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Cult #202 - Ditadura Heteronormativa - Autores, Varios

O documento apresenta uma entrevista com o filósofo Peter Pál Pelbart, onde ele discute sua trajetória, influências intelectuais e visão sobre a comunicação contemporânea. Pelbart defende formas de intervenção poéticas e políticas que criem deslocamentos na "infoesfera" e critica a quantidade excessiva de informações. Ele também destaca experiências como a ocupação do Parque Augusta que ensaiaram novos modos de sociabilidade e afetividade.

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Cult #202 - Ditadura Heteronormativa - Autores, Varios

O documento apresenta uma entrevista com o filósofo Peter Pál Pelbart, onde ele discute sua trajetória, influências intelectuais e visão sobre a comunicação contemporânea. Pelbart defende formas de intervenção poéticas e políticas que criem deslocamentos na "infoesfera" e critica a quantidade excessiva de informações. Ele também destaca experiências como a ocupação do Parque Augusta que ensaiaram novos modos de sociabilidade e afetividade.

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Sumário

perfil Peter Pál Pelbart

retrato do artista Duda Machado

coluna
Marcia Tiburi

dossiê ditadura heteronormativa


O que perdemos com os preconceitos?
De volta à festa
Verônica Bolina e o transfeminicídio no Brasil
Por mais viadagens teológicas
Pedagogia do armário

ensaio
Michel Foucault e a Coragem da Verdade

especial
Cinema: O sonho da retomada
Teatro: da maior importância
Literatura: em busca da emancipação

entrevista Cristovão Tezza

colaboraram nesta edição


perfil Peter Pál Pelbart
O terrorismo poético
HEITOR FERRAZ

A conversa poderia ter começado pela sua trajetória intelectual,


como é o caminho habitual dessas entrevistas. Afinal, o jornalista
estava ali, diante de um filósofo contemporâneo, para escrever uma
espécie de perfil, esse retrato por escrito que entretém o leitor e,
com algum sabor narrativo, também despeja informações sobre a
vida do entrevistado. No entanto, o professor Peter Pál Pelbart, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor de obras de
referência sobre o pensamento e a vida contemporânea, foi, a sua
maneira, tranquilamente, dirigindo a conversa para um campo mais
amplo, fora do registro pura e meramente biográfico. Obviamente
que sua vida, inserida neste mundo em que vivemos, está presente
nesta reflexão, ela vai aparecendo como parte deste tecido, até
mesmo nas pausas frequentes de sua fala.
Vestido com um casaco quadriculado, mais parecendo um
cobertor de vestir, e com um jeans cheio de bolsos largos, Pelbart
começou a conversa – um tanto quanto questionado pelo jornalista –
sobre o cada vez mais sufocante mundo da informação. Sentado no
sofá de seu apartamento, iluminado pelas duas faces, a norte e a sul,
no bairro do Higienópolis, em São Paulo, com um bule de café em
cima da mesinha de centro, ele começou lembrando as intervenções
do cineasta francês Jean-Luc Godard que, numa entrevista de
televisão, jogou a pergunta de volta ao jornalista, e criou um curto-
circuito na comunicação. “Ele era uma espécie de terrorista
poético”, diz Pelbart. “Assim como Gilles Deleuze, ele via a
comunicação como uma veiculação de palavras de ordem,
produzindo clichês na forma de perceber que vão sendo impressos,
distribuídos e se disseminam por toda uma cadeia”, explica. E logo
lança, sem esconder sua simpatia pelo gesto de Godard, uma
pergunta: “Como você sabota isso?”
Do meio do emaranhado de sua barba grisalha, sai um sorriso
maroto. “Eu tento escapar desse fluxo pseudo-interativo, que é
tirânico e despótico. A quantidade de redundância que somos
obrigados a deglutir todos os dias é acachapante”, diz. “Tenho um
celular, mas é de madeira.” Levanta-se rapidamente, vai até um
móvel da sala e volta com um abridor de garrafa que ele comprou na
Finlândia, com o teclado de celular esculpido num toco de árvore e
um desenho de um alce. “Não é solipsismo, nem tecnofobia. Há
uma geração mais jovem que tem a arte de subverter esses códigos e
mecanismos. Eu, do meu jeito um tanto antigo, com uma
desconfiança dos meios de comunicação, ainda prefiro uma coisa
mais arcaica, chamada livro, que tem a sua potência e que explode
num outro ritmo”, diz.
No seu cotidiano, dividindo-se entre aulas na PUC, cursos,
palestras, participação em um grupo de teatro e atividade de editor,
Pelbart procura – a sua maneira, como ele falou – encontrar
iniciativas e formas de intervenção poéticas e políticas que criem
deslocamentos naquilo que o ativista italiano, Franco Berardi, cujo
nome de guerra é Bifo, chama de “neuromagma” e “infoesfera”.
“Bifo vê nessa imensa quantidade de palavras e imagens uma
matéria que solta ondas que atravessam o planeta, e principalmente
nos atravessam. Ele chama a isso de impulsos psicomagnéticos, aos
quais a gente já responde com uma espécie de automatismo corporal
e mental. Mas, mesmo nesse neuromagma, ele reconhece que há
bifurcações, ou seja, bolsões, regiões, redes, que conseguem se
desviar dessa cadeia de comando e produzir outra coisa, uma
singularidade de linguagem, de metabolização da informação.”
Dentre as experiências mais próximas a essa, Pelbart destaca
algumas ações que ele acompanhou de perto, e com grande
interesse. Entre elas, a ocupação recente do Parque Augusta, em São
Paulo, contra a construção de três torres comerciais numa das
últimas áreas verdes da região central. Para ele, foi um dos
experimentos mais ricos acontecidos na cidade nos últimos tempos.
“Que comunidade eles montaram ali? Que lógica imperou? Havia
uma pluralidade de tipos, de motivações, de sexualidades e de
finalidades que, durante um certo tempo, coexistiram inventando
um jeito de gerir sem impor, cuidando do espaço e das relações. Foi
um laboratório onde se ensaiaram maneiras de ser, modos de existir
conjuntamente, mas diferente do coletivismo de cinquenta anos
atrás, que impunha a todos uma única palavra de ordem. São ações
ou momentos que a mídia não consegue captar, pois ela só quer
saber se deu ou não certo, se a polícia agrediu ou não”, relata ele,
que chegou a escrever um artigo sobre a ocupação.
Para ele, diante de uma situação de impossibilidade, não há outra
escapatória a não ser mobilizar alguma inventividade e criar, mesmo
que numa escala diminuta, algum possível. É uma maneira de
escapar da reatividade, que se dá dentro do campo do próprio
adversário e acaba dependendo dele. “Tenho visto com grande
interesse esses modos de ativar uma inteligência coletiva, modos de
cuidar de uma certa atmosfera, de inventar uma ‘comunicação’ com
o entorno. São invenções de sociabilidade e também de
afetividade”, completa.
Por trás de seu pensamento, há uma sólida e inventiva formação
em filosofia, principalmente um trabalho de anos a fio de
interpretação das obras de Gilles Deleuze e Felix Guattari, bem
como de Foucault, pensadores com os quais ele teve o privilégio de
estudar, quando morou na França, nos anos 1980. Mas para entender
o que levou Pelbart à filosofia, é preciso avançar pelos dados
biográficos, mas sem tomá-los como mais uma onda de impulsos
psicomagnéticos.
LIVROS QUE FEREM
Peter Pál Pelbart nasceu em Budapeste, na Hungria, em 1956. Pouco
tempo depois, seus pais, que eram comunistas e participaram do
movimento de democratização do país, tiveram que fugir, pois os
tanques russos esmagaram a revolução húngara em andamento. Eles
então se refugiaram em Viena. De Viena, a família se deslocou para
Israel, único país a lhes conceder um visto. E de lá seguiram, enfim,
para São Paulo, onde Peter passou sua infância e adolescência, já
que desembarcou por aqui com três anos de idade.
Seu primeiro contato com a filosofia se deu na adolescência, logo
após assistir ao filme 2001, uma odisseia no espaço , de Stanley
Kubrick. Saiu do cinema sem entender direito o que havia visto. Em
casa, comentou com sua mãe. Ela, por sua vez, procurou a vizinha
de porta, uma senhora russa de quem era grande amiga. “As duas
ouviam a Sinfonia Patética e choravam juntas a dor do exílio”,
lembra. E essa mulher tinha um filho, formado em engenharia, mas
que estudava filosofia. O então jovem Léon Kossovitch, hoje
professor sênior do Departamento de Filosofia da USP, disse que se
tratava de um filme existencialista. E de porta em porta a
informação chegou aos ouvidos de Pelbart, que logo abriu o
dicionário Nouveau Petit Larousse e o folheou: “Existencialismo é a
doutrina segunda a qual a existência precede a essência”. Apesar
desse interesse, não ouviu o canto da sereia da filosofia, e foi fazer
Ciências Sociais.
Mas a verdadeira bomba viria mesmo alguns anos depois, quando
abandonou o curso que fazia e resolveu colocar o pé na estrada. Foi
viver num kibutz em Israel. Tendo bastante tempo livre, resolveu ler
O Anti-Édipo , de Deleuze e Guattari, uma obra que o deixou
desnorteado. Como diz, lembrando Kafka, “só vale a pena ler livros
que nos ferem e trespassam, nos abalam como a morte de um amigo
íntimo, que quebram um mar de gelo que há dentro de nós”. Foi o
que aconteceu. Pouco tempo depois, ele estaria estudando filosofia,
na Sorbonne, em Paris IV. Paralelamente à formação “mais careta”
da faculdade, ele frequentava os cursos avulsos da École Normale e
do Collège de France.
“Estive em Paris num momento especial, principalmente entre
1980 e 1983. Eram os últimos anos em que as centelhas do maio de
68 ainda estavam no ar. Ou seja, pensadores como Foucault,
Deleuze, François Châtelet, Michel Serres, Jacques Derrida, enfim,
todos esses estavam ensinando e no auge de sua maturidade criativa.
Era a oportunidade de acompanhar essa filosofia em ato, já que
todos eles estavam inventando alguma coisa. E os cursos eram o
momento de compartilhar aquilo que estavam pensando e
escrevendo, era aquele limite entre ‘o saber e o não-saber’, como
diz Deleuze”, relembra.
No caso de Deleuze, por exemplo, o curso era sobre cinema. “Eu
não entendia patavina de cinema, e nem a metade das coisas que ele
dizia, mas acompanhei tudo aquilo com atenção. E, de repente, no
meio do programa, ele fazia uma interrupção para discorrer sobre o
tempo e quem não estivesse interessado poderia ir embora e voltar
meses depois. Ou seja, havia essa maneira não escolar e irreverente
de lidar com a tradição. Essa geração, para mim, foi muito
inspiradora. Mais até do que as informações e o próprio teor do
pensamento, eram o modo, o estilo, a liberdade e a coragem de
pensar diferentemente de si mesmos que nos inspiravam. Foucault,
por exemplo, muitas vezes colocava em xeque aquilo que ele havia
pensado e escrito, puxando o tapete de si mesmo. É uma coisa que
nós, em nosso circuito filosófico, feito de tanta referência, tanto
respeito solene e salamaleques, poderíamos revisitar e disso
aprender alguma coisa.”
TEMPO FLUTUANTE
Fazendo uma ponte com a vida contemporânea, Pelbart não deixa de
notar que hoje, mesmo na França, há uma espécie de assepsia na
vida acadêmica. “Muitas vezes, a gente não sabe se está numa
universidade, numa empresa, numa corporação, transmitindo
diretivas de comportamento.” Sem cair na esparrela da nostalgia, ele
lembra que havia uma fabricação que não pertencia a ninguém, mas
que também era comum a todos. “Algo muito diferente desse
individualismo de hoje, que a meu ver é regressivo, no sentido de
que todos têm uma tendência adaptativa de se conformar ao
modelito. Implantou-se um mecanismo de avaliação de professor,
baseada na quantidade de produção, que gera uma infantilização nos
próprios professores. Eles passam a obedecer a esses critérios. O
que isso tem a ver com o pensamento? Zero. Vai se instalando um
autocontrole, e tudo é avaliado. Cada um incorporou esse olho do
poder na própria cabeça e vai produzindo essa infantilização, essa
patrulha interna que aborta muitas possibilidades. É um mecanismo
da sociedade de controle que funciona por monitoramento e
avaliação, e não por vigilância, como anteriormente. Ao ser
interiorizado, esse mecanismo produz seres em avaliação incessante,
ou seja, em dívida permanente, aquilo que o sociólogo e filósofo
italiano Maurizio Lazzarato chama de ‘o homem endividado’. É um
sistema de intimidação que coloca todo mundo em risco, risco de
perder sua bolsa de pesquisa, seu cargo, sua função. Uma produção
de risco em escala que injeta esse mecanismo da dívida infinita”,
completa, com sua voz pausada e esfregando as mãos nas pernas.
Na sua prática docente em filosofia, Pelbart procura sustentar um
outro tempo, como frisa, que não é o do produtivismo. Um ritmo em
que o corpo e o pensamento alcancem outras dimensões. “Não há
nada de místico nisso”, adianta-se. Quem já viu ou ouviu suas
palestras nota como há pausas entre as frases, uma dicção mais lenta
e marcada por intervalos de silêncio, dando a quem assiste tempo
para absorver as ideias e fazer conexões próprias. Além disso, como
conta, citando a filósofa Jeanne Marie Gagnebin, que foi sua
orientadora de mestrado, cujo trabalho final foi Da clausura do fora
ao fora da clausura: loucura e desrazão , “é preciso permitir-se
perder tempo, algo que pode parecer uma aberração, mas que pode
nos levar a outras temporalidades, mais flutuantes, até a uma
atenção flutuante, que é diferente da atenção absoluta, exaustiva e
que tem por objetivo fazer tudo render”.
DIREITO DE MORRER
Fora da sala de aula, vivendo com um filho de 12 anos, o intérprete
da obra de Deleuze também encontra outras modalidades de lidar
com o tempo e resistir à cronopolítica, ou seja, a política de
otimização do tempo que, segundo ele, “nos faz, no limite, perder e
abortar a própria experiência do tempo”. Uma delas é a sua atuação
na Cia. Teatral Ueinzz, uma experiência que já dura vinte anos. É no
meio dos atores dessa companhia especial que ele se permite, vez ou
outra, morrer um pouco.
“No meu mestrado, quis escrever uma dissertação sobre a relação
entre filosofia e loucura, mas para não fazer um trabalho
exclusivamente teórico, procurei um estágio numa instituição
psiquiátrica, e fui recebido no Hospital Dia A Casa. E nasceu ali,
por sugestão de um paciente, um grupo de teatro. Este grupo cresceu
muito e não cabia mais na instituição. Há quase 15 anos, ele
funciona de forma autônoma, apresentando-se de vez em quando no
circuito cultural da cidade e participando de festivais no Brasil e em
outros países”, relata. O nome da companhia também surgiu durante
os exercícios que realizavam. Perguntaram a um dos pacientes, um
sujeito que quase não abria a boca, que língua ele falava. E ele
respondeu: “Alemão”. E para exemplificar soltou esse som:
“Ueinzz”, rapidamente adotado por todo o grupo. “Foi uma ruptura
assignificante que acabou se tornando o nosso ponto de apoio – uma
ruptura de sentido”, diz ele.
Muitas vezes, durante os ensaios, que acontecem uma vez por
semana no centro cultural B_arco, em São Paulo, ele se deita e
fecha os olhos. “Desapareço de mim mesmo. Não posso fazer isso
na minha cama, em casa. Eu preciso daquele entorno, daquele ritmo,
daquele caos, com aquelas vozes e atmosfera de afetividade. Se
fizesse isso numa sala de aula, seria demitido e internado. Mas ali
eu posso. É um exemplo de como deveríamos ter o direito de poder
morrer, interromper a velocidade do mundo, das solicitações e dos
compromissos. Desaparecer de si e dos outros e sonhar com outras
possibilidades”, conta.
Esse episódio lembra uma bonita passagem do ensaio “Filosofia
para suínos”, incluído no livro Vida capital , um texto escrito para
uma performance filosófica, um monólogo ficcional endereçado a
Felix Guattari, com quem Pelbart teve uma grande convivência:
“Uma vez eu cheguei a sua casa em La Borde e você estava
estendido sobre a mesa da sua sala. O rosto impassível, o corpo
petrificado. Você estava morto. Rodeado de porcos por todos os
lados. Eu me acerquei da minha sopa insossa, e de vez em quando
roçava minhas unhas em sua pele endurecida. De repente seu corpo
se esburacou feito um queijo suíço. Abriram-se grandes vãos, e
deles saltitavam pequenos parafusos, fios coloridos, chips,
eletrodos, graxa, fluidos, pequenos zumbidos. Recolhi as pecinhas
caídas, montei com elas trenzinhos, maquininhas inúteis, daquelas
de Tinguély que admirávamos juntos”.
É com essas e outras peças, no embate do pensamento, que ele
procura atividades de intervenção micropolítica, com pequenas
sabotagens, num mundo saturado e esgotado. Seu mais recente
livro, O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento , com uma
capa preta termossensível, traz uma série de ensaios-palestras nos
quais ele especula sobre as possibilidades de criar brechas, “por
minúsculas que sejam” nesse “estrangulamento biopolítico”, “para
reativar nossa imaginação política, teórica, afetiva, corporal,
territorial e existencial”. A própria edição do objeto-livro entra
nessa lógica. Ele saiu pela editora n–1, da qual Pelbart é um dos
criadores. Nascida do encontro de Pelbart com Ricardo Muniz
Fernandes e com o finlandês Akseli Virtanen, na época em parceria
com Aalto University, a proposta é publicar livros como aqueles
“que quebram um mar de gelo que há dentro de nós”.
Sobre o estranho nome da editora, entra em cena o professor, um
dos maiores especialistas no Brasil na obra de Deleuze: “n-1 é uma
fórmula que está em Deleuze-Guattari e que significa o seguinte:
dada uma multiplicidade qualquer, como subtrair dela o elemento
que tende a sobrepor-se a ela? Por exemplo: diante de
multiplicidade de pessoas, coisas, signos, de elementos quaisquer,
como evitar que um deles – líder, doutrina, instância – se
sobreponha a esse conjunto aberto e acabe virando o centro e a
autoridade? O que é pensar esse “n”, essa multiplicidade, subtraída
dessa autoridade que a assedia? Pois sempre há alguém, uma
palavra de ordem, a se sobrepor a esse jogo de singularidades. O
que é um movimento que não tem um líder, uma palavra de ordem,
um objetivo fixo? Como essa multiplicidade pode engendrar
estratégias, iniciativas múltiplas, sem que se cristalize numa
hierarquia, numa estrutura, num partido, ou num estado? É um n
menos esse um, que seria o estado”, explica.
Com um projeto inventivo, no qual a capa de cada livro tem
características próprias, como um parafuso enferrujado, uma agulha
de sutura numa textura de pele, e outros elementos gráficos, a
editora já conta com um pequeno catálogo, mas de peso no meio
acadêmico brasileiro (vale lembrar que os livros são bilíngues,
português e inglês, por causa da parceria internacional). Entre os
títulos publicados, encontram-se as edições de Máquina Kafka , de
Guattari, Potências do tempo , de David Lapoujade, O corpo
utópico; Heterotopias , de Foucault, Signos, máquinas,
subjetividades , de Maurizio Lazzarato, e Manifesto contrassexual ,
de Beatriz Preciado, entre outros.
Nos dias em que esta entrevista foi realizada, Peter Pál Pelbart
preparava-se para mais uma de suas intervenções. Agora, num dos
auditórios da PUC, onde leciona desde 1989. Ele engajou-se ao lado
de seus colegas na luta pela Cátedra Michel Foucault, projeto que
obteve aprovação de todas as principais instâncias da universidade,
mas foi barrado pelo Conselho Superior da Fundação São Paulo,
mantenedora da PUC de São Paulo ( leia texto de Oswaldo Giacoia
Junior, nesta edição ). Pelbart participou com suas armas habituais:
seu conhecimento sobre a obra do filósofo, na mesa-redonda
“Michel Foucault e a filosofia do presente”.
Caberia ainda lembrar outras passagens importantes da vida desse
terrorista filosófico e poético, como o quiproquó causado na PUC,
em 2012, durante um ato contra a nomeação da reitora Anna Maria
Marquez Cintra. Durante uma performance no Pátio da Cruz, o
diretor teatral José Celso Martinez Corrêa e sua trupe dionisíaca
promoveram uma encenação da decapitação de Dona Benta, um
enorme boneco articulado, com a cara do papa Bento XVI. Dois
anos depois, a reitoria abriu uma sindicância para apurar os
responsáveis pelo convite a Zé Celso, e os nomes dos professores
Jonnefer Barbosa, Yolanda Gloria Gamboa Muñoz e Peter Pál
Pelbart foram arrolados, como foi noticiado pela imprensa. Cogitou-
se inclusive pela expulsão dos três docentes. Como nos antigos
processos de inquisição, eles serviriam de exemplo. No entanto,
após intensa manifestação do meio acadêmico, o processo foi,
enfim, arquivado. Como nada foi provado contra ele, esse episódio
não cabe neste texto de perfil deliciosamente sabotado desde o
início pelo pensamento de um dos mais instigantes filósofos da cena
contemporânea brasileira.
retrato do artista Duda Machado
Uma poética entre o silêncio e o ruído
CLAUDIO DANIEL

