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Platão Leis

Este documento discute as leis e formas de governo em Creta. O diálogo entre um ateniense e dois estrangeiros debate se as leis devem ser criadas para promover a vitória sobre outros ou para promover a paz interna. Eles concordam que o objetivo das leis deve ser promover a harmonia entre cidadãos, não a guerra contra outros.

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Platão Leis

Este documento discute as leis e formas de governo em Creta. O diálogo entre um ateniense e dois estrangeiros debate se as leis devem ser criadas para promover a vitória sobre outros ou para promover a paz interna. Eles concordam que o objetivo das leis deve ser promover a harmonia entre cidadãos, não a guerra contra outros.

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LEIS

(Sobre a legislação. Gênero político)

Personagens:

Um forasteiro ateniense, Clínias, cretense; Megilo, lacedemônio

Livro I

I — Deus, forasteiros, ou algum homem é que passa entre vós outros como
sendo o instituidor de vossas leis?

Clínias — Deus, forasteiro; Deus, para falar com justiça. Entre nós foi
Zeus; na Lacedemônia, de onde provém este amigo, isso mesmo atribuem,
quero crer, a Apolo. Estarei certo?

Megilo — Perfeitamente.

O Ateniense — E aceitas, porventura, aquilo de Homero, quando nos diz


que de nove em nove anos Minos procurava a companhia do pai e, segundo
os seus oráculos, elaborava as leis com que brindou vossas cidades?

Clínias — Realmente, é o que dizem eqtre nós, e também que Radamanto


— vosso conhecido de nome, sem dúvida — foi o mais justo dos homens.
Nós, cretenses, somos de parecer que ele conquistou essa reputação
por haver então distribuído com acerto a justiça.

O Ateniense — Bonita reputação, reaImente, que muito recomenda um


filho de Zeus. E já que fostes edu-

cados, tu e este amigo, em ambiente de costumes bem regulamentados,


espero que não vos será desagradável conversar a respeito de leis e formas
de governo, falando e ouvindo alternamente durante o caminho que vamos
percorrer. Tanto mais, que é bastante longa a estrada de Cnosso ao antro e o
templo de Zeus, segundo nos informaram; porém é de presumir que nesta
época de calor haja lugares para descanso à sombra de árvores copadas;
vai bem com a nossa idade determo-nos nesses pontos e distrairmo-nos com
a conversa, para, assim, vencermos com facilidade o trajeto.

Clínias — Isso mesmo, forasteiro; mais adiante, va-; mos encontrar bosques
de ciprestes de altura e beleza admiráveis, e prados verdejantes, nos quais
poderemos entreter-nos à vontade.

O Ateniense — Ótimo!

Clínias — Sem dúvida; quando os avistarmos, é o que diremos com


alvoroço ainda maior. A caminho, pois, e que a sorte nos ajude!

II — O Ateniense — Vá que seja! E agora dizei-me: com que intuito a lei


instituiu entre vós outros as refeições masculinas em comum, os exercícios
físicos e o uso das armas?

Clínias — Para qualquer pessoa, forasteiro, é muito d fácil, me parece,


compreender o sentido dessas instituições. Observa o terreno de Creta; não
há planícies como na Tessália; daí, prevalecer na Tessália o uso de cavalos,
e entre nós as corridas a pé; aqui, a irregularidade do terreno presta-se a
exercícios desse gênero. Por isso mesmo, é de necessidade usar armas
leves, para correr com desembaraço, sendo indicado para esse fim o
nenhum peso dos arcos e das flechas. Tudo isso foi estabelecido com
vistas e à guerra, e foi com os olhos nela, quero crer, que o legislador fez o
que fez, parecendo, até, que instituiu as próprias sissítias por haver
observado nas campanhas militares como todos são forçados, pelas
condições do momento e para maior segurança, a comer juntos durante o
decurso das hostilidades. A meu parecer, com isso ele pretendeu condenar a
maneira errônea de pensar de muita gente, que não chega a compreender
como as cidades vivem em guerra permanente umas com as outras; e se
na guerra, para segurança de todos, é preciso fazer as refei-

ções em comum e haver comandantes e comandados, distribuídos em


pontos certos, como guardas, a mesma coisa terá de ser feita em tempo de
paz. O que a maioria dos homens denomina paz, disso tem apenas o nome,
pois em verdade, embora não declarada, é a guerra o estado natural das
cidades entre si. Se considerares o assunto por esse prisma, chegarás quase
à conclusão de que foi pensando na guerra que o legislador cretense criou
nossas instituições, tanto públicas como particulares, e determinou
que observássemos suas leis, na convicção de que nada poderá ser de
vantagem sem a superioridade na guerra, nem os bens materiais nem as
instituições, pois todos os bens dos vencidos caem em poder dos
vencedores.

III — O Ateniense — Pelo que vejo, forasteiro, tens profundo


conhecimento das instituições cretenses. Porém num ponto desejara que
fosses mais claro. Pela maneira como falas de uma cidade bem constituída,
pareces indicar que ela deva ser organizada para vencer na guerra as demais
cidades. Não é isso?

Clínias — Perfeitamente; como também estou convencido de que este


nosso amigo pensa como eu.

Megilo — Como fora possível a qualquer lacedemônio, divino Clínias,


responder de maneira diferente?

O Ateniense — E tudo isso é válido apenas para as cidades, sendo outras as


relações entre as aldeias?

Clínias — De forma alguma!

O Ateniense — Serão, portanto, iguais?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Como! E o mesmo passa com relação às famílias da aldeia,


umas com as outras, e os homens, isoladamente considerados?

Clínias — Exato.

O Ateniense — E o indivíduo à parte, com relação a si mesmo, deve ser


visto como um inimigo em frente de outro inimigo, ou que diremos?

Clínias — Ó forasteiro de Atenas! — não quero denominar-te habitante da


Ática, pois me pareces digno de ser chamado pelo nome da deusa —
reconduzindo meu discurso à sua origem, deixaste-o muito mais claro, o
que te permitirá descobrir, agora, facilmente, como tínhamos razão de dizer
que na vida pública todos são inimigos de to-dos, do mesmo modo que,
particularmente, cada individuo é inimigo de si mesmo.

O Ateniense — Que queres dizer com isso, meu admirável amigo?

Clínias — Aqui também, forasteiro, a vitória sobre si mesmo é a primeira e


a mais bela das vitórias, como a pior e a mais vergonhosa das derrotas é ser
alguém vencido por si mesmo; tudo isso indica que dentro de todos nós há
um estado permanente de guerra contra si mesmo.

O Ateniense — Então, voltemos a nosso argumento. Uma vez que cada um


de nós ora é superior, ora inferior a si próprio, admitiremos a mesma coisa
com relação as famílias, às aldeias e às cidades? Ou não?

Clínias — Com isso queres dizer que ora uma é superior, ora inferior a si
mesma?

O Ateniense — Exato.

Clínias — Essa pergunta, também, parece justa, pois é fora de dúvida que
nas cidades se observa exatamente a mesma coisa: os lugares em que os
cidadãos de prol vencem a plebe e as classes inferiores, podem ser
considerados, com acerto, como superiores a eles mesmos, fazendo jus, e
com razão, aos maiores elogios por tão grande vitória; o contrário se dará
nos casos contrários.

O Ateniense — Deixemos, por enquanto, de lado o sabermos se por vezes o


pior não é superior ao melhor, pois isso exigiria largas explanações. Só
agora compreendo o sentido de tuas palavras, quando admitiste a
possibilidade de cidadãos oriundos da mesma cidade e aparentados entre si,
em grande número em detrimento da justiça, dominarem pela força e
escravizarem a minoria e cidadãos justos; quando eles vencem, diz-se, e
com razão, que a cidade é má e inferior a si mesma; quando são vencidos,
superior e boa.

Clínias — Muito estranho, sem dúvida, é o que afirmas, forasteiro; porém


sou forçado a declarar-me de acordo contigo nesse ponto.
IV — O Ateniense — Sobre isso, basta. Consideremos agora o seguinte
caso: imaginemos muitos irmãos nascidos do mesmo pai e da mesma mãe;
não fora de admirar que a maioria deles se revelasse injusta, e a minoria,
justa.

Clínias — Não, decerto.

O Ateniense — No caso de ficarem vencedores os maus, não compete a


nenhum de nós dizer que toda a familia e a parentela é inferior a si mesma,
ou que é superior, se viessem a ficar vencidos, pois nossas
considerações não têm o objetivo de decidir sobre a conveniência ou modo
de falar da maioria, porém determinar a natureza do que é certo ou do que é
errado em matéria de leis.

Clínias — O que dizes, forasteiro, é a pura verdade.

Megilo — E muito certo, segundo meu modo de pensar; pelo menos, até o
ponto a que chegamos.

O Ateniense — Consideremos também o seguinte: os irmãos a que nos


referimos, poderiam muito bem ter alguém como juiz.

Clínias — Exato.

O Ateniense — E qual seria o melhor juiz: o que mandasse matar os maus e


determinasse que os bons se governassem por si mesmos, ou o que
entregasse o poder aos bons e deixasse os maus viver, com a condição de
se submeterem voluntariamente àqueles? Na escala de valores,
mencionemos ainda um terceiro juiz — se for concebível algum nessas
condições — que, encontrando uma família dividida a esse ponto, não
somente não sacrificasse nenhum dos seus membros, como reconciliasse
todos para sempre, graças às leis por ele estabelecidas, a que
todos obedeceriam em perfeita concórdia.

Cliínias — Um juiz e legislador nessas condições seria de preferir a


qualquer outro.
O Ateniense — No entanto, ele teria instituído suas leis com as vistas
voltadas para o contrário, precisamente, da guerra.

Clínias — É muito certo.

O Ateniense — E como determina pelo melhor a vida dos cidadãos o


organizador da cidade: tendo em mira a guerra de fora, ou a que nasce,
muitas vezes, no seu próprio seio e que se chama sedição, guerra que
ninguém desejaria ver surgir em sua cidade e da qual procura libertarse o
mais breve possível, uma vez iniciada?

Clínias — Evidentemente, é com vistas a esta última.

O Ateniense — E desejará ele que a sedição venha a terminar com a paz


obtida à custa da ruína de uns e a vitória de outros, ou, de, preferência,
promoverá paz e ami-zade por meio da reconciliação geral, porque todos se
vejam obrigados a dirigir a atenção para os inimigos de fora?

Clínias — Não há quem não prefira esta solução, não a outra, para sua
cidade.

O Ateniense — E o mesmo se daria com o legislador?

Clínias — Evidentemente.

O Ateniense — Sendo assim, é visando sempre ao maior bem que os


legisladores promulgam suas leis?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Ora, o maior bem não é a guerra externa, nem a sedição —


sempre é de desejar que não ocorram — porém paz e benevolência
recíprocas. Ao que parece, a vitória da cidade sobre si mesma não deve ser
considerada um grande bem, mas uma necessidade. E como se disséssemos
que o corpo doente, depois de purgado pela medicina, fica em ótimo estado,
e não prestássemos a mínima atenção ao organismo, que de nada mais
necessitaria. Da mesma forma, nunca chegará a ser um bom político quem
tiver idêntica concepção do bem-estar das cidades e dos particulares, e olhar
apenas, e antes de tudo, para as guerras externas, nem legislador
consciencioso, se não dispuser as coisas da guerra visando à paz, em vez
de dispor as da paz com os olhos fixos na guerra.

V — Clínias — Essa observação, forasteiro, parece-me muito acertada; por


isso mesmo, é de admirar que tanto os nossos legisladores como os dos
Lacedemônios não tenham posto o maior empenho em alcançar esse
desiderato.

O Ateniense — Pode ser; porém não é hora de investirmos contra eles; só


nos cumpre interrogá-los com calma, uma vez que tanto eles como nós
procuremos atingir com igual zelo o mesmo fim. Acompanhai de perto
minha argumentação e façamos avançar Tirteu, ateniense de nascimento,
porém Lacedemônio por adoção, e que mais do que ninguém trabalhou
nesse sentido. É onde nos diz:

Nunca menciono nem julgo ser digno de alguma atenção,

embora se trate, continua, do mais rico dos homens e possuidor dos maiores
bens — que ele, então, enumera em sua quase totalidade — quem na guerra
não for sempre valoroso. Decerto já ouviste recitar esse poema; este
nosso amigo, quero crer, deve estar com os ouvidos saturados.

Megilo — Perfeitamente.

Climas — Dos Lacedemônios, o poema passou para

nós.

O Ateniense — Então, façamos juntos ao poeta a seguinte pergunta: Ó


Tirteu, o mais divino dos poetas! Demonstras teu talento e tua sabedoria
distinguindo com o teu elogio os homens que se sobressaem na guerra, no
que, porventura, eu, este aqui e Clínias, de Cnosso, estamos de inteiro
acordo, segundo penso. Porém, o que desejamos saber com maior precisão
é se nos referimos aos mesmos homens. Agora explica-te: admites, como
nós, com toda a clareza, que há duas espécies de guerra? Que te
parece? Penso que a essa pergunta, qualquer indivíduo inferior a Tirteu
responderia certo, que há duas, de fato: uma, é a que todos nós
denominamos sedição, a pior das guerras; a outra espécie, conforme
precisamos admitir, é a que fazemos no exterior contra povos de outra raça
com que entramos em conflito, muito mais branda do que a
primeira. Clínias — Por que não?

O Ateniense — Vejamos agora que homens e que modalidade de guerra


tinhas em vista, quando exaltavas uns daqueles jeito e deprimias outros?
Quer parecer-me que se trata de guerra externa. Pelo menos, declaras
em tua poesia que não suportas os homens

Que não se atrevem a olhar frente a frente os sangrentos

combates,

nem a avançar contra o inimigo, enfrentando-os em luta

de perto.

Depois disso, não poderíamos afirmar que tu, Tirteu, pareces elogiar
principalmente quem se distingue nas guerras de fora contra estrangeiros?
Não achais que ele admitiria isso mesmo e se declararia de acordo conosco?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Ao passo que nós, embora concordando que tais homens


sejam bons, diremos que muito melhores, ainda, são os que se distinguem
sobre todos na guerra decisiva. Poderíamos, também, apresentar outro poeta
como Mégara, na Sicília, naquele passo:

Quem leal se mostra nas cruas contendas civis, caro Cirno, em ouro e prata
seu peso a meus olhos é digno de estima.

Deste afirmamos que é infinitamente superior ao outro na modalidade de


guerra mais penosa, quase tanto quanto a justiça, a temperança e a
sabedoria, unidas à coragem, são superiores à coragem de per si. Para ser-se
fiel e incorruptível nas dissenções civis, é de mister possuir todas as
virtudes, ao passo que entrar decidido nas batalhas a que se refere Tirteu e
enfrentar corajosamente a morte, é o que faz a turba infinita de mercenários,
insolentes, na sua quase totalidade, injustos e violentos, os mais insensatos
dos homens, com raríssimas exceções. Qual a conclusão a que tende nosso
discurso e que se propõe demonstrar? Evidentemente, antes de mais nada,
não apenas o legislador daqui, de Creta, instituído por Zeus, como qualquer
outro, de valor discutível, ao fazer suas leis terá em mira, sempre e acima de
tudo, a maior das virtudes. Ora, como diz Teógnis, essa virtude não é senão
a fidelidade em situações difíceis, que pode ser denominada justiça perfeita.
Quanto à virtude exaltada por Tirteu, é bela, não há dúvida, e foi elogiada
muito oportunamente pelo poeta. Todavia, podemos dizer que, em
eficiência e dignidade, ela só vem em quarto lugar.

VI — Clínias — Dese modo, forasteiro, colocamos nosso legislador na


categoria mais baixa.

O Ateniense — Não é assim, caro amigo; não o degradamos a esse ponto,


mas a nós mesmos, se admitirmos que, tanto na Lacedemônia como aqui,
Licurgo e Minos estatuíram suas leis tendo em vista exclusivamente a
guerra.

Clínias — Então, como devemos exprimir-nos?

O Ateniense — De acordo com a verdade, quero crer, e com a justiça,


sempre que se falar da divina legislação, com dizermos que o legislador, ao
instituir suas leis, não tinha os olhos postos em qualquer porção da virtude,
e, muito menos, na mais insignificante, porém em toda a virtude, e
analisarmos suas leis de acordo com conceitos gerais, não da maneira por
que as interpretam presentemente os legisladores, pois cada um só procura e
só estuda a espécie de que tem necessidade na ocasião: este, com relação a
heranças e morgadios; outros, a respeito de violências físicas; e outros,
ainda, um sem-número de casos do mesmo tipo. O que afirmamos, no
entanto, é que todo estudo bem orientado em matéria de leis, deve ser como
o

que acabamos de fazer. Aprovo inteiramente a maneira por que iniciaste tua
exposição. É muito certo começar pela virtude e dizer que o legislador a
tinha em vista quando instituiu suas leis; mas, quando declaras que, ao
legislar, ele tomava em consideração apenas uma parte da virtude, e, ainda
por cima, a de menor valia, semelhante asserção não me parece correta, e
foi isso que deu motivo aquelas objeções. Queres que te explique como eu
desejaria que expusesses a matéria e como me fora grato ouvir-te?

Clínias — Perfeitamente, forasteiro.

O Ateniense — Precisarias ter dito o seguinte: Não é sem motivo que as leis
dos cretenses gozam de tão grande estima entre os helenos; atingem
plenamente seu fim, com deixar felizes os que delas se utilizam; ensejam-
lhes toda sorte de bens. Ora, há duas espécies de bens: humanos e divinos.
Se uma cidade obtém os maiores, consegue, no mesmo passo, os menores;
caso contrário, perderá todos. Os menores são, em primeiro lugar, saúde;
em segundo, beleza; em terceiro, vigor, revelado tanto nas corridas a pé
como na prática dos outros movimentos do corpo; em quarto lugar vem a
riqueza, não, porém, a riqueza cega, mas a de vista penetrante, que marcha
no rasto da sabedoria. Na ordem dos bens divinos, esta é a que se encontra
em primeiro lugar, a sabedoria; em segundo, segue-se-lhe a temperança
aliada à inteligência; em terceiro, a justiça, quando houver certa mistura
dessas mesmas virtudes com a coragem; e em quarto, a própria coragem.
Esses últimos bens precedem naturalmente àqueles, sendo nessa ordem que
o legislador deve classificá-los. De seguida, precisará esforçar-se para que
as demais prescrições impostas aos cidadãos fiquem coordenadas de tal
modo, que as humanas olhem para as divinas, e as divinas para a
inteligência, que tem o primado de tudo. Precisará, também, ocupar-se com
os casamentos que unem os cidadãos entre si, depois com o nascimento e a
educação dos filhos, quer se trate de homens, quer de mulheres, desde os
mais tenros anos até à idade adulta e à velhice, distribuindo com equidade
os louvores e os castigos merecidos. Em todas as suas relações, deverá
observar cuidadosamente as tristezas dos cidadãos, seus prazeres, e
veemência das paixões amorosas, e censurá-las ou elogiá-las por intermédio
das próprias leis. Nas manifestações de cólera ou de medo, nas perturbações
geradas na alma pela adversidade, assim como na calma restabelecida pelas
ocorrências felizes, e também nos acidentes que surpreendem os homens
por ocasião de doenças, de guerras ou dos acontecimentos seus contrários:
em todos esses casos deverá o legislador definir e ensinar o que é bom e o
que é mau na disposição de cada um. A seguir, precisará observar a renda e
os gastos dos cidadãos, por que modo se processa a formação e a dissolução
das sociedades voluntárias e involuntárias, e a maneira por que, em cada
caso, as pessoas se comportam, anotando em quais atos foi observada a
justiça e em quais não, para distribuir recompensas aos que obedecerem
à lei, ou infligir penas aos desobedientes, até chegar o fim da vida civil,
quando terá de determinar como deverá processar-se o sepultamento dos
mortos e que honrarias tocarão a cada um em particular. Considerando em
conjunto suas disposições, instituirá guardas o legislador para a manutenção
das leis, deixando-se guiar alguns pela razão, e outros pela opinião
verdadeira, para que todo esse corpo de leis, mantido coeso pela
inteligência, se revele como dirigido pela temperança e pela justiça, não
pela riqueza e pela ambição. É assim, forasteiro, que eu desejaria, e
ainda desejo, que relatasses como tudo isso se encontra previsto nas leis
atribuídas a Zeus e a Apolo Pítico, que Minos e Licurgo formularam, e
como estas foram dispostas numa determinada ordem, que perceberá de
imediato quem tiver experiência de leis, adquirida pelo estudo ou pela
prática, mas que para nós outros de forma alguma é manifesta.

VII — Clínias — De que maneira, então, forasteiro, deveremos tratar o que


vem a seguir?

O Ateniense — A meu ver, será preciso proceder como fizemos antes, para
considerar, primeiro, as instituições referentes ao cultivo da coragem; de
seguida, passaremos a outra espécie de virtude, e a mais outra, ainda, se
estiverdes de acordo. O modo por que analisarmos a primeira nos servirá de
paradigma para o estudo das demais. Assim, entretidos com a conversa,
encurtaremos o caminho. Depois de nos ocuparmos com todas as virtudes,
de-

monstraremos, se Deus quiser, que as instituições em foco visam ao mesmo


fim.

Clínias — Muito bem. Principia, então, julgando o laudador de Zeus que


temos em nossa frente.

O Ateniense — É o que farei, e também a mim e a ti, pois o assunto


interessa a todos nós. Dize-me: as sissítias e os exercícios de ginástica
foram imaginados pelo legislador com vistas à guerra?

Megilo — Sem dúvida.


O Ateniense — E a terceira e a quarta espécies? Talvez tenhamos
necessidade de recorrer a essa enumeração com respeito às demais partes da
virtude, quer as designemos por esse nome, quer por nome diferente, uma
vez que ele exprima à justa o que dissermos.

Megilo — A terceira em ordem, não eu, apenas, qualquer lacedemômo dirá


que é a caça.

O Ateniense — Experimentemos dizer, também, quais sejam a quarta e a


quinta.

Megilo — Penso que poderei designar a quarta, isto é, a faculdade de


suportar a dor, posta em prática tão frequentemente entre nós, no pugilato e
também em algumas modalidades de furto, em que há sempre muita
bordoada. Fala-se, ainda, no serviço denominado criptia, ou oculto,
altamente penoso, para a aquisição do hábito do : sofrimento, aliado à
prática de andar descalço no inverno e à de dormir no chão limpo, ocasiões
em que cada um cuida de si mesmo, sem necessitar da ajuda de criados;
à de andar despido, de dia e de noite, por todo o país, denominada
gimnopédia, de muita eficácia na luta contra a força do calor, e um sem-
número mais de práticas, que fora cansativo enumerar.

O Ateniense — Muito bem dito, forasteiro lacedemômo. Mas, como


definiremos a coragem? Diremos que consiste simplesmente na luta contra
os desejos e os prazeres e certas seduções perigosas que deixam maleável
como cera até mesmo as almas dos cidadãos ciosos de sua austeridade?

Megilo — Contra tudo isso, em conjunto, é o que eu penso.

O Ateniense — Se ainda nos lembramos do que dissemos há pouco, este


nosso amigo afirmou que tanto as

cidades como as pessoas podem ser inferiores a si mesmas. Não foi isso,
forasteiro de Cnosso?

Clínias — Perfeitamente.
O Ateniense — E agora, quem classificaremos como inferior: quem se
deixa dominar pela dor, ou quem fica vencido pelos prazeres?

Clínias — A meu ver, quem se deixa vencer pelos prazeres. Todos estamos
concordes em declarar que o homem vencido pelos prazeres é muito mais
vergonhosamente inferior a si mesmo do que quem o é pelos sofrimentos.

O Ateniense — Porém decerto nem Zeus nem o legislador pítico


promulgaram leis para uma coragem coxa, apenas susceptível de resistir aos
ataques do lado esquerdo, mas impotente contra as coisas agradáveis e
aduladoras que vieram do lado direito. Ou será capaz de ambas as coisas?

Clínias — De ambas, segundo penso.

O Ateniense — Voltemos, então, a considerar quais são as instituições de


vossas cidades que permitem provar dos prazeres, em vez de fugir deles, do
mesmo modo que não deixam fugir das dores, porém vos lançam no
meio delas e vos obrigam a sobrepujá-las, mas que seja pela perspectiva de
recompensas? Onde se encontra em vossas leis um dispositivo semelhante,
com relação aos prazeres? Dizei-me qual é o que deixa entre vós outros os
mesmos homens a um só tempo resistentes contra as dores e os prazeres, e
capazes de vencer o que é preciso vencer, não permitindo que se mostrem
inferiores aos mais próximos e perigosos inimigos.

Megilo — Foi-me possível, forasteiro, citar leis dirigidas contra a dor;


porém não sei se conseguirei aduzir exemplos grandes e evidentes de
instituições similares, referentes aos prazeres. Contudo, talvez possa
mencionar algumas de importância secundária.

Clínias — Nem eu, também, serei capaz de apontar nas instituições de


Creta dispositivos claros dessa natureza.

O Ateniense — Não é de admirar, meus caros. Mas, se cada um de nós, no


afã de perquirir sempre o verdadeiro e o melhor, encontrar algo merecedor
de censura

nas instituições de seu pais, não será o caso de nos melindrarmos:


recebamos de boamente as críticas.
Clínias — Observação muito justa, Ateniense; só merece aplausos.

O Ateniense — Nem ficaria bem, Clínias, na idade a que chegamos, revelar


susceptibilidades.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — É outra questão sabermos se têm ou não razão os que


criticam as instituições lacedemônias ou cretenses; mas é possível que, de
nós três, seja eu quem se acha em melhores condições para dizer o que o
povo comenta a esse respeito. Sendo, de regra, as leis entre vós outros
muito bem inspiradas, uma das mais belas proíbe aos jovens investigar o
que nelas é bom ou defeituoso, devendo todos proclamar, a uma voz e uma
só boca, que em sua totalidade são boas, por haverem sido
estabelecidas pelos deuses. Ninguém deverá dar ouvidos a quem afirmar o
contrário. Somente aos velhos é permitido conversar com os magistrados ou
com pessoas da mesma idade, quando têm alguma observação a fazer sobre
essas leis, porém nunca na presença dos moços.

Clínias — É muito certo o que dizes, forasteiro; falas como adivinho; pois,
embora estranho às intenções do legislador, dás-me a impressão de rastrear
o espírito das leis e de discorrer a seu respeito com bastante senso.

O Ateniense — Já que não há moços em nossa companhia, em virtude da


idade achamo-nos autorizados pelo legislador a conversar sobre esse
assunto, sem, com isso, cometermos falta grave.

Clínias — Exato. Assim, não tenhas escrúpulo em criticar nossas leis; não
há desdouro em reconhecer o que está errado; contribui para a cura ouvir as
observações sem inveja e com benevolência.

III — O Ateniense — Muito bem. Contudo não farei críticas a vossas leis,
sem antes as haver examinado com o máximo da minha capacidade. Aliás,
só pretendo formular algumas dúvidas. Entre os helenos e os bárbaros
do nosso conhecimento, sois os únicos a quem o legislador impôs
absterdes-vos de divertimentos dos grandes prazeres, e até mesmo de prová-
los; porém com relação aos sofrimentos e temores, de que falamos há
pouco, era de opinião que se alguém fugir, desde criança, aos trabalhos às
dores e ao medo, quando for obrigado a enfrentá-los, fugirá dos que se
exercitaram nesse sentido, e acabará escravo destes. Idênticas
considerações, me parece, ocorreram à mente do legislador, com relação aos
prazeres. Deverá ter falado a sós consigo: se desde a mocidade nossos
concidadãos ficarem desconhecendo os grandes prazeres e, por falta de
exercício, não se habituarem a dominar os apetites, sem nunca
descambarem para a prática de algum ato vergonhoso, a que pode levá-los a
agradável sensação dos prazeres, acontecerá com eles o mesmo que com
os que se deixam vencer pelo medo: por maneira mais torpe, ainda, tornar-
se-ão escravos dos que são suficientemente fortes para se manterem
senhores de si mesmos no meio dos prazeres, e dos que tiveram
oportunidade de prová-los, gente, por vezes, da pior espécie, ficando a alma
deles em parte escrava e em parte livre, sem se tornarem dignos de serem
chamaos corajosos e livres, no sentido lato da expressão. Agora dizei-me se
estais de acordo com o que vos expus.

Clínias — Sim, de modo geral, ao ouvir-te discorrer sobre a matéria. Porém


aceitar de pronto e sem nenhum reparo uma tese de tanta importância,
parece próprio de adolescentes destitu idos de reflexão.

O Ateniense — Para prosseguirmos, Clínias, e tu, forasteiro da


Lecedemônia, na apreciação das matérias que nos propusemos analisar, será
preciso falar da temperança, que vem depois da coragem. Como já vimos
em relação a guerra, as instituições de vossas cidades se distinguem, neste
outro domínio, das que se governam ao acaso?

Megilo — Não é pergunta fácil de responder. Todavia, tanto o costume das


sissítias como os exercícios ginásticos parecem felizmente concebidos para
o cultivo de ambas as virtudes.

O Ateniense — Sem dúvida, forasteiro, é difícil, tanto na teoria como na


prática crescerem as instituições de qualquer cidade ao abrigo de objeções.
Nesse particular, pode dar-se como em relação ao corpo, em que não é
possível determinar um regime único para este ou aquele temperamento,
sem demonstrar a experiência que, sob determinados aspectos, poderá ser
lhe nocivo, como poderá ser benéfico sob outros. É o que se observa com os
exercícios de ginástica e o uso das refeições masculinas em comum,
vantajosos em muitos pontos para a cidade, porém prejudiciais sempre que
há sedições, como o prova a juventude dos milésios, dos boécios e dos
túrios. Ademais, essas instituições vetustas parece terem contribuído para
perverter o uso natural dos prazeres do amor, tanto entre os homens como
entre os animais. Em princípio, tal acusação pode ser levantada contra
vossas cidades ou as que cultivam particularmente os exercícios físicos. E
quer consideremos seriamente esse assunto, quer como brincadeira, é
preciso ter sempre presente que semelhante prazer é, por natureza,
inseparável da união dos sexos masculino e feminino, com a finalidade da
procriação, ao passo que é contra a natureza a união de homem com
homem ou de mulher com mulher, e que semelhante abuso é fruto do
desregramento dos sentidos. Todos acusam os cretenses de terem inventado
a fábula de Ganimedes. Convencidos de que suas leis provinham de Zeus,
atribuíram-lhe essa história, para, a exemplo da divindade, entregarem-se a
tal prática. Mas deixemos de lado o mito. Quando os homens se põem a
especular sobre leis, todo seu estudo deve girar em torno do prazer e da dor,
tanto em relação com os costumes públicos como com os particulares. São
duas fontes abertas pela natureza. É feliz quem se utiliza da fonte certa,
quando e quanto convém, o que é válido não apenas para as cidades e os
indivíduos como para todos os seres vivos em universal. Quem procede
sem discernimento e oportunidade, viverá de maneira contrária à do homem
feliz.

IX — Megilo — Tudo isso, forasteiro, é muito belo de ouvir, e eu não


encontro palavras para formular qualquer objeção. Todavia, sou de parecer
que andou bem o legislador da Lacedemônia em determinar que fugíssemos
do prazer. Quanto às leis de Cnosso, este nosso amigo, se tiver vontade que
as defenda. As de Esparta, se me afiguram as mais belas do mundo, no que
tange aos prazeres; os gozos imoderados, as violências e loucuras de toda
espécie a que os homens são propensos, nossas leis baniram de todo o
território, sem que possas ver, no campo ou nas cidades sujeitas a Esparta,
nem essas comezainas nem todo o seu acompanhamento dè excitantes do
prazer, não

havendo quem não encontre nas ruas algum ébrio noctívago e barulhento
que não lhe aplique logo severo castigo; nem mesmo com a alegação das
festas de Dionísio consegue livrar-se. Lá não se verifica o que eu já tive
oportunidade de ver entre vós outros, nas carretas, e também em Tarento,
nossa colônia, em que toda a cidade se embriagava nas festas dionisíacas.
Entre nós não se vêem essas coisas.

O Ateniense — Esses divertimentos, forasteiro da Lacedemônia, merecerão


encômios, se houver moderação; porém no caso de abuso, serão
extremamente prejudiciais, como em defesa própria poderia facilmente
alegar algum dos nossos concidadãos, com apontar o desregramento
de vossas mulheres. Para rebater essas acusações, em Tarento como entre
nós e entre vós outros, só há um argumento, como parece, para provar que
tais costumes, muito longe de serem censuráveis, fundam-se na razão.
Qualquer pessoa poderia responder ao peregrino que se admirasse de ve ver
essas práticas exóticas: Não te espantes, forasteiro; isso, entre nós, é lei;
talvez entre vós outros seja diferente nesse ponto. Porém não estamos
tratando, caros amigos, dos homens em geral, senão dos méritos e defeitos
dos legisladores. Descorramos, por conseguinte, com
maiores particularidades a respeito da embriaguez, assunto de importância,
que não pode ser julgado por um legislador medíocre. Não falo do hábito de
beber ou não beber vinho, porém da embriaguez em si mesma, para
sabermos se deve ser admitida, como o fazem os citas e os persas, e
também os cartagineses, os celtas, os iberos e os trácios, nações guerreiras
todas elas, ou se vosso costume é preferível. Como disseste, entre vós
outros a abstinência é generalizada; os citas e os trácios, tanto os homens
como as mulheres, usam vinho sem mistura, chegando mesmo,
quando bebem, a derramá-lo nas vestes, convencidos de que se trata de uma
prática louvável e que dá felicidade. Os persas não apenas se embriagam,
como se entregam a certas práticas de luxúria que vós outros rejeitais;
porém nisso eles são mais moderados.

Megilo — Mas toda essa gente, meu caro, nós pomos em fuga, mal
peguemos em armas.

O Ateniense — Não digas tal coisa, amigo; sempre houve e há de haver


fugas na guerra e perseguimentos inexplicáveis. Se tomássemos como
critério as vitórias e as derrotas, muito contestável! seria a linha de
demarcação entre as instituições boas e as más, visto serem sempre
as grandes cidades que vencem e escravizam as menores, como fizeram os
siracusanos com os lócrios, que passam por ser o povo de instituições mais
modelares naquela região, e os atenienses com os ceienses. Fora possível
citar mil exemplos desse tipo. Mas procuremos estudar apenas
as instituições em particular, para formarmos juízo seguro a seu respeito;
deixemos de lado, por enquanto, vitórias e derrotas, e digamos que tal
instituição é boa em si mesma, e que tal outra não é. De início, permiti que
vos mostre como devemos chegar à conclusão do que é bom e do que é
mau, com referencia a esse assunto.

Megilo — Que poderás dizer?

X — O Ateniense — Sou de opinião que não procedem corretamente as


pessoas que, na apreciação de qualquer prática, se mostram inclinadas ao
elogio ou à censura, mal seja ela mencionada; comportam-se como quem
ouvisse elogiar as propriedades alimentícias do queijo e se pusesse logo a
condená-lo, sem procurar informar-se sobre o seu preparo nem suas
indicações, como e por quem deve ser comido, com que acompanhamento,
em que estado e de que maneira deverá ser servido. Isso, justamente, é que
estamos fazendo em nossa discussão. Mal é trazida à baila a palavra
Embriaguez, põe-se um a vituperá-la e outro a elogiá-la por maneira
absurda. Cada uma das partes invoca testemunhas e panegiristas, e ficamos
certos de haver aduzido argumento irretorquível, ou por apresentarmos
muitas testemunhas ou por vermos que os abstêmios sempre vencem nos
combates; mas o assunto continua controverso. Não me parece inteligente
analisarmos dessa maneira as demais instituições. Penso que
devemos adotar um método mais adequado ao tema, sendo idéia minha, a
propósito dessa mesma questão da embriaguez, mostrar-vos, se me for
possível, o caminho mais certo para o estudo do assunto em debate, máxime
por haver milhares e milhares de povos que se levantariam contra vossas
cidades, por dissentirem delas nesse particular.

Megilo — Se houver, de fato, algum meio certo de examinar essas questões,


será muito agradável ouvir tua exposição.

O Ateniense — Apreciemos o problema da seguinte maneira: imaginemos


que alguém elogiasse a criação de cabras e o próprio animal, como de
vantagem para o dono, e outra pessoa, pelo contrário, ao ver cabras,
soltas sem pastor causar estragos em campos cultivados, condenasse não
apenas a posse de cabras, como todo e qualquer animal sem guarda, ou sob
os cuidados de guardas incompetentes: admitiríamos que tais censuras
possam ter base racional?

Megilo — De forma alguma.

O Ateniense — Para ser um bom piloto, teremos de aceitar que bastará a


alguém possuir a ciência náutica, quer padeça quer não padeça de enjôo?
Ou que diremos?

Megilo — Não poderá ser bom piloto, se aos seus conhecimentos técnicos
ajuntar-se o incômodo a que te referiste.

O Ateniense — E com relação ao comandante de tropas? Será capaz de


comandar apenas com seus conhecimentos da arte da guerra, se revelar
cobardia na hora do perigo e causar-lhe náuseas e embriaguez do medo?

Megilo — Como o poderia?

O Ateniense — E, se além de ignorante, for cobarde?

Megilo — Esse, então, é que seria de todo incapaz; não comandante de


homens, porém mais propriamente de mulheres.

O Ateniense — E que dirias do censor encomiasta de qualquer assembléia,


que, por natureza, deva ter um chefe, sob a direção do qual pode ser útil,
mas que nunca tivesse visto essa assembléia funcionar regularmente
em harmonia com seu presidente, porém sempre acéfala ou sob a direção de
um chefe ruim: chegaremos a admitir que o observador de semelhantes
reuniões possa elogiar ou censurar com acerto?

Megilo — Como fora possível, se nunca vira uma assembléia bem


organizada, nem tomara parte em nenhuma nessas condições?

O Ateniense — Muito bem. E entre as numerosas associações existentes,


não poderemos considerar também os convivas e os banquetes como uma
reunião desse tipo?
Megilo — Das mais características.

O Ateniense — Alguém já viu alguma dessas reuniões funcionar como fora


preciso? Ambos vós estais em condições de responder que nunca vistes
nenhuma, por não serem tais reuniões usuais em vossa terra nem
permitidas por lei. Eu, porém, já estive presente a muitas, nos mais variados
lugares, e examinei todas, por assim dizer, acuradamente, sem nunca ter
visto nem ouvido nomear uma só que fosse bem organizada, a não ser,
talvez, em particularidades de somenos importância. Mas no todo,
podemos afirmar que apresentavam defeitos.

Crítias — Que queres dizer com isso, forasteiro? Sê mais claro. Conforme
observaste, nenhum de nós tem experiência desse tipo de assembléia, e
provavelmente, no caso de virmos a observar alguma, não saberíamos
dizer de pronto o que nela está certo ou errado.

O Ateniense — É natural; então, esforça-te por acompanhar minha


explicação. Em todas as reuniões ou associações de qualquer natureza deve
haver sempre um presidente. Compreendeste?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E, como dissemos agora mesmo, em tempo de guerra o


chefe deve ser corajoso.

Clínias — Nem poderá ser de outra maneira.

O Ateniense — O indivíduo corajoso é menos sujeito a ficar perturbado


pelo medo do que o cobarde.

Clínias — Isso também é muito certo.

O Ateniense — Se houvesse jeito de pôr à frente do exército um general


que nada temesse e a quem nada perturbasse, não faríamos tudo para
encontrá-lo?

Clínias — Evidentemente.
O Ateniense — Mas, neste momento não estamos tratando de chefes de
exército em operações bélicas contra inimigos, senão de amigos em tempo
de paz, ligados pelos laços da boa vontade.

Clínias — É muito certo.

O Ateniense — Mas, uma reunião desse tipo, se os contertulios chegam a


embriagar-se, não verá tranquilamente o fim. Estarei certo?

Clínias — Sem dúvida; dar-se-á precisamente o contrário disso.

O Ateniense — Sendo assim, é de um chefe que, antes de mais nada, essa


gente necessita.

Clínias — Mais do que tudo, como não?

O Ateniense — Precisamos, então, arranjar para eles um dirigente inimigo


de altercações?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E, ao que tudo indica, deve ser uma pessoa compreensiva


no que respeita as assembléias, pois terá de operar como guardião da
amizade unificadora de seus membros, e de zelar pelo seu incremento nas
oportunidades das reuniões.

Clínias — É muito certo.

O Ateniense — Assim, será preciso escolher um chefe abstêmio e sábio,


para dirigir pessoas que se embriagam, não o inverso, porque um presidente
ébrio, jovem e nada sábio, andará com sorte se não ocasionar distúrbios
muito graves.

Clínias — Só mesmo por muita sorte.

O Ateniense — Logo, se alguém condena tais reuniões nas cidades em que


elas se realizam da melhor maneira possível, por desaprovar a instituição
em si, há muita probabilidade de fazê-lo com base. No caso, porém, de
apresentar suas objeções por ter visto exemplos de muita desordem, revela,
em primeiro lugar, não perceber que naquele caso concreto as coisas não
estão certas, e depois, que não há o que não pareça errado, desde que careça
de um chefe ou dirigente sóbrio. Ou não compreendes que um piloto ébrio,
ou qualquer outro comandante, deita tudo a perder, ou se trate de exército,
de carro, de navio ou de tudo o que estiver sob sua direção?

XI — Clínias — É muito certo, forasteiro, o que acabaste de expor. Mas


dize-me o seguinte: que vantagem nos adviria do uso dos banquetes, se
fossem praticados com todas as regras? Para voltarmos ao exemplo
anterior: no caso de qualquer exército alcançar um ótimo general,
este assegurará a seus comandados a vitória, o que é vantagem não
despicienda, e assim com tudo o mais. E na hipótese de um banquete bem
dirigido,que proveito adviria disso para os homens ou para a cidade?

O Ateniense — Como assim? Que lucro poderá ter a cidade com a direção
bem orientada de um menino ou de

um simples coro? A uma pergunta formulada nesses termos, respondêramos


que é pequeno, de fato, para a cidade o proveito de um caso particular; mas,
se falasses da direção geral dos educandos e das vantagens daí decorrentes
para a comunidade, não seria difícil responder que de jovens bem educados
saem bons cidadãos, os quais, uma vez nesse ponto, não apenas se
comportam excelentemente em todas as conjunturas, como, e
principalmente, vencem na guerra os inimigos. A boa educação conduz à
vitória; mas, por vezes, também, a vitória estraga a educação. Muita gente
fica insolente depois de uma vitória militar, e com essa arrogância se
enchem de defeitos. A educação nunca se tornou vitória tebana; porém
vitórias desse tipo muitos homens já alcançaram e muitos outros ainda
virão a alcançar.

Clínias — Pelo que vejo, amigo, és de opinião que as reuniões em que as


pessoas se entretêm a beber contribuem em grande parte para a educação,
uma vez que sejam realizadas como convém.

O Ateniense — Isso mesmo.

Clínias — E agora, poderias demonstrar-nos que é verdade quanto acabaste


de dizer?
O Ateniense — Defender com segurança, hóspede, a veracidade de um tem
a tão sujeito a controvérsia, é tarefa que só cabe aos deuses. Porém se for
preciso expor o meu modo de pensar, não me recusarei, uma vez que nos
propusemos falar sobre leis e instituições.

Clínias — Esforcemo-nos, então, por apanhar com acerto teu pensamento a


respeito dessa questão controversa.

O Ateniense — É o que, realmente, importa fazer. Apliquemo-nos nesse


estudo: vós, no empenho de compreender meu pensamento, e eu, no de
expô-lo da melhor maneira possível. Para começar, ouvi o seguinte: todos
os helenos acham que nossa cidade gosta de falar, e de falar muito,
enquanto os lacedemônios e os cretenses se distinguem, aqueles, por
falarem de maneira concisa, enquanto estes, à riqueza de palavras antepõem
a de pensamentos. Daí o meu receio de vos dar a impressão de gastar
muitas palavras com um assunto insignificante, pois alargo-me num
discurso de légua e meia a respeito de um tema tão

sem importância como o da embriaguez. Porém trata-se de matéria que não


pode ser estudada satisfatoriamente em sua estrutura natural, sem que se
fale da verdadeira arte da música; a arte da música, por sua vez, não pode
ser analisada sem abrangermos todo o campo da educação, o que requer
digressão longa. Vede, por conseguinte, o que é mais conveniente:
deixamos, por enquanto, de lado este assunto, ou tratar de outro, relativo a
leis?

Megilo — Talvez ainda ignores, forasteiro ateniense, que a nossa casa cabe
hospedar oficialmente vossos concidadãos. Até mesmo as crianças, quando
ouvem dizer que são próxenos de alguma cidade, desde os mais tenros
anos revelam manifesta inclinação para ela, como se dá com hospedeiros
oficiais, e a consideram uma segunda pátria, depois de sua cidade natal.
Quando menino, sempre que os lacedemônios elogiavam ou criticavam os
atenienses, e me diziam: Vossa cidade, Megilo, procedeu bem —
ou procedeu mal — conosco! ao ouvir tal coisa, eu tomava de pronto vosso
partido com todo o ardor, contra os que injuriavam Atenas. Ainda agora
agrada-me ouvir falar o dialeto de Atenas, parecendo-me a expressão da
verdade o dito muito conhecido de que quando os Atenienses são bons, são-
no superiormente; por natural pendor e sem constrangimento, são os únicos
que se mostram verdadeiramente bons pela graça divina, sem fingimento
algum. Por mim, então, não te coíbas de dar livre curso ao pensamento.

Clínias — Comigo, também, forasteiro, depois de ouvires e de aprovares o


que tenho para dizer, podes falar como entenderes. Sem dúvida já ouviste
contar que o profeta Epimênides foi um homem divino. Era da minha
família. Em obediência ao deus do oráculo, dez anos antes das guerras
pérsicas ele foi para o vosso meio e realizou os sacrifícios que a divindade
ordenara. Temendo por esse tempo os atenienses uma expedição dos Persas,
disse-lhes que ela não se realizaria antes de dez anos, e que quando eles
aparecessem, retornariam sem haver feito nada do que esperavam, depois
de sofrerem maiores males do que pudessem vir a causar. Naquela época
vossos antepassados se ligaram conosco pelos laços da hospitalidade, vindo
da

mesma ocasião a benquerença, tanto minha como dos i meus familiares,


com relação a vós.

O Ateniense — De vosso lado, pois, ao que parece, há disposição favorável.


Quanto a mim, boa vontade não me falta; mas a incumbência é que não é
fácil. Não obstante, vou tentar. Inicialmente, para vantagem da exposição,
vejamos o que é educação, por ser esse o caminho que terá de seguir nosso
estudo, a fim de chegarmos até ao deus do vinho.

Clínias — Sim, façamos isso mesmo, se for do teu agrado.

O Ateniense — À medida que eu explicar o que devemos entender por


educação, considerai se a exposição vos satisfaz.

Clínias — Podes falar.

XII — O Ateniense — Falo, sim, e afirmo que quem desejar adquirir


capacidade seja no que for, deve começar desde criança, tanto nos
brinquedos como em ocupações sérias e em tudo o que se relacionar com
esse objetivo. Assim, o menino que aspirar a ser de futuro um bom lavrador,
ou um construtor capaz, deverá ocupar-se com brinquedos relacionados
com a construção de castelos de crianças, e, no caso do lavrador, com
trabalhos na terra, devendo os respectivos educadores fornecer a cada um
deles pequenos instrumentos de trabalho, feitos sob o modelo dos
verdadeiros, e providenciar para que eles aprendam com antecedência tudo
o que precisarão saber. Desse modo, brincando, aprenderá o futuro
construtor a medir e a usar a trena; o guerreiro, a cavalgar e a fazer qualquer
outro exercício, devendo o educador esforçar-se por dirigir os prazeres e os
gostos das crianças na direção que lhes permita alcançar a meta a que se
destinarem. Em resumo: diremos que a educação consiste na criação
bem compreendida, que leva o espírito da criança, nas horas de recreio, a
amar o que a tornará perfeita na virtude de sua profissão, quando atingir a
maturidade. Considerai agora, conforme disse, se até este ponto minha
exposição vos satisfaz.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Porém não deixemos com uma definição vaga o que


denominamos educação. Quando censu-

ramos ou elogiamos a educação de alguém do nosso meio, dizemos que este


ou aquele indivíduo é bem ou mal educado, ainda mesmo que tenham
recebido educação esmerada para a arte da navegação, o comércio por
miúdo ou para outras atividades do mesmo teor. Segundo penso, não é
nesse sentido que falamos de educação, mas no da educação para a virtude,
que vem desde a infância e nos desperta o anelo e o gosto de nos tornarmos
cidadãos perfeitos, tão capazes de comandar como de obedecer,
de conformidade com os ditames da justiça. Essa é a modalidade da
educação que tentamos definir, a única, segundo o meu modo de pensar,
que merece ser assim denominada. A que tem por fim a aquisição de
riquezas ou de qualquer modo de força ou habilidade que não leve em
consideração a razão e a justiça, é vulgar e nada nobre e não merece
absolutamente o nome de educação. Porém não discutamos por causa de um
vocábulo, uma vez que fique de pé a proposição sobre que nos declaramos
de acordo, isto é, que, de regra, o indivíduo bem educado se torna virtuoso,
e que de forma alguma devemos menosprezar a educação, por ser o que de
melhor e mais elevado chegam a alcançar os homens superiores. E embora
sujeita a desvirtuar-se, poderá retomar o bom caminho, objetivo a
que, durante toda a vida, devemos dedicar o melhor de nossa capacidade.

Clínias — É muito certo; nisso estamos de inteiro acordo.


O Ateniense — Como também já concedemos que são boas as pessoas
capazes de se dominar, e más as que o não conseguem.

Clínias — Só falas a verdade.

O Ateniense — Voltemos a dizer por maneira mais clara tudo o que


expusemos até aqui, e permiti-me recorrer a uma imagem, para ver se
consigo apresentar uma explicação melhor.

XIII — Clínias — Podes falar.

O Ateniense — Não admitimos que cada um de nós é uma unidade?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — E que todos nós abrigamos no peito dois conselheiros,


insensatos e antagônicos, a que demos os nomes de prazer e dor?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E, juntamente com eles, a opinião sobre os fatos por vir,


que tem o nome geral de expectativa e o específico de medo nos casos de
probabilidade de dor, ou o de confiança, quando se trata do contrario disso.
Sobre essas paixões preside a reflexão, a fim de pronunciarse acerca do que
tenham de bom ou de mal, recebendo suas conclusões o nome de lei,
quando se tornam decreto comum da cidade.

Clínias — Encontro dificuldade em acompanhar-te; mas prossegue, como


se tal não acontecesse.

Megilo — O mesmo se dá comigo.

O Ateniense — A esse respeito, estabeleçamos o seguinte: imaginemos que


cada um de nós, como seres vivos, não passe de um boneco nas mãos dos
deuses, que talvez nos tenham formado por divertimento, ou mesmo
com intenção séria, o que escapa à nossa compreensão. Uma coisa, porém,
sabemos com segurança: que no nosso íntimo as referidas paixões se agitam
à maneira de nervos ou fios que puxam em sentido contrário, compelindo-
nos, por isso mesmo, à prática de ações opostas, na linha limítrofe do vício
e da virtude. Manda-nos a razão só ceder à tração de um desses fios, sem
nunca abandoná-lo, e resistir aos outros. É o fio sagrado e de ouro da razão,
que denominamos lei comum da cidade. Os demais fios, por serem de ferro,
são duros; este é maleável, porque de ouro, ao passo que os outros se
parecem com as mais diferentes substâncias. É preciso que todos cooperem
sempre no sentido da mais bela direção, a da lei. E porque a razão é algo
belo, porém branda e infensa a qualquer violência, necessita de auxiliares
na sua condução, para que o gênero de ouro vença os demais. Fica, assim,
justificada a fabula relativa à virtude, que nos compara a bonecos,
ao mesmo tempo que se torna compreensível o que significa ser superior ou
inferior a si mesmo, tanto com referência à cidade como aos particulares.
Estes, ao atingirem o conhecimento da verdade do fio que neles existe,
devem viver de acordo com a sua linha de tração; a cidade que tiver
recebido de alguma divindade esse conhecimento, ou de pessoa experiente,
o elevará à categoria de lei, para pautar, de acordo com ela, tanto a sua
própria administração como suas relações com outras cidades. Desse
maneira, faríamos com mais precisão a distinção entre o vício e a virtude.
Uma vez esclarecido esse ponto, tornar-se-ia, também, mais evidente o
conceito de educação e os das outras instituições, particularmente no que
entende com o costume de beber nos banquetes, que poderá parecer assunto
insignificante para com ele gastarmos muitas palavras.

Clínias — Mas talvez não se nos revele indigno de tantas minúcias.

O Ateniense — Bela observação. Então, desenvolvamos agora o que nos


pareça merecedor de estudo.

XIV — Clínias — Podes falar.

O Ateniense — Se dermos de beber a esse boneco até embriagá-lo, como o


deixaremos?

Clínias — Que pretendes com semelhante pergunta?

O Ateniense — Por enquanto, nada. Desejo apenas saber o que acontecerá,


se o fizermos beber dessa maneira. Vejamos se posso exprimir-me com
maior clareza. Pergunto o seguinte: o uso do vinho não deixa mais
intensos os prazeres, as dores, as paixões e o amor?
Clínias — Muito!

O Ateniense — E com relação às percepções, à memória, às opiniões e aos


pensamentos? Ficarão também mais fortes, ou, pelo contrário, abandonam o
indivíduo que bebe até à embriaguez?

Clínias — Sim, abandonam-no de todo.

O Ateniense — Não volta ele ao estado de alma de quando ainda era


criancinha?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Nessas condições, perderá o domínio sobre si mesmo.

Clínias — É certo.

O Ateniense — Podemos, então, dizer que sua posição é precaríssima.

Clínias — É péssima.

O Ateniense — Não são apenas os velhos que viram criança; os ébrios


também viram.

Clínias — Muito bem dito, forasteiro.

O Ateniense — Haverá algum argumento capaz de convencer-nos da


vantagem de seguir essa prática, sem le-var-nos a empregar todos os nossos
esforços para fugir dela?

Clínias — Parece que sim; pelo menos, foi o que afirmaste e te prontificaste
a demonstrar.

O Ateniense — Fizeste bem em mo lembrar; ainda me encontro com a


mesma disposição, visto haverdes declarado que me ouviríeis com prazer.

Clínias — Como não haveríamos de ouvir-te? Quando outro motivo não


houvesse, pela estranheza e raridade da assertiva de que devemos baixar de
bom grado a esse estado de degradação.
O Ateniense — Referes-te à alma, não é verdade?

Clínias —Sim.

O Ateniense E com relação ao corpo, companheiro? Miséria fisiológica,


magreza, fealdade e incapacidade física... Não nos causaria surpresa ver
alguém, por vontade própria, chegar a semelhante estado?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Devemos, então, admitir que as pessoas que procuram os


hospitais para tratar-se, ignoram que pouco tempo depois, e por muitos dias,
ficarão com o corpo em tal estado, e que fora preferível morrer a viver até o
fim naquelas condições? E não sabemos, também, como ficam fracas, no
começo, as pessoas que se dedicam aos exercícios físicos e trabalhos
pesados?

Clínias — Sabemos de tudo isso.

O Ateniense — E que tomam de bom grado essa direção com a mira em


vantagens ulteriores?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E não será preciso formular igual juízo a respeito das


demais instituições?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Sendo assim, teremos de julgar de modo idêntico o uso do


vinho nos banquetes, se admitirmos que semelhante prática está no mesmo
caso das anteriores.

Clínias — É muito certo.

O Ateniense — Ora, se ela se nos revela como de não menor utilidade que a
ginástica, terá pelo menos uma vantagem sobre os exercícios físicos, a de
não ser acompanhada de dor, como se dá com aqueles.
Clínias — Tens razão; porém muito me admirarei, se chegarmos a descobrir
essa vantagem.

O Ateniense — É justamente isso, me parece, que precisamos provar. Dize-


me uma coisa: não podemos distinguir duas modalidades de medo, mais ou
menos opostas entre si?

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — As seguintes: há o medo do mal que está por acontecer.

Clínias — Certo.

O Ateniense — Mas, por vezes, também, o da opinião alheia que nos dá


como capazes de fazer ou de dizer o que não seja honesto. Como toda a
gente, denominamos vergonha essa espécie de medo.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Eis aí os dois medos a que me referi, sendo que o segundo


se opõe às dores e a outros objetos do medo, como também aos maiores e
mais numerosos prazeres.

Clínias — É muito certo o que dizes.

O Ateniense — E não te parece que tanto o legislador como todo homem de


algum mérito distinguem sobremodo essa modalidade de medo, como lhe
darem o nome de pudor, e o de impudência ao descaramento que se lhe
opõe, considerando-o o maior mal, assim público como particular?

Clínias — Tens razão.

O Ateniense — Não é esse medo que nos salva em muitas situações difíceis
e que, principalmente na guerra, mais do que tudo, nos assegura a vitória e a
salvação? Pois de dois fatores depende a vitória: coragem em face do
inimigo e o receio de ficar desonrado perante os conhecidos.

Clínias — Isso mesmo.


O Ateniense Cumpre, portanto, que cada um de nós seja, ao mesmo tempo,
destemido e medroso, o que ficou justificado na divisão apresentada.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Para deixar intrépida qualquer pessoa, não será expondo-a


ao medo, com o auxílio da lei, em várias situações aterrorantes que
alcançaremos o nosso desiderato?

Clínias — É evidente.

O Ateniense — E quando quisermos incutir em alguém o medo justo, não


devemos expô-lo às manifestações da impudência, para que, no seu
exercício, ele chegue a vencê-la, no empenho de combater os prazeres? É
na luta contra a própria cobardia e na vitória alcançada sobre ela que ele se
tornará perfeito com relação à coragem. Quem carecer da experiência dessa
modalidade de combate e não se tiver nela exercitado, não chegará a
desenvolviver nem a metade de sua própria coragem. E poderá alguém
tornar-se perfeitamente temperante, sem haver lutado com êxito contra uma
multidão de prazeres e de desejos, capazes de levá-lo à prática de atos
desonestos e injustos, e sem os vencer com a ajuda da razão, do esforço e da
arte, tanto nos divertimentos como nas ocupações sérias, ou se, ao invés
disso, for de todo inexperiente dessas situações?

Clínias — É pouco verossímil semelhante afirmativa.

XV — O Ateniense — E então? Não deu aos homens uma divindade certa


bebida suscitadora do medo, de tal efeito que, quanto mais alguém dela
provar, a cada gole mais infeliz se julga e com receio de tudo o que lhe
acontece ou possa acontecer, a ponto de acobardar-se o indivíduo mais
valente, e depois de dormir e de livrar-se dos efeitos da bebida, volta a ser o
que era antes?

Clínias — Em que tempo, forasteiro, tiveram os homens conhecimento


dessa bebida?

O Ateniense — Nunca; porém se ela aparecesse em alguma parte, não seria


útil ao legislador para despertar a coragem? Justificar-se-ia procurar-mo-lo
para lhe falarmos mais ou menos nos seguintes termos: Quer estejas,
legislador, elaborando leis para os cretenses, quer o faças para outro povo,
não acolherias de bom grado um meio que te permitisse pôr à prova os
cidadãos no que respeita à coragem e a cobardia?

Clínias — É claro que qualquer um responderia afirmativamente.

O Ateniense — E então? Em condições, também, de completa segurança e


sem nenhum perigo, ou o contrário disso?

Clínias — De completa segurança, era no que todos concordariam.

O Ateniense — E não recorrerias a essa bebida, para colocá-los em


situações aterrorantes e experimentá-los em tais circunstâncias, a fim de
obrigá-los a não ter medo, exortando-os e recompensando-os, ou, pelo
contrário, cobrindo de ignomínia os que não aceitassem teus conselhos,
para virem a ser em tudo e por tudo o que lhes ordenavas? E não deixarias
partir sem punição os que houvessem resistido galhardamente à prova,
enquanto imporias penalidades aos que se saíssem mal dela? Ou te
recusarias de todo a lançar mão desse meio, muito embora nada tivesses a
objetar contra seu uso?

Clínias — Como deixar de empregá-lo, forasteiro?

O Ateniense — Seria uma prova, amigo, maravilhosamente fácil de fazer,


em comparação com as existentes, quer a puséssemos em prática com uma
só pessoa, quer com poucas ou com quantas quiséssemos. Andaria
bem quem recorresse a essa bebida, de preferência a outros meios existentes
para fortalecer-se contra o medo, no caso de preferir fazer na solidão a
experiência, sem o testemunho de terceiros, por considerar vergonhoso
poder ser visto fora de seu estado normal; ou então, se confiasse em si
mesmo, por julgar-se em boas condições para a prova, e, graças à sua
natureza e à capacidade adquirida, não hesitasse em exercitar-se com
numerosos convivas, para estadear sua robustez, com reprimir e dominar a
força decorrente dos efeitos inevitáveis da bebida, jamais incidindo, por
inconveniência, em nenhuma falta pesada, graças à sua virtude, nem
revelando qualquer alteração, para retirar-se antes de ingerir a última
porção, pelo temor da derrota com que a bebida ameaça todos os homens.
Clínias — É certo, forasteiro; procedendo desse modo, essa pessoa,
também, revelaria prudência.

O Ateniense — Voltemos ao nosso legislador, para dizer-lhe: Ê verdade,


legislador, que semelhante poção contra o medo não foi dada aos homens
pelos deuses, nem os homens a inventaram. Não tomo em consideração os
feiticeiros. Porém, não haverá alguma bebida capaz de gerar intrepidez ou
atrevimento exagerado e fora de propósito? Ou como diremos?

Clínias — Há, decerto, respondera; trata-se do vinho.

O Ateniense — Não terá ele o efeito oposto, justa?

mente, do daquele de que falamos há pouco? De inicio, quando alguém


bebe vinho, fica mais alegre, e quanto mais bebe, mais se enche de belas
esperanças e de força imaginária; por fim, tendo-se na conta de sábio, passa
a falar e agir livremente, com franqueza e desembaraço, sem medo de nada,
até chegar a ponto de dizer o que lhe vem à cabeça e de comportar-se por
maneira equivalente. Penso que todo o mundo concordaria conosco.

Clínias — Por que não?

XVI — O Ateniense — Recordemos aquilo a que já nos referimos, sobre a


necessidade de cultivar na alma o duplo sentimento: o da maior coragem
possível, e o contrário disso, do medo no mais alto grau.

Clínias — A que deste o nome de pudor, se não estou enganado.

O Ateniense — Tens boa memória. Mas, uma vez que a coragem e a


intrepidez só podem ser exercitadas em situações de incutir medo, cumpre
considerar se não convém procurar o contrário nos casos contrários.

Clínias — É bem provável que sim.

O Ateniense — É nas situações em que nos mostramos naturalmente mais


audaciosos e confiantes que devemos, quero crer, exercitar-nos para nos
livrarmos, tanto quanto possível, do jugo da impudência e da temeridade, e
para ter o máximo cuidado de nunca dizer nem fazer ou sofrer nada
vergonhoso.

Clínias — É muito certo.

O Ateniense — E o que nos leva a semelhantes situações não será a cólera,


o amor, o orgulho, a ignorância, a cobiça, e também a riqueza, a beleza, a
força e tudo o que, pela embriaguez dos prazeres, nos priva da
razão? Poderíamos achar divertimento mais fácil e inofensivo, primeiro,
para experimentarmos por meio dele essas paixões, e depois, para vencê-
las; um prazer mais apropriado a essa finalidade do que o uso do vinho nos
banquetes, uma vez que nos cerquemos das cautelas necessárias? Para
conhecermos o feitio intratável e selvagem de qualquer alma, fonte de um
sem-número de injustiças, não é mais perigoso fazer a prova por meio da
realização de algum negócio, com todos os riscos inerentes, do que ter
essa pessoa por companheiro numa festa de Dioniso? E para

experimentar uma alma dada aos prazeres do amor, entregar-lhe-íamos


nossas filhas e filhos e nossas mulheres, arriscando o que temos de mais
caro, só para ficarmos conhecendo seu caráter? Nem com mil exemplos se
poderia demonstrar como é muito mais vantajoso observar qualquer caráter
num ambiente alegre, sem o perigo de conseqüências mais graves. A esse
respeito, quero crer, nem os cretenses nem ninguém poria em dúvida que
essa maneira de se conhecerem reciprocamente as pessoas é a mais
conveniente, como também supera todos os outros processos de prova
quanto à economia, segurança e rapidez.

Clínias — Isso é verdade.

O Ateniense — Ora, o que permite conhecer a natureza e a disposição das


almas é o que há de mais útil para a arte que delas cuida, a saber: a política,
salvo engano de minha parte. Estarei certo?

Clínias — Perfeitamente.

LEIS
Megilo — A que leis te referes?
A respeito dos trinta e sete, serão eleitos, agora
LEIS
LEIS
LEIS
LEIS
LEIS
Mas o certo é que não se pode considerar termina
LEIS
Livro II

I— O Ateniense — Depois disso, parece-me indispensável examinar o


assunto por outro prisma, para saber se essa prova nos proporciona apenas a
vantagem de ficarmos conhecendo nossa natural disposição, ou se do
uso bem dirigido das conversas nas libações não será possível, ainda,
auferir outra real vantagem que recompense nosso estudo? Por que nos
expressamos dessa maneira? Há, de fato, tal proveito, como parece lícito
concluir do presente excurso; mas, de que jeito poderemos alcançá-lo? Faz-
se mister a máxima atenção para não nos desviarmos do caminho
verdadeiro.

Clínias — Continua.

O Ateniense — Inicialmente, desejo lembrar como se define entre nós a


genuína educação. Pelo que me permito adivinhar, só aquela instituição,
quando bem dirigida, poderá preservá-la.

Clínias — Afirmativa um tanto ousada!

O Ateniense — O que eu digo, pois, é que o prazer e a dor são as primeiras


percepções da criança, e que é por seu intermédio que a verdade e o vício se
apresentam inicialmente ao espírito. Com referência à sabedoria e
às opiniões verdadeiras e bem fundamentadas, feliz de quem consegue
alcançá-las, embora apenas na velhice; perfeito é o homem que as possui,
de par com as vantagens delas decorrentes. Dou o nome de educação à
virtude que se encontra inicialmente na criança. Quando o prazer e a
amizade, a tristeza e o ódio se geram diretamente em almas ainda incapazes
de compreender sua verdadeira natureza, com o advento da razão põem-se
em harmonia com ela, graças aos bons hábitos sabiamente adquiridos. É
nesse

acordo que consiste a virtude. Quanto à porção que tem por fim ensinar às
crianças tudo o que diz respeito ao prazer e à dor, de forma que, do começo
ao fim da vida seja odiado o que precisa ser odiado, e amado o que
precisa ser amado: se as separarmos de nossas considerações e lhe dermos o
nome de educação, teremos, segundo o meu modo de pensar, empregado o
termo exato.

Clínias — Também a nós, forasteiro, parece acertado o que disseste, agora e


antes, com referência à educação.

O Ateniense — Tanto melhor. Esse cultivo dos sentimentos para o prazer e


a dor, que constitui propriamente a educação, é frequentemente descurado e
se corrompe no decurso da vida humana. Mas os deuses, compadecidos da
geração dos homens, que só nascera para os trabalhos, estabeleceram
pausas em suas atribulações, com a sucessão dos festivais sagrados, e nos
deram como companheiros de tais folguedos as Musas, Apolo, diretor das
Musas, e Dioniso, a fim de corrigirmos com a ajuda dessas divindades, por
ocasião de tais festejos, os defeitos de nossa educação. Precisamos, pois,
examinar se a presente asserção é verdadeira e conforme a natureza, ou
como será. O que afirmo é que todos os animais, por assim dizer,
na primeira idade não conseguem manter quieto nem o corpo nem a voz,
esforçando-se sempre por movimentar-se e gritar, ou seja por meio de saltos
e cabriolas, como na realização de danças alegres e expressões de regozijo,
ou seja emitindo toda sorte de gritos. Porém, enquanto os outros animais
não têm o sentido de ordem e desordem nos movimentos, a que damos o
nome de ritmo e harmonia, a nós, como dissemos, foram dados aqueles
deuses como companheiros de coréias, tendo sido eles que nos concederam
o agradável sentido do ritmo e da harmonia, por meio do qual nos
movimentam e dirigem, enquanto nós, de mãos entrelaçadas cantamos e
dançamos. A isso deram o nome de coro, por causa da alegria que lhe é
própria.

II — Para começar, admitiremos que a educação nos foi dada pelas Musas e
Apolo. Ou de onde terá vindo?

Clínias — Tudo se passou exatamente como disseste.

O Ateniense — Teremos, portanto, de considerar como mal educado quem


não praticar a arte da dança, e bem educado o conhecedor dessa arte?
Clínias — Por que não?

O Ateniense — De modo geral, a coréia consiste na união do canto e da


dança.

Clínias — Necessariamente.

O Ateniense — Logo, quem for bem educado, estará em condições de


cantar e dançar bem.

Clínias — Assim parece.

O Ateniense — Consideremos, agora, o que acabamos de enunciar.

Clínias — A respeito de quê?

O Ateniense — Falamos em cantar e dançar bem, porém com a restrição de


só cantar coisas belas e executar belas danças. Ou não?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E então? O indivíduo que conhece a beleza das coisas belas


e a fealdade das feias e se comporta de acordo com esse conhecimento, não
se nos afigura mais bem educado, no que entende com a arte da dança e a
da música, do que quem consegue dar expressão satisfatória, por meio da
dança ou do canto, ao que ele considera belo, mas é incapaz de comprazer-
se com o belo ou de revelar aversão ao que é feio? Ou quem se mostra
deficiente tanto na execução do canto como na dos movimentos do corpo e
na sua concepção, porém revela aguçado sentido do prazer ou da dor, com
predileção pelo que é belo e aversão por tudo quanto é feio?

Clínias — São tipos, forasteiro, muito diferentes, às luzes da educação.

O Ateniense — E agora, se nós três tivermos o conhecimento do belo na


arte do canto e na coréia, no mesmo passo saberemos reconhecer quem é
bem educado e quem não é. Porém, se ignorarmos isso, não seremos
capazes de perceber em que venham a consistir as diretrizes da educação.
Não é verdade?
Clínias — É muito certo. .

O Ateniense — Assim, à maneira de cães no rasto da caça, daqui em diante


devemos procurar o belo nos gestos e na música, nas coréias e no canto. Se
isso nos escapar, vão terá de ser tudo o que dissermos a respeito da
verdadeira educação, ou seja helênica ou bárbara.

Clínias — Exato.

O Ateniense — Muito bem. E agora, em que diremos que consiste a beleza


do gesto ou da melodia? Atendei ao seguinte: a postura e as palavras de um
indivíduo corajoso numa situação de premência, serão iguais às de um
cobarde em conjuntura semelhante?

Clínias — Como! se até na cor eles diferem?

O Ateniense — Muito bem, companheiro. Mas, na música há lugar para o


gesto e para a melodia, visto basear-se a música em harmonia e ritmo, de
forma que podemos falar de melodia, ou figura de belo ritmo, ou bem
harmonizada, sem que nos seja permitido usar a linguagem figurada dos
mestres de coro, quando se referem à côr do gesto ou da canção. Com
relação aos ademanes e ao canto do cobarde e do corajoso, com propriedade
poderemos dizer que são belos os do corajoso e feios os do pusilânime. Para
não nos alongarmos em demasia a respeito de tal assunto, digamos
simplesmente que são belos todos os gestos próprios para dar expressão à
virtude da alma ou à do corpo ou a qualquer de suas imagens, e
precisamente o contrário disso as que dão expressão ao vício.

Clínias — Fazes bem em exortar-nos a responder; assim, diremos que tudo


se passa, realmente, dessa maneira.

O Ateniense — Mais uma perguntinha: as coréias proporcionam igual


deleite a todas as pessoas, ou com muita gente não acontece a mesma coisa?

Clínias — Sim, a muita gente não proporciona.

O Ateniense — A que devemos, então, atribuir essa diferença? As coisas


belas não são as mesmas para todos, ou o serão, sem que o pareçam?
Ninguém, de fato, afirmará que as rondas do vício são mais belas do que as
da virtude, ou que encontra maior deleite no espetáculo de gestos imorais,
enquanto outras pessoas comprazem com Musa diferente. É fato que muita
gente afirma que a verdadeira essência da música consiste na propriedade
de proporcionar prazer à alma. Porém semelhante asserção, além de
intolerável, é ímpia. Parece que a causa do erro está no seguinte.

III — Clínias — Como será?

O Ateniense — Visto serem a dança e o canto imitação dos sentimentos que


ocorrem em ações da mais variada espécie, casualidades e disposições que
cada um procu-

ra reproduzir, forçoso é que as pessoas que ouvem as palavras ou os cantos,


ou assistem a danças análogas ao caráter que lhes é peculiar, por hábito ou
por natureza, ou por ambas as coisas, se alegrem e as classifiquem como
belas, enquanto outros que, por natureza, maneiras ou qualquer hábito lhes
sejam contrários, nem se alegram com o espetáculo nem conseguem elogiá-
lo, declarando-o simplesmente insuportável. Por outro lado, nos indivíduos
de feliz disposição, porém de hábitos perversos, ou nos de bons hábitos mas
de disposição contrária, nesses os aplausos colidem com o prazer. Todas
essas representações, dizem, são deleitosas porém imorais, e na presença de
pessoas cuja opinião eles respeitam, envergonham-se de cantar aquelas
canções e de obrigar o corpo àqueles movimentos, como se, de fato,
considerassem belo tudo aquilo; mas, no íntimo, acham delicioso.

Clínias — É muito certo o que afirmas.

O Ateniense — Porventura sofrerão qualquer dano os indivíduos que


encontram prazer nas danças ou nas cantigas viciosas, ou algum benefício
os que se comprazem na direção oposta?

Clínias — É bem provável.

O Ateniense — É apenas provável, ou é certeza passar-se aqui o mesmo que


acontece com quem freqüenta pessoas de mau caráter e que, em vez de
adominá-las, comprazem-se em sua companhia, censurando-as só
por brinquedo, como quem percebesse apenas em sonhos sua própria
iniquidade? Seria fatal vir a igualar-se aos que lhe ensejam prazer, ainda
mesmo que se envergonhe de elogiá-los. Fora possível mencionar algum
mal ou algum bem maior do que esses a que estamos necessariamente
sujeitos?

Clínias — Não o creio.

O Ateniense — Nos lugares em que há, ou pode haver, boas leis com
relação à educação musical e divertimentos correlatos, devemos imaginar
que será permitido às pessoas com disposição poética introduzir em suas
composições o que quiserem, em matéria de ritmo, medida ou letra, para
ensiná-lo aos filhos dos cidadãos bem governados e aos adolescentes em
suas coréias, dependendo simplesmente da sorte influir neles para o bem ou
para o mal?

Clínias — Evidentemente, não fora razoável.

O Ateniense — No entanto, é o que se faz, por assim dizer, em todos os


países, com exceção do Egito.

Clínias — E no Egito, quais são as leis que vigem nesse domínio?

O Ateniense — Só de ouvir, causa admiração. Ao que parece, desde a mais


remota antiguidade, eles chegaram à compreensão daquilo que dissemos há
pouco: que os jovens precisam habituar-se à prática de maneios graciosos
e de belas canções. Depois de haverem regulado essa parte, exporão nos
templos os modelos do que deverá ser imitado e a maneira de fazê-lo,
proibindo aos pintores e demais artistas que se ocupam com figuras e outras
obras introduzir inovações nesse domínio ou excogitar modificações no que
receberam dos antepassados, proibição que tanto abrange as formas como
tudo o que se relaciona com a mímica. Se fordes investigar, encontrareis por
lá pinturas e esculturas que datam de dez mil anos — não falo
figuradamente, pois são, de fato, dez mil anos — nem mais belas nem mais
feias do que as produzidas em nosso tempo, porque trabalhadas com a
mesma arte.

Clínias — É de admirar, realmente.


O Ateniense — Fruto de leis perfeitas e de uma constituição modelar. É
certo que também encontrareis coisas menos recomendáveis, porém o que
diz respeito à música é verdadeiro e digno de consideração, pois vem
demonstrar que é possível legislar com coragem e decisão nesse domínio e
determinar os tipos de melodias que são boas por natureza. Isso, porém,
seria tarefa para alguma divindade ou varão divino. Lá mesmo asseveram
que as antigas melodias, até hoje conservadas, foram compostas por Ísis.
Daí haver eu dito que se alguém conseguisse apanhar, de um jeito ou de
outro, a justeza em matéria musical, poderia confiadamente legislar com
respeito à sua execução, pois esse empenho de inovar em música, no que
tange à expressão do prazer ou da dor, não tem bastante força para depreciar
as coréias consagradas pelo tempo, sob a alegação de estarem superadas.
Lá, pelo menos, não conseguem desacreditá-las; o contrário disso é o que se
verifica.

Clínias — Pelo que acabas de expor, parece que tudo se passa assim
mesmo.

IV — O Ateniense — Não estaremos autorizados a falar do uso correto da


música e dos divertimentos aliados à dança? Não nos alegramos quando
parecemos felizes? e o inverso: consideramo-nos felizes, quando estamos
alegres? Será assim mesmo?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E não é verdade que não podemos ficar quietos quando


estamos alegres?

Clínias — Exato.

O Ateniense — E não serão, porventura, nossos homens naturalmente


inclinados a dançar, enquanto nós, os velhos, nos limitamos a contemplá-
los, por ser isso mais de acordo com a nossa idade, e nos alegramos com
seus folguedos e festividades, visto já não contarmos com a agilidade de
outrora e, saudosos, a um tempo, e satisfeitos, instituímos prêmios para os
que se mostrarem mais capazes de despertar dentro de nós a lembrança de
nossa mocidade?
Clínias — É muito certo.

O Ateniense — E deveremos crer que é de todo vã a opinião do vulgo


acerca desses festivais, sobre ser tido na conta do indivíduo mais hábil e
digno do prêmio quem mais alegria e divertimento proporciona? Forçoso é
que assim seja, pois nas ocasiões em que só temos em mira alegrar-nos,
recebem mais altas distinções os que ensejam maior alegria ao maior
número de pessoas, sendo esses, como disse, os que alcançam a vitória. Não
é razoável tudo isso, e não fica na prática melhor assim?

Clínias — Quem sabe?

O Ateniense — Porém, meu caro, não julguemos de corrida semelhante


assunto; dividamo-lo em partes e examinemo-las da seguinte maneira: no
caso de alguém organizar uma competição pura e simples, sem especificar
se se trata de concurso equestre, musical ou de ginástica, e ao convocar os
cidadãos e apresentar os prêmios, proclamasse que poderia tomar parte na
compita quem quisesse, contanto que deixasse alegres os espectadores, sem
ficar adstrito a nenhuma condição, considerando-se vencedor o que
causasse alegria ao maior número de pessoas, com o que seria proclamado o
mais divertido dos concorrentes: como achais que seria o resultado de
semelhante proclamação?

Climas — A respeito de quê?

O Ateniense — É bem provável que, a exemplo de Homero, alguém se


apresentasse para recitar uma rapsódia; outro, algum número de cítara; um
terceiro faria representar uma tragedia; alguém mais, uma comédia,
não sendo de espantar que ambicionasse alcançar a vitória o prestidigitador
consciente de suas habilidades. Com tantos concorrentes e um sem número
mais, poderíamos prever quem mereceria ser proclamado vitorioso?

Clínias — Pergunta mais que estranha. Como responderia alguém a ela com
conhecimento de causa, antes de ouvir o veridito e de assistir a todas as
provas?

O Ateniense — É assim? Desejais que eu responda a essa estranha


pergunta?
Clínias — Por que não?

O Ateniense — Se servissem como juiz crianças muito novas, decidir-se-


iam pelo prestidigitador, não é verdade?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Meninos de mais idade propenderiam para o poeta cômico;


mulheres cultas, os moços e o público em geral, decerto escolheriam a
tragédia.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Porém o rapsodo que recitasse com perfeição a Ilíada ou a


Odisséia ou qualquer trecho de Hesíodo, nós outros, os velhos, certamente
ouviríamos com maior deleite e o proclamaríamos vencedor
incontestado. Depois disso, caberia perguntar quem merecera, com justiça,
alcançar a palma da vitória? Não é verdade?

Clínias — Exato.

O Ateniense — Evidentemente, eu e vós diríamos que a vitória caberia de


direito a quem obtivesse o voto das pessoas de nossa idade, pois dos juízes
indicados somos nós os de gosto mais apurado, no conceito de todos
e também no das cidades.

Clínias — Como não?

V — O Ateniense — Até certo ponto, estou de acordo com a maioria, sobre


dever a música ser julgada pelo prazer que proporciona, porém não a
qualquer pessoa, indiscriminadamente; a mais bela Musa é a que deleita
as pessoas melhores e de formação esmerada, principalmente a que
constitui as delícias de quem se distinguiu dos demais, pela educação e pela
virtude. A razão de afirmarmos que a virtude é requisito indispensável dos
juízes é que, além de sabedoria, precisarão dispor de coragem. O verdadeiro
juiz não deve basear sua opinião no que aprendeu no teatro, quando se
achava intimidado pelo vozerio das multidões e por sua própria ignorância,
como também não deve, se for realmente competente, por cobardia e
timidez emitir sentença injusta com a mesma boca com que invocara os
deuses, quando se preparava para julgar. Quando se trata da justiça, não é
como discípulo dos espectadores que o juiz assume seu lugar, porém como
instrutor, motivo por que precisará opor-se aos que procuram divertir o
público com espetáculos mal orientados e inconvenientes. Isso lhe era
facultado pela antiga lei da Hélade, não pela que ainda hoje prevalece na
Itália e na Sicília, que entrega o julgamento à turba de espectadores, os
quais proclamam o vencedor levantando as mãos, costume particularmente
nocivo para os poetas que se deixam influenciar pelo mau gosto desses
juízes, de forma que os espectadores passaram a educar os poetas.
Fora preciso apresentar-lhes sempre alguma coisa superior a seus costumes,
para que tirassem do espetáculo prazer mais elevado; mas o contrário disso
é o que presentemente se observa. E, agora que chegamos ao fim, cabe-me
perguntar: a que tendia toda nossa exposição? Considera o seguinte.

Clínias — Que será?

O Ateniense — Tenho a impressão de que nosso discurso nos fez andar à


roda e nos trouxe para o mesmo ponto pela terceira ou quarta vez, a saber
que a educação consiste em puxar e conduzir a criança para o que a
lei denomina doutrina certa e, como tal, proclamada de comum acordo pelo
saber de experiência feito, dos mais velhos e virtuoso cidadãos. E para que
a alma da criança não se habitue aos sentimentos de dor e de prazer
contrários à lei e ao que a lei recomenda, mas se alegre ou entristeça de
acordo com os princípios válidos para os velhos, inventou-se o que se
chama canto, que, em verdade, são encantamentos para a alma, destinados à
produzir o acordo a que nos referimos. Mas, como as almas jovens não
supor-tam trabalhos pesados, esses encantamentos receberam
a denominação de diversões e cantos e, como tal, foram tratados à maneira
do que se faz com os doentes e debilitados: misturam-se drogas saudáveis a
certos alimentos ou bebidas adocicadas, e drogas prejudiciais a alimentos
repugnantes, para que eles se habituem a distinguir com acerto o que devem
preferir e o que lhes causa repulsa: assim, também, o legislador sensato
convencerá o poeta a usar sua bela e recomendável linguagem, ou, no caso
de não ser obedecido, o obrigará a apresentar nos ritmos e harmonias de
suas canções varões temperantes, destemidos e de todo em todo virtuosos.
Clínias — Por Zeus, forasteiro! Achas mesmo que semelhante dispositivo já
tenha sido adotado em alguma cidade? Até onde vai minha experiência, a
não ser em nossa terra e entre os lacedemônios, nenhum país fez o que
acabaste de indicar; por toda a parte introduzem inovações na dança e na
arte da música, inovações essas não impostas pela lei mas pelo gosto
desregrado das paixões, que, muito longe de serem estáveis e sempre as
mesmas, como as do Egito, de acordo com o que tu próprio nos contaste,
nunca se mantêm como realmente são.

O Ateniense — Muito bem, Clínias. Mas, se pensas que eu me referi ao que


disseste como sendo algo que já se pratique em nosso tempo, não me
admirarei que devamos atribuir esse equívoco à falta de clareza de minha
exposição. Ao dizer o que desejaria que acontecesse com a música, levei-te
a imaginar que eu emitira um juízo pessoal. Quando os males são incuráveis
e suas perturbações já se alastraram, nunca é agradável censurá-los, muito
embora, por vezes, seja preciso fazer isso mesmo. Porém, já que pensas
como eu nesta matéria, responde-me ao seguinte: afirmas, realmente, que
essas prescrições são mais observadas entre vós outros e os lacedemônios
do que entre os demais helenos?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Bem. Mas, admitindo-se que o mesmo acontecesse noutras


cidades, diríamos que assim era melhor do que como presentemente se
observa?

Clínias — A diferença seria enorme, se as coisas se passassem como entre


nós e os lacedemônios e conforme disseste que deveriam ser.

VI — O Ateniense — Então, declaremo-nos provisoriamente de acordo.


Porventura, o que se diz entre vós outros acerca da música e da educação
em geral, não consistirá no seguinte; Obrigai os poetas a proclamar que
o homem de bem, pelo fato de ser justo e temperante, é feliz e justo, pouco
importando que seja grande e forte, ou pequeno e franzino, rico ou pobre?
Ainda que fosse mais opulento do que Ciniras e Midas, se for injusto então
será desgraçado e levará uma vida miserável.

Não me refiro a ninguém nem lhe dou a menor


importância,

diz vosso poeta, se é que está certo nesse ponto, se não aliar aos
denominados bens a posse e a prática da justiça. Um indivíduo nessas
condições

combaterá o inimigo de perto, mas se for injusto, não

suportará a sangrenta visão dos combates, como não vencerá na carreira

o vento norte da Trácia,

ainda mesmo que se ufanasse de todas as vantagens a que damos o nome de


bens, pois o que o vulgo qualifica como tal, é impropriamente denominado
desse modo. O que dizem é que o principal bem é a saúde; o segundo, a
beleza; o terceiro, os bens materiais, vindo no rastro desses uma infinidade
de outros, tal como a excelência da vista e do ouvido e tudo o que contribui
para o bom funcionamento dos sentidos; depois, na posição de tirano, fazer
o que bem entender, e, como remate e felicidade suprema, após a aquisição
de tudo isso, tornar-se imortal o mais depressa possível. Mas, o que eu e vós
dizemos é que todos esses bens são excelentes para os homens justos e
piedosos, e para os injustos, o pior dos males, a começar pela saúde. Sim, a
própria vista, o ouvido, a sensibilidade, numa palavra, a vida em seu
conjunto seria verdadeira calamidade para quem fosse imortal e possuísse
tudo o que damos o nome de bens, mas carecesse da justiça e da virtude
em universal, e o contrário disso, um mal insignificante se essa pessoa viver
o menor tempo possível. Essa é a lingua-gem, segundo penso, que precisais
exigir de vossos poetas, obrigando-os a pôr em consonância com ela o ritmo
e a harmonia, para a boa educação dos jovens. Não é isso mesmo? O que eu
afirmo sem circunlóquios é que os males assim denominados são bens para
os homens injustos e males para os justos, enquanto os bens são bens de
verdade para os bons e a desgraça dos malvados. Estaremos de acordo
acerca desses pontos, é o que pergunto, ou como diremos?

VII — Clínias — O que me parece é que nalguns pontos o acordo é


completo, porém outros, não tanto.
O Ateniense — Talvez não consiga convencer-vos de que um indivíduo que
possuísse saúde, riqueza e tirania durante a vida inteira, ao que poderíamos
acrescentar extraordinário vigor físico, valentia e imortalidade, sem a menor
dose dos denominados males, senão tão somente a injustiça e a violência,
um indivíduo nessas condições, dizia, muito longe de levar uma vida feliz,
seria de todo em todo desgraçado.

Clínias — Só dizes a verdade.

O Ateniense — Vá que seja! E agora, como devemos manifestar-nos? O


indivíduo corajoso, robusto, belo e rico, que só faça o que lhe apraz durante
toda a vida, se for injusto e violento, não vos parece que levará
fatalmente uma vida vergonhosa? Talvez me concedais pelo menos este
qualificativo: vergonhoso?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E também má?

Clínias — Neste ponto não serei tão categórico.

O Ateniense — E neste: sem alegria nem vantagem alguma?

Clínias — Sobre isso, como queres que nos declaremos de acordo?

O Ateniense — Como? Se alguma divindade, meus caros, promovesse tal


acordo, o que por enquanto não acontece, mas que a meu ver é mais
necessário reconhecer do que o caráter insulano de Creta. Se eu fosse
legislador, tentaria obrigar os poetas e demais moradores da cidade a falar
nesse sentido, e nada castigaria com tanto rigor como dizer algum dos
nativos que podia haver indivíduos maus porém felizes, ou que há coisas
úteis e proveitosas, mas que há outras mais justas. Acerca de uns tantos
tópicos, também, obrigaria meus concidadãos a empregar linguagem
diferente da que presentemente empregam, ao que parece, os cretenses e os
lacedemônios e, como de regra, a maioria dos homens. Porém agora, por
Zeus e Apo-lo, varões eminentíssimos, se formulássemos às divindades que
instituíram vossas leis a seguinte pergunta: A vida mais justa é a mais
agradável, ou haverá duas maneiras de viver, uma das quais seria a mais
justa, e a outra a mais agradável? Se nos respondessem que há duas,
decerto não haveria inconveniência em voltarmos a falar: Quem devemos
considerar mais feliz: os que são justos a vida inteira ou os que vivem a
vida mais agradável? Se se decidissem pela vida mais agradável, muito
estranha seria tal resposta. Porém não fica bem falar das divindades nesse
tom, mas, de preferência, de nossos pais ou dos legisladores. Então, se
dirigíssemos a mesma pergunta a algum pai ou legislador, e ele dissesse que
é mais feliz quem passa mais agradavelmente a vida, decerto eu replicaria:
Mas, não querias que eu levasse uma vida feliz? Como, então,
me concitaste a viver sempre da maneira mais justa? A meu parecer, aquela
afirmativa por parte de um pai ou legislador seria assaz estranha, ficando
qualquer deles, por sua vez, em dificuldade para se pôr em harmonia
consigo mesmo. E se afirmasse que a vida mais justa é a mais feliz, seus
ouvintes, me parece, poderiam perguntar qual era essa beleza que a lei
considerava superior ao prazer? Como! A glória e a aprovação dos homens
e dos deuses seria algo bom e belo, porém desagradável, e a má reputação,
justamente, o seu contrário? De jeito nenhum, meu caro legislador, lhe
diriamos. Não praticar injustiça nem ser vítima de nenhuma injustiça talvez
seja belo e bom e, ao mesmo tempo, desagradável, e o contrário disso, ainda
que agradável, mau e vergonhoso?

Clínias — Como fora possível?

VIII — O Ateniense — Assim, o discurso que não separa do justo o


agradável, do bem e do belo, pode, pelo menos, em falta de outras
indicações concitar-nos a viver uma vida justa e sã, de forma que para o
legisladora linguagem mais vergonhosa e contraditória seria afirmar
que não é assim, pois ninguém se decidiria a fazer de bom gra-do o que lhe
acarretasse mais sofrimento do que prazer. Além do mais, o que se vê de
longe produz vertigens, por assim dizer, em toda a gente, principalmente
nas crianças. Porém a meu ver, o legislador, suprimindo a
escuridão, corrigirá essa aberração de nosso julgamento e procurará de todo
jeito convencer os outros, ou pelo hábito ou com argumentos ou com
aplausos, de que a justiça e a injustiça estão falseados pela perspectiva, uma
em frente da outra, de maneira que o justo se parece com o injusto que se
lhe defronta, de tal forma que o indivíduo injusto e mau, contemplando-se
de sua posição, achará encantadora a própria imagem e insuportável a da
justiça, enquanto o justo, em ambos os casos, concluirá por maneira
exatamente oposta.

Megilo — É evidente.

O Ateniense — E acerca dos julgamentos, qual dos dois deveremos


considerar mais verdadeiro e bem fundamentado: o da alma depravada ou o
da sã?

Clínias — Forçosamente, o da melhor.

O Ateniense — Então, por força a vida do homem injusto não apenas é


mais vergonhosa e lamentável, como também menos agradável do que a
vida justa e santa.

Clínias — Pelo menos, amigos, de acordo com o presente argumento.

O Arteniense — Mas, ainda mesmo que as coisas não se passassem como


nosso discurso o demonstrou, se o legislador de préstimo, embora mínimo,
na melhor das intenções nunca se permitiu dizer alguma inverdade aos
moços, poderia conceber uma mentira mais útil do que esta e mais eficaz,
para levá-los a praticar voluntariamente tudo o que for justo, sem
constrangimento algum?

Clínias — A verdade, forasteiro, é bela e durável, porém não parece fácil de


ensinar.

O Ateniense — Pode ser. No entanto, foi fácil deixar aceitável a fábula


sidônica, com ser tão inverossímil, e mil outras do mesmo gênero.

Clínias — Que fábula?

O Ateniense — A dos dentes semeados, dos quais nasceram hoplitas. É um


exemplo convincente de como o legislador pode fazer as almas jovens
acreditar no que se quiser que acreditem; bastará descobrir a maneira de
fazer o maior bem para a cidade por meio da persuasão e lançar mão dos
recursos apropriados para que os membros dessa comunidade durante a
vida inteira mantenham a mesma linguagem, tanto quanto possível, nos
cantos, nas fábulas e nos discursos. Aliás, se pensardes de maneira
diferente, nada vos impede de contestar minha exposição.

Clínias — Não me parece que algum de nós possa contestar o que acabaste
de dizer.

O Ateniense — Então, vou prosseguir. O que afirmo é que o conjunto de


coros, em número de três, deve atuar por meio de suas canções mágicas na
alma tenra das crianças, repetindo-lhes tanto as belas máximas agora
expostas como outras que ainda poderemos formular e que se resumem,
essencialmente, em dizer que para os deuses a vida mais agradável é
também a mais justa. Como isso, só enunciaremos a estrita verdade e
conseguiremos persuadir mais facilmente a quem importar convencer, do
que se recorrêssemos a argumentos diferentes.

Clínias — Não é possível discordar do que disseste.

O Ateniense — O mais certo será introduzir logo de início o coro das


Musas composto de meninos, que, com o maior capricho, cantarão essas
máximas para toda a cidade; a seguir, o dos que tiverem menos de trinta
anos, os quais invocarão o testemunho de Apolo, em reforço da verdade de
suas palavras, e lhe pedirão que se mostre benigno para os jovens e influa
na sua mente; por último, cantará o terceiro coro, formado de cidadãos de
trinta até sessenta anos. Os que ultapassaram tal limite, por já não poderem
cantar, ficarão com a incumbência de contar fábulas sobre esses mesmos
sentimentos, com apoio nos oráculos divinos.

Clínias — A que terceiros coros te referes, forasteiro? Não apanhamos


claramente o que queres dizer.

O Ateniense — E contudo, foi pensando neles que eu orientei quase toda


nossa discussão.

Clínias — Ainda não apanhei o sentido; procura ser mais claro.

IX — O Ateniense — Se estamos bem lembrados, dissemos no começo da


presente exposição que a natureza dos moços, em virtude da ardência muito
própria, não os deixa ficar quietos, nem com o corpo nem com a voz, pois
não cessam de saltar e de cantar, sem nenhuma ordem; que a idéia de
ordem, com relação à voz e ao movimento, era estranha aos outros animais,
só dela participando a natureza humana; no que entende com o movimento,
a ordem recebeu o nome de ritmo, e com a voz, na mistura de sons agudos e
graves, o de harmonia, vindo a ser denominada coregia a combinação dos
dois. Ademais, dissemos que os deuses, levados por pura compaixão, nos
deram Apolo e as Musas como coregos e participantes dos coros, e em
terceiro lugar, se ainda vos lembrais, Dioniso.

Climas — Lembramo-nos, como não?

O Ateniense — Já falamos dos coros de Apolo e das Musas; forçoso será


tratar agora do terceiro e último, o de Dioniso.

Climas — Como assim? Explica-te. Causa estranheza ouvir, de repente,


falar de um coro de Dioniso, composto de pessoas idosas, de trinta a
cinquenta ancs, e até mesmo sessenta.

O Ateniense — Tens razão. Teremos de explicar como tais coros podem ser
racionalmente organizados.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Pelo menos, declaramo-nos de acordo com o que já ficou


dito?

Clínias — A respeito de quê?

O Ateniense — Que todos os membros da comunidade, adultos ou crianças,


cidadãos livres ou escravos, homens ou mulheres, a cidade em peso repita
para toda a cidade, falando para si mesma, sem parar, as máximas a que me
referi, com todas as variações imagináveis, de forma que os cantores como
que fiquem saturados de hinos e de prazer.

Clínias — Como deixar de concordar que será preciso proceder como


disseste?
O Ateniense — Mas, em que ocasião essa porção melhor dos cidadãos, que,
pela idade e sabedoria é a mais indicada para persuadir, poderá, por meio de
belas canções, promover algum bem para a comunidade? Ou seremos
tão estultos, para deixar de lado o que imprime maior autoridade aos cantos
mais belos e mais úteis?

Clínias — Depois do que disseste, não será possível omitir essa parte.

O Ateniense — Como, então, devemos proceder? Considerai o seguinte.

Clínias — Como será?

O Ateniense — Com o passar dos anos, não há quem não se sinta tolhido
para cantar ou o faça com menor disposição, e quem é forçado a isso, tanto
mais se acanhará quanto mais velho e sábio for, não é assim mesmo?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E não revelará maior acanhamento, ainda, se tiver de ficar


de pé, no teatro, e à vista de tanta gente? E mais: se fosse obrigado, nos seus
exercícios de canto, tal como se dá com os coristas nas disputas de prêmios,
a passar fome e emagrecer, não o faria com repugnância e grande
indisposição e, sobretudo, acanhamento?

Clínias — E inevitável ser como disseste.

