menino que tinha nascido para ser rei – percebo outros detalhes que podem
ser ressaltados e endossam meu argumento sobre a importância da experiência corporal para o
desenvolvimento do intelecto como forças indissociáveis.
Entendo que quanto mais o menino brinca – corre, pula, escala, explora – mais sua coroa
brilha ao sol, mais a luz da razão se desenvolve e, de forma simultânea, mais vivo e alegre o
menino se sente. Acolhido e interagindo de forma espontânea, ele cresce e se sente mesmo

47
Sobre a questão da excepcionalidade que acompanhou a ideia de superioridade: Cf. KOHN, Eduardo.
Comment pensent les forêtes. 2 ed, Le Kremlin-Bicêtre: Zenes sensibles, 2017.
90

nascido para ser rei. Porém, a partir do momento em que fica imobilizado, fechado em um
quarto escuro por um longo tempo, sua coroa perde o viço e ele se esquece de como andar. No
desenrolar da história, pela intervenção da avó, ou seja, da ancestralidade, fica claro que o
menino precisa passar por um reconhecimento de si – usando um espelho – para que a coroa
volte a brilhar. Não era a coroa que precisava ser colocada ao sol. Era o menino que precisava
retornar ao movimento, um movimento próprio. Ele mesmo tem que se engajar novamente,
com intensão de busca pelo sol. Somente assim é possível reencontrar sua alegria e brilho, aqui,
como oriundos de sua integralidade.
“Trata-se quase de um truísmo dizer que não percebemos com os olhos, os ouvidos ou
a superfície da pele, mas com o corpo todo” (INGOLD, 2011, p. 87). Ou, nas palavras de Lygia
Clark: “Toda minha visão não é puramente ótica, mas está visceralmente ligada à minha
vivência do sentir, não somente no sentido imediato, mas, mais ainda, no sentido profundo que
não se sabe onde está a sua origem” (1998, p. 111). Entretanto, a maneira como atualmente
costuma-se explicar os modos de percepção dá a entender que processos sensórios acontecem
de forma desconexa e até mesmo hierarquizada, como se quando um sentido estivesse desperto
os outros ficassem desligados. Ingold (2000) demonstra a interação entre os corpos e o mundo,
através da percepção dos sentidos, de um modo diferente. Usando o exemplo dos alertas
colocados diante de uma linha de trem, em que se diz: “pare, olhe e escute”, o autor discorre
sobre como este alerta não corresponde ao que de fato acontece com o corpo ao se deparar com
um trem em sua direção. Argumenta que o ato de “ver” e “ouvir” é o que de fato se faz: é todo
o corpo que percebe e isto gera uma ação integrada. Não somos um conjunto unitário isolado
do mundo. Estamos absolutamente entrelaçados no mundo.

Eu realmente pretendo sugerir, no entanto, que a maneira como eles são


colocados dão a impressão de uma certa maneira de imaginar o sujeito humano
- a saber, como um lugar de consciência, delimitado pela pele e colocado
contra o mundo - que é profundamente sedimentada na tradição ocidental do
pensamento. O problema da percepção, portanto, é o de como tudo pode ser
traduzido ou “atravessado” de fora para dentro, do macrocosmo do mundo
para o microcosmo da mente. É por isso que a percepção visual e aural
geralmente são descritas, nos escritos de filósofos e psicólogos, como
processos de ver e ouvir (INGOLD, 2000, p. 243)48.

48
“I do mean to suggest, however, that the way in which they are posed bears the imprint of a certain
way of imagining the human subject – namely, as a seat of awareness, bounded by the skin, and set over
against the world – that is deeply sedimented in the Western tradition of thought. The problem of
perception, thus, is one of how anything can be translated or ‘cross over’ from the outside to the inside,
from the macrocosm of the world to the microcosm of the mind. This is why visual and aural perception
are usually described, in the writings of philosophers and psychologists, as processes of seeing and
hearing” (INGOLD, 2000, p. 243).
91

O que acontece é que um sentido se alia aos outros, mesmo que em alguns momentos,
para nossa consciência, aconteça uma dinâmica descrita pela Teoria da Gestalt como “figura e
fundo”49. Meu ponto é que, mesmo quando não percebemos conscientemente algo, existe uma
ampla conversão de forças, sentidos e interligações atuando em nós e através de nós. Como
ressalta Ingold, “[...] por trás da descoberta, visual ou auditiva, de um mundo já criado lá reside
um nível de percepção pré-objetivo mais profundo, um nível em que a consciência sensorial
que governa como em uma cúspide do próprio movimento do vir-a-ser do mundo”50 (2000, p.
245).
A partir dessas considerações, pode-se compreender que nossos sentidos funcionam
como um grande sistema, um colaborando com o outro através de dinâmicas de movimento e
equilíbrio de forma a estruturar nosso modo de estar vivo51. Porém, em contrapartida, é no corpo
que se inserem as disciplinas e a força dos padrões socialmente aceitos. Vivemos um momento
de pleno debate social das políticas sobre o corpo, sobre os desejos e a formação da identidade
legitimada pelas leis, sejam elas dos homens ou de Deus.
As mulheres determinam: “meu corpo, minhas regras!”. Os grupos LGBTQ+ encontram
cada vez mais espaço social para expressar sua existência. Os pedagogos e profissionais
envolvidos com a infância clamam pelo brincar livre. O povo negro reconstrói uma estética que
legitima sua beleza e afirma seu lugar de existência. Os povos indígenas se unem em gritos de
guerra defendendo suas tradições. Pessoas de múltiplas tradições e origens abandonam suas
vidas de robô nas cidades em busca de um retorno ao que é importante... E contra todas essas
vozes emerge uma corrente tradicional fundamentalista que ainda tenta controlar e até mesmo
combater as intempéries das “novas” ideias e práticas corporais. Vivemos um tempo violento,

49
“Na relação figura/fundo, a figura tem pregnância, brilho, clareza, vivacidade, e se destaca de um
fundo difuso e amorfo. O fundo diz respeito ao campo perceptual, isto é, a tudo que é relativo ao
organismo e ao meio ambiente. O significado da figura é sempre dado pela relação contextual com o
fundo” (D’ACRI, G.; LIMA, P.; ORGLER, S, 2007, p. 112).
50
“[...] behind the discovery, whether visual or auditory, of a world already made there lies a deeper,
pre-objective level of perception, a level at which sensory awareness rides on the cusp of the very
movement of the world’s coming-into-being (INGOLD, 2000, p. 245).
51
Acredito que este é um ponto do trabalho realizado por Ingold, a saber, uma investigação
fenomenológica sobre a percepção incluida no ambiente, poderia ser muito aprofundada e relacionada
inclusive com outras teorias pouco exploradas academicamente. Destaco aqui o trabalho de Rudolf
Steiner, intitulado Os doze sentidos e os sete processos vitais (1997), no qual discorre sobre doze
sentidos, sete a mais, portanto, do que os reconhecidos pela ciência comum. Dentre estes doze, estariam
inclidos o movimento e o equilíbrio como sentidos sensório perceptivos de nosso corpo. Infelizmente,
o aprofundamento nessa articulação abriria campo para uma outra tese, em virtude do tamanho e
complexidade argumentativa da imaginada tarefa. Destaco aqui apenas como uma articulação possivel.
92

e a violência se mostra no corpo e nas doutrinas sobre o corpo. Porém, que corpo é esse? Essa
é minha pergunta inquietante. Um corpo moribundo mecânico, um corpo vibrante, vivo?
Gadamer, ao investigar o caráter oculto da saúde dentro do âmbito da medicina, aponta
para uma compreensão interessante:

A meu ver, trata-se do trágico destino de nossa civilização moderna o fato de


o desenvolvimento e a especialização do ser-capaz-de-fazer científico e
técnico terem paralisado a nossa força para o auto tratamento [...]. Eu sei bem
estimar o papel desempenhado pela medicina moderna. Ela nem sempre trata
apenas de curar, mas frequentemente, de manter a capacidade de trabalho do
paciente [...]. Mas o que vai além disso é o tratamento que nós mesmos
devemos nos aplicar, esse auscultar, esse escutar-se silenciosamente e
atentamente e o preencher-se com o todo da riqueza do mundo em um
momento imperturbado e não afetado pelo sofrimento. São momentos nos
quais se está o mais próximo possível de si mesmo [...]. Com o tempo isso
será decisivo para nós, se devemos nos adequar às cambiantes condições de
vida do mundo tecnicista e se aprendermos a reavivar as forças com as quais
se conserva e se recupera o equilíbrio, o apropriado, o que é para mim
apropriado, o apropriado para cada um (GADAMER, 1993, p. 107).

Para que a esfera organísmica dessa corporalidade vibráril seja resgatada, faz-se
necessário compreender o corpo como espaço da justa medida, do equilíbrio. Lugar da busca
pelo que é suficiente, seu autolimite. Um corpo como o território da experiência com o que se
diz sagrado, mas também com o que se diz profano. O ponto da integração entre o profundo e
denso com o leve e sutil em movimento. É necessário abarcar a esfera dos sentidos que nos
capacitam a perceber a nós mesmos, o outro e as ideias de mundo.
Neste contexto, a respiração, como exercício de relação olfativa, transforma o distante
em próximo, dita o pulsar da vida. “Respirar significa estar imerso num meio que nos penetra
com a mesma intensidade com que nós o penetramos” (COCCIA, 2018, p. 17) – este penetrar
purifica e nutre. A digestão, e todas as experiências ligadas ao sabor, provocam uma verdadeira
metamorfose transformando o que é considerado proveniente de fora, em nós mesmos – purifica
e nutre. Somos um conjunto de ossos, tecidos, fluidos e ritmos. Somos um conjunto de
incontáveis outros seres que nos habitam. Um emaranhado52 que quando unido cria um todo
singular, uma identidade. Uma integralidade que tem cheiros, movimento, voz, sente, pensa,
cria e encontra, se relaciona, constrói uma trajetória de vida que inclui uma série de pequenas
mortes e renascimentos.

52
A ideia em Tim Ingold é de que o nosso ambiente é um “domínio de emaranhamentos” (2015, p. 120-
121).
93

Não sei se serei uma conformista, mas acho que, desde que o mundo é mundo,
o homem não mudou nem mudará. Ele existe na base das polaridades e só
funciona em relação a elas. Se há injustiça, haverá a justiça, a fome, a bonança,
etc. Como querem eles suprimir esta realidade que é o próprio homem? E se
chegarem a fazê-lo onde botaria o homem toda sua agressividade? Isto é o
lado imediato da vida e deve ser respeitado pois é dentro disto que se
estabelece o equilíbrio (CLARK, 1998, p. 144).

2.1.2 Gestos de outros mundos

Pois nossos primeiros antepassados não deram passos largos sobre a terra com
botas pesadas, mas caminharam sobre ela com leveza, com destreza e,
principalmente, com os pés descalços (INGOLD, 2015, p.94)

Em nossa sociedade civilizada o corpo se instaura como lugar de inúmeros interditos.


Colecionamos partes intocáveis; o tato definitivamente se transformou em algo perigoso, e o
corpo em uma propriedade privada. Esta é uma dinâmica sinuosa e de sinais híbridos, porque
muitas vezes os interditos não são às partes ou ao corpo em si, mas, em última instância, à
criação de intimidade. Vivemos um tempo no qual impera um sentimento abissal de
desconfiança sobre a potência das relações.
Quando o corpo, ou seja, nós mesmos, somos encarados como máquina – de forma
objetificante –, as esferas das sensações e do sentir se apresentam de forma deslocada e
desqualificada. Temos dificuldade de fazer contato com nossas necessidades mais básicas:
toque, afeto, afago. Buscamos garantia, porém, garantia é bem diferente de segurança. Esta sim
é a que de fato precisamos.
Winnicott (2006) dedica uma grande parte de sua obra sobre a importância do que ele
denomina como Holding53 – que pode ser traduzido como “segurar”. Em minha dissertação de
mestrado, tratei sobre este conceito relacionado à relação entre mães e bebês, aquele momento
em que o ato de segurar e acalentar é imperativo. Mas no qual também, ou até lá, os discursos
que levam a uma desconfiança de si e do outro adentraram. Aprofundo esta questão mais
adiante; aqui, me dedico a dar voz a narrativas de relações pautadas em uma dinâmica na qual
a intimidade e a confiança não foram abaladas.

53
Do verbo to hold: sustentar, conter, dar um suporte. Cf. MELLO, J. O ser e o viver: uma visão da
obra de Winnicott. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, p. 33.
94

Aparecida Vilaça, no livro Paletó e eu: memórias de meu pai indígena (2018), relata
como a esfera do cuidado, embalada pela intimidade física, acontece entre os Wari’ – povo por
ela pesquisado, povo por ela vivido. Explicando que o tema da sexualidade é tratado por eles
de forma bem livre e espontânea, afirma que tudo sobre o corpo é experimentado de forma
pública. Eles mostram uns aos outros atos que a nós, ditos civilizados, são interditados pela
força da aculturação e da educação normativa, tal como o pum, o arroto e a meleca. Não
consideram suas necessidades fisiológicas como “defeito da máquina”. A partir disso, a autora
nos oferece o seguinte relato/reflexão:

Catar piolho é uma forma de conversa e não precisa pedir licença; a cabeça do
outro é sempre franqueável. No início, sofri com a falta de piolhos, porque tão
logo alguém começava a mexer na minha cabeça, desinteressava-se. Um dia
fui surpreendida pelo interesse de uma mulher ao finalmente encontrar em
mim um piolho e me tornei uma participante legítima dessa conversa muda,
pelo corpo. Tenho duas lindas fotos de meus filhos. Em uma delas, Francisco,
com seus quatorze anos, de camiseta azul e calça comprida, tem a cabeça
deitada em um grande saco cheio de castanha, sobre um estrado de paxiúba, e
um livro fechado nas mãos. Ao redor de sua cabeça estavam a avó To’o, a tia
Ja e uma menininha, mexendo atentamente em seus cabelos à cata de piolhos.
Ele tem os olhos semicerrados e um sorriso. Na outra foto está André, com
uns cinco anos, vestido com uma camisa listrada supercolorida e uma calça
vermelha. Está com a cabeça deitada no colo de uma moça, sentada sobre um
estrado de paxiúba, que mexe em seus cabelos. Tem na boca uma grande
carambola amarela, que segura com as mãos.
Essas lembranças subitamente me remetem a um contexto completamente
diferente, muitos anos depois, quando me dei conta de que o acesso não
mediado por palavras à cabeça dos outros era de fato uma deliciosa
particularidade dos Wari’. Estava em uma casa de massagem em Siem Riep,
no Camboja, que se chamava Lemon Grass (Capim-Limão), onde nos serviam
o chá dessa planta enquanto esperávamos. O povo daquele país, especialmente
os habitantes das montanhas, me lembravam os Wari’, por seus traços físicos
e suas casas cobertas de palha, e volta e meia me via pensando neles, e em
palavras em sua língua, como se pudesse me fazer entender usando-as ali.
Depois de já viciada em foot massage, decidi fazer uma massagem de corpo,
que corria maravilhosa como as outras, quando fui surpreendida pela pergunta,
em inglês: “Posso tocar sua cabeça?”. Sim, por favor (VILAÇA, 2018, p. 124-
125).

Encontra-se aí uma poética dos corpos que conversam sem palavras e que comungam
de uma linguagem própria sedimentada na intimidade. Nos espaços abertos, onde compartilhar
os toques, as dores, os odores, os bichinhos, é uma forma de irmandade cotidiana e de pertença.
Para nós, modernos, pode parecer loucura uma cabeça só ser interessante quando é habitada por
piolhos. Nós, movidos por um princípio higienista, desenvolvemos tecnologias que acabaram
por apartar do cotidiano a relação com seres ditos peçonhentos/nojentos.
95

Logicamente, esse movimento visa a saúde, e não estou aqui pregando uma volta aos
piolhos, porém, talvez esteja, em certo sentido. O conceito de saúde que impera em nossa
sociedade, que visa a esterilidade, sem dúvida contribuiu para o funcionamento e duração de
nossos corpos como organismos54. Haja vista o aumento da expectativa de vida em todo o
mundo civilizado. Porém, gostaria de contribuir com uma reflexão a partir do que se perdeu
com este modo de ser moderno. Quero apontar para o que este conceito de saúde deixou de
considerar. Assim como todo remédio tem seu efeito colateral, me parece que em nível social
certos adventos tecnológicos afetaram colateralmente nossos gestos de cuidado como
mamíferos relacionais sem que nos déssemos conta.
Resgato aqui uma reflexão que já surgiu em minha dissertação. Pedi para que algumas
mulheres me relatassem um momento quando, na interação com seus filhos, sentiram uma
espécie de conexão especial. Recebi o seguinte testemunho:

Esses dias, M. teve uma infestação de piolhos e eu decidi não usar veneno e ir
catando até acabar... Catando as lêndeas, eu ia tocando a cabecinha dela,
sentindo cada curva, cada pedacinho com a ponta dos meus dedos, cheirava o
cabelo, via os fios dourados contra a luz do Sol... e imediatamente me veio a
lembrança tátil da cabeça dela dentro de mim, saindo, e o cheiro rápido de
pouco vérnix que eu senti dela ao nascer... foi tão lindo que chorei (D.
12/2014) (GUIMARÃES, 2016, p. 181).

Em meu texto que se segue a este relato faço a seguinte reflexão:

A potência que se revela após uma mãe decidir prestar cuidados amorosos a
uma criança com piolhos fez pensar sobre a quantidade de carinhos que foram
desperdiçados com o advento dos remédios para matar e controlar as
infestações. Em todos os carinhos desperdiçados com o advento de
antitérmicos que desobrigaram as mães e os pais de vigiar a febre fazendo
compressas de álcool nas articulações para controlar a temperatura. Fez pensar
nos bolos que deixaram de ser batidos à mão. Fez pensar na quantidade de
memórias afetivas que não serão criadas por essa geração moderna de crianças
conectadas mais na televisão, na internet, nos joguinhos, etc. do que em
interações afetivo-sociais (GUIMARÃES, 2016, p. 182).

Hoje, após o mergulho pelo pensamento de Tim Ingold, percebo que neste relato de mãe
contém algumas outras preciosidades. Consigo perceber que através da escolha de um gesto de
cuidado comandado pelo tato, ela pode fazer emergir uma sinergia entre quase todos os seus
sentidos; a oportunidade do toque levou ao despertar do olfato e da visão dos detalhes inundados

54
Cf. VASCONCELOS, 2005, p. 19.
96

pela luz do Sol, que sincronicamente levaram ao resgate de uma memória. Um simples gesto
fez presente uma conexão ampla de um com outro – mãe e filha –, do perto e do distante – o
reflexo do sol nos cabelos da menina –, do presente com o passado – resgate das memórias do
nascimento da filha –, e enfim, com o futuro – certamente foi criada uma experiência
memorável no corpo desta criança.
Trata-se de um relato que deflagra um momento de convergência, de imersão, que em
um segundo traz a percepção da união dos eventos que são costumeiramente descritos
separadamente – imanência. E, nesse caso em particular, não posso deixar de destacar a
presença de um inseto que, como já foi dito antes, parece exercer uma função de elemento de
ligação entre as espécies. Além das abelhas polinizadoras e dos mamíferos catadores de
bichinhos uns nos outros, ressalto também a imagem do passarinho que pousa no lombo do boi
para se alimentar de seus carrapatos, além das moscas55 que usam a pele de outros animais
como útero etc. Ao eliminarmos os insetos e os microrganismos de nosso cotidiano,
eliminamos também a percepção sensória de nossa interdependência como seres-no-mundo.
Finalizo este tópico sobre um certo aglomerado de histórias que se inserem em nossos
corpos com uma carta/poema de Lygia Clark:

A Miguel Tristão.

É a história. Escute, é a história. História de quê? É a história sem história. É


a história do vazio, tudo pode acontecer. Nada deve preencher este vazio, pois
aí a história acaba. É a história. Escute, é a história. História de quê? É a
história sem história. É a história do vazio, tudo pode acontecer.

Era uma vez, vezes existem aos milhares, podendo ser ontem, há mil anos
atrás ou o momento que falo na história. História de quê? É a história sem
história. É a história do vazio, tudo pode acontecer. Havia um homem, homens
existem aos milhares, podendo ser eu, você, o outro. É a história, história de
quê? Já existe o homem embora seja qualquer um. Ele pensa. Ele pensa. Pensa
o quê? Qualquer coisa, pois existe a história, história de quê? De um homem
que pensa. Pensa o quê? Só você sabe, procure pensar como este homem
pensaria. Ele sai, sai de onde? De qualquer parte, o mundo é vasto nos seus
espaços.

Isto é a história, história de quê? De um homem que sai de qualquer lugar e


não pode ter opção pois esta é a história, história de quê? História de um vazio
que pode ser preenchido por você. Faça, pois, a opção e determine onde este
homem vai. Escute, é a história, esta história já tem um homem que é um
qualquer que pensa em qualquer coisa e pode ir a qualquer lugar. Escute, é a

55
“Bem-aventurada a pequena criatura que sempre permanece no seio que a criou; ó tu, mosca feliz, que
saltas interiormente ainda mesmo nas núpcias: o ventre é tudo” (RILKE, 2013, p. 71).
97

história, história de quê? Qualquer história com qualquer homem que pensa
qualquer coisa e vai a qualquer lugar. Este homem vê, vê o quê? O mundo é
vasto dentro do seu tempo.

Ele pode ver o que você está vendo, ou qualquer coisa que o homem viu há
dois mil anos ou ainda o que o homem verá a um século. Escute, é a história,
história de quê? De qualquer homem, em qualquer época, que pensa qualquer
coisa e vai a alguma parte e vê alguma coisa. Escute, é a história, este homem
sente coisas, o quê? Qualquer coisa que você já possa ter sentido ou sente
neste instante. Escute, é a história, ela não pode determinar o que ele sente,
pois, a história não tem história. É a história do anonimato sem herói, pode ser
a sua história ou a de outro qualquer. Já existe, pois, um homem embora possa
ser qualquer um, ele pensa qualquer coisa, ele sente uma das coisas que você
conhece, ele vai a alguma parte que talvez nem esteja dentro desta época.

Escute, é a história. História de quê? Do vazio que não pode ser preenchido
senão por você (1998, p. 161-162).

2.2 NOSSA CASA

Ande como se estivesse beijando a terra com seus pés, como se estivesse
massageando a terra. As suas pegadas serão como marcas de um selo imperial
chamando o agora de volta ao aqui; para que a vida esteja presente; para que
o sangue traga a cor do amor ao seu rosto; para que as maravilhas da vida se
manifestem, e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria (HANH,
2018, p.57)

Nosso corpo é nossa primeira casa, porém a casa que me refiro agora é aquela habitada
por um corpo. Um lugar conhecido, onde os eventos mais íntimos acontecem. Um espaço
através do qual nós, humanos, nos reconhecemos e comungamos com os nossos. Lugar da
família, dos animais domésticos e de objetos, todos nossos. A casa é a encarnação mais concreta
da propriedade privada. É o sonho de conquista de qualquer cidadão comum: a casa própria –
com as parcelas quitadas, de preferência. Um lugar onde o elemento de posse se torna mais
notório. Neste sentido, ela se torna uma extensão organizadora de nosso corpo. Casa é onde a
gente mora. Morar é um ato, um verbo intransitivo. Independentemente do adjunto adverbial
que possa acompanhá-lo, todo mundo mora, habita56.
Roberto DaMatta fala que dentro do espaço íntimo das casas acontece um ciclo de
reciprocidade, um lugar que conserva valores diferentes do espaço público:

56
“Habitar, em contrapartida, é intransitivo: concerne à maneira como os habitantes, isoladamente e em
conjunto, produzem as suas próprias vidas, e como a vida, prossegue” (INGOLD, 2011, p. 34).
98

É precisamente nesse sentido dinâmico que tenho afirmado que, no Brasil,


vivemos sempre oscilando. Uma mesma pessoa pode expressar opiniões
aparentemente diferentes, divergentes e até mesmo contraditórias, caso se
posicione em casa, na rua ou no outro mundo. Em casa somos todos
conservadores porque o tempo da residência, do casamento, da família, dos
amigos e parentes é um tempo cíclico e repetitivo que sempre volta na eterna
oscilação da vida e da morte, dos batizados e casamentos, dos aniversários e
favores. Aqui vivemos um mundo marcado pelos ciclos da reciprocidade,
onde a história linear do progresso social e político do mundo da rua
definitivamente não devem entrar (DAMATTA, 1997, p. 150).

Longe de pretender abarcar a ampla possibilidade de moradias humanas ao longo do


planeta e da história, gostaria de me delimitar a pensar, de maneira mais fenomenológica
possível, as casas urbanas dos sonhos, nas grandes e médias cidades, e de como elas corroboram
para um sentido de pertencimento e construção de mundo que me parecem estar relacionados a
este ciclo de reciprocidade referido por DaMatta.
Em nossa sociedade, a imensa maioria das casas cumpre um certo padrão de formato,
algo como um cubo, talvez um pouco mais alongado aqui ou ali, mas comumente um cubo.
Paredes quadradas que contêm quinas e cantos. Dentro do cubo maior, existe uma subdivisão
em compartimentos diferenciados segundo suas funções. Estes são normalmente delimitados
por portas. Nesta casa há espaços compartilhados por todos os habitantes e há lugares
privativos, íntimos.
Na esfera dos espaços privados, está o lugar de dormir – amar e sonhar, na melhor das
hipóteses – que são chamados de quartos. A casa tipo ideal moderna teria um quarto para cada
pessoa residente nela, o que nem sempre acontece, mas pretendo chamar atenção para o modo
de pensar e operar. Os quartos só são compartilhados por pares, sejam românticos ou fraternos.
Para um quarto ser um quarto, ele precisa de uma cama. Comumente ela vem acompanhada de
um armário ou uma cômoda, onde são guardas roupas e objetos íntimos. Cartas, trabalhos e
segredos são mantidos em algo semelhante a uma escrivaninha, ou desktop. Neste espaço pode
ser encontrado duas outras “peças de mobiliário indispensáveis”, uma televisão e um
computador, ou algum aparato com nome novo que una as duas coisas.
Nesta esfera de espaços privativos está também o lugar que atende as necessidades
fisiológicas e de autolimpeza, os chamados banheiros. Estes espaços são normalmente
utilizados por mais de um membro da família, mas, na maioria das vezes, não ao mesmo tempo.
Neles precisa haver uma privada, uma pia e um chuveiro. Lá são guardados produtos de muitas
99

ordens, cada vez mais produtos atrelados normalmente a autocuidados, que também, muitas
vezes, são destinados a disfarçar odores.
No âmbito dos espaços compartilhados há um espaço reservado ao convívio. Nele se
encontram normalmente pelo menos um sofá posicionado diretamente à frente de uma enorme
tela de televisão, que são cada vez maiores mesmo que os tamanhos das salas sejam cada vez
menores. Logo ao lado, se couber, precisa haver uma mesa e algumas cadeiras para reunir
pessoas em momentos festivos de refeição. No dia a dia é cada vez mais comum se alimentar
sentado ao sofá enquanto se assiste alguma coisa na TV.
Há também um local reservado à preparação das refeições e seus múltiplos utensílios
domésticos. Geladeira e fogão são os mais comuns, seguidos de um micro-ondas – utensílios
básicos. Batedeira, multiprocessador, liquidificador, centrífuga... Lava-louças é um luxo.
Encontram-se também aparatos culinários: pratos, panelas e talheres diversos, copos, potes,
espumadeira, espátula de silicone, assadeiras e por aí vai. Em um armário guardam-se os
alimentos super industrializados. Existe também um espaço que é chamado de área de serviço,
onde fica uma máquina de lavar roupas, um tanque e alguma forma de varal. Em moradias
construídas até o final do século passado, é possível encontrar ali também um quarto chamado
“quarto de empregada”. Porém, nos apartamentos e casas mais modernos, este espaço foi
subtraído.
A partir desta breve e genérica descrição do que seria o espaço físico de uma casa,
gostaria de primeiramente chamar atenção para o fato de ela agrupar uma série de objetos e
utensílios com os quais nos relacionamos cotidianamente. Alguns destes objetos precisam ser
adquiridos para que haja um certo funcionamento da casa, como possibilidade de habitação,
outros marcam memórias, encontros, e transferem ao espaço um sentido estético decorativo que
incluem sinais de conforto e acolhimento. Então, em certa medida, quando alguém adentra o
espaço de sua própria casa, sua percepção corporal de expande e abarca a totalidade daquele
lugar que personifica em objetos um sentido de familiaridade, de repouso e relaxamento, de
retorno. É o lugar para onde se retorna ao final de um dia para adormecer. Para que este processo
aconteça é necessário que haja, no habitante, um sentimento de confiança e segurança neste
local.
Para além dos objetos, a casa pode ser também o espaço das relações mais íntimas. Ela
abriga os familiares. Pessoas, humanas e não-humanas, que por escolha ou por nascimento, o
universo físico e afetivo da existência é compartilhado. Estas múltiplas relações agregam um
sentido de pertencimento. Através da criação de hábitos no cotidiano relacional, um modo
próprio de ver e habitar o mundo vai sendo construído. É nesta dinâmica de entrelaçamentos
100

que nasce e cresce nossos hábitos de cuidado. A casa, assim como as relações, demanda uma
atenção, manutenção, toque, carinho. Neste microuniverso, espaços não visitados e sentimentos
não ditos vão gerando acúmulos desnecessários57.
Vou me deter à questão da casa por mais um instante. Este ideal de moradia descrito
acima atende a um comando moderno implícito que pode ser traduzido por um ditado popular
no Brasil. Costuma-se dizer: “quem casa quer casa”. Como em todo ditado, neste pode-se
destacar uma série de valores implícitos que são paulatinamente transformados em
comportamentos. O primeiro valor está atrelado à ideia de família nuclear composta por uma
parelha e seus filhos, cada vez menos numerosos. Então, quando um casal se forma58 torna-se
necessária a criação de uma nova moradia, e junto com isso vem a necessidade de que todos
aqueles objetos e utensílios que compõem uma casa sejam adquiridos.
O segundo valor que gostaria de destacar é que este novo núcleo, idealmente, irá se
prover de forma autônoma e irá viver longe de sua família de origem. Utilizo a palavra “longe”
aqui não como um atributo espacial, mas anímico, ou seja, mesmo que as pessoas morem perto
de seus familiares, o que é implicitamente passado pelo ditado é que esta nova célula precisa se
manter de forma independente. Ser independente financeiramente significa ser capaz de
comprar e manter sozinho tudo o que for necessário para sua sobrevivência, o que inclui se
alimentar, lavar roupas, pagar contas, fazer escolhas, cuidar dos filhos, entre outros.
O terceiro ponto é que este primado da independência não tem mais se aplicado somente
a um casal, mas a toda pessoa adulta, seja de qual gênero for. Ser adulto, a grosso modo, é ter
um trabalho que pague as contas, morar sozinho ou autonomamente, e não depender de
ninguém.
Não foi sem razão que evitei recorrer a autores que confirmassem as afirmações e
descrições acima. O objetivo era discorrer sobre o senso comum. Sobre um modo de viver que
leva a escolhas pautadas em comportamentos tidos como naturais, mas que na verdade são
muito recentes e estão trazendo sequelas de múltiplas ordens. Trata-se de mais uma vertente
pela qual é possível adentrar a questão do imperativo individual-capitalista moderno, ampliada
pela ideia de meritocracia. Pode-se citar que o sonho das classes mais privilegiadas vai mais

57
Certa vez, li em algum lugar que um grande percentual da poeira que varremos das casas é composta
por células mortas de nossos próprios corpos. Não tenho agora como verificar a veracidade desta
informação, e nem sinto necessidade. Trago aqui como uma imagem simbólica: nosso próprio corpo vai
se espalhando pelo chão, paredes e ar de nossas casas. Quando varridas, ajudam a compor o
macromundo...
58
Não importando o formato do casal na contemporaneidade, ou seja, independente de questões de
gênero e sexualidade.
101

além na busca da individualidade: quartos com computadores e televisão, banheiros exclusivos,


quando não também varandas de uso individual. Isso porque o modo como as casas e as cidades
têm sido construídas, bem como a maneira como o uso das tecnologias se desenvolveu, não
favorecem o convívio social, mas sim o isolamento, cada vez mais gritante entre os humanos
deste século. Ao mesmo tempo em que as pessoas estão cada vez mais atreladas às mídias
sociais e entram em contato com pessoas e acontecimentos de todas as partes do globo, estão
mais distantes do próximo, dos vizinhos, dos familiares. As refeições em família quase que
desapareceram, o delivery substitui pouco a pouco o cozinhar. Este corpo que explora novos
limites, que mostra e vive os sinais do colapso social, habita um espaço com outros, mas de
maneira distante deles. O projeto do capitalismo que prima pela busca por uma individualidade
autossuficiente levou a um viver em profunda solidão, mesmo que acompanhados. A vida
cotidiana perdeu seu brilho diante das modernas exigências de trabalho e consumo59.
Um movimento recente chamado Cohousing60 tem tentado reverter este dado histórico.
Começam a ser construídas pequenas comunidades de convivência, mesmo em grandes centros
urbanos. Trata-se de moradias onde um grupo de pessoas, não necessariamente da mesma
família, compartilham espaços de convívio como cozinha, lavanderia, sala de jogos ou de
televisão com seus vizinhos. A teoria é de que quando as pessoas compartilham as tarefas do
cotidiano e as refeições, outros laços de intimidade são criados. Começam a espontaneamente
acontecer movimentos de ajudas e parcerias mútuas – de convivência. As tarefas do dia a dia
são compartilhadas. Cada pessoa se dedica a cozinhar e cuidar dos espaços para outros em
alguns dias por mês e, em troca, recebe o mesmo cuidado em dias de repouso, tudo de forma
horizontal e consensual. Esta parece uma releitura das grandes famílias extensas que ainda
podem ser encontradas em comunidades menos urbanizadas, mas agora o trabalho não é mais
dividido por classificações de gênero ou hierarquia.
Também se ampliam os espaços de coworking. Este é um exemplo de que estamos
criando novas maneiras de viver que resgatam de forma potente a importância do grupo social
para a sobrevivência humana. O isolamento causado pela premissa do individualismo é pesado
demais e a partir de iniciativas como esta, começa a renascer um sentimento de compromisso
individual com o coletivo. Talvez seja possível, ainda neste século, expandir o sentido de um
comprometimento humano com um coletivo maior, multiespécies, aliado a ideia de

59
Reforço que falo do projeto de vida do privilégio, que claramente também influencia os moradores da
periferia e das favelas. Esses, sem condições de viver esse modelo, compartilham quartos, comem juntos
e, financeiramente, até os idosos com suas aposentadorias acabam sendo os provedores da família. A
privacidade é uma exceção nessas comunidades.
60
Para saber mais sobre este conceito: <https://www.cohousing.org/node/5056>.
102

interdependência: expandir os ditames do EU-TU para o NÓS. Acredito que essa possibilidade
está ganhando forma na medida em que algumas narrativas que transcendem as separações as
quais estamos confinados emergem tanto no âmbito da ciência como no senso comum.