Duda Machado realiza uma arquitetura poética concentrada, com


economia sintática, densidade semântica, discurso fraturado,
elíptico, espacialização de palavras e linhas. Sua pesquisa formal
deriva da leitura intensa de João Cabral de Melo Neto e da Poesia
Concreta, mas também da ressonância do Tropicalismo e da
contracultura, elementos presentes em outros poetas de sua geração,
como Antonio Risério e Waly Salomão. Como letrista de música
popular, Duda Machado assina canções como “Hotel das estrelas”,
musicada por Jards Macalé e gravada por Gal Costa no disco A todo
vapor .
Seu livro de estreia, Zil , publicado em 1977, reúne poemas
visuais brutalistas, com clara influência do grafite, como Paint back,
composições breves, irônicas e bem-humoradas (“Inferno: os anjos
ouvem/ a décima sinfonia de Beethoven”), peças permutatórias,
construídas pela repetição das mesmas palavras, em ordem e
combinação diferentes (“habitar os abismos/ manter a face/ voltada
para o sol// habitar/ manter os abismos/ voltados para o sol// os
abismos/ a face/ o sol:/ gozo louco”) e inventivos poemas em prosa,
como “Ária” (“lambança, aboio, maracatu, papoamarelo, caroá,
xerém, gado preto sobre o campo branco, esplendor de
estandartes”).
O desenho minimalista terá continuidade em seu segundo livro de
poemas, Um outro , reunido, juntamente com Zil , no volume
Crescente , publicado em 1990. A nova coletânea radicaliza o
esforço de concisão, só comparável ao desenvolvido por Carlos
Ávila, Ronald Polito e Júlio Castañon Guimarães, e o leque
temático se amplia, dialogando de modo mais enfático com a vida e
o mundo, como nestas linhas de “Visão do avesso”: “neon insone/
esquinas frigorífico// na madrugada/ drogada/ céu e asfalto/ se
ombreiam/ exaustos// a um canto/ travesti e pivete/ apressam um
trato// : déja vu/ restos/ pano rápido”. Em “Hora do rush”, peça
composta de apenas oito palavras, encontramos este pequeno retrato
urbano, de um expressionismo ácido: “moinhos/ de braços/
inimigos/ ao vento/ s’entre/ ferindo”. Em outra peça, “Sortilégio”,
Duda Machado faz um delicado retrato do cotidiano, dialogando
com a passante de Baudelaire: “moça/ sob a chuva/ anda/ olha/
como quem/ abre cortinas// a chuva lhe cai em cima/ ou se limita/ a
segui-la?”. O lirismo não está ausente, mas é redimensionado em
estruturas poéticas calculadas que valorizam o som e o silêncio, a
figura e o vazio: pensamento, sonoridade e visualidade formam uma
unidade estética, na qual a voz lírica e o referente externo são
elementos da ficção encenada que é o próprio poema .
Margem de uma onda , publicado em 1997, inaugura nova fase na
escrita de Duda Machado: o poeta reconstrói a sintaxe, em versos
mais longos, sem cair na mera discursividade. As figuras
metonímicas, cortes bruscos, variações de ritmo e palavras
inesperadas vivificam a fala, compondo quadros expressivos da
cena urbana, como na peça “Urubu - abaixo”: “overdose de dezenas/
de dúzias/ desovam/ desossam/ desencarnam/ subterrâneos jardins
de infância/ de quem mais carniça que criança/ abocabraba/ saliva
rala/ tudo que os exprime/ reinventa o crime/ etês/ erês/ num bafo de
forra/ vão mamando cola”. O realismo crítico, em outras peças,
aproxima-se, pela paródia, da linguagem jornalística, como acontece
em “Fim de semana”: “Já entraram no barraco fuzilando./ No balão
de oito metros de largura/ o nome dele estava escrito/ com lanternas
na rabeira./ Deixaram um corpo amarrado no poste/ pra todo mundo
ver./ A maior parte/ é no fim de semana”.
Adivinhação da leveza , livro mais recente do autor, publicado em
2014, mantém a discursividade linear, com temas reflexivos,
intimistas e a reinvenção do cotidiano, como no minipoema
“Jornada”: “Sarcasmos do sol,/ a pausa e, depois,/ o céu inflige/ o
seu recorde/ de cicatrizes”.
Lugar da noite
A escuridão não tem hora. Ignora
o prestígio com o qual se reescreve
o lugar da noite. Vai arrastá-lo
− exausto − até o sol, até o
cara-a-cara-com-o-que-você-
fez-não-fez, o-que-você-foi-não-foi.
Ignora a sedução do contraste
que a noite encena: a luz própria
à sondagem de si mesmo ante
a cifra do fim ao fim do dia. Quando
então se celebrasse a extrema-
unção do esclarecimento.

Fôlego
Aquele espaço
aquele murmúrio cantarolado
agora se exaurem na demanda
de fôlego para dar à lembrança
o encanto que lhe ensinaram
desde sempre a querer fixar

Memento
Tudo que havia era luz.
Não havia
– para aquele deserto −,
modo nenhum de travessia.

Circuito
arboresce
arborescem os gestos
desde as árvores
nos ombros/quadris/pernas
cabeças/troncos
onde em
espaço alusivo a
terra/sol/ar/água/sombra
os corpos contrariando
a si mesmos dançam
desentranham obstinados
os movimentos
guardados na árvore
(seiva/raiz/tronco
copa/ramos/galhos)
co-movendo
quem vê
coluna

Falar sozinho
MARCIA TIBURI

A palavra autoritarismo é usada para designar um modo


antidemocrático de exercer o poder. A centralidade da autoridade é
o atributo ou característica de um governo, de uma pessoa ou até
mesmo de uma cultura que fornece o núcleo gerador da ação no
exercício do poder autoritário. Diálogo e participação coletiva em
decisões são impensáveis no espectro do autoritarismo que se define
pela imposição à força de leis que interessam a quem exerce o
poder. O outro, seja o povo (Estado), seja o próximo (indivíduo),
seja a sociedade ou outras formas de cultura, é manipulado, quando
não violentado, tanto física quanto simbolicamente.
Talvez não tenha sido percebido que o autoritarismo é mais do que
uma postura, ele é essencialmente um regime de pensamento. Uma
operação mental que, em sentido amplo, se torna paradigmática
agindo sobre a ciência, a cultura e o senso comum. O autoritarismo
como regime de pensamento poderia ser superado por aquilo que
podemos chamar de paradigma do pensamento democrático. Não ao
pensamento sobre a democracia, mas a uma operação mental em si
mesma democrática. Em ambos os casos, trata-se de modos de
pensar, de ver o mundo e de um específico uso da linguagem que se
efetiva em ações.
Em nossa época, a operação de pensamento autoritária está
profundamente arraigada em tudo o que fazemos. Ela acontece pelo
apagamento da função oblativa (a função do outro). Essa função é
enfaticamente evitada e negada. Daí a atmosfera niilista evidente no
espírito de nossos dias. O outro (seja o povo, seja o próximo, seja a
cultura alheia, a natureza, ou a sociedade, seja o outro como uma
“voz” que não se quer ouvir) é apagado no processo mental, ele
mesmo um processo de linguagem. Nesse processo, aquele que se
constituiu como “sujeito autoritário” pensa tudo a partir de si
mesmo. Em outras palavras, o sujeito autoritário “pergunta” e
“responde” a si mesmo a partir de seu próprio ponto de vista. Como
se não existisse “outro” ponto de vista, outro desejo, outro modo de
ver o mundo, ele procede mentalmente como um paranoico que
detém todas as verdades.
SOBRE A IMPOTÊNCIA PARA O DIÁLOGO
O sujeito autoritário fala sozinho. As outras pessoas não passam em
seu regime mental de coisas a serem encaixadas em um sistema
explicativo fechado. Todos nós exercemos nosso pensamento como
um ato criativo que se vale do que já está dado para se construir,
imitamos uns aos outros, acertamos e erramos juntos. Mas o
autoritário é aquele que adere a um pensamento pronto ao qual,
pensa ele, todos estão de antemão submetidos. O diálogo se torna
impossível não porque o sujeito autoritário não queira dialogar, mas
porque ele não consegue sequer saber do que se trata em caso de
diálogo. O autoritário causaria pena em um mundo em que o
diálogo fosse valorizado porque ele não consegue “operar”
mentalmente pelo diálogo. Ele fala sozinho porque é um impotente
para o pensamento democrático que é o diálogo.
Dentre as perguntas mais urgentes está aquela que indaga sobre a
suscetibilidade à “propaganda antidemocrática”. Como se formam
pessoas autoritárias e pessoas democráticas? Por que alguns
introjetam a autoridade e agem em termos de mando/obediência?
Por que, na contramão, outros se tornam capazes de diálogo, de
partilha e de colaboração?
Conversar com quem opera dentro do paradigma de pensamento
autoritário torna-se um desafio para quem opera no paradigma de
pensamento democrático. A impossibilidade do diálogo constitui a
vitória do pensamento autoritário. Mas para o regime de
pensamento democrático, em si mesmo voltado ao outro, em si
mesmo aberto, em si mesmo esperançoso, ele representa o
experimentum crucis do conhecimento que não é apenas uma
descrição do mundo, mas uma operação de transformação do
mundo.
dossiê ditadura heteronormativa
O que perdemos com os preconceitos?
LEANDRO COLLING

