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Leituras de Pierre Bourdieu Na Pesquisa em Educação

Este documento apresenta um resumo de 18 capítulos sobre leituras da obra de Pierre Bourdieu aplicadas à pesquisa em educação. Os capítulos abordam temas como a formação de professores, desigualdades educacionais, educação em ciências e matemática, gênero e educação, entre outros. O documento é organizado por Darbi Masson Suficier e Luci Regina Muzzeti e reúne trabalhos de pesquisadores e estudantes de diferentes áreas e localidades.

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Marlon Bambirra
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Leituras de Pierre Bourdieu Na Pesquisa em Educação

Este documento apresenta um resumo de 18 capítulos sobre leituras da obra de Pierre Bourdieu aplicadas à pesquisa em educação. Os capítulos abordam temas como a formação de professores, desigualdades educacionais, educação em ciências e matemática, gênero e educação, entre outros. O documento é organizado por Darbi Masson Suficier e Luci Regina Muzzeti e reúne trabalhos de pesquisadores e estudantes de diferentes áreas e localidades.

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Leituras de

Pierre
Bourdieu
na Pesquisa em
Educação

Darbi Masson Suficier


Luci Regina Muzzeti
Organizadores
Darbi Masson Suficier
Luci Regina Muzzeti
(Organizadores)

Letraria
Araraquara
2020
LEITURAS DE PIERRE BOURDIEU
NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO
PROJETO EDITORIAL
Letraria

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Letraria

CAPA
Letraria

REVISÃO
Letraria

SUFICIER, Darbi Masson; MUZZETI, Luci Regina (org.).


Leituras de Pierre Bourdieu na Pesquisa em Educação.
Araraquara: Letraria, 2020.

ISBN: 978-65-86562-26-2

CDD: 370 – Educação

1. Pierre Bourdieu. II. Título


Conselho editorial
Luciana Ponce Bellido - UFG
Maria Regina Momesso - UNESP Bauru
William Alexandre Manzan - UFTM/CEFORES
| Sumário
Prefácio 9
Darbi Masson Suficier
Luci Regina Muzzeti

A formação do professor de matemática pelo PROFMAT: 15


inculcação e recrutamento no campo
José Vilani de Farias
Denise Silva Vilela

Bourdieu na Educação em Ciências e Matemática: 37


explorações empíricas e teóricas de um grupo de pesquisa
Luciana Massi
Matheus Monteiro Nascimento
Camila Toledo Piza
Carlos Henrique Aparecido Alves Moris
Julia Beatriz Giaccheto Barbieri
Gabriela Agostini

Atividades acadêmico-científico-culturais nos cursos de 58


licenciatura em Matemática da UNESP: estratégia de
inculcação de um habitus
Vânia Cristina da Silva Rodrigues

A constituição do habitus profissional e dos saberes dos 79


professores: uma análise sobre o campo da formação
docente à luz das concepções de Pierre Bourdieu
Luiz Gustavo Bonatto Rufino
Samuel de Souza Neto

Reflexões bourdieusianas sobre a escola e a experiência 101


educacional vivenciada por pessoas surdas
Ernani Nunes Ribeiro
Edson Silva

6|
Por uma abordagem bourdieusiana para o estudo de 120
trajetórias: relações entre a origem social e as experiências
educacionais de estratificações sociais populares
Jéssica dos Anjos Januário

Contribuições da teoria bourdieusiana para a compreensão 138


das desigualdades escolares e a ideologia do dom
Hellen Cristina Xavier da Silva Mattos
Adelino Francklin
Maria Cristina da Silveira Galan Fernandes

O conceito de habitus de Bourdieu e a pedagogia histórico- 156


crítica
Rafael Oliveira de Antonio

O habitus feito corpo e o ensino da Educação Física escolar 167


Fábio Tadeu Reina
Luci Regina Muzzeti
Willian Gabriel Felício

Trajetória profissional: um relato da mulher/profissional em 182


um universo masculino
Flávia Baccin Fiorante
Cassiano Ferreira Inforsato
Luci Regina Muzzeti

A construção social do corpo da mulher 196


Katiusca Marusa Cunha Dickow

Violência doméstica e familiar contra as mulheres: 209


a dominação masculina e a dimensão simbólica
Mariana Passafaro Mársico Azadinho
Débora Raquel da Costa Milani

7|
Desvelando as questões de gênero dentro da escola 223
Maria Fernanda Celli de Oliveira
Laís Inês Sanseverinato Micheleti
Andreza Olivieri Carmignolli Lopes

Desigualdade social e gênero: uma reflexão sobre a 241


violência simbólica
Angelita de Lima Oliveira
Pamela Alves Batista
Débora Raquel da Costa Milani
Paulo Rennes Marçal Ribeiro

Perspectivas feministas na criminologia e no sistema 252


penal: uma reflexão a partir da dominação masculina de
Pierre Bourdieu
Irene Rogatti Portero Ferrari
Paulo Rennes Marçal Ribeiro

Bourdieu e (o conceito de) literatura: o capital cultural entre 265


o cânone e o ensino
Isabela Boaventura Pimenta Gomide
Wellington Furtado Ramos

Poder judiciário e o ensino religioso nas escolas públicas: 290


a face da laicidade à brasileira aplicada à educação básica
via ADI nº 4439
Luiz Carlos de Souza Junior

Disputas entre poderes: controle judicial e o direito à 312


educação no campo do poder
Adriana Duarte de Souza Carvalho da Silva
Joyce Mary Adam
Renan Ramos Chaves

Sobre quem organiza 332

Sobre quem escreve 334

8|
| Prefácio
Darbi Masson Suficier e Luci Regina Muzzeti

Os textos aqui reunidos constituem-se de um recorte das leituras


da obra de Pierre Bourdieu presentes nas pesquisas em Educação.
São trabalhos de pesquisadores experientes e de estudantes, da
graduação ao doutorado, de várias áreas, com formações diversas
(Ciências Sociais, Pedagogia, Direito, Química, Matemática, Letras,
dentre muitas outras) e de diferentes localidades do país. Isso
só é possível pela repercussão da obra de Bourdieu e por sua
fortuna crítica, permeada por aproximações, reflexões e análises.
Os 18 capítulos aqui apresentados aos leitores tratam de temas
tradicionais da Sociologia da Educação, como a formação de
professores, as desigualdades culturais e a reprodução escolar;
a leitura bourdieusiana também faz-se presente em áreas como
a Educação em Ciências e o Direito Educacional; as questões de
gênero surgem como uma temática que, se não mais emergente,
ainda é ressaltada pela sua urgência e atualidade; outras áreas e
temas apresentam possibilidades da utilização do referencial de
Bourdieu, como na Literatura e no Direito Penal.

Em “A formação do professor de Matemática pelo PROFMAT:


inculcação e recrutamento no campo”, José Vilani de Farias e Denise
Silva Vilela analisam a inserção e o posicionamento do Mestrado
Profissional em Matemática em Rede Nacional (PROFMAT) no campo
científico. Os autores apontam que, por meio de sua composição
institucional (UFRJ, UFMG, USP, UNICAMP, dentre outras) e de
qualificado quadro profissional, o PROFMAT ocupa uma posição
de destaque no campo, incomum para mestrados profissionais e/
ou em rede. Tal posicionamento é reproduzido pelo recrutamento e
pela formação oferecida que, segundo os autores, objetivam inculcar
nos agentes uma visão conteudista do ensino da Matemática.

9|
Luciana Massi, Matheus Monteiro Nascimento, Camila Toledo
Piza, Carlos Henrique Aparecido Alves Moris, Julia Beatriz Giaccheto
Barbieri e Gabriela Agostini apresentam em “Bourdieu na Educação
em Ciências e Matemática: explorações empíricas e teóricas de
um grupo de pesquisa” o grupo de pesquisa que compõem e que
realiza pesquisas empíricas e teóricas em Educação em Ciências e
Matemática com a utilização do corpus conceitual e de uma leitura
crítica do referencial bourdieusiano. Por meio dos prolongamentos
críticos à teoria de Bourdieu propostos por Lahire (2003) e da
ampliação do corpus conceitual, como a utilização da noção de
capital da ciência (science capital) de Louise Archer, os pesquisadores
procuram compreender a constituição da área de Educação em
Ciências e seu posicionamento no campo científico.

Vânia Cristina da Silva Rodrigues apresenta uma análise sobre


as atividades acadêmico-científico-culturais (AACC) dos cursos de
licenciatura em Matemática da UNESP e seu impacto no capital
cultural dos estudantes. No texto “Atividades Acadêmico-Científico-
Culturais nos cursos de Licenciatura em Matemática da UNESP:
estratégia de inculcação de um habitus”, é ressaltado que as práticas
culturais proporcionadas pelas AACC tendem a reestruturar o habitus
dos estudantes e a própria relação estabelecida com a Matemática e
com o campo científico, posto que, dentre as atividades desenvolvidas,
estão as pesquisas de iniciação científica, a participação em eventos
acadêmicos e a inserção em grupos de pesquisa.

Também inserido na temática da formação de professores,


Luiz Gustavo Bonatto Rufino e Samuel de Souza Neto discutem
a constituição de um habitus profissional docente no ensaio
“A constituição do habitus profissional e dos saberes dos professores:
uma análise sobre o campo da formação docente à luz das concepções
de Pierre Bourdieu”. Os autores exploram a transição que ocorre na
formação docente, de estudantes a professores, e a inserção nos
campos científico (formação) e escolar (profissional).

10 |
Em “Reflexões bourdieusianas sobre a escola e a experiência
educacional vivenciada por pessoas surdas”, Ernani Nunes Ribeiro
e Edson Silva retomam o tema das desigualdades sócioculturais
no ambiente escolar a partir da reflexão sobre a escolarização de
pessoas surdas.

O estudo das trajetórias, tema da Sociologia da educação brasileira


com forte influência bourdieusiana, faz-se presente com o capítulo
de Jéssica dos Anjos Januário, “Por uma abordagem bourdieusiana
para o estudo de trajetórias: relações entre a origem social e as
experiências educacionais de estratificações sociais populares”.
A autora aponta, ao sintetizar um conjunto de pesquisas, algumas
das relações existentes entre a origem social e as experiências
educacionais presentes nas camadas populares.