O Ateniense — De que modo, então, o encorajaremos para dispor-se a


cantar? Não seria preciso começar por uma lei que proibisse
terminantemente os rapazes de tomar vinho antes dos dezoito anos, com
amostrar-lhes a inconveniência de lançar fogo no fogo, assim no corpo
como na alma, sem estarem iniciados na fase mais dura da existência, para
protegê-los das próprias loucuras da mocidade? A partir desse limite, lhes
permitiremos beber moderamente vinho, até aos trinta anos, porém
abstendo-se de todo de patuscadas e borracheiras enquanto forem moços.
Atingidos os quarenta, participarão das sissítias, invocarão os demais
deuses e convidarão paticularmente Dioniso para seus mistérios e
divertimentos, por haver ele dado aos homens, com o vinho, um remédio
capaz de amenizar a austeridade da velhice, remédio que nos rejuvenesce,
faz esquecer as tristezas e abranda a dureza de nosso caráter, deixando-o
mais maleável, como acontece com o ferro lançado no fogo. Com essa
disposição, não se decidiriam nossos velhos a cantar com muito menor
acanhamento, não direi diante de um público numeroso, mas para poucos
espectadores, nem diante de estranhos, em família, ou fossem canções
simples ou, conforme disse, fórmulas de encantamento?

Clínias — Com muito maior disposição.

O Ateniense — Essa maneira, pois, de levá-los a participar de nossos cantos


não seria de todo inconveniente.

Clínias — De forma alguma.

O Ateniense — Que espécie de voz esses homens entoarão? Pois é evidente


haver uma que lhes convenha.

Clínias — Como não?

O Ateniense — E qual irá bem com homens divinos? A dos coros,


porventura?

Clínias — Nós, pelo menos, forasteiro, e este aqui, não sabemos entoar a
não ser os cantos que aprendemos nos coros e com os quais nos
acostumamos.

O Ateniense — Compreende-se, pois é fato que nunca chegastes ao canto


mais belo. Vossa constituição é mais de acampamento; não foi feita para
moradores de cidade; criais a juventude como fazeis com rebanhos de
potros no pasto. Ninguém separa do gurpo seu animal, por mais selvagem e
arisco, nem o confia a algum palafreneiro particular, para afagá-lo e deixá-
lo manso, alimentando-o e aplicando em sua educação os métodos
indicados para crianças. Com isso, faria dele não apenas um cidadão
de préstimo como alguém capaz de administrar a contento os negócios
públicos e particulares, um indivíduo, em suma, como dissemos no começo,
que fosse um guerreiro mais prestimoso do que os de Tirteu e não
considerasse a coragem a primeira, senão a quarta virtude, sempre e
em toda a parte, assim para os particulares como para a cidade.
Clínias — Não sei a razão, forasteiro, de voltares a desfazer em nossos
legisladores.

O Ateniense — Se desfaço neles, meu caro, não é de caso pensado,


admitindo-se que o fizesse. Se estiveres de acordo, acompanhemos esse
argumento até onde ele nos levar. Caso encontremos, de fato, uma Musa
mais bela do que a dos coros e dos teatros públicos, demo-la a conhecer a
nossos velhos, que, conforme dissemos, se envergonham da outra e desejam
trazer a mais bela para sua companhia.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Não será inevitável que tudo o que é acompanhado de


agrado, tenha no próprio agrado seu caráter essencial ou se distinga por
certa inteireza, ou, ainda, pela utilidade? O que digo, por exemplo, é que o
comer e o beber e, de modo geral, os alimentos, são acompanhados de certo
agrado, a que damos o nome de prazer; mas o que neles denominamos
inteireza e utilidade é o que em cada caso particular chamamos de saudável,
sua qualidade primacial.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — A aquisição de conhecimentos, também, não deixa de ser


atraente e deleitável. Porém, o que nela condiciona a autenticidade e sua
vantagem, bem como nobreza e pulcritude, é a verdade.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E agora? Que ocorre com as artes de imitação, que se


empenham na confecção do semelhante? Quando atingem seu fim, não são
seguidas de prazer, a que, com todo o acordo podemos dar a denominação
de graça?

Clínias — Sim.

O Ateniense — Mas, para tudo dizer numa palavra, a inteireza dessa


espécie de obras consiste na perfeita semelhança com o objeto imitado,
tanto com relação à quantidade como à qualidade, não no prazer.
Clínias — Muito bem.

O Ateniense — Só se pode recorrer ao prazer como critério do julgamento


nas coisas que não comportam utilidade nem verdade nem semelhança, e
que também não causam dano algum, mas são procuradas apenas pelo
atrativo próprio dessas qualidades que poderíamos muito bem denominar
prazer, quando nenhum daqueles elementos se lhe agrega.

Clínias — Referes-te apenas ao prazer inofensivo.

O Ateniense — Sim, e esse prazer é que eu qualifico de brinquedo, quando


não produz nem bem nem mal dignos de atenção ou referência.

Clínias — Tudo isso é muito certo.

O Ateniense — E não poderíamos afirmar, com base no que acabaste de


expor, que nenhuma imitação ou relação de igualdade pode ser julgada
segundo o prazer ou a opinião mal fundada? Pois não é pela opinião que
se formar ou pelo prazer alcançado que a igualdade será igualdade, e a
proporção, proporção, porém, antes de tudo, pela verdade; nada mais, nada
menos.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — E não dizemos que a arte da música, de regra, é imitativa e


de representação?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Por isso mesmo, não devemos atender a quem afirma que o
prazer determina o valor da música, nem considerar digna de atenção a
música que se apresentar com essas características, mas apenas a que, pela
imitação, se aproxima do belo.

Clínias — Certíssimo.

O Ateniense — E nossos velhos, que se afanam em pós do mais belo canto,


a meu ver, não deverão procurar a Musa mais agradável, porém a mais
correta. Conforme dissemos, imitação correta é a que reproduz com
fidelidade a grandeza e a qualidade de algum objeto.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Ora, com relação à arte da música, todo o mundo convirá


em que suas criações são imitação o e representação. Sobre esse ponto, não
estarão todos de acordo: poetas, atores e espectadores?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Assim, a respeito de cada uma de suas criações, antes de


mais nada procuraremos saber o que ela exprime, se não quisermos errar,
pois se desconhecermos sua essência e o que pretende e de que é
verdadeiramente a imagem, de maravilha chegaremos a conhecer a verdade
ou o desacerto de suas intenções.

Clínias — É impossível, como não?

O Ateniense — Quem não sabe o que é certo, como poderá discernir o que
está bem ou está mal? Parece-me que não me exprimo com muita clareza;
talvez deste outro modo fique melhor.

Clínias — Como será?

XI — O Ateniense — É certeza haver um milhão de imitações que apelam


para a vista.

Clínias — Exato.

O Ateniense — E então? E no caso de alguém não saber como é cada um


dos corpos imitados, ficará em condições de decidir se a imitação está bem
feita? O que digo, por exemplo, é se o número e a posição das partes de um
determinado corpo foram bem observados, a quantos montam, se obedecem
à ordem conveniente, e também as

cores e as figuras, ou se tudo isso se acha numa barafunda incrível?


Imaginas que alguém possa julgar, se desconhecer de todo em todo o animal
imitado?
Clínias — Como o poderia?

O Ateniense — E então? No caso de sabermos que o objeto imitado ou


modelado é um homem, e que a arte reproduziu todas as suas partes com as
cores adequadas e posições: não é de necessidade forçosa que quem
souber isso também se acha em condições de decidir se se trata de uma bela
imagem ou se esta carece de algo em matéria de beleza?

Clínias — Nessas condições, forasteiro, não há, por assim dizer, quem não
reconheça a beleza dos animais representados.

O Ateniense — Ótima observação. Nesse caso, para emitir um julgamento


são a respeito de cada imagem, ou seja na pintura ou na música ou em
qualquer outro gênero de arte, será preciso conhecer estas três coisas:
primeiro, o que seja o objeto imitado; depois, se foi reproduzido certo, e,
em terceiro lugar, se a imitação está bem feita, quer tenha sido alcançada
por meio da palavra, quer de melodias, quer de ritmo?

Clínias — Pelo menos, é o que parece.

O Ateniense — Não desanimenos de falar da dificuldade de estudar a


música. Como é a mais elogiada das imitações, de todas é a que exige de
nossa parte maior dose de circunspecção; o erro, nesse domínio, é
particularmente prejudicial, por levar-nos a adotar maus costumes, o que é,
aliás, difícil de perceber, visto serem os poetas, como criadores, muito
inferiores às Musas. Estas jamais cometeriam o erro grosseiro de adaptar
palavras, por elas mesmas compostas para homens, a melodias e
meneios próprios de mulheres, ou o inverso: de acomodar gestos e melodias
de homens livres a ritmos de escravos e de trabalhadores braçais, ou, ainda,
se tomaram como base ritmos e gestos próprios de homens livres, adaptá-
los a melodias ou palavras que os contrariem; como, também, nunca
misturariam vozes de animais, de homens, de instrumentos e ruídos de toda
a espécie, para exprimir uma só coisa, ao passo que os compositores
humanos, baralhando todos esses elementos e entrelaçando-os sem o menor
cri-tério, tornam-se ridículos aos olhos dos que alcançaram, como diz
Orfeu, o pleno amadurecimento do deleite. Pois não apenas misturam todos
esses elementos, como os isolam do conjunto, quando nos apresentam ritmo
e palavras sem melodia, e palavras desacompanhadas de música porém
dentro do metro, ou o contrário: melodia e ritmo sem palavras e apenas
produzidos na cítara ou na flauta. Em tais circunstâncias, é sumamente
difícil saber o que significam esse ritmo e essa harmonia
desacompanhados de palavras, e com que gênero de imitação digna de
tal nome aquilo se parece. Forçoso será admitir que tudo isso revela muita
rusticidade, esse gosto da rapidez, da volubilidade e dos gritos de animais,
que os leva a tocar flauta e citara fora dos casos em que ambas
acompanham o canto e a dança. Usar os dois instrumentos a não ser como
acompanhamento, denota falta de gosto e puro charlatanismo. Acerca desse
tópico era o que eu tinha a dizer. Aliás, não nos compete esclarecer de que
Musa devem abster-se os cidadãos que já passaram dos trinta anos ou
já completaram cinqüenta, senão de qual precisam aproximar-se. De toda
essa exposição quer parecer-me que devemos atentar no seguinte: os
indivíduos de cinqüenta anos em condições de cantar devem estudar mais
do que os outros a Musa dos coros; precisarão ter o sentido agudo e
o conhecimento dos ritmos e das harmonias; a não ser assim, como poderão
conhecer a estrutura exata das canções, com qual vai bem ou com qual não
assenta o modo dórico, e se o compositor o pôs no ritmo certo?

Clínias — Evidentemente, não o poderiam, de jeito nenhum.

O Ateniense — O vulgo é sumamente ridículo por imaginar que são


capazes de saber o que está bem harmonioso e ritmado, só porque foram
forçados a cantar e a marchar na cadência certa. O que todos ignoram, é
que fazem essas coisas sem conhecer-lhes a estrutura, e que toda melodia é
justa quando apresenta as qualidades que lhe convém, e errada, na hipótese
contrária.

Clínias — Por força terá de ser assim mesmo.

O Ateniense — E então? Quem não conhecer os elementos de uma canção,


reconhecê-los-á, conforme o exigimos, se eles estiverem certos nalgum caso
determinado?

Clínias — Como o poderia?

XII — O Ateniense — Ao que parece, voltamos a descobrir que os


cantores, por nós mesmos chamados e que, de algum modo, obrigamos a
cantar, necessariamente devem ser instruidos até o ponto de poderem
acompanhar a marcha dos ritmos e os tons das melodias, a fim de que,
como decorrência de seu conhecimento dos ritmos e da harmonia, possam
escolher o que convém a pessoas de sua idade e posição, e, depois, durante
o canto, fruam de um prazer inocente e levem os jovens a se afeiçoarem,
como convém, aos bons costumes. Assim instruídos, disporão de
conhecimentos mais sólidos do que o público e os próprios compositores.
Pois o compositor não precisa conhecer esse terceiro ponto, se sua imitação
é bela ou não, como se dá com os outros dois, relativos à harmonia e
ao ritmo, ao passo que os velhos precisarão conhecer todos, para ficarem
em condições de escolher o que há de mais belo ou o que mais se aproxime
desse estado, sem o que jamais conseguirão levar os jovens para a virtude,
com a magia de seus cantos. O que pretendíamos no começo de nosso
discurso, a saber, ajuda a ação do coro de Dioniso, já ficou sobejamente
explicado, na medida de nossa capacidade. Agora vejamos se, de fato, o
conseguimos. É inevitável vir a ficar tumultuada a assembléia, à medida
que seus componentes continuarem a beber; foi o que reconhecemos no
começo de nossa exposição, quando tratamos das reuniões dessa espécie, tal
como se praticam no nosso tempo.

Clínias — Forçosamente.

O Ateniense — Todos se sentem leves, exaltam-se, transbordantes de


alegria, e falam com liberdade, não aceitando a opinião dos vizinhos,
convencido, cada um de per si, como há de estar, de que é capaz de
governar-se e de dirigir os outros.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Já não dissemos há pouco que, nessa altura, a alma dos


bebedores, aquecida como o ferro, rejuvenesce e torna-se maleável e, por
isso mesmo, mais dúctil nas mãos de quem puder e souber afeiçoá-la e
modelá-la como no tempo em que ela era jovem? Ora, esse modela-

dor é o mesmo a que nos referimos, o bom legislador, que deverá promulgar
leis para os banquetes, suficientemente idôneas para fazer passar a
disposições opostas esse indivíduo confiado e esperançoso que já
ultrapassou, de muito, os lindes da decência e se mostra rebelde a qualquer
ordem para falar ou silenciar, beber ou cantar no tempo certo, deixando-o
bastante forte para lançar-se contra a feia impudencia no momento em que
ela se apresentar, opondo-lhe, de acordo com a justiça, o mais belo temor,
esse divino a que demos o nome de honra e respeito a si mesmo.

Clínias — Exato.

O Ateniense — Como guardas e executores dessas leis, devem ser


nomeados homens tranqüilos e sóbrios, na função de guias dos beberrões,
pois sem eles é mais arriscado combater a embriaguez do que enfrentar o
inimigo com generais carecentes de sangue frio; e quem não se conformar
com a orientação de tais chefes e com os diretores dos coros de Dioniso,
isto é, dos que já passaram da casa dos sessenta, incorrerá em igual
opróbrio, digo, em desonra ainda maior da que toca aos que negam
obediência às determinações de Ares.

Clínias — Certo.

O Ateniense — Se a embriageuz fosse bem vigiada e os divertimentos


dirigidos desse modo, não aproveitariam ¡mensamente com isso os
participantes de tais divertimentos, e não se separariam mais amigos uns
dos outros, não como inimigos, conforme presentemente se observa,
no caso de serem feitas essas reuniões de acordo com as leis e de guiarem
os sóbrios aos que gostarem de beber?

Clínias — Sem dúvida, caso fossem organizadas conforme acabaste de


expor.

XIII — O Ateniense — Então, paremos com essas críticas sumárias à


dádiva de Dioniso, e não a qualifiquemos de perniciosa e indigna de ser
acolhida pela cidade. Ainda haveria muito mais que dizer a seu favor;
porém, diante dás multidões, temos escrúpulo de falar do maior bem que ela
nos proporciona, porque essa gente não entende nada de nada e deturpa
tudo o que ouve.

Clínias — Que dádiva?


O Ateniense — Conta uma lenda, reforçada pela Fama, que essa divindade
ficou com a mente perturbada por influência de Hera, sua madrasta; por
isso, como vingança, ele promoveu orgias e danças extravagantes, tendo
sido com tal intenção que nos fez presente do vinho. Do meu lado, deixo
essa linguagem para os que consideram inofensivo relacionar semelhante
fábula com os deuses. O que sei é que nenhum animal nasce com a
inteligência que virá a ter quando ficar adulto; enquanto não adquire
o descortino que lhe é peculiar, comporta-se como louco, grita sem motivo,
e quando é capaz de levantar-se dá saltos desordenados. Lembremo-nos do
que dissemos antes, quando explicamos que a música e a dança
começaram desse modo.

Clínias — Ainda nos lembramos; como não?

O Ateniense — E também que vem daí, para os homens, a noção de ritmo e


harmonia, e que as divindades que no-la concederam foram Apolo, as
Musas e Dioniso.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Como também é conhecida a opinião de certas pessoas a


respeito do vinho, de ser dádiva para os homens, à guisa de castigo, para
que perdessem o juízo. Mas, o que acabamos de expor demonstra que nos
foi concedida como remédio de ação precisamente oposta, para gerar em
nossa alma o pudor e conceder ao corpo saúde e robustez.

Clínias — Com muita felicidade, forasteiro, recapitulaste tudo o que


dissemos antes.

O Ateniense - Metade da coréia foi exaustivamente analisada; a outra


metade, ficará ao vosso alvedrio analisá-la também a fundo ou deixá-la de
lado.

Clínias — A que te referes, e como imaginas essa divisão?

O Ateniense — A coréia, no seu todo, representava para nós a educação;


mas uma de suas partes diz respeito à voz, que abrange ritmos e harmonias.
Clínias — Certo.

O Ateniense — A outra, em relação com o movimento do corpo, tinha o


ritmo em comum com o movimento da voz, porém apresentava de peculiar
o gesto, enquanto a melodia caracteriza o movimento da voz.

Clínias — É muito verdadeiro.

O Ateniense — O que, por meio da voz, se estende até à alma e a educa


para a virtude, não sei até que ponto denominamos música.

Clínias — Quanto, aos movimentos do corpo, que formam, conforme já


vimos, o folguedo da dança, quando contribui para o aperfeiçoamento do
corpo, a direção artística dessa parte reservamos a denominação de
ginástica.

Clínias — Certíssimo.

O Ateniense — Conforme dissemos, já analisamos a música, que abrange


mais ou menos metade da coréia. Deixemo-la, pois, de lado. E agora,
trataremos da outra metade, ou que faremos?

Clínias — Ora, amigo! Falando como falas, a cretenses e lacedemônios, e


havendo discorrido a respeito da música sem tocar na ginástica, como achas
que devemos responder a semelhante pergunta?

O Ateniense — O que digo é que nessa pergunta está implícita uma


resposta muito clara, como também percebo, conforme declarei, que a
pergunta não é apenas resposta, mas um convite para nos aprofundarmos no
estudo da ginástica.

Clínias — Apanhaste admiravelmente bem meu pensamento; faze isso


mesmo.

O Ateniense — É o que vou fazer; não é muito difícil conversar a respeito


desse assunto com dois especialistas na matéria; tendes maior experiência
dessa arte do que da outra.

Clínias — Talvez estejas com a razão.


XIV — O Ateniense — A origem desse divertimento, devemos procurá-la
no fato de terem os animais, por natureza, o hábito de saltar. Mas, como os
homens participam do senso do ritmo, conforme vimos, inventaram
e criaram a dança; e quando o canto sugere e desperta o ritmo, da união dos
dois nasce a coréia e a diversão.

Clínias — E muito certo.

O Ateniense — Já observamos como uma das partes foi analisada;


cuidemos agora de estudar a outra.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Porém antes disso, ponhamos o remate na utilidade da


embriaguez, caso estejas de acordo.

Clínias— Remate, como? Que queres dizer com isso?

O Ateniente — Se uma cidade adota seriamente essa instituição e a põe a


funcionar segundo leis e regras próprias, com o fim precípuo de cultivar a
temperança, sem abster-se, também, de outros prazeres, com igual
orientação, para que os cidadãos venham a dominá-los, nunca será
excessivo tudo o que fizer nesse sentido. Mas, se encarar tudo isso como
simples diversão, sendo permitido a cada um beber quanto quiser, com os
companheiros que entender e da maneira que bem lhe aprouver, então,
jamais darei meu voto para que uma cidade ou algum particular se entregue
à embriaguez. Ao costume dos cretenses e dos lacedemônios preferiria a lei
dos cartagineses, que veda provar bebidas espirituosas aos soldados quando
a serviço no acampamento, só lhes sendo permitido beber água o tempo em
que estiverem na campanha; dentro dos muros da cidade nunca um escravo,
ou seja homem ou mulher, poderá beber vinho, nem os magistrados
durante o ano do seu mandato, como também é rigorosamente proibido aos
pilotos e aos juízes beber no exercício de suas funções, e bem assim a todos
os que se reúnem em assembléias para deliberar sobre assunto de
importância, e a qualquer pessoa durante o dia, a não ser por motivo
de doença ou na prática de exercícios físicos, ou durante a noite, sempre
que se juntarem homem e mulher com a intenção de procriar. Muitas outras
circunstâncias, ainda, poderiam ser mencionadas, em que a lei e o bom
senso devem proibir o uso do vinho. Segundo esse raciocínio, nenhuma
cidade precisará ter extensos vinhedos; as demais culturas serão dirigdas de
acordo com as necessidades, devendo ser a produção do vinho, mais do que
todas, moderada e restrita. Se estiverdes de acordo, forasteiro, sirva-nos isso
como remate e coroamento de nossa dissertação a respeito do vinho.

Clínias — Belo remate, sim; declaramo-nos de acordo.

LEIS

Livro III

I — O Ateniense — Então, que fique assim mesmo. E agora, como


devemos dizer que tenha sido o começo do governo das cidades? Não será
desta maneira que o descobriremos melhor e mais facilmente?

Clínias — De que modo?

O Ateniense — De tal forma, que se possa estudar, em cada caso, o


crescimento da cidade em suas sucessivas modificações, tanto para o bem
como para o mal.

Clínias — De que ponto pretendes partir?

O Ateniense — Imagino considerar o tempo em sua duração e infinitude, e


também as mutações nele operadas.

Clínias — Como entendes tal coisa?

O Ateniense — Dize-me o seguinte: acreditas que se chegue a saber quanto


tempo já passou desde que há cidades e os homens vivem nelas?

Clínias — Eis uma pergunta nada fácil de responder.

O Ateniense — Mas, pelo menos concordarás que foi um tempo imenso e


incalculável.

Clínias — Quanto a isso, não há dúvida.


O Ateniense — Não é certo que nesse lapso de tempo surgiram milhares e
milhares de cidades, e que, no mesmo período, não menor número delas
foram destruídas, outras experimentaram toda espécie de formas de
governo, tornando-se grandes muitas que antes eram pequenas, ou passaram
de grandes para pequenas ou de piores para melhores e de melhores para
piores?

Clínias — Necessariamente.

O Ateniense — Vejamos, então, se é possível determinar a causa de todas


essas transformações. Talvez por esse caminho cheguemos a descobrir a
origem primeira e a mudança dos governos.

Clínias — Dizes bem. Precisamos, então, esforçarmo-nos de parte a parte;


do teu lado, para comunicar-nos o que pensas a esse respeito; do nosso, para
te acompanharmos.

O Ateniense — Não vos parece que as velhas tradições contêm boa parte de
verdade?

Clínias — Em que sentido?

O Ateniense — Vezes sem conta, os homens já foram destruídos por


inundações, doenças e outras causas, só se salvando parte mínima do gênero
humano.

Clínias — E muito provável que tudo isso tenha acontecido.

O Ateniense — Então, figuremos uma dessas catástrofes; e foram tantas!


Por exemplo: a ocorrência do dilúvio.

Clínias — E como devemos imaginá-la?

O Ateniense — Os que então escaparam da destruição, deveriam ter vivido


mais ou menos como pastores das montanhas, em cujos cumes se conservou
a tênue centelha do gênero humano.

Clínias — É evidente.
O Ateniense — Tais homens, necessariamente desconheciam não apenas as
artes como as intrigas da ambição e da avareza de que são vítimas os
moradores das cidades, como ignoravam de todo os malefícios que eles
próprios causam uns aos outros.

Clínias — Pelo menos, é o que parece.

O Ateniense — Aceitamos, então, como demonstrado, que as cidades


construídas nas planícies e à beira-mar foram, nessa conjuntura, totalmente
arrasadas?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Sendo assim, desapareceu tudo quanto era instrumento,


como foram levadas peia correnteza as descobertas sérias no domínio das
artes, da política e dos conhecimentos em geral. Sim, caro amigo, se todas
se houvessem conservado no estado em que presentemente as vemos, como
fora possível inventar algo novo?

Clínias — Isso só aconteceu, porque os homens ignoravam que antes de seu


tempo haviam decorrido milhares e milhares de anos, e que não foi senão
há mil ou dois mil anos que as invenções de Dédalo apareceram, ou as de
Orfeu ou as de Palamedes, as de Mársias e de Olimpo relativas à música, a
lira de Anfião e uma infinidade mais de coisas, que só foram inventadas
ontem, por assim dizer, ou anteontem.

O Ateniense — Não sabes, Clínias, que te esqueceste de um amigo que


nasceu ontem mesmo?

Clínias — Sem dúvida referes-te a Epimênides?

O Ateniense — Justamente, meu caro; pois entre vós outros ele deixou
longe todos os homens por seu espírito inventivo; e tudo aquilo que, há
muito, Hesíodo pressagiou nos seus escritos, ele efetivamente realizou,
conforme declarastes.

Clínias — Sim, foi o que dissemos.


II — O Ateniense — Poderemos, então, imaginar a condição dos homens
no tempo dessa catástrofe? O mundo era um imenso e apavorante deserto;
só campos a perder de vista; e como quase todos os animais pereceram, uns
poucos rebanhos de bois e o que restava do gênero das cabras eram os
minguados recursos com que os pastores contavam para sua subsistência.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — De cidades, negócios públicos, legislação, o que constitui,


em suma, o objeto de nosso estudo, afirmaremos que de tudo isso eles
tivessem, por assim dizer, guardado alguma lembrança, por mínima que
fosse?

Clínias — Em absoluto.

O Ateniense — E não foi dessas condições precárias que se formou tudo o


que ora vemos: cidades, constituições e artes e leis, e também muitos vícios
e muitas virtudes?

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Como teremos de imaginar, meu admirável amigo, que os


homens daquele tempo, inexperientes como eram, das próprias belezas das
cidades, como de seus contrários, teriam sido perfeitos tanto no bem como
no mal?

Clínias — Bela observação; já percebemos a que ponto queres chegar.

O Ateniense — Não foi com o andar do tempo e a multiplicação de nossa


espécie que tudo se encaminhou para o estado em que ora se encontra?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Porém, não de súbito, naturalmente; aos pouquinhos e num


tempo muito longo.

Clínias — Como convinha a tal estado de coisas.


O Ateniense — Ao baixarem das montanhas para a planície, segundo
penso, ainda a todos tinia nos ouvidos o medo.

Clínias — Nem poderia ser de outra maneira.

O Ateniense — E não seria particularmente agradável contemplarem-se uns


aos outros, tanto mais que naquele tempo eles seriam em pequeno número e
os meios de transporte, para se comunicarem por mar e por terra, haviam
sido, por assim dizer, quase totalmente destruídos juntamente com as artes?
Conforme penso, não era fácil juntarem-se, pois o ferro, o cobre e os
diferentes metais se tinham misturado com a terra, de forma que não
havia jeito de limpá-los das escórias, além de ser quase impossível cortar
madeira. Mas, mesmo que se tivessem conservado nas montanhas alguns
instrumentos de trabalho, em pouco tempo ficariam imprestáveis pelo uso,
sem que fosse possível restaurá-los antes de voltar a ser conhecida
dos homens a arte de trabalhar metais.

Clínias — Como fora possível?

O Ateniense — E quantas gerações imaginais que seriam preciso para que


isso acontecesse?

Clínias — Muitas, sem dúvida.

O Ateniense — Do mesmo modo, todas as artes que não dispensam o ferro,


o cobre e outros metais do mesmo gênero, desapareceram durante esse
intervalo e até mais tempo do que isso?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Sendo assim, as discórdias e as guerras, por vários motivos


ficaram suspensas durante todo aquele tempo.

Clínias — De que jeito?

O Ateniense — A princípio, por causa mesmo do isolamento, os homens se


amavam e se viam com bons olhos; ademais, não precisavam lutar para
adquirir alimento; pastagens não faltavam, a não ser no começo, porventura,
fonte de quase toda a sua alimentação naquele tempo, pois de leite e carne
não havia escassez, sem contar que a caça lhes fornecia alimento abundante
e de bom paladar. Dispunham, outrossim, de roupa em grande
quantidade, cobertas, casas e vasos, tanto dos que se levam ao fogo como
de outro material, pois as artes práticas e as diferentes modalidades de
tecelagem não requerem o ferro. Os deuses deram essas duas artes aos
homens para que eles procurassem tudo aquilo, porque, na hipótese de
voltar a cair na mesma indigência, a raça humana pudesse germinar de novo
e desenvolver-se. Em tais condições, de certo modo não havia pobres, não
os levando, pois, a necessidade a se desentenderem. Ricos, também, não
seriam, uma vez que não possuíam nem ouro nem prata, o que antes era
entre eles condição normal. Ora, num agrupamento em que não há nem
pobreza nem riqueza, de regra os costumes são nobres, porque nem a
violência nem a inveja nem o crime encontram condições para germinar.
Por essa razão, eram virtuosos, e também por causa daquilo que o vulgo
denomina simplicidade. Ingênuos, como eram, ao ouvirem falar em virtudes
e vícios, aceitavam tudo como verdades e criam no que lhes contavam.
Ninguém era suficientemente esperto para suspeitar que podiam mentir-
lhes, como vemos hoje; mas, aceitando como verdade o que lhes falavam
acerca dos deuses e dos homens, orientavam a vida de acordo com esses
ensinamentos. Por tudo isso, eram exatamente como acabamos de descrevê-
los.

Clínias — Tanto eu como este amigo aqui presente nos declaramos de


inteiro acordo.

III — O Ateniense — Poderemos, então, afirmar que muitas gerações


viveram desse modo, mais inexperientes e ignorantes do que os homens de
antes do. dilúvio e os do nosso tempo, no que entende com as artes em geral
e, particularmente, a da guerra, tal como hoje é praticada nos combates em
terra e no mar ou nos que são travados nas cidades, onde são denominados
dissídios ou facções, aliados a artifícios da mais variada espécie, por atos
ou por palavras, para causar dano e se prejudicarem mutuamente, mais que
eram mais simples e valentes e, ao mesmo tempo, mais temperantes e em
tudo justos? Já estudamos as causas de semelhante fato.

Clínias — Tens razão.


O Ateniense — Expusemos isso e tudo o mais que se prende ao mesmo
assunto, apenas com a intenção de saber até que ponto esses homens
precisavam de leis e quem terá sido seu legislador.

Clínias — Ótima exposição.

O Ateniense — Mas, não é verdade que tais homens não necessitavam de


legislador, e que naquele tempo ninguém pensava em semelhante coisa? Os
homens de então desconheciam a escrita, porém viviam de acordo com
os costumes e o que hoje denominamos leis pátrias.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Era a seguinte a forma de governo.

Clínias — Como seria?

O Ateniense — Quer parecer-me que se dá o nome de patriarcado ao


governo que ainda subsiste em muitas regiões, tanto entre os helenos como
entre os bárbaros. O próprio Homero nos conta que assim era a vida dos
Ciclopes:

Leis desconhecem, bem como os concílios nas ágoras públicas.

Vivem agrestes, somente nos cimos das altas montanhas, em grutas


côncavas, tendo cada um sobre os filhos e a esposa

plenos direitos, sem que dos demais o destino lhe importe.

Clínias — Tudo leva a crer que vosso poeta é muito gracioso. Conhecemos
dele outras passagens inefáveis; porém não muitas. Nós, Cretenses, não
dedicamos muito tempo à leitura de poetas estrangeiros.

Megilo — Pois nós o lemos, querendo parecer-me que ele é superior a todos
os poetas do mesmo gênero, conquanto não descreva os costumes da
Lacônia, preferindo sempre os da Jônia. Neste passo, com o que nos conta
ele depõe a favor de tua tese, com deduzir a antiguidade dos Ciclopes do
seu estado de selvajaria.
O Ateniense — É fato. Aceitemos, pois, seu testemunho como prova de que
realmente existiram tais formas de governo.

Clínias — Certo.

O Ateniense — E os governos, não sairão de toda essa gente dispersa em


casas e famílias, em conseqüência da miséria causada pelos cataclismas, em
que manda o mais velho, por haver herdado a autoridade, enquanto os
outros o acompanham como pássaros em bandos, sujeitos às leis do pai e à
mais justa das realezas?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Ao depois, já em maior número reúnem-se num lugar


comum, formando, desse modo, povoados maiores, e se aplicam, de pronto,
à agricultura no sopé das montanhas, e à guisa de amparo contra as feras,
levantam sebes de espinho e constroem uma só casa para todos, de grandes
proporções.

Clínias — Provavelmente, tudo se passou assim mesmo.

O Ateniense — E agora? O seguinte não será também bastante provável?

Clínias — De que se trata?

O Ateniense — Pelo fato de crescerem alguns povoados pela adjunção de


famílias primitivas e pequenas, era natural que se apresentasse o mais
antigo de seus membros como chefe e com hábitos particulares, visto
morarem todos à parte e haverem recebido dos pais e educadores orientação
diferente e, no que respeita ao culto dos deuses e às relações sociais
revelarem-se mais morigerados e corajosos do que os outros; e também por
imprimir cada chefe tais princípios na alma dos filhos e dos netos, essas
famílias, conforme disse, se destacavam da comunidade por seus usos e
costumes.

Clínias — Como não?


O Ateniense — Por tudo isso, era fatal que cada um preferisse suas próprias
leis e repudiasse as dos outros.

Clínias — Certo.

O Ateniense — E assim, como parece, sem o percebermos chegamos ao


começo da legislação.

Clínias — Perfeitamente.

IV — O Ateniense — De seguida, os que se reuniram tiveram de escolher


entre eles mesmos um representante, para examinar os usos e costumes das
famílias, selecionar oá que mais lhes agradassem e dá-los a conhecer aos
chefes e condutores de povos, como a legítimos reis, aos quais competia a
última discriminação. Depois de haverem constituído seus próprios chefes
e, assim, passado do patriarcado para uma espécie de aristocracia ou
realeza, começaram a governar-se de acordo com essa nova constituição.

Clínias — Sem dúvida, foi essa a transição.

O Ateniense — Tratemos, agora, do nascimento de uma terceira forma de


governo, em que se encontrem todas as modalidades da vida civil e das
cidades em suas variadas vicissitudes.

Clínias — Qual será?

O Ateniense — A que vem depois da segunda e a que Homero se referiu,


quando disse que a terceira se formou da seguinte maneira. Foi Dárdano,
diz ele em qualquer parte,

o fundador de Dardânia, no tempo em que não existia ainda no plaino Ílio


augusta, baluarte de fortes guerreiros, que por todo o Ida habitavam, ornado
de fontes inúmeras.

Tanto esses versos como os que tratam dos Ciclopes foram inspirados por
alguma divindade e estão muito de acordo com a natureza. Por ser divina a
geração dos poetas, quando eles cantam animados pela inspiração,
não podem deixar de tocar, com a ajuda das Graças e das Musas, em muitas
coisas que terão de acontecer.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Penetremos mais um pouco na fábula que se nos


apresentou; é provável que ela nos aponte algo relacionado com nosso
estudo. Faremos isso mesmo?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Desceram, portanto, conforme dissemos, das altas


montanhas para edificar Ílio na planície, sobre uma colina não muito
elevada, banhada por um sem-número de rios oriundos do Ida.

Clínias — É o que dizem.

O Ateniense — E não precisaremos admitir que tudo isso aconteceu muitos


anos depois do dilúvio?

Clínias — Muitos, não há dúvida.

O Ateniense — Ao que parece, então, aqueles homens haviam perdido de


todo a lembrança do cataclisma a que nos referimos, quando fundaram uma
cidade em ní-vel inferior a tantos rios que correm de lugares altos, pois se
julgavam seguros em colinas de pequeno relevo.

Clínias — Evidentemente, já havia decorrido muito tempo depois daquele


evento.

O Ateniense — Como também sou de parecer que naquela época muitas


cidades se fundaram, à medida que a população aumentava.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Entre essas, as que empreenderam uma expedição contra


Ílio, provavelmente por mar, porque naquele tempo todos se serviam do
mar, sem nenhum medo.
Clínias — Parece.

O Ateniense — Dez anos depois de ali acamparem, os Acaios destruíram


Tróia.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E durante o decênio do cerco de Ílio, na terra de cada um


dos sitiantes ocorreram perturbações sem conta, nascidas das sedições dos
jovens, que não recebiam com bons olhos nem com justiça os guerreiros
de volta para seus lares e cidades de origem, ao que se seguiram mortes,
massacres e exílios. Mas os exilados voltaram e mudaram de nome, com se
fazerem chamar dórios em vez de acaios, por ser Dório quem congregou a
todos eles. Desses fatos, pelo menos, é que vós outros, lacedemônios, partis
para contar e desenvolver vossa história.

Megilo — Sem dúvida.

V — O Ateniense — A esse modo, como guiados por alguma divindade,


viemos cair no ponto de onde nos afastamos no começo, quando tratávamos
de leis e passamos para o estudo da música e dos banquetes. Aliás, foi o
próprio discurso que nos ensejou tal oportunidade, pois nos reconduziu à
fundação de Lacedemônia que, com razão, dizeis assentar-se em leis irmãs
gêmeas das de Creta. Agora, nossa digressão nos propicia as vantagens do
estudo comparativo entre diferentes formas de governo e a criação de
cidades: é que vimos uma primeira, uma segunda e uma terceira cidade
saírem umas das outras, segundo acreditamos, num lapso de tempo infinito.
Agora temos a quarta cidade, ou, se o preferis, o quarto povo, organizado
hoje como o foi na época de sua fundação. Ora, se depois de tudo isso
conseguirmos perceber o que era bom ou mau em seus fundamentos, que
leis mantiveram de pé o que se conservou, ou fizeram perecer o que veio a
desaparecer, e com que modificações ou substituições conseguiriamos
deixar feliz uma cidade, então, Megilo e Clínias, será preciso recomeçar
nosso estudo, por assim dizer, a menos que vos ocorra algum reparo acerca
de tudo o que expusemos até agora.

Megilo — Se alguma divindade, forasteiro, declarasse que um segundo


exame da legislação nos proporcionaria a oportunidade de ouvir discursos
nem inferiores nem mais curtos do que os de agora, dispor-me-ia a
percorrer um caminho ainda mais longo, sem que o dia de hoje me
parecesse curto, conquanto estejamos quase na época em que a divindade se
traslada do estio para o inverno.

O Ateniense — Então, esse estudo precisará ser levado a cabo.

Megilo — Perfeitamente.

O Ateniense — Transportemo-nos, Megilo, em pensamento ao tempo em


que vossos antepassados submeteram ao seu poder a Lacedemônia, Argos,
Messênia e os respectivos territórios. Conforme nos conta a tradição,
depois da conquista eles decidiram dividir o exército em três partes e
colonizar Argos, Messênia e Lacedemônia.

Megilo — Exato.

O Ateniense — Têmenos ficou como rei de Argos; Cresfonte, de Messênia;


e da Lacedemônia, Procles e Eurístenes.

Megilo — Exato.

O Ateniense — E todos os homens válidos daquele tempo juraram prestar-


lhes completa obediência, se alguém intentasse destruir-lhes a realeza.

Megilo — Isso mesmo.

O Ateniense — Mas, por Zeus! a realeza ou qualquer outra forma de


governo já foi em algum tempo destruída a não ser por ela mesma? Não
admitimos isso, quando há pouco viemos bater nessa questão, ou já nos
esquecemos desse ponto?

Megilo — Como o poderíamos?

O Ateniense — Então, demos como bem assentada essa particularidade. Os


eventos em que nos apoiamos agora nos levam à mesma conclusão, como
parece, de forma que nossas pesquisas não se processarão no vazio, porém
com apoio em fatos reais e verdadeiros. O que aconteceu foi o seguinte: três
realezas e três cidades sob a direção de reis juraram reciprocamente, de
acordo com as leis que elas mesmas haviam estabelecido, regular em
comum, de uma parte a autoridade, e, da outra, os comandados; os
primeiros, não abusar do poder com o passar do tempo e o aumento
progressivo de suas famílias; os outros, não tentar destruir a realeza nem
permitir que estranhos a destruíssem, enquanto os reis se mantivessem fiéis
a seus juramentos. Ademais, os reis juraram socorrer os reis e
os respectivos povos, no caso de agressão injusta, e os povos, também,
defender os povos e os reis, em iguais circunstâncias. Não foi isso mesmo?

Megilo — Exato.

O Ateniense — E a maior vantagem que se pode auferir de uma


constituição política, não se encontrará, porventura, na legislação dessas
três cidades, quer tenha sido feita pelos respectivos soberanos, quer por
outras pessoas?

Megilo — Que vantagem?

O Ateniense — A de sempre haver duas cidades para se oporem a uma


terceira, no caso de uma delas violar as leis estabelecidas.

Megilo — Claro.

O Ateniense — E contudo, é condição que a maioria sempre impõe aos


legisladores, redigir leis que o povo e as multidões aceitem de bom grado; é
como se alguém recomendasse aos médicos e aos professores de ginástica
tratar ou curar por meios agradáveis os corpos confiados a seus cuidados
profissionais.

Megilo — Perfeitamente.

O Ateniense — No entanto, muitas vezes ficamos satisfeitos se nos curam o


corpo por processos não muito dolorosos e o reconduzem ao estado normal
de saúde.

Megilo — Sem dúvida.


O Ateniense — Esta outra vantagem apreciável também facilitou o
estabelecimento da legislação para os homens.

Megilo — Qual foi?

VI — O Ateniense — Ao determinarem a igualdade dos bens, os


legisladores não tinham a recear a crítica severa que em muitas cidades lhes
fazem após a instituição das leis, sempre que ocorre a alguém tocar na
propriedade territorial, e abolir as dívidas, por acreditarem que sem essa
medida não poderão alcançar a perfeita igualdade. Sê algum legislador
empreende a menor inovação nesse setor, de todos os lados lhe gritam que
não queira mudar o que é imutável, e amaldiçoam quem promove a divisão
de terras ou a abolição das dívidas, acabando por deixá-lo sem saber para
onde virar-se. No entanto, entre os dórios tudo isso se fez da maneira mais
fácil e sem nenhuma animosidade; a terra foi distribuída na maior
concórdia, tanto mais que as dívidas nem eram antigas nem muito grandes.

Megilo — É verdade.

O Ateniense — Sendo assim, caros amigos, como se explica que houvesse


corrido tão mal entre eles a fundação da cidade e sua legislação?

Megilo — Que tens a objetar-lhes, para falares desse modo?

O Ateniense — É que, das três colônias então fundadas, em duas logo a


forma de governo e as leis degeneraram, só se conservando uma delas,
precisamente a de nossa cidade.

Megilo — Eis uma pergunta nada fácil de responder.

O Ateniense — Mas não podemos desprezá-la, uma vez que nos ocupamos
com essa questão e estudamos leis neste entretenimento condizente com
nossa idade. Será a a maneira mais agradável de vencermos o caminho,
conforme nos propusemos de início.

Megilo — Como não? Teremos de fazer isso mesmo.


O Ateniense — E que mais belas reflexões poderíamos excogitar do que o
estudo das leis que organizaram essas cidades? Haverá cidades maiores ou
mais importantes, cuja fundação nos ofereça tão feliz tema para meditação?

Megilo — Não será fácil mencionar outra.

O Ateniense — É fora de dúvida que os legisladores daquele tempo


confiavam nesses dispositivos para defender o Peloponeso e os demais
helenos, na hipótese de os agredirem os bárbaros, como fizeram pela
mesma época os moradores de Ílio, os quais, por confiarem no poderio dos
assírios, então consolidado por Nino, desencadearam a guerra contra Tróia.
Não fazia figura feia o que se conservava daquele império; e assim como
ainda hoje o Grande Rei nos causa medo, os homens se temiam da
coligação de povos que então se organizou; não lhes perdoavam a segunda
tomada de Tróia, por pertencer ela ao referido império. Com vistas a tudo
isso, foi repartido o exército entre três cidades, sob o comando único dos
reis irmãos, filhos de Héracles, com feliz e melhor organização e,
sobretudo, maior eficiência do que a das tropas enviadas contra Tróia. Para
começar, estavam convencidos de terem nos Heráclidas chefes superiores
aos Pelópidas, e de ultrapassar esse exército, em coragem, ao que fora
lutar contra os troianos. Os de agora eram vencedores; aqueles foram
vencidos por estes, isto é, aqueus vencidos por dorios. Admitiremos que tais
eram as intenções e disposições daqueles homens?

Megilo — Perfeitamente.

O Ateniense — E também não é natural acreditarem que essas disposições


seriam estáveis e durariam muito tempo, por haverem suportado juntos
trabalhos e perigos, e serem governados por uma raça única, a dos dois reis
irmãos, além de haverem sido guiados por muitos adivinhos, notadamente
os oráculos de Apolo Délfico?

Megilo — Como não há de ser natural?

O Ateniense — No entanto, essa grande expectativa se dissipou num ápice,


com exceção da pequena parte a que nos referimos há pouco, vosso próprio
país, que até ao presente não deixou de guerrear os outros dois, quando é
certo que, se tivessem continuado unidos, de acordo com o primitivo plano,
seriam militarmente invencíveis.

Megilo — Sem dúvida.

VII — O Ateniense — Como, então, e por onde se arruinaram? Não valerá


a pena investigar a causa de se haver desfeito uma aliança tão poderosa e
bem organizada?

Megilo — Seria de todo inútil voltar as vistas para outra parte, a fim de
estudar as leis e as instituições políticas que preservaram grandes e florentes
cidades ou que, o contrário disso, as arruinaram de todo, se nos
descurássemos desse ponto.

O Ateniense — Ao que tudo indica, foi sorte acertarmos com o caminho


mais condizente com o nosso estudo.

Megilo — Isso mesmo.

O Ateniense — Mas, não se dará o caso, meu admirável amigo, de


havermos incidido num erro que todos cometem? Sempre que vêem algo
belo, imaginam que poderia ser fonte de maravilhas, se fosse
convenientemente usado. Ora, pode bem dar-se que nosso pensamento
acerca desse mesmo ponto não esteja nem certo nem de acordo com a
natureza, assim como o dos homens em geral, todas as vezes que concluem
dessa maneira.

Megilo — Que entendes por isso, e a propósito de quê diremos que te


ocorreu semelhante reflexão?

O Ateniense — Agora, meu caro, de mim mesmo é que me rio. Voltando a


atenção para o exército a que me referi, afigurou-se-me muito belo e dádiva
feita aos helenos maior de toda exeção, conforme disse, no caso de
ser usado com critério.

Megilo — Então, não havia sentido no que expuseste, e não tínhamos razão
de elogiar-te?
O Ateniense — Quem sabe? O que eu digo, é que todo homem que se
depara com algo muito grande, poderoso e bastante forte, tem logo a
impressão de que, se o seu proprietário soubesse tirar partido de tantas e tais
vantagens, conseguiria realizar um mundo de coisas que o deixariam feliz.

Megilo — E não estaria certo? Que queres dizer com

isso?

O Ateniense — Considera o que tem em mira quem aplica com justeza


semelhante elogio a respeito de qualquer objeto. Para começar, acerca do
assunto de que tratamos agora mesmo, até que ponto teriam alcançado
seu objetivo os generais daquele exército, se o soubessem distribuir
convenientemente na ocasião oportuna? Não é verdade que alcançariam
esse objetivo se o tivessem conservado coeso o tempo todo e se se
mantivessem livres para exercer o poder sobre quem entendessem e realizar
todos os seus desejos e de seus descendentes com relação aos homens em
universal, tanto entre os helenos como entre os bárbaros? Com isso, não
fariam jus aos maiores elogios?

Megilo — Sem dúvida.

O Ateniense — E quem visse uma família distinguida com tantas honrarias


e riquezas, ou vantagens dessa natureza, não usaria a mesma linguagem,
visando particularmente a esse ponto, de que, com isso, seu possuidor
conseguiria realizar todos os seus anseios, ou, pelo menos, a maior parte e
os mais importantes?

Megilo — Parece-me que sim.

O Ateniense — Agora me dize se não é desejo comum dos homens o que se


inclui em nosso argumento e ele expressamente o declara?

Megilo — Qual será?

O Ateniense — O de que tudo se realize de acordo com o arbítrio de nossa


alma, e, se não tudo, o que for compatível com a condição humana.
Megilo — Sem dúvida.

O Ateniense — E, uma vez que só desejamos isso mesmo, agora e sempre,


homens amadurecidos e velhos, não será fatal formularmos incessantemente
esse mesmo voto?

Megilo — Como não?

O Ateniense — Como também desejamos, me parece, para nossa ambição o


que eles pedem em suas orações para si próprios.

Megilo — Exato.

O Ateniense — E um filho, não é caro ao pai, por ser criança, e este,


adulto?

Megilo — Como não?

O Ateniense — Mas, muitos votos do filho, decerto o pai suplicará aos


deuses não atender.

Megilo — Certamente, pensas no fato de ser ele muito jovem e falar sem
reflexão.

O Ateniense — E também quando o pai, por já ser velho, ou o contrário


disso: moço demais, não sabendo discernir o que é belo e justo, formula
votos ardentes num estado de espírito semelhante ao de Teseu com relação a
Hipólito, que veio a morrer tão miseravelmente: acreditas que se o filho
soubesse discernir reforçaria o pedido do pai?

Megilo — Compreendo aonde queres chegar. O que afirmas, segundo


penso, é que não se deve pedir nem insistir para que tudo saia de acordo
com nossa vontade.

mas para que esta siga os ditames da razão; o que as cidades ou qualquer
um de nós deve pedir e esforçar-se para alcançar é sabedoria.

VIII — O Ateniense — Sim, e também que o legislador político deve ter


sempre isso em vista quando assenta seus dispositivos legais, conforme
agora me ocorreu e procuro lembrar-vos, se ainda vos recordais do que
tratamos no começo: vós ambos pretendíeis que o bom legislador deveria
formular suas leis com vistas à guerra, enquanto eu afirmava que isso
equivalia a exigir que ele legislasse levando em consideração apenas uma
das quatro virtudes, quando o certo seria olhar para todas, máxime a
primeira, dirigente das outras, digo, a prudência, a inteligência e a opinião,
com todo o seu séquito de paixões e de desejos. Desse modo, nosso
discurso retornou ao ponto de partida, e eu, que vos falo neste momento,
volto a insistir no que disse antes, em tom de brincadeira, se o quiserdes,
ou com intenção séria: que é perigoso formular votos quem carece de razão,
porque pode acontecer justamente o contrário do que ele desejava que
ocorresse. Se quiserdes admitir que eu falo seriamente, podereis fazê-lo. No
caso de seguirdes na direção indicada por meu argumento recente, estou
certo de que chegareis à conclusão de que a causa da ruína dos reis e de
seus ambiciosos empreendimentos, não é a falta de coragem ou a ignorância
em assuntos militares dos cabos de guerra e de seus comandados; os demais
vícios é que arruinaram a eles todos, mas sobretudo a ignorancia dos mais
importantes negocios humanos. Que as coisas se passaram dessa maneira
naquele tempo, como continuam agora do mesmo modo, e no futuro não
poderá ser de outra forma, é o que vou procurar descobrir, se estiverdes de
acordo no prosseguimento de nosso discurso, e tudo expor-vos como a
amigos certos, na medida de minha capacidade.

Clínias — Nossos elogios, forasteiro, talvez te molestem; por isso, com


mais eloqüência falarão nossos atos. De muito bom grado acompanharemos
tua exposição, o que para o homem livre é a melhor maneira de mostrar
se está ou não de acordo.

Megilo — Muito bem, Clínias; procedamos assim mesmo.

Clínias — E o que faremos, se Deus quiser. Podes começar.

IX — O Ateniense — Percorrendo, pois, o que falta de nossa exposição,


diremos que a grande ignorancia pôs a perder aquela potência, como faz
parte de sua natureza produzir em nossa época os mesmos efeitos. Ora, se
tudo se passar conforme disse, caberá ao legislador inspirar na cidade toda a
sabedoria possível e expulsar, quanto mais, a ignorância.
Clínias — É evidente.

O Ateniense — Que é o que, com toda a justiça, se poderá denominar


ignorância? Vede agora se concordais com o que vou dizer. Para mim é o
seguinte.

Clínias — Como será?

O Ateniense — Quando, por exemplo, uma pessoa considera bela e boa


determinada coisa, porém a odeia em vez de amá-la, e o contrário disso:
ama e acolhe o que tem na conta de mau e injusto: tal desacordo entre a dor
e o prazer, de uma parte, e, da outra, a opinião racional, é o que eu
denomino a mais crassa e a maior ignorância, por ser a que se encontra na
alma das multidões; porque a parte da alma susceptível à dor ou à alegria é
o que na cidade corresponde ao povo e às multidões. Sempre que ela se
opõe ao que por natureza foi feito para mandar, o conhecimento, a opinião
ou o raciocínio, é o que eu denomino ignorância com referência às cidades;
e também quando as multidões não obedecem aos magistrados e às leis, ou,
no caso de algum particular, sempre que permanecem inoperantes os bons
princípios que lhe estão presentes na alma, manifestando-se especialmente
seus contrários: são essas as modalidades de ignorância que eu considero
mais discordantes, tanto nas cidades como nos particulares, não a
ignorância dos artesãos nos seus respectivos misteres, se é que
compreendeis, forasteiros, o que eu quero dizer.

Clínias — Compreendemos, amigo, e nos declaramos de inteiro acordo.

O Ateniense — Valha, portanto, esta fórmula como a expressão justa de


nossa maneira de pensar: que não devemos confiar a menor parcela de
autoridade aos cidadãos atingidos, a esse ponto, de ignorância, e que esta
lhes deve

ser, até, lançada em rosto, em que sejam todos eles raciocinadores


habilidosos e afeitos às sutilezas que adornam o espírito e lhe conferem
vivacidade; enquanto os que revelam disposições contrárias, a esses
denominaremos sábios, ainda mesmo, como se diz, que não saibam ler
nem nadar, e lhes conferiremos, como a entendidos, os cargos da república.
Pois onde não há harmonia, meus caros, como poderá haver prudência, por
mínima que seja? Não é possível. Com todo o direito, pode-se afirmar que a
mais bela e a maior harmonia é a sabedoria mais perfeita, que só ocorre em
quem vive segundo a razão. Quem dela não participa, só arruinará sua
própria casa, e, com relação à cidade, de jeito nenhum se afirmará como seu
salvador, mas precisamente o contrário disso, pelo total desconhecimento de
suas obrigações civis. Assentemos esse ponto, conforme sugerimos há
pouco, como a expressão adequada de nosso pensamento.

Clínias — Isso mesmo.

X — O Ateniense — Decerto, em todas as idades há de haver governantes e


governados.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Resolvido. Mas, nas grandes e nas pequenas cidades, assim


como nas famílias, quais e quantos são os títulos exigidos para exercer o
comando ou ser comandado? Um deles não será o de pai e de mãe? E, de
regra, não se admite em toda a parte que os pais são naturalmente indicados
para dirigir os filhos?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — No rasto desse princípio vem o que manda os nobres


comandar os plebeus, seguindo-se-lhes o terceiro, de que os mais velhos
devem comandar e os moços, obedecer.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — O quarto impõe aos escravos executar e aos senhores


dirigir.

Clínias — Como não?

O Ateniense — O quinto, a meu ver, é que o mais forte domine e o mais


fraco obedeça.

Clínias — Mencionaste uma autoridade inelutável.


O Ateniense — Sim, o poder que se exerce em quase todos os seres vivos
segundo a natureza, como disse há

tempos o tebano Píndaro. Porém tudo indica que o mais importante é o


sexto, que manda o ignorante obedecer e o sábio dirigir e comandar. E esse
comando, sapientíssimo Píndaro, não me atreveria a dizer que seja contrário
à natureza, por ser muito de acordo com ela obedecer voluntariamente à lei
e sem nenhum constrangimento.

Clínias — Tens razão.

O Ateniense — A sétima autoridade, que designamos como cara aos deuses


e à fortuna, façamo-la depender da sorte, com declararmos ser justo exercer
o comando quem ganhar, recolhendo-se à posição de comandados os que
perderem.

Clínias — Nada mais verdadeiro.

O Ateniense — Bem vês, legislador, é o que diríamos em tom de


brincadeira a quem se dispusesse a legislar levianamente: bem vês como
são muitos os títulos para exercer o mando, e todos eles, por natureza,
opostos entre si. Agora mesmo, descobrimos uma fonte de dissensões que te
compete eliminar. Inicialmente, considera conosco em que os reis de Argos
e de Micenas violaram esses princípios, para se perderem e, com eles, o
poderio dos helenos, tão admirável naquele tempo. Não será porque
desconheciam quanto é justo aquilo de Hesíodo, de que muitas vezes a
metade é maior do que o todo? Quando a metade é suficiente e o todo pode
prejudicar, era de opinião que o bastante é mais do que o excedente, por
valer mais do que este.

Clínias — É muito certo.

O Ateniense — E devemos acreditar que semelhante erro, de tão


desastrosas conseqüências, é próprio dos dirigentes ou do povo?

Clínias — É mais provável, por mais frequente, que se trate de uma doença
dos reis, tornados arrogantes pela vida luxuosa que levam.
O Ateniense — E não é sabido que os reis daquele tempo foram os
primeiros a levar essa vida, com se locupletarem à custa das leis então
promulgadas? Puseram-se em contradição com o que haviam prometido e
jurado.

Tal desacordo entre eles mesmos, que há pouquinho dissemos ser a maior
ignorância e tido por eles na conta de sabedoria, foi que tudo arruinou,
como fruto da incúria e da mais antiga rusticidade.

Clínias — Peto menos, assim parece.

O Ateniense — Ora bem! E que precaução deveria ter tomado o legislador


daquele tempo, a fim de evitar que esse mal se manifestasse? Pelos deuses!
não é preciso ser sábio para reconhecer semelhante fato, nem há dificuldade
em enunciá-lo; mas se naquela ocasião tivessem de provê-lo, quem o
fizesse não seria mais sábio do que nós?

Megilo — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Olhando agora, Megilo, para o que se passou convosco,


pode-se ver o que houve e, uma vez conhecido, será fácil dizer o que então
deveria ter sido feito.

Megilo — Sê mais claro.

O Ateniense — Mais claro não é possível.

Megilo — Como assim?

IX — O Ateniense — Se com desprezo da justa medida atribuirmos o maior


ao menor, ou seja vela de mais aos barcos ou alimento aos corpos ou
autoridade à alma, tudo virá abaixo, correndo uns, no seu excesso, para as
doenças, e outros para a injustiça oriunda da insolência. Que queremos
dizer com isso? Talvez o seguinte: não condiz, amigos, com a natureza de
nenhum mortal, se for jovem e não tiver de prestar contas a ninguém,
agüentar o peso da suprema autoridade humana sem que a pior doença
da inteligência, a ignorância, a domine e chame contra o jovem o ódio de
seus amigos mais chegados, do que resulta em pouco tempo arruiná-lo e
dissipar toda sua autoridade. Preservar a reta medida com o conhecimento,
é privilégio só dos grandes legisladores. O que então se passou é fácil
conjeturar. Parece que foi o seguinte.

Megilo — Que será?

O Ateniense — Uma divindade que vos protegia e previa o futuro, fez


nascerem dois reis de uma só estirpe, restringindo, com isso, algum tanto
sua autoridade. De seguida, um homem de natureza mortal dotada de
capacidade divina, vendo que vossa realeza revelava sinais de inflamação,
temperou-a acomodando a autoridade sensata da velhice com a força
presunçosa do nascimento, com conceder ao conselho dos vinte e oito
velhos voto igual ao dos reis nos negócios de importância. Vosso terceiro
salvador, percebendo que o poder continuava pletórico e por demais
inquieto, à guisa de freio lhes impôs a autoridade dos éforos, muito próxima
do poder conferido pela sorte. Graças a esse dispositivo, a realeza entre vós,
constituída dos elementos necessários e mantida nos justos limites, salvou-
se a si mesma e foi causa de que outras se salvassem, ao passo que, segundo
Têmenos ou Cresfonte ou qualquer outro legislador, não teriam salvo nem a
parte de Aristodemo, pois nenhum era de comprovada experiência; a não
ser assim, não teriam acreditado possível moderar com o recurso de
juramentos uma alma jovem revestida de autoridade, que poderia
facilmente descambar para a tirania. Agora, porém, a divindade mostrou
como devia e como deve ser o poder destinado a durar muito. Como já
disse, não é preciso ser sábio para reconhecer tudo isso, depois que se
tornou realidade, pois não há dificuldade alguma em confirmar esses
princípios por meio de um exemplo concreto. Se tivesse, então,
havido alguém capaz de prever o que iria acontecer e de moderar esses
poderes, reduzindo para um só governante a autoridade de três, teria salvo
aqueles belos projetos, sem que jamais o exército persa ou qualquer outro
marchasse contra a Hélade, desprezando-nos como a gente de valor
somenos.

Clínias — Só dizes a verdade.

O Ateniense — Mas o fato, Clínias, é que eles o repeliram por maneira


vergonhosa. Digo vergonhosa, não no sentido de negar que os vencedores
de então não obtiveram grandes vitórias nas batalhas travadas no mar e
em terra. Para mim, o que eles fizeram de vergonhoso, primeiro, foi que das
três cidades apenas uma saiu em socorro da Hélade; as outras duas haviam
baixado a tal grau de corrupção, que uma procurou impedir a ajuda que se
esperava da Lacedemônia, movendo contra esta uma guerra feroz, enquanto
a outra, Argos, que no tempo da divisão ocupava o primeiro lugar,
convidada para repelir o bárbaro, nem deu ouvidos ao apelo nem enviou
tropas de espécie alguma. Muitos outros fatos daquela guerra poderiam ser
citados, nada honrosos para a Hélade. Nem mesmo seria certo dizer que a
Hélade se defendeu. Se a resolução em comum dos atenienses e dos
lacedemônios não houvesse afastado a escravidão iminente, todas as tribos
helenas formariam agora uma confusão inextricável, mistu-ra de bárbaros
com helenos e de helenos com bárbaros, tal como se dá com os povos
sujeitos à tirania dos persas, que, desmembrados ou amontoados
caoticamente, vivem em condições miseráveis. São essas, Clínias e Megilo,
as críticas que poderíamos formular contra os chamados estadistas ou
legisladores daquele tempo e de agora; procurando descobrir as causas,
desejo saber o que fora possível fazer no lugar deles. Por exemplo,
dissemos agora mesmo que o legislador não deve conferir autoridade muito
grande que não seja temperada, por considerar que a cidade deve ser livre,
prudente e amiga de si mesma, que é o que deve ter em mira o legislador
quando redige suas leis. Aliás, não será caso de admiração termos insistido
nos princípios que deve seguir o legislador em sua atividade legiferante, e,
por outro lado, achar que essas proposições não são expressas nos mesmos
termos. O que precisamos considerar é que, ao afirmar que o legislador
precisa olhar para a temperança ou a prudência ou a amizade, não se trata
de propósitos diferentes, porém de um só, sem que nos cause perplexidade a
diferença de expressões nesse domínio.

Clínias — Esforcemo-nos por fazer isso mesmo, com voltar ao nosso


discurso. E agora, a respeito da concórdia, da prudência, e da liberdade,
explica o que ias dizer acerca do que deve ter em mira o legislador.

XII — O Ateniense — Então, escuta. Pode-se afirmar que as constituições


têm duas mães. Não andaria certo quem declarasse que as demais nasceram
dessas duas? Fora justo dar a uma delas o nome de monarquia e à outra o de
democracia, formas essas de governo que atingiram a culminância,
respectivamente, entre os persas e aqui entre nós. Quase todas as outras,
conforme já expliquei, são meras variantes dessas duas. É de necessidade
forçosa que todo governo participe de um desses elementos, se quisermos
que haja liberdade, concórdia e sabedoria, conforme exigem os termos de
nosso discurso, quando declaramos que não poderá haver cidade bem
dirigida sem as vantagens de tais prerrogativas.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Havendo cada uma dessas comunidades exaltado a


liberdade ou a monarquia mais do que fo-

ra razão, nenhuma atingiu o equilíbrio desejado; entre vós outros, na


Lacônia, e em Creta, esse ideal foi mais ou menos alcançado; os atenienses
e os persas, nesse ponto mais felizes no passado, agora deixam muito a
desejar. Convirá enumerar as causas de semelhante fato? Ou não?

Clínias — Sem dúvida, se quisermos levar a bom termo o que nos


propusemos.

O Ateniense — Então, vejamos. Os persas, sob a direção de Ciro, depois de


mantidos num meio termo entre a liberdade e a servidão, a princípio eram
livres, mas logo após dominaram muitos povos. Permitindo os chefes
que os comandados participassem da liberdade, e dando tratamento igual a
todos, tornaram-se os soldados amigos de seus comandantes e dispostos
sempre a enfrentar perigos. E se porventura alguém se mostrava diserto e
capaz de aconselhar em negócios de importância, sem a menor inveja o rei
lhe concedia liberdade de falar e honrava os que davam bons conselhos,
revertendo, com isso, em proveito de todos a capacidade de cada um. A
esse modo, tudo prosperou entre eles, graças à liberdade, à concórdia e
á comunhão de vistas.

Clínias — Parece mesmo que tudo se passou conforme disseste.

O Ateniense — Como se explica, então, que se arruinassem sob Cambises e


se restabelecessem quase de todo com Dario? Não queres aplicar no caso
uma espécie de adivinhação?
Clínias — Pelo menos, com isso levaríamos nossa investigação ao ponto
desejado.

O Ateniense — Então, a respeito de Ciro, que, aliás, foi um excelente


general e grande amigo da cidade, profetizo que de jeito nenhum provou da
verdadeira educação, e que descurou por completo dos assuntos domésticos.

Clínias — Como nos atrevemos a afirmar semelhante coisa?

O Ateniense — Ao que parece, desde menino ele passou a vida a guerrear,


entregando os filhos aos cuidados de mulheres. Essas os criaram de
pequenos como a seres privilegiados desde o nascimento, bem-aventurados
por natureza e que de nada carecessem; e porque os conside-

ravam arquifelizes, não apenas não permitiam que ninguém os contrariasse


em nada, como se obrigavam a elogiar tudo o que fizessem ou falassem. Foi
desse jeito que elas educaram os tais príncipes.

Clínias — Bela educação, não há dúvida.

O Ateniense — Educação feminina, dirigida pelas mulheres do palácio,


enriquecidas de pouco e na ausência de homens, pois estes passavam o
tempo todo em guerras e perigos sem conta.

Megilo — É natural.

O Ateniense — Para eles, o pai conquistava rebanhos de gado e de ovelhas,


gente em quantidade e um mundo de coisas, porém sem perceber que os
herdeiros presuntivos de tudo aquilo não eram educados segundo os
costumes de seus antepassados — os persas são pastores, oriundos de uma
terra áspera — educação rude e bastante idônea para formar pastores
robustos, capazes de viver ao ar livre, de suportar vigílias prolongadas e de
empreender expedições militares, quando necessário. O que ele não viu foi
que a educação deturpada pela pretensa felicidade, a educação dos medos,
era a que as mulheres e os eunucos davam a seus filhos, com o que estes se
tornaram o que já era de esperar de um sistema pedagógico em que os
castigos tinham sido abolidos. Assim, logo que os filhos de Ciro subiram ao
poder, depois de sua morte, desfibrados e licenciosos ao máximo, de início
um deles matou o outro, só de inveja de tê-lo como igual. Pouco depois,
perturbado do juízo por abuso de bebidas e defeitos da educação, perdeu o
império para os medos e para o Eunuco, como todos lhe chamavam, que só
revelava desprezo ante a demência de Cambises.

Clínias — É o que dizem, realmente, parecendo, mesmo, que tudo se


passou dessa maneira.

O Ateniense — Como também contam que o império voltou para os persas


graças a Darío e os sete.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Vejamos isso mesmo, em prosseguimento ao nosso tema.


Dario não descendia de reis nem recebera educação efeminada; ao assumir
o poder como um dos sete, dividiu-o em outras tantas partes, das quais
ainda restam vestígios como de sonho; depois, fez leis com

as quais procurou introduzir uma espécie de igualdade comum a todos e


legalizou o tributo que Ciro havia prometido aos persas, com o que
consolidou a amizade e a união entre eles, ganhando a boa vontade do povo
persa por meio de dinheiro e de presentes. Por isso mesmo, suas tropas,
com dedicação única, conquistaram territórios para seu império em porção
não menor da que Ciro lhe deixara. Depois de Dario, veio Xerxes, que
também fora educado naquele regime efeminado dos reis. Ó Dario! —
com todo o direito poderia alguém falar-lhe em tom de censura — sem
perceberes o erro de Ciro, criaste Xerxes nos mesmos costumes com que
Ciro criou Cambises! Por isso mesmo, Xerxes, como produto de tal
educação, repetiu quase todas as loucuras de Cambises. Essa a razão de
nunca mais ter havido, por assim dizer, nenhum rei persa verdadeiramente
grande, a não ser no título, do que não é culpada a Fortuna, mas a vida
errada que levam, de regra, os filhos dos tiranos ou de pessoas
excessivamente ricas. Com uma educação desse tipo, nunca se distinguiu
pela virtude nenhum jovem nem homem feito nem velho. No meu modo de
pensar, é o que deve considerar tanto o legislador como todos nós, que nos
entregamos a essas reflexões. Porém manda a justiça, lacedemônios,
reconhecer que em matéria de honrarias e educação vossa cidade não faz a
menor distinção entre ricos e pobres, o simples particular e o rei, tirante as
que desde o princípio foram determinadas por vosso divino legislador,
inspirado por Apolo. Realmente, não pode haver distinções especiais em
nenhuma cidade, só porque alguém é ¡mensamente rico, nem, ainda, por ser
bom corredor ou belo ou forte, porém careça de alguma virtude ou, no caso
de ser virtuoso, não se revele temperante.

Megilo — Que queres dizer com isso, forasteiro?

XIII — O Ateniense — A coragem não é uma parte da virtude?

Megilo — Como não?

O Ateniense — Resolve tu mesmo a questão, no caso de te perguntarem se


te agradaria ter como hóspede ou vizinho um tipo corajoso ao extremo
porém nada temperante.

Megilo — Nem é bom falar.

O Ateniense — E isto aqui: um artesão competente no seu ofício, porém


injusto?

Megilo — De jeito nenhum.

O Ateniense — Mas, por natureza, não há justiça sem temperança.

Megilo — Como o poderia?

O Ateniense — Nem ninguém sábio, nos moldes que apresentamos agora


mesmo: aquele em que os prazeres e as dores se harmonizam com o
raciocínio justo e lhe obedecem.

Megilo — Não, sem dúvida.

O Ateniense — Nisso, de distinções nas cidades, consideremos, também,


quais são ou não são justificadas em determinadas circunstâncias.

Megilo — Como assim?


O Ateniense — A temperança, quando ocorre sozinha na alma, sem o
conjunto das outras virtudes, merece, com justiça, ser honrada ou
desprezada?

Megilo — Não sei o que diga.

O Ateniense — Respondeste otimamente; se tivesses dado qualquer


resposta ao que te perguntei, diria que havias falado aereamente.

Megilo — Então, respondi certo.

O Ateniense — Que seja! Esse acessório das qualidades que distinguimos


ou desprezamos nem merece ser lembrado; será melhor calarmo-nos.

Megilo — Quer parecer que te referes à temperança.

O Ateniense — Certo; e entre as outras qualidades,as que com tais


acessórios nos proporcionam maiores vantagens: eis o que precisamos
honrar acima de tudo, e em segundo lugar o que vier depois, e assim
sucessivamente, adequando sempre nossa estima ao grau de utilidade.

Megilo — Isso mesmo.

O Ateniense — Mas, como! Não diremos que é função do legislador fazer


essa distribuição?

Megilo — Sem dúvida.

O Ateniense — Admitirás que deixemos a seu cuidado determinar até às


menores particularidades a categoria de cada ação, e nos reservemos a
incumbência de promover uma divisão tripla, já que também desejamos
legislar, distinguindo o que vem em primeiro, em segundo e em terceiro
lugar?

Megilo — Perfeitamente.

O Ateniense — Declaremos, então, ser absolutamente necessário para a


cidade que ambicione conservar-se e alcançar a felicidade compatível com a
condição humana, distribuir com eqüidade a estima e o desprezo.
Estará certa, se atribuir as primeiras e mais altas honras às qualidades da
alma, sempre que for acompanhada da temperança, conceder o segundo
lugar às qualidades físicas dos belos corpos, e o terceiro ao que
denominamos bens materiais e riqueza. A cidade ou o legislador que se
desviar dessa linha de conduta, concedendo maiores honrarias à riqueza ou
assinalando o primeiro posto a algum bem que só mereça o segundo, nem
faria obra agradável aos deuses nem politicamente interessante.
Admitiremos tudo isso, ou que diremos?

Megilo — Falemos assim mesmo, sem o menor constrangimento.

O Ateniense — Só nos alongamos na consideração desse tópico por amor


ao estudo da constituição dos persas. Ora, verificamos que eles pioraram de
ano para ano, e a causa, me parece, está no fato de, com restringirem
a liberdade do povo e ampliar o despotismo mais do que fora admissível,
destruíram a amizade e a necessária comunhão de vistas que deve reinar
entre os cidadãos. E, uma vez desaparecida essa união, o conselho dos
dirigentes já não olha para os interesses dos governados e do povo,
só visando, à sua própria autoridade. Sempre que imaginam alcançar
alguma vantagem, por mínima que seja, destroem a cidade, arrasam com
fogo nações amigas, odiados e odientos ao mesmo tempo, com suas práticas
desumanas. Mas, quando chega a hora de lutar por eles os povos, não
encontram união nem boa vontade de enfrentar os perigos e as batalhas;
embora donos de miríadas incontáveis de soldados, são absolutamente
inúteis para a guerra, o que os leva a contratar mercenários, como se
tivessem míngua de homens, esperando que a salvação lhes venha desse
recurso. Além disso, caem fatalmente na loucura de proclamar por seus
próprios atos que, em comparação com o ouro e a prata, é simples
palavriado carecente de sentido tudo o que na cidade passa por ser honroso
e belo.

Megilo — Perfeitamente.

XIV — O Ateniense — Chegamos, assim, ao fim da exposição do governo


vicioso dos persas nas presentes circunstâncias, por excesso de servidão e
despotismo.

Megilo — Isso mesmo.


O Ateniense — Depois disso, precisaremos examinar com o mesmo critério
a constituição de Atenas, para mostrar como a liberdade que refoge a
qualquer limitação do poder, fica muito atrás de um governo moderado e
submetido a alguma autoridade. No tempo em que os persas agrediram os
helenos e, por assim dizer, quase todos os moradores da Europa, nós
tínhamos uma constituição antiga, de magistraturas baseadas em quatro
classes criadas pelo censo, e no coração trazíamos o pudor, como soberano
absoluto, que nos predispunha a viver na obediência às leis daquele tempo.
Além do mais, a desproporção descomunal das duas expedições, a marítima
e a terrestre, e o medo que a todos inspiravam, só contribuiu para aumentar
nossa submissão às autoridades e às leis. Tudo isso serviu para consolidar a
amizade entre os cidadãos. Cerca de dez anos antes da batalha naval de
Salamina, chegou Dátis com um exército persa enviado por Dario contra
os atenienses e os eretrienses, com ordem expressa de levá-los como
escravos, sob pena de morte se o não fizesse. Com as miríadas de homens
de que dispunha, em muito pouco tempo tomou Dátis à força bruta toda a
Erétria, tendo feito espalhar entre nós o boato de que nenhum eretriense lhe
escapara. Dando as mãos uns para os outros, pescaram de arrastão toda a
Erétria. Verdadeira ou falsa, semelhante notícia deixou aterrorados os
helenos, a começar pelos atenienses, que distribuíram mensageiros para
todos os lados com pedidos de socorro, sem que ninguém os escutasse,
tirante os lacedemônios; porém esses mesmos, retardados pela guerra que
nessa época mantinham contra Messênia, ou por outro impedimento de
que não temos notícia muito certa, só chegaram no dia seguinte ao da
batalha de Maratona. Logo a seguir, falou-se de grandes preparativos e de
ameaças insistentes por parte do Rei. Decorrido algum tempo, soube-se que
Dario havia falecido e que seu filho, jovem ardoroso, o sucedera no poder,
sem desistir em absoluto daquele empreendimento. Convencidos os
atenienses de que todos aqueles preparativos eram dirigidos contra eles, por
causa do que havia ocorrido em Maratona, quando ouviram falar que o
Atos fora perfurado e uma ponte lançada sobre o Helesponto, e da multidão
sem conta de navios, convenceram-se de que não haveria salvação para
eles, nem por terra nem por mar. Ninguém viria socorrê-los; ainda se
lembravam de que no tempo da primeira invasão e da tomada da
Erétria, nenhum heleno os ajudara nem se atrevera a lutar ao lado deles; o
mesmo, estavam convencidos, iria acontecer agora, pelo menos por terra.
Do lado do mar, não viam possibilidade de salvação, ante a aproximação de
mil barcos, ou mais, ainda, para atacá-los. Só alimentavam uma esperança,
fraca e desesperada, sem dúvida, mas a única. Considerando os
acontecimentos anteriores, verificaram que haviam saído de uma situação
praticamente perdida graças à disposição de lutar, o que, afinal, lhes ensejou
a vitória. Animados por essa esperança, compreenderam que só contavam
com o refúgio deles mesmos e dos deuses. Tudo contribuía para apertar
entre todos os laços da amizade: o medo do perigo iminente e o que as
antigas leis lhes insuflara, por sempre se terem submetido a elas, a que já
demos o nome de pudor em nossos discursos precedentes e que, conforme
dissemos, deverá dirigir como senhor absoluto quem quiser tornar-se
valoroso. É o que transforma o cobarde em cidadão livre e corajoso. Se
naquela ocasião não tivessem tido medo, jamais se teriam defendido
com tanta união de vistas, nem protegido os templos, os túmulos, a pátria e
tudo o que possuíam e lhes era caro, como então o fizeram; todos se teriam
retraído em pequenos grupos, acabando por se dispersarem, cada um
para seu lado.

Megilo — Falaste admiravelmente, forasteiro, por maneira digna de ti e de


tua pátria.

XV — O Ateniense — Isso mesmo, Megilo. Por haveres herdado a


natureza de teus antepassados, é justo que te relate o que ocorreu naquele
tempo. Considerai agora, tu e Clínias, se o que dizemos se relaciona, de
algum modo, com a legislação. Não falo pelo prazer de contar histórias,
mas apenas com vistas ao nosso tema. Vede o seguinte: já que conosco se
repetiu o infortúnio dos persas,

no caso deles, por haverem reduzido o povo à mais negra escravidão, e


entre nós, pelo contrário, por concitarmos as multidões à liberdade extrema,
tudo o que dissemos até agora será de alguma utilidade para o que ainda
falta relatar.

Megilo — Bela observação. Procura, agora, expor com mais clareza o que
pretendes demonstrar-nos.

O Ateniense — Farei isso mesmo. Entre nós, amigos, sob o regime das
antigas leis o povo não era dono de nada, mas, de algum modo, obedecia
voluntariamente às leis.
Megilo — A que leis te referes?

O Ateniense — Para começar, as que naquele tempo se relacionavam com a


música, a fim de acompanharmos desde sua origem o progresso da vida
excessivamente livre. Naquele tempo, a música entre nós era dividida
em gêneros e modos definidos; havia cantos que se chamavam hinos, sob a
forma de preces dirigidas aos deuses; em oposição a esses, tínhamos a
modalidade denominada treno, e mais os peãs e também os chamados
ditirambos, porque celebravam, me parece, o nascimento de Dioniso. Dava-
se precisamente o nome de leis, ou nomos, a uma outra espécie de
ditirambo, com a designação genérica de citarédica. Uma vez fixados todos
esses cantos, não era permitido empregar uma espécie em lugar de outra.
Para decidir em cada caso, importava primeiro conhecê-lo e depois julgá-lo
bem, ao que se seguia o castigo dos desobedientes, que não se manifestava
por meio de assobios ou berreiro das multidões, tal como presentemente se
observa, nem por aplausos louvaminheiros, mas competia a pessoas
de reconhecido saber, que se dispunham a tudo ouvir em silêncio até o fim.
Os meninos, seus governantes e a turba indistinta, as varas se incumbiam de
chamá-los à ordem. Com uma organização desse tipo, os cidadãos se
mostravam propensos a obedecer, sem atrever-se a julgar no meio daquela
barulheira. Com o correr do tempo, assumiram os poetas o papel de juízes
nas transgressões das regras musicais, todos eles, sem dúvida, naturalmente
bem dotados, porém jejunos da justiça e do direito das Musas; tomados do
frenesi bacântico mais do que fora admissível e atolados nos prazeres,
misturaram trenos com hinos,

peãs com ditirambos, imitaram a flauta na cítara e reduziram tudo a tudo,


caluniando inconscientemente a música, por pura ignorância, como, por
exemplo, ao afirmarem que a música carecia de autenticidade e que só
podia ser julgada pelo prazer causado em quem a apreciava, não
importando se se tratava de bom ou de mau prazer. Com composições desse
tipo, a que adaptavam letra adequada, ensinaram às multidões o desprezo da
música e a presunção de se considerarem capazes de emitir juízos nessa
matéria. Como conseqüência disso, os teatros, até então mudos, levantaram
a voz, como se conhecessem o que é belo ou feio em matéria de música,
passando a ocupar o lugar da aristocracia a pior teatrocracia. Se ao menos a
democracia só gerasse nesse setor homens livres, as conseqüências não
seriam tão nefastas; mas, entre nós, da música alastrou-se para o resto o
conceito anárquico de que todos podem julgar de tudo, arrastando em sua
causa a liberdade. Por se considerarem sábios, perderam o medo, gerando
tal certeza o descaramento; pois, levar a audácia ao ponto de não acatar a
opinião dos melhores é a impudência mais nociva, produto de uma
liberdade licenciosa.

Megilo — É muito certo o que dizes.

XVI — O Ateniense — No rastro dessa liberdade vem a que se recusa a


servir aos magistrados,segujndo-se-lhe a que se furta à obediência e aos
conselhos do pai, da mãe e das pessoas de idade; quase na meta final, todo o
esforço se concentra em evitar o jugo da lei, e, uma vez chegado ao termo,
apagam-se os últimos resquícios de respeito aos juramentos, à palavra dada
às divindades em geral. Desse modo, evoca-se e imita-se a natureza
primitiva dos antigos Titãs, com o que retornam àquela vida horrorosa em
que os males se sucedem sem pausa. Mas, afinal, a respeito de quê vem
tudo isso? Quer parecer-me que a todo instante precisamos conter firme nas
rédeas o discurso, para não sermos arrastados por ele, como por um
cavalo sem brida que lhe doesse na boca, e, como diz o provérbio, não
cairmos do burro. Mas, formulemos de novo a pergunta de antes: a que
tende, afinal, nosso discurso?

Megilo — Ótimo.

O Ateniense — O que dissemos visava ao seguinte.

Megilo — Que será?

O Ateniense — Já demonstramos que, ao instituir suas leis, o legislador


deve ter em mira três coisas: a cidade a que ele outorga essas leis deve ser
livre, amiga de si mesma e ponderada. Estarei certo?

Megilo — Perfeitamente.

O Ateniense — Foi isso que nos levou a escolher dois governos, o mais
despótico e o mais livre, e a examinar qual deles possui a melhor
constituição. Avaliando ambos pela justa medida, de um lado o despotismo
e do outro a liberdade, verificamos que os dois gozavam, no começo, de
invejável prosperidade; mas, quando levaram às últimas conseqüências, de
um lado a escravidão e do outro seu contrário, nenhuma dessas formas de
governo se beneficiou com isso.

Megilo — É muito certo o que dizes.

O Ateniense — As mesmas considerações nos levaram a estudar o


estabelecimento fundado pelo exército dórico, a colonização de Dárdano no
sopé da montanha e os primeiros sobreviventes do dilúvio. Na mesma
ordem de idéias, antes desses falamos da música, da embriaguez e de outros
assuntos. Tudo isso tinha como fim descobrir a maneira mais eficiente de
governar uma cidade e o melhor modo de vida para os particulares. Se com
isso fizemos obra útil, que melhor prova, Megilo e Clínias, poderíamos
apresentar a nós mesmos?

Clínias — Parece-me, estrangeiro, que estou em condições de apresentá-la.


Considero muita sorte termos ouvido todas essas explanações. Agora
mesmo, vou tirar proveito disso, pois, conforme o declarei, considero
oportuníssimo meu encontro contigo e com o nosso Megilo. Não vos
ocultarei o que sinto neste momento e que eu interpreto como de bom
augúrio. A maior parte da nação cretense está disposta a fundar uma
colônia, tendo confiado aos cnossenses esse projeto, que a cidade de
Cnosso, por sua vez, transferiu para mim e mais nove companheiros. Ao
mesmo tempo, outorgou-nos a faculdade de escolher dentre nossas leis as
que mais nos agradassem, ou mesmo de outra origem, dado que nos
pareçam melhores, sem levar em conta a procedência estrangeira.
Concedamos, então, a mim e a vós outros esse prazer; com o que
selecionarmos de tudo o que expusemos, construamos só com palavras uma
cidade, como se a levantássemos desde os alicerces. Além de analisarmos o
que procuramos, talvez essa construção teórica seja de alguma vantagem
para nossa futura comunidade.

O Ateniense — Não nos fazes, Clínias, uma declaração de guerra; e se não


for do desagrado de Megilo, podes ficar certo de que te darei todo o
concurso possível para a consecução desse projeto.
Clínias — Ótimo.

Megilo — De minha parte, digo a mesma coisa.

Clínias — Melhor não fora possível. Então, tentemos primeiro a construção


teórica da cidade.

LEIS

Livro IV

I — O Ateniense — Ora bem! Como diremos que ficará a futura cidade?


Não me refiro ao nome que possa receber ou ao que devamos atribuir-lhe
mais tarde. A esse respeito, talvez a própria fundação, ou o local, algum rio
ou fonte, ou mesmo o nome de alguma divindade da redondeza empreste
sua fama ao povoado nascente. Com tal pergunta, o que desejo saber é se
deverá ser uma cidade marítima ou interiorana.

Climas — A cidade, forasteiro, a que acabamos de referir-nos, dista do mar


cerca de oitenta estádios.

O Ateniense — Sim? E a costa próxima? E provida de portos, ou não?

Clinias — Desse lado, hóspede, apresenta excelentes

ancoradouros.

O Ateniense — Que me dizes! E o terreno à volta, produz tudo, ou não se


presta para certas culturas?

Clínias — Muito pouca coisa deixará de produzir.

O Ateniense — E na vizinhança, haverá outras cidades?

Clínias — Nenhuma; por isso mesmo é que vai ser fundada. Com a
emigração dos antigos moradores, há muito ficou reduzida a deserto.

O Ateniense — E quanto a planícies, montanhas e florestas? Em que


proporção se beneficia de tudo isso?
Clínias — Mais ou menos como no resto de Creta.

O Ateniense Queres dizer que é mais montanhosa do que plana.

Clínas — Perfeitamente.

O Ateniense — Então, não parece caso perdido, no que tange à aquisição da


virtude. Se fosse à beira-mar e provida de um bom porto, e em vez de fértil,
carecesse de quase tudo: em tais condições, precisaria de um salvador e de
legisladores inspirados pela divindade, para não vir a adquirir hábitos tão
requintados quanto prejudiciais. De algum modo, esses oitenta estádios
servem de consolo. Todavia, ainda é mais litorânea do
necessário, principalmente por ser provida de bons portos,
conforme declaraste. De qualquer forma, resignemo-nos com esse

fato. A proximidade do mar deixa algum tanto salobre e e dura a vida


cotidiana de qualquer país; invadida pelo comércio em grosso e a retalho,
gera nos espíritos costumes instáveis e prenhes de malícia, e não apenas
priva a cidade de amigos e da confiança em si própria, como prejudica os
homens em suas relações recíprocas. Em compensação, conhece a fartura;
porém, como é de solo rochoso, não poderá produzir tudo com abundância.
Se reunisse essas duas vantagens, com a exportação crescente se abarrotaria
de ouro e prata, a maior calamidade, podemos dizer, no final de contas, a
que fica sujeita uma cidade que tem em mira a aquisição de hábitos de
justiça e nobreza, conforme já observamos, se ainda estais lembrados.

Climas — Não somente nos lembramos, como insistimos em que então e


agora só falamos a verdade.

O Ateniense — Porém esclarece-me o seguinte: como diremos que seja


nossa região, na questão de madeiras para construções navais?

Climas — Não produz abetos nem pinheiros dignos de referência; ciprestes


há poucos; plátanos e pinho selvagem ainda podem ser encontrados, desses
que os construtores de navios necessitam para as peças internas.

O Ateniense - Não se pode dizer que seja um mal essa característica da


região.
Clínias — Por quê?

O Ateniense — É vantagem para as cidades não poderem imitar facilmente


o que os inimigos têm de ruim.

Clínias — Do que ficou disto atrás, que tens em vista, para falares desse
modo?

II — O Ateniense — 0 meu excelente amigo! Acompanha-me e não percas


de vista o que acabamos de expor, acerca das leis de Creta, que tinham
como fim apenas a guerra, conforme vós ambos afirmastes. De meu
lado, observei que tais princípios eram bons, sempre que visavam
particularmente à virtude;. porém fiz minhas restrições, por só levarem em
conta uma parte da virtude, não toda ela. Agora, segui de perto minha
exposição e observai atentamente se no meu projeto se encontra alguma lei
que não tenda para toda a virtude ou que só se ocupe com uma de suas
partes. Em princípio, só aceito como bem estabelecida a lei que, à maneira
do hábil arqueiro, em qualquer circunstância visa apenas um objeto, que é
sempre acompanhado do belo imperecível e deixa tudo o mais de lado,
riquezas e quanto houver do mesmo gênero, uma vez que não consistam no
que foi há pouco mencionado. Quanto à imitação dos inimigos, a que dei o
qualificativo de nociva, só estão sujeitos os que moram à beira-mar e são
molestados por eles, como, por exemplo — o que digo sem a menor
intenção de ofensa — quando Minos obrigou no passado os habitantes da
Ática a lhe pagarem tributo oneroso, visto dominar ele o mar enquanto os
outros não possuíam frota de guerra, como agora, nem dispunha a terra de
madeiras próprias para construções navais, o que tornava difícil transformá-
la numa potência marítima. Destarte, não estavam em condições de imitar
os inimigos, para virar marinheiros e frustrar-lhes as investidas. Por muitas
e muitas vezes, ainda tiveram de suportar a perda de uma setena de filhos,
antes de passarem de hoplitas afeitos aos recontros de pé firme e
combatentes no mar, e a se habituarem a descer com freqüência em terra
estranha e a voltar de passo estugado para seus barcos, convencidos de que
nada havia de vergonhoso não perder a vida na defesa de seu posto quando
os inimigos atacavam, e sempre com igual desculpa preparada, para o caso
de perderem as armas nessas retiradas, o que, segundo afirmavam, não era
vexatório. São essas as expressões preferidas dos marinheiros, mas, em
lugar de um milhão de elogios, só merecem censura, por não ficar bem aos
cidadãos adquirir maus hábitos, máxime em se tratando de seus melhores
elementos. Aliás, no próprio Homero podemos certificar-nos de que não é
louvável semelhante prática, na passagem em que Odisseu censura
Agamêmnone por haver dado ordem aos acaios, quando mais premidos se
achavam com o avanço dos troianos, a arrastar os barcos para o
mar. Rebela-se contra ele e lhe fala:

Ora que a dura peleja ainda se acha indecisa,

aconselhas a que arrastemos as naus para o mar!

Isso mesmo os troianos

desejariam nesta hora em que força tamanha

demonstram.

Mas para nós será a ruína, que os homens aqui vos, é certo, desistirão do
combate, se as naus para as ondas

puxarmos;

sim, procurando recuar, mostrar-se-ão descuidados e imbeles.

É por demais pernicioso esse plano, pastor de

guerreiros

Como se vê, ele também não ignorava que é desvantajoso para hoplitas
empenhados em combate nas praias ter perto suas trirremes. A esse modo,
até os leões se habituariam a fugir dos cervos. Além do mais, as
cidades marítimas atribuem sua salvação a essas forças navais, que não
constituem, absolutamente, o melhor elemento da defesa. Pois não é
possível distribuir com justiça as honras da vitória entre pilotos,
comandantes de barcos, remadores e esse mundo de gente pouco
recomendável e da mais variada espécie. E sem isso, como poderá ser
bem dirigida qualquer comunidade?
Clínias — É quase impossível. No entanto, forasteiro, o que nós, cretenses,
dizemos, é que a batalha naval de Salamina, dos helenos contra os bárbaros,
foi que salvou a Hélade.

O Ateniense — Sim, é o que proclama a maioria dos helenos e dos


bárbaros. Porém o que eu digo, amigo, e tu Megilo, é que das batalhas
terrestres, de Maratona e de Platéia, uma foi o início da salvação dos
helenos, e a outra a consumou, e que ambas deixaram os helenos
mais valorosos, enquanto as outras não os beneficiaram nesse ponto; pelo
contrário, se me for permitido referir-me assim às batalhas que naquele
tempo nos salvaram. Além da batalha de Salamina, dou-te de crescença a de
Artemísio, que também foi travada no mar. Porém agora é com vistas à
virtude cívica que examinamos a natureza do terreno e a instituição das leis,
convencidos de que o que mais importa para os homens não é a existência
ou o simples fato de conservarem a vida, como pensa a maioria, porém
tornaram-se tão bons quanto possível, e assim permanecerem enquanto
viverem. Penso que já tratamos desse ponto.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Limitemo-nos, agora, em saber se seguiremos o mesmo


caminho, que é, sem dúvida,o melhor, quando se trata de fundar uma cidade
e de instituir suas leis.

Clínias — Muito melhor, realmente.

III — O Ateniense — Então, dize-me o que vem a seguir: de que espécie de


gente consistirá a colônia? Virá quem quiser de todo o território cretense, no
caso de haver em suas cidades excesso de população que o solo não possa
alimentar? Sim, porque não ireis acolher todos os helenos que se
dispuserem a vir, conquanto verifique que foram recebidos como colonos
em vossas terras muita gente de Argos, de Messena e de outras regiões da
Hélade, Respondei ao seguinte: de que elementos virá a formar-se o
acampamento da nova colônia?

Clínias — Naturalmente, será recrutado em toda a Creta, sendo que dos


outros helenos, a meu parecer, os mais bem vindos serão os do Peloponeso.
Sim, tens razão no que disseste há pouco: entre nós há muitos argivos, e os
que formam atualmente a população de maior prestígio, gente de Gortina; é
uma colônia provinda da conhecida Gortina do Peloponeso.

O Ateniense — A colonização não oferece iguais facilidades para as


cidades de origem, quando feita à maneira de migração de enxames, uma
raça única de uma só região, amigos que se separam de amigos, forçados
pela carência de terras ou aperturas semelhantes. Por vezes, dissensões
intestinas obrigam uma parte da população a estabelecer-se alhures; há
casos, até, de cidades inteiras mudarem-se depois de serem derrotadas por
algum inimigo superior em forças. Noutros, essas condições deixam mais
fácil a tarefa de fundar a colônia e instituir suas leis; nalguns é mais difícil.
O fato de pertencer à mesma raça, falar a mesma língua e ter as mesmas leis
gera certa concórdia, por participarem todos do mesmo culto e de
cerimônias parecidas, ao passo que é muito mais difícil aceitar leis e formas
de governo diferentes das do país de origem. Acontece, também, que os
legisladores e as vítimas da maldade das leis, que, pela força do
hábito, desejam conservar os costumes que antes foram causa de se
perderem, de maravilha se deixarão convencer pelos legislatores e
fundadores da colônia, com o que dificultam sobremodo sua tarefa. E o
inverso, também: uma população heterogênea que converge para um
determinado ponto, é mais inclinada a obedecer a leis novas; mas deixá-los
acordes tal qual uma parelha de cavalos, como diz o provérbio, que
respiram ao mesmo tempo, eis o que é demorado e assaz penoso. Porém o
certo é que a legislação e a fundação de cidades é o meio mais eficaz para
criar homens virtuosos.

Clínias — É possível. Mas, que tens em vista com tais explicações? Sê mais
claro.

IV — O Ateniense — Querido amigo, voltando ao legislador, para submetê-


lo a exame, parece que desejo diminuí-lo; mas, se for oportuno o que disser,
não haverá inconveniente. E afinal: por que tantos escrúpulos? O que é
humano é assim mesmo.

Clínias — A que te referes?

O Ateniense — Estava no ponto de dizer que nunca homem fez leis; sempre
o acaso e os mais disparatados acontecimentos que chovem em cima de nós
é que decidem de todas as leis. Ora é uma guerra que derruba as instituições
e modifica as leis; ora a penúria da indigência absorvente. Muitas vezes,
doenças impõem inovações, como, por exemplo, no caso de epidemias ou
quando em anos consecutivos as estações são ingratas. Quando se leva tudo
isso em consideração, a gente é inclinada a falar como se dá comigo neste
momento, que nunca mortal algum elaborou leis e que todos os negócios
humanos dependem essencialmente da fortuna. Quem afirma semelhante
proposição com referência à arte da navegação, da pilotagem, da medicina e
da guerra, parece que só diz a verdade. No entanto, falará também com
muito acerto quem dessas mesmas artes afirmar o seguinte.

Clínias - Que será?

O Ateniense — Deus é que tudo dirige, e, com Deus, a fortuna e a ocasião


governam os negócios humanos em universal. Todavia, convirá abrandar
algum tanto a aspereza da proposição, com admitir que ao lado desses dois
elementos há lugar para um terceiro: a arte. O que afirmo é que por ocasião
de uma tempestade é de muito mais proveito recorrer à arte do piloto do que
deixar de fazê-lo. Ou como será?

Clínias — Assim mesmo.

O Ateniense — Com igual razão, o mesmo acontecerá em tudo o mais, o


que teremos também de admitir em matéria de legislação. Se, porventura,
um determinado país reunir as condições necessárias para que os cidadãos
venham a ser felizes, é imprescindível cair do céu, para essa cidade, o
legislador participante da verdade.