A proposta do dossiê desta edição é pensar sobre como os


preconceitos para com as sexualidades e gêneros dissidentes
impactaram e ainda impactam o desenvolvimento cultural de nossa
sociedade. Como e em que medida esses preconceitos impedem o
nosso desenvolvimento cultural? Como é possível perceber isso em
diversas áreas? O que perdemos ao recusar o aprendizado possível
com as diversidades e dissidências sexuais e de gênero existentes ao
nosso redor? Que colaborações essas diversidades e dissidências
oferecem para pensarmos, de uma forma ampla, a nossa cultura?
Tendo essas perguntas em mente, convidamos quatro pessoas com
reconhecida produção na área para escrever os textos que integram
este dossiê. Denilson Lopes escreveu sobre a recente produção
cinematográfica brasileira e de como, através dos afetos, encontros e
de outros laços, é possível aprender sobre o que as pessoas
preconceituosas perdem em suas vidas, a exemplo de outras formas
de estarmos juntos, outros encontros e outras subjetividades.
Berenice Bento, a partir do caso da travesti Verônica Bolina,
defende que a transfobia, além de matar, nos revela sobre as mortes
pelas quais nós choramos e propõe a tipificação do crime de
transfeminicídio em diálogo com os elementos estruturantes do
feminicídio. Mostra também como exigimos que todas as pessoas
sigam plenamente uma suposta coerência entre genitália (sexo) e
gênero.
Enquanto isso, André Musskopf reflete sobre religião de uma
forma diferente da que temos visto nos últimos tempos. Em vez de
se concentrar em críticas aos fundamentalistas, ele propõe uma
teologia indecente a partir de experiências que já existem,
analisadas e descritas em seu livro Via(da)gens teológicas . Por fim,
Rogério Junqueira disseca a escola, essa fábrica produtora de uma
cultura que insiste em não reconhecer e aprender com as diferenças.
Neste dossiê, os preconceitos em torno da diversidade sexual e de
gênero serão escrutinados para além do conceito de homofobia, que
não dá conta de entender as especificidades da lesbo-transfobia e de
como opera a heterossexualidade compulsória e a
heteronormatividade. Homofobia é um conceito criado para pensar a
repulsa geral às pessoas homossexuais, ou fobia aos homossexuais.
Daniel Borrillo, no livro Homofobia , diz que o termo parece
pertencer a K. T. Smith, que, em um artigo publicado em 1971,
tentou analisar as características de uma personalidade homofóbica.
Um ano depois, G. Weinberg teria definido a homofobia como “o
temor de estar com um homossexual em um espaço fechado e, no
que concerne aos homossexuais, o ódio até a si mesmos”.
Em geral, usamos o conceito de homofobia para descrever
qualquer atitude e/ou comportamento de repulsa, medo ou
preconceito contra os homossexuais. A homofobia não se restringe
apenas às violências físicas, mas também às variadas violências
simbólicas. E ela também pode atingir os heterossexuais que,
porventura, pareçam aos olhos homofóbicos como homossexuais.
O conceito de homofobia é controverso e, ainda que muitas
pessoas defendam o seu uso, em função dele já ter sido incorporado
por boa parte da sociedade, ou que o ampliem para além de aspectos
de ordem psicológica, como faz Rogério Junqueira, no artigo
Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a
disputas , publicado na revista Bagoas , a ideia de fobia está,
queiramos ou não, dentro do campo das patologias. Enquanto isso,
sabemos que aprendemos no dia a dia quem deve ser respeitado e
quem pode ser injuriado, portanto, não estamos falando de uma
patologia em sentido estrito/inato, mas de um problema
social/cultural.
Outro problema tem a ver com como o prefixo “homo” é
decodificado no Brasil. Os criadores do conceito de homofobia
agruparam dois radicais gregos para formar a palavra: “homo”
(semelhante) e “fobia” (medo). No entanto, para nós, “homo”
significa homossexual e, por isso, o conceito de homofobia fica
reduzido a uma identidade, isto é, aos homossexuais masculinos, e
invisibiliza a multiplicidade de outros sujeitos e suas identidades.
Isso fez surgir novos conceitos, tais como lesbofobia, bifobia,
travestifobia, transfobia. Borrillo reconhece esse problema, dizendo
que homofobia pode se confundir como gayfobia, mas ainda assim
decide usar apenas a noção de homofobia alegando “razões de
economia de linguagem”.
Ora, trata-se de um argumento muito questionável, pois sabemos,
há muito tempo, em especial nos estudos das sexualidades e dos
gêneros, via Michael Foucault e Judith Butler, por exemplo, que a
linguagem está carregada de relações de poder e marcada pelas
normas que geram preconceitos. E, além disso, esses e tantos outros
estudos evidenciam que a linguagem muda com o decorrer do
tempo, em especial quando existe uma política para nela interferir.
HETEROSSEXUALIDADE COMO NORMA
O conceito de heterossexualidade compulsória começou a aparecer
por volta de 1980. Nesse ano, dois textos importantes foram
publicados sobre o tema. Um deles é da feminista Adrienne Rich,
autora de Heterossexualidade compulsória e a existência lésbica .
Para Rich, a experiência lésbica é percebida através de uma escala
que vai do desviante ao odioso ou até mesmo invisível. Além disso,
as mulheres são convencidas de que o casamento e a orientação
sexual, voltadas para os homens, são inevitáveis. As mulheres são
doutrinadas pela ideologia do romance heterossexual através de
contos de fadas, da televisão, do cinema etc, isto é, todos esses
mecanismos fazem propagandas coercitivas da heterossexualidade e
do casamento como padrão.
Também pensando a heterossexualidade especialmente em relação
às lésbicas, Monique Wittig publica O pensamento heterossexual e
Não se nasce mulher . Para ela, o que constitui uma mulher é uma
relação social específica com um homem, chamada por ela de
servidão ou até escravidão, que implica várias obrigações (trabalho
doméstico, deveres conjugais e produção ilimitada de filhos) que
dariam sustentação à sociedade heterossexual. As lésbicas
escapariam dessa relação quando rejeitam ser heterossexuais e, por
isso, Wittig conclui: “as lésbicas não são mulheres”. Para ela, a
heterossexualidade não é uma orientação sexual, mas um regime
político que se baseia na submissão e na apropriação das mulheres.
O feminismo, ao não questionar esse regime, diz Wittig, ajuda a
consolidá-lo.
A heterossexualidade compulsória consiste na exigência de que
todos os sujeitos sejam heterossexuais, isto é, se apresenta como
única forma considerada normal de vivência da sexualidade. Essa
ordem social/sexual se estrutura através do dualismo
heterossexualidade versus homossexualidade, sendo que a
heterossexualidade é naturalizada e se torna compulsória. Isso
ocorre, por exemplo, quando buscamos as causas da
homossexualidade, um fetiche vigente ainda hoje inclusive entre
militantes e pesquisadores que se dizem pró-LGBT. Ao tentar
identificar o que torna uma pessoa homossexual, colocamos a
heterossexualidade como padrão, como um princípio na vida
humana, do qual, por algum motivo, alguns se desviam.
Mesmo que não consideremos que a homossexualidade seja
anormal ou patológica, cada vez que tentamos achar um momento
ou ocasião que a origina, nós naturalizamos a heterossexualidade e
ocultamos um dos mecanismos de produção da anormalidade, isto é,
a naturalização da sexualidade. Para não incorrer nesse erro
conceitual e político, teríamos que substituir a questão de uma causa
da sexualidade para problematizar que mecanismos tornam alguns
sujeitos aceitáveis, normalizados, coerentes, inteligíveis e outros
desajustados, abjetos. Sairíamos de uma busca pela causa para uma
problematização dos mecanismos de produção das abjeções.
Com a retirada da homossexualidade da categoria de crime e a sua
posterior despatologização, a partir de 1973, a heterossexualidade
compulsória perde um pouco de força em alguns países. Isso porque
a patologização sustentava a heterossexualidade como única forma
sadia de vivenciar a sexualidade. A partir de então,
heterossexualidade e homossexualidade são consideradas formas
possíveis de vivência da sexualidade, ao menos em tese, em muitos
lugares do planeta (mas não em todos). Mesmo que a “ciência”
tenha retirado a homossexualidade (e mantido a transexualidade) na
lista das doenças, no senso comum as pessoas ainda acreditam que
ser normal e sadio é ser hétero. Além disso, algumas concepções
“científicas” partem ainda da heterossexualidade como natureza
humana e se apoiam no dualismo hétero versus homo.
Já o conceito de heteronormatividade, criado em 1991 por
Michael Warner, busca dar conta de uma nova ordem social. Isto é,
se antes essa ordem exigia que todos fossem heterossexuais, hoje a
ordem sexual exige que todos, heterossexuais ou não, organizem
suas vidas conforme o modelo “supostamente coerente” da
heterossexualidade.
Enquanto na heterossexualidade compulsória todas as pessoas
devem ser heterossexuais para serem consideradas normais, na
heteronormatividade todas devem organizar suas vidas conforme o
modelo heterossexual, tenham elas práticas sexuais heterossexuais
ou não. Com isso entendemos que a heterossexualidade não é
apenas uma orientação sexual, mas um modelo político que organiza
as nossas vidas.
Se na heterossexualidade compulsória todas as pessoas que não
são heterossexuais são consideradas doentes e precisam ser
explicadas, estudadas e tratadas, na heteronormatividade elas
tornam-se coerentes desde que se identifiquem com a
heterossexualidade como modelo, isto é, mantenham a linearidade
entre sexo e gênero: as pessoas com genitália masculina devem se
comportar como machos, másculos, e as com genitália feminina
devem ser femininas, delicadas.
Enquanto a heterossexualidade compulsória se sustenta na crença
de que a heterossexualidade é um padrão da natureza, a
heteronormatividade advoga que ter um pênis significa ser
obrigatoriamente másculo, isto é, o gênero faz parte ou depende da
“natureza”; existe uma relação mimética do gênero com a
materialidade do corpo.
Os impactos disso tudo em nossa cultura são muito bem
analisados nos textos que integram este dossiê.
Boa leitura.
De volta à festa
DENILSON LOPES

Em 2014, me chamou a atenção a presença de três filmes brasileiros


no festival de Berlim e um recorde de inscrição de longas metragens
brasileiros no festival Mix de Diversidade Sexual, segundo seus
organizadores. Ainda durante todo o ano de 2014, paralelamente aos
movimentos sociais associados à Copa Mundial e às eleições, com o
aumento de tensão entre discursos religiosos fundamentalistas e
militantes LGBT, vários filmes despertaram um debate crítico
intenso, como Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, ou Doce
amianto (2013), de Guto Parente e Uirá dos Reis, Praia do futuro
(2014), de Karim Aïnouz, Hoje eu quero voltar sozinho (2014), de
Daniel Ribeiro, apenas para mencionar os mais conhecidos. Há
ainda toda uma geração de jovens cineastas, vários deles sem terem
ainda realizado longas, para quem um olhar queer , para além das
formas normativas das hétero e das homossexualidades, poderia
trazer uma forma distinta de compreensão sobre as sexualidades.
Esta é a minha aposta neste artigo.
Penso no curta Mauro em Caiena (2012), de Leonardo
Mouramateus. Ao supostamente escrever uma carta ao tio que mora
em Caiena, na Guiana Francesa, o diretor refaz os dilemas do
presente entre ficar ou partir de Fortaleza, cidade onde mora num
bairro de periferia, e estabelece uma genealogia, a princípio,
masculina e dentro da família, que remete ao tio e ao primo mais
novo. Genealogia que chamarei de queer , estranha. Estranheza
presente não só na partida do tio para Caiena, mas, sobretudo, na
identificação do narrador com Godzilla e do primo com um
cachorro. A abertura para a cidade e para o mundo se dá pelo
mundo da mídia e pela festa como formas de pertencimento.
Se, no curta do jovem realizador Leonardo Mouramateus, é a
ansiedade da partida que predomina, é a busca do encontro que faz
Donato (Wagner Moura), protagonista de Praia do futuro, de Karim
Aïnouz, se mover, deixar o lugar onde nasceu, abandonar família e
trabalho estáveis e ir em busca de onde possa pertencer. O que pode
um encontro? O encontro é dos corpos mas também com os
espaços. Entre Berlim e Fortaleza, atravessando mares, ruas e
estradas, os personagens, por fim, continuam nas suas motos, sem
nostalgia, sem grandes lamentos, até desaparecerem. O que fazer
quando não mais se pertence, quando não se pertence a nenhum
lugar? Talvez as coisas sejam tão simples como deixar de pegar um
avião quando se deveria voltar. Tão simples, mas talvez por isso
mais difíceis de serem percebidas como importantes. Mais do que
aprender a deixar o passado, a abandonar pessoas, sem saber ao
certo aonde isso possa nos levar a não ser talvez a um momento a
mais, a um dia a mais. Momento após momento, dia após dia, até
que, se olharmos para trás, não reconheceremos aquele que fomos.
Mas talvez pudéssemos dizer que foi ali que tudo mudou. Não foi,
mas talvez isso nos desse não um passado, mas a sensação de que
houve um gesto, um momento especial a partir do qual tudo mudou.
Talvez não saibamos onde estamos. Mas continuamos, momento
após momento, dia após dia. Talvez seja essa a praia do futuro. Não
o momento, mas o continuar. Quando não somos mais crianças, não
somos mais heróis de ninguém, nem de nós mesmos. Se, em Céu de
Suely (2006), Hermila partia só, deixando sua família de mulheres,
Donato inventa na deriva uma família de homens com o irmão e o
amante. Sem grandes sonhos, nem utopias, o encontro precário e
instável é que os faz mover, ir para frente.
Repito: o que pode um encontro? Marcelo Caetano disse em uma
entrevista que o que interessa a ele é criar encontros. Mas o que é
criar encontros não só para fazer ou ao ver filmes, mas em um
filme? Encontros que são no presente mas também com as
memórias e desejos de outros tempos.
Em Bailão (2009), Marcelo Caetano talvez buscasse um outro
através de um registro quase etnográfico do centro de São Paulo,
tendo como ponto de partida o lugar de encontro de homens mais
velhos e as entrevistas de alguns deles. Mas as narrativas reúnem
um passado de marginalidade e exclusão com uma velhice presente
num ambiente de maior liberalidade. Os depoimentos parecem se
encenar pela cidade, estendem seus laços e encontros por bares e
cinemas, transpondo tempos. Tudo, enfim, para acabar numa dança
a dois e num espaço que é maior do que a solidão individual, maior
do que os casais estáveis e institucionalizados. O urinol, que
encantou Duchamp e escandalizou o público expert quando foi
primeiramente exposto, tem bem outros sentidos para quem o
banheiro é um lugar de encontros que só poderiam se dar ali. Os
banheiros, galerias, ruas e cinemas por onde perambulam os velhos
senhores são saturados de lembranças. Encontros anônimos, mas
que refazem uma outra história, uma outra temporalidade, como os
mais recentes Tatuagem, de Hilton Lacerda, e São Paulo em Hi Fi
(2013), de Lufe Steffen, nos quais o individual e o coletivo se
misturam. Se no filme de Lufe Steffen há uma nostalgia de um
mundo de festa, alegria, excentricidade e glamour destruídos pela
AIDS (como na imagem de Wilza Carla, ex-vedete e ex-atriz,
descendo a rua Augusta montada num elefante até a porta de uma
boate), o filme de Hilton Lacerda resgata ficcionalmente o grupo
“Vivencial Diversiones”, primo menos conhecido do “Dzi
Croquettes” e dos “Cockettes” de São Francisco. Todos, mais do
que companhias de teatro, traduzem a potência da arte como
criadora de modos de vida, do sexo e dos afetos como formas de
criação de comunidades para além dos limites da família e do
trabalho. É algo distinto da presença da amizade que assombra um
certo cinema brasileiro jovem como uma forma de isolamento da
cidade, do mundo, talvez autoproteção, presente em filmes tão
distintos como Estrada para Ythaca (2010), do coletivo
Alumbramento, ao recente hit gay Hoje eu quero voltar sozinho , de
Daniel Ribeiro. Também não se insere no filão dos filmes on the
road ou à deriva na cidade em que não se importa mais de onde se
veio, apenas importa para onde se vai. Em Tatuagem , há a procura
talvez de um outro passado que gere talvez um outro futuro. Trata-
se de uma forma de pertencimento no tempo que nos fale de
passados e ancestrais conquistados para talvez termos algum futuro,
da quebra de uma crononormatividade, para usar o termo de
Elizabeth Freeman em Time binds: queer temporalities, queer
histories, de 2010.
CORPOS À MARGEM
Com pouco passado e sem futuro, Nova Dubai é um pasto cercado
onde dizem que coreanos vão construir um complexo imobiliário
perto de São José dos Campos. Ouvimos isso em algum momento.
Mas Nova Dubai (2014), de Gustavo Vinagre, não pretende
entender a especulação imobiliária como na tradição do realismo
social. O diretor e seus personagens/amigos, se encontram,
transitam e transam à beira desse pasto vazio. Em meio a prédios
que são construídos, há corpos meio à margem da produção, mas
não marginais. Sexo sem transgressão nem escândalo. O olhar tem
uma certa ternura. O desejo não tem justificativa nem razão. Há
fragmentos de lembranças como de um estupro infantil, a foto do
pai desejada na internet. Eles não explicam nem justificam nada. O
amigo que consegue se matar no pasto é visto à distância. O corpo é
pau, pele e cu. Nova Dubai pode ainda não existir, mas esperma e
cimento se misturam de forma improvável em prazeres.
Quando eu estava terminando este texto, fui, pela primeira vez, à
turma “OK”, que ganhou um filme chamado O clube (2014), feito
por Allan Ribeiro, grupo que existe há mais de cinquenta anos como
uma “confraria gay” (termo que aparece no site do grupo
http://www.turmaok.com.br), no centro do Rio de Janeiro. Antes do
“Somos”, grupo pioneiro do movimento LGBT brasileiro, de
Stonewall, da Revolução Sexual, da crise da AIDS, havia a turma
“OK”, e ela continua a existir. Entrei pelo longo corredor, subi as
escadas do velho casarão da atual sede (já foram várias), passei por
fotos na parede até a modesta sala das performances. Há
performances de diversas naturezas, ainda que haja um predomínio
de drag performances , há premiações, disputas, mas também há
algo que vai além do palco e daquele momento. Há tantas imagens e
estórias que vi ou que me disseram como senhores comemorando
aniversários, comendo bolo na Cinelândia, domingo à tarde, quando
ali ainda rondavam michês, ou na época da ditadura, quando, depois
dos números serem apresentados, os braços eram levantados mas
sem aplaudir, sem fazer barulho para não chamar a atenção dos
vizinhos. Também é uma história que não acabou, como pude ver
pela presença de dois jovens performers. De todo modo, o que fez
esses homens se reunirem para fora de suas famílias e longe dos
espaços de isolamento e anonimato? Há talvez uma história a ser
contada e atualizada. Também fiquei surpreso quando me falaram da
boate La Cueva, em Copacabana, reanimada pelas recentes festas V
de Viadão, feitas por jovens insatisfeitos com os padrões das festas
gays convencionais, e que já funcionava no início dos anos 60 como
espaço de encontro homossexual. São histórias de continuidades, de
heranças, talvez de possibilidades de outros futuros, de outras
formas de estar junto que transitam pelos espaços sociais e pelas
imagens na tela. Talvez essa seja a grande potência desses filmes e
talvez essa multiplicação de sensações e outras formas de estar no
mundo sejam algumas das coisas que nós perdemos com os diversos
preconceitos que rondam as sexualidades.
O corpo humano é limitado. O sexo é pobre, frequentemente
entedia. Os estudos feministas, queer e de performance se repetem
em mantras. Os afetos são infinitos e se multiplicam numa orgia
perpétua de sensações. Pensei que ela tivesse acabado, mas talvez a
festa esteja só começando.
Verônica Bolina e o transfeminicídio
no Brasil
BERENICE BENTO