Os autores de “Contribuições da teoria bourdieusiana para a


compreensão das desigualdades escolares e a ideologia do dom”,
Hellen Cristina Xavier da Silva Mattos, Adelino Francklin e Maria
Cristina da Silveira Galan Fernandes, destacam a relação que há
entre a violência simbólica e o capital cultural na reprodução da
ideologia do dom.

O tema das desigualdades escolares naturalizadas em ambiente


escolar também permeia as reflexões apresentadas por Rafael
Oliveira de Antonio em seu ensaio “O conceito de habitus de
Bourdieu e a Pedagogia Histórico-Crítica”. Ao relacionar o conceito
bourdieusiano de habitus com o de segunda natureza, de Gramsci,
o autor aponta algumas possibilidades analíticas entre a sociologia
disposicionalista de Bourdieu e a Pedagogia Histórico-Crítica.

Instância do habitus, a hexis corporal é explorada por Fábio


Tadeu Reina, Luci Regina Muzzeti e Willian Gabriel Felício em
“O habitus feito corpo e o ensino da Educação Física escolar”. Flávia
Baccin Fiorante, Cassiano Ferreira Inforsato e Luci Regina Muzzeti
utilizam o conceito de habitus para compreender a trajetória de uma

11 |
professora de Educação Física e as relações estabelecidas com as
práticas esportivas. No capítulo “Trajetória profissional: um relato da
mulher/profissional em um universo masculino”, os autores apontam
que, como única docente mulher de um curso superior de Educação
Física, a professora tem uma relação de proximidade com diversos
esportes, o que “está relacionado com um habitus esportivo”.

Desde a publicação de A dominação masculina em 1998 (publicado


no Brasil em 1999), as menções a Bourdieu nos estudos de gênero
fazem-se presentes tanto como arcabouço teórico como objeto de
crítica (Cf. CORRÊA, 1999). As noções de dominação masculina e
de violência simbólica presentes na obra do autor são amplamente
utilizadas como ferramentas analíticas na busca pela compreensão
das relações e das desigualdades de gênero.

Um exemplo é o ensaio “A construção social do corpo da mulher”,


de Katiusca Marusa Cunha Dickow. Para a autora, em diálogo com
expoentes dos estudos de gênero (Butler, Louro, Weitz, dentre outras),
tem-se, nos corpos das mulheres, a inscrição social das diferenças
de gênero ou, na expressão de Bourdieu (1999, p. 9), “um longo
processo de socialização do biológico e de biologização do social”.

Ao adentrar o tema da violência doméstica e familiar contra as


mulheres, Mariana Passafaro Mársico Azadinho e Débora Raquel
da Costa Milani discutem o papel da violência simbólica presente
nas relações de gênero e as consequências para suas vítimas. Para
as autoras de “Violência doméstica e familiar contra as mulheres:
a dominação masculina e a dimensão simbólica”, é necessário
o combate às relações autoritárias muitas vezes presentes nas
relações de gênero nos ambientes domésticos; para isso, destacam
a importância da educação e das ações educativas nas diferentes
instâncias da sociedade.

Em “Desvelando as questões de gênero dentro da escola”,


Maria Fernanda Celli de Oliveira, Laís Inês Sanseverinato Micheleti
e Andreza Olivieri Carmignolli Lopes apresentam o resultado de

12 |
uma pesquisa realizada junto a três profissionais de uma escola de
educação infantil. Para as autoras, as relações estabelecidas pelas
participantes da pesquisa em relação às questões de gênero nos
ambientes escolar e doméstico são contraditórias; por isso, afirmam
que a dominação masculina faz-se presente em suas falas.

Em “Desigualdade social e gênero: uma reflexão sobre a violência


simbólica”, Angelita de Lima Oliveira, Pamela Alves Batista, Débora
Raquel da Costa Milani e Paulo Rennes Marçal Ribeiro apontam para
as desigualdades sociais desencadeadas pela violência simbólica
presente nas relações de gênero. Como consequência dessa relação,
ressaltam as diferenças salariais existentes entre homens e mulheres
no Brasil.

O ensaio “Perspectivas feministas na criminologia e no sistema


penal: uma reflexão a partir da dominação masculina de Pierre
Bourdieu”, de Irene Rogatti Portero Ferrari e Paulo Rennes Marçal
Ribeiro, do Programa de Pós-graduação em Educação Sexual da
UNESP, apresenta uma reflexão sobre a dominação masculina no
âmbito da criminologia e do sistema penal, como no momento da
atribuição e especificidade dos crimes atribuídos às mulheres por
viés androcêntrico.

Isabela Boaventura Pimenta Gomide e Wellington Furtado Ramos,


do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens da UFMS,
discutem em “Bourdieu e (o conceito de) literatura: o capital cultural
entre o cânone e o ensino” a literatura e seu ensino – também
referido como “letramento literário” – por meio do conceito de capital
cultural.

O estudo do Direito Educacional surge como uma nova área


de reverberação do corpus conceitual de Bourdieu. Luiz Carlos de
Souza Junior parte das discussões realizadas no Supremo Tribunal
Federal sobre o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras por
meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4439/DF (2017).

13 |
Para o autor de “Poder Judiciário e o Ensino Religioso nas escolas
públicas: a face da laicidade à brasileira aplicada à educação básica
via ADI nº 4439”, a discussão sobre a laicidade da escola pública
e, consequentemente do Estado, faz emergir aquilo que Bourdieu
apontou diversas vezes: a não neutralidade do sistema de ensino.

Em “Disputas entre Poderes: controle judicial e o direito à


educação no campo do poder”, Adriana Duarte de Souza Carvalho
da Silva, Joyce Mary Adam e Renan Ramos Chaves realizam uma
análise textual, com o auxílio do software NVIVO 12, de decisões
proferidas por desembargadores do TJ-SP sobre o direito à educação
pública infantil. Para a compreensão do controle judicial das políticas
públicas, os autores utilizam-se do conceito de campo de poder,
enfatizado por Bourdieu (2014) em Sobre o Estado.

As pesquisas e reflexões aqui apresentadas contribuem com as


análises e leituras da obra de Bourdieu na área da Educação. São
leituras atuais, disponíveis a todos os interessados no entendimento
das relações entre educação e sociedade. Indicamos a leitura e
almejamos que ela suscite inúmeras provocações e reflexões.

Boa leitura a todos!

| Referências
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999.

BOURDIEU, P. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras,


2014.

CORRÊA, M. O sexo da dominação. Novos Estudos Cebrap, São


Paulo, n. 54, p. 43-54, jul. 1999.

LAHIRE, B. O homem plural: as molas da acção. Lisboa: Instituto


Piaget, 2003.

14 |
A formação do professor de
Matemática pelo PROFMAT:
inculcação e recrutamento
no campo
José Vilani de Farias
Denise Silva Vilela

| Introdução
O presente capítulo tem como objeto de estudo o Programa
de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional,
o PROFMAT. Nosso objetivo é apresentar uma perspectiva
sociológica desse programa a partir de uma análise das práticas dos
agentes, fundamentada na teoria do sociólogo Pierre Bourdieu. Os
documentos de pesquisa foram constituídos por meio de entrevistas
com os gestores do programa, que são pesquisadores na área da
Matemática, e entrevista com os egressos do PROFMAT, além de
outros documentos oficiais do Programa como portarias e relatórios.

O PROFMAT é um Programa Nacional de Pós-graduação, em


vigor desde 2011, que foi idealizado dentro de um contexto político-
educacional que favoreceu sua implantação. O estado em que se
encontrava o campo educacional, em termos de políticas públicas
para a formação de professores em nível de pós-graduação, favoreceu
a criação de um programa com esse perfil: foco na formação de
professores do ensino básico com incentivo ao ensino a distância.
Além disso, no campo da Matemática, havia alguns matemáticos,
destacados agentes do campo, que vinham trabalhando com
iniciativas no âmbito da formação do professor de Matemática, como
o Programa de Aperfeiçoamento de Professores de Matemática
do Ensino Médio (PAPMEM), iniciado já na década de 1990, e
as Olimpíadas Brasileiras de Matemática das Escolas Públicas
(OBMEP), que teve sua primeira edição em 2005 e que culminou
como o Programa OBMEP na escola em 2014.

15 |
Os benefícios recebidos pelo Programa, inclusive financeiros,
deram-se por suas características e pelos objetivos a que se propõe.
Este foi um Programa semipresencial que, sob a coordenação da
Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e apoiado pelo Instituto
de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), foi implantado em todos
os estados da federação com a parceria de várias Instituições de
Ensino Superior reconhecidas no país. Destinado aos professores
do ensino básico, atende a política externa e interna de valorização
desse nível de ensino. O PROFMAT, dentro do contexto brasileiro,
começou grande: pelo número de instituições parceiras, mais de
70, pelo número de polos de aulas presenciais que ultrapassou a
marca de 100, pelo número de alunos atendidos contabilizados em
mais de 14 mil matrículas, pelos mais de 5 mil títulos emitidos e
pelos investimentos na sua implantação.

Pelo número de mestres que o programa certifica anualmente –


cerca de 800 – podemos inferir o quanto ele atende aos objetivos
do Plano Nacional de Educação – PNE (2011-2020) – de “formar, em
nível de pós-graduação, 50% (cinquenta por cento) dos professores
da educação básica, até o último ano de vigência deste PNE” (BRASIL,
2010, p. 48).

Este capítulo apresenta alguns resultados da pesquisa de Farias


(2017) e visa destacar, pela análise do PROFMAT: a valorização
da Matemática, as estratégias relacionadas à manutenção de um
discurso ortodoxo e de recrutamento de novos agentes no campo
da Matemática. Será ressaltada a estruturação do espaço científico
e como essa estrutura efetivamente participa da manutenção e
conservação dos valores e ideias do campo.

Este artigo está entremeado por análises e se organiza a partir


de uma discussão sociológica das características e objetivos do
PROFMAT, declarados nos documentos oficiais disponíveis nos
sites. A análise está fundamentada nos conceitos de campo, capital
e doxa da teoria de Bourdieu. Nos apoiaremos no trabalho de Farias

16 |
e Vilela (2019) para o desenho do campo da Matemática. A proposta
desse texto é interpretar as práticas dos agentes, organizadores
do PROFMAT, nesse espaço social, o campo da Matemática. Que
formação de professores de Matemática o PROFMAT oferece?
Qual modelo de professor, de aluno e de currículo este Programa
estabelece?

| O campo como espaço hierarquizado


de posições
O campo para Bourdieu é esse espaço social de lutas, de agentes
concorrentes em disputa. Possuidores dos capitais específicos do
campo, esses agentes jogam o jogo, com as regras e os trunfos
que têm. Eles jogam o jogo que fazem. Adotando estratégias e
tomando decisões, conforme sua posição no campo e os capitais
que possuem, lutam para ser eles mesmos um modelo dentro do
campo.