2.2.1 O mundo como imersão ou ao longo de...

O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto
ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é
inesgotável. “Há um mundo”, ou “há o mundo”; dessa tese constante de minha
vida não posso nunca inteiramente dar razão (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
14).

No sentido de expandir o conceito de casa para me aproximar ao conceito de mundo61,


peço licença mais uma vez para um relato pessoal: quando tinha 14 anos, fiz uma viagem para
o Chile com minha família. Era a tão sonhada oportunidade de ver a neve. Fomos a Pucon,
cidade que fica ao sul de Santiago. Um pequeno vilarejo que gira em torno de uma majestosa
presença, um vulcão ativo chamado Villarica. Durante os dias de inverno chilenos, ele quase
não aparecia. Era somente uma gigantesca massa mais branca que beirava o horizonte. Porém,
à noite, quando tudo escurecia, pairava no céu somente uma breve luz que se movia no topo de
onde estava a grande montanha. A luzinha se expandia e se recolhia, ritmicamente. Demorei
um tempo para compreender do que se tratava. Fiquei maravilhada no momento em que, ali,
aos 14 anos, eu tive certeza de que a Terra respira.
Gostaria que esta imagem de fundo acompanhasse a leitura que se segue. Isto porque
tentarei apresentar o pensamento inovador de dois autores em particular. Tanto Tim Ingold
como Emanuele Coccia, um antropólogo e o outro filósofo, descrevem o mundo e a participação
humana nele de uma maneira que é ao mesmo tempo inquietante e intuitiva. Algo semelhante
ao que senti ao pé daquele vulcão.

61
“Hoje, com o processo de mundialização e de encontro de todas as culturas, observamos, como nunca
antes na história do pensamento, que a palavra grega ethos assume seu pleno sentido. Para os gregos,
ethos significava fundamentalmente a moradia humana, não em sua materialidade, mas em seu sentido
mais existencial, como aquela porção de natureza (physis) que reservamos para nós, para a organizarmos
e a cuidarmos de tal modo que se transforme em nosso habitat, o lugar onde “nos sentimos em casa”,
protegidos e vivendo em harmonia com todos que nela habitam, com os vizinhos e com a natureza
circundante” (BOFF, 2018, p. 119)
103

Tim Ingold dedica sua obra a trazer vida de volta aos pensamentos conceituais
antropológicos. Usa a imagem de um rio e afirma que não podemos mais nos contentar em
habitar as margens, mas nos perceber submersos no fluxo das águas (INGOLD, 2011, p. 41).
Neste processo, inicia investigando o conceito de produção, passando pelos conceitos de
história e habitação, até chegar ao conceito de linhas.
Constrói uma argumentação que passa pelos pensamentos de Marx, Engels e Sahlins,
os quais explicam a vida humana como um caráter finalístico, ou seja, como a primazia humana
de produção com base em um planejamento para um fim. Segundo Ingold, estes autores
diferenciavam o ser humano dos outros animais através do argumento de que os não-humanos
não trabalham em seu ambiente a fim de mudá-lo (INGOLD, 2011, p. 28). Marx e Sahlins
tentavam ligar diretamente a produção ao consumo, e debatiam sobre quem vinha primeiro. No
entanto, Marx aponta para o fato de que o trabalhador também se modifica através da
experiência da produção. A partir disto, Ingold destaca a qualidade de movimento atentivo da
produção de um ser consciente como um vir a ser, inerente ao ato de produzir – ato de trazer à
existência. Neste sentido, “a produção ‘deve ser entendida intransitivamente, não como uma
relação transitiva de imagem com objeto” (INGOLD, 2011, p. 29). Se não há uma
intencionalidade pré-existente a própria ação,

já não há qualquer motivo para restringir as fileiras dos produtores aos seres
humanos apenas. Produtores, tanto humanos como não humanos, não tanto
transformam o mundo, imprimindo seus projetos preconcebidos sobre o
substrato material da natureza, quanto fazem a sua parte dentro da
transformação de si mesmo no mundo. Crescendo no mundo, o mundo cresce
neles. E com isso, a questão acerca da produção dá lugar a outra, desta vez
acerca do sentido da história (INGOLD, 2011, p. 30).

A partir desta concepção de mundo, na qual as transformações acontecem de forma


sincrônica tanto no ambiente como no habitante, Ingold faz uma discussão no sentido de
desconstruir a diferenciação de valor entre a história dos humanos e a dos não-humanos. Aponta
para contradições e paradoxos inerentes a algumas afirmações que contribuem para uma
concepção de mundo que destaca o humano da natureza, bem como para a superioridade da
existência humana sobre todas as outras formas. Conclui que há uma premência de um mundo
orgânico onde cada ser contribui para a existência de outros.

Ademais, sendo certo de que nem todos os produtores são humanos, é fácil
inverter o argumento e mostrar como vários não humanos contribuem, em
ambientes específicos, não apenas para seu próprio crescimento e
104

desenvolvimento, mas também para o crescimento e desenvolvimento dos


seres humanos. Segue-se que a vida social humana não é dividida em um plano
separado do resto da natureza, mas faz parte do que está acontecendo em todo
o mundo orgânico. É o processo no qual seres vivos de todos os tipos, naquilo
que fazem, constituem as condições de existência uns dos outros, tanto para si
próprios quanto para as gerações subsequentes [...]. É que a variação sob
seleção natural, embora, sem dúvida, ocorra dentro da evolução, não é, em si
mesma, um processo evolucionário (INGOLD, 2011, p. 32).

Este processo evolucionário, conforme Ingold descreve, não cabe mais na teoria
evolucionista darwiniana que supõe a forma orgânica como preexistente aos processos que a
originaram. Ele enfatiza “a primazia do processo sobre o produto; da vida sobre as formas que
ela assume, sejam secretas (como imagem mental ou genótipo) ou abertas (como objeto
material, ou fenótipo) (INGOLD, 2011, p. 33). Isso transforma totalmente a maneira como a
ciência vem explicando a existência e nossas relações, pois ao voltarmos nossa atenção para o
processo de vida e de estar vivo, o que emerge é o puro movimento ou o puro mover-se
entrelaçado.

Há devires humanos, devires animais, devires vegetais, e assim


sucessivamente. Conforme se movem juntos através do tempo e encontram-
se uns com os outros, esses caminhos se entrelaçam para formar uma imensa
e contínua tapeçaria de evolução. A antropologia, portanto, é o estudo dos
devires humanos conforme desdobram-se dentro da trama do mundo. E foi
essa ideia de história, evolução e vida social como tecidas, e não como feitas
por humanos, ou para humanos, que me levou à habitação (INGOLD, 2011,
p. 34).

Ingold enxerga os atos de habitar e construir como movimentos complementares. Algo


que é inerente e próprio ao desenrolar da vida. Pois todo habitante imerso neste mundo como
ele se dá, vive, dá à vida e recebe da vida de forma entrelaçada. Habitar seria tecer a vida ao
mesmo tempo em que ela é tecida. Citando Marx, Engels e Heidegger, Ingold afirma que habitar

Significa antes essa imersão dos seres nas correntes do mundo da vida, sem a
qual atividades como concepção, construção e ocupação simplesmente não
poderiam acontecer. Conforme os indivíduos produzem suas vidas, declaram
Marx e Engels (1977:42), assim eles o são [...]. ‘Eu moro, você mora’ é
idêntico a ‘eu sou, você é’ (Heidegger, 1971:147) [...] ‘Apenas se formos
capazes de habitar, só então podemos construir’ (p.160) (INGOLD, 2011, p.
34).

Dentro desta perspectiva da habitação, construir seria um movimento de “trabalhar com


materiais e não apenas produzi-los, e de trazer forma à existência e não meramente traduzir do
105

virtual para o real” (INGOLD, 2011, p. 35, grifos do autor). Não há, como considerava
Heidegger, uma primazia da criação da mente humana sobre o ato de construir; o que há é a
existência enquanto habita, enquanto transforma e é transformada ao longo de seu percorrer no
mundo. Neste ponto, Ingold está falando de qualquer forma de existência:

Eu mesmo não me filiaria a uma divisão tão aguda entre humano e animal,
mundo e meio ambiente, ser e existência. Ao contrário, um dos meus objetivos
ao desenvolver a perspectiva da habitação era demonstrar que organismo-e-
meio-ambiente e ser-no-mundo oferecem pontos de partida para nosso
entendimento que são ontologicamente equivalentes, e dessa maneira unir as
abordagens da ecologia e da fenomenologia dentro de um único paradigma
[...] Tanto os seres humanos, quanto os não humanos, eu objetaria, realizam-
se habilmente dentro e através de seu entorno, empregando capacidades de
atenção e resposta que têm sido, pelo seu desenvolvimento, encaradas através
da prática e da experiência (INGOLD, 2011, p. 36).

Não há, então, como o humano se apartar do mundo para conhecê-lo, nem fisicamente
nem virtualmente. Estamos, como os animais, imersos no mundo. Ingold afirma que após ter
compreendido o processo de habitação a partir de Heidegger, passou a pensar sobre a teoria da
percepção a partir de James Gibson, e que dela obteve a compreensão de que a percepção se dá
fundamentalmente pelo movimento de um organismo inteiro enquanto percorre seu ambiente
(INGOLD, 2011, p. 37). Porém, este ambiente do qual Ingold fala não se trata de algo rígido,
pronto para ser percorrido por seres móveis. Trata-se do mundo todo, ele mesmo, em pleno
fluir:

Precisamos de um entendimento diferente do movimento: não uma


observação das superfícies duras de um mundo no qual tudo já está definido,
mas uma emissão juntamente com as coisas nos processos mesmos de sua
geração; não o trans- porte (carregar através) do ser contemplado, mas a
produção (levar adiante) do perpétuo devir” (INGOLD, 2011, p. 37).

Na busca por estabelecer uma sinergia entre ser e existir – habitar e ser habitado –
em/por um mundo que se move ao mesmo tempo em que é movido, que provoca movimento
ao mesmo tempo em que o movimento lhe é provocado, Tim Ingold chega ao pensamento de
Merleau-Ponty. Através de estudos fenomenológicos sobre a percepção, um amplo
aprofundamento sobre o que significa estar vivo, este autor chama atenção para o fato de que
existe um mundo, também vivo, a ser percebido, e que o processo mesmo da percepção se trata
de uma mistura. A conclusão de Merleau-Ponty, nas palavras de Ingold é:
106

[...] uma vez que o corpo vivo está primordial e irrevogavelmente costurado
no tecido do mundo, nossa percepção do mundo não é nem mais nem menos
do que a percepção do mundo de si mesmo – em e através de nós. Esta é só
mais uma maneira de dizer que o mundo habitado é sensiente [...]. Ser
sensiente [...] é abrir-se a um mundo, render-se ao seu abraço, e ressoar em
seu ser interior as suas iluminações e reverberações. Banhado na luz,
submerso no som e arrebatado em sentimento, o corpo sensiente, ao mesmo
tempo percebedor e produtor, traça caminhos do devir do mundo no curso
mesmo da contribuição para a sua contínua renovação” (INGOLD, 2011, p.
38, grifos do autor).

Na perspectiva de Ingold, todo e qualquer ser vivo é um percebedor que transforma e é


transformado pelo mundo ao longo de seu caminhar e de caminhos: “Ser, eu diria, não é estar
em um lugar, mas estar ao longo de caminhos. O caminho, e não o lugar, é a condição
primordial do ser, ou melhor, do tornar-se” (INGOLD, 2011, p. 38). Então, passa a suspeitar
que o conceito de habitação não é mais suficiente para descrever a maneira como humanos e
não humanos caminham no mundo. Postula que “cada ser tem, por conseguinte, que ser
imaginado como a linha do seu próprio movimento ou – mais realisticamente – como um feixe
de linhas” (INGOLD, 2011, p. 38).
Considero que essa maneira de descrever a relação dos seres no mundo traz como
imperativa uma outra qualidade de cuidado. Cuidar não seria mais um ato voluntário consciente,
ou um modo de agir proveniente de artifícios dogmáticos ou morais. Pelo contrário, o ato de
cuidar pode ser encarado como o próprio movimento de existir daquele que se percebe não mais
como um “recipiente para a vida” (INGOLD, 2011, p. 39), contido e delimitado em si mesmo.
É a partir do pensamento de Bergson, posteriormente ampliado pelo pensamento de Deleuze e
Guattari, que Ingold passa a ver a “vida como um fenômeno de linhas” que formam trajetórias
que duram por um tempo. Estas linhas formam feixes de linhas que, em devir, se entrelaçam62.
Sendo assim “o entrelaçamento dessas trajetórias que sempre se estendem compreende a textura
do mundo” (INGOLD, 2011, p. 41). Então, “a nossa tarefa não é fazer um balanço do seu
conteúdo, mas seguir o que está acontecendo, rastreando as múltiplas trilhas de devir, onde quer
que elas conduzam” (INGOLD, 2011, p.41). Este devir é um transbordamento que permite
perceber um entrelaçamento destas linhas a ponto de formar uma malha (INGOLD, 2018).

62
“Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de
desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que as linhas
segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de figa faz parte do rizoma. Estas linhas não
param de se remeter umas às outras. É por isso que não se pode contar com um dualismo ou uma
dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p.
25-26).
107

Esta percepção do mundo como algo vivo e sensível pode mudar os nossos parâmetros
de cuidado na medida em que nos coloca como participantes e dependentes do ambiente que
nos cerca. Neste ponto introduzo o pensamento de Emanuele Coccia e sua proposta de uma
metafísica da mistura a partir da observação do modo de viver e provocar vida das plantas.
Trata-se de uma interessante argumentação que parte da descrição das plantas como os seres
mais aderidos ao mundo circundante. Ele parte do modo de vida dos vegetais para contemplar
o mundo em sua totalidade, um mundo que coincide com sua própria substância (COCCIA,
2018, p. 13).

A sobrevivência da quase totalidade dos seres vivos pressupõe a existência de


outros viventes: toda forma de vida exige que já haja vida no mundo. Os
homens precisam da vida produzida pelos animais e pelas plantas. E os
animais superiores não sobreviveriam sem a vida que trocam reciprocamente
graças ao processo de alimentação. Viver é essencialmente viver da vida de
outrem: viver na e através da vida que outros souberam construir ou inventar.
Há uma espécie de parasitismo, de canibalismo universal, própria ao domínio
do vivente: ele se alimenta de si mesmo, só contempla a si mesmo, precisa
disso para outras formas e outros modos de existência. Como se a vida em
suas formas mais complexas e articuladas nunca passasse de uma imensa
tautologia cósmica: ela pressupõe a si mesma, só produz a si mesma. É por
isso que a vida parece só poder se explicar a partir de si mesma (COCCIA,
2018, p. 14).

Apontando para a primazia da vida como formadora do que chamamos mundo, Coccia
segue explicando sua teoria sobre a imersão de todos os seres e toma o exemplo das plantas
para quebrar a hierarquia com que costumamos classificar valorativamente os diferentes modos
de vida que habitam e vivificam nosso planeta. Segundo este autor, foi a partir do surgimento
das plantas e do impacto que elas foram capazes de produzir no clima do planeta, que a vida
em terra pôde se proliferar e se diversificar. Faz lindas descrições sobre a magia inerente ao
processo das transformações gasosas que, com o tempo, acabaram por gerar a nossa atmosfera
– mundo no qual estamos imersos e ao qual somos parte e conteúdo, graças ao que se
desenvolveu de forma explícita nos animais terrestres e que chamamos de respiração.

Tornando possível o mundo de que são parte e conteúdo, as plantas destroem


a hierarquia topológica que parece reinar sobre o cosmos. Demonstram que a
vida é uma ruptura da assimetria entre continente e conteúdo. Quando há vida,
o continente jaz no conteúdo (e é, portanto, contido por ele) e vice-versa. O
paradigma dessa imbricação recíproca é o que os antigos já nomeavam sopro
(pneumà). Soprar, respirar, significa de fato fazer esta experiência: o que nos
contém, o ar, se torna conteúdo em nós, e, inversamente, o que estava contido
em nós se torna o que nos contém (COCCIA, 2018, p. 17).
108

Coccia postula de maneira perceptível e sensível, a identidade entre o mundo e a


natureza. Pois só fomos, como humanos, capazes de criar tudo o que criamos porque já havia
um lugar ao qual pertencíamos e que podíamos modificar, teorizar sobre, e até mesmo devastar.
Neste sentido, não há nada aqui que não seja natural. Não há nada que esteja desconectado da
natureza.

Essa identidade entre mundo e natureza está longe de ser banal. Pois natureza
designava não o que precede a atividade do espírito humano, nem o oposto da
cultura, mas o que permite a tudo nascer e devir, o princípio e a força
responsáveis pela gênese e pela transformação de todo e qualquer objeto,
coisa, entidade ou ideia que existe e existirá. Identificar natureza e cosmos
significa antes de tudo fazer da natureza não um princípio separado, mas
aquilo que se exprime em tudo o que é. Inversamente, o mundo não é o
conjunto lógico de todos os objetos, nem uma totalidade metafísica dos seres,
mas a força física que atravessa tudo o que se engendra e se transforma. Não
há nenhuma separação entre a matéria e o imaterial, a história e a física. Num
plano mais microscópico, a natureza é o que permite estar no mundo, e,
inversamente, tudo o que liga uma coisa ao mundo faz parte de sua natureza
[...]. Todo conhecimento cósmico é um ponto de vida (e não apenas um ponto
de vista), toda verdade é o mundo no espaço de mediação do vivente [...]. Para
conhecer o mundo é preciso escolher em que grau da vida, em que altura e a
partir de que forma se quer olhá-lo e, portanto, vivê-lo (COCCIA, 2018, p. 22-
25).

Se todo conhecimento é um “ponto de vida”, ou seja, abarca um modo de viver, podemos


tomar todas as formas de vida, em si, como uma forma de conhecimento. Aquele vulcão, aquela
árvore de cinco mil anos ou a erva daninha que teima em crescer na fresta do asfalto, aquela
bactéria que vive na escuridão abissal do mar, aquele homem que vive uma história em qualquer
lugar, aquele elefante na África ou o meu gato – todos dotados de um conhecimento, de um
modo de viver, se manter vivo e transformar o seu entorno – todos legítimos de existência e
contribuintes, como forma e conteúdo, para que a vida se multiplique. Todos portadores de uma
verdade, todos caminhantes deste mundo63.

Isso porque toda verdade está ligada a toda outra verdade, assim como toda
coisa está ligada a toda outra coisa. Essa ligação, essa conspiração universal
das ideias, das verdades e das coisas, é, aliás, aquilo a que chamamos mundo:

63
Um exemplo bonito desse ser habitado pelo mundo encontramos no depoimento de Ailton Krenak,
no livro Encontros (2015). Perguntado se havia natureza nele em São Paulo, ele responde: “Ela existe
em cada uma das células do meu corpo. Ela existe em cada um dos pequenos, no ar que eu respiro,
naquelas plantinhas que estão ali no quintal, na chuva que cai, nos raios de sol que atravessam todos
esses concretos e cimentos e passam por este buraquinho da janela azul. Ela bate com a mesma força e
intensidade com que faz uma cachoeira lá no meio do Amazonas ou uma geleira no Alaska. Porque a
natureza é a vida mesmo. Não há natureza apenas num parque, num jardim” (KRENAK, 2015, p. 83).
109

o que atravessamos e o que nos atravessa a cada instante, cada vez que
respiramos. Se os conhecimentos querem permanecer mundanos,
conhecimentos e saberes deste mundo, deverão respeitar sua estrutura. No
mundo, tudo está misturado com tudo, nada está ontologicamente separado do
resto. O mesmo ocorre com os conhecimentos e com as ideias. No mar do
pensamento, tudo comunica com tudo, cada saber penetra e é penetrado por
todos os outros. Todo e qualquer objeto pode ser conhecido por toda e
qualquer disciplina; todo e qualquer conhecimento pode dar acesso a todo e
qualquer objeto (COCCIA, 2018, p. 115).

Neste sentido, não me parece mais o bastante afirmar que a Terra é um ser vivo e que
respira. Sinto necessidade, porque percebo em meu corpo e posso alcançar com as ideias, que
a Terra é a vida.

2.2.2 Moana

-Pai, a mãe morreu?


– Quatrocentas vezes.
– Como?
– Já vos disse quatrocentas vezes: a vossa mãe morreu, morreu toda, faz de
conta que nunca esteve viva.
– E está enterrada onde?
– Ora, está enterrada em toda parte.
(COUTO, 2016, p.31-32).

Ainda com o intuito de investigar o surgimento de novas narrativas sobre o mundo, a


Terra e a inserção do humano na linha do estar vivo, passo aqui a contar a história de um filme
infantil da Walt Disney, lançado no Brasil no início de 2017, chamado Moana: um mar de
aventuras. A história começa com uma lenda, uma mitologia de origem narrada a um grupo de
crianças pela voz de uma anciã. Ela conta:

No início havia só o oceano, até que a ilha mãe emergiu: Te Fiti. Seu coração
continha o maior de todos os poderes. Podia até criar a vida. E Te Fiti
compartilhou com o mundo, mas com o tempo, alguns cobiçaram o coração
de Te Fiti, achando que quem o possuísse teria o poder da criação.
Então, um dia, o mais ousado de todos, atravessou o vasto oceano para pegá-
lo. Era o semideus do vento e do mar. Era um guerreiro, um trapaceiro. Um
ser transmorfo que podia mudar sua forma com o poder do seu anzol mágico.
Seu nome era Maui.
110

Sem o seu coração, Te Fiti começou a desmoronar causando uma terrível


escuridão. Maui tentou escapar, mas se deparou com alguém que também
queria o coração. Te Ka, uma demônia da terra e do fogo.
Maui foi derrubado do céu e nunca mais foi visto. Seu anzol mágico e o
coração de Te Fiti se perderam no mar.
E até hoje, mil anos depois, Te Ka e os demônios das profundezas ainda
buscam o coração se escondendo na escuridão que continua a se espalhar,
afastando nossos peixes, drenando a vida de ilha a ilha, até que cada um de
nós seja devorado pela boca sedenta de sangue da morte inescapável.
Mas um dia o coração será achado por alguém que irá além dos nossos recifes,
achará Maui, o levará para além do oceano para restaurar o coração de Te Fiti
e salvará a todos nós (MOANA..., 2017).

O desenrolar da trama já está inserido no início, quando poderíamos supor que se trata
de mais um conto infantil da Disney que fala de príncipes e princesas que salvam o mundo de
seres nefastos. Porém, considero que nesta história estão inseridas profundas transformações
sociais que já estão em curso aqui e ali, mas que ao serem reverberadas pela força de “formadora
de opinião” de escala global como o cinema americano, ganham status de uma nova verdade
sendo construída no senso comum.
Moana é a filha do chefe de uma tribo da Oceania. Sua comunidade vive em uma ilha
fértil protegida por recifes e aparentemente isolada do resto do mundo. Não fica claro em que
época exata a história se dá, mas definitivamente não é na atual.
Moana, ainda bem pequena, demonstra um encantamento em relação ao mar e o mar em
relação a ela. Uma das cenas mais bonitas acontece logo após a narração do mito. Moana,
fascinada pela história contada pela avó, despista seu pai e vai para a beira da praia. A água
começa, então, a brincar com ela. O mar se abre para recebê-la enquanto ela é atraída por
conchas que aparecem sempre um pouco mais adiante, até que uma pedra verde com uma
espiral gravada no centro é atraída, ou levada, até a mão da menina. Porém, subitamente a magia
é interrompida pelo Pai de Moana que chama por ela. As águas então a levam de volta à areia,
mas a menina acaba soltando a pequena pedra ao ser carregada pelo pai para longe da praia.
Como pai, protetor e carinhoso, busca evitar a todo custo que a menina ouça o chamado das
águas.
As cenas seguintes dão conta de explicar o modo de vida daquele povo na ilha enquanto
o chefe afirma que lá tem tudo o que precisam para viver, mas também demonstram o conflito
interno vivido por Moana enquanto vai crescendo dividida entre o dever de ser chefe e sua
fascinação pelo mar e pelas histórias contadas pela avó, anciã tida como louca.
Moana, agora adolescente, passa um tempo tentando se adequar às tarefas e desejos que
cabem a um chefe. Desenvolve uma capacidade de liderança e resolve uma série de problemas
111

espalhando generosidade. Seus dois grandes companheiros são um filhote de porco e um galo
franzino que come pedras e não se adequa às características que se espera de um frango.
A vida dos habitantes da ilha parecia se desenrolar muito bem, até que a colheita de
cocos começa a apodrecer e os pescadores não encontram mais peixes nas redondezas. Moana
sugere, então, que eles passem a pescar além dos recifes, em alto mar. Esta possibilidade cria
um conflito entre pai e filha. Ele relembra a regra máxima da ilha que proíbe qualquer um de
ultrapassar os limites que os protegem. Moana se cala inconformada diante da autoridade
paterna. Pensa que o pai não a compreende, como se fosse uma típica adolescente. Então,
acontece um diálogo com sua mãe, que pede para a garota compreender as atitudes do pai.
Conta que ele mesmo quando jovem tinha esse ímpeto curioso de cruzar os recifes, mas que no
dia que o fez foi surpreendido por uma terrível tempestade. Ondas gigantes levaram seu grande
amigo que o acompanhava na aventura, e o pai não conseguiu salvá-lo. Com uma fala doce, a
mãe explica que a dor da culpa pela morte do amigo fez com que o pai, chefe, tentasse proteger
a todos através da lei máxima de proibir a navegação, e declara: “Às vezes o que queremos ser
e o que queremos fazer simplesmente não é o nosso destino” (MOANA..., 2017).
Após um breve período de considerações internas, Moana e seu amigo porco são
tomados por um impulso, pegam uma pequena embarcação e tentam cruzar os recifes. Porém,
são arremessados ao fundo do mar por uma onda e são levados de volta à praia, sobrevivendo
somente com escoriações leves ao que poderia ter sido um grave acidente. O porco foge
correndo de medo e é a vez da avó, guardiã dos segredos da ilha, entrar em cena: “Não sei o
que aconteceu, mas não coloque a culpa no porco” (MOANA..., 2017). A menina se levanta
tentando esconder seu machucado, mas a avó o aponta. Moana pergunta se ela irá contar ao seu
pai e a avó diz: “Eu sou a mãe dele, não preciso contar nada” (MOANA..., 2017). Neste ponto,
uma outra dinâmica hierárquica é colocada. Existe uma sabedoria a qual os chefes da tribo não
têm acesso. Aliviada, a menina conclui que o pai está certo e que deve mesmo assumir a função
de chefe. A avó, provocativa, se encaminha para o mar e é cercada por arraias que parecem
dançar para ela. A menina questiona o porquê de a avó não tentar impedi-la. Mas a avó continua
brincando e dançando com os seres marinhos. Somente afirma que quando morrer vai voltar
como uma delas. Moana pergunta porque ela está agindo como maluca e a resposta é
maravilhosa: “Eu sou a louca da aldeia, este é meu trabalho” (MOANA..., 2017).
Após provocar o interesse da neta, a anciã mostra a ela o grande segredo que foi
escondido de todos da vila. As duas se encaminham até uma caverna onde se encontram
guardados grandes barcos. Esta memória Moana terá que resgatar sozinha conduzida pelo
próprio destino. No passado, os habitantes daquela ilha tinham sido grandes navegadores,
112

cruzavam os mares com coragem e destreza. Porém, após Maui – o semideus – ter roubado o
coração de Te Fiti e a escuridão ter começado a se espalhar, os chefes da tribo resolveram
esconder os barcos e se abrigar atrás dos recifes como medida de proteção. A avó afirma:
“Agora esquecemos de quem realmente somos e a escuridão continua se alastrando, espantando
os peixes e drenando a vida de ilha após ilha” (MOANA..., 2017). Neste momento a cena mostra
que a escuridão finalmente chegou à ilha em que elas viviam supostamente protegidas, e a anciã
emenda: “Mas um dia, alguém vai cruzar os recifes, achar Maui e restaurar o coração de Te
Fiti” (MOANA..., 2017). Então ela entrega a pequena pedra verde com uma espiral nas mãos
de Moana. Aquela que lhe havia sido entregue pelas águas quando pequenina. Com a pedra na
mão, a menina recebe do mar um carinho; consegue agora se comunicar com as águas e sua
missão fica clara: o oceano a havia escolhido para cruzar o mar e restaurar o coração de Te Fiti.
Moana tenta levar essa ideia para uma reunião do conselho da aldeia e inicia uma
discussão com seu pai, porém o debate é interrompido quando descobrem que a avó está
morrendo. A anciã, em seu leito de morte, pede que a neta vá e cumpra seu destino. Ela hesita
e diz que não deixará a avó sozinha agora. Mas a avó garante que a acompanhará na viagem.
Segue-se uma linda cena de Moana zarpando em um pequeno barco e sendo guiada por
uma gigantesca arraia brilhante, sua avó. Posteriormente, a menina descobre que também segue
em companhia de seu galo maluco.
A saga ganha ares de aventura em que parece que tudo vai dar errado até que Moana
pede uma ajuda ao oceano, e, após uma tempestade, ele acaba a levando para o exato lugar onde
ela encontra Maui. Neste momento, compreendemos que o semideus roubou o coração de Te
Fiti para entregá-lo a humanidade, para que ela tivesse o poder da criação em si mesma e, claro,
para que ele fosse adorado por isso. Ele passa a se gabar de todos os seus feitos na tentativa de
distrair a menina para prendê-la em uma caverna, enquanto tenta fugir com seu barco sozinho.
Moana consegue escapar e acontece um diálogo no qual a menina tenta convencê-lo a aceitar a
missão de restaurar o coração de Te Fiti e, para isso, ela conta com uma expressa ajuda do
oceano. Maui a deixa na ilha, o oceano a leva para o barco. Ele a joga do barco, o oceano faz
com que ela volte. Ele tenta fugir do barco e o oceano novamente os colocam juntos. Podemos
perceber que na narrativa há uma incrível sinergia de vários elementos da natureza em prol da
vida de todos.
Até que aparecem criaturas, coquinhos vivos, que entram em embate com Moana e Maui
para roubar-lhes o coração. Este é o momento que os dois passam a agir juntos e uma parceria
começa a se consolidar.
113

Nessa história, para que o poder de criar a vida de forma ilimitada seja restaurado é
necessário que um homem “semideus” – dotado de poderes mágicos proveniente de um artefato
– e de uma a uma mulher, chefe e não princesa, de uma aldeia que preserva a sabedoria mais
simples ligada aos elementos da natureza. É preciso que os dois se unam e usem suas sabedorias
e poderes de forma complementar.
Seguem-se alguns diálogos em que Maui tenta diminuir Moana com jargões comuns
ligados à suposta inferioridade feminina. Ele tenta compreender porque um povo enviaria uma
menina para uma missão tão importante. E ela conta que foi o oceano que a enviou. Ao longo
desta longa conversa que reconstitui as relações de poder entre um homem e uma mulher, entre
um semideus e uma humana, entre animais e elementos da natureza, entre seres do bem e seres
monstruosos, os dois protagonistas vão enfrentando grandes perigos em busca do anzol mágico
de Maui. Só é possível vencer Te Ka – o monstro que espalha a escuridão – com o auxílio deste
artefato, e Maui só consegue reavê-lo graças à ajuda de Moana, e aí a conversa vai se
transformando. A menina começa a ganhar o respeito do semideus. Porém, isso acontece porque
ele vai perdendo a autoestima, mesmo em posse do anzol. Maui não consegue mais manejá-lo
como antes. Assim, começa a duvidar de sua capacidade de enfrentar Te Ka.
Os dois acabam por compartilhar suas próprias fragilidades, e essa é a vez de Moana
ajudar seu amigo a ressignificar sua história. Ele conta que não havia nascido semideus. Nasceu
humano e foi rejeitado por sua família, jogado ao mar e depois achado por deuses e
transformado em “Maui”, e então lhe deram o anzol mágico. A partir de aí passou a buscar ser
amado de todas as formas. Entregou o fogo, as ilhas, os cocos à humanidade. Até mesmo roubou
o coração de Te Fiti pensando que isto iria ajudá-los. Todavia, sente que nada é o suficiente.
Ela compartilha que também não sabe porque foi escolhida pelo oceano, mas sente que deve
haver uma razão. Após palavras de conforto de ambos os lados, uma nova aliança é formada.
Uma relação entre um homem e uma mulher que compartilham sentimentos e se apoiam, uma
verdadeira amizade, sem nenhum sinal de romance, em prol do bem de cada um e da vida como
um todo.
Decidem então enfrentar o desafio. Maui deixa que Moana comande o barco e ensina a
ela tudo o que sabe sobre navegação. Um pouco antes de chegarem à ilha pretendida, ele diz a
ela que sabe porque o oceano a escolheu:

O oceano adorava quando eu fazia brotar ilhas, porque seus ancestrais


velejavam para encontra-las. As terras novas, as aldeias novas, era a
água que as conectava. Se eu fosse o oceano, eu iria procurar uma não
princesa de cabelos cacheados para recomeçar (MOANA..., 2017).
114