Clínias — Tens toda a razão.

O Ateniense — Assim, na hipótese de se verificarem as condições


indicadas, que poderá desejar de direito quem possuir essa arte, além de
conceder-lhe a sorte a oportunidade de empregar o seu talento?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E se convidássemos todos os que nomeamos atrás a


formular seus votos, eles os formulariam, não é verdade?
Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — A mesma coisa, quero crer, o legislador.

Clínias — É também o que eu penso.

O Ateniense — Dize-nos cá, legislador, poderíamos interpelá-lo. que


deveremos dar-te e em que condições precisará estar a cidade, para que
daqui em diante a organizes a primor? Depois disso, como conviria
responder? Falaremos no lugar do legislador, ou como te parece?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Da seguinte maneira. Dai-me uma cidade, nos diria,


governada por um tirano, mas que seja jovem e naturalmente dotado de boa
memória, facilidade de aprender, coragem e magnanimidade, e que aquilo
a que nos referimos há pouco como devendo acompanhar as partes da
virtude se encontre também presente em sua alma, para que tudo o mais
possa ser de utilidade.

Clínias — Megilo, quer parecer-me que o forasteiro insinua que a


temperança deve ser incluída nesse conjunto. Estarei certo?

O Ateniense - A temperança vulgar, Clínias, não a que seria mencionada em


estilo pomposo, com afirmar que ser temperante implica necessariamente
ser sábio; a

temperança que desde o nascimento se manifesta nas crianças e nos


animais, deixando que uns sejam desregrados no uso dos prazeres e outros
moderados, a respeito do que dissemos nada valer quando separada de tudo
o que denominamos bens. Decerto apanhaste o que quero dizer.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Por natureza, nosso tirano deve possuir essa qualidade,


além de todas mais, se a cidade tiver de alcançar desde logo, e da melhor
maneira possível, a constituição que lhe permitirá viver sempre nas mais
felizes circunstâncias. Não há nem pode haver melhor nem mais rápida
organização para nenhuma cidade.

Clínias — Mas de que modo, forasteiro, e com que argumento poderá


alguém chegar à convicção de que falando dessa maneira estará certo?

O Ateniense — É muito fácil, Clínias, perceber que as coisas, realmente, se


passam dessa maneira.

Clínias — Que me dizes? Quando o tirano for moço, temperante e tiver boa
memória, facilidade de aprender, coragem e magnanimidade?

O Ateniense — Acrescenta a isso felicidade, se não em tudo, no fato de


haver em seu tempo um legislador digno de encômios, e que um feliz acaso
os aproxime. Resolvido esse ponto, a divindade terá feito quase tudo o que
costuma, quando resolve deixar qualquer cidade particularmente próspera.
A segunda conjuntura melhor, seria haver dois dirigentes nessas condições;
em terceiro lugar e na mesma proporção, a dificuldade será tanto
maior quanto mais numerosos forem os chefes, e o inverso: menor se forem
poucos.

Clínias — Ao que parece, derivas da tirania a melhor cidade, sempre que se


encontram um legislador excelente e um tirano sensato, que é como se
opera mais rápido e facilmente a passagem de um estado para outro; em
segundo lugar, virá a oligarquia — não foi assim que te exprimiste? — e em
terceiro, a democracia.

O Ateniense — Em absoluto! O primeiro posto cabe à tirania; o segundo,


ao governo monárquico, e o terceiro, a certa forma de democracia. O quarto
lugar caberia à oligarquia, a forma de governo menos aparelhada para
semelhante transformação; é a forma que contém maior núme-ro de
mandantes. O que afirmamos, é que tal mudança se verifica quando surge
naturalmente um legislador de verdade, que dispõe de um poder especial e o
exerce de parceria com os elementos de mais influência na
sociedade; sempre que estes, forem de número reduzido, porém
potentíssimos, como na tirania, é quando a passagem se opera mais
depressa e facilmente.
Clínias — De que jeito? Não compreendemos.

O Ateniense — No entanto, já vos falei nisso, quero crer, não uma vez,
apenas, porém muitas. Decerto nunca vistes uma cidade governada por
tirano.

Clínias — É espetáculo que não me atrai.

O Ateniense — Mas agora vais comprovar em tua cidade o que acabei de


expor.

Clínias — Que foi?

O Ateniense — O tirano que deseje modificar os costumes de qualquer


cidade, não precisa de grande trabalho nem de tempo longo demais; terá de
ser o primeiro a ingressar no caminho que ele deseja ver trilhado pelos
cidadãos, ou seja o da prática da virtude ou o seu contrário; em tudo terá de
dar-lhes o exemplo com seu comportatamento, distribuindo elogios e
honrarias, censurando certas ações ou castigando os rebeldes em cada caso
particular.

Clínias — E como acreditar que os outros cidadãos seguem no rastro de


quem enfeixa nas mãos o poder e a força persuasiva?

O Ateniense — Ninguém tente convencer-nos, amigos, que há um caminho


mais fácil e curto para mudar as leis de alguma cidade do que o exemplo
dos poderosos, nem que tal mudança se opere em nosso tempo, ou que no
futuro venha a realizar-se de maneira diferente. Para

nós, isso nem é impossível nem difícil de acontecer. O que é difícil e


raramente ocorre no longo decurso do tempo mas é causa de infinitos bens
sempre que se verifica, ou melhor, da totalidade dos bens de uma cidade, é
o seguinte.

Clínias — A que te referes?

O Ateniense — E quando o amor divino de praticar ações justas e


ponderadas nasce nalgum chefe poderoso de um governo monárquico ou
que se distingue pela riqueza ou nascimento, ou quando alguém se
apresenta como encarnação de um segundo Nestor, do qual contavam que
se avantajava a todos os homens pela força da palavra, e mais, ainda, se
distinguia pela temperança. Isso aconteceu na guerra de Tróia, conforme
dizem, não no nosso tempo. Se já houve ou haverá alguém nessas
condições, ou se porventura vive em nosso meio, é uma criatura feliz, como
são felizes os que tiverem a dita de ouvir os discursos saídos de sua boca
judiciosa. A mesma coisa se poderá dizer de todo poder. Quando numa só
pessoa a prudência e a temperança se casam com a autoridade, então nasce
a melhor forma de governo com as leis correspodentes; noutras condições,
tal ocorrência nunca se dará. Fique tudo isso exposto à maneira de oráculo
divino ou à guisa de fábula de antiga tradição, para demonstrar que, se, por
um lado, a qualquer cidade é difícil alcançar boas leis, por outro, uma vez
realizado o que dissemos, seria o que há de mais fácil e rápido de conseguir.

Clínias — De que jeito?

O Ateniense — À maneira de crianças velhas, tentemos acomodar à tua


cidade as leis, valendo-nos de nossos discursos.

Clínias — Mãos à obra, sem detença.

V — O Ateniense — Invoquemos o deus para a fundação desta cidade.


Possa ele ouvir-nos e, depois de ouvir-nos, acorrer propício e benigno para
ajudar-nos a organizar a cidade e suas leis.

Clínias — Que venha, então.

O Ateniense — Mas, com que forma de governo tencionamos dotar nossa


cidade?

Clínias — Que queres dizer com isso? Sê mais claro. Será democracia,
oiigarquia, aristocracia ou monarquia? Não tens em mente a tirania, ao que
supomos.

O Ateniense — Muito bem. Qual de vós, então, quer ser o primeiro a


informa-se de que natureza é a constituição política de seu país de origem?
Megilo — Não me caberá, como mais velho, responder em primeiro lugar?

Clínias — Sem dúvida.

Megilo — Sempre, forasteiro, que me ponho a refletir na constituição da


Lacedemônia, não sei. dizer-te como deva classificá-la. Afigura-se-me
muito parecida com a tirania; a autoridade que atribuíram aos éforos é por
demais tirânica, conquanto às vezes me pareça que de todas as cidades ela é
a mais democrática. Porém afirmar, por outro lado, que não seja
aristocracia, é o que me parece assaz estranho. Mas, entre nós a realeza é
vitalícia, o governo mais antigo, na opinião dos homens em geral e de nós
mesmos. Quanto a mim, conforme declarei, apanhado de surpreza com essa
pergunta, não saberei dizer qual seja, realmente, sua forma de governo.

Clínias — Comigo se passa a mesma coisa, Megilo; sinto dificuldade para


determinar com segurança qual desses regimes, ao certo, é o de Cnosso.

O Ateniense — Isso prova, amigos, que participas do verdadeiro regime;


todos os que acabamos de enumerar não são formas de governo,
propriamente ditas, porém simples instalação de cidades em que uma parte
é dominadora e outra é escrava, recebendo cada forma de governo o nome
da força dominante. Porém se se tiver de distinguir cada constituição de
acordo com esse critério, conviria atribuir-lhe o nome da divindade que
reina, de fato, nas pessoas ajuizadas.

Clínias — Que divindade?

O Ateniense — Será preciso recorrer algum tanto ao mito, já que nos


importa dar resposta satisfatória a essa questão.

Clínias — Por que não?

VI — O Ateniense — Então, comecemos. Dizem que muito antes das


cidades a cuja formação nos referimos, no tempo de Crono, houve um
reinado e uma forma de governo eminentemente feliz, não passando
de simples imitação os melhores governos de nossos dias.

Clínias — Afigura-se-me oportuno ouvir algo a esse respeito.


O Ateniense — É também o que eu penso. Por isso mesmo, sugeri o estudo
desse tema.

Clínias — Fizeste muito bem; como também andarás certo se expuseres o


mito em toda a sua amplitude, no caso, bem entendido, de fazer isso ao
nosso intento.

O Ateniense — Forçoso é obedecer-te. Chegou até nós antiga tradição de


como eram felizes os homens de antanho; viviam na abundância e sem
despender esforço.

Contam que a causa disso era o seguinte: Sabendo Crono, conforme já


explicamos, que a natureza do homem não se compadece com a direção
perfeita dos negócios humanos, sem vir a inflar-se de arrogância e injustiça,
imaginou colocar como reis e dirigentes das cidades, não homens, porém
seres de uma raça superior e divina, demônios, em suma, tal como
atualmente fazemos com os rebanhos de ovelhas e outros animais gregários.
De fato, não pomos bois à testa de bois, nem cabras como dirigentes de
cabras; nós somos os que dirigimos, por pertencermos a uma raça superior.
Assim fez a divindade, em seu amor aos homens, determinando que nos
dirigisse uma raça superior a nós, demônios, os quais, com facilidade
para eles e major ainda para nós, assumimos a direção de tudo, concedendo-
nos paz, pudor, boas leis e o sentido da justiça, o que deixou a raça humana
livre de dissensões internas e sumamente feliz. Afirma, ainda, nosso
conto, com o que não se afasta da verdade, que a cidade não governada por
um deus, mas por homens, não consegue livrar-se dos trabalhos e das
desgraças, e que devemos procurar imitar por todos os meios a vida tal
como se diz ter sido no tempo de Crono, e a obedecer ao que em nós houver
de imortal, tanto nas relações públicas como na vida privada, na
administração de nossas casas e da cidade, e dando o nome de lei ao que a
razão determinar. Mas, se um indivíduo ou qualquer governo,
oligárquico ou democrático, tiver a alma propensa para os
prazeres, consumida de desejos e ávida de satisfazê-los; se estiver sofrendo
de algum mal sem cura e insaciável: alguém nessas condições, quando
chegar a dirigir a cidade espezinhará as leis e — torno a insistir nesse ponto
— não oferecerá nenhuma esperança de salvação. O que ora nos
cumpre fazer, Clínias, é decidir se devemos acompanhar nossa fábula ou se
convém tomar outro caminho?

Clínias — Precisamos acompanhá-la.

O Ateniense - considera agora que, segundo a opinião de muita gente, há


tantas modalidades de leis quantas formas de governo. Ora, já tratamos do
conceito geral em que são tidas as formas de governo. Não penses
que nossa discussão careça de importância. Muito pelo contrário; foi ela
que nos levou a considerar mais de perto o problema do justo e do injusto.
Porque as leis, é o que dizem, não devem ter em vista nem a guerra nem a
virtude em seu conjunto, mas apenas o interesse do governo estabelecido,
seja ele qual for, para manter inabalável sua autoridade, sem que venha a
dissolver-se, parecendo-lhes que a mais natural definição do justo venha a
ser esta.

Clínias — Qual será?

O Ateniense — O interesse do mais forte.

Clínias — Sê mais claro.

O Ateniense — É o seguinte: sempre que está no governo quem faz as leis


de alguma cidade, conforme dizem. Será assim mesmo?

Climas — Sem dúvida.

O Ateniense — Mas acreditas realmente, continuam, que, uma vez


alcançada a vitória, o povo ou o tirano ou o governo que for, ao instituir
suas leis tenha voluntariamente em mira outro fim que não seja seu próprio
interesse na perpetuidade do poder?

Clínias — Nem poderá ser de outra maneira.

O Ateniense — E no caso de alguém violar as leis, depois de estabelecidas,


não será punido como criminoso pelo legislador, que as classificará como
justas?

Clínias — Com toda a probabilidade.


O Ateniense — Logo, é sempre assim a justiça, sendo desse modo que
devemos compreendê-la.

Clínias — Pelo menos, é o que diz nosso argumento.

O Ateniense — E um dos princípios em que se funda o direito de mandar.

Clínias — Que princípios são esses?

O Ateniense — Refiro-me ao que estudamos há pouco, para saber quem


devia comandar e quem obedecer. Revelou-se-nos que os pais devem
mandar nos filhos, os mais velhos nos moços e os nobres na plebe. Se ainda
estais lembrados, havia ainda outros princípios, muitos dos quais se
contradiziam. O nosso era um deles, e, segundo então declaramos, Píndaro
considerava justo e conforme a natureza — para citar suas próprias palavras
— o domínio por meio da violência.

Clínias — De fato, tudo isso já ficou explicado.

O Ateniense — Considera, então, a qual dos partidos devemos entregar a


cidade. Em algumas isso já aconteceu um milhão de vezes.

será oferecer sacrifícios aos deuses e entrar sempre em relação com eles,
por meio de preces e oferendas e todo o conjunto do culto divino; para o
mau, naturalmente, será o contrário de tudo isso. Impura é a alma do
homem mau, e pura a do seu contrário. Nem à divindade nem ao homem
bom é permitido aceitar dádivas das mãos de de quem estiver maculado.
Inutilmente, pois, se afanam os maus para conquistar as boas graças da
divindade, enquanto o esforço dos bons nesse sentido será sempre oportuno.
Eis a meta que devemos ter em mira. Porém de que dardos deveremos
lançar mão e qual a direção a imprimir-lhes? O que me parece é que, depois
de venerar os Olímpios e as divindades protetoras da cidade,
devemos reservar aos deuses catactônios, como é de justiça, as vítimas de
segunda ordem, em número ímpar, e as partes das vítimas que estiverem à
esquerda, imolando aos deuses do alto vítimas em número par, com as
qualidades e partes opostas às que acabamos de enumerar. Depois desses
deuses, o homem dotado de senso cultuará os demônios e, a seguir, os
heróis. De seguida, virão os altares particulares dos deuses da família, cujo
culto é regulado por lei. Seguem-se as honras devidas aos pais vivos, por
ser justo pagar a primeira, a maior e a mais respeitável das dívidas
e também admitir que tudo quanto adquirimos e possuímos pertence aos
que nos geraram e educaram; donde se segue que devemos por tudo ao
serviço deles, com a maior dedicação possível, a começar pelos bens
materiais, depois os do corpo e em terceiro lugar os da alma, à guisa de
restituição do que nos emprestaram no passado, sob a forma de cuidados e
sofrimentos suportados em nossa infância, o de que na velhice mais do que
tudo necessitam. Durante a vida inteira será preciso usar no trato com
os pais as expressões mais respeitosas, porque as palavras leves e aladas são
sempre punidas com castigos pesados. Como guardião das expressões desse
tipo foi posta Nêmese, mensageira da justiça. Por isso, devemos ceder
quando eles se encolerizam e satisfazê-los em tudo, ou se manifestem por
atos ou por palavras, e bem assim levar em conta que os pais ficam
particularmente irritados sempre que se julgam ofendidos pelos filhos. Ao
morrerem os pais, a mais bela sepultura será a mais simples: não deve
ultrapas-

sar as dimensões das construções habituais nem ficar inferiores às que


nossos antepassados levantaram para seus genitores . Além disso, todos os
anos será preciso realizar as cerimônias referentes aos que atingem o
término da existência. A melhor maneira de honrá-los é conservar sempre
viva sua memória, consagrando aos mortos parte módica do que a sorte nos
concede. Agindo desse modo e vivendo de acordo com tais princípios, cada
um de nós receberá sempre dos deuses e dos seres que nos são superiores
aquilo que merecemos, além de passarmos a maior parte da existência em
doces esperanças. Quanto aos nossos deveres, com referência aos
descendentes, amigos e concidadãos, as relações de hospitaldade
determinadas pelos deuses e as obrigações sociais a que precisamos atender
no convívio geral, segundo as prescrições legais, a fim de purificar a
embelezar a vida, compete à lei determinar por miúdo, ora por meio da
persuasão, ora obrigando, com recurso da violência ou da justiça, os que se
mostrarem refratários a argumentos, para, assim com o favor dos deuses,
deixar a cidade próspera e bem-aventurada. Quanto aos demais tópicos de
que precisará tratar o legislador acorde com minha maneira de pensar, mas
que não devem ser redigidos sob a forma de lei, parece-me
aconselhável que ele trace um plano geral, tanto para seu uso próprio como
para as pessoas para quem ele legisla, e só depois de tudo haver explicado
decida-se a redigiras leis, dentro de suas possibilidades. E qual será a forma
mais indicada para alcançar esse desiderato? Não é muito fácil concentrar
tudo isso num esquema único; contudo, fixemo-nos num determinado
modelo, como base segura para nosso trabalho.

Clínias — Explica como será.

O Ateniense — Desejaria que os cidadãos fossem muito dóceis no


aprendizado da virtude, sendo que o legislador deverá esforçar-se por
alcançar esse resultado em todo o decurso de sua faina legiferante.

Clínias — Sem dúvida.

IX — O Ateniense — Quer parecer-me que as presentes considerações


poderão ser úteis, no sentido do bom aproveitamento de tais conselhos, se o
legislador não tiver de haver-se com alguma alma rústica, para deixá-la
mais

dócil e receptiva; e ainda mesmo que não seja grande a boa vontade de
quem ouve, se revelar boa disposição de ânimo e alguma receptividade pare
tais ensinamentos, poderá dar-se por satisfeito. Pois nem são fáceis de
encontrar nem muito numerosos os que se dispõem a ficar melhores no
menor tempo possível, sendo que a maioria aprova a sabedoria de Hesíodo,
naquilo de ser plano o caminho da maldade, que o homem percorre sem
suar, e eminentemente curto, ao passo que no da virtude, conforme declara,

os imortais colocaram o suor.

Longa e escarpada é a picada que pode levar à virtude, e, no começo, muito


áspero. O cimo, porém, alcançado, fácil se torna, por mais que antes fosse
bastante penoso.

Clínias — Tudo isso parece muito certo.

O Ateniense — Sem dúvida. Porém desejo submeter a vossa apreciação a


impressão geral que me deixou o precedente discurso.
Clínias — Podes falar.

O Ateniense — Iniciemos o diálogo com o legislador nos seguintes termos:


Escuta aqui, legislador. Se soubesses o que precisamos fazer ou falar, não é
evidente que no-lo dirias?

Clínias — Necessariamente.

O Ateniense — Mas, há pouquinho mesmo, não te ouvimos dizer que o


legislador não deve deixar os poetas fazer o que bem entendam? Pois todos
eles ignoram quanto podem prejudicar a cidade as proposições contrárias
às leis.

Clínias — Só dizes a verdade.

O Ateniense — E se lhe falássemos em nome dos poetas, não seria razoável


nosso discurso?

Clínias — Que discurso?

O Ateniense — O seguinte: Conta-nos antiga tradição, legislador, repetida


por nós e aceita por todos, que quando o poeta se instala no tripé das Musas
não é senhor da razão, mas, à maneira de uma fonte, deixa correr livremente
o que lhe vem ao espírito; e, por isso mes-

mo que sua arte não passa de imitação, sempre que ele representa homens
de sentimentos contraditórios entre si, vê-se forçado a contradizer-se, sem
saber qual das proposições é verdadeira. Mas o legislador não tem o
direito de fazer a mesma coisa em suas leis, duas afirmativas diferentes
sobre o mesmo sujeito, porém sempre uma para cada assunto. Compara isso
mesmo com o que disseste há pouco. Havendo três categorias de sepulturas:
luxuosas em excesso, médias e muito pobres, escolheste uma delas, a
média, e a elogiaste acima de toda proporção. Ora, se eu tivesse de
descrever uma mulher extraordinariamente rica, e no poema ela já quisesse
deixar determinado seu sepultamento, elogiaria as sepulturas luxuosas; para
um indivíduo pobre e econômico, a que não atinge a medida; como
indicaria a média para as pessoas de categoria mediana. No teu caso, não é
certo dizer o que afirmaste, quando te referiste a Razoável; será preciso
explicar o que seja esse Razoável e até onde ele vai, sem o que não
esperes transformar em lei semelhante discurso.

Clínias — Só dizes a verdade.

X — O Ateniense — Será que o nosso recomendado para cuidar da


legislação não põe nada desse gênero à frente de suas leis, porém declara,
de entrada, o que é preciso fazer ou evitar, e, depois de começar com
castigos, passa a tratar de outra lei, sem acrescentar a menor fórmula de
encorajamento ou de persuasão para os diretamente interessados em sua
atividade legiferante? Nesse particular, procederia como os médicos: este
nos trata de um modo; aquêle, de outro, conforme a ocasião. Recordemos,
então, as duas maneiras de tratar, para depois pedirmos ao legislador o que
as crianças pedem ao médico: curá-las pelo método mais brando. Que
desejamos dizer com isso? Como sabemos perfeitamente, há médicos, mas
também há ajudantes desses médicos, aos quais aplicamos o mesmo nome.

Megilo — Exato.

O Ateniense — Quer sejam livres, quer sejam escravos, aprendem o ofício


segundo as instruções do mestre, vendo-o trabalhar e experimentando seus
remédios, porém não por um dom natural, como se dá com os homens livres
no aprendizado de sua arte, que depois sabem transmitir aos filhos.
Admitirás essas duas espécies de médicos?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Como também podes observar, adoecendo nas cidades tanto


pessoas livres como escravos, estes geralmente são tratados por escravos
que percorrem de afogadilho a cidade, ou mesmo sem saírem dos
dispensários. Ora, nenhum desses supostos médicos comenta as doenças
nem aceita as explicações de seus clientes, limitando-se a prescrever-lhes,
como verdadeiro tirano, o que aprenderam empiricamente, como se
estivesse bem enfronhado na matéria, para sair correndo, sempre, a fim de
atender outro escravo nas mesmas condições, com o que facilita a tarefa de
seu mestre nos afazeres da clínica.
O médico livre, pelo contrário, de regra só trata de clientes livres; examina
os doentes, acompanha-lhes desde o início os incômodos em sua marcha
natural, troca idéias com eles e pessoas de casa, e, ao mesmo tempo que
amplia seus conhecimentos, esclarece o paciente na medida do possível,
sem receitar-lhe nada antes de o haver persuadido. A esse modo, e sempre
com o recurso da persuasão, consegue acalmar o doente e alcançar a meta
ambicionada, com reconduzi-lo à saúde. Qual dos dois métodos é o melhor,
este ou o outro, tanto para o médico em sua clínica como para o professor
de ginástica em seus exercícios? O que alcançar o mesmo resultado por dois
caminhos diferente, ou o que só se vale de um, e assim mesmo o pior,
deixando o doente cada vez mais irritado?

Clínias — O que emprega os dois meios, forasteiro, é muito superior.

O Ateniense — Não quererás aplicar comigo esses dois processos, o duplo


e o simples, no estudo da legislação?

Clínias — Como não hei de querer?

XI — O Ateniense — Então, mãos à obra, pelos deuses! Por qual iei deve
principiar o legislador? Seguindo a ordem natural, não começará ele pela
regulamentação dos nascimentos, já que tratamos de formar uma cidade?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Mas, a procriação não pressupõe a celebração da união


matrimonial?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Parece, pois, que as leis sobre o casamento devem ter


prioridade sobre as demais, vindo a ser essa a mais bela maneira de acertar.

Clfnias — Perfeitamente.

O Ateniense — Enunciemos primeiro a lei mais simples, que poderá ser


formulada nos seguintes termos: Para casar, é preciso ter de trinta a trinta e
cinco anos; quem violar esse dispositivo, sofrerá pena de multa e de atimia.
A multa será deste ou daquele importe; a privação dos direitos civis e
políticos, de tal ou qual extensão. Será essa a fórmula mais simples da lei
sobre o casamento. A dupla, constará do seguinte: Casa-se quem tiver de
trinta a trinta e cinco anos, tomando-se em consideração que, por natureza,
o gênero humano participa de certa imortalidade, a que todos
instintivamente aspiram. É ambição de todos adquirir fama e não ficar
anônimo depois de morto. Ora, de certo modo o gênero humano se
desenvolve em íntima correlação com o tempo, que ele acompanha e
acompanhará até o fim, o que é sua maneira de ser imortal, com deixar após
si os filhos de seus filhos, sempre uno e o mesmo, participando, pela
geração, da imortalidade. É contra as leis divinas privar-se alguém
voluntariamente desse privilégio, o que fará de caso pensado quem não se
preocupar de ter mulher e filhos. Quem obedecer à lei, ficará livre de
qualquer penalidade; no caso de renitência, por chegar aos trinta e trinta e
cinco anos sem contrair matrimônio, pagará todos os anos a multa de tanto,
para não pensar que o celibato é fonte de lucros e facilidades, como também
se verá privado das demonstrações de respeito público que a todo instante
os jovens dispensam às pessoas mais velhas. Do confronto das duas
fórmulas expostas, tem-se uma idéia precisa de cada uma, cabendo
perguntar se convirá adotar a fórmula dupla, que persuade e ameaça, ou a
mais simples e curta, que se limita a ameaçar.

Megilo — Condiz bem, forasteiro, com o caráter lacedemônio preferir a


mais curta; mas, se alguém me impusesse o papel de juiz, para decidir qual
das duas instituições eu preferia ver estabelecida em nossa cidade,
escolheria a mais longa, como aliás faria com qualquer outra lei; tendo de
optar por um dos modelos, decidir-me-ia sempre do mesmo modo. Porém o
que importa, agora, é obtermos a aprovação de Clínicas aqui presente, para
as leis que vão ser propostas, pois é a cidade dele que irá beneficiar-se
delas.

Clínicas — Excelente alvitre, Megilo.

XII — O Ateniense — É simples falar em comprimento ou brevidade do


texto; só merece nossa estima o melhor, não o mais curto ou o mais
comprido. No que entende com as leis há pouco relacionadas, uma não é
apenas duas vezes superior à outra, para efeito de aplicação na prática;
como disse agora mesmo, os dois tipos de médico foram com muita
propriedade trazidos para confronto. Além do mais, parece que até agora
nenhum legislador se lembra de que dispõe de dois meios para fazer
observar suas leis; a persuasão e a força, tanto quanto é possível o seu
emprego junto da turba ignorante, só havendo recorrido a um deles; quando
promulgam leis, nunca misturam persuasão e força; servem-se apenas da
força sem nenhum acréscimo. Porém sou de parecer, caros amigos, que um
terceiro elemento precisará também ser considerado em matéria de
legislação, o que atualmente ninguém faz.

Clínias — A que te referes?

O Ateniense — Ao que certa divindade permite deduzir de tudo o que


falamos até agora. O fato é que, deseje que começamos a conversar e a
manhã cedeu o lugar ao meio-dia, alcançamos este aprazível pouso sem
falar em outra coisa a não ser leis; no entanto, somente agora principiamos
a entrar no assunto propriamente dito, pois tudo o que ficou para trás
constitui apenas o proêmio às leis. E por que me exprimo desse modo? Pelo
desejo de acrescentar a observação de que todo discurso, ou melhor, tudo o
de que a voz participa compõe um prelúdio e, por assim dizer, uma espécie
de exercício preparatório que vale como exórdio, de grande vantagem para
o que se pretende desenvolver. £ assim que as odes com acompanhamento
de cítara, a que damos o nome de nomos ou leis, e as outras composições
musicais principiam sempre por um prelúdio admiravelmente trabalhado.
Mas, a respeito das leis de verdade, que denominamos leis políticas, nunca
ninguém falou em prelúdio, nem nenhum compositor o deu a conhecer,
como se, por natureza, não devesse existir. Porém o que nossa conversação
de hoje demonstra, me parece, é que existem. Conforme vimos, as leis por
nós consideradas comportam apenas uma dupla redação, mas constam,
realmente, de duas partes, a lei e o prelúdio à lei. A prescrição que
denominamos tirânica e que comparamos às dos médicos por nós tidos na
conta de escravos, é lei pura; a que mencionada antes e recebeu o
qualificativo de persuasiva, porque de fato visa a persuadir, corresponde à
porção introdutória do discurso. Para que o cidadão a quem a lei é destinada
receba com simpatia e benevolência a prescrição que é a própria lei: eis
o que me parece ser o fim a que visava o autor do discurso tendente à
persuasão. Por isso mesmo, segundo penso, o nome que lhe cabe, à justa, é
o de prelúdio, não o de razão da lei. Exprimindo-me desse modo, que mais
fora lícito acrescentar? O seguinte: que o legislador jamais proponha leis
não precedidas de proemio, o que as deixará tanto mais diferentes entre si
como diferem os dois métodos mencionados há pouco.

Clínias — Eu, pelo menos, exigiria da pessoa Incumbida de formular leis


para nós, que seguisse esse critério.

O Ateniense — Acho procedente, Clínias, tua observação, de que todas as


leis têm prelúdio e que no começo de qualquer trabalho legislativo e antes
do texto propriamente dito é preciso redigir o prelúdio que mais se
lhe ajuste, pois não é de somemos importância o que se lhe segue, nem
indiferente, para ser guardado de memória, se for claro ou obscuro.
Todavia, se exigíssemos prelúdio tanto para as chamadas leis grandes como
para as pequenas, cometeríamos grave erro. Do mesmo modo, nem todas as
canções e discursos necessitam de prelúdio; não é que cada um não possa
ter o que lhe seja próprio; mas não há necessidade de dar prelúdio a todos.
Em cada caso particular, ficará a decisão a cargo do orador, do músico ou
do próprio legislador.

Clínias — Acho que tens razão. Porém não prolonguemos, forasteiro, sem
necessidade, estas considerações; retomemos nosso assunto, e se for do teu
agrado, comecemos pelo que disseste antes sem o propósito deliberado de
fazer um proêmio. Recomecemos, pois, como dizem os jogadores, com
outro lanço mais feliz; não com um dis-curso qualquer, como há pouco, mas
com um prelúdio em regra. Principiemos desse modo, declarando, desde
o início, que se trata de um prelúdio. A respeito do culto dos deuses e dos
cuidados devidos aos parentes, basta o que ficou dito acima. Cuidemos,
agora, de apresentar o resto, até que te pareça que a parte introdutória foi
suficientemente desenvolvida. E só depois disso aplica-te na consideração
das leis propriamente ditas.

O Ateniense — Assim, no que diz respeito aos deuses e aos parentes, não
apenas enquanto estes viverem como também depois de mortos, já nos
espraiamos suficientemente na parte introdutória, conforme o
declaramos; porém quer parecer-me que me concitas a trazer à luz, por
assim dizer, o que ainda falta explanar nesse proêmio.
Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Depois disso, no interesse de todos é conveniente


considerar os cuidados que precisamos dispensar à alma e ao corpo e aos
bens materiais, com maior ou menos empenho, para que o orador e seus
ouvintes alcancem, tanto quanto possível, a educação perfeita. É o que se
nos impõe, agora, desenvolver e escutar.

Clínias — Muito bem.

LEIS

Livro V

O Ateniense — Ouçam-me, então, os que me viram dissertar agora mesmo


a respeito dos deuses e de nossos caros antepassados, porque de todos os
bens é a alma o mais divino e o que mais intimamente nos pertence, É
duplo tudo o que faz parte do homem: há uma porção superior e melhor,
que domina como senhora, e outra inferior e menos boa que obedece
como serva. Em todos os casos, é preciso dar preferência à que comanda,
não à que obedece. Assim, ao dizerem que devemos honrar a alma em
segundo lugar depois dos deuses, nossos mestres e os que se lhes seguem
em dignidade só exprimiram o que a razão aconselha. Porém nenhum de
nós honra a alma como fora preciso; acredita que o faz, pois a honra é um
bem divino, não merecendo distinção particular o que é ruim. Por
isso, quem a exalta por meio de palavras ou de presentes ou com fórmulas
de condescendência, sem fazê-la passar da condição pior para a melhor,
talvez acredite que a distingue; mas é o que não se dá, em absoluto. É
assim que, desde a infância, todo homem se considera capaz de tudo
conhecer, e, por imaginar que honra a alma só com elogiá-la, permite-lhe
fazer o que bem entenda. Porém, como dissemos agora mesmo, semelhante
conduta não a enaltece, prejudica-a. Sobre isso já nos manifestamos; o que
é preciso é conceder-lhe o primeiro lugar depois dos deuses. Da mesma
forma, quando alguém não se culpa a si mesmo das faltas praticadas, porém
a outros, de seus graves e numerosos defeitos, considerando-se sempre
limpo de qualquer pecha, a fim de, com isso, valorizar a alma, muito longe
de alcançar o que imagina, só contribui para deteriorá-la. Outrossim, não a
distingue, quando, com menosprezo das palavras e da aprovação do
legislador, cede às injunções dos prazeres; rebaixa-a, simplesmente, com
enchê-la de males e de remorsos. E também na hipótese contrária:
sempre que não se esforça para vencer os trabalhos elogiados pelo
legislador, na luta contra os temores, o sofrimento, as preocupações, porém
cede diante de todos, não a honra, absolutamente; quem se entrega a tais
fraquezas, só a deixa desvalorizada. Do mesmo modo, não a exalta quem
considera que a vida é um bem incondicional; ao contrário, envilece-a; pois
se a alma convencerse de que só há mal no Hades, cede a essa idéia sem
a menor resistência nem esforço para instruir-se e obter provas de que
talvez a verdade seja precisamente o contrário disso, por nos reservarem os
deuses lá de baixo os maiores bens. Por outro lado, colocar a beleza
acima da virtude, não passa de uma real e decidida desmoralização da alma,
o que é absolutamente falso, pois tudo o que nasce da terra não pode ter
preferência sobre o que provém do Olimpo, e quem pensar desse modo
a respeito da alma ignora até que ponto rebaixa esse bem inapreciável. Da
mesma forma, com presentes ninguém honra a alma, como é o caso de
quem procura acumular riquezas por meios desonestos e não se sente
mal com semelhante procedimento. Longe disso; seria vender por muito
pouco ouro o que é valioso; todo o ouro da terra e de debaixo da terra não
alcança o valor da virtude. Numa palavra: quem não procura fugir, na
medida de suas forças, das coisas que o legislador contou e classificou
como vergonhosas e ruins, ou o contrário disso: não se esforçou por praticar
as boas e louváveis, no máximo de sua capacidade, não percebe que em
todos esses casos ele trata sua alma, o que nele há de mais divino, por
maneira indigna e vergonhosa. Ninguém pensa, por assim dizer, no que é
considerado como o maior castigo da perversidade, e que consiste,
precisamente, em tornar-se semelhante aos indivíduos perversos e, como
natural decorrência dessa semelhança, fugir dos homens e dos discursos
virtuosos, e procurar a companhia dos maus para se confundirem com
eles. Uma vez associados tão intimamente aos maus, é de necessidade
forçosa que venham a fazer e a sofrer o que estes dizem e fazem por natural
conformação. Porém isso ainda não é o verdadeiro castigo — a justiça e o
castigo são belos — mas uma reparação, penalidade decorrente de alguma
malfeitoria. Tanto é infeliz o punido como quem escapa do castigo: ou
porque não curou seu mal, ou porque perece para que muitos se salvem. Em
resumo: é honroso para todos seguir o melhor e contribuir para que o menos
bom, mas susceptível de emenda, melhore quanto possível.
II — De tudo o que o homem possui, não há o que seja como a alma,
naturalmente inclinada para fugir do mal e seguir no rasto do soberano bem,
apreendê-lo e, uma vez de posse dele, viver em sua companhia o resto da
vida. Por isso mesmo, ocupa o segundo lugar na escala de valores; o
terceiro — não há quem não o reconheça — pertence por natureza ao corpo;
porém é preciso considerar que honras lhe devem ser atribuídas, quais são
verdadeiras e quais fictícias, o que também é da competência do legislador.
A meu parecer, este conclui mais ou menos da seguinte forma: o corpo não
vale por ser belo ou forte ou veloz ou de grande estatura, nem, ainda, por
ser são, embora muita gente assim pense; como não valerá pelas qualidades
contrárias. As pessoas mais temperantes e seguras são as que mantêm
a justa medida; pois se com aquelas qualidades a alma se torna vaidosa e
petulante, com as outras fica servil e baixa. O mesmo passa na escala de
valores com referência à possessão de riquezas e bens materiais: o
excesso em tudo isso provoca inimizades e sedições, tanto entre os
particulares como nas cidades; a míngua, de regra, acaba em servidão.
Ninguém, pois, se afane para deixar ricos os filhos, o que não é de proveito
nem para ele nem para a cidade. Para os jovens, a fortuna que não atrai
bajuladores nem os priva do necessário é a melhor e de mais agradável
música; pela harmonia que nos enseja e o acordo em todas as situações,
permite-nos viver sem preocupações. O que importa deixar para os filhos é
um grande acervo de pudor, não de ouro, o que se consegue, segundo
cremos, repreendendo-os sempre que revelarem imprudência. Mas esse
resultado não se obtém com o método presentemente em voga, de
admoestações, quando lhes observamos que os moços precisam ser
respeitadores. De preferência, o legislador sensato recomendará aos velhos
que respeitem os moços e se acautelem, antes de mais nada, para que estes
não os surpreendam no instante de dizer ou de praticar algo indecoroso,
porque onde os velhos se mostram sem pudor, necessariamente os jovens os
desprezarão. A melhor maneira de educar os moços, e também a nós
mesmos, não consiste em repreensões, mas em mostrar a todos que fazemos
a vida inteira o que recomendamos aos outros. Ademais, quem honra e
venera os parentes e todas as pessoas oriundas do mesmo sangue e ligadas
pelos deuses da família, tem razão de esperar que os deuses que presidem à
geração lhe serão propícios na procriação dos filhos. Quanto às boas graças
dos amigos e camaradas no convívio social, o melhor meio é considerar os
serviços por eles prestados como de mais valia do que eles mesmos julgam,
e dar menos importância do que eles aos obséquios que lhes prestamos.
Com respeito à cidade e aos concidadãos, é melhor, sem dúvida, quem
antepõe às vitórias nos jogos olímpicos e em todas as competições
guerreiras ou pacíficas a glória de obedecer às leis pátrias, e se mostra
disposto a servi-las bem a vida inteira. Precisamos, ainda, considerar que os
mais sagrados contratos são os firmados com os estrangeiros, porque tudo o
que lhes diz respeito, ou as faltas cometidas contra eles, mais do que as
praticadas entre os próprios concidadãos, são punidas mais severamente
pela divindade. Pelo fato de carecerem de parentes e de companheiros, os
estrangeiros inspiram maior piedade aos homens e aos deuses. Quem está
em melhores condições de vingá-los mostra empenho em protegê-los, o que
compete, particularmente, ao demônio ou divindade hospitalar participante
do séquito de Zeus xênios. Quem for dotado, pois, de um pouquinho de
reflexão deverá acautelar-se para poder chegar ao término da vida sem
praticar nenhum deslize contra os estrangeiros. Ora, a falta mais grave com
respeito aos estrangeiros e os próprios compatriotas é a que diz respeito aos
suplicantes. Porque a divin-dade invocada pelo suplicante como testemunha
do que lhe fora prometido, torna-se guardia do hospede ultrajado, sem
jamais deixar inulta a vftima de semelhante ofensa.

III — Expusemos, assim, de maneira mais ou menos completa, nossos


deveres com relação a pai e mãe, a nós mesmos, à cidade, aos amigos e
parentes, e aos hóspedes nossos compatriotas. Cumpre, agora, expor como
devemos proceder para viver a mais bela vida possível. Essa parte não
compete à lei, mas ao elogio ou à censura com fins educativos, que deixam
mais dóceis os cidadãos e mais dispostos a receber a legislação que lhes
quisermos dar. A verdade é o primeiro dos bens, tanto para os deuses como
para os homens; quem quiser viver abençoado e feliz, deve ligar-se-lhe
desde o começo, para passar com ela o mais tempo possível. Constante é
quem for assim; o inconstante se compraz com mentiras; quem mente
involuntariamente é estulto. Nenhum destes é digno de imitação, pois
carece de amigos o indivíduo versátil e insensato; com o passar do tempo,
verifica-se que prepararam para eles mesmos uma velhice penosa, e no fim
da vida se encontram na mais completa solidão, para terminarem na
situação típica dos órfãos, pouco se lhe dando se os filhos e os amigos ainda
vivem. Digno de apreço é quem não comete injustiça; mas, por outro lado,
quem não permite que outras pessoas sejam injustas merece ser duplamente
distinguido; aquele vale por um homem; este, por muitos, com revelar aos
magistrados as malfeitorias dos outros. Por último, quem colabora em sua
função punitiva, deve ser tido na conta de grande e perfeito cidadão e
proclamado vencedor na competição da virtude. Igual elogio deve ser feito
à temperança, à sabedoria e às demais virtudes que tanto podemos
conservar pelo que valem como conferi-las a terceiros. Quem é capaz de
transmitir virtude a outras pessoas é digno da mais alta distinção; o segundo
lugar caberá a quem revela o desejo, mas carece da capacidade de pô-lo em
prática. O invejoso, pelo contrário, que voluntariamente não comunica a
ninguém nenhuma parcela de suas vantagens, esse só merece censuras; mas
não iremos ao extremo de desprezar o bem por causa de seu possuidor,
senão adquiri-lo na medida do possível. Esforcemo-nos todos na
competição da virtude, porém sem inveja. Só beneficia a cidade quem entra
em competição com todos sem diminuir ninguém. O invejoso, pelo
contrário, convencido de que só poderá avantajar-se a alguém se o denegrir,
pouco se esforça para alcançar a verdadeira virtude; só contribui para
desencorajar os demais concorrentes com suas críticas injustas. Com isso,
ele impede que a cidade tome parte nessa competição e prejudica, na
medida de suas forças, sua reputação. Todos devem aliar o ânimo colérico à
maior brandura possível, porque, quando os vícios dos outros se tornam
intoleráveis e perigosos ou de todo incuráveis, a única maneira de escapar
deles ou de vencê-los é pôr-se na defensiva contra suas investidas e castigá-
los sem dó, o que nenhuma alma conseguirá sem estar tomada de uma
nobre cólera. Quanto aos indivíduos que cometem, realmente, injustiças
mas são passíveis de cura, precisamos considerar, primeiro, que niguém
pratica voluntariamente injustiça, pois não há quem consinta de boamente
em abrigar dentro de si o maior mal, máxime em se tratando da porção mais
valiosa dele mesmo. Pois a alma, como já vimos, é verdadeiramente o que
há de mais precioso. Ora, deliberadamente ninguém aceitará receber o
maior mal no que tem de mais valioso, para conservá-lo a vida inteira em
sua companhia. É certo que todo criminoso merece nossa compaixão, como
quem quer que sofra de algum mal; porém precisamos reservar nossa
piedade para quem ainda for passível de cura, refrear e amenizar nossa
cólera sem revelar o azedume permanente e tão próprio das mulheres
rabugentas. Somente contra o criminoso obstinado e sem possibilidade de
cura é que devemos soltar toda nosso cólera. Essa a razão de havermos dito
que, conforme as circunstâncias, convém ao homem de bem mostrar-se
colérico ou indulgente.

IV — Mas, para a maioria dos homens, o maior defeito da alma é inato, do


que todos se desculpam, sem procurar meios de obviá-lo: consiste, como se
diz, em todo homem ser, por natureza, amigo de si mesmo, achando todos
que isso faz parte da ordem natural das coisas. Mas a verdade é que, para
todo o mundo, o amor próprio excessivo é causa de inúmeros males. Quem
ama é cego para o objeto amado, passando, por isso, a julgar mal o justo, o
bom e o belo, por imaginar que sempre deve antepor seu interesse à
verdade. Não é a si mesmo nem a seus bens que deverá preferir quem quiser
distinguir-se, porém à justiça, quer venha a exemplificar-se em sua pessoa,
quer o faça noutra. De onde vem que semelhante defeito leva todos a
tomar sua ignorância como sabedoria; não há, por assim dizer, quem não
esteja convencido de que sabe tudo, e em vez de recorrer a estranhos
naquilo em que ignora, erra fatalmente por querer fazer o que não sabe. Por
isso, todo homem deve corrigir o excesso de amor próprio e procurar quem
lhe seja superior, sem acanhamento de assim proceder.

Há, ainda, outros preceitos, freqüentemente enunciados, de importância


mais modesta porém de não menor utilidade, mas que precisam ser ditos e
recordados. Da mesma forma que quando alguma substância se escoa,
necessariamente vem outra ocupar o seu lugar: assim, também, a
reminiscência é o refluxo de um pensamento ausente. Por isso mesmo,
precisamos abster-nos de todo excesso, assim no riso como nas lágrimas,
devendo cada um exortar os outros a conter no seu íntimo a exuberância de
alegria ou a dor exagerada e procurar mostrar-se firme, tanto nas
oportunidades de êxito que seu demônio lhe ensejar, como nas
dificuldades levantadas por ele à guisa de obstáculos difíceis de vencer.
Ademais, confiar em Deus, que saberá atenuar, com suas dádivas, os
trabalhos que tocam às pessoas de bem, e mudá-los de grandes para
pequenos, com melhorar cada vez mais sua situação, sendo certo que,
com relação aos bens, terão a boa sorte de sempre vê-los aumentados. É
nessa expectativa e com essas lembranças que todos devem viver,
esforçando-se sempre, nos jogos e nos momentos sérios para reavivá-los
tanto em si mesmos como nos outros.
V — Com respeito às ocupações de cada um e de que maneira devem ser
desempenhadas nos casos concretos, já falamos na parte referente aos
deuses tudo o que importava esclarecer; no que entende com os homens
ainda não nos manifestamos, mas é o que passaremos a fazer, pois nossa
conversa é com homens, não com deuses. São mais conformes à natureza
humana os prazeres, as dores e os desejos; a eles estão forçosa mente
ligados todos os seres mortais, e, por assim dizer, atados pelos mais fortes
laços. A mais bela vida deve ser elogiada, não somente porque com sua
aparência a todos assegura nobre reputação, como também pelo fato de que,
se nos dispusermos a abraçá-la sem dela nos desviarmos na mocidade, ela
também se avantaja naquilo que todos almejam conseguir: alegrar-se o mais
possível e sofrer quanto menos no decurso da vida. É fácil demonstrar que
as coisas se passam assim, quando sabemos viver como convém. E qual
será a melhor maneira de viver? É o que a razão nos indicará. Para saber
se num determinado caso a vida está de acordo com nossa natureza e
noutros a contradiz, será preciso comparar entre si as duas maneiras de
viver: a mais agradável e a mais penosa, do seguinte modo: Todos nós
desejamos prazer; quanto a sofrimentos, nem os escolhemos nem os
queremos. No que diz respeito ao estado neutro, não o desejaríamos em
lugar dos prazeres mas o trocaríamos pelos sofrimentos. Pouco sofrimento
de par com muito prazer, eis o que desejamos, não o contrário: escasso
prazer e bastante sofrimento. Porém não sabemos decidir se é de almejar
um estado em que o prazer e os sofrimentos se equilibrem. Em tudo isso, o
número, a grandeza, a veemência, a uniformidade e todas as qualidades
contrárias que se lhes opõem é que determinam ou não determinam a
vontade, com respeito â escolha em cada caso particular. Uma vez que
nesse domínio se observa necessariamente tal ordem, quando a vida
apresenta prazeres e sofrimentos em abundância, mas com predomínio dos
prazeres, preferi-mo-la; observando-se o contrário, não na desejamos. Nos
casos, porém, em que ambos ocorrem em número reduzido, fracos e de
pouca intensidade, com predominância das dores, não as cobiçamos;
ficando invertidas essas relações, decidimo-nos por ela. Na vida em que
todos esses elementos se equilibram, teremos de repetir o mesmo
raciocínio: preferimos a vida moderada, por imaginarmos que nos
proporciona mais satisfação do
que a outra; mas não a trocaríamos pelo estado em que predomina o que nos
desagrada. Cumpre-nos, agora, observar que todos os gêneros de vida estão
naturalmente incluídos nas condições descritas, competindo-nos decidir
qual delas nossa natureza deseja, e quando declaremos que queremos uma
forma diferente dessas é a ignorância ou a inexperiência da vida que nos
leva a falar dessa maneira.

VI — Quais e quantas são as vidas que precisamos examinar, para escolher


a que queremos e nos agrada e rejeitar a que nos desagrada e não queremos,
e da mais bela e melhor fazer a nossa lei, para, com a escolha do desejável e
agradável, do que há de melhor e mais belo viver a vida mais feliz que o
homem possa alcançar? Digamos que numa delas predomina a temperança;
noutra, a razão; uma terceira é dirigida pela coragem, havendo outra mais
com prevalência da saúde. A essas quatro opomos outras tantas, definidas
pela insensatez, covardia, intemperança e pelas doenças. Quem conhece a
vida temperante, sabe que é moderada em tudo, com suas dores não muito
fortes e prazeres tranquilos, desejos calmos e amores sem arrebatamentos
excessivos, enquanto a intemperante é exagerada em tudo, com dores e
prazeres violentos, desejos intensos e espicaçantes e amores confinantes
com a loucura. Na vida temperante os prazeres superam os sofrimentos; na
intemperante, as dores ultrapassam os prazeres em grandeza, número e
freqüência. Donde se colhe que uma dessas modalidades de vida nos é mais
agradável, e a outra, fatalmente e por natureza, dolorosa, e que a pessoa que
se decide por uma vida feliz, jamais conseguirá viver na intemperança. De
onde vem — a estar certo o que acabamos de dizer — que ninguém é
intemperante por deliberação própria, pois é sempre por ignorância, ou
por não saber dominar-se, ou por ambas as causas ao mesmo tempo, que a
grande maioria dos homens não pratica a temperança.

Idênticas reflexões se aplicam ao estado de doença e de saúde. Cada um


tem seus prazeres e suas dores; mas na saúde prevalecem os prazeres, e na
doença os sofrimentos. Na escolha da vida, nosso critério não se decide por
aquela em que predominam os sofrimentos;

sição do prelúdio das leis. Depois do prelúdio, necessariamente terá de vir


um nome, ou melhor e mais de acordo com a verdade: um esboço de
legislação. Passa-se aqui como nos tecidos ou em todo processo de
trançamento, em que a cadeia e a trama não podem ser da mesma natureza;
a cadeia revelará qualidade superior, por ser mais forte e ter alcançado certa
resistência em sua constituição, enquanto o fio da trama é mole e dotado de
maleabilidade proporcional. É assim que precisamos separar os cidadãos
destinados a ocupar cargos na comunidade dos que só receberam uma
educação medíocre. Realmente, toda administração apresenta dois aspectos
essenciais a considerar: o estabelecimento dos magistrados nos respectivos
postos e as leis relativas a cada circunscrição. Mas, antes de estudar
esse ponto convém refletir no seguinte: nenhum boeiro, pastor de ovelhas,
tratador de cavalos ou quem quer que recebesse alguma incumbência desse
tipo, jamais aceitaria cuidar deles, se antes não pusesse em prática a seleção
indicada para seu rebanho. Assim, começaria por separar as reses sadias das
doentes, as de boa raça das bastardas, transferindo estas para outros
rebanhos e consideramos mais agradável a em que as dores são superadas
pelos prazeres. Podemos concluir, assim, que do confronto entre a vida do
homem temperante e a do intemperante, a do sábio e a do insensato,
como também entre a do corajoso e a do pusilânime, sempre nas primeiras
os prazeres e as dores são menos numerosos, mais fracos e, sobretudo, mais
raros; nuns os prazeres ultrapassam as dores; noutros predominam os
sofrimentos. A esse modo, o homem corajoso vence o pusilânime, e o de
bom senso, o insensato. Daí se conclui que umas vidas são mais agradáveis
do que outras: a prudente, corajosa, sensata e saudável, mais do que a
da covardia, da insensatez, da intemperança e da doença. Em resumo: a vida
que se liga às virtudes do corpo e da alma é mais agradável do que a que se
associa à maldade, como também a ultrapassa sob outros aspectos,
em beleza, honestidade, virtude e reputação; daí, proporcionar para quem a
escolhe muito maior felicidade do que o faz a condição contrária.

VII — Com essas reflexões pomos remate à expo-

cuidando das primeiras, convencido de que todo o seu trabalho seria


perdido no tratamento das almas e dos corpos mal dirigidos e de
constituição viciosa e que, além do mais, põem a perder o que há de são e
intacto nos costumes e nos corpos dos rebanhos de sua propriedade, se antes
não promovesse uma separação em regra. Os cuidados com os outros
animais são de importância secundária, e só a título de exemplo vêm
relatados nesta altura; mas no que respeita aos homens, o legislador
precisará procurar e explicar com o máximo empenho o que convirá fazer
para a depuração da cidade e das outras medidas no mesmo sentido. Para
alcançar a purificação desejada, este é o caminho a seguir: dentre os muitos
processos conhecidos, uns são fáceis e outros difíceis. Os difíceis, ou sejam,
os melhores, poderão ser aplicados pelo legislador que reunir em sua pessoa
as funções de tirano. Porém, se não dispuser da autoridade de tirano, o
legislador que estabelecer uma constituição e leis novas, e recorrer à
purificação mais branda, poderá considerar-se feliz se colher algum
resultado. A melhor é sempre dolorosa, como acontece, aliás, com todos os
remédios eficazes; só promove a correção com as penas mais severas, de
banimento ou morte: é assim que ele costuma proceder com os grandes
criminosos e, por sinal, incuráveis, o maior flagelo das cidades. Para nós, a
purificação mais branda consiste no seguinte: os que nada possuem e se
mostram propensos a seguir algum chefe para atacar cidades opulentas são
tratados como doença própria da cidade e eliminados da maneira mais
cortês possível, para irem formar o que, por eufemismo, se denomina
colônia. Mais ou menos desse jeito é como no começo procede todo
legislador; porém nosso caso ainda apresenta particularidades mais
estranhas. O problema que se nos impõe de início, não é fundar colônias
nem excogitar meios de purificação; como numerosos cursos d'água, alguns
de fontes e outros de torrentes, que convergem de vários pontos para um
lago central, cumpre-nos providenciar com diligência para deixar o mais
pura possível a água assim coletada, ou seja por processo de bombeamento
e exaustão de uma parte, ou com o recurso de canalização e desvio da outra.
Como se vê, trabalhos

e perigos abundam sempre em todo estabelecimento político. Mas, como


nossa tarefa, agora, não passa de palavras, sem chegar aos atos, admitamos
que nosso ajuntamento foi organizado com bom critério de seleção: os
elementos maus que pretendiam participar da cidade nascente, depois de
bem doutrinados por todos os meios de persuasão e de terem sido postos à
prova por tempo suficiente, serão afastados com energia, enquanto os bons
serão chamados com demonstrações de apreço e boa vontade.

VIII — Porém não escape a nossa atenção a raríssima circunstância que


muito nos favoreceu, pois tivemos uma oportunidade tão feliz quanto a dos
Heráclides em sua colonização, a que nos referimos acima, os quais se
livraram dos litígios violentos e sempre de temer, oriundos dos problemas
da distribuição das terras e da abolição das dívidas. Quando uma cidade
antiga se vê obrigada a legislar a respeito dessas matérias, nem lhe é
permitido modificar em nada os regulamentos em vigor, nem deixar tudo
sem a menor alteração, só lhe restando, por assim dizer, formular algum
voto piedoso e apegar-se à esperança de que pequenas e cautelosas
modificações dêem azo, com o passar do tempo, a mudanças apreciáveis. É
o que se observa na seguinte hipótese: haver determinado número de
inovadores que, sendo proprietários de extensas glebas e tendo muitos
devedores, por espírito de conciliação se dispusessem a dividir com os
menos favorecidos uma parte de seus bens, ou seja perdoando-lhes as
dívidas ou repartindo com eles a terra, mas, de um jeito ou de outro, com
espírito de moderação, e convencidos de que o empobrecimento consiste
menos na diminuição da fortuna do que no aumento da cobiça. Somente
assim é que as cidades se salvam. Sobre esse fundamento sólido, quem
quiser poderá, edificar mais tarde uma obra política de acordo com as
circunstâncias. Mas, se essa mudança se ressentir de algum vício de origem,
cidade alguma promoverá com êxito a reforma de suas instituições. Desse
perigo já escapamos, conforme ficou esclarecido; não obstante, no caso de
não estarmos livres dele, não será fora de propósito enumerar as medidas a
serem tomadas para evitá-lo. Diremos, pois, que para isso só há um
caminho; o enriquecimento por meios justos; não há outra saída a não ser
essa, nem larga nem estreita. É o que assentamos à maneira de pilar básico
de nossa comunidade. De todo o jeito, será preciso providenciar para que as
posses não sejam ocasião de queixas entre os respectivos detentores, pois
não haverá quem não se recuse a levar avante a reforma, por menos
inteligente que pareça, enquanto entre seus promotores perdurarem motivos
de antigas dissensões. Mas aqueles aos quais alguma divindade concedeu,
como a nós, nesta conjuntura, fundar uma nova cidade isenta de inimizades
intestinas: seria dar provas de maldade e de ignorância mais que humanas,
suscitar entre eles ódio inveterado por causa da distribuição das terras e das
habitações.

Qual será, então, o processo mais justo de distribuição? Inicialmente,


precisaremos determinar o número dos cidadãos e fixar seu limite de
crescimento; de seguida, distribuir os cidadãos em diferentes classes, com a
determinação precisa do número e natureza de cada um; por último, repartir
a terra e as habitações entre essas classes, com a maior igualdade possível.
O número suficiente de habitantes só poderá ser determinado de acordo
com a extensão do território e das cidades vizinhas. O terreno deverá ter
dimensões capazes de alimentar um certo número de cidadãos temperantes;
não será preciso mais do que isso; e a população, bastante numerosa para
defender-se dos ataques eventuais dos vizinhos, ou para ajudá-los com
eficiência, na hipótese de serem agredidos sem causa justa. Mas, só depois
de estudarmos a região e as cidades vizinhas é que poderemos determinar
tudo isso na prática, com argumentos válidos. Por enquanto, contentemo-
nos com esse esboço de projeto e passemos a tratar da legislação.

Para nos fixarmos num número conveniente, digamos que há cinco mil e
quarenta donos da terra em condições de defender sua propriedade. O
território com as respectivas casas também seá dividido em outros tantos
lotes, constando cada unidade de um homem e seu quinhão de terra. De
seguida, o número total será dividido por dois; logo mais, por três. Presta-
se, também, a ser dividido por quatro, por cinco, e assim

sucessivamente, até dez. A respeito de números, todo legislador deverá


estar em condições de saber qual e como deve ser, para que as cidades
aufiram o maior proveito. Escolhamos, então, o que se presta ao
maior número de divisões mais próximas umas das outras. Só o número
infinito será susceptível de todas as subdivisões; porém o número cinco mil
e quarenta, tanto na guerra como na paz, nos contratos e nas sociedades,
em matéria de impostos e de distribuição, não admite mais de cinqüenta e
nove divisões, das quais as dez primeiras são seguidas.

IX — Tais relações numéricas é que precisará estudar a fundo em seus


momentos de ócio quem receber essa incumbência legal. Não se passando
as coisas senão dessa maneira, precisará o fundador da cidade conhecê-las
bem, pelas seguintes razões. Quer se trate da fundação de uma nova cidade,
quer da restauração de uma cidade antiga, porém decadente, no que diz
respeito aos deuses e os santuários a serem fundados e os nomes dos deuses
e dos demônios por que tenham de ser designados, quem tiver bom senso
não introduzirá a menor modificação no que já ficou estabelecido pelo
oráculo de Delfos ou o de Dodona ou o de Amão, ou por antigas tradições,
de algum modo, aceitas, e oriundas de aparições ou de mensagens tidas
como de inspiração divina. Partindo desses princípios, instituíram os
homens sacrifícios associados a cerimônias, ou fossem domésticas e de
origem local ou importadas da Tirrênia, de Chipre ou alhures, e com base
nessas tradições consagraram oráculos,estátuas,altares,templos, que
incluíram em recintos sagrados. Em nada disso é permitido ao legislador
introduzir a menor modificação. Ademais, para cada divisão ele assinalará
uma divindade ou demônio ou mesmo algum herói, reservando-lhes, de
início, na divisão das terras a melhor porção do terreno e tudo o que se
relacione com o culto, para que, em épocas certas, cada classe se reúna em
assembléia, que lhes enseja resolver as dificuldades pessoais, e por
ocasião dos sacrifícios todos testemunhem amizade recíproca, aproximem-
se uns dos outros e se conheçam melhor, pois não há maior bem para
qualquer cidade como conhecerem-se os moradores entre si. Onde não reina
cla-ridade no que respeita aos costumes, porém completa escuridão, não
pode haver distribuição equitativa de honrarias nem de justiça e cargos, de
acordo com o merecimento de cada um. Antes de mais nada, é preciso que
em todas as cidades ninguém seja falso no que quer que seja, mas simples e
veraz, nem se deixe enganar pela dobrez dos outros.

O deslocamento a seguir, na disposição das leis, tal como no jogo do


gamão, quando a pedra transpõe a linha sagrada, talvez por sua própria
raridade cause no começo certa surpresa aos ouvintes; porém, com
um pouco de reflexão e as lições da prática, convencer-se-ão de que em
matéria de leis nossa cidade é a segunda em excelência. É bem provável
que aceitem a idéia com relutância, por não estarem habituados com um
legislador não tirano. O mais certo será descrever a melhor forma de
governo, depois a segunda e a terceira, deixando a escolha ao critério do
responsável por cada colônia. Procedamos, então, agora, de acordo com
esse esquema e apresentemos, primeiro, a constituição mais perfeita, e a
segunda e a terceira, confiando, desta vez, a Clínias a decisão, e no futuro a
quem aceitar igual incumbência e se disponha, de acordo com seu
temperamento, a conservar o que mais lhe agradar nas leis de sua pátria.

X — Em primeiro lugar, temos a cidade, a forma de governo e as leis


ideais, confirmantes, com satisfatória aproximação, do antigo provérbio que
nos mostra como tudo entre amigos é comum. Se tais condições se
observam presentemente em qualquer parte, ou se algum dia chegarão a
concretizar-se — serem em comum as mulheres, comuns os filhos, comuns
todos os bens — no caso de ficar banida o que se chama propriedade
particular, e se se conseguir, na medida do possível, tornar comum, de um
jeito ou de outro, até mesmo o que por natureza é nosso, como os olhos, os
ouvidos e as mãos, de forma que todos pareçam ver, ouvir ou trabalhar em
comum, e que todos, a uma voz, dentro das possibilidades humanas,
elogiem ou censurem as mesmas coisas, por se alegrarem ou
entristecerem com elas, e havendo, em suma, conseguido as leis amoldar a
cidade na mais perfeita unidade que se possa con-ceber: ninguém jamais
adotará critério melhor e mais acertado do que esse, para atingir o mais alto
grau da virtude. Numa cidade assim constituída, quer seja povoada por
deuses, quer por filhos de deuses em grande número, seus habitantes
viverão na maior alegria. Essa, a razão de não precisarmos procurar noutra
parte a constituição modelo; bastará agarrarmo-nos a esta mesma e
procurar, por todos os meios, pôr em prática a que mais se lhe assemelhe. A
que tentamos criar neste momento é a que, depois de pronta, alcançará de
mais perto a imortalidade e em valor merecerá o segundo lugar. A terceira,
querendo Deus, concluiremos a seguir. Quanto a esta, de que tratamos
agora, quais são as suas características e como chegou a constituir-se?

Comecem, pois, os cidadãos pela distribuição entre eles das terras e das
casas, porém sem cultivar o solo em comum, pois fora, com isso, exigir
demais da geração de nosso tempo, com a educação e a formação
que conhecemos. Todavia, procedam à divisão, no pressuposto de que o lote
de terra atribuído por sorte a cada cidadão é propriedade comum da cidade,
e que, sendo a terra sua pátria, ele deverá tratá-la com mais cuidado do que
o faz a mãe com o filho, mesmo porque, na qualidade de deusa, é senhora
natural dos homens. Iguais sentimentos devem revelar com relação aos
deuses indígenas e aos demônios. E para que semelhante ordem atravesse
indefinidamente o tempo, todos precisarão convencer-se de que o número
de fogos por nós fixado deve conservar-se sempre inalterável, sem aumento
nem decréscimo. Em qualquer cidade, o melhor modo de conseguir tal
desiderato é o seguinte: O beneficiário de cada lote sorteado só o
transmitirá por herança a um de seus filhos, o que ele preferir, instituindo-o
como seu substituto para cuidar dos deuses da família e da cidade os que
ainda viverem e os que naquela data já houverem alcançado o termo da
existência. Dos outros filhos, caso haja mais de um, as mulheres ele fará
casar de acordo com as leis adiante expostas; os homens serão distribuídos
entre os cidadãos que não tiverem filhos, valendo nisso o critério da
amizade. No caso de carecer de amigos ou de serem todos eles de prole
numerosa, filhos e filhas, ou o contrário, se não houver filhos, por serem
estéreis: em todos esses casos o mais alto magistrado em dignidade por nós
instituído decidirá como resolver o problema de excesso ou de deficiência
de filhos, providenciando para que, na medida do possível, se mantenha
inalterável o número de cinco mil e quarenta fogos. Para isso há muitos
recursos: poderá deter a procriação, nos casos de excesso de nascimento, e
o inverso: encorajar e promover o incremento da natalidade, para o que
recorrerá a distinções honoríficas, a castigos ou a repreensões por parte
dos velhos para os moços. Somente assim alcançarão o objetivo a que nos
referimos. Por último, sendo absolutamente impossível manter o número de
cinco mil e quarenta fogos, e se em virtude da afeição recíproca resultante
da coabitação houver aumento apreciável da população, em situação tão
crítica restará lançar mão do antigo expediente a que já nos referimos várias
vezes: a fundação de colônias; são amigos que se despedem de amigos, em
número que nos pareça conveniente. Mas, se em qualquer tempo alguma
vaga despejar em cima de nós um dilúvio de doenças, ou se
sobreviver guerra devastadora, caindo a população, com tamanhas perdas,
muito abaixo do número fixado, não é aconse-Iha'vel aceitar, sem mais nem
menos, indivíduos de educação bastarda. Porém como diz o provérbio,
nem Deus consegue dobrar a Necessidade.

XI — Eis a exortação que nos dirige o presente discurso: Varões de


excepcional merecimento, não deixeis de respeitar a semelhança e a
igualdade, a indentidade e a concordância estabelecida pela natureza,
tanto no que diz respeito ao vosso número como em tudo o que for capaz de
produzir o belo e o bem. Desde já, começai por conservar durante a vida
inteira o número fixado; de seguida, não desprezeis nem a altura nem a
grandeza de vossos haveres, tal como no começo foram repartidos com
justa medida, sem descerdes a vender ou comprar nada entre vós mesmos;
pois para isso não tereis nem o apoio da sorte, que é uma divindade e
faz essa divisão, nem o do legislador. Pois a primeira advertência da lei para
os recalcitrantes diz respeito à condição exclusiva para alguém poder
beneficiar-se com a divisão da terra, isto é, considerá-la desde o início
como consagrada a todos os deuses,e, depois,aceitar que os sacerdotes e
sacerdotisas, no primeiro e no segundo sacrifício, e até no terceiro, peçam
aos deuses infligir o merecido castigo nos que venderem ou comprarem as
casas ou lotes de terrenos distribuídos pela sorte. Será gravado
um memorial em tabuinhas de cipreste e depostas no templo para perpetuar
a lembrança do feito. Ademais, sua guarda será confiada aos magistrados
mais clarividentes, para que não lhes escape, de modo algum, as
transgressões ocorridas em cada caso, e sejam punidos, a um só tempo, os
delinqüentes, pelas leis e pelas divindades. Quão vantajosos sejam esses
dispositivos da lei para as cidades que os aceitem, sempre que reforçados
pela organização correspondente, é o que, de acordo com o velho ditado, o
indivíduo mau nunca chegará a compreender, mas apenas os experientes e
de comportamento exemplar. Além de ser tal organização incompatível com
a ganância do lucro, estabelece nosso postulado que ninguém pode nem
deve procurar enriquecer por processos menos nobres, principalmente por
serem as profissões manuais consideradas desonrosas e repugnarem ao
caráter do homem livre, que, de todo o modo, se absterá de enriquecer dessa
maneira.

XII — A essas determinações prende-se uma lei que proíbe aos particulares
possuir seja quanto for de ouro ou prata, abstração feita da moeda para as
trocas cotidianas, indispensável para o pagamento dos artesãos e o salário
dos que fazem jus a remuneração: mercenários, escravos ou estrangeiros.
Por isso mesmo, é o que dizemos, os cidadãos terão de adquirir o
dinheiro de curso interno, porém sem valor no estrangeiro. Para tanto, é
preciso que haja uma moeda comum a todos os helenos, para fazer face aos
gastos com as expedições militares e viagens a países estrangeiros, tal
como sói acontecer nas embaixadas ou quando é preciso enviar alguém para
fora, em missão especial. Para todos esses efeitos, a cidade terá
forçosamente de adquirir dinheiro helênico. Se acontecer algum cidadão
particular ter de viajar para fora, poderá sair depois de alcançada a
autorização do magistrado, e, na hipótese de sobrar-lhe, de volta para casa,
moeda estrangeira, entregá-la-á às autoridades competentes, a troco do
equivalente em dinheiro do país. Se se chegar a descobrir que ele desviou
alguma porção desse dinheiro, ser-lhe-á imediatamente confiscada, e o
cidadão que tivesse tido conhecimento do caso sem o ter denunciado,
incorrerá na mesma maldição e infâmia lançadas no culpado, ficando este,
ainda, sujeito a uma multa equivalente ao valor da moeda importada.
Casando-se alguém ou vindo a casar a filha, não aceitará nem pagará dote
algum. Ninguém depositará dinheiro nas mãos de quem não lhe inspire
confiança, como não emprestará com juros, visto ser permitido a quem
contrai um empréstimo nessas condições não pagar nem os juros nem
devolver o capital. As vantagens desses dispositivos para a cidade, só
poderá julgá-las com acerto quem as relacionar com a intenção primitiva do
legislador. Ora, a aspiração de todo político avisado, conforme acreditamos,
não é o que apregoa a maioria das pessoas: que o bom legislador, cioso
do progresso da cidade para a qual ele legisla deseja que ela fique tão
grande e rica quanto possível, com imensas reservas de ouro e prata, e
alcance o poderio marítimo ou terrestre. Caberia acrescentar que, para ser
um bom legislador, teria de deixar a cidade tão virtuosa quanto possível.
Porém dessas intenções, algumas são realizáveis, outras não. Por isso
mesmo, o coordenador da cidade se aplicará na execução das primeiras,
sem voltar-se para o que for inexeqüível nem gastar energias com tentativas
inúteis. Como é de absoluta necessidade que o cidadão seja, a um só tempo,
feliz e virtuoso, isso o legislador há de querer. Porém muito rico e
virtuoso não é possível, no sentido em que o povo interpreta a riqueza, a
saber, o pequeno número de homens — e serão sempre poucos — que
chegam a acumular grandes somas de dinheiro, o que pessoas desonestas
também conseguem fazer. Passando-se as coisas, realmente, dessa maneira,
terei de discordar do vulgo, sobre não poder ser verdadeiramente feliz o rico
que não for, ao mesmo tempo, virtuoso. Virtuoso ao máximo e
excessivamente rico, é o que não é possível. E a razão disso? talvez alguém
pergunte. Porque, lhe diríamos, o enriquecimento alcançado por meios
simultaneamente justos e injustos é mais do dobro do que o que se
obtém apenas com a justiça, assim como os gastos, para quem nada
despender nem para fins honestos nem desonestos, são duas vezes menores
dos de quem só tem despesas lícitas. A esse modo, quem sempre adquire o
dobro e gasta pela metade, não poderá deixar de ser mais rico do que quem
faz precisamente o contrário disso. Desses dois indivíduos, um é bom; o
outro poderá ser mau, se souber economizar; mas, por vezes será o
suprassumo da maldade; ao passo que o primeiro, conforme já o
declaramos, nunca poderá sê-lo. Quem ganha indiferentemente por meios
honestos ou desonestos e não tem despesas nem justas nem injustas,
enriquece, sem a menor dúvida, se for econômico, ao passo que o indivíduo
totalmente pervertido, por ser habitualmente gastador, é pobre em extremo.
Mas, quem só gasta em coisas sérias e só sabe ganhar por meios honestos
nunca chegará a ficar nem rico em excesso nem muito pobre. Daí, justificar-
se minha primeira assertiva, de que as pessoas muito ricas não são boas; e,
não sendo boas, também não serão felizes.

XIII — O objetivo primacial de nossas leis consistia em deixar os cidadãos


tão felizes quanto possível e amigos uns dos outros. Porém não pode haver
amizade entre os cidadãos onde pululam os processos e são fatos
corriqueiros, as injustiças, mas apenas onde uns e outros são tão raros
quanto possível e de quase nenhuma relevância. Por isso mesmo, dissemos
que na cidade não deve haver ouro nem prata, nem, ainda, essa avidez de
enriquecer por meio de atividades servis, usura ou tráfico aviltante de gado,
mas apenas com o que dá e produz a agricultura, e assim mesmo na medida
em que semelhantes práticas não nos levem a esquecer o fim precipuo do
dinheiro, a saber, a alma e o corpo, que sem a ginástica e as outras partes da
educação nem são dignos de referência. Essa, a razão de havermos afirmado
mais de uma vez, que, na escala de valores, o desejo de enriquecer ocupa o
último lugar. Havendo apenas três objetos com que os homens se
preocupam, o terceiro e último é o cuidado das riquezas quando
manifestado judiciosamente; o do corpo se acha no lugar mediano, vindo a
ser o primeiro o da alma. Se a constituição com que presentemente nos
ocupamos estabele-ce essa ordem de valores, firma-se em boa
legislação. Porém se alguma das leis apresentadas parece dar
mais importância à higiene do que à temperança, ou coloca a riqueza antes
da temperança e da saúde, não se terá revelado isenta de defeitos. Eis as
questões que todo legislador deve apresentar a si mesmo com
insistência: Que desejo, afinal? Conseguirei meu intento, ou me desviarei
da meta que me tracei? Só assim, talvez, consiga o legislador safar-se das
dificuldades inerentes à sua tarefa e ajudar os outros nesse sentido; de outro
jeito, jamais o conseguirá.

Use, pois, cada um o lote determinado pela sorte, de acordo com as


indicações acima expostas. Seria ótimo se todos trouxessem bens iguais.
Mas, como isso não é possível, e uns trarão mais dinheiro e outros menos,
por muitas razões, mas principalmente pela necessidade de estabelecer a
igualdade nas relações sociais, é inevitável aceitar a desigualdade censitária
para que os cargos, os tributos e as distribuições se façam de acordo com o
mérito pessoal, não apenas segundo a virtude própria ou a dos seus
antepassados, do vigor e da beleza física, mas também com vistas à pobreza
ou ao uso que fizer dos bens materiais; e com relação às honrarias e
dignidades, sendo estabelecida a igualdade entre os cidadãos por uma
repartição desigual em si mesma, porém proporcional a cada um, não
haverá motivo de descontentamento. Daí, a conveniência de
estabelecer quatro classes de cidadãos, de acordo com o montante de suas
posses; serão designados por ordem: primeira, segunda, terceira e quarta, ou
como parecer melhor, quer sempre permaneçam os cidadãos na mesma
classe, quer sejam eventualmente transferidos para a classe correspondente
a suas posses, no caso de passarem de pobres a ricos, ou o inverso, de ricos
caírem na miséria.

Na mesma ordem de idéias, apresentaria um projeto de lei redigido nos


seguintes termos: numa cidade, é o que dizemos, que deve ficar ao abrigo
do pior flagelo, cujo nome mais apropriado não será sedição
porém dissenção, é precoso que alguns de seus membros não sofram com a
pobreza, enquanto outros vivem na opulência, porque ambos os estados
geram dissensões. Compete, então, ao legislador traçar um limite entre eles;
o da pobreza será o valor do lote inicial, que se conservará intacto, sem que
nenhum magistrado, em tempo algum, consinta em ser desfalcado, critério
que também terão de adotar os cidadãos zelosos da virtude. Fixado esse
limite, permitirá o legislador a aquisição de outro tanto de terreno, ou três e
até quatro vezes mais. Quem chegar a possuir mais do que isso, por um
achado feliz, ou presente, ou compra, ou por outra fortuna do mesmo estilo,
que o leve a ultrapassar o teto estabelecido, oferecerá o excedente à cidade
e às suas divindades protetoras, com o que conquistará bom nome e ficará
isento de castigo. Vindo alguém a infringir semelhante lei, quem quiser
denunciá-lo ficará com a metade desse excedente, e ainda por cima o
condenado será obrigado a pagar multa no importe de metade dos
seus haveres; a outra metade ficará para os deuses. Todas as aquisições
excedentes do lote serão inscritas em lugar público e ficarão sob a guarda
de magistrados designados por lei, a fim de que todos os processos relativos
a dinheiro decorram em ordem e com bastante clareza.

XIV — De seguida, precisará o legislador construir sua cidade, tanto quanto


possível, no centro da região, depois de escolher um local que apresente
todas as condições consideradas favoráveis para qualquer cidade, o que não
é difícil de reconhecer e enumerar. Depois, distinguirá doze partes, não
antes, porém, de construir um santuário para Héstia, Zeus e Atena,
circundado de muro, a que dará o nome de acrópole, a partir do qual a
própria cidade e todo o território serão divididos em doze secções. A
igualdade dessas partes será alcançada deixando pequenas as que forem de
terras boas, e maiores as de terra inferior. Depois, formará cinco mil e
quarenta lotes, cada um dos quais será dividido, por sua vez, em duas
porções, que irão constituir os lotes definitivos, de forma que cada lote
conste de uma parte nas cercanias da cidade e outra longe. A porção mais
vizinha da cidade irá formar uma unidade com a que estiver situada na
ponta extrema do território; a segunda em proximidade se ligará à segunda
a contar da fronteira para dentro, e assim sucessivamente com as demais.
Nessa subdivisão devemos levar também em consideração o critério a que
já nos referimos, da boa ou má qualidade do terreno, valendo-nos da
diferença de tamanho para alcançar a igualdade. Os homens, também, serão
dividos em doze grupos, depois de completa a relação de seus bens e de
separá-los em partes aproximadamente iguais. A seguir, serão apartados
doze lotes para doze divindades, os quais, depois de consagrados, serão
designados pelos nomes da divindade correspondente, a que se acrescentará
o nome da tribo. A cidade, por sua vez, será dividida em doze partes, à
maneira do que foi feito no território, cabendo duas casas para cada
cidadão, uma perto e outra longe do centro. Assim ficará completa a
fundação.

XV — De todo modo, precisamos considerar que nem tudo o que ficou dito
encontrará condições favoráveis para vir a realizar-se tal qual imaginamos,
por não ser fácil encontrar homens aos quais não repugne morar em
companhia de outros e aceitem ver fixada e determinada a quantia módica
com que terão de contentar-se a vida inteira, o número de filhos nas bases
indicadas, a proibição de usar objetos de ouro, e mais outros itens que o
legislador decerto especificará, sempre, de acordo com as instruções
apresentadas. Isso de morar no centro da cidade, conforme dissemos, e nos
confins do território, e esse dispor as casas em círculo, é como se o
legislador lhes falasse em sonho ou modelasse em cera tanto a cidade como
seus moradores. Sem dúvida alguma, sob certos aspectos essas
observações não são impertinentes, mas também será preciso levar em
conta as seguintes considerações. Mais uma vez o legislador nos dirigirá a
palavra: Não ireis imaginar, caros amigos, que me passou despercebido o
que, de algum modo, é justo no que acabastes de dizer. Porém em todo
empreendimento feito para durar, considero mais certo para quem apresenta
o modelo do que vai ser construído, incluir nele tudo o que há de mais belo
e verdadeiro, e deixar de lado sem procurar realizá-lo o que lhe parecer
inexequível; mas, com relação ao resto, se apresentar semelhança e revelar
afinidades com o que convém fazer, empenhar-se-á ao máximo para que
venha a concretizar-se. Quanto ao legislador, deixará que leve sua obra até
o fim e, uma vez alcançado esse desiderato, examinará juntamente com ele
o que em permitindo-lhes vencer sua própria natureza, graças a esse método
divino. Nada há o que se compare a essa disciplina, em beleza e
conveniência, se com outras leis e instituições combatermos o servilismo e
o apego ao dinheiro dos que se destinam a tirar o máximo proveito possível
de tais ensinamentos. De outro modo, sem o percebermos, em vez de sábios
criaremos os chamados embusteiros, como presentemente vemos entre os
egípcios e os fenícios e muitos outros povos, que assim ficaram por força
do servilismo de suas instituições e do amor ao lucro, ou fosse isso
resultado da atuação de tudo aquilo é realizável e o que colide
frontalmente com o espírito da legislação. Coerência consigo mesmo: eis ao
que deve aspirar, por todos os meios, até mesmo o mais humilde artesão que
deseje tornar-se conhecido.

XVI — Depois de nos termos decidido pela divisão em doze partes,


precisamos concentrar ainda mais a atenção, para ver como se processou a
subdivisão e como essas partes menores permitem, por sua vez,
muitos outros desmembramentos, até chegarmos ao número cinco mil e
quarenta. Daí é que provêm as fratrías, os demos e as aldeias, depois da
organização das tropas de combate e de marcha, as moedas, os pesos e
medidas para líquidos e sólidos: tudo isso a lei vai deixar na mais perfeita
proporção e correspondência. Ademais, não deverá temer o legislador ser
acoimado de esmiuçador de coisinhas, por exigir que todos os vasos para
uso particular tenha dimensões fixas. Precisamos convencernos de que, sob
todos os aspectos, é de vantagem conhecer as divisões e combinações dos
números, tanto as variedades que eles mesmos apresentam, como as que se
formam em superfície ou profundidade, as dos sons e do movimento, em
linha reta para cima ou para baixo, e o movimento circular. A tudo isso o
legislador terá de atender e recomendar aos cidadãos que se esforcem para
não se desviarem um tantinho da ordem numérica em que tudo se processa.
Com efeito; no terreno da administração dos negócios domésticos ou
públicos e nas demais atividades não há ensinamento mais proveitoso do
que o estudo dos números. Porém sua maior vantagem consiste em
despertar os espíritos naturalmente atentos, sagazes e desejosos de
aprender, gum mau legislador, ou porque caísse sobre eles um destino
funesto, ou, ainda, por alguma influência natural do mesmo gênero.

Realmente, Megilo e Clínias, não nos deixemos levar pela doutrina errônea
de que não há lugares mais próprios do que outros para formar homens
melhores ou piores, e que a legislação não pode combater essa influência.
Algumas regiões, pela variedade de ventos ou pelas ondas de calor, são
inabitáveis ou benéficas; outras o são por causa das águas; outras, ainda,
pela alimentação obtida com os trabalhos do campo, que não somente deixa
os corpos melhores ou piores, como não é menos eficaz para emprestar à
alma essas mesmas qualidades. Porém entre todas essas regiões distinguem-
se particularmente as bafejadas por um sopro divino, sede particular de
demônios, os quais recebem favoravelmente os colonos que aí se instalam;
na falta dele, é o contrário disso que se observa. Eis o que o
legislador inteligente terá de estudar, na medida da capacidade humana,
antes de promulgar suas leis. É o que te compete fazer, Clínias; primeiro
terás de aplicar-te no estudo dessas questões, já que pretendes fundar uma
colônia.

Clínias — Falaste admiravelmente bem, forasteiro; farei isso mesmo.

LEIS

Livro VI

I — O Ateniense — Depois de tudo o que expusemos, chegou a hora de


prover de magistrados a cidade.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Há dois fatos a considerar na organização de qualquer


comunidade: inicialmente, a discriminação dos cargos e de seus ocupantes,
seu número e a maneira de empossá-los. De seguida, as leis que serão
atribuídas a cada magistratura, sua natureza, número e conveniência para
cada caso. Porém aproveitemos esta pequena pausa antes das eleições para
uma observação nada impertinente.

Clínias — Qual será?

O Ateniense — Isto aqui: É mais do que claro para toda a gente que, dada a
importância da obra do legislador, se uma cidade bem organizada incumbir
magistrados ineptos de aplicar leis excelentes, não somente ela não tirará o
menor proveito dessa superioridade e se exporá ao ridículo geral, como
colherá disso o maior dano e ignomínia que possam recair em qualquer
comunidade.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Mas, se for assim, admite comigo que é esse, precisamente,


o caso de tua constituição e de tua cidade. De início, já percebeste que para
concorrer, como é preciso, aos cargos oficiais, tanto os candidatos como
suas famílias terão de apresentar provas de capacidade, desde a infância até
o momento das eleições; de seguida, importa que os eleitores tenham
sido criados e instruídos no respeito às leis, e se mostrem capazes, por meio
de aprovação ou repulsa, de distinguir as pessoas merecedoras de uma ou
outra sorte. Ora, em se tratando de indivíduos que se juntaram de pouco,
desconhecidos uns dos outros, e mais: sem nenhuma educação, como fora
possível escolher certo os magistrados?

Clínias — Jamais o poderiam.

O Ateniense — Mas, como diz o ditado, quem quer brigar não aceita
desculpas. É o que eu e tu precisamos fazer, visto como, de teu lado, te
comprometeste com os cretenses a fundar a cidade — e contigo seriam dez
— conforme disseste, enquanto eu, da minha parte, prometi ajudar-te com o
modelo esboçado agora mesmo. Por gosto, não deixarei que nossa história
venha a ficar sem cabeça; com tantas digressões, ela parecerá informe.

Climas — Falaste muito bem, forasteiro.


O Ateniense — Não basta falar; pretendo fazer também o que me for
possível.

Clínias — É certo; ponhamos em prática todos os nossos planos.

O Ateniense — Assim será, se Deus quiser e conseguirmos vencer algum


tanto a velhice.

Clínias — Há de querer.

O Ateniense — Sem dúvida; acompanhemo-lo, então, e consideremos o


seguinte ponto.

Clínias — Qual será?

O Ateniense — Nas presentes circunstâncias, com quanta coragem e


intrepidez precisamos fundar uma cidade?

Clínias — Que tens em vista e com que intenção te manifestas dessa


maneira?

O Ateniense — Penso na despreocupação com que redigimos leis para


homens inexperientes, e me pergunto como eles aceitarão nossas leis,
depois de prontas. É mais do que evidente, Clínias, para toda a gente,
até mesmo para pessoas menos esclarecidas, que, de início, eles não
aceitarão de bom grado nenhuma de nossas leis. Só se pudéssemos esperar
o tempo suficiente para que tomassem parte na eleição dos magistrados os
cidadãos que, desde meninos, experimentassem nossas leis e se
familiarizassem com elas. Vindo a concretizar-se o que dissemos e, por
algum feliz expediente, tudo se harmonizasse, tenho quase certeza de que a
essa fase de transição se seguiria outra de completa estabilidade, o que
asseguraria vida bastante longa à cidade assim constituída.

Clínias — O argumento se me afigura irrespondível.

O Ateniense — Vejamos, então, se do seguinte modo acertamos com o


caminho. O que afirmo, Clínias, é que os habitantes de Cnosso, mais do que
os outros cretenses, não devem limitar-se a fazer sacrifícios de purificação
na faixa de terra que tencionais colonizar, porém cuidar, com o máximo
empenho, de que os primeiros magistrados sejam instruídos da maneira
mais segura e melhor que se possa imaginar. A nomeação dos outros não
exige tanto rigor; mas na escolha dos primeiros guardas da lei devereis
proceder com muito cuidado.

Clínias — Qual o caminho para isso e que normas devemos adotar?

O Ateniense — É o seguinte. Digo, filhos de cretenses, que compete aos


cnossenses, por isso mesmo que eles se sobressaem entre tantas cidades,
associar-se aos que vierem fundar a nova colônia, para escolher dentre estes
e seus próprios companheiros um total de trinta e sete pessoas, sendo
dezenove tirados dos colonos e o restante da própria Cnosso. Estes últimos,
os cnossenses cederão à colônia nascente, os quais te incluirão entre os
dezoito fundadores, mediante persuasão ou discreta violência.

Cnínias — E por que motivo, forasteiro, nem tu nem Megilo farão parte do
governo da cidade?

II — O Ateniense — Atenas é muito orgulhosa, Clínias, como o é também


Esparta, além de ficarem ambas longe demais. No teu caso, porém, tudo
corre às mil maravilhas, como também com os outros fundadores,
exatamente conforme a teu respeito dissemos agora mesmo. Já ficou
explicado o que precisaremos fazer nas presentes circunstâncias. Mas, com
o passar do tempo, estando bem consolidado o regime, a eleição
dos guardas se processará da maneira seguinte: tomarão parte nessa eleição
todos os que carregarem armas, tanto na infantaria como na cavalaria, e que
participaram de campanhas militares na idade certa. A eleição se fará no
templo considerado mais venerável; cada um depositará no altar da
divindade a tabuinha com o nome de seu candidato, o do pai e o da tribo e
do demo a que este pertencer; ao lado, escreverá seu nome com iguais
indicações. A quem quiser, será permitido retirar a tabuinha que não lhe
parecer convenientemente redigida e depositá-la na praça pública durante,
pelo menos,trinta dias. Os magistrados darão a conhecer a toda a cidade os
nomes dos trezentos primeiros indicados pelas tabuinhas, passando a cidade
a eleger dentre esses os de sua preferência e a comunicar de público
os nomes dos cem escolhidos nessa segunda eleição. No terceiro escrutínio,
dentre os cem, cada cidadão escolherá o candidato que quiser, caminhando
por cima das entranhas das vítimas; os trinta e sete que obtiverem maior
número de votos serão proclamados magistrados.

E agora, Clínias e Megilo, quem se incumbirá de regulamentar em nossa


cidade tudo o que diz respeito aos cargos e aos exames dos candidatos?
Reflitamos um pouco: não será forçoso haver alguém capaz disso nas
cidades recém-constituídas, mas também não é certo que não se encontra
ninguém nessas condições antes de serem eleitas todas as autoridades? No
entanto, isso é que teremos de obter, de qualquer jeito, e não gente sem
préstimo, porém do mais alto merecimento. Como diz o provérbio, o
começo é a metade de tudo, não havendo quem não deixe de aplaudir todo
belo começo. Para mim, este vale mais da metade, sendo certo que ninguém
ainda o elogiou devidamente.

Clínias — Tens razão.

III — O Ateniense — Mas, uma vez conhecido esse ponto, não passemos
por cima dele sem deixar bem claro nosso programa. De minha parte, só
vejo uma solução que, na presente conjuntura, se me afigura tão necessária
quão vantajosa.

Clínias — Qual é?

III — O Ateniense — O que eu digo é que o papel de pai ou mãe da cidade


que estamos na iminência de fundar, só pode caber à cidade que enviou a
colônia para esse fim, conquanto eu não ignore que sempre houve e haverá
desinteligência entre as metrópoles e as cidades nascentes. Mas, no presente
caso, a colônia é como uma criança, que, embora algum dia chegue a
discordar do pais, pelo menos por enquanto, dadas as deficiências de sua
educação, ainda ama seus genitores e é por eles distinguida, sendo junto dos
parentes que sempre procura refugiar-se, por ver em todos eles seus
aliados naturais. No meu modo de pensar, são esses os sentimentos que
devem prevalecer entre os cnossenses com respeito aos cuidados
indispensáveis para a nova cidade, e os desta com relação a Cnosso. O que
afirmo, pois, conforme disse agora mesmo, e não vejo inconveniente em
dizer-se duas vezes o que foi bem enunciado, é que os cidadãos de Cnosso
precisam cuidar de tudo isso de comum acordo com os novos colonos,
escolhendo dentre eles, com critério elevado, os mais velhos e distintos, em
número nunca inferior a cem. Uma vez chegados à nova cidade, é o que
afirmo, todos se esforçarão para que os magistrados sejam instruídos de
acordo com a lei e submetidos ao exame obrigatório. Resolvida essa parte,
os homens de Cnosso regressarão para a cidade de origem, enquanto a
comunidade recém-fundada procurará manter-se sozinha e prosperar por
conta própria.
A respeito dos trinta e sete, serão eleitos, agora e em todo o tempo por vir,
com as seguintes atribuições. Inicialmente, vigiarão a guarda das leis;
depois, verificarão as declarações em que os cidadãos comunicam
aos magistrados o montante de sua fortuna, que não pode exceder de quatro
minas para os mais abastados, três para a segunda classe, duas para a
terceira e uma para a quarta. Se vier a descobrir-se que alguém possui
mais do que declarou, todo o excedente lhe será confiscado, sem contarmos
que qualquer pessoa poderá mover processo contra ele, o que não será nem
belo nem honroso, mas infamante, se se provar que houve menosprezo das
leis, por interesse. Quem quiser, então, o acuse de cupidez e apresente
queixa aos próprios guardas das leis. Vindo a ser condenado, não receberá
parte alguma dos bens comuns, e, na hipótese de promover a cidade alguma
distribuição, ficará sem quinhão e reduzido ao seu lote originário. Enquanto
viver, tal sentença ficará inscrita em lugar público, para que todos possam
lê-la. Os guardas da lei não poderão exercer o cargo por mais de vinte anos,
nem serão empossados com menos de cinqüenta. Se for eleito aos sessenta,
só exercerá essas funções durante dez anos, e assim sucessivamente. A esse
modo, quem viver mais de setenta anos não deve pensar em ocupar um
posto de tamanha importância, ao lado dos outros magistrados.

IV — São essas as três funções iniciais dos guardas. Mas, à medida que as
leis avançarem, ser-lhes-ão impostas novas obrigações, em aditamento às
precedentes.

Chegou a vez de falar da eleição dos outros magistrados. Sim, porque,


depois dos generais do exército, precisaremos tratar de seus auxiliares
imediatos, os hiparcos ou comandantes da cavalaria, os filarcos para dirigir
os dez corpos das respectivas tribos, e os coordenadores dos corpos da
infantaria, que, de acordo com a denominação que lhes dá o povo, deverão
ser chamados taxiarcas. Os generais devem sair da própria cidade, por
proposta dos guardas das leis, e escolhidos por todos os que na idade legal
já participaram de expedições militares ou já tenham alcançado essa idade.
Se alguém for de parecer de que entre os não indicados há quem seja de
maior merecimento do que os escolhidos, apontará os dois nomes, o do seu
proposto e o de quem deverá ceder-lhe o lugar, fundamentando, sob
juramento, as razões de sua superioridade sobre o outro. A eleição se
decidirá a favor de quem obtiver maioria de votos, manifestando-se os
votantes com o gesto de levantar os braços. Os três mais votados nessas
condições serão eleitos estrategos e coordenadores de assuntos de guerra,
depois de submetidos às mesmas provas dos guardas das leis. De seguida,
os generais eleitos proporão doze taxiarcas como seus auxiliares, sendo um
para cada tribo. Tal como na eleição dos estrategos, pode
haver contraproposta para substituição de algum nome, sendo o processo da
decisão final igual ao da votação. A assembléia será convocada
provisoriamente por parte dos guardas das leis, antes da eleição dos prítanes
e do senado, no local mais sagrado e conveniente que for possível, hoplitas
de um lado e cavalarianos do outro, e num terceiro agrupamento as demais
unidades do exército. Todos tomam parte na eleição dos estrategos e dos
hiparcos; os taxiarcas só obterão os votos dos portadores de escudo, sendo
feita a eleição dos filarcas por toda a cavalaria. Os chefes da infantaria
ligeira, os dos arqueiros e de outras modalidades de combatentes serão
escolhidos pelos próprios generais. Só nos falta tratar da eleição dos
hiparcas, que serão propostos pelos mesmos que apresentaram os
estrategos, sendo que a escolha ou as contrapropostas se processarão da
mesma maneira que para os estrategos. Os cavalarianos, à vista da
infantaria, darão seu voto levantando a mão, sendo designados chefes da
cavalaria os dois mais votados. Os pleitos indecisos serão decididos numa
segunda votação. E se pela terceira vez ainda houver dúvida, a decisão final
ficará a cargo dos que presidirem, em cada caso, as eleições.

V — O conselho constará de trinta dúzias de membros; o número trezentos


e sessenta presta-se a subdivisões; esse número será divido em quatro
grupos de noventa, de forma que para cada classe censitária haverá outros
tantos conselheiros. Primeiro, todos os componentes da classe mais
abastada são obrigados a votar; quem se recusar, pagará a multa estipulada.
Depois de recolhidos, os votos serão selados. Na manhã seguinte far-se-á a
eleição dos membros da segunda classe da mesma maneira que os da
primeira; no terceiro dia votará quem quiser nos membros da terceira
classe. O voto só será obrigatório para os componentes das três primeiras
classes. Os membros da quarta classe, a de menores posses, poderão abster-
se de votar, sem, com isso, ficarem sujeitos a multa. No quarto dia, todos
votarão para a escolha dos representantes da quarta classe, a mais fraca de
todas, não sendo passíveis de multa os eleitores da terceira e da quarta
classe que não quiserem vitar; os da segunda e da primeira classe que se
recusarem a votar pagarão multa, no montante de três vezes a multa do
primeiro dia para a segunda classe e de quatro para a primeira. No quinto
dia, os magistrados exporão à vista de todos os cidadãos os nomes que
foram selados, votando todos novamente nessa relação, sob pena de pagar a
multa inicial. Depois de escolhidos cento e oitenta nomes para cada classe,
será sorteada a metade, que, após o exame, ficarão como senadores por um
ano.