Esses são alguns dos elementos que constituem um campo e que


foram apresentados por Farias e Vilela (2019) quando propuseram
com detalhes um desenho do campo da Matemática. É nosso intento
percorrer esse mesmo caminho e apontar, seguindo Bourdieu (2013a,
p. 118), que “no interior de cada um dos campos há uma hierarquia
social dos objetos [...]”; vamos, dentro de uma interpretação, de um
ponto de vista, apresentar a estrutura hierarquizada do campo da
Matemática no qual o PROFMAT foi se constituindo e que posição
o Programa ocupa nesse espaço.

O destaque do PROFMAT deve-se não apenas à quantidade


das instituições parceiras, mas à qualidade reconhecida dessas
instituições: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de São
Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) etc.
Na hierarquia acadêmica, essas instituições são classificadas e
reconhecidas como as melhores instituições de ensino superior

17 |
do país, ocupando as dez primeiras posições no ranking das
universidades brasileiras1. Outro destaque se dá pela relevância das
instituições, dentro das quais o Programa foi gestado, idealizado e
implantado: o Instituto de Matemática Pura e Aplicada – IMPA – e
a Sociedade Brasileira de Matemática – SBM.

O IMPA é uma instituição reconhecida nacional e internacionalmente


pela qualidade de suas pesquisas em Matemática; isso é expresso no
discurso dos que fazem a instituição: “desde sua criação, em 1952,
o IMPA tem se caracterizado como uma instituição de excelência
apoiada na extraordinária qualidade de seus pesquisadores”
(INSTITUTO DE MATEMÁTICA PURA E APLICADA, 2010b, p. 8).
Também encontramos esse mesmo discurso na mídia, feito por
jornalistas, que afirmam que o IMPA é o “principal centro de ensino
e de produção de pesquisas em Matemática da América Latina,
reconhecido em todo o mundo” (COSTA, 2012). Para compreender a
importância do Instituto no campo acadêmico da Matemática, Farias
(2017) apresenta a excelente posição ocupada pelo IMPA, no cenário
internacional, entre instituições internacionalmente reconhecidas,
como Berkeley e Harvard.

A SBM foi fundada em 1969 durante o VII Colóquio Brasileiro


de Matemática. Nesse momento havia, por parte de alguns
pesquisadores, o desejo de unificar as sociedades estaduais de
Matemática: “pretendeu-se estabelecer um acordo de cavalheiros
segundo o qual as sociedades estaduais deixariam de existir para
dar lugar ao nascimento de uma única sociedade que representaria
a todos” (SANTOS, 2018, p. 48). Isso mostra o grau de importância
que ganha essa Sociedade de matemáticos, já no seu processo de
criação. Segundo Bourdieu (2004, p. 69):

1 De acordo com a revista Times High Education disponível em: https://exame.abril.


com.br/carreira/brasil-melhora-em-ranking-das-melhores-universidades-do-mundo/.
Acesso em: 28 abr. 2020.

18 |
Uma sociedade disciplinar indica a condição de um grupo reconhecido
como socialmente distinto e de uma identidade social e poderá
contribuir para fazer funcionar, no seio do campo disciplinar, algo
como uma comunidade que gere parte dos interesses comuns,
para funcionar.

Desde a sua implantação a SBM teve sua sede nas dependências


do IMPA e, em quase todas as equipes de gestão, houve a participação
de pesquisadores do Instituto, seja como diretor ou vice-diretor, além
da participação nos conselhos.

Na gestão de Jacob Palis Junior, iniciada em 1979, a direção do


IMPA projetava um bom espaço para sediar a SBM em seu novo
prédio, que estava sendo construído. O então presidente afirma “[...]
insisti com o diretor do IMPA, Lindolpho de Carvalho Dias, e meus
colegas quanto à importância de um espaço nobre e bem visível
para a SBM no andar térreo do novo prédio”. (SANTOS, 2018, p. 53).

O espaço nobre a que se refere Santos (2018) é o IMPA.


Nobreza e visibilidade são características de uma elite, uma elite
de matemáticos, um grupo de destaque no campo da Matemática
brasileira.

Dentro do que Farias (2017) classificou como grupos polarizados


do campo – Pesquisadores de Elite e Pesquisadores PROFMAT IMPA
–, são os Pesquisadores de Elite que impõem esse modo de ver, de
fazer e de apreciar a Matemática. Nesse sentido, cada agente atua
dentro do campo de acordo com a sua posição, de acordo com os
seus capitais e interesses. Neste âmbito, o presente artigo discute
o que esta elite científica reproduz na gestão pública em termo das
estratégias de dominação e perpetuação.

As estratégias dos Pesquisadores de Elite se dão no sentido de


investir nos capitais mais valorizados, tais como: na produção de
artigos; em artigos escritos em língua estrangeira; nas orientações
de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado; na formação e

19 |
atuação profissional no exterior; na formação e atuação profissional,
se no Brasil, nas melhores universidades – aquelas posicionadas
entre as dez melhores do país; nos prêmios e títulos nacionais e
internacionais; e no reconhecimento, por meio dos prêmios e títulos,
por instituições consagradas no Brasil. Enquanto os pesquisadores
envolvidos com o PROFMAT investem: na produção de artigos
escritos em língua portuguesa; na produção de livros escritos em
português ou em língua estrangeira – em sua maioria destinados
aos professores do ensino básico ou alunos de graduação –;
na ocupação de cargos e funções em reconhecidas instituições
brasileiras; e nos prêmios e títulos nacionais e internacionais.

A trajetória de investimento dos dois grupos de pesquisadores,


[...] mostra-se em oposição uma com a outra. [...] um grupo elege
determinados tipos de capitais que merecem ser investidos, já o
outro grupo faz uma escolha inversa, ou seja, elege esses mesmos
capitais como não merecedores de grandes investimentos. De outro
modo, [...] interpretamos esse movimento como a manutenção
das distâncias de distinção, em que, enquanto os Pesquisadores
PROFMAT IMPA parecem chegar atrasados aos capitais mais
valorizados, os Pesquisadores de Elite abandonam determinados
capitais pela desvalorização, pela perda de raridade, que ocorre
quando se tornam alcançáveis por outros grupos. (FARIAS, 2017,
p. 186).

As estratégias utilizadas na luta pela conservação ou subversão


da ordem do campo, atribuídas respectivamente aos dominantes
e aos dominados, tomam, de acordo com Lahire (2002, p. 48), “a
forma de um conflito entre ‘antigos’ e ‘modernos’, ‘ortodoxos’ e
‘heterodoxos’”.

Se considerarmos, portanto, o IMPA, a SBM e algumas Instituições


de ensino superior, já aqui mencionadas, como reconhecidas
e valorizadas no campo acadêmico, em especial no campo da
Matemática, também consideramos reconhecidos e valorizados os
que delas participam. Interpretamos isso de acordo com o que nos
aponta Bourdieu (2014, p. 36) de que as mais altas instituições são

20 |
aquelas que levam às mais altas posições sociais e acadêmicas.
Pelo exposto, acreditamos pertinente considerar os pesquisadores
do IMPA como expoentes no campo da Matemática no Brasil. Essa
afirmação vai ao encontro do que nos afirma Silva (2009, p. 915):
“pertencer ao quadro de pesquisadores desse instituto é quase uma
garantia de se alcançar entre a comunidade de matemáticos do
país um lugar de destaque”.

| Um sentido sociológico para o


PROFMAT
Apresentamos o PROFMAT como caso empírico que dialoga,
para além do senso comum, mas no sentido sociológico da questão,
na estruturação do campo da Matemática e como ele efetivamente
participa da reprodução das crenças no campo por meio das ações
de seus agentes.

Assim como a SBM tem sua sede nas dependências do IMPA,


podemos dizer que o PROFMAT é sediado pelo IMPA no sentido de
que alguns pesquisadores desse instituto participaram das primeiras
equipes gestoras do PROFMAT: Marcelo Viana, Elon Lages Lima,
Jacob Palis Júnior e Paulo César. Com exceção de Paulo César, os
demais ocuparam o cargo de diretor do IMPA: Jacob Palis Júnior
ocupou o cargo por 10 anos (1993 a 2003), Marcelo Viana é o atual
diretor do Instituto, assumindo o cargo em 2015, como primeiro
diretor doutor egresso do IMPA. Marcelo Viana e Jacob Palis foram
os que ocuparam cargos de gestão no instituto por mais tempo,
ficando atrás somente do pesquisador Leopoldo Camacho. De
acordo com Farias (2017, p. 191), Elon Lajes “ocupou a direção
do Instituto por três vezes: as duas primeiras em substituição ao
Professor Lindolpho Carvalho nos períodos de 1969 a 1971 e 1978
a 1979 e uma terceira vez quando eleito para o período de 1989 a
1993”. Considerando a relevância do Instituto, é natural pensarmos
no valor do capital acadêmico e social que essa posição, de direção
do PROFMAT, representa.

21 |
O professor Elon Lages Lima foi um dos idealizadores do
PROFMAT. Esse pesquisador foi uma figura de destaque no campo
da Matemática, homenageado com vários prêmios, como o prêmio
Jabuti e o prêmio Anísio Teixeira. Após sua morte, em 2017, para
homenageá-lo foi instituído o prêmio Elon Lages Lima, que tem como
objetivo fomentar a produção bibliográfica na área de Matemática.
Nesse aspecto, interpretamos que tornar-se distinto não se dá,
apenas, ao receber prêmios, mas, a maior distinção é : “[...] a maneira
de usar bens simbólicos [...] [que] constitui um dos marcadores
privilegiados da ‘classe’, ao mesmo tempo que [é] o instrumento por
excelência das estratégias de distinção” (BOURDIEU, 2013b, p. 65).