Há imagens que ficam tatuadas em nossas retinas. Esfregamos os


olhos para fazê-las desaparecer, mas elas teimam em nos
acompanhar. Quando já não habitam mais a retina, migraram para as
nossas almas. Depois que vi a foto de Verônica Bolina, fui invadida
por uma sensação de tristeza sem nome. Uma mulher negra, com
seios expostos, o rosto completamente deformado por agressões de
policiais, cabelos cortados, estirada no chão. Essa cena aconteceu
dentro de uma delegacia, portanto, eram os operadores das normas
legais os responsáveis pelo desejo, encarnado em cada hematoma no
corpo de Verônica, de matá-la.
A violência contra ela aconteceu no mesmo período em que foi
publicado o relatório sobre as condições das pessoas trans (travestis,
transexuais, transgêneras) nas penitenciárias do Rio de Janeiro. A
situação de violência e desrespeito à identidade de gênero é
generalizada. Com isso, a sociedade perde vidas e deixa de aprender
sobre relações de gênero, o lugar reservado ao feminino, e sobre
como opera a exigência de uma suposta compatibilidade entre
genitália e gênero de uma pessoa, fruto de um determinismo
biológico que se manifesta de diversas formas.
O corpo de Verônica é um arquivo vivo. É a própria história do
drama das pessoas negras, pobres e trans no Brasil. As marcas de
raça, gênero e classe social não deixam dúvida que o projeto
político dos representantes do Estado era sua eliminação,
transformando-a em um tipo exemplar das vidas matáveis (nos
termos do Giorgio Agamben) no contexto brasileiro. Sabemos que a
vida de um negro vale menos que a de um branco no Brasil. Não é
novidade que os ricos não são presos. Mas talvez ainda não se saiba
o suficiente sobre a natureza da violência que as pessoas trans
sofrem no Brasil.
Este ensaio é apenas uma tentativa anêmica de entender a
violência que justifica diariamente a existência de Verônicas nas
prisões, nas escolas, nas ruas. É das relações sociais mais difusas
que o Estado retira sua legitimidade para matar as pessoas trans.
Pesquisas apontam que os policiais aparecem em suas narrativas
como os maiores responsáveis por toda ordem de agressão.
No Brasil, as pessoas trans são diariamente dizimadas. De forma
geral, os assassinatos contra essa população são contabilizados
equivocadamente no cômputo generalizante de violência contra os
LGBTTT. Sugiro nomear esse tipo de assassinato como
transfeminicídio, reforçando que a motivação da violência advém do
gênero. O conceito de feminicídio foi usado pela primeira vez para
significar os assassinatos sistemáticos de mulheres mexicanas.
Seguindo uma tendência legal internacional, o Brasil aprovou uma
lei que define os assassinatos motivados por questões de gênero
como feminicídio. Ao acrescentar o “trans”, por um lado reafirmo
que a natureza da violência contra as pessoas trans é da ordem do
gênero, conforme discutirei, e por outro lado, reconheço que há
singularidades nos crimes contra essa população, principalmente os
que vitimam fatalmente as mulheres trans.
O Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de travestis e
transexuais em todo o mundo, de acordo com a ONG internacional
Transgender Europe. De janeiro de 2008 a abril de 2013, foram 486
mortes, quatro vezes a mais que no México, segundo país com mais
casos registrados. Em 2013, foram 121 casos de travestis e
transexuais assassinados em todo o Brasil. Esses dados estão
subestimados. Todos os dias nos chegam notícias de jovens
transexuais e travestis que são barbaramente torturadas e
assassinadas.
O transfeminicídio se caracteriza como uma política disseminada,
intencional e sistemática de eliminação da população trans no
Brasil, motivada pela negação de humanidade às suas existências.
Qual quantidade de mortes é suficiente para chegar a essa
conclusão? No Brasil não há nenhuma fonte totalmente confiável. O
que existe é um acompanhamento, por algumas ONGs de ativistas
LGBTT, através de textos jornalísticos sobre as mortes de pessoas
LGTT. Nessas notícias, muitas vezes as pessoas trans são
apresentadas com o nome masculino e são identificadas como “o
travesti”. E no âmbito conceitual são consideradas como vítimas da
homofobia. Acredito, ao contrário, que as mortes das mulheres trans
são uma expressão hiperbólica do lugar do feminino em nossa
sociedade. A identidade de gênero, pela qual a pessoa lutou e perdeu
a vida, lhe é retirada no momento de se notificar ou contabilizar a
morte. Toda a biografia de resistência e de agência da pessoa trans
assassinada é apagada quando se devolve o corpo aos braços do
determinismo biológico. E assim, é comum escutarmos: “Um”
travesti morreu, vítima de homofobia .
DOCUMENTO E GÊNERO
Se o feminino representa aquilo que é desvalorizado socialmente,
quando esse feminino é encarnado em corpos que nasceram com
pênis, há uma ruptura inaceitável com as normas de gênero. Essa
regulamentação não está inscrita em nenhum lugar, mas é uma
verdade produzida e interiorizada como inquestionável: o masculino
e o feminino são expressões do desejo dos cromossomas e dos
hormônios. Quando há essa ruptura, nos deparamos com a falta de
aparatos conceituais e linguísticos que deem sentido à existência das
pessoas trans. Mesmo entre os gays, a violência letal é mais
cometida contra aqueles que performatizam uma estilística corporal
mais próxima ao feminino. Portanto, há algo de poluidor e
contaminador no feminino (com diversos graus de exclusão) que
precisa ser melhor interpretado.
É corrente entre os homens transexuais a afirmação de que quando
conseguem ser reconhecidos socialmente como homens (seja devido
ao uso da testosterona ou através de atos performativos identificados
como masculinos), a rejeição ou mesmo os olhares inquisidores de
estranhos não existem ou são mais raros. No entanto, quando
precisam se identificar e há um deslocamento entre o documento e o
gênero socialmente performatizado, nesse momento retorna-se ao
esvaziamento de inteligibilidade e a ruptura se produz. Como é
possível um homem com nome de mulher? Essa é mais uma
evidência de que a violência contra as pessoas trans é motivada pelo
desejo do restabelecimento das normas de gênero.
O processo de exclusão das pessoas trans começa muito cedo.
Quando as famílias descobrem que o filho ou a filha está se
rebelando contra a “natureza” e que desejam usar roupas e
brinquedos que não são apropriados para seu gênero, o caminho
encontrado para “consertá-lo” é a violência. Geralmente, entre os 13
e 16 anos as pessoas trans fogem de casa e encontram na
prostituição o espaço social para sobrevivência financeira e
construção de redes de sociabilidade.
Em uma tentativa de caracterizar o transfeminicídio, sugiro
algumas características estruturantes desse tipo de violência:
1) O assassinato é motivado pelo gênero, e não pela sexualidade
da vítima. Conforme sabemos, as práticas sexuais estão
invisibilizadas, ocorrem na intimidade, na alcova. O gênero,
contudo, não existe sem o reconhecimento social. Não basta eu
dizer “eu sou mulher”, é necessário que o outro reconheça esse meu
desejo como legítimo. O transfeminicídio seria a expressão mais
potente e trágica do caráter político das identidades de gênero. A
pessoa é assassinada porque além de romper com os destinos
naturais do seu corpo-generificado, o faz publicamente e demanda
este reconhecimento das instituições sociais.
2) A morte ritualizada. Não basta um tiro fatal, ou uma facada
precisa ou um atropelamento definitivo. Os corpos das mulheres
trans são mutilados por dezenas de facadas, por inúmeros tiros.
3) Ausência de processos criminais. Considerando que se trata de
uma absoluta impunidade, pode-se inferir que a conivência do
Estado brasileiro revela um desejo social de eliminação da
existência trans.
4) As famílias das pessoas trans raramente reclamam os corpos.
Não existe luto nem melancolia.
5) Suas identidades de gênero não são respeitadas no noticiário da
morte, na preparação do corpo e no registro da morte. A pessoa
assassinada retorna ao gênero imposto, reiterando, assim, o poder do
gênero enquanto lei que organiza e distribui os corpos (vivos ou
mortos) nas estruturas sociais.
6) As mortes acontecem em espaços públicos, principalmente nas
ruas desertas e à noite.
Para cada um dos pontos assinalados é possível propor um diálogo
com os elementos estruturantes do feminicídio. As mulheres não
trans são majoritariamente assassinadas por pessoas conhecidas (ex-
maridos, maridos, amantes, namorados, ex-namorados); o
assassinato acontece principalmente em espaços domésticos; não há
o duplo assassinado. Seria possível continuar esta aproximação
entre esses dois tipos de violência (tipos de arma, cuidado com o
corpo assassinado, a produção do luto, destaque midiático e
tratamento da imprensa, respeito à identidade de gênero, entre
outros), mas tal esforço comparativo fica para outro momento.
Sugiro que a principal função social do transfeminicídio é a
espetacularização exemplar. Os corpos desfigurados importam na
medida em que contribuem para a coesão e reprodução da lei de
gênero que define que somos o que nossas genitálias determinam.
Da mesma forma que a sociedade precisa de modelos exemplares,
de heróis, os não-exemplares, os párias, os seres abjetos também são
estruturantes para o modelo de sujeitos que não devem habitar a
nação.
Ao considerar a violência contra as mulheres trans no âmbito das
questões de gênero, considero que a aprovação da lei do feminicídio
pode representar uma importante brecha legal para se iniciar um
processo de demanda por justiça. E, por outro lado, o
reconhecimento (e o incentivo) de que todas as políticas voltadas
para questões referentes ao gênero em nosso país dizem respeito
diretamente à população trans, a exemplo das delegacias de
mulheres, o respeito à identidade de gênero nas prisões e em todos
os serviços públicos.
Não estou certa de que essas sugestões evitariam as violências
sobrepostas (de raça, gênero e classe social) e o quase óbito de
Verônica, mas de uma coisa estou segura: não é possível o Estado
continuar impunemente assassinando, violando, torturando,
amedrontando as pessoas trans sem que haja a indignação necessária
para fazê-lo parar.
Por mais viadagens teológicas
ANDRÉ S. MUSSKOPF

Religião é um dado da cultura. Seja qual for a abordagem teórica


que se utilize para refletir sobre ela – inclusive no campo da
teologia – não há como pensar a cultura sem pensar na forma como
as diferentes expressões religiosas se materializam como
manifestações culturais. O sonho – ou delírio – de um mundo “sem
religião”, ainda quando se admita e respeite o direito à não-crença
religiosa, contradiz a própria ideia de diversidade, inclusive na
perspectiva dos Direitos Humanos assim como hoje são
compreendidos e defendidos. O problema parece estar na suposta
impossibilidade de (re)conciliar diversidade religiosa e diversidade
sexual e de gênero.
Religião é um entrave nas discussões e na garantia de direitos no
âmbito da diversidade sexual e de gênero. É possível e provável que
em todas as religiões (entendidas mais como instituições ou
movimentos organizados do que como práticas particulares) haja
correntes e posicionamentos que valorem depreciativamente alguma
questão que esteja relacionada às dissidências de gênero e
sexualidade, uma vez que também são conformadas pela cultura em
seu formato heteronormativo padronizador e compulsório. Umas
mais do que outras, claro.
Em todas as religiões, no entanto, é possível reconhecer discursos
e práticas de resistência aos padrões normativos. Elas são mais
porosas e fluídas do que admitem ser quando entram na esfera
pública. Por mais que reivindiquem sua vinculação com a tradição
(em termos doutrinários, organizativos ou em relação a suas fontes
sagradas) como forma de afirmar sua continuidade, todas elas
apresentam elementos de descontinuidade. As religiões mudam e a
cultura (em seu sentido amplo) interfere nesse processo ao mesmo
tempo em que é impactada por elas.
Os movimentos e estudos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros), queer , de diversidade sexual
e de gênero, carregam seus próprios fundamentalismos. Seja nas
perspectivas identitárias assimilacionistas ou no próprio
aburguesamento do queer na sua versão cult e fashion , o
dogmatismo em relação à religião talvez seja seu principal ponto de
insucesso. Avessos a qualquer discussão sobre o tema – a menos que
seja para denunciar, justamente, a violência e o sofrimento causados
– perdem a oportunidade de dialogar criticamente e, deus-me-livre,
articular-se com as formas de resistência em seu interior e construir
perspectivas libertadoras no campo da cultura e da religião. Talvez
as feministas possam nos ajudar mais aqui, pois parece que o
diálogo com as teologias feministas, como as de Ivone Gebara e
Nancy Cardoso, por exemplo, tem sido mais frutífero. Talvez.
No âmbito do cristianismo, há reflexões já desde a década de 1950
e, com maior profusão, a partir da década de 1990, que prefiguram o
que veio a ser conhecido como teologias homossexual, gay, lésbica,
queer . Alguns exemplos nessa linha são J. Michael Clark ( Beyond
the ghettos , Defying the darkness ) David Comstock ( Gay theology
without apology ), Robert Goss ( Jesus acted up , Queering Christ ),
Elizabeth Stuart ( Gay and lesbian theologies ). Embora não haja
necessariamente uma relação direta e seja possível tecer diversos
questionamentos em termos de teologia e organização, a emergência
de grupos cristãos ou igrejas com perspectivas diversas/dissidentes
com relação a questões de gênero e diversidade sexual – bastante
conhecidos como grupos e/ou igrejas “inclusivas” – é também
evidência de perspectivas não hegemônicas no campo da religião.
Essas iniciativas tanto se alimentam de movimentos políticos e
culturais quanto subsidiam ou poderiam subsidiar outras discussões
e ações no campo da política, da cultura e da própria religião como
a conhecemos.
TEOLOGIA INDECENTE
O que todas elas parecem ter em comum é a utilização da
experiência de dissidência de gênero e sexualidade como ponto de
partida para suas construções no campo da teologia e da prática
eclesiástica. Essa forma de pensar e praticar religião emergiu no
contexto de amplos questionamentos sobre a reflexão teológica e a
vida da igreja nas últimas décadas, particularmente no que se tornou
conhecido como teologias da libertação (incluindo as teologias
feminista, negra, indígena, camponesa). Na América Latina, entre
vários outros elementos, destaca-se a importância que assume a
religiosidade popular nas reflexões de teólogos e teólogas e nas
propostas de renovação de muitas igrejas. Afinal, a experiência
religiosa não é propriedade das instituições religiosas, mas se
constrói no cotidiano das práticas comunitárias de indivíduos e
grupos diversos.
No livro Via(da)gens teológicas , procuro explorar justamente
essa relação partindo da forma como se constroem historicamente o
que se tem chamado de religiosidade e sexualidade brasileiras. A
constatação é de que nenhuma compreensão da cultura brasileira
(em sua diversidade) pode ser construída sem considerar essas duas
dimensões da experiência humana que determinam definitivamente
essa cultura a partir de conjunturas históricas específicas, no
passado e no presente. Autores e autoras como Roberto da Matta,
Marilena Chauí e Richard Parker que não me deixem mentir. Tanto
uma como a outra, e a relação entre elas, é marcada, enquanto
fenômeno da cultura e experiência de fé, por aquilo que chamo de
ambiguidade. Não como um elemento de confusão ou imprecisão,
mas precisamente como formas de negociação, mistura e inter-
relação que criam e recriam crenças e práticas na vida concreta das
pessoas. Jesus f*cking Christ !
Marcella Althaus-Reid, a principal referência no campo das
teologias queer e pós-coloniais, partindo da realidade latino-
americana e da teologia produzida no continente, colocou as bases
para uma teologia que leve a sério essas experiências através de sua
proposta de uma teologia indecente . Afirmou que toda teologia é
um discurso e uma prática sexual e demonstrou os pressupostos
heterocêntricos e heteronormativos das teologias cristãs tradicionais.
Assim, segundo ela, “uma teologia indecente questionará o
tradicional campo da decência e ordem latino-americanas enquanto
permeiam e apoiam as múltiplas estruturas (eclesiológicas,
teológicas, políticas e amorosas) de vida em meu país, Argentina, e
em meu continente” (Althaus-Reid, Indecent theology ).
Na trilha da indecência, as narrativas de vida (tomadas como
histórias sexuais) de três pessoas trans, um slogan do MST (“ocupar,
resistir e produzir!”) e um pouco de pegação com uma pintura de
Frida Kahlo podem ajudar a construir uma reflexão teológica a
partir da realidade brasileira que afirme as dissidências de gênero e
sexualidade no campo da cultura desde uma perspectiva religiosa.
As narrativas e os corpos das pessoas trans explicitam as
ambiguidades da vida e propõem uma outra epistemologia
organizada como ocupação dos corpos dissidentes que são o que
quiserem ser, resistência aos cânones culturais e linguísticos nas
línguas afiadas que subvertem a lógica dominante e produção de
uma outra teologia que nasce da pegação. A pegação é elevada à
rigorosidade de uma ferramenta hermenêutica, um modo de
interpretar e produzir conhecimento que leva a sério (ou se diverte
com) o erotismo dos corpos vividos. Se lê a realidade, a Bíblia e a
tradição como exercício sensual de revelação do divino.
O Veado ferido (pintura de Frida Kahlo) materializa de diversas
formas uma teologia que se faz como via(da)gem. Revela as marcas
da violência homofóbica na pele rasgada de um São Sebastião
“patrono dos viados”. Mistura as religiosidades dos povos
originários, o catolicismo popular, as religiões orientais. Traz as
ambiguidades – sexuais, políticas, religiosas, culturais – da própria
autora que se mistura à realidade criada a ponto de ser ela mesma o
personagem de sua representação de vida e de crença – autorretrato.
É viagem porque se faz como processo e é viadagem porque propõe
uma nova relação entre cultura e religião a partir das dissidências
sexuais e de gênero em forma de teologia.
Enfim, uma sociedade sem preconceitos em relação às
sexualidades e ao gênero aliada a uma outra perspectiva analítica
em relação às religiões poderia fazer emergir, com mais intensidade
e escala, as práticas religiosas já existentes que constituem as nossas
viadagens teológicas.
Pedagogia do armário
ROGÉRIO DINIZ JUNQUEIRA