Esse sistema de eleição representa um meio termo entre a constituição


monárquica e a democrática, que é onde sempre precisará conservar-se toda
forma de governo. Entre escravos e senhores não pode haver amizade,
como não podem ser conferidas iguais distinções entre os incapazes e as
pessoas de merecimento. Em se tratando de pessoas desiguais, a igualdade
vira desigualdade se lhe faltar a medida, sendo esses os extremos que
enchem as cidades de sedições. Nada mais verdadeiro do que o velho
ditado, de que a igualdade gera a amizade. Mas, qual seja a igualdade capaz
de semelhante efeito, é o que nos deixa perplexos e não é fácil resolver.
Pois há duas espécies de igualdade, designadas pelo mesmo nome, mas que,
sob muitos aspectos, são quase opostas entre si; uma, inclui medida, peso e
número, e as cidades e os legisladores podem introduzi-la na distribuição
das honrarias, o que deixarão a critério da sorte; porém a melhor e mais
verdadeira, a ninguém é fácil reconhecer. Pressupõe o julgamento de Zeus,
só chegando aos homens porção insignificante; mas o pouquinho que se
encontra nas cidades e nos particulares é fonte dos maiores bens. Ela é que
atribui mais ao que já é grande, e menos ao inferior, a ambos de acordo com
a natureza de cada um, maiores distinções para quem revelar maior virtude,
e o contrário disso para quem carecer de virtude e educação, atribuindo-a,
sempre, a cada um na proporção de seu merecimento. Para nós, a política
consiste precisamente nisto: justiça, e é sempre esforçando-se para atingir
essa igualdade, Climas, e com os olhos fixos nela, que devemos construir a
cidade em perspectiva. E se em qualquer tempo alguém fundar outra
colônia, só deverá ter em vista esse mesmo fim na formulação de suas leis,
nunca em benefício de alguns poucos tiranos, ou mesmo de um só, ou da
autoridade das multidões, mas sempre a justiça, no sentido há pouco
formulado, de estabelecer igualdade entre coisas desiguais, conforme a
natureza de cada uma. Todavia, não há cidade que, no seu conjunto,
não recorra a uma interpretação capciosa da igualdade, se não quiser expor-
se a sedições em alguma parte de si mesma. A equidade e a
condescendência reveladas neste particular, sempre que ocorrem, são outras
tantas soluções de continuidade praticadas na igualdade exata e perfeita,
contrariamente à justiça. Por isso mesmo, a fim de acalmar as multidões
sempre difíceis de contentar, é-se forçado a recorrer à igualdade obtida por
meio de sorteio, invocando a divindade e a boa fortuna e lhes suplicando
que dirijam a sorte para o que for mais justo. É assim que somos obrigados
a aplicar as duas igualdades, porém recorrendo o menos possível à que se
vale do acaso.

VI — Eis a razão, amigos, de precisar proceder dessa maneira a cidade que


quiser sobreviver. Assim como o navio em alto mar tem necessidade de ser
vigiado noite e dia: da mesma forma, qualquer cidade sujeita aos vagalhões
das outras comunidades e às ciladas de toda a espécie a que está
constantemente exposta, exige que seus magistrados se alternem desde cedo
até à noite, e da noite até cedinho, rendendo sempre um guarda a outro
guarda no seu posto, sem intermitência. Neste particular as multidões nada
fazem com capricho; por outro lado, é preciso tolerar que os
senadores passem a maior parte do tempo ocupados com os próprios
interesses e os assuntos de família. Por isso mesmo, serão distribuídos em
doze corpos, correspondentes aos doze meses do ano, recebendo sempre
cada grupo a guarda das mãos do grupo anterior, para ficarem em condições
de ouvir os que vierem de fora, ou mesmo os da própria cidade, com
alguma notícia ou para combinar o que convém responder a outras cidades,
ou de que modo receber estrangeiros a que fossem dirigidas consultas, e
também para evitar quanto possível as agitações que soem surgir por toda a
parte ou mesmo para remediá-las, sempre que declaradas, tão logo tenham
tomado conhecimento do fato. Por isso mesmo, o conselho que dirige o
destino da cidade deverá ter a faculdade de convocar ou dissolver as
assembléias, tanto nos casos previstos por lei como nas
ocorrências inesperadas e tão freqüentes. Tudo isso será atendido pela
dozena parte do conselho, que descansará onze meses por ano. De resto,
essa parte do conselho deverá exercer a guarda da cidade sempre de comum
acordo com seus colegas de ofício.
VII — Desse modo, a vida da cidade fica satisfatoriamente organizada.
Mas, para o resto do território, que cuidado e que ordem serão mais
convenientes? Depois de haver sido dividida em doze porções, tanto a
cidade como o território, não será preciso nomear quem se incumba de
vigiar as ruas, as casas, os edifícios públicos, os portos, o mercado, as
fontes e também os lugares sagrados, os templos e tudo o mais do mesmo
gênero?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Digamos, então, que deve haver zeladores, sacerdotes e


sacerdotisas para cuidar dos templos. Para as ruas e os edifícios públicos e
sua conservação, a fim de impedir que os homens os danifiquem, ou
animais, e também para que no recinto da cidade e nas suas imediações haja
a ordem necessária, será preciso eleger três espécies de autoridades: os
astínomos ou diretores da cidade cuidarão das funções acima especificadas;
os agoránomos ou diretores do mercado, de sua boa administração; quanto
aos sacerdotes e sacerdotisas dos templos, não se tocará nos que receberam
o ofício por herança paterna; mas, como é natural nos casos de fundação de
uma nova colônia, em que muito pouca gente, ou mesmo ninguém, exerceu
essas funções, para as divindades que ainda não tenham zeladores
hereditários serão nomeados sacerdotes de ambos os sexos. Esses novos
cargos serão providos, em parte, por eleição, e em parte por sorteio, para o
que se misturarão nos territórios e nas cidades as classes do povo e as que
o não forem, com o fito de promover concórdia e amizade entre todos. Para
o serviço divino, será bom deixar que a própria divindade manifeste suas
preferências, entregando tudo á sorte, vale a dizer: à fortuna
divina. Todavia, cada um dos sorteados será submetido a exa-me, para ficar
esclarecido, primeiro, se é são de corpo e provém de nascimento legítimo;
depois, se a familia está isenta de qualquer senão e não se manchou com
crime de morte ou faltas contra as divindades, e também se o pai e a mãe
tiveram vida pura. Encomendar-se-ão em Delfos as leis para o culto, sendo
instituídos intérpretes para explicar a maneira de aplicá-las na prática. A
função sacerdotal terá a duração de um ano, não mais, porém não deverá ter
menos de sessenta anos quem se propuser a realizar dignamente as
cerimonias relativas ao culto divino. Idênticos dispositivos se aplicam às
sacerdotisas. Os intérpretes serão eleitos em três escrutínios, à razão de
quatro por grupo de quatro tribos, um para cada tribo. Depois de
examinados os três mais votados, os outros nove serão enviados a
Delfos, onde a divindade escolherá mais um em cada grupo de três. Os
exames e o limite de idade serão iguais aos exigidos para os sacerdotes. A
função de intérprete é vitalícia. Vindo a faltar algum, o grupo das quatro
tribos de origem elegerá seu substituto. Para cada templo, também, serão
eleitos administradores dos tesouros sagrados, o qual cuidará do santuário,
das colheitas e dos arrendamentos, escolhidos entre os cidadãos de maiores
posses, à razão de três para os templos grandes, dois para os médios e um
para os menores. O exame e a eleição de todos serão como os dos generais.
Tais são os dispositivos pertinentes aos assuntos sagrados.

VIII — Dentro do possível, tudo terá seu guardião. A guarda da cidade


ficará aos cuidados dos estrategos, taxiarcas, hiparcas, filarcas e também
dos prítanes, dos astínomos e dos agoránomos, depois de
devidamente eleitos e empossados. O restante do território será fiscalizado
da seguinte maneira. Toda a região foi por nós dividida em doze porções,
tão iguais quanto possível. A tribo indicada pela sorte para cada uma dessas
porções apresentará todos os anos cinco agrônomos e frurarcas, os chefes
de guarda, os quais escolherão em suas respectivas tribos doze dos
considerados jovens cinco anos antes, que não tenham menos de vinte e
cinco anos nem mais de trinta. A cada um deles, mensalmente a

sorte designará uma parte do território, para que todos possam adquirir
conhecimento exato da região. O ofício de agrônomo e de chefe de guarda
dura dois anos. O primeiro mês no lote que lhes coube por sorte,
mensalmente os frurarcas os transferirão para a secção confinante, à direita,
no sentido da circunferência. Por Direita entende-se a direção do nascente.
Terminado o ano, para que o maior número possível de guardas não fique
conhecendo o país apenas numa estação e numa região determinada, e o
maior número possível adquira experiência do que se passa em cada lugar
em todas as estações, iniciado o segundo ano os chefes os guiarão em
sentido contrário, para a esquerda, mudando-os sucessivamente de lugar, até
o término desse ano. No terceiro ano serão escolhidos outros cinco
agrônomos e frurarcas, com doze guardas sob suas ordens. Durante sua
permanência em cada região, terão mais ou menos as seguintes obrigações.
Em primeiro lugar, fortificar o mais possível o terreno contra os inimigos,
cavando fossos onde se fizer preciso e levantando muros e outras
fortificações para conter, da melhor maneira, as incursões depredatórias dos
inimigos, no território e nos rebanhos. Para tanto, valer-se-ão dos animais e
dos escravos da região, fazendo-os trabalhar sob sua direção e escolhendo
de preferência as folgas das obrigações cotidianas. O território deve ser de
difícil acesso para os inimigos, mas para os amigos, tão fácil quanto
possível, homens, rebanhos e animais de carga. Todos envidarão esforços
para deixar transitáveis as estradas e para que as chuvas de Zeus, longe de
prejudicarem a terra, a beneficiem, quando descerem das alturas para os
vales profundos das montanhas. Por meio de barragens e de fossos
impedirão o transborda mento, para que os vales retenham e absorvam a
água enviada por Zeus, fazendo surgir nos campos, por toda a parte, fontes
e olhos d'água, e as zonas mais secas tenham água límpida em abundância.
As águas correntes, sejam de fontes, sejam de regatos, terão ornamentadas
as suas margens com plantas e construções variadas, e por meio de
canais far-se-á abundante irrigação durante todo o ano. Havendo na
vizinhança algum bosque ou recinto sagrado,

a correntinha d'água será aproveitada para embelezar o próprio templo da


divindade. Por toda a parte, nesses locais consagrados os jovens terão de
construir ginásios para eles mesmos e para os velhos, providos
também, para estes últimos, de banhos quentes e basta provisão de lenha
seca e fácil de queimar, para benefício dos doentes e alívio dos
trabalhadores, depois da labuta na terra, cuidados de que o corpo tira mais
proveito do que o faria nas mãos de um médico de parcos conhecimentos.

IX — Todas essas construções, além de proveitosas, contribuirão para o


embelezamento do lugar, sem contar que se trata de uma ocupação a que
não falta certo atrativo. Sua parte séria consiste no seguinte: Aqueles
sessenta agrônomos defenderão as respectivas regiões não apenas contra os
inimigos de fora como também contra os pretensos amigos. Quando algum
vizinho, ou mesmo morador da cidade, escravo ou homem livre, causar
prejuízo a alguém, tratando-se de fato sem maior importância, os cinco
chefes farão justiça ao queixoso; os casos mais graves, de penalidade
máxima de três minas, serão julgados por dezessete, com o concurso de
mais doze em todos os processos que os cidadãos promoverem entre eles
mesmos. Nem juízes nem magistrados ficam dispensados de prestar
contas do que fizerem no exercício de suas funções, com exceção dos que
se pronunciarem em última instância, como será o caso dos reis. Por outro
lado, se os agrônomos ofenderem algumas das pessoas sob sua dependência
administrativa, impondo-lhes tarefas exorbitantes ou tentando tirar-lhes os
instrumentos de trabalho do campo ou deles apossar-se sem anuência do
dono; ou se receberem presentes das partes interessadas, ou distribuírem
sem critério a justiça: os que se revelarem corruptos serão rebaixados ante a
vista de todos os cidadãos. Para as outras faltas que hajam praticado
contra a gente de seu distrito, até à importância de uma mina, submeter-se-
ão ao julgamento dos aldeãos e dos vizinhos. Nos casos mais graves, e até
mesmo nos leves, sempre que se recusarem a comparecer, por acreditarem
que ficarão livres do processo com a mudança

mensal da região, o queixoso ficará com o direito de recorrer aos tribunais


públicos, e em ganho de causa exigirá o dobro da indenização que o
cuIpado se recusara a pagar.

Durante os dois anos de serviço, os chefes e os agrônomos viverão da


seguinte maneira: Inicialmente, em cada local serão organizadas sissítias,
para que todos façam em comum as refeições. Quem faltar a esses repastos,
ainda mesmo que seja apenas uma vez, ou dormir fora uma noite, sem
licença expressa dos chefes e não sendo caso de necessidade provada, se for
denunciado pelos cinco e estes inscreverem seu nome na ágora, por haver
abandonado o posto, será declarado infame por traição à pátria naquilo que
dependia dele, podendo quem o encontrar zurzi-lo impunemente
com bastonadas. Se algum dos chefes incorrer em falta desse gênero, os
sessenta tomarão conta do caso. E quem o vir cometer a infração ou dela
tomar conhecimento e não denunciar o culpado, será julgado pelo
mesmo processo e castigado com mais severidade do que os jovens, além
de ficar excluído de todos os cargos honoríficos da competência destes.
Cabe aos guardas da lei exercer vigilância rigorosa com respeito a fatos
dessa natureza, para que não venham nunca a produzir-se, nem, depois de
praticados, deixem de receber os faltosos o castigo merecido. Todos
precisam convencer-se de que quem nunca serviu, nunca chegará a
mandar com autoridade, e que todos devem ter mais orgulho em obedecer
do que em comandar, a principiar pelas leis, o que equivale a obedecer aos
deuses; depois, em se tratando de moços, as pessoas mais velhas que
tiverem vida honrada. Ademais, os encarregados da direção dos serviços no
campo, durante esses dois anos devem adotar, dia por dia, um regime parco
e de alimentos frios. Depois de eleitos os doze, juntamente com os cinco,
declararão que, na qualidade de servidores, não têm necessidade de outros
criados nem de escravos, e que não recorrerão aos criados de outras
pessoas, nem a camponeses e lavradores, para seu serviço particular, senão
apenas quando o exigir o interesse da comunidade. Em tudo o mais,
precisarão convencer-se de que te-rão de viver só contando com eles
mesmos para servir e serem servidos, sem falar que, tanto no verão como
no inverno eles vasculharão, armados, todo o território, para melhor guardá-
lo e conhecê-lo. Não há, talvez, estudo que não ceda em dignidade e
nenhum outro como o conhecimento a fundo de sua própria terra. Com
esse fim é que os moços devem praticar a caça, ou com cães ou de outro
modo, não pelo prazer que nisso encontrem ou as vantagens decorrentes de
tais ocupações. Assim, quer sejam chamados criptos, ou agrônomos,
ou como bem lhes parecer, todos precisarão exercer suas funções com a
maior dedicação possível, caso queiram conservar sua cidade em boas
condições.

X — Depois desses, em matéria de eleição dos magistrados, vêm os


agoránomos e os astínomos. Aos agrônomos, num total de sessenta,
seguem-se três estínomos, os quais, dividindo em três as doze secções
da cidade, à imitação dos agrônomos, cuidarão tanto das ruas da cidade e
dos caminhos que convergem da campanha para seus muros, como dos
edifícios públicos, para que uns e outros sejam construídos de acordo com a
lei. Outrossim, ocupar-se-ão com as águas que os agrônomos lhes enviarem,
e as distribuirão depois de convenientemente tratadas, para que corram
límpidas e em abundância nas fontes, e, além de úteis para a cidade, lhe
sirvam de ornamento. É preciso que esses funcionários tenham capacidade e
lazer suficientes para se ocuparem com os negócios públicos; por isso, os
cidadãos poderão propor para o cargo de astínomo o nome que quiserem,
porém tirando-o sempre da classe mais abastada. O voto será expresso com
o braço levantado, e depois de haver seis com maior número de
sufrágios, os dirigentes do pleito sortearão três, que, após os exames
competentes, exercerão suas funções de acordo com as leis estabelecidas
por eles.
De seguida, serão eleitos os agoránomos ou inspetores do mercado, tirados
da segunda e da primeira classes censitárias, processando-se em tudo o mais
a eleição como para os astínomos. Dos dez primeiros votados segundo a
maneira indicada, cinco serão sorteados e, depois do respectivo exame,
proclamados magis-

trados. Todos os cidadãos votarão em todos os pleitos; em caso de omissão,


vindo a ser denunciado o infrator perante as autoridades, ser-lhe-á imposta a
multa de cinqüenta dracmas, além de adquirir a pecha de mau cidadão.

Quem quiser poderá tomar parte nas assembléias ou reuniões públicas,


sendo obrigatório o comparecimiento para os componentes da segunda e da
primeira classes, com a pena de dez dracmas para os faltosos. Os membros
da terceira e quarta classes não são obrigados a comparecer, ficando, assim,
livres de multa, a menos que os magistrados, por força das circunstâncias,
houvessem decidido antes a obrigatoriedade do comparecimiento. Os
agoránomos cuidarão, nos mercados, do bom cumprimento dos dispositivos
legais, e bem assim dos templos e das fontes da praça, para evitar que
alguém as danifique. Quem incorrer nessa falta, sendo escravo ou
estrangeiro, será castigado com pena de açoites e de prisão; se for indígena
o autor de tais depredações, os agoránomos têm autoridade para impor-
lhe multa de até cem dracmas; subindo a multa até o dobro dessa
importância, juntamente com os astínomos julgarão e punirão o
delinquente. Também faz parte das atribuições dos astínomos, no
desempenho de suas funções, impor multas e punir; somente eles, até
uma mina de multa; o dobro disso, de comum acordo com os agoránomos.

XI — De seguida, terão de ser instituídos os inspetores de música e os de


ginástica, com vistas à instrução dos cidadãos; os dois primeiros, para as
competições. Por inspetores de instrução, pretende indicar a lei
os encarregados de fiscalizar a ordem e a maneira de ministrar o ensino nos
ginásios e nas escolas, e de zelar para que os jovens de ambos os sexos
freqüentem regularmente a escola e sejam bem alojados. Na parte
das competições, refere-se aos árbitros nos concursos de ginástica e de
música; aqui, também, com as atribuições divididas, uns para as
competições musicais e outros para os de luta corporal. Nas competições
humanas e nos certames hípicos podem decidir os mesmos juízes; porém no
domínio da música serão diferentes: de um lado, as monodias e as artes
imitativas, estando nesse caso os rapsodos, os citaredos, os flautistas e
outros artistas do mesmo gênero, que terão seus julgadores à parte; de outro
lado, o canto coral também terá os seus. Inicialmente, no que respeita às
diversões com os coros compostos de crianças, homens feitos e meninas,
será preciso eleger os diretores para as danças e outros números com
participação da música. Para isso, bastará um diretor com nunca menos de
quarenta anos. Para as monodias, um também será suficiente, com trinta
anos no mínimo, que funcionará como instrutor dos concorrentes e dará a
sentença com o critério de esperar. O presidente e coordenador dos coros
será eleito da seguinte maneira: todos os que revelarem gosto para essas
coisas serão convocados, sendo multados os que não comparecerem à
reunião. Competirá aos guardas das leis julgar em semelhantes conjunturas.
Os outros não serão obrigados a comparecer. Os eleitores escolherão seus
candidatos entre as pessoas com experiência na matéria, e o exame para
admissão ou exclusão só levará em linha de conta a competência ou
incapacidade de um e de outro lado. Um dos dez mais votados presidirá
nesse ano aos coros, de acordo com a lei. Idêntico processo será adotado
para o que a sorte designar aquele ano entre os que se apresentarem para
julgar as monodias e os concertos de flauta, deixando ao critério dos juízes
a decisão final. De seguida, será preciso escolher entre os da terceira e da
segunda classe censitária os árbitros para os concursos de exercícios físicos
de homens ou de cavalos. Participarão obrigatoriamente da eleição os
componentes das três primeiras classes, não incidindo multa na mais pobre.
Serão escolhidos três dentre os vinte indicados previamente pelos eleitores
e que também tiverem tido voto favorável dos examinadores. Se algum for
excluído dessa função, ou pelo sorteio ou pelo julgamento, será eleito outro
em seu lugar, segundo as mesmas regras, depois do que passará por idêntico
exame.

XII — Dentre os magistrados a que nos referimos acima, resta falar do


diretor geral da educação dos jovens de ambos os sexos. Segundo a lei, só
haverá um diretor, com a idade mínima de cinqüenta anos, pai de filhos
legítimos, sendo melhor que haja filhos e filhas, ou, em último caso, só de
um dos sexos. Tanto o escolhido como os que votaram nele precisam
considerar que, dentre os cargos importantes da república, este é o de maior
responsabilidade. O embrião de todo ser vivo, quando começa a
desenvolver-se com pujança na direção da excelência de sua própria
natureza, atinge galhardamente o ponto alto de sua perfeição, quer se trate
de homens, quer de plantas e de animais, selvagens ou domesticados.
Podemos dizer que o homem é uma criatura mansa. Aliando-se nele boa
educação a um natural feliz, torna-se, de regra, o mais tratável e divino dos
seres; porém o mais feroz de quantos a terra já produziu, sempre que a
educação for insuficiente ou mal orientada. Eis a razão por que o legislador
não deve considerar o problema da educação das crianças como algo
acessório ou de somenos importância. Por isso mesmo que o começo deve
consistir na boa escolha desse diretor, terá o legislador de confiar essa
função ao cidadão mais completo em todos os sentidos. A esse modo, todas
as autoridades, com exclusão dos membros do conselho e dos prítanes, se
reunirão no templo de Apolo e votarão por escrutínio secreto no guarda das
leis que cada um considerar mais capaz de dirigir a educação. O que obtiver
maior número devotos, depois de examinado pelos magistrados que o
elegeram, com exceção dos guardas das leis, exercerá essas funções durante
cinco anos; no sexto ano será eleito outro para esse mesmo cargo, por
idêntico processo.

No caso de vir a morrer algum dos ocupantes desses cargos públicos mais
de trinta dias antes do fim de seu mandato, os encarregados de zelar por
esse assunto providenciarão para eleger, pelo mesmo sistema,
seu substituto. Vindo, também, algum órfão a perder seu tutor legítimo, os
parentes por parte de pai ou de mãe que se encontrarem na cidade, até os
filhos de primos-irmãos, elegerão outro tutor dentro do prazo de dez dias,
sob pena de cada um pagar multa de uma dracma por dia, enquanto não
derem curador para o órfão.

XIII — Evidentemente, não poderá ser considerada cidade o ajuntamento


de homens que não tiver tribunais bem constituídos. Um juiz mudo, ou que
no sumário não fale mais do que as partes, como sói acontecer nos casos de
arbitramento, nunca ficará em condições de distribuir justiça; do que se
conclui não ser fácil decidir bem, nem quando são muitos os julgadores,
nem quando poucos e incompetentes. É preciso que fique claro o motivo do
dissídio entre as partes, sendo fatores de vantagem para o bom julgamento
da causa, tempo, vagar e repetidas investigações. Por isso, convém que os
que se acusam reciprocamente dirijam-se primeiro aos vizinhos e amigos e
a quantos estejam a par da questão em litígio. Se porventura as partes
não ficarem satisfeitas com a decisão, recorram a outro tribunal, e mais a
um terceiro, se os dois primeiros não chegarem a resolver a pendência, o
qual decidirá em última instância.

De certo modo, constituir um tribunal equivale a eleger magistrados, pois o


magistrado, por força terá de ser juiz em algumas questões, e o juiz que não
for magistrado torna-se isso mesmo, e com certa dignidade, na hora de
enunciar a sentença. Equiparemos, pois, os magistrados aos juízes, e
definamos como devem ser, qual o âmbito de sua competência e quantos
precisará haver em cada tribunal. A melhor corte judiciária, sem dúvida, é a
que as próprias partes formam, com elegerem seus componentes de comum
acordo. Para as demais causas haverá duas espécies de tribunal: primeiro,
na hipótese de queixa em justiça, de um cidadão contra outros, quando um
particular imagina que a comunidade foi lesada por alguém e se apresenta
em defesa dos interesses públicos.

Chegou a vez de falar dos juízes e de sua escolha. Inicialmente, tratemos do


tribunal dos cidadãos comuns que recorrem à terceira instância em
questões particulares, o qual se constituirá do seguinte modo. Todos os
magistrados nomeados por um ano ou por tempo mais dilatado, na véspera
do dia em que principia o ano com a lua que segue o solstício do verão,
se reunirão num só templo e, depois de invocarem a divindade como
testemunha de seu juramento, a título de primícias da magistratura
escolherão um juiz, o que mais se tenha sobressaído no exercício de suas
funções anteriores e que lhes pareça o melhor e mais capaz de decidir no
ano entrante os processos de seus concidadãos. Depois de escolhidos, os
juízes serão examinados pelos próprios eleitores, e no caso de algum ser
recusado, será eleito outro nas mesmas condições. Os escolhidos se
manifestarão nos processos que fogem dos outros

tribunais, e seu voto é dado a descoberto. Por força de seus próprios cargos,
os conselheiros e as autoridades que os elegeram funcionarão como
auditores e testemunhas do processo; os demais assistirão se quiserem. Se
alguém acusar um juiz de haver deliberadamente decidido com injustiça,
apresente sua queixa aos guardas das leis. Confirmada a culpa, o juiz será
obrigado a ressarcir o prejudicado de metade do dano sofrido, e na hipótese
de o considerarem passível de maior penalidade, os juízes do processo
determinarão a diferença da pena ou o que ele terá de pagar à comunidade e
ao queixoso. Nos crimes contra o poder público, é indispensável que o povo
participe do julgamento, pois todos são igualmente vítimas quando a cidade
é lesada, e com razão sentiria o povo ver-se excluído de processos dessa
natureza. Mas, se o começo e o fim de tais processos são confiados ao povo,
a instrução ficará a cargo dos três mais altos magistrados, escolhidos de
comum acordo pelas partes. Se não chegarem a um acordo nessa escolha, o
conselho decidirá pelos interessados. É preciso, também, que todos
participem, tanto quanto possível, do julgamento das causas particulares;
pois quem se vir privado do privilégio de julgar juntamente com seus
concidadãos, considera-se excluído da comunidade. Daí, a necessidade de
haver um tribunal para cada tribo e de decidirem imediatamente suas causas
os juízes sorteados, sem se dobrarem a pedidos de terceiros. Em todos esses
casos, a decisão final ficará a cargo do tribunal, que, conforme dissemos,
dentro das possibilidades humanas deverá ser formado pelos mais íntegros
juízes que seja possível encontrar, os quais julgarão as causas que não
tenham sido resolvidas nem pelos vizinhos nem pelos tribunais das
respectivas tribos.

XIV — Até aqui, no que respeita aos nossos tribunais — dos quais
dissemos não ser fácil decidir com se-

gurança se são ou não magistraturas — só apresentei uma espécie de


esboço, tendo-me limitado a mencionar algumas de suas funções e deixado
muita coisa de lado. No término de nossa faina legislativa apresentaremos
o contexto completo e definitivo das leis relativas aos processos, e também
as várias jurisdições dos tribunais. Elas que nos esperem até o final, é o que
lhes diremos. Com referência à instituição das outras magistraturas, penso
que já foram enunciadas, praticamente, as principais leis; porém não será
possível fazer uma idéia clara do conjunto e de certas particularidades de
tudo o que toca com a administração da cidade e da política em geral, sem
incluirmos em nosso esboço, desde o princípio, as segundas partes e as do
meio e tudo mais que for preciso para atingirmos o fim. Por enquanto,
já que chegamos até às eleições dos magistrados, podemos considerar essa
porção como o remate de tudo o que ficou exposto, o que nos permite tratar
da legislação propriamente dita, sem hesitações nem adiamentos.
Clínias — Tudo o que expuseste até esta altura, forasteiro, me agrada
plenamente; porém mais grato, ainda, nos será ligares ao fim do que
disseste antes o começo do que pretendes enunciar.

O Ateniense — Parece que até agora nos conduzimos muito bem no nosso
jogo de velhos ajuizados.

Clínias — Se não estou enganado, o que pretendes significar é que se trata


de uma ótima ocupação para homens.

O Ateniense — Sem dúvida; porém vejamos se também pensas como eu.

Clínias — Que queres dizer com isso, e a respeito de quê?

O Ateniense — Como sabes muito bem, parece não ter fim o trabalho dos
pintores com suas figuras, na faina incessante de deixar mais vivas ou
fracas as cores, ou como quer que os filhos dos pintores denominem essa
operação, só parecendo que eles não podem parar de embelezar suas
pinturas, até o ponto em que nada mais seja possível acrescentar, para
deixá-las mais belas e expressivas.

Clínias — Ouvindo-te, compreendo mais ou me-nos o que queres dizer,


pois nessa arte sou jejuno de todo.

O Ateniense — Nada perdes com isso. Porém aproveitemos o argumento


que tal arte nos sugere, para a seguinte observação: se alguma vez ocorresse
a alguém pintar a mais bela figura possível, de forma que nada perdesse
com o tempo e só ganhasse em perfeição, compreendes muito bem que, na
qualidade de mortal, se ele não deixar um sucessor para reparar os
desgastes naturais do tempo em sua obra, e capaz até mesmo de suprir
alguma deficiência do artista, com restaurar o brilho primitivo do conjunto
a aperfeiçoá-lo de contínuo: para tão grande tarefa disporá de muito
pouco tempo.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — E agora?, Não te parece que a intenção do legislador seja a


seguinte? Para começar, dispõe-se a redigir as leis com a maior exatidão
possível. De seguida, com o avançar do tempo e depois de experimentar na
prática a excelência de seu trabalho, achas mesmo que pode haver
legislador destituído de senso, a ponto de ignorar que fatalmente terá de
deixar muitos defeitos para serem corrigidos por quem vier depois, para
que, em vez de piorar, só melhore a constituição e a ordem da cidade
fundada por ele?

Clínias — Sem dúvida; como não? Qualquer legislador nas suas condições
pensaria assim mesmo.

O Ateniense — E se houvesse algum meio, por atos ou palavras, de ensinar


a outrem, de maior ou menor capacidade do que ele, a maneira de conservar
ou aperfeiçoar as leis, não é certeza que ele não cessaria de doutriná-lo
nesse sentido, até realizar seu intento?

Clínias — Como não?

O Ateniense — E não é isso mesmo que, no presente caso, tanto eu como


vós dois precisamos fazer?

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Já que nos achamos no ponto de redigir leis, e para isso


escolhemos os guardas necessários, estando nós no ocaso da vida, enquanto
eles, comparativamente, são jovens, será preciso, conforme declaramos, que
paralelamente à nossa faina, dentro do possível, façamos deles, além de
legisladores, bons e competentes guardas das leis.

Clínias — Sem dúvida, uma vez que não nos falte capacidade.

O Ateniense — Pelo menos, precisaremos tentar e esforçar-nos nesse


sentido.

Clínias — Como não?

V — O Ateniense — Falemos-lhes nos seguintes termos: Caros salvadores


de nossas leis! Passaremos por cima de muitas questões referentes à
legislação. É inevitável. Mas, no que respeita a certas particularidades
à idéia do conjunto, não deixaremos, na medida de nossas forças, de
apresentar uma espécie de esboço. A vós caberá desenvolvê-lo. O que
deveis ter sempre em vista, para vos desincumbirdes dessa tarefa, é o que
passareis a ouvir agora mesmo. Mais de uma vez, eu, Megilo e Clínias
conversamos a esse respeito, convencidos de que estamos no caminho
certo. Agora, não apenas queremos vosso apoio, como também que vos
torneis nossos discípulos, a fim de dirigir a vista para a meta por nós
determinada de comum acordo e da qual não devem desviar os olhos os
legisladores e os guardas das leis. Nosso ponto de vista comum consiste,
primacialmente, em formar homens de bem, com todas as virtudes da alma
próprias do homem, e em saber por que ocupações ou hábitos ou
aquisições, desejos, opiniões ou conhecimentos de natureza especial poderá
alguém alcançar esse desiderato, quer se trate de uma natureza masculina,
quer feminina, dentre os componentes da colônia, ou moço ou velho, o qual
dirigirá seus esforços a vida inteira na direção por nós preconizada, sem
que nenhum jamais se mostre inclinado para o que possa surgir como
obstáculo a esse intento, sim, e até mesmo prefira abandonar a cidade,
quando se vir diante da alternativa de dobrar-se sob o jugo da escravidão e
ser mandado por gente inferior, ou trocar a pátria pelo exílio. Tudo isso
deverá um suportar, de preferência, a aceitar alguma constituição
naturalmente feita para perverter os homens. Acerca de todos esses pontos
já nos pusemos de acordo; compete-vos, agora, considerar ambos os
aspectos, para aprovar ou rejeitar as leis que não contribuírem para
semelhante fim, e acolher com a maior boa vontade as que se revelarem
idôneas para tanto, passando, assim, a viver de conformidade com elas.
Quanto às práticas que só visam à aquisição dos denominados bens, será
preciso dar-lhes um adeus definitivo.

Seja, agora, o começo das leis subseqüentes o que entende com a religião.
Porém antes disso voltemos ao nosso número cinco mil e quarenta e às
divisões tão cômodas que comportava e ainda comporta o número total, e
também o das tribos, que é, conforme observamos, a dozena parte de algum
número e o produto exato de vinte e um por vinte. Temos doze partes para
o conjunto e doze para cada tribo. Cada uma dessas partes deve ser
considerada sagrada, verdadeira dádiva dos deuses, por corresponderem aos
meses e à revolução anual do universo. A esse modo, toda a cidade
segue seu próprio instinto, ao santificar essas divisões. Algumas poderão ter
feito divisões mais corretas e consagrado uma distribuição mais feliz. No
nosso caso, parece-nos acertada a escolha do número cinco mil e
quarenta, visto ser ele divisível por todos os números, de um a doze, com
exceção de onze, para o que, aliás, há um remédio muito fácil: com a
supressão de duas famílias, o número ficará em ordem. A verdade dessa
proposição poderia ser facilmente demonstrada numa exposição sucinta.

Dando, pois, inteiro crédito aos princípios agora enunciados, façamos nossa
divisão e dediquemos cada parte da cidade a alguma divindade ou a um dos
filhos dos deuses, consagremos-lhes os respectivos altares com todos os
seus pertences e promovamos nesses locais duas reuniões por mês, a saber,
doze para as divisões rurais das tribos, e doze para as frações urbanas, com
o fim precípuo de conciliar as boas graças dos deuses, mas também em
nosso próprio benefício, para nos tornarmos mais íntimos e nos
conhecermos melhor, se se pode assim falar, bem como no interesse de
nossas relações. Com efeito, para os contratos de noivado e casamento, é
preciso acabar com a ignorância, tanto a respeito da família em que se vai
buscar a noiva, como daquela a que se dá a filha em casamento, pondo o
máximo empenho para que, dentro do possível, não haja o menor equívoco
em semelhante assunto. Em se tratando de urna causa tão séria, é de toda
conveniência promover diversões com coros de dança para jovens de ambos
os sexos, rapazes e raparigas, em que uns e outros se mostrarão e se verão
reciprocamente na idade própria, sempre que se oferecer oportunidade para
isso, e despidos até o ponto que um sabio pudor aconselhar. A organização e
vigilância desses coros ficará aos cuidados dos legisladores e dirigentes dos
coros, os quais, com a cooperação dos guardas das leis,
regulamentarão também os pontos que porventura tenhamos omitido. Pois é
inevitável, e a isso já nos referimos, que em assunto de tal magnitude o
legislador deixe passar muitas particularidades de importância secundária.
Compete aos que adquiriram experiência no decurso do ano e aprenderam
com a prática, verficar o que falta e todos os anos introduzir alterações para
melhor, até que esses regulamentos e dispositivos atinjam um limite
razoável de precisão. Prazo, a um tempo, restrito e suficiente para adquirir
experiência de tais sacrifícios e dessas danças em todas as suas
particularidades, seria o de dez anos. Enquanto viver o legislador que
coordenou essa parte, tudo se fará de combinação com ele; depois de morto,
os diferentes corpos de magistrados apresentarão aos guardas das leis uma
lista das falhas que devem ser corrigidas nos respectivos setores, até cada
um considerar completo o trabalho de reestruturação. Daí em diante, ficarão
inalteráveis, sendo aplicadas como as demais leis estabelecidas pelo
legislador, nas quais a ninguém é permitido introduzir a menor
modificação. Mas, em caso de necessidade forçosa que pareça justificar
alteração, serão ouvidos os magistrados, o povo e os oráculos divinos;
havendo concordância de opiniões, far-se-á a mudança sugerida; de outra
forma, jamais serão modificadas, sendo tratado sempre de acordo com a lei
o autor de qualquer objeção.

XVI — Seja quando for, na família em que um jovem completar vinte e


cinco anos, se este achar que encontrou uma pessoa do seu agrado para a ela
unir-se e com ela procriar filhos, deverá casar-se antes dos trinta e cinco
anos; porém ouça primeiro como deve procurar esposa que lhe convenha.
Como disse Climas, toda lei deve ser precedida de um prelúdio apropriado.

Climas — Fizeste bem, forasteiro, em lembrar esse ponto, no momento


mais feliz, segundo creio, de tua exposição.

O Ateniense — Ótima observação. Menino, diriamos ao filho de boa


familia; em matéria de casamento toda escolha deve ser feita de acordo com
o parecer de pessoas sensatas, que te aconselharão a não fugir
sistematicamente de casamento pobre nem procurar com empenho alianças
ricas; mas, se em tudo o mais as condições se equilibrarem, escolhe sempre
para companheira uma pessoa de origem modesta. Um casamento nessa
base é mais vantajoso para a cidade e para as familias contratantes; a
igualdade e a concórdia são muito mais favoráveis para a virtude do queo
desequilibrio. De pessoas equilibradas é que ambicionará ser genro quem
tiver consciência de seu temperamento arrebatado e mais violento do que
convém. Quem for, por natureza, de constituição oposta a essa, fará bem em
procurar sogros diferentes. De modo geral, o casamento se resume no
seguinte: quem escolhe noiva deve visar, em primeiro lugar, à vantagem da
comunidade, não ao que lhe for mais agradável. Mas, o que acontece é que
todos são naturalmente inclinados a escolher quem mais se lhe assemelhe,
do que resulta, para a cidade, tanta desigualdade em matéria de riqueza e de
caracteres. Daí passar, de regra, a maioria das cidades pela
experiência desagradável daquilo que não desejamos para a nossa. Porém
deixar expressamente escrito na lei que o cidadão rico não deve casar com
filha de pais abastados, nem o poderoso com jovem de família influente,
ou exigir que as pessoas de gênio arrebatado só se liguem pelo matrimônio
com as de temperamento calmo, e o inverso: procurar a de índole pacata
quem for de gênio arrebatado, além de ridículo, despertaria oposição geral.
Realmente, não é fácil compreender que a cidade deve ser misturada como
uma taça em que o vinho ferve com fúria, quando nela despejado; porém,
quando corrigida por uma divindade sóbria, beneficia-se com a companhia,
com transformar-se numa bebida salutar e temperada. Mas, o que ninguém,
por assim dizer, é capaz de enxergar, é que o mesmo acontece com a
mistura dos filhos. Essa, a razão de sermos obrigados a desistir de alcançar
tal resultado com a lei, e de tentar convencer os cidadãos, por meio de
encantamentos, de que é preferível atender mais entre eles mesmos à
igualdade dos filhos do que à das alianças que nunca se fartam de riquezas.
É com admoestações desse tipo, e não pela coação da lei escrita, que se
conseguirá convencer os que se afanam em pós de um casamento por
interesse.

XVII — Valham esses reparos como simples sugestões para o casamento.


Acrescente-se a isso o que ficou dito atrás, sobre a necessidade de todo
cidadão procurar perpetuar-se, com deixar em seu lugar, como servidores da
divindade, os filhos de seus filhos. Tudo isso, e muito mais do que isso,
qualquer pessoa poderia expor a título de prelúdio, nessa questão de
casamento. Quem fizer ouvidos de mercador ao que dissermos, com
portando-se em nossa cidade como estrangeiro e pessoa insociável, e chegar
aos trinta e cinco anos sem casar-se, ficará sujeito à multa anual de cem
dracmas, caso pertença à classe mais abastada; de setenta, se for membro da
segunda classe; sessenta, na hipótese de ser da terceira, e trinta, da quarta e
última. Essa importância será consagrada a Hera. O ano em que não
satisfizer o pagamento, será multado no décuplo. O tesoureiro da deusa
recolherá a multa; se o não fizer, responderá por ela, e na ocasião de prestar
contas de seu cargo, será interpelado nesse sentido. Essa é a multa em
dinheiro para quem não se resolver a casar. Ser-lhe-ão negadas, também,
todas as manifestações de respeito por parte dos moços, que poderão
desobedecer-lhe em tudo. No caso de querer castigar alguém, qualquer
pessoa poderá sair em defesa da vítima, sem o que será declarado por lei, a
um tempo, cobarde e péssimo cidadão.
Acerca do dote, já nos manifestamos; porém digamos, mais uma vez, que o
igual com o igual se equilibram, não podendo os pobres envelhecer
celibatários por falta de dinheiro nem da parte de quem vai buscar noiva,
nem da de quem a dá em casamento, pois numa cidade assim organizada
todos têm com o que viver. A falta de dote deixará as mulheres menos
insolentes, além de não ficarem em escravidão humilhante e desonrosa os
que se casarem com elas. Os que seguirem estes conselhos, procederão com
acerto; quem o não fizer, e der ou receber para as vestes da noiva
importância acima de cinqüenta dracmas, ou de uma mina, ou de mina e
meia, ou, ainda, no caso de pertencer à classe mais abastada, de mais de
duas minas, entrará para o tesouro público com o dobro dessa importância.
Quanto ao dote dado ou recebido, será consagrado a Hera e a Zeus e
entregue aos tesoureiros dessas divindades incumbidos da cobrança,
conforme acerca dos celibatários já falamos dos tesoureiros de Hera que
tinham tal obrigação, ou de pagar o equivalente da multa, se a não cobrasse.
O direito de dar em casamento pertence, em primeiro lugar, ao pai; em
segundo, ao avô, e em terceiro ao irmão por parte de pai. Na falta deles,
tocará esse direito ao ramo materno, na seqüência indicada; e, no caso
excepcional de sorte adversa, os parentes mais próximos tomarão as
iniciativas necessárias, de comum acordo com o tutor. Quanto às cerimônias
anteriores ao casamento ou às que devem preceder imediatamente ao ato,
acompanhá-lo ou realizar-se logo depois, todos precisam convencer-se de
que bem andará quem consultar os intérpretes da religião e fizer o que eles
mandarem.

XVIII — Para o banquete nupcial não se deve convidar mais de cinco


amigos e cinco amigas de cada lado e outros tantos parentes e familiares.
Ninguém fará despesa superior a suas posses, a saber, uma mina para
a classe mais rica, meia mina para a seguinte, e assim sucessivamente, na
proporção decrescente das diversas classes censitárias. Todos aplaudirão os
que obedecerem à lei nesse particular; os rebeldes serão castigados pelos
guardas das leis, como indivíduos sem gosto e ignorantes das leis das
Musas que presidem aos casamentos. Em parte alguma é decente beber até
embriagar-se, a não ser nas festividades do deus que nos deu o vinho, não
sendo, também, semelhante prática destituí-
da de perigo, quando se trata de casamento, em que os noivos devem
manter-se com toda a discrição, no momento em que passam por uma
mudança radical de vida, sem falarmos na vantagem, para os filhos, de
provirem de pais, tanto quanto possível, sãos do juízo. Ninguém sabe em
que noite ou em que dia, com a ajuda da divindade, a geração começa.
Além do mais, a fecundação não deve dar-se quando os corpos estão
enervados pela bebida, para que no ventre materno o feto cresça firme,
estável e tranqüilo. O indivíduo embriagado, furioso de alma e de corpo, é
arrastado em todos os sentidos e arrasta os outros consigo. A embriaguez
gera mal e fora de propósito, sendo, pois, bastante provável que só dê
origem a filhos defeituosos, inconstantes e nada firmes, tanto de corpo
como de espírito. Por isso mesmo, será preferível durante o ano, ou melhor,
a vida inteira, principalmente na época da procriação tomar suas medidas
para nada fazer deliberadamente em prejuízo da saúde nem cometer ação
violenta e injusta, visto ser fatal reproduzirem-se ou imprimirem-se
todos esses defeitos na alma e no corpo do nascituro, com o que se
engendram criaturas inferiores sob todos os aspectos. Mas, principalmente
naquele dia e naquela noite é preciso tomar cuidado para evitar excessos. O
Princípio é uma divindade consagrada entre os homens, que tudo faz
prosperar, desde que receba de seus devotos a homenagem a que tem
direito. Quem casa deve ter sempre em mente que dos dois domicílios
indicados pela sua família, um se destina ao nascimento e educação dos
filhos, e também que terá de separar-se de seus pais, para nela matrimoniar-
se e fixar-se juntamente com os filhos. Com efeito, quando a amizade é
acompanhada de certo sentimento de saudade, este solda e aglutina os
ânimos; mas, a convivência até ao fastio, carecente desse anelo que somente
o tempo faz nascer, separa os cônjuges pela repulsa natural que inspira.
Por essa razão, os recém-casados entregarão ao pai, à mãe e demais
parentes da esposa a casa em que moravam e passarão para outra, como se
se mudassem para alguma colônia, para daí em diante visitá-los ou serem
por eles visitados, e ocupando-se apenas com a procriação e a educação dos
filhos e com transmitir a outras criaturas a tocha acesa da vida, sem nunca
se descuidarem de cultuar os deuses, de acordo com as prescrições legais.

XIX — E agora, no que respeita aos bens, quais são os que nos asseguram a
fortuna mais harmoniosa? Em sua maior parte, não são difíceis de conceber
nem de adquirir; porém com a famulagem surgem as mais intrincadas
questões; a razão disso, vamos encontrá-la no fato de ser justo e injusto ao
mesmo tempo tudo o que dissemos a seu respeito. Por vezes, é com vistas
à utilidade da instituição que nos manifestamos, e outras vezes, também, ao
que nela nos repugna.

Megilo — Como devemos interpretar essa parte? Não apanhamos muito


bem, forasteiro, o que nos expuseste.

O Ateniense — É natural, Megilo. Em toda a Hélade, são os hilotas da


Lacedemônía que mais dúvidas e discurssões suscitam, aprovando alguns a
instituição, enquanto outros a condenam. Os mariandinos são assunto de
controvérsia menos acalorada, escravizados pelos heracleotas, bem como a
nação dos penestes, dominados pelos tessálios. Olhando para todos
esses exemplos, como devemos proceder com respeito à aquisição de
escravos? Sobre o que me referi de passagem e suscitou aquele reparo, é o
seguinte. Sabemos perfeitamente que todos nós dizemos ser preciso possuir
escravos excelentes e tão bondosos quanto possível. Nessa questão de
virtude, muitos escravos já provaram melhor do que os irmãos e os próprios
filhos, em oportunidades de salvar os senhores, seus bens e toda sua família.
Temos certeza de que contam isso dos escravos.

Megilo — Sem dúvida.

O Ateniense — Mas também falam o contrário: que não há nada são na


alma do escravo, e que nessa gente não se pode absolutamente confiar. Os
mais sábios dos nossos poetas, falando de Zeus, chegou a ponto de declarar
que

Zeus poderoso, de fato, retira metade do mérito

do homem, a quem chega o dia em que passa a viver

como escravo.

Nesse particular, cada pessoa pensa de um jeito: uns não confiam


absolutamente na raça dos escravos, e como se todos tivessem natureza de
animais, tratam-nos a aguilhão e chicote, com o que deixam suas almas
não três vezes apenas, porém dez vezes mais servis; outros fazem
precisamente o contrário disso.

Megilo — Exato.

Clínias — Em tanta diferença de opiniões, forasteiro, como devemos


conduzir-nos em nossa terra, com respeito à aquisição e à punição dos
escravos?

O Ateniense — Como assim, Clínias? O homem é uma criatura difícil de


tratar, que nunca se acomodará com a distinção necessária entre o escravo
de fato, o homem livre e o senhor, nem parece disposto a ceder algum dia
nesse poto. Trata-se de uma propriedade bem incômoda. É o que a todo
instante a experiência nos demonstra, como, por exemplo, nas frequentes
revoltas dos messênios e nos distúrbios verificados nas cidades ricas em
escravos que falam a língua dos senhores, e também nos furtos e
malfeitorias de toda espécie praticados pelos piratas da Itália.
Considerando-se esses fatos, fica-se em dúvida como proceder. Só há dois
caminhos: para ter escravaria dócil, é preciso que não seja gente do mesmo
país e, tanto quanto possível, de língua diferente; e também: dar-lhes bom
tratamento, não tanto por eles, como no interesse próprio. A maneira certa
de lidar com escravos consiste em não tratá-los com brutalidade e, se
possível, ser menos injusto com eles do que com seus iguais. Os que por
natureza amam a justiça, sem apenas parecer que a amam, e odeiam
a injustiça, esses revelam o que realmente são, no convívio com as pessoas
às quais podem facilmente ofender. Quem, na vida prática e na maneira de
tratar os escravos se mostra estreme de injustiça e de impiedade, é o mais
capaz de semear neles os germens da virtude; o mesmo se diga, sem medo
de errar, do déspota ou tirano ou de quem quer que exerça alguma
autoridade sobre alguém mais fraco do que ele. Todavia, é preciso castigar
os escravos, mas sempre com motivo justo, sem estragá-los com
repreensões que só vão bem entre homens livres. Toda palavra dirigida a
escravos deve consistir numa ordem, não sendo aconselhável gracejar
em nenhuma ocasião, ou se trate de homens ou de mulheres, como muitos
soem fazer; com esse exagero complicam estultamente a vida, deixando
mais difícil para o escravo a obediência e para eles a autoridade.

Clínias — Tens razão.


O Ateniense — E agora, depois de estarem todos providos de número
suficiente de servos capazes de ajudá-los em seus empreendimentos, não
será tempo de descrever as habitações?

Clínias — Perfeitamente.

XX — O Ateniense — E porque nos ocupamos com a construção total, por


assim dizer, de uma cidade nova e até então inabitada, vejamos como se
procede para levantar os edifícios, principalmente os templos e as muralhas.
Isso, Clínias, deveria ter sido exposto antes dos casamentos; mas, como
nosso trabalho é apenas com palavras, não há mal em só agora tratarmos
desse assunto. Quando construirmos, realmente, a cidade, cuidaremos dessa
parte antes dos casamentos, se Deus quiser; e só depois de tudo pronto é
que passaremos a falar destes. Por enquanto, tracemos apenas o esboço do
que pretendemos realizar.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Com vistas à limpeza e segurança, os templos serão


construídos à volta da Praça do Mercado e em todo o perímetro da cidade,
na parte mais alta do terreno escolhido para sede da fundação. Ao lado
deles, levantaremos os edifícios para os magistrados e os tribunais, onde
serão recebidas as queixas e distribuída justiça, como em lugares sagrados,
em virtude da santidade das causas e por tratar-se de morada dos deuses.
Nesses tribunais também serão julgados os casos passíveis de pena de
morte. A respeito de muralhas, Megilo, estou com Esparta, em deixá-las
dormir na terra, sem tentar despertá-las. E a razão é a seguinte: É belo
aquilo dos poetas, tão freqüente nos seus cantos, de que os muros devem
ser, preferentemente, de ferro e bronze, não de terra. Além do mais, nossa
conduta neste particular nos exporia a um ridículo merecido, se todos os
anos destacássemos moços para o campo, a fim de cavar fossos ou valas ou
levantar toda espécie de trincheiras, com o fito de conter os inimigos
e impedi-los de transpor os lindes pátrios. É o que se daria se provêssemos a
cidade de muros; estes, não apenas seriam prejudiciais à saúde da cidade,
como promoveriam certa moleza na alma dos habitantes, levando-os a se
acolherem aos muros, em vez de fazerem face ao inimigo e procurar a
salvação na vigilância que não afrouxa nem de dia nem de noite,
convencidos de que estão muito seguros quando dormem ao abrigo dos
muros e das portas, como se não tivessem nascido para trabalhar, por
ignorarem que o verdadeiro descanso é dádiva do esforço. Por outro lado, a
indolência, me parece, e a comodidade humilhante só nos ocasionam
trabalho. Mas, se os homens, realmente, necessitarem de uma espécie de
abrigo, será preciso, desde o início, dispor as casas particulares de forma
que toda a cidade fique como um muro contínuo, e que as casas de um
só feitio, alinhadas num único plano do lado da rua, supram o muro
desejado. Seria d easpecto agradável a cidade que parecesse constituída
apenas de uma casa, que, além de fácil de guardar, oferecesse
excepcional segurança para seus moradores. Durante toda a fase
de construção, ficarão os habitantes incumbidos da vigilância; os astínomos
se encarregarão da inspecção geral, com poderes para multar os negligentes
e obrigá-los a trabalhar. Cuidarão, também, de manter limpa todas as
dependências da cidade, e de impedir que algum particular invada o terreno
público em suas construções ou no serviço de escavação. A eles, também,
toca providenciar no sentido do bom escoamento das águas das chuvas de
Zeus e de tudo o que for preciso regulamentar dentro ou fora da cidade.
Depois de se inteirarem in loco da necessidade das medidas a serem
tomadas, os guardas das leis completarão a legislação tanto dessa parte
como dos demais pontos que a lei omitir, pela impossibilidade de tudo
prever.

E agora, que já ficaram prontas essas construções, os edifícios da Praça do


Mercado, os ginásios e as escolas, à espera de seu público, à maneira de
teatros sem os espectadores, passemos, no nosso papel de legisladores, a

expor o que vem depois dos casamentos.

Clínias — Perfeitamente.

XXI — O Ateniense — Consideremos, Clínias, casamento como assunto


liquidado. E agora, tracemos uma norma de vida dos casais, para vigorar
pelo menos um ano, antes de começarem a nascer os filhos; para sabermos
como devem proceder os cônjuges de ambos os sexos numa cidade que se
distingue das demais; será isso em continuação ao que ficou dito acima,
mas que não é nada fácil de enunciar. Conquanto muitos itens de nosso
regulamento possam levantar idênticas objeções, não será de admirar que
também isto encontre resistência por parte da maioria. Seja como for,
Clínias, precisamos enunciar o que nos parece certo e verdadeiro.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Quem se propõe formular leis para a cidade, a fim de


regulamentar a vida dos cidadãos no exercício de suas funções públicas e
sociais, porém não considera aconselhável regulamentar a vida particular no
que for necessário, permitindo a cada um fazer durante o dia o que bem
entender, por achar que não há urgência de regulamentar tudo com muito
rigor e deixando sem leis a vida privada, na esperança de que todos
acabarão por agir de acordo com a lei no que entende com os costumes
públicos e sociais, está, evidentemente, errado. E por que me expresso dessa
maneira? É o seguinte: por havermos dito que os jovens recém-casados
precisam continuar a tomar parte nas refeições em comum, tal qual o faziam
antes de se casarem. Conquanto no começo essa instituição houvesse
causado alguma estranheza quando a introduziram entre vós, com toda a
probabilidade foi adotada por ocasião de alguma guerra ou outro flagelo de
igual efeito devastador para uma população pouco numerosa. Mas, depois
de as experimentarem, por força das circunstâncias habituaram-se com as
sissítias, que se revelaram como instituição muito indicada para salvar a
comunidade. Foi mais ou menos assim que se introduziu o uso das refeições
em comum.

Clínias — Pelo menos, é o que parece.

O Ateniense — O que eu queria dizer é que, por maior estranheza que


houvesse causado essa inovação e suscitado apreensão em muita gente,
quem quisesse agora instituí-la não encontraria muita dificuldade
para legislar a. esse respeito. Porém a que se lhe segue, com bastante
probabilidade de vingar, se chegasse a ser posta em prática, o que ainda não
se experimentou em lugar nenhum, equivaleria, como diz com muito
espírito o provérbio, a obrigar o legislador a cardar fogo ou a entregar-se a
mil labutas igualmente inúteis. É tão difícil de expor, como, depois de
formulada, realizar.

Clínias — Que regulamento será esse, forasteiro, cujo enunciado te deixa a


tal ponto indeciso?
O Ateniense — Então, escutai, para não perdermos tempo inutilmente com
esse tema. Tudo o que na cidade se faz com ordem e de acordo com a lei, só
produz bons efeitos; e o contrário disso: na maioria das vezes as coisas sem
regra ou mal reguladas destroem o que estava bem feito. Nosso discurso
parou precisamente nesse ponto. Entre vós outros, Clínias e Megilo, as
sissítias dos homens foram belamente instituídas, ou, conforme disse, como
medida de emergência, em decorrência de alguma necessidade
providencial; porém a lei não tratou — o que foi erro imperdoável — das
refeições em comum para as mulheres, motivo de não se ter estabelecido
entre elas semelhante prática. Em virtude da fraqueza ingênita, o sexo
feminino é naturalmente mais dissimulado e artificial, como também difícil
de dirigir. Por isso, erradamente o legislador negligenciou nessa parte e o
entregou à sua desordem muito própria. Dessa negligência muitos abusos se
insinuaram entre vós outros, que em grande parte não teriam chegado até
nosso tempo, se a lei a isso se opusesse. De fato, não é um descuido apenas
pela metade, como se poderia crer, deixar de regulamentar a vida das
mulheres. Quanto a mulher, em relação à virtude, é naturalmente inferior ao
homem, tanto a diferença nesse ponto atinge mais do dobro. Para o bem da
cidade, só fora de proveito reconsiderar essa parte e regulamentar, de uma
vez, todas as práticas comuns aos homens e às mulheres. Mas nesse terreno,
a tal ponto tem aberrado a direção do gênero humano, que nenhuma pessoa
de senso pode falar nisso em cidades ou regiões que ainda não adotaram a
prática das sissítias. Como não cair no ridículo quem tentasse obrigar as
mulheres a comer e beber à vista de todo o mundo? É com o que esse
sexo custaria mais a habituar-se. Acostumada a viver escondida e no escuro,
se fosse arrastada à força para o claro, oporia ao legislador a máxima
resistência e facilmente venceria. Em tudo o mais, conforme já disse, elas
não suportariam ouvir nossa proposta de lei, ainda que fosse justa, sem
levantar uma gritaria infernal; mas talvez concordassem nesse ponto. Se
fordes de parecer que, pelo menos neste esquema teórico, não deve ficar
incompleta nossa constituição, disponho-me a demonstrar as vantagens e a
conveniência de semelhante dispositivo, na hipótese, bem entendido, de
quererdes ouvir-me; caso contrário, deixaremos de lado tal assunto.

Clínias — Em absoluto, forasteiro! Estamos maravilhosamente dispostos a


ouvir-te.
XXII — O Ateniense — Então, ouçamos; e não vos admireis, se achardes
que eu vou apanhar de muito longe o fio da meada. Temos tempo de sobra,
nada havendo que nos impeça examinar exaustivamente tudo o que disser
respeito às leis.

Clínias — Ótima observação.

O Ateniense — Voltemos, pois, para o que dissemos no começo, a saber:


que todo homem precisa convencer-se ou de que a geração humana não
teve, absolutamente, começo nem nunca chegará a ter fim, mas sempre
existiu, ou então que o princípio de seu aparecimento se perde na distância
de um tempo infinitamente longo.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — E agora? Fundação e destruição de cidades, usos de toda


espécie, bem ou mal dirigidos, variedad e infinita de gostos no que respeita
aos alimentos e bebidas: não precisaremos admitir que já houve de sobra
tudo isso em toda a vastidão da terra, além de revoluções radicais no curso
normal das estações, nas quais, decerto, os animais passaram por toda sorte
de mudanças?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — E então? Não acreditaremos, também, que num


determinado momento a vida apareceu, sem que antes existisse? E não
valerá a mesma coisa para a oliveira e as dádivas do Deméter e Cora, que
teriam ficado sob os cuidados de certo Triptólemo? E mais: Durante o
tempo em que tudo isso não existia, não é de acreditar que os animais se
entredevorassem, como presentemente o fazem?

Clínias — Certíssimo.

O Ateniense — Como é fácil verificar, em muitos povos ainda persiste o


costume dos sacrifícios humanos, como também já ouvimos contar o oposto
disso: ter havido tempo em que não ousávamos comer carne de vaca nem
oferecíamos animais em sacrifício às divindades, mas apenas bolos ou
frutas banhadas no mel, por acreditarmos que era ato de impiedade comer
sangue ou sujar de sangue o altar dos deuses. Os homens de então seguiam
o denominado regime órfico: só se alimentavam de coisas inanimadas e se
abstinham do que tivesse vida.

Clínias — É, realmente, o que se ouve, sendo, realmente, possível mesmo


que tudo se passasse dessa maneira.

O Ateniense — Mas, poderia alguém objetar, com que intenção vos contei
tudo isso?

Clínias — É observação muito justa, forasteiro.

O Ateniense — Pois daqui em diante, Clínias, se me for possível, vou tentar


expor o que se segue, naturalmente e sem reflexões.

Clínias — Podes falar.

O Ateniense — Vejo que nos homens tudo depende de três espécies de


necessidades e de apetites, cujo desenvolve a virtude em quem é bem
dirigido, ou o contrário disso nos que o são mal. Desde o nascimento, temos
necessidade de comer e de beber, estimulante, em todo animal, de um amor
instintivo, que o pica como um moscardo e o deixa surdo para quem lhe
fala em dedicar-se a outras ocupações e diz que em vez de procurar
satisfazer a esses desejos e apetites é preciso libertar-se dos tormentos que
lhes são inerentes. A terceira e maior necessidade e o mais vivo desejo é o
último a despertar, e inflama os homens a ponto de deixá-los loucos, a
saber, o desejo de propagar a raça, que se alastra em chamas com insolência
desmedida. É preciso saber conduzir essas três doenças pelo caminho da
virtude muito além do que se denomina prazer, por meio dos três mais
fortes remédios: o temor, a lei e a reflexão verdadeira, com o auxílio das
Musas e dos deuses diretores dos jogos, a fim de atenuar-lhes a violência
e impedir seu crescimento.

Coloquemos a procriação dos filhos depois do casamento, e em seguida ao


nascimento, a alimentação e a criação. A esse modo, à medida que
avançarmos em nossa exposição talvez nossas leis se completem, como se
deu há pouco, quando chegamos ás sissítias. Se as reuniões desse tipo
devem ser formadas só por homens ou só por mulheres, é o que talvez
percebamos com maior clareza quando nos aproximarmos delas.
Será, então, a hora de regulamentar tudo o que as precede e que ainda não
tivesse sido objeto de legislação especial. Nessa oportunidade, conforme o
declaramos agora mesmo, ficaremos em condições de distingui-las
com muito maior nitidez e de formular as leis mais convenientes e que
melhor se lhes ajustem.

Clínias — Falaste com muita propriedade.

O Ateniense — Então, guardemos na memória tudo isso; é provável que


ainda tenhamos de voltar a esse ponto.

Clínias — Que tens em vista com semelhante observação?

O Ateniense — O que definimos pelas três expressões. Não nos referimos


ao comer, depois ao beber, e em terceiro lugar à exaltação amorosa?

Clínias — Podes ter a certeza, forasteiro, de que não nos esquecemos de


tudo o que nos recomendaste.

O Ateniense — Ótimo. Então, voltemos para os recém-casados, a fim de


instrui-los na maneira de procriar filhos; e caso não nos obedeçam,
recorramos â ameaça das leis.

Clínias — Como assim?

XXIII — O Ateniense — Tanto a jovem esposa como seu marido precisam


convencer-se de que ambos têm obrigação de esforçar-se para dar à cidade
os mais belos filhos que for possível. Em seus empreendimentos em
comum, todos os homens conseguem bons e belos resultados sempre que
prestam atenção a si mesmos e ao que fazem; mas conseguirão o contrário
disso, se não ficarem atentos e forem incapazes de qualquer esforço nesse
sentido. Assim, volva a atenção o esposo para sua mulher e a procriação dos
filhos, e faça, do seu lado, o outro cônjuge a mesma coisa, principalmente
no tempo em que ainda não tiverem filhos. Como fiscais, escolheremos
mulheres, em número variável, a critério dos magistrados e na época por
eles indicada. Diariamente, reunir-se-ão no templo de Ilítia durante
um terço de hora. Nessas reuniões, todas dirão a suas companheiras se no
ano determinado para a procriação viram alquém, homem ou mulher, cuidar
de outra coisa além do que lhe for prescrito nos ritos e cerimônias
do casamento. A procriação e a vigilância dos cônjuges durará dez anos,
não mais, que é quando os nascimentos se verificam com regular seqüência.
Para o bem de ambas as partes, os cônjuges que não tiverem filhos durante
todo esse tempo, separar-se-ão depois de se aconselharem com os parentes e
as mulheres incumbidas da fiscalização desse setor. No caso de divergência
de opiniões acerca do que convém ou é vantajoso para qualquer das partes,
serão escolhidos dez guardas das leis, aos quais competirá a decisão; o que
eles determinarem será cumprido. As matronas entrarão nas casas dos
recém-casados, e com admoestações ou ameaças corrigirão o que
considerarem fruto da ignorância ou de falta de prática. Se por esses meios
nada conseguirem, queixar-se-ão aos guardas das leis, que chamarão à
ordem os culpados. E na hipótese, ainda, de não serem atendidas, farão uma
denúncia pública, afixando em lugar visível os nomes dos acusados, e
declarando, sob juramento, que não conseguiram pôr no caminho certo este
ou aquele cidadão. Se o acusado cujo nome foi fixado no pelourinho não
conseguir ganho de causa contra seu adversário, será castigado com a perda
dos seguintes direitos civis: não irá a nenhum casamento nem a festas de
regozijo pelo nascimento de alguma criança, e se aparecer nalguma, quem
quiser poderá açoitá-lo impu-nemente. Iguais medidas se aplicam às
mulheres. No caso de ter o nome afixado no pelourinho e não conseguir a
condenação de seu acusador, não tomarão parte nas procissões de mulheres,
nas distinções específicas e reuniões de casamento ou nascimento de
alguma criança.

Se depois de ter filhos de acordo com a lei, um cidadão tiver relações desse
tipo com a mulher de outro, ou alguma mulher com outro homem, estando
ambos na idade legal de ter filhos, são passíveis de pena igual
à determinada para os que ainda estiverem em condições de procriar.
Depois dessa idade, o homem e a mulher que nesse particular se
comportarem sensatamente serão alvo de toda espécie de honrarias, e o
oposto disso os que procederem mal, ou seja, ficarão desonrados.

Enquanto nessas questões a maioria se conservar dentro de limites


razoáveis, a lei ficará muda, não tomando conhecimento de nada; porém,
positivado o desregramento, serão aplicadas penalidades, de acordo com
a legislação em vigor.

Para toda a gente, o começo da vida é o primeiro ano, sendo preciso, então,
assinalar a ocorrência nos santuários domésticos, tanto para os meninos
como para as meninas. Outrossim, em todas as fratrías será feita a mesma
anotação num muro pintado de branco, ao lado dos nomes dos arcontes
sorteados para aquele ano. Em todas as fratrías serão inscritos
sucessivamente os nomes dos vivos e apagados os dos que faleceram.
A idade de casar é fixada para as mulheres entre dezesseis e vinte anos, o
mais longo termo estabelecido; para os rapazes, de trinta a trinta e cinco. A
idade para exercer cargos públicos é de quarenta anos para as mulheres e de
trinta para os homens. O serviço militar para os homens vai de vinte até
sessenta anos. Quanto às mulheres, dentro das possibilidades de prestarem
serviço em tempo de guerra, só depois de terem parado de procriar é que
serão aproveitadas, nos limites da conveniência e de sua capacidade, até à
idade de cinquenta anos.
LEIS
Livro VII
I — O Ateniense — Nascidos os filhos, meninos ou meninas, fora natural
que tratássemos de sua criação e da maneira de educá-los. Não é possível
ficarem esses tópicos sem nenhuma referência; porém quer parecer-me que
o mais certo será desenvolver o assunto sob a forma de lições e conselhos,
não como leis. Dentro de casa e no seio da família ocorre uma infinidade de
pequenos fatos que não chegam ao conhecimento do público, nascidos dos
sofrimentos ou alegrias ou desejos de cada um, contrariamente às intenções
normativas do legislador, que deixa os costumes dos cidadãos variados ao
infinito e dissemelhantes, o que redunda em grande mal para a cidade. Dada
a insignificância e freqüência desses pequeninos atos, sobre inconveniente
fora indecoroso promulgar leis punitivas nesse sentido. Ademais, só
contribuiriam para desgastar a autoridade das leis escritas, por se
habituarem os homens a transgredir a lei nessas ocorrências mínimas de
todos os dias. É difícil legislar sobre tal matéria; mas, por outro lado, não
podemos conservar-nos calados. Vou tentar explicar meu pensamento por
meio de exemplos claros, pois até agora nossa exposição como que se
processou no escuro.

Clínias — É muito certo o que afirmas.

O Ateniense — A boa educação se revela na capacidade de proporcionar ao


corpo e à alma toda a beleza e excelências possíveis: eis um princípio que
se me afigura muito bem fundamentado.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — No que entende com a beleza física, a meu ver o mais


simples será começar direito desde a primeira infância.

Clínias — Perfeitamente.
O Ateniense — E agora? Não verificamos a cada instante que em todos os
seres vivos o primeiro germem cresce com muito mais força e rapidez, a
ponto de muita gente negar que dos cinco aos vinte e cinco anos a estatura
do homem não chega a dobrar?

Clínias — É verdade.

O Ateniense — E então? E também não sabemos que o crescimento,


quando não for acompanhado de exercícios variados e bem dirigidos, é
causa de infinitos males para o corpo?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E não necessita o corpo de mais trabalho quando absorve


maior quantidade de alimentos?

Clínias — Como assim, forasteiro? Aos recém-nascidos e aos mais moços


imporás maiores fadigas?

O Ateniense — De forma alguma; antes dessa fase, quando ainda se


alimentam no seio materno.

Clínias — Que me dizes, varão admirável! Referes-te aos embriões?

O Ateniense — Isso mesmo. Não admira ignorardes e ginástica própria


dessa fase. Por mais estranha que pareça, vou dizer-te qual seja.

Clínias — Muito bem.

O Ateniense — Aliás, é o que se pode observar entre nós mais facilmente


do que em qualquer parte, por ser um entretenimento de que chegam a
abusar. De fato, entre nós, não apenas os meninos, mas até mesmo homens
feitos, criam filhotes de certas aves para ensiná-los a brigar. Todos estão
longe de acreditar que as canseiras a que os sujeitam com tais práticas
sejam suficientes. Além desses exercícios, levam-nos escondidos em baixo
da túnica, os menores na mão, os maiores debaixo do braço, e fazem
caminhadas longas de muitos estádios, não para vantagem própria, mas para
a de seus pupilos, mostrando, com isso, para quem sabe compreender, que
todos os corpos lucram com os abalos e movimentos a que são submetidos
sem esforço, quer sejam provocados por eles mesmos, quer quando
transportados em veículos, no mar, a cavalo ou por qualquer corpo que se
mova de um ou de outro jeito, e que esses exercícios, contribuindo para
aproveitar melhor os alimentos e líquidos ingeridos, emprestam ao corpo
saúde, beleza e vigor.

II — Se as coisas se passam realmente assim, de tudo isso que regra prática


nos será permitido deduzir? Aconselhais que desafiemos o ridículo e, como
legisladores, determinemos que a mulher grávida se ponha a andar e, depois
de nascido o filho, enquanto este está maleável, amolgá-lo até à idade de
dois anos? Ou obrigaremos, por lei, as amas, sob pena de multa, a levar
as crianças ao campo, aos templos e à casa dos parentes, até serem bastante
fortes para ficarem de pé, e a tomar precauções para que não apoiem com
força o pé no chão enquanto são novos e não venham a ficar de perna torta,
bem como terem o cuidado de carregá-los até à idade de três anos? E
também que as amas sejam tão robustas quanto possível, e sempre mais de
uma para cada criança? E para essas prescrições, em caso de desobediência,
imporemos multa aos Infratores? Ou de nada adiantará tanto trabalho,
porque tudo o que previmos ocorrerá a cada instante?

Clínias — Como assim?

O Ateniense — É que, com isso, nos tornaríamos ridículos ao máximo, sem


contar que as amas, como mulheres e escravas que são, se recusariam a
obedecernos.

Clínias — Mas, por que dissemos que todas essas minúcias deviam ser
especificadas?

O Ateniense — É o seguinte: na esperança de que os senhores e os homens


livres da cidade, depois de ouvir-nos chegariam à justa reflexão de que, se a
vida caseira em qualquer cidade não for dirigida como é preciso, de
maravilha se poderá esperar que as leis sejam eficientes e sua aplicação
geral, e com essa convicção adotarão, de imediato, os dispositivos agora
enunciados, e, assim, administrando sabiamente a família e a comunidade,
viverão felizes.
Clínias — É muito razoável tudo o que expuseste.

O Ateniense — Por esse motivo, não paremos em nossa faina legiferante


sem definirmos as práticas indi-cadas para a formação da alma das crianças
na primeira idade, tal como principiamos a fazer com o corpo.

Clínias— Nada mais acertado..

O Ateniense — Tomemos como principio básico da educação, tanto do


corpo como da alma das criancinhas, a necessidade de alimentá-las e de
movimentá-las quanto possível, de dia e de noite, o que só é de vantagem
para todas, principalmente para os recém-nascidos, que viverão em casa
como se estivessem num navio. De qualquer forma, pelo menos nos
primeiros tempos é o que procuraremos fazer com os recém-nascidos. É
de crer que tanto as amas como as mulheres que tratam do mal dos
coribantos aprenderam com a prática as vantagens de semelhante método. A
prova disso é que, quando as mães querem fazer dormir os filhos
ocasionalmente insones, longe de deixá-los em repouso, não param de
agitá-los, embalando-os nos braços, e em vez de ficarem em silêncio,
entoam algum acalanto. Com isso procuram, por assim dizer, encantá-los
com a música, exatamente como se faz com as bacantes quando ficam fora
de si, graças à combinação da música e do movimento ritmado.

Clínias — Como devemos conceber, forasteiro, a causa desse fenômeno?

O Ateniense — Não é difícil determiná-la.

Clínias — E qual será?

O Ateniense — O medo é a doença tanto de umas como de outras, oriundo


de certa debilidade da alma. Quando opomos a semelhante estado um abalo
externo, o movimento de fora domina o movimento interior do medo,
diminuindo, de imediato, os batimentos do coração que acompanham tais
estados, o que constiui benefício inestimável: a uns, faz dormir; a outros,
que a música e a dança mantêm acordados, com a ajuda dos deuses
acalmados por gratos sacrifícios, fazem passar do estado de loucura furiosa
para o do bom senso. Para tudo dizer numa palavra, é uma explicação que
se me afigura bastante razoável.
Clínias — Nem há dúvida.

O Ateniense — Se essas perturbações são tão evidentes, será preciso


considerar que toda alma atemorizada desde a primeira infância acostuma-
se a ser presa do medo, o que, na opinião de muita gente, é escola
de pusilanimidade, não de coragem.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Mas, ao revés disso, o que afirmamos é que o melhor


exercício de coragem é começar desde cedinho a dominar os medos e
receios a que estamos sujeitos.

Clínias — Exato.

O Ateniense — Afirmaremos, pois, que tais exercícios de movimento a que


submetemos as criancinhas são de extraordinária eficácia para a aquisição
dessa parte da virtude.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Como é também certo que o humor tranqüilo e o


melancólico não contribuem pouco para a boa ou má disposição da alma.

Clínias — Exato.

O Ateniense — De que meios dispomos para implantar, desde cedo, no


recém-nascido o humor que desejamos atribuir-lhe, é o que tentaremos
expor e explicar até que ponto e de que modo tudo isso é realizável.

Clínias — Como não?

III — O Ateniense — Externo, pois a convicção predominante entre nós, de


que a educação cheia de mimos deixa rabugenta a criança, colérica e
facilmente irritável, e o contrário disso: uma submissão rígida
e excessivamente dura as torna inferiores e sem liberdade, misantropas e,
sobretudo, impróprias para o convívio social.
Clínias — E como deverá proceder a cidade, para educar criaturas que
ainda não compreendem o que se lhes fala e não são sensíveis a nenhum
método de educação?

O Ateniense — Mais ou menos do seguinte modo: de regra, todo recém-


nascido costuma falar por meio de gritos, principalmente os do gênero
humano; e além dos gritos, mais do que nas outras criaturas, o choro lhes é
peculiar.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Para estudar suas inclinações, as amas se guiam por esses


indívios, com o fito de saber o que lhes devem dar. Quando se calam, à
vista de de-terminados objetos, é que fizeram bem em lhos mostrar; e o
contrário disso, sempre que continuam a chorar e a gritar. As lágrimas, pois,
e os gritos são os recursos de que dispõem as crianças para manifestar o
que lhes agrada ou aborrece, linguagem de agouro nada bom, aliás. Dura
essa fase mais ou menos três anos, porção não pequena da vida, que, bem
ou mal, todos têm de atravessar.

Clínias — É fato.

O Ateniense — E não sois ambos de opinião que a criança de gênio irritado


e nunca alegre é chorona e inclinada a lamentar-se mais do que conviria a
um produto de boa origem?

Clínias — A mim, pelo menos, é o que parece.

O Ateniense — E então? Se nesses três anos aplicássemos todos os meios


para que nossos pupilos sofressem, o menos possível, dores, tristezas e
incômodos

de qualquer espécie, não é de acreditar que tal método nos deixaria a alma
mais alegre e tranquila?

Clínias — Sem dúvida, forasteiro; máxime se ao lado disso lhes


proporcionássemos bastantes prazeres.
O Ateniense — Neste ponto, meu admirável amigo, não posso concordar
com Clínias; semelhante orientação seria de efeitos desastrosos,
principalmente por estarmos no comecinho da educação. Vejamos se
há sentido no que eu disse.

Clínias — Explica-te melhor.

O Ateniense — O presente argumento não é de somenos importância.


Megilo, ajuda-nos a ver e decide entre nós dois. O que eu digo, é que numa
vida bem orientada, não devemos correr atrás dos prazeres nem fugir de
todas as dores, porém abraçar esse meio termo a que há pouco qualifiquei
de tranqüilo, estado d'alma que, de acordo com a inteligência de um oráculo
digno de fé, todos nós acreditamos ser privilégio de Deus. No meu modo de
pensar, essa é a disposição de quem aspira a tornar-se semelhante aos
deuses. Não devemos precipitar-nos sofregamente em pós dos prazeres,
pois nem assim escaparíamos das dores, nem permitir que alguém adote
semelhante regime de vida, ou moço ou velho, homem ou mulher, e, menos
ainda, tanto quanto possível, os infantes na primeira fase da existência.
É nessa idade que o caráter se afirma definitivamente sob

a influência do hábito. E se eu não temesse que tomassem como


brincadeira, acrescentaria que deveriamos cercar de especiais cuidados a
mulher grávida durante todo o ano em que ela traz no ventre o produto
da concepção, para que a gestante não se entregue a prazeres ou sofrimentos
freqüentes ou desenfreados, mas viva todo esse tempo tranquila e
calmamente.

Clínias — Não precisas incomodar-te, forasteiro, em perguntar a Megilo


qual de nós está com a razão. Sou o primeiro a conceder-te que todos
devemos fugir de um regime de vida de dores ou de prazeres sem mistura, e
escolher sempre o meio termo. Falaste muito bem, e já ouviste o que eu
penso a esse respeito.

O Ateniense — Ótimo, Clínias. Agora, prestemos todos três atenção ao


seguinte.

Clínias — Que será?


IV — O Ateniense — As regras sobre que nos espraiamos caem na rubrica
geral de leis não escritas, não sendo a denominação de leis pátrias senão o
conjunto de tais dispositivos. Justifica-se, também, nossa
recente observação, de que nem devemos dar-lhes o nome de leis, nem
deixá-las sem menção alguma, por serem os laços que mantêm coesas as
constituições, visto se encontrarem a meio caminho entre as leis escritas e
já promulgadas, e as que ainda virão a sê-lo, exatamente como as velhas
máximas recebidas de nossos antepassados, que, sabiamente estabelecidas e
transformadas em hábito, envolvem com segurança as leis
promulgadas depois; porém se se afastam do caminho certo, tal como se
verifica com as construções dos arquitetos, quando cedem os pilares do
centro, tudo o mais desaba, amontoando-se as peças umas sobre as outras,
até mesmo as partes que haviem sido solidamente assentadas por último e
que são arrastadas em sua queda pelas mais velhas. Essas reflexões, Clínias,
devem levar-te a amarrar muito bem as peças de tua cidade, por esta ser
nova, sem descuidar-te, na medida do possível, de nenhuma particularidade,
nem grande nem pequena, em tudo o que se denomina leis ou costumes ou
instituições; é isso que unifica as cidades, não podendo haver estabilidade
nem nas leis nem nos costumes sem tudo o mais. Assim, não devemos
admirar-nos se uma

multidão de costumes e práticas aparentemente sem importância vierem


engrossar nossas leis.

Climas Está certo tudo o que disseste; expuseste in totum tua maneira de
pensar.

O Ateniense — Se pusermos rigorosamente em prática essas regras com as


crianças até três anos de idade, meninos e meninas, sem o fazer por simples
desencargo de consciência, não serão de pouco proveito para os pequenos
educandos. Até três, quatro ou cinco, digamos, até seis anos a alma da
criança precisa brincar. Para combater a moleza, recorremos a castigos que
não sejam humilhantes. Conforme já observamos a respeito do escravo, é
preciso evitar tanto o castigo mal aplicado que desperta a cólera em quem o
recebe, como a omissão nesse particular, verdadeiro convite à
desobediência. Tudo isso, também é válido para as crianças de condição
livre. Nessa idade, os divertimentos surgem naturalmente; as próprias
crianças, quando reunidas, se incumbem de inventá-los. As crianças de cada
aldeia, de três até seis anos, serão reunidas nos templos
locais, acompanhadas das respectivas amas, que cuidarão da ordem e do
bom comportamento de todas elas. As amas e as crianças ficarão sob a
vigilância das doze mulheres — uma para cada aldeia — a que nos
referimos acima, eleitas anualmente pelos guardas das leis. Essas mulheres
serão escolhidas pelas inspetoras de casamento, uma de cada aldeia e da
mesma idade que elas. Depois de nomeada, cada mulher comparecerá
diariamente ao templo, para exercer suas funções e com a faculdade de
castigar os infratores. Tratando-se de escravo ou escrava, estrangeiro ou
estrangeira, ela os castigará pela mão de uns tantos escravos públicos; se for
cidadão e este contestar a legitimidade da pena, será apresentado aos
astínomos para ser julgado; não havendo contestação, ela mesma o punirá.
Depois dos seis anos, os meninos e meninas serão separados de acordo
com os sexos: os meninos serão educados só com seus companheirinhos, e
as meninas, de igual modo, com as outras, exercitando-se eles e elas por
maneira diferente: os rapazes aprenderão a montar a cavalo e a manejar o
arco, o dardo e a funda, o mesmo acontecendo com as meninas, caso
queiram, pelo menos a parte teórica,

com particular insistência pelo menos no que respeita ao manejo dessas


armas. Nesse ponto, aliás, quase ninguém tem idéias definidas.

Clínias — A respeito de quê?

V — O Ateniense — Por acreditarem que há uma diferença natural em tudo


o que fazemos com as mãos, entre o lado direito e o esquerdo, conquanto
ninguém faça a mesma distinção entre o trabalho dos pés e demais
segmentos dos membros inferiores, No que diz respeito as mãos, chegamos
a ficar quase aleijados, por incúria das mães e das amas. Sendo elas
equivalentes por conformação natural, nós é que provocamos aquela
diferença, por hábitos viciosos e o mau emprego que delas fazemos. Em
certas ocupações, é indiferente o lado a considerar. Assim, pouco importa
sustentar a lira com a mão esquerda e o arco com a direita, valendo o
mesmo para outras atividades desse gênero. Porém, invocar tais exemplos
para justificar outros inteiramente fora de propósito, é rematada tolice.
A prova disso, temo-la no costume dos Citas, que não afastam o arco apenas
com a mão esquerda e puxam a flecha com a direita, porém usam nessa
operação, indiferentemente, as duas mãos. Poderíamos mencionar muitos
outros exemplos, como o caso dos aurigas e outros, que nos ensinariam ser
contrário à natureza deixar o lado esquerdo mais fraco do que o direito.
Como já declarei, tudo isso é de somenos importância em se tratando de
plectros de chifre ou instrumentos que tais. Mas será muito grande a
diferença na guerra, quando for preciso usar instrumentos de ferro, arcos,
dardos e outros apetrechos, e mais, ainda, no entrechoque de armas pesadas.
Quem aprendeu, conta com enorme superioridade sobre quem não sabe, ou
quem se exercitou, com relação ao que se descuidou nesse
particular. Quando o pancratiasta se exercita como deve, na luta e no
pugilato, não encontra dificuldade em empregar a mão esquerda; se
descurar desse ponto, claudica e se comporta desajeitadamente, sempre que
o adversário muda de posição e o obriga a defender-se de outro modo. É o
que temos o direito de esperar de quem luta com armas pesadas ou qualquer
outra: dispondo de dois braços para atacar e defender-se, não deverá deixar

nenhum deles ocioso e sem préstimo, no que depender de sua vontade.


Quem por natureza fosse conformado como Garião ou Briareu, deveria ser
capaz de lançar cem dardos com as cem mãos, indiferentémente. Tudo isso
deve ficar aos cuidados dos magistrados dos dois sexos, de maneira que as
mulheres se encarreguem de vigiar os jogos e a educação das crianças, e os
homens, a instrução propriamente dita, para que todos, meninos e meninas,
adquiram igual agilidade com as duas mãos e os dois pés, e se esforcem
para não prejudicar, dentro do possível, com os maus ha'bitos,os dotes
naturais.

VI — Na prática, o fim da educação é duplo, por assim dizer: gina'stica


para o corpo e música para o beneficio da alma. A gina'stica, por sua vez, se
subdivide em dança e luta. Uma das partes da dança visa a imitar as
palavras da Musa, sem nunca perder o senso de nobreza e liberdade; a outra
promove os bons hábitos, agilidade e beleza dos membros e demais partes
do corpo, por meio da flexão ou distensão convenientes, com movimentar
cada um dentro do ritmo apropriado, que se difunde por toda a dança e a
acompanha exatamente. No que respeita à luta, os tratados da autoria de
Anteu e Cercíono sobre a técnica da arte por eles exercida, produto de vã
emulação, como também os de Epeio e de Amico sobre o pugilato, por não
serem de nenhuma utilidade nas campanhas militares não merecem a honra
de uma apreciação. Porém quanto â luta em posição de pé, que ensina a
flectir o pescoço, as mãos e os flancos, e é realizada com o fito de
proporcionar vigor e saúde, dada a sua incontestável utilidade sob todos
esses aspectos, não pode ficar esquecida. Ao contrário, quando tivermos de
tratar desse ponto em nossa legislação, faremos recomendações especiais,
tanto aos professores como aos alunos: àqueles, para transmitir com boa
vontade seus conhecimentos, e aos alunos, para recebê-los com gratidão.
Outrossim, não deixaremos de imitar tudo o que nos coros for digno
de imitação, como as danças dos Curetes, com as armas, praticadas aqui, e a
dos Dióscuros da Lacedemônia. Entre nós, também, a virgem e nossa
soberana, comprazendo-se com o jogo da dança, achou que não devia tomar
parte nele com as mãos vazias; foi ornada com to-das as armas que ela
executou sua dança. Fica bem aos rapazes e às raparigas imitá-la nesse
particular, esforçando-se, assim, por amor à deusa, tanto em benefício das
atividades guerreiras como para maior realce dos festejos. Os próprios
meninos, desde os primeiros anos e enquanto não forem chamados para a
guerra, devem montar a cavalo e adornar-se com suas armas sempre que
tomarem parte nas procissões de todos os deuses, e quando em marcha,
acomodem as súplicas que dirigem aos deuses e aos filhos dos deuses ao
passo da dança, ora lento, ora mais apressado. Não têm outro fim, também,
as competições ou os exercícios que as precedem, de grande vantagem tanto
na paz como na guerra, assim para a vida pública como para a particular, ao
passo que os outros trabalhos corporais, quer sejam executados seria mente
quer por brinquedo, não ornam, Clínias e Megilo, ao homem livre.

VII — Sobre a ginástica que, no começo, prometi incluir em nossas


considerações, já ficou dito quase tudo o que importava esclarecer; o
assunto parece esgotado. Mas, se vos ocorrer coisa melhor, falai sem
constrangimento.

Clínias — Não seria fácil, forasteiro, deixar de lado o que disseste e expor
algo melhor a respeito de luta e de ginástica.

O Ateniense — Há pouco pensávamos que já havíamos discorrido bastante


acerca das dádivas das Musas e de Apoio, relacionadas naturalmente com a
ginástica, e que só nos faltava tratar desta última. Porém somente agora
vimos em que consistem esses dons e que deveríamos ter tratado primeiro
deles.

Clínias — Sim, é o que precisaremos fazer.

O Ateniense — Então, ouvi-me, embora antes já tivesses feito isso mesmo.


Mas os temas extraordinários e pouco comuns devem ser expostos e
estudados com a máxima atenção. É o que se dá no presente caso. Não é
sem medo que vou desenvolver o que me proponho; mas revisto-me de
coragem e não pretendo recuar um passo.

Clínias — A que te referes, forasteiro?

O Ateniense — O que afirmo é que, de regra, em todas as cidades se ignora


a importância dos jogos em matéria de legislação, e quanto eles influem
para que estas permaneçam ou venham a caducar. Uma vez instituidos os
jogos, de tal forma que as mesmas .crianças sempre se divirtam com os
mesmos números, do mesmo modo e se alegrem com os mesmos
divertimentos, é de acreditar que permanecerão intactas as leis referentes a
assuntos sérios; porém, se bulirem nesses jogos e neles introduzirem
inovações e sucessivas modificações; se os jovens não se mostrarem sempre
satisfeitos com os mesmos objetos, carecerão de um critério uniforme para
julgar o que é decente ou indecente no trato pessoal e em tudo o que lhe diz
respeito; se for aplaudido o jovem dotado de espirito inovador e que a todo
instante apareça com alguma novidade em matéria de cores e de feitio,
diferente dos modelos habituais: afirmamos com segurança ser isso o que
há de mais ruinoso para a cidade, pois essas pequeninas modificações
alteram imperceptivelmente os costumes dos jovens, levando-os a desprezar
o que é antigo e a só dar valor às novidades. Convém insistir neste ponto: o
pior flagelo para qualquer cidade é comprazer-se alguém com essa maneira
de pensar. Ouvi o que me parece errado em tudo isso.

Clínias — Referes-te às críticas tão frequentes nas cidades, em relação ao


que é antigo?

O Ateniense — Perfeitamente.
Clínias — Nesse ponto, não somente te ouviremos com atenção, mas com a
maior boa vontade possível.

O Ateniense — É natural.

Clínias — Basta que fales.

O Ateniense — Ouçamo-las, pois, com atenção redobrada e o propósito


bem deliberado de nos ensinarmos reciprocamente. Descobriremos que em
todas as coisas, com exceção do mal, não há nada pior do que a mudança,
nas estações, nos ventos, nos regimes do corpo, nos costumes da alma, e
isso não no sentido de o ser numas e noutras não; só excetuo, conforme
disse há pouco, as coisas más. Se considerarmos o corpo, veremos que ele
se habitua com todos os alimentos, todas as bebidas e todos os trabalhos; a
princípio, fica um tanto perturbado, mas, como o tempo, tira desses ele-

mentos a carne apropriada, acabando por amar tal regime, habituar-se e dar-
se bem com ele, no ponto de vista da saúde e do prazer. Da mesma forma,
quando alguém se vê forçado a mudar de regime, no começo fica sujeito a
moléstias, só vindo a restabelecer-se, com muito trabalho, depois de
habituar-se com os novos alimentos. O mesmo teremos de admitir com
relação à maneira de pensar dos homens e a natureza de sua alma. De
fato, sejam quais forem as leis com que se habituassem, se por feliz
disposição divina ficarem imutáveis por muitos e longos anos, a ponto de
ninguém imaginar, nem por

ouvir dizer, que elas poderiam ter sido diferentes do que são aquele
momento, a alma se sente tomada de respeito e temor à só idéia de
introduzir a menor modificação nas leis estabelecidas. É obrigação, pois, do
legislador, descobrir, de qualquer jeito, algum artificio que assegure para a
cidade tão grande vantagem. Imagino o seguinte: Conforme já observei,
para toda a gente as modificações introduzidas nos divertimentos
das crianças são outros tantos divertimentos de que não decorrem prejuízos
de maior gravidade. Por isso mesmo, longe de combatê-las, deixam-nas
como estão e até as estimulam, sem considerar que fatalmente as
crianças dadas a tais inovações nos jogos infantis, depois de homens feitos
não serão as mesmas do tempo da infância, porém diferentes; procurarão
viver de outra maneira e, por causa desse espírito de novidades, desejarão
novas ocupações e novas leis, sem que nenhum se arreceie do que há
momentos eu denominei o maior mal para as cidades. De conseqüências
menos catastróficas são as modificações que se processam apenas no
exterior; mas as modificações frequentes que se observam nos costumes e
na maneira de elogiá-los ou criticá-los, arrastam consigo conseqüências
muito graves e reclamam, segundo penso, de nossa parte o máximo
cuidado.

Clínias — Sem dúvida.

VIII — O Ateniense — E então? Ainda poderemos confiar no que dissemos


antes, quando afirmamos que tudo o que se relaciona com os ritmos e a
música em

geral é imitação dos bons ou dos maus costumes dos homens? Ou como
diremos?

Clínias — Nossa opinião a esse respeito ainda não sofreu modificação. .

O Ateniense — Sendo assim, é o que afirmamos, precisaremos lançar mão


de todos os recursos para que as crianças não venham a desejar outro
gênero de imitação na dança ou nas cantigas, e para que ninguém
as prejudique com oferecer-lhes outros divertimentos.

Clínias — Tens razão.

O Ateniense — E para isso, algum de nós conhecerá algum meio mais


eficiente do que o empregado pelos Egípcios?

Clínias — A que te referes?

O Ateniense — O costume de consagrar todas as danças e as canções,


depois, naturalmente, de organizar os festejos do ano e de determinar as
respectivas épocas e as divindades, bem como os filhos dos deuses ou
demônios a que estejam dedicadas. De seguida, escolher os hinos que
devem ser cantados em cada sacrifício dirigido aos deuses, bem como as
coréias que acompanham os sacrifícios. Depois de regulamentada essa
parte, os cidadãos farão conjuntamente um sacrifício às Moiras e aos
deuses, consagrando, por meio de libações, cada canção a cada um dos
deuses ou demônios. Se, contrariamente a essas determinações, alguém
dirigir a qualquer dos deuses coréia ou hino diferente, os sacerdotes e as
sacerdotisas, de comum acordo com os guardas das leis e com os recursos
que a religião e a lei lhes facultar o impedirão de levar avante o seu intento.
O infrator que se rebelar contra a penalidade imposta, ficará sujeito, a vida
inteira, a ser chamado por qualquer pessoa aos tribunais, por crime de
impiedade.

Clínias — Certo.

O Ateniense — Já que nosso estudo nos trouxe até esse ponto, façamos o
que nos compete fazer.

Clínias — A que te referes?

O Ateniense — Quando um jovem e, com maioria de razões, algum velho,


enxerga ou escuta algo estranho e nada comum, não se precipita para ver o
que lhe desperta tantas dúvidas. Ao contrário: detém-se, à maneira do
viajante que não conhece bem a estrada e che-ga a uma encruzilhada, quer
esteja sozinho, quer viaje em companhia de outras pessoas: primeiro
interroga-se e aos outros sobre o movimento de sua perplexidade, e não
reinicia a caminhada sem certificar-se antes de seu itinerário e de saber
onde vai dar a estrada. Nas presentes circunstâncias, e o que nos cumpre
fazer; já que incidimos num trecho extravagante da lei, devemos esforçar-
nos para destrinçá-lo, em vez de nos pronunciarmos levianamente, com a
idade que temos, a respeito de um assunto de tamanha gravidade, e não
afirmar, em absoluto, que estamos em condições de dizer algo preciso
a esse respeito.

Clínias — Tudo isso é muito verdadeiro.

O Ateniense — Vamos dar tempo ao tempo, e só nos manifestemos depois


de madura reflexão. Mas, para não sermos inutilmente forçados a
interrompera sequência das leis que elaboramos neste momento,
prossigamos decididos até lhes darmos o remate indispensável. É possível
que dentro de pouquinho, se Deus quiser, pelo simples fato de havermos
chegado ao fim de nossa exposição, se torne mais clara a questão que tanto
nos confunde.

Clínias — Falaste admiravelmente bem, forasteiro; façamos isso mesmo.

O Ateniense — Aceitemos, pois, é o que afirmamos, esse fato insólito, de


serem nossas leis cantos ou nomos, pois, como parece, era assim que os
antigos designavam as árias cantadas com acompanhamento de cítara.
Talvez não estivessemos muito longe de aceitar a tese agora apresentada,
entrevista em sonhos, porventura, ou mesmo no estado de vigília, à maneira
de adivinhação. De qualquer forma, firmemos o seguinte princípio: nos
cantos públicos e nos sagrados, e em tudo o que diz respeito aos coros dos
jovens, é tão pouco lícito levantar alguém a voz ou modificar um passo,
como transgredir as leis. Quem acatar esse dispositivo legal ficará isento de
penalidade; mas o que infringir, será castigado pelos guardas das leis, os
sacerdotes e as sacerdotisas, conforme acabamos de expor. Incluiremos tal
dispositivo em nossa legislação?