É nesse espaço social e com esses agentes que um mestrado


profissional em Matemática é instituído. O PROFMAT já nasce
distinto, não só pelo pioneirismo de um Programa em rede e para
todo o território nacional, mas pela distinção dos seus criadores
e pelos privilégios, inclusive financeiros, conseguidos por essa
distinção. Portanto, ele ocupa uma posição privilegiada nessa
estrutura hierárquica do campo da Matemática.

Os privilégios e o domínio dos que fazem o PROFMAT, e do próprio


PROFMAT, dentro do campo da Matemática, pode ser interpretado
por meio da ação impositiva e comprometida de um currículo para
formação de professores do ensino básico. Essa imposição ocorre
na medida em que os que implantaram o Programa, agentes e
instituições, não têm experiência em pesquisa, comprovada por
meio da produção de artigos, livros e trabalhos científicos, que
discutam o tema da formação de professores, mas mesmo assim
conseguem apoio governamental e institucional para adotar tal
modelo curricular. O currículo está comprometido com um tipo
de conhecimento centrado no fazer dos matemáticos, ainda que
a profissão, os interesses, a área de pesquisa dos matemáticos
“concorre muito mais para diferenciar do que para identificar as
duas profissões” (MOREIRA; CURY; VIANNA, 2005, p. 31).

22 |
Ocorre, portanto, a imposição de um modelo de currículo que
prioriza, na formação do professor de Matemática do ensino básico,
o conteúdo específico da disciplina:

Art. 2o O PROFMAT tem como objetivo proporcionar formação


Matemática aprofundada e relevante ao exercício da docência na
Educação Básica, visando dar ao egresso a qualificação certificada
para o exercício da profissão de professor de Matemática.
(SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA, 2019, p. 1).

Produz-se, por esse discurso, a crença de que a má formação do


professor deve-se à deficiência no domínio do conteúdo específico
de Matemática e, por conseguinte, somente os conteúdos de
Matemática são importantes, necessários e suficientes além do
que os matemáticos são os únicos capazes de fazer a mudança
para melhorar o ensino de Matemática no país:

Estimular a melhoria do ensino de Matemática em todos os


níveis; qualificar professores de Matemática da educação básica
[...] com ênfase no domínio aprofundado de conteúdo; buscar a
valorização profissional do professor por meio do aprimoramento
de sua formação. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA, 2013,
p. 15).

Esse discurso vai de encontro ao que defendem pesquisadores


como Tardif (2002), Shulman (2005), Gatti (2009), entre outros,
acerca da formação do professor de Matemática. Para eles, o
conhecimento específico não é suficiente, sendo imprescindível a
formação artística, filosófica e em ciências humanas.

Na proposta de “qualificação certificada para o exercício da


profissão de professor de Matemática”, feita pela SBM, não se
considera as pesquisas desenvolvidas, há mais de 30 anos na área
de formação de professores. Nossa análise baseia-se ao considerar
os seguintes indicadores: a grande curricular do programa, que
dentre as disciplinas obrigatórias não há nenhuma voltada para

23 |
discutir o ensino de Matemática dentro de uma perspectiva didática,
sociológica ou filosófica; o sistema avaliativo dentro do programa,
seja para ingresso, seja para a qualificação ou no desenvolvimento
do curso, que ocorre por meio de provas escritas sobre o conteúdo
específico de Matemática. Como exemplo, temos no edital para o
exame nacional de acesso de 2019 as orientações em relação aos
conhecimentos exigidos:

As questões do Exame avaliarão, em especial, os seguintes itens


específicos: a) Proporcionalidade e Porcentagem; b) Equações
do Primeiro Grau; c) Equações do Segundo Grau; d) Teorema de
Pitágoras; e) Áreas; f) Razões Trigonométricas; g) Métodos de
Contagem; h) Probabilidade; i) Noções de Estatística; j) Triângulos:
Congruências e Semelhanças. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE
MATEMÁTICA, 2019, p. 5).

Exemplos de questões constantes no Exame Nacional de Acesso


podem ser vistos na figura 1 a seguir, em que é apresentada a
avaliação com o gabarito. Nós omitimos as soluções e apresentamos
apenas duas questões.

Figura 1 – Exame Nacional de Acesso 2019

Fonte: Sociedade Brasileira de Matemática2

2 Disponível em: https://www.profmat-sbm.org.br/wp-content/uploads/


sites/23/2018/10/Gabarito-ENA-2019-com-solu%c3%a7%c3%b5es.pdf. Acesso em:
20 jun. 2020.

24 |
Em relação ao exame de qualificação, de acordo com o regimento
do Programa, segue-se a mesma proposta de questões sobre
conhecimentos específicos de Matemática: “O EXAME, elaborado
pela Comissão Nacional de Avaliação dos Discentes do PROFMAT,
consistirá de uma única avaliação escrita versando sobre o conteúdo
das Disciplinas Básicas MA11, MA12, MA13, MA14” (SOCIEDADE
BRASILEIRA DE MATEMÁTICA, 2019, p. 1). A seguir, na figura 2,
apresentamos o Exame de Qualificação para o primeiro semestre
de 2020.

Figura 2 – Exame de qualificação 2020.1

Fonte: Sociedade Brasileira de Matemática3

As disciplinas MA11, MA12, MA13, MA14, a que se refere as


normas do exame de qualificação são respectivamente: Números e
funções reais, Matemática discreta, Geometria e, por fim, Aritmética.

Ao longo do curso, os alunos são submetidos às avaliações por


disciplina. Na figura 3, a seguir, temos um exemplo de avaliação da
disciplina Números e funções (MA11).

3 Exame de qualificação. Disponível em: https://www.profmat-sbm.org.br/wp-content/


uploads/sites/23/2020/03/ENQ_2020.1_Gabartito.pdf. Acesso em: 10 jun. 2020.

25 |
Figura 3 – Avaliação da disciplina Números e funções (MA11).

Fonte: Sociedade Brasileira de Matemática

A imposição de um discurso referente a um modelo de formação


docente que privilegia o conteúdo específico da disciplina, como
se viu, está presente em todo o processo avaliativo do Programa,
do acesso à qualificação. Porém, esse discurso também está
fortemente presente na grade curricular. A figura 4 mostra a grade
das disciplinas obrigatórias do PROFMAT.

Figura 4 – Matriz curricular do PROFMAT

Fonte: Sociedade Brasileira de Matemática4

4 Normas Acadêmicas do Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional


PROFMAT. Disponível em: https://www.profmat-sbm.org.br/wp-content/uploads/
sites/23/2016/08/Normas_Academicas_do_PROFMAT_2016.pdf. Acesso em: 20
jun. 2020.

26 |
Essa imposição de um modelo formativo docente ocorre, objetiva
e internamente ao campo da Matemática, por meio do currículo, do
processo avaliativo, da formação dos professores formadores, das
referências bibliográficas etc. Essa “ênfase no domínio aprofundado
de conteúdos”, de acordo com Farias (2017, p. 107), norteia e é o
centro de todas as ações do programa. No entanto, esses efeitos
impositivos do campo da Matemática ultrapassam os limites desse
espaço.

| Os efeitos do campo da Matemática: o


PROFMAT no campo acadêmico
O PROFMAT torna-se, dentro dessa estrutura hierárquica do
campo, diferente dos demais mestrados profissionais ofertados
pelas instituições de ensino superior. Essa distinção é sentida pelo
tratamento dispensado a ele pelas instituições de fomento e pelos
pesquisadores de instituições reconhecidas nacionalmente, inclusive
pesquisadores de outras áreas. Considerando a análise sociológica
que embasa esta pesquisa, nessa relação entre os mestrados
profissionais, o PROFMAT torna-se distinto: pela distinção dos seus
agentes e pelo tratamento distinto que recebe.

Se para Bourdieu (2013, p. 118): “[...] é dominante quem consegue


impor uma definição da ciência”, compreendemos os gestores do
PROFMAT como dominantes no campo da Matemática, pois eles
impõem uma definição de Matemática. E, para além do campo da
Matemática, eles impõem um modelo de formação de professor.
Constatamos isso na fala de um gestor do Mestrado Profissional
em Física:

Um programa incentivado pela Capes e nela envolveu-se a Sociedade


Brasileira de Física nos mesmos moldes, espelhando o que a
sociedade Matemática e o Instituto de Matemática pura e aplicada
tinha[m] proposto. [...] o objetivo desse Programa, PROFÍSICA, como
é o do PROFMAT, é dar uma formação complementar ou atualização
de formação para os professores que estão em atividade em sala
de aula, específica conteudista.

27 |
A força dos agentes do campo da Matemática é percebida e
expressa pelo modo como os outros agentes de outros campos
se veem frente aos matemáticos e à Matemática:“[...] a razão de a
Matemática ter iniciado primeiro esse processo, fica muito clara
para mim a questão de que a Matemática é muito mais ampla que
a Física, para ensino. Então é muito natural que tenha começado
com a Matemática” (fala de um gestor do Mestrado Profissional
em Física).

O PROFMAT não é só referência para os cursos na área de


Ciências Exatas, ele também, gozando da autoridade e dos privilégios
acadêmicos, é modelo para o Mestrado Profissional em Letras:
“O PROFMAT é sempre uma referência para o Profletras, isso tem
pontos positivos e negativos” (gestor do Profletras).

Nessa fala de um dos gestores do Profletras, percebe-se um


caráter impositivo do modelo pela presença da expressão “pontos
negativos”.

De acordo com a Capes, o PROFMAT inspirou a criação de


outros programas que, não por imposição, mas por pedido, foram
autorizados pelas Capes:

Também no Brasil, o PROFMAT faz escola. A pedido de diversas


carreiras do magistério, a Capes autorizou, em 2013, a criação
dos programas de mestrado profissional em letras (Profletras),
coordenado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), e em ensino de Física (MPEF), pela Sociedade Brasileira de
Física (SBF). Em 2014, a Capes autorizou os programas de mestrado
profissional em artes (Profartes), coordenado pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC); em história (Profhistória), pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e em administração
pública (Profiap), destinado à formação de gestores públicos de
qualquer área do conhecimento (Capes5).

5 PROFMAT – Mestrado em Matemática tem nota máxima em avaliação trienal.


Notícia publicada em 09/01/2015 por Ionice Lorenzoni – ACS-MEC. Disponível em:
http://www.capes.gov.br/component/content/article/36-salaimprensa/noticias/7304-
mestrado-em-matematica-tem-nota-maxima-em-avaliacao-trienal. Acesso em: 25 out. 2016.