Nos últimos anos, no Brasil, a escola passou a estar no centro das


disputas políticas em torno da diversidade sexual e de gênero. A
sala de aula é um espaço legítimo para se discutir gênero e
sexualidade? É importante assegurar políticas educacionais que
promovam a cultura dos direitos humanos e o reconhecimento das
diferenças nessa área? Existe homofobia na escola? Se sim, ela
representa um problema educacional?
A heteronormatividade está na ordem do currículo escolar e, desse
modo, tende a estar presente em seus espaços, normas, ritos, rotinas,
conteúdos e práticas pedagógicas. A instituição normativa e
normalizadora da heterossexualidade como única possibilidade
natural e legítima de expressão sexual e de gênero envolve toda a
escola e os sujeitos que a animam ao sabor de um processo que
Guacira Lopes Louro, em O corpo educado , chama de pedagogia
da sexualidade . Não raro, nas escolas, pessoas identificadas como
dissonantes em relação às normas de gênero e à matriz
heterossexual são postas sob a mira preferencial de um sistema de
controle e vigilância que, de modo sutil e profundo, produz efeitos
sobre todos os sujeitos e os processos de ensino-aprendizagem.
Também informada por outros preconceitos e discriminações, a
escola não apenas consente , mas também cultiva e ensina
heterossexismo e homo-lesbo-transfobia. A escola se mostra, assim,
como instituição empenhada na reafirmação e no êxito dos
processos de incorporação das normas de gênero e da
heterossexualização compulsória . Histórica e culturalmente
transformada em norma , produzida e reiterada, a
heterossexualidade obrigatória torna-se o baluarte da
heteronormatividade. E, não por acaso, heterossexismo e homofobia
instauram na escola um regime de controle e vigilância da conduta
sexual, do gênero e das identidades raciais. Heterossexismo e
homofobia são manifestações de sexismo associadas a diversos
regimes e arsenais normativos, normalizadores e estruturantes de
corpos, sujeitos, identidades, hierarquias e instituições.
O termo homofobia é comumente empregado em referência a um
conjunto de emoções negativas em relação a homossexuais. Porém,
relacionar a homofobia apenas a um conjunto de atitudes
individuais implica desconsiderar que as distintas formulações da
matriz heterossexual, ao imporem a heterossexualidade como
obrigatória, também controlam o gênero. Assim, parece mais
adequado entender a homofobia como um fenômeno social
relacionado a preconceitos, discriminação e violência voltados
contra quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem
transgressão ou dissintonia em relação às normas de gênero, à
heteronormatividade, à matriz heterossexual . Seus dispositivos
atuam capilarmente em processos heteronormalizadores de
vigilância, controle, classificação, correção, ajustamento e
marginalização com os quais todos se confrontam.
Dizer que a homofobia e o heterossexismo pairam sobre todos não
implica afirmar que afetem indivíduos e grupos de maneira idêntica
ou indistinta. Embora a norma diga respeito a todos, e seus
dispositivos de controle e vigilância possam revelar-se implacáveis
contra qualquer um, a homofobia tem alvos preferenciais. Contra
eles, a pedagogia da sexualidade pode ser traduzida em uma
pedagogia do insulto, que se expressa, por exemplo, por meio de
piadas, ridicularizações, insinuações que, por sua vez, agem como
mecanismos heterorreguladores de objetivação, silenciamento,
ajustamento, marginalização e exclusão. Como lembra Didier
Éribon em Reflexões sobre a questão gay , injúrias e insultos são
jogos de poder que marcam a consciência, inscrevem-se no corpo e
na memória e moldam as relações dos sujeitos com o mundo. Mas,
mais do que isso, o insulto opera como uns dos elementos dos
processos de normalização.
Ora, por meio de processos de normalização , uma identidade
específica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a funcionar
como parâmetro na avaliação e na hierarquização das demais: ela
recebe todos os atributos positivos, ao passo que as outras só
poderão ser avaliadas de forma negativa e ocupar um status inferior.
A normalização se conjuga a processos de hierarquização e
marginalização, implicando todos os sujeitos. Normais e anormais
estão ambos situados no interior do critério que estabelece a sua
separação: a norma. Esta, para poder operar, deve ser naturalizada e
tornar-se imperceptível. Suas verdades devem ser evidentes,
inquestionáveis; e suas determinações, não percebidas como
obrigatórias. Isso dependerá da eficácia dos mecanismos de
imposição e persuasão de sua propaganda , que deve levar os
envolvidos a internalizar princípios de visão e de divisão de seus
regimes de verdade e excluir alternativas.
A ORDEM HETEROSSEXISTA
A marginalização a que são submetidos os indivíduos que destoam
da heteronormatividade contribui para definir o domínio do sujeito
“normal”. Como ensina Mary Douglas em Pureza e perigo , à
medida que se procura consubstanciar e legitimar a marginalização
do indivíduo “diferente”, “anômalo”, termina-se por conferir
ulterior nitidez às fronteiras do conjunto dos “normais”. A
existência do “nós-normais” não depende apenas da existência da
“alteridade não-normal”: é indispensável naturalizar
pedagogicamente a condição de marginalizado vivida pelo “outro”
para afirmar, confirmar e aprofundar o fosso entre uns e outros.
Assim, por meio da tradução da pedagogia do insulto em
pedagogia do armário , estudantes são levados a aprender cedo a
mover as alavancas do heterossexismo. As operações da
heterossexualização compulsória implicam processos
classificatórios e hierarquizantes, em que sujeitos muito jovens
podem ser alvos de sentenças que agem como dispositivos de
objetivação, em um cenário caracterizado por variadas formas de
violência que a pedagogia do armário pressupõe e dispõe, enquanto
controla e interpela cada pessoa.
Em A epistemologia do armário , Eve Kosofsky Sedgwick nota
que, enquanto regime de ordenação de corpos, sexualidades e
gênero, o “armário” constitui um processo de ocultação da posição
de dissidência em relação à matriz heterossexual e que faz mais do
que simplesmente regular a vida social de pessoas que se
relacionam sexualmente com outras do mesmo sexo, submetendo-as
ao segredo, ao silêncio ou expondo-as ao desprezo público. Ele
implica uma gestão das fronteiras da heteronormalidade e atua como
um regime de controle de todo o dispositivo da sexualidade. Assim,
reforçam-se instituições e valores heteronormativos e privilegia-se
quem se mostra conformado à ordem heterossexista.
Não por acaso, a vigilância das normas de gênero cumpre papel
central na pedagogia do armário , constituída de dispositivos e
práticas curriculares de controle, silenciamento, invisibilização,
ocultação e não-nomeação que agem como forças
heterorreguladoras de dominação simbólica, (des)legitimação de
corpos, saberes, práticas e identidades, subalternização,
marginalização e exclusão. Por força da pedagogia do armário , nas
palavras de Deborah Britzman, a escola, lugar do conhecimento,
mantém-se, em relação à sexualidade, ao gênero e ao corpo, como
um lugar de censura, desconhecimento, ignorância, violência, medo
e vergonha. Além disso, a pedagogia do armário , ao ensejar o
enquadramento, a desumanização, a marginalização, opera no
cerceamento da autonomia. Afinal, como diz Márcio Fonseca em
Foucault e a constituição do sujeito , processos disciplinares
voltados à normalização de indivíduos tendem a impossibilitá-los de
se constituírem como sujeitos autônomos. Se a educação de
qualidade pressupõe a busca do sujeito autônomo, a pedagogia do
armário é um dos seus obstáculos.
Uma pessoa que afirma considerar “propaganda de
homossexualidade” ações voltadas a enfrentar a homo-lesbo-
transfobia na escola ignora os processos de heterossexualização
compulsória, a artificialidade e a imposição socioinstitucional das
normas de gênero, nos quais a pedagogia do armário está
implicada. Ao fazê-lo, ela se coloca a serviço de uma visão segundo
a qual o enfrentamento à heteronormatividade seria uma agenda
contrária à natureza, à qual a escola não poderia se dedicar. Ela
negligencia a centralidade que assume a escola nos processos de
normalização e ajustamento heterorreguladores e de marginalização
de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz
heterossexual. Ela desconhece que a educação não-racista, não-
sexista e não-homofóbica é um direito de todos.
É insuficiente denunciar o preconceito e apregoar maior liberdade
sem desafiar a norma. Vale investir na desconstrução de processos
sociais, políticos e epistemológicos da pedagogia do armário por
meio dos quais alguns indivíduos são normalizados enquanto outros
são marginalizados. Em vez de buscar um respeito vago, importa
desafiar códigos dominantes de significação, desestabilizar relações
de poder, fender hierarquizações, perturbar classificações e
questionar a produção de identidades reificadas, hierarquizações e
segregações.
Mesmo com todas as dificuldades, a escola é um espaço onde
podem ser construídos e experimentados novos padrões de
aprendizado, convivência, produção e transmissão de conhecimento.
Mas ela não pode ser convocada a fazer isso sozinha. O Estado e a
sociedade precisam envolver-se nisso para que, em vez de fracassos
educacionais, dor e violência, passemos a vislumbrar cenários de
dignificação da vida.
ensaio