Moana agradece e entrega o coração à Maui e diz: “Vá salvar o mundo” (MOANA...,
2017). Contudo, não era ele quem deveria salvar o mundo. Essa tentativa contra o enorme
monstro de lava chamado Te Ka fracassa e o anzol mágico de Maui acaba gravemente avariado.
Ele então desiste da missão afirmando não ser ninguém sem seu artefato. Iniciam uma discussão
de culpabilização mútua. Ela diz que eles só estão nessa situação porque ele roubou o coração.
Ele diz que só estão ali porque o oceano disse a ela que era especial e ela acreditou. A discussão
se encerra com Maui afirmando que o oceano escolheu errado e indo embora na forma de um
falcão.
Moana, agora sozinha no meio do nada, pergunta ao oceano porque ela foi escolhida.
Pede ao mar que escolha outra pessoa e lhe entrega o coração. Porém, assim que o coração
submerge, surge no horizonte a gigantesca cintilante arraia, que se aproxima do barco e aparece
como o espírito da Avó de Moana. Segue-se um diálogo no qual a avó dá a menina o direito de
escolha. Afirma que estará com ela por onde for. Acontece um movimento de resgate de missão
e pertencimento. A menina percebe que não está sozinha. É acompanhada por sua avó e por
todos os seus ancestrais. Reafirma seu nome: Moana de Motunui! Mergulha e vai ao fundo do
oceano para pegar novamente o coração. Retorna ao barco, agora habitada por uma força de
propósito de um povo inteiro e parte para sua grande aventura.
A menina e seu pequeno barco chegam à ilha onde vive a terrível Te Ka. Pensa que
precisa passar pelo monstro para chegar ao local destinado ao coração. Após uma série de
embates e manobras, quando Te Ka está prestes a acertar o barco, Maui reaparece e salva a
menina. Moana se surpreende e, aliviada, agradece. O semideus olha para ela e diz: “Vá salvar
o mundo!” (MOANA..., 2017).
Ajudada também pelo oceano, Moana finalmente consegue chegar ao local que acredita
haver uma espiral, mas não há nada mais lá, apenas a sombra de uma mulher deitada em posição
fetal. Então a menina percebe que a tal espiral está no centro do peito da própria Te Ka. Este
monstro de lava sedento é o próprio corpo de Te Fiti que, subtraído de sua razão de ser, espalha
morte e destruição. É a própria Gaia que, aviltada, se torna intrusa.
Moana compreende tudo. Chama atenção de Te Ka pelo brilho de seu coração e pede
para que o oceano se abra para que o monstro possa de aproximar dela. E assim é feito. Monstro
e menina se reconhecem, se cumprimentam, e o coração é devolvido a seu lugar de origem.
Imediatamente Te Ka começa a se transformar em Te Fiti; seu corpo de forma humana, que
estava pedregoso e quente como lava, começou a brotar em plena diversidade. Suas maravilhas
115

vão aos poucos alcançando todos os pontos da terra. Moana, em reverência, recebe o carinho e
reconhecimento de Te Fiti. Maui recebe um novo anzol mágico.
Essa história voltada para crianças se mostra como um conto contemporâneo que
promete se tornar um clássico. Ouso afirmar que ela pode ser uma releitura, ao molde pagão,
da busca pelo Santo Graal. Uma odisseia que apesar de obedecer a certos ditames da jornada
do herói, que são característicos dos filmes da Disney, carrega alguns elementos novos que
podem ser destacados. Basicamente, os personagens principais lidam com conflitos internos de
tal forma que é difícil distinguir na trama os mocinhos dos vilões. A já tradicional dicotomia
entre bem e mal aparecem como faces de um mesmo ser.
Te Fiti e Te Ka são a mesma pessoa. Uma, com o coração plantado, tem forma humana
com características indígenas e é capaz de criar a vida a partir de si mesma. A outra, desprovida
de coração, transforma-se em um ser monstruoso, raivoso e sedento, capaz de destruir tudo a
partir de sua própria morte, porém é possível notar que mesmo transformada, ela ainda guarda
características da forma humana. Neste ponto é importante também destacar que não é o
coração que tem o poder de gerar vida, mas o coração no lugar certo que faz a vida de, e em Te
Fiti proliferar. A pedra isolada de sua fonte não tem serventia nenhuma. Pelo contrário, a cobiça
pelo dom de proliferar a vida é o que provoca o desequilíbrio.
Maui, um semideus carente e inseguro, pretende ser adorado pelos humanos e faz de
tudo para agradá-los. No entanto, ele deixa de perceber que o poder da vida em si mesma não
pode pertencer somente aos humanos. A vida pertence a ela mesma e ao ser deixado em paz;
prolifera em abundância, diversidade e generosidade criando todos os seres.
Percebo que a história como um todo traz uma tradução de uma perspectiva na qual o
humano não se destaca da natureza nem como superior, nem como isolado. Neste contexto,
Moana também vive um conflito interno: seguir os mandatos de sua cultura ou seguir um
chamado vago que ela não entende bem onde a levará? O que se mostra interessante, a meu ver,
é que a menina é escolhida para salvar o mundo, mas não poderia ter feito isso sozinha. Recebe
a ajuda do oceano, dos animais, de sua avó, de um semideus, visita o mundo dos monstros e
sobrevive a ele etc. Enfim, acontece uma sinergia do mundo para que o equilíbrio seja
restaurado. Tudo isso contado de forma contagiante para crianças, já crescendo imersas em um
novo paradigma interrelacional.
116

2.3 NOSSAS CRIANÇAS

Ignoramos o que é contemplar um dia, somente um dia o espaço puro, onde,


sem cessar, as flores desabrocham. Sempre o mundo, jamais o em-parte-
alguma, sem nada: o puro, o inesperado que se respira, que se sabe infinito,
sem a avidez do desejo. Uma criança aí se perde, às vezes em silêncio, mas é
despertada (RILKE, 2013, p. 67-68).

Houve um momento que, para mim, simbolizou todo o ato: as mães e seus
bebês/crianças subiram na escadaria para cantar #elenao. De repente, no
microfone, uma das mulheres grita por uma criança perdida: “Atenção,
Uimael, sua mamãe está aqui na escada!”. A multidão imediatamente começa
a gritar: “Uimael, Uimael, Uimael”. Longos segundos de espera. Nada do
menino. Alguém então grita no microfone aquilo que, no povaréu da
Cinelândia, parecia impossível: “Pessoal, por favor, abaixa para gente poder
procurar pelo Uimael”. As pessoas foram se abaixando, se agachando no chão,
ficando a uma altura de criança. Uma multidão com altura de criança. Até que
alguém ergueu um guri no colo e estrondou: “Ele está aqui!”. Explosão geral
de alegria. Uma multidão que se agache pelo Uimael: #elenao é sobre isso.
Compaixão sem fim.
(Relato publicado no Facebook)

Cada um de nós, humanos, chegou ao mundo após ter passado um tempo no interior de
uma mulher. Neste período nosso corpo foi formado e alimentado, bem como alguns de nossos
sentidos começaram a despertar. Um bebê na barriga já experimenta o mundo aqui fora, ou seja,
um bebê ainda do lado de dentro já está no mundo. Em minha dissertação de mestrado fiz um
aprofundamento sobre a obra de Winnicott no tocante à espiritualidade do cuidado na relação
mãe-bebê. Sinto que seja necessário retomar alguns pontos para que se possa avançar sobre
uma reflexão acerca das crianças.
Winnicott (1990) afirma que o bebê ainda no útero vive um estado de pré-existência,
algo que pode se aproximar do conceito de devir – um estado de pleno vir a ser. O neném
vivencia uma completa entrega e dependência ao meio, pois, embalado no ventre, não tem ainda
consciência de sua própria existência, nem mesmo da existência do ambiente que o envolve e
lhe oferece o suporte nutricional e emocional necessários para a manutenção de sua vida e
materialização do seu corpo. Olhando aqui de fora, podemos perceber que há uma fusão total
entre o neném e seu meio. “Mas se olharmos através dos olhos do bebê, veremos que ainda não
117

há um lugar a partir do qual olhar [...] Nesse estágio, a unidade é o conjunto meio-indivíduo”
(WINNICOTT, 1990, p. 153). Winnicott chama este estado de não-integração.64

O reconhecimento teórico desse estado de pré-existência totalmente


dependente é central para que se pense como nasce no humano o sentido do
cuidado. Partimos de um estado de confiança primordial por excelência em
relação ao ambiente, no caso a mãe, e seguimos rumo à autonomia, mas nunca
à total independência [...] o estado de dependência possibilita o vir-a-ser na
criança. Este processo consiste basicamente em a criança gradualmente
começar a perceber e se relacionar com o mundo. Então, no início há apenas
uma fusão na existência (GUIMARÃES, 2016, p. 41).

A partir dos pensamentos de Ingold ou Coccia, posso afirmar que a imagem de um bebê
ainda no ventre de sua mãe pode ser encarada como uma forma didática de perceber a amplitude
dessa perspectiva da existência como imersão. O bebê crescendo no ventre está totalmente
fusionado ao corpo da mãe, escuta o som de seus órgãos, é embalado por seus movimentos e
respiração, recebe diretamente todos os hormônios liberados na corrente sanguínea dela e se
comunica fisiologicamente com ela também. No decorrer da gestação, o bebê passa a ser
afetado por estímulos externos e já pode responder rudimentarmente com gestos que podem ser
traduzidos por nós aqui fora como dor e prazer. Além disso, o bebê no útero alterna ciclos de
sono e vigília. Em resumo, o bebê vive lá dentro. Nós, cada um de nós, já viveu um tempo lá
dentro.
O fato de não termos memória desse período de nossa existência e nem mesmo dos
primeiros anos de nossas vidas, faz inferir que a consciência – como a reconhecemos no âmbito
da humanidade – vai se desenvolvendo ao longo dos anos. Ou seja, a criança ainda se encontra
em um estado de desenvolvimento neurológico diferente do dos adultos. Diz-se que se trata de
um estado ainda imaturo.
Ao longo dos primeiros anos da infância cada ser humano vai apreendendo o mundo
que o cerca e passa a desenvolver explicações sobre seu exterior de acordo com a comunidade
em que vive. Vai ganhando e gerando o que chamamos de consciência, e imerso em uma espécie

64
Este estado de fusão total é anterior à integração – quando o indivíduo passa a se perceber como uma
unidade e pode, então, se relacionar com o outro como um não-eu. O autor diferencia o estado de não-
integração do estado de desintegração. A desintegração consiste em uma perda da integração – quando
o ambiente de alguma maneira provoca um rompimento na continuidade de ser do indivíduo e ele passa
a reagir ao ambiente de forma adaptativa, desenvolvendo sintomas e dificuldades relacionais. Ou seja,
a não-integração inerente ao período de pré-existência do indivíduo está ligada a uma plenitude, uma
solidão essencial que nos lança a este paradoxo: tal solidão só pode existir em condição de dependência
máxima (GUIMARÃES, 2016, p. 40-41).
118

de jogo de tentativas e erros, vai se adequando. Pelo senso comum, a tarefa dos adultos que
cuidam de crianças é promover essa adequação através da educação. Seja qual for o formato
que tal educação assuma, a criança vai sendo adaptada através de limites - castigos,
reprimendas, conselhos ou carinhos - mas especialmente através de exemplos. Muitas vezes o
que fica mais marcado nas explicações de mundo das crianças não são as coisas que são ditas,
mas o que elas experimentam em seus corpos e o que vivenciam através de um agudo sentido
de observação e percepção de sutilezas em relação aos adultos. Ou seja, é com base no
“emocionar” adulto que as crianças aprendem. Ou melhor, a primeira camada de imersão das
crianças é o “emocionar” vivido pelos adultos que cuidam dela.
Com base no pensamento de Humberto Maturada e Gerda Vender-Zöller, é possível
afirmar que a educação ocidental está calcada em uma dinâmica de relação de poder, controle,
apego e culpabilização. Algo que os autores chamam de “espaço psíquico da apropriação”
(MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2011, p. 22). Como “espaço psíquico” compreendem
algo que pode se aproximar a ideia de imersão, como uma atmosfera psíquica a qual também
pertencemos, criamos e co-criamos.

Nós, seres humanos, existimos num domínio relacional que constitui nosso
espaço psíquico como âmbito operacional no qual nosso viver biológico, toda
a nossa fisiologia, fazem sentido como forma de viver humano. O espaço
psíquico é o domínio em que ocorre a existência humana como modo de
relacionamento com os outros e consigo mesmo. Este relacionamento
acontece entre seres que existem no conversar. Com efeito, aprendemos a
viver como seres humanos vivendo em tal espaço a multidimensionalidade do
viver humano. Como dizemos, não se ensina às crianças o espaço psíquico de
uma cultura – elas se formam neste espaço (MATURANA; VERDEN-
ZÖLLER, 2011, p. 23).

O termo que Maturana usa para singularizar o espaço psíquico no qual vivemos
atualmente é Patriarcal-Matriarcal, que pode ser explicitado através da imagem de um espaço
psíquico da apropriação, que com outros nomes tem sido abarcado ao longo da tese: este modo
de operar que naturaliza relações de separação, exclusão, hierarquização, dominação e controle.
O autor contrapõe o espaço do Patriarcado-Matriarcado ao espaço Matrístico, onde as operações
relacionais se dariam por cooperação entre os seres e onde, somente aí, pode acontecer o
cuidado como forma de amar.

A emoção que se vive em cada instante do fluir de nosso emocionear65 penetra


todas as dimensões de nosso viver com maior ou menor estabilidade segundo

65
Palavra usada no original.
119

apegos que surjam nela. Medo, cobiça, ambição, inveja, competitividade são
emoções que restringem o olhar e abrem o espaço ao apego. O amar é a única
emoção que expande o olhar em todas as dimensões relacionais e amplia o
ver, o ouvir, o tocar. De fato, como o amar consiste precisamente no abandono
das certezas, das expectativas, das exigências, dos juízos e dos preconceitos,
é a emoção que consiste na realização do caminho do desapego em todas as
dimensões do viver como resultado espontâneo de seu mero ocorrer na
aceitação unidirecional da legitimidade de tudo no viver, inclusive a rejeição
do que não se quer que aconteça (MATURANA; YÁÑEZ, 2009, p. 86).

Voltando ao universo infantil, e a título de resumo do que foi dito antes, pontuo que as
crianças partem de um estado de total fusão com o ambiente e posteriormente se inserem em
um mundo, em uma atmosfera física e psíquica que é anterior a existência delas66; e que todo o
processo da educação visa a adaptação gradual delas ao modo de viver e de se emocionar da
comunidade que as acolhe. E mais, este processo de adaptação e desenvolvimento da
consciência de uma criança costuma ser considerado, por nós adultos, como um processo de
amadurecimento, ou seja, como um dado evolutivo destinado a um fim de normalidade.
Porém, para acrescentar algumas nuances a este debate gostaria de propor algo diferente:
e se pudéssemos deixar de atribuir uma escala de valor aos estágios de desenvolvimento? Se,
ao contrário, fosse possível imaginar que a maneira de ver o mundo que as crianças têm seja
também uma forma de pensamento e que este tem valor? Mais ainda: se pensarmos que
podemos aprender sobre o mundo e sobre nós mesmos ao ouvirmos e convivermos com crianças
sem tentar controlá-las e doutriná-las? Será que podemos levar a maneira como as crianças
percebem e interagem entre si e com o mundo como um modo de ser, como uma verdade que
se tornou estranha a nós?
Faço estas perguntas porque considero que talvez as crianças tenham uma percepção de
sua imersão no mundo ainda mais aguçada que os adultos. Talvez, algo que havia lá na infância
tenha sido subtraído do mundo adulto. Não sem razão Rilke vai dizer no início da oitava elegia
de Duíno que algo se perdeu: “Desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre
perdemos, ah, esse espaço profundo” (RILKE, 2013, p. 67). Então ficamos presos às descrições

66
“A primeira relação com o mundo exterior a nós é sem distância, de profunda passividade ativa: sentir
o mundo, os outros e o eu como uma totalidade uma e complexa, dentro do mundo como parte dele e,
todavia, vis-à-vis a ele, como distinto para vê-lo, pensa-lo e molda-lo. Fundamentalmente, é um estar
com e não sobre as coisas, é um con-viver dentro de uma totalidade ainda não diferenciada” (BOFF,
2018, p. 132-133). Ver o artigo de Michelazzo, “As habitações do humano como expressões do tempo:
diálogo entre Heidegger e Dogen”, presente no livro de Faustino Teixeira, Mística & literatura (Fonte
Editorial, 2015). Sobretudo a parte em que ele fala do Humano indistinto: o pensamento pré-metafísico.
Essa primeira experiência, segundo Winnicott é, de fato, “experiência de ser”, de um “identificar-se
com”. A experiência da separação e da diferença vem depois, à medida que o bebê cresce.
120

literais de mundo. Como escreveu Nelson Job: “O Mundo Literal é uma convenção em que os
possíveis estão esgotados [...] Habitar apenas as perspectivas da normalidade é tão ‘louco’
quanto habitar apenas o mundo dos sonhos” (2013, p. 200-201).

2.3.1 A liberdade e as estrelas

A INVENÇÃO DAS ESTRELAS


(Conto de tradição oral, recontado por Ulisses Belleigoli)

Naquele tempo antes de tudo, quando os animais ainda falavam, as árvores


ainda sussurravam e quando havia apenas uma grande tribo (onde todos se
amavam na mesma língua)... Naquele tempo, o céu era dessa altura. Talvez
um pouco mais alto, da altura de uma criança.
Se o céu já era azul, não se sabe direito, porque, mesmo estando tão pertinho,
era difícil vê-lo, pois, as árvores, ao crescerem, iam se envergando e se
misturando umas às outras. Nos poucos espaços que havia entre elas, os
pássaros voavam apertados.
Mas quem tinha mesmo problema com esse céu tão baixo eram as crianças.
Elas eram responsáveis por fazer quase tudo na grande tribo. Isso porque os
adultos viviam com dor nas costas, pois tinham de andar sempre curvados para
não baterem a cabeça no céu. Então as crianças tinham de guiá-los a todos os
lugares, de modo que nunca sobrava tempo para brincar. E brincar era o que
elas queriam.
Mas um dia, um menino bem menino, que era como são os meninos de todos
os tempos, ficou incomodado por não ter tempo para brincar. Invocado como
era, convocou as outras crianças para apresentar sua grande ideia: ele queria
levantar o céu!
Os meninos e meninas da grande tribo acharam a ideia muito ousada, mas
quando pensaram em como seria divertida a vida se o céu fosse lá em cima –
e se os adultos não vivessem pedindo favores e sempre se lamentando da
insistente dor nas costas –, resolveram ajudar o menino em seu plano.
A missão começava com cada criança segurando um pedaço bem longo de
bambu. O menino instruiu todos para que afiassem as pontas, para que o
bambu ficasse parecido com uma lança. Depois, pediu que todos espetassem
aquela ponta afiada no céu. Pronto! Estava tudo preparado. Quando a
contagem chegasse ao três, todos empurrariam o céu para cima, e tudo estaria
resolvido.
- Um, dois, três: já!
E todos empurraram o céu com seus bambus! Mas nada aconteceu. O céu
continuou paradinho, no mesmo lugar. Que tristeza que deu no coração de
todo mundo. As crianças já iam até se dispersando quando o menino se
lembrou de uma palavra: Iaô! (Que quer dizer força na língua da grande tribo).
E, retomado o ânimo, todos combinaram de, ao empurrarem o céu, gritarem
bem forte, com toda a força que pudessem, a palavra “Iaô”. Com os bambus
novamente espetados no céu, começou a contagem:
- Um, dois, três: IAÔÔÔÔ!
E dessa vez – o menino conferiu de perto – o céu tinha subido. Uns quatro
dedos, mais ou menos. Mas tinha subido! Foi então que ele percebeu que
aquela palavra evocava mesmo uma força transformadora. E suspeitou que,
mais importante do que a força da garganta, era a força do grito que vem do
coração. Dessa vez, combinou com as outras crianças de colocarem o poder
121

de suas vozes bem lá dentro de si mesmos, e sussurrarem, bem baixinho, a


palavra “Iaô”. Novamente, a contagem:
- Um, dois, três: Iaô...
Nem a antiga língua da grande tribo tem palavras para descrever o
encantamento daquela manhã. O céu foi subindo, subindo, subindo, até colar
lá no infinito. E as árvores se espreguiçaram, e os pássaros se alvoroçaram
pelos ares! E os adultos desencurvaram-se e animaram-se para o trabalho, para
a vida, para a liberdade que haviam ganhado de presente.
As crianças – libertadoras – foram também libertadas. Naquele dia, brincaram
até o céu escurecer. A alegria delas era tanta que contagiou toda a grande tribo,
até os mais velhinhos. Quando chegou a noite, fizeram uma grande festa para
celebrar a subida do céu. E qual não foi a surpresa de todos quando, ao olharem
para o céu, viram que toda a abóboda celeste estava cheia de furinhos: as
marcas das pontas dos bambus. E que agora, em cada buraquinho, brilhava
uma luz, que parecia vir de um tempo muito distante.
Foi assim que as crianças inventaram, no mesmo dia, a liberdade e as estrelas:
essas coisas que brilham (2018, [n.p.]).

Trago esta história como uma alegoria às possibilidades de mundo compostas pelo
universo das crianças. Nós, adultos, vivemos enclausurados em uma percepção linear,
higienista, mercadológica, meritocrática, em um tempo acelerado e rígido, ao mesmo tempo
tedioso e melancólico. É como se nosso eixo de mundo, nossa coluna, nossas vértebras,
estivessem comprimidas por um espaço psíquico-imagético que não comporta nosso tamanho.
Nos adaptamos, nos tolhemos, nos podamos para dar conta de exigências de consumo e
conquistas que estão gradualmente dissecando nossas capacidades de pensar, imaginar, criar e
experienciar. No mundo moderno, os adultos autômatos adaptados aos horizontes pequenos
reclamam de dor, cansaço, solidão, de excesso de tarefas, de falta de dinheiro etc.
É possível notar que esse sentimento adentrou e transformou a lida dos cuidados e dos
ideais de normalidade relacionados à infância. A vida urbana de maneira geral não oferece
espaços nem físicos nem anímicos para que as crianças brinquem em liberdade e, ao mesmo
tempo, muitas práticas do ideal moderno estão voltadas para aquietar o movimento espontâneo
dos corpos infantis e deixar os adultos focados em dinâmicas de lucro e produção. Cuidar dos
próprios filhos definitivamente não é valorizado pelo mundo capitalista, pelo contrário. Licença
maternidade/paternidade são consideradas supérfluas pelo mundo empresarial, estranhamente
chamado de liberal. Creches e escolas recebem crianças cada vez mais cedo, pois seus pais
precisam voltar ao trabalho. Foram criados uma série de dispositivos para manter as crianças
paradas e “seguras”, tais como televisores, celulares, tablets, joguinhos. Fora do horário escolar,
o tempo delas é preenchido por uma série de atividades extras como esportes, aprendizado de
outras línguas, instrumentos etc. As crianças urbanas estão a todo tempo sendo dirigidas por
um adulto, real ou virtual, em “atividades” que são oferecidas como forma de distração ou de
122

aprendizado, mas que a grosso modo oferecem mesmo uma contenção, tanto física como
cognitiva.
Essas formas modernas de entretenimento usadas em excesso geram crianças com
energia contida e com a criatividade embotada. Isso se transforma em comportamentos que são
tratados como sintomas: raiva, mal humor, inquietude, ansiedade, hiperatividade, dificuldade
de lidar com a frustração, apatia, excesso de competitividade, baixa autoestima. A partir daí
surgem novas categorias de doença, bem como medicamentos que prometem adequar nossos
pequenos aos moldes que lhes são exigidos. Parece que esquecemos de nossa própria infância.
Lembro-me da primeira vez que, como mãe, me dei conta desse processo em curso.
Minha filha devia ter em torno de quatro anos, meu filho algo como dois anos. Não tínhamos
televisão e o celular ainda era só um telefone. A sala da minha casa era um grande playground,
vivia desarrumada, mas nunca foi tão colorida. Meu sofá costumeiramente servia como pula-
pula. Eu ficava ao lado, somente para conter uma possível queda. Um dia recebemos a visita de
uma amiguinha deles, cuja idade regulava com a da minha filha. Quando meus dois filhos
começaram a pular no sofá, a menina se colocou ao meu lado, cruzou os braços e disse: “Pular
no sofá não é legal”, isso com um ar de reprovação, como uma miniadulta. Me espantei com
aquela cena. Ofereci minha mão a ela e disse: “Pular no sofá é muito legal, experimenta!”. Ela,
desconfiada e hesitante, segurou minha mão e se juntou aos outros. Pulou algumas vezes ainda
me segurando, mas aos poucos foi se soltando e eu pude ver seu semblante sisudo se transformar
em um sorriso largo e depois em gargalhadas. Logo estava solta pulando e cantando. Logo a
seriedade foi contagiada pela alegria. Logo voltou a ser criança67.
O clamor das crianças e pelas crianças pode trazer de volta ao mundo adulto as coisas
que brilham, como as estrelas da história acima, como as “crises de risos” tão comuns entre os
pequenos. Para isso precisamos voltar a cuidar deles. No entanto, o cuidado a que me refiro é o
cuidado de protegê-los de nós mesmos, de nossos medos, de nossas amarras, de nossa pressa,
de nossa tecnologia, de nossa alimentação rica em o que nos empobrece. Precisamos protegê-
los de nosso próprio esquecimento, de nosso próprio empalidecimento, de nossa própria
tristeza. Como conta a história das crianças que conseguiram levantar o céu, talvez, se
permitirmos, nossas crianças e a energia que elas carregam possam oferecer ao mundo adulto
uma espécie de cuidado apropriado.

67
Adoro esta palavra: criança. Carrega algo que cria e algo que dança. Vou repeti-la muitas vezes e não
quero atender à exigência de buscar por sinônimos. A meu ver o mundo fica mais bonito com criança
nele.
123

Em minha esfera profissional, atuando como psicóloga, terapeuta de família e doula há


mais de dezesseis anos, costumo dizer que conviver com crianças me relembra de minha própria
alegria. Meu próprio ofício se tornou uma maneira de evitar o modo de ser meio amargo que a
vida adulta fez brotar em mim, tal qual Rilke descreve na oitava Eligia:

Quem nos desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo


que fazemos? Como aquele que partindo se detém na última colina para
contemplar o vale na distância – e ainda uma vez se volta, hesitante, e aguarda
– assim vivemos nós, numa incessante despedida. (RILKE, 2013, p. 73).

Trabalho neste sentido com inúmeras mães e seus bebês em um grupo que coordeno em
Juiz de Fora, chamado Amar e Brincar (parafraseando o livro homônimo de Humberto
Maturada e Gerda Verden-Zöller no qual me fundamento). Minha proposta às vezes parece
simplória diante do que algumas mães desavisadas buscam. Elas chegam até a mim e me pedem
fórmulas ou manuais que façam seus bebês e crianças funcionem de acordo com o esperado, ou
seja, para que não chorem, durmam oito horas por noite, comam bem, controlem os esfíncteres,
não mordam, aceitem a chegada de um novo irmão, não se masturbem, entre outros pedidos.
Uma das primeiras coisas que procuro mostrar a essas mães é que bebês e crianças são
pessoas, e que pessoas não costumam se encaixar em fórmulas generalistas. Manuais sobre
criação e educação não conseguem abarcar as singularidades transversais que compõem a
atmosfera em que vivemos. Então, se faz necessário compreender em sentido amplo o que está
acontecendo com cada criança ou bebê em particular. Logo depois pontuo que o mundo da
criança pequena, mesmo aqui do lado de fora, continua a ser o corpo de sua mãe, ou o corpo da
pessoa que se dispõe a desenvolver por aquela criança algo que foi denominado por Winnicott
(2006) como devoção – isto significa alguém que se empenhe em se identificar com a criança
como um modo de cuidado. Esse mundo infantil, que é o corpo da mãe, lhe oferece, ou pode
lhe oferecer o substrato fundamental para que duas formas de “emocionar” básicas do humano
brotem: confiança e intimidade.
A partir destas ponderações teóricas, que a princípio parecem distantes da lida diária,
começamos juntas, no grupo, eu, mães e bebês, a criar dinâmicas, jogos e brincadeiras que
possibilitam despertar no corpo esses sentimentos de intimidade, pertencimento e confiança
mútuas. São instantes em que conseguimos nos fazer imersas na atmosfera em que as crianças
vivem. Aqueles momentos de uma explosão contagiante, algo integrador. Algo que compõe e
descompõe, que beira o caos e toca a mística. Lampejos de uma liberdade que não consigo
colocar em palavras. Procuro promover nas mães aquilo que aconteceu com a menina que não
124

sabia que sofá era também pula-pula. Aos poucos, as mulheres vão se despindo de como as
coisas deveriam ser ou funcionar e, como em um leve despertar, se emocionam e são
contagiadas pela alegria68 que emana do universo vibrante que seus filhos ainda habitam. Minha
proposta, simplória, é apenas proporcionar bons encontros, no sentido de Spinoza.
As crianças, mesmo as não tão livres, mesmo as sofridas, conseguem acessar a alegria
de forma mais direta e plena que os adultos. O mundo é todo novo para elas. Estão ainda e por
algum tempo protegidas de nossas amarradas explicações de mundo. São protegidas por sua
própria “imaturidade neurológica”. O olhar das crianças, diferente do olhar infantil carente, traz
um sentimento de maravilhamento. Através de uma ainda livre conexão entre o pensar, o sentir
e o movimento, elas fazem perguntas e criam suas próprias teorias, as quais muitas vezes
abalam as certezas que consolidam o mundo adulto69. Se os grandes dedicarem algum tempo
de suas vidas corridas a contemplar essa qualidade de alegria expansiva e barulhenta dos
pequenos, até o ponto de se deixarem emaranhar por ela, talvez o céu possa subir como na
história acima. Talvez os adultos possam esticar seus corpos e mentes, talvez eles possam
relaxar no fluir dessa potente sabedoria infantil abarcando novos “possíveis”. Pois, na esfera
da imaginação alegre, “os possíveis ganham coexistências paradoxais, você passa a estar e não
estar nos locais, sentir ódio e amor ao mesmo tempo sem que isso se torne contradição, e realizar
tarefas até então improváveis e até impossíveis” (JOB, 2013, p. 201). A criança no livre brincar
– que por si só é incoerente, desconexo, sem razão determinada, caótico e singular – pode fazer
despertar o adulto. Tirá-lo do esquecimento de si, do outro e do todo, pode trazê-lo de volta a
uma forma de ser-no-mundo aliada ao modo do mundo-ser-em-nós.

2.3.2 A beleza70 do espanto

Agora o meu avô morava na porta da venda, debaixo de um pé de jatobá. Dali


ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo de bicicleta. Via os
meninos em cavalo de pau correndo ao modo que montados em ema. Via os
meninos que jogavam bola de meia ao modo que couro. E corriam velozes
pelo arruado ao modo que comido canela de cachorro. Tudo mais os
passarinhos e os andarilhos era a paisagem do meu avô. Chegou que ele disse

68
“A Alegria, é uma paixão pela qual a potência de agir do corpo é acrescida ou favorecida; a Tristeza,
ao contrário, uma paixão pela qual a potência de agir do corpo é diminuída ou reduzida; e, por
consequência, a Alegria é boa diretamente” (SPINOZA, 1985, p. 262).
69
“Para mim as crianças denunciam a brutalidade do país que criamos para elas, fazendo as perguntas
que os adultos preferem não fazer a si mesmos. Não sabemos que pessoas serão estas que crescem entre
muros e que aprendem a escanear o outro, o diferente, como ameaça” (BRUM, E. 2015, [n. p.]).
70
“Mas tudo o que é belo é tão difícil, como raro” (SPINOZA, 1985, p. 341).
125

uma vez: Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia.


Dom de ser poesia é muito bom! (BARROS, 2010, p. 35).

- Quer sonhar? Vai ter que rezar, maninho.


- Rezar? Não sabe que o pai...
- Esqueça o pai. E é se quiser sonhar.
- Mas eu nunca rezei. Nem sei como se faz...
- Dê-me uma das cartinhas, eu escrevo uma oração para você decorar. Vai ver
que, depois, começa a sonhar.
(COUTO, 2016, p. 43).

Rilke (2013) já dizia, na oitava Eligia, que às crianças, às vezes, é dada a possibilidade
de enxergar e experienciar a abundância do aberto e se espantar, se maravilhar. Compreendo
que esta capacidade de maravilhamento acontece por elas se encontrarem ainda em um estado
de abertura como o todo. Isto lhes permite serem afetadas pelos acontecimentos como eventos
que se desenrolam a partir de uma outra percepção de tempo. Não precisam se empenhar em
distinguir entre o real e o imaginário. Para elas tudo é real na medida em que as afeta, e como
não sabem ainda como as coisas “deveriam ser”, vivem na ordem do espanto.
Em um belo artigo intitulado Sonhando com dragões: sobre a imaginação da vida real
(2017), Ingold discorre sobre como as ideias de Francis Bacon embasam o modo de operar
contemporâneo, especialmente quando se trata da científica “busca interminável da verdade
através da eliminação do erro” (INGOLD, 2017, p. 26) e sobre como “com nossas esperanças
e sonhos submersos no éter da ilusão, a vida parece diminuída” (INGOLD, 2017, p. 26). O autor
afirma que mesmo com o esforço de gerações e gerações, não há como fazer esta separação,
pois a vida se dá na imbricação. Na medida em que habitam nossa imaginação, coisas ganham
existência ao modo de afetos.
Ingold conta a história de um monge que encontra um dragão. Sabemos que o dragão
em si não existe, mas o sentimento do medo, este existe, e toma forma de dragão para que
possamos lidar com ele. A maneira moderna de traduzir os afetos simplesmente afirma:
“dragões não existem” ou “foi apenas um sonho”. Estas frases visam fazer a pessoa que imagina
voltar ao “mundo real”, mas isto, a grosso modo, desqualifica a existência do medo ou de
qualquer outra emoção que toma a forma que lhe convier para se fazer concreta – imagem.
Sentimentos se transformam em cenários visíveis e de certa forma palpáveis ao longo de nossas
trajetórias de vida. O hábito moderno de explicá-los de forma a enquadrá-los dentro de uma
categoria classificatória ou de “não existência” não faz com que desapareçam. Eventualmente
adormecem somente para retornar em outras imagens ou formas, até que seja possível lidar com
126

eles. Nossos sentimentos retornam como fenômenos, algo “saturado a totalidade da experiência
fenomênica” (INGOLD, 2017, p. 30).
Relatando que outros povos consideram o limite entre o sonho e a realidade bem mais
tênue do que nós ocidentais compreendemos, Ingold afirma que a imaginação, onírica ou em
vigília, pode estar de fato se comunicando conosco. “Este cosmos é poliglota, uma mistura de
vozes através das quais diferentes seres, em seus próprios idiomas, anunciam sua presença, se
fazem sentir e produzem efeitos” (INGOLD, 2017, p. 31).
Neste sentido, afirmo que as crianças, ainda aprendendo nosso idioma, se preservam
poliglotas, pois elas se juntam aos fluxos:

O chão é lava

Quando uma criança pode se movimentar livremente, quase nunca seu corpo
traça uma longa e constante linha reta. Suas linhas retas são quase sempre
curtas ou percorridas com rapidez, na direção do que detectou como urgente
ou muito interessante.