28 |
Na fala de um gestor do Profletras fica claro que a criação do
Profletras foi por imposição e não por pedido: “Alguns se colocaram
contra, mas ele disse que não era questão de estar perguntando se
era contra ou a favor, ele estava comunicando que a Capes ia criar
o Profletras”.

Apesar de todo o reconhecimento e apoio ao PROFMAT, o


Proletras e os outros programas em rede não tiveram e não
têm o mesmo tratamento do PROFMAT, pelo menos em termos
financeiros. O PROFMAT recebeu, na sua implantação, atenção
financeira privilegiada em relação ao Proletras e ao Profísica. Um
desses benefícios que podemos apontar são as bolsas de estudo
para todos os alunos, professores em exercício, que participaram
das primeiras turmas do PROFMAT, o que não ocorreu nos demais
metrados profissionais. “O PROFMAT sempre recebeu mais, eu não
sei explicar. O Profletras é uma rede muito grande, mas não recebeu
o que se esperava” (fala de um gestor do Profletras).

O conceito atribuído ao PROFMAT na avaliação da Capes é outro


aspecto de distinção do Programa em relação aos demais mestrados
em rede. Todos os programas, exceto o PROFMAT, têm conceito
quatro (04). O PROFMAT em sua implantação recebeu conceito 3
passando, na avaliação seguinte, a ser considerado um programa
com conceito 5, permanecendo até hoje.

| Reprodução da crença e manutenção


das posições privilegiadas do campo
Para Bourdieu (2011, p. 24), a dominação se efetiva também, e
sobretudo, pela cumplicidade dos dominados: “A violência simbólica
nunca se exerce, de fato, sem uma forma de cumplicidade daqueles
que a sofrem [...]. Não seria possível sem a colaboração, consciente
ou inconsciente, direta ou indiretamente interessada”.

29 |
A cumplicidade dos dominados, no caso do PROFMAT, é
percebida nas falas dos gestores e alunos egressos do programa,
ao produzirem e reproduzirem a crença na melhoria do ensino de
Matemática, no país, por meio de uma formação docente organizada
por matemáticos e, consequentemente, com a predominância dos
conteúdos específicos de Matemática. Assim se posiciona um dos
gestores:

No meu ponto de vista nossos professores já têm experiência em


sala de aula, eles não precisam de conteúdo pedagógico, tem muita
gente que fala, que cobra e critica. Para mim os nossos professores
precisam de conteúdo, conteúdo de Matemática, experiência eles
já têm.

Os egressos reproduzem o mesmo discurso, alinhando-se com


aquele produzido pelos gestores:

[...] o diferencial do PROFMAT é porque, por ser um mestrado


profissional ele ataca alguns pontos relevantes que é, no caso do
PROFMAT, atacar a deficiência dos professores do Ensino Médio no
Brasil. Então a gente fez um curso voltado para isso: para melhorar,
melhorarmos como professor e melhorar também a educação do
Ensino Médio no Brasil.
Eu acredito que ao melhorar, no meu entender, o nível do professor
automaticamente vai melhorar o ensino da Matemática porque
com isso nós vamos levar os alunos a estudar mais, a ver o que
realmente é a Matemática.

Reproduzir a crença pode proporcionar, aos iniciados, alguns


privilégios: a valorização dos capitais possuídos. Essa cumplicidade
exige um aproximar-se dos dominantes, mesmo na condição de
dominado, ou aproximar-se dos símbolos e dos capitais mais
valorizados no campo que são os possuídos pelos dominantes.
Essa aproximação pode não ser física, nem social ou nem mesmo
acadêmica. Essa aproximação pode dar-se, e é isso que ocorre na
maioria das vezes, pelo reconhecimento e reprodução dos valores

30 |
dominantes por parte dos dominados. Isso pode ser interpretado
nas falas de gestores e egressos. Um dos gestores afirma: “Isso para
eles, não teria coisa melhor do que ter um certificado da SBM, que
eles estão sendo formados, e a SBM está dando o carimbo deles
ali, o selo: ‘ele é um mestre’. Não tem coisa melhor”.

Os egressos reproduzem: “Hoje, eu me sinto uma pessoa realizada


por ter um título de mestre referenciado pela SBM”. “Eu sou muito
grato ao PROFMAT, gostei muito de fazer. [...] foi uma oportunidade
que eu tive, queria muito fazer um mestrado”.

Também nessas falas identificamos a cumplicidade ao reproduzir


o mesmo discurso, violentamente simbólico, em relação à crença no
valor dos matemáticos e de suas instituições, como SBM e IMPA.
Existe a crença de que o dominado é valorizado pelos valores dos
dominantes; é privilegiado ao legitimar os privilégios do dominante
e é consagrado por meio do “carimbo” do dominante, pelo qual será
grato.

Assim, neste sistema, existem apenas duas maneiras – que, afinal


de contas, formam uma só – de segurar alguém de forma duradoura:
a dádiva ou a dívida, as obrigações abertamente econômicas da
dívida ou as obrigações morais e afetivas criadas e mantidas
pela troca; enfim, a violência aberta (física ou econômica) ou a
violência simbólica como violência censurada e eufemizada, isto é,
irreconhecível e reconhecida. (BOURDIEU, 2014, p. 205).

Produz-se e reproduz-se o discurso de que os professores são


valorizados na medida em que se aproximam dos agentes que
ocupam as posições privilegiadas no campo. Aproximação que se
dá ao consumir seus produtos e tentar ser, viver e fazer de acordo
com o que são, vivem e fazem os matemáticos.

31 |
| Considerações finais
Nesse trabalho, interpretamos sociologicamente o PROFMAT
dentro do campo da Matemática, com seus agentes em disputa,
com dominantes e dominados, com suas crenças que se impõem
como verdade pelos dominantes desse espaço social. De acordo
com Bourdieu (2013, p. 118): “no interior de cada um dos campos há
uma hierarquia social dos objetos [...]”. Essa hierarquia tem, dentre
seus parâmetros, em se tratando do campo científico, a definição
do que é científico e do que é ciência.

Para analisarmos o PROFMAT, nos valemos de um ponto de vista,


entre tantas outras possibilidades de visão, formulado a partir da
teoria sociológica de Bourdieu. Nessa teoria, buscamos o conceito
sociológico de campo como espaço social hierarquizado, no qual os
agentes estão em constante disputa pelo monopólio da legitimidade
de legitimar; pelo direito de classificar, inclusive a si mesmo, de
estabelecer a verdade, a doxa naquele espaço, de acordo com seu
ponto de vista. Portanto, há uma luta para impor um ponto de vista.
Segundo Bourdieu (2013, p. 118), “[...] é dominante quem consegue
impor uma definição da ciência”. De igual modo podemos pensar
a Matemática, em que é dominante quem consegue impor uma
definição de Matemática, impor uma crença no campo; nesse caso,
os matemáticos são os dominantes em relação aos educadores e
professores de Matemática que se caracterizam como os dominados
(FARIAS; VILELA, 2019).

Apresentamos uma interpretação do PROFMAT como uma


estratégia de recrutamento de novos agentes para reproduzir o
discurso dominante. E, nesse sentido, mostramos que esse discurso
é produzido pelos gestores do PROFMAT e é reproduzido pelos
egressos.

A partir da sociologia de Bourdieu, podemos dizer que a


legitimidade dos matemáticos os permitiu legitimar modelos de
ensino que ultrapassam as barreiras do campo da Matemática.

32 |
Nesse aspecto, há uma relação entre o campo da Matemática com
os campos da política, da economia e do poder. Interpretamos isto
pelos benefícios e privilégios que o Programa recebe, por exemplo:
os financiamentos, o prestígio e a nota avaliativa do curso, isto é, a
Capes atribui ao Programa um conceito que o qualifica.

Assim, haveria no campo da Matemática, entre pontos de vista


opostos, uma disputa para definir: a Matemática e, consequentemente,
um currículo e uma formação do professor de acordo com uma
definição de Matemática.

Foi realçado, no presente capítulo, que os professores egressos do


PROFMAT repetem a visão proclamada pelos gestores a respeito do
que é o mais importante na formação do professor de Matemática, a
saber, o conteúdo matemático, contrariamente às discussões atuais
sobre o tema. Os egressos reafirmam também que o problema da
Matemática na escola é que o professor não sabe Matemática e
que saber bem o conteúdo resolve os problemas da Matemática
enquanto disciplina escolar.

Nesse sentido, ocorre que alguns modos de ver se legitimam, se


impõem, se perpetuam por um trabalho estratégico de recrutamento
e inculcação. Assim, PROFMAT pode ser entendido como uma
estratégia tanto de inculcação desse modo de ver quanto de
recrutamento de novos agentes destinados a serem reprodutores
dessa verdade, dessa doxa, repetindo o mesmo discurso.

A doxa, de acordo com Bourdieu (1996), seria um “senso comum


naturalizado” que, por ser naturalizado, nem percebemos que é uma
construção social. A doxa do campo da Matemática passa a ser
seguida por professores, alunos do PROFMAT, os quais reproduzem
o mesmo discurso, reafirmando o próprio discurso do PROFMAT,
sem se dar conta disso. Compreendemos a doxa como um “ponto de
vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta
e se impõe como ponto de vista universal [...]” (BOURDIEU, 1996,
p. 120).

33 |
| Referências
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2013b.

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NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (org.). Escritos de Educação. 12. ed.
Petrópolis: Vozes, 2011. p. 17-32.

BOURDIEU, P. A produção da crença: contribuição para uma


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Lisboa: Edições 70, 2004.

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COSTA, C. IMPA é o principal centro de ensino e produção de


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FARIAS, J. V. O PROFMAT e as relações distintivas no campo


da Matemática. 2017. Tese (Doutorado em Educação) – Centro
de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, 2017.

34 |
FARIAS, J. V.; VILELA, D. S. Desenhando o campo da Matemática:
Aplicação dos conceitos de Pierre Bourdieu na educação
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GATTI, B. A.; NUNES, M. M. R. (org.). Formação de professores


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35 |
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Brasil. Cadernos de pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 138, p. 897-917,
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SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA. Avaliação


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2013.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE MATEMÁTICA. Edital nº 11 de julho


de 2019: Exame Nacional de acesso para ingresso no PROFMAT
em 2020. Disponível em: https://bit.ly/329m7eo. Acesso em: 20
maio 2020.