Michel Foucault e a Coragem da


Verdade
OSWALDO GIACOIA JUNIOR

A presença e a significação de Foucault fica muito empobrecida e


mesmo banalizada se a congelarmos na figura unilateral do “crítico
do humanismo”. É melhor lembrá-lo pela ligação considerada por
ele inseparável entre filosofia e vida, cuja melhor expressão é o seu
curso, recém-publicado, sobre a coragem da verdade. Foucault, um
nome para múltiplas máscaras, é plural, muito mais complexo do
que imaginam seus detratores. Paradoxalmente, ele foi também um
combatente por direitos do homem. Pouco antes de sua morte em
1984, Foucault interveio publicamente no caso dos boat people ,
envolvendo apátridas e imigrantes clandestinos vítimas de pirataria
e desumanidade, numa atuação solidária, cuja repercussão deu
origem à criação em Genebra de um comitê internacional contra a
pirataria, sediado na Organização das Nações Unidas. E esse
aspecto da militância de Foucault encontra uma atestação ímpar em
suas passagens pelo Brasil, razão pela qual a retomo nesse contexto.
No início de outubro de 1975, Michel Foucault chegava mais uma
vez a São Paulo, onde, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, ministrou uma série de conferências sobre
psiquiatrização e antipsiquiatria, reflexão já então preparatória dos
futuros trabalhos sobre o poder psiquiátrico.
Naquela ocasião, Foucault tomou conhecimento de uma série de
prisões arbitrárias realizadas no país pelas autoridades políticas. Os
estudantes universitários organizaram uma manifestação na qual
denunciavam a prisão violenta de professores, estudantes e
funcionários. O professor Michel Foucault, presente na assembleia,
fez um pronunciamento em apoio ao protesto dos estudantes, no
qual anunciou que suspenderia seu curso antes do final programado.
Dias depois, a imprensa noticiava que o jornalista Vladimir Herzog
fora encontrado morto, supostamente enforcado, nas dependências
do 2º Exército, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975. No dia
seguinte à morte, o comando do Departamento de Operações de
Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI),
órgão de repressão do exército brasileiro, divulgou nota oficial
informando que Herzog havia cometido suicídio na cela em que
estava preso. Na segunda-feira, 27 de outubro, após o funeral de
Vladimir Herzog, irrompeu uma greve envolvendo várias unidades
da Universidade de São Paulo.
Felizmente, esses fatos foram registrados em publicações, de
modo que não sou forçado a limitar-me à memória pessoal daqueles
acontecimentos. Foucault então “suspende seu curso e lê um texto
sobre o assassinato do jornalista, logo transformado em panfleto
pelos estudantes. Ainda desconhecemos o teor desse escrito. Mas
temos acesso às palavras de Foucault, mais tarde publicadas,
descrevendo os acontecimentos de 31 de outubro, nas exéquias de
Herzog – impressionante narrativa de uma contraconduta, para usar
o termo que, no intuito de caracterizar a agonística das relações de
poder, ele virá futuramente a propor: ‘a comunidade judaica não
ousou fazer exéquias solenes. E foi o arcebispo de São Paulo [Dom
Paulo Evaristo Arns] que promoveu, na catedral metropolitana, uma
cerimônia, aliás, ecumênica, em memória do jornalista: o evento
atraiu milhares de pessoas à igreja, à praça etc. O cardeal, de vestes
vermelhas, presidia a cerimônia: caminhou diante dos fiéis e os
saudou exclamando ‘ Shalom , shalom ’. A praça estava cercada por
policiais armados e na igreja havia diversos policiais à paisana. A
polícia recuou: não podia fazer nada contra isso”. ( Apud Heliana de
Barros Conde Rodrigues. “Michel Foucault na imprensa brasileira
durante a Ditadura Militar. Os cães de guarda, os ‘nanicos’ e o
jornalista radical”. In: Psicologia & Sociedade ; 24, n. spe.: 76-84,
2012).
Em reconhecimento da relevância da obra de Michel Foucault
enquanto maître à penser fundamental em nosso tempo – bem como
do valor e pioneirismo do trabalho de professores da PUC-SP
dedicados ao estudo da mesma – o VII Colóquio Internacional
Michel Foucault, em outubro de 2011, foi sediado nessa
universidade, reunindo dezenas de especialistas e centenas de
interessados, provenientes de várias partes do mundo. Na ocasião,
foi assinada uma carta de apoio à iniciativa de criação, na PUC-SP,
de uma cátedra a ser nomeada “Michel Foucault e a filosofia do
presente”. A lista dos signatários incluía membros do Collège
International de Philosophie (Paris), da Université Paris VIII, da
Université Bordeaux Montaigne, da Universidade Nova de Lisboa,
da Universidad Complutense de Madrid, da École Normale
Supérieure de Paris, da Universidad San Martín na Argentina, da
Universidad de los Andes na Venezuela e da Universidad de
Valparaiso no Chile. A iniciativa também teve o apoio ativo do
Consulado Geral da França em São Paulo. No mesmo ano, a PUC-
SP obteve uma cópia dos arquivos em áudio das aulas de Foucault,
fornecidos pelo Collège de France, tornando-se assim a única
instituição fora da França habilitada a lhes dar acesso público.
Sessões de estudo, seminários e debates sobre livros foram
organizados a seguir como trabalho preparatório para a criação da
Cátedra, suscitando expectativas e um entusiasmo crescente [Este
trecho reproduz uma petição internacional recentemente divulgada
pelo grupo de pesquisa Michel Foucault da PUC-SP, em apoio à
fundação de uma cátedra “Michel Foucault e a filosofia do
presente”].
Num momento em que a comunidade europeia inteira encontra-se
profundamente abalada pela repetição de atrocidades a que são
submetidos grandes contingentes de africanos, fugitivos de guerras e
misérias em suas pátrias, aglomerados em condições desumanas nas
ilhas Pelágias, e de lá buscando refúgio na Europa, onde não
encontram sequer o elementar direito humanitário à hospitalidade;
num momento, portanto, em que se tenta transformar em projeto de
lei, no parlamento europeu, uma iniciativa que prevê quotas para
aceitação de imigrantes pelos países da comunidade europeia, é
lastimável que Conselho Superior da Fundação São Paulo não tenha
se lembrado da intervenção de Foucault no caso dos boat people ,
vetando a criação, naquela universidade, de uma Cátedra “Michel
Foucault e a filosofia do presente”; e até mesmo negando-se a julgar
o mérito do recurso interposto pelos proponentes da iniciativa.
A recusa, que contraria decisão da comissão de ensino e pesquisa
da universidade, apoiada em igual medida por parte do conselho
departamental da Faculdade de Comunicação e Filosofia, bem como
do Consun (conselho universitário, instância acadêmica maior da
PUC-SP), reunido em 29 de abril e por parte do Departamento de
Filosofia e do Programa de Estudos pós-graduados em Filosofia da
PUC-SP) provocou indignada reação por parte da comunidade
acadêmica nacional e internacional. Com efeito, a propositura não
tinha por finalidade instituir uma cátedra para estudo permanente da
obra de Michel Foucault, nela e por ela mesma, mas, como o indica
o próprio título – evocando uma das inspirações fundamentais do
pensamento de Foucault – o estudo rigoroso e competente (aliás,
tradição daquela instituição ao longo de sua história) da história da
filosofia contemporânea.
Cabe lembrar aqui, em conclusão, que o ciclo de conferências
intitulado A verdade e as formas jurídicas , que tinha como
conteúdo os trabalhos preparatórios para a futura publicação do
prodigioso Surveiller e punir – La naissance de la prison (Vigiar e
punir – O nascimento da prisão , um marco nas ciências humanas
de nosso tempo ) foi proferido na Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro no ano de 1973, e publicado nesse mesmo ano –
numa espécie de apostila da PUC-RJ em tradução de Roberto
Machado e Eduardo Jardim Morais. Posteriormente, foi reeditado
pela mesma PUC-RJ e pela editora Nau em 1996. A memória desses
fatos, bem como a lembrança de que o centro de Filosofia Instituto
Sedes Sapientiae de São Paulo – que assim como a PUC-SP [Cabe
lembrar também, neste contexto, que a Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, nos anos 1980, foi a única universidade
brasileira a fazer a pioneira (e talvez até hoje exclusiva no Brasil)
experiência de uma assembleia constituinte paritária para a redação
de seus estatutos] sempre se caracterizou como um inequívoco
centro de resistência à barbárie, em defesa da liberdade e dos
valores humanos fundamentais – tem no estudo da obra de Michel
Foucault e nos seus desdobramentos na filosofia e nas ciências
humanas uma de suas principais referências, bem pode contribuir
para um movimento tendente a levar a uma reconsideração daquela
decisão.
especial

A cultura brasileira nos últimos 18


anos
A REVISTA CULT NASCEU NUM MOMENTO DE REAQUECIMENTO
DO CINEMA, DO TEATRO E DA LITERATURA BRASILEIRA,
QUANDO SURGIRAM OS PRINCIPAIS ATORES DA CENA CULTURAL
DE HOJE
Cinema: O sonho da retomada
FRANTHIESCO BALLERINI

Quando a CULT estava prestes a sair da gráfica pela primeira vez e


iniciar sua próspera jornada nas bancas, em 1997, o cinema
brasileiro estava incubando aquele que seria seu filme
contemporâneo mais importante, um sucesso de bilheteria, ganhador
dos principais festivais e responsável por lágrimas nos rostos de
críticos e júris do mundo todo. Na encruzilhada da BR-232 com a
PE-265, vilarejo dos arredores de Sertânea, a 300 quilômetros de
Recife, Central do Brasil encontrou ali a imagem que ganharia o
planeta há 18 anos. A população de apenas 700 habitantes acolheu,
por um mês, carretas, equipamentos e gente que ergueu de igreja a
cabeleireiro e correios fictícios. A prosperidade do lugar, porém,
ficou apenas no sonho, mas Central do Brasil inaugurava ali uma
nova era para o cinema brasileiro, tão importante quanto foi o
Cinema Novo de Glauber Rocha, há meio século.
O filme de Walter Salles, indicado a inéditos dois Oscars (Melhor
Filme Estrangeiro e Melhor Atriz), ganhador do Urso de Ouro e de
Prata no Festival de Berlim e outros quarenta prêmios mundiais,
virava a página de uma cinematografia que havia sido sepultada no
dia 16 de março de 1990, quando o então presidente Fernando
Collor de Mello extinguiu a única lei de incentivo fiscal à cultura, a
Lei Sarney, acabando com a Fundação Nacional de Artes (Funarte),
Fundação do Cinema Brasileiro (FCB), Embrafilme e Conselho de
Cinema (Concine). Não demorou muito e o próprio Ministério da
Cultura fora dissolvido. O cinema brasileiro passou a viver, então,
seus piores anos na história, fazendo com que o público do cinema
nacional passasse de quase 35% em 1983 para 10% em 1990 e
quase 0% em 1993 (três filmes lançados entre 1992 e 1994, com 1%
de bilheteria). O próprio Walter Salles saiu do Brasil para poder
filmar, bem como Hector Babenco e Bruno Barreto. O cenário só
começa a mudar com a Lei do Audiovisual, em 1992, desenhada por
Sérgio Rouanet, e que volta a levar recursos via incentivo fiscal para
o cinema brasileiro, iniciando aos poucos a Retomada da produção
nacional.
Se Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati, foi o primeiro
grande sucesso da Retomada, foi Central do Brasil aquele que
reabriu o cinema brasileiro para o mundo e resgatou a confiança
perdida do público de que podemos, sim, fazer cinema à altura dos
vizinhos argentinos, dos pioneiros franceses e dos contemplativos
japoneses.
Nestes últimos 18 anos, o resgate de confiança no cinema
brasileiro reaproximou-o com a televisão. A TV Globo criou, em
1998, a Globo Filmes, que inicialmente era para ser uma
distribuidora que competiria diretamente com as majors de
Hollywood, mas acabou virando apenas uma coprodutora que levou
o “padrão Globo” para as telas, embora tenha sido fundamental para
o aumento da bilheteria dos filmes brasileiros. Houve anos, como
em 2003, que a Globo Filmes representou 92% do público das
produções nacionais. A emissora, sabe-se, não investe nenhum
centavo na grande maioria dos filmes, apenas cede seu horário
nobre para a promoção do longa.
Entre 1997 e 2005, mais de 100 diretores lançaram seu primeiro
longa-metragem no Brasil, embora apenas 30% conseguiram fazer
um segundo filme. Ainda assim, pipocaram produtoras por todo o
país, como a Videofilmes, de Walter e João Moreira Salles,
Conspiração, O2, Casa de Cinema de Porto Alegre etc.
COSMÉTICA DA FOME
Se, dentro dos cinco anos após a produção de Central do Brasil , o
cinema brasileiro crescia em números, gerava empregos e
aumentava a participação nas telas, foi em 2002 que uma nova
estética – na verdade, a repaginação da estética cinemanovista –
chegava às telas. Segundo filme brasileiro da Retomada a cativar o
mundo, Cidade de Deus (2002), apresentou o melhor e o pior do
Brasil na frente das telas e nos bastidores. Financiado com
pouquíssimo dinheiro pelas leis de renúncia fiscal, tendo grande
parte das empresas privadas negado participação pela temática e
medo de associar sua marca a filme de favela, Cidade de Deus teve
mais de três milhões de espectadores, virou recordista da Retomada.
Enquanto o Cinema Novo era cunhado como o termo Estética da
Fome, cuja pobreza agredia a percepção propositadamente para
então refletir sobre a miséria do país, Cidade de Deus inaugura de
vez a Cosmética da Fome, termo cunhado pela pesquisadora da
UFRJ, Ivana Bentes, feliz por definir bem cenários carentes
mostrados como espetáculos bem montados, fotograficamente
belíssimos e com corpos negros untados de óleo, um
embelezamento quase publicitário da imagem. E isso vale também
para a miséria urbana de Carandiru (2003), de Hector Babenco, e
tantos outros filhotes da onda filme-favela.
Mas nenhum deles foi tão inovador quanto a produção de
Meirelles. Até que a favela ganha seu espetáculo máximo e ainda
mais polêmico nas mãos de José Padilha, em Tropa de Elite (2007),
Urso de Ouro em Berlim e propulsor de polêmicas que iam do
fascismo policial à criação de heróis nacionais ao estilo Capitão
Nascimento, tornando o filme brasileiro que mais rápido ganhou as
bocas do país, do cafezinho da padaria ao intelectual universitário.
Sua sequência, de 2010, desbancou Dona Flor e seus dois maridos
(1976), de Bruno Barreto, do topo e se tornou a maior bilheteria do
cinema brasileiro, com 11 milhões de espectadores e a produção
mais sofisticada em termos de efeitos especiais e cenas de ação que
o país já fez até hoje.
No entanto, apesar da grande e inédita quantidade de recursos
financeiros destinados à produção, o cinema brasileiro ainda vive
uma montanha-russa em termos de market-share (participação do
cinema nacional nas vendas de ingressos no ano). Apesar de ter sido
o ano de lançamento de Cidade de Deus , o cinema nacional em
2002 obteve apenas 8% de participação de mercado, enquanto o ano
seguinte saltou para 21,4%, graças a produções como Carandiru ,
Xuxa abracadabra e Os normais . Em resumo, a participação do
cinema nacional ainda é muito suscetível ao que as produtoras vão
lançar naquele ano. O mesmo ocorre com as salas de exibição.
Nesse quesito, os últimos 18 anos não foram nada animadores, pois
estamos com pouco mais de 2.500 salas, número inferior ao de
quarenta anos atrás (3.276 em 1975), sendo que, hoje, 90% das
cidades brasileiras não possuem nenhuma sala de cinema.
A maior marca dos últimos 18 anos no cinema nacional, no
entanto, é sua integração irreversível com a TV, internet e celular.
Não se faz mais cinema pensando apenas nas salas de exibição.
Nesse ponto, porém, o Brasil avançou, mas muito aquém do que
poderia. Se a proposta da Ancinav era de criar uma Agência do
Audiovisual, substituindo a Ancine e fomentando a integração de
todas as áreas, mas foi enterrada por conta de fortíssimos lobbies da
TV aberta, a Lei da TV Paga ao menos garantiu mil horas de
conteúdo nacional inédito por ano no horário nobre de todos os
canais fechados, aquecendo o mercado. Portanto, talvez a maior
marca do cinema brasileiro nos últimos 18 anos foi ter conseguido
pensar como indústria (ainda que não autossustentável) sem deixar
de abraçar estéticas e linguagens que surpreendam em festivais no
mundo todo. Para os próximos anos, falta, quem sabe, tudo isso se
tornar mais volumoso, de modo que o cinema brasileiro seja assunto
tão popular quanto as telenovelas e o futebol do horário nobre.
Missão difícil, mas não custa sonhar. E o cinema sempre foi a
melhor ferramenta para isso.
Teatro: da maior importância
WELINGTON ANDRADE