Clínias — Sem dúvida.

IX — O Ateniense — E como redigir leis dessa espécie sem cair no


ridículo? Consideremos também o seguinte: o método mais seguro
consistirá em imprimir no espírito, por meio do discurso, algumas
imagens, uma das quais seria a seguinte: suponhamos que, depois de
realizado o sacrifício e de queimadas as vítimas de acordo com os ritos,
algum particular se aproxime do altar e das vítimas, ou seja filho ou irmão,
e se ponha a dizer toda sorte de blasfêmias. Não seria de admitir que sua
fala causaria consternação no espírito do pai e dos demais parentes, como
palavras funestas e de mau agouro?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Pois é o que se observa, por assim dizer, em quase todas as


cidades de nossa região. Quando algum magistrado realiza sacrifício
público, vemos aproximar-se, não apenas um coro, mas uma multidão de
coros, os quais, também, não se colocam longe do altar, mas, por vezes,
bem perto dele, e lançam sobre a vítima toda a sorte de blasfêmias, que
confrangem o coração dos ouvintes com suas expressões, ritmos e árias
aflitivas, alcançando o prêmio da vitória o que consegue arrancar mais
lágrimas da cidade. Não convirá revogar esse dispositivo da lei? E se, de
modo geral, for preciso que os cidadãos ouçam semelhantes
lamentações nos dias considerados impuros e nefastos, seria
mais aconselhável mandar vir de fora, mediante pagamento, coros de
cantores, a exemplo dos que se alugam nos funerais, para acompanhar os
mortos com a Musa canana. É a prática que se devia adotar para as
cantorias desse tipo, condizendo melhor com tais nênias vestes longas, o
contrário, justamente, de coroas e ornamentos de ouro, para arrematarmos a
referência a semelhante tópico. Apenas me permitirei perguntar a nós
mesmos, mais uma vez, se vos agrada esta primeira proposta de modelo
para nossos hinos.

Clínias — Qual?

O Ateniense — Palavras de bom augúrio. E também se o gênero de nossos


cantos não deva consistir exclusivamente em votos de felicidade? Ou será
melhor não formular pergunta e redigir a lei nesse sentido?

Clínias — Sim, exatamente como disseste; uma lei assim redigida será
aprovada por unanimidade.

O Ateniense — E depois da de bom augurio, qual sera' a segunda lei da


música? Não dirá respeito ás orações que devemos dirigir às divindades,
sempre que sacrificarmos?

Clínias — Como não?

O Ateniense — A terceira, creio, fará ver aos poetas que, não passando suas
preces de súplicas às divindades, precisarão acautelar-se para não pedirem,
involuntariamente, algum mal em vez de bem. Uma oração nesses termos,
me parece, fora o cúmulo do ridículo.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Mas, há pouquinho não assentamos em nosso discurso que


na cidade não devia morar nem o Plutão de ouro nem o Plutão de prata?
Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E, com semelhante discurso, que exemplo tencionávamos


apresentar? Não terá sido, porventura, mostrar que a raça dos poetas não é
capaz de distinguir com clareza entre o que é bom e o que o não é?
Cometendo, pois, algum poeta qualquer engano nesse sentido, em suas
expressões ou no canto, com enunciar orações indevidas, levará nossos
concidadãos a pedir em matéria de importância precisamente o contrário do
que desejavam. Conforme já o declaramos, é o equívoco mais ruinoso que
se possa conceber. Assentaremos, então, o seguinte, como prescrição e
modelo no que entende com as leis da arte das Musas?

Clínias — De que se trata? Explica-te com mais clareza.

O Ateniense — Em suas composições, o poeta não deve desviar-se do que a


cidade considera justo, belo e bom. Não lhe será permitido mostrá-las a
nenhum particular antes de terem sido vistas e aprovadas pelos juízes
especialmente designados para esse fim e pelos guardas das leis. Já
explicamos com bastante precisão quais legisladores teremos de eleger para
tratar de assuntos referentes à música e problemas de educação. E agora,
volto a apresentar-vos a pergunta tantas vezes formulada: Valerá tudo isso
como terceiro modelo de lei ou princípio geral? Como vos parece?

Clínias — Vale, como não?

X — O Ateniense — Para começar, o mais aconseIhável será entremear nas


súplicas hinos e cantos em louvor dos deuses, e depois dirigir também aos
demônios e heróis súplicas e louvores adequados a categoria de cada um.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — De seguida, sem despertar inveja em ninguém, poderíamos


redigir a seguinte lei: todos os cidadãos que chegarem ao termo da
existencia depois de trabalhar bela e arduamente com o corpo e o espirito, e
com absoluta obediência às leis, receberão os merecidos elogios.

Clínias — Sem dúvida.


O Ateniense — Quanto aos que ainda estão vivos, é algum tanto arriscado
distingui-los com elogios e hinos, antes de haverem chegado ao término da
pista e de a arrematarem felizmente. Tanto os homens como as mulheres
participarão dessas honrarias, desde que se tenham distinguido pela virtude.
Os Cantos e as danças serão regulamentados da seguinte maneira:
Nossos maiores nos transmitiram um sem-número de antigas e belas
composições musicais, e também danças belíssimas para benefício do
corpo, dentre as quais, sem sombra de inveja, poderemos separar as mais
convenientes e ajustadas ao nosso plano de governo. Para levar a cabo essa
escolha, serão eleitos examinadores de, pelo menos, cinqüenta anos, os
quais incorporarão em sua seleção de poemas antigos os que lhes parecerem
melhores; dos considerados imperfeitos ou inconvenientes, alguns serão
rejeitados logo de saída, enquanto outros poderão ser corrigidos e postos no
ritmo certo, para o que serão confiados a pessoas de competência
comprovada em música e poesia, cujo talento poético será devidamente
aproveitado sem nenhuma concessão a seus gostos ou preferências, tirante
uma ou outra passagem de somenos importância. A esse modo, interpretam
as intenções do legislador, instituindo cantos, danças e tudo o mais que se
refere aos coros debaixo de sua orientação. Toda peça musical em que a
desordem cedeu o lugar à ordem, e de onde foi expulsa a Musa
aduladora, fica valendo infinitamente mais do que valia antes; a suavidade é
comum a todas as Musas. Quem se habitua, desde a infância até à idade
madura e da razão, com a Musa bem ordenada e sóbria, ao ouvir a Musa
contrária não a suporta e a qualifica como servil; quem foi criado com a
comum e aduladora, afirmará que a que se lhe opõe é fria e enfadonha. Por
tudo isso, conforme declarei agora mesmo com relação ao prazer ou ao
enfado, nenhuma sobrepuja a outra, com a única diferença de deixar uma
delas melhores seus pupilos, e a outra, sempre pior quem com ela se educar.

Climas — E muito certo o que dizes.

O Ateniense — Será oportuno, também, distinguir os cantos de acordo com


a maior ou menor conveniência para homens ou para mulheres, segundo
características próprias, para o que teremos de adaptá-los ao ritmo e à
melodia. Fora, realmente, desastroso, se houvesse discordância na harmonia
e o ritmo carecesse de Compasso, por ser atribuído ao canto o que não
lhe convém. Urge, por conseguinte, determinar por lei as formas a seguir. É
preciso, também, conferir a cada sexo o que a necessidade impõe; mas, no
que toca às mulheres, importa distinguir de acordo com as características
naturais do sexo. Assim, teremos de considerar como mais indicado para o
sexo masculino o que tender para a magnanimidade e a coragem, e deixar
para a mulher o que sugere modéstia e temperança, tanto na lei como em
nossa exposição.

De seguida, tratemos da maneira de ensinar e transmitir esses preceitos,


como e quando cada um terá de ser posto em prática. Do mesmo modo que
o engenheiro naval inicia a construção de um navio com o lançamento da
quilha e daí concebe o esboço de sua embarcação: assim também procedo
nesta tentativa de classificar as formas de vida de acordo com a constituição
das almas, o que equivale, afinal, a lançar as bases de nossa construção, no
empenho de estudar os meios e os princípios mais indicados para
chegarmos felizmente ao término da travessia da vida.

Em verdade, os negócios humanos não merecem a menor consideração da


nossa parte. Todavia, somos como que obrigados a considerá-los de perto, o
que não deixa de ser aborrecido. Mas, uma vez chegados à este ponto,
talvez o mais aconselhável seja arrematar, de qualquer jeito, a empreitada. E
por que razão me expresso dessa maneira? é o que, com todo o
direito, poderão perguntar-me.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — O que eu digo, é que devemos aplicar-nos seriamente ao


que é sério, não ao que o não for. Por sua própria natureza, Deus é digno de
todo o nosso zelo religioso, ao passo que o homem, conforme já o
observamos, foi feito para servir de joguete nas mãos da divindade, no que,
aliás, consiste todo o seu merecimento. Importa, pois, ao homem
conformar-se com sua sorte e entreter-se a vida inteira com belos jogos: eis
como os homens e as mulheres precisam viver, em contrário, justamente, à
sua atual maneira de pensar.

Clínias — Como assim?

O Ateniense — Hoje, todos acham que as coisas sérias devem ser levadas
em brincadeira, como estão convencidos de que a guerra, negócio
seriríssimo, deve sempre ser conduzida com vistas à paz. Mas, a verdade é
que não está na natureza da guerra ser brinquedo, como nunca poderá
proporcionar-nos educação digna desse nome, nem agora nem nó futuro, o
que, a nosso ver, é assunto de grande relevância. Assim, é na paz
que teremos de viver a maior parte da nossa existência e da melhor maneira
possível. Então, qual será o verdadeiro caminho? Importa, pois, encher a
vida com certa espécie de jogos: sacrifícios, cantos, danças, para
podermos obter da parte dos deuses a graça de repelir os inimigos e
alcançar a vitória nos combates. Sobre a natureza dos cantos e das danças
que nos permitirão essa dupla superioridade, já apontei os modelos e tracei
o caminho, por assim dizer, que será preciso percorrer, convencido de que o
poeta tem toda a razão, quando diz:

Hás de encontrar em ti própio, Telêmaco, alguns pensamentos;

outros serão por qualquer divindade inspirados, pois

creio

que vieste ao mundo e cresceste tão só pelo alvitre dos

deuses.

Assim é que devem pensar nossos pupilos, com a certeza de que em parte o
que dizemos é verdadeiro, em parte os deuses e os demônios lhes sugerirão,
em tudo o que entende com as regras dos sacrifícios e das danças, quando e
a quê deverão de cada vez oferecer jogos propiciatórios, para atravessarem
a vida em harmonia com sua própria natureza, já que não passam de
fantoches, e apenas em grau mínimo participam da verdade.

Megilo — Rebaixas excessivamente, forasteiro, o gênero humano.

O Ateniense — Não te espantes, Megilo; perdoa-me; com os olhos e a alma


voltados para Deus foi que falei dessa maneira. Caso queiras, não seja,
então, o gênero humano assim tão desprezível, podendo, até, merecer-nos
certo respeito.
XI — Para retomar nosso tema, já falamos da construção dos ginásios e das
escolas públicos, localizados em três pontos, e também de locais para a
equitação, afastados do centro da cidade, e fora dos muros e do perímetro
urbano, bem como de ginásios para exercícios com arco e outros jogos de
arremeço, tanto para fins educativos como para distrair os moços. Se
então não nos explanamos suficientemente, façamo-lo agora no capítulo das
leis. Em todas essas construções residirão professores estrangeiros muito
bem pagos, os quais ensinarão aos alunos que freqüentarem as escolas
tudo o que se relaciona com a guerra e a música, porém sem ser facultada a
freqüência apenas a uns tantos, cujos pais estejam de acordo, e a outros não;
porém os homens e os meninos em universal, por assim dizer, na medida do
possível serão obrigados a estudar, por pertencerem os filhos mais à cidade
do que aos próprios pais. Tudo o que minha lei especifica com relação
aos homens se aplicará também às mulheres, as quais serão obrigadas a
fazer os mesmos exercícios que eles, sem que me atemorize a crítica dos
que dizem ser própria só para homens a equitação e a ginástica, não para
mulheres. Antes, eu acreditava sob a fé de antigas tradições; porém agora,
por assim dizer, tenho certeza, de que na região do Ponto há milhares e
milhares de mulheres denominadas Sauromátidas, que por determinação
legal praticam juntamente com os homens, não

apenas a equitação como o manejo do arco e de outras armas de combate. A


isso acrescento as seguintes reflexões. O que eu digo, é que se tal coisa é
possível, nada sera' tão insensato como a prática seguida entre nós, de não
se dedicarem, com igual empenho, os homens e as mulheres aos mesmos
exercícios. É o caso de dizer que, com o mesmo esforço e trabalho não há
cidade que, em vez de valer o dobro, não seja senão meia cidade, o que,
evidentemente, constitui equívoco do legislador.

Clínias — Pois que seja! A verdade, forasteiro, é, que muita coisa do que
foi exposto vai de encontro às instituições em vigor. Porém como disseste
que devíamos deixar o discurso seguir seu caminho natural, e só depois de
chegarmos ao fim é que escolheríamos o que nos parecesse melhor, falaste
admiravelmente bem, o que me leva, agora, a censurar-me por te haver
interrompido. Continua a expor conforme for do teu agrado.
XII — O Ateniense — Agrada-me, Clínias, o que eu disse há pouco; e se os
fatos não demonstrassem à saciedade que minha idéia é realizável, fora fácil
levantar objeções. Porém agora, quem não aceitar nossa lei, terá de pensar
noutra coisa, pois não há argumentos que me levem a desistir do propósito
de exigir que, na educação como tudo o mais e na medida do possível,
a mulher se iguale ao homem em matéria de exercícios. Esse problema deve
ser encarado da seguinte maneira. Admitindo-se que as mulheres não sigam
o mesmo regime de vida que os homens, não será inevitável prescrever-lhes
normas diferentes?

Clínias — Necessariamente.

O Ateniense — Então, dentre as atualmente em uso, a quais daríamos a


preferência, em lugar do regime comum que ora lhes recomendamos?
Talvez as que adotam os Trácios e muitos outros povos: trabalhos
na lavoura, cuidar dos rebanhosde bois e de ovelhas, igualzinho como os
escravos? Ou como é costume entre nós e nossos vizinhos? Entre nós, o
costume é o seguinte: amontoamos num só compartimento, por assim
dizer, todos os nossos bens, e os confiamos à administração das mulheres, a
quem entregamos, também, a direção da naveta e de todo o trabalho de lã.
Ou será preferível, Megilo, adotar um meio termo, a exemplo do que

se faz na Lacônia? As jovens participam dos exercícios de ginástica e de


música, e as mulheres feitas, desobrigadas dos trabalhos de lã, seguem um
regime de vida nada vil nem vulgar, uma espécie de termo médio
na administração da casa e na educação dos filhos, porém sem participarem
dos exercícios militares. A esse modo, se algum dia se vissem na
contingência de combater em defesa da pátria e dos filhos, não seriam
capazes, à maneira das Amazonas, de manejar com habilidade o arco nem
outras armas de arremesso, ou de sobraçar o escudo e a lançar, a exemplo
da deusa, opondo-se, assim, decididamente, à devastação de sua pátria,
para, quando mais não fosse, incutir medo no inimigo com se mostrarem
em boa ordem de combate. Seguindo esse regime de vida, nem sequer se
atreveriam a imitar as Sauromátidas, as quais, comparadas a outras
mulheres, mais parecem homens. Nesse ponto, elogie quem quiser vossos
legisladores; eu é que não modifico minha maneira de pensar. O legislador
precisa ser completo, não meio legislador, como se dá com os que permitem
às mulheres uma vida de moleza e de luxo e se se ocupam exclusivamente
com os homens, pois com isso só proporcionam à república meia felicidade,
não o dobro de uma vida feliz.

Megilo — Que faremos, Clínias? Permitiremos que o forasteiro invista com


tamanha violência contra nossa Esparta?

Clínias — Sim; já que lhe demos inteira liberdade de falar, teremos de


deixá-lo prosseguir até esgotarmos esse assunto de leis.

Megilo — Tens razão.

XIII — O Ateniense — Depois disso, então, a mim é que compete expor o


que ainda falta?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Que gênero, pois, de vida será o dos cidadãos que têm
assegurada a mediania necessária e deixam a cargo de outros o exercício
das profissões? Suas terras são cultivadas por escravos que do produto do
seu trabalho lhes pagam o suficiente para o sustento de pessoas de vida
moderada; as refeições em comum são feitas em salas à parte, e noutras,
contíguas, as dos seus familiares, a saber, as filhas e suas mães, sendo
que diariamente são designados magistrados dos dois sexo?

para vigiar e observar o comportamento dos comensais e, juntamente com


eles, fazer as libações às divindades a que estejam dedicados aquele dia e
aquela noite, depois do que se despedirão, voltando todos para suas
residências. Com a vida organizada dessa maneira, não lhes restará
nenhuma obrigação verdadeiramente proveitosa, ou será inevitável que
todos vivam como animais, com o fim exclusivo de engordar? O que
afirmamos é que semelhante vida não seria nem justa nem bela, e quem
assim vivesse não deixaria de ter o destino merecido. Ora, o que merece
uma criatura indolente e que só cuida de engordar, é ser dilacerado por
quem tiver sido retemperado com a coragem e a miséria. A aplicação
rigorosa, na prática, desse plano, consoante ao que recomendamos há
pouco, não poderá ser alcançado enquanto cada um de nós possuir mulher,
filhos, casa própria e tudo o mais que segue no seu rasto. Mas, se neste
ponto pudéssemos realizar o segundo plano melhor, com o qual
presentemente nos ocupamos, já seria grande vantagem. Resta, ainda, é o
que dizemos, para quem vivesse desse jeito, uma tarefa nada fácil nem
desprezível, senão mesmo a mais importante de quantas possa determinar
qualquer lei justa. Realmente, em comparação com o regime de vida em
que a preocupação exclusiva é vencer nos jogos píticos ou olímpicos, com
abandono absoluto de todos os outros afazeres, a vida reputada melhor, a de
quem se dedica ao cultivo de todas as virtudes do corpo e do espírito, com
vistas exclusivamente à virtude, é duas vezes, senão muito mais vezes,
ocupada. Nenhuma atividade secundária deverá impedir de proporcionar ao
corpo os trabalhos e alimentos necessários, ou para a alma os
conhecimentos e hábitos indispensáveis. A noite e o dia inteiros mal
chegam para quem se propõe a alcançar, por esse meio, a justa medida e a
perfeição.

Sendo, por natureza, as coisas desse modo, importa organizar para os


cidadãos livres a maneira de empregar o tempo, desde cedo até à manhã
seguinte, ao nascer do sol. Impertinente pareceria o legislador que descesse
a minúcias na especificação de particularidades sobre a administração
doméstica e tudo o mais, bem como a limitação do sono durante a noite
para os que assumiram a obrigação de zelar sem tréguas pela perfeita
segurança da comunidade. Aliás, seja qual for o cidadão que passar a noite
a dormir e não mostrar a seus dependentes que é sempre o primeiro a
acordar e a levantar-se, não há quem não considere semelhante hábito
ignominioso e indigno de um homem livre, pouco importando o nome dado
àquela determinação: lei ou costume. Sim, ser despertada a dona da casa
por uma das criadas, em vez de acordar ela mesma seus dependentes, é o
que terão de considerar humilhante os escravos de ambos os sexos e as
crianças, e, se possível, toda a casa. É durante os serões que serão debatidos
os assuntos públicos ou domésticos, tanto pelos magistrados na cidade
como pelos senhores e senhoras em suas casas. Sono em excesso não é
indicado nem para o corpo nem para a alma nem para as atividades que lhes
são próprias. Quem dorme não serve para nada; é como se não existisse.
Quem se empenha em viver e em pensar, passa acordado a maior parte do
tempo, limitando-se a repousar o estrictamente necessário para a
conservação da saúde, o que terá de ser pouco para quem adquirir esse
hábito. As autoridades que passam em vigília a noite são o terror dos
malfeitores, quer se trate de inimigos quer de cidadãos comuns; respeitados
e admirados pelos homens justos e temperantes, são úteis à cidade e a si
próprios.

XIV — Além das vantagens a que me referi, uma noite assim passada gera
coragem na alma dos cidadãos. No raiar da aurora, os alunos devem ser
encaminhados para os professores. Se nem os carneiros nem outros animais
vivem sem pastor, as crianças não podem dispensar vigilantes, nem os
escravos, seus senhores. De todas as criaturas, é a criança a mais difícil de
lidar, e pela própria excelência do germe de razão que nela existe em estado
rudimentar, torna-se um animal astucioso, fingido e petulante. Por isso
mesmo, precisamos freá-lo de vários modos, se assim posso
exprimir. Inicialmente, logo que se liberta das mãezinhas e das amas,
necessitam de pedagogos para vigiar-lhes a puerícia com suas deficiência
muito próprias, e, quando maiorzinhos, de professores de várias disciplinas,
capa-zes de ministrar-lhes os conhecimentos indicados para homens livres.
Em se tratanto de escravos, poderá castigá-los o primeiro cidadão livre que
os encontrar, ou a seus filhos, o preceptor ou mestre, no caso de
qualquer deles cometer alguma falta. Se essa pessoa não o punir como
merece, só por isso incorre em grande desprestígio, devendo o guarda das
leis incumbido da vigilância dos meninos observar daí em diante esse
transeunte que, ao encontrar o grupo a que me referi, não os puniu como
tinha por obrigação, ou só o fez indevidamente. Com sua visão aguda e na
qualidade de conhecedor dos problemas da educação das crianças,
deverá aplicar-se ao estudo de suas inclinações, a fim de que sempre se
dirijam para o bem indicado pela lei.

E esse magistrado, de que modo a lei poderá ministrar-lhe a instrução


conveniente? Até o momento, ela nada disse claro ou suficiente; tratou de
umas tantas coisas e omitiu outras. No entanto, antes de tudo, importa não
passar por cima de nada que lhe diga respeito e tudo expor corri suficiência,
para que ele possa tornar-se, a um tempo, intérprete e instrutor. Com relação
aos coros, ao canto e à dança, já indicamos os modelos a serem escolhidos e
a maneira de corrigi-los e consagrá-los. Mas, no que respeita às
composições escritas, porém livres de metro, meu excelente curador
de crianças, ainda não nos manifestamos como devem ser e de que modo
terão de utilizá-las teus pupilos. Quanto à guerra, já indicamos o que eles
precisam aprender e os exercícios mais aconselháveis. Mas, o que se
relaciona com as letras, em primeiro lugar, e depois com a lira e o cálculo,
conhecimentos que declaramos de grande utilidade para a guerra, a
economia pública e a doméstica, bem como tudo o que possa servir para o
mesmo fim com referência às revoluções dos corpos divinos, os astros, o
sol e a lua, indispensáveis na regulamentação da vida de qualquer cidade,
como nos manifestaremos? A distribuição dos dias segundo os meses e a
dos meses segundo os anos, para que as estações, as festividades e os
sacrifícios sejam fixados nas épocas certas e indicadas pela própria natureza
e conservem a cidade sempre desperta e animada, e para que se prestem às
divindades as honras devidas e os homens se tornem mais lúcidos acerca de
todas essas questões: são pontos, caro amigo, que ainda não te foram
suficientemente explicados pelo legislador. Presta agora a máxima atenção
ao que passarei a expor.

Começamos por afirmar que não possuías noções suficientes a respeito do


ensino das primeiras letras. E quê censuramos em nosso discurso? O
seguinte: não te haver explicado com a clareza indispensável sequem
se prepara para ser um bom cidadão precisará adquirir conhecimentos
profundos nesse setor ou desprezá-los de uma vez. O mesmo passa com o
estudo da lira. Nossa opinião é que ele precisa estudar. Para a iniciação
nas letras, uma criança de dez anos de idade gastará mais ou menos três
anos; o estudo da lira, também, começado aos treze, durará outros três anos.
Nem o menino nem seu pai terão o poder de alterar para mais ou
para menos esse prazo determinado por lei, tanto no caso de revelar o
interessado gosto como aversão para a matéria. Quem não se conformar
com essa determinação, ficará privado das honrarias infantis a que nos
referiremos dentro de pouco. O que nesse em meio terão os meninos de
aprender e os mestres de ensinar, é o que, antes de mais nada, precisarás
saber. Os meninos se aplicarão ao estudo dos rudimentos das letras
até aprenderem a ler e escrever. Quem não conseguir fazê-lo com facilidade
e elegância no prazo estipulado, deverá desistir. Quanto ás composições de
nossos poetas, sem acompanhamento de lira, algumas em verso,
outras carentes de ritmo, escritas tal qual se fala e desprovidas de ritmo e de
harmonia — obras perigosas que muitos autores nos deixaram — como
excelentes guardas das leis, que pretendeis fazer delas? Que instruções vos
dará nesse sentido o legislador desejoso de acertar? A meu ver, ele também
se encontra em grande perplexidade.

Clínias — Como se explica, forasteiro, que tu mesmo te formules essa


pergunta embaraçosa?

O Ateniense — Tua observação é procedente, Clínias. Mas, uma vez que


colaborais comigo no nosso projeto de legislação, é justo que vos explique
o que me parece fácil e o que não é.

Clínias — Como assim? Que tens em vista, e que se passou contigo, para te
expressares dessa maneira?

O Ateniense — Vou dizer-te. É que não é fácil contestar a opinião de


milhares e milhares de bocas.

Clínias — Ora essa! Então, achas pouco e carecente de interesse o que até
agora assentamos a respeito de leis, em oposição ao pensar da maioria?

O Ateniense — Falaste com muito acerto. Pelo que vejo, concitas-me a


prosseguir o caminho tão odiado das multidões, mas apreciado por outros,
não menos numerosos, porventura que os primeiros, porém de maior
merecimento. Exortas-me a participar com eles do perigo comum e a
avançar corajosamente e sem vacilações pela estrada aberta com nosso
discurso acerca da legislação.

Clínias — Isso mesmo.

XV — O Ateniense — Então, não desistirei. Digo, pois, que entre nós há


muitos poetas capazes de compor hexâmetros, trímetros e outros versos das
mais variadas medidas, alguns sobre assuntos sérios, outros mais inclinados
para o cômico; e como muita gente afirma que para bem educar os jovens é
preciso alimentá-los até à fartura, assim, também, nesse outro
setor precisaremos entupir-lhes as orelhas com toda sorte de leituras, e a
cabeça com o exercício de decorar quantas composições poéticas existirem.
Outros escolhem trechos seletos desses mesmos poetas, ou passagens
inteiras, convidando a decorá-los e fixá-los na memória quem quiser
adquirir fama de sábio, à força de estudo e experiência. A essa gente é que
me concitas a declarar com franqueza em que têm razão ou em que
possam estar errados?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Como será, então, possível resumir por maneira satisfatória


meu pensamento? Segundo creio, ninguém discordará de mim no seguinte
ponto: não há poeta que não tenha produzido muitas coisas boas, e também
muitas condenáveis. Ora, se assim é, realmente, o excesso de erudição
constitui perigo muito grande para as crianças.

Clínias — Com que critério, então, aconselharias os guardas das leis?

O Ateniense — A que te referes?

Clínias - Ao modelo que eles sempre deverão ter em mira para permitir aos
jovens o estudo de certas coisas e desaconselhar o de outras.

O Ateniense — Parece que a sorte, meu bom Clínias, pelo menos em alguns
pontos me favoreceu.

Clínias — A respeito de quê?

O Ateniense — Por não ter dificuldade para encontrar um modelo. Ao


considerar os discursos que desenvolvemos desde cedo até agora — o que
não se deu, segundo creio, sem inspiração divina — pareceu-me que eles
tinham muita semelhança com a poesia. Não é, pois, de admirar o que se
passa comigo, a alegria que sinto com este retrospecto global de nossa
dissertação. Da maior parte dos discursos que eu estudei ou ouvi ler, ou
fossem prosa ou verso, aqueles me parecem os mais sensatos e merecedores
de serem ouvidos pelos jovens. Estou convencido de que não poderia
propor melhores modelos aos educadores e guardas das leis, para que
os professores ensinem aos seus alunos essas composições ou outras
semelhantes. E se no exame das produções dos poetas ou no de escritos em
prosa, ou mesmo dos discursos simplesmente falados e não fixados na
escrita, encontrarem os guardas das leis algum irmão dos nossos, tudo
façam para não perdê-lo, mas, pelo contrário, esforcem-se para obter uma
cópia escrita. Para começar, deverão obrigar os mestres a estudá-los e
a comentá-los favoravelmente. Os professores que não se agradarem da
peça serão dispensados de colaborar, só continuando a auxiliá-lo em sua
missão os que pensarem como ele. A esses, exclusivamente, será confiado
o ensino e a educação dos jovens. E aqui termino meu discurso a respeito
dos professores e do ensino das letras.

Clínias — Segundo minha maneira de pensar, forasteiro, não nos afastamos


da meta que nos propusemos no começo; mas, se nosso plano está certo ou
errado, é o que não será muito fácil decidir.

O Ateniense — A meu ver, Clínias, isso ficará patente, conforme já o


dissemos repetidas vezes,quando chegarmos ao fim da exposição das leis.

Clínias — Tens razão.

XVI — O Ateniense — Depois do professor primário, não é ao professor de


cítara que devemos dirigirnos?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Então, se bem nos lembramos de nossos discursos


anteriores, confiaremos a parte da tarefa que lhe compete no ensino, relativa
ao conjunto da educação.

Clínias — A que discursos te referes?

O Ateniense — Dissemos, segundo creio, que os cantores sexagenários dos


festejos de Dioniso, mais do que todos, deveriam possuir sentido
particularmente fino com relação aos ritmos e as combinações harmônicas,
a fim de poderem ficar em condições de distinguir as boas e as ruins
imitações nos cantos que refletem as emoções da alma e, assim, rejeitar
umas e acolher outras e, com o poder desses cantos encantar a alma
dos jovens e concitá-los, com essas imitações, no empenho de adquirir a
virtude.

O Ateniense — Com tal propósito é que o professor de cítara e seu aluno


devem usar os sons do instrumento, tirando todo o partido possível de sua
clareza, para que o som acompanhe exatamente a voz. Quanto aos sons
variados e discrepantes da lira, quando as cordas emitem uma melodia, e
outra, muito diferente, o autor do canto, e misturam sons fortes e
fracos, rápidos e lentos, agudos e graves, exigindo requintes de variações no
ritmo do acompanhamento da lira: tudo isso deve ser banido do ensino de
quem terá de aprender rapidamente em três anos tudo o que a música possa
ter de útil. Essas partes que se contrariam e perturbam umas às outras
dificultam sobremodo o estudo que para a criança só deveria oferecer
atrativos; os conhecimentos que, ao lado disso, eles precisam adquirir, nem
são poucos nem de importância secundária, conforme o demonstrará com o
tempo nossa exposição. É assim que entre nós o educador deverá dirigir o
ensino da música. Quanto aos cantos e às palavras que os diretores dos
coros precisam ensinar aos alunos, já nos alargamos suficientemente no
que ficou dito atrás, ao explicarmos que deveriam ser con-

sagrados e adaptados a cada festa, para o bem da cidade, com lhe


proporcionar um deleito saudável.

Climas — Esse ponto, também, já foi suficientemente explanado.

O Ateniense — Sem dúvida. Incumba-se, pois, dessa parte o magistrado


escolhido para presidir à música, e que tenha sorte na sua missão. De nosso
lado, à guisa de complementação ao que ficou dito acerca das danças e dos
exercícios físicos, acrescentemos mais alguns considerandos, e assim como
expusemos o que faltava tratar no ensino da música, façamos o mesmo com
a ginástica. Pois tanto os rapazes como as raparigas precisam exercitar-se
em ginástica e em dança, não é verdade?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Sendo assim, não será fora de propósito nomear professores


de dança para os rapazes, e professoras para as raparigas.

Clínias — Vá que seja.

O Ateniense — Convidemos, pois, para essa função o indivíduo mais


atarefado, a saber, o curador dos jovens, que, com tantos problemas de
música e de ginástica, com muita folga é que não há de ficar.
Clínias — Como poderá um velho dar conta de tantas obrigações?

XVII — O Ateniense — Muito facilmente, amigo; pois a lei lhe confere o


direito, agora confirmado, de escolher para a execução desse serviço um
auxiliar de sua confiança, homem ou mulher, sendo certo que ele saberá
decidir-se, sem cometer erro grave, por ser dotado de bastante senso para
avaliar a importância de seu cargo, além de considerar consigo mesmo que
se os jovens forem bem educados, agora e no futuro, tudo correrá entre nós
à maravilha; em caso contrário... nem vale a pena falar; não nos
manifestemos a respeito de semelhante assunto numa cidade tão nova, de
medo das pessoas inclinadas a fazer previsões.

Já apresentamos muitos reparos com referência à dança e a toda espécie de


exercícios, pois incluímos no conceito amplo de ginástica todos os trabalhos
corpó-reos relacionados com a guerra: o tiro com arco e outras modalidades
de arremesso, o combate com armas leves e pesadas, evoluções táticas, a
arte de levantar ou fixar acampamento, e tudo o que se relaciona com
o ensino da equitação. Para todas essas disciplinas, exigem-se professores
públicos custeados pela cidade, que terão como discípulos rapazes e
homens feitos, bem como as raparigas e mulheres adultas habituadas a
tais exercícios. Enquanto solteiras, estas aprenderão a dançar e a combater;
na idade adulta, familiarizar-se-ão com as evoluções, formação das tropas e
a maneira de descansar as armas ou de retomá-las, quando mais não
seja, sempre que for preciso sair, com urgência, da cidade toda a população
capaz de combater fora dos muros, para proteção das crianças e do resto da
comunidade, ou então, na hipótese contrária — pois não podemos jurar que
isso nunca venha a acontecer — de investirem de súbito contra a cidade
inimigos de fora, ou sejam bárbaros ou mesmo helenos, com grande força e
violência, o que imporia a necessidade de travar uma luta decisiva para a
salvação comum. Seria prova de governo péssimo serem as mulheres
educadas por maneira tão vergonhosa, que não se dispusessem a morrer e a
enfrentar perigos, tal como fazem os pássaros em defesa dos filhos contra
qualquer animal de muito mais força, e, ao invés disso, corressem para os
lugares sagrados e se amontoassem nos templos e nos altares, contribuindo,
assim, para reforçar a opinião de que, por natureza, de todos os animais é a
raça humana a mais cobarde.
Clínias — Por Zeus, forasteiro; além de calamitoso, não seria nada belo
para nenhuma cidade que tal coisa acontecesse.

O Ateniense — Então, consignaremos na lei que as mulheres nao devem


descuidar-se dos exercícios de guerra, sendo necessário, até, que todos,
homens e mulheres, se ocupem com isso?

Clínias — Eu, pelo menos, declaro-me de acordo com essa sugestão.

O Ateniense — Já falamos um pouquinho a respeito da luta; mas ainda não


tratamos do mais importante, quero crer, por não ser fácil expor o assunto
sem ilus-trá-lo com movimentos do corpo. É o que decidiremos, quando à
ação se juntar o discurso, e este mostrar, entre outros fatos de que já
houvesse tratado, que a luta, tal como a compreendemos, é o movimento
que mais se aproxima dos verificados nos combates sangrentos, motivo por
que devemos praticá-la com vistas à guerra, não o inverso: esta por amor
daquela.

Clínias — Expuseste o assunto admiravelmente

bem.

XVIII — O Ateniense — Para o momento, é suficiente o que ficou dito a


respeito da importância educacional da luta. Quanto aos outros movimentos
do corpo, que poderiam muito bem ser designados pelo nome genérico de
dança, precisaremos advertir que há dois gêneros de dança: um que imita
com solenidade os belos corpos, e outro, os feios com gesticulação risível,
e também que o gênero banal se subdivide em duas espécies, e o sério em
outras duas; entre estes últimos, de um lado, incluem-se os movimentos que
imitam os belos corpos e as almas generosas empenhados na guerra e nos
trabalhos pesados, e do outro, os que representam o estado de uma alma
sábia na prosperidade e nos prazeres comedidos. Por sua própria natureza,
caberia a essa dança a denominação de pacífica. Porém a
guerreira, variedade muito diferente da pacífica, podia receber o nome de
pírrica, ou dança das armas, visto imitar os movimentos exigidos para
escapar de golpes e arremessos da mais variada espécie, ora esquivando-se
ou recuando-se de súbito, como também os movimentos contrários a todos
esses, ou sejam as posições ofensivas, no que entende com a imitação do
disparo de flechas e o lançamento de dardos, ou os gestos imitativos de
toda sorte de golpes. O que há de certo nessa tensão muscular, quando se
imitam os belos corpos e as almas, é conservar a retidão das linhas o
conjunto dos membros do corpo. O certo é isso, não podendo a atitude
contrária ser considerada bela. Quanto à dança pacífica, será preciso
considerar se em cada caso o executando se conforma ou não com a
natureza de uma bela execução. e até o fim se comporta assim mesmo em
todos os seus movimentos, como convém ao cidadão formado sob
a orientação de boas leis. Inicialmente, urge distinguir entre a dança
legítima e a de natureza duvidosa. Como será aquela, e de que modo
podemos diferençá-las? Todas as danças báquicas e as que a estas se
assemelham, que vão buscar, conforme dizem, nas ninfas, nos pãs, nos
silenos, nos sátiros os respectivos nomes e que imitam pessoas embriagadas
quando no ato de celebrar purificações e iniciações: esse gênero de dança
nem é guerreiro nem pacífico, não sendo, absolutamente, fácil defini-lo.
Quer parecer-me, porém, que se poderia muito bem qualificá-lo com
exatidão se o separássemos tanto do gênero guerreiro como do pacífico e
declarássemos que semelhante gênero de dança não se casa com as boas
instituições, e assim, deixando de lado, voltaríamos a estudar os outros dois
gêneros, o guerreiro e o pacífico, os quais, sem dúvida, nos falam mais de
perto.

A dança da Musa não belicosa, em homenagem aos deuses e aos filhos dos
deuses, forma um gênero único, nascido do sentimento do bem-estar, e pode
ser dividida em duas espécies: uma, sempre que escapamos de certos
perigos e trabalhos e encontramos paz, oferece maiores prazeres; a outra,
decorrência da conservação e aumento de uma felicidade preexistente, se
caracteriza por prazeres menos vivos. Em tais condições, para todos os
homens os movimentos do corpo são mais vivos quando os prazeres são
maiores, ou menos vivos, quando menores, como também serão menores
nos indivíduos mais moderados e com oportunidade de revelar coragem. O
pusilânime e sem prática de dominar-se, trai-se por meio de movimentos
mais violentos e acentuada variedade. De modo geral, quando alguém
fala ou canta não se conserva quieto ao emitir os sons. Toda a arte da dança
nasceu da imitação das palavras por meio do gesto. Daí, movimentarem-se
alguns por maneira harmoniosa, e outros, o contrário disso. Com toda a
justiça, só merecem louvores muitos nomes antigos, por apropriados e
conformes à natureza, sempre que nos aprofundamos no seu significado.
Estão nesse caso as danças das pessoas que se sentem felizes e se mostram
moderados nos prazeres, danças denominadas com propriedade harmonia
por quem primeiro as qualificou — pouco importando a pessoa — e as
designou pelo nome genérico de emelia ou modulação, agrupando em duas
classes as belas danças, ou sejam, a pírrica ou belicosa e a emelia pacífica,
com o que aplicou a ambas designação adequada e conforme a sua natureza.
É tarefa do legislador determinar os modelos, e dos guardas das leis,
procurar executá-los; uma vez tudo a ponto, este combinará a dança com as
outras partes da música e distribuirá a cada festejo uma variedade de dança,
bem como indicará para cada sacrificio a que mais lhe convém, sem
permitir, daí em diante, que se introduza a menor modificação nas danças e
nas cantigas, para que sempre os mesmos cidadãos participem em toda a
cidade dos mesmos prazeres e, tão semelhantes entre si quanto possível,
vivam alegres e felizes.

XIX — Já dissemos o suficiente com relação ao papel dos belos corpos e


das almas nobres na execução das danças. Quanto aos corpos e aos
pensamentos feios, os espíritos inclinados a fazer macaquices para provocar
o riso, com a palavra, o canto e a dança e, de modo geral, todas as imitações
cômicas, é preciso freqüentá-las para melhor conhecê-las. Não é possível
conhecer o sério sem ter experiência do ridículo, nem os contrários sem o
contrário de cada um. É como deverá proceder quem quiser julgar com
discernimento; mas, misturar as duas coisas, não o fará quem aspira a
participar de um pouquinho de virtude; o que importa é conhecer os dois,
para nunca chegar a fazer ou a dizer nada irrisório sem necessidade e por
simples ignorância. Essas modalidades de imitação devem ficar a cargo
de escravos ou de estrangeiros assalariados, sem que nunca qualquer
cidadão livre se ocupe seriamente com tais coisas, não importando o sexo,
nem demonstre que se interessa no seu estudo. Tais espetáculos devem
sempre dar a impressão de novidade.

Ficam, assim, regulados pelas leis e pelos discursos os divertimentos


provocadores de riso a que damos o nome de comédia. Quanto aos poetas
sérios, como eles próprios se denominam, nossos poetas trágicos, se alguns
nos procurassem e nos dirigissem a seguinte pergunta: Acaso, forasteiros,
poderemos apresentar-nos em vossa cidade ou em suas imediações para
representar nossas peças? Que decidistes a esse respeito? Qual a resposta
justa que daríamos a tais homens divinos? A meu ver, a seguinte ficaria
bem: Excelentes forasteiros, lhes faláramos, nós também compusemos
nossa tragédia, a melhor e mais bela que nos foi possível levar a cabo.
Nossa constituição inteirinha não passa dé imitação do que a vida tem de
mais belo e excelente, imitação que nós, pelo menos, consideramos
verdadeira tragédia. Sois criadores, como também o somos, no mesmo
gênero de poesia; concorrentes e rivais no mais belo drama que somente a
verdadeira lei é capaz de realizar. Essa, pelo menos, é nossa esperança. Não
aguardeis, portanto, permissãb muito fácil para assentar vossa barraca na
praça pública da cidade e apresentar atores dotados de belas vozes, que
falam mais alto do que nós, com permissão de arengar às crianças, às
mulheres e a todo o povo, mas sem falarem como nós a respeito das
mesmas instituições, senão, na maior parte das vezes, por maneira
precisamente oposta. Poderíamos ser chamados de loucos, nós e toda a
cidade, se vos permitíssemos fazer o que ora nos pedis, antes de se
certificarem os magistrados de que vossas composições merecem ou não
merecem ser representadas e ditas em público. Por tudo isso, filhos das
Musas delicadas, começai por mostrar vossos cantos aos nossos
magistrados, para que eles os comparem com os nossos; se se provar que
vossa doutrina é igual ou melhor do que a nossa, dar-vos-emos coro; a não
ser assim, amigos, jamais concederemos o que nos pedis.

São esses os dispositivos de lei no que respeita aos coros de dança e o seu
ensino: de um jeito para os escravos, e de outro para os senhores, caso
estejais de acordo com a minha maneira de pensar.

Clínias — Como não aceitá-los, até este ponto?

XX — O Ateniense — Ainda falta ensinar três ciências aos cidadãos livres:


o estudo do cálculo e dos números; segundo, o da medida da largura, da
superfície e da profundidade, vindo em terceiro lugar o que trata do curso
dos astros e das relações recíprocas em sua marcha. O estudo aprofundado
dessas matérias não é ocupação da maioria, senão de muito pouca gente,
conforme explanaremos na ocasião oportuna mais para o fim de nossa
exposição. Não é fácil, ou melhor, não é
possível estudarem as multidões todas essas disciplinas até nas menores
particularidades, muito embora se diga, e comrazão, que é vergonhoso para
qualquer pessoa ignorar o estrictamente necessário nesse particular. Mas o
indispensável não se pode ignorar; era o que tinha em mente quem pela
primeira vez incluiu Deus num provérbio, ao afirmar que nem o próprio
Deus é capaz de lutar contra a Necessidade; a Necessidade divina,
bem entendido; porque, com referência às necessidades humanas, que é no
que, de regra, pensam os que citam esse brocardo, é a afirmação mais tola
que se poderia conceber.

Clínias — E neste domínio, forasteiro, que necessidades não são humanas,


porém divinas?

O Ateniense — Aquelas, me parece, sem cuja prática ou conhecimento


ninguém passará aos olhos dos homens por divindade ou demônio ou herói
capaz de ocupar-se seriamente com os negócios humanos. Ora, está longe
de tornar-se um homem divino quem ignora o que seja um, dois e três, e os
números pares e ímpares em geral; quem não sabe, absolutamente,
calcular ou contar os dias e as noites e não tem a menor noção do curso do
sol, da lua e dos demais astros. É o cúmulo da insensatez asseverar que não
precisa tudo isso quem quiser adquirir noções elementares dos mais belos
conhecimentos. Porém qual desses conhecimentos é necessário, em que
tempo e quanto de cada um, quais combinados entre si e quais
separadamente, e todos os modos de relacioná-los uns com os outros, é o
que se precisará saber muito bem desde o início, para aprender o resto sob
sua direção. Essa é a ordem natural estabelecida pela Necessidade, contra a
qual, conforme dissemos, nenhuma divindade se insurge
presentemente nem nunca poderá insurgir-se.

Clínias — Tudo o que expuseste, forasteiro, me parece bem dito e conforme


a natureza das coisas.

O Ateniense — Sem dúvida, Clínias; porém, com semelhante programa é


difícil promulgar leis. Mas, se estiveres de acordo, deixemos para outra
oportunidade essas minúcias de legislação.

Clínias — Só parece, forasteiro, que tens medo de nossa irredutível


inexperiência em tais assuntos. É me-do injustificável. Prossegue em tua
exposição, sem que isso contribua para omitires alguma coisa.

O Ateniense — Sim, receio isso mesmo. Porém tenho mais medo, ainda,
dos que se ocupam com todos esses conhecimentos, mas o estudam mal.
Em todos os domínios, não é o pior dos males a ignorância total
e irremediável; muito mais prejudicial é saber muito e tudo estudar sem
uma orientação sadia.

Climas — Tens razão.

XXI — O Ateniense — Digamos, então, que os homens livres precisam


estudar o que a grande maioria dos meninos do Egito aprende desde as
primeiras letras. Inicialmente, para facilitar o estudo do cálculo foram
inventados métodos que isso mesmo lhes ensinam desde a infância, por
brinquedo e com deleite, e que consiste na divisão de maçãs e de coroas
entre maior ou menor número de meninos, ou na distribuição e substituição
progressiva dos competidores de luta do pugilato, conforme a ordem
natural. Ou então, por brinquedo os professores misturarão pequenas
conchas de couro, ferro, prata ou material do mesmo gênero, quando não o
fizerem por séries, conforme disse. Aprendendo no jogo o emprego
indispensável dos números, todos os alunos ficarão sabendo como
distribuir convenientemente um exército e de que modo conduzir uma
expedição militar, e bem assim administrar sua própria casa, com o que se
consegue deixá-los mais espertos e úteis até para eles mesmos. Depois
disso, com o ensino das medidas de comprimento, largura e profundidade,
ficarão livres da ignorância ridícula e vergonhosa que se encontra
naturalmente em todos os homens, relativamente a esses assuntos.

Clínias — A que espécie de ignorância te referes?

O Ateniense — Meu caro Clínias, é fato que eu mesmo me admirei bastante


quando, muito tardíamente, ouvi falar do que se passa conosco nesse
domínio; só me pareceu que era mais condição de porcos do que de
homens, e corei de vergonha, não apenas por mim como por todos os
helenos.

Clínias — A respeito de quê? Dize-o logo, forasteiro.


O Ateniense — Vou dizê-lo; ou melhor, vou explicar-te o de que se trata,
por meio de perguntas. Responde-me em poucas palavras: sabes o que é
largura?

Clínias — Como não?

O Ateniense — E agora: superfície?

Clínias — Também.

O Ateniense — Como decerto saberás que além dessas duas dimensões, há


uma terceira: a profundidade?

Clínias — Como não?

O Ateniense — E não és de parecer que todas elas são comensuráveis entre


si?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Como eu acho que é naturalmente possível medir uma


largura por outra largura, superfície por superfície, e também profundidade
por profundidade.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Mas, se em certos casos não se pode medi-las nem com


facilidade nem à força, só sendo mensuráveis algumas dessas dimensões,
outras não, en quanto imaginavas que todas as fossem: que idéia passarás a
fazer de tua sabedoria?

Clínias — Péssima, evidentemente.

O Ateniense — E quanto à relação entre o comprimento e a superfície com


a profundidade, ou a existente entre a superfície e o comprimento, todos
nós, helenos, não estaremos convencidos de que, de uma forma ou de outra,
elas são comensuráveis?

Clínias — Perfeitamente.
O Ateniense — Mas, se elas não forem comensuráveis de nenhum jeito,
enquanto todos os helenos, conforme disse, acreditam que o sejam, não será
o caso de nos envergonharmos por eles todos e de lhes
perguntar: Distintíssimos helenos, esse é um dos tópicos que declaramos ser
vergonhoso ignorar, conquanto não ocorra importância a ninguém o
conhecimento dos princípios essenciais.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Além desses erros, há outros do mesmo tipo, que


cometemos a cada passo.

Clínias — Quais são?

O Ateniense — Como por natureza são as coisas comensuráveis ou não


comensuráveis entre si. Sobre isso é que precisamos meditar, para não
passarmos a nós mesmos atestado de ignorantes. Formulemos, pois, esses
problemas uns para os outros, o que seria passatempo mais agradável do
que o jogo de gamão para os velhos e, sobretudo, competição de muito
maior merecimento.

Clínias — Talvez; parece mesmo que não há grande diferença entre o


gamão e essa disciplina.

O Ateniense — A meu ver, Clínias, com elas é que os jovens devem


ocupar-se; sem serem difíceis nem prejudiciais, podem ser estudadas como
diversão e com bastante proveito para a cidade, sem prejudicá-la em nada.
Se alguém pensar de modo diferente, ouçamo-lo.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Sendo assim, se tais conhecimentos forem conforme


dissemos, é fora de dúvida que os acolheremos; mas se nos parecerem
diferentes, precisaremos rejeitá-los.

Clínias — É evidente, como não?


O Ateniense — Nesse caso, forasteiro, terão de ser incluídas entre as
disciplinas obrigatórias, para que nesse ponto nossas leis não fiquem
lacunosas? Mas admitamo-los a título precário e à guisa de penhor de que
poderá livrar-se oportunamente nossa constituição, na hipótese de não
agradarem nem a nós, que os apresentamos, nem a vós, que os recebestes.

Clínias — Eis uma proposta razoável.

XXII — O Ateniense — Quanto ao estudo dos astros, depois de terminada


minha exposição, vê se merece ou não fazer parte do programa dos moços.

Clínias — Podes falar.

O Ateniense — Ora, nesse domínio ocorre algo muito estranho, que não
podemos, absolutamente, admitir.

Clínias — De que se trata?

O Ateniense — Dizem que não devemos procurar conhecer o Deus


supremo e o mundo em universal, nem revelar curiosidade de investigar-
lhes as causas, por

constituir isso ato de impiedade, quando o contrário, justamente, é que me


parece direito.

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — O que vou declarar destoa da opinião da maioria, parecendo


que não vai bem com minha condição de velho. Mas, quando se está
convencido de que um conhecimento é belo, verdadeiro, útil à cidade e de
todo o ponto agradável aos deuses, não é possível deixar de enunciá-lo.

Clínias — Tudo isso é muito razoável. Mas, onde encontraremos esse


conhecimento relativo aos astros?

O Ateniense — Ora, meus caros, a respeito das seguintes divindades: o sol


e a lua, nós, helenos, por assim dizer, só falamos mentiras.

Clínias — E quais são essas mentiras?


O Ateniense — Afirmamos que, juntamente com outros astros, eles jamais
seguem a mesma rota, e que, por isso mesmo lhes damos o nome de
planetas ou errantes.

Clínias — Por Zeus, forasteiro, é muito certo o que dizes; eu mesmo já tiver
bastas oportunidades de ver que a estrela d'alva e a vespertina, e outras
mais, nunca seguem a mesma rota, porém planam sem rumo certo, como
também sabemos que o sol e a lua se comportam desse mesmo modo.

O Ateniense — Foi por isso, Megilo e Clínias, que eu insisti na necessidade


de nossos concidadãos, principalmente os jovens, adquirirem algumas
noções a respeito dos corpos celestes, pelo menos o suficiente para nunca
blasfemarem e só falarem bem deles, tanto durante os sacrifícios com em
suas orações.

Clínias — É justo, na hipótese, bem entendido, de ser possível ensinar tais


coisas. Além disso, se não nos referimos a eles como fora preciso, só sendo
possível fazê-lo depois de devidamente doutrinados, concede também que
precisamos adquirir esse conhecimento tão grande e importante Demonstra-
nos, então, que tudo se passa como disseste, porque, de nossa parte
nos esforçaremos para acompanhar tua exposição.

O Ateniense — Não sendo muito fácil de aprendei o assunto a que me


referi, também não é difícil nem

exige tempo longo demais. E a prova é o seguinte: não o tendo aprendido


nem quando moço nem há muito tempo, sinto-me em condições de vo-lo
expor em prazo relativamente curto. Se fosse tão difícil, com a idade que
tenho não me seria possível transmiti-lo a moços como vós.

Climas — Tens razão. Mas que disciplina é essa, tão maravilhosa, na tua
opinião, que convém ensinar aos jovens e da qual não temos conhecimento?
Pelo menos, procura dar-nos noções claras a esse respeito.

O Ateniense — É o que vou tentar. Não é verdade, excelentes amigos, o que


comumente se diz da lua, do sol e dos outros astros, que por vezes são
errantes. A verdade é precisamente o oposto disso: cada um deles percorre
sempre uma única rota circular, não mais; só aparentemente são múltiplas.
O mais rápido, também, dá a impressão de ser o mais lento, e vice-versa. Se
as coisas forem por natureza como eu disse, e nós é que as imaginamos de
outro modo, ponhamos o caso de cometermos o mesmo erro nas
competições olímpicas durante as corridas de cavalos ou nas do longo
estádio pelos homens, para qualificarmos o mais veloz como o mais lerdo, e
o que de verdade foi moroso como o mais rápido, e façamos em nossos
panegíricos o elogio dos vencidos, alçados por nós à posição de
vencedores. Com isso, não seríamos justos, me parece, nem nossos elogios
muito próprios para agradar os corredores, que, aliás, são mortais como nós.
Ora, se cometêssemos o mesmíssimo erro com relação aos deuses, iríamos,
porventura, imaginar que tudo quanto no primeiro caso era injusto e
ridículo, não o seria absolutamente com relação aos deuses, e que estes se
comprazeriam com os hinos a eles dirigidos, crivados de mentiras?

Clínias — Nada mais certo, se as coisas se passarem, realmente, desse


modo.

O Ateniense — Logo, se demonstrássemos que é assim mesmo, teremos de


ensinar, até certo ponto, aquelas disciplinas, como nos absteremos de fazê-
lo, no caso de não conseguirmos apresentar essa prova. Assentaremos
também esse ponto?

Clínias — Perfeitamente.

XXIII — O Ateniense — Nesta altura, justifica-se declarar que chegamos


ao fim da regulamentação do estudo das ciências na educação dos moços.
Importa, agora, considerar com igual empenho a caça e tudo o que se lhe
relaciona. A tarefa do legislador não há de limitar-se à redação de leis; além
destas, algo existe que, por natureza, se encontra a meio caminho da
advertência e da lei, a que por va'rias vezes já nos referimos em nossa
exposição, como, por exemplo, quando falamos da educação das
criancinhas. Naquele passo, declaramos que não podíamos saltar por cima
de semelhantes tópicos, mas que seria rematada tolice atribuir o valor de
leis a tudo o que disséssemos. Uma vez redigidas as leis e terminada a
constituição, não ficará perfeito o elogio do cidadão virtuoso, com
declararmos que ele soube servir às leis e obedecer-lhes exemplarmente.
Será muito maior o elogio, se dissermos que durante a vida inteira ele
acatou as determinações do legislador, quer se tratasse de leis propriamente
ditas, quer de encômios ou censuras de sua parte. Seria esse o melhor elogio
do cidadão perfeito; o verdadeiro legislador não deve limitar-se a redigir
leis; precisará entremeá-las com opiniões pessoais acerca do que lhe parece
honesto ou desonesto, o que o cidadão perfeito deverá observar com o
mesmo rigor com que o faz com relação às penalidades impostas pela lei.

Como prova disso, apresentamos o tema com que vamos ocupar-nos, e que
ilustrará muito bem nosso propósito. A caça é um conjunto de atividades
definidas por uma única denominação. Realmente: variada é a caça aos
animais aquáticos; múltipla, a dos voláteis; diversíssima, a dos arrimais
terrestres, incluída nesta não apenas a caça aos animais selvagens, como
também a modalidade não menos digna de menção, que os homens
promovem entre eles mesmos, seja pela via de guerra, seja, com mais
freqüência ainda, pela da amizade; aquela, censurável; esta outra,
merecedora de elogios. São também caça os assaltos dos bandidos ou
dos exércitos entre si. Ao redigir as leis relativas à caça, o legislador não
poderá deixar de manifestar-se a respeito de tais pontos, mas também não
precisará regulamentar

tudo nem estabelecer penas para cada caso particular. Como proceder em
semelhante situação? De seu lado, o legislador deverá elogiar ou censurar
as diferentes modalidades de caça, com referência aos trabalhos e exercícios
dos jovens, enquanto estes, por sua vez, terão de escutá-lo e obedecer-lhe,
sem se deixarem influenciar nesse sentido nem pelos prazeres nem pela
fadiga, e sempre dispostos a dar melhor acolhida às determinações
apresentadas como elogio do que às proibições legais.

Depois desse preâmbulo, segue-se, naturalmente, o elogio ou a censura


moderada, para aprovar a modalidade que deixar melhor a alma dos jovens,
ou censurar as de efeito contrário. Digamos o resto sob a forma de voto
dirigido aos moços: Amigos, tomara que nunca venhais a sentir o gosto nem
a paixão da caça marítima, nem a da pesca com anzol, nem, de modo geral,
a pesca dos animais aquáticos que se pratica com a rede, sem trabalho
nenhum, dormindo ou acordado, nem, ainda, a paixão da pirataria, essa caça
aos homens, no mar, que vos reduz à condição de depredadores cruéis e fora
da lei. Quanto a furtos na campanha ou na cidade, é idéia que nem de longe
deve acudir-vos ao espírito. E que nenhum moço, também, se deixe
dominar pela paixão assoberbante da caça aos pássaros, nada recomendável
para um homem livre. Assim, para nossos atletas só resta a caça aos animais
marchadores e sua captura; nessa, porém, a modalidade denominada
noturna, em que homens inativos se revezam no sono, não merece a menor
referência de nossa parte, e bem assim a que oferece longos intervalos de
descanso, em que a vitória sobre a força bruta dos animais é alcançada por
meio de redes e de laços, não pela pertinácia de uma alma valorosa. A
modalidade restante de caça, a mais excelente de todas, é a dos
quadrúpedes, que se pratica com cavalos e cães, com participação de todo
o corpo, na qual as pessoas que cultivam a coragem divina dominam a presa
por esforço próprio, ou seja na carreira ou com pancadas, ou mesmo com
tiros arremessados de longe.

Assim enunciado, esse discurso expressaria o elo-

gio ou a censura cabíveis aos diferentes gêneros de caça. A lei seria a


seguinte: Ninguém poderá impedir que os caçadores verdadeiramente
sagrados se exercitem como e onde quiserem. Quanto aos caçadores
noturnos, que só confiam em laços e redes, ficam proibidos de caçar seja
onde for. O caçador de pássaros não será hostilizado nos terrenos maninhos
nem nas montanhas; mas será perseguido pelo primeiro que o encontrar em
terras cultivadas, ou mesmo nas incultas, porém consagradas aos deuses.
Essa permissão é extensiva à caça aos animais aquáticos, excluídos os
portos, rios, lagoas e lagos sagrados, contanto que o pescador não lance
mão de mistura nociva de sucos.

Agora já podemos declarar que chegamos ao fim do regulamento relativo à


educação.

Clínias — Com todo o direito o afirmarias.


LEIS
Livro VIII

I — O Ateniense — Depois disso, e de acordo com o oráculo de Delfos, o


que nos cumpre fazer é determinar por lei os sacrifícios a serem realizados,
e a que divindades, para vantagem e conveniência de todos. Talvez caiba no
âmbito de nossa competência fixar o número e as datas desses sacrifícios.

Clínias — Sim, pelo menos o número.

O Ateniense — Comecemos por aí. Fixemo-lo em trezentos e sessenta e


cinco, nunca menos, para que sempre qualquer autoridade possa sacrificar a
algum deus ou demônio, no interesse da cidade, dos próprios cidadãos e de
seus bens. Os intérpretes, sacerdotes, sacerdotisas e adivinhos se reunirão
com os guardas da lei para regulamentar nessa matéria o que o legislador
foi obrigado a omitir. A esses é que competirá manifestar-se acerca dos
casos omissos. Porém a lei é que fixará os doze festivais dedicados aos
deuses epônimos das doze tribos. Todos os meses deverá realizar-se um
sacrifício para cada divindade, com coros e concurso de música; os de
ginástica serão organizados levando-se em consideração a conveniência das
próprias divindades e a estação do ano; serão programadas, também, as
competições femininas, com a indicação precisa de quais delas ficarão
excluídas os homens e de quais não. Além disso, não será misturado o culto
dos deuses subterrâneos com o das divindades denominadas uranias,
ficando devidamente separados os ritos respectivos. A Plutão, como é de
lei, atribuir-se-á o décimo segundo mês. É preciso que os guerreiros não
manifestem aversão particular a essa divindade, porém a honrem como a
mais benéfica para o gênero humano, pois a união da alma com o corpo,
sob nenhum aspecto é superior à sua separação, o que afirmo com a maior
convicção possível.

Ademais, as pessoas incumbidas da programação desses festivais, devem


considerar que em matéria de tempo disponível e de recursos nenhuma
cidade de hoje poderá competir com a nossa, importando, pois, que tenha
vida feliz, como qualquer ser humano. Ora, para viver bem, a primeira
condição é não cometer injustiça, e depois, não ser alvo de injustiça por
parte de terceiros. O primeiro item é fácil de conseguir; mas é
extremamente difícil adquirir a força necessária para ficar-se ao abrigo de
injustiças, o que só conseguirá plenamente quem for bom em todos os
sentidos. O mesmo passa com a cidade: com vida boa, viverá em paz;
porém se for perversa, ver-se-á a braços com guerras externas e interiores.
Passando-se as coisas dessa maneira, como, de fato, passam, não há de ser
em tempo de guerra que os cidadãos precisarão exercitar-se para a luta,
porém nas épocas de vida calma. Por isso, toda cidade inteligente deverá
realizar esses exercícios pelo menos um dia em cada mês, ou mesmo mais,
se estiverem de acordo os magistrados, sem levarem em consideração nem
o frio nem o calor; ora todos de uma vez, acompanhados das mulheres e dos
filhos, sempre que as autoridades o determinarem, ora simplesmente em
grupos. Ao lado dos sacrifícios, será preciso proporcionar belos
divertimentos, sob a forma de combates festivos, tão parecidos quanto
possível com os combates de verdade. Nessa oportunidade, serão
distribuídos prêmios e recompensas aos vencedores, com elogios ou críticas
recíprocas, de acordo com o comportamento de cada um, e não apenas em
tais competições como no decurso de toda a vida, elogios para os que se
distinguirem, e censura para os outros.

O autor dos cantos para esses festejos não há de ser um poeta qualquer. Para
começar, precisará ter mais de cinqüenta anos, além de não ser dos tais
que, embora dotados para a poesia e a música, nunca realizaram nenhum
feito belo e digno de memória. Os cidadãos virtuosos e de elevado conceito,
por atos exempla-res, suas poesias é que serão cantadas, ainda mesmo que,
como músicos, deixem alguma coisa a desejar. Para julgá-los, serão
nomeados o diretor dos jovens e os demais guardas das leis, que lhes
conferirão o privilégio de deixar a Musa cantar com liberdade, permissão
essa que não será extensiva a mais ninguém, pois os outros poetas ficarão
proibidos de cantar seja o que for sem prévia autorização, ainda que se trate
de peça mais agradável do que os hinos de Tâmiras e de Orfeu. Só serão
aprovados os poemas consagrados e reservados aos deuses, e os que no
juízo de pessoas qualificadas forem considerados equilibrados nos elogios
ou censuras a terceiros.
II — Meu ponto é que, tanto com relação aos exercícios militares como no
que entende com a liberdade de expressão poética, as mulheres deverão ter
os mesmos direitos dos homens. Em conversa consigo mesmo, o legislador
deverá reflexionar da seguinte maneira: Vejamos que espécie de cidadãos
pretendo formar, depois de completar a organização da cidade. Atletas,
porventura, para as grandes competições, capazes de enfrentar milhares de
antagonistas. Isso mesmo, poderia alguém responder e com razão. E agora:
se os formássemos para o pugilato ou o pancrácio ou outra competição do
mesmo gênero, ingressaríamos no local da luta sem previamente nos
havermos exercitado, dia por dia, contra qualquer adversário? Se fôssemos
pugilistas, muito antes do encontro não aprenderíamos a lutar com todo o
empenho, e não procuraríamos imitar todos os movimentos necessários para
alcançarmos a vitória? E, a fim de nos aproximarmos o mais possível da
realidade, em vez de cestos, não revestiriamos os braços com bolas de
couro, para ficarmos em condições ótimas de dar socos e de apará-los? E se
não encontrássemos nenhum companheiro para esses exercícios, de medo
da risada dos tolos, deixaríamos de pendurar um boneco sem vida para nele
nos exercitarmos? E mais: até mesmo na falta absoluta de contendores
vivos ou inanimados, não nos decidiríamos a luta, literalmente, contra nossa
própria sombra? Em que mais poderá consistir o exercício de movimentar
os braços?

Clínias — Nisso mesmo, forasteiro, que acabaste de explicar.

O Ateniense — E então? Os combatentes de nossa cidade ousarão


apresentar-se menos preparados do que esses atletas, para o encontro mais
importante, em que vão defender a própria vida, os filhos, seus haveres e
toda a cidade? E somente com receio de que possa alguém achar ridículos
esses exercícios, o legislador deixará de prescrever diariamente algumas
práticas que dispensam o emprego de armas, organizando nesse sentido os
coros e toda a ginástica? E pelo menos uma vez por mês, não recomendará
os exercícios considerados mais importantes, com armas, encontros parciais
em todo o país, emboscadas, assaltos, no empenho de tomar determinados
postos, à maneira aproximada do que se observa na guerra; lutas com os
punhos revestidos de couro, arremessos de dardos, tão próximos
dos verdadeiros quanto possível e não de todo isentos de perigo, para que
tais divertimentos cheguem a inspire algum medo e, assim, permitam
conhecer, de um jeito ou de outro, os corajosos e os pusilânimes? Desse
modo, com a distribuição criteriosa de distinções para uns ou a degradação
de outros, conservar-se-ão todos em permanentes condições de travar um
combate de verdade quando for preciso. E na hipótese de haver morte, já
que se trata de homicídio involuntário, o causador do acidente, depois dos
ritos de purificação, será declarado por lei como estando com as mãos
limpas. Considerará o legislador que a perda de uns tantos é recompensada
pelo nascimento de outros, em nada inferiores aos primeiros, e que se o
medo, de algum modo, desaparecesse de tais exercícios, deixaria de
ser possível distinguir entre os corajosos e os pusilânimes, o que seria um
mal muito maior para a cidade.

Clínias — Concordamos inteiramente contigo, forasteiro, que é preciso


haver leis nesse sentido e que toda a cidade deverá participar de tais
competições.

Ill — O Ateniense — Saberemos explicar a causa de não haver


presentemente quase em nenhuma cidade coros e lutas dessa natureza, se
não for, talvez, a prática de exercícios sem maior significação? Ou atribuire

mos essa falta à ignorância dos muitos e dos que lhes impuseram suas leis?

Clínias — Quem sabe?

O Ateniense — Não, meu caro Clínias; o que se faz mistér é apontar as


duas causas capazes de produzir semelhante efeito.

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — Uma é o amor das riquezas, que em nenhum tempo concede


um momentmho de folga para cuidar de outra coisa além dos bens
materiais; estando pendente apenas disso a alma de todos os cidadãos, só se
ocupam estes com o lucro de cada dia, empenhando-se todos em adquirir
conhecimentos ou em exercer profissões que contribuam para tal fim,
considerando ridicularias tudo o mais. Essa é uma, urgindo apontá-la como
a principal causa de não se disporem as cidades a dedicar-se a esses
exercícios nem a outros de igual alcance, enquanto a cupidez insaciável de
ouro e de prata leva os homens a exercer os mais variados ofícios e recorrer
a todos os meios, decentes ou não, para ficarem ricos, sem se
envergonharem de praticar qualquer ato, lícito ou ilícito e até mesmo
infamante, contanto que lhes seja facultado — igualzinho nisso aos animais
irracionais — a comer e beber seja o que for e a fruir até â saciedade dos
prazeres do amor.

Clínias — Tens razão.

O Ateniense — Concluamos, então, é o que eu digo, ser essa a causa e o


obstáculo que impede as cidades de entregar-se não apenas a outras
ocupações superiores como aos exercícios da guerra, e que transforma as
pessoas de natureza moderada em comerciantes de terra e de mar e em toda
espécie de artesãos, e os destemidos, em bandoleiros, arrombadores de
muros, ladrões de templos e em guerreiros e tiranos, infelizes todos,
conquanto muitos sejam naturalmente de boa índole.

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Como deixar de considerar infeliz ao último ponto quem


durante toda a vida é ^brigado a sentir fome na alma?

Clínias — Bem; essa é uma causa; e a segunda, forasteiro, como a defines?

O Ateniense — Fizeste bem em lembrar-me.

Megilo — Conforme declaraste, a primeira é a cupidez insaciável que,


ocupando todos os momentos da vida dos cidadãos, não permite que eles se
apliquem devidamente aos exercícios militares. Vá que seja. Agora, fala da
segunda.

O Ateniense — Darei, porventura, a impressão de estar em dificuldades


para expressar-me e que procuro ganhar tempo?

Megilo — Não; mas, por uma espécie de ódio contra essa disposição de
espírito, tu a atacas em teu discurso com mais violência do que fora
necessário.
O Ateniense — É oportuna a reprimenda, forasteiro; bastar-vos-á, então,
ouvir o que se segue.

Clínias — Podes falar.

O Ateniense — A causa disso, segundo penso, vamos encontrá-la nas falsas


formas de governo a que já bastantes vezes me referi nos discursos
anteriores: democracia, oligarquia e tirania. A rigor, nenhuma delas é a
verdadeira constituição; mais cabe, à justa, a todas o nome de facção. Em
nenhum caso o poder se exerce com o consentimento dos governados; é
sempre arbitrário e revestido de violência. Com medo permanente dos
governados, jamais o governante permitirá de bom grado que eles se tornem
honestos ou ricos ou fortes ou corajosos, nem, de modo geral, guerreiros.
São essas as causas de todos os males, ou, pelo menos, dos mais
importantes. Quanto à cidade cujas leis presentemente elaboramos, soube
furtar-se de ambos os inconveniente, pois em verdade goza de bastante
ócio; os cidadãos são independentes entre si e, mais do que isso, segundo
penso, com semelhantes leis não ficarão apegados aos bens materiais. Por
isso mesmo, é justo e natural proclamar que, das constituições atualmente
em vigor, esta é a única capaz de combinar a educação e os jogos guerreiros
de que tratamos exaustivamente em nossa exposição.

Clínias — Muito bem.

IV — O Ateniense — Em continuação ao que ficou dito com referência às


competições de ginástica, não será oportuno lembrar que é preciso praticar
todas as que preparam para a guerra e instituir prêmios para os

vencedores, devendo ser postos de lado as que não tenderem para tal fim?
Quais sejam essas competições, o melhor será enumerá-las e oficializá-las
por lei. De início, não haverá vantagem em organizar os concursos
de carreira e de velocidade?

Clínias — Exato.

O Ateniense — Sem dúvida alguma, a agilidade é o que há de mais


vantajoso para a guerra, tanto a dos pés como a das mãos: a dos pés, para
fugir ou para alcançar alguém; a outra, nos combates corpo a corpo, em
que se exige força e resistência.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Mas, sem armas, nenhuma dessas formas será de grande


utilidade.

Clínias — Como o poderia?

O Ateniense — Assim, de acordo com a praxe atualmente em uso, quando o


arauto abrir o certame com chamada para a corrida de um estádio, o
corredor entrará armado. Para as competições sem armas não haverá
prêmios. Primeiro entrará quem tiver de correr um estádio com armadura
pesada; depois virá a denominada carreira dupla; em terceiro lugar, teremos
a corrida a cavalo; em quarto, o longo estádio, ou dólico; em quinto, o
corredor que lançaremos inteiramente armado, para vencer a distância de
sessenta estádios, no percurso de ida e volta até algum templo de Ares. Por
causa das armas pesadas lhe daremos o nome de hoplita, mas o faremos
percorrer um caminho mais plano, enquanto o outro concorrente, um
arqueiro armado de todo o seu equipamento, percorrerá cem estádios até
o templo de Apolo e de Ártemis, através de montanhas e de terrenos de toda
a espécie. Iniciada a competição, esperaremos a volta de todos, depois do
que entregaremos aos vencedores os respectivos prêmios.

Clínias — Certo.

O Ateniense — Para todas essas disputas instituiremos três classes: a dos


meninos, a dos moços imberbes e a de homens feitos. Para os adolescentes
fixaremos apenas dois terços do percurso; para os meninos, a metade, quer
corram como arqueiros, quer o façam como hoplitas. Para as mulheres,
enquanto impúberes,despidas durante a competição, o estádio, a carreira
dupla, o

estádio a cavalo e o dólico serão percorridos na própria pista; dos treze anos
até o casamento, tomarão parte nessas competições, nem antes dos dezoito
anos nem depois dos vinte. Todavia, deverão entrar na pista discretamente
vestidas, para tomar parte nos jogos.
Valha isso como regulamento das corridas, tanto para homens como para
mulheres. Quanto às provas de força, em vez de luta e outros exercícios
considerados brutos, instituiremos a luta armada de um contra um, de dois
contra dois e até mesmo de dez contra dez. Quanto aos golpes que é preciso
saber aplicar ou evitar e até que número para poder ser considerado
vencedor, sigamos o exemplo dos juízes das lutas, que determinaram por lei
o que nesses recontros deve ser considerado lícito ou condenável:
convocaremos os campeões de hoplamaquia, para que nos indiquem como
deve ser redigida a lei que nos permita conhecer o vencedor
nessa modalidade de competição, a maneira de comportar-se no ataque ou
na defesa, bem como as condições para alguém ser considerado vencido. O
mesmo regulamento é válido para as mulheres até à época do
casamento. Em vez do pancrácio instituiremos todos os exercícios dos
peltastas, com arco, escudos leves, dardos e pedras atirados com funda ou
com mão livre, e tudo regulamentado com leis específicas, a fim de que os
prêmios possam ser devidamente distribuídos entre os que melhor as
observarem.

A vez, agora, é de fixar as leis para os concursos hípicos. Mas em nossa


Creta nem há muitos cavalos nem seu uso é generalizado, do que decorre
necessariamente o menor zelo na criação de equinos e na instituição dos
concursos em que eles tomem parte. Não vemos, também, que entre nós
alguém crie parelhas para corrida de carros, sendo, pois, compreensível que
ninguém se mostre muito ambicioso nesse particular. Pretender, portanto
estabelecer leis para essa modalidade de competição, num país em que se
desconhece o seu uso, além de inconseqüência, seria revelar falta de senso.
Mas, se estabelecermos prêmios para corridas a cavalo, quer seja em potros
quer em animais adultos ou de idade intermédia entre ambos, teremos
adaptado esses jogos à natureza da região. Haverá, pois, de acordo com a
lei, competições entre tais corredores, com filiarcas e hiparcos incumbidos
de julgar tanto as corridas como os concorrentes que descerem armados
para a pista. Tal como nos exercícios de ginástica, seria falta grave em
nosso propósito de bem legislar admitir combates sem armas dessa
modalidade. Como arqueiro montado ou lançador de dardos, o cretense
presta algum serviço; convém, pois, favorecer a emulação nessa variedade
de divertimento. Não há necessidade de proibir que as mulheres participem
de tais exercícios. Mas, se se habilitarem com essa prática, suportando-a
bem sua natureza delas, enquanto forem jovens e solteiras, não será o caso
de excluí-las mas de consentir que participem da competição.

V — Assim, arrematamos satisfatoriamente o assunto das competições e do


ensino da ginástica, tanto na parte dos concursos como na do trabalho
cotidiano sob a direção dos professores. O mesmo resultado foi alcançado
com a maioria dos exercícios de música. Mas, com referência aos rapsodos
e tudo o mais que se lhe segue, as competições entre,os coros que deverão
necessariamente ser realizadas nos dias de festas, depois de havermos
atribuído aos deuses e seus associados os; meses, os dias e os anos que lhes
são peculiares, marcaremos os concursos com intervalos de três ou de
cinco anos, ou na ordem que as divindades sugerirem. É de prever, também,
que nessas datas serão propostos concursos de música, organizados pelos
instituidores dos prêmios, os instrutores dos jovens e os guardas das leis, os
quais se reunirão para tal fim e, assumindo o papel de legisladores,
determinarão a data, os participantes dos torneios e seus acompanhantes nas
competições de coros e danças. A respeito dos certames de dicção
livre, canto e harmonias resultantes da combinação de ritmo e dança, o
primeiro legislador já se manifestou àsaciedade; os que lhe sucederam nessa
função, precisarão marchar em suas pegadas e, depois de determinarem
os concursos de acordo com a maneira e a época mais convenientes para
cada sacrifício, encarregarão a cidade de realizar os festejos.

Nestes e noutros concursos do mesmo gênero não é difícil determinar a


ordem para deixá-los de acordo

com a lei, e alguma modificação que se introduza aqui ou ali não acarretará
prejuízo nem vantagem para a cidade. Mas há uma particularidade assaz
importante e difícil de conhecer, que requereria a interferência de alguma
divindade, se fosse possível fazer que essas determinações partissem dela.
Nas presentes circunstâncias, faz falta um homem decidido, que, primando
sobretudo pela franqueza, proclamasse o que lhe parecesse melhor para a
cidade e os particulares, restabelecesse nas almas corrompidas o que é
honesto e condizente com a constituição, soubesse opor-se às paixões mais
violentas, e que, dispensando qualquer auxiliar humano, só seguisse os
ditames da razão.
Glínias — De que tema, forasteiro, vamos tratar agora? Não
compreendemos o que queres dizer.

O Ateniense — É natural. Vou procurar ser mais claro. Quando expus meu
programa de educação, só encontrei rapazes e raparigas que conviviam na
melhor camaradagem, e fui tomado do receio muito compreensível sobre o
que se poderia fazer com uma cidade em que os adolescentes de ambos os
sexos são bem nutridos e, ademais, dispensados de trabalhos pesados e
servis, em tudo próprios para extinguir o fogo das paixões, sem outras
preocupações na vida, além de sacrifícios, festas e danças corais. A que
meios recorrer em nossa cidade para refrear os apetites que, por vezes,
levam tantas pessoas a cometer extremos e que a razão nos manda dominar,
atribuindo-se autoridade de lei? Não seria de admirar que nossas
determinações ajudassem a vencer a maioria desses apetites. A proibição de
enriquecer em excesso não é de pequena vantagem para alcançar-se uma
vida temperante, sendo toda a educação orientada legalmente nesse sentido,
sem contarmos que a vista penetrante dos magistrados, obrigada a
não desviar-se para nenhum lado e sempre atenta nos jovens também
contribui para moderar as paixões, dentro das possibilidades humanas. Mas,
quanto aos amores, com relação aos jovens de um outro sexo, os
homens mulheres e as mulheres homens, fonte de males infinidos para os
particulares e as cidades, com evitá-los e que remédio encontrar para a
todos livrar de semelhante perigo? Não é fácil, Clínias. Em muitos outros
casos,

toda a nossa Creta e a Lacedemônia nos prestam auxílio inestimável,


quando é preciso legislar contra os costumes estabelecidos; mas, em relação
ao amor — aqui para nós — estão em completa oposição à nossa maneira
de pensar. Se alguém, seguindo nesse ponto a natureza, restabelecesse a lei
anterior ao tempo de Laio e proclamasse não ser permitido, nas relações
amorosas, unir-se a homens ou a adolescentes, à guisa de mulheres, e
apontasse como exemplo a natureza animal, para mostrar que entre eles o
macho não procura o macho, por ser contra a natureza semelhante prática,
sua fala, apesar de bastante razoável, não ficaria em consonância com
vossas cidades. Além do mais, essa prática contraria frontalmente a regra
que em tudo isso, a nosso ver, deve seguir o legislador, pois o que sempre
procuramos saber em sua atividade é a lei que nos conduz para a virtude ou
a que produz efeito contrário. Agora dizei-me: se aceitássemos como bela e
nada vergonhosa vossa legislação nesse particular, em que lucraríamos para
alcançar a virtude? Infundirá coragem na alma do que se deixa seduzir, ou
temperança na do sedutor? É o que ninguém poderá nunca admitir, senão
precisamente o contrário, pois não há quem não censure a fraqueza do que
cede aos prazeres e não lhes oferece resistência, e não condene quem imita
as mulheres, com o seu modo efeminado, que todos acabam por adquirir. Se
assim é, quem se atreveria a apresentar alguma lei nesse sentido? Ninguém,
desde que abrigue na alma o conceito da verdadeira lei. Mas, como prova
que tudo isso é verdade? Antes de mais nada, será preciso conhecer a
natureza do desejo, da amizade e daquilo que se denomina amor, se
quisermos adquirir noções nesse domínio. Tratando-se de duas paixões
diferentes, e de mais uma, nascida da união das duas primeiras, o emprego
de um nome único só causará confusão e obscuridade.

Clínias — Como assim?

VI — O Ateniense — Damos o nome de amigo ao que se assemelha a outro


na virtude e é igual a ele, como também dizemos que o pobre é amigo do
rico, muito embora sejam de gêneros contrários; e quando esses sentimentos
se tornam violentos, chamamo-los de amor.

Clínias— Certo.

O Ateniense — Ora, a amizade que nasce dos contrários é violenta e


selvagem e raramente recíproca, ao passo que a formada entre semelhantes
é plácida e duradoira de parte a parte. A oriunda da mistura das duas, não é
fácil adivinhar o que quer o individuo dominado por essa terceira forma de
amor: sentindo-se empuxado ao mesmo tempo em direções opostas,
fica indeciso entre o sentimento que o incita a colher aquela flor da
mocidade e o que terminantemente lho proibe. O que só ama o corpo e tem
fome de sua beleza como de um fruto maduro, só deseja saciar-se nele,
sem dar a mínima atenção à índole da alma da pessoa amada. O outro, pelo
contrário, que coloca em plano inferior o desejo do corpo, e mais o
contempla do que o cobiça, e cuja alma está violentamente presa à alma
do outro, consideraria injurioso satisfazer nesse corpo sua paixão carnal.
Cheio de respeito e veneração da sabedoria, da coragem, da grandeza de
alma e da temperança, só almeja viver castamente ao lado de seu casto
amigo. O amor resultante da mistura dos outros dois é o que designamos em
terceiro lugar. Havendo, pois, três gêneros, deverá a lei excluir a todos e
impedir que vicem no nosso íntimo? Ou será, porventura, mais curial
admitir na cidade o amor baseado na virtude e que só aspira a deixar o
amado tão perfeito quanto possível, e banir se estivesse em nós fazê-lo —
as outras duas formas? Ou como diremos, caro Megilo?

Megilo — Tudo o que expuseste, forasteiro, acerca dessa questão, sob todos
os aspectos foi admirável.

O Ateniense — Parece, mesmo, caro amigo, que consegui tua aprovação.


Não me compete esquadrinhar o que pensa vossa lei nessa matéria; basta-
me tua adesão. Mais para diante, procurarei convencer Clínias nesse mesmo
sentido, com o encanto dos meus argumentos. Já chega o que me
concedeste. Voltemos, pois, a tratar das leis.

Megilo — Tens razão.

O Ateniense — Para fazer passar essa lei nas presentes


circunstâncias,conheço um artifício muito fácil, sob certos aspectos; mas,
sob outros, dificílimo de ser executado.

Megilo — A que te referes?

O Ateniense — Sabemos que até mesmo hoje a maior parte dos homens,
por mais rebeldes que sejam, se abstêm fiel e rigorosamente de todo
comércio criminoso com certas pessoas de belo físico, ó que não fazem
contrariados, mas por própria deliberação.

Megilo — Quando se dá isso?

O Ateniense — Quando alguém tem irmão ou irmã de grande formosura. Se


se trata de filho ou filha, a mesma lei não escrita tem força suficiente para
impedir que o pai se una a um deles, claramente ou a ocultas, ou lhes
dispense qualquer carícia do mesmo gênero. Sim, o desejo de tal comércio
fica fora das cogitações da maioria.

Megilo — Tens razão.


O Ateniense — Uma simples palavra não bastará para apagar o fogo dos
desejos dessa natureza?

Megilo — A que palavra te referes?

O Ateniense — A que declara serem tais práticas totalmente abominadas


dos deuses e a mais ignominiosa das torpezas. E a razão disso não consistirá
no. fato de ninguém falar de outra maneira e de ouvir cada um de nós, desde
que nasce, isso mesmo a cada instante e em todos os lugares, seja nos
discursos facetos, seja com toda a seriedade da tragédia, que volta sempre
a esse mesmo tema, quando introduz em cena os Tiestes ou alguns Édipos
ou os Macareus, que mantiveram relações clandestinas com as respectivas
irmãs, mas que, uma vez descobertos, não vacilaram em matar-se
por impulso próprio, como castigo de suas abjeções?

Megilo — Tens razão em afirmar que a opinião pública é dotada de uma


força incontestável, pois chega a ponto de impedir que alguém abra a boca
contra o espírito da lei.

VII — O Ateniense — Sendo assim, tínhamos razão de dizer que se o


legislador deseja dominar alguma das paixões que escravizam o homem,
ser-lhe-á fácil encontrar o meio de conseguir seu intento: considerar
sagrada, perante todos, essa voz pública: escravos, homens livres, crianças,
mulheres: a cidade inteirinha, em suma. Com isso, assegurará para sua lei a
estabilidade ideal.

Megilo — Perfeitamente; mas, como conseguir que

todos se decidam espontaneamente a expressar-se do mesmo modo?

O Ateniense — O reparo é pertinente. Foi isso, precisamente, que eu disse


há pouco, quando falei num artifício para impor a lei que obrigue os
cidadãos a seguir a natureza na união destinada à procriação, a absterem-se
dos homens; a não matar, deliberadamente a raça humana, a não lançar
entre as rochas e as pedras a semente que não poderá criar raízes e
desenvolver-se de acordo com sua própria natureza; e também não semear
no campo feminino em local onde a semente se recuse a crescer. Se uma lei
nesse sentido se impusesse e ganhasse força, como se deu com o que diz
respeito às relações entre pais e filhos, e alcançasse, como de direito, igual
vitória nas demais relações amorosas, seria fonte de benefícios
incalculáveis. Para começar, está de acordo com a natureza; depois,
concorre para que os homens se livrem da raiva erótica e da loucura; de
tantos adultérios, comezainas e excessos de bebidas; deixa-os mais amigos
e dignos da confiança das mulheres. Não teriam conta os bens daí
decorrentes, para quem soubesse dominar-se e obedecer-lhe em tudo. Mas,
talvez surja algum moço de gênio arrebatado, com alta capacidade
fecundante e que, tendo ouvido falar nessa lei nos increpe de promulgar
decretos absurdos e impossíveis de serem observados, atordoando todo o
mundo com seus clamores. Com isso em vista, foi que declarei dispor de
um recurso muito fácil, sob certos aspectos, mas, sob outros, bem difícil,
para conservar em vigor semelhante lei, depois de adotada. É fácil
compreender tudo isso e também como conseguir tal desiderato. O que
afirmo é que, uma vez emprestado à lei certo caráter sagrado, ela dominará
todos os corações e, enchendo-os de temor, os deixará submissos a suas
diretrizes. Porém atualmente as coisas chegaram a tal ponto, que a idéia se
me afigura inexequível, tal como se dá com a prática das refeições em
comum, que ninguém acredita possa ser mantida em parte alguma a vida
inteira, conquanto os fatos desmintam essa maneira de pensar. Entre vós,
pelo menos, esse uso ainda perdura, muito embora até mesmo nessas duas
cidades as sissítias pareçam contrariar a natureza feminina. Foi pensando na
força da incredulidade, que eu declarei há pouco ser muito difícil
institucionalizar as duas práticas.

Megilo — Tens razão em falar esse modo.

O Ateniense — Quereis que vos demonstre, por um argumento não de todo


carecente de persuasão, que o plano é realizável?

Megilo — Como não?

O Ateniense — Quem se absteria mais facilmente dos prazeres do amor e se


disporia a acatar dentro de limites razoáveis o regulamento adotado a esse
respeito: quem é são de corpo e nunca descurou dos exercícios, ou quem for
mal constituído?
Clínias — Com muito mais facilidade, quem sempre deu atenção aos
exercícios.

O Ateniense — Não sabemos por ouvir dizer o de que era capaz Icos de
Tarento, nos concursos olímpicos e noutras competições? A arte e o desejo
da vitória, aliados à temperança, tamanha energia lhe conferiram à alma,
que é voz corrente que nas épocas dos exercícios não mantinha relações
com mulheres nem com adolescentes. O mesmo se conta de Crisão de
Ástilo, Diopompo e muitos outros. No entanto, Clínias, todos eles tinham a
alma muito menos cultivada do que os meus e os teus concidadãos, e o
corpo regorgitante de seiva.

Clínias — Só disseste a verdade; em numerosas referências, os antigos nos


atestam que os atletas se comportavam dessa maneira.

O Ateniense — E então? Toda essa gente, para vencerem no pugilato, nas


corridas e em outras competições do mesmo estilo, conseguiam abster-se do
que a maioria dos homens considera o supra-sumo da felicidade, e nossos
filhos não chegarão a dominar-se para alcançar uma vitória muito mais
elevada, que desde a infância lhes declararemos ser a mais bela, deleitando-
lhes os ouvidos com nossas lendas, cantos e discursos?

Clínias — Que vitória?

O Ateniense — A que alcançamos sobre os prazeres, cuja obtenção


assegura vida felicíssima, ou o contrário, justamente, em caso de derrota.
Ademais, o me-do de praticar um ato que, de algum modo, pode ser
considerado ilícito, não lhes emprestará força bastante para alcançar a
vitória sobre as paixões que muitos outros, inferiores a eles, obtiveram?

Clínias — É de supro que sim.

VIII — O Ateniense — Urna vez que chegamos tão longe no estudo dessa
lei, e a perversidade da maioria nos criou tantas dificuldades, direi que
precisamos prosseguir com o mesmo afã, e que nossos concidadãos não
podem ser piores do que os pássaros e tantos outros animais, os quais,
criados em bandos, vivem na maior continência até à idade de reproduzir,
quando, então, se acasalam por inclinação natural, o macho com a fêmea e
vice-versa, vivendo o resto do tempo santa e justamente, fiéis, sempre, às
suas primeiras ligações afetuosas. Nossos concidadãos precisam ser
melhores do que os animais. Todavia, se se deixarem corromper por outros
helenos e a maioria dos bárbaros, vendo-os e ouvindo-os falar do grande
domínio que sobre todos eles exerce a Afrodite denominada anárquica, o
que os deixa incapazes de vencê-la: então, será preciso que os guardas das
leis, assumindo o papel de legisladores, promulguem uma segunda lei para
contê-los.

Clínias — Que lei aconselharias impor-lhes, se todos eles eludem a que


enunciaste agora mesmo?

O Ateniense — Evidentemente, Clínias, uma lei que se liga àquela como


sua conseqüência natural.

Clínias — A qual te referes?

O Ateniense — Enfraquecer quanto possível, por falta de exercício, a


energia dos prazeres voluptuosos, e desviar com o trabalho, para outra parte
do corpo, sua seiva nutritiva, o que se conseguirá se se anular neles
o impudor na prática dos prazeres do amor. Quando chega a espaçar-se, por
influência do pudor, a própria raridade da função cerceia a tirania da
volúpia. Seja, pois, aceito o princípio de que a realização desses atos
longe da vista de terceiros é obrigação criada pelo costume e pela lei não
escrita, e que é vergonhoso praticá-los às claras, sem que se chegue ao
ponto de proibi-los. Assim, ficaria determinado por lei o que se
denominaria mora-

Iidade ou imoralidade de segunda ordem, pois, de fato, ocupa o segundo


lugar, e essa classe única, composta de naturezas corrompidas, que
declaramos serem inferiores a si mesmas, seria envolvida por três outras e
por estas forçada a cumprir a lei.

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — De um lado, a dos respeitadores dos deuses e da honra;


depois, a dos que não apetecem o corpo, mas as qualidades verdadeiramente
belas da alma. Estas nossas aspirações são como votos formulados na
poesia, e seriam o que há de melhor para as cidades, se algum dia
chegassem a concretizar-se. Mas talvez, com a ajuda de Deus, poderíamos
defrontar-nos, no terreno do amor, com a seguinte alternativa: ou
não atrever-se ninguém a tocar em nenhuma pessoa de condição livre e
nobre, a não ser sua mulher legítima, nem semear nas concubinas a semente
sem consagração religiosa e só capaz de gerar filhos ilegítimos e
bastardos, nem em indivíduos do sexo masculino e contra a natureza uma
semente estéril; ou, então, proibir de uma vez relações desse tipo com o
sexo masculino. Quanto às mulheres, se alguém mantiver relações com
outras, além das que ingressarem em sua casa com as divindades e as
cerimônias religiosas, ou adquirida por compra ou de maneira diferente,
sem ocultar do público essas relações, homens e mulheres, talvez
procedamos com acerto em nosso papel de legisladores se o
despojarmos das honras conferidas pela cidade e passarmos a considerá-lo
como estrangeiro. Aí está a lei — ou seja considerada simples ou dupla —
por nós proposta para regular os prazeres do amor e as relações amorosas,
lícitas ou ilícitas, e próprias dos homens que vivem em sociedade.

Megilo — De minha parte, forasteiro, aceitaria de muito bom grado essa


lei; agora, cabe a Clínias expor-nos sua maneira de pensar.

Clínias — Assim farei, Megilo, na ocasião oportuna; por enquanto,


deixemos o forasteiro continuar com a exposição de suas leis.

Megilo — Isso mesmo.

IX — O Ateniense — Com o caminho já vencido,

chegamos ao ponto de poder instituir as sissítias. Conforme dissemos, seria


difícil admiti-las noutro lugar; mas em Creta ninguém pensa que poderia ser
de maneira diferente. No que respeita ao modelo a ser seguido, ou o daqui
ou o dos lacedemônios, ou se além desses houver uma terceira modalidade
de refeições em comum, superior às outras duas, não me parece difícil
decidir. Mas, ainda que viesse a ser encontrada, não ofereceria maiores
vantagens, pois presentemente essas refeições são realizadas a contento.

A seguir, vem a questão da organização da vida e de onde tirar os meios de


subsistência. Noutras cidades são estes obtidos de muitos modos e das mais
variadas fontes, que valem pelo menos o dobro das que nos abastecem, pois
é no mar e na terra que a maioria das cidades helênicas se proveem do
necessário, enquanto nós só nos valemos da terra. Essa particularidade
facilita sobremodo a tarefa do legislador, pois não somente este só precisará
de metade das leis exigidas noutras partes, ou menos ainda, e mais
apropriadas a homens livres. De fato, o legislador de nossa cidade ficará
aliviado da maioria das leis que tratam do comércio marítimo, de
negociantes por atacado e a varejo, de hospedarias, entrepostos, minas,
empréstimos, juros de juros e mil coisas mais do mesmo gênero; para
lavradores, pastores e agricultores é que ele legislará, assim como para os
fabricantes dos instrumentos de trabalho, como antes já se havia
desincumbido de legislar acerca de assuntos mais importantes, casamento,
procriação e educação dos filhos e o estabelecimento dos magistrados
em suas circunscrições. Por enquanto, terá de ocupar-se com os problemas
da subsistência e com as pessoas que se afanam nesse sentido.

As primeiras leis a serem promulgadas serão as denominadas agrícolas. A


primeira, consagrada a Zeus término, terá a seguinte redação: Ninguém
deve mudar os limites das terras convizinhas, ou se trate do lote de algum
compatriota, seu vizinho, ou de estrangeiro com propriedade na fronteira.
Convençam-se todos de que isso equivaleria a remover o que é imóvel; é
mais curial pensar em deslocar o maior rochedo do que tocar nessa

pequenina pedra que serve de limite entre a amizade e o ódio e foi


consagrada aos deuses com juramento solene. Naquele caso, esteve como
testemunha Zeus protetor dos membros da mesma tribo; no outro, Zeus
protetor dos estrangeiros, sendo que sua cólera suscita guerras implacáveis.
Quem obedece às leis não sentirá as consequências de sua violação; mas o
que a despreza é passível de pena dupla: a primeira e mais importante, da
parte dos deuses; a segunda, aplicada pelas leis. Ninguém, pois, remova
conscientemente os marcos divisórios entre suas terras e as do vizinho; se o
fizer, qualquer pessoa poderá denunciá-lo aos lavradores e estes o levarão
ao tribunal. Vindo a ser condenado por haver tentado, a ocultas ou
abertamente, modificar a distribuição das terras, decidirá o tribunal acerca
do castigo a lhe ser imposto ou da multa a pagar.
Depois, vêm os atos lesivos entre vizinhos, pequenos todos eles, mas de
número infinito, e que, por sua própria freqüência, geram inimizade e
tornam extremamente difícil e penosa a vizinhança. Por isso, todos devem
esforçar-se para causar o menor incômodo possível a seus vizinhos,
principalmente no que entende com a violação da linha divisória. A
qualquer pessoa é muito fácil prejudicar alguém; o que nem todos sabem é
ser útil. Quem violar, pois, os lindes da propriedade vizinha, arque com a
indenização a pagar; e para curá-lo de sua impudência e de sua baixeza,
pagará a mais, à pessoa lesada, o dobro do prejuízo. Para todos os
delitos dessa natureza, toca aos lavradores o papel de instrutores, juízes e
avaliadores da pena. Conforme ficou esclarecido, as faltas mais graves
serão julgadas por toda a ordem dos doze guardas; as menos importantes,
apenas pelos frurarcas.