Na maior parte das vezes, sua trajetória é ziguezagueante e com velocidades


variáveis. A criança em seu movimento traça linhas descontínuas, ora com
pausas longas e atenção concentrada, ora recuos, hesitações, investidas
excitadas numa direção, ou ainda uma perambulação distraída.

Não só o corpo, mas o pensamento da criança também parece evoluir assim,


em múltiplas direções e velocidades, guiado por algo que não se parece em
nada com alguma finalidade utilitária.

Com outras pessoas, assim como com coisas e com ideias, faz alianças muitas
vezes temporárias, outras vezes recorrentes, e ajuntamentos se desfazem com
a mesma facilidade com que se formam, dando ensejo a novas associações e
a relações de diferentes intensidades e durações.

Uma cartografia dos movimentos livres das crianças pode nos surpreender e
nos dizer muito sobre elas, não como objeto de uma teoria sobre a infância,
mas como expressões singulares e ativas.

A educação que não leva em conta o movimento desejante das crianças é lava,
é cimento sobre sementes, corredor que mutila experiências vivas. (FERRO,
2019, [n. p.]).

Ingold (2011), após uma complexa argumentação que descreve o mundo como um
nascimento contínuo dentro da percepção do que ele chama Ontologia Anímica, faz um breve
destaque em que diferencia “espanto” de “surpresa”, o que pode ajudar a pensar essa educação
que desconsidera as sementes que as crianças, seres desejantes, espalham ao longo de caminhos
de nascimento. Mais precisamente, como nós adultos podemos nos deixar permear.
127

Penso que espanto seja [...] a própria abertura para o mundo que tenho
mostrado ser fundamental para a maneira anímica de ser. Trata-se do
sentimento de admiração oriundo de se montar na crista do contínuo
nascimento do mundo. No entanto, juntamente com a abertura vem a
vulnerabilidade (INGOLD, 2011, p. 125).

Ou seja, esse estado de abertura, que considero ser próprio da infância, carrega em si a
vulnerabilidade, que também considero ser própria da infância, e que no adulto – moderno,
cartesiano, científico, ocidental – se pretende suprimida através de planejamentos e previsões,
busca de garantias tanto físicas como espirituais. Então “o espanto foi banido dos protocolos da
investigação racional conceitualmente conduzida” (INGOLD, 2011, p. 125), dando lugar ao
elemento da surpresa que emerge quando o mundo não obedece ao que foi programado.

A surpresa, no entanto, só existe para aqueles que se esqueceram de como se


espantarem com o nascimento do mundo, que têm crescido tão acostumados
ao controle e à previsibilidade que dependem do inesperado para assegurar-
lhes que os eventos estão ocorrendo e de que a história está sendo feita
(INGOLD, 2011, p. 125).

Fatalmente não são só as crianças que não obedecem ao “modo-de-ser-adulto-no-


mundo”. Pretender organizar o mundo confere uma “lógica de inversão”, para usar as palavras
de Ingold. Neste sentido, adentro ao que enxergo ser uma espécie de paradoxo relacionado a
questão da obediência.
O modelo de cultura ocidental luta contra a condição animal do humano. Não é afeito à
obediência. Queremos ser outra coisa, para além de meros viventes, e isso não é uma opção,
pois para esse feito estamos desfigurando as próprias bases da vida. O papel da espiritualidade
seria mergulhar nessa humanidade, em seu sentido de pertencimento e obediência. Algo que
carregamos em comum com todos os outros seres. Não falo aqui da obediência a um Deus
dogmático e vigilante que separou e categorizou tudo. Falo de algo mais sutil e ao mesmo tempo
profundo. Falo de um sentido de inclusão, de aceitação, de reverência. A exclusão gera a
desobediência, a revolta, doenças, pobreza, devastação. Temos acesso à consciência do valor
da vida na medida em que ela se dá e se recolhe, dentro do contexto de tempo sem a medida.
Não se sabe quando vamos morrer, e a morte tem domínio sobre a vida e é a isso que tentamos
evitar a todo custo. Sabemos da nossa condição de finitude e não há nada que se possa fazer
quanto a isso. Como nos lembra Rilke, “o que é nosso flutua e desaparece” (2013, p. 21).
Passamos a vida esperneando como crianças mimadas, inflamos o subjetivo e exageramos as
explicações intelectuais e racionais sobre a vida. Somos uma contradição que perambula em
128

busca de respostas e com isso nos esquecemos de que a vida é para além de nós. Começou
muito antes e não teremos como saber quando, como, ou se terminará. À esta sensação de
pertencimento e segurança que devemos obediência e reverência71. Isso porque:

Em contrapartida, os que estão verdadeiramente abertos para o mundo,


embora perpetuamente espantados, nunca são surpreendidos. Se esta atitude
de espanto sem surpresa deixa-os vulneráveis, também é uma fonte de força,
resistência e sabedoria. Pois, ao invés de esperarem que o inesperado ocorra,
e de serem apanhados em consequência disso, ela os permite responder, no
mesmo momento, ao fluxo do mundo com cuidado, julgamento e
sensibilidade (INGOLD, 2011, p. 126).

Termino esta humilde tentativa de afirmar que o modo-de-ser-criança é carregado de


sutilizas alegres que podem recolocar os adultos em seu lugar, com o texto de um vídeo
publicado no canal de Youtube de Genifer Fergerhardt, uma mãe-artista-devota de Porto
Alegre. O vídeo se chama Caminhando com Tim Tim. As cenas são feitas na altura visual do
menino, Tim Tim, que na época tinha um ano e meio, e retratam o caminho que ele fazia todos
os dias da sua casa a casa da avó, enquanto a mãe narra, ou traduz, os eventos, e conta como a
rotina diária a afetou.

Caminhando com Tim Tim72

Da nossa casa até a casa da vó são duas quadras.


Pra mim, calçada, ferragem, mercadinho e chegou.
Pra Valentin, pedrinhas, árvores, pedras soltas que toda vez tira e coloca,
buscar encaixe. Duas ruas atravessadas pra dar a mão pra mamãe. Poças
d’água: pisoteia, alegra, refresca. “Ai que água suja”, dizem uns. É água de
chuva, meu caro. “Ah, que delícia” apontam outros. Tim Tim nem liga, só
pisa, pisa, pisoteia.
Mas no percurso até a casa da avó, há também o que me parece mais valoroso
para Tim Tim: os quatro encontros estabelecidos por ele desde o início, que
nem sei precisar quando foi. Esses eu só respeito e acompanho. Só olho e
vibro.
O primeiro encontro é com Seu João, morador de rua e flanelinha daqui da
rua, com quem o pequeno sempre conversa. “Oi meu amigo! Vai passear?”
Blábláblás. O pequeno a soltar beijos infinitos e abanar, abanar, abanar, até
não mais enxergar. Quando Seu João está dormindo, Tim Tim passa
sussurrando, falando baixinho em respeito ao sono do amigo.
Valentim tem me ensinado sobre os caminhos e que o tempo é senhor de
delicadezas, desafios e novidades constantes e intermináveis.

71
Como afirmou Heschel: “...insistimos que é indigno do homem não tomar conhecimento do sublime.
Talvez mais significativo que o fato de nossa percepção da realidade cósmica seja nossa consciência de
termos que ser conscientes disso, como se houvesse um imperativo, uma necessidade de prestar atenção
àquilo que está além do nosso alcance (1974, p.15-16).
72
Cf.: <https://www.youtube.com/watch?v=1dYukOrq5RI>.
129

O segundo encontro é com o Jorge, guardador de carros do restaurante da


esquina, baiano como o pai. Fica do outro lado da rua e todos os dias atravessa
pra conversar com Tim Tim que o aguarda também diariamente ao vê-lo do
outro lado. Dia desses Jorge elogiou a sandália do pequeno e desde então a
primeira atitude é abaixar-se e mostrar as sandálias. Tocas e olha para o amigo
que insistes “que lindas, que lindas, muito lindas!”.
O terceiro encontro é com o homem do mercadinho. Quando está com seu
gato o encontro é ainda mais vibrante. Carinho, tropeço, atrapalhação. Mas
quando não, o simples ver o amigo, jogar-lhe beijos já é suficiente para seguir
em frente.
Atravessando a rua, [encontra] os três senhores do almoxarifado do hospital,
que às vezes são dois, às vezes são quatro, às vezes é um só. Tim Tim desvia
a rota pra vê-los. Pegam ele no colo, conversam um pouco e pronto. Está feito.
Abana em despedida e corre em disparada para frente do prédio da avó.
Todos os dias. Cada dia com o olhar atento sobre algo novo no trajeto, mas
sempre com seus quatro encontros. A sentir falta quando algum não está.
Valentim tem me ensinado sobre os caminhos, caminhares e destinos. Que o
chegar não é mais valioso que a andança. Que o encontro é precioso,
necessário.
(FERGERHARDT, 2014).

CONSIDERAÇÕES

Ao longo deste segundo capítulo discorri sobre três esferas que considero serem
instauradoras de gestos de cuidado mais próximos do cotidiano e que são também as que
colocam o humano em movimento ao longo de seu caminhar pelo mundo.
Primeiro, o corpo foi visto como esfera fundante do cuidado e como modo de contato
com o que se diz exterior. Aos moldes de Ingold, debati como alterações no mundo afetam os
sentidos e a forma de se portar dos corpos, gerando, assim, outras leituras de mundo que vão se
desenrolando, se transformando. Procurei mostrar como o movimento é uma qualidade
premente para todo o desenrolar da vida e como os ideais contemporâneos têm feito emergir
uma série de artifícios que aliam a ideia de conforto com a imobilidade. Ouso dizer que é preciso
que a qualidade do movimento seja considerada também uma forma de cuidado, de toque e de
relação.
Depois, apresentei a esfera da casa como lugar da intimidade, do conhecido e de
pertencimento, e tentei ampliar esta compreensão para a ideia de mundo, traduzindo novas
narrativas sobre quem são, como interagem e vivem os organismos da terra como um todo. O
objetivo foi exagerar no tom da importância de que a percepção de nossa interdependência
como seres vivos precisa adentrar os modos de agir e pensar sobre a vida na Terra.
130

Chegando às crianças, quis abarcar a alegria que elas podem doar ao mundo pelo seu
simples modo-de-ser-no-mundo. Pelo encantamento e maravilhamento com que adentram a
vida, revisando tudo, inclusive as certezas dos adultos.
No próximo capítulo, seguirei entre espantos e surpresas, percebendo como todo o
processo de leitura e escrita desta tese tem me transformado. Trata-se de uma tentativa de um
resgate da espiritualidade do cuidado dentro do campo das Ciências da Religião. O cuidado
ganha status de fundamento, de valor humano: atenção, contemplação. A espiritualidade
aparece aqui como conceito chave para o enfrentamento da aridez e das adversidades dos
tempos modernos, nas grandes cidades, na agilidade das mudanças climáticas, na busca por esta
nova cultura do cuidado. A partir da percepção de que as respostas fundamentadas na lógica
humana se mostram limitadas e limitantes, proponho uma contemplação somada ao conceito
da espiritualidade.
131

3 O RESGATE DA CULTURA DO CUIDADO

No topo da montanha, encontramos aquele que nos tornamos em seu caminho.


Transformados pelo tempo doado à peregrinação, nos tornamos humildes.
Nenhuma montanha jamais foi conquistada. É impossível se apoderar daquilo
que vive para além de nosso tempo.
No silêncio, somos arrebatados pelo reconhecimento de como tudo é tão
imenso e nós tão pequenos. Seres finitos desejosos do infinito.
No tempo da natureza, podemos assumir nossa real grandiosidade, cedemos à
própria montanha nossa altura. Como a árvore cujo topo serve de morada aos
passarinhos do céu.
Somos aqueles que servem à natureza, reconhecendo em todas as coisas a
beleza e a grandiosidade do que significa estar vivo. Um sentido que nunca se
basta em uma forma e se renova na experiência de toda vida (BÜHLER, 2015,
p.60).

Nosso papa e Leonardo Boff são dois entusiastas do surgimento do que Francisco chama
de Cultura do Cuidado. Ambos argumentam que a perspectiva da interligação e da
interdependência de todos os seres da terra está evidente e aliada a ideia de que a Terra é em si
um organismo vivo que espontaneamente gera os suprimentos necessários para garantir a
sustentabilidade da vida, toda e qualquer forma de vida. Uma qualidade de vida cíclica
retroalimentada em uma dinâmica de homeostase.
É possível notar que o cuidado, como forma de experimentar e narrar nossas relações,
vem sendo entoado por múltiplas áreas de saber e práticas humanas. Neste sentido, algumas
outras palavras estão sendo usadas para traduzir esse modo-de-ser-cuidadoso. São palavras que
nos religam à nobreza de alma, à ética, à espiritualidade e até mesmo ao amor.

O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e


político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um
mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são
uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre os
indivíduos, mas também “as macrorrelações como relacionamentos sociais,
econômicos, políticos [...]. O amor social é a chave para um desenvolvimento
autêntico [...]. Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos
gestos diários, o amor social impele-nos a pensar as grandes estratégias que
detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do
cuidado que permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação
de Deus para intervir juntamente com os outros nessas dinâmicas sociais, deve
lembrar-se que isso faz parte da sua espiritualidade, é exercício de caridade e,
desse modo, amadurece e se santifica (LS, 231, grifos do original).
132

Sinto necessidade de fazer uma leitura minuciosa deste pequeno trecho da Encíclica de
Francisco para compreender melhor a proposta de cuidado como cultura. Primeiramente, ele
traz o amor e o cuidado de forma indissociável. Afirma ser o amor repleto de pequenos gestos
de cuidado mútuo: se há amor, há cuidado; se há cuidado, há amor. Ou seja, o cuidado é a
expressão do amor, é o amor colocado em movimento.
Em seguida, duas outras palavras se destacam: compromisso e caridade. Por
compromisso compreendo uma certa qualidade de propósito, pertencimento e confiança. Algo
que poderia ser traduzido em imagem através das linhas entrelaçadas de um tecido, as quais
somente se mantendo juntas e firmes podem compor uma integralidade. Por caridade
compreendo que áreas mais delicadas ou danificadas deste tecido precisam ser cuidadas, pois
rasgos, manchas e emaranhamentos comprometem o todo e acabam por atingir cada fio
individualmente. Assim, o amor, como gesto cuidadoso, abrange o próximo e o distante, o civil
e o político, e colocado da forma como foi, abrange uma noção de engajamento – “o amor social
é a chave para um desenvolvimento autêntico” (LS, 231): esta frase poderia ser um mantra, pois
carrega uma verdade profunda.
Neste ponto, a imagem do tecido a que me referi não é mais têxtil. É preciso fazer
emergir a imagem de um tecido vivo - orgânico, celular, a pele, por exemplo. Quando um tecido
biológico se rompe, isto caracteriza uma ferida, uma mácula, causa sofrimento e dor a todo o
corpo. E então o organismo se mobiliza para curar e restaurar sua integralidade, nenhuma parte
é deixada de fora. Nenhuma parte é tida como mais ou menos importante. Compreendo que
Francisco está se referindo a um corpo social que habita uma biosfera e que este corpo deveria
seguir a uma outra lógica, a lógica inerente ao próprio processo que mantém a vida na terra.
Para Leonardo Boff “a vida é parte essencial do planeta Terra, um componente que
transforma as irradiações cósmicas em energia terrestre ativa. A vida não pode ser
compreendida sem as relações indissociáveis com os fenômenos físico-químicos que ocorrem
no planeta” (BOFF, 2018, p. 99). Essa qualidade de fenômenos que “magicamente” interagem
no sentido de sustentar a constância de uma incontável variedade de vidas pode ser
compreendida por espírito: algo que sustenta o bio na esfera e que se faz palco para todas as
complexidades humanas. Emanuele Coccia aprofunda um pouco mais essa percepção e
acrescenta a ideia de que o clima, ou este espírito que vive, se sustenta a partir de uma mistura
dos elementos que compõem o mundo a partir de um estado de fluidez, e assim rompe com as
dicotomias e fronteiras:
133

O clima é o nome da estrutura metafísica da mistura. Para que haja clima,


todos os elementos no interior de um espaço devem a um só tempo estar
misturados e ser reconhecíveis — unidos não pela substância, pela forma, pela
contiguidade, mas por uma mesma “atmosfera”[...] No âmbito climático, tudo
o que é e foi constitui um mundo. Um clima é o ser da unidade cósmica. Em
todo clima a relação entre conteúdo e continente é constantemente reversível:
o que é lugar se torna conteúdo, o que é conteúdo se torna lugar. O meio se
faz sujeito e o sujeito meio. Todo clima pressupõe essa inversão topológica
constante, essa oscilação que desfaz os contornos entre sujeito e meio, que
inverte os papéis. A mistura não é simplesmente a composição dos elementos,
mas essa relação de troca topológica. É ela que define o estado de fluidez. Um
fluido não é um espaço ou um corpo definido pela ausência de resistência.
Não tem nada a ver com os estados de agregação da matéria: os sólidos
também podem ser fluidos, sem precisar passar ao estado gasoso ou líquido.
Fluida é a estrutura da circulação universal, o lugar onde tudo vem ao contato
de tudo, e se mistura sem perder sua forma e sua substância própria (COCCIA,
2018, p. 30/31).

Ao concebermos a ideia de que existe algo que fluidamente circula e que garante,
sustenta e mantém a vida; ao passarmos a experimentar essa mistura em nossas relações; ao
habitarmos o mundo de forma a desfazer os contornos e deixar fluir, nos tornamos mundo,
continente e conteúdo, coabitantes, ao mesmo tempo um e múltiplo. Acredito que quando papa
Francisco diz que o reconhecimento da vocação de Deus para intervir junto a dinâmicas sociais
se trata de sua espiritualidade, uma caridade como processo de cura, ele nos diz para como
sociedade imitarmos essa lógica da “fluidez climática biológica”. Aqui, então, pode emergir o
conceito da Espiritualidade do Cuidado.

3.1 ESPIRITUALIDADE DO CUIDADO

Os primeiros pios dos pássaros que despertam marcam o point virge da aurora
sob o céu ainda desprovido de luz. É um momento de tremor reverente e de
inexplicável inocência, quando o Pai, em perfeito silêncio, lhes abre os olhos.
Eles começam a falar-lhe, não em um cantar fluente, mas com uma pergunta
despertadora que é o estado da aurora deles, seu estado no point virge. Sua
condição pergunta se é o tempo para eles de “ser”. Ele responde “sim”. Então,
um por um, eles despertam e se tornam passarinhos. Manifestam-se como
passarinhos e começam a cantar. Dentro em pouco, eles se tornarão
plenamente o que são, e até voarão (MERTON, 1970, p. 151).
134

A Espiritualidade do Cuidado é uma ideia que têm me acompanhado há sete anos, desde
que entrei como estudante no campo da Ciência da Religião e recebi de meu orientador,
Faustino Teixeira, este termo como síntese de minha pesquisa. Ao longo do último ano, quando
passei a de fato concretizar a escrita da tese, percebi que a Espiritualidade do Cuidado como
um conceito ainda não tinha sido trabalhada por outros autores. Em pesquisas encontramos
espiritualidade no cuidado, geralmente relacionada a alguma categoria ou objeto específicos,
como por exemplo a espiritualidade no cuidado com pacientes, na enfermagem etc.
Nem mesmo Leonardo Boff, que é meu autor de base relacionado ao cuidado e à
espiritualidade, usa o termo “Espiritualidade do Cuidado” da maneira como tal conceituação
foi crescendo em minha pesquisa e prática ao longo dos anos de estudos. Percebi, então, que
caberia a mim delimitar as características que fundamentam o nascimento deste termo como
uma nova cosmovisão, a partir dos autores que me alimentaram nessa caminhada.

3.1.1 Espírito

Ele, o ruah (espírito em hebraico), já estava presente no primeiro momento da


criação. Sobre o caos originário (touwabohu), as águas primordiais, “soprava
o Espírito (ruah), uma energia impetuosa” (Gn 1,2). Criou todos os seres
inanimados e animados, especialmente o ser humano: “Soprou-lhe nas narinas
o ruah de vida, o espírito, e ele tornou um ser vivente” (Gn 2,7) (BOFF, 2018,
p. 68).

Leonardo Boff busca de compreender como é possível a vida e, especialmente, como é


possível a vida consciente. Neste percurso, o autor nos traz uma densa argumentação sobre o
que pode ser compreendido como espírito. Para isso, ele inter-relaciona a teologia cristã, em
suas metáforas imagéticas, com a física moderna, quântica.
Tive a oportunidade de entrevistá-lo para minha pesquisa de mestrado, na qual a
definição espírito surgiu de forma clara e acessível, como se segue:

Eu acho que a questão toda é melhorar nossa compreensão do que é espírito.


Porque nós somos herdeiros da tradição mediterrânea, grega, que diz que o ser
humano é a composição de corpo e espírito, matéria e forma
fundamentalmente, espírito e corpo. Então seríamos um ser misto e
profundamente desequilibrado. Isso porque a corporeidade tem limite, espaço,
135

tempo. Enquanto o Espírito, como já dizia Aristóteles, seria universal. Ele


(Aristóteles) pensa a totalidade, o cosmos e entende a morte como separação
de corpo e espírito. Então, eu penso que essa visão é muito pobre para entender
o ser humano. Eu tendo a desenvolver duas vertentes: uma a partir do corpo,
porque o que nós temos mesmo é o corpo, mas não o corpo cadáver. Temos o
corpo vivo. Este que suscita a questão sobre o que é a vida dentro desta
materialidade. E aí eu considero que é interessante investigar esta concepção
mais moderna de entender a matéria, a evolução do universo. Nós não temos
um corpo, nós somos um corpo. O mistério é porque que existe a vida. Por
que ele é vivo? E a vida, eu acho, que é aquilo que é o espírito no corpo. Então
é um corpo espiritualizado, é um espírito encarnado. São essas duas dimensões
(BOFF, 2014, C.P.73).

Primeiramente, então, Boff se coloca no desafio de compreender o que é este atributo


que traz vida, que anima a matéria e estabelece uma vertente inicial de acesso ao todo: a matéria
que contém o espírito seria uma matéria espiritualizada. Intuitivamente é possível habitar tal
premissa. Porém, essa afirmação não esgota nossos questionamentos sobre o assunto. Não
compreendemos como isso se dá e se mantém por um certo período de tempo até cessar, ou por
que cessa. Não sabemos como esse atributo de ruah se transforma em consciência da maneira
como os humanos experimentam; e também emerge o questionamento sobre o que diferencia
esse atributo de vida, ruah, espírito, humano, do de todos os outros seres dotados dessa vida.

A outra vertente é um diálogo com a nova cosmologia, com a física, com a


teoria da evolução ampliada que vê a grande unidade de todo o processo.
Desde o big-bang e as distintas fases da vida, que vão na linha de se
complexificar cada vez mais. Energias e matérias foram interagindo até que
chega um ponto altamente complexo e irrompe a vida como necessidade
cósmica74. Como subcapítulo da vida, com muito mais complexidade ainda,
emerge a consciência. Emerge o ser humano. Então o espírito pertence a este
conjunto, pertence a realidade, não está fora da realidade. Todas as
compreensões que tem uma matriz religiosa, metafísica, fazem o espírito vir
de fora. Ele vem e forma a matéria, o corpo. Porém, nessa nova compreensão,
o espírito faz parte da totalidade. É a parte mais avançada do universo (BOFF,
2014, C.P.).

73
C.P. – comunicação pessoal.
74
“A massa inicial das células deve ter sido submetida no seu interior, desde o primeiro instante, a uma
forma de interdependência que não seria já um simples ajustamento mecânico, mas um começo de
“simbiose” ou vida comum [...] Simples reaparecimento, em fim das contas, sob uma forma e numa
ordem mais elevada, de condições muito mais antigas que, como vimos, já presidiam ao nascimento e
ao equilíbrio das primeiras substâncias polimerizadas à superfície da Terra juvenil. E também simples
prelúdio à solidariedade evolutiva, muito mais avançada, cuja existência, tão manifesta nos seres vivos
superiores, nos obrigará cada vez mais a admitir a natureza propriamente orgânica das ligações que
reúnem num todo no seio da Biosfera (CHARDIN, 1970, p. 83-84).
136

O senso comum moderno tem lidado com as ideias de consciência, espirito/alma e Eu


quase como sinônimos. O Eu seria algo que vem de fora, de algum lugar metafísico, e passa a
habitar a matéria. Esse é um debate antigo, sabemos. Deve ter quase a idade da vida humana, e
não me cabe aqui trazer nenhuma afirmação como título de verdade. Porém, vamos exercitar a
ideia de que o espírito seja algo também físico e concreto, além de metafórico ou metafísico. E
mais ainda, de que este espírito permeia, é composto, ou emerge de toda a matéria que se
mistura das formas mais variadas possíveis, criando toda a diversidade e se complexificando
em muitos níveis.

Porque ele vai ficando mais complexo e cria ordens mais sofisticadas. A
consciência que atravessa todo esse processo ganha no ser humano a dimensão
de autoconsciência. Então o espírito é tão ancestral quanto o corpo. O corpo
surge no primeiro momento quando os dois primeiros quarks e hádrons
interagem. Depois átomos se relacionam, trocam informações entre eles e vão
criando sistemas e ordens e redes de relações [coerentes e constantes].
E o que é o espírito? É a capacidade que as energias primordiais e as partículas
originárias têm de se relacionar. A relação sempre implica uma troca de
informação. Então aqui entra uma compreensão diferente de toda a
compreensão moderna até Einstein e Einstein inclusive. Para a física quântica,
existe a matéria, que tem massa. A matéria tem energia, desde a energia
elétrica, energia gravitacional, energia nuclear. Mas a partir dos anos
cinquenta descobriram a terceira qualidade da massa, que é energia da
informação. Porque a energia não é matéria, é informação. Ela carrega uma
informação que surge através do jogo das relações. E aí vem a afirmação
básica de Heisenberg75 e de todos os físicos quânticos: “o universo não é o
conjunto dos seres existentes. O universo é o conjunto das relações, das
redes”. Tudo é rede.
Eu tive o privilégio de assistir o último semestre das aulas de Heisenberg e
uma frase que sempre voltava nele era essa: tudo é relação, não existe nada
fora da relação e tudo tem a ver com tudo em todos os pontos, em todos os
movimentos em todas as circunstâncias. Então, a caneta que cai aqui, pela
força da gravidade [da relação] afeta a galáxia mais distante que está lá [pela
rede de informações]. Esta capacidade de criar relações e com as relações criar
ordens cada vez mais complexas, até chegar à ordem humana, isto é o espírito!
E é próprio do espírito criar totalidades significativas. E no ser humano, é a
capacidade de ele sentir-se parte desse todo, poder elaborar uma dinâmica
dessa totalidade (BOFF, 2014, C.P.).

75
Princípio da Incerteza de Heisenberg: “Para a física quântica tanto ondas como partículas são
fundamentais. Uma e outra são modos pelo quais a matéria se manifesta e as duas juntas são o que a
matéria é [...] segundo o princípio da incerteza, as descrições do ser como onda [energia] e como
partícula [matéria] se excluem mutuamente. Embora ambas sejam necessárias a compreensão integral
do que o ser é, somente uma está disponível num determinado momento do tempo” (ZOHAR, 1990, p.
26).
137

A partir de uma perspectiva holística, que alia a sabedoria tradicional religiosa com as
mais modernas descobertas da física, conclui-se que o espírito é aquilo que dá a liga, por assim
dizer. Mantém a coesão de elementos que separadamente obedecem a padrões individuais, mas
que compostos criam algo novo, uma mistura relacional. Totalidades e mais totalidades, em um
eterno fluir cósmico inter-relacionado. Considero interessante salientar que embora se verifique
uma direção relacional no sentido da complexificação como um “imperativo cósmico” que cria
a vida e depois a vida consciente, esse movimento não se configura em uma linha reta na qual
uma complexidade mais ampla seria sobreposta a outra de menor grau. Em essência, o que
aprece acontecer é que as composições mais complexas precisam de interações relacionais
menos complexas que também constituem a integralidade em questão, como o ambiente –
clima, atmosfera – que ela habita.

3.1.2 Espiritualidade

O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós,
as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se
desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a
salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de
religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é
pouca, talvez não me chegue (ROSA, 2019, p. 19).

Uma vez considerando a concretude de um espírito como força relacional que anima a
matéria e compõe integralidades diversas que coabitam, criam e são criadas por seu ambiente,
a espiritualidade seria a consequência, na vida humana, de se experimentar o fato de que embora
sejamos pessoas, sujeitos singularizados, estamos imersos em uma ampla dinâmica relacional.
Mais que isto, somos constituídos e dela dependemos.
É possível afirmar que esta experiência – chamada aqui de espiritualidade – que de
maneiras diversas é vivenciada por todo e qualquer ser humano, trata-se de uma qualidade que
agrega um sentido à vida dentro dessa dinâmica de consciência. Dito de outra forma, essa
experiência levou e ainda leva todo e qualquer ser humano, em todas as épocas e lugares da
biosfera, a se engajar em uma busca de sentido para suas vidas – dores, alegrias e rotinas. Este
sentido daria contorno/coerência, constância/segurança, propósito e explicações para os eventos
percebidos pela consciência, ou seja, vividos pelo corpo.
138

A partir dessa experiência que nos é dada como seres viventes em uma atmosfera
comum como coparticipantes, emerge a premissa do cuidado como elemento fundante e guia
de cada ato da consciência humana. Seja qual for o nome que seja atribuído a este todo, a
experiência dele e nele é da ordem do que nos é semelhante. E, neste contexto, a percepção de
um atributo de semelhança entre todos os seres vivos e da Terra como nosso continente precisa
ser aprofundada, sentida e reverenciada a ponto de fazer emergir dinâmicas relacionais
cuidadosas.
Segundo Dalai Lama, a espiritualidade está:

Relacionada com aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e


compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, contentamento,
noção de responsabilidade, noção de harmonia – que trazem felicidade tanto
para a própria pessoa quando para os outros. [...]. O que não se pode dispensar
são essas qualidades espirituais básicas (2000, p.33).

3.1.3 Cuidado

Desde que o feto começara a se formar dentro de si, perdera certos trejeitos,
ganhara outros, ousara avançar em certos pensamentos. Parecia-lhe que até
então vivera mentido. Seus movimentos eram mais libertos do corpo, como se
agora houvesse mais espaço no mundo (LISPECTOR, 2013, p,168)

O cuidado é a atitude e o sentido de vida que brota naturalmente a partir de uma


perspectiva de espírito e de uma espiritualidade vivida como elemento de relação entre tudo e
todos. Meu ponto é que essa “atitude de cuidado” está presente e impera como força relacional
em todas as esferas do existir. Mesmo que a sabedoria ocidental moderna tenha se constituído
a partir de explicações de mundo que enxergam e constroem fronteiras, o cuidado estava lá,
ainda que não tivéssemos olhos para vê-lo.
Considero que o desafio atual da humanidade é desenvolver essa capacidade de enxergar
este elemento de ligação que sustenta a vida. Enxergá-lo e reverenciá-lo de forma consistente
para que possamos ter um futuro como espécie e para que a Terra não seja destruída. Afirmo
também que a perspectiva cuidadosa da vida vem sendo trabalhada com nomes diversos dentro
de tradições diversas, ou de saberes diversos, e que aos poucos vem ganhando força de cultura.
139

Em seu mais recente livro, Leonardo Boff (2018) faz uma maravilhosa síntese de toda
sua trajetória como pensador e teólogo, abarcando os termos ecologia, espírito, espiritualidade
versus religião, e cuidado em diferentes momentos. Chama atenção para a necessidade do
nascimento de uma ética comum, nomeada por ele de cordial, que embase uma nova
cosmovisão da humanidade pautada no paradigma do cuidado. Postula também, com base em
Heidegger, o cuidado como sentido ontológico do humano, sua característica fundante e
fundamental. Afirma que “a existência jamais é pura existência; é uma coexistência, sentida e
afetada pela ocupação e pela pre-ocupação, pelo cuidado e pela responsabilidade no mundo
com os outros, pela alegria ou pela tristeza, pela esperança ou pela angústia” (BOFF, 2018, p.
132).
A partir dessa premissa de coexistência cuidadosa, passo então a relatar algumas outras
pérolas que compõem minha compreensão de Cuidado.
Segundo Ibn Al-Arabi (2012) as coisas do mundo manifesto são as palavras divinas, ou
seja, os atos de Deus (2012, p. 59). Sendo assim, o autor investiga e aprofunda o sentido dos
nomes que são atribuídos a Ele na tradição islâmica. O nome Al-Muhaymin, traduzido como se
segue, elucida uma compreensão interessante que destacarei abaixo:

O Guarda, O Torcedor, O Protetor, O Vigilante


A função da proteção divina consiste na supervisão, em dar testemunho de
todas as coisas protegendo e cuidando delas, em virtude do qual estão
implicitamente contidas nestes os nomes o Preservador e o Vigilante, visto
que "testemunha pessoal" quer dizer preservação e observância atenta de tudo
o que acontece, seja movimentos ou descansos (AL-ARABI, 2012, p.58)76.