Quando o primeiro número da revista CULT chegou às bancas em


julho de 1997 (trazendo, entre outros assuntos, uma relevante
entrevista com o crítico Décio de Almeida Prado, conduzida de
modo muito criterioso pelo professor e pesquisador João Roberto
Faria), o panorama teatral paulistano vivia uma fase de ebulição
criativa, na qual um conjunto de novas ideias, formas e temas –
surgidos, de modo geral, no final da década anterior – ganhava
corpo e alimentava o melhor da criação artística.
Nossos dois maiores diretores de teatro ainda em franca atividade
– Antunes Filho e Zé Celso Martinez Corrêa – lideravam seus
grupos, como ocorre ainda hoje, por meio de uma inesgotável
capacidade de experimentação. Vale notar que ambos nunca ficaram
presos ao próprio passado, renovando constantemente a cena teatral
por meio de uma postura estética que não se intimida jamais diante
da transparência do novo. Antunes àquela ocasião começava a
desenvolver sua investigação em torno do “falso naturalismo”,
concebendo a série de ensaios de teatralidade chamada de “ prêt-à-
porter ”, iniciada em 1998, na qual cabia ao próprio ator encarregar-
se também da dramaturgia e da direção de experiências teatrais
sustentadas pela execução de cenas breves, de acentuado caráter
processual. Seguiram-se, então, as três tragédias gregas por meio
das quais o diretor examinou o tema da “sinergia do mal”:
Fragmentos troianos (1999), Medeia (2001 e 2002) e Antígona
(2005). Depois foi a vez de A pedra do reino (2006), espetáculo que
fez o diretor voltar à linguagem e à estrutura de Macunaíma (1978),
verdadeiro marco divisório na renovação da linguagem teatral
brasileira. Zé Celso, por sua vez, retomava em 1997 a ligação com o
grande avatar do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona: Antonin Artaud.
Em Pra dar um fim no juízo de Deus , o diretor transformava o texto
da peça radiofônica original em um ritual mágico, disposto a impelir
o espectador a um “estado de vida poética”, cuja poesia –
contrariando o mais equivocado dos lirismos – era, a um só tempo,
“negra e radiosa”, como desejava o autor de Heliogábalo .
Posteriormente, vieram Cacilda! (1998), Boca de ouro (1999) e a
saga de Os sertões (2002-2006), composta por cinco espetáculos
que denunciavam uma ambivalente perda de território, representada
não somente pela violência cometida por parte do Brasil dito
civilizado contra o sertanejo obrigado a se exilar em sua própria
terra, como também pela brutalidade da mentalidade empresarial
brasileira que àquela época pretendia desalojar o grupo de sua sede
no Bixiga. Desde então, o diretor vem mantendo uma agenda de
espetáculos tão vertiginosa quanto necessária à sensibilidade e à
inteligência brasileiras, cada vez mais embotadas pela mediocridade
que grassa em cada um dos produtos que nos é oferecido
diariamente pela indústria cultural.
É em torno do ano de 1997 que surge também na cidade um
expressivo número de grupos teatrais dispostos a ocupar teatros
públicos ou espaços inesperados da cidade, “gerando pelo menos o
desenho de uma mistura social que ninguém planejou, simplesmente
está acontecendo como efeito colateral das segregações e
hierarquias que o novo estado do mundo vai multiplicando”, de
acordo com a acurada observação do filósofo Paulo Arantes. Criada
em 1996, a Companhia do Latão retomou entre nós a tradição do
teatro épico de Bertolt Brecht, encenando Ensaio sobre o latão
(1997), Santa Joana dos Matadouros (1998) e O círculo de giz
caucasiano (2006). Desde então, o grupo vem utilizando a obra do
dramaturgo e pensador alemão como modelo de uma dramaturgia
própria sobre a realidade brasileira contemporânea. Em 1997, com o
espetáculo Folias fellinianas forma-se o Folias d’Arte, grupo de
teatro de inflexão política que passa a ocupar como sede, a partir de
2000, um antigo galpão no bairro de Santa Cecília. A vizinhança
com uma região visivelmente degradada da cidade reforça na
companhia a vontade em seus trabalhos de discutir os problemas
políticos e sociais mais urgentes do país e desenvolver também uma
série de ações culturais com a comunidade do entorno. Entre suas
criações mais genuínas, destacam-se Happy end (2000), Otelo
(2003), Oréstia, o canto do bode (2007) e, mais recentemente,
Medeia: 1 verbo (2014) . O ano de 1999 assiste ao nascimento de
um grupo cuja proposta é pesquisar a teatralidade do rap, do funk e
do hip-hop. Trata-se do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que
não somente concebe espetáculos teatrais pautados por grande
imaginação criativa – Bartolomeu, que será que nele deu? (2000),
Acordei que sonhava (2003), Frátria amada, Brasil (2006),
Antígona recortada (2013) – como também se dedica ao ativismo
cultural por meio de intervenções poéticas em espaços públicos da
cidade.
Embora a dramaturgia que venha prevalecendo no teatro dos
últimos anos seja concebida quase sempre coletivamente por meio
de um processo que se convencionou chamar de colaborativo, um
dramaturgo forjado nos velhos moldes autorais surgiu para o grande
público em 1999 com uma pequena obra-prima. Em O fingidor ,
Samir Yasbek parte do poema “Autopsicografia”, de Fernando
Pessoa, para desenvolver um delicado jogo de intersecções entre o
real e o ficcional, levando o espectador a ser conduzido a uma
atmosfera lírica que remete de pronto à obra do poeta português,
sem sonegar à plateia a fruição, em segundo plano, insinuado
diligentemente como um moto-contínuo, de uma experiência
simbólica muito mais intensa: a dos bordejos do espírito humano em
torno da grande aventura da produção de sentido. Igual vocação
para uma escrita dramatúrgica potente e inventiva pode ser
encontrada em A terra prometida (2001), A entrevista (2004) e As
folhas do cedro (2010).
Na esfera da mobilização política da classe teatral em São Paulo,
o final da década de 1990 testemunhou o lançamento do manifesto
“Arte contra a barbárie” (cuja primeira versão foi publicada em O
Estado de S. Paulo, no dia 7 de maio de 1999). No documento, o
grupo de signatários, formado por artistas independentes e por
representantes de coletivos teatrais da cidade, defendia os direitos à
“produção, circulação e fruição de bens culturais”, denunciando a
mercantilização imposta à cultura pelos ventos neoliberais que
sopravam a plenos pulmões sobre o país. Algumas ações imediatas,
segundo os articuladores do movimento, eram essenciais: o apoio à
manutenção dos grupos de teatro, a criação de mecanismos de
fomento à pesquisa e a adoção de políticas permanentes de
desenvolvimento da arte teatral.
Por fim, a transformação mais notável que o teatro praticado
desde a década de 1990 causou à capital paulistana diz respeito à
ocupação de natureza cidadã realizada por grande parte dos
coletivos teatrais que se espraiam pela cidade. O exemplo mais
visível é o da revitalização da Praça Roosevelt, empreendida em
grande parte pela presença do grupo Os Satyros, desde 2000, na
região. Sobre a relação do teatro com a experiência urbana, afirma a
professora e pesquisadora Silvia Fernandes: “O movimento de
expansão do trabalho teatral para o espaço da cidade tem várias
ramificações. A principal delas talvez seja a ocupação de espaços
públicos por grupos de teatro, que interferem decisivamente nas
metrópoles brasileiras. As novas formas de organização das
diferenças sociais nas grandes cidades, marcadas pela globalização e
pela mercantilização da cultura e da vida, por um lado, e pela
heterogeneidade social por outro, refletem-se na conformação
espacial, criando ilhas de convívio restrito e bolsões de exclusão,
que caminham paralelos à expansão indiscriminada da violência e
da violação dos direitos de cidadania”.
Para dar conta do período em que a CULT caminhou rumo à
maioridade editorial, fizemos escolhas pautadas única e
exclusivamente pela necessidade de síntese. O teatro paulistano dos
últimos 18 anos, certamente, é um fenômeno muito maior e mais
complexo do que as informações apresentadas aqui quiseram
sugerir. Ao espectador que habita a cidade cabe conhecer e estimar a
pluralidade das tendências teatrais que nela convivem. Pois, como
bem declarou recentemente o dramaturgo romeno Matéi Visniec à
CULT: “Amar o teatro é uma forma de transformar a civilização”.
Literatura: em busca da emancipação
MANUEL DA COSTA PINTO

Se o número 18 – a idade que a revista CULT completa este mês –


evoca a ideia de maioridade, esta representa algo para além de seu
aspecto jurídico: representa a ideia de emancipação das autoridades
tradicionais ou das determinações externas e coletivas pelo
indivíduo, que assim afirma sua autonomia, o Sapere aude! (Ouse
conhecer!) pronunciado por Kant em O que é o Iluminismo? .
Quando se trata de literatura num país que sempre teve de se
haver com sua minoridade (dependência econômica, condição
periférica, identidade instável), essa emancipação muitas vezes
representou a criação de um discurso empenhado na construção de
uma identidade nacional. Ou seja, uma emancipação mais coletiva
do que individual – o que não deixa de ser incongruente, senão
contraditório, com as noções de autonomia e autodeterminação.
A literatura e o pensamento brasileiro – e isso é um fato, não uma
interpretação – sempre estiveram às voltas com a formulação de
mitos fundadores, seja na forma dos romances e poemas indianistas
de José de Alencar e Gonçalves Dias, da prosa regionalista de
diagnóstico e denúncia dos atavismos por trás das catástrofes
nacionais, ou ainda dos ensaios de interpretação das tensões do
hibridismo social e racial (como em Casa grande & senzala , de
Gilberto Freyre, ou Raízes do Brasil , de Sergio Buarque de
Holanda) – sendo que as próprias ideias de mito, atavismo e raça
implicam submissão a um singular coletivo.
No campo estritamente literário, outro ensaio fundamental,
Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), de
Antonio Candido, vinculou a identidade literária brasileira
justamente aos tais “momentos decisivos” em que escritores e
intelectuais estiveram empenhados no projeto de uma literatura
nacional – sendo criticado por conceber o processo formativo como
uma espécie de destino incontornável, cujo caráter necessário
excluía outras vertentes (seria o caso do “sequestro do barroco”
apontado por Haroldo de Campos em Formação... ).
A crítica não é de todo improcedente. Num artigo do livro
Brigada ligeira sobre o romance O agressor (1943), de Rosário
Fusco, por exemplo, Candido observa no surrealismo do escritor
mineiro um mecanismo de “adoção de valores literários, uma
tentativa de transplantar a planta estrangeira para a terra pátria”,
“atitude intelectual” que não representa “uma problemática vital
para a inteligência brasileira”.
A afirmação parece contraditória com a própria Formação... ,
obra repleta de exemplos dos empréstimos tomados por árcades e
românticos na literatura europeia, sugerindo que Antonio Candido
estaria confinando a literatura brasileira a temáticas nacionais
(presentes na “cor local” destes, ausentes na prosa de Fusco).
Ocorre, no entanto, que o próprio ensaísta deu por encerrado o
processo formativo já no século 19 (como observa Roberto Schwarz
em Sequências brasileiras ), de modo que, da sua perspectiva,
aquilo que era um dado objetivo, minuciosamente levantado ao
longo dos dois tomos de Formação... , deixa de ser um empenho
fortemente impregnador, que confere feição à literatura local, para
se tornar uma idiossincrasia individual pouco significativa para a
representação da realidade pela literatura.
Essa minúscula digressão sobre uma obra maiúscula ajuda a
entender questões de representação presentes até hoje no panorama
da literatura brasileira – especialmente nestas duas últimas décadas
que tiveram na revista CULT um posto de observação.
Se a modernização e a urbanização dos anos 50 e 60 sepultaram
ou, pelo menos, deixaram num estado de letargia o discurso sobre a
nacionalidade, a representação literária da experiência brasileira
jamais saiu de pauta. Afinal, uma das possíveis e mais fortes
definições desse objeto tão fugidio a que damos o nome de literatura
– e sem entrar naquilo que distingue a prosa da poesia – é
representação ficcional da realidade, ou conhecimento pela
imaginação. E, nesse sentido, pode-se dizer que a questão da
identidade permeou a representação literária brasileira durante o
longo período em que seu objeto – essa realidade, seus atores –
estava construindo uma especificidade.
Modernismo e regionalismo ainda foram “movimentos” – e o fato
de o serem demonstra, por si só, o atrelamento a questões de ordem
coletiva – com um projeto de criar a linguagem ideal para expressar
ou desvendar uma realidade estável, ou que perpetua os vetores de
sua instabilidade: “nossa” vocação antropofágica, os ciclos de
“nossa” dependência – o uso dos pronomes possessivos, até hoje tão
frequente no ensaísmo brasileiro, reiterando como um lapso de
linguagem o apego à ideia de pertencimento a um ente comunitário.
O surto modernizador do pós-guerra, porém, “desenraizou” o país
de suas determinações (patrimonialismo, estrutura escravocrata),
criando outras que, no entanto, mantêm aquelas presentes como
resíduos arcaicos. E a perda da homogeneidade da experiência,
característica da vida urbana, gera uma percepção literária dessa
dinâmica não mais como essência a ser decantada ou superada, mas
como cicatriz individual.
Da literatura de sondagem interior de Clarice Lispector ao
brutalismo urbano de Rubem Fonseca, das elipses de Dalton
Trevisan à obscenidade de Hilda Hilst, a literatura brasileira
envereda por representações cada vez mais particulares e obsessivas
– como são particulares e imiscíveis as obsessões dos viventes das
cidades em que tais autores põem seus personagens para
perambular.
E se literatura brasileira se tornou, já faz algum tempo, uma
literatura urbana feita por sujeitos que expressam o universo muito
pessoal do indivíduo insularizado na massa amorfa da metrópole
(construção ou clichê cultural tão forte quanto foi outrora o “Brasil
profundo”), também mudou aquela correia de transmissão que
vinculava cada autor a um autor precedente dentro de uma tradição
nacional. Os escritores de hoje reivindicam (quando reivindicam)
influências dos mais variados matizes e, nas intervenções públicas
(festivais internacionais, feiras de livros), fazem um esforço
devotado para arrancarem a etiqueta grudenta do escritor brasileiro
– com tudo o que ela carrega de cor local e imaginário tropical.
Conrad e Thomas Bernhard, W.G. Sebald e Bruce Chatwin, Philip
Roth e J.M. Coetzee são autores que parecem ter um peso maior na
escrita de Cristovão Tezza, Bernardo Carvalho, Teixeira Coelho ou
Bernardo Ajzenberg do que Dyonelio Machado ou Guimarães Rosa,
dentro do mote borgeano de que o escritor cria seus precursores e da
ideia de que “a literatura nasce da literatura”, tão bem formulada
pela ensaísta Leyla Perrone-Moisés (de resto, autora de Vira e mexe,
Nacionalismo , reflexão bastante crítica sobre a recorrência da
questão nacional no mundo pós-colonial).
Nas últimas duas décadas, as poucas tentativas de buscar um traço
definidor da literatura brasileira contemporânea se limitaram à
forma (o miniconto como decantação da experiência fragmentada e
volátil) ou a uma atmosfera de fundo, com personagens/autores
“transgressores”, enredos que mergulham no “bizarro” – para citar
termos usados por Nelson de Oliveira em antologias por ele
organizadas e que incluem autores como Veronica Stigger, Ana
Paula Maia, Lourenço Mutarelli, Paulo Scott e Santiago Nazarian.
Em todos esses autores – e sem entrar aqui em juízos críticos –
desaparece como valor de face a questão nacional (deslocada, em
alguns casos, para a questão dos gêneros sexuais), mas não a da
representação – pela qual a questão nacional penetra de maneira
insidiosa.
Se tomarmos os 18 anos de existência da revista CULT como
recorte, Resumo de Ana (1998), de Modesto Carone, surge como
livro decisivo da nova maneira de representar a realidade brasileira
– não mais pelo registro frontal da vivência social, mas em dois
enredos complementares, narrados a partir de pontos de vista
íntimos, que espreitam a trajetória de uma empregada doméstica e
de seu filho, numa parábola de ascensão econômica seguida de ruína
que resume de modo enviesado as catástrofes do país desde a crise
de 1929 até os anos 80.
Da mesma maneira, a trilogia de Milton Hatoum – Relato de um
certo oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do norte (2005) –
se dá num registro memorialístico (traumas familiares e
experiências de imigrantes libaneses), mas consegue fazer de
Manaus, epicentro das narrativas, a metáfora viva dos massacres da
memória pela história brasileira recente.
A partir de Hatoum, diga-se de passagem, podemos observar o
resgate, também enviesado, de uma experiência que não se dá nem
na megalópole nem no tempo congelado da província (como ainda
podia acontecer em Lavoura arcaica , de Raduan Nassar). São
regiões que, excluídas da prosa urbana, retornam como cenário
remoto no mapa, porém atingidas pela degradação e pela anomia
proporcionados pela modernização desenraizadora – como podemos
ler em Galileia (2008), de Ronaldo Correia de Brito (romance que
flagra sem qualquer nostalgia o retorno do migrante às origens
rurais), Curva de rio sujo (2004), de Joca Reiners Terron, ou Eu
receberia as piores notícias dos seus lindos l ábios (2005), de
Marçal Aquino, em que centro-oeste e norte brasileiros,
respectivamente, são transformados em terra de ninguém, submundo
sem superfície.
Alguma ideia de pertencimento subjaz ainda na prosa que resgata
origens comunitárias, como nos gaúchos Moacyr Scliar ou Cíntia
Moscovich – mas o próprio fato de serem aqui memórias judaicas
amplifica a questão do apagamento da memória para um desastre
maior, que coincide com a história do século 20. E se essa é a
matéria de outro gaúcho, Michel Laub, seu romance Diário da
queda (2011) conecta o tema da Shoah (ou Holocausto) ao do
Alzheimer – dentro de uma vertente em que a doença e os traumas
afetivos familiares fornecem o mote narrativo. Não por acaso, uma
obra de magnitude como O filho eterno , de Cristovão Tezza, e um
romance como Barba ensopada de sangue , de Daniel Galera,
fazem da síndrome genética ou do mal congênito a inóspita pátria
do escritor.
Esse aprisionamento ao corpo e suas pulsões percorre a obra de
um autor que se consolidou na cena literária nesses 18 anos:
Bernardo Carvalho, cujo romance Nove noites (2002), ao desvelar
uma história pessoal durante investigação do suicídio de um
antropólogo norte-americano no interior do Brasil, opera um
cruzamento de aberrações familiares e coloniais no qual o horror do
estranhamento não tem passaporte.
Aliás, o tema da viagem – frequente na obra de Bernardo
Carvalho – adquiriu recorrência singular na literatura
contemporânea brasileira e, num plano mais superficial, parece
indicar o gesto simbólico de uma anexação de territórios à paisagem
narrativa. São os casos de O homem que vive: uma jornada
sentimental (2010), cujo protagonista errante corre o mundo atrás da
felicidade e da beleza perdidas, e, sobretudo, de História natural da
ditadura (2006). Nesse livro de forma híbrida, entre o romance, o
registro memorialístico e o ensaio, Teixeira Coelho revisita as
catástrofes do século 20 (Segunda Guerra, regimes militares de
Brasil e Argentina) de modo oblíquo, em encontros no tempo
presente que colhem os escombros do passado e encontram no
deslocamento permanente uma forma de aliviar o peso do mundo.
Poucos livros como essa obra-prima (aqui não me furto ao juízo
de valor) representam os traumas da história brasileira com tanta
agudeza, pois, sem mimetizar realidades objetivas (apenas
assinalando seus vestígios), conecta-a a outros estados de exceção e
faz da ficção um ato subjetivo de recusa das identidades coaguladas
– que é a marca de uma literatura que se emancipa criticamente de
suas determinações.
entrevista Cristovão Tezza
As transições de Cristovão Tezza
MANUEL DA COSTA PINTO