Se alguém soltar o seu gado no terreno do vizinho, àqueles juízes é que


compete verificar o dano, decidir como for preciso e impor a pena indicada
para o caso. Quem se apropriar de enxame de abelhas do vizinho, atraindo-
as com batidas de objetos de metal, pagará o prejuízo daí decorrente. Se ao
queimar suas matas não tomar precauções para proteger as do vizinho,
ficará sujeito à pena imposta pelo magistrado, o mesmo acontecendo se, ao
fazer suas plantações, não deixar o

espaço convencionado entre elas e o campo limítrofe, conforme já tem sido


suficientemente tratado por muitos legisladores, cujas determinações devem
ser acatadas, não sendo razoável exigir que o supremo legislador da cidade
se manifeste a respeito de questiúnculas ao alcance de qualquer legislador
ocasional.

Com relação às águas, também, há belas e antigas leis para uso dos
agricultores, que não precisarão ser canalizadas na direção do nosso
discurso; quem quiser irrigar seu campo, vá buscá-las a partir das fontes
públicas, podendo dirigi-las por onde quiser, sem interceptar as fontes
descobertas de nenhum particular, respeitando, sempre, as casas, certos
lugares sagrados e os túmulos, e sem causar prejuízo a ninguém com
desviá-las mais do que o necessário. Em caso de escassez em alguns
lugares, por motivo da constituição do solo que absorve as chuvas de Zeus,
e os priva, assim, da água estrictamente necessária, perfure seu terreno até
bater na camada de argila, e se nesta profundidade não encontrar água, vá
prover-se no vizinho da quantidade suficiente para o uso de seus familiares.
Porém, se a água de beber do vizinho também for escassa, providencie
uma ordem da parte dos agrônomos, para que cada dia vá buscar nos
vizinhos a porção de líquido de que tem necessidade. Se as águas das
chuvas de Zeus prejudicam o lavrador dos terrenos situados em nível
superior, ou o morador da casa contígua à sua, porém mais baixa,
por defeito do escoamento necessário, ou o inverso: se o de cima prejudica
o de baixo, por deixar correr suas águas indiscriminadamente, sem
manifestar desejo de chegar a um acordo, quem quiser poderá recorrer ao
astínomo, se estiver na cidade, ou ao agrônomo, o qual regulará a pendência
entre os litigantes. O que não obedecer à determinação da autoridade, será
considerado vizinho invejoso e de mau caráter, e condenado a pagar o duplo
do prejuízo sofrido pela outra parte, por não haver acatado a ordem
superior.

X — O uso comum dos frutos do outono deve ser regulamentado do


seguinte modo: é a própria deusa que nos mimoseia com dupla dádiva: uma
é para distração de Dioniso e não precisa ser armazenada; a outra, por
natureza ficará de conserva. Para os produtos do outono, estabeleçamos a
seguinte lei: quem provar dos frutos agrestes, uvas ou figos, do seu próprio
terreno ou do vizinho, antes do tempo da colheita, coincidente sempre com
o aparecimento de Arcturo, pagará cinqüenta dracmas, que serão
consagradas a Dioniso, se os colheu em sua propriedade; uma mina, se o fez
na do vizinho, e dois terços de mina, em qualquer outro terreno. Quem
desejar colher uvas da espécie hoje conhecida como nobre ou generosa, ou
figos generosos, desde que o faça em sua propriedade, poderá apanhá-
los como e quantos quiser; mas, se o fizer no terreno alheio sem
consentimento do dono, não escapará do castigo da lei que proíbe tirar o
que não se depositou. Se é um escravo que toca nos frutos sem
consentimento do dono, receberá tantas chicotadas quantos figos ou bagos
de uma houver tirado. Se assim o desejar, o meteco poderá adquirir, por
compra, frutos generosos; um estrangeiro, de passagem pela estrada, se
apetecer alguma fruta, poderá colher dos generosos quantos quiser, ele e um
de seus acompanhantes, sem pagar nada, a título de presente de
hospitalidade; mas, a lei proíbe aos estrangeiros tocar nos frutos
denominados campestres e outros do mesmo gênero; e no caso de algum
estrangeiro ou seu escravo violar por ignorância tal dispositivo, o escravo
receberá chibatadas e o patrão sairá livre, depois de devidamente
admoestado e advertido de que só poderá tocar nos frutos que não se
prestam para ser guardados sob a forma de passa, vinho ou figo
seco. Quanto a peras, maçãs, romãs e outras frutas do mesmo gênero, não é
vergonha tirar a ocultas; mas, se o infrator tiver menos de trinta anos,
receberá algumas lambadas e será expulso do local, porém sem ferimentos
graves, não podendo nenhum homem livre apresentar queixa por motivo do
tratamento recebido. Ao estrangeiro é facultado provar tanto desses frutos
como das passas. Se se tratar de pessoa de mais de trinta anos, que se limite
a comer no local, sem nada carregar dali, tem liberdade de provar de todos,
tal como os estrangeiros; mas, se não observar a lei, correrá o risco de ser
excluído do prêmio da virtude, na hipótese de alguém comunicar aos juízes
dos concursos alguma falta desse gênero.

XI — De todos os elementos, a água o de maiores propriedades fertilizantes


para os jardins; porém fácil de corromper-se. Nem a terra nem o sol e os
ventos, que, com a irrigação, contribuem para alimentar as plantas, estão
sujeitos a ser poluídos ou desviados ou roubados, ao passo que a natureza
da água ar expõe a tais inconvenientes. Se alguém, de caso pensado,
prejudicar a água de outra pessoa, ou seja de fonte ou apanhada da chuva,
por meio de drogas, ou cavando fossas, ou furtando-a, o prejudicado o
acusará diante dos astínomos, apresentando por escrito o cálculo do
prejuízo sofrido. Feita a prova de que o infrator lançou mão de drogas para
estragar a água, além de multa, será condenado a limpar a fonte ou cisterna,
com a observação das particularidades constantes das instruções
dos intérpretes das leis, variáveis conforme as pessoas e as circunstâncias.

Para o transporte da colheita, cada um pode usar o caminho que entender,


contanto que não prejudique ninguém nem ganhe três vezes mais do que o
dano causado ao vizinho. Tudo isso é da competência dos magistrados,
como também os danos causados a terceiros ou a seus bens, por violência
ou astúcia, com o tansporte da colheita, do que o prejudicado dará
conhecimento às autoridades, que imporão a respectiva pena nos casos em
que o prejuízo não foi além de três minas. Tratando-se de prejuízo maior, a
queixa deverá ser apresentada a um tribunal público, que punirá o faltoso.
Se parecer que algum magistrado não foi justo na estipulação da pena, a
parte lesada poderá citá-lo em justiça e exigir o dobro, como poderá,
também, apelar para os tribunais públicos qualquer cidadão prejudicado
pelos juízes. São incontáveis os pequenos dispositivos legais sobre o
andamento do processo, intimações e convocação de testemunhas, sejam
estas apenas duas ou quantas forem necessárias, e muitas outras
particularidades do mesmo gênero, que não podem ser especificadas nem
merecem a atenção de um legislador experiente. Compete aos moços
legislar nesse particular, imitando nisso os modelos antigos, leis pequenas
de acordo com as grandes, segundo a experiência que terá necessariamente
adquirido, até que tudo lhes pareça bem regulamentado. Chegados a esse
ponto, eles as declararão intangíveis, e assim, sob a forma definitiva,
as aplicarão enquanto viverem.

XII — Quanto aos demais artesãos, proceda-se da seguinte maneira:


inicialmente, nenhum nativo ou escravo de nativo se entregará a trabalhos
mecânicos; uma arte, apenas, é suficiente para o cidadão: assegurar e
manter a ordem na cidade, o que exige muita prática e muito estudo, não
devendo ser relegada para o rol das atividades secundárias. Não há natureza
humana capaz de exercer com perfeição, ao mesmo tempo, duas artes ou
duas profissões, ou sequer desincumbir-se bem de uma e dirigir alguém no
exercício da outra. É o princípio que desde o início deverá prevalecer em
nossa cidade: o ferreiro não fará o serviço do carpinteiro, nem o carpinteiro
dedicará maior atenção aos que trabalham como ferreiro do que aos seus
próprios auxiliares, sob o pretexto de que, tendo de administrar o trabalho
de muitos escravos, é natural que dedique mais tempo a inspeccioná-los,
por ganhar mais com o trabalho deles do que com sua profissão. Ao
contrário: em nossa cidade cada um só deverá ter um único ofício, para com
ele assegurar a própria subsistência. Os astínomos deverão zelar pelo
cumprimento dessa lei, e se algum nativo se inclinar mais para determinada
profissão do que para a prática da virtude, deverá castigá-lo com a perda
das regalias civis até reingressar no caminho certo. Se algum estrangeiro
exercer duas profissões, será punido com prisão, pagamento de multa e
expulsão da cidade, o que o obrigará a ser um homem apenas, não
muitos. Quanto ao pagamento dos salários, de acordo com as respectivas
tarefas, se houver prejuízo, ou mesmo no caso de fraude com relação a
outra pessoa, os astínomos decidirão até à importância de cinqüenta
dracmas; acima desse limite, os tribunais públicos procederão de acordo
com a lei.

Ninguém pagará direitos alfandegários de mercadorias importadas ou


exportadas. Pára incenso e demais perfumes que se oferecem às divindades,
púrpura e todos os corantes não produzidos na região, os pro-dutos
estrangeiros exigidos por esta ou aquela arte, a ninguém é lícito importar,
sob nenhum pretexto. Outrossim, ninguém poderá exportar os artigos que
devem ficar no país. A respeito de tudo isso cuidarão e decidirão os doze
guardas das leis, ficando, porém, dispensados desse trabalho os cinco mais
velhos.

Quanto às armas e demais instrumentos relacionados com a guerra, se


houver necessidade de importar alguma arte estrangeira, plantas, objetos de
metal, cordame de várias natureza ou animais indispensáveis para esses
trabalhos, os hiparcos e os estrategos terão plenos poderes para decidir
sobre a conveniência da importação ou exportação do que for preciso,
dando e recebendo em nome da cidade; caberá aos guardas promulgar leis
suficientes e adequadas à situação. Nenhum comércio a varejo com fins de
lucro, neste ou em qualquer outro ramo será permitido na cidade e em todo
o seu território.

XIII — Quanto à alimentação e a distribuição dos produtos da terra, parece


que o método mais conveniente seria o que nesse particular nos
aproximasse da lei cretense. Todos precisarão dividir em doze partes
os produtos da terra e consumi-los de igual modo. Cada porção de trigo, por
exemplo, ou de cevada, às quais, para efeito da divisão, serão acrescentados
os demais frutos das estações e todos os animais vendáveis existentes nas
respectivas secções, será dividida em três lotes: um para os homens livres,
outro para os escravos, ficando o terceiro para os artesãos e estrangeiros em
geral, e para os metecos aqui residentes, que necessitem dos indispensáveis
meios de subsistência, bem como os visitantes ocasionais que nos procurem
por motivo de negócios com a cidade ou mesmo com particulares.
O terceiro lote, e apenas esse, será obrigatoriamente posto à venda, sem que
a mesma coisa seja preciso fazer com os outros dois. E qual será a maneira
mais aconselhável de proceder a essa divisão? De início, é evidente que,
sob certos aspectos, terá de ser igual e, sob outros, desigual.
Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Parece inevitável que dos produtos

gerados e alimentados pela terra, alguns sejam melhores e outros, piores.

Clínias — Como não?

O Ateniense — Com tal critério, nenhuma das partes — três ao todo —


deverá avantajar-se sobre as demais, nem a dos senhores nem a dos
escravos nem a dos estrangeiros;a todas a distribuição deverá assegurar
o mesmo grau de semelhança. Recebendo cada cidadão duas terças partes,
dependerá apenas deles determinar a qualidade e a quantidade que quiserem
dar aos escravos e aos homens livres. O restante será repartido na medida e
proporção do número dos animais que se alimentam dos produtos da terra, e
de acordo com esse cômputo será feita a competente distribuição.

Depois disso, teremos de arranjar habitações separadas para os cidadãos. A


ordem mais conveniente será a seguinte: é preciso que haja doze aldeias,
cada uma no centro do respectivo distrito. Em cada aldeia será, de início,
marcado o lugar da ágora e dos templos para os deuses e os demônios que
compõem o séquito dos deuses, ou sejam divindades locais dos magnetas e
monumentos de antigos heróis, cuja memória foi conservada e aos quais
serão prestadas as mesmas honrarias que lhes prestavam os homens de
antanho, ou templos de Héstia, de Zeus, de Atena e da divindade que
preside a cada divisão do território. Por toda a parte serão construídos esses
templos. As primeiras residências ficarão dispostas ao redor de tais templos,
na porção mais elevada do terreno, para abrigo da guarnição e tão
seguras quanto possível. No resto do território serão distribuídos os artesãos
em treze corpos, um dos quais ficará na cidade, o qual, por sua vez, será
repartido por seus doze distritos, ficando as porções externas dispostas
em círculo. Em cada aldeia serão alojados artesãos cujo trabalho seja de
utilidade para os lavradores. Os chefes dos agrônomos cuidarão dessa parte,
determinando o número e a qualidade de obreiros para cada lugar e o local
certo de sua moradia, para que incomodem o menos possível os lavradores
e lhes sejam da maior utilidade. Nas cidades, o corpo de astínomos se
incumbirá de receber e de fixar esses mesmos obreiros.
XIV — Aos agoránomos compete cuidar de tudo o que diz respeito ao
mercado. Além da vigilância dos templos aí localizados, para evitar abusos,
ficarão também incumbidos de inspecionar o comércio dos gêneros de
primeira necessidade, de imporá ordem e impedir violências, castigando os
que cometerem alguma infração. Quando á mercadoria exposta, antes de
mais nada terão de ver se na parte dos gêneros destinados para os
estrangeiros, tudo está de acordo com a lei. A lei determina que no primeiro
dia de cada mês os estrangeiros ou os escravos encarregados de seus
negócios levem ao mercado a dozena parte do trigo destinado
ao estrangeiros, devendo estes comprar desde logo a porção necessária para
o mês inteiro e tudo o que acompanha o trigo. Na décimo dia, uns venderão
e outros comprarão os líquidos suficientes para o consumo do mês;
no vigésimo terceiro dia, efetuar-se-á a venda dos animais de que uns tantos
disponham para negociar e outros precisem adquirir, assim como a venda
dos móveis ou utensílios que os lavradores trouxerem para esse fim: pelos,
roupas, tecidos, feltro e outros artigos do mesmo gênero que os estrangeiros
só possam obter por compra. Mas ninguém poderá comprar de nenhum
retalhista nem vender no retalho esses mesmos artigos e qualquer morador
da cidade ou a seus escravos, nem cevada ou trigo reduzido a farinha e os
demais gêneros alimentícios; porém no mercado particular dos estrangeiros
estes poderão vender para os artesãos e seus escravos vinho e trigo,
realizando com essa operação o que geralmente se denomina comércio a
varejo. Depois de retalhados os animais, os açougueiros venderão carne aos
estrangeiros, aos artesões e seus empregados. Todos os dias qualquer
estrangeiro poderá comprar lenha por atacado dos que se encarregam desse
comércio, para queimar, podendo vendê-la depois a outros estrangeiros em
qualquer ocasião e a quantidade que entender.

As outras mercadorias e os utensílios de que os particulares necessitem,


serão expostos no mercado comum, cada artigo no seu lugar próprio,
conforme a indicação dos guardas das leis, de comum acordo com
os agoránomos e os astínomos, onde será trocada merca-doria por dinheiro
e dinheiro por mercadoria, não sendo permitido realizar outra modalidade
de troca. Quem vender a crédito e em confiança, receba ou não o
pagamento da divida, terá de conformar-se, pois não cabe ação judiciária
em transações desse tipo. Se a venda ou a compra for feita por preço
superior ou inferior ao estipulado por lei, a qual determinou os limites
máximo e mínimo, fora dos quais é proibido comprar ou vender, o excesso
será anotado perante os guardas das leis, apagando-se, com isso, a
diferença.

Da mesma forma se procederá com o registro dos bens dos metecos. Quem
quiser, poderá estabelecer-se entre nós, sob determinadas condições, por ser
facultado a todo estrangeiro aqui fixar-se, desde que tenha profissão
definida e não se demore mais de vinte anos, a contar de sua inscrição, sem
pagar taxa de residência, se não for a promessa de bem comportar-se, nem
imposto algum de compra e venda. Esgotado esse prazo, reunirá seus
haveres e deixará a cidade. Todavia, se nesse período se tiver tornado credor
da cidade por algum serviço memorável, e contar com autorização do
conselho e da assembléia para adiar sua saída, ou mesmo para ficar
indefinidamente, apresente-se e, no caso de convencer a cidade, ser-lhe-á
concedida a permanência. Para os filhos desse estrangeiro, uma vez que
tenham profissão definida e atinjam a idade de quinze anos, o prazo de
residência será contado a partir dos quinze anos, e depois de vinte anos de
permanência entre nós, irão para onde bem entenderem. Se o preferirem,
poderão ficar, depois de alcançada a competente permissão, nas condições
indicadas. O que se retirar, terá primeiro de apagar a inscrição de seu nome
nos registros dos magistrados.
LEIS
Livro IX

I — Agora, na ordem natural da distribuição das leis, teremos de tratar das


questões judiciárias suscitadas pelas atividades com que nos ocupamos
antes. Já foram objeto de nossas considerações os atos capazes de provocar
esses litígios, quando falamos da agricultura e de tudo o que se lhe
relaciona; porém não tocamos no tema mais importante nem descemos a
particularidades, para estudar a pena cabível em cada caso concreto e
apontar os juizes a quem incumbe decidi-los, conforme passaremos a expor.

Clínias — Muito bem.

O Ateniense — De certo modo, é vergonhoso legislar a respeito das


questões com que vamos ocupar-nos, numa cidade que, segundo afirmamos,
será bem organizada e oferecerá todas as condições para a prática
da virtude. Realmente, admitir que numa comunidade assim constituída
possa nascer alguém tão pervertido como os maiores criminosos das outras
cidades, a ponto de ser preciso que o legislador se antecipe com
ameaças para os que venham a cometer tais infrações ou promulgue leis
para conjurar essas faltas ou puni-las depois de cometidas, conforme disse,
é uma suposição, sob certo aspecto, deprimente. Mas, como não vivemos
como os antigos, que faziam leis para filhos de deuses, ou sejam, os heróis,
conforme se diz hoje, e que sendo também descendentes de deuses
elaboravam leis para filhos de deuses como eles, mas somos homens que
redigem leis para filhos de homens, ninguém pode censurar-nos por
temermos que entre nossos concidadãos nasça alguém com coração de
chifre, naturalmente duros, a ponto de não ser possível amolecê-los, como

acontece com certas sementes que resistem ao fogo, pois não há leis
bastante fortes para fundi-los.

Pensando nesses, e algum tanto contrafeito, é que proponho, logo de início,


uma lei a respeito da pilhagem dos templos, caso haja quem se atreva a
praticar semelhante crime. Dentre nossos cidadãos, educados como é
preciso que o sejam, não esperamos nem tememos que algum venha a sofrer
de semelhante doença; mas seus agregados, os estrangeiros e os escravos
desses estrangeiros poderão, muitas vezes, cometer tais atentados. Por causa
deles, mas, principalmente por considerar a fraqueza ingênita da natureza
humana, apresentarei a lei relativa a tal sacrilégio e outros crimes do mesmo
gênero, difíceis, senão impossíveis, de curar. Mas, de acordo com o que já
ficou assentado, façamos preceder essas leis de um proêmio tão sucinto
quanto possível. É como se conversássemos com quem se visse atacado,
durante o dia, do mau desejo de violar algum templo e não conseguisse
dormir a noite toda, e o advertíssemos da seguinte maneira: Estranho
amigo, não é humano nem de origem divina o mal que te leva neste
momento a cometer um sacrilégio, mas uma espécie de aguilhão que se te
cravou no íntimo e oriundo de antigas faltas não expiadas por seus autores,
impulso criminoso que um carrega por onde vá e é preciso combater de
todas as maneiras. Aprende como possas reagir. Sempre que fores assaltado
por pensamentos dessa natureza, recorre aos ritos purificadores; pede aos
deuses, nos templos, que afastem de ti a maldição; procura a companhia dos
homens a que dais o qualificativo de virtuosos, escuta-os e esforça-te
também por dizer que todo homem tem o dever de acatar o belo e o
justo, porém foge do convívio dos maus, sem olhar um só momento para
trás. Se assim fizeres, conseguirás algum alívio para teu mal; caso contrário,
considera que a morte, no teu caso, é preferível, e aparta-te da vida,

II — Quando cantarmos tal prelúdio aos que se comprazem na cogitação de


todos esses atos ímpios, tão nocivos para as cidades, a lei ficará muda para
os que obedecerem; mas para os outros, depois do proêmio a lei proclamará
em altas vozes: Sempre que for apanhado alguém no ato de violar algum
templo, quer se trate de escravo, quer de estrangeiro, depois de ser-lhe
gravada no peito e nas mãos a marca de seu crime e de receber ele as
chibatadas impostas pela autoridade, será jogado nu para além das
fronteiras do país. Com tal castigo talvez recupere o juízo e consiga
melhorar. Em nenhum caso, a lei pune visando a prejudicar ninguém, mas
produz sempre um dos seguintes efeitos: ou melhora quem sofre o castigo
ou o transforma num cidadão menos prejudicial. Se for apanhado na prática
de tal crime, ou cometer contra os deuses, os pais ou a cidade alguma
dessas faltas inconcebíveis, o juiz deverá declará-lo incurável, considerando
que, a despeito da instrução e da educação recebidas desde a infância,
cometeu as maiores iniquidades. Sua punição será a morte, o menor dos
males. Quanto aos outros, lucrarão com o seu exemplo, quando forem
ignominiosamente expulsos do país e sumirem para além das fronteiras. Os
filhos e demais membros da família, se não imitarem o exemplo dos pais,
serão honrados e sempre mencionados com elogios, por terem tido a
coragem necessária de fugir do mal e ingressar decididamente no caminho
da virtude. A confiscação dos haveres de criminosos dessa natureza não diz
bem com uma cidade como a nossa, em que todos os componentes devem
ter patrimônio igual e sempre o mesmo. Quem cometer falta punível com
multa em dinheiro e além de seu lote possuir algum bem, pagará a multa
apenas com esse excedente, sem nunca ultrapassá-lo. Os guardas das
leis, após o exame consciencioso do registro, denunciarão aos juízes os bens
exatos do infrator, a fim de que nenhum patrimônio fique improdutivo por
falta de recursos. Se for o caso de precisar alguém pagar multa superior a
suas posses, não aparecendo nenhum amigo que responda por ele e o ajude
financeiramente para libertá-lo, será posto a ferros, em público, por muito
tempo e tratado por maneira degradante. Ninguém ficará sem punição,
ainda que só haja cometido uma falta e não tenha atravessado a fronteira.
Mortes, ferros, açoites, certas posturas humilhantes, de pé, sentado ou
exposto nas portas dos templos da porção extrema do território, ou o
pagamento de multas, conforme ficou dito:

tais são as penas aplicáveis em semelhantes casos. Para a pena de morte


servirão como juízes os guardas das lais e um tribunal formado pelos
magistrados do ano anterior, de reconhecido merecimento. Quanto à
instrução do processo e às citações em juízo e tudo o mais do gênero e a
maneira de encaminhar a causa, é tarefa dos legisladores mais moços;
porém nossa obrigação é legislar sobre a maneira de votar. Os juízes darão
seu voto a descoberto, colocados em fila, por ordem da idade, na frente do
acusador e do réu; os cidadãos que dispuserem de lazer, acompanharão
esses processos com a maior atenção. Cada parte só falará uma vez;
primeiro, o acusador; depois o réu. Terminados esses discursos, o juiz mais
velho começará a interrogá-los, até penetrar a fundo no sentido de suas
respostas. Depois do mais velho, os outros os interrogarão por
ordem, conforme o que deseje saber do que foi dito ou omitido nos dois
discursos. O que não quiser interrogá-los, cederá a vez ao vizinho. O
essencial dos debates será reduzido a escrito, a que todos os juízes aporão
sua chancela, sendo depositado o documento no altar de Héstia. Na manhã
seguinte, voltarão a reunir-se no mesmo local para prosseguir no exame da
causa, quando aporão de novo a chancela no que fica apurado. Depois de
assim procederem pela terceira vez e de reunirem provas e testemunhos
suficientes, cada um deporá seu voto sagrado, comprometendo-se, em nome
de Héstia, a julgar, tanto quanto possível, com verdade e justiça. Com isso
encerra-se o processo.

III — Depois dos crimes contra os deuses, vêm os que visam a derrubar a
constituição. Quem espezinha as leis para levar os homens ao poder, entrega
a cidade a facções, e, recorrendo à violência a cada instante, desafia a lei e
concita à sedição, deve ser olhado como o pior inimigo da cidade. O que
não toma parte nessas maquinações, porém é investido nos mais altos
cargos da administração local, ou por ignorá-las ou, tendo delas
conhecimento, por pusilanimidade não defende a pátria nem pune os
culpados: um indivíduo dessa formação deverá ser considerado o segundo
em matéria de perversidade. Todo homem de valor, por mínimo que seja,
tem o dever de denunciar às autoridades e de levar

aos tribunais quem intenta modificar por meios violentos a constituição


local. Serão julgados pelos mesmos juízes dos ladrões de templos, sendo a
marcha do processo igual para os dois casos; a sentença de morte será dada
por maioria de votos. Para tudo dizer numa só palavra: o opróbrio e o
castigo do pai não passam para os filhos, salvo se o pai, o avô e o bisavô do
culpado houverem sido sucessivamente condenados à morte. Num caso
desses, a cidade repatria os filhos para o lugar de origem, com todos os seus
haveres, com reserva apenas do lote inicial de terra e seus pertences. De
seguida, o cidadão que tiver muitos filhos não menores de dez anos sorteará
dez dentre os que forem designados pelo pai ou o avô paterno ou o materno;
os nomes dos sorteados serão enviados para Delfos; quem a
divindade escolher, entrará com melhor sorte na posse da casa deixada
pelos outros.

Clínias — Ótimo.

O Ateniense — Acrescentemos uma terceira lei a respeito dos juízes e da


marcha do processo dos acusados de crime de traição perante os tribunais.
Uma única lei, também, decidirá da situação dos filhos, se devem continuar
na pátria ou sair dela, aplicável indistintamente nos três crimes de traição,
roubo sacrílego e tentativa de destruir as leis vigentes. Quanto ao
ladrão, tanto de roubos grandes como de pequenos, só uma lei lhes será
aplicada e o mesmo castigo: primeiro, terá de pagar em dobro o que furtou,
no caso de ser condenado e se além do lote familiar tiver bens excedentes
para cumprir a pena imposta; em caso contrário, será mantido na prisão até
saldar a dívida ou conseguir abrandar a vítima. Se alguém for condenado
por se haver apropriado do dinheiro público, não se livrará dos ferros
enquanto não conquistar as boas graças da cidade ou pagar em dobro o que
furtou.

Clínias — Como entender, forasteiro, isso de não haver diferença entre um


roubo grande e um pequeno praticado em lugar sagrado ou profano, e tantas
outras distinções verificáveis em cada caso, variedade que o legislador
deverá atender para não impor indiscriminadamente o mesmo castigo? ,

IV — O Ateniense — Bravo, Clínias! É como se te

atravessasses na minha frente e me despertasses com um empurrão, o que


me fez lembrado de uma observação anterior, de que em parte alguma os
trabalhos de legislação foram bem conduzidos, pelo menos a julgar pela
presente conjuntura. Que pretendemos dizer com isso? A imagem de que
nos valemos não era de todo má, quando comparamos a escravos que
cuidam de outros escravos os que presentemente elaboram leis. O que
cumpre não esquecer é o seguinte: se um desses médicos que exercem a
medicina por maneira empírica e sem princípios diretores encontrasse um
médico livre, em conversa com um doente também livre, que discorresse
em termos quase filosóficos, para subir á origem das doenças, até alcançar a
constituição natural do corpo humano, decerto explodiria em gargalhadas e
se alargaria nas mesmas reflexões que em tais condições ocorrem à maioria
dos pretensos médicos: Insensato, lhe diria; isso não é tratar do doente, mas,
quando muito, instruí-lo, como se ele não quisesse ficar bom, porém tornar-
se médico.

Clínias — E não teria razão de falar dessa maneira?

O Ateniense — Talvez, se também argumentasse que uma conversa nesse


estilo a respeito de leis, tal como a nossa neste momento, só instrui os
cidadãos, não os provê de leis. Não vos parece que tal observação seria
razoável?

Clínias — É possível.

O Ateniense — Mas, agora nossa situação é muito melhor.

Clínias — De que jeito?

O Ateniense — É que nada nos obriga a promulgar leis. Decididos a estudar


em si mesmas as constituições em geral, procuramos descobrir como
poderia ser a melhor e mais necessária, se algum dia viesse a concretizar-se.
Agora mesmo, como parece, temos a liberdade de examinar à vontade a
melhor delas em matéria de leis, ou, se o preferirmos, a mais necessária.
Escolhamos a que nos parecer melhor.

Clí nias — É uma escolha simplesmente ridícula, forasteiro; seria proceder


como legisladores premidos por alguma necessidade a redigir leis em cima
do joe-lho, como se amanhã fosse tarde demais. Porém, graças a Deus,
como os pedreiros e outros artesãos no início de alguma obra, temos a
possibilidade de reunir o material necessário, para depois escolher o que
nos pareça mais de acordo com o edifício a ser levantado, e mais: de o
fazermos com toda a calma. Admitamos, agora, que não somos construtores
profissionais, porém simples amadores, que separam com todo o sossego
uma parte do material e aplicam a outra. Seria certo, então, dizer-se que
algumas leis já foram colocadas, e outras, simplesmente encostadas ao lado
da obra.

O Ateniense — Por isso mesmo, CIínias, nosso plano de legislação saiu


mais conforme a natureza. Em nome dos deuses, consideremos o seguinte, a
respeito dos legisladores.

Clínias — Que será?

O Ateniense — É que na cidade há escritos de muita gente e discursos


reduzidos à escrita, como são discursos desse tipo tudo o que o legislador
elabora.
Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Ora bem. Precisaremos atender às composições dos outros,


os poetas e quantos transpuseram para o verso ou a prosa suas reflexões
sobre a conduta da vida, e não prestaremos nenhuma atenção às dos
legisladores? Ou às destes, de preferência?

Clínias — Às destes, não há dúvida.

O Ateniense — Será mais vergonhoso para Homero, Tirteu e os demais


poetas expressarem-se indevidamente em suas composições sobre a vida e
os deveres que ela comporta, e menos para Licurgo, Solão e todos os
legisladores que nos legaram seus escritos? Ou o mais certo será dizer-se
que de todos os escritos surgidos nas cidades, a um exame aprofundado os
referentes às leis se revelam como sendo os melhores e mais belos, e que os
demais, ou os imitam, simplesmente, ou são risíveis, na medida em que
discreparem deles? A respeito de redação de leis, defenderemos o ponto de
vista de que esses escritos devem assumir as feições de pai ou de mãe,
transbordantes de amor e de compreensão, ou a de algum tirano ou déspota
que, com afixar nos muros suas ordens e ameaças, se considera desobrigado
de tu-

do o mais? Consideremos, agora, nossa posição, para ver se é com tais


sentimentos que nos propomos a discorrer a respeito das leis, sem levar em
consideração nossa capacidade. De um jeito ou de outro, mostremos a
melhor disposição, e, uma vez adiantados nesse caminho, aceitemos suas
conseqüências. Esperemos que sejam boas; Deus querendo, é o que irá
acontecer.

Climas — Falaste admiravelmente bem; façamos isso mesmo.

V — O Ateniense — Inicialmente, prosseguindo no nosso estudo,


submetamos a uma análise minuciosa as leis relativas aos roubos sacrílegos
e aos furtos em geral e a toda espécie de crimes, sem nos preocuparmos
com o fato de adotarmos algumas leis antes de encontrar a redação
definitiva de outras. Ainda não somos legisladores; estamos apenas no
começo; é possível que de futuro fiquemos perfeitos. Se fordes de opinião
que devemos examinar o tema da maneira por mim proposta, entremos logo
na matéria.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — A respeito de tudo o que é belo e justo, procuremos,


primeiro, esclarecer em que pontos estamos de acordo e em quais
discordamos de nós mesmos, já que nosso maior empenho, senão o único,
conforme o declaramos, é diferir do vulgo, como também demonstrar até
onde eles se contradizem entre si.

Clínias — Que queres dizer com isso de discordarmos de nós mesmos?

O Ateniense — Vou tentar explicar-te. Com relação à justiça em si mesma,


os homens justos, as ações e as coisas, todos estamos mais ou menos de
acordo em que tudo é belo. Por isso mesmo, se alguém afirmasse que os
homens justos, embora feios de corpo, são belíssimos por causa do espírito
de justiça que os caracteriza: quem se manifestasse desse modo não correria
o perigo de falar aereamente.

Clinias — E o certo, não será isso mesmo?

O Ateniense — É possível. Porém vejamos: se for belo tudo o que participa


da justiça, esse tudo, então, não abrange apenas o que fazemos, mas
também o que sofremos.

Clínias — E daí?

O Ateniense — Toda ação justa, na medida em que participa da justiça,


participará da beleza.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Se concedemos que um sofrimento aliado à justiça se torna


belo na medida dessa participação, não ficará nossa assertiva em
contradição consigo mesmo?

Clínias — Sem dúvida.


O Ateniense — Mas, se admitirmos que o sofrimento é justo, sem deixar de
ser feio, o justo e o belo entrarão em conflito, com declararmos que o justo
é o que há de mais feio.

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Não é difícil compreender. As leis que acabamos de


apresentar declaram precisamente o oposto do que dissemos agora.

Clínias — Que leis?

O Ateniense — Admitimos ser justa a pena de morte para o ladrão de


templos e o inimigo das leis bem estabelecidas; e no momento em que nos
dispúnhamos a promulgar outras leis do mesmo estilo, contivemo-nos ante
a consideração do número infinito e a variedade das paixões, a qual mais
justa e feia. Então, não equivale isso a afirmar que o justo e o belo ora
se identificam de todo, ora se nos apresentam como o que há de mais
oposto?

Clínias — É possível.

O Ateniense — É assim que a maioria dos homens se contradiz em tais


assuntos, quando admitem como sendo inteiramente separados o belo e o
justo.

Clínias — É o que realmente acontece, forasteiro.

O Ateniense — Consideremos mais uma vez, Clínias, nossa maneira de


pensar no que entende com esse desacordo.

Clínias — Desacordo? A respeito de quê?

O Ateniense — Parece que sobre isso já me explanei suficientemente em


meu discurso anterior; e se o não fiz, aceitai como certo que vou declará-lo
agora mesmo.

Clínias — De que se trata?

O Ateniense — É que, em tudo, os maus são maus


involuntariamente. Ora, se é forçoso ser como disse, a conseqüência
inevitável terá de ser a seguinte.

Clínias — A que consequência te referes?

O Ateniense — Que o homem injusto é mau, mas que este só o é


involuntariamente. Ora, não terá sentido dizer-se que é voluntario o ato
praticado involuntariamente. Para quem aceita que a injustiça é algo
involuntário, o homem injusto parecerá que procede sem deliberação, o que
me apresso a confirmar, pois para mim não há quem pratique de caso
pensado nenhuma injustiça. Se, por amor à discussão ou simples
pedantismo, alguém admitir que os homens são injustos involuntariamente,
mas que muitos praticam injustiça de caso pensado, atenho-me à primeira
afirmativa, não à segunda. Mas, de que maneira poderei mostrar-me
coerente com minha própria conclusão? Logo, no caso de me perguntardes,
Clínias e Megilo: Se as coisas, forasteiro, realmente se passam desse modo,
quê nos aconselhais com respeito às leis que devem ser redigidas para
a cidade dos magnetas? Dar-lhes-emos leis, ou não? E por que não? vos
responderia. Sendo assim, farias distinção entre justiça voluntária e justiça
involuntária, e para as faltas e injustiças voluntárias aplicaríamos castigos
pesados, e para as involuntárias, mais leves? Ou igual penalidade para
todas, visto não haver, de jeito nenhum, injustiça voluntária?

Clínias — Tudo isso está muito certo, forasteiro; mas, que proveito tiramos
do que dissemos até agora?

O Ateniense — É procedente a pergunta. De início, faríamos o seguinte.

Clínias — Como será?

VI — O Ateniense — Não nos esqueçamos de uma observação muito certa,


formulada agora mesmo, de serem nossas idéias a respeito da justiça por
demais confusas e contraditórias. Voltando a esse ponto, apresentemos a nós
mesmos a seguinte pergunta: Será que, sem termos resolvido essa
dificuldade nem explicado em que diferem as faltas aue em todas as cidades
os legisladores, sem exceção alguma, classificam em duas espécies: as
voluntárias e as involuntárias, o que se reflete na maneira de cada um
legislar, o discurso que acaba-mos de enunciar dispensará esclarecimentos
ou justificativa, como se tivesse sido enunciado por Deus, em sua
condenação formal e tácita de todas as legislações anteriores? De forma
alguma; antes de redigir nossas leis, teremos de provar que há duas espécies
de faltas e em que se diferençam, para que, em cada caso concreto, na
aplicação de pena todos possam acompanhar o fio do raciocínio e sejam
capazes de decidir, de um jeito ou de outro, o que em tudo isso foi bem ou
mal fundamentado.

Clínías — Quanto disseste, forasteiro, nos parece muito justo. Não podemos
fugir da seguinte alternativa: ou bem não devemos dizer que todas as
injustiças são involuntárias, ou, então, teremos de começar pelas distinções
necessárias, a fim de provarmos a veracidade de nossa afirmação.

O Ateniense — Uma dessas proposições me é de todo em todo inaceitável:


não dizer o que considero a verdade. Nem vai isso com meu caráter, nem
seria piedoso. Como poderá haver duas espécies, se elas não se distinguem
entre si, por uma ser voluntária e a outra involuntária? É o que, de um jeito
ou de outro, precisaremos esclarecer.

Clínias — Perfeitamente, forasteiro; sobre isso não podemos dissentir.

O Ateniense — Façamos assim mesmo. Avante, pois. Ao que parece, em


seus negócios e suas relações mútuas, a todo instante os cidadãos se causam
danos recíprocos, em que são freqüentes os atos voluntários e os
involuntários.

Clínias — Como não?

O Ateniense — O que ninguém deve concluir, quando parte do princípio de


que todo dano é injusto, é que nos danos em si mesmos a injustiça pode ser
dupla: em parte voluntária e em parte involuntária. Em conjunto, os danos
involuntários nem são menores nem menos freqüentes do que os
voluntários. Considerai agora se o que eu vou dizer tem algum sentido ou se
se trata de palavriado vazio. O fato, Clínias e Megilo, é que se alguém causa
algum dano a outra pessoa, sem querer e sem nenhuma intenção de
prejudicá-la, não direi que cometeu injustiça, embora involuntária,
nem redigirei nenhuma lei nesse sentido, como se se tratasse de injustiça
involuntária. Vou além: não incluirei esse dano no rol das injustiças, nem
grandes nem pequenas. Se prevalecer minha interpretação, por vezes
acoimaremos de injusto quem proporciona a outra pessoa algum lucro
indevido. Não, amigos; não devemos classificar, sem mais nada, como justo
ou injusto o simples fato de alguém dar alguma coisa a outrem ou tomar
dessa pessoa seja o que for. O espírito é que vale, a intenção de favorecer ou
de prejudicar terceiros; é isso que o legislador precisa considerar, sem
perder de vista ambos os pontos: a injustiça e o dano. Com relação ao dano,
ele deverá repará-lo, na medida do possível, com suas leis, salvando o que
pereceu e restabelecendo o que caiu por culpa de outros; ou, ainda,
remediando a morte e os ferimentos. A esse modo, reconciliando com a
compensação o autor e a vítima dos danos, esforçar-se-á com sua legislação
para fazê-los passar da discórdia para a amizade.

Clínias — Perfeito.

O Ateniense — Quanto aos danos injustos e os lucros, se alguém for


beneficiado por meios injustos, como a doença da alma o legislador
procurará sanar o que for sanável. Digamos, agora, de que lado devemos
procurar essa cura da injustiça.

Clínias — Como será?

O Ateniense — O que a lei se propõe é doutrinar o autor de qualquer


injustiça, pequena ou grande, e obrigá-lo a não mais cometer
deliberadamente semelhante falta, ou, pelo menos, a fazê-lo com menor
frequência, sem, contudo, dispensá-lo do ônus da indenização. Seja por atos
ou por palavras, com o recurso de vantagens ou de penas, distinções ou
degradações, presentes ou multas em dinheiro, seja qual for o meio de levar
alguém a odiar a injustiça e afeiçoar-se à natureza da justiça, ou, pelo
menos, a não odiá-la: tudo isso só pode ser obra das mais belas leis. Mas, os
que o legislador considerar incuráveis, a que lei ou castigo recorrer?
Sabendo que todos eles nada têm que lucrar se continuarem vivos, e que se
deixarem a vida poderão proporcionar aos outros uma dupla utilidade, com
levá-los.

ante seu exemplo, a fugir do mal, além de livrar a cidade desses elementos
ruins, de força decretará o legislador a pena de morte para punir as faltas de
criminosos dessa natureza, sem aplicá-la, absolutamente, em
casos diferentes.

Clínias — Todas essas observações se me afiguram bastante razoáveis.


Porém de bom grado te ouviria discorrer com maiores particularidades
acerca da diferença por ti estabelecida entre a injustiça e o dano, e como em
tudo isso variam o voluntário e o involuntário.

VII — O Ateniense — Forçoso me será obedecer-vos e expor o que pedis.


É fora de dúvida que quando falais ou ouvis falar a respeito da alma, dizeis,
pelo menos, que uma de suas partes ou condições de sua natureza, a cólera,
é um bem naturalmente irritável e difícil de combater, e fonte de inúmeros
desarranjos, por sua violência irrefletida.

Clínias — Exato.

O Ateniense — Há também o prazer, que distinguimos da cólera, e que, por


uma força contrária à da cólera, consegue dominar a alma graças à
persuasão de par com a fraude e sem violência, chegando a realizar tudo o
que sua vontade ambiciona.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Não faltaremos com a verdade, se dissermos que a


ignorância é como a terceira causa de nossas faltas. Não andará bem o
legislador que distinguir duas espécies de faltas: a simples, a que atribuirá a
causa das faltas leves, e a dupla, quando alguém erra, não por ignorância,
simplesmente, mas também pela ilusão do saber, como se conhecesse tudo o
que, de fato, ignora. Atribuirá a essa ignorância, quando acompanhada de
força e poder, os maiores e mais desumanos crimes, e, sempre que, aliada à
fraqueza, as faltas dos velhos e das crianças que considerar passíveis de
punição legal, mas às quais imporá penalidades leves e temperadas com
bastante indulgência.

Clínias — É muito justo o que dizes.

O Ateniense — Com relação ao prazer e à cólera, de regra todos nós


dizemos que certos indivíduos são vencidos por eles e que outros os
dominam.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Mas nunca ouvimos alguém declarar que umas tantas


pessoas dominam a ignorância e outras são vencidas por ela.

Clínias — É verdade.

O Ateniense — No entanto, de todas três dizemos que, por vezes, nos


impelem a cometer atos opostos entre si, quando nos arrastam com sua
vontade própria.

Clínias — Sim, e com bastante freqüência.

O Ateniense — Sinto-me, agora, em condições de explicar-te com clareza e


sem vacilações o que entendo por justo e injusto. Quando a cólera, o temor,
o prazer, a tristeza, a inveja e outras paixões dominam tiranicamente a alma,
quer causem quer não causem prejuízos a terceiros, é o que, sem mais nada,
denomino injustiça. Quanto à idéia que a cidade ou os particulares façam do
bem, não importando a maneira de alcançá-la, se predomina na alma e
assume a direção dos homens, ainda mesmo que chegue a cometer algum
deslize, só direi que deve ser considerado justo tudo o que for feito de
conformidade com ela e o que em cada indivíduo se submete a seu domínio,
com vistas à melhor direção da vida humana, ainda que muita gente
classifique como injustiça involuntária essa modalidade de falta. Mas não
estamos aqui para discutir sobre o significado das palavras; uma vez que se
nos revelaram três espécies de faltas, o que temos de fazer, antes de passar
adiante, é fixá-las na memória. Uma dessas formas é a tristeza, a que damos
o nome de cólera e temor.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — A segunda entende com o prazer e os apetites; e a terceira,


o abandono das esperanças e da opinião verdadeira com respeito ao melhor.
Submetendo esta última a dois cortes, dividi-la-emos em três partes, com o
que obteremos cinco espécies, conforme dizemos hoje, para as quais vamos
aplicar leis diferentes e dispostas em dois gêneros.
Clínias — Quais são?

O Ateniense — Num deles, incluiremos os atos praticados com violência e


às daras; noutro, o que for feito a ocultas, no escuro e por meio de
embustes. Por vezes, essas duas maneiras se combinam, sendo esses ca-sos
os que exigem leis mais severas, para que se obtenha o equilibrio
necessário.

Clínias — É natural.

VIII — O Ateniense — Depois disso, voltemos ao ponto de onde partimos


para esta digressão e ultimemos a redação de nossas leis. Ou muito me
engano, ou paramos nas leis concernentes aos ladrões de templos e aos
traidores, e também aos que deturpam as leis com a intenção de derrubar o
governo estabelecido. Dos crimes citados, alguns podem ser decorrentes da
loucura, de doenças ou de velhice extrema, e também da infância, estados
esses que não diferem muito da loucura. Uma vez que fique claramente
provado aos juízes escolhidos para determinado caso, ou por informação
do réu ou do seu advogado de defesa, que um desses estados influiu para
que o acusado infringisse a lei, será simplesmente condenado a indenizar a
vítima, com exclusão de qualquer outra penalidade, excetuada a hipótese de
haver matado alguém e de ainda não se ter purificado do sangue que lhe
manchou as mãos. Nessas condições, retire-se para região diferente e
procure outro lugar,expatriando-se por um ano. No caso de regresso antes
do tempo fixado pela lei e de pisar em qualquer ponto do pais, os guardas
das leis o fecharão na prisão pública durante dois anos; esgotado esse
prazo, será posto em liberdade.

Continuemos até o fim, com a mesma disposição do começo, a redigir leis


para todos os crimes de morte, a principiar pelos homicídios violentos e
involuntários. Se nalguma competição ou em jogos públicos alguém ferir
involuntariamente um amigo, vindo a vítima a morrer no próprio local da
ocorrência, ou mesmo mais tarde, em conseqüência dos ferimentos, e
também na guerra ou em manobras militares, quando se exercitava em
lançar dardos, tanto com o corpo desprotegido como armado desta ou
daquela forma, para imitar de perto as práticas da guerra, será declarado
inocente se se purificar de acordo com a lei trazida de Delfos. O mesmo
passa com os médicos em geral: em caso de morte de algum doente, sem
haver culpa do médico, será este declarado puro segundo a lei. Quem matar
outra pessoa com a própria mão, sem o querer, ou só com a força dos
membros ou por meio de algum instrumento ou projétil, administração de
alimentos ou de bebida, aplicação de fogo, exposição ao tempo, privação do
ar, com o emprego de seu próprio corpo ou de outras pessoas, será
considerado o autor direto de qualquer dessas formas de homicídio, vindo a
receber as seguintes punições: se matar um escravo, convencido de que
se tratava de um de seus homens, indenizará o dono do morto ou pagará
multa correspondente ao dobro do valor do escravo, com base na avaliação
feita pelos juízes. Num caso desses, as purificações serão maiores e
em maior número do que nos homicídios durante os jogos, cabendo a
decisão aos exegetas escolhidos pela divindade. Se se tratar de seu próprio
escravo, será absolvido de crime, depois de devidamente purificado.

Quem matar involuntariamente um homem livre, terá de submeter-se aos


mesmos ritos de purificação válidos para morte de escravos, sem, com isso,
desprezar uma antiga tradição. Pois contam que toda vítima de morte
violenta que em vida cultivara o sentimento da liberdade, algum tempo
depois da morte ainda conserva animosidade contra o assino, e, cheio de
medo e pavor, em virtude da violência padecida, ao ver seu matador andar
pelos lugares que lhe eram costumeiros, fica inquieto e procura perturbar o
mais possível o criminoso, na alma e nos atos, para o que atua sobre a
consciência do culpado. Por isso, o assassino deve fugir de sua vítima
durante o decurso sucessivo das estações de um ano e evitar aparecer nos
lugares que ele costumava freqüentar. Se o morto era estrangeiro, será o
criminoso banido da terra natal de sua vítima durante o mesmo lapso de
tempo. Se se submeter de bom grado a essa lei, o mais próximo parente do
morto, sabedor do que se passa, lhe perdoará e se reconciliará com ele, só
lhe granjeando encômios seu comedimento. Mas, se desobedecer à lei e,
sem estar purificado, recusar-se a passar fora o tempo determinado para o
exílio, o mais chegado parente da vítima o processará por crime de morte, e
se vier a ser condenado, todas as penalidades lhe serão impostas em dobro.
Se esse parente não tomar a iniciativa de mover o processo, recairão sobre
ele as impurezas do crime, passando o morto a dirigir contra ele suas
reclamações. Nesse estado, quem quiser poderá acusá-lo, sendo ele
obrigado por lei a ausentar-se da pátria durante cinco anos.
Se algum estrangeiro matar algum dos estrangeiros domiciliados na cidade,
qualquer pessoa poderá acusá-lo, com base nas mesmas leis; se for
totalmente estrangeiro, além de precisar purificar-se, não importando
a qualidade da vítima, meteco, estrangeiro ou cidadão, será exilado para
sempre do país em que vigorarem essas leis. No caso de voltar, em
desrespeito à sentença, os guardas das leis o condenarão, e se deixar bens,
estes serão atribuídos ao parente mais próximo da vítima. Se voltar contra
sua vontade, como náufrago, porventura, que o mar lançasse à praia, armará
uma barraca tão perto da água, que o mar lhe banhe ds pés, e aguardará
o momento de embarcar. Se for levado à força para terra, a primeira
autoridade que o encontrar o libertará e o conduzirá até à fronteira, sem que
ele sofra nenhum prejuízo material.

No caso de alguém matar por suas próprias mãos algum homem livre, se o
fizer num acessso de cólera, de início devemos distinguir duas hipóteses.
Semelhante ação será produto da cólera sempre que, de súbito e sem
premeditação, alguém matar outra pessoa por meio de pancada ou violência
da mesma natureza, num acesso repentino, para, logo após, arrepender-se
do que fizera. É também efeito da cólera, quando, provocada por palavras
injuriosas ou atos ultrajantes, o desejo de vingar-se leva posteriormente a
vítima a matar o seu agressor, de caso pensado, sem que venha a
arrepender-se de seu ato. A esse modo, como parece, será preciso admitir
duas espécies de homicídio, produtos igualmente da cólera, que, com
acerto, podem ser considerados como constituindo um meio termo entre o
homicídio voluntário e o involuntário, cujas imagens se refletem em ambos
os casos. O que sabe conter-se e não se vinga ¡mediatamente, porém mais
tarde e com premeditação, parece-se com o agressor voluntário; e o oposto
a isso, quem não alimenta sua cólera, mas se deixa arrebatar de repente e
sem premeditação, assemelha-se mais ao criminoso involuntário, conquanto
seu ato não seja de todo involuntário: é apenas semelhante. Daí, a
dificuldade para decidir nos casos de homicídios resultantes de acessos de
cólera entre os que devem ser legalmente classificados como voluntários e
os involuntários. O melhor e mais certo será classificar todos de acordo com
o que parecerem, conforme sejam ou não premeditados, e aplicar castigos
mais pesados nos praticados com premeditação e cólera, e mais brandos
nos imediatos e sem premeditação. O que é semelhante a um mal maior
deve ser punido com mais rigor; e o que o for com um menor, com punição
mais leve. É como teremos de proceder em nossas leis.

Clínias — Perfeita mente.

IX — O Ateniense — Voltando ao nosso tema, digamos que se alguém


matar com suas próprias mãos um homem livre, tendo agido num repente
de cólera e sem premeditação, cumprirá a mesma pena reservada para quem
mata a sangue frio, mas será obrigado a passar dois anos no exílio, como
castigo de sua cólera. O que matar num acesso de cólera, mas com
premeditação, sofrerá pena igual â do precedente, porém com três anos de
exílio, como o outro o foi por dois anos; sendo maior sua cólera, mais
tempo dura a punição. O retorno de ambos os criminosos será decidido da
seguinte maneira. Aliás, nessa matéria é difícil legislar com muita precisão.
Por vezes, é muito mais manso o criminoso que a lei considera pior, sendo
mais cruel o que é tido na conta de pacato, por cometer o crime com
muito maior selvajaria, enquanto o outro se revelou algum tanto comedido.
Mas, na maioria dos casos, as coisas se passam conforme dissemos. Tudo
isso os guardas das leis precisarão levar em consideração. Decorrido o
prazo do exílio de um ou de outro criminoso, os guardas das leis enviarão à
fronteira doze juízes que sindicarão com rigor a respeito do procedimento
dos exilados durante todo aquele tempo, manifestando-se, outrossim, com
relação ao arrependimento que porventura manifestem e a possibilidade do
retorno dos culpados. Esses terão de acatar a decisão dos magistrados. Se
depois da volta um dos banidos, dominado de novo pela cólera, cometer
crime igual, será definitivamente expulso; e na hipótese de voltar, punido
nas mesmas condições que o estrangeiro.

Quem matar seu próprio escravo, bastará purificar-se; mas, se num acesso
de cólera matar algum escravo estranho, pagará ao dono o dobro do
prejuízo. Se algum criminoso de morte não obedecer à lei e, sem estar
purificado, manchar com sua presença a ágora, os jogos e outros lugares
sagrados, qualquer pessoa poderá levá-lo aos tribunais e também ao parente
do morto que permitiu tal infração, a fim de obrigá-los, respectivamente, a
exigir e a pagar o dobro da multa e das custas, reservando para si a multa,
de acordo com a lei.
Se num acesso de cólera algum escravo matar seu senhor, os parentes da
vítima farão o que quiserem com o criminoso, mas, de jeito nenhum, o
deixarão viver; só assim ficarão limpos. Se o escravo de outra pessoa matar
um homem livre, os donos do escravo o entregarão aos parentes do morto,
os quais serão obrigados a matar o criminoso da maneira que entenderem.

Se, porventura — é raro, realmente, mas acontece — o pai ou a mãe,


levados pela cólera, matarem com pancadas o filho ou a filha, ou por
qualquer outro meio violento, terão de submeter-se aos mesmos ritos de
purificação que os demais criminosos e ao exílio de três anos; mas, depois
de voltarem, o marido se separará da mulher, e a mulher do marido; não
voltarão a unir-se para ter outros filhos, nem nunca mais coabitarão com as
pessoas que eles privaram do filho ou do irmão, como também não tomarão
parte nos mesmos sacrifícios que estes. O que revelar impiedade a ponto
de desobedecer a tais dispositivos, poderá ser processado como ímpio por
qualquer cidadão.

O marido que, num momento de cólera, matar sua mulher legítima, ou a


mulher que fizer a mesma coisa com o marido, fará as purificações do estilo
e será condenado a exílio de três anos. De volta do exílio, o culpado não
tomará parte no sacrifício de seus filhos nem nunca mais se sentará à mesa
com eles. Vindo o pai ou o filho a desobedecer às leis, quem quiser pode-rá
processá-lo por impiedade. Se num acesso de cólera, um irmão matar seu
próprio irmão ou irmã, ou a irmã matar seu irmão legítimo, deverão
submeter-se às mesmas purificações e à pena de exílio impostas aos pais
e aos filhos; com os irmãos que ele privou dos irmãos e os pais que privou
dos filhos jamais participará de refeições em comum ou de cerimônias
religiosas. Vindo a desobedecer, com todo o direito será acusado em
juízo por impiedade, de acordo com as leis para tais crimes, a que já nos
referimos.

Se alguém revelar tão pouco domínio sobre si mesmo, com relação aos pais,
a ponto de, no arrebatamento do furor, tirar a vida a algum deles, se a
vítima antes de expirar absolver voluntariamente o criminoso, depois de
purificado, como os autores de homicídios involuntário e cumpridas as
demais determinações para tais casos, será considerado puro. Porém, se a
vítima não lhe perdoar, o criminoso ficará sujeito a diferentes penalidades.
Com efeito, incorrerá nas penas serveras previstas para os casos de agressão
física e também de impiedade e roubo sacrílego, visto haver roubado a vida
a quem a gerara, de sorte que, se fosse possível ao mesmo indivíduo morrer
muitas vezes, o parricida ou matricida que houvesse praticado esse crime
num acesso de cólera, com toda a justiça mereceria a pena de mil mortes.
Realmente, de que maneira a lei poderia castigar com justiça a única pessoa
a que ela não permite, nem mesmo em legítima defesa, na iminência de
ser morto, matar o próprio pai ou a mãe, que deram à luz a sua natureza, e
que tudo deve suportar para não chegar a tal extremo? Determinemos, pois,
a pena de morte para quem matar o pai ou a mãe num acesso de cólera. O
indivíduo que, nalguma sedição, matar em combate seu próprio irmão, ou
em situações semelhantes, num gesto de defesa contra quem o atacou em
primeiro lugar, será considerado puro como se houvesse morto um inimigo,
valendo o mesmo para o cidadão que matar outro em circunstâncias
semelhantes, ou algum estrangeiro, outro estrangeiro. Se um cidadão
matar um estrangeiro em defesa própria, ou vice-versa, será também
considerado puro. O mesmo se diga do escravo que matar o escravo. Mas,
se um escravo matar um homem livre para defender-se, cairá sob o jugo das
mesmas leis a que está sujeito quem matar o pai. O que foi dito acerca do
perdão, nos casos de parricidio, aplicase igualmente ao perdão de todas as
ocorrências acima enumeradas, vindo a vitima a perdoar espontaneamente
seu agressor, não importando as pessoas nem as circunstâncias ocasionais,
pois o homicidio passará a ser considerado involuntário. O agressor
realizará os ritos da purificação e seu exílio não excederá de um ano,
de acordo com a lei. Já falamos suficientemente das várias modalidades de
homicidio: o violento, o involuntário e o resultante de assomos de cólera.
Quanto aos homicidios voluntários, premeditados e executados com
injustiça, fruto exclusivo do predomínio dos prazeres, da concupiscência e
da inveja, desses é que precisaremos tratar.

Clínias — Tens razão.

X — O Ateniense — De início, falemos, da melhor maneira possível, de


seu número e variedades. A mais grave é a concupiscência que se apodera
de uma alma embrutecida pelos apetites. Na maioria dos homens é o que se
observa com o que entretém a paixão mais freqüente e mais forte, a saber: o
poder da riqueza para engendrar uma infinidade de desejos insaciáveis e
sem limites, ou seja isso fruto de pendor inato ou de educação viciosa. A
causa dessa educação está no apreço imerecido de que tanto entre os
helenos como entre os bárbaros goza a riqueza, pois todos lhe assinalam
o primeiro lugar entre os bens, quando só lhe cabe o terceiro, com o que
corrompem tanto a eles mesmos como a seus descendentes. Nada mais belo
e melhor do que dizer a verdade em toda a parte, isto é, que a riqueza foi
feita para o corpo, e o corpo para a alma. Ora, havendo bens para cujo fim a
riqueza foi naturalmente criada, só lhe cabe o terceiro posto, depois das
virtudes do corpo e da alma. Semelhante doutrina ensinaria a quem aspira a
ser feliz que não basta esforçar-se para ficar rico, simplesmente, porém rico
por meios lícitos e com moderação. Dessa maneira, não se veriam nas
cidades tantos homicídios que exigem purificação por meio de novos
homicídios. Mas hoje, conforme já observamos no começo, essa é a
primeira e mais importante causa dos processos graves por morte
intencional. A segunda é o estado de uma alma viciosa que engendra
a inveja, companheira prejudicial, em primeiro lugar, para seu próprio
hospedeiro, e, depois, para os membros mais distintos da comunidade. A
terceira causa são os temores cobardes e injustos que ocasionam
muitas mortes, sempre que alguém pratica ou praticou alguma ação que
ninguém deverá saber ou que se possa recordar. Desse modo, são
eliminadas por meio da morte as pessoas que poderiam revelá-la, quando
não há outro recurso. Sirva isso de proêmio para tudo o que ficou dito, ao
que acrescentaremos as várias doutrinas ensinadas na celebração dos
mistérios, em que acreditam muitos apaixonados dessas questões, a saber,
que tais crimes são punidos no Hades e que quando alguém volta para a
terra, forçosamente terá de sofrer a pena imposta pela natureza, e que
consiste em passar por tudo o que ele fez para os outros, vindo, assim,
também, a morrer assassinado.

XI — Para quem se convenceu dessa verdade e, de fato, teme o castigo com


que nosso proêmio a todos ameaça, não há necessidade de proclamar
nenhuma lei desse teor; mas, para os desobedientes redigiremos a seguinte
lei: Quem matar por sua própria mão, injusta e deliberadamente, algum de
seus concidadãos, de início será posto fora da lei, para não manchar, com
sua presença, nem os templos nem o mercado nem os portos nem qualquer
reunião pública, quer receba quer não receba a competente notificação, pois
não é outro o papel da lei: proibir, como sempre o fez e fará, e sempre em
nome da cidade. Quem não acusar o culpado, estando na obrigação de fazê-
lo, nem reclamar sua interdição na qualidade de parente da vítima até o grau
de primo coirmão, tanto pelo lado paterno como pelo materno, para
começar será atingido pelas impurezas e pela cólera dos deuses que a
maldição da lei fatalmente fará cair sobre ele, e, em segundo lugar, poderá
ser processado por quem quer que se resolva a vingar o morto. O que
chamar a si essa responsabilidade, terá de observar os ritos de purificação
pertinentes ao caso, bem como as demais cerimônias ordenadas pela
divindade, notificará o criminoso e o obrigará a pena imposta pela lei. Será
fácil ao legislador mostar que tais cerimônias devem consistir em preces e
sacrifícios apresentados a determinadas divindades incumbidas de evitar
homicídios na cidade. Quais sejam essas divindades e a maneira mais
acertada de encaminhar o processo sob o ponto de vista religioso, é o que
decidirão os guardas das leis, de comum acordo com os intérpretes, os
adivinhos e o oráculo, com a redação de leis que sirvam de
normas processuais. Como juízes, servirão os mesmos a que atribuímos o
poder de julgar os casos de roubos sacrílegos. Reconhecida a culpa, o
acusado sofrerá pena de morte, e não será sepultado na pátria da vítima, em
virtude de sua imprudência, agravada de impiedade. Em caso de fuga e de
não querer submeter-se a processo, o criminoso será exilado para sempre, e
se nalgum tempo pisar em qualquer ponto do país da vítima, a
primeira pessoa que o encontrar, ou seja parente do morto ou cidadão
particular, poderá matá-lo impunemente, ou então, depois de devidamente
manietado, o entregará às autoridades competentes para ser executado.
Na mesma ocasião, o acusador exigirá fiança de quem for acusado, o qual
indicará três nomes do conhecimento do presidente do tribunal,
responsabilizando-se aqueles por seu comparecimento em juízo. Se não
quiser ou não puder apresentar fiadores, as autoridades se apossarão dele,
mandá-lo-ão pôr na cadeia e o farão comparecer a todas as fases do
processo. Quando alguém não matou, realmente, outra pessoa por suas
próprias mãos, mas é culpado de haver tramado nesse sentido e de lhe ter
dado a morte com suas insídias, e permanece na cidade sem haver
purificado a alma, será submetido a um processo igual ao precedente,
ficando apenas dispensado de apresentar fiadores. Vindo a ser executado,
ser-lhe-á dada sepultura no solo da pátria; porém no mais, tudo se passará
exatamente como no caso exterior. Igual processo ocorrerá em casos de
homicídio entre estrangeiros ou entre cidadãos e estrangeiros ou
entre escravos, quer se trate de atentado direto quer por meio de tocaia, só
havendo dispensa dos fiadores. Conforme ficou explicado, só terá de
apresentar fiança quem cometer o crime com suas próprias mãos, devendo o
denunciante exigi-la dos acusados.

Se um escravo matar um homem livre por suas próprias mãos ou por meio
de maquinações, o carrasco público levará o condenado a um lugar de onde
se aviste a sepultura da vítima e ali mesmo lhe aplicará o número de açoites
que seu acusador determinar, acabando de matá-lo, se o criminoso resistir
aos açoites. Se alguém matar um escravo que nada lhe fizera, só de medo de
que ele pudesse revelar algum feito perverso e deprimente, ou por motivos
semelhantes, será punido como se houvesse morto um cidadão; a morte do
escravo lhe acarretará processo em tudo igual ao da hipótese formulada.

XII — Em caso de crimes em que a tarefa do legislador, além de


desagradável, seja dura, mas em que não é possível deixar de legislar, morte
de parentes próximos, diretamente ou por meio de emboscadas, homicídios
voluntários e sobremodo iníquos e que, de regra, só ocorrem em cidades
mal governadas e de educação viciosa, será preciso repetir a história
contada há pouco, com a esperança de que os ouvintes se abstenham de
motu próprio da prática desses crimes ímpios no mais alto grau. Essa fábula
ou história, ou que outro nome se lhe dê, nos fala claramente pela boca de
antigos sacerdotes e nos anuncia que a referida lei está em vigor junto da
Justiça protetora e vingadora do sangue dos parentes, a qual estabeleceu que
quem pratica semelhantes crimes terá fatalmente de sofrer as
mesmas violências que ele infligiu a terceiros. Se alguém vier a matar o pai,
terá de resignar-se a morrer de morte violenta, em qualquer tempo, por mão
de seus próprios filhos; se matou a mãe, renascerá fatalmente com a
natureza feminina, para, de futuro, vir a morrer às mãos dos filhos, pois não
há outra maneira de limpar-se da mancha do sangue comum a ele e sua
vítima, não vindo aquela a desaparecer sem que a alma do criminoso pague
com a vida esse crime de morte, e, assim, aplique e suavise a cólera dos
parentes da vítima. O medo de receber das divindades tal castigo, leva os
homens a não praticar esses crimes. Mas, se alguém tiver um destino tão
miserável que o induza a privar da alma o corpo do seu pai, da mãe, dos
irmãos ou dos filhos, de caso pensado e por deliberação própria, da parte do
legislador mortal será apresentada a seguinte lei: notificá-lo-á da interdição
de todas as relações sociais, sendo a fiança igual em todos os pontos à dos
casos anteriormente tratados. Vindo a provar-se que matou um desses
parentes, os servidores dos juizes e os magistrados o executarão e o jogarão
numa encruzilhada longe da cidade, e, em nome desta, os magistrados,
munidos de pedras, as jogarão na cabeça do cadáver, a fim de purificar a
cidade, depois do que levarão o corpo até à fronteira do território, para além
da qual o deixarão insepulto, de acordo com a lei.

Agora, que pena tocará a quem privar da vida o parente mais íntimo e que
passa por ser o seu melhor amigo? Refiro-me a quem matar a si mesmo, e
privar-se por meios violentos da porção de vida que o destino lhe conferira,
sem que para isso recebesse intimação legal da cidade e sem haver sido
assoberbado por nenhuma dessas desgraças inevitáveis e sumamente
dolorosas ou por algum opróbrio indizível que deixa insuportável a vida, e
que, por falta, simplesmente, de energia e virilidade, impõe a si mesmo uma
punição injusta? Para um caso desses, a divindade sabe quais são as
purificações cabíveis e como deverá ser feito o sepultamento, devendo, em
conjunturas semelhantes, os parentes mais próximos consultar os intérpretes
e as leis em vigor e seguir as competentes determinações. Os que se
destruírem dessa maneira serão enterrados à parte, sem compartilharem da
sepultura de ninguém e inumados sem honrarias em lugares anônimos nos
confins das doze secções do território, não ficando assinalado o local nem
por esteia nem por inscrição.

Se um animal de carga ou outro qualquer matar alguém, excluída a hipótese


de ocorrer o fato e, - competição pública com disputa de prêmios, os
parentes próximos do morto processarão o matador por crime de homicídio,
funcionando como julgadores os agrôno-mos, em número determinado
pelos parentes. Vindo a ser condenado, o animal culpado será morto e
jogado para além das fronteiras.

Se alguma, coisa inanimada, com exceção de raio ou projétil parecido e


proveniente de Zeus, ou tudo o mais que cair em cima de alguém ou em que
essa pessoa vier a cair, de que resulte sua morte, o parente do morto tomará
como juiz ao seu vizinho mais próximo e se purificará em seu próprio nome
e no de toda a parentela, e o objeto cuja culpa for apurada será jogado
para além das fronteiras, conforme ficou determinado para o gênero dos
animais.

Se alguém for encontrado morto, sem que se descubra o criminoso, que


permanecerá incógnito apesar das investigações nesse sentido, far-se-ão as
mesmas proibições dos casos anteriores: o assassino será citado em juízo e,
uma vez apresentada queixa, o acusador proclamará na praça pública, pela
voz do arauto, que o matador de fulano ou sicrano, a ser condenado por
crime de homicídio, fica proibido de entrar nos templos ou de pisar em
qualquer ponto do país da vítima, sob pena, caso apareça e for identificado,
de ser executado e seu corpo jogado, sem sepultura, para além das
fronteiras do país da vítima. Seja essa a lei vigente em nossa legislatura,
para casos de homicídio.

Não nos alargaremos em maiores divagações a respeito dessa matéria.


Quanto às pessoas que têm o direito de matar, e em que circunstâncias, sem,
com isso, contaminar-se, direi o seguinte: Se alguém apanhar um ladrão que
penetrou de noite em sua casa, para roubar, e o matar, será considerado
puro, como também o será quem matar algum salteador em defesa de seus
haveres. Se alguém violar mulher livre ou menino, poderá ser morto
impunemente pela vítima do atentado, ou pelo pai desta, seus irmãos ou
filhos. Se o marido surpreender alguém no ato de violar sua mulher legítima
e matar o agressor, ficará puro em face da lei. Quem matar outra pessoa em
defesa do próprio pai, que se achasse em perigo de vida sem haver
cometido nenhuma ação ímpia, ou a mãe ou os filhos ou os irmãos ou a mãe
de seus filhos, ficará limpo de qualquer culpa.

XIII — Tais são as leis que se aplicam à cultura e à educação da alma,


educação que deixa digna de viver a vida de quem a recebe, e cuja falta
produz precisamente o efeito contrário, e também às relativas aos casos
de morte violenta. Já nos manifestamos a respeito da alimentação e da
educação do corpo. Na mesma ordem de idéias, vamos tratar dos atos de
violência recíproca, voluntários ou involuntários, procurando especificar, na
medida do possível, sua natureza e número, e a punição cabível em cada
caso. Do mesmo modo que as precedentes, me parece, também terão estas
leis sua justificativa.
Até mesmo os mais bisonhos estudiosos de leis classificariam em segundo
lugar, logo depois dos casos de morte, os ferimentos e as mutilações. Como
fizemos com os homicídios, distinguiremos, também, várias espécies de
ferimentos: os involuntários, os ocasionados por cólera ou medo, e todos os
que são produtos de intento e premeditação. Observação oportuna que
deve preceder a essa parte da legislação, é que as leis são necessárias aos
homens e que estes precisam viver de acordo com elas, sem o que em nada
se diferençariam dos animais selvagens. E a razão é que não há natureza
humana capaz de saber por si mesma o que é útil ao homem para viver em
sociedade, e se o soubesse, suficientemente dotada para decidir-se a pô-lo
em prática. Inicialmente, é difícil reconhecer que a verdadeira arte política
só visa aos interesses gerais, nunca aos particulares — o bem geral une as
cidades, o particular as divide — e que só é de vantagem para o bem
comum, e o particular para ambos, ser aquele modelarmente administrado,
não o particular. Depois, ainda mesmo que um grande sabedor de sua arte
chegasse à conclusão de que, por natureza, tudo se passa, realmente, desse
modo, e mais para diante viesse a dirigir a vida com poderes absolutos e
sem prestar contas a ninguém, não lhe seria possível manter-se fiel a esse
princípio e durante todo o tempo dedicar-se em promover os interesses
da comunidade, a quedaria precedência irrestrita sobre os particulares. O
contrário disso é o que se verifica: sua natureza mortal o levaria sempre a
querer mais que os outros e a só ocupar-se com seus interesses pessoais, por
fugir irracionalmente da dor e procurar o prazer, aos quais emprestaria
muito maior importância do que ao justo e ao melhor, e gerando trevas em
si próprio, acabaria enchendo-se, e enchendo a cidade, de toda espécie de
infortúnios. Se porventura em qualquer tempo nascesse algum homem
dotado, pela graça divina, de natureza capaz de compreender o alcance de
tais princípios, não haveria necessidade de leis para dirigi-lo, porque não há
leis nem instituições superiores ao conhecimento, pois é contrário â ordem
divina ficar a mente escrava ou na dependência do que quer que seja, visto
haver sido criada para mandar, no caso de ser, por natureza,
verdadeiramente livre. Mas isso é o que não ocorre hoje em parte alguma, a
não ser em proporção muito reduzida. Daí, precisarmos lançar mão do que
vem em segundo lugar, o decreto ou a lei que olha e observa muita coisa,
sem que possa atender a tudo.
São essas as reflexões que o tema nos sugere. Tratemos, agora, de fixar as
penas ou multas a que fica sujeito quem ferir ou prejudicar de qualquer
modo outra pessoa. Com todo o direito, em cada caso concreto poderia
alguém formular-se a seguinte objeção: A que lesões te referes, quem é o
ferido e como e quando se deu semelhante ocorrência? Há milhares de
casos dessa natureza, a qual mais diferente. É tão impossível esperar
decisão judicial para todas as infrações da lei, como não recorrer â justiça
em nenhuma. Mas cada queixa implica uma circunstância que compete aos
juízes elucidar se o fato realmente ocorreu ou não. Quanto à idéia de eximi-
los do trabalho de determinar a pena a ser imposta ao autor de qualquer
malfeitoria e nós mesmos legislarmos em todas as ocorrências, grandes ou
pequenas, é, sem dúvida, inexequível.

Clínias — Depois disso, que nos compete fazer?

O Ateniense — O seguinte: algumas ocorrências serão encaminhadas aos


tribunais, outras não, cabendo-nos a tarefa de legislar para cada caso
concreto.

Clínias — E quais serão os casos em que precisaremos legislar, e quais os


que dependem dos tribunais?

XIV — O Ateniense — Depois de tudo o que dissemos, a mais acertada


observação é que nas cidades em que os tribunais carecem de prestígio e de
voz, por ocultarem suas opiniões e só julgarem pelo sistema do voto
secreto, ou, pior ainda, se em vez de calarem, se manifestam
tumultuariamente, à maneira do que se observa nos teatros, em que os
aplausos ou as censuras são feitos no meio da maior algazarra, com a crítica
sucessiva dos oradores, as conseqüências são para a cidade de todo o ponto
lastimáveis. Não é das melhores coisas ser-se obrigado por alguma
necessidade a legislar para tribunais desse tipo; mas, em semelhante
contingência só se deve deixar a seu cargo a decisão dos
casos insignificantes e, no mais, redigir leis com a maior exatidão possível,
na hipótese de termos de promulgar uma constituição nos moldes indicados.
Mas, nas cidades em que os tribunais são sabiamente organizados e os
futuros juízes foram educados para essa função e se submeteram a provas
rigorosíssimas, é certo, justo e belo confiar-lhes a decisão da maioria dos
casos e, uma vez reconhecida a culpa dos indiciados, fixar a pena que
devem cumprir ou a multa a pagar. No que nos diz respeito, ninguém
poderá censurar-nos por não termos provido os juízes de leis específicas
para os casos mais freqüentes e importantes, em que saberão orientar-se até
mesmo juízes de formação menos aprimorada, com determinarem em cada
infração a pena adequada ao dano ou à ação dolosa. Mas, como acreditamos
que os cidadãos para os quais redigimos leis não se revelarão absolutamente
como os mais incapazes de julgar ocorrências essa natureza, deixamos a seu
critério a maior parte dos casos. Todavia, conforme já dissemos mais
de uma vez e o pusemos em prática ao redigir as leis precedentes,
apresentando aos juízes esquemas e relações de castigos à guisa de
modelos, para que não se afastassem da justiça, método que nos pareceu
excelente: o mesmo faremos agora, no início de nossa faina legislativa.

A lei relativa a ferimentos será redigida nos seguintes termos: Se alguém


premeditou matar um amigo — excluídos os casos em que a lei o admite —
porém não o conseguiu e apenas lhe causou ferimento, não é digno de
compaixão quem fere deliberadamente outra pessoa, nem devemos ter
escrúpulos em processá-lo por crime de morte; é como se houvesse
conseguido seu intento. Mas, por consideração à sorte, que não lhe foi
de todo adversa, e. ao demônio que se apiedou tanto dele como do ferido,
livrando este de uma lesão mortal, e o outro de um ato execrável e da maior
desgraça: em reverência ao demônio, como disse, e para não contrariá-lo,
deixaremos com vida o autor do ferimento, mas o condenaremos a exílio
perpétuo na cidade mais próxima, sem privá-lo do gozo de todos os seus
bens. Porém se houve prejuízo para a vítima, esta será indenizada de acordo
com o que estabelece o tribunal instituído para julgar a causa e formado
pelos mesmos juízes que teriam de julgar o criminoso, caso o agredido
viesse a morrer dos ferimentos.

Se o filho ferir os pais com premeditação, ou um escravo a seu senhor, a


pena será de morte. Igual pena se aplicará ao irmão que ferir o irmão, ou à
irmã que ferir a irmã; sendo positivada premeditação, o castigo será a
morte. Se a mulher ferir o marido com a intenção de matá-lo, ou o marido â
sua mulher, serão exilados para sempre. Quanto aos bens, na hipótese de
terem filhos ou filhas menores, serão confiados a tutores, que cuidarão dos
meninos como se fossem órfãos. Se os filhos forem maiores, serão
obrigados a sustentar os exilados, porém ficarão de posse de seus bens. Se o
indivíduo a quem acontecer semelhante calamidade não tiver filhos, seus
parentes de ambos os lados, por parte de pai e mãe, até aos filhos dos
primos do exilado, se reunirão com os guardas das leis e os sacerdotes
para deliberar e instituir um herdeiro na casa do banido, uma das cinco mil
e quarenta residências, devendo considerar em suas confabulações que
nenhuma dessas cinco mil e quarenta casas pertence mais ao morador e
a toda sua geração do que à cidade, tanto a título público como particular. A
cidade precisa conservar suas casas, tanto quanto possível, em condições
prósperas e eminentemente santas. Assim, quando uma dessas moradias
tiver a infelicidade de ficar profanada, acrescida da circunstância de não
deixar filhos seu proprietário, por ser solteirão, ou mesmo casado porém
sem prole, e ele for condenado por crime de tentativa de morte ou qualquer
outra infração contra os deuses ou os cidadãos, para os quais, em termos
claros, a lei aplica a pena de morte, ou na hipótese de não ter filhos e
ser condenado a exílio perpétuo, importa, desde logo, purificar a casa e
afastar a maldição por meio de conjuros previstos na lei; de seguida,
conforme agora mesmo o declaramos, os parentes, de combinação com os
guardas das leis, procurarão em toda a cidade a família mais feliz e que
mais se distinga pela virtude e também se caracterize pelo maior número de
filhos. Então, um membro dessa família será adotado como filho pelo
pai do morto e por seus ascendentes próximos, e em sinal de bom augúrio
lhe darão o nome de pai de guarda do lar, propagador da raça e ministro das
coisas santas e sagradas, com votos para que venha a ser mais feliz do que
seu pai adotivo. Com todos esses rogos, o instituirão herdeiro da casa,
segundo a lei, deixando o culpado jazer sem herança, sempre que atingido
por essa calamidade.

XV — Nem em todas as coisas, me parece, os limites se tocam; por vezes,


há uma faixa fronteiriça que, confinando, de um lado e de outro, com
ambas, ocupa o lugar intermédio. É o que se dá, conforme dissemos, com os
crimes voluntários e os involuntários praticados sob a influência da cólera.
A esse modo, sendo produzidos ferimentos num momento de cólera, se o
ofensor for reconhecido como culpado, pagará o prejuízo em dobro se se
tratar de ferimento curável, ou o quádruplo, se for incurável. Sendo curável,
mas resultar deformidade de causar constrangimento à vítima, pagará o
triplo. Se o ferimento não causar dano apenas à vítima mas também â
cidade, por impossibilitar o ferido de defendê-la dos ataques inimigos, além
das penas mencionadas pagará o agressor da seguinte maneira o prejuízo
causado à cidade: além do serviço que lhe compete fazer nas campanhas
militares, incumbir-se-á também do que tocaria ao cidadão que ele
incapacitou para o seu, e ocupará o lugar deste enquanto durar a expedição.
Se o não fizer, qualquer pessoa poderá processá-lo, de acordo com a lei, por
eximir-se do serviço militar. A importância da multa a pagar, se dupla, tri-

pla ou quádrupla será fixada pelos juízes que o condenarem.

Se nas condições indicadas o agressor e a vítima forem membros da mesma


família, os pais e os parentes próximos, homens e mulheres, até os filhos
dos primos se reunirão para julgar o agressor, deixando aos cuidados dos
pais legítimos a avaliação da pena. Se a avaliação for contestada,
prevalecerá a opinião dos parentes do lado paterno, e se estes também não
chegarem a acordo, remeterão o caso para os guardas das leis. Os
julgadores nos processos por ferimentos causados nos pais por seus
próprios filhos terão de ter mais de sessenta anos, além de descendentes
legítimos, não filhos adotivos. Reconhecida a culpa do agressor, decidirão
se deve morrer ou se caberá decretar pena mais grave ou pouco menor.
Nenhum parente do agressor poderá julgá-lo, ainda mesmo que tenha a
idade exigida por lei.

Se num rompante de cólera algum escravo ferir um cidadão livre, seu dono
o entregará ao ferido para fazer com ele o que quiser. Se não o entregar,
responsabilizar-se-á pela indenização. Se se levantar a questão de que tudo
não passava de combinação entre o escravo e o ferido, apresente sua queixa
em juízo. Vindo a perder, pagará o triplo da indenização; no caso de ganhar,
poderá processar o que se conluiou com seu escravo, por haver tentado
apoderar-se deste.

Quem ferir involuntariamente outra pessoa, pagará apenas o dano; nenhum


juiz tem poder sobre o caso. Quanto aos julgadores, serão os mesmos
designados para os processos de ferimentos produzidos nos pais por seus
descendentes, os quais avaliarão o dano.

XVI — Até agora só estudamos casos de violência, como é também


violência todo gênero de maus tratos.
A esse respeito é preciso que todos, homens, mulheres e crianças tenham
sempre viva a idéia de que tanto os deuses como os homens zelosos de sua
segurança e bem-estar respeitam muito mais a velhice do que a mocidade;
por isso mesmo, não há espetáculo mais degradante e abominável aos
deuses do que ver numa cidade algum velho maltratado por moços; o
inverso é que seria admissível: suportar o moço com paciência os efeitos da
cólera do velho, com o que amealhará reverência para si mesmo na velhice.
Legislemos, pois, da seguinte maneira. Que todos honrem, entre nós, por
atos e por palavras, as pessoas mais velhas, tratando com a
maior consideração e carinho homens e mulheres que tiverem mais de vinte
anos do que eles, como se fossem seu próprio pai e sua própria mãe, e, por
respeito às divindades que presidem ao nascimento, não toquem em quem o
pudesse ter gerado ou dado à luz. Da mesma maneira devem comportar-se
com relação aos estrangeiros, quer residam entre nós desde muito tempo,
quer tenham chegado de pouco. Não se atrevam a castigá-los fisicamente,
não os agredindo nem em defesa própria. Se achar que precisa de correção
o estrangeiro insolente que se atreveu a machucá-lo, detenha-o e leve-o
ao tribunal dos astínomos, mas abstenha-se de bater-lhe, para nunca lhe
fornecer pretexto de agredir algum nativo. Apoderando-se dele, os
astínomos o interrogarão com a reverência devida à divindade protetora dos
estrangeiros, e se acharem que ele bateu injustamente no nativo, aplicar-lhe-
ão tantas chibatadas quantas contusões ele provocou na vítima, pondo
termo, assim, ao seu atrevimento. Se o estrangeiro for inocente, depois de
ameaçar e censurar quem o acusou, despedirão a ambos.

Se alguém atacar uma pessoa de idade igual à sua, ou mais idosa porém sem
filhos, ou um velho agredir outro velho, ou um moço a outro moço, cada
um se defenda naturalmente, sem fazer uso de armas, apenas com o
emprego das mãos. O cidadão de mais de quarenta anos que brigar com
outro, seja como atacante, seja para defender-se, será acoimado de
grosseiro, mal educado e de natureza servil, pois quem assim procede só
merece mesmo esse castigo ignominioso.

Quem seguir docilmente essa orientação, revelar-se-á fácil de comandar;


mas quem se mostrar rebelde e não der a devida atenção a nosso preâmbulo,
resigne-se a aceitar a seguinte lei. Se um indivíduo agredir uma pessoa mais
velha do que ele de vinte anos ou mais, quem quer que assista ao fato terá
obrigação de apartá-los, se não for da mesma idade ou mais moço que
ambos, sob pena de ser declarado cobarde perante a lei. Sendo da mesma
idade ou mais novo do que o agredido, defenda-o como se ele fosse seu
irmão ou pai ou antepassado em grau elevado. Ademais, seja citado
em justiça, como agressor, conforme declarei, o que se atreveu a bater numa
pessoa de mais idade, e vindo a ser condenado, ficará preso pelo menos um
ano.

Se um estrangeiro ou meteco bater em alguém mais idoso do que ele de


vinte anos para cima, ficará sujeito às mesmas leis aplicadas a quem faltar
ao socorro devido ao transeunte em caso de agressão, e vindo a perder o
processo, se se tratar de estrangeiro não domiciliado, cumprirá a pena de
dois anos de prisão; o meteco desobediente às leis ficará detido por três
anos, dado que o tribunal não seja de parecer que ele merece pena mais
longa. Será também punido quem presenciar uma dessas ocorrências e não
prestar socorro à vítima, conforme exige a lei; se pertencer à primeira
classe, pagará uma mina de multa; cinquenta dracmas, se for da segunda;
trinta, da terceira, e vinte da quarta. 0 tribunal para julgar os casos dessa
natureza será composto de estrategos, taxiarcos, filarcos e hiparcos.

XVII — As leis, como parece, em parte foram feitas para ensinar aos
homens de bem como devem comportar-se para viverem em harmonia uns
com os outros, em parte para os que não receberam educação e cujo caráter
naturalmente inflexível nada pode abrandar para impedi-los de cair na
maldade extrema. Para esses é que se dirigem os discursos que vêm a
seguir, como é por causa deles que o legislador se vê obrigado a promulgar
suas leis, sempre com o desejo de que não venham a ser aplicadas.

Se alguém ousar tocar no pai ou na mãe ou em qualquer antepassado mais


longínquo, maltratando-o e até chegando a vias de fato, sem temer a cólera
dos deuses súperos nem os castigos dos de baixo, a que as lendas se
referem, com menoscabo de antigas tradições de geral aceitação, como se
conhecesse o que absolutamente não conhece, e assim violar a lei: para
conter esses tais será preciso lançar mão de recursos extremos. A

morte não é o mais duro castigo, e os trabalhos, conforme dizem, que o


aguardam no Hades a ultrapassam de muito; mas muito embora sejam o que
há de mais verídico, são de efeito nulo em semelhantes almas, para desviá-
las do mal. De outra forma, ninguém jamais mataria a própria mãe nem
ousaria cometer a impiedade de agredir um dos seus genitores. Em tais
casos, é preciso que a punição aplicada na presente vida em nada fique
aquém, se possível, em relação às aplicadas no Hades.

Feitas essas considerações, formulemos as seguintes leis. Quem quer que


bata no pai ou na mãe ou nos pais e nas mães destes, sem estar atacado de
loucura, inicialmente, como nos casos anteriores, quem presenciar o fato
fica na obrigação de defender a vítima; o meteco ou estrangeiro que assim
proceder ocupará nos jogos públicos um lugar da frente; se o não fizer,
será banido para sempre do território. O estrangeiro sem domicílio fixo será
elogiado se socorrer as vítimas, ou censurado na hipótese contrária. O
escravo que prestar socorro será posto em liberdade; não o fazendo,
receberá cem açoites por ordem dos agorânomos, se o fato ocorreu na
ágora; mas se foi isso noutro ponto da cidade, fora do mercado, o astínomo
de serviço se encarregará do castigo, e se foi no campo, o chefe dos
agrônomos. Se o transeunte for natural do lugar, criança, homem feito ou
mulher, deve procurar conter o agressor com chamá-lo de ímpio; não o
fazendo, incorrerá, segundo a lei, na maldição de Zeus protetor da família
e dos direitos paternos.

Se alguém for processado por maltratar os pais, será banido para sempre da
cidade; não vindo a retirar-se, os agrônomos o castigarão com açoites ou da
maneira que quiserem; se voltar à cidade, será punido de morte. O homem
livre que comer ou beber em sua companhia, ou tiver com ele qualquer
relações dessa natureza-, ou que, tendo-o encontrado, houvesse
apenas tocado nele, não poderá ingressar em nenhum templo nem na praça
pública nem mesmo na cidade sem purificar-se, na convicção de que com
isso passou a compartilhar da sorte nefasta dó criminoso. Se não obedecer á

lei e manchar indevidamente os templos e a cidade, o magistrado que o vir e


logo logo não o chamar a juízo, quando tiver de prestar contas de sua
atuação no cargo assumirá a responsabilidade de uma das maiores
faltas concebíveis.

Se algum escravo bater num homem livre, estrangeiro ou cidadão, qualquer


transeunte sairá em socorro da vítima ou pagará a multa estitulada para sua
classe. As pessoas que acorrerem a favor da vítima, com a sua ajuda
amarrarão o escravo e lho entregarão. O cidadão o receberá, pô-lo-á a ferros
e lhe dará quantos açoites quiser, porém sem prejudicar o dono do escravo,
a quem sem ele será depois entregue, para os efeitos legais. A lei é a
seguinte: Todo escravo que bater num homem livre sem ser por ordem do
magistrado será amarrado e entregue ao dono pelo agredido, o qual não lhe
retirará as cordas enquanto ele não convencer a vítima de que merece viver
solto. Esse regulamento é valido para as mulheres nas mesmas condições,
quer briguem entre elas mesmas, quer batam nos homens, quer apanhem
deles.
LEIS
Livro X

O Ateniense — Depois das lesões corporais, redijamos uma única lei que
abranja todos os atos de violência. Ninguém tire nem carregue nada alheio
nem use nenhum objeto do vizinho sem consentimento do dono. É em
conseqüência de infrações desse tipo que existiram, existem e existirão os
males antes mencionados. Das outras, as mais graves são a incontinência e
a arrogância dos moços; em ponto maior, as que atacam as coisas sagradas,
e, fora de toda proporção, quando atingem a coisa pública ou sagrada,
alguma parte das tribos ou qualquer outro aspecto da comunidade.
Em segundo lugar, quanto â gravidade, vêm as ofensas contra o culto
particular e os túmulos; em terceiro, afora os casos mencionados antes, as
violências contra os pais. O quarto gênero de injúrias é quando alguém,
sem consentimento prévio nem consideração à dignidade do cargo dos
magistrados, se apropria ou se utiliza de alguma coisa que lhes pertença; o
quinto, toda violação dos direitos de qualquer cidadão, que o obrigue a
recorrer à justiça. Será preciso criar uma lei comum para cada uma dessas
modalidades de violência.

Já falamos sumariamente dos roubos sacrílegos, quer sejam praticados a


ocultas, quer a descoberto, e das respectivas penas. Mas, antes de tratar das
penas que atingem os que, de algum modo, ultrajaram os deuses, por atos
ou por palavras, teremos que apresentar uma exposição preliminar. Eis
nosso preâmbulo. Quem acredita, em consonância com as leis, que os
deuses existem, em hipótese alguma cometerá de intento qualquer ação
ímpia, nem soltará da boca expressões blasfemas, o que só poderia fazer
numa das seguintes contingências: ou por não acreditar, conforme disse,
na existência dos deuses; ou, e será a segunda hipótese, embora acredite que
existam, acham que eles não interferem nos negócios humanos, ou, ainda,
que são fáceis de dobrar com sacrifícios e de conquistar com súplicas.

Clínias — Como proceder, então, com essa gente, e como lhes falaremos?
O Ateniense — Ora, meu caro! Comecemos por escutar o meu vaticínio
acerca do que eles nos diriam em tom de galhofa e desprezo.

Clínias — Como será?

O Ateniense — Talvez motejassem nos seguintes termos: Forasteiros de


Atenas, da Lacedemônia e de Cnosso, é muito certo o que afirmais. De
feito, entre nós há muita gente que não acredita, absolutamente, na
existência dos deuses, enquanto outros há que os admitem tal como os
concebeis. Exigimos, então, que, antes de nos ameaçardes asperamente,
procureis primeiro persuadir-nos, como fizestes com relação às
leis, demonstrando com argumentos concludentes que os deuses realmente
existem e são bons demais para se deixarem conquistar com presentes e de
se apartarem do caminho da justiça. Como já nos habituamos a ouvir essa
opinião e outras do mesmo tipo de pessoas tidas geralmente como capazes:
poetas, oradores, adivinhos, sacerdotes e uma infinidade mais, a maior
parte de nossa gente não se decide a não fazer o que não for justo, mas
apenas a remediar o mal, depois de praticado. O que esperamos de
legisladores que proclamam preferir os meios brandos aos violentos, é
começarem pelo emprego da persuasão e nos falarem da existência dos
deuses, se não com maior eloqüência do que os outros, com maior dose de
verdade. Talvez com isso nos convençais. Se achardes razoável nosso
pedido, experimentai satisfazê-lo dentro dos termos apresentados.

Clínias — Não te parece fácil, forasteiro, aduzir provas verdadeiras de que


os deuses existem?

O Ateniense — De que modo?

Clínias — Inicialmente, temos a terra, o sol, os astros e o mundo em


universal, e a bela seqüência das estações, distribuídas em meses e anos, e
bem assim o fato de acreditarem helenos e bárbaros na existência dos
deuses.

O Ateniense — Tenho medo, meus bem-aventurados amigos, da


irreverência dos maus. Medo, sim, porque não posso dizer que seja
vergonha. É o que nunca farei. Ignorais a razão de discordarem de nós,
imaginando que eles são arrastados para a impiedade pelo simples fato de
serem incapazes de dominar os prazeres e os apetites.

Clínias — E a não ser essa causa, forasteiro, qual mais poderá ser? .

O Ateniense — Uma que desconheceis, por viverdes fora da Hélade.

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Ignorância extremamente nociva, que passa por grande


sabedoria.

Clínias — Como assim?

II — O Ateniense — Entre nós há discursos fixados na escrita, a respeito


dos deuses, que não medram entre vós outros, segundo creio, em virtude da
excelência de vossa constituição, redigidos em versos de certa medida e
também em prosa. Os mais antigos nos dizem que o céu e o resto da
natureza nasceram primeiro; de seguida, e não muito depois desse começo,
passam a explicar o nascimento dos deuses e como se comportavam entre
eles. Que, sob vários aspectos, esses escritos possam ser agradáveis de
ouvir, ou não tanto, é o que não se pode censurar em autores tão antigos;
mas, no que entende com o tratamento e o respeito devidos aos parentes,
jamais me decidiria a aplaudi-los nem a dizer que possam ser úteis ou que
sejam verídicos. Deixemos, pois, de lado essas antigualhas e as
entreguemos à sua própria sorte; qualifiquemo-las como for mais agradável
aos deuses e atenhamo-nos aos escritos mais modernos, tão sábios, todos
eles, para denunciar a maneira por que engendram malefícios. Os discursos
deles todos atuam do seguinte modo. Quando um de nós, eu e tu, aduzimos
provas da existência dos deuses e indicamos o sol, a lua, os astros e a terra
como sendo outras tantas divindades e seres divinos, as pessoas
imbuídas das doutrinas de tais sábios nos objetam que tudo isso não passa
de terra e pedras, sem nenhuma possibilidade de se interessarem pelos
negócios humanos, o que fazem com expressões bastante fortes para
persuadir os ouvintes.

Clínias — A objeção que nos expuseste, forasteiro.


é difícil de contestar, mesmo que não estivesse isolada; mas a tarefa se torna
dificílima por se terem multiplicado tanto.

O Ateniense — E agora? Que diremos? Por onde começar? Defender-nos-


emos como se tivéssemos sido acusado por alguém perante um tribunal de
ímpios, de pretender com nossa legislação provar o absurdo de que os
deuses existem? Ou os deixaremos de lado e voltamos para nossas leis?
Devidamente desenvolvido, nosso discurso não ficaria nada curto, se
quiséssemos demonstrar com provas convincentes a esses
indivíduos sedentos de impiedade a verdade sobre que eles concitam a falar,
levando-se a temer os deuses e a aborrecer-se do que só nos merece
desprezo, para voltarmos, finalmente, a nossas leis.