Compreendo que ao atribuir a qualidade de guarda, torcedor, protetor e vigilante à força


que permeia todas as esferas da vida, e afirmar que estas características estão expressas em uma
atitude de testemunho, o cuidado se transforma em uma maneira de dar existência às coisas. Ou
melhor, de testemunhar a existência das coisas através da comunhão e da contemplação. Como
se todas as relações fossem cunhadas pela força do testemunho, do caminhar juntos, de poder
ver e sentir uns aos outros.

76
“El Celador, El Amparador, El Protector, El Vigilante: La funcipon del divino amparo
(muhayminiyya) consiste em la supervisión, em dar testimonio de todas las cosas (al-sahãda adà l-asya)
protegiéndolas y cuidando de ellas, em virtude de lo cual están implícitamente contenidos em éste los
nombres em Preservador (al-Hafiz) y el Vigilante (al-Raib), ya que ‘testimonio presencial’ (suhud)
quiere decir preservación (hifz) y atenta observancia (mura a) de cuanto acontece, ya sean movimentos
(harakat) o reposos (sahanat)” (AL-ARABI, 2012, p.58).
140

Se permanecermos contemplando um pouco mais a imagem de um organismo vivo –


um corpo, por exemplo –, é possível perceber que para que a vida se dê e se mantenha, é preciso
haver uma confluência de ações metabólicas com base em uma dinâmica altruísta pelo bem do
todo. Vou repetir: se uma parte do corpo adoece, todas as forças se voltam para a cura daquela
parte e ao mesmo tempo não se esquecem do todo77. Acontece uma dinâmica de ações
complementares na qual não cabe a ideia de partes segmentadas ou de egoísmo. Não há como
um coração se salvar sozinho, ele precisa do organismo todo para continuar batendo.
Neste sentido, a ideia de testemunho como um caminhar comum, ressaltada por Ibn
‘Arabi, pode ser verificada nas palavras de outro pensador proveniente de uma tradição
completamente diferente da do primeiro. Rudolf Steiner, no que tange a questão social, afirma
que “toda a penúria humana é consequência apenas do egoísmo e que uma comunidade de
pessoas, de alguma forma baseada no egoísmo, mais cedo ou mais tarde, necessariamente se
confrontará com a miséria, a pobreza, a penúria” (STEINER, 1983, p. 20). Com base nesta
percepção de ordem espiritual, mas que afirmo aqui poder ser perceptível também no que
costumamos entender por esfera biológica, o mesmo autor postula o que denomina por Lei
Social Primordial:

O bem de uma integralidade formada por pessoas que trabalham em conjunto


é tanto maior quanto menos o indivíduo exigir para si os resultados de seu
trabalho, ou seja, quanto mais ele ceder estes resultados a seus colaboradores
e quanto mais suas necessidades forem satisfeitas não por seu próprio trabalho,
mas pelo dos outros (STEINER, 1983, p. 21).

Ao resgatar esta passagem, a qual traz uma ideia de prática que aos olhos ocidentais
pode parecer algo impossível, imediatamente me recordei de que entre os costumes dos
Yanomami descritos por Davi Kopenawa, está a premissa de que os caçadores dessa tradição
não comem a sua própria caça. Entre eles, o gesto de caçar e compartilhar o alimento com os
outros integrantes de sua comunidade, sem reverter para si os frutos de seu trabalho, é visto
como generosidade tanto pelas pessoas, como pelos espíritos e pelos próprios animais que se
oferecem alegremente aos caçadores que preservam tal costume. Gestos de bravura são
diretamente ligados a construção de uma ética cunhada pela generosidade, pela partilha e pela
confiança de que todos estarão sempre nutridos.

77
“A doença significa um dano à totalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou eu, em minha
totalidade existencial, que sofro” (BOFF, 2002, p. 143).
141

Essa confiança de que todos estarão sempre nutridos me parece o cerne de uma
percepção de mundo completamente antagônica à nossa percepção e experiência de mundo
ocidental do século XXI. Davi nos diz: “Nós nunca morremos de fome na floresta. Só morremos
da fumaça de suas epidemias” (KOPENAWA, 2015, p. 486). Os indígenas, vivendo em sintonia
e em profundo respeito às forças generosas da natureza, nunca passam fome e por isso não
precisam competir, estocar, garantir o seu pedaço de comida em detrimento dos outros. O que
fundamentalmente os povos originários sempre vivenciam em seu modo de habitar a terra é um
elemento de sincronia entre os eventos da natureza, nos quais eles mesmos estão incluídos.
Como nos diz Philipe Descola, “na verdade, o ser humano não se basta mais, como espécie
solitária e autossuficiente: a natureza e a cultura não mais se distinguem; a sociedade e o
ambiente fazem parte de um mesmo itinerário” (DESCOLA, 2013, p. 97).
Aliando as ideias de “viver como um ato de testemunho” à uma “ética de generosidade”
dentro de uma compreensão de mundo em que “sociedade e ambiente fazem parte de um mesmo
itinerário”, começamos a desenhar uma outra cultura baseada nos seres vivos como forças
relacionais dentro do que estou chamando de Espiritualidade do Cuidado.
Dalai Lama é outro autor que carrega a esperança por uma mudança de cultura através
da criação de uma ética secular. Em seu livro mais recende, Além da Religião: uma ética por
um mundo sem fronteiras (2016), argumenta que as religiões como um todo oferecem muitos
benefícios em relação à orientação moral e a um sentido para a vida, mas que “no mundo secular
de hoje, a religião sozinha não é mais adequada como base para a ética” (2016, p. 15). E
continua:

No passado, quando os povos viviam relativamente isolados e separados uns


dos outros [...] o fato de cada grupo seguir uma abordagem da ética baseada
em uma própria religiosidade não apresentava dificuldades. Atualmente,
qualquer resposta baseada na religião ao problema da nossa negligência aos
valores internos nunca poderá ser universal porque será insuficiente.
Precisamos hoje de uma abordagem da ética que não recorra à religião e que
possa ser aceita tanto por aqueles que têm fé como pelos que não a possuem:
uma ética secular (DALAI LAMA, 2016, p. 15).

Este livro se apresenta como um verdadeiro convite à ação. Uma espécie de movimento
que chegue ao mundo, mas que parta de um aprofundamento interno através da presença e de
valores éticos fecundos comum a todos, com o firme propósito de não contradizer nenhuma
religião e nem mesmo a ciência. Assim, o autor justifica o uso do termo “secular” a partir do
que acontece na Índia, onde “implica em um profundo respeito e tolerância a todas as religiões,
como também uma atitude inclusiva e imparcial que agrega os que não têm uma fé” (DALAI
142

LAMA, 2016, p. 22). Ou seja, uma ética secular não seria uma oposição à religiosidade em prol
de uma visão de mundo materialista ou científica aos moldes ocidentais, mas sim uma atitude
de valores inclusivos e tolerantes em benefício do que nos é comum.
Sinto que o que Sua Santidade está nos trazendo se aproxima do que pretendo
caracterizar como espiritualidade do cuidado – o ato de considerar a legitimidade de existência
do outro em uma profundidade complementar a nossa própria existência. Para tanto, o autor
cita o imperador Ashoka, que viveu no terceiro século antes de Cristo: “Honre a religião alheia,
porque assim irá fortalecer tanto a própria quanto a do outro” (DALAI LAMA, 2016, p. 25).
Eu diria: honre o ponto de vista alheio, pois ele não diminui em nada a legitimidade de
existência do seu ponto, somente acrescenta um fio precioso agregando um colorido novo ao
tecido amplo e inconclusivo da realidade. E, nesse sentido, cabe acrescentar tons de humildade
e obediência às nossas propostas de explicações da realidade, resgatando o fato de que existem
perguntas grandiosas demais78 para um único ponto de vista79. É preciso que se leve em conta
que existem pontos cegos e pontos de conhecimento imagéticos:

O elefante no quarto escuro

Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente
se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles
pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma
ideia de como ele era. Um apalpou a tromba e declarou que o animal parecia
um cano de água; outro apalpou a orelha, e disse que deveria ser um leque
enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu
dorso e declarou que o animal deveria ser como um grande trono. De acordo
com a parte que apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal.
Um, por assim dizer, chamou-o de Dal e outro de Alif [Alif e Dal – Primeira e
quarta letras do alfabeto árabe (alifato)] (RUMI, 1992, p. 155-156).

Somente unindo os pontos de vista poderemos ter uma noção da grandiosidade do todo,
porém, mesmo que houvesse mãos suficientes para tocar todos os detalhes de uma existência,

78
“Uma pergunta é irrespondível quando não é possível responde-la operando desde as coerências
experienciais do domínio do vier do observador em que se formula, e na urgência de responde-la torna-
se necessário inventar princípios explicativos a priori para fazê-lo (como o Ser e o Real). A invenção
de princípios explicativos a priori abre caminho a um conviver que pode levar-nos à cegueira na
antroposfera que geramos em nosso conviver, ante a presença de outros seres humanos, de outros seres
vivos, oi da própria biosfera, como de fato tem ocorrido, ao gerar ideologias conscientes ou
inconscientes que nos levam a esquecer nossos fundamentos humanos de nosso habitar na Biologia do
Amar” (MATURANA; YÁÑEZ, 2009, p. 25).
79
Leonardo Boff fala em ecologização dos saberes: saber de saberes entre si relacionados criando uma
comunidade de vida (BOFF, 2019, p. 98).
143

a junção das percepções não abarcaria o todo. A união de uma tromba, quatro patas, duas orelhas
e um dorso faz a ideia de um elefante, mas não faz um elefante, nem em sua singularidade e
muito menos em sua coletividade.
Neste sentido, nos fala Coccia:

Não é ligando entre si exclusivamente os fenômenos que têm a mesma


natureza ou a mesma forma (os fenômenos físicos a outros fenômenos físicos,
os fatos sociais a outros fatos sociais, etc.) que conseguiremos compreender o
mundo. Não é recalcando a natureza dessemelhante de seus componentes que
poderemos apreender o que torna possível a vida de todos. O mundo não é um
espaço definido pela ordem das causas, mas antes pelo clima das influências,
a meteorologia das atmosferas. Vida e mundo são apenas nomes da mistura
universal, do clima, da unidade que não comporta a fusão da substância e da
forma (2018, p.114)

A ideia de cuidado assim colocada fala de uma perspectiva inclusiva do que nos é
semelhante e do que nos é característico, singular. Do que nos é próximo, seguro, conhecido e
reconfortante, somado ao que nos é distante, novo, inquietante e desafiador. É carregar e
amparar a legitimidade de existência incondicional e necessária da diversidade. Não como um
relativismo difuso e superficial, mas como um desinvestimento na busca por universalizações
absolutistas. Somos ao mesmo tempo únicos e comuns, vivendo em sincronia a partir da
relação, inter-relação. Isto é o que também nos revela as já não tão recentes descobertas da
física moderna80 no tocante aos experimentos acerca da dualidade onda-partícula.
Danah Zoahr, no livro O ser quântico: uma visão revolucionária da natureza humana
e da consciência baseada na nova física (1990), sustenta a tese de que tanto a consciência como
a matéria emergem de um mesmo e único processo chamado de “mundo dos acontecimentos
quânticos”. Isto implicaria em uma compreensão de que seríamos ao mesmo tempo partícula,
portanto matéria, e onda, portanto frequência (1990, p. 22).

A mais importante afirmação que a física quântica faz acerca da natureza da


matéria, e talvez do próprio ser, provém da descrição da dualidade onda-
partícula - a afirmativa de que todo ser, no nível subatômico, pode ser
igualmente bem descrito como partículas sólidas, como um certo número de
minúsculas bolas de bilhar, ou como ondas, como ondulações na superfície do

80
Vou entrar nesta seara com bastante cautela, mas sinto que minha reflexão não poderia deixar de tocar
a física quântica. Primeiro porque Leonardo Boff é o autor que me trouxe esta indicação; depois porque,
ao me aprofundar mais nesta temática, passo a enxergar a física quântica como a parte mística da ciência.
Assim como na religião temos a parte exotérica e a esotérica, agora temos a parte mística da ciência da
matéria. A parte mística de toda e qualquer tradição religiosa é aquela que dá conta de descrever,
primordialmente por relatos de experiências, aquele momentum no qual, por uma fração de segundos,
um ser mergulha em si mesmo em tal potência que se torna capaz de tocar a unidade, o grande mistério.
144

oceano. Mais que isso, a física quântica prossegue dizendo que nenhuma das
duas descrições tem real precisão quando isolada e que tanto o aspecto onda
como o aspecto partícula do ser devem ser levados em conta quando se
procura compreender a natureza das coisas [...] A ‘substância’ quântica é,
essencialmente, ambos: o aspecto onda e o aspecto partícula simultaneamente
(ZOHAR, 1990, p. 24-25).

Prótons e elétrons são ao mesmo tempo algo de matéria e algo de etéreo. Porém, não é
possível medir essa simultaneidade. Quando se mede a onda, a partícula se perde. Quando se
mede a partícula, a onda se perde. E mais curioso ainda é o fato de que as substâncias
subatômicas enquanto se manifestam como onda, se comportam como coletividades, se
misturando e criando totalidades mais complexas; e enquanto se manifestam como partícula, se
individualizam.
Esta afirmação abre campo para muitas reflexões filosóficas que não pretendo esgotar
aqui, mas especialmente me remete à definição de “ser” absolutamente contemporânea feita por
Tim Ingold, trabalhada no primeiro capítulo. Ele diz que “somos um nexo singular”, uma
maneira singular de se vincular. Percebo que lá, Ingold abarca essa dimensão do ser, de nós e
de todos, que é ao mesmo tempo única e plural, individual e social, imanente e transcendente.
Esta percepção me leva a resgatar as formulações de Ibin Arabi sobre dois termos da tradição
Islâmica: tanzih – é o termo usado para designar Deus como o Absoluto, o Princípio, o
Inalcançável, a transcendência pura; e tasbih, que dá conta da imanência, da autorrevelação
divina através de suas criações e criaturas.
Tradicionalmente estes dois termos são tratados de forma excludente e incompatíveis.
Tanzih fala de um Deus absolutamente transcendente e completamente alheio a matéria. Porém,
Ibn ‘Arabi nos apresenta uma nova percepção. Afirma que qualquer crença religiosa que pregue
a imperiosa distância entre a força criadora e sua criação acaba por limitar a Deus. “‘Purificar’
a Deus até este ponto e reduzi-lo a algo que nada tem a ver com as criaturas é mais uma maneira
de delimitar a divina Existência, que é, na realidade, infinitamente vasta e infinitamente
profunda” (IZUTSU, 2004, p. 65):

Ibn Arabi considera esses termos de uma maneira muito original, embora
consiga, de alguma forma, manter o sentido que eles têm no contexto
teológico. Resumidamente: tanzih, em sua terminologia, indica o aspecto de
"absoluto" (itlaq) do Princípio, enquanto tasbih se refere ao seu aspecto de
"determinação" (taqayyud). Ambos são, nesse sentido, compatíveis e
mutuamente complementares, e a unica atitude correta, no nosso caso, é a de
afirmar ambos ao mesmo tempo e com igual enfase (IZUTSU, 2004, p. 64).
145

Meu primeiro contato com a cosmologia de Ibin ‘Arabi foi através das aulas com o
Professor Pablo Beneito, que esteve no PPCIR em 2013. Ele trabalhou os conceitos de Tanzih
e Tasbih dentro desta perspectiva da complementaridade da imanência e da transcendência, e
dizia algo mais ou menos assim: quando Deus parecer muito distante e inalcançável, você se
sentir muito sozinho neste mundo, lembre-se de que Ele está também próximo e se revela nos
pequenos milagres do cotidiano. Quando você se sentir muito poderoso e materialista, lembre-
se de que você é pequeno diante da magnitude do transcendente. Tomei estas palavras como
um conselho de um mestre.
Cuidado, então, agrega a consciência de nossa vida como uma experiência que é ao
mesmo tempo, e necessariamente, relacional e individual (como ondas e partículas);
transcendente e imanente (como tanzih e tasbih); vertical e horizontal (pés na terra, braços
estendidos para o próximo, cabeça nas alturas); obediente e libertária (reverente e criativa).
Diante do movimento que é o próprio fluir da vida, é preciso que a consciência humana não se
limite a apenas um dos pontos nessas polaridades. E, repito, o amor é o cuidado colocado em
movimento. O cuidado é o despertar do altruísmo na confiança de que a vida se dá e se sustenta
a partir da diversidade relacional, e de que se assim for, todos serão nutridos.
No final da Encíclica Laudato Si, papa Francisco nos presenteia com uma oração que
incorpora a perspectiva do cuidado como imperativo humano:

Oração pela nossa terra

Deus Onipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequena das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres da terra.
146

Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,


a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais conosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
Pela justiça, pelo amor e pela paz. (LS, p. 140).

3.2 O LEGADO DO FEMININO

#Não, é não.

Sinto cada passo da escrita desta tese como um passo revolucionário em direção a
minhas próprias entranhas. Talvez este que inicio agora tenha sido o mais subestimado. Achava
que já sabia exatamente o que iria escrever. Minha intuição de partida é que existe uma
sabedoria emaranhada ao elemento feminino do mundo que, caso seja valorizada, pode fazer
emergir o cuidado como prática e como forma de cultura81. Porém, uma afirmação feita deste
modo, em nosso tempo e contexto, ou seja, diante das diversas discussões e pautas feministas,
pode parecer irresponsável, universalizante e até preconceituosa. Espero conseguir chegar a
uma esfera argumentativa de conciliação em que minha intuição de base possa ter lugar de
legitimidade sem enfraquecer os diversos outros pontos de vista. Embora acredite que este
talvez seja um trabalho para uma vida toda.
Então, primeiramente esclareço meu lugar de fala. Me identifico como mulher. Nunca
questionei em mim este modo de existir, portanto, sou cis82. Branca, de classe média alta,
nascida em meados da década de 70 em São Paulo, mas me considero carioca, pois foi no Rio
de Janeiro onde vivi os primeiros trinta anos de minha vida. Sou filha de uma feminista, não
uma ativista, mas uma mulher que ocupou e foi bem-sucedida em ambientes que ainda hoje são

81
Teilhar percebeu isso com clareza em seu livro Il cuore della matéria (2007), no qual dedica uma
parte ao tema do Feminino como “Unitivo”. Diz que à construção de sua visão interior faltaria um
elemento (uma atmosfera) essencial se não captasse esse feminino. Diz: “comecei a despertar-me e a
formular-me verdadeiramente a mim mesmo (...) sob o olhar e um influxo feminino” (CHARDIN, 2007,
p. 49). Dizia que não há como chegar à maturidade e plenitude espiritual fora deste influxo sentimental
que sensibiliza a inteligência e excita suas potências de amor (CHARDIN, 2007, p. 50).
82
Cisgênero (Cis) é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos,
com o seu “gênero de nascença”.
147

majoritariamente masculinos e machistas. Minha mãe relata que até tinha alguns “privilégios”
nesses ambientes, juntamente pelo fato de ser mulher. Tínhamos “empregada”, babá, motorista,
carro, tudo financiado por homens que tinham a intenção de que ela fosse o mais eficiente
possível para a empresa do mercado publicitário. Ela é mesmo uma pessoa brilhante. Pode ser
considerada uma feminista da Terceira Onda, que galgou e alcançou espaço e notoriedade em
nossa sociedade.
Porém, em minha experiência infantil, minha mãe trabalhava o tempo todo. Sentia falta
dela e cobrava muito sua presença. Sentia como abandono o fato de ela chegar sempre atrasada
nos eventos da escola e não valorizava o fato de ela cozinhar para a família toda nos finais de
semana. Não valorizava o fato de que justamente o trabalho que me tirava sua presença era o
que possibilitava uma série de oportunidades ligadas a consumo, estudos, viagens e ideias de
mundo. Não enxergava claramente a mulher massacrada que habitava sob aquela carapaça
poderosa e admirada por todos. Cresci com o imperativo expresso de que mulheres tinham que
ser fortes. Neste contexto, ser forte significava não depender financeiramente de ninguém,
principalmente de nenhum homem. Simultaneamente, captava nas sutilezas das escolhas de
minha mãe um enorme desejo de “formar família”, o que incluía casamento e maternidade, e
também sua dependência emocional com relação aos homens. Passei de menina a mulher imersa
em uma certa cisão interna e só pude reconhecê-la quando passei a expressá-la em minhas
próprias escolhas. Um detalhe importante que forja meu ser mulher, profissional e feminista foi
que assisti minha mãe grávida duas vezes, quando tinha dez e quinze anos. Na primeira vez
meu irmão nasceu prematuro extremo e passou uma “eternidade” internado em uma UTI. Na
segunda vez, minha irmã nasceu a termo, mas faleceu com três meses. Meu olhar infantil
entendia que tudo aquilo era culpa do trabalho, e talvez em alguma medida fosse mesmo.
Quanto a meu pai, sua ausência, embora fosse amplamente sentida, era perdoada. Me
acompanhava um discurso difuso de que ele não era forte o suficiente e de que fazia o que
podia. Estranhamente cresci sentindo que mulheres eram fortes e homens fracos, tanto
financeiramente como emocionalmente.
Escolhi estudar psicologia. Neste percurso, resgatei a imagem e a relação com meu pai.
Fui fazendo contato com as sutilezas das forças e das fragilidades do ser humano, não só como
homens e mulheres, mas como pessoas vivendo em um contexto de extremas exigências de
sobrevivência e desejos de felicidade. Percebi que no fundo, todos, e cada um de nós, faz o
melhor que pode, o que dá conta, diante das múltiplas narrativas de verdades contemporâneas.
Me tornei profissional, esposa e mãe no mesmo ano, nessa ordem. Isto me causou um
imperativo de forças e desejos desconexos simultâneos. Me apaixonei pela maternidade a tal
148

ponto que na impossibilidade de vivê-la unicamente, fiz dela minha profissão. Estranhamente
convivo com um sentimento quase inconfessável de que as mulheres que podem ser “só mães”
são dotadas de um grande privilégio. Pessoalmente e emocionalmente sou uma feminista
esquisita porque ao mesmo tempo em que apoio todas as pautas do feminismo, sinto que por
conta de algumas delas fui privada de meu desejo mais profundo e que muitas vezes não me
senti incluída neste movimento.
Espero que esteja claro que escrevo uma tese a favor da legitimidade de existência, de
todas as existências, e de que compreendo que o fundamental é que encontremos como seres
vivos estratégias de sobrevivências cuidadosas que abarquem todas as nossas complexidades.
Porém, dentro do meu lugar de fala e de meu sentir profundo, cabe lembrar e dar o devido valor
ao fato de que a mulher é a ponte, ou o portal, entre os mundos. Pelo menos entre o de antes e
o daqui. Cabe lembrar que ao corpo da esmagadora maioria das mulheres se agrega a potência
criativa máxima de poder gerar, sustentar, nutrir e fazer surgir um novo ser humano. Este fato
não deve ser considerado de forma restritiva em relação às mulheres, mas sim como ponto de
partida para uma proposta de compreender simbolicamente o que as singulariza. Ou melhor,
tentar compreender que qualidades de percepções de mundo podem emergir a partir da
valorização simbólica da condição feminina que se compõe a partir da possibilidade de iniciar
e sustentar mundos em sua própria barriga. Como essa potencialidade assim valorizada afeta
suas atuações no mundo, seus modos de ver, sentir e produzir práticas e conhecimentos?
Trago aqui uma história que pode ilustrar a tomada de consciência das mulheres sobre
seu poder no mundo. Nela fica evidente a capacidade de fazer escolhas e de construir e
descontruir mundos. A capacidade de uma mulher de se negar a ocupar o papel que é imposto
a ela pelo imperativo social. Trata-se de uma introdução imagética sobre o pensamento
feminista, mas também sobre as dores do feminino:

Moça Tecelã

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas
da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando
entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o
horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete
que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na
penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos
longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à
janela.
149

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e


espantavam os pássaros, bastava à moça tecer com seus belos fios dourados,
para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes
pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de
escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede
vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois
de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha,
e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca
conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam
companhia. E aos poucos, seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado,
rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente
acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à
porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de
pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que
teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos,
logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais
pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo,
agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo,
fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — Perguntou. Sem querer
resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios
e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para
chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.
Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o
ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para
ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta
à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de
luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia.
Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior
que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em
como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com
novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da
torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao
contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu
tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois
desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E
novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
150

A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e,


espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o
desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as
pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o
emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E
foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã
repetiu na linha do horizonte”.
(COLASANTI, 2000).

3.2.1 Feminismo em ondas

Falar da mulher, [...] É assumir a postura incômoda de se indignar com o


fenômeno histórico em que metade da humanidade se viu milenarmente
excluída das diferentes sociedades, no decorrer dos tempos (TELES, 1999, p.
9).

O Feminismo emerge como um movimento organizado, dando voz às reivindicações de


mulheres, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, a partir do século XIX.
Historicamente, vem sendo relatado como ondas geracionais que dão conta de expressar o
amadurecimento do movimento tanto quanto ao refinamento de suas pautas e reivindicações,
como quanto a sua expansão.

Considerando-se que a história teve início nas primeiras décadas do século


XIX – o momento em que as mulheres despertam do “sono letárgico em que
jaziam”, segundo Mariana Coelho -, nota-se a existência de pelo menos quatro
momentos áureos na história do feminismo brasileiro. Longe de serem
estanques, tais momentos conservam uma movimentação natural em seu
interior, de fluxo e refluxo, e costumam, por isso, ser comparados a ondas, que
começam difusas e imperceptíveis e, aos poucos (ou de repente), se avolumam
em direção ao clímax – instante de maior envergadura, para então refluir numa
aparente calmaria, e novamente recomeçar (HOLLANDA, 2019, 26).

É possível identificar que as primeiras insurreições de mulheres pegam carona nos ideais
da Revolução Francesa (1789-1799) e se concretiza como algo mais palpável quando Olympe
de Gouges escreve a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã em 1791. Este documento
marca o surgimento de um questionamento sobre o aspecto androcêntrico de nossa percepção
de mundo. Sinto que toda a trajetória feminista está sendo capaz de produzir uma qualidade de
conhecimento, portanto uma nova narrativa, que vem perpassando camadas cada vez mais
profundas e amplas sobre o que significa desnaturalizar a centralidade do pensamento
151

masculino branco e heteronormativo operante na forma humana de ser e se relacionar no


mundo. Este caminho se deu, e se dá, no sentido de uma ampliação de consciência; não nasceu
pronto, ainda não está pronto. É possível atestar que ele se inicia fazendo reinvindicações bem
práticas e localizadas – direito ao voto, igualdade de direitos perante a lei e relações simétricas
dentro do casamento, pedido por mulheres brancas, na primeira onda –, e que com o tempo vai
ganhando complexidade, incorporando vozes, valores e direções de sentido. Tentarei aqui
acompanhar o movimento em ondas dessa bela jornada rumo ao que enxergo ser o caminho da
expansão do sentido do cuidado no mundo.
Destaca-se, então, o Movimento Sufragista no início do século XX na Europa,
movimento este que brigava pelo direito ao voto. Nos Estados Unidos, mulheres se uniam ao
Movimento Abolicionista em prol do direito ao voto e fim da escravidão. Esse momento é
marcado pelo discurso de uma ex-escrava chamada Sojourner Truth (1851)83, que destacava a
invisibilidade das mulheres negras e deflagrava a necessidade de que o movimento feminista
passasse a considerar as singularidades das pautas de mulheres inseridas em diferentes
realidades (DAVIS, 2018). Truth relatou à plateia de mulheres brancas uma realidade
absolutamente diversa e consideravelmente mais opressora que a delas, e então lançou a
pergunta: “E por acaso eu não sou uma mulher?”. Este questionamento inspirou o movimento
das mulheres negras que hoje se espalha pelo mundo todo. Destaca-se também que os
feminismos socialista, marxista e anarquista levantaram pautas ligadas à situação das mulheres
operárias, e também tiveram sua insurreição neste mesmo momento histórico.
Em 1949, Simone de Beauvoir lança o livro Segundo Sexo (1949) que, com o tempo,
tornou-se um marco da literatura feminista mundial. “O que é ser mulher?”, ela se pergunta.
Imersa nos ideais do Existencialismo, a autora atesta a existência de um discurso hegemônico
que atribui características, lugar e função a cada gênero de forma binaria e rígida, e que nessa
construção de pensamento o espaço atribuído às mulheres era o de ser frágil, dócil e
subserviente. Beauvoir busca desnaturalizar a ideia de uma essência ou de uma natureza
feminina dentro de três grandes áreas de saber: a biologia, a psicanálise e a cultura materialista.
Coloca o “ser mulher” como uma construção social feita a partir do olhar masculino sobre O
Outro, no caso, a mulher. Nessa dialética, o outro é tido como estranho, misterioso, louco, e
necessitaria, portanto, ser controlado, dominado. Surge, então, o imperativo que se torna o mote
de toda uma geração: “Não se nasce mulher, torna-se”. A liberdade de uma autocriação

83
E não sou uma mulher? – mote do discurso feito por Sojourner Truth em uma convenção de mulheres
em Akron, Ohio, em 1851. Continua sendo uma das mais citadas palavras de ordem do movimento de
mulheres do século.
152

feminina estava posta e aos poucos iria reverberar pelo mundo como semente que brota em terra
fértil.
A Segunda Onda acontece entre 1960 e 1980, em meio ao movimento da Contracultura.
Nesse momento, a maioria dos países ocidentais já tinha garantido por lei o direito de igualdade
entre homens e mulheres, porém, na vida prática e política ainda se verificava uma forte
submissão delas em relação aos homens. Nos Estados Unidos, Carol Hanisch funda o
Feminismo Radical ou Movimento de Liberação de Mulheres, o qual pretende transformar pela
raiz as relações de poder. Com o mote “o pessoal é político”, em 1969 o movimento passa a
discutir a similaridade entre as opressões vividas pelas mulheres nas esferas pública e privada.
O mito da “mulher moderna”, que já havia sido apontado por Simone, e que foi sedutoramente
construído e consolidado pelo mundo capitalista para mantê-las na esfera do privado, começa
a ser colocado em xeque.
No Brasil, embora haja registos de ações de mulheres desde os tempos de colônia, é
somente entre as décadas de 1960 e 1980 que o feminismo começa a ganhar força como
movimento social. Em meio a ditadura militar, mulheres se uniram em prol da democracia,
valorização do trabalho da mulher, direito ao prazer e contra a violência sexual. Começaram a
se organizar em pequenos focos de estudos e resistência por todo o país. Aos poucos, foram se
articulando e travando diálogos com o Ministério da Saúde. Em 1984 foi criado do Programa
de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e em 1991 a Rede Feminista de Saúde e
Direitos Reprodutivos (MELO; SCHUMAHER, 2017), entre outras ações.
A Terceira Onda Feminista tem início na década de 1990 e traz como característica
principal a percepção de que mulheres têm demandas específicas. A partir da escuta das
singularidades vividas por mulheres em dinâmicas de realidade diversas, passou a ser
impossível e inoportuno falar em “a mulher”, no singular. Nasce o que se convencionou chamar
o “Feminismo da Diferença”, baseado em leituras pós-estruturalistas e pelo fortalecimento dos
diversos movimentos de mulheres negras em vários pontos do globo.
Angela Davis é um dos grandes ícones desta geração. Em 1981, lança o livro Women,
race and class que, embora só ganhe uma tradução para o português em 2016, se torna um
marco na discussão sobre a necessidade de se entrecruzar os conceitos de gênero, raça e classe84

84
“Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi
desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere
a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo. Além
disso, a autora mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso
considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade”
(RIBEIRO, 2016, p. 18).
153

para abarcar uma dimensão mais clara da dinâmica de opressões sofridas pelas diferentes
populações, especialmente as mulheres negras. Segundo Djamila Ribeiro escreve no prefacio
do livro, Angela Davis

pensa as diferenças como fagulhas criativas que podem nos permitir interligar
nossas lutas e nos coloca o desafio de conceber ações capazes de desatrelar
valores democráticos de valores capitalistas. Essa é sua grande utopia. Nessa
construção, para ela, cabe às mulheres negras um papel essencial, por se tratar
do grupo que, sendo fundamentalmente o mais atingido pelas consequências
de uma sociedade capitalista, foi obrigado a compreender, para além de suas
opressões, a opressão de outros grupos (RIBEIRO, 2016, p. 20).

O entrecruzamento dessas três categorias – gênero, raça e classe –, que posteriormente


vai ser abrigado dentro do conceito de interseccionalidade, fez campo para o surgimento de
alguns outros recortes dentro do movimento feminista, tais como movimento feminista lésbico,
trans., rural, indígena, dentre outros.
Ampliam-se também os debates sobre a categoria de gênero85. Este campo se
complexifica consideravelmente quando Donna Haraway lança seu Cyborg Manifesto: Science,
Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century (1985) e sugere uma ruptura
com a política indenitária para dar lugar a um modo de pensar que considere as diferenças e as
afinidades entre mulheres. Haraway se coloca no exercício de repensar as fronteiras entre
gênero, sexualidade, raça e tecnologia, a ponto de desqualificar as tradicionais dominações
binárias e hierárquicas de nosso sistema.