36 |
Bourdieu na Educação em Ciências e
Matemática: explorações empíricas e
teóricas de um grupo de pesquisa
Luciana Massi
Matheus Monteiro Nascimento
Camila Toledo Piza
Carlos Henrique Aparecido Alves Moris
Julia Beatriz Giaccheto Barbieri
Gabriela Agostini

Pierre Bourdieu é considerado um dos principais intelectuais


do século XX e representa uma contribuição ímpar para o
desenvolvimento da sociologia mundial desde a década de 60. Sua
teoria abrangente, por meio de conceitos como campo, capitais e
habitus, tem sido adotada nas mais diversas áreas para explicar
a relação entre o sujeito e a sociedade, em termos relacionais e
dialéticos. O próprio Bourdieu pesquisou diretamente objetos
que pertencem à sociologia da cultura, da educação, da política,
entre outras. Na sociologia da educação, o autor ficou conhecido
mundialmente a partir de sua teoria da reprodução, fortemente
ancorada no conceito de capital cultural, em que refuta a suposta
democratização promovida pela escola, em favor de uma denúncia
das reproduções das desigualdades sociais no sistema escolar.
Apesar da contribuição inegável dessa teoria, Bourdieu não explorou
os efeitos das didáticas específicas nos processos de reprodução,
nem ampliou seu conceito de capital cultural para analisá-lo em
relação a conteúdos como Ciências, Matemática ou Filosofia.

Em poucos trechos de sua obra encontramos menções às


ciências, como quando ele explicita uma certa hierarquização
disciplinar, quando ele explora o conceito de campo científico ou,
ainda, quando aponta superficialmente para aspectos sobre a
aprendizagem de ciências em termos de habitus específicos. Não

37 |
devemos exigir de Bourdieu que tivesse desenvolvido uma teoria
pedagógica, incorrendo na crítica de Saviani (2012) que marcou
sua recepção no campo educacional brasileiro (CATANI; CATANI;
PEREIRA, 2001). Embora ele tenha, inicialmente, apostado em uma
pedagogia racional, que “[...] partindo do zero e não considerando
como dado o que apenas alguns herdaram, se obrigaria a tudo em
favor de todos” (BOURDIEU, 2015a, p. 59), o autor não desenvolve
essa aposta e reitera, constantemente, seu trabalho no âmbito da
sociologia. Entendemos, então, que cabe às didáticas específicas
explorarem suas potencialidades e reproduzir criticamente sua teoria,
como sugere Lahire (2002, p. 38): “continuar imaginando e criando
além do que o próprio sociólogo pensou e formulou, reencontrando
assim a atitude que ele soube adotar enquanto inventava, com e
contra outros pesquisadores de sua geração”.

E qual seria a motivação de uma área, como a Educação em


Ciências e Matemática, para investir um esforço teórico e empírico
na apropriação dessa teoria, visando desenvolvê-la além do trabalho
do próprio fundador? Miceli (2008, p. 11) descreve seu fascínio pela
obra bourdiana, destacando aspectos que consideramos atraentes,
particularmente, aos pesquisadores das áreas científicas: 1) uma
teoria coerente e unificada – “[...] Bourdieu parecia trabalhar, movido
pelo princípio metodológico, algo desnorteante de existir como que
uma solidariedade estrutural entre diferentes níveis da atividade
social” – e 2) uma abordagem empírica e analítica abrangente, objetiva
e, até, matemática – descrita por Miceli (2008, p. 11) como “[...] a
força arrasadora de seu método”. Esse fascínio parece ter captado
pesquisadores da área que, embora ainda em número inexpressivo
– inferior a 1% do total de pesquisas produzidas, segundo Valadão
(2016) –, já produziram uma coletânea agrupando temas e enfoques
das abordagens bourdianas na Educação em Ciências (WATANABE;
LEAL, 2019).

Em nosso grupo de pesquisa também temos investigado essas


possíveis transposições e reproduções críticas da teoria sociológica

38 |
bourdiana em objetos da Educação em Ciências e Matemática. Este
texto tem como objetivo explorar essas apropriações, reconhecendo
avanços e obstáculos nesse movimento, em relação à sua teoria da
reprodução, teoria dos capitais, estudos de trajetórias e especificidades
do campo científico. Construímos essa análise expondo brevemente,
em cada seção, os desenvolvimentos bourdianos gerais ou, no
campo educacional sobre o tema, as pesquisas do grupo concluídas
ou em andamento e, por fim, destacamos alguns desafios desse
movimento de apropriação.

| As apropriações da obra de Pierre


Bourdieu nas pesquisas em Educação
em Ciências e Matemática
No campo educacional brasileiro, a inserção de Bourdieu foi
investigada por Catani, Catani e Pereira (2001), por meio da análise
de periódicos, com o intuito de identificar os modos de apropriação
da teoria bourdiana. Os trabalhos examinados foram publicados
entre os anos de 1971 e 2000. Os autores encontraram um total de
288 artigos nacionais que fizeram referências a Bourdieu. Ademais,
a partir da análise dos textos, Catani, Catani e Pereira (2001)
identificaram três tipos de apropriação das teorias bourdianas,
denominadas “apropriação incidental”, “apropriação conceitual
tópica” e “apropriação do modo de trabalho”.

De acordo com os autores, a “apropriação incidental” é a forma


mais frequente e possui como característica as referências rápidas
ao autor, além disso, as menções ao autor são superficiais e não
é possível relacionar a argumentação do texto e a referência.
A “apropriação conceitual tópica” possui como característica a
utilização dos conceitos bourdianos de forma não sistemática,
geralmente mobilizados para reforçar argumentos ou resultados. A
última categoria, “apropriação do modo de trabalho”, é caracterizada
pela mobilização sistemática dos conceitos e contribuições de

39 |
Bourdieu e mostra preocupação central com o modus operandi da
teoria bourdiana. Nessa categoria, Bourdieu é a principal referência
do trabalho. Do total de artigos considerados por Catani, Catani e
Pereira (2001), 67% pertenciam à categoria “apropriação incidental”,
18% pertenciam à “apropriação conceitual tópica” e 15% pertenciam
à “apropriação do modo de trabalho”. Historicamente, as menções a
Bourdieu aumentaram nos anos 1980, ainda que de forma incidental,
quando seus textos se tornaram mais acessíveis, e, a partir de 1990,
suas obras passaram a receber leituras mais diversificadas e mais
voltadas para o modo de trabalho (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2001).

A pesquisa de Dirlene Valadão (2016) analisou as contribuições


de Bourdieu na área da Educação em Ciências, por meio de uma
revisão bibliográfica, observando como o autor é abordado nas
principais publicações da área (evento, periódicos, dissertações
e teses). De 8478 trabalhos consultados, 160 fizeram parte do
corpus da pesquisa. A autora classificou o modo de apropriação
das contribuições bourdianas tendo como referência o trabalho de
Catani, Catani e Pereira (2001). Do corpus da pesquisa, 69 pertenciam
à categoria “menção incidental”, 47 pertenciam à “mobilização
conceitual tópica” e 44 pertenciam à “apropriação do modo de
trabalho”. Valadão (2016) trata apenas da categoria “apropriação
do modo de trabalho”, uma vez que as outras apresentam uma
abordagem vaga de Bourdieu. Considerando a especificidade
da Educação em Ciências, a categoria “apropriação do modo de
trabalho”, com 44 trabalhos, foi identificada em três linhas temáticas:
12 trabalhos pertencem à linha Sociologia da Ciência, 14 trabalhos
na linha Desempenho escolar/acadêmico e determinantes sociais e
18 trabalhos na linha Formação de Professores de Ciências. Conclui-
se que a apropriação de Bourdieu na área de Educação em Ciências
é tímida, em geral, e a apropriação do autor de forma mais intensa
se deu na linha Formação de Professores (VALADÃO, 2016).

Na pesquisa de Julia Barbieri, utilizamos as mesmas ferramentas


para analisar sua apropriação nas pesquisas em Educação

40 |
Matemática. Analisamos alguns periódicos, teses, dissertações
e anais do Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM) e
do Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática
(SIPEM) procurando por trabalhos que se apropriaram da teoria
bourdiana. Utilizamos a classificação de Valadão (2016) e analisamos
51 trabalhos, dos quais 21 eram do ENEM, 3 do SIPEM, 6 de periódicos
e 21 teses ou dissertações. Desses trabalhos, 10 foram classificados
como “menção incidental”, 17 como “mobilização conceitual tópica”
e 24 como “apropriação do modo de trabalho”. Eles estão sendo
analisados com maior cuidado, principalmente, quanto aos conceitos
bourdianos.

A pesquisa de Catani, Catani e Pereira (2001) inspirou nossas


investigações sobre a apropriação do autor na área de Educação
em Ciências e Matemática. Concluímos que o autor é muito pouco
conhecido e adotado nessas áreas, tanto pela baixa representatividade
quantitativa desses estudos quanto pelo número ainda menor de
pesquisas que adotam seu modo de trabalho. Grenfell (2018) destaca
alguns níveis de apropriação de Bourdieu, ressaltando que sua
teoria é bastante ampla, de modo que as apropriações incidentais
e conceituais tópicas representam apenas uma primeira entrada
neste universo. Por outro lado, percebemos que as pesquisas que
adotam seu modo de trabalho são muito diversas e exploram temas
fundamentais na área de Educação em Ciências e Matemática, como
indicado na pesquisa de Valadão (2016).

| Explorando a teoria da reprodução na


Educação em Ciências
A teoria da reprodução de Bourdieu é central para a Sociologia
da Educação. Por meio do conceito de capital cultural, Bourdieu e
Passeron (2009) denunciaram como o sistema escolar reproduz
desigualdades sociais, uma vez que exige de todos os estudantes o
capital cultural considerado legítimo e possuído apenas pela elite.