Clínias — Neste pouquinho de tempo, forasteiro, já tivemos bastas


oportunidades de declarar que não se pode exaltar a fala curta em
detrimento da exposição circunstanciada. Como diz o provérbio, ninguém
nos persegue rente aos calcanhares. Sobre censurável, fora ridículo declarar
que preferimos o mais curto ao melhor. Importa, acima de tudo, seja como
for, infundir força persuasória na afirmativa de que os deuses existem e
também são bons e acatam muito mais a justiça do que os homens. Seria
esse o mais belo e excelente prelúdio para nossas leis. Sem impaciência,
pois, nem precipitação, desenvolvamos nosso tema com a força suasoria
condizente com tais assunto, sem nada omitir e da melhor maneira possível.

III — O Ateniense — Tuas palavras se me afiguram um convite à oração,


tal o interesse que revelas. Já não é possível diferir por mais tempo o
assunto. Mas dize-me: como pode um manter-se calmo, quando tem
de demonstrar que os deuses existem? Não é possível deixar de irritar-se e
de odiar os que sempre deram e continuam a dar motivo para semelhantes
discursos, por não acreditarem nos contos que desde a primeira infância,
quando ainda mamavam, ouviam da boca das amas e que lhes enfeitiçavam
as orelhas, ora em tom faceto ora com toda a seriedade; que ouviam,
também, nas orações durante os sacrifícios e em representações que se lhes
relacionam, delícia para os olhos e as orelhas

dos jovens durante aquelas cerimônias; como também viram seus pais
oferecer com o maior respeito sacrifícios às divindades, em benefício
próprio e dos filhos, dirigindo-se aos deuses em suas orações e súplicas,
na persuasão plena de que eles existem; ademais, ouviram e viram com os
próprios olhos que tanto os helenos como os bárbaros se prosternam e
adoram os deuses ao nascimento do sol e da lua, e quando baixam no
ocaso, assim nos momentos de felicidade como nas conjunturas dolorosas,
não como se os deuses não existissem, mas absolutamente convencidos de
sua existência e sem aceitarem nem de longe a idéia da não existência dos
deuses. Com desprezo de todas essas provas e sem poderem apresentar
nenhum argumento em contrário, à maneira de indivíduos de escassa
inteligência, agora nos obrigam a falar como falamos. Sim, como fora
possível usar de brandura com essa gente, para repreendê-los e, ao mesmo
tempo, doutriná-los acerca da existência dos deuses? Mas é preciso tentar;
não se concebe que venham alguns a perder o juízo por estarem ávidos de
prazeres, e outros por se irritarem contra eles. Assim, dirijamos nosso
preâmbulo imparcial aos que revelam espírito tão estragado e lhes falemos
calmamente, com inteiro domínio sobre nós mesmos, como se
conversássemos com qualquer deles: Filho, ainda és muito moço; com o
avançar do tempo, vai acontecer que muitas de tuas opiniões se mudem
precisamente no oposto do que hoje afirmas. Espera, pois, até lá, para
julgares essas questões de tamanha gravidade. Sim, a mais importante de
todas, que ora se te afigura tão mesquinha, é o conceito que fizermos dos
deuses, pois disso depende vivermos bem ou vivermos mal. De início,
permito-me uma observação que formulo sem medo de passar
por mentiroso, e que me parece digna de nota: é que nem tu nem teus
amigos são os primeiros a defender tal opinião acerca dos deuses, e que
sempre houve gente, em maior ou menor número, atacados dessa mesma
moléstia. O que posso asseverar-te, por haver conhecido muitos tipos dessa
espécie, é que nenhum dos que na mocidade afirmavam que os deuses não
existem, chegou até à velhice com a mesma maneira de pensar. O que se
verifica é que uns tantos — e não serão muitos, para dizer a verdade — se
mantêm fiéis aos dois pontos seguintes: que os deuses existem, de fato, mas
não se ocupam absolutamente com os negócios humanos, e também que,
embora se ocupem, são fáceis de dobrar com sacrifícios e súplicas. Para te
esclareceres, tanto quanto possível, acerca dessa questão, no caso de me
ouvires, precisarás estudar muito, ainda, a fim de decidir se as coisas se
passam assim mesmo ou de outro modo, para o que te aconselharás com
muita gente, mas principalmente com o legislador. Porém até lá não te
permitas nenhum ato de impiedade contra os deuses. Quem redige leis para
teu uso é que deverá ensinar-te, agora e no futuro, o que há de verdade em
tudo isso.

Clínias — Até aqui, forasteiro, falaste admiravelmente bem.

O Ateniense — Sem dúvida, Megilo e Clínias; mas, sem nos apercebermos


viemos dar numa doutrina admirável.

Clínias — A que doutrina te referes?

O Ateniense — A que na opinião da maioria das pessoas é a mais


engenhosa de todas.

Clínias — Sê mais claro.

IV — O Ateniense — Há quem diga que tudo o que existiu, existe ou virá a


existir ou é produto da natureza ou da arte ou do simples acaso.

Clínias — E não estará certo?

O Ateniense — Presume-se que os sábios falem a verdade; acompanhemos-


lhes o rastro, para sabermos o que pensam os defensores de semelhante
tese.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Ao que parece, segundo afirmam, as maiores e mais belas


coisas são produto da natureza e do acaso, e as insignificantes, da arte, a
qual, recebendo da natureza as obras grandes e primaciais, amolda e fabrica
as secundárias que, de modo geral, designamos como artificiais.

Clínias — De que forma?

O Ateniense — Vou ser mais claro em minha exposição. O que eles dizem é
que o fogo, a água, a terra e o ar são produtos da natureza e do acaso, sem a
me-nor participação da arte, e que desses primeiros elementos surgiram
posteriormente todos os corpos, a terra, o sol, a lua, os astros, totalmente
privados de vida. Levados casualmente pela força que lhes é própria,
vieram esses elementos a encontrar-se e a acomodar-se de acordo com
certas afinidades, o quente com o frio, o seco com o úmido, o mole com o
duro, e as demais combinações de contrários que se formaram em
decorrência inevitável do acaso. Assim e dessa maneira foi que se formou
todo o céu e quanto nele se contém, os animais e as plantas, já que as
estações haviam nascido daquela combinação, sem interferência, segundo
afirmam, da inteligência ou de alguma divindade ou da arte, conforme o
dissemos, mas pela natureza e pelo acaso. A arte surgiu depois, como
produto desses dois fatores, invenção do homem mortal, tão transitória
como eles, capaz de criar certos jogos que não participam da verdade em
grau muito elevado e não passam de simulacros aparentados entre si, como
os produzidos pela música, a pintura e as demais artes que se lhes
relacionam. As artes que produzem qualquer coisa sério são as que
associam sua virtude com a da natureza, como a medicina, a agricultura e a
ginástica. A política, conforme dizem, só em grau mínimo participa da
natureza; é arte em sua maior porção, onde nasce que toda legislação não é
obra da natureza, porém da arte, razão por que suas proposições carecem
totalmente da verdade.

Clínias — Como assim?

O Ateniense — Para começar, meu caro, o que eles dizem é que os deuses
não existem por natureza, mas em virtude da arte e da certas leis,
diferençando-se uns dos outros conforme o lugar e as convenções de que
partiram os diferentes legisladores. Como também afirmam que uma coisa é
o belo conforme o seja por natureza, e outra, segundo a lei, e que não existe
absolutamente justiça natural, não cessando os homens de divergir a seu
respeito e de modificá-la de contínuo, sendo válida por algum tempo cada
nova formulação, por força da arte e da lei, não por ser produto da natureza.

Eis a doutrina, meus caros, que nossos sábios impingem aos moços, em
prosa e verso, afirmando ser mais do que justo tudo o que é imposto pela
força vitoriosa.

Essa é a fonte da impiedade em que incidem os jovens que se negam a


acreditar na existência dos deuses, de acordo com os ensinamentos da lei;
essa, também, a origem das sedições, por adotarem muitos uma norma de
vida ditada pela natureza, e que, em verdade, consiste em dominar os
outros, em vez de servi-los, conforme a lei prescreve.
Clínias — Que doutrina nos expuseste, forasteiro, e que peste ataca os
moços a esse ponto, conforme disseste, na vida pública e até mesmo no
interior dos lares?

O Ateniense — Só dizes a verdade, Clínias. Como achas, então, que o


legislador deva proceder, se essa situação já vem de longe? Apresentar-se
na cidade e ameaçar publicamente os homens que não crêem na existência
dos deuses e não fazem deles a mesma idéia que a lei? E valera' o mesmo a
respeito do belo e do justo? E com relação ás coisas importantes e a quanto
se relaciona com a virtude e o vício, deverão todos pautar os atos e os
pensamentos conforme as prescrições do legislador? E dos que não se
submeterem às leis, alguns serão condenados à morte, outros à pena de
açoites ou de prisão, uns tantos ficarão privados dos direitos cívicos, e mais
alguns, reduzidos à indigência ou condenados ao exílio? Quem promulga
leis para os outros, evita empregar palavras de persuasão, para amansar,
quanto possível, as almas?

Clínias — De forma alguma, forasteiro; se nessas coisas couber uma


partícula mínima de persuasão, não deverá poupar-se o legislador, por
menor que seja seu merecimento. Muito pelo contrário: precisará, como
se diz, recorrer a todos os tons, no sentido de reforçar a velha doutrina de
que os deuses existem e tudo o mais que expuseste agora mesmo e no de
ajudar a lei e a arte, com demonstrar que ambos provêm da natureza ou do
que não fica atrás da natureza, visto serem partos da inteligência, segundo a
doutrina certa que pareces defender e com a qual eu me declaro plenamente
de acordo.

O Ateniense — Como, prestantíssimo Clínias!

Uma demonstração tão difícil de acompanhar não a torna imprópria para as


multidões, além de ser imensamente longa?

Clínias — Ora essa, forasteiro! Ouvimos com paciência as divagações que


nós mesmos fizemos a respeito da embriaguez e da música, e não vamos
agüentar o que dissermos dos deuses e de quanto com eles se relaciona?
Não se pode conceber melhor reforço para qualquer legislação inteligente,
porque assim, fixadas na escrita, as prescrições legais poderão justificar-se
em qualquer tempo, visto permanecerem imutáveis. Não há motivo para
temores vãos, pois mesmo que no começo sejam difíceis de acompanhar, os
espíritos mais lerdos poderão voltar a consultá-las uma e mais vezes.
Embora longas, se forem úteis, não é admissível nem piedoso deixar
alguém de prestar mão forte a semelhante doutrina, na medida de sua
capacidade.

Megilo — Quer parecer-me, forasteiro, que Clínias tem razão.

O Ateniense — Sem dúvida, Megilo! Precisamos seguir suas


recomendações. Se essas doutrinas não estivessem espalhadas, por assim
dizer, entre quase todos os homens, não haveria necessidade de defender
com argumentos a proposição de que os deuses existem. Mas agora não há
outro caminho. E a quem, primeiro, compete sair em defesa das leis mais
importantes que indivíduos perversos ameaçam destruir, senão ao próprio
legislador?

Megilo — Não há outro.

V — O Ateniense — Mas, dize-me de novo, Clínias, pois precisas cooperar


na parte da exposição do argumento: quem defende essa doutrina parece
admitir que considera o fogo, a água, a terra e o ar como os elementos
primordiais de tudo o que existe, a que dão o nome de natureza,
considerando a alma como derivada posteriormente deles. Parece, mesmo,
que em seus discursos não se limitam a insinuar semelhante conclusão, mas
a formulam claramente.

Clínias — Exato.

O Ateniense — Ora, em nome de Zeus! Com isso, não teríamos,


porventura, descoberto a fonte original da proposição insensata de quantos
até hoje se afanaram na investigação da natureza? Examina com atenção
sua doutrina; não seria pequena vantagem, se conseguíssemos demonstrar
que os autores desses discursos ímpios que servem de guia a tanta gente,
não expõem com coerência sua tese, mas por maneira absolutamente
errônea, como me parece ser o caso.

Clínias — Dizes bem; então, experimenta mostrar em que consiste o erro


deles todos.
O Ateniense — Ao que parece, vamos tratar de problemas um tanto raros.

Clínias — Nada de hesitações, forasteiro; compreendo teus escrúpulos:


receias abandonar nosso principal intento, que é legislar, com nos
afundarmos na discussão desse tema. Mas, se não houver outra maneira de
nos pôr em harmonia com a lei que admite a existência dos deuses, será
inevitável, forasteiro, espraiarmo-nos também para esse lado.

O Ateniense — Acho, então, que posso iniciar meu discurso tão pouco
familiar. A acreditarmos nas doutrinas que corromperam a alma dos ímpios,
a causa primeira da formação e da destruição de tudo o que existe não foi a
primeira a surgir, porém a última, vindo a ser a primeira a que apareceu
depois. Daí, terem errado crassamente os que trataram da verdadeira
essência dos deuses.

Clínias — Não compreendi.

O Ateniense — A alma, companheiro, quase todos parecem ignorar como


seja constituída e que virtude lhe é peculiar, máxime no que entende com
sua origem, por ser o que nasceu primeiro, antes de todos os corpos, cujas
mudanças e transformações ela dirige. Se as coisas se passam desse modo,
não será de necessidade forçosa que tudo o que for aparentado com a alma
nascesse primeiro do que o que pertence ao corpo, por ser ela mais velha do
que o corpo?

Clínias — Forçosamente.

O Ateniense — Nesse caso, a opinião, a previdência, a mente, a arte e a lei


são anteriores ao duro e ao mole, ao pesado e ao leve; e mais: os primeiros e
maiores trabalhos e ações, enquanto primeiros, pertencem à arte, ao passo
que os da natureza, e a própria natureza — o que eles erroneamente
denominam como tal — seriam posteriores e derivam da arte e da
inteligência.

Climas — E em que consiste o erro deles?

O Ateniense — Entendem por natureza a geração das primeiras coisas.


Mas, se se provar que a alma apareceu primeiro, não o fogo nem o ar, será
muito mais certo dizer-se que a alma, por haver nascido primeiro, é o que,
mais do que tudo, existe por natureza. Assim será, se conseguirmos
demonstrar que a alma é mais velha do que o corpo; de outra forma, não
haverá jeito.

Clínias — Tens razão.

O Ateniense — Declaramo-nos, então, dispostos a meter ombro a essa


empresa?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Acautelemo-nos, pois, ao máximo contra certo argumento


capcioso, para que, na idade a que chegamos não nos seduza, como sói
acontecer com os jovens e não nos cubra de ridículo quando nos deixar
sozinhos, por parecermos com essa gente que se atira a grandes
empreendimentos, porém sem capacidade de levar a bom termo nem os
mais insignificantes. Suponhamos que nós três tivéssemos que atravessar
um rio correntoso, e que eu, por ser, casualmente, o mais moço e ter
experiência de atravessar rios, vos dissesse que me competia pôr-vos em
lugar seguro e procurasse verificar se havia algum ponto vadeável. para
velhos como vós, e, depois de certificar-me desse ponto, vos chamasse para
que vos beneficiásseis da minha experiência; se não houvesse jeito de
atravessar, o perigo teria sido apenas meu. Fora uma proposta razoável. Ora,
a investigação que nos dispomos a iniciar é igualmente correntosa e, para
vossas forças, talvez, mesmo, insuperável. De medo, pois, que ela vos
atordoe e cause vertigens com suas catadupas de perguntas, inexperientes
como sois em responder, deixando-vos em situação incômoda e nada
recomendável, acho aconselhável conduzir o debate da seguinte maneira:
Começarei por dirigir perguntas a mim mesmo, enquanto vós outros me
ouvireis com toda a segurança; de seguida, passando a responder ao que eu
me perguntara, prosseguirei com a argumentação até chegarmos ao fim da
discussão a respeito da alma e demonstrarmos que a alma é anterior ao
corpo.

Clínias — Tua proposta, forasteiro, parece-nos excelente. Faze isso mesmo.


VI — O Ateniense — Então, principiemos. Se já houve hora em que
precisássemos pedir a ajuda de Deus, é justamente esta. E já que se trata de
demonstrar que eles existem, invoquemo-los com todo o fervor; agarrados
neles como a um cabo resistente, atire-mo-nos à corrente da discussão. Se
argumentassem comigo, apresentando-me as questões adiante
formuladas, creio que o mais seguro seria responder da seguinte maneira.
Forasteiro, poderia alguém perguntar; como será: tudo é imóvel e nada se
movimenta, ou tudo se passa precisamente ao contrário disso, ou, ainda,
algumas coisas se movimentam e outras são imóveis? — Umas
se movimentam, lhe diria, e outras estão em repouso. — E não é em algum
espaço que as coisas imóveis estão paradas, e as móveis em movimento? —
Sem dúvida. — Como muitas, também, se movimentam apenas num lugar,
e outras em vários lugares? — Referes-te, com isso, lhe falara, às coisas que
têm no meio a faculdade de ficar paradas e que se movimentam sem mudar
de lugar, como se dá com a circunferência dos círculos denominados fixos,
que giram em torno de si mesmos. — Exato. — Compreendemos, também,
que nessa revolução circular, o movimento que arrasta, a um só tempo,
o círculo maior e o menor se distribui entre o maior e o menor na mesma
proporção. Assim, fica sendo a fonte dessa grande maravilha imprimir ao
mesmo tempo velocidade ou lentidão aos círculos grandes e aos
pequenos, o que muita gente considera impossível. — Só dizes a verdade.
— Por corpos que se movimentam em diferentes lugares, quer parecer-me
que compreendes os que em sua translação mudam a cada momento de
posição, e que ora apresentam um único centro, como base de seu
movimento, ora muitos, pelo fato da própria rotação. Vindo a bater noutros
corpos em estado de repouso, eles se dividem, enquanto os que se
encontram por convergirem de pontos diferentes, se fundem num só corpo e
passam a formar uma composição intermédia.

— A meu parecer, tudo se passa exatamente como disseste. — Como


também aumentam quando se fundem, ou diminuem ao dividir-se, sempre
que persiste sua primitiva constituição. Vindo a perdê-la, de um jeito ou de
outro perecem. Para a geração de todas, que é preciso acontecer? É quando
seu princípio ganha o primeiro aumento e passa para a segunda forma de
transição, desta para a mais próxima e, chegando à terceira, torna-se
sensível ao que é capaz de sensação. É assim que tudo nasce, por
transformação e transposição. Cada coisa existe, realmente, enquanto
permanece; mas quando passa para outro estado, perece de uma vez. E com
isso, meus amigos, não mencionamos todos os movimentos e não
enumeramos seus gêneros, com exceção de dois?

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — Ora, meu caro, precisamente os que constituem o fulcro de


nossa discussão.

Clínias — Sê mais claro.

O Ateniense — Não partimos do estudo da alma?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Seja, pois, um deles o movimento capaz de movimentar


outra coisa, mas que não se movimenta; o que sempre move tanto a si
mesmo como a outra coisa, por composição ou divisão, aumento ou
diminuição, geração ou destruição, será a outra espécie de movimento.

Clínias — Vá que seja.

O Ateniense — Poremos em nono lugar o que não cessa de movimentar


outra coisa e de transformar-se por influências estranhas; mas, o que move a
si mesmo e a outra coisa e se adapta a todas as ações e influências,
designado como a verdadeira fonte de mutação e movimento de tudo o que
existe, diremos que é a décima modalidade de movimento.

Clínias — Perfeita mente.

O Ateniense — E agora, desses dez movimentos, a qual daremos a


primazia, por ser de todos o mais forte e de muito maior eficiência?

Clínias — Sem dúvida nenhuma, podemos afirmar que o movimento capaz


de mover a si mesmo é mil vezes superior, marchando todos os outros em
sua cola.

O Ateniense — Muito bem. Mas, dentre os que mencionamos sem muita


precisão, não haverá necessidade de deslocar um ou dois?
Clínias — Quais serão?

O Ateniense — O que pusemos em décimo lugar talvez não esteja bem


classificado.

Clínias — Por quê?

O Ateniense — Por nascimento e poder, é de razão dar-lhe o primeiro lugar;


em segundo viria o que foi absurdamente colocado no nono.

Clínias — Como assim?

VII — O Ateniense — É o seguinte. Quando, para nós, uma coisa modifica


outra, e esta uma terceira, e assim sucessivamente, haverá para tal
seqüência um primeiro motor? Mas, de que modo o que é movido por outra
coisa poderá ser a causa primeira dessas alterações? Não é possível.
Todavia, quando uma coisa que se move por si mesma altera as condições
de outra, e esta de mais uma, vindo a ficar, assim, em movimento milhares
de miríades de coisas, poderá haver outra causa para todos esses
movimentos além da mudança do que a si mesmo se movimenta?

Clínias — Ótima explicação, forçoso será concordar.

O Ateniense — Formulemos mais uma pergunta, a que nós mesmos nos


encarregaremos de responder. Se todas as coisas viessem a imobilizar-se
num só conjunto, como a maioria dessa gente tem o descoco de afirmar, em
qual delas viria a surgir o primeiro movimento? Na que se move por si
mesma, é claro. De nenhuma outra poderia receber o impulso para
modificar-se, pois nesse conjunto não se operava antes a menor
alteração. Assim, como princípio de todos os movimentos, o primeiro a
produzir-se nas coisas que estão em repouso e nas que presentemente se
movem, o princípio que a si mesmo se movimenta, é o que afirmamos,
necessariamente será a mais antiga e poderosa de tods as transformações; as
que são conseqüência de outras e, por sua vez, ocasionam novas
transformações, vêm em segundo lugar.

Clínias — Só dizes a verdade.


O Ateniense — Já que em nossa discussão chegamos até aqui, respondamos
a esta outra pergunta.

Clínias — Qual será?

O Ateniense — Se virmos esse movimento produzir-se em qualquer


substância terrena, aquosa ou ígnea, separada ou misturada, em que
condição diremos que se encontra?

Clínias — Perguntas, porventura, se podemos dizer que vive, já que ela se


movimenta por si mesma?

O Ateniense — Exato.

Clínias — Vive, como não?

O Ateniense — E agora? Quando vemos alma em alguma coisa, não se


passa exatamente o mesmo? Teremos de convir que essa coisa vive.

Clínias — Nem pode ser de outra maneira.

O Ateniense — Por Zeus! Em tudo o que existe não reconheces três coisas?

Clínias — Como assim?

O Ateniense — Uma é a essência; outra, a definição da essência, e a


terceira, seu nome. Além disso, a respeito de todos os seres podem
formular-se duas questões.

Clínias — Duas, como?

O Ateniense — Ora apresentamos o nome e pedimos a definição, ora


formulamos primeiro a definição e, a seguir, inquirimos do nome.

Clínias — Com isso, não queremos exprimir o seguinte?

O Ateniense — Que poderá ser?


Clínias — Certas coisas, e alguns números, podem ser divididos em dois.
Quando se trata de número, dizemos que é par, vindo a ser sua definição:
todo número divisível em duas partes iguais. \

O Ateniense — Certo; assim mesmo é que eu penso. Mas, não diremos a


mesma coisa tanto num caso como no outro, quando nos pedem a definição
e damos o nome, ou depois do nome damos a definição, designando a
mesma coisa de duas maneiras diferentes, pelo nome, que é par, e pela
definição: o que pode ser dividido em duas partes iguais.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — E agora: que definição corresponde ao nome de alma?


Haverá outra, a não ser a que apresentamos há pouco: o movimento capaz
de movimentar-se?

Clínias — Afirmas, então, que a definição do que todos nós denominamos


alma é o que se move a si mesmo?

O Ateniense — Foi o que eu disse. Mas, se é assim, realmente, poderemos


lastimar alguma deficiência na prova apresentada, de que a alma é idêntica
ao primeiro princípio da geração e do movimento de todos os seres
presentes, passados e futuros, bem como de seus contrários, visto ter-se ela
revelado como a causa de todas as mudanças e de todos os movimentos?

Clínias — Não; ficou demonstrado à saciedade que a alma é o que há de


mais antigo, por ser o princípio do movimento.

O Ateniense — E não será também certo dizer-se que o movimento


produzido por causas externas nalguma substância incapaz de suscitar em si
mesma qualquer espécie de movimento, deve ser classificado em segundo
lugar ou no ponto mais baixo que se queira enumerar, visto não passar de
transformações de um corpo carecente de alma?

Clínias — Exato.

O Ateniense — Exata, pois, e totaImente verdadeira, autêntica e perfeita é a


asserção de que a alma se formou antes do corpo, e que este é posterior e
secundário, sendo a alma, por natureza, feita para comandar, e o corpo para
obedecer.

Clínias — Nada mais verdadeiro.

VIII — O Ateniense — Decerto ainda nos lembramos de nosso acordo


anterior, a saber, que, uma vez provada a preexistência da alma com relação
ao corpo, tudo o que pertence à alma terá de ser mais antigo de quanto
pertencer ao corpo.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Então, costumes, caracteres, desejos, cogitações, opiniões


verdadeiras, cuidados e recordações existiram antes de largura,
comprimento, profundidade e força, visto ser a alma anterior ao corpo.

Clínias — Forçosamente.

O Ateniense — Nesse caso, não estaremos, também, obrigados a admitir


que a alma é a causa dos bens e dos males, das coisas belas e das feias, das
justas e das injustas e de todos os seus contrários, uma vez admitido que ela
é causa de tudo?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Ora, essa alma que reside em tudo o que se move e que
tudo dirige, não terá forçosamente de dirigir o céu?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Uma só alma, ou muitas? Direi em vosso lugar que são


muitas. Não é possível admitir menos de duas: a que produz o bem e a que
atua por maneira contrária.

Clínias — Falas com muito acerto.

O Ateniense — Vá que seja. Assim, tudo o que há no céu e na terra e no


mar a alma dirige por meio de seus movimentos, que se chamam: querer,
considerar, cuidar, aconselhar, opinar certo ou errado, na alegria ou no
sofrimento, na coragem, no medo, na aversão, no amor e por todos os
movimentos afins aos anteriores com eles aparentados, ou causas primeiras,
que, aceitando os movimentos secundários dos corpos, condicionam em
todos eles o crescimento ou a diminuição, divisão ou composição e tudo o
mais que daí decorre: calor e esfriamento, gravidade e leveza, rigidez ou
molícia, brancura e negrume, amargor e doçura, e tudo o mais de que a
alma se serve, a qual, sempre que se associa à inteligência divina, se torna
também divina e tudo dirige com segurança para a felicidade; mas, se é à
irreflexão que ela se liga, produz exatamente os efeitos contrários.
Admitiremos que tudo se passa desse modo, ou ainda temos dúvida de que
possa ser de outra maneira?

Clínias — De forma alguma.

O Ateniense — Então, a qual gênero de alma diremos que tocou a direção


do céu e da terra e de todo o circuito universal? A que é plena de
inteligência e de virtude ou a que não possui nenhuma dessas qualidades?
Quereis que vos respondamos da seguinte maneira?

Clínias — Como será?

O Ateniense — Se dissermos, meu admirável amigo, que todo o caminho e


a revolução do céu e tudo o que nele se contém é da mesma natureza que o
movimento, as revoluções e as reflexões da inteligência, e que marcham de
igual modo, teremos de concluir que é a melhor alma que se ocupa do
cosmo em universal e o conduz pelo caminho apontado.

Clín ias — Certo.

O Ateniense — Mas se o mundo andar às tontas e desordenadamente, será a


pior.

Clínias — Isso também é muito claro.

O Ateniense — De que natureza, então, é o movimento da inteligência? Eis


uma questão, amigos, difícil de responder com segurança. Por isso mesmo,
é justo que me ajudeis a encontrar a resposta.
Clínias — Dizes bem.

O Ateniense — Não procedamos como os que olham de frente para o sol e


fazem baixar a noite em pleno dia, com formularmos nossa resposta, no
pressuposto de que somos capazes de contemplar e de conhecer a fundo a
inteligência com nossos olhos mortais. Poderemos contemplá-la com a
maior segurança, se dirigirmos a vista para a imagem da pergunta.

Clínias — Ótima idéia.

O Ateniense — De quanto dissemos até agora, lembremo-nos ter ficado


admitido que de tudo o que existe algumas coisas se movimentam e outras
estão em repouso.

Clínias — Exato.

O Ateniense — E dentre as que se movem, umas o fazem in loco, enquanto


outras mudam de posição.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Desses dois movimentos, o que se faz sempre no mesmo


lugar terá forçosamente de girar ao redor de um centro, à maneira das
esferas fabricadas no torno, devendo apresentar com a revolução da
inteligência a maior afipidade e semelhança possíveis.

Clínias — Como assim?

O Ateniense — Quando dizemos que a inteligência e o movimento que se


realiza in loco e do mesmo modo se processam de acordo com as mesmas
regras, no mesmo lugar, ao redor do mesmo centro e numa única direção, e
os comparamos à imagem do movimento circular da esfera fabricada no
torno, não podemos, absolutamente, passar por artesãos bisonhos na arte de
fabricar belas imagens verbais.

Clínias — Só dizes a verdade.

O Ateniense — E o contrário disso: o movimento que nunca se faz do


mesmo modo nem segundo as mesmas regras, no mesmo lugar nem ao
redor de um centro único, nem na mesma direção, que não se produz apenas
num ponto nem com ordem nem apenas numa seqüência, não terá afinidade
com um desarrazoado típico?

Clínias — O paralelo é perfeito.

O Ateniense — Nesta altura, não nos será difícil responder taxativamente


que a alma, sendo para nós o que imprime o movimento circular no cosmo
universal, forçoso nos será concluir que este movimento circular do céu ou
é promovido e regulado pela alma boa ou pela que se lhe opõe.

Clínias — Sem dúvida, forasteiro; depois de tua explicação, fora impiedade


atribuir tal movimento a outra causa que não a uma ou a várias almas
dotadas todas as virtudes.

O Ateniense — Ótimo, Clínias; acompanhas admiravelmente bem minha


exposição. Ouve mais o seguinte.

Clínias — Que será?

IX — O Ateniense — O sol, a lua e os demais astros: se a alma é o que a


todos movimenta, não movimentará também cada um em particular?

Clínias — Por que não?

O Ateniense — Tomemos apenas um astro para objeto de nossas refeições;


mas é certeza valer o mesmo raciocínio para os demais.

Clínias — Qual será?

O Ateniense — Todo o mundo pode ver o corpo do sol, mas ninguém lhe vê
a alma, como também não vê a do corpo de nenhum animal, nem vivo nem
morto. É muito provável que essa espécie de substância não seja
naturalmente percebida pelos sentidos corpóreos, só o podendo ser pela
inteligencia. Com a ajuda, pois, da inteligência e da reflexão, consideremo-
la da seguinte maneira.

Clínias — Como será?


O Ateniense — Se a alma conduz o sol, dificilmente incideremos em erro
com afirmar que o faz de um dos três modos seguintes.

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — Ou ela se encontra no interior desse corpo esférico que


percebemos, e o transporta por onde quer que vá, exatamente como nossa
alma nos leva por toda a parte; ou então, apropriando-se externamente de
um corpo de fogo ou de uma espécie de ar, como alguns imaginam, será um
corpo a empurrar outro corpo; a terceira hipótese é carecer
absolutamente de corpo, mas dirigi-lo por meio de certas forças diferentes,
de todo o ponto maravilhosas.

Clínias — Certo; terá de ser por um desses processos que a alma tudo
dirige.

O Ateniense — Pára aí. Quer essa alma se encontre no carro do sol para nos
trazer sua luz, quer por tudo se espalha, quer o empurre externamente, ou
seja como for, todo homem deverá tê-la na conta de uma divindade. Ou
como será?

Clínias — Isso mesmo, a menos que sua insensatez tenha chegado ao ponto
mais alto.

O Ateniense — E de todos os astros, e da lua, e dos anos e meses, e de


todas as estações, que mais poderemos dizer, se não for o que afirmamos do
sol? Já que alma, ou as almas, se revelaram como a causa de tudo isso, e
dotadas de todas as virtudes, acreditamos que sejam divindades e, como
seres vivos, por habitarem em corpos ou de qualquer outro modo, dirigem
todo o céu. Haverá quem aceite essa causalidade e ainda se atreve a afirmar
que o universo não está cheio de deuses?

Clínias — Ninguém é insensato a esse ponto, forasteiro.

O Ateniense — Neste passo, Megilo e Clínias, libertemo-nos dos que até


agora não creditavam nos deuses, depois de lhes ditarmos nossas condições.

Clínias — Quais serão?


O Ateniense — Ou nos provem que estamos errados por admitirmos que a
alma é a origem primeira das coisas e aceitarmos as conseqüências daí
decorrentes, ou então, se não puderem faiar melhor do que nós, acolham
nossos argumentos e passem o resto da vida convencidos da existência dos
deuses. Vejamos agora se tudo o que expusemos basta para convencer os
que não acreditam que os deuses existem, ou se falta alguma coisa.

Clínias — Dificilmente, forasteiro, faltará seja o que for.

X — O Ateniense — Sendo assim, ponhamos ponto final em nossa


discussão com eles e passemos a doutrinar o que admite a existência dos
deuses, porém não acredita que eles se preocupam com os negócios
humanos. Varão prestantíssimo, lhe diríamos, se acreditas nos deuses, é que
alguma afinidade divina te arrasta para o que te é aparentado e te leva a
honrá-los e a admitir que eles existem. Mas, o espetáculo da
prosperidade dos homens maus e dos injustos, tanto na vida pública como
na particular, os quais, aliás, não são felizes, absolutamente, mas que, na
opinião dos indoutos, passam por ser a expressão da mais alta ventura, te
impele para a impiedade, por serem eles exalçados indevidamente, tanto
nos cantares das Musas como em toda sorte de discursos. Ou talvez mesmo,
por veres essa gente chegar ao termo da velhice e deixar os filhos de seus
filhos no gozo das mais altas dignidades, mostraste perturbado com fatos
dessa natureza, ou por os conheceres de ouvida ou por teres visto com teus
próprios olhos como os mais ímpios e terríveis feitos são precisamente os
que levam indivíduos de ínfima extração a alcançar a tirania e os postos
supremos de comando. Em tais circunstâncias, tua afinidade com os
deuses não te permite atribuir-lhes a responsabilidade desses fenômenos;
levado por um raciocínio falso, por não te decidires a insurgir-te contra os
deuses, chegaste à situação singular de acreditar que eles, de fato,
existem, mas se descuidam dos negócios humanos e não lhes dão a mínima
atenção. Por isso, a fim de evitar que tua opinião de agora contribua para
aumentar a doença da impiedade, vamos conjurar, por assim dizer, com
nossos discursos, na medida do possível, a aproximação de semelhante mal,
ligando a argumentação que se segue à que há pouco dirigimos contra quem
negava obstinadamente a existência dos deuses. Contra ele é que nos
dirigimos neste momento. Como antes, Clínias e Megilo, incumbi-vos da
resposta desse moço. Se nosso excurso for bater nalgum escolho, segurar-
vos-ei, como há pouco, e vos ajudarei a atravessar o rio.

Climas — Falaste muito bem; faze isso mesmo que nós, também, nos
esforçaremos para cumprir o que exiges de nós.

O Ateniense — Talvez não nos seja difícil demonstrar-lhe que com as


coisas pequenas os deuses não se ocupam menos, se não mais, até, do que
com as muito grandes. Ele próprio ouviu, pois estava presente, o
que dissemos há pouco, que sendo perfeitos em todas as virtudes, o
preocupar-se com tudo é sua principal característica.

Clínias — Ouviu muito bem o que disseste, como

não?

O Ateniense — E agora, associe-se à nossa investigação, para


determinarmos a virtude que atribuímos aos deuses, quando dizemos que
eles são bons. Já afirmamos que a temperança e o saber são virtudes,
como são vícios seus contrários.

Clínias — Sim, foi o que afirmamos.

O Ateniense — Como! A coragem não é virtude, e a pusilanimidade, vício?

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Como também dissemos que esta última é ignóbil, e a


primeira, honesta.

Clínias — Necessariamente.

O Ateniense — E de todas as qualidades ruins, enquanto nossas, não


diremos que nos são próprias e que os deuses não compartilham delas nem
muito nem pouco?

Clínias — É também o com que toda a gente teria de concordar.


O Ateniense — E agora? A negligência, a preguiça, o comodismo,
incluiremos entre as virtudes da alma, ou como vos parece?

Clínias — Como o poderíamos?

O Ateniense — Mas entre seus contrários?

Clínias — Exatamente.

O Ateniense — E o que Ihe for contrario, como contrário do vicio?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E então? O indivíduo mole, negligente e preguiçoso, que o


poeta folga de comparar aos zangãos sem ferrão, não se nos afigura a todos
nos um zangão de verdade?

Clínias — A comparação do poeta é muito apropriada.

O Ateniense — Então, não poderemos dizer que Deus revela certa


disposição que ele próprio detesta, nem permitir que alguém anuncie
semelhante dislate.

Clínias — Não, de fato; como o poderíamos?

O Ateniense — Ora, se alguém for encarregado de cuidar de alguma coisa


ou de realizar a ponto alguma tarefa, e só aplicar sua inteligência nas coisas
grandes, com descaso das pequenas, com que base poderíamos elogiá-lo
sem cometer erro crasso? Examinemos o problema pelo seguinte prisma:
não podem ser interpretados de duas maneiras os motivos de quem assim
procede, ou seja divindade ou homem?

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — Ou ele acredita que a negligência das coisas mínimas não


influi no conjunto, ou acha que influi, mas se descuida por comodidade e
irreflexão. Ou terá a negligência origem diferente? Quando não é possível
atendera tudo, não se dirá que há negligência em cuidar das coisas grandes
ou das pequenas, sempre que o encarregado, ou seja alguma divindade ou
pessoa de talento reduzido não atender a este ou aquele ponto, por carecer
de capacidade para tanto?

Clínias — Como o poderia?

XI — O Ateniense — Agora, que respondam a nós três os dois que


admitem, juntos, a existência dos deuses, considerando-os, porém,
corruptíveis um deles, e o outro, indiferentes às pequeninas coisas. Para
começar, ambos vós afirmais que os deuses tudo entendem, tudo vêem e
tudo ouvem, sem que nada lhes escape de quanto é do âmbito dos sentidos e
do conhecimento. Confirmais tudo isso, ou como será?

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — E o seguinte: podem realizar tudo o de que são capazes os


mortais e os imortais?

Clínias — Como não haverão de concordar em que tudo é assim mesmo


como disseste?

O Ateniense — Como nós cinco concordamos que eles são bons e


excelentes.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Não será, então, impossível aceitar que eles façam seja o
que for por indolência e comodidade, sendo eles o que admitimos há pouco.
A preguiça é filha da pusilanimidade, como a negligência o é da preguiça e
da moleza.

Clínias — Só dizes a verdade.

O Ateniense — O que resta, então, é que se eles, de fato, se descuidam, no


todo, das coisas mínimas e insignificantes, ou será por saberem que não há,
absolutamente, necessidade de ocupar-se com elas, e por isso assim
procedem, ou então, que mais restará, se não for o contrário de saber?

Clínias — Nada mais.


O Ateniense — Como diremos, então, meu caro e excelente amigo, que
concluis no presente caso? São ignorantes e negligenciam por ignorância
nos pontos em que tinham obrigação de cuidar, ou, sabendo o que é preciso
fazer, procedem à maneira dos tipos mais desclassificados, o quais,
conscientes de que é preciso fazer algo melhor do que o que eles fazem, não
o fazem, vencidos, de algum modo, pelo prazer e pela dor?

Clinías — Como admiti-lo?

O Ateniense — Os negócios humanos não participam da natureza animada,


e não é o homem, de todas as criaturas, a que mais reverencia a Deus?

Clinias — Parece que sim.

O Ateniense — Todos os seres mortais são propriedade dos deuses, é o que


afirmamos, como todo o céu.

Clinias — Sem dúvida.

O Ateniense — Diga, pois, quem quiser, que aos olhos dos deuses tudo isso
é de pequena ou da máxima importância; em nenhum dos casos convém
que nossos donos se descuidem, por serem excelentes donos e
extremamente cuidadosos. Consideremos também o seguinte ponto.

Climas — Qual será?

O Ateniense — Tudo o que diz respeito à sensação e à capacidade, não é


contrário por natureza ao que se relaciona com a facilidade a dificuldade?

Clímas — Como assim?

O Ateniense — O pequeno é mais difícil de ver e de ouvir do que o grande;


mas, para suportar, dominar ou administrar, as coisas pequenas ou pouco
numerosas são muito mais fáceis de lidar do que as que lhes são contrárias.

Clínias — Muitíssimo.

O Ateniense — Um médico, incumbido de tratar do corpo inteiro, com


vontade e disposição de ocuparse com os grandes conjuntos, se desprezar as
partes isoladas e insignificantes, estará em boas condições para cuidar do
todo?

Clínias — Nunca.

O Ateniense — O mesmo acontecerá com os pilotos, os estrategos, os


ecónomos e certos homens públicos e com quantos exerçam atividades
desse tipo, se só atentarem nas coisas grandes e freqüentes e desprezarem as
pequeninas e raras. Como dizem os pedreiros, as grandes pedras não
assentam bem sem o emprego das pequenas.

Clínias — Como o poderiam?

O Ateniense — Não rebaixemos Deus para um plano inferior aos dos


obreiros mortais, que, quanto mais hábeis, com a mesma perfeição e técnica
executam os trabalhos das respectivas artes, ou sejam grandes ou pequenos,
nem digamos que Deus, supremamente sábio, que pode e deseja trabalhar,
não se aplica em tarefas insignificantes, bem mais fáceis de resolver, à
maneira do indivíduo preguiçoso ou pusilânime, que tem medo do trabalho
e só se ocupa com as grandes.

Clínias — Não admitamos nunca, forasteiro, seme-

Ihantes conceitos com relação aos deuses; não seria imagem nem
verdadeira nem piedosa.

O Ateniense — Quer parecer-me que já discutimos bastante com o


chicanista que acusa os deuses de negligentes.

Clínias — Sem dúvida.

Q Ateniense — Pelo menos, com esse excurso forçamo-lo a admitir seu


erro. Mas ainda precisamos acrescentar algumas histórias, a fim de
imobilizá-lo com o encantamento que lhes é próprio.

Clínias — Que histórias, meu caro?

XII — O Ateniense — Convençamos esse moço, por meio de argumentos,


de que quem cuida do todo dispôs tudo com vistas à perfeição e à
conservação do conjunto, só atuando cada parte ou deixando-se
influir naquilo que lhe compete fazer dentro de suas possibilidades. A todas
e a cada uma dessas partes foram designados diretores que decidem das
mínimas ações por elas sofridas ou exercidas, o que contribui para a
execução perfeita das menores minúcias. Tu também, infeliz, és uma
partezinha que, a despeito de sua insignificância, está sempre voltada para o
todo; mas, o que não percebes é que toda geração só se processa em
benefício do conjunto, a fim de ensejar-lhe vida feliz, e que o conjunto não
foi feito para ti; tu é que nasceste para o todo. Não há médico nem artesão
habilidoso que não trabalhe com vistas ao conjunto, para o maior bem da
comunidade, relacionando a parte com o todo, não o inverso, o todo com a
parte. E se ainda resmungas, é por ignorares que tudo quanto se passa
contigo redunda em teu benefício e no do conjunto, dentro
das possibilidades do devir universal. E, uma vez que a alma, sempre unida
a este ou àquele corpo, passa por toda sorte de transformações, em parte por
sua própria vontade, em parte sob a influência de outras almas, nada mais
resta ao que dispõe das pedras desse jogo, a não ser colocar em lugar
melhor o caráter que se aperfeiçoou, e no pior o de características
inferiores, como convém a cada um, para que ambos venham a ter a sorte
merecida.

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — O que facilita aos deuses, me pare-ce, a supervisão do


conjunto. Por exemplo, se alguma divindade quisesse transformar tudo isto
de ponta a ponta, sem atentar sempre no conjunto, e mudasse o fogo em
água animada, de muitas coisas fizesse uma única, ou de uma muitas outras,
depois de fazê-las passar por uma primeira, segunda e terceira geração:
haveria uma multiplicidade incalculável na ordem e disposição das coisas,
quando é certo fazer tudo isso com extrema facilidade o que cuida do
universo.

Clfnias — Mais uma vez: que queres dizer com isso?

O Ateniense — O seguinte: quando nosso rei verificou que todas as ações


são animadas e cheias das mais variadas virtudes e de outros tantos vícios,
que a alma e o corpo, uma vez nascidos, são indestrutíveis porém não
eternos, como o são os deuses segundo a lei — pois deixaria de haver
geração de seres vivos se a alma ou o corpo perecessem — e ponderando,
ainda, que todo o bem da alma é útil por natureza, enquanto o mal
só prejudica: considerando tudo isso num só lance d'olhos, procurou
distribuir as coisas de modo que cada parte ocupasse o lugar mais propício
pára assegurar ao conjunto a vitória fácil e completa da virtude e a
derrota do vício. Foi com vistas a esse conjunto que ele determinou a sede e
o lugar próprio para cada ser, à medida que forem nascendo, mas deixou ao
nosso arbítrio as causas de que dependem nossas qualidades, pois é
de acordo com a orientação dos desejos e o estado da alma que na maior
parte das vezes conseguimos ser o que queremos.

Clínias — É bem provável que seja assim mesmo.

O Ateniense — Desse modo é que se modificam os seres dotados de alma,


por trazerem neles mesmos a causa dessas transformações; alteram-se de
acordo com a ordem fixada pelo destino e pela lei. Os que não modificam
os hábitos, pouco se deslocam na superfície do solo; os que caem mais
vezes e mais profundamente na injustiça, baixam para as profundezas da
terra e os lugares ditos inferiores, designados pelo nome de Hades ou outros
parecidos, vítimas de toda sorte de temores e de pesadelos, assim durante a
vida como depois de separadas do corpo. Quando a alma adquire maior
dose de maldade ou de virtude, por vontade própria ou pela força do hábito,
se se modificou radicalmente no sentido do divino, por se haver apropriado
da virtude divina, é transportada de onde estiver, por uma estrada sagrada,
para um lugar novo e melhor; quando é o contrario que se verifica, então a
sede de sua vida é transferida para um lugar pior.

Tal é o costume dos deuses que moram no Olimpo

muito amplo,

meu caro menino ou adolescente, que te consideras abandonado pelos


deuses: se ficares pior, irás juntar-te às almas ruins; vindo a melhorar, farás
companhia às melhores, condenado sempre, na vida e nas
sucessivas mortes, a infligir e padecer o tratamento que os semelhantes
infligem em seus semelhantes ou esperam deles. Nesse julgamento, nem tu
nem qualquer outro infeliz jamais se gabou de ter conseguido escapar dos
deuses; é uma justiça posta acima de todas pelos que a estabeleceram, e que
é preciso acatar com o maior empenho. Nunca se descuidará de ti, nem que
fosses tão pequeno para sumir pelas entranhas da terra ou ficasses
bastante grande para alcançar o céu: em qualquer condição, receberás o
devido castigo, quer fiques aqui mesmo quer baixes para o Hades ou sejas
levado para algum lugar ainda mais terrível. O mesmo se diga de quantos
viste passar de pequenos a grandes à custa de indignidades e outros crimes
que tais, imaginando que haviam trocado a miséria por grande felicidade e
em cuja vida, como num espelho, pensavas haver surpreendido a
negligência dos deuses com respeito a tudo, por ignorares de que modo a
atuação deles se faz sentir na ordem universal. Sendo assim, como podes
imaginar, valentão, que não te importa conhecer tudo isso? Sem tal
conhecimento, ninguém conseguirá traçar algum plano de vida nem chegará
a adquirir a noção exata do em que consiste a felicidade ou a desgraça.
Neste particular, se te deixares convencer por Clínias ou por este conselho
de velhos, que quando abres a boca para falar dos

deuses não dizes coisa com coisa, vê nisso a ajuda da própria divindade.
Mas, se ainda necessitas de outras provas e fores capaz de reflexão, ouve
agora o que vamos dizer ao nosso terceiro adversário. Que os
deuses existem e se ocupam com os homens, é o que me parece ter sido
demonstrado por maneira não de todo criticável. Mas, que eles se deixem
corromper com presentes de criminosos, é o que não se pode aceitar de
forma nenhuma e precisa ser refutado com toda a energia.

Clínias — Ótimo; façamos isso mesmo.

XIII — O Ateniense — Ora bem. Em nome dos próprios deuses, de que


modo poderemos dobrá-los, se é que eles se deixam peitar? Para isso, quem
são eles e com quê se parecem? Por força, terão de ser dirigentes, para
estarem incumbidos da direção suficiente de todo o universo.

Clínias — Isso mesmo.

O Ateniense — Mas, com que chefes se parecem? Ou com quem podemos


compará-los, sem incidir em erro, neste confronto entre grandes e
pequenos? Serão como condutores de carros nas competições, ou pilotos de
barcos? Talvez coubesse compará-los a alguns cabos de guerra, talvez
mesmo a médicos, no empenho de frustrar o assalto das doenças contra, o
corpo, ou a lavradores durante a estação má, na expectativa ansiosa do
crescimento das plantas, ou, ainda, a guardas de rebanhos? E, uma vez que
consentimos em aceitar o universo como repleto de bens e de seus
contrários, que, aliás, sobrepujam numericamente aqueles, estabelece-
se entre os dois grupos, digamos, uma luta perene que exige a mais severa
vigilância. Como aliados, porém, temos os deuses e os demônios, dos quais
somos propriedade. O que nos perde é a injustiça e a arrogância,
associadas à insensatez; como nossa salvação está na justiça e
na temperança, de par, sempre, com a sabedoria, que embora tenham a
morada no poder das almas dos deuses, em pequena parte, também, podem
ser claramente percebidos no nosso interior. Mas, algumas almas que
moram na terra, manifesta mente selvagens, providas de grande dose de
injustiça, prosternam-se diante das almas de seus guardas, ou sejam de cães
ou de pastores ou dos mestres supremos de todas as coisas, e procu-ram
convencê-las por meio de discursos capciosos ou de canções enfeitiçadoras,
de que, conforme nisso à opinião muito espalhada dos maus, têm o direito
de em tudo levar vantagem sobre os outros, sem nada virem a sofrer em
conseqüência. O vício mencionado por último, é o que dizemos, esse
empenho de querer ter mais do que os outros, é o que nos corpos de carne
se denomina doença, como se chama pestilência nas estações do ano; porém
nas cidades e constituições, já agora com o nome trocado, esse mesmo mal
é injustiça.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — É assim que terão necessariamente de expressar-se os que


afirmam perdoarem sempre os deuses aos homens injustos e que só
praticam injustiças, desde que lhe cedam parte do lucro de suas
malfeitorias. É como se os lobos passassem para os cães uma pequenina
parcela de suas rapinas, e estes, amansados com tais presentes, permitissem
que eles depredassem o rebanho. Não é essa a linguagem dos que
consideram os deuses acessíveis a pedidos?

Clínias— Isso mesmo.

XIV — O Ateniense — Dentre os guardas mencionados há pouco, com


qual poderemos comparar os deuses, sem cairmos no ridículo? Aos pilotos,
porventura, que se deixariam dobrar com as libações de vinho ou a gordura
das vitimas, para soltar à matroca o barco e a marinhagem?

Clínias — De forma alguma.

O Ateniense — Como também não será com o auriga, no seu posto, ao lado
dos demais competidores, para, à custa de presentes, ceder a vitória a outra
composição.

Clínias — O símile, nesse caso, seria revoltante.

O Ateniense — E menos, ainda, com os generais do exército, médicos,


camponeses ou pastores, ou sequer com os cães amansados pelos lobos.

Clínias — Muda de linguagem! Como fora possível?

O Ateniense — Mas, dentre todos os guardas, não serão deuses os maiores


e os que se acham revestidos da mais alta responsabilidade?

Clínias — Muito!

O Ateniense — Ora, os guardas colocados nos mais belos postos e que se


distinguem sobremodo pela virtude, diremos que sejam inferiores aos cães e
aos homens medíocres que jamais traem a justiça nem se deixam peitar
pelas dádivas iníquas de homens injustos?

Climas — Em absoluto; é uma afirmação inaceitável. E quem sustenta


semelhante absurdo, dentre os ímpios de todos os matizes, corre o perigo de
ser considerado, e com justiça, o pior e o mais ímpio dos ímpios.

O Ateniense — Teremos, então, o direito de afirmar que apresentamos uma


demonstração satisfatória dos três pontos propostos: a existência dos
deuses, sua vigilância e a absoluta impossibilidade de se dobrarem a
súplicas?

Clínias — Como não? Votamos de acordo contigo em tudo o que acabas de


afirmar.
O Ateniense — Mas, a verdade é que o vezo de controvérsias dos maus nos
forçou a assumir certo tom agressivo. Daí, meu caro Clínias, o aspecto
polêmico de meu discurso; receava que, se os maus se
considerassem vencedores, julgar-se-iam no direito de fazer o que
quisessem e de formar a respeito dos deuses a opinião que bem
entendessem. É o que explica esse meu estilo jovem. Mas, por menos que
tenha conseguido convencer essa gente a aborrecer seus próprios atos e a se
voltarem para os costumes contrários aos deles, não resta a menor dúvida
que fizemos um belo proêmio para as leis sobre a impiedade.

Clínias — É o que esperamos; na pior hipótese, não envergonhará o


legislador.

XV — O Ateniense — Depois desse prelúdio, apresentaremos um discurso,


à guisa de interpretação da lei, para aconselhar os ímpios a trocar sua
maneira de viver pela das pessoas piedosas. É com vistas aos desobedientes
que aplicaremos a seguinte lei contra a impiedade.

Se alguém cometer impiedade, por atos ou por palavras, quem quer que
tenha sido testemunha do fato protestará ¡mediatamente e o denunciará
perante os magistrados, devendo os primeiros que receberem a queixa citá-
lo, de acordo com a lei, no tribunal competente. Uma vez informado, o
magistrado que não tomar conhecimento do caso poderá ser acusado de
impiedade por quem assumir a defesa das leis. Reconhecida a culpa, o
tribunal aplicará uma pena especial para cada espécie de impiedade. Para
todos a prisão é iniludível. Como haverá três prisões na cidade: uma na
praça pública, comum a quase todos os delinquentes, para assegurar a
integridade física da maioria; outra no local da reunião do conselho
noturno, denominada casa de correção, e uma terceira, no centro do
território, em local deserto e tão selvagem quanto possível, com
denominação indicadora de sua função punitiva; e como também são três as
causas de impiedade, a que nos referimos, cada uma das quais se divide em
duas, haverá seis espécies diferentes de delitos contra os deuses, que não
implicam responsabilidade igual nem semelhante. Entre os indivíduos que
não acreditam absolutamente na existência dos deuses, alguns há dotados de
agudo sentimento de justiça, que odeiam os maus, e porque lhes repugna a
injustiça, abstêm-se de qualquer prática injusta, fogem da companhia dos
maus e aproximam-se dos bons. Mas, os que aliam a crença de que tudo
está vazio de deuses à incapacidade de dominar os prazeres e as dores,
sobre serem dotados de boa memória e facilidade de compreensão,
padecem, em comum com os primeiros, do defeito de não acreditarem nos
deuses; mas, quanto à nocividade com relação ao próximo, o primeiro
gênero é menos prejudicial do que o outro. Realmente, com sua linguagem
desabrida, em tudo o que se refere aos deuses, sacrifícios e juramentos,
se não forem punidos poderão contaminar os outros com suas zombarias; ao
passo que os últimos, compartilhando dos sentimentos dos primeiros,
passam por finórios e ricos em astúcias e maquinações. Desses é que sai
a maior parte dos adivinhos e demais adeptos da feitiçaria, e também certos
tiranos, oradores populares e generais, os que conspiram nas iniciações
secretas, e nas maquinações dos denominados sofistas. De toda essa gente
há uma variedade infinita; mas apenas dois tipos precisam ser legalmente
punidos: o dissimulado, nem com uma nem com duas mortes receberia o
castigo merecido; para o outro, bastará repreensão e cadeia. Paralelamente,
os que falam da negligência dos deuses for-

mam duas espécies, o mesmo acontecendo com os que os consideram fáceis


de dobrar com presentes.

Feitas essas distinções, o juiz, apoiado na lei, trancará na casa de correção


os que revelam insensatez sem ruindade de caráter nem de temperamento,
durante o prazo máximo de cinco anos, e em todo esse tempo a nenhum
cidadão será permitido visitá-lo, com exceção dos membros do conselho
noturno, para dar-lhe conselhos e cuidar da salvação de sua alma. Vencido o
tempo de prisão, o que se tiver arrependido voltará para o convívio das
pessoas sensatas; não sendo esse o caso, e vindo a ser condenado por igual
crime, será sumariamente executado.

Os que, além de negarem a existência dos deuses e de considerá-los


negligentes e corruptíveis, e, com instintos de animais ferozes, vão a ponto,
no seu desprezo, de seduzir outras pessoas e de se gabarem de evocar os
mortos e até de dobrar os deuses por meio de sacrifícios, preces e
encantamentos, e que, por ambição de dinheiro, não se correm de arruinar
particulares, famílias e até cidades inteiras: desses, quem for
reconhecido culpado será condenado, de acordo com a lei, a ser encarcerado
na prisão central do território, sem que nenhum cidadão livre tenha
permissão de visitá-lo, recebendo ele das mãos de escravos o que os
guardas das leis determinarem para seu sustento. Quando morrer, será
jogado insepulto para além das divisas do território. Se algum cidadão livre
promover seu sepultamento, quem quiser poderá processá-lo por impiedade.
Se deixar filhos em condições de poderem ser úteis à cidade, o curador de
órfãos tomará conta deles como se se tratasse de órfãos de verdade, sem
distingui-lo dos outros, a partir do dia da condenação do pai.

XVI — Importa estabelecer uma lei geral para os delinqüentes desse tipo, a
fim de impedir que a maioria deles ofenda os deuses, por atos ou por
palavras, e também para que não se torne tão manifesta sua falta de sendo
com proibirem de se imiscuírem no culto divino. Essa lei de aplicação geral
é muito simples. Ninguém poderá ter em sua residência santuário particular;
quando algum cidadão desejar sacrificar, dirija-se, para isso, aos templos
públicos e entregue as vítimas aos sacerdotes e sacerdotisas, que se
incumbirão de sua pureza, cabendo-lhes associar-se a suas orações e, com
ele, quantos mais desejarem tomar parte no sacrifício. Impõe-se essa
restrição pelo seguinte: não é tarefa muito fácil construir templos ou
estátuas dos deuses, pois tudo isso requer boa dose de discernimento. No
entanto, é peculiar às mulheres, aos doentes em geral e às pessoas que
correm algum perigo ou se vêem em certas necessidades, sejam de que
natureza forem, ou o inverso: quando se acham em maré de sorte, consagrar
o que têm no momento, fazer promessa de sacrifícios e de construir altares
aos deuses, aos demônios e aos filhos dos deuses. Os que se apavoram ante
alguma visão ou com sonhos atemorantes, bem como os que se lembram de
aparições ocorridas no passado, procuram remediar tudo com a construção
de altares e de santuários, com o que enchem as casas e as aldeias e todos os
lugares limpos ou onde quer que por acaso se encontrem.

Foi para obviar tais inconvenientes que se pensou na referida lei, e também
por causa dos ímpios, a fim de impedir que se entreguem, a ocultas, a
semelhantes práticas, construindo templos e altares em suas residências, na
persuasão de que conseguirão captar, sem mais aquela, a simpatia dos
deuses por meio de sacrifícios e de orações, aumentando, assim, ao infinito,
suas injustiças, com o que chamam sobre eles mesmos e os magistrados
coniventes com tais práticas, que são melhores do que eles, a reprovação
dos deuses, de forma que toda a cidade, de modo, até certo ponto, justo,
como que endossa sua impiedade. Assim, a divindade não culpará o
legislador, pois a lei é a seguinte: Ninguém poderá construir em sua
residência santuários para os deuses. Vindo a ser descoberto algum nessas
condições, em que o dono sacrifique, em lugar de fazê-lo nos santuários
públicos, se o indiciado, homem ou mulher, não acusar no seu passado
nenhuma falta grave em matéria de injustiça ou impiedade, caberá a
qualquer pessoa denunciá-lo aos guardas das leis e a estes ordenar a
remoção dos altares particulares para os templos públicos, ou punir o
infrator até ser cumprida a determinação legal. Se alguém for surpreendido
na prática de alguma ação ímpia, não dessas pequenas transgressões de
crianças, mas verdadeira impiedade de homem feito, ou por haver
construído um altar particular, ou por sacrificar em público, seja a que
divindade for, será condenado à morte como se houvesse sacrificado sem
estar puro. Depois de decidirem se se trata ou não de falta pueril, os guardas
da lei o apresentarão ao tribunal, para ser-lhe aplicada a pena de impiedade.
LEIS
Livro XI

I — O Ateniense — Agora, vamos regulamentar devidamente os contratos


entre os cidadãos. A seguinte regra é muito simples: Ninguém toque, na
medida do possível, em nada do que me pertence, nem tire de seu lugar o
menor objeto sem meu consentimento. Da mesma forma procederei, se for
dotado de bom senso, com o que pertence aos outros.

Para dar um exemplo adequado, imaginemos que alguém, sem relações de


parentesco comigo, escondesse algum tesouro para si mesmo ou para seus
familiares. Não apenas não farei nenhuma promessa aos deuses para
encontrá-lo nem o removerei do lugar se vier a descobri-lo, como não
procurarei os chamados adivinhos, que decerto me indicariam a maneira de
apoderar-me do que fora confiado ao seio da terra. O lucro material que me
adviria dessa apropriação indébita não alcançaria no plano espiritual o
montante em virtudes e justiça da vantagem de não fazê-lo, e de trocar um
bem inferior por outro de maior valia e de localização superior, com
sobrepor a justiça da alma ao dinheiro acumulado. A muito conhecida
máxima, de não mexer no que não pode ser tocado, de tão larga aplicação,
confirma-se particularmente no presente caso. Precisamos acreditar no que
se diz comumente, que os lucros dessa natureza não beneficiam a
procriação de filhos. Quem não se preocupar com os filhos nem atender às
determinações do legislador, e atrever-se a tirar o que nem ele nem algum
de seus antepassados depositou, e o fizer sem o consentimento do
verdadeiro dono, destrói a mais bela das leis, o preceito de um homem
simples e nada vil, que reza: Não te apoderes do que não depositaste.

Quem desprezar, dizia, esses dois legisladores e apropriar-se, não de quantia


insignificante que ele mesmo não houvesse separado, mas de um tesouro
valiosíssimo, que punição merecerá? Da parte dos deuses, só Deus o sabe;
mas, quem primeiro o perceber, se o fato ocorrer na cidade, deverá
denunciá-lo aos astínomos, ou aos agoránomos se for na Praça do Mercado,
como o fará aos agrônomos e seus chefes, se a ocorrência se der em
qualquer parte do território. Apresentada a denúncia, a cidade enviará uma
comissão a Delfos, e o que a divindade decidir a respeito do tesouro e
de quem o removeu, a cidade executará, em obediência ao oráculo divino.
Se o denunciante for cidade livre, conquistará fama de virtuoso, como será
acoimado de pusilânime se se abstiver de fazê-lo. Sendo escravo, com toda
a justiça a cidade o libertará, depois de indenizar o dono pelo seu valor real;
se não denunciar, será condenado à morte.

Depois dessa lei, vem a seguinte, que se aplica a delitos da mesma natureza,
grandes ou pequenos. Se alguém deixar nalgum lugar qualquer objeto, ou
por esquecimento ou por deliberação própria, quem o vir não o remova de
onde estiver, na certeza de que se encontra sob a custódia do nume dos
caminhos, divindade consagrada pela lei. Se em contrário a semelhante
proibição, alguém o apanhar e levar para casa, um escravo, digamos, que se
apropria de algum objeto de pouco valor, será castigado com boa dose de
açoites pelo primeiro passante que o surpreender, de nunca menos de trinta
anos. Se se tratar de homem livre, além de ser considerado servil
desprezador da lei, terá de pagar dez vezes o valor do objeto a quem o
esquecera naquele sítio.

Se alguém for acusado de reter em seu poder uma parte pequena ou grande
dos bens de outra pessoa, e confessar o fato, porém conteste que se trate de
algo pertencente ao queixoso, por já estar legalmente inscrito esse objeto
perante os magistrados, o reclamante citará em justiça o retentor do objeto,
devendo este obedecer à intimação. Se no registro houver indicação
do verdadeiro dono, este se retirará com o objeto. Porém, provado que é de
outra pessoa, dos dois litigantes poderá levar o objeto, em lugar do dono, o
que pagar a cautela devida, porém com a obrigação de restituí-
lo oportunamente a quem de direito. Se o objeto contestado não estiver
inscrito perante a autoridade, ficará depositado até ao julgamento por parte
dos três magistrados mais idosos. Se a coisa sequestrada for um animal,
quem perder o processo pagará aos magistrados o custeio da alimentação,
devendo estes decidir a pendência no prazo máximo de três dias.

II — Todo homem de senso poderá recapturar seu escravo e puni-lo da


maneira que entender e seja lícito fazê-lo, como também poderá prender o
escravo fugido de outra pessoa, no lugar de algum amigo ou
parente próximo, a fim de entregá-lo ao dono. Mas, se, ao ser conduzido, o
escravo for reclamado como livre por alguém, quem o prendeu deverá
soltá-lo, e essa pessoa o levará, com a condição de fornecer três cauções
suficientes; em caso contrário, não. Se o fizer sem a competente fiança,
responderá judicialmente por esse ato de violência, e, no caso de
condenação, pagará ao lesado o dobro da indenização registrada. O escravo
liberto poderá também ser preso pelo primitivo dono, se não lhe prestou os
serviços devidos ou o fez por maneira deficiente. Esses serviços consistem
em comparecer três vezes por mês o liberto à casa de quem o libertou,
para prontificar-se a servi-lo no que for justo e estiver em suas
possibilidades, e também em não contratar casamento sem a anuência de
seu antigo dono. Também não é permitido ficar mais rico do que a pessoa a
quem deve a liberdade; o excedente reverterá em benefício do antigo dono.
O liberto não permanecerá mais de vinte anos no território; como os outros
estrangeiros, retirar-se-á levando consigo todos os seus haveres, a menos
que obtenha permissão para continuar, por parte das autoridades e de quem
o libertou. Porém, no caso de ultrapassarem os bens do liberto ou de
qualquer estrangeiro o teto fixado pelo terceiro censo, trinta dias a contar da
data em que se verificou essa diferença será obrigado a retirar-se levando
tudo o que possui, sem possibilidade de solicitar dos magistrados dilatação
do prazo de sua permanência no lugar. Em caso de desobe-diência a essa
determinação, uma vez processado e condenado, perderá a vida, revertendo
seus haveres para o tesouro público. Todos esses processos correrão nos
tribunais das tribos, a menos que os litigantes hajam solucionado suas
pendências com o recurso de vizinhos ou de juízes escolhidos por eles
mesmos.

Se alguém reclamar a posse de algum animal ou qualquer objeto


pertencente a outra pessoa, o detentor devolverá essa coisa a quem lha
vendeu ou presenteou com boa fé e justiça, ou por qualquer outra maneira
lícita, dentro de trinta dias, se se tratar de cidadão ou meteco estabelecido
na cidade, ou de cinco meses, se a transação foi feita com algum
estrangeiro, devendo sempre cair o terceiro mês no tempo em que o sol
passa do calor estival para as brumas do inverno.

Toda troca por compra e venda entre dois interessados se fará na parte do
mercado determinada para cada artigo, devendo o preço ser pago ou
recebido sem que a transação possa ser efetuada alhures nem a crédito.
Se alguém barganhar de outro modo algum objeto ou o fizer em local
diferente, por confiar no parceiro de transação, poderá fazê-lo, mas com a
certeza de que a lei não ampara nenhum negócio realizado nessas
condições. Cotizações entre amigos poderão ser feitas à vontade; mas, se
surgir algum dissídio entre as partes, a questão deverá ser resolvida com a
certeza de que para tais casos não há recurso legal.

Quem receber o preço combinado da venda de alguma coisa, se não for


inferior a cinqüenta dracmas, fica obrigado a permanecer na cidade pelo
prazo de dez dias, sendo preciso que o comprador saiba onde reside o
vendedor, para efeito das reclamações que sempre surgem em negociações
desse tipo e da eventual anulação prevista na lei. A rescisão do contrato ou
sua confirmação se processa da seguinte maneira. Se alguém vendeu um
escravo doente de tísica ou de pedra ou de estranguria ou do denominado
mal sagrado ou de qualquer outra doença do corpo ou da mente, dessas
que passam despercebidas à maioria das pessoas, prolongada e de difícil
cura: se o comprador for médico ou professor de ginástica, não terá direito
de anular a compra, como também não o terá quem foi previamente
advertido pelo vendedor. Mas, se a venda foi feita a algum profano por um
entendido na matéria, o comprador tem o direito de devolver o escravo
doente dentro de seis meses, tirante os casos de mal sagrado; para
essa doença o prazo para a rescisão do contrato é de um ano. Como
julgadores servirão três médicos, escolhidos pelas partes litigantes;
reconhecida a culpa, o condenado pagará ao comprador o dobro do preço
recebido. Se a transação foi feita entre dois leigos, a rescisão e o julgamento
se processarão conforme ficou dito, mas o condenado só pagará o preço
simples. Se o vendedor for criminoso de morte e as duas partes tiverem
conhecimento do fato, não haverá anulação da venda; mas se o comprador o
ignorava, a rescisão se dará logo que ele for advertido, cabendo o
julgamento aos cinco mais jovens guardas das leis. Se o processo revelar
que o vendedor sabia de tudo, este será obrigado a purificar a casa do
comprador, de acordo com a lei dos exegetas, além de pagar-lhe o triplo do
preço combinado.

III — Quem troca dinheiro por dinheiro ou por algo animado ou inanimado,
precisa seguir a lei no que diz respeito à determinação de não dar nem
receber nada falsificado. Como para outras leis, aceitemos o prelúdio
concernente a essa espécie de impostura. A fraude, é o que todos precisam
compreender, como a mentira e o embuste constituem um gênero único,
considerado erroneamente pelo povo como justificável em certos casos,
conforme as condições do momento. Mas, como de regra se esquecem de
definir e determinar a oportunidade, o lugar e o tempo, com isso só
causam prejuízo a si próprios e a terceiros. O legislador não se pode
permitir essa imprecisão, competindo-lhe, ao contrário, assinalar os limites
mais ou menos estreitos de cada caso, tal como passaremos a fazer desde
agora. Ninguém perpetre embuste, mentira ou fraude, seja no que for, sob a
invocação dos deuses, nem por atos nem por palavras, se não quiser chamar
sobre si o maior ódio das divindades. É o que faz quem jura falso sem
o menor respeito aos deuses e, em segundo lugar, o que mente na presença
de seus superiores. Neste particular, os bons são superiores aos maus, como,
de modo geral, o são os velhos com relação às pessoas de menos
idade. Assim, os pais são superiores aos filhos, os homens feitos, às
mulheres e crianças; os dirigentes, a seus subordinados. Daí, a necessidade
de todos serem respeitados em qualquer espécie de governo, principalmente
nos governos políticos, tema primacial de nosso estudo. O comerciante que
falsifica artigos expostos no mercado mente e frauda, sobre confirmar sua
dobrez com o juramento dos deuses, válido para a observação das leis e do
regulamento dos agora nomos, sem consideração aos homens nem respeito
aos deuses. Sob todos os pontos de vista, é prática recomendável não usar
levianamente o nome dos deuses, levando-se em conta esse sentimento de
pureza e santidade muito próprio da maioria dos homens, em tudo o que diz
respeito às divindades. Para quem não aceita a advertência, vige a seguinte
lei.

Quem expõe à venda, no mercado, qualquer artigo, nunca deve pedir dois
preços; peça um, simplesmente, e se ninguém aceitar sua oferta, seja
honesto voltando para casa com a mercadoria, sem nesse dia aumentar nem
diminuir o preço. Abstenha-se de elogiar seus artigos e de jurar sem
necessidade. Se alguém infringir esse dispositivo legal, qualquer cidadão
que por ali passar, de idade acima de trinta anos, poderá castigar
impunemente o perjuro, e se não der maior importância ao caso e insistir na
infração, incorrerá na pecha de traidor ás leis. Quem encontrar um vendedor
de mercadoria falsa que não acate o presente regulamento, uma vez
positivada a fraude e formulada a queixa perante os magistrados, se for
escravo ou meteco poderá ficar com a mercadoria; se se tratar de algum
cidadão que não consiga justificar sua denúncia, será declarado culpado de
defraudar os deuses, e se apresentar a prova exigida, dedicará a mercadoria
às divindades protetoras do mercado. Quanto ao falsificador apanhado em
flagrante nalguma venda desse tipo, além de perder a mercadoria
falsificada, receberá chibatadas em número igual ao das dracmas por ele
perdidas, sendo-lhe aplicada no mercado essa correção por um arauto que
procla-mará em altas vozes o motivo do castigo. Os agoránomos e guardas
das leis se informarão junto de pessoas entendidas em matéria de
falsificações e outras trampolinices dos comerciantes, e determinarão por
escrito o que lhes é permitido ou proibido, regulamento esse que será
gravado numa estela a ser colocada diante da casa dos agoránomos, ao lado
de outras leis ali postas para orientação dos negociantes do mercado.
Quanto às funções dos ast momos, já dissemos antes o que era necessário.
Mas, se acharem que o regulamento é falho nesse particular, poderão
entender-se com os guardas das leis e redigir o que lhes pareça faltar, para
ser gravado noutra estela, que será colocada ao lado da primeira, à guisa de
complementação legal.

IV — Depois da legislação a respeito de falsificação de mercadorias, segue-


se naturalmente o estudo da do comércio a varejo. Neste particular, após um
apanhado do assunto e conselhos de ordem geral, trataremos
especificamente das leis. É óbvio que o comércio a varejo não foi instituído
nas cidades para prejudicá-las, mas com intenções diferentes. De fato, como
não ser considerado benfeitor quem faz uma distribuição uniforme e
equitativa de gêneros tão desiguais e baralhados? Declaremos desde logo,
que o poder da moeda facilita essa distribuição, convindo acrescentar que é
outra a justificativa da existência de comerciantes. Os estalajadeiros, os
trabalhadores assalariados e outros mais, de profissões consideradas
relativamente decentes, não têm outro fim se não for o de prover às
necessidades de todos e repartir equitativamente os bens. Passemos, agora,
a indicar a razão de não parecerem tais profissões nem belas nem decentes,
bem como a do descrédito de que todas se ressentem, a fim de remediar
com a lei, senão todo o mal, ao menos uma parte. Trata-se de um tema nada
fácil, que exige habilidade fora do comum.

Clínias — Como assim?


O Ateniense — Meu caro Clínias, é pequena a raça dos homens, sendo, por
natureza, pouco numerosos os que se beneficiam de uma educação
aprimorada, para, na ocasião de serem solicitados pelos desejos, conter-
se nos limites da moderação e, na oportunidade de ganhar muito dinheiro,
saibam utilizá-la com comedimento, preferindo a medida a quantidade. Ora,
a maioria dos homens é conformada precisamente de maneira oposta; se
forem medidas pelos desejos, são infinitas suas necessidades, e sendo-lhes
facultado ganhar moderadamente, só se contentam com lucros exorbitantes.
Esse o motivo de terem adquirido má fama as profissões de vendedores,
comerciantes e estalajadeiros, e de serem consideradas todas elas altamente
desonrosas. Compreendo todo o ridículo do que vou dizer, mas não
posso calar-me. Se fosse possível — o que nem é praticável nem de desejar
— obrigar os indivíduos excepcionalmente honestos de todos os países a
exercer por determinado tempo a profissão de estalajadeiro, revendedor ou
qualquer outra de natureza diferente, ou se as mulheres se vissem forçadas,
por imposição do destino, a exercer essas atividades, veríamos como toda a
gente essas profissões seriam gratas e aceitáveis, fossem desempenhadas
com honestidade, tais pessoas só receberiam de nós todos as provas de
deferência que concedemos às mães e às amas. Mas hoje, quando alguém,
com intuitos puramente comerciais, abre uma estalagem em lugar deserto e
distante de tudo, e constrói um pouso de acesso difícil, para oferecer grata
acolhida aos viajantes, onde encontrem abrigo tranquilo e frescura para o
calor sufocante, em lugar de recebê-los como amigos e de presenteá-los
como a hóspedes bem vindos, trata-os como a inimigos e escravos
conquistados em combate, que só são redimidos mediante resgate vultoso,
injusto e, sobretudo, humilhante. Foi com esses abusos e outros do mesmo
tipo que se desacreditaram as profissões criadas para aliviar nossas
necessidades. Para todos eles é que o legislador terá de encontrar o
remédio. Provérbio antigo e verdadeiro é o que nos adverte da dificuldade
de combater dois males ao mesmo tempo, e mais se forem opostos, tal
como se observa por ocasião de doenças e em muitas outras conjunturas. Na
presente situação é justamente o que se verifica: o combate em duas frentes
com a pobreza e a riqueza, sendo que esta corrompe a alma dos homens
com suas delícias, e a outra, à força de aperturas, a priva do sentimento
de vergonha. Como obviar todos esses inconvenientes numa cidade
organizada com sabedoria? Inicialmente, é preciso que a classe dos
comerciantes retalhistas seja o menos numerosa possível; em segundo lugar,
só confiar esse gênero de negócios a pessoas cuja corrupção eventual não
acarrete maiores danos à sociedade; e por último, encontrar um meio de
evitar que as pessoas encarregadas dessa profissão não adquiram hábitos
aviltantes e desmoralizadores da alma.

Depois desses preliminares, redijamos a seguinte lei, com o desejo de


acertar. Nenhum dos magnetas que o favor dos deuses permitiu prosperar
em sua nova residência, ou sejam, os proprietários dos cinco mil e quarenta
lotes de terra e dos correspondentes lares, nem a contragosto nem por
deliberação própria poderá ser comerciante por atacado ou a varejo, nem
trabalhe como empregado de nenhum particular que não seja do mesmo
nível social que ele, como seria o caso de seu pai ou mãe, os ascendentes
diretos ou pessoas de mais idade que ele, todos de condição livre, aos quais
ele serviria livremente. Para o legislador não é fácil determinar com
precisão o que fica bem a um homem livre ou o que é indigno dele. Cabe
aos detentores dos prêmios de virtude declarar o que lhes agrada ou provoca
repulsa. Se algum cidadão adotar a profissão servil de retalhista, quem
quiser poderá acusá-lo de desonrar a família, o que fará perante cidadãos
reconhecidamente virtuosos; e se for admitido que ele avilta os parentes
com o exercício dessa profissão servil, será condenado à pena de prisão por
um ano e a desistir daquela atividade. Em caso de reincidência, a prisão será
de dois anos, e a cada nova condenação o tempo da penalidade não deixará
de ser dobrado.

A segunda lei rezará: Só metecos ou estrangeiros poderão dedicar-se ao


mercado a varejo. Em terceiro lugar virá a terceira lei, para que todas as
pessoas que convivem conosco na cidade sejam tão excelentes quanto
possível, ou, pelo menos, pouco nocivas. Para isso, os guardas das leis
precisarão lembrar-se de que eles não têm de cuidar apenas dos que são
fáceis de vigiar para que não se tornem criminosos nem venham a violar as
leis, visto serem todos, por origem e educação, bem orientados, mas e
principalmente dos que não se beneficiaram dessas vantagens e escolhem
profissões que contribuem grandemente para deixá-los maus: desses é que
precisarão cuidar. E como o comércio a varejo é muito variado e abrange
um sem-número de atividades, depois de só permitirem as que lhes
parecerem estritamente indispensáveis para a vida da cidade, os guardas das
leis se entenderão com as pessoas conhecedoras das diferentes modalidades
desse comércio, à maneira do que determinamos há pouco, quando
tratamos das falsificações, assunto, aliás, de muita afinidade com o que nos
ocupamos neste momento, e vejam que balanço entre a receita e a despesa
promoverá o lucro mais lícito para o varejista, e reduzindo a escrito e
afixando as conclusões acerca da relação entre o preço de compra e o de
venda, confiem parte delas aos agoránomos, parte aos astínomos e parte aos
agrônomos. Desse modo, o comércio a retalho será de vantagem para todos,
só prejudicando em grau muito relativo aos que na cidade a ele se
dedicarem.

V — Em qualquer obrigação contratual não cumprida em suas cláusulas,


salvo a hipótese de ter havido proibição por lei ou decreto, ou impedimento
por alguma violência injusta ou acidente imprevisto: nos demais casos,
caberá queixa perante os juízes de cada tribo, por falta de cumprimento do
contrato, a menos que as partes entrem antes em acordo, pela interferência
de árbitros ou de vizinhos. A Hefesto e a Atena é consagrada a corporação
dos trabalhadores, cujas artes conjugadas organizaram nossa vida, como
também o são, por outro lado, a Ares e a Atena a dos que, com suas artes de
natureza defensiva, servem de proteger as obras de outros artistas,
parecendo justo, assim, que tal corporação também seja dedicada a essas
divindades. O que uns e outros fazem é servir ao povo e ao país, ou à frente
de expedições guerreiras ou fabricando, mediante salário, toda sorte de
instrumentos e produtos artificiais. Por isso mesmo, em tais profissões
ninguém deve valer-se de embustes, em atenção a seus
antepassados divinos. Assim, na hipótese de algum artesão não entregar, por
culpa própria, a encomenda no prazo combinado, sem a menor reverência à
divindade que lhe assegura a subsistência, por estar convencido, em sua
cegueira, de que a divindade amiga lhe perdoará, primeiro cairá sobre ele a
punição divina, depois ser-lhe-á aplicada a seguinte lei: Pagará ao cliente o
preço da encomenda não entregue, e, dando logo início ao trabalho,
a aprontará de graça dentro do prazo estipulado. Para quem aceita a
responsabilidade de alguma tarefa, a lei dá o mesmo conselho que deu ao
comerciante, de não exorbitar no preço da mercadoria, mas contentar-
se com seu justo valor. A mesma coisa determinará a quem se encarrega de
algum trabalho, porque só ele, como profissional, é que conhece o preço
exato das coisas. Numa cidade de homens livres ninguém deve prevalecer-
se de sua arte, em que tudo é claro e, por natureza, estreme de mentiras,
para lesar o particular com embustices, cabendo processo judiciário, por
parte do prejudicado, contra quem assim proceder.

Por outro lado, se o cliente não pagar ao artesão o preço combinado, de


acordo com a lei, sem respeito a Zeus protetor da cidade e a Atena, sua
colaboradora, por amor de um pequeno lucro, e despedaçar os fortes laços
da comunidade, a lei sairá em socorro das divindades para fortalecer esses
laços. Quem recebeu, por conseguinte, a encomenda, e no prazo combinado
não pagou o preço justo, terá de desembolsar o dobro, e se deixar passar um
ano, apesar de que em outras transações o dinheiro não vença juros, no caso
concreto, por cada mês vencido pagará um óbolo por dracma. Os processos
de infração dessa natureza serão julgados nos tribunais das respectivas
tribos.

Ainda que de passagem, será justo falar da atividade dos que tomam parte
na guerra, os generais e todos os entendidos em operações militares, uma
vez que, de regra, são eles os verdadeiros obreiros de nossa salvação. Se
algum deles, espontaneamente ou por ordem de cima, aceitar a incumbência
de algum trabalho de utilidade pública e dela se desempenhar a contento, a
lei não o defraudará das honrarias merecidas, que são o verdadeiro soldo
dos guerreiros, nem se mostrará parca de elogios, como também o
censurará, no caso de assumir a responsabilidade da execução de qualquer
empreendimento militar e não o concluir, como fora de esperar.
Apresentemos, pois, uma lei nesse sentido, entremeada de elogios, mais
aconselhadora do que propriamente punitiva, para uso da maioria, sobre o
mérito desses varões destemidos, verdadeiros salvadores da cidade, ou seja
pela coragem muito própria ou por sua eficiência nas operações de guerra.
Na escala das distinções cabe-lhes o segundo lugar, pois o primeiro e
as maiores honrarias são reservadas particularmente para os que se
distinguirem na observância das ordens escritas dos legisladores.

VI — Praticamente, já tratamos de todas as convenções realizáveis entre os


homens, com exceção das que dizem respeito aos órfãos e os cuidados dos
tutores com referência a seus pupilos. Depois do que ficou estabelecido, é o
que, de um jeito ou de outro, teremos forçosamente de tratar. Tudo o que se
verifica nesse setor decorre dos caprichos dos que se sentem perto
de morrer, relativamente às disposições testamentárias e os azares da vida
que os levam a não tomar nenhuma providência nesse sentido. Empreguei a
expressão Forçosamente, Clínias, por pensar nas dificuldades e
aborrecimentos inerentes a tal assunto; mas não é possível pô-lo de lado
sem introduzir nele um pouco de ordem, para evitar que os homens façam
disposições testamentárias discordantes entre si e contrárias tanto às leis
como aos sentimentos dos vivos e ao que eles próprios pensavam antes de
sonhar em fazer o testamento, caso queiramos aceitar como absolutamente
válido tudo o que fizerem nesse sentido, não importando a disposição de
ânimo em que venham a encontrar-se no fim da vida. Quase todos nós,
quando pensamos que a morte se aproxima, ficamos desorientados e de
ânimo abatido.

Clínias — Que queres dizer com isso, forasteiro?

O Ateniense — Clínias, é difícil tratar com quem está na véspera de morrer;


traz sempre a boca cheia de discursos incômodos e assaz embaraçosos para
os legisladores.

Climas — Como assim?

O Ateniense — Como quer mandar em tudo, só fala em tom colérico.

Climas — De que jeito?

O Ateniense — Ó deuses! diz ele; não concebo que não me seja permitido
deixar meus bens para quem eu quiser, mais para uns e menos para outros,
conforme se tiverem revelado bons ou maus a meu respeito, na prova tão
decisiva das doenças ou na velhice e em conjunturas semelhantes.

Clínias — E não achas, forasteiro, que ele teria razão de falar dessa
maneira?

O Ateniense — O que me parece, Clínias, é que os legisladores de antanho


eram fracos, sendo que revelaram na feitura de suas leis uma visão dos
negócios humanos por demais estreita, como era estreito tudo o que a esse
respeito considerassem.

Clínias — Como assim?


O Ateniense — O medo, meu caro, de tais falatórios levou-os a formular
uma lei que permitia a qualquer pessoa dispor de seus bens da maneira que
entendesse; mas eu e tu vamos dar uma resposta mais equilibrada aos teus
concidadãos que estiverem na eminência de se despedir da vida. Amigos,
lhes diremos, de acordo com aquilo da Pítia, é muito difícil para todos
vós, que, em verdade, só tendes um dia de vida, conhecer-vos a vós
mesmos, nas presentes circunstâncias. Como legislador, declaro-vos que
nem vós nem vossos bens vos pertencem, mas a toda vossa geração, tanto
os antepassados como os que ainda vão nascer, ou melhor: à cidade é que
verdadeiramente pertence vossa família, com todos os seus haveres. Nessas
condições, quando estiverdes assoberbados pelo mar encapelado das
doenças ou da velhice, e algum adulador vos levar a dispor de vossos bens
por maneira inconveniente, no que depender de mim não darei meu
consentimento; ao redigir minha lei só tenho em mira a conveniência da
cidade e de vossa família, sem atender a interesses particulares, o que é de
inteira justiça. Com submissão e boa vontade, prossegui pela estrada que
vos aponta a natureza humana; a nós é que compete cuidar com a máxi-ma
dedicação do que deixardes, sem favorecer nenhuma das partes, em
detrimento da outra. São esses os conselhos, Clínias, à guisa de proêmio,
que dirijo aos vivos e aos mortos. A lei será redigida nos seguintes termos.

VII — Quem fizer testamento para dispor de seus bens, se tiver filhos a
primeira coisa a pensar é instituir como seu herdeiro universal o que lhe
parecer mais digno. Com respeito aos demais filhos, na hipótese de ceder
algum para ser adotado por terceiros, deverá indicar o fato no testamento.
Se sobrar filho a quem não toque nenhuma herança adotiva e que, com toda
a probabilidade, acabe sendo enviado para alguma colônia, conforme o
determina a lei, o pai poderá entregar-lhe o que entender de sua fortuna
particular, com exclusão dos bens patrimoniais e tudo o que se lhe
relaciona. Havendo muitos filhos nessas condições, o pai dividira entre
eles, muitos filhos nessas condições, o pai dividirá entre eles, como
entender, o excedente do seu patrimônio. Se algum filho tiver casa própria,
não lhe deixará nada, como não deixará à filha, no caso de já estar noiva; se
não estiver, deixará. Se posteriormente às disposições testamentárias algum
filho ou filha vier a herdar um dos lotes de terra da comunidade, cederá sua
parte ao herdeiro do testador. Se este não deixar filhos homens, mas apenas
mulheres, dará a uma delas o marido que entender, e, depois de o adotar
como filho, fará dele seu herdeiro universal. Se lhe morrer um filho antes de
ser inscrito na classe dos homens feitos, legítimo ou adotivo, designará no
testamento outro menino para ficar, sob melhores auspícios, no lugar do
primeiro. Se o testador não tiver filhos, poderá deixar a quem quiser um
décimo dos bens adquiridos, passando tudo o mais para o filho adotivo,
com o que ficará a abrigo de críticas, além de ganhar um filho afetuoso,
com o apoio da lei. Se por ocasião de redigir suas últimas disposições os
filhos ainda precisarem de tutor, o testador indicará quem e quantos
entender, uma vez que todos aceitem a incumbência, sendo válida, sempre,
a indicação em semelhantes circunstâncias. Se morreu intestado e deixou de
designar tutores, a curatela pertence, de direito, aos parentes mais próximos,
da parte do pai e da mãe, dois do lado paterno e dois do materno, e mais um
amigo do morto, aos quais os guardas das leis entregarão os órfãos
carecentes de tutor. Tudo o que diz respeito à tutela e aos órfãos ficaá a
cargo dos quinze guardas das leis mais idosos, que se revezarão pelo
critério da idade, em grupos de três, servindo três no primeiro ano, três no
subseqüente, até o término do ciclo de cinco anos, devendo ser observada à
risca, dentro do possível, semelhante determinação.

Se alguém morrer sem testamento e deixar filhos dependentes de tutela,


compete a essa mesma lei prover às necessidades dos menores. Quem
morrer num desses acidentes da fortuna e só deixar filhas, perdoe ao
legislador se dos três pontos a que todo pai deve atender quando trata de
casar as filhas, só considerar dois: a sobrevivência da família e a
preservação do patrimônio hereditário; o terceiro, com o qual se
preocuparia qualquer pai, com observar os costumes e o caráter dos
cidadãos, a fim de escolher o que mais lhe convém como filho e marido de
sua filha, esse ficará de lado, por tratar-se de uma investigação impossível
de ser feita por eles. Para tais casos, a lei mais eficiente será a seguinte. Se
alguém morre intestado e deixa filhas, o irmão por parte de pai ou o do lado
materno que não possua patrimônio desposará a filha e ficará com o
patrimônio do morto; se não tiver irmão vivo, mas apenas o filho do irmão,
valerão as mesmas determinações se as idades se combinarem; em falta de
ambos, também servirá um sobrinho por parte da irmã; o quarto será o tio
do morto, pelo lado paterno; o quinto, o filho desse tio; o sexto, o filho do
irmão do pai. Assim se procederá, sempre que o morto só deixar filhas, de
acordo com o parentesco mais próximo, passando dos irmãos para os
sobrinhos e dando-se sempre a precedência aos homens da mesma geração
sobre as mulheres. Quanto à época indicada ou não para o casamento, o juiz
decidirá depois do competente exame, sendo que os rapazes serão
examinados nus e as meninas despidas somente até à altura do umbigo. Se a
família não tiver nenhum parente, contando-se até os netos e o irmão e os
filhos do avô, então a herdeira, de acordo com o tutor, escolherá dentre os
cidadãos o que ela quiser e que se tenha agradado dela, o qual passará a ser
herdeiro do morto e noivo de sua filha. Pode muito bem acontecer que em
nossa cidade haja falta absoluta de homens nessas condições. Uma rapariga,
em tais circunstâncias, não encontrando marido na cidade e vendo algum
rapaz na iminência de ser enviado para alguma colônia, se achar que pode
herdar o patrimônio da família, sendo ele seu parente, apresente-se, em
concordância com as determinações legais, para tomar posse da herança;
não pertencendo ele às famílias do lugar nem tendo a menina nenhum
parente na cidade, o rapaz terá o direito, por indicação dos tutores e
vontade da herdeira, de desposá-la e entrar na posse da herança do
intestado, logo que se mude para a cidade.

Vindo alguém a morrer sem testamento e sem deixar filhos nem filhas, em
tudo vigorará a lei anterior; mas um casal formado por dois parentes jovens
entrará na posse da casa desabitada, cabendo-lhes, de direito, a herança; a
irmã do morto terá a primazia; depois a filha do irmão; em terceiro lugar
virá a filha da irmã; em quarto, a irmã do pai; em quinto, a filha do irmão
do pai; e em sexto, a filha da irmã do pai. Estas serão dadas em casamento
aos parentes mais próximos do morto e de acordo com as determinações
enunciadas há pouco.

Não desconhecemos quanto é difícil suportar o fardo de nossas leis, quando


estas impõem aos parentes próximos do morto desposar uma pessoa da
família sem atentar nos mil inconvenientes que impedem os homens de
obedecer de bom grado a semelhante determinação, podendo haver quem
prefira sofrer seja o que for, sempre que se positiva alguma doença ou
debilidade do corpo ou do espírito em quem querem obrigá-lo a casar.
Poder-se-ia imaginar que o legislador nada disso leva em consideração.
Engano manifesto. À guisa de proêmio e em defesa tanto do legislador
como das pessoas para as quais ele redige suas leis, digamos que
os indivíduos atingidos por tais dispositivos devem desculpar o legislador,
porque, visando este apenas ao bem público, não pode ocupar-se com os
inconvenientes que daí advenham para os particulares, como também será
justo reconhecer que os particulares nem sempre poderão cumprir as
determinações ditadas por quem desconhecia esses obstáculos.

Clínias — Numa situação dessas, forasteiro, qual será a conduta


aconselhável?

O Ateniense — A nomeação, Clínias, de árbitros para decidir entre essas


leis e as partes interessadas.

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Pode acontecer que o sobrinho do morto e filho de pai rico,


habituado a uma vida de luxo e já com a idéia de arranjar casamento
vantajoso, não concorde em desposar a filha de seu tio. Por vezes, também,
será fatalmente levado a rebelar-se contra a lei, quando o legislador lhe
impõe um fardo pesado, ao obrigá-lo a desposar uma demente ou pessoa
atacada de qualquer enfermidade do corpo ou da alma, o que lhe tornaria a
vida insuportável.

Arrematemos, pois, esse tópico com a seguinte lei: Se alguém reclamar


contra as leis testamentárias, seja em assuntos de outra natureza seja no que
entende particularmente com o casamento, por acreditar que, se o legislador
estivesse vivo e ali presente, jamais cometeria semelhante violência nem
obrigaria ninguém a casar-se ou a deixar-se casar, conforme fazem os que
aplicam leis redigidas por outros, objetando algum dos parentes, ou mesmo
o tutor, que o legislador deixou os quinze guardas das leis como árbitros ou
verdadeiros pais dos órfãos e órfãs: então, as pessoas interessadas deverão
procurá-los para dirimir a dúvida, aceitando como boa sua decisão. Se
alguém alegar que, com isso, atribui-se excessiva autoridade aos guardas
das leis, o caso será transferido para o tribunal de juizes seletos, os quais
decidirão a pendência. Quem perder, só ganhará do juiz censuras e
descrédito, o que para todo homem sensato é castigo mais grave do que
multa em dinheiro.

VIII — Para uma criança, ficar órfã é nascer pela segunda vez. Já vimos
como são criadas e educadas depois do primeiro nascimento; após o
segundo, em que se vêem privados dos pais, será preciso excogitar um meio
para que a desgraça da orfandade não desperte muita piedade com relação
aos pequenos. Inicialmente, a lei determinará que os guardas das leis
fiquem no lugar do pai e da mãe do órfão, em nada inferiores aos primeiros,
com a recomendação de cuidar deles, à razão de três em cada ano, como se
todos fizessem parte de sua própria família. Para isso, lhes dirigimos
um proemio, de interesse também para os tutores, relativo à educação dos
órfãos.

Afigura-se-nos oportuno o que dissemos há pouco, que as almas dos


mortos, cessada a vida, conservam certa capacidade de interessar-se pelos
negócios humanos, o que é a pura verdade, porém exigiria longa
explanação. A esse respeito, precisamos dar crédito a outras lendas
correlatas, tão numerosas quanto antigas, como também aos legisladores,
unânimes todos eles em confirmar a verdade do fato, a menos que
queiramos considerá-los inteiramente destituídos de senso. Se tudo é assim
mesmo por natureza, antes de mais nada os legisladores terão de temer aos
deuses súperos, sempre sensíveis ao estado de abandono dos órfãos, e
depois às almas dos mortos, naturalmente zelosas de seus descendentes, e
tão benéficas para os que tratam bem deles como contrárias aos que os
abandonam. Respeitem, também, a alma dos que chegaram à velhice
cercado da maior consideração, porque nas cidades prósperas e governadas
por leis sábias, os filhos de seus filhos se comprazem em venerá-los; todos
eles são de ouvido fino e vista penetrante para tudo o que respeita aos
órfãos, mostrando-se benévolos para os que neste ponto se conduzem com
justiça, e particularmente revoltados contra os que ofendem o abandono em
que ficaram os órfãos, convencidos de que eles constituem o mais valioso e
sagrado depósito. A tudo isso os tutores e magistrados devem aplicar a
maior atenção, no empenho de criar e educar os órfãos e de por eles fazer
tudo o que estiver em suas possibilidades, como se eles próprios e seus
filhos tivessem algum dia de receber a recompensa.