O ciborgue, criatura formada por fusões entre máquina e organismo, mistura


de realidade social e ficção, não constituindo um corpo sólido com
componentes definidos, seria uma metáfora dessa nova política em um mundo
marcado de forma crescente pelo binômio ciência e tecnologia, no qual as
fronteiras entre humano e animal, organismo e máquina, e entre físico e não-

85
Nesse contexto, Gayle Rubin é considerada a pioneira destro dos estudos de gênero. No texto
Pensando sexo: notas para uma teoria radical da sexualidade, afirma: “É impossível pensar com clareza
as políticas da raça ou gênero porquanto estas são pensadas como entidades biológicas ao invés de
construtos sociais. Similarmente, a sexualidade é inacessível à análise política enquanto for concebida
primariamente como um fenômeno biológico ou um aspecto da psicologia individual. A sexualidade é
tão produto da atividade humana como o são as dietas, os meios de transporte, os sistemas de etiqueta,
formas de trabalho, tipos de entretenimento, processos de produção e modos de opressão. Uma vez que
o sexo for entendido nos termos da análise social e entendimento histórico, uma política do sexo mais
realista se torna possível. Uma pessoa pode então pensar as políticas sexuais nos termos de fenômenos
como populações, vizinhanças, padrões de ajustamento, migração, conflito urbano, epidemiologia, e
tecnologia política. Estas são categorias de pensamento mais frutíferas do que aquelas mais tradicionais
como pecado, doença, neurose, patologia, decadência, poluição, ou a ascensão e queda de impérios”
(RUBIN, 1984, p. 13).
154

físico mostram-se fluidas [...]Essas dicotomias anteriormente rígidas seriam


então desmanchadas, dando espaço a conceitos maleáveis e passíveis de
reconstruções, produzindo alternativas às tradicionais concepções de corpos e
modos de vida a partir da apreensão da tecnologia no cotidiano. Esse processo
de remodelamento de corpos e de relações mostra como os corpos são
construídos e podem ser desmontados, colocando à prova sua suposta
naturalidade e revelando suas possibilidades políticas
(FONTGALAND, CORTEZ, 2015, [n.p.]) .

Outra pensadora que se torna referência sobre o tema é Judith Butler, que lança o
polêmico livro Gender Trouble: Feminism and lhe Subversion of Identity, em 199086, no qual
procura “observar o modo como as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua
denominação errônea de fatos naturais” (BUTLER, 2003, p. 12). A autora cria a Teoria da
performatividade de gênero87. Postula a liberdade de gênero como a liberdade fundamental.
Argumenta que é necessário prestar atenção às pessoas que sofrem quando não podem, ou
simplesmente não querem, se adequar às expectativas que a sociedade atribui ao seu gênero.

A presunção aqui é que o “ser” de um gênero é um efeito, objeto de uma


investigação genealógica que mapeia os parâmetros políticos de sua
construção no modo da ontologia. Declarar que o gênero é construído não é
afirmar sua ilusão ou artificialidade, em que se compreende que esses termos
residam no interior de um binário que contrapõe como opostos o “real” e o
“autêntico”. Como genealogia da ontologia do gênero, a presente investigação
busca compreender a produção discursiva da plausibilidade dessa relação
binária, e sugerir que certas configurações culturais do gênero assumem o
lugar do “real” e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma
autonaturalização apta e bem-sucedida (BUTLER, 2003, p.58).

Em resumo, Butler procura explicitar todo e qualquer traço de exclusão, hierarquia e


universalismo inerentes às narrativas e estruturas de poder contemporâneos. Para tanto ela
revisita a psicanálise, principalmente nas figuras de Freud, Lacan e Kristeva, além de revisitar

86
Este livro foi traduzido para o português pela primeira vez apenas em 2003.
87
“Se o corpo não é um ‘ser’, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é
politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de hierarquia do gênero e
heterossexualidade compulsória, então que linguagem resta para compreender essa representação
corporal, esse gênero, que constitui sua significação “interna” em sua superfície? Sartre talvez chamasse
este ato de “estilo de ser”; Foucault, de “estilística da existência”. Em minha leitura de Beauvoir, sugeri
que os corpos marcados pelo gênero são “estilos da carne”. Esses estilos nunca são plenamente originais,
pois os estilos têm uma história, e suas histórias condicionam e limitam suas possibilidades.
Consideremos o gênero, por exemplo, como um estilo corporal, um “ato”, por assim dizer, que tanto é
intencional como performativo, onde "performativo” sugere uma construção dramática e contingente do
sentido” (BUTLER, 2003, p. 198-199).
155

também Lévi-Strauss e o dualismo natureza/cultura, a biologia e a concepção binária entre


homem/mulher, bem como algumas feministas como Wittig e Beauvoir. Com base em
Foucault, constrói uma teoria densa e de difícil digestão.
A Filósofa Yara Adario Frateschi, professora da Unicamp, em palestra para o programa
Café Filosófico – CPFL (2018), apresenta a seguinte reflexão sobre o pensamento de Judith
Butler:

Butler traz um pressuposto elementar de que nós somos seres de carência, de


que nós precisamos uns dos outros para viver, de que somos dependentes uns
dos outros. Então ela questiona aquele ideal do sujeito moderno que é
autossuficiente, que determina a si mesmo. Esse ideal de sujeito moderno é
uma ficção e é uma ficção que expressa aquilo que nós identificamos como
ideal masculino: puramente racional, independente, não relacional,
estritamente individual. Em contraponto a este ideal de sujeito é que a teoria
feminista afirma e reafirma a nossa interdependência. Que as pessoas
precisam para viver e bem viver de uma enorme rede de proteção, pessoal e
social. Butler chama isso de vulnerabilidade. Todos igualmente vulneráveis.
É claro que é uma vulnerabilidade que se torna profundamente crítica quando
passamos a ser explorados por causa de nossa vulnerabilidade, isso gera a
precariedade. O problema é que toda a tradição do pensamento moral e
político moderno parte do pressuposto de que nós poderíamos ser
considerados autossuficientes. Toda teoria que pretende ampliar a
democracia, radicalizar a democracia, torná-la menos excludente e mais
plural, precisa rever esta concepção. Este mito, não só nos impede que a gente
se veja e se entenda enquanto seres corporificados, contextualizados e com
histórias de vida, mas impede também que a gente veja o outro na sua
diferença. É claro que nós devemos ser considerados iguais num aspecto,
enquanto portadores de direitos. Mas qualquer pressuposto de igualdade que
não leva em conta a diferença, exclui o diferente (FRATESCHI, 2018).

Aparentemente foi a luta feminina por espaço, voz e direitos que trouxe para o debate
público algo que antes era reservado ao espaço doméstico. Foi o feminismo que começou a
questionar os padrões de comportamento estabelecidos para homens e mulheres, que, impostos
da maneira como são, desconsideram as particularidades e os desejos de cada pessoa. E quando
as mulheres reivindicam o direito de não serem condenadas aos estereótipos de seu gênero, elas
abrem para todos novas possibilidades de ser no mundo. Essas novas possibilidades estão
pautadas no imperativo, ao meu ver absolutamente revolucionário, da inclusão.
Nesse contexto, no início da segunda década do século XXI, emerge o que vem sendo
chamado de Quarta Onda Feminista, caracterizada por uma proposta de relação com o próprio
corpo, que é da ordem da insubordinação e da indignação, como uma postura política que entoa
156

narrativas de incômodos. Heloisa Buarque de Hollanda, feminista veterana, descreve assim essa
nova onda:

O feminismo hoje não é o mesmo da década de 1980. Se naquela época eu


ainda estava descobrindo as diferenças entre as mulheres, a
interseccionalidade, a multiplicidade de duas opressões, de suas demandas,
agora os feminismos da diferença assumiram, vitoriosos, seus lugares de fala,
como uma das mais legítimas disputas que têm pela frente. Por outro lado,
vejo claramente a existência de uma nova geração política, na qual se incluem
as feministas, com estratégias próprias, criando formas de organização
desconhecidas para mim, autônomas, desprezando a mediação representativa,
horizontal, sem lideranças e protagonismos, baseadas em narrativas de si, de
experiências pessoais que ecoam coletivas, valorizando mais a ética que a
ideologia, mais a insurgência que a revolução. Enfim, outra geração
(HOLLANDA, 2018, p. 12).

Essa nova geração parece estar experimentando na prática toda a revolução teórica feita
pelas feministas das ondas anteriores. Unidas em rede e pela rede, as mulheres parecem, agora,
dar mais importância ao que as une do que ao que as individualiza. É a vez do coletivo, dos
coletivos diversos, abarcando temáticas diversas, que se espalham por todo o mundo, nas ruelas,
nos bares, na academia, nas igrejas, nas favelas, nos bairros ou nos condomínios, silenciosa e
anonimamente. E podem se unir em grandes manifestações mundiais através de criativos
protestos contra eventos pontuais, como o caso de um estupro no México ou a proposta de
alteração de leis para dificultar o acesso ao aborto no Brasil, por exemplo.

O que se passa pelo mundo a fora desde 2008 não constitui uma série sem
coerência de erupções absurdas que ocorrem em espaços nacionais
herméticos. É uma única sequência histórica que se desenrola numa estrita
unidade de espaço e de tempo, da Grécia ao Chile. E só um ponto de vista
sensivelmente mundial permite elucidar o seu significado. [...]. Qualquer
insurreição, por mais localizada que seja, emite sinais para lá de si própria,
contendo de imediato qualquer coisa de mundial. Nela, elevamo-nos juntos à
altura da época presente. Mas a época é também o que encontramos no fundo
de nós mesmos quando aceitamos descer até lá, quando interrogamos aquilo
que vivemos, vemos, sentimos, percebemos. Há aí um método de
conhecimento e uma regra de ação; e há aí também a explicação da conexão
subterrânea entre a pura intensidade política do combate de rua e a presença
em si sem a maquilhagem solitária. É no fundo de cada situação e no fundo de
cada um que há que procurar a época. É aí que “nós” nos encontramos, é aí
que se fazem os verdadeiros amigos, dispersos pelos quatro cantos do globo,
mas que caminham juntos (COMITÊ INVISÍVEL, 2015, p.12).

As reflexões feitas por Maria Bogado para o livro de Heloisa Buarque de Hollanda sobre
as narrativas feministas expressas nas ruas do Brasil a partir de 2015 demonstram que a potência
157

do movimento atual está em habitar um lugar intersticial ou transversal entre o privado e o


público. As jovens estão descobrindo novas formas de dizer o que antes era censurado ainda
dentro da garganta e massacrava por dentro corpos que por fora se mostravam dóceis. “Ser
mulher” ou ser feminista para suas veteranas de luta ainda era orbitado por camadas de
vergonha, de inadequação, de tentativas de controle delas por elas mesmas. Esta nova geração,
parece, já cresceu sendo feminista. Perceberam que pela força do coletivo dores individuais se
dissolvem em dores da multidão. Quando o peso é compartilhado fica mais fácil de carregar,
pois as dores se transformam em um coro que brada por reconhecimento e mudança. Usam seus
próprios corpos como bandeiras ou outdoors que revelam a beleza que há em existir no tom de
sua época. Há mulheres pretas, brancas, indígenas, quilombolas, do meio rural, intelectuais,
cristãs, judias, islâmicas, da África ou da Europa, etc., as quais só agora se reconhecem em
aliança e se protegem. Com isso, fazem com que a aliança e a proteção existam no mundo como
uma forma ética de existir que pode reverberar em ressonância maior ainda.

Há pelo menos dois pontos a serem destacados acerca dos modos de


organização dos ativismos contemporâneos que eclodiram em julho de 2013
e são a marca do feminismo atual. Por um lado, a busca pela horizontalidade,
a recusa da formação de lideranças e a priorização total do coletivo. Por outro,
uma linguagem política que passa pela performance e pelo uso do corpo como
a principal plataforma de expressão (BOGADO, 2018, p. 32).

Mulheres têm se organizado em marchas. Não são passeatas; não são cortejos, não são
paradas e muito menos procissões. São marchas que proporcionam um diálogo contínuo entre
as pessoas que estão perto – e carregam palavras de ordem desenhadas em seus próprios corpos
ou pequenos cartazes – e as pessoas que estão longe – através das mídias sociais e das multidões
que marcham juntas, mesmo estando espalhadas por toda a parte do globo. Neste cenário passou
a acontecer um fenômeno novo, o qual considero sintetizar a tônica de uma mudança relacional
atrelada à necessidade de cuidado inerente aos novos movimentos de mulheres. Trata-se do
microfone-humano88, que é “um método de propagação da voz que tem o corpo humano como
tecnologia. São como jograis, funcionam com a multidão repetindo o que diz uma só pessoa,
de modo que torne a fala mais audível à distância” (BOGADO, 2018, p.35). Essa ferramenta

88
O microfone-humano vinha sendo usado para decidir pautas do movimento ou para emitir
comunicados breves como as decisões de trajeto de um protesto ou de organização prática de grupo de
trabalho. Contudo, no uso do microfone-humano apropriado pelas recentes manifestações no Brasil, as
singularidades pessoais emergem com mais ênfase. Assim as ruas passam a reverberar claramente a
experiência em primeira pessoa, em discursos propagados por campanhas nas redes sociais, como
aconteceu com a hashtag #PrimeiroAssédio (BOGADO, 2018, p. 35).
158

aparece no movimento feminista com uma variação interessante. Ofereço aqui as palavras de
uma moça que traduziu de forma brilhante o acontecimento:

Em maio de 2016, nas ruas do Rio de Janeiro e de outras cidades do Brasil


foram tomadas por milhares de mulheres indignadas com o inaceitável estupro
de 33 homens contra uma adolescente na zona oeste da cidade. “Mexeu com
uma, mexeu com todas”, gritavam. No final do protesto, a multidão de “todas”
se reuniu na escadaria da câmara municipal do Rio, na Cinelândia, e
compartilharam suas vivências. O microfone-humano deu lugar a longas
narrativas pronunciadas por uma mulher e repetidas pela multidão.
Trata-se de uma dinâmica peculiar de fala e escuta com consequências
visíveis. Uma delas é simplesmente a experiência de ter aquilo que era tabu,
secreto ou mesmo motivo de culpa ou vergonha exposto para todos. Quando
na marcha das Vadias os corpos ganham destaque, agora são as vozes que
expõem publicamente as vivências mais íntimas. O corpo ganha palavra e a
palavra, corpo.
Configura-se, além disso, uma sensação de identificação que vem da repetição
e do anonimato. O curioso dessa construção é que expõe uma empatia que não
se dá através de laços estreitos e íntimos, preestabelecidos por relações de
proximidade e convívio anteriores ao evento da manifestação, mas por uma
paradoxal pessoalidade impessoal. Aqui é importantíssimo sublinhar que essa
experiência desafia diretamente um limite conhecido das ações coletivas
tradicionais, que sempre esbarram na dificuldade de identificação subjetiva
entre os participantes dos protestos.
No caso das manifestações feministas, se, por um lado, a narrativa provém de
um “eu”, por outro ela se dissolve na repetição do grupo que circunda esse
“eu”. A narrativa, sem se tornar impessoal, passa a integrar a experiência do
grupo, que assume coletivamente a voz inicial: “mexeu com uma, mexeu com
todas”.
A segunda consequência sensível desse uso específico do microfone-humano
é a performance de uma horizontalidade. Se as narrativas pessoais são
marcadas pela posição social em que cada eu se insere, a repetição pela
multidão provoca a sensação de que poderia ter acontecido com qualquer uma,
ou pelo menos de que o que aconteceu deveria concernir a qualquer uma. Está
em jogo a percepção de um problema comum. Em vez de apagar a diferença
entre as histórias de vida que ali se apresentam, a repetição por todas serve
como fator de sensibilização com essas diferenças, como fator de aproximação
e criação de laços (BOGADO, 2018, p. 36-37).

Imagine poder ver e ouvir uma história pessoal sua ser propagada de forma respeitosa
por uma multidão sensível, que não só escuta, mas que, ao repetir, passa a carregar sua
experiência em seus próprios corpos. Imagine o poder de cura deste eco em que uma voz se
torna múltipla e coletiva.
O poder de fala, escuta, escrita e leitura proclamado e em larga escala conquistado pelos
feminismos em todas as suas vertentes, vem discutir os sentidos da humanidade e busca por
novos marcos civilizatórios. Garante o lugar de fala como lugar social, tradicionalmente negado
a muitos e muitas de nós. Traz como imperativo que passemos a pensar sobre as produções do
159

sul do mundo, das mulheres negras do mundo marcadas pela violência da escravidão, dos povos
originários marcados pela tragédia dos genocídios. Tirá-los do “Epistemicídio89”, como diz
Sueli Carneiro.
O feminismo atual assume um legado de luta coletiva e inclusiva que ao longo do tempo
foi ganhando contornos cada vez maiores. O feminismo atual não fala de mulheres, fala de uma
revolução que passa pela ideia de mulher, pelo corpo das mulheres, pela voz e ação das
mulheres, mas que se pretende e se compromete com o todo. Ângela Davis, em 27 de janeiro
de 2019, em uma conferência intitulada Frameworks For Radical Feminism, afirma a
premência de que as múltiplas vozes sejam ouvidas no sentido de uma transformação profunda
diante do sistema patriarcal-capitalista-neoliberal-heteronormativo de supremacia branca:

Meu ponto é que qualquer feminismo que pode nos ajudar a transformar o
mundo de hoje, precisa ser capaz de incluir perspectivas de desafiam a
supremacia branca e o patriarcado heteronormativo, o capitalismo, o
complexo industrial da prisão, ataques ao meio ambiente, o militarismo e as
guerras. O que aprendemos sobre a necessidade de conhecimento e do trabalho
em contesta o caráter estrutural do racismo, também deveria ser aplicada ao
sexismo e a misoginia. Em todas as minhas falas eu procuro ser crítica à
tendência de esquecermos que mesmo que haja muito desenvolvimento sobre
esses temas aqui nos Estados Unidos, vivemos em um mundo muito maior.
Então, não podemos falar com confiança sobre o Feminismo Negro sem
mencionar o papel das mulheres negras no Brasil, ou Marielle Franco que foi
assassinada pouco mais de um ano atrás por trabalhar contra o racismo e a
violência policial e homofobia. Também quero mencionar, antes de concluir,
a importância de nós organizarmos conferências para olharmos para o
movimento das mulheres Curdas. A maioria de nós, neste país, sabe
absolutamente nada sobre o movimento das mulheres Curdas. Elas estão
lutando por mudanças revolucionárias e simultaneamente lutam pela liberdade
feminina e este é um movimento extraordinário. E finalmente precisamos ser
solidarias com a Palestina. Já pensaram a importância de incorporarmos a
consciência feminista em nossa luta contra o complexo industrial, como é
importante enfrentar a carceragem feminina que é um marco de assimilação
e, finalmente, conservador do status quo. Um feminismo que assume que
podemos proteger mulheres simplesmente mandando homens para a prisão.
Podemos também perceber que a contestação internacional do racismo precisa
incluir o racismo expresso pelos aparelhos de estado, que são o Estado dos
EUA, também o Estado da França, o Estado do Brasil e também o Estado de
Israel. Então, vou concluir dizendo que justiça é invisível e divisível como
Martin Luther King disse: “injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça
em todo lugar (DAVIS, 2019).

89
Sobre epistemicídio Cf: https://www.geledes.org.br/epistemicidio/
160

E para encerrar este ponto, trago uma fala atual de Donna Haraway, que em sua trajetória
como ativista do feminismo passa agora a enriquecer as vozes que falam a partir de uma
perspectiva que inclui as relações humanas com suas, assim chamadas, “espécies
companheiras”. A partir de um reconhecimento de sua, ou nossa, semelhança com todos os
seres que coabitam a Terra, a autora afirma que o feminismo é o modo de pensar capaz de fazer
emergir uma consciência sensível de que de fato somos interdependentes.

Penso mais em termos de estarmos implicados um no outro, emaranhados, do


que em termos de identificação. As criaturas da Terra – espécies e outros tipos,
bem como os seres que não se classificam inteiramente em tipos – não são as
‘mesmas’. Nem se relacionam através de uma forma de árvore desprovida de
descendência. Elas estão enredadas em intra-ações ecológico-evolucionário-
desenvolvimentistas em muitas formas, temporalidades e tipos (inclusive
árvores). Concordo com você, em termos ordinários, a ‘identificação’, isto é,
apreciar os enormes domínios de semelhança entre os seres terrenos, é uma
fonte de grande prazer para mim. Essas ‘identificações’ me tocam, assim
como me tocam as ‘diferenças’. Ainda me faz vibrar o fato de uma folha da
ameixeira e minha carne compartilharem uma grande parte de nossos genomas
e também seguem seus próprios caminhos inimitáveis, geneticamente e em
outros aspectos. Longe de me preocupar com o ‘determinismo biológico’, sou
humilhada, inspirada e motivada pelas entrelaçadas complexidades e
inventividades de nosso planeta, às vezes até pelos feitos de minha própria
espécie (ou até de minhas/meus compatriotas dos Estados Unidos)! Sou
também humilhada e motivada pelas vulnerabilidades terrenas; pelos custos
terríveis da estupidez (e pior que isso) humana. Estamos dobrados juntos em
multiespécies, ‘tornando-se-com’ – identificados e diferenciados entre nós
nesse sentido, em amor e ódio nesse sentido -, parece-se requerer uma resposta
terrivelmente importante, afetiva, ética, política e científica. Chamo isso de
feminismo (HARAWAY, 2011, p. 407-408).

3.2.2 O Sagrado Feminino: a mulher selvagem

Como se uma mulher tranquila tivesse simplesmente sendo chamada e


tranquilamente largasse o bordado na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra
– abandonando sua vida, renegando o bordado, amor e alma já feita – sem uma
palavra essa mulher se pusesse calmamente de quatro, começasse a engatinhar
e a se arrastar com olhos brilhantes e tranquilos: é que a vida anterior a
reclamara, e ela fora (LISPECTOR, 2013, p. 216).

Em meio às discussões suscitadas pelos diferentes feminismos, algumas mulheres se


engajaram em uma busca aparentemente paralela a das ativistas. Ao invés de lutarem pela
liberdade através do viés da igualdade entre homens e mulheres, elas se colocaram em um
161

movimento de resgate e de valorização do que seria específico do feminino. Baseadas em uma


leitura Junguiana de mundo, a diferença e a complementariedade entre os elementos feminino
e masculino na vida é tida como evidente. Consideram que uma concepção de mundo patriarcal,
na qual a figura e as características atribuídas ao elemento masculino passaram a ser
consideradas como ideal de normalidade e sucesso, algo que seria próprio do elemento
feminino, foi se perdendo de geração em geração.
A ideia de que o elemento feminino estaria mais relacionado ao cuidado, à sensibilidade,
às tarefas domésticas, à fertilidade e à natureza não é vista como uma ameaça ou uma
desvalorização da mulher. Pelo contrário, essas características passam a ser consideradas como
uma qualidade diferente da força masculina, mas igualmente necessária e forte. Passam a
investigar a força que há no corpo e na potência criativa da mulher, atribuindo-lhe, então, valor
na construção de uma sociedade mais equilibrada.
Buscam pelas reminiscências do modo Matrístico de percepção de mundo, conforme
definem Humberto Maturana e Gerda Venden-Zöller (2011). Os autores descrevem a existência
remota de um período em que as relações humanas eram pautadas em valores atrelados à ideia
de cooperação e não de competição. Ser matrístico significava, então, viver na estética da
harmonia da natureza. Maturana afirma que estes valores ainda estão presentes em nossa
cultura, mas não se tratam mais de nosso modo geral de viver e continua:

A cultura Matrística não foi completamente extinta: sobreviveu aqui e ali em


bolsões culturais. Em especial, permaneceu oculta nas relações entre as
mulheres e submersa na intimidade das interações mãe-filho até o momento
em que a criança tem que entrar na vida adulta, na qual o patriarcado aparece
em sua plenitude (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2011, p. 77).

A qualidade do emocionar Matrístico foi um ponto já abordado na minha dissertação de


mestrado, porém, prioritariamente circunscrito ao universo da relação entre mães e filhos.
Pretendo aprofundá-lo aqui dando enfoque na relação das mulheres com seus próprios corpos,
entre si e como chefes de família. Já foi constatado que elas são dotadas de um poder
socialmente reconhecido como masculino, que elas podem fazer tudo que o homem faz com
igual e às vezes superior qualidade. Porém, esse imperativo cobra o alto preço do esquecimento
de si. Aos poucos, algumas mulheres vão percebendo que viver em busca de sucesso e eficiência
como valores em si não faz o menor sentido.
A ideia da sacralidade do elemento feminino sustentador da vida começa a ganhar corpo
e popularidade para as mulheres ocidentais quando pesquisadoras, analistas e historiadoras
162

começam a coletar os fragmentos de uma narrativa feminina contida nos contos de fadas e nas
mitologias ainda vivas ao redor do mundo, principalmente em comunidades que preservam
costumes originários de outras épocas90. Um dos principais nomes dessa esfera de
conhecimento é Clarissa Pinkola Estés, analista Junguiana, que em 1992 lança o livro Mulheres
que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Esta obra, fruto
de vinte anos de pesquisa, oferece uma consistente leitura da psique feminina e rapidamente se
espalha por todo o mundo. A autora investiga o arquétipo da mulher selvagem, aquela que não
se enquadra nos padrões de fragilidade e submissão exigidos pela sociedade moderna, mas que
também se reconhece como fêmea e guardiã de uma sabedoria sagrada.

Observamos, ao longo dos séculos, a pilhagem, a redução do espaço e o


esmagamento da natureza instintiva feminina. Durante longos períodos, ela
foi mal gerida, à semelhança da fauna silvestre e das florestas virgens. Há
alguns milênios, sempre que lhe viramos as costas, ela é relegada às regiões
mais pobres da psique. As terras espirituais da Mulher Selvagem, durante o
curso da história, foram saqueadas ou queimadas, com seus refúgios
destruídos e seus ciclos naturais transformados à força em ritmos artificiais
para agradar os outros (ESTÉS, 1994, p.15).

A partir deste livro, entre outros, muitas mulheres passaram a se reunir em círculos para
partilhar experiências íntimas, contar histórias, cantar, dançar, estudar etc. Muitas vezes tais
encontros agregam, de alguma forma, uma estética de espiritualidade e de reconexão com os
elementos da natureza, como o sol, a lua, o fogo, os cristais, cada um a seu modo. Não existe
uma guiança de formato específico. Não se trata de uma religião, embora as vezes haja um
resgate da Terra como grande mãe ou Deusa. Alguns encontros são mais terapêuticos, outros
mais próximos ao que se convencionou chamar de “nova era”. O que a maioria deles tem em
comum é o fato de mulheres se reunirem com o intuito de criarem uma rede, ou tecido, de ajuda
mútua. Uma espécie de irmandade que compartilha assuntos próprios do feminino: sororidade.
Especialmente o movimento do Sagrado Feminino trata do reconhecimento de uma
natureza cíclica da mulher, chamada por Estés de “ciclo vida-morte-vida91”. Transcrevo então

90
“Foi a essa altura que a Mulher Selvagem foi derrubada e enterrada nas profundezas da terra e o lado
selvagem das mulheres começou não só a definhar como a precisar ser mencionado aos sussurros e em
locais secretos. Em muitos casos, as mulheres que amavam a Mãe Selvagem tiveram de proteger sua
vida com cuidado. Finalmente, esse conhecimento somente transparecia em contos de fadas, no folclore,
em estados de transe e nos sonhos. E graças a Deus por isso” (ESTÉS, 1992, p. 535).
91
“Dispor da semente significa ter acesso à vida. Conhecer os ciclos da semente significa dançar com a
vida, dançar com a morte, dançar de volta à vida. A natureza da Mulher Selvagem nas mulheres é a da
vida e da morte em sua forma mais antiga. Como gira nesses ciclos constantes, eu a chamo de mãe da
vida-morte-vida” (ESTÉS, 1994, p.51).
163

uma das histórias mais preciosas que trata sobre a capacidade feminina de morrer e renascer;
de resistir pela ação do cuidado:

A Donzela sem mãos

Era um a vez, há alguns dias, um homem que ficava na estrada e que ainda
possuía uma pedra enorme de fazer farinha com a qual moía cereal da aldeia.
Esse moleiro estava passando por dificuldades e não restava nada além da
enorme pedra de moinho num barracão e da grande macieira florida atrás da
construção.
Um dia, quando ele entrava na floresta com seu machado de gume de prata
para cortar lenha, um velho estranho surgiu atrás de uma árvore.
— Não há necessidade de você se torturar cortando lenha – disse o velho em
tom engabelador – posso adorná-lo de riquezas se você me der o que está atrás
de seu moinho.
— O que está atrás do meu moinho a não ser a macieira florida? – Perguntou-
se o moleiro, concordando com a proposta do velho.
— Dentro de três anos, virei buscar o que é meu – disse o estranho rindo a
socapa, e foi embora a mancar, desaparecendo entre os troncos das árvores.
O moleiro encontrou sua mulher no caminho. Ela havia saído correndo de
dentro de casa, com o avental voando e o cabelo desgrenhado.
— Marido, marido meu, quando bateu a hora, surgiu na nossa casa um relógio
mais bonito, nossas cadeiras rústicas forma trocadas por cadeiras de veludo,
nossa pobre despensa está repleta de carne de caça, nossas arcas e baús
transbordam de tão cheios. Diga-me, por favor, como isso aconteceu. – E
nesse exato momento, anéis de ouro apareceram nos seus dedos e seu cabelo
foi puxado e preso num arco dourado.
— Ah, disse o moleiro, assombrado enquanto seu próprio gibão passava a ser
de cetim. Diante dos seus olhos, seus sapatos de madeira com salto tão gastos
que ele caminhava inclinado para trás também se transformaram em finos
sapatos. – Bem, isso foi um desconhecido – disse ele, ofegante.
— Deparei-me com um homem estranho, com uma sobrecasaca escura. E ele
me prometeu enorme fortuna se eu lhe desse o que está atrás de nosso moinho.
Ora mulher, claro que podemos plantar outra macieira.
— Ai, meu marido! – Lamentou-se a mulher dando a impressão de ter levado
um golpe mortal. – O homem de casaco escuro era o Diabo e o que está atrás
do moinho é a árvore, sim, mas nossa filha está lá varrendo o quintal com uma
vassoura de salgueiro.
E assim os pais foram cambaleando para casa, derramando lágrimas sobre seus
belos trajes. A filha permaneceu sem se casar durante três anos e tinha o
temperamento como uma das primeiras maçãs doces da primavera. No dia que
o Diabo veio apanhá-la, ela se banhou, pôs um vestido branco e ficou parada
num círculo de giz que ela mesma traçara à sua volta. Quando o Diabo
estendeu a mão para agarrá-la, uma força invisível o lançou para o outro lado
do quintal.
— Ela não pode mais se banhar – berrou ele. – Ou não vou conseguir-me
aproximar dela - Os pais ficaram apavorados e algumas semanas se passaram
em que ela ficou sem se banhar, até que o cabelo ficou emaranhado; suas
unhas, negras; suas roupas encardidas e duras de sujeira.
Então, como a donzela parecia cada vez mais com um animal, surgiu mais
uma vez o Diabo. No entanto, a menina chorou e suas lágrimas escorreram
pelas mãos e pelos braços. Agora suas mãos e seus braços estavam alvíssimos
e limpos. O diabo ficou furioso.
164

— Cortem-lhe fora as mãos, do contrário não vou poder me aproximar dela.