41 |
Esse conceito participa de sua teoria geral e relacional da “economia
geral das práticas” (PETERS, 2012) articulado diretamente ao conceito
de habitus, que se constitui e retroalimenta pelo pertencimento a
uma classe ou grupo social que compartilha valores, percepções
e ações. A prática social dos agentes no sistema escolar resulta,
principalmente, de seu habitus e da posse de capital cultural, que leva
a determinadas escolhas que configuram suas trajetórias escolares
de maior ou menor sucesso dependendo de sua classe social e da
rentabilidade de seus capitais.

Diante desses pressupostos, o doutorado de Luciana Massi


(2013) investigou o pertencimento social de alunos de licenciatura
em Química em comparação com seus colegas do bacharelado da
mesma instituição. A autora confirmou a “causalidade do provável”
ao analisar quantitativamente os inscritos e os matriculados no
vestibular deste curso e perceber que: os alunos da classe popular
prestavam apenas o curso de licenciatura noturno; os alunos de
elite se inscreviam no bacharelado; e a classe média vislumbrava
o bacharelado e a licenciatura como opção. Segundo Bourdieu
(2015b), a “causalidade do provável” remete a essa perspectiva de
futuro que cada classe enxerga como possível. É por meio dela
que há uma “colaboração insensivelmente extorquida das classes
despossuídas”, pois pela causalidade do provável elas “tendem a
estabelecer uma proporção entre seus investimentos escolares e
os lucros prometidos, portanto, antecipar os veredictos do sistema”
(BOURDIEU, 2015b, p. 107). A diferença entre o perfil dos alunos que
prestavam o bacharelado, não eram aprovados e, posteriormente,
ingressavam na licenciatura era apenas em relação à faixa etária e
à frequência a cursinhos pré-vestibulares, indicando a necessidade
desse investimento para acessar uma modalidade menos prestigiada
do curso de Química (MASSI; VILLANI, 2014).

Outro estudo do grupo, ainda sobre licenciados em Química,


foi a pesquisa de mestrado de Gabriela Agostini (2019), na
qual uma das etapas investigava o perfil socioeconômico de

42 |
professores e licenciandos em Química. Para o levantamento do
perfil docente, analisamos o Censo Escolar e Censo do Ensino
Superior realizados anualmente pelo MEC e outras pesquisas sobre
professores brasileiros. O perfil dos licenciandos foi pautado na
análise de questionário de 711 ingressantes, ao longo de 23 anos,
em um curso de licenciatura em Química. Com esse levantamento,
percebemos que os licenciandos desse curso ocupam as posições
mais baixas do espaço social, com baixo volume de capital global,
considerando a escolarização mediana dos pais, suas ocupações
como operários e profissionais liberais, o baixo capital cultural das
famílias (investimento em escolas públicas, pouco contato com
língua estrangeira e realização de cursinho para ingresso no ensino
superior) e a renda familiar (de 2 a 4,9 salários mínimos). Com base
em Bourdieu (2007), podemos perceber que esses estudantes, e
suas famílias, pertencem às classes dominadas, mais próximo do
estilo de vida das classes populares do que das classes médias.
Esse resultado corrobora a literatura e reforça que os cursos que
formam professores atraem estudantes de nível socioeconômico
menos favorecido semelhante ao perfil dos professores brasileiros
(GATTI, 2009; RISTOFF, 2014).

Ampliando essas pesquisas, em um trabalho colaborativo, entre


o professor Matheus Nascimento da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), a professora Luciana Massi (UNESP) e
a doutoranda Gabriela Agostini, fizemos um estudo quantitativo
analisando o impacto de políticas públicas no perfil socioeconômico
e no desempenho de ingressantes nos cursos de licenciatura e
bacharelado em Química da UNESP em um período de 15 anos6. Com
uma análise fatorial e de correspondências múltiplas, construímos
um índice socioeconômico para os estudantes destes cursos.
Tomando como pano de fundo as políticas federais e regionais
voltadas para o ensino superior e pautados na teoria de Bourdieu
sobre as desigualdades de acesso à educação por diferentes classes
sociais, notamos especificidades e alterações no perfil dos discentes.
6 O artigo ainda está em processo de avaliação para publicação.

43 |
Os estudos sobre desempenho escolar na Educação em Ciências
têm contribuído para desvelar os condicionantes de classe na escolha
pelo curso e pela profissão. Acreditamos que ainda é importante
ampliar essas investigações, buscando os motivos para essas
diferenças e caracterizando, de forma mais abrangente e precisa,
o perfil dos estudantes e profissionais dessas áreas. Investigamos,
entre outras coisas, como ocorre a segregação social dos cursos,
o impacto de políticas de democratização de acesso ao ensino
superior e o peso da origem social na escolha profissional. Além
disso, precisamos avançar na profundidade desse entendimento,
considerando a especificidade da ciência que vem sendo explorada,
principalmente, pela teoria dos capitais apresentada a seguir.

| Ampliando a teoria dos capitais de


Bourdieu
A teoria dos capitais de Bourdieu expande visões puramente
econômicas de desigualdade social ao inserir na sua “economia
geral das práticas” (PETERS, 2012) quatro formas fundamentais de
capitais (simbólico, econômico, social e cultural), que podem ser
acumuladas, reproduzidas e convertidas umas nas outras (BOURDIEU,
1986). Ao estudar a dimensão educacional, o capital cultural busca
entender a relação entre classe e desempenho escolar para além da
renda e romper com a ideologia do dom, desvinculando o sucesso
ou fracasso escolar da ideia de aptidões naturais (BOURDIEU,
2015b). Bourdieu (1986) aponta o poder da família em acumular e
transmitir os capitais, que envolve a posse familiar deste capital e o
tempo dedicado à sua transmissão. O capital cultural se apresenta
em três estados: incorporado, que requer investimento de tempo e
esforço para acumulá-lo, sendo impossível transmiti-lo ou herdá-lo
instantaneamente; objetivado, representado por bens materiais que
podem ser herdados, mas só atingem o valor máximo em conjunto
com o incorporado; institucionalizado, com diplomas que atestam a
posse de cultura e permitem mensurá-la e compará-la no mercado
de trabalho (BOURDIEU, 1986, 2015c).

44 |
Entretanto, na bibliografia de Bourdieu, a influência das ciências da
natureza no mercado escolar e no capital cultural não foi explorada.
Reconhecendo essa lacuna, apostando que o capital cultural se
concentra muito na arte e cultura geral, desconsiderando outras áreas
e buscando entender o baixo interesse em estudar ciências, Louise
Archer e colaboradores (2012, 2013, 2015) elaboraram o conceito
de capital da ciência (science capital). Tal conceito foi fundado nas
constatações da transmissão familiar do gosto pela ciência, das
vantagens da ciência no mercado e da distribuição desigual do
capital da ciência nas classes sociais. O capital da ciência é uma
ferramenta teórica capaz de explicitar e agrupar o papel (ou valor)
da ciência dentro do capital cultural e de outros capitais, focando no
potencial de transferibilidade e lucro social (ARCHER et al., 2015).
Os autores dividem esse capital em três formas: 1) forma científica
do capital cultural, representada pela alfabetização científica e por
conhecer o valor social da ciência; 2) práticas relacionadas à ciência,
relacionadas ao consumo de mídia e visita a museus, zoológicos
etc.; 3) forma científica do capital social, que envolve familiares ou
amigos cientistas e conversas sobre ciência. O capital da ciência e
o cultural se aproximam na relação com o mercado escolar, nas três
dimensões, na transmissão familiar e tendem a ser acumulados de
forma diretamente proporcional (ARCHER et al., 2015). Contudo, o
capital da ciência não engloba apenas a dimensão cultural e é um
melhor preditor para as aspirações científicas (DEWITT; ARCHER;
MAU, 2016). Outras pesquisas propõem um capital matemático e
um capital STEM7, articulando melhor todas as áreas científicas
(MOOTE et al., 2020).

Trazendo o conceito para o contexto brasileiro, Carlos Moris


investiga em seu mestrado, sob orientação de Luciana Massi e
coorientação de Matheus Monteiro Nascimento, a existência e a
rentabilidade dessa forma de capital, por meio dos microdados e
questionário socioeconômico do Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) de 2009. Por meio da estatística e de técnicas de análises
7 Do inglês, Science, Technology, Engineering and Mathematics.

45 |
multivariadas, testamos a relação do capital da ciência com o
desempenho em ciências da natureza que pode representar uma
rentabilidade desse capital na forma de vantagens na seleção para
o ensino superior. Com base nesse resultado, pretendemos também
responder: Qual capital impacta mais sobre o desempenho geral?
Qual é a influência desse capital no desempenho em uma disciplina
específica, como a Química?

Em outro estudo, teórico e bibliográfico, conduzido por Camila


Toledo Piza em nível de Iniciação Científica, investiga-se nacional e
internacionalmente a apropriação do capital da ciência, com o objetivo
de desvelar a especificidade do science capital em comparação ao
capital cultural de Bourdieu. Mesmo sendo amplamente difundido
pela pesquisadora Archer, no exterior, ainda existem controvérsias
no meio acadêmico. Segundo Jensen e Wright (2015), a descrição
de capital cultural de Bourdieu não exclui aspectos científicos e
se deve ter cuidado ao aumentar o volume de formas de capital,
portanto, a discussão do capital da ciência deveria permanecer
dentro das fronteiras do capital cultural. Ainda com a pesquisa de
Piza, almeja-se responder à pergunta: como esse capital vem sendo
estudado e apropriado no Brasil, em comparação ao contexto de
outros países? Tendo em vista esses questionamentos e objetivos,
essa pesquisa busca sintetizar e definir tal conceito para que seja
melhor difundido e utilizado na área de Educação em Ciências.

Ampliar a teoria dos capitais permite avançar as discussões


sobre reprodução social a partir de outros focos, como a ciência,
que é apropriada por menos de 10% dos alunos brasileiros (OECD,
2014) e representa uma das áreas com maiores dificuldades de
aprendizagem, podendo representar assim um objeto de distinção.
Contudo, essa ação demanda estudos empírico-teóricos, revisão de
conceitos e constante diálogo entre áreas de pesquisa.