Pouco depois que a CULT foi criada, em 1997, Cristovão Tezza


lançou o romance Breve espaço entre cor e sombra (1998) – que
acaba de ser reeditado com título mais sintético, Breve espaço .
Nascido em Santa Catarina, mas há muito tempo radicado em
Curitiba (cidade que se tornou uma das personagens centrais de sua
ficção), Tezza já era um escritor de obra extensa e reconhecida.
A partir do romance O filho eterno , porém, ele cria uma nova
perspectiva narrativa, que, em entrevistas, debates e conversas
informais, costuma chamar de “realismo reflexivo” – definição
certeira de um autor que, mesmo tendo abandonado o ensino de
língua na Universidade Federal do Paraná, também atua como
crítico literário, ensaísta e, mais recentemente, como cronista de
jornal.
Poucos escritores brasileiros, aliás, têm a consciência literária de
Cristovão Tezza, que em O espírito da prosa (2012) recensou seu
próprio percurso formativo não como necessidade de explicar sua
literatura, mas de firmar o ponto de vista de que a ficção vive
“vozes alheias” – na contramão do autocentramento e da
intransitividade de boa parte da prosa do século 20, por trás da qual
o ensaísta identifica a crença de escritores e teóricos de que teriam
encontrado o núcleo duro da poética (para além dos gêneros),
fazendo da linguagem uma finalidade em si mesma.
É sobre essas diferentes vozes, presente não apenas em seus
romances, mas também nos diferentes gêneros que pratica, que
Cristovão Tezza fala nessa conversa com a revista que, em seus 18
anos, teve o escritor como entrevistado e como colaborador – e que,
sobretudo, sempre acompanhou as fraturas e mutações de sua
literatura.
O romance Breve espaço entre cor e sombra , de 1998, parecia
estar em continuidade com seus livros anteriores (em que a
tensão estava mais nas situações ficcionais do que no discurso
narrativo). Daí você publica O fotógrafo (2004) e O filho eterno
(2007), em que essa tensão parece se crispar numa prosa que se
autoexamina o tempo todo. A que você atribui essa mudança de
dicção? Houve influência de autores como J. M. Coetzee ou
Philip Roth?
É muito difícil definir as variáveis que nos transformam na vida e na
literatura, e perceber como se dá a passagem de uma para a outra.
Breve espaço foi um momento de transição para mim – de certa
forma, já é um romance bem mais autorreflexivo, para usar a sua
definição, do que os anteriores. Com Trapo , Aventuras provisórias,
Juliano Pavollini , A suavidade do vento , O fantasma da infância
ou Uma noite em Curitiba , os romances que me fizeram escritor, eu
era predominantemente um observador da realidade, que é em geral
a espinha dorsal de todo narrador.
Com Breve espaço , o observador enfim começa também a ser
observado, para dizer com simplicidade. Imagino que essa virada do
olhar, com o seu poder corrosivo, é mais consequência da idade –
então alguém rumo aos cinquenta anos – do que da teoria literária
ou de refinamento filosófico. Ao mesmo tempo, em 1998 comecei
meu doutorado. Passei quatro anos sem escrever ficção, lendo teoria
e preparando uma tese sobre a concepção de prosa e poesia de
Mikhail Bakhtin, pensador da linguagem e da literatura por quem
até hoje mantenho uma devoção honesta.
Terminada a tese, que esgotou meu projeto acadêmico, voltei ao
meu território e escrevi O fotógrafo. Todos os meus temas
tradicionais estavam lá: a solidão, a família, a vida urbana, as
relações amorosas, Curitiba. Mas, vendo daqui, percebo que o
escritor já era outra pessoa. O livro seguinte foi O filho eterno, que
representou uma revolução na minha vida literária e pessoal.
Quanto às influências estritamente literárias, eu não consigo
localizá-las. Philip Roth foi para mim uma leitura dos anos 1980 e
90; eu o absorvi como um gênio romanesco, um Balzac do século
20. Já Coetzee foi uma descoberta mais recente, que, mal definida
numa impressão, seria como a literatura da inapelável corrosão dos
afetos, que, no entanto, sempre latejam ao fundo em busca de ar.
Bem, pensando em “macroliteratura”, para adaptar um termo da
moda, cada vez mais eu sinto atração, como leitor, pelo toque de
racionalidade da clássica prosa narrativa em língua inglesa.
Como isso se conecta com as reflexões de O espírito da prosa?
Aliás, por que você decide escrever um livro com o subtítulo
“Uma autobiografia literária” com sua obra em pleno
andamento?
O espírito da prosa nasceu de um cruzamento de acasos com uma
velha obsessão pessoal – ou um discreto ressentimento, para dizer a
palavra exata: a sensação de que a literatura que eu fazia, do final
dos anos 70 até meados dos anos 90, era tudo que eu não deveria ter
feito como escritor sintonizado com o seu tempo. Aos meus olhos –
por tudo que eu lia, ouvia e sentia – aquele havia sido um período de
hipertrofia das poéticas da prosa, por assim dizer, e de demonização
radical do prosaico. A célebre morte do romance teve mais
necrológios no Brasil do que em qualquer outra parte do mundo;
como resultado, o inesgotável potencial da literatura narrativa
desaprendeu-se entre nós.
A obsessão era enfrentar essa questão com alguma racionalidade
teórica, o que de certa forma tentei fazer na minha tese ( Entre a
prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo ). Mas eu queria me
incluir no problema, e para isso o texto acadêmico era insuficiente.
Ao mesmo tempo, pelo sucesso de O filho eterno , pela minha
opção de me demitir da universidade e pela proliferação de eventos
literários no país, passei a dar palestras sobre meus livros e sobre
literatura em todo lugar, e num momento achei que eu, de tanto falar
sobre isso, já estaria maduro para um ensaio sobre a minha
formação – o foco seria o momento em que me transformei em
escritor.
Mas há outra razão: escrever, para mim, é uma forma mais precisa
de conhecimento – apenas uma parte incerta já está na cabeça antes
da primeira palavra escrita; o que realmente importa vem na
viagem, e eu queria esmiuçar meu próprio processo criativo com
mais clareza. Assim nasceu O espírito da prosa. Chamei de
“autobiografia” justamente para marcar a diferença da ficção – no
ensaio, em cada linha está presente uma “pressuposição de
verdade”; em todo ensaio, o narrador desespera-se para ser idêntico
ao autor (o que, na ficção, é mortal).
Tanto Um erro emocional quanto O professor – seus romance
mais recentes – apresentam o recurso narrativo de concentração
de tempo, em que os fatos/reflexões narrados estão todos
encerrados, respectivamente, num único dia ou numa única
ação bastante “ritualizada”, que assim se distendem fazendo
tudo caber nesse lapso de tempo. Como isso se relaciona com a
ideia da prosa romanesca como movimento de “fechamento e
afastamento do evento da vida” (O espírito da prosa) ?
Eu imagino que sejam coisas distintas, mas talvez haja relação. A
unidade de tempo e lugar dos fios narrativos de O professor (alguém
que se levanta, toma café, toma banho e sai para receber uma
homenagem) e Um erro emocional (o curto tempo de encontro entre
um escritor que é recebido por uma leitora, acompanhados por uma
pizza e uma taça de vinho) foi um acaso que amadureceu
tecnicamente na minha literatura. Não surgiu como um “caso
pensado” – foi acontecendo livro a livro. O fotógrafo já é
basicamente isso, mas num arquipélago de personagens separadas.
E isso está se repetindo no romance que escrevo agora, que são três
momentos concentrados da mesma personagem. Tem alguma coisa
do teatro (que foi uma influência forte na minha infância de escritor)
e do cinema (atualmente, vejo um filme por dia). A diferença
fundamental é que a expressão viva dos processos silenciosos do
pensamento – vital na literatura – é sempre problemática no teatro e
no cinema, que, por assim dizer, precisam viver a vida “em voz
alta”.
Mas esse formato, a narrativa que se expande a partir da unidade
concentrada de tempo e lugar, também dá uma margem
especialmente adequada ao tipo de mergulho reflexivo que se tornou
o centro do que eu escrevo hoje, e que começou com O filho eterno
: um narrador que, em ondas contínuas de percepção, aproxima-se e
afasta-se do personagem, transitando quase que sem costura entre a
primeira e terceira pessoas, entre um ponto de vista e outro. Mas
veja: são explicações a posteriori , talvez redondas demais. Eu
nunca tive nenhum “projeto narrativo” nesse sentido. Os livros
simplesmente foram acontecendo.
Olhando para o conjunto da sua obra, dá para perceber uma
recorrência da relação assimétrica entre o
mestre/professor/escritor e seus leitores/pupilos/entrevistadores
etc. Como (e por que) isso traduz sua maneira de
representar/duplicar a realidade?
É verdade; nunca pensei nisso antes. Parece que em muitos dos
meus livros há sempre uma relação de autoridade – fora do
personagem principal – que precisa ser destruída. Fazendo uma
divagação meio irresponsável, posso ver duas fontes nesse impulso.
A primeira é a marca do tempo histórico, para arriscar uma
interpretação sociológica: a geração que cresceu e se educou nos
anos 60 e 70 tinha no DNA o horror à autoridade e ao poder. Mas
isso, é claro, só faria literatura panfletária – o que, aliás, se fez
muito. A segunda é psicanalítica, mas foi historicamente
potencializada pela primeira, quando se tentava conciliar Marx e
Freud – é preciso destruir o poder do pai e da família. A revolta que
se disseminou nos anos 60, que repercute profundamente até hoje e
de certa forma moldou o tempo presente, deu esse sentido difuso de
inadequação e fratura, em contraponto a um paraíso que está em
lugar nenhum. Acho que muito disso rebateu no que eu escrevo. No
meu caso, isso foi marcado também pela morte do meu pai, nos
meus sete anos, e na busca insegura de âncoras. Os pais (ou mestres
e gurus, como em Breve espaço ) parece que são sempre figuras
pesadas nos meus livros, inimigos a ser batidos – inclusive em O
filho eterno , quando eu me incluí no problema. Bem, agora que eu
sou avô, começo achar a família uma grande ideia que foi muito mal
assessorada pela história recente...
Nesses últimos 18 anos você também se tornou crítico literário
(escrevendo resenhas e uma coluna quinzenal para a Folha de
S.Paulo) e cronista. Como surge esse tipo de trabalho? E, sendo
você um autor que sempre questiona o mantra estruturalista de
que tudo em literatura tende para uma linguagem intransitiva,
que distinção faz entre a “fatura” dos diferentes gêneros que
pratica?
O resenhista nasceu em 1995 de uma conversa sobre o jogo de
xadrez e com o seu convite para resenhar para a Folha de S.Paulo
um livro do Arrabal que tinha o jogo como tema – dali não parei
mais. Foi um trabalho que tinha tudo a ver com a fase acadêmica da
minha vida, e também uma certa educação para o texto em jornal,
que é substancialmente diferente (em extensão, linguagem,
liberdade e objetivo) tanto da prática acadêmica estrita quanto da
literatura de ficção.
Eu sempre gostei de escrever resenhas e ensaios literários – é uma
linguagem que dá vazão ao meu lado “racionalizante”. É também
um modo de aprofundar meu olhar sobre a literatura – como eu
disse, para mim, escrever é uma forma especial de revelação e
conhecimento. E, do ponto de vista formal, considero a resenha o
“soneto da crítica”, uma arte exigente.
Já a crônica foi outro convite, bem mais tarde. Em 2008, a Gazeta
do Povo, de Curitiba, me convidou para assinar uma crônica
semanal na página 3, num momento de completa reformulação
gráfica e editorial do jornal. Jamais havia escrito crônicas na vida,
mas meti a cara e fui aprendendo. Foi uma experiência fascinante –
além da rigorosa limitação de espaço e da pressão da produção
regular, sente-se a onipresença imediata do leitor: uma crônica é
uma conversa em voz alta que exige uma etiqueta sutil do narrador.
Em 2013 lancei uma antologia, Um operário em férias (Record). E
agora no segundo semestre sai mais uma, A máquina de caminhar –
nesta, incluí um longo um ensaio sobre a crônica, que chamei de
“Um discurso contra o autor”. E com isso encerro minha carreira de
cronista. Foi uma bela experiência, mas se esgotou para mim.
Agora, já passando dos sessenta anos, quero me concentrar
unicamente na ficção. Escrevo cada vez mais devagar, e senti que a
crônica começava a drenar minha literatura. Talvez mais adiante eu
volte à crônica, quando perceber que não tenho mais ficção a
escrever.
Sinto os três gêneros que pratiquei – ficção, ensaio e crônica
(poderia incluir a poesia também, com algumas incursões
secretas...) – têm substâncias bastante diferentes. A ficção acaba por
englobar todas as outras linguagens (na verdade, apenas na
superfície ela tem uma linguagem própria – ela vive das vozes
alheias); o ensaio exige uma “pressuposição de verdade” que recusa
a ficção (ou teria de assumir a linguagem como intrinsecamente
fraudulenta, uma decisão que não consigo aceitar); e a crônica é um
gênero basicamente jornalístico, mesmo quando faz literatura (o que
faz muito).
Em O espírito da prosa há uma questão que surge a todo
momento – “descobrir o que leva alguém a escrever”. E o livro
traz uma resposta pessoal: o sentimento de inadequação. Essa
resposta pode ser extrapolada para todos ou pelo menos a
maioria dos escritores?
Acho que sim, por falta de uma resposta melhor. Talvez aqui esteja
o ponto de contato entre a ideia de escrever literatura como um
verbo intransitivo, na clássica formulação barthesiana – mas eu
prefiro transferir a intransitividade da estrutura mesmo da
linguagem (como uma entidade autônoma, um fantasma que fala
sozinho, uma metáfora com certa atração no irracionalismo
contemporâneo), para o gesto responsável do escritor: ele quer
escrever. Nada o pressiona a isso, exceto o seu desejo. É difícil
imaginar que alguém faça na vida uma escolha tão absurda –
escrever – sem alguma fratura a resolver. Pode ser um sentimento
contínuo de infelicidade, um ressentimento de origem – em suma,
uma inadequação. O interessante é que, para o escritor que não
deseja se enganar, a escrita nunca promete nada: a passagem do caos
das sensações para a expressa limitação do texto escrito será sempre
um tiro no escuro.
colaboraram nesta edição

André S. Musskopf é professor da pós-graduação em Teologia da


Faculdades EST e autor de Via(da)gens teológicas – itinerários
para uma teologia queer no Brasil (Fonte Editorial, 2012)

Berenice Bento é professora de Ciências Sociais da UFRN e autora


de A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experi ência
transexual (EDUFRN, 2014)

Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da UFRJ

Franthiesco Ballerini é jornalista e coordenador geral da Academia


Internacional de Cinema

Leandro Colling é professor da UFBA, coordenador do grupo de


pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e organizador de Stonewall
40 + o que no Brasil? (EDUFBA, 2011)

Manuel da Costa Pinto é jornalista, crítico literário e mestre em


Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP Miguel Nassif é
fotógrafo

Rogério Diniz Junqueira é pesquisador do INEP e autor de


Diversidade sexual e educação: problematizações sobre a
homofobia nas escolas (Unesco, 2009)

Oswaldo Giacoia Junior é professor livre-docente no


Departamento de Filosofia da Unicamp

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