— Você quer que eu corte as mãos da minha própria filha? – Perguntou o pai
horrorizado.
— Tudo aqui irá morrer - berrou o diabo. – Você, sua mulher e todos os
campos até onde sua vista alcance.
O pai ficou tão apavorado, que pedindo perdão a sua filha começou a afiar seu
machado de gume de prata. A filha conformou-se.
— Sou sua filha, faça o que deve fazer.
E foi o que ele fez. No final ninguém podia dizer quem gritou mais alto, a filha
ou o pai. Terminou, assim, a vida da menina da forma que ela conhecia.
Quando o Diabo voltou, a menina havia chorado tanto que os tocos que
restavam dos seus braços estavam novamente limpos, e o Diabo foi mais uma
vez atirado para o outro lado do quintal quando tentou agarrá-la. Lançando
maldições que provocavam pequenos incêndios na floresta, ele desapareceu
para sempre, pois havia perdido todo o direito a ela.
O pai havia envelhecido cem anos, e sua esposa também. Como autênticos
habitantes da floresta, eles continuaram como podiam. O velho pai fez a oferta
de manter a filha num castelo de imensa beleza e riqueza pelo resto da vida,
mas a filha disse achar mais condizente que se tornasse mendiga e dependesse
da bondade dos outros para seu sustento. E assim ela fez com que atassem
seus braços com gaze limpa e ao raiar do dia ela se afastou da sua vida como
havia sido até então.
Ela caminhou muito. O sol do meio-dia fez com que o suor escorresse riscando
a sujeira de seu rosto. O vento desgrenhou tanto o seu cabelo que até parecia
um ninho de cegonha com gravetos enfiados de qualquer jeito. No meio da
noite, ela chegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos das árvores.
Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso. Caiu, então, de
joelhos pois estava faminta. Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e
fechou a compota para esvaziar o fosso.
A donzela caminhou por entre as pereiras sabendo de algum modo que cada
fruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles eram também vigiados.
Mesmo assim, um ramo curvou-se abaixo para que ela o alçasse, fazendo o
galho estalar. Ela tocou a pele dourada da pera com os lábios e comeu ali em
pé ao luar, com os braços atados em gaze, os cabelos desgrenhados, parecendo
uma mulher de lama, a donzela sem mãos.
O jardineiro viu tudo, mas reconheceu a magia do espírito que protegia a
donzela e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer aquela única pera,
ela se retirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.
No dia seguinte o rei veio contar suas peras. Ele descobriu que uma estava
faltando, mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o fruto
desaparecido. Quando lhe perguntaram, o jardineiro tinha a explicação.
— Ontem à noite, dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim a luz
do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pera que se
oferecia a ela.
O rei disse que iria montar guarda naquela noite. Quando escureceu ele veio
com o jardineiro e o mago, que sabia conversar com espíritos. Os três se
sentaram debaixo de uma árvore e ficaram vigiando. À meia-noite, a donzela
veio flutuando pela floresta, com roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto
sujo, os braços sem mãos e o espírito de branco ao seu lado.
Eles entraram no pomar da mesma forma que antes. Mais uma vez a árvore
curvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pera
que estava na ponta do ramo. O mago aproximou-se deles, mas não muito.
— Vocês são deste mundo ou não são? - perguntou ele.
— Eu fui outrora do mundo – respondeu a donzela. – No entanto, não sou
deste mundo.
165

— Ela é humana ou é um espírito? – Perguntou o rei ao mago, e o mago


respondeu que era as duas coisas. O coração do rei deu um salto, e ele se
apressou a chegar a ela.
— Não renunciarei a você – exclamou ele – Deste dia em diante, eu cuidarei
de você.
No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foram
amarradas aos seus braços. E foi assim que o rei se casou com a donzela sem
mãos.
Passado algum tempo o rei teve que ir combater num reino distante e pediu à
mãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo coração.
— Se ela der à luz a um filho mande-me avisar imediatamente.
A jovem rainha deu à luz a um belo bebe, e a mãe do rei mandou um
mensageiro até ele para lhe dar as boas novas. No entanto, a caminho, o
mensageiro se cansou e, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono.
Afinal, adormeceu profundamente às margens do rio. O diabo saiu de trás de
uma árvore e trocou a mensagem por uma que a rainha havia dado à luz a uma
criança que era metade humana metade cachorro.
O rei ficou horrorizado com a notícia, mas mesmo assim mandou de volta uma
carta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terrível
transe. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio
e, sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo
adormeceu junto à água. Foi quando o diabo mais uma vez apareceu e trocou
a mensagem para “Matem a rainha e a criança”.
A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindo
confirmação. Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um
adormecendo junto ao rio enquanto o Diabo trocava as mensagens por outras
que ficavam cada vez mais apavorantes, sendo a última que dizia “Guardem a
língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta”.
A velha mãe não pode suportar a ideia de matar a doce rainha. Em vez disso,
ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu. Em
seguida, ela ajudou a jovem rainha a atar o bebe junto ao peito e, cobrindo-a
com um véu, disse que ela precisava fugir para salvar a vida. As mulheres
choraram e se beijaram na despedida.
A jovem rainha vagueou até chegar à floresta maior e mais selvagem que
jamais vira. Na tentativa de procurar um caminho, ela procurava passar por
cima, pelo meio e por volta do mato. Quase ao escurecer, o mesmo espírito de
branco apareceu e a conduziu a uma pobre estalagem de gente simpática da
floresta. Uma outra donzela vestida de branco levou a rainha para dentro e
demonstrou saber seu nome. A criança foi posta num berço.
— Como que você sabe que eu sou uma rainha? – Perguntou a donzela.
— Nós da floresta acompanhamos esses casos, minha rainha. Agora descanse.
E assim a rainha ficou sete anos na estalagem e se sentia feliz com sua criança
e com sua vida. Aos poucos, suas mãos voltaram, primeiro como pequeninas
mãozinhas de bebê, rosadas como pérolas, depois como mãos de menina e
afinal como mãos de mulher.
Enquanto isso, o rei voltou da guerra, e sua mãe se lamentou com ele.
— Por que quis que eu matasse dois inocentes? – Perguntou ela, mostrando-
lhe os olhos e a língua da corça.
Ao ouvir a terrível história, o rei cambaleou e caiu a chorar inconsolável. A
mãe viu sua dor e contou que os olhos e a língua eram de uma corça e que ela
havia mandado a rainha e o filho fugir pela floresta adentro.
O rei jurou não mais comer nem beber e viajar até onde o céu continuasse azul
para encontrar os dois. Ele procurou por sete anos a fio. Suas mãos ficaram
negras; sua barba, de um marrom semelhante ao do musgo; seus olhos,
166

avermelhados e ressecados. Todo esse tempo, ele não comeu nem bebeu nada,
mas uma força maior do que ele o ajudou a se manter vivo.
Afinal ele chegou à estalagem mantida pelo povo da floresta. A mulher de
branco convidou-o a entrar, e ele se deitou de tão cansado. A mulher colocou
um véu sobre o rosto dele, e ele adormeceu. Quando ele chegou à respiração
do sono mais profundo, o véu escorregou aos poucos do seu rosto. Ao
despertar, ele encontrou uma linda mulher e uma bela criança que o
contemplavam.
— Sou sua esposa, e este é seu filho. – O rei queria acreditar, mas via que a
donzela tinha mãos. – Com todas as minhas aflições e com meus bons
cuidados, minhas mãos voltaram a crescer – disse a donzela. E a mulher de
branco trouxe as mãos de prata que estavam guardadas como um tesouro numa
arca. O rei ergueu-se e abraçou a mulher e o filho, e naquele dia houve uma
alegria imensa na floresta.
Todos os espíritos e os ocupantes da estalagem fizeram um belo banquete.
Depois, o rei, e rainha e o filho voltaram para a velha mãe, realizaram um
segundo casamento e tiveram muitos outros filhos, todos os quais contaram
essa história para outros cem, que contaram essa história para outros cem,
exatamente como vocês fazem parte dos outros cem a quem eu estou contando
(ESTÉS, 1994, p. 481-406).

Segundo Estés, este é um conto especial porque não termina com “e foram felizes para
sempre”. Em sua continuidade, ele abrange uma séria de mortes e renascimentos de uma
mulher. A história destaca também, com riqueza de detalhes simbólicos, a variedade de
“ajudantes psíquicos” que a acompanham esta jornada. A análise feita pela autora é longa e
profunda, e não me cabe abarcá-la completamente. Ressaltarei apenas alguns aspectos que
considero mais significativos com relação ao cuidado.
Trata-se de um conto de iniciação e amadurecimento da mulher através do rito da
resistência – endurecer, tornar firme, robusto, fortalecer. Ela primeiramente é “traída” por seus
cuidadores primordiais (pai e mãe) e se nega a aceitar o pacto com aspecto de si mesma que a
manteria prisioneira. Se entrega ao mundo sem suas próprias mãos, ou seja, sem a confiança de
que seria capaz de cuidar de si mesma, sem consciência de seu próprio valor ou de sua riqueza
subjetiva92. Mergulha então em uma viagem sombria e iluminada, animalesca e etérea, lida com
as sujeiras da floresta que trazem a pureza da alma. Habita dois mundos simultaneamente e por
isso recebe, ou percebe, a guiança – do espírito e das peras. Encontra, e é reconhecida, pelo

92
“Quando dizemos que as mãos da mulher foram decepadas, queremos dizer que ela está forçosamente
afastada da possibilidade de se consolar, de promover uma cura imediata; está completamente
incapacitada de fazer qualquer coisa que não seja seguir o caminho antiquíssimo. Portanto, é correto que
continuemos a chorar durante esse período. É a nossa proteção simples e poderosa contra o demônio tão
lesivo que nenhuma de nós consegue compreender totalmente sua motivação ou razão de ser [...] ela é
forte na sua insistente tristeza, e isso faz com que se afaste daquilo que a quer destruir (ESTÉS, 1994,
p.505-506).
167

elemento masculino que a acolhe, protege e fecunda, mas parte, pois ela ainda precisa cumprir
mais alguns estágios do processo, e ele também.
Entra em cena, então, a figura de uma velha sábia que nutre e guarda a donzela enquanto
ela gesta e pari o filho do Rei. Porém, ela permanece em solo seguro somente por um período,
até que esteja pronta ou seja obrigada a seguir seu caminho novamente. Parte em uma jornada
de sete anos, quando vive em meio aos hábitos simples dos seres elementais da floresta. A
história não detalha o que exatamente acontece neste período ou quais cuidados ela recebe, mas
o fato é que as mãos da donzela podem crescer novamente, atestando um grandioso poder de
regeneração da alma feminina. Neste meio tempo, o rei retorna de sua viagem e descobre o
acontecido. Movido pelo desespero e pela esperança, passa a vagar pelo mundo a fim de
reencontrar sua esposa e filho. Este trecho demonstra que o elemento masculino também precisa
passar por um processo de iniciação no mundo profundo e resgatar seu lado selvagem e puro,
para que esteja pronto a reconhecer, mais uma vez, a nova mulher que o espera, bem como seu
filho agora crescido.
Segundo a interpretação deste conto feita por Estés (1994, p. 518), as artimanhas do
Diabo representam as seduções do mundo moderno que trazem conforto e garantem supostas
seguranças, mas na verdade nos aprisionam e nos esquivam de nós mesmos. Se a donzela se
deixasse persuadir, perderia a capacidade de crescer e viveria como uma espécie de sonâmbula.
A história ilustra a necessidade humana de habitar os dois mundos e de respeitar sua natureza
cíclica. Esta, que se apresenta de maneira bastante evidente no corpo da mulher pelo fato de ela
menstruar, mas cabe ao homem também se tornar consciente desta característica nele mesmo.
Em termos práticos, o que está acontecendo é que muitas mulheres estão “fazendo as
pazes” com as peculiaridades de seus próprios corpos através da observação de seus ciclos
menstruais. Pode parecer coisa de bruxa, e talvez seja, afinal, um dos motes dessa geração de
mulheres é: “somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”. O fato é que, em
estado de saúde, a cada vinte e oito dias a lua muda e as mulheres sangram. Hoje, são produzidos
estudos e pesquisas ligados à assim chamada “Ginecologia Natural”, ou “Ginecologia
Autônoma”, que visa compreender como a natureza metamórfica da mulher se alinha com os
ciclos do planeta através das estações do ano e com as fases da Lua. Passa a ser evidente que a
tentativa de estancar esses ciclos, baseada em padrões lineares e masculinos de compreensão
de mundo, provoca desconexão com algo precioso, algo que nos evidencia que somos Terra.
Neste movimento, mulheres estão abrindo mão da tão aclamada pílula anticoncepcional
ou do uso de qualquer outro tipo de hormônio que evite uma gestação. Tomando para si uma
responsabilidade em relação ao autoconhecimento, resgatam antigos métodos de controle de
168

natalidade, agora embasados e desenvolvidos cientificamente. Neste processo, elas passam a


saber quando estão ou não ovulando, e tomam posse de suas próprias escolhas.
Surgem também substitutos aos absorventes descartáveis, como os copinhos coletores e
os “abiossorventes” (absorventes de pano), ou modernas calcinhas que recebem o fluxo e são
reutilizáveis. O intuito das mulheres que passam a usar estes novos produtos é, além de evitar
o uso de descartáveis, poder reconectar com seu sangue menstrual como algo precioso e não
como lixo, algo sujo e incômodo. Trata-se do resgate de um costume de nossas ancestrais, antes
que a menstruação fosse considerada um tabu. Algumas mulheres chegam a “plantar sua Lua”,
devolvendo para a terra seu próprio sangue, regando plantas em rituais que lembram as antigas
religiões pagãs, rituais estes ligados à fecundidade e à fertilidade – nelas e na Terra. No entanto,
repetindo, este movimento não se pretende como uma religião formal, e sim um convite para
uma redescoberta dos valores sensíveis que ligam as mulheres à força criativa de seus úteros.
Elas foram percebendo que quando estão juntas e conectadas com seus ciclos, os
períodos menstruais se alinham. Perceberam também que seu humor muda de acordo com a
fase em que estão e que está tudo bem com isso. Somos regidas, e regidos, por momentos de
mais introspecção – quando ficamos mais reflexivos e avaliamos que é preciso ser cortado,
desapegado, deixado para trás; outros de expansão – quando acontecem novos floresceres
potencializados pelas podas feitas anteriormente: como a lua nova e a lua cheia, como o inverno
e o verão. Foram percebendo que se o tempo da agricultura for respeitado, a terra nos oferece
alimentos próprios para as necessidades nutricionais em cada período. Se fizermos as pazes
com a natureza, percebemos que o tempo é contado também no corpo de cada mulher e que
este fato carrega o grande mistério do surgimento da vida humana, e de toda a vida em sua plena
diversidade. A Terra, em sua soberana sabedoria enormemente incompreensível, doa ao útero
da mulher a máxima potência de fazer nascer todos os homens e todas as mulheres.
Então, minha grande pergunta como mulher, pesquisadora e sonhadora é: que mundo
pode surgir quando paramos de contribuir com a ideia da “inveja do falo” e passamos a
reverenciar os úteros?

3.3 O REENCANTAMENTO DO MUNDO

Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós


que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de poder
169

compartilhar este espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos
iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pela
nossa diferença, que deveria guiar nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não
isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi
só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos
(KRENAK, 2019, p. 33).

Este tópico consiste em um convite: viver e deixar viver; viver, não sobreviver. Não
somos máquinas. Não somos homens e mulheres da mercadoria. As relações encantadas entre
as pessoas e entre os seres podem ser encontradas como fio de cuidado sutil que alinha todas as
histórias, todos os autores, e os questionamentos levantados ao longo desta tese.
Neste sentido, tomar o Cuidado como condutor relacional fundamental passa por um
engajamento em reencantar nosso olhar, nossa maneira de ver. Então, corroboro com as ideias
de Nancy Mangabeira Unger:

“A morada do homem é o extraordinário”. Resgatar esta experiência se dá na


medida de nossa possibilidade de re-encantar o mundo, o que na verdade
significa re-encantar o nosso olhar. Para isso somos chamados a uma mudança
de consciência, um repensar de quem somos e de qual nosso lugar no Todo
(2000, p.15).

Trata-se de uma proposta de resgate profundo da capacidade de maravilhamento e de


explicações de mundo que qualifiquem nossa existência. Trata-se de reencontrar a capacidade
de se emocionar em nosso cotidiano. Isso imediatamente me remete à conhecida história de
Galeano, na qual um pai leva o filho para ver o mar pela primeira vez:

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que
descobrisse o mar. Viajaram para o Sol. Ele, o mar, estava do outro lado das
dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas
alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus
olhos. E foi tanta imensidão do mar. E tanto seu fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: - Me ajuda a olhar! (GALEANO, 2014, p. 15, grifo do autor).

“Por detrás do mero caráter ordinário da visão das coisas reside o grande espanto de ser
capaz de ver” (INGOLD, 2011, p.196). Quando é possível realmente ver, faltam palavras diante
da imensidão da existência. O sentimento transborda e a respiração cessa por um momento.
Nossas moléculas vibram, nos mostram a própria vida assim, de repente, como se fôssemos
atingidos por um raio que nos recoloca à dimensão que temos, pequenos e reverentes, diante do
170

inefável, do numinoso93: diante do mistério. Quase sem querer, o ar adentra os pulmões


novamente, como quando emergimos de um mergulho prolongado no oceano. Voltamos então
a respirar a partir de uma nova consciência, expansiva e includente, entregues ao
maravilhamento e às lágrimas, que como água benta consagram a experiência.
Nenhuma de nossas complexas e técnicas teorias sobre tudo têm sentido quando passam
a nos privar do acesso ao sentimento do maravilhamento. Sem ele vivemos, ou sobrevivemos,
isolados como em um deserto anímico. Sem afeto, sem contorno, sem pertença, sem motivos,
moribundos e sem ânimo. Nos encontramos desligados, surdos, cercados por quatro paredes,
com os olhos vidrados em uma tela, esquecidos, adormecidos, sem sonhos.
Neste processo de busca pelo reencantamento do olhar, do sentir e do agir, se faz
importante revisitar o sentido antigo da palavra religare, como re-ligação, e não exatamente
como instituição religiosa. Hélio Pellegrino, em carta à Nancy Mangabeira, nos revela pistas
sobre como é possível e necessário esse resgate:

Religare. Reinserir-se no mundo. Religião é coisa da terra, é antiatomização


desintegradora, é anti-solidão. Somos parentes de tudo – do Outro, da terra,
da água, da pedra. Somos parentes, ligados, tecidos no tapete do Cosmos. [...]
O homem, filho, neto, bisneto, tataraneto do Cosmos é o olho translúcido dele
– consciência acordada. A descoberta disto, e de que as coisas existem para
doar-se, em sua graça, a uma consciência que as abarque, constitui, a meu ver,
a essência do fenômeno religioso. Religar-se, reencontrar os fios que nos
fazem pertinentes a tudo, a todos – eis a vocação da consciência [...] Fundamos
um Nós com tudo o que existe. [...] A religiosidade não tem a ver,
necessariamente, com a ideia de Deus. Religar-se é desvendar o rosto do Outro
– o rosto do mundo. [...]. Ser religioso é ter coragem de crer que o homem
tem, como destino último, a vocação de ligar-se, de encontrar-se, de afirmar
sua pertinência a tudo o que existe. Este processo de ligar-se de encontrar-se
é, por sua vez, dialético. Ganha-se e perde-se, encontra-se e desencontra-se,
dia e noite, escuridão e claridade, silêncio, palavra. Tudo são pedras para
construir o encontro – presente de Eros (apud UNGER, 2000, p.18-19).

Pellegrino nos brinda com um abrangente resumo do que seria a função do fenômeno
religioso e de uma espiritualidade no momento atual: tirar o humano de seu estado de aridez da
alma. Realinhar a existência como um exercício da vocação do cuidado. Isso porque, falar sobre

93
“Poderíamos ter aprendido há muito tempo do exemplo das sociedades primitivas o que significa a
perda do numinoso: elas perdem a razão de ser, o sentido de sua vida, sua organização social e, então,
se dissolvem e decaem. Encontramo-nos agora na mesma situação. Perdemos algo que nunca chegamos
a entender direito [...] Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e
espirituais” (JUNG, 2015, p. 96-97).
171

o encantamento é diferente de formular um pensamento que já consagra um compromisso


existencial em relação ao mundo (INGOLD, 2017, [n.p.]).
Os povos que ainda carregam a memória de suas antigas tradições têm duas formas de
buscar por conhecimento e de vivenciar esse compromisso existencial. Uma é a observação dos
eventos cíclicos da natureza e a outra são seus próprios sonhos. Porém, não se trata de uma
observação científica ou uma absorção da literalidade dos sonhos94. O que efetivamente fazem,
é o que Ingold chama de “conhecer sendo” (2017). Eles escutam e compreendem as vozes do
mundo e preservam uma relação direta com seus interlocutores. “Talvez esta fundamentação
do conhecimento no ser esteja na base do tipo de sensibilidade que poderíamos chamar de
religiosa” (INGOLD, 2017, [n.p.]).
Neste ponto, pego emprestadas as palavras de Serres, emprestadas também por Ingold,
que diz que a palavra religião “viria do latim relegere, reler, no sentido de ler que temos
identificado como receber conselhos e ser receptivos ao que os interlocutores textuais têm para
oferecer” (INGOLD, 2017, [n.p.]). O contrário de Regelere seria neglegelere, ou seja, não-ler.
Isto é o que temos feito. Para nós, humanos modernos, só é possível conhecer o mundo se nos
apartarmos dele. Para Serres: “Quem carece de religião, não deveria se chamar ateu ou não
crente, senão negligente (apud INGOLD 1995, p.48). Então, o oposto de religião é a
negligência” (INGOLD, 2017, [n.p.]). E ser negligente é ser descuidado.
Neste trecho Ingold está fazendo uma argumentação sobre o modo de conhecimento
científico e o religioso. O primeiro partindo de uma lógica de representação e o segundo de uma
lógica de participação. E por “religião”95, aqui, ele entende como uma maneira de se relacionar
com o mundo para além dos fatos dados, computados e interpretados de forma literal. Então,
compreendo que o autor resgata um sentido primordial da palavra religião, não como instituição
ou doutrina, mas como forma de participação no mundo: “conhecer sendo”.
Unger também fala desta proposta de conceber a vida no gerúndio da existência:

A liberdade se funda na amizade; a tirania, no seu esquecimento [...]. A


palavra “humano” guarda sua relação com húmus, terra. O que esquecemos,
em nosso empenho de tiranizar o real, é que não somos “sujeitos” e sim

94
Para nós, humanos modernos, só é possível conhecer o mundo se nos apartarmos dele; para os povos
originários, isso não faz o menor sentido. E os sonhos são compreendidos por muitos povos como uma
possibilidade de comunicação entre o que sonha e o mundo.
95
A religião é uma poderosa fonte inspiradora desses valores, mas eles podem existir também para além
dela, na cultura e nos comportamentos das pessoas a-religiosas. O ser humano precisa voltar, como filho
pródigo da parábola evangélica, à Mãe Terra da qual se exilou e sentir-se guardião e cuidador. Então
será refeito o contrato natural, e se ainda se abrir ao Criador, saciará sua sede infinita e colhera como
fruto a paz e o descanso do coração (BOFF, 2017, p. 112).
172

“sendos”, parte integrante de um real em constante mutação. Assumir nossa


humanidade é afirmar nossa amizade co-operária com o próprio ritmo da vida:
seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade (2000, p.47).

Resgatar os sentidos de Religare, como participação, e Relegere, como um engajamento


para reler o mundo, qualificando, então, novas narrativas, são belos passos no sentido do
reconhecimento do encantamento do mundo. Leonardo Boff também escreve sobre este
processo de religar-se e acrescenta a ideia de que ele pode ser encarado como uma espécie de
cura capaz de fazer emergir uma série de atitudes ligadas à nobreza da alma quando o humano
se compreende como coparticipante da existência:

A cura consiste na re-ligação com todas as coisas, em nossa inserção na


natureza e na volta à casa comum, como habitantes cuidadosos e amigos da
vida. Não necessariamente precisa ser mais religioso no sentido de realizar
ritos sagrados e inscrever-se em uma determinada confissão ou caminho
espiritual, mas, sim, ser mais humilde, sentindo-se parte da natureza, mais
responsável por sua sustentabilidade e mais cuidadoso com tudo o que faz. A
religião é uma poderosa fonte inspiradora desses valores, mas eles podem
existir também para além dela, na cultura e nos comportamentos das pessoas
a-religiosas. O ser humano precisa voltar, como filho pródigo da parábola
evangélica, à Mãe Terra da qual se exilou e sentir-se guardião e cuidador.
Então será refeito o contrato natural, e se ainda se abrir ao Criador, saciará sua
sede infinita e colhera como fruto a paz e o descanso do coração (BOFF, 2017,
p. 112).

Religar-se aos mistérios do mundo através de diversos modos de ler é ampliar a nossa
compreensão do que é sabedoria. Trata-se de ouvir, ver e assimilar o que nos dizem e mostram
os intelectuais provenientes de “outros mundos”, sem deixar que nossa compreensão
categorizante limite nossa capacidade de escuta e apreensão.
Cumprir esta vocação, como dizia Pellegrino, significa viver em potência. O que
significa habitar nossa própria vida em pura potência? Cumprir a saga? Como se pergunta Boff
(2002, p. 57), citando Jung. Talvez seja encontrar com o sagrado no cotidiano, em qualquer
circunstância, viver o espanto. Realizar um trabalho que traga alimento simbólico e sentido à
vida. O presente, a presença, o sentir e o pensar. O pensar a partir do sentimento e dos sentidos
perceptivos. Desenvolver uma Inteligência Sensível e com ela ser capaz de respirar. Habitar o
lugar do “pré-sentimento” da ligação de tudo com tudo. Não de maneira abstrata, mas
simplesmente ser-no-mundo.
Muito se escreve sobre isso atualmente. De certo modo, o Ocidente absorveu os
conceitos de presença, meditação, estar no aqui e agora, provenientes do Oriente. Porém,
173

acredito que o homem típico ocidental ainda não alcançou o grau de maturidade que este tipo
de vivência exige. Podemos afirmar que vivemos certa orientalização do Ocidente, mas isso se
dá muito mais no discurso do que na prática.
Ao reler e transcrever estas palavras, senti que precisava de uma pausa. Respirei fundo.
Como fazer estas palavras habitarem em mim? – Me perguntei. Fiz um chá de folhas da
amoreira que eu mesma plantei e com isso me lembrei do privilégio que tenho de morar em
meio a uma pequena mata na cidade. Dia de inverno, Sol lindo. Fui deitar no chão do quintal
para olhar o céu e sentir o vento. Os gatos se acercaram, gostosos companheiros. Aos poucos
fui distinguindo o som e o movimento de inúmeros passarinhos. Bem-te-vis, andorinhas,
maritacas, uma paineira lá no fundo com plumas que saltavam para alcançar a terra. Cores e
mais cores que bailavam e com isso me embalavam. Senti o peso do céu sobre mim. Estiquei
as costas, pressionando contra o solo, alonguei os braços e pernas tentando criar espaço, crescer,
tocar mais longe. Ou ser tocada mais fundo. O mundo fala o tempo todo. “Crescemos no mundo
à medida que o mundo cresce em nós”96 (INGOLD, 2017, p. 14), me lembrei.

3.3.1 Universo poliglota

O inca lhe perguntou de onde vinha aquela autoridade. Valverde entregou-lhe


o livro da Bíblia. Atahualpa pegou-o e colocou ao ouvido. Como não tivesse
escutado nada, jogou a Bíblia ao chão. Foi o sinal para que Pizarro
massacrasse toda a guarda real e aprisionasse o soberano inca. Como se vê, a
escuta era tudo para Atahualpa. O livro da Bíblia não lhe falava nada (BOFF,
2018, p. 147).

Reencantar nosso olhar passa primordialmente pela inclusão de uma pluralidade de


modos de ver, ler e interpretar o mundo do qual fazemos parte. Além disso, passa por incluir
todos os outros sentidos no processo de validar nossa experiência de vida. Aqui, vou aprofundar
um pouco mais a perspectiva da importância da oralidade e da escuta, uma sabedoria trazida
até nós pela voz dos povos originários – pessoas que, por habitarem as florestas, desenvolvem
uma sabedoria bem diferente da nossa. Trata-se de uma maneira mais simples de pensar, no
melhor sentido da palavra simples. Sinto cada vez mais que toda a nossa complexificação

“Crescendo no mundo, o mundo cresce neles” (INGOLD, 2015, p. 30); “Growing into the world, the
96

world grows in them” (INGOLD, 2011, p. 6).


174

filosófica e cultural acabou por nos privar da possibilidade de interagir com o que é considerado
óbvio por essas pessoas.
Em um programa de entrevistas, Ailton Krenak responde de forma contagiante às
perguntas mais profundas de nossas buscas filosóficas:

Krenak, o que é a natureza? – A natureza, não tem como nós que somos poros
da terra, nomear ela. Não tem como a gente nomear a natureza. A natureza é
uma abstração de um mundo de ideias. Em nenhuma tradição antiga, essa
coisificação da natureza se sustenta. Ela só existe como uma idealização de
uma cultura que quer incidir sobre a vida na terra para alterar essa paisagem,
se apropriar dela. É o negócio do general [que diz]: eu vim aqui comprar sua
terra. Só essa mentalidade é que pensa a natureza.
E o que é o tempo? – É a duração da nossa experiência de observador aqui no
mundo.
O que é a vida? – Eu só experimento alguma coisa sobre isso, mas da mesma
maneira que eu não sei nomear a natureza, eu não sei nomear o que é a vida.
É uma experiência maravilhosa que eu estou passando por ela aqui.
Indescritível. Viver é a coisa mais maravilhosa que um vivo pode
experimentar, mas está cheio de zumbi por aí, né? Os zumbis devem ficar
pensando: pô, esses caras vivendo por aí, são preguiçosos, ficam vivendo,
andando na floresta. Talvez o grande drama seja isso: tem gente vivendo e tem
gente zumbizando (KRENAK, 2019).

Para alguns ameríndios brasileiros, nós que vivemos nas cidades e obedecemos aos
ditames de um tempo artificial, estamos zunbizando. Ou, como diz Kopenawa, falamos uma
língua de fantasmas97 (KOPENAWA, 2015, p. 77), com “a cabeça cheia de esquecimento”
(KOPENAWA, 2015, p. 10). Perdemos a capacidade, ou a oportunidade, de simplesmente
viver. Obedecemos a um cronograma que constantemente nos afasta de nós mesmos, vivemos
à base de aparelhos, dando importância ao que realmente não tem importância98. Com isso,
perdemos a dimensão do maravilhamento e da admiração.
Neste contexto, Davi Kopenawa e Ailton Krenak se destacam como grandes
embaixadores e porta-vozes das mensagens de outro mundo, físico e também encantado. Um
mundo onde as relações de causalidade são descritas apontando para os pontos mais frágeis de
nossa branca compreensão de mundo. “Eles são engenhosos, é verdade, mas carecem muito de
sabedoria” (KOPENAWA, 2015, p. 65).

97
“a gente comum, que só tem olhos de fantasmas” (KOPENAWA, 2015, p. 111).
98
Eduardo Viveiros de Castro, no prefácio de A queda do Céu, atesta: “Esse é talvez, o juízo mais cruel
e preciso até hoje enunciado sobre a característica antropológica central do ‘povo da mercadoria’ [...]
Os brancos, em suma, sonham com o que não tem sentido. Em vez de sonharmos com o outro, sonhamos
com o ouro” (2015, p. 38).
175

Por isso quero mandar minhas palavras para longe [...]. Se as escutarem com
atenção, talvez os brancos parem de achar que somos estúpidos. Talvez
compreendam que é seu próprio pensamento que é confuso e obscuro, pois
nas cidades ouvem apenas o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores e
máquinas. Por isso suas ideias costumam ser obscurecidas e enfumaçadas.
Eles dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa
(KOPENAWA, 2015, p. 76).

Ao contrário de nós, esses povos são capazes de ouvir e compreender os cantos da Terra.
Leonardo Boff também nos relembra da importância de aprendermos a escutar o que a natureza
nos fala através das nuvens, do canto dos pássaros, do relevo, da cor, do movimento e da
temperatura das águas, do vento, e assim por diante99. Diz que “só dominamos a natureza,
obedecendo-a; quer dizer, escutando o que ela nos ensina. A surdez nos dará amargas lições”
(BOFF, 2018, p. 148). Embora eu considere que o desejo de dominação da natureza devesse
passar a ser considerado como patológico e com cuidado nos consultórios psiquiátricos, trago
essa citação pela ideia de obediência. Ser obediente é bem diferente de ser servil. Os povos
ligados ainda às sabedorias da Terra são obedientes a uma força experienciada como maior que
eles. Nós, modernos, em nossa ânsia de dominação, somos servis a um sistema de consumo que
nos coloca dentro de uma dinâmica insaciável de aquisição de mercadorias. Na passagem a
seguir, Krenak dá um exemplo de obediência:

Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama
da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem
uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De
manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se
o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara
do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando
ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando sua cabeça,
toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o
que quiser” [...] No equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos
Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam casais. Tem mãe,
pai, filho, tem uma família de montanhas que troca afeto, faz trocas. E as
pessoas que vivem nesses vales fazem festas para essas montanhas, dão
comida, dão presentes, ganham presentes das montanhas. Por que essas
narrativas não nos entusiasmam? Por que que elas vão sendo esquecidas e
apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial, que quer contar
a mesma história para a gente? (KRENAK, 2019, p. 18-19)

99
Para os primeiros filósofos, pensar a partir da coisa presente no mundo ao redor é pensar o fogo, a
água, o ar, o ser, a transformação de umas em outras, o nascer e o perecer. O rio heraclítico não é
puramente simbólico: é banhando-se no rio concreto que percebemos a estrutura contraditória das coisas
que são (UNGER, 2000, p.32).
176

Como dizia Heschel, a admiração “é a fonte do conhecimento” (2001, p. 25) é “a única


bússola que nos dirige ao polo do significado” (2001, p. 29). Talvez, maravilhar-se ou
entusiasmar-se seja mesmo um modo de conhecer. Um modo de fazer com que o mundo cresça
em nós. Um modo de fazer com que sejamos contagiados pelo florescer da vida de tal modo
que todos tenham lugar de fala e de escuta, de existência, portanto. Para Boff, “conhecer é,
antes de tudo, um ato de comunhão. Conhecemos para participar da realidade autônoma do
outro” (2000, p.13). Os povos originários nomeiam elementos da natureza para lhes atribuir
personalidade e grau de parentesco100. Nós nomeamos lugares e lhes atribuímos título de
propriedade. Esta me parece ser uma diferença fundamental.

Não pensem que a floresta é vazia. Embora os brancos não vejam, vivem nela
multidões de espíritos, tantos quanto animais de caça [...]. Tampouco pensem
que as montanhas estão postas na floresta à toa, sem nenhuma razão. São casas
de espíritos, casas de ancestrais. Omama as criou para isso. São muito valiosas
para nós. É do topo delas que os xapiri descem para as terras baixas, por onde
vêm a nós quando bebemos yãkoana para chama-los e fazê-los danças [...].
Mas estas são palavras que os brancos não compreendem. Pensam que a
floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda.
Então dizem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear suas
casas, os caminhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem! Não querem
ouvir nossas palavras nem as dos espíritos. Preferem permanecer surdos
(KOPENAWA, 2015, p. 118-476).

Embora nós brancos, em sua grande maioria, tenhamos sido ensinados a não ver e até
mesmo a repudiar explicações de mundo que levem em consideração a possível existências de
seres e coisas que não podem ser comprovadas, pondero que, a partir de uma inteligência
sensível, este tipo de explicação de mundo pode se tornar plausível. Pelo menos
imageticamente. Pelo menos pelo respeito à tradição desses povos. Davi Kopenawa nos revela
também sua explicação sobre como surgem os cantos usados pelos xamãs para curar os doentes
e também segurar o céu no lugar. Trata-se de uma explicação repleta de encantamento e beleza:

Os cantos dos espíritos se sucedem um após o outro, sem trégua. Eles vão
colhê-los nas árvores de cantos que chamamos amoa hi. Omama criou essas
árvores de línguas sábias no primeiro tempo, para que os xapiri possam ir lá
buscas suas palavras. Param ali para coletar o coração de suas melodias, antes

100
A nova espiritualidade reconcilia o ser humano com o universo. Ele não precisa ter vergonha de suas
raízes cósmicas. Antes, pelo contrário, afirma-as como forma de comunhão com o todo. Este ser da
classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie
sapiens e da ‘hecceitas’ transcendente, em uma palavra, o ser humano concreto, não é, certamente, meio
para nada. Ele é um fim. Mas não um fim último. Nem coroa da criação. É um irmão e uma irmã das
lesmas e das estrelas (BOFF, 2000, p.14).
177

de fazerem suas danças de apresentação para os xamãs [...]. Omama plantou


essas árvores de cantos nos confins da floresta, onde a terra termina, onde
estão fincados os pés do céu sustentado pelos espíritos tatu-canastra e os
espíritos jabuti [...] São árvores muito grandes, cobertas de penugem brilhante
de uma brancura ofuscante. Seus troncos são cobertos de lábios que se movem
sem parar, uns em cima dos outros. Dessas bocas inumeráveis saem sem parar
cantos belíssimos, tão numerosos quanto as estrelas do céu. Mal um deles
termina, outro continua. Assim proliferam sem fim. Suas palavras não se
repetem jamais (KOPENAWA, 2015, p. 113-114).