Quem acatar esses instruções preliminares da lei e não ofender em nada os


órfãos, não virá a sehtir as con-seqüências da cólera do legislador por faltas
dessa natureza; mas, o que desobedecer e cometer ato injusto contra
alguma criança privada de pai e de mãe, pagará o prejuízo em dobro do que
lhe competiria pagar se maltratasse alguma criança cujos pais ainda
estivessem vivos. Quanto às leis relativas aos cuidados dos tutores, com
referência aos seus pupilos, bem como à vigilância que sobre os tutores
devem exercer os magistrados, se na educação de seus próprios filhos e na
administração dos negócios particulares não criaram modelos de educação
de meninos livres e carecerem de leis perfeitamente claras acerca dessa
matéria, haverá motivo para formular uma lei concernente às tutelas, de
características muito próprias, com o fito de especificar minuciosamente as
diferenças a serem observadas entre a vida dos órfãos e a das outras
crianças. O certo é que, nesse particular, entre nós, presentemente não há
grande diferença entre a educação dada aos órfãos e a das crianças que
ainda possuem pais, conquanto não se observe, absolutamente, igualdade no
que diz respeito a preferências, preterições e cuidados de modo geral. Por
essa razão, a parte da legislação que cuida dos órfãos achou de bom aviso
recorrer a exortações e ameaças. Acrescentemos que a seguinte advertência
será bastante oportuna.

Tanto o tutor de alguma criança, menino ou menina, como os guardas das


leis encarregados de sua vigilância não deverão tratar com menos carinho o
infeliz órfão que a sorte privou dos pais do que a seus próprios filhos, nem
mostrar maior zelo na administração de seus bens particulares do que na
dos órfãos, senão mesmo muito maior interresse. Será essa a regra geral que
dispõe do comportamento do tutor com relação aos órfãos. Se o magistrado
ou o tutor não proceder de acordo com essa lei, o magistrado punirá o tutor,
e o tutor citará o magistrado perante o tribunal dos juízes seletos e o multará
no dobro do que os juizes arbitrarem. Se os parentes do órfão ou qualquer
outro cidadão julgarem que o tutor negligencia de seus deveres ou prejudica
seu pupilo, convocá-lo-á perante o mesmo tribunal, vindo ele a pagar o
quádruplo da multa a que for condenado, metade da qual ficará com o
pupilo e metade com quem promoveu o processo. Se, ao entrar na
puberdade, o órfão achar que o tutor não adminis-trou seus bens com
honestidade, terá o prazo de cinco anos para acioná-lo, a contar do término
da curatela. Sendo reconhecida a culpa do tutor, o tribunal determinará a
multa a pagar ou a pena que ele terá de cumprir; comprovada negligência
por parte do magistrado, com prejuízo para o órfão, o tribunal fixará o
montante da competente indenização; bem caracterizada a injustiça, além
da pena de multa, será demitido de suas funções o guarda da lei, cabendo à
assembléia popular nomear outro guarda no lugar desse, com atuação
no território e na cidade.

IX — Os desentidmentos entre os pais e os filhos e entre estes e os pais são,


por vezes, mais violentas do que fora admissível, em que os pais imaginam
que o legislador precisaria dar-lhes permissão para proclamar de público
por um arauto, diante de todos, que o filho deixa de ser legalmente seu
filho, enquanto estes, por sua vez, se consideram com o direito de denunciar
como dementes os pais, sempre que fiquem reduzidos a situação
humilhante, por doença ou velhice. Isso, aliás, só ocorre entre pessoas de
mau caráter, de uma e de outra parte, pois se apenas a metade fosse má,
por exemplo, não sendo o pai ruim mas somente o filho, ou vice-versa, não
se veriam tantas infelicidades surgir de semelhantes dissenções. Noutra
cidade, o filho assim renegado de público não perderia forçosamente a
qualidade de cidadão; porém na que vai ser dirigida por nossas leis, é
inevitável mudar-se para outro país o filho que deixou de ter pai, por não
ser permitido acrescentar uma nova família às cinco mil e quarenta já
estabelecidas. Por isso mesmo, o filho condenado juridicamente não terá de
ser renegado apenas pelo pai, mas por toda a família. Em casos
semelhantes, a legislação adotará o seguinte critério. Quem conceber a
infeliz idéia, com razão ou sem causa justificável, de eliminar de sua
família o membro que ele mesmo gerou e educou, não poderá pô-la em
prática sem maiores formalidades; primeiro, terá de convocar os membros
da família, até seus consobrinhos e também os parentes do filho do lado
materno, depois do que acusará o filho diante de todos, demonstrando-lhes
o que fez aquele para precisar ser renegado por toda a família, por meio
de pregão público; mas também terá de conceder ao filho oportunidade de
provar que não merece semelhante tratamento. Se o pai os convencer e
obtiver mais da metade dos sufrágios de todos os presentes, sem ser levado
em linha de conta o voto do pai, da mãe e do acusado, e só considerando,
naturalmente, os parentes de ambos os sexos de maior idade, então, e
somente nessas condições, ser-lhe-á permitido apregoar a exclusão do filho;
noutras circunstâncias, de jeito nenhum. Se algum cidadão quiser adotar o
filho expulso, nenhuma lei deverá opor-se a essa determinação, pois no
decurso da vida o gênio dos moços passa naturalmente por muitas
modificações. Mas, se dentro de dez anos ninguém manifestar desejo de
adotar o filho renegado, os cidadãos encarregados de enviar para as
colônias os jovens excedentes, esforçar-se-ão para que este seja despachado
para um bom lugar.

Se por motivo de doença ou de velhice ou de gênio insuportável, ou por


todas essas causas reunidas, alguém se torna muito diferente do comum dos
homens sem que os estranhos tenham conhecimento do que se passa, e essa
pessoa, como dono absoluto de seus bens, começa a delapidá-los, estando o
filho em dificuldade para acusá-lo de demente, eis o que a lei poderá fazer
a seu favor. Inicialmente, deverá procurar os guardas das leis mais idosos
para expor-lhes a triste situação do pai do moço, os quais, depois de
consciencioso estudo do caso, lhe dirão se ele deve ou não deve apresentar
queixa em juízo, e em caso afirmativo, lhe servirão de testemunha e de
advogado no processo. Uma vez condenado, o pai, daí por diante, não
poderá dispor da menor parcela de seus bens, sendo tratado o resto da vida
como uma criança.

X — Quando houver desavença permanente entre marido e mulher, por


incompatibilidade de gênio, dez homens de idade mediana entre os guardas
das leis chamarão a si a direção do caso, de parceria com dez mulheres da
mesma idade e com prática de assuntos de casamento. Se conseguirem
reconciliá-los, o que eles determinarem será legalmente válido; mas, se o
ânimo dos cônjuges estiver muito agitado, procurarão, por todos os meios,
formar dois casais diferentes com o par divorciado. Como é de presumir
que nenhum deles seja de gênio muito dócil, esforçar-se-ão para uni-los a
pessoas de temperamento mais brando e cordato. Se os primitivos cônjuges
não tiverem filhos, ou tiverem poucos, as novas uniões deverão ser
promovidas com vistas ao aumento da prole; havendo filhos em número
suficiente, tanto a separação dos dois como as novas uniões terão como fim
a possibilidade de envelhecerem juntos os novos cônjuges e de cada um
cuidar do outro.

No caso de morte de esposa que deixe filhos e filhas, a lei aconselhará ao


marido, porém comedidamente, a criar os filhos sem dar-lhes madrasta; não
havendo filhos, será obrigado a casar, a fim de tê-los em número suficiente
para a conservação da casa e da cidade. Sendo o marido o primeiro a morrer
e deixando bastante filhos, a esposa sobrevivente os criará; se for
considerada muito jovem para continuar viúva, sem prejuízo para a saúde,
seus parentes mais chegados se entenderão com as mulheres encarregadas
dos assuntos de casamento, pondo-se em prática e medida que a todos
parecer mais indicada; se não tiver filhos, casar-se-á para vir a tê-los, pelo
menos dois: um menino e uma menina, conforme determina a lei.

Havendo acordo em atribuir os filhos aos pais que o geraram, poderá ser
preciso decidir com quem ele deve ficar. Se uma escrava se unir a um
escravo ou a um homem livre ou a um liberto, em qualquer hipótese o filho
pertencerá ao dono da escrava; se a união se deu entre mulher livre e
escravo, o filho será também do dono deste. Se o senhor ou a senhora tiver
um filho com algum de seus escravos e o fato vier a propalar-se, as
mulheres enviarão para outro território o filho da senhora juntamente com o
pai da criança, fazendo o mesmo os guardas das leis com o filho do senhor
e a mãe da criança.

XI — Descuidar dos pais é o que nem Deus nem nenhum homem sensato
aconselhará a quem quer que seja. Convém considerar que o preâmbulo
seguinte, por nós elaborado acerca do culto dos deuses, se
relaciona intimamente com o respeito ou o desprezo relativo aos pais.
Desde os tempos mais remotos, por toda a parte são de duas espécies as leis
relativas aos deuses. Rendemos culto a certas divindades porque as vemos
claramente; de outras, construímos imagens à sua semelhança, e cultuando-
as, apesar de não terem vida, o fazemos na convicção de que com isso
alcançaremos das divindades animadas abundante graça e reconhecimento.
Assim, quem tem a felicidade de possuir em casa verdadeiro tesouro, a
saber, o pai e a mãe ou os avós de ambos os lados, alquebrados pela velhice,
não imagine, nem de longe, com uma jóia dessas ao pé da lareira, que
nenhuma imagem dos deuses poderia exercer maior influência na sua vida,
desde que a trate com a merecida distinção.

Clínias — Segundo teu modo de pensar, qual é a maneira certa de honrá-


los?

O Ateniense — Vou dizer-vos, pois são verdades, amigos, em que vale a


pena insistir.

Clínias — Podes falar.


O Ateniense — Édipo, é o que afirmamos, tratado ignominiosamente,
lançou contra os filhos maldições que, segundo todos cantam, foram
ouvidas e atendidas pelos deuses; Amíntor, também, arrebatado pela
cólera, amaldiçoou seu filho Fenice, como fez Teseu com Hipólito, e uma
infinidade de pais com seus próprios filhos, o que prova claramente que os
deuses ouvem as imprecações dos pais contra os filhos. As maldições
paternas são de efeito muito mais rápido do que as de uma pessoa para
outra, o que é juitíssimo. Ora, se se considera muito natural que a divindade
atenda às súplicas de um pai ou de uma mãe, ofendidos gravemente pelos
filhos, não é de acreditar que quando eles são tratados com o merecido
respeito e, no auge do contentamento, imploram aos deuses as maiores
venturas para os filhos, não nos concedem os deuses tudo o que
eles pedem? De outro modo, não seriam equitativos na distribuição dos
bens, o que não fora, é o que afirmamos, digno dos deuses.

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Voltemos a considerar o que dis-semos há pouco, que não


temos estátua de mais valor aos olhos das divindades do que um pai ou o
avô bem velhinhos,ou a mãe nas mesmas condições; honrá-los é agradar a
Deus; de outro modo, não acolheria nossas súplicas. Estátuas maravilhosas,
sem dúvida, são os antepassados que ainda temos em casa, muito
superiores às inanimadas; quando as cultuamos, juntam suas orações às
nossas, como farão precisamente o contrário, sempre que as ofendemos; ao
passo que as inanimadas não fazem nem uma coisa nem outra. Por isso,
quem dá o tratamento merecido ao pai, ao avô e a todos os antepassados,
tem neles a estátua de maior eficiência para alcançar o favor divino.

Clínias — Ótima observação.

O Ateniense — Todo homem de senso sabe avaliar ou temer as orações dos


pais, pela certeza de que bastantes vezes muita gente já sentiu seus efeitos.
Se as coisas são, por natureza, assim mesmo, para os homens de bem é um
tesouro incalculável envelhecerem com eles seus antepassados até o limite
extremo da vida, como também sentem profunda saudade quando partem
no vigor da idade; porém nos maus isso só causa temor. Quem aceitar, por
conseguinte, nossos conselhos, trate os pais com o carinho que a lei
recomenda. Os que se mostrarem surdo ao nosso proêmio, para esses será
justo formular a seguinte lei.

Se algum dos membros de nossa cidade, tratar o pai ou a mãe com menos
respeito do que deve e não mostrar-se atencioso e obediente a suas
vontades, como o fazem em relação à de seus filhos, de seus descendentes
e até dele próprio, o ascendente assim maltratado o denunciará,
pessoalmente ou por intermédio de algum mensageiro, aos três guardas das
leis mais idosos ou a três das mulheres encarregadas dos assuntos de
casamento. Recebida a queixa, essas autoridades castigarão o culpado com
pena de açoites e de prisão, se se tratar de homem com menos de trinta
anos; para as mulheres, o limite de idade é de quarenta anos, sendo iguais as
penalidades. Se depois dessa idade continuarem a descurar-se dos pais,
chegando, mesmo, algum às vias de fato, será levado ao tribunal composto
de cento e um cidadãos escolhidos dentre os de mais idade. Reconhecida a
culpa, o tribunal fixará a pena e a multa a ser paga, sem excluir nenhum
castigo que um homem possa sofrer em sua pessoa ou em seus bens. Se a
pessoa maltratada não estiver em condições de apresentar queixa, qualquer
cidadão livre que tiver conhecimento do caso o denunciará, sob pena de
passar por mau e de ser processado seja por quem for como elemento
nocivo à comunidade. Se o denunciante for escravo, ficará livre, a saber: se
pertencer ao culpado ou à vítima, será libertado pelas autoridades; sendo
propriedade de qualquer outro cidadão, este será indenizado pelo tesouro
público, providenciando os magistrados para que ninguém cause dano ao
escravo por motivo da denúncia.

XII — Quanto aos malefícios que uns podem causar a outros por meio de
drogas, já tratamos dos de, consequências letais; mas ainda não falamos dos
incômodos provocados intenciona Imente e com premeditação por meio de
bebidas e alimentos ou com ungüentos. O difícil na presente exposição é
que há no gênero humano duas espécies de envenenamento: uma é a
que nos referimos neste momento, e que consiste em causar dano ao corpo
pela ação natural de outros corpos; a outra, por meio de sortilégios,
encantamentos e o que se denomina ligadura, chega a persuadir aos que
usam causar danos a terceiros que o conseguirão com tal recurso, como
também convence a estes últimos que ninguém lhes pode ocasionar tanto
mal como as pesspas conhecedoras de artes mágicas. O que possa haver
de verdadeiro em tudo isso não é fácil conhecer nem, depois de sabido,
deixar aceitável para ninguém; dada a desconfiança reinante nos espíritos a
respeito de tais assuntos, não vale a pena procurar convencê-los, sempre
que encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera, ou em
encruzilhadas, ou talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados, de
que não devem dar a menor importância a essas práticas, pois acerca de
tudo isso ninguém tem opinião definida.

Dividindo, pois, em duas partes a lei relativa aos envenenamentos, de


acordo com o processo escolhido para produzi-los, começaremos por pedir
a quem quer que seja, exortá-lo e aconselhá-lo a não recorrer a semelhantes
práticas nem incutir medo noutras pessoas como a crianças, que nelas
acreditam, e a não obrigar o legislador e o juiz a procurar remédios para
esses temores, pois, para começar, quem tenta produzir tais malefícios
ignora o efeito que possam ter sobre o corpo, a menos que possua o
conhecimento da medicina, como não sabe como operam tais
encantamentos, tirante a hipótese de ser adivinho ou intérprete de
presságios. A lei relativa a envenenamentos e sortilégios ficará redigida do
seguinte modo: Quem empregar veneno contra outra pessoa, sem chegar a
causar sua morte nem a de seus familiares, mas destruir seus rebanhos ou as
abelhas de sua propriedade, ou causar qualquer outro dano, mortal ou não,
se for médico e ficar provado o crime será condenado à morte. Tratando-se
de pessoa leiga em medicina, o tribunal determinará a punição ou a multa a
ser-lhe imposta. Se se provar que alguém causa danos a terceiros com o
emprego de ligaduras, encantamentos ou qualquer outro sortilégio, se for
adivinho ou intérprete de presságios morrerá; se não for adivinho e ficar
provada a culpa, far-se-á como no caso anterior: o tribunal determinará o
castigo a sofrer ou a multa a pagar.

Quem causar prejuízo a outrem, por meio de violência ou de roubo, pagará


à pessoa prejudicada indenização grande se o prejuízo for grande, e se for
menor, indenização menor, sendo sempre, em todos os casos, a multa
proporcional ao prejuízo sofrido. O malfeitor pagará também por seu delito
uma pena complementar, com o fim de corrigir-se; se errou por ignorância
ou por instigação de outra pessoa, em virtude de sua mocidade ou por outra
fraqueza do mesmo gênero, a penalidade será mais leve, como será mais
pesada se praticou o ato com irreflexão ou por deixar-se dominar pelos
prazeres e dores, medo, cobardia ou certas paixões, como a inveja, a cólera,
sempre difíceis de conter. Não será punido por haver praticado algum mal
— o que está feito não se desfaz — mas para que, de futuro, tanto ele como
os que presenciem o castigo aprendam a odiar francamente a injustiça ou se
aliviem do peso dessa desgraça.

Por essas razões e com os olhos fixos em tudo isso é que as leis, à maneira
de um arqueiro hábil, deve equilibrar em cada caso a penalidade e a
infração, sempre com o maior espírito de justiça. Em sua função o juiz deve
vir em auxílio do legislador, quando a lei deixar ao seu arbítrio determinar a
punição cabível no caso ou a multa a pagar. Tal como o pintor,
reproduzirá no rascunho os traços do modelo proposto. A nós, Megilo e
Clínias,ó que compete apresentar trabalho belo e perfeito, com declarar
quais devam ser as penas para todas as modalidades de roubo ou de
violência, de acordo com o grau da capacidade de legislar que os deuses e
os filhos dos deuses nos concederam.

XIII — Quem ficar atacado de loucura não deve ser visto na cidade; seus
parentes o conservarão em casa, da maneira que entenderem, sem o que
serão multados. Os componentes da primeira classe censitária pagarão a
multa mais alta, de cem dracmas, quer se tenha descuidado na vigilância de
algum escravo, quer na de pessoa da família; os da segunda classe, quatro
quintos de mina; os da terceira, três, e os da quarta, dois. Loucos há muitos,
pelas mais variadas causas; os a que nos referimos o são por doença; mas há
também os loucos por constituição temperamental e educação viciosa,
e que, pela menor ofensa, põem-se a gritar e se injuriam reciprocamente,
espetáculo que de jeito nenhum poderá ser tolerado numa cidade com boas
leis. Uma lei única abrangerá todas essas formas de injúria. Ninguém fale
mal, seja de quem for. Se discordar de alguém em conversa particular,
exponha sua maneira de pensar a seu opositor e demais pessoas presentes, e
escute a opinião da parte contrária, porém abstendo-se por completo de
assacar-lhe injúrias. As imprecações que uns lançam contra os outros e a
troca de nomes feios, mais própria de mulheres, com serem simples
palavras, coisa leve, geram ódio e inimizade de conseqüências
graves. Quando alguém fala, deixa-se arrastar pela cólera, paixão
ingratíssima que a nada atende, e agrava sua irritação com alimentos
estragados, torna mais enfurecida.
ainda, aquela parte da alma que a educação amansara, e regressando à
selvajaria, desce à situação de animal bravio, fruto amargo de sua paixão.

Em tais conjunturas, é freqüente alguém recorrer ao ridiculo para rebaixar o


adversário. Quem adquire esse hábito, ou chega a ponto de perder a
gravidade ou, pelo menos, boa parte das qualidades que definem
uma grande alma. Por isso, ninguém profira jamais uma expressão desse
tipo em nenhum templo nem nos sacrifícios públicos, nos jogos, na praça
pública, nos tribunais, nas assembléias populares. O presidente de cada uma
dessas reuniões deverá punir os infratores de tais dispositivos, sem o que
nunca poderá concorrer ao prêmio da virtude, por não preocupar-se com as
leis nem cumprir o que o legislador determinara. Onde quer que se atreva
alguém a proferir tais despautérios, ou seja em represália ou para atacar
outra pessoa, o cidadão de mais idade que se achar presente sairá em defesa
das leis e expulsará do local, com chicotadas, os que dão guarida na alma à
cólera, companheira perniciosa, sob pena de pagar a multa cominada.

O que afirmamos é que, uma vez envolvido em discussão acalorada, não há


quem não lance mão do ridículo, o que terminantemente condenamos
sempre que isso for produto da cólera. Então, quererá isso dizer que
aprovamos o sestro dos atores cômicos, de ridicularizar os homens, se o que
falarem de nossos cidadãos em suas comédias não for ditado pela cólera?
Devemos, então, distinguir entre brincadeira e brincadeira, permitindo a
qualquer pessoa provocar o riso se o fizer sem malícia, ou proibiremos isso
a todos, conforme dissemos, quando procederem com violência e paixão?
Não insistamos nesse ponto; o que importa é deixar bem claro a quem a lei
permite ou proíbe o uso da zombaria. Não consentiremos que nenhum poeta
cômico ou fazedor de iambos e de poesia lírica, por palavras ou com o
emprego de imagens, com ânimo colérico ou sereno, ridicularize, de
qualquer maneira, nenhum cidadão. Quem infringir tal dispositivo, a esse os
presidentes dos jogos expulsarão imediatamente do território ou multarão
em três minas, que serão consagradas à di-vindade em cuja homenagem for
dedicado o concurso. Quanto aos que permitimos há pouco ridicularizarem-
se reciprocamente em seus versos, confirmamos essa liberdade desde que o
façam sem paixão e por brinquedo, o que de todo lhes negamos se
procederem com maldade e rancor. A apreciação da matéria ficará a cargo
do supervisor dos assuntos relativos à educação dos jovens; o que ele
aprovar, o autor publicará, sem que possa, no entanto, ensaiar com escravos
ou com cidadãos livres tudo o que for por aquele rejeitado, sob pena de ser
considerado cidadão perverso e rebelde às leis.

XIV — Digno de compaixão não é quem tem fome ou passa por alguma
necessidade do mesmo gênero, mas o indivíduo temperante ou que se
beneficie total ou parcialmente de outra virtude e se veja a braços
com alguma desgraça. Seria de admirar que uma pessoa nessas condições,
escravo ou homem livre, ficasse abandonado por todos, a ponto de chegar à
miséria extrema numa cidade e num povo mais ou menos
organizado. Tranqüilamente, pois, o legislador poderá redigir para tais
indivíduos a seguinte lei: Em nossa cidade ninguém pedirá esmola; se
alguém ousar fazê-lo para assegurar o seu sustento a poder de peditórios, os
agoránomos o expulsarão da Praça do Mercado, os astínomos, da cidade, e
os agrônomos, do resto do território, jogando-o para alem das fronteiras, a
fim de que toda a região se livre, em definitivo, dessa espécie de animal.

Quando um escravo ou escrava, por incúria ou falta de experiência, estragar


seja o que for de uma pessoa estranha, sem culpa de quem sofreu o
prejuízo, o senhor do escravo indenizará totalmente o dano ou entregará, a
esse título, ao prejudicado o próprio danifi-cador; mas, se o referido dono
alegar que houve conivência entre o causador do dano e a pessoa lesada,
com o propósito de arrebatar-lhe o escravo, processará por dolo a suposta
vítima, e, se ganhara questão, receberá da parte contrária o dobro do valor
do escravo, segundo a avaliação do tribunal; vindo a perder, pagará
o prejuízo e entregará o escravo. Se algum de seus cavalos, mulos ou cães
ou qualquer outro animal estragar alguma coisa do vizinho, do mesmo
modo terá de pagar o prejuízo.

Se alguém se recusar a depor voluntariamente como testemunha, a pessoa


que necessita de seu depoimento o citará em justiça, devendo o intimado
apresentar-se ao juiz; se souber alguma coisa e quiser depor, poderá dar seu
testemunho; se alegar que nada sabe, só será dispensado depois de jurar
pelas três divindades: Zeus, Apolo e Têmis, que ignora de todo a
ocorrência. Quem for convocado como testemunha e não atender
à intimação, poderá ser processado judicialmente, para pagar os prejuízos
causados com sua recusa. Se algum dos juízes em causa for chamado como
testemunha, feito seu depoimento ficará impedido de funcionar no processo.
A mulher livre com mais de quarenta anos e sem marido tem capacidade
para servir como testemunha ou falar no processo, em defesa própria ou de
terceiros; mas, em vida do marido só poderá servir de testemunha. À
escrava ou escravo e às crianças é permitido servir como testemunha ou
como defensor, mas apenas em processos de homicídio, contanto que
apresentem fiança idônea de que não se retirarão antes da sentença, no caso
de serem acusados de prestar testemunho falso. Antes de ser dada a
sentença, qualquer uma das partes poderá contestar, total ou parcialmente, o
depoimento de alguma testemunha, se lhe parecer que é falso. As
contestações de ambas as partes serão seladas e guardadas pelos
magistrados, para serem oportunamente apresentadas, quando tiver de ser
julgada a questão de falso testemunho. Quem for condenado duas vezes por
falso testemunho, daí em diante nenhuma lei o obrigará a depor; com a
terceira condenação, ficará proibido de testemunhar em juízo; e se depois
de três vezes tiver a ousadia de voltar a depor como testemunha, quem
quiser poderá denunciá-lo às autoridades, que o entregarão ao tribunal.
Reconhecida a culpa, será condenado à morte.

Sendo provada judicialmente a falsidade de depoimentos que influíram no


ganho de causa de uma das partes, se mais da metade ficar inquinada de
semelhante mácula, será nulo o julgamento feito com base em tais
testemunhos; haverá novo debate, para decidir se a sentença fora ou não
ditada sob influência deles, pondo remate a sentença final ao processo
anterior.

XV — Há muitas coisas belas na vida do homem; mas a maior parte está


naturalmente sujeita a uma espécie de peste que as mancha e contamina.
Como não ser bela para os homens a justiça que influi nas
relações humanas, no sentido de amansá-las? Mas, se a justiça é bela, como
deixar também de sê-lo a profissão dos que defendem alguém em juízo?
Nesse caso, como se explica que uma prática maldosa a tenha
desacreditado? Adota a bela denominação de arte e começa por afirmar que
em todo processo judiciário existe uma técnica especial, que, na defesa dos
interesses próprios ou de estranhos assegura a vitória a essa arte, quer sejam
justos quer não sejam os fatos alegados em juízo. As vantagens dessa arte e
dos discursos que ela inspira, só são ensinadas a quem pagar muito bem. O
que é preciso, então, é que essa prática — quer seja arte quer não seja, ou
simples empirismo e uma questão de exercício — não venha a tomar pé em
nossa cidade. O que o legislador pede é que lhe obedeçam, para não se
manifestarem contra a justiça, ou que se retirem do país. Aos que
obedecerem, a lei nada dirá; aos outros falará nos seguintes termos: Se um
desses indivíduos tentar desviar a justiça do caminho certo na alma dos
juízes, e acumular intempestivamente processos no seu próprio interesse ou
no de terceiros, quem quiser poderá acusá-lo de torcer as leis e de ser
péssimo defensor em juízo. O processo correrá no tribunal dos juízes
seletos. Sendo ele condenado, o tribunal apurará se o movia em sua
profissão o amor ao lucro ou o espírito de chicana; se se tratar de chicana, o
tribunal determinará por quanto tempo ele ficará impedido de processar
alguém ou de defender outra pessoa; sendo avidez de lucro, tratando-se de
algum estrangeiro, terá de deixar definitivamente o país, sob pena de morte
no caso de voltar. O nativo pagará com a vida a cobiça, que nele é
mais forte do que tudo. Quem for processado duas vezes por espírito de
chicana, será condenado à morte.

LEIS

Livro XII

I — O Ateniense — Se alguém enganar a cidade junto do outro governo,


dizendo-se arauto ou embaixador, ou, sendo comissionado nesse sentido,
transmitir mensagem diferente da que fora incumbido, ou, ainda, na
hipótese de positivar-se que não comunicou nem proclamou corretamente o
recado que os inimigos ou aliados lhe haviam dado, será processado como
se houvesse violado, contra o espírito das leis, as mensagens e ordens de
Hermes e de Zeus, sendo-lhe cominada a pena indicada para o caso, depois
de reconhecida a culpa.

Esconder dinheiro é ação de alma servil; roubar é de quem perdeu a


vergonha. Nenhum dos filhos de Zeus se comprazia nem com uma coisa
nem com outra, ou fosse por astúcia ou emprego de violência.
Ninguém, pois, se deixe levar pelos poetas e fazedores de fábulas a cometer
essa falta, na suposição de que defraudar alguém ou roubar não seja ação
vergonhosa, porém algo que os próprios deuses praticam, o que nem é
verdadeiro nem verossímil. Quem assim procede infringe a lei e nunca foi
nem poderá ser divindade nem filho dos deuses. Nesse particular, o
legislador deve ter mais competência do que todos os poetas reunidos. Por
isso, quem acolher nossas palavras será feliz, sendo de desejar que assim
continue sempre; mas quem as desprezar, terá de haver-se com a seguinte
lei: Para quem defraudar o tesouro público de qualquer importância,
pequena ou grande, a penalidade será uma só. Quem rouba pouco, dá
mostras da mesma cupidez, porém de menor capacidade, e quem retira uma
parte grande do que fora amealhado por outrem, é como se roubasse tudo.
Não é, pois, olhando para as proporções do furto que a lei comina penas
diferentes, conforme o caso, mas por acreditar que, entre dois infratores,
algum talvez ainda venha a emendar-se e que o outro é incurável.
Assim, quando um escravo ou um estrangeiro for acusado em juízo de
haver defraudado o tesouro público, o juiz fixará a penalidade ou a multa a
pagar, conforme haja ou não probabilidade de regeneração. Mas o cidadão
bem educado, quando acusado de roubar ou de saquear a pátria, quer tenha
sido ou não apanhado em flagrante, será condenado à morte, como
incurável.

II — Acerca de expedições militares, convirá dar bastantes conselhos e


redigir muitas leis, porém o que mais importa é não ficar ninguém sem
comando, nem homem nem mulher, e que nenhuma alma humana
se habitue a dirigir-se sozinha e por si mesma, tanto nos combates de
verdade como nos jogos, cumprindo-lhe sempre, na guerra e em tempo de
paz, não despregar de seus comandantes os olhos, segui-lo a vida inteira e
deixar-se dirigir por ele até nas menores coisas, como, por exemplo, parar
quando ele der ordem, andar, fazer ginástica, tomar banho, comer, levantar-
se de noite para montar guarda ou levar alguma mensagem; até mesmo em
ocasiões de perigo, não perseguir ninguém nem ceder terreno ao adversário
sem ser por ordem superior. Numa palavra: esforçar-se para que sua alma
não se habitue a nada fazer nem conhecer e de nada tomar conhecimento a
não ser na companhia de outros, vivendo todos, sempre, e tanto quanto
possível, unidos numa vida comum. Não há nem nunca houve melhor
e mais eficiente meio, ou mais engenhoso, para assegurar a vitória na
guerra. É nisto que, desde criança, todos devem exercitar-se em tempo de
paz: comandar e ser dirigido. É preciso banir a anarquia da vida dos
homens e dos animais a eles submetidos.
Os componentes dos coros, também, em suas danças devem sempre tc: em
mira a eficiência na guerra, não visando a outro fim toda a destreza e
agilidade que possam adquirir, o passar fome e sede, resistir aos frios do
inverno e ao seu contrário, dormir no chão duro e, o que é mais importante
de tudo, não prejudicar a força da cabeça e dos pés com a proteção de
envoltórios artificiais, que só servem para impedir o crescimento do cabelo
e a formação da calosidade na sola dos pés. Constituindo essas partes, como
constituem, as extremidades do corpo, quando se acham em bom
estado exercem sobre ele salutar influência, e o contrário disso em
condições contrárias; os pés são os melhores servidores do corpo, e a
cabeça, seu diretor supremo, por ser a sede natural dos principais sentidos.

Tal é o elogio da vida guerreira que, a meu parecer, os moços devem ouvir;
as leis serão as seguintes. Todos os recrutas e as pessoas incumbidas de
alguma missão especial terão de ir para a guerra. Se alguém, por ignávia, se
ausentar do acampamento sem autorização superior, logo que retornar será
acusado perante os chefes militares como desertor. O julgamento será
feito por todos os membros da expedição, com observância das respectivas
armas, hoplitas, cavalaria nos ou combatentes de outra natureza: os hoplitas
serão julgados por seus companheiros de infantaria; os cavalarianos,
pelas tropas a cavalo, e assim com os demais, segundo o corpo a que
pertençam. Quem for condenado, jamais poderá concorrer à obtenção da
palma do valor militar nem denunciar nenhum dos seus companheiros
por abandono do serviço ou assumir em juízo o papel de acusador. Além
disso, o tribunal determinará a pena ou multa a ser-lhe imposta.

Depois de julgados os casos de deserção, os comandantes reunirão de novo


as diferentes armas para apreciação dos candidatos aos prêmios do mérito
militar, sendo cada um julgado por seus próprios companheiros de armas,
sem que possam ser alegados feitos de campanha anterior, não sendo
permitido apresentar provas nesse sentido nem requerer o depoimento
de testemunhas. Só entram em linha de conta os fatos ocorridos na
expedição em curso. Para todos, o prêmio será uma coroa de folhas de
oliveira, que cada um inscreverá no templo da divindade que quiser, como
prova, enquanto viver, de que mereceu ganhar o primeiro lugar, ou o
segundo ou o terceiro. Se antes do fim da campanha algum dos militantes
voltar para casa sem ordem de seus chefes, será processado por abandono
do posto pelos mesmos juízes que funcionam nos processos de deserção, e
vindo a ser condenado, tocar-lhe-ão as penas descriminadas acima.

Em todos os julgamentos é preciso ter sempre a preocupação de não


inflingir em ninguém voluntariamente ou sem o querer, castigo imerecido.
Com razão se diz que a Justiça é filha do Pudor. Ora, não há o que o pudor e
a justiça odeiem mais do que a mentira. Em todos os casos, é preciso muito
cuidado para não errar, principalmente quando se configura a hipótese de
alguém jogar fora as armas de combate, pois se não levarem em conta a
premência da situação, poderão os juízes classificar o ato como abandono
vergonhoso das armas e, com isso, impor castigo imerecido a um inocente.
Conquanto não seja fácil distinguir um caso de outro, é preciso que a lei, de
qualquer jeito, os classifique de acordo com as circunstâncias. Recorrendo à
fábula, digamos que, se Pátroclo houvesse sido levado para a tenda sem
suas armas e voltasse a viver — ocorrência que já se verificou com uma
infinidade de guerreiros — enquanto as primeiras armas do filho de Peleu,
que, conforme diz o Poeta, foram dadas pelos deuses a Tétis por ocasião de
seu casamento, haviam caído em poder de Heitor, com toda a certeza os
medrosos da época não deixariam de censurar o Menécio por ele haver
jogado fora as armas. Há também os casos dos que as perdem por caírem de
lugares altos, ou no mar ou em situações em que os apanhara tempestade,
ou quando arrastados por tromba d'água, e mil outros fatos de
igual natureza, que podem ser alegados como justificativa dessa ocorrência,
tão sujeita a falsas interpretações.

Importa, pois, distinguir com o maior cuidado as situações vergonhosas e


indesculpáveis das que o não são. Tal distinção, de algum modo, se reflete
nas expressões empregadas nessas ocasiões. Não fora justo dizer em todos
os casos em que o combatente perde o escudo, que ele jogou fora as armas;
como não há comparação possível entre ser despojado do escudo por
meios violentos ou desfazer-se dele deliberadamente; é grande a diferença
entre os dois casos. Redijamos, então, a seguinte lei.

Quem for surpreendido pelo inimigo e, estando armado, em lugar de


enfrentá-los e de defender-se, apressa-se a despojar-se das armas e as atira
longe, preferindo ganhar com a ligeireza dos pés uma vida vergonhosa e
alcançar com sua bravura uma bela e feliz morte, será condenado por
abandono das armas nas ditas circunstâncias. Nos casos exemplificados
acima o juiz saberá considerar as atenuantes. O cobarde precisa ser punido
sempre para que venha a melhorar, não o infeliz, pois ninguém lucraria com
isso. Qual é o castigo mais indicado para quem muda em seu contrário o
poder defensivo das armas, com despojar-se delas? O homem não pode
fazer o contrário do que outrora uma divindade fez com o tessaliense
Ceneu, conforme contam, que de mulher passou a ser homem. Para o
combatente que joga fora o escudo, não haveria castigo mais merecido do
que a metamorfose inversa da de Ceneu: de homem virar mulher. Mas, para
nos aproximarmos o mais possível desse desiderato, em homenagem ao seu
entranhado amor á vida, a fim de que ele passe o resto da existência ao
abrigo de perigos e viva o maior tempo possível a sua ignomínia e na
maior abjeção, redijamos a seguinte lei. Quem for condenado por haver
perdido vergonhosamente as armas de guerra, nenhum general nem outra
autoridade militar o receberá como combatente nem lhe dará ocupação na
expedição em curso. Quem o fizer e admitir em suas fileiras o cobarde, por
ocasião da prestação de contas o superintendente o multará em mil dracmas,
se ele pertencer à primeira classe censitária; em cinco minas, se for da
segunda; em três, se pertencer à terceira, e apenas numa, se for da quarta.
Quanto ao condenado, além de ser posto a salvo de qualquer perigo, o que
irá bem com sua natureza, também pagará multa de mil dracmas
se pertencer à mais elevada classe, ou cinco minas se for da segunda, três da
terceira, e apenas uma, da quarta, exatamente como no caso anterior.

III — Como devemos manifestar-nos a respeito da prestação de contas das


autoridades, se algumas são eleitas por sorte e apenas por um ano, e outras
por vários anos, dentre nomes anteriormente escolhidos? Quem será capaz
de julgar esses homens, quando algum vergar sob o peso do cargo e
prevaricar em suas funções, porque sua capacidade não afina com a
dignidade do posto? Conquanto não seja nada fácil encontrar quem possa
mandar nos que mandam, por ultrapassá-los a todos em virtude, nem por
isso deixaremos de procurar esse divino administrador. O caso é o seguinte.
Muitos fatores contribuem para a dissolução da cidade, tal como se observa
nos navios e nos animais com molas, cabos, músculos extensores; todos da
mesma natureza, embora distribuídos por lugares diferentes. Essa
circunstância está longe de ser a menos, importante para decidir da perda ou
salvação da cidade. Em verdade, se o examinador dos magistrados for
melhor do que eles, desincumbindo-se estes últimos de suas obrigações
por maneira justa e inatacável, toda a cidade e todo o território serão felizes.
Mas, se for diferente essa tomada de contas dos magistrados, relaxa-se o
laço da justiça que mantém num todo as partes constituintes da cidade,
as autoridades se debilitam em conflitos recíprocos, e não cooperando todos
para o mesmo fim, de uma cidade única fazem muitas, em que as facções
enxameiam, acabando o todo por arruinar-se dentro de pouco tempo. É por
isso que tais supervisores devem ser admiráveis em todo gênero de virtude.
Tentemos indicar de que maneira podem ser escolhidas essas autoridades.

Todos os anos, na época em que o sol passa do lado do verão para o do


inverno toda a cidade deverá reunir-se no recinto sagrado, comum a Hélio e
a Apolo, para indicar à divindade três homens que, na opinião dos votantes
mas com exclusão dele próprio, seja o melhor em tudo, de não menos de
cinquenta anos. Dentre os mais votados, os eleitores escolherão a
metade, se o total for de número par; sendo ímpar, será excluído o menos
votado e separada a metade dos que alcançaram maior número de votos. Se
vários dentre esses obtiveram igual votação, o que deixará mais forte
uma das metades, os excedentes serão excluídos, começando-se pelos mais
moços. Depois, os restantes serão no-vamente submetidos à votação, até
ficarem apenas três com número desigual de votos. Mas, se três, ou mesmo
dois, empatarem nos sufrágios recebidos, recorrer-se-á ao acaso ou à sorte.
Procedido ao sorteio, o primeiro colocado e o segundo e o terceiro serão
coroados com ramos de oliveira, e depois de lhes ser conferido o prêmio de
virtude, será proclamado que a cidade dos magnetas, mais uma vez salva
por intercessão da divindade, apresenta a Hélio, como primícias, seus três
melhores cidadãos, que ela consagra, de acordo com a lei velha,
simultaneamente a Apolo e a Hélio, pelo tempo em que se mostrarem à
altura daquela distinção.

Esses supervisores nomearão no primeiro ano doze censores, que


permanecerão no cargo até à idade de setenta e cinco anos, depois do que
lhes serão dados substitutos, à razão de três cada ano. Tais inspetores
dividirão os magistrados em doze grupos e os submeterão à prova,
recorrendo a todos os meios condizentes com a situação de homens livres.
Enquanto exercerem o cargo, residirão no recinto consagrado a Hélio e a
Apolo, precisamente onde foram eleitos. Depois de julgarem a todos, ou
separadamente ou em conjunto, os magistrados da cidade cujo mandato
terminou, afixarão na Praça do Mercado a pena ou a multa que cada um terá
de cumprir ou pagar, de acordo com a decisão dos inspetores. Se algum dos
magistrados contestar a justiça da sentença, poderá citar os censores diante
do tribunal dos juízes de eleição, e se for reconhecida sua inocência, caso
queira, processará o censor. Sendo confirmada a culpa, no caso de haver
sido antes condenado à morte, não restará outra alternativa a não ser
executá-lo sumariamente; mas, sempre que for possível dobrar a pena,
pagará o crime em dobro.

Agora precisareis ouvir quais serão as penas para os próprios censores e


como se procede em semelhantes casos. Esses varões, que a cidade
reconhece como dignos de receber o prêmio da virtude, enquanto viverem
terão os primeiros lugares em todas as assembléias solenes. Além disso, nos
sacrifícios comuns a todos os helenos, nas deputações para festividades de
caráter religioso e nas demais cerimônias sagradas de que todos participem,
os membros de cada teoria são tirados desses mesmos magistrados, sendo
eles os únicos, em toda a cidade, a serem distinguidos com a coroa de
louros. Todos ficarão como sacerdotes de Apolo e de Hélio, sendo cada ano
eleito para o posto de grão-mestre o que no ano anterior tiver sido
considerado como de maior merecimento, com o que, anualmente, seu
nome ficará inscrito para contagem do tempo enquanto a cidade subsistir.
Uma vez mortos, a exposição do corpo, o acompanhamento e o
sepultamento se distinguirão dos dos demais cidadãos. Serão vestidos de
branco; não verá choro nem lamentações. Um coro de quinze raparigas e
outro de quinze rapazes cantarão alternamente um hino em louvor dos
sacerdotes cuja ventura eles exaltarão durante todo o dia. Na manhã
seguinte, o leito será levado para a sepultura por cem rapazes escolhidos
pela família do morto, dentre os que freqüentam o ginásio; à frente do
cortejo marcharão os moços solteiros, todos vestidos em seus equipamentos
guerreiros, os cavaleiros com seus cavalos, os hoplitas com as armas de
combate, e da mesma forma os demais corpos; à volta do leito fúnebre os
moços irão entoando o canto tradicional, vindo atrás as jovens e as
mulheres que já não estejam em idade de ter filhos. Por último,
acompanharão o séquito os sacerdotes e as sacerdotisas, por tratar-se de
uma cerimônia pura; conquanto todos eles, normalmente, sejam excluídos
de cerimônias dessa natureza, admite-se que, para tais casos, a Pífia dê o
seu consentimento. A sepultura será subterrânea, com a forma de abóbada
alongada, de pedra porosa e tão durável quanto possível, com dois leitos de
pedras dispostos paralelamente. Aí será depositado o corpo do bem-
aventurado, sobre o qual se levantará um outeiro circular e em torno deste
se formará um bosque sagrado com saída para um lado, para que, em
qualquer tempo, possam ser acrescentadas novas sepulturas, sem
necessidade aumentar o acúmulo de terra. Todos os anos celebrar-se-ão em
sua honra concursos musicais, gímnicos e eqüestres. São essas as honrarias
concedidas aos censores que tiverem suas contas aprovadas.

Mas, se algum deles, confiado na eleição, revelar sua natureza humana e


vier posteriormente a perverter-se, manda a lei que qualquer pessoa o
denuncie. No tribunal o processo correrá do seguinte modo. Inicialmente, a
corte será composta pelos guardas das leis; depois, pelos demais censores
vivos, acrescidos dos juízes de eleição. O próprio denunciante fará a
acusação, dizendo que este ou aquele, contra a quem ele apresenta queixa,
não é digno da distinção nem do cargo em que foi investido. Se o acusado
for condenado, perderá o lugar, o direito à sepultura e as demais honrarias
que lhe houvessem sido conferidas. Na hipótese de não alcançar a seu favor
o denunciante nem a quinta parte dos sufrágios, pagará doze minas de multa
se pertencer à primeira classe censitária, ou oito se for da segunda, seis da
terceira e duas da quarta.

IV — Só merece encômios a maneira porque Radamanto julgava tais


processos. Tendo verificado que os homens de seu tempo criam
decididamente na existência dos deuses, o que era natural, já que a
maioria, ele inclusive, naquele tempo, descendia de deuses, concluiu que o
direito de julgar não deveria ser confiado aos homens, mas às próprias
divindades. É o que explica sua maneira tão rápida quanto simples de
julgar. Em todas as questões ele deferia o juramento às partes em litígio, e
desse modo resolvia o assunto com segurança e rapidez. Mas, nos dias de
hoje, em que uma parte dos homens não acredita absolutamente que os
deuses existam, enquanto outros pensam que eles não se preocupam com o
que nos diz respeito, e a grande maioria — os piores elementos, aliás —
imagina que os deuses, a troco de bajulações e de um pouco de incenso
apoiam suas rapinas e em muitos casos os livram da merecida punição: no
nosso tempo, com tais homens, é de todo inaplicável a maneira de julgar de
Radamanto. Uma vez que mudou a opinião dos homens a respeito dos
deuses, será preciso também modificar as leis. Nas ações movidas em
justiça, as leis redigidas com inteligência suprimirão os juramentos exigidos
das partes litigantes; o queixoso escreverá suas alegações sem prestar
juramento, como também fará o acusado com a contestação, sem prestar
juramento. De fato, numa cidade em que há tão grande número de
processos, seria terrível saber-se, positivamente, que quase metade dos
cidadãos é composta de perjuros, os quais, sem o menor escrúpulo,
participam das sissítias ou refeições em comum e comparecem a outras
reuniões públicas e particulares.

Haverá uma lei que impõe juramento ao juiz sempre que se prepare para
julgar; o mesmo se exige de quem tiver de votar para preenchimento de
algum cargo público, o que será feito por meio de juramento direto ou com
a deposição da pedrinha sagrada retirada do templo. Igual processo se usará
na escolha dos juízes dos coros e de todos os presidentes dos
concursos hípicos e de ginástica, e bem assim nas demais competições em
que, na opinião geral dos homens, o perjúrio não traz lucro. Mas nos casos
em que possa haver grande vantagem na negação sistemática de algum fato,
reforçada por juramento, as partes serão julgadas sem que se exija dos
interessados juramento de qualquer natureza. Os juízes no decorrer do
processo, não admitirão, absolutamente, que alguém jure para dar maior
ênfase a suas declarações, nem se alargue em imprecações contra si mesmo
ou sua família, nem recorra a súplicas vergonhosas, nem a lamentações
mais própria de mulheres, mas exponha com dignidade seu direito e
ouça com o mesmo espírito as razões do opositor; caso contrário, os
magistrados o advertirão de que ele se desviou do assunto principal e o
obrigarão a falar apenas de seu caso.

Tratando-se de questão entre estrangeiros, será permitido às partes, caso


queiram, prestar juramento, como atualmente se usa; não envelhecendo na
cidade nem fazendo aqui seus ninhos, não deixarão prole que se lhes
assemelhe, para tomar conta do país. O processo será o mesmo em todas as
ações privadas que uns intentem contra os outros.

Em todos os casos de desobediência à cidade, por parte de cidadãos livres,


não passíveis de pena de açoite ou de prisão e de morte, como, por
exemplo, não freqüentar os coros nem participar das procissões solenes ou
de outras cerimônias públicas e manifestações do mesmo gênero, a não
contribuição para as despesas dos sacrifícios em tempo de paz ou de guerra:
em to-dos esses casos, a primeira medida é imposição de multa. As
autoridades encarregadas dessa diligência, pela cidade e pelas leis,
penhorarão parte dos bens dos que desobedecerem, e em caso de não ser
levantada a penhora, esse bens serão vendidos, revertendo o produto da
venda em benefício da comunidade. Se houver necessidade de castigo mais
severo, as autoridades incumbidas do caso aplicarão nos renitentes as penas
indicadas e os citarão em justiça, até se resolverem a cumprir o que deles se
exige.

V — Para uma cidade que não comercia nem vende outros produtos a não
ser os do seu próprio solo, é de toda necessidade aconselhar-se a respeito da
regulamentação das viagens de seus membros para fora do pais e da
recepção dos estrangeiros vindos de fora. O legislador começará por
aconselhá-los da maneira mais persuasiva possível. A conseqüência natural
do comércio entre as cidades é uma mistura incrível de costumes, pelas
inovações que os estrangeiros promovem por onde andam, causa dos mais
graves prejuízos nas comunidades dirigidas por leis justas. Mas, na maioria
delas, cujas leis estão longe de ser modelares, não se dá a menor
importância à mistura resultante da acolhida de elementos estrangeiros ou
da mudança de seus cidadãos para outras terras, quando lhes ocorre viajar
para qualquer parte e em qualquer época da vida, ou seja na mocidade ou
depois de velhos. Por outro lado, não acolher estrangeiros nem viajar para
nenhum lugar, não é apenas impraticável como dá a impressão de salvajaria
e insociabilidade, sendo que os demais povos, sobre nos atirarem em rosto
as mais duras expressões, acusando-nos de intratável os estrangeiros, nos
teriam na conta de gente intratável e arrogante. Não devemos minimizar
a opinião, boa ou má, que os outros formem a nosso respeito. Embora
carecentes da verdadeira virtude, nem por isso o vulgo opina com menos
acerto sobre a maldade ou excelência dos homens, havendo mesmo
nos maus uma espécie de instinto quase divino que, muitas vezes, permite
aos indivíduos mais corruptos distinguir em seus discursos e no foro íntimo
os homens bons e os maus. É recomendável, assim, o preceito em uso
na maioria das cidades, de dar valor à opinião de terceiros. Mas o mais
certo e importante é ser virtuoso de verdade e só procurar bom nome sob
essa condição, pelo menos quem aspira a ser perfeito. É de toda
conveniência, pois, para a cidade que fundamos em Creta conquistar juntos
de estranhos a mais bela e nobre reputação possível, no que entende com a
virtude, motivo de justificar-se a esperança — no caso, bem entendido,
de vir a concretizar-se nosso plano — de que dentro de pouco tempo ela
será uma das raras cidades e regiões bem constituídas que se alegram à vista
do sol e das outras divindades.

Eis o que é preciso fazer com relação a viagens para outros lugares e
regiões e a recepção de estrangeiros. Para começar, de forma alguma e sob
nenhum pretexto será permitido a nenhum cidadão com menos de quarenta
anos viajar para o estrangeiro em caráter particular, mas apenas em nome da
cidade, no papel de arauto, embaixador ou como delegado a certas
festividades religiosas. As saídas em época de guerra e expedições militares
não devem ser consideradas como viagens oficiais do mesmo gênero das
outras. Serão enviados emissários ao templo de Apolo em Pito, ao de Zeus
em Olímpia, a Neméia e ao Istmo para tomar parte nos sacrifícios e nos
jogos celebrados em louvor a essas divindades; para tais embaixadas serão
escolhidos os mais belos e virtuosos cidadãos e no maior número
possível, para que a cidade adquira bom nome nas festividades religiosas e
de caráter pacífico, de igual prestígio do conquistado nas expedições
guerreiras. De volta para casa, esses emissários contarão aos moços como
as instituições políticas dos outros povos são inferiores às deles.
Embaixadores de igual categoria serão também enviados para outras
solenidades, sendo que a autorização dos guardas das leis será alcançada do
seguinte modo. O cidadão que desejar observar com sossego os costumes
de outros povos, nenhuma lei poderá detê-lo. Uma cidade que de todo
carece da experiência do que há de bom ou de mau entre os homens, por
falta de intercâmbio com outros povos, nunca poderá alcançar a mansuetude
e perfeição desejáveis, nem conservar in-tactas suas leis, se só as aplicarem
por hábito, sem recorrerem à reflexão. Com efeito, no meio da
multidão sempre se encontram alguns homens divinos — em número
reduzido, é certo — cujo conhecimento é de suma utilidade, e que tanto
surgem nas cidades bem governadas como nas de péssima constituição. No
rastro desses varões é que devem seguir, por mar e por terra, os cidadãos de
virtude comprovada, membros de comunidades bem dirigidas, não só para
consolidar o que em sua pátria não estiver firme, como para corrigir o que
apresentar defeito. Sem esse exame e uma observação correta, nenhuma
cidade será o que deve ser, e também se não souber orientá-las.

Clínias — E de que modo conseguiremos ambas as coisas?

V — O Ateniense — É o seguinte. Como primeira condição, esse


observador deverá ter mais de cinqüenta anos, além de gozar de alto
conceito por seu comportamento geral, mas principalmente na guerra, para
poder apresentar-se nas outras cidades como modelo dos guardas das leis.
Depois dos sessenta anos, ninguém será enviado como observador. Nesse
período de dez anos, havendo empregado em tal estudo o tempo
que entender, de regresso a sua terra natural passará a fazer parte do corpo
dos magistrados incumbidos do exame das leis. Tal conselho, formado de
moços e de velhos, se reunirá todos os dias, impreterivelmente, do nascer ao
pôr do sol, sendo primeiro indicado para compô-lo os sacerdotes que
alcançaram o prêmio da virtude, e depois os dez mais idosos guardas das
leis, seguindo-se-lhes o atual superintendente da educação dos jovens e os
que antes dele ocuparam o mesmo cargo. Nenhum comparecerá só, mas
acompanhado de um jovem entre trinta e quarenta anos, de sua escolha.
Nessas reuniões, o assunto das conversas constará sempre das leis e
da administração da cidade, e do que possam ter encontrado de útil em
outros lugares; falarão também dos conhecimentos que lhes parecerem
relacionados com tais estudos, cujo aprendizado facilita a tarefa dos que
se dedicam à legislação, tanto quanto o descuido nesse particular a deixa
obscura e pouco inteligível. Tudo o que nesse domínio os velhos acharam
bom, os jovens se esforçarão por aprender, e se algum não se revelar à
altura das funções a que foi chamado, a assembléia em peso censurará quem
o introduziu ali; mas, os que conquistarem desde logo bom nome, a cidade
não o perderá de vista, observando seu comportamento com especial
atenção e o aplaudirá em suas boas realizações, como desprezará os outros,
no caso de se revelarem piores do que o comum dos homens.

A essa assembléia é que deverá logo dirigir-se quem regressar da viagem de


observação dos costumes de outros povos, e na hipótese de haver
conversado com pessoas que lhe sugerissem novas idéias sobre legislação
ou estudo ou educação, ou, se em seu passeio, ele adquiriu idéia originais,
deve comunicá-las à assembléia. Se virem que não voltou nem melhor nem
pior do que era antes de viajar, pelo menos o elogiem por sua boa vontade.
Se regressou muito melhor, em tanto maior número serão os elogios
dispensados em vida, e depois de morto o conselho lhe prestará as honras
a que fez jus. Mas, se ao regresso se revelar corrupto, arrogando-se
sabedoria que absolutamente não possui, ninguém conversará com ele, nem
moço nem velho. Se se mostrar obediente às autoridades, viva como
simples particular; em caso contrário, vindo a provar-se em juízo que ele se
imiscui indevidamente em assuntos de legislação e educação, será
condenado à morte. Se for denunciado e nenhum magistrado o processar,
caberá censura aos faltosos, quando forem concedidas as láureas de
merecimento.

Só esses poderão viajar, e só nessas condições obterão licença para


ausentar-se do país. Depois disso, tratemos da acolhida que importa dar aos
estrangeiros. Há quatro espécies de estrangeiros que exigem de nossa parte
alguns considerandos. Os primeiros são os que só aparecem no verão, por
costumarem viajar nessa época do ano, à maneira dos pássaros migradores;
como estes, batem as asas pelos mares afora, na estação quente, de cidade
em cidade, com vistas ao comércio e ao enriquecimento. As autoridades
designadas para esse fim o receberão nos mercados, nos portos e edifícios
públicos, fora do perímetro urbano porém não longe da cidade, tomarão
suas precauções para que não introduzam inovações, distribuirão
equitativamente justiça entre eles e só manterão com todos as relações
indispensáveis, e assim mesmo em raras ocasiões. Em segundo lugar, vêm
os amantes de espetáculos, desejosos de ver e de ouvir tudo o que diz
respeito ao serviço das Musas. Para hóspedes desse tipo é preciso haver
estalagens nas proximidades dos templos, com as comodidades necessárias.
Os sacerdotes e guardas dos templos cuidarão de tais hóspedes e
providenciarão para que, depois de um prazo razoável de permanência e de
verem e ouvirem tudo o que desejavam, prossigam na viagem sem causar
nem sofrer dano algum. Os sacerdotes servirão de juízes, se algum deles
sofrer prejuízo ou causar dano menor de cinqüenta dracmas; sendo maior a
perda, caberá a decisão aos agoránomos.

O terceiro visitante, que vem de outra cidade com alguma incumbência


oficial, deverá ser hospedado à custa do tesouro público. Só poderão
recebê-lo os hiparcos e os taxiarcos, ficando encarregado de hospedá-lo, de
parceria com os prítanes, o cidadão em cuja casa esse embaixador apear e
for recebido. Os da quarta categoria, se chegar algum — e serão raros—,
mas, afinal, se vier algum de outra região, do mesmo tipo dos nossos
observadores, para começar terá de ser, no mínimo, de cinqüenta anos, e
depois, que se proponha ver entre nós o que em matéria de beleza supere
tudo o que ele já vira em outras cidades, ou mostrar noutros lugares algo
com que aqui se entretivesse. O alienígena desse tipo não precisa de convite
para bater à porta dos ricos e dos sábios, por ser também sábio e rico.
Poderá hospedar-se em casa do magistrado que dirige a educação
dos moços, na convicção de que é digno de semelhante hospedagem, ou em
casa de algum cidadão que se distinguisse com a palma da virtude. Depois
de conviver algum tempo com um desses varões, aprendendo alguma coisa
ou ensinando o que souber, voltará para sua terra cumulado de presentes e
honrarias, como sói acontecer com amigos que se despedem de amigos.

São essas as leis concernentes à recepção de estrangeiras ou estrangeiras


oriundos de outras regiões ou a maneiras de enviar para as terras deles
nossos concidadãos. Todos saberão acatar Zeus hospitaleiro e se absterão de
expulsar os estrangeiros de suas mesas e de seus sacrifícios, como
presentemente fazem os naturais do Nilo, ou de impedir-lhes a entrada, por
meio de proclamações selvagens.

VII — Quem servir de fiador para outra pessoa, faça-o por escrito e em
termos claros, exarando no documento todas as condições do compromisso
e na frente de, pelo menos, três testemunhas se a importância não passar de
mil dracmas, ou de cinco, se passar. Prestará também fiança quem vender
algo como corretor de quem não negocie legalmente ou de quem não goze
de crédito; tanto o intermediário como o dono do negócio ficam sujeitos a
processo,

Se alguém quiser dar busca nalguma casa, terá de apresentar-se nu ou


apenas de túnica sem cintura, depois de jurar pelas divindades designadas
por lei que espera encontrar nessa revista o objeto perdido. O dono da casa
lha franqueará, permitindo-lhe examinar tudo, tanto o que estiver selado
como o que não estiver. Quem não consentir na busca, será intimado
judicialmente pelo queixoso, depois de avaliar este o objeto perdido, e, se
for positivado o crime, o culpado pagará o dobro da avaliação. Estando
ausente o dono da casa, os outros moradores deixarão revistar os objetos
não selados, colocando seu selo o interessado por cima dos que encontrar, e
entregará os objetos a alguém de sua confiança, pelo prazo de cinco dias. Se
a ausência daquele se prolongar, o denunciante far-se-á acompanhar dos
astínomos para, com eles, realizar a busca, e desatará até mesmo o que
estiver selado, depois do que tornará a selar tudo na presença dos astínomos
e do pessoal de casa.

Para os casos de posse duvidosa, há um prazo limite, decorrido o qual não


poderá ser incomodado quem durante todo esse tempo retiver o objeto.
Entre nós, as casas e as terras não Cotão sujeitas a contestação. Quanto aos
outros bens, figurando-se o caso de alguém ficar de posse de algum objeto e
aparecer com ele na cidade, na praça pública e nos templos, sem que
ninguém o re-clame, e outra pessoa alegue que durante todo esse tempo o
procurara, apesar de que o primeiro absolutamente não o ocultasse, depois
de um ano nessa situação, um na posse do objeto e sem escondê-lo, e o
outro a procurá-lo, não caberá reclamação depois de decorrido aquele
prazo. Se o retentor do objeto não o usa na cidade, porém o faz abertamente
no campo, ninguém se apresentando a reclamá-lo no prazo de cinco
anos, uma vez decorrido esse prazo não terá lugar nenhuma reivindicação.
Se o possuidor só o usa em sua casa na cidade, o prazo será de três anos, e
se o fizer no campo, a ocultas, de dez; se só usá-lo no estrangeiro, em
qualquer tempo que o dono o descubra, não haverá prazo para a prescrição.

Se alguém impedir por meios violentos o comparecimento de uma pessoa


em justiça, quer se trate de escravo de sua propriedade, quer de outro
cidadão, o processo será considerado nulo e sem efeito; se for livre o
cidadão assim impedido, além de anular-se o processo, o autor da violência
será condenado a um ano de prisão, podendo acusá-lo quem quiser, como se
ele houvesse escondido algum escravo.

Se alguém usar de violência para impedir que seu concorrente compareça a


concursos de ginástica, de música ou qualquer outra competição do mesmo
gênero, quem quiser poderá denunciá-lo aos presidentes dos jogos, e estes
¡mediatamente franquearão a entrada ao que deseja participar deles. Se já
não houver tempo para isso e o autor da violência alcançar a vitória, o
prêmio será entregue à pessoa impedida, que inscreverá seu nome como
vencedor no templo que quiser, não sendo permitido ao que o impediu
depositar nenhuma oferenda ou inscrição comemorativa dessa
competição, e quer tenha sido vencedor quer vencido, será obrigado a pagar
os prejuízos causados ao outro.

Quem receber algum objeto, sabendo que se trata de furto, sofrerá pena
igual à do ladrão, e quem der guarida a banidos, será condenado à morte.

Todo cidadão terá como amigos e inimigos os que a cidade tiver nessa
conta. Quem firmar paz ou declarar guerra por iniciativa própria com quem
quer que seja, sem delegação da comunidade, também sofrerá a pena de
morte. Se alguma parte da cidade concluir paz ou decidir sobre o estado de
guerra com estranhos, por conta própria, os estrategos citarão em juízo os
responsáveis, pagando com a vida quem for condenado.

Quem prestar algum serviço à pátria, sob nenhum pretexto poderá aceitar
presentes, nem mesmo sob a alegação de que cabe recompensar as boas
intenções, não as de má-fé, pois não é fácil conhecer os motivos íntimos,
nem, uma vez tomada alguma decisão, manter-se alguém na linha certa. O
mais seguro, então, será obedecer à lei e não prestar nenhum serviço a troco
de presentes. Quem não cumprir a lei, uma vez provada a culpa, será
sumariamente executado.

Quanto aos impostos a pagar para o tesouro público, por vários motivos é
necessário que cada um mande avaliar sua propriedade e que os membros
de cada tribo entreguem aos agrônomos uma relação, por escrito, da
colheita do ano, pois havendo duas espécies de contribuição, todos os anos,
após deliberação conjunta, o tesouro decidirá qual lhe convém arrecadar, ou
uma parte da avaliação de todos os bens ou a da renda daquele ano,
excluídos os gastos com as refeições em comum.

Às divindades os homens moderados só devem oferecer dádivas modestas.


No consenso geral, a terra e a lareira são consagradas a todas as divindades;
por isso, ninguém os consagre uma segunda vez. Noutras cidades, o ouro e
a prata, tanto nos templos como nas casas particulares, despertam inveja; o
marfim, retirado de um corpo sem vida, não é oferenda pura; o ferro e
o bronze são instrumento de guerra. Em troca, quem quiser ofereça nos
templos públicos donativos de madeira, porém só de uma peça, ou mesmo
de pedra; tratando-se de tecido, não poderá exceder ao trabalho mensal
de uma mulher. Dentre as cores, o branco é a mais indicada para as
divindades, em tudo, mas principalmente nos tecidos; outras tinturas só são
empregadas nos ornamentos de guerra. As oferendas mais divinas são
as aves e imagens do tipo das que os pintores aprontam num dia de
trabalho. Os demais donativos devem pautar-se por esses modelos.

VIII — Depois de havermos dividido toda a cidade e mostrado a ordem e o


número de suas partes, e de tratar, como nos foi possível, da legislação
concernente às transações mais importantes, resta-nos falar da própria
organização da justiça. O primeiro tribunal será formado de juízes que o
acusador e o acusado escolherem de comum acordo; cabe-lhes com mais
propriedade o nome de árbitros do que o de juízes. O segundo, repartido
pelas doze divisões territoriais, será composto dos juízes das aldeias e das
tribos, para onde apelarão as partes, se a questão não for decidida no
primeiro tribunal; mas a pena sempre será maior; se o acusado tornar a
perder, pagará um quinto da primeira importância estipulada na primeira
decisão. Se a parte vencida, descontente com os juízes, protestar por um
terceiro julgamento, o processo subirá para os juízes de eleição, e havendo
confirmação da sentença pagará o total e mais a metade do valor da causa.
O queixoso que não se conformar com a primeira sentença e apelar para
o segundo tribunal, na hipótese de ganhar a causa receberá o quinto; vindo a
perder, pagará em juízo essa mesma importância. Se ambos apelarem para o
terceiro tribunal, por não se conformarem com as primeiras sentenças, o
acusado, conforme disse, no caso de ser vencido pagará multa e meia, e se
for o queixoso, também uma metade a mais da multa.

Já falamos da maneira de escolher os magistrados e de como são providos


os cargos, a instalação dos serviços de cada magistratura e o tempo em que
tudo isso deve ser feito, como votarem os juízes, os adiamentos e demais
formalidades do processo, as ações intentadas em diferentes instâncias, a
necessidade das réplicas e o caráter obrigatório das notificações para depor
em juízo e outras mais da mesma natureza. A respeito de tudo isso já nos
manifestamos; mas o que é certo pode ser repetido duas e mais vezes. Todas
as minúcias de importância somenos e fáceis de imaginar, que o
velho legislador deixou de lado, compete aos moços regulamentar.
Os tribunais particulares ficarão bem estruturados dessa maneira. Quanto
aos tribunais públicos e comuns, e o modo de proceder dos magistrados no
desempenho de suas funções, em todas as cidades ha' um bom número de
instituições nada desprezíveis, criadas por varões de grande merecimento.
Dessas, os guardas das leis tirarão tudo o que acharem indicado para a
cidade em formação; depois de compará-las, corrigi-las e fazê-las passar
pela prova decisiva do uso, até que todas sejam consideradas boas, darão
por concluído o exame, em tudo imprimirão seu selo, para que ninguém as
modifique e as porão em uso para toda a vida.

No que entende com o silêncio dos juízes, o falar pausado ou o contrário


disso e tudo o que aberra das noções corretas do justo, do bom e do belo,
tão apreciadas em outras cidades, em parte já nos manifestamos e de alguns
pontos ainda voltaremos a falar antes de concluirmos o presente estudo.
Todo cidadão quequiser julgar com imparcialidade e justiça deverá atender
a tudo isso, guardar por escrito essas determinações e estudá-las com
cuidado. Dentre todos os conhecimentos, o que mais eleva o espírito de
quem neles se aplica é o estudo das leis, sempre que bem feitas; sem o que
careceria de sentido o nome que aplicamos à ordenação desses dispositivos
legais e que lembra a inteligência coordenadora. Com efeito, para julgar os
outros discursos, ou sejam os que se encontram nos poemas que têm
por objeto elogiar ou censurar certas pessoas, ou os feitos em prosa simples
nos escritos ou em conversações de todos os dias, em que as teimas nascem
do amor âs discussões e se fazem concessões sem justificativa: para tudo
isso a mais segura pedra de toque são os escritos dos legisladores que todo
bom juiz deve saber de cor, como antídoto contra os outros discursos, para
dirigir-se a si mesmo e conduzir bem a cidade, ensejando para os bons a
perseverança e o progresso na justiça e reconduzindo ao bom caminho os
que dele se afastarem por ignorância, intemperança ou pusilanimidade;
numa palavra: por toda sorte de injustiças, ou seja, nos que ainda estejam
em condições de corrigir-se de seus erros. Mas, os que os têm entrelaçados
na alma, o juiz que lhes ministrar a morte como remédio para tal disposição,
conforme tantas vezes já o dissemos, e com razão.

tanto os magistados como seus diretores só merecem os elogios de todos.


Os processos julgados no correr do ana seguem o trâmite legal, para a
competente execução, da seguinte maneira: Primeiramente, a autoridade
que funcionou no processo entregará a quem obteve ganho de causa todos
os bens de quem a perdeu, com reserva apenas de seu lote inalienável, o que
será posto em prática logo depois da sentença, mediante proclamação do
arauto na presença do juiz. Se depois do primeiro mês que se seguir ao
julgamento o condenado não liquidou a contento suas contas, a autoridade
que funcionou no processo entregará seus bens ao vencedor. Se não
tiver com que pagar tudo e ficar em débito, no mínimo, de uma dracma,
perderá o direito de demandar contra quem quer que seja, enquanto não
saldar a dívida com a parte vencedora; nesse entrementes, qualquer
cidadão poderá demandá-lo em juízo.

Se algum condenado causar dano à autoridade que o sentenciou, o juiz


injustamente prejudicado o citará perante o tribunal dos guardas das leis, e
quem nessas condições for condenado será punido com pena de morte, por
haver intentado destruir a cidade em sua legislação.

IX — E agora, quando um nasceu e foi educado, gerou filhos e os criou,


comportou-se com comedimento em suas ocupações cotidianas, pagou os
prejuízos que poderia ter causado a terceiros ou obteve reparação dos que
sofresse, e chegou, assim, à velhice, como convém, em harmonia com as
leis, é natural que morra. Com relação aos mortos, tanto homens como
mulheres, é aos intérpretes que compete decidir que cerimônias religiosas se
deve realizar para propiciar as divindades catactônias e as de cima da terra.
Não serão erigidos túmulos nem grandes nem pequenos; apenas o terreno
cuja natureza só sirva para receber e ocultar o corpo dos mortos com o
menor incômodo possível para os vivos é que se encherá de túmulos; todo
local que nossa mãe, a terra, destinou para produzir alimentos para
os homens, ninguém deverá, nem enquanto vive nem depois de morto,
impedir de alimentar os vivos. O túmulo não será mais alto do que cinco
homens possam erigir em cinco dias de trabalho, e as lápides
comemorativas deverão ter o tamanho necessário para comportar o elogio
do morto, no máximo de quatro versos heróicos. A exposição do corpo não
se fará no interior da casa senão o tempo preciso para verificar se se trata de
morte real, não de simples desfalecimento. Nas condições humanas, o prazo
de três dias é o suficiente, para depois ser levado o corpo para a sepultura.
Em tudo é preciso escutar o legislador, máxime quando nos diz que a alma é
de todo diferente do corpo, e que na presente vida é exclusivamente a alma
que nos define, não sendo o corpo senão uma imagem que acompanha cada
um de nós. É muito certo, pois, dizer-se que o corpo do morto não passa de
simulacro do vivo, e que o ser verdadeiramente imortal que, de fato, somos,
é o que se denomina alma e vai prestar contas a outras divindades,
conforme relatam as leis de nossos antepassados, cheia de confiança se for
de algum homem de bem, mas a de algum perverso, transpassada de medo,
e que depois da morte ninguém encontra ajuda de espécie alguma. Durante
a vida é que seus parentes deveriam ajudá-lo, para que vivesse esta vida o
mais justa e santamente possível e, depois de morto, se livrasse, na vida que
se segue a esta, dos castigos destinados aos maus.

Sendo assim, a ninguém convirá desperdiçar seus haveres, muito crentes de


que nosso ser autêntico seja esta porção de carne que vamos enterrar. Não;
o que é preciso dizer é que este filho, ou irmão, ou seja quem for que
imaginamos sepultar com grande sentimento, já partiu, depois de cumprir e
realizar seu próprio destino. Agora, nosso dever com o que ficou é gastar
com medida, como para um altar sem vida e consagrado às divindades
catactônias. Não é fora de propósito para o legislador avaliar com
antecedência a despesa módica com essas cerimônias. Eis a lei para tais
casos: Os gastos com o sepultamento não poderão exceder de cinco minas
para os cidadãos de mais recursos; três minas para os da segunda classe
censitária, duas para os da terceira e uma para os da quarta. Somente assim
será observada a medida.

Por obrigação do cargo, os guardas das leis são ocupadíssimos e precisam


cuidar de muitas coisas, mas, antes de tudo, das crianças, dos adultos e, de
modo geral, dos cidadãos de todas as idades. Do mesmo modo, ao término
da vida de qualquer pessoa, é a um dos guardas das leis que os parentes do
morto incumbirão de dirigir os funerais, sendo para ele ocasião de
elogios se se desempenhar da incumbência com a modéstia e moderação
deseja'veis, e de censuras, se o não fizer. A exposição do corpo e as demais
cerimônias obedecerão às práticas usuais, cabendo, porém, ao cidadão
encarregado da redação das leis especificar os seguintes itens. Não ficar
bem proibir ou aconselhar que chorem, mas é preciso impedir
terminantemente as lamentações e os gritos fora de casa, transportar o corpo
pelas ruas sem estar coberto, lamentar-se em altas vozes durante o trajeto e
ficar fora da cidade antes de sair o sol. São essas as leis que estabelecemos
para tais ocasiões; quem se mostrar obediente não sofrerá penalidades; mas
os que não seguirem as determinações dos guardas das leis serão
condenados à pena que eles, em conjunto, determinarem. Quanto às outras
maneiras de sepultar os mortos ou de recusar-lhes sepultura, tal como nos
casos de parricídio, roubos sacrílegos ou crimes de igual natureza, já nos
manifestamos, como já formulamos as leis específicas, de forma que,
praticamente, chegamos ao fim do nosso projeto de legislação.
Mas o certo é que não se pode considerar terminado, simplesmente, o que
foi feito ou adquirido ou fundado; só depois de assegurar a conservação ou
o funcionamento definitivo dessa obra, é que poderá alguém vangloriar-se
de ter feito tudo o que era preciso; antes disso, o todo ficará sempre
inacabado.

Clínias — Muito bem, forasteiro; porém sê mais claro no que queres dizer
com essa observação.

X — O Ateniense — Clínias, muitas das coisas que recebemos dos antigos


têm sido justamente elogiadas, não sendo de menor merecimento os nomes
dados às Moiras.

Clínias — Que nomes?

O Ateniense — A primeira é Láquese; a segunda,

Cloto; e a que conserva o destino de cada um de nós, Átropo, é assim


denominada por analogia com a atividade das fiandeiras que em três voltas
emprestam ao fio sua força irreversível de torsão. Não basta às cidades e
aos governos promover a saúde e a salvação dos corpos, mas e
principalmente, inspirar na alma o princípio de observação às leis, ou
melhor, à sua conservação. A meu parecer, é o que ainda falta a nossas
leis: emprestar-lhes esse poder inato que as deixará imutáveis.

Clínias — Não será defeito pequeno, se não pudermos encontar algum meio
de infundir essas qualidades em tudo o que possuímos.

O Ateniense — Possível, é; agora, pelo menos, é como vejo o problema.

Clínias — Não nos afastemos uma linha do caminho percorrido, antes de


conseguirmos essa vantagem para as leis que acabamos de redigir; seria
mais do que ridículo esforçarmo-nos inutilmente, e construir seja o que for
em bases pouco firmes.

O Ateniense — É oportuna a exortação; encontrarás em mim igual


disposição de espírito.
Clínias — Belas palavras; e como imaginas essa salvação e a maneira de
assegurá-la para a cidade e suas leis?

O Ateniense — Já não dissemos que terá de haver em nossa cidade um


conselho constituído da seguinte maneira? Dez guardas das leis, escolhidos
sempre entre os mais velhos, acrescidos de todos os cidadãos distinguidos
com o prêmio da virtude, os quais se reunirão em assembléia. A esse guarda
juntarão também os que viajaram pelo estrangeiro em busca de algum
achado eventual que pudesse contribuir para a conservação das leis, e que,
havendo regressado sãos e salvos, e depois de postos à prova, foram
considerados dignos de participar do conselho. Além disso, cada um levará
em sua companhia um moço de nunca menos de trinta anos, também
considerado digno dessa distinção pelo caráter inato e a educação recebida,
o qual será apresentado a seus colegas; em caso de rejeição, o parecer será
mantido secreto para todos, principalmente para o interessado.

Também já dissemos que esse conselho funcionará desde manhãzinha, hora


em que todos estão menos ocupados com seus negócios particulares ou com
os públicos. Não foi isso que estabelecemos em nossa exposição anterior?

Clínias — Exato.

O Ateniense — Voltando a falar do conselho, desejo acrescentar alguma


coisa, para dizer que, à maneira de uma âncora lançada como segurança da
cidade e munida dos poderes necessários, ele tudo salvará, de acordo com
nossos desejos.

Clínias — Como assim?

O Ateniense — Eis o momento de tudo expor com a maior clareza, sem


poupar esforços.

Clínias — Muito bem dito; faze como achares melhor.

O Ateniense — Devemos considerar, Clínias, que em todas as coisas há um


elemento próprio de salvação; no animal é à alma e à cabeça que cabe, por
natureza, esse papel.
Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — A virtude de ambas é que assegura a salvação dos animais.

Clínias — De que jeito?

O Ateniense — A inteligência que, ao lado de outras faculdades, reside na


alma, e, na cabeça, a vista e o ouvido. Em resumo: a inteligência, associada
aos mais belos sentidos e formando com eles uma unidade é o que, com
todo o direito, poderíamos denominar a salvação dos seres vivos.

Clínias — Tudo isso parece certo.

O Ateniense — Parece, mesmo. Mas, nos navios onde residirá esse misto de
sentido e inteligência, que nas tempestades e no tempo sereno lhes assegura
a salvação? Não será no piloto, a um tempo, e nos marinheiros, cujos
sentidos, de par com a inteligência do piloto, a todos salva juntamente com
o navio?

Clínias — Como não?

O Ateniense — Não há necessidade de citar novos exemplos. Perguntemos,


apenas, que meta se propõem os generais do exército e todos os que se
ocupam com a medicina para alcançarem, por meios certos, a salva-ção dos
respectivos objetos de seus cuidados. Para aqueles, não é a vitória e o
domínio sobre o inimigo, e para o médico e seus auxiliares, restituir ao
corpo a saúde?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Mas, o médico que ignorasse, com relação ao corpo, aquilo


a que damos o nome de saúde, o general, o que seja vitória, e tudo o mais a
que nos referimos: como admitir que disponham de inteligência, cada um
no seu ramo particular?

Clínias — Não é possível

O Ateniense — E com relação à cidade? Quem ignorasse a meta que se


propõe o político, poderia, primeiro, ser denominado, e a justo título,
dirigente, e seria capaz de conservar aquilo cujo fim ele mesmo ignora?

Clínias — Como fora possível?

XI — O Ateniense — Agora, também, como parece, se quisermos levar a


bom termo a fundação de nossa colônia, será preciso que exista nela algo
capaz de conhecer aquilo a que nos referimos, sua meta própria, a saber, a
constituição política, de que maneira alcançar esse desiderato, e depois de
onde nos poderá vir a melhor orientação, ou sejam, as leis, em primeiro
lugar, e em segundo os homens. Uma cidade carecente em absoluto de
semelhante recurso, sem inteligência nem sendo político, não é de admirar
que ande às tontas em todo o que fizer.

Clínias — Só dizes a verdade.

O Ateniense — E nós? Em que parte da cidade ou em que instituição existe


semelhante dispositivo para conservá-la? Poderíamos defini-lo?

Clínias — Evidentemente, não, forasteiro; pelo menos, com certa precisão.


Mas, se for permitido conjecturar, quer parecer-me que teu raciocínio
aponta para aquela reunião que, segundo disseste, deve ser feita à noite.

O Ateniense — Excelente sugestão, Clínias. Porém, é indispensável que tal


conselho reúna todas as virtudes, conforme o indica nosso argumento,
sendo a primeira a propriedade de não vagar à toa, no empenho de alcançar
várias metas ao mesmo tempo, mas fixar a vista num ponto, apenas, e
sempre disparar contra esse alvo todos os seus dardos.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Ficamos, agora, em condições de compreender que não é de


admirar serem flutuantes as instituições políticas, porque em cada cidade a
legislação se propõe meta diferente. Antes de mais nada, não há do que
espantar considerarem alguns que a justiça consiste em assumirem certos
homens o governo da cidade, pouco importando que sejam bons ou maus,
ou enriquecerem uns tantos, quer sejam escravos quer cidadãos livres;
alguns, também, empenham todo o esforço para viver livremente, enquanto
outros se propõem duas metas ao mesmo tempo: serem livres e dominar
as outras cidades, enquanto os mais sabidos, segundo crêem, se afanam
simultaneamente no encalço de todos esses fins, sem que possam apontar
um em particular que concentre suas preferências e por amor do qual todos
os outros são de desejar.

Clínias — Será, forasteiro, que há muito já não encontramos esse princípio


diretor? Pelo menos, afirmamos que nossas leis deveriam olhar para um
único ponto, que com propriedade definimos como sendo a virtude.

O Ateniense — Isso mesmo.

Clínias — Como também dissemos que a virtude pode ser de quatro


espécies.

O Ateniense — Perfeitamente.

Clínias — Sendo que pusemos a inteligência como guia das outras, para a
qual devem particularmente olhar as outras três e tudo o mais.

O Ateniense — Acompanhas-me admiravelmente, Clínias. Continua assim


no que falta expor. Com relação ao piloto, ao médico e ao general, já
indicamos a meta a que deve visar a inteligência; e agora que nos dispomos
a inquirir o político, falemos-lhe como se o submetêssemos a um
interrogatório. E tu, varão admirável, para onde diriges a mira? A teu
parecer, qual é esse objeto único, que a inteligência médica sabe apontar
com segurança, e acerca do qual nada tens que di-zer, apesar de te
considerares tão superior a todos? Pelo menos vós dois, Megilo e Clínias,
não poderíeis falar no seu lugar, para dizer-me com toda a precisão o que
pensais, tal como já fiz tantas vezes convosco?

Clínias — De forma alguma, forasteiro,

O Ateniense — Afinal, qual será esse princípio que‘ precisamos conhecer


em si mesmo e em suas manifestações?

Clínias — Que manifestações?


O Ateniense — Ora, quando declaramos que há quatro espécies de virtude,
é fora de dúvida que consideramos cada uma em separado com uma
unidade, visto serem quatro.

Clínias — Como não?

O Ateniense — No entanto, designamos todas elas por um único nome.


Dizemos que a coragem é virtude, e do mesmo modo as outras duas, como
se não fossem muitas, mas uma virtude apenas.

Clínias — Perfeitamente.

O Ateniense — Em que essas virtudes diferem umas das outras e porque


receberam nomes diferentes, como também as outras, não é difícil explicar;
o que não é fácil é demonstrar porque lhes demos, e às outras duas, esse
mesmo nome, virtude?

Clínias — Que queres dizer com isso?

O Ateniense — Não é difícil provar minha proposição. Distribuamos entre


nós a pergunta e a resposta.

Clínias — Repito: que queres dizer com isso?

O Ateniense — Pergunta-me agora porque, tendo dado às duas o mesmo


nome, virtude, aplicamos o de coragem a uma e o de prudência a outra. Vou
dizer-te a razão disso: é que uma, a coragem, está em relação com o temor,
de que participam os próprios animais e desde muito cedo se encontra no
caráter das crianças; por sua própria natureza, a alma pode ser corajosa
sem ajuda da razão; mas sem a intervenção da razão, nunca houve, não há
nem poderá haver alma dotada de prudência e de inteligência, por tratar-se
de coisas diferentes.

Clínias — É muito certo o que afirmas.

O Ateniense — Aprendeste comigo a razão de serem diferentes e duas.


Cabe-te, agora, dizer porque são uma só coisa. Considera que terás de
explicar como é que, sendo quatro, são também uma, e depois dessa
demonstração pergunta-me, de retorno, a razão de serem quatro. De
seguida, consideremos se, para adquirir o conhecimento satisfatório seja do
que for que tenha nome e também definição, bastará saber o nome
sem conhecer a definição, ou se não é vergonhoso para alguém de préstimo
ignorar ambas as coisas, sempre que se tratar do que se distingue pela
beleza e importância intrínsecas.

Clínias — É bem provável.

O Ateniense — Ora, para o legislador e o guarda das leis que se


distinguirem dos mais pela virtude e houverem alcançado precisamente esse
prêmio, haverá o que seja de maior importância do que isso a que
nos referimos agora mesmo: coragem, temperança, prudência e justiça?

Clínias — Como fora possível?

O Ateniense — E não será, então, necessário que os intérpretes, os


professores, os legisladores, os guardas dos demais cidadãos sejam mais
capazes do que todos de explicar e ensinar a quem precisa aprender ou ser
corrigido, e punir quem cometer alguma falta no que entende com as
propriedades do vício e da virtude, e de explicar-lhes com toda a clareza em
que se distinguem entre si? Ou vamos esperar que apareça na cidade algum
poeta ou quem se apresente como instrutor da mocidade, superior aos
próprios vencedores no concurso de todo gênero de virtude? Com essa
penúria de guardas eficientes por atos e por palavras, e com conhecimento
exato da virtude, será de admirar, dizia, que uma cidade desprovida a tal
ponto de guardas se veja a braços com as dificuldades com que lutam as
cidades do nosso tempo?

Clínias — Não, evidentemente.

XII — O Ateniense — E agora? Poremos tudo isso em prática, ou que


faremos? De que maneira formaremos guardas mais eficientes na virtude do
que o comum dos homens, tanto em seus atos como nos discursos? Que
será preciso fazer para deixar nossa cidade semelhante à cabeça e aos
sentidos dos varões sábios, com a guarda necessária no seu íntimo?
Clínias — Como, e de que modo, forasteiro, interpretaremos essa
comparação?

O Ateniense — Evidentemente, a própria cidade será o tronco; os guardas


mais jovens, escolhidos entre os mais bem dotados e com todas as
faculdades da alma bem desenvolvidas, serão colocados na porção
mais elevada, dominarão com a vista os arredores da cidade e transmitirão à
memória tudo o que captarem por intermédio dos sentidos, para daí
comunicarem aos anciãos quanto se passa na cidade; os velhos,
comparados por nós com a inteligência, por sempre terem o pensamento
ocupado com grandes problemas, são os conselheiros que se beneficiam
com o serviço e o parecer dos moços, para, de comum acordo, cuidar da
conservação da cidade. Deverá ser a cidade organizada dessa maneira, ou
como diremos? Ou todos terão de ser iguais, em vez de alguns se
distinguirem pela educação e a instrução recebidas?

Clínias — Esse projeto é inexeqüível, meu admirável amigo.

O Ateniense — Então, precisaremos recorrer a um processo educativo mais


eficiente.

Clínias — É possível.

O Ateniense — E o que há pouco mencionamos de passagem, não será


precisamente o que procuramos?

Clínias — Sem dúvida.

O Ateniense — Não dissemos que o guarda e o artesão competente no seu


mister deverão ser capazes não apenas de dirigir o olhar para o múltiplo,
como também esforçar-se para alcançar o uno e, depois de conhecê-lo,
considerar o todo numa visão conjunta?

Clínias — Exato.

O Ateniense — E para qualquer pessoa, poderá haver método mais seguro


de observar seja o que for, do que abarcar numa idéia única o múltiplo e
diferençado?
Clínias — Talvez.

O Ateniense — Não; até mesmo sem talvez, meu caro; não há método mais
seguro.

Clínias — Concordo contigo, forasteiro, por confiar em tua palavra;


prossigamos em nosso estudo, sem nos desviarmos da meta que nos
propusemos.

O Ateniense — Então, ao que parece, primeiro teremos de obrigar os


guardas de nossa divina cidade a ver exatamente o que há de idêntico nas
quatro virtudes, e que dissemos ser uma só coisa, tanto na coragem como na
temperança, na justiça e na prudencia e que, com todo o direito, designamos
pelo nome único de virtude. Isso, amigos, se quisermos é que teremos de
segurar firmes e não largar enquanto não ficarmos em condição de explicar
qual é a meta a que teremos de visar: a unidade ou o todo, ou ambos a um
só tempo, e qual seja sua natureza. Vindo esse ponto a escapar-
nos, poderemos imaginar que estamos certos em matéria de virtude, se nem
podemos dizer se ela é múltipla ou quatro ou apenas uma? De jeito nenhum;
enquanto prevalecer nossa maneira de pensar, excogitemos um meio para
que a cidade adquira esse conhecimento. Se achardes que podemos abrir
mão dele, deixemo-lo de lado.

Clínias — De forma alguma, forasteiro; pelo deus da hospitalidade, não


abandonemos esse tópico, pois teu pensamento nos parece muito acertado.
Mas, como encontrar o caminho preciso?

O Ateniense — Não falemos do como, sem primeiro decidir se convém ou


não procurá-lo.

Clínias — Convém, sem dúvida; se for possível.

XIII — O Ateniense — E então? A respeito do belo e do bem, pensaremos


do mesmo modo? Bastará a nossos guardas saber que cada um deles é
múltiplo, ou também que é uno, e de que modo?

Clínias — Parece-me absolutamente indispensável chegarem a


compreender sua unidade.
O Ateniense — Como! Bastará compreender, sem serem capazes de
demonstrá-la por meio de palavras?

Clínias — Como? Atribuis-lhes, porventura, inteligência de escravos?

O Ateniense — E depois? Não será lícito dizer a mesma coisa de todos os


assuntos importantes, e que, para ser um legítimo guarda das leis é preciso
conhecer a verdade inerente a todas elas, saber interpretá-las por meio do
discurso e acompanhá-las na prática, bem como opinar a respeito da beleza
ou da maldade das coisas, de acordo com sua natureza?

Clínias — Como não?

O Ateniense — E um dos mais belos conhecimentos, não será, porventura,


o que se refere aos deuses, de que já falamos com bastante interesse, como
realmente existem e de que modo manifestam seu poder, o que todo homem
deve conhecer, na medida de suas possibilidades? Admitiremos em nossa
cidade que a maioria de seus componentes se limite a escutar a voz das
leis; mas não se poderá aceitar no serviço de guardas senão os que se
esforçarem ao máximo para consolidar a crença na existência dos deuses?
Jamais será escolhido para a função de guarda das leis nem distinguido com
o prêmio da virtude quem não for divino e profundamente versado nesses
assuntos.

Clínias — Não é sem fundamento dizeres que os indolentes e os incapazes


devem ser conservados longe de tão bela atividade.

O Ateniense — Acaso não saberemos que em toda nossa exposição há duas


coisas que nos levam a acreditar nos deuses?

Clínias — Quais serão?

O Ateniense — Uma, foi o que dissemos a respeito da alma, que é mais


antiga e divina do que todos os seres a que o movimento conferiu existência
eterna ao nascimento. A outra, é a ordem observada na revolução dos astros
e dos demais corpos governados pela inteligência coordenadora do
universo. A menos que observe tudo isso por maneira vulgar e superficial,
não há quem se revele tão afastado dos deuses e não passe a demonstrar
sentimentos contrários aos da maioria. Estes, realmente, acreditam que
quem se entrega a tais elucubrações com a ajuda da astronomia e outras
artes correlatas de grande precisão, se torna ateu, por chegar à conclusão de
que tudo acontece por necessidade, não segundo os desígnios de uma
vontade que se esforça para a realização do bem.

Clínias — E como realmente as coisas se passam?

O Ateniense — O contrário, justamente, conforme já expliquei, do que se


passa hoje e do que se passava quando os astros eram tidos na conta de
corpos inani-mados. Mas, até mesmo naquele tempo tais
fenômenos despertavam admiração, por suspeitarem os que os estudam a
sério e que hoje é tido como verdade, isto é, que se fossem privados de
alma, esses corpos não usariam cálculos com tamanha precisão, por
carecerem de inteligência. Sim, alguns chegaram até mesmo a ponto de
arriscar a seguinte proposição: foi a inteligência que dispôs tudo o que se
passa no céu. Mas, por outro lado, enganaram-se com a natureza da alma,
que é anterior aos corpos, com imaginá-la mais nova; mas, com
isso transtornaram a ordem de tudo, a começar por eles mesmos; todos os
corpos que se lhes apresentavam à vista e se movimentam no céu lhes
pareciam cheios de pedra e de terra e de outros materiais inanimados
que entre si distribuíam as causas do cosmo em universal. Foi isso que
produziu aquele surto de ateísmo e suscitou tantas dificuldades para os que
se ocupam com tais assuntos, bem como a gritaria por parte dos
poetas quando compararam os filósofos a cães entregues a um ladrar inútil,
e muitas outras tolices do mesmo quilate. Mas hoje, conforme disse, tudo
está mudado.

Clínias — Como assim?

XIV — O Ateniense — Não é possível, em absoluto, que algum homem


mortal revele sincero respeito aos deuses, se não estiver impregnado das
verdades que enunciamos, isto é, que a alma é mais antiga do que tudo o
que participa da geração, é imortal e comanda todos os corpos, e também,
conforme já nos manifestemos inúmeras vezes, que nos astros há uma
inteligência diretora dos seres; se não houver adquirido os conhecimentos
necessários e percebido a afinidade que eles têm com a música, para deixar
em harmonia com ela os costumes, as instituições e as leis, e,
principalmente, se não for capaz de dar a razão de tudo o que tem sua razão
de ser. Quem não souber opulentar com esses princípios as virtudes civis,
de maravilha chegará a ser dirigente da cidade à altura de seu cargo, senão
apenas ajudante de outras pessoas naquelas condições. Resta-nos considerar
agora, Megilo e Clínias, se às leis que acabamos de redigir convirá
acrescentar mais a seguinte, como guarda e conservadora da cidade,
conforme o espírito da lei relativa a um conselho noturno dos magistrados
que receberam a educação por nós preconizada. Ou como faremos?

Clínias — Como não acrescentar mais essa lei, meu excelente amigo, ainda
que só contemos com um mínimo de possibilidades?

O Ateniense — Nesse sentido é que devemos congregar esforços. De minha


parte, com a maior satisfação vos ajudarei, e decerto arranjarei mais gente
com igual disposição, graças à experiência por mim alcançada nesse terreno
e por tratar-se de estudo de minha particular predileção.

Clínias — Sem dúvida, forasteiro; esse é o caminho que devemos seguir,


sendo quase certeza que Deus nos serve de guia; mas, a maneira de
levarmos a bom termo semelhante tarefa, é o que precisamos procurar e
explicar.

O Ateniense — Não será possível, Megilo e Clínias, apresentar uma lei


nesse sentido, sem primeiro organizar o conselho; só então se poderá
determinara amplitude de seus poderes. Por enquanto, o que
precisamos fazer para alcançar esse desiderato é procurar instruirmo-nos
por meio de freqüentes conversações.

Clínias — Como! Mais uma vez: de que modo devemos interpretar tuas
palavras?

O Ateniense — Inicialmente, será preciso organizar uma relação das


pessoas capazes de desempenhar as funções de guarda, quanto à idade, a
extensão dos conhecimentos e ao caráter e costumes. Ademais, não é fácil
descobrir que noções eles precisem adquirir ou aprender com quem as tenha
descoberto; sem contar, que seria trabalho perdido determinar por escrito
o tempo certo de começar a estudar ou de aprofundar-se em tais questões.
Os próprios interessados não saberão dizer com segurança o que é oportuno
saber, antes de todos adquirirem esse conhecimento particular. Assim, como
só nos exprimiríamos mal se quiséssemos falar de tais assuntos,
classifiquemo-los desde logo como rebeldes a qualquer exposição, pois de
nada adiantaria tentar defini-los com antecedência.

Clínias — Se é assim, forasteiro, como devemos proceder?

O Ateniense — Amigos, para falar com o provérbio, chegou a hora de


ganhar tudo, e se estivermos dispostos a arriscar a sorte de toda a cidade,
jogando, como se diz, três vezes seis ou três vezes um, façamos isso
mesmo. Participarei convosco do mesmo risco, com declarar e explicar o
que penso acerca da instrução e da educação de que tratamos há pouquinho
em nosso discurso. É grande o risco e fora de toda comparação. A ti,
Clínias, confio particularmente essa incumbência. Se organizares como é
preciso a cidade dos magnetas, ou como quer que Deus a denomine,
adquirirás glória imorredoira com teu trabalho, ou, pelo menos, não
deixarás de ser tido na conta do individuo mais bravo dentre todos os que te
sucederem. Se esse conselho divino, meus caros companheiros, algum dia
chegar a concretizar-se, confiemos-lhe a guarda da cidade. Sobre esse ponto
não cabe nenhuma dúvida, por assim dizer, entre os legisladores do nosso
tempo. Com isso, daríamos corpo, realmente, ao que até há pouco não
passava de sonho em nossas conversações e a que nos referíamos, quando
formamos uma espécie de imagem com á união da cabeça e da inteligência.
É o que se dará, se em nossa cidade os membros desse conselho forem
escolhidos com o máximo rigor, e depois de convenientemente educados
forem postos na cidadela do território à guisa de guardas ideais em sua
função salvadora, como nunca vimos iguais no decurso de nossa vida.

Megilo — Meu caro Clínias, depois de tudo o que conversamos, ou teremos


de desistir de fundar nossa cidade ou não permitir que nosso hóspede se
retire, mas convencê-lo por meio de súplicas e de todos os
recursos imagináveis, a associar-se conosco na fundação dessa colônia.

Clínias — Tens razão, Megilo; acolho teu parecer; mas precisas ajudar-me.

Megilo — É o que farei, sem dúvida.


1. LEIS
2. LEIS
1. Megilo — A que leis te referes?
2. A respeito dos trinta e sete, serão eleitos, agora
3. LEIS
4. LEIS
5. LEIS
6. LEIS
7. LEIS
1. Mas o certo é que não se pode considerar termina

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