46 |
| Trajetos em linhas de metrô de
licenciandos e professores de Ciências
Uma outra possibilidade de investigação a partir da teoria
bourdiana são os estudos de trajetória. Bourdieu (1996, p. 81,
grifo do autor) constrói a noção de trajetória como “uma série de
posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um
mesmo grupo), em um espaço ele próprio em devir e submetido
a transformações incessantes”. Os acontecimentos biográficos
dos sujeitos se definem no interior de um espaço orientado, há
caminhos mais ou menos possíveis de serem seguidos a depender
da distribuição dos capitais em jogo no espaço considerado. Só
podemos entender a trajetória de um agente construindo os estados
sucessivos do espaço onde ela se desenrolou e as relações objetivas
entre o conjunto de agentes desse espaço. Semelhante a um trajeto
de metrô, para entender as trajetórias possíveis, é preciso considerar
“a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as
diversas estações” (BOURDIEU, 1996, p. 81). Para isso, em nossas
pesquisas, reconstruímos as trajetórias dos agentes (professores),
levando em conta seus acontecimentos biográficos, o contexto
profissional no qual se inserem (na formação inicial e na atuação
docente) e as relações estabelecidas com diversos agentes do
espaço social (família, escola, universidade, alunos, colegas de
trabalho, etc.).

As trajetórias de licenciandos em química foram investigadas no


doutorado de Massi (2013) com foco na evasão escolar. Partindo da
observação de uma baixa taxa de evasão nos cursos do Instituto de
Química, a autora reconstruiu trajetórias escolares de 27 licenciandos,
adotando a técnica dos retratos sociológicos de Bernard Lahire
(2004), que prolonga criticamente os estudos de Bourdieu. Percebeu-
se que a maioria das trajetórias (18/27) indicavam forte vinculação
à instituição por meio de uma integração social e acadêmica. O
pertencimento desses estudantes a classes menos favorecidas
também indicou uma mitigação da reprodução: os estudantes de

47 |
licenciatura, por ser um curso noturno, tinham mais oportunidades
extracurriculares que os permitiam melhorar sua formação e ter
os mesmos desempenhos do que os estudantes do bacharelado,
nas provas para o mestrado, e a mesma possibilidade de inserção
profissional (MASSI; VILLANI, 2020).

Na pesquisa de mestrado de Agostini (2019), investigamos


a trajetória social e a escolha profissional de professores de
Química. Consideramos como aporte teórico a sociologia bourdiana
relacionando o pertencimento de classe dos sujeitos, sua relação
com a escola e aspirações profissionais com os contextos que
envolvem a profissão docente. Por meio de uma metodologia
pluriescalar, realizamos três níveis de análise: i) partimos de um nível
estrutural (macro), com base em pesquisas nacionais, caracterizando
o perfil do professor de química brasileiro; ii) passamos por um
nível institucional (meso), descrevendo o contexto formativo
e o encaminhamento profissional de egressos de um curso de
licenciatura em Química, por meio de uma análise documental e de
questionários; iii) nos aprofundamos em um nível individual (micro)
com retratos sociológicos de quatro mulheres que, por diferentes
trajetórias, escolheram a docência como profissão e atuam como
professoras de Química. Como resultado, percebemos que a escolha
profissional e a opção pelo magistério são condicionadas por diversos
elementos intrinsecamente relacionados, tais como, a origem social,
o gênero, a formação inicial e as experiências profissionais nos
diferentes contextos de trabalho. Sendo a docência uma profissão
com baixo retorno financeiro e simbólico, ela se configura como
um caminho possível e acessível aos sujeitos de origem social
popular ou mediana. O estudo corrobora a literatura de formação de
professores ao evidenciar que as precárias condições de trabalho
para o exercício docente no Brasil desestimulam quem busca uma
carreira promissora e atraem aqueles que precisam de segurança
e garantia de emprego e renda.

48 |
Esses estudos sobre trajetórias revelam especificidades da
formação e atuação na Educação em Ciências; trata-se de uma
abordagem pouco frequente na área que, embora não enfrente
problemas centrais para a educação e formação de professores,
contextualiza esses processos diminuindo a culpabilização dos
agentes. Saber qual é o nível socioeconômico dos docentes e alunos
e como isso impacta suas trajetórias é um avanço importante para
nosso campo de estudos e contribui, ainda que parcialmente, para
continuar desenvolvendo a teoria bourdiana nessa área.

| Investigando a Educação em Ciências


como um campo científico
Campo é um dos conceitos centrais da teoria bourdiana e o próprio
autor o adotou para investigar diversas esferas sociais. Segundo
Bourdieu (1983a, 1983b), o campo é um microcosmo inserido no
macrocosmo social, que se caracteriza pela disputa de um objeto
específico que está desigualmente distribuído entre os agentes
que o disputam. Cada agente tem um habitus correspondente a
esse campo e mobiliza nessa disputa seu conjunto de capitais e,
principalmente, seu capital específico para manter ou subverter sua
posição. Os agentes em posições de dominação tentam manter sua
posição por meio de estratégias de manutenção e os dominados
empregam estratégias de subversão.

Em nosso grupo, iniciamos o trabalho com esse conceito,


principalmente, contando com análises estatísticas de
Correspondências Múltiplas que caracterizam o campo e foram
amplamente usadas por Bourdieu (KLUGER, 2018). Publicamos,
recentemente, uma análise sobre as hierarquias sociais da área
de Ensino da CAPES, buscando analisar se ela se configura em
um campo (MASSI; CARVALHO; GIORDAN, 2020). Por meio da
investigação do perfil socioformativo de aproximadamente 530
orientadores, identificamos perfis muito distintos em relação
ao capital cultural e econômico, bem como a condição que eles

49 |
tiveram para se formar como pesquisadores. Os dados reiteram
a teoria geral bourdiana associando cursos menos prestigiados e
trajetórias sociais menos distintivas a origens sociais e familiares
mais humildes, evidenciando a teoria da reprodução no perfil dos
professores universitários estudados. Por se tratar de uma etapa
inicial, o estudo não contemplou a hierarquia acadêmica desses
pesquisadores.

A pesquisa de doutorado de Gabriela Agostini, iniciada em 2019,


tem como objetivo investigar as origens, o desenvolvimento e a
configuração atual da área de pesquisa de Educação em Química
por meio da teoria dos campos de Bourdieu. Tomando por base
os procedimentos descritos por Bourdieu e Wacquant (1992),
realizaremos uma análise envolvendo três momentos, internamente
conectados: i) analisar a posição do campo em estudo em relação ao
campo do poder, caracterizando seu grau de autonomia e sua evolução
histórica por meio de uma sociogênese; ii) mapear a estrutura do
campo segundo as relações entre as posições dos agentes e das
instituições na luta pelo capital específico desse campo; iii) analisar
o habitus dos agentes e suas trajetórias sociais dentro do campo,
usando como método de pesquisa a prosopografia. Como fonte de
dados, examinaremos artigos, livros, teses e outros documentos que
possam remontar à constituição histórica e institucional da área;
assim como os currículos Lattes dos pesquisadores que fornecerão
indicadores para mapear o campo e analisar as trajetórias dos
agentes.

Na UFRGS, o professor Matheus Nascimento, com a colaboração


da professora Luciana Massi, coordena o projeto “A pesquisa
em Ensino de Física no Brasil: mapeamento da dinâmica e da
estabilização da autonomia deste campo científico”. O objetivo desse
projeto é mapear a dinâmica da área de Ensino de Física do Brasil e
a sua relação com a própria Física. Em outras palavras, almejamos
entender quais as fronteiras e características da área e de que
maneira sua origem socialmente construída está evoluindo frente

50 |
a modificações no cenário da pós-graduação nacional. Segundo
Bourdieu (2013), a maturidade de um campo, bem como sua força, é
medida principalmente a partir das fronteiras do campo que indicam
seu grau de autonomia/heteronomia. A própria fronteira é um dos
principais objetos de disputa no campo (BOURDIEU, 2013). Nesse
sentido, nos apoiamos no conceito de campo, mais especificamente
de campo científico, para analisar a área de pesquisa em Ensino de
Física no contexto brasileiro. Considerando que, para Bourdieu (1989),
a posição que um agente ocupa no campo depende do seu “peso
relativo” no campo, quer dizer, do produto do seu volume de capital
específico, principalmente, mas também de seu capital econômico,
cultural, social e simbólico; utilizamos dados da plataforma Sucupira
para analisar a estrutura e a configuração da elite acadêmica da área
do Ensino de Física no Brasil. Os resultados preliminares indicam
que o Ensino de Física ainda não se configura como um campo
científico autônomo e bem estabelecido, mas como um subcampo
da Física.

Assim, ainda que em estágio inicial, nossas pesquisas sobre


campo apontam aspectos centrais sobre a constituição e maturidade
da área de Educação em Ciências e podem contribuir para que seus
agentes compreendam melhor sua posição no campo científico e
acadêmico, orientando seus investimentos na disputa pelo capital
específico, ampliação da autonomia e fortalecimento de suas
fronteiras.

| Avanços e obstáculos na apropriação


de Bourdieu na Educação em Ciências e
Matemática
Neste trabalho exploramos, por um lado, a apropriação do
referencial bourdiano pelas pesquisas em Educação em Ciências
e Matemática e, por outro lado, as possibilidades de mobilização e
expansão da teoria de Bourdieu para novos objetos, agentes e capitais

51 |
específicos. Por meio de breves relatos das principais questões
e resultados de pesquisas conduzidas pelo grupo, em diferentes
estágios de desenvolvimento, abordamos: a apropriação do autor
pela área; o patrimônio de capitais e as trajetórias de licenciandos
e professores de Química; o desenvolvimento do capital da ciência
como um novo conceito na teoria dos capitais e o conceito de
campo na área de pesquisa em Ensino, Ensino de Física e Ensino
de Química.

Como principais resultados, destacamos uma apropriação de


Bourdieu muito pouco representativa quantitativamente e, em
geral, superficial quanto ao nível de aprofundamento de sua teoria.
Segundo a classificação de Grenfell (2018), a maior parte dos
trabalhos da área exploram apenas o nível 1 da sua escala de 6
graus de imersão na teoria bourdiana. Nossa trajetória de pesquisa,
como grupo, também reflete parte desse processo de apropriação
que temos vivenciado coletivamente e que revela, ainda, nossas
diferentes etapas formativas como pesquisadores e dificuldades
impostas pela nossa própria formação, alheia aos fundamentos das
ciências sociais. Apesar disso, acreditamos que, assim como outros
trabalhos da área que adotam esse referencial (WATANABE; LEAL,
2019), produzimos avanços ao trazer esse autor para a