Essa imagem da árvore cheia de lábios que canta para nós de modo ininterrupto pode
ser uma alegoria dessa qualidade poliglota do mundo e que, caso reconhecida e valorizada,
contribui para o caminhar conjunto fortalecido pela diversidade. Esta é a imagem de uma árvore
da vida, presente em tantas outras tradições, que alimenta a beleza e o cuidado. Trata-se de uma
compreensão de mundo no qual cada elemento tem seu lugar e propósito pelo simples fato de
existirem ou de serem criados em nossos sonhos. Trata-se de uma compreensão de mundo que
visa escorar cada existência em seu lugar e propósito. E, principalmente, que descreve a
interação entre seres e coisas que podem ser vistos e seres e coisas que não podem ser vistos
como o pilar principal da vida. Para eles, o que nós, “civilizados”, estamos (re)descobrindo
agora – ou seja, a interdependência e interação de tudo – é vivido, é fundado na experiência.
Não precisa de comprovação “extra-sensorial científica”. Trata-se de um modo de compreensão
de mundo que revela e sustenta o mistério em estado de perplexidade e reverência. Escutá-los
e deixar com que as palavras destes povos habitem em nós é o nosso grande desafio101:

Per-plexo está aquele que se abre à estranheza do presente, aquele que ama a
trama. Nesta entrega, aquele que tece é também tecido na rede de um real em
constante mutação. Entrelaçamento de múltiplos fios na composição da trama,
toda tessitura é evocação do Um e do múltiplo, de identidade e diferença. Aos
tecelões perplexos de um pensar no presente, o trabalho da trama, a alegria da
criação e o desa-fio de sua interminável renovação (UNGER, 2000, p. 33).

3.3.2 Uma nova cosmologia

A projeção da utopia no passado ou sua projeção no futuro pode ter seu valor
como paradigma (UNGER, 2000, p.32).

101
“Deixar-se hospedar pelo outro, com todos os desdobramentos aí envolvidos, é o caminho que se
abre nesse tempo sombrio das afirmações identitárias e dos fundamentalismos nefastos. Para tanto,
firma-se o passo do diálogo” (TEIXEIRA, 2017, p. 19).
178

Imaginar não significa colocar uma imagem inerte e imaterial diante dos
olhos, mas contemplar a força que permite transformar o mundo e uma porção
de sua matéria em uma vida singular. Imaginando, a semente torna necessária
uma vida, deixa seu corpo se emparelhar com o curso do mundo. A semente é
o lugar onde a forma não é um conteúdo do mundo, mas o ser do mundo, sua
forma de vida. A razão é uma semente, pois, diferentemente do que a
modernidade se obstinou em pensar, não é o espaço da contemplação estéril,
não é o espaço da existência intencional das formas, mas a força que faz existir
uma imagem como destino específico de tal ou qual indivíduo ou objeto. A
razão é o que permite a uma imagem ser um destino, espaço de vida total,
horizonte espacial e temporal. É necessidade cósmica e não capricho
individual (COCCIA, 2018, p.21).

O ser humano moderno insiste em brincar de Deus. Cada um de nós faz isso quando, a
partir de um ponto de vista, que é sempre restrito, se acha no direito, e muitas vezes no dever,
de categorizar o que é bom e mau, o que é certo e errado, traçando verdades tidas como
absolutas, imutáveis e universais. E, neste contexto, o mau sempre é o outro, o estranho, o
diferente. Dificilmente alguém se auto intitula mau ou reconhece o mau que o habita102.
Entramos em um processo de negação de uma parcela que também nos é característica, e assim
ela acaba agindo por si só. Este processo pode ser sintetizado pela descrição que Eliane Brum
faz em relação ao tema do excepcionalismo humano, presente em nossas mais corriqueiras
atitudes.

Nós começamos por nos considerarmos especiais em relação aos outros seres
vivos. Isso foi o primeiro passo para, em seguida, alguns de nós começar a se
achar melhores do que os outros seres humanos. E nisso começou uma história
maldita em que você vai cada vez excluindo mais. Você começou por excluir
os outros seres vivos da esfera do mundo moral, tornando-os seres em relação
aos quais você pode fazer qualquer coisa, porque eles não teriam alma. Esse é
o primeiro passo para você achar que alguns seres humanos não eram tão
humanos assim. O excepcionalismo humano é um processo de monopolização
do valor. É o excepcionalismo humano, depois o excepcionalismo dos
brancos, dos cristãos, dos ocidentais... Você vai excluindo, excluindo,
excluindo... até acabar sozinho, se olhando no espelho da sua casa (BRUM,
2014, p. 18-19).

102
“A grande questão disposta no livro é aquela que acompanha o itinerário de Riobaldo: existe ou não
o Demo? Para o narrador, a grande questão “é a existência dele: existe ou não? Em princípio, sente que
é um nome atribuído à parte torva da alma”31. Na conversa com o interlocutor, Riobaldo esclarece:
“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado,
ou o homem dos avessos” (GSV: 15)32. Esses conflitos de Riobaldo no plano subjetivo correspondem
nitidamente aos conflitos universais pelos quais passa todo ser humano. Não há quem não tenha essa
ambiguidade dentro de si. Faz parte do drama de estar situado no mundo, da busca do “sentido da
vida”33. São dramas humanos que Guimarães Rosa, com sua arte, consegue sensibilizar o leitor”
(TEIXEIRA, 2019, [n.p.]).
179

“Não tiro sombras dos buracos” (ROSA, 2019, p. 53), já dizia Riobaldo em Grandes
Sertões: veredas. É chegada a hora de encararmos de frente as sombras que a Era das Luzes
nos deixou. É chegada a hora de compreendermos que nossas ações na biosfera são fonte e
causa de muito sofrimento. Isso porque talvez ainda tenhamos a oportunidade de refundar nossa
compreensão de mundo com base em uma ética que possibilite a continuidade da vida. Espero
ter conseguido demonstrar ao longo desta tese que já está em curso o surgimento de uma nova
mentalidade, ainda em bolsões de consciência aqui e ali, mas que aos poucos têm se alinhado
em o que Leonardo Boff chama de “ecologização dos saberes”103 (2018, p. 98). Este tópico
consiste em uma tentativa de sistematizar essas ideias como força de paradigma.

A ecologia, em seu sentido filosófico, significa uma reflexão (logos-logia)


sobre a casa (oikos), sobre o habitat e, numa aplicação mais globalizante,
sobre a Casa Comum, que é a Terra. O termo foi cunhado por um discípulo
de Darwin, o zoólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919) [...]. Haeckel a
define assim: “É o estudo da interdependência e da interação entre organismos
vivos (animais e plantas) com seu meio ambiente (inorgânico) (BOFF, 2018,
p. 97).

Ainda no início do século XX, ressurge, então, para a mentalidade ocidental, a ideia da
interdependência elementar que funda e sustenta a vida na Terra. Afirmo que é um
ressurgimento porque há indícios de que o sentido de interdependência foi algo que se perdeu
ao longo do tempo, mas que nunca submergiu completamente. Davi Kopenawa nos fala a este
respeito:

Omama tem sido, desde o primeiro tempo, o centro das palavras que os
brancos chamam de ecologia. É verdade! Muito antes de essas palavras
existirem entre eles e de começarem a repeti-las tantas vezes, já estavam entre
nós, embora não chamássemos do mesmo jeito. Eram desde sempre, para os
xamãs, palavras vindas dos espíritos, para defender a floresta [...]. Se
tivéssemos livros, os brancos entenderiam o quanto são antigas para nós! Na
floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto
nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento
e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o
que ainda não tem cerca (KOPENAWA, 2015, p. 479-480).

Ou seja, segundo Davi, nós, que ele chama de brancos, precisamos criar um termo novo
para designar algo que já é profundamente experimentado como modo de vida dos povos que

103
Ecologização dos saberes: saber de saberes entre si relacionados criando uma comunidade de vida
(BOFF, 2018, p. 98).
180

não reconhecem nossas cercas, as conceituais e as físicas. Ele está mesmo muito atento às
palavras que usamos e aos sentidos sutis que elas carregam. Faz isso como um exercício de
diálogo em que aponta novamente para a fragilidade de nossos conceitos:

Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma outra palavra:
meio ambiente. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da
terra e da floresta ferida por máquinas. É o que resta de tudo o que eles
destruíram até agora. Não gosto dessa palavra meio. A terra não deve ser
recortada pelo meio. [...]. Prefiro que os brancos falem de natureza ou de
ecologia inteira. Se defendermos a floresta por inteiro, ela continuará viva. Se
a retalharmos para proteger pedacinhos que não passam da sobra do que foi
devastado, não vai dar em nada bom. Com um resto das árvores e dos rios, um
resto dos animais, peixes e humanos que nela vivem, seu sopro ficara curto
demais [...]. Os brancos já desmataram quase toda a sua terra. Mantiveram
apenas alguns retalhos de sua floresta e puseram cerca em volta deles. Acho
que pretendem fazer o mesmo com a nossa. (KOPENAWA, 2015, p. 484-
485).

Este trecho se configura como uma brincadeira com as palavras, em que Davi se refere
a lógica implícita que levou a ideia de natureza como uma amplidão selvagem envolvendo ilhas
de civilização, contra a ideia de meio ambiente, e da qual surgem as reservas, ou seja, resíduos
de natureza cercados – parques nacionais e espaços verdes – ilhados em um espaço
industrializado englobante (KOPENAWA, 2015, p. 681, nota 44).
Leonardo Boff sintetiza quatro tendências básicas da nova cosmologia: a) Ecologia
ambiental – que toma como premissa que a garantia da qualidade de vida está ligada a harmonia
com todas as coisas, primeiramente com a família, com a natureza, com as águas, com as
montanhas e com a economia de subsistência (2018, p. 110); b) Ecologia político-social – ouvir
tanto os gritos da Terra como o grito dos pobres. Levar em consideração a sustentabilidade e
permitir atender às necessidades humanas e animais, presentes e futuras, bem como às
necessidades de repouso e regeneração da Terra (2018, p. 111); c) Ecologia mental – mentes e
corações – passar a considerar a Terra como um superorganismo vivo e a partir da razão cordial
fazer nascer atitudes de cuidado, respeito, compaixão e amor a tudo o que vive (2018, p. 113);
d) Ecologia integral-espiritual – trata-se da ecologia profunda que nos coloca como parte do
universo e que este seria o espírito ordenador da deslumbrante harmonia. Dessa experiência
primal (que é um sentido de reverência) nasce em nós a espiritualidade, tão acentuada no final
da encíclica sobre a ecologia integral, do papa Francisco (2018, p. 115).
181

Nessas quatro esferas estão inseridas as “motivações que levam a uma espiritualidade,
para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo [...] e isso é impossível sem uma mística
que nos anima [...] e dá sentido a uma ação pessoal e comunitária” (LS, n. 216).

Se optarmos por ela [esta nova cosmovisão], criaremos a oportunidade de uma


civilização planetária na qual a vida da Terra e do ser humano, o cuidado, a
cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganharão centralidade.
Será a grande virada salvadora que urgentemente precisamos (BOFF, 2018, p. 104).

CONSIDERAÇÕES

Ao longo deste capítulo final de minha tese, procurei apontar para o que considero ser
a possibilidade da emergência de uma cultura baseada no cuidado. Espero ter conseguido
mostrar como este novo modo de ser no mundo precisa estar fundamentado em uma perspectiva
ética-espiritual que abarque a todos os seres e a própria Terra em seu valor intrínseco. Isto
porque, segundo Eduardo Kohn, trata-se do desafio aliado a nosso tempo: aprender a conviver
como distintos e contínuos ao mesmo tempo:

Subordinar a relação entre formas distintamente humanas de representação e


essas outras formas é a chave para encontrar uma maneira de praticar uma
antropologia que não separa radicalmente os seres humanos dos não-humanos.
[...] Dados os desafios colocados ao aprender a conviver com o proliferante
conjunto de outros tipos de formas de vida que cada vez mais nos cercam -
sejam animais de estimação, ervas daninhas, pragas, comensais, novos
patógenos, animais "selvagens" ou "mutantes" tecnocientíficos -
desenvolvendo uma maneira precisa de analisar como o humano é distinto e
contínuo com aquilo que está além disso é crucial e oportuno (KOHN, 2013,
p. 9).

Com o objetivo de conceituar a espiritualidade do cuidado, defini o que seria espírito,


espiritualidade e cuidado, dentro de suas abrangências para além das doutrinas tradicionais
religiosas. Esse exercício se faz necessário para que seja possível criar uma consciência comum
da necessidade da união humana em busca da preservação da vida. Para tanto, é necessário que
a diversidade da vida e dos modos de pensar humanos sejam considerados em suas
singularidades, e ao mesmo tempo sejam sintetizamos em atitudes que elevem o bem comum
como prioridade absoluta de nosso tempo.
Nessa dinâmica dialogal entre o singular e o múltiplo, destaquei a importância dos
movimentos feministas/femininos, das discussões de gênero, de raça e de classe, para ampliar
182

o sentimento e a prática da inclusão em nossa concepção de humanidade. Bem como para


mostrar que está em curso a emergência (no sentido de emergir e de urgência) uma mudança de
consciência em múltiplas áreas de saber e militâncias, simultaneamente. Fato que caracteriza a
atualidade das reflexões levantas pela tese.
Embora a sensação de que muito mais ainda poderia ser escrito, trouxe os pensamentos
de Leonardo Boff e Davi Kopenawa com propósito de fechamento de minhas reflexões. Neles,
o imperativo ecológico é traduzido e sistematizado como premissas básicas para a continuação
de nossa esperança utópica de futuro. Porém, trata-se de um convite à ação, tanto individual
como coletiva, à transformação de hábitos, modos de pensar, sentir e se relacionar. Isso porque
não sabemos exatamente o que nos aguarda, mas sabemos que o agora necessita de atitudes
revolucionárias. Sabemos também que as revoluções nem sempre são pacíficas e graduais.
Deixo aqui, então, um trecho do livro Aos nossos amigos, que, vou repetir, foi escrito
coletiva e anonimamente, por um grupo que se auto intitula Comitê Invisível. Esta fala me
parece urgente e oportuna:

A esquerda da esquerda, quando lhe perguntam em que consistiria a


revolução, apressa-se a responder: “colocar o humano no centro” O que essa
esquerda não percebe é o quanto o mundo está cansado do humano, o quanto
nós estamos cansados da humanidade – essa espécie que se considerou a joia
da criação, que se considerou no direito de tudo pilhar pois tudo lhe pertencia.
“Colocar o humano no centro” era o projeto ocidental. Levou ao que sabemos.
Chegou o momento de abandonar o navio, de trair a espécie. Não há nenhuma
grande família humana que existiria separadamente de cada um dos mundos,
de cada um dos universos familiares, de cada uma das formas de vida
espalhadas pela terra. Não há humanidade, há apenas os terranos e os seus
inimigos - os Ocidentais, qualquer que seja a sua cor de pele. Nós,
revolucionários, com o nosso humanismo atávico, faríamos bem em atentar
nas ininterruptas sublevações dos povos indígenas da América Central e da
América do Sul, nestes últimos vinte anos. A sua palavra de ordem poderia
ser: “colocar a terra no centro”. É uma declaração de guerra ao Homem.
Declarar-lhe guerra, talvez seja esta a melhor forma de o fazer voltar à terra,
se ele não se fizer de surdo, como sempre (COMITÊ INVISÍVEL, 2016, p.
26).
183

CONCLUSÃO

ENTRE PRETO E BRANCO


Não se acha capaz para a vida este homem que, sozinho, joga xadrez com o
computador. Como em tantas partidas anteriores, perdidas todas, não enfrenta
apenas o adversário invisível, duela com uma dúvida. Vale mais:
• perder, e reforçar a certeza de sua incapacidade?
• ou vencer, e destroçar hábitos e identidade?
(COLASANTI, 2013, [n.p.])

Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo Mistério.
O senhor não vê? O que não é Deus é estado do demônio. Deus existe mesmo
quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente
sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um
sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer céu porque quer um fim”
(ROSA, 2019, p. 50).

Esta tese foi escrita sob a atmosfera de muita angústia. Isso se deve em parte ao fato de
eu ter percebido, ao longo de meu percurso de estudos e de vida, que quase tudo que está sendo
dito aqui, na verdade, se trata de um redizer. Redizer, relembrar, recontar, reafirmar modos de
pensar que já foram formulados ao longo de todo o caminho da humanidade, mas que ainda não
se tornaram expressos no sentir e agir mais íntimo de nós, seres humanos. E talvez nunca se
tornem.
A angústia se agravava também por uma ambivalência interna entre uma tendência
pessoal de pensar de forma romântica e utópica, contra uma evidência, trazida pela pesquisa,
pela fala dos autores referendados, de que qualquer reflexão esperançosa tenderia a ser
superficial. O objetivo desta tese era relatar narrativas que emergem em torno da função do
cuidado dentro de nossas relações, de como a ideia do cuidado pode tecer uma concepção de
espiritualidade capaz de trazer ao ser humano a consciência de que é somente um entre os
diversos seres da criação. Considero que neste ponto ela é bem-sucedida. É possível afirmar
que seja qual for a causa que tomemos como nossa, chegaremos à questão do cuidado como
imperativo no momento atual. Sinto que esta tese consiste em uma espécie de pupurri de
possibilidades neste sentido.
Porém, hoje, diante do que foi escrito e dos fatos que ocorreram no mundo nos últimos
quatro anos, percebo que a barbárie, como diz Isabelle Stengers (2015, p. 13), alcança uma
magnitude que talvez seja irreversível. Além disso, percebo que a angústia que me moveu
durante a pesquisa – o sentimento de indignação e a forçosa resistência – pode representar o
mais potente modo-de-ser-no-mundo hoje. É preciso re-existir através dos modos, pensamentos
184

e sentimentos que levam a uma assimilação pessoal e coletiva da Cultura do Cuidado. Mesmo
que não tenhamos a menor garantia de sucesso. Mesmo que talvez esta guerra já esteja perdida,
como diz Bruno Latour (2012, p. 483).

ENTRE
Um homem vai por um caminho, chega à bifurcação. Hesita longamente entre
um lado e outro. Afinal, a poder de foice, abre no meio dos dois um terceiro
caminho (COLASANTI, 2013, [n.p.]).

Esta parece ser a tarefa de nosso tempo: encontrar, abrir a foice, ou até, como força de
um automergulho, inventar um terceiro caminho. Segundo Stengers, nossa missão atual
consiste em uma emancipação contra uma forma clandestina de transcendência que se
materializa como o direito de não ter cuidado (2015, p. 54). Não há mais como continuar
vivendo como se nada estivesse acontecendo.
Chegamos ao limite do antropocentrismo despótico (LS, 68) e do paradigma
tecnocrático (LS, 108). A deterioração ética, cultural e espiritual a que estamos submetidos –
que na verdade se inicia antes de nós, habitantes atuais do planeta, mas a qual mantemos em
cada uma das mais simples escolhas do cotidiano104 – está diretamente ligada a uma crise
ambiental sem precedentes desde que histórias passaram a ser contadas. Conforme foi
trabalhado na tese, esta crise fundamenta e ao mesmo tempo é fundamentada por uma profunda
desconexão do humano moderno em relação às suas fontes de sentido. Sejam elas seu próprio
corpo, sua casa, seu cuidado com a infância, um senso de segurança proveniente de relações
comunitárias; sejam elas sua conexão com a Terra, seus ciclos e belezas. Neste contexto,
podemos constatar que Heschel tem razão quando diz que “o avançar da civilização comporta
quase necessariamente o declínio do senso da maravilha. E este fato constitui um alarmante
sintoma do nosso estado de ânimo” (2001, p. 45). A maioria de nós segue melancolicamente
imerso em um complexo e catatônico estado de impotência coletiva.
Contudo, e ainda bem, algumas vozes se levantam como fonte de luz, de resistente
insistência e de ação. Esta tese se configura como uma proposta de escuta de algumas das
narrativas construídas por essas pessoas. E, ao vê-las aqui reunidas e propagadas, cresce a
sensação de que provavelmente existem muito mais vozes engajadas em um reencantamento
do mundo, e que felizmente esse assunto não se esgota nestas páginas.

104
“Nas grandes cidades do Brasil e do mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos
atos cotidianos se fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos obrigados a questionar a origem
da roupa que vestimos ou a origem da comida que comemos” (BRUM, 2019, [n.p.]).
185

Uma das pessoas que se dedica à insistente resistência é Leonardo Boff, cujo
pensamento pode ser sintetizado nas seguintes passagens:

Em contraposição [ao contexto em que vivemos] está comparecendo cada vez


mais forte uma cosmologia alternativa e potencialmente salvadora: a
cosmologia da transformação e da libertação. Ela já tem mais de um século de
elaboração e ganhou maior expressão na Carta da Terra (2000) e na encíclica
do Papa Francisco Laudato Si’: sobre o cuidado da Casa Comum (2015). [...].
Essa nova cosmologia deriva-se das ciências do universo, da Terra e da vida.
Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso processo de
evolução que se iniciou a partir do big bang, há cerca de 13,7 bilhões de anos
(2018, p. 102).

Essa cosmovisão alternativa é a que pode fundar o resgate da espiritualidade do cuidado:

O que caracteriza essa nova cosmologia é o cuidado, no lugar da dominação;


o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser, e não sua mera utilização
humana; o respeito por toda a vida e os direitos e a dignidade da natureza, e
não sua exploração. [...] É a cosmologia da transformação/liberação,
expressão da nova era, a era ecozoica (BOFF, 2018, p. 103-106).

Esta, assim nomeada por Boff, nova era ecozoica, recebe um nome diferente a partir do
pensador que a consagra. Entretanto, se trata do mesmo e grandioso fenômeno que passa a
invadir nosso ideal de mundo neste momento histórico: precisamos fazer retornar a Terra ao
centro do universo. Pelo menos do nosso universo. Isso porque, assim como todos os outros
habitantes do planeta, nós humanos não existiríamos sem a Terra e seu frágil, precioso e preciso
equilíbrio que propiciou o surgimento e a manutenção da vida até agora. E para que a
importância do cuidado com a terra seja recolocada, se faz necessário um desinvestimento do
modo de pensar que eleva o humano a um lugar excepcional diante de todos os não-humanos,
sejam eles rochas, plantas, animais, seres reconhecidamente vivos ou não: seres de todas as
ordens.
Trata-se de nos tornarmos capazes de fazer novas perguntas, transgredir nossa lógica,
habitar o campo da incerteza e não cair na tentação de tentar dominá-lo. Não abrir mão da
angústia saudável que provém do espanto, do encontro com o novo, com o mistério: entrar em
um devir criança, devir mulher, devir índio, devir louco, devir rio, devir montanha, devir
passarinho, etc. Gostaria de ter podido explorar mais este campo e sugiro como pontos de
investigação/vivência vindouros. Assim como a função dos sonhos em nossas construções de
mundo. Tanto no campo onírico, como a possibilidade de sonhar acordados. Deleuze foi um
186

autor que margeou minhas investigações, mas com o qual ou sobre o qual não fui capaz de
aprofundar, infelizmente. Porém, intuitivamente, considero que esta tese trate de uma
possibilidade de abertura de um campo de compreensão que descentralize nossas certezas e
contribua para retirar de nós a tendência quase inata de sermos universalizantes, colonizadores
do outro, como um propósito quase consciente de excluir o estranho para proteger a nós mesmos
da angústia que emerge do auto estranhamento. Espero até mesmo ter conseguido provocar o
estranhamento, aquele sentimento que possibilita tocar as inseguranças, aquelas que fazem com
que fronteiras rígidas sejam erguidas para apartar qualquer fenômeno que nos tire da zona de
zumbi, ou fantasma, como nomeiam Krenak e Kopenawa, respectivamente.
Uma pergunta chave a ser colocada é: como habitar o desconhecido e aberto de nós-no-
mundo em respeito e reverência? Não sei a resposta, academicamente falando. Porém, intuo
que uma possibilidade de resposta passa pela peregrinação por vivências, e não por respostas
conclusivas; passa pelo imperativo da presença, ou seja, por uma ausência da busca pela
finalidade ou por resultados. Algo que significa habitar o lugar do espanto, como diz Ingold.
O aqui-e-agora que nos lembra que estamos todos vivos e que “estar-aqui é esplendor”!
(RILKE, 2013, p. 61). Algo que nos leve a colocar a vida como imperativo de legitimidade em
si mesma e a aceitar que tudo que acontece no mundo se relaciona, de alguma maneira, com
cada um de nós e ao mesmo tempo conosco, com nossa coletividade: “Cada ser vivo, cada
espécie viva, é uma manifestação da bondade do Criador” (GARMUS, 1992, p. 280).

IT’S WILD
Ecoa de passagem, no silêncio da reserva, a música vinda de um jipe de
turistas. “Baby, baby, it’s a wild world!”. Canta Cat Stevens.
E a leoa tranquiliza sua cria: “Liga não, filho, não é a nós que ele se refere”
(COLASANTI, 2013, [n.p.]).

A voracidade do descuido humano pede urgência em ações revolucionárias. Em 26 de


Julho de 2019, é publicado um artigo de Leonardo Boff na revista IHU online, intitulado
Cidadania, florestania: a Amazônia, titular de direitos. O título já antecipa seu conteúdo:

Fenômenos novos exigem palavras novas. Assim cidadania se deriva de


cidade e florestania, de floresta. Esta nova palavra, florestania, foi criada
no Estado do Acre, sob o governo de Jorge Viana, representando conceito
novo de desenvolvimento e de cidadania no contexto da floresta amazônica.
Floresta e ser humano vivem um pacto sócio-ecológico includente, onde o ser
humano se entende parte da floresta e a floresta passa a ser um novo cidadão,
respeitado em sua integridade, biodiversidade, estabilidade e luxuriante beleza
187

junto com os outros cidadãos humanos. Ambos são beneficiados – povo e


floresta – pois abandona-se a lógica antropocêntrica e utilitarista da
exploração e se assume a lógica ecocêntrica, da mutualidade que implica
respeito mútuo e sinergia.
Esta compreensão abre espaço para um enriquecimento possível do conceito
de cidadania a partir da reflexão ecológica mais avançada. Agora trata-se
da florestania não só como cidadania na floresta, mas como cidadania da
floresta. A floresta é considerada, pois, como um novo cidadão. Impõe-se,
portanto, a ampliação da personalidade jurídica à floresta, aos ecossistemas e
à Terra como Gaia. Bem disse o pensador Michel Serres: “A Declaração dos
Direitos do Homem de 1789 teve o mérito de dizer ‘todos os homens têm
direitos’ e o defeito de pensar ‘só os homens”. Os indígenas, os escravos e as
mulheres tiverem que lutar para serem incluídos em ‘todos os homens”. E hoje
esta luta inclui as florestas e outros seres da natureza também sujeitos de
direitos e, por isso, novos membros da sociedade ampliada (BOFF, 2019,
[n.p.]).

Stengers levanta a questão: “há, agora, a ideia de que tentar pensar o futuro coletivo é
um direito legítimo?” (2015, p.121). Esta tese procura demonstrar que a resposta a esta
indagação é positiva. Emerge um modo de pensar que coloca o futuro de nossa coletividade
como prioridade absoluta e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que qualquer ação
proveniente desta mentalidade precisa ser local. Não haverá uma solução única capaz de abarcar
toda a ampla complexidade dos seres viventes. As sabedorias, as crenças, os valores e as
necessidades de cada povo-pessoa precisam basicamente ser consideradas para a construção de
um futuro que seja amplamente coletivo e passível de ser vivido. Conceitos como o
ecocentrismo e a florestania contribuem sobremaneira neste sentindo. Porém, Stengers salienta
que neste caminho é fundamental que cada pessoa aprenda a pensar. Que a passividade seja
substituída pela ação inclusive no pensamento.

É vital que “as pessoas” pensem, e essas pessoas não são os “outros”, aqueles
de que falam “nossos responsáveis” sem jamais se incluir dentre eles.
Aprender a pensar, a colocar as próprias questões, a se situar escapando da
evidência do “qualquer um” nunca é um conteúdo a ser adquirido, definindo
uma elite contra o rebanho submisso. A única coisa que se pode adquirir é o
gosto e a confiança no pensamento. E aqueles e aquelas que os adquirem hoje
conhecem a “oportunidade” que têm, podem narrar o encontro ou o
acontecimento aos quais devem essa experiência, cuja possibilidade a escola
e a mídia lhes tinha feito ignorar: não “eu penso”, mas “algo que faz pensar”
(STENGERS, 2015, p. 125).

Precisamos resgatar a capacidade de pensar e agir juntos de forma política. Reaprender


a arte de ter cuidado e elaborar respostas para os gigantescos desafios da atualidade amplamente
retratados na tese. Stengers diz que se trata de construir coletivamente estratégias para
188

resistirmos ao “‘tristemente previsível’. A barbárie é hoje o tristemente previsível (2015, p.140,


grifo da autora). Para tanto, a autora aponta a oportunidade de criarmos outras narrativas como
um recurso de resistência. Novos enredos, não aqueles que levam a uma compreensão épica da
função humana de salvadores do mundo, heróis e heroínas.

Precisamos de desesperadamente de outras histórias, não contos de fadas, em


que tudo é possível para corações puros, para almas corajosas ou para pessoas
de boa vontade reunidas, mas das histórias que contam como situações podem
ser transformadas quando aqueles que as sofrem conseguem pensá-las juntos.
Não histórias morais, mas histórias “técnicas” a propósito desse tipo de êxito,
das ciladas de que cada uma precisou escapar, das imposições cuja
importância elas reconheceram. Em suma, histórias que recaem sobre o pensar
juntos como “obra a ser feita”. E precisamos que essas histórias afirmem sua
pluralidade, pois não se trata de construir um modelo, e sim uma experiência
prática. Pois não se trata de nos convertermos, mas se repovoar o deserto
devastado de nossa imaginação (STENGERS, 2015, p.126-127, grifo da
autora).

A ideia então seria um esforço, pessoal e coletivo, em fazer uma releitura de nossas
narrativas e de nossa História, com o objetivo de ressaltar as nuances de engajamento, de
pensamento coletivo, de ajuda mútua, de busca de soluções horizontais e comunitárias.
Consistem em modos de contar o reencantamento do mundo passando pela consideração de
causas comuns que incluem singularidades e que nos libertam das amarras que o modo linear
de pensar nos oferece. Considero que esta tese represente um passo para este feito quando
transita entre autores de diferentes disciplinas e áreas de saber. Quando busca lampejos dessa
nova consciência que se mostra presente, ainda que de forma difusa, disseminada e
diversificada. Talvez, com isso, a reunião dos escritos desta tese possa ter ferido algumas regras
preexistentes e ultrapassado algumas fronteiras. Principalmente no que tange ao fato de ter
incluído relatos de minha experiência pessoal em meio a argumentações teóricas. Fiz isto com
dois objetivos: um deles foi apresentar o modo processual como meu próprio pensamento foi
sendo construído e acolhendo tanto o engajamento, quando o encantamento. O outro é que
considero que este processo passa necessariamente pelo corpo e pela lembrança e releitura de
nossas memórias, portanto, é preciso que passemos a considerar relatos pessoais, experiências
sensoriais e em última instância, afetos, como pertinentes dentro de nossas buscas acadêmicas.
Tim Ingold era um autor que eu não conhecia antes de começar os estudos do doutorado.
Ter contato com seu modo de pensar foi fundamental para que eu pudesse desenvolver a tese
da forma como foi construída. Ele esclarece que ao ter contato com uma disciplina, um livro ou
189

uma teoria não devemos pensar só na bibliografia textual que fundamenta seus argumentos,
mas na vida que se insere nela.

Porque reconhecemos apenas fontes textuais, mas não o chão em que pisamos,
os céus em constante mudança, montanhas e rios, rochas e árvores, as casas
nas quais habitamos e as ferramentas que usamos, para mencionar os inúmeros
companheiros, tanto animais não humanos quanto os outros seres humanos,
com os quais e com quem compartilhamos nossas vidas? Eles estão
constantemente nos inspirando, nos desafiando, nos dizendo coisas. Se o
nosso objetivo for ler o mundo, como eu acredito que deva ser, então o
propósito de textos escritos deve ser enriquecer nossa leitura para que
possamos ser melhor aconselhados pelo mundo e capazes de responder ao que
nos está dizendo (INGOLD, 2011, p. 12).

Considero que este autor me deu os recursos necessários para que eu pudesse traduzir,
encontrar um fio de coerência e expressar em palavras o que precisava nascer em minha
pesquisa. Junto com ele pude compreender que o objetivo é o próprio caminho e que uma
trajetória é formada por ciclos de inícios e fechamentos, mas que profundamente há uma
continuidade. E neste ponto é preciso fechar o meu caminho doutoral. Considero que a melhor
maneira de concluir será entoando a alegria. Este que aprecio ser sentimento que precisa se
tornar o símbolo da resistência neste nosso tempo, o sentimento que se bem sentindo, pode
encantar nosso olhar com o dom do cuidar do mundo. Fecho com a alegre provocação de
Stengers para o bem viver, e com o sentido de preservação do mistério, de Rumi:

A alegria é transmitida não de alguém que sabe a alguém que é ignorante, mas
de um modo em si mesmo produtor de igualdade, alegria de pensar e de
imaginar juntos, com os outros, graças aos outros. Ela é o que me faz apostar
em um futuro em que a resposta a Gaia não seria o triste decrescimento, e sim
o que os objetores de crescimento já inventam quando descobrem juntos as
dimensões da vida que foram anestesiadas, massacradas, desonradas em nome
de um progresso hoje reduzido ao imperativo de crescimento. Talvez,
finalmente, ela seja o que pode desmoralizar nossos responsáveis, leva-los a
abandonar sua triste pose heroica e a trair o que os aprisionou [...] Não se está
dizendo que tudo então acabará bem, pois Gaia ofendida é cega para nossas
histórias [...] Tal resposta, que ela não ouvirá, confere à sua intrusão a força
de um apelo a vidas que valem ser vividas (STENGERS, 2015, p. 153).

Se eu prosseguisse devidamente essa discussão,


De modo a prolongar perguntas e respostas,
A união do mistério do amor me escaparia,
O quadro da obediência se desfiguraria. (RUMI, 1992, p. 159)
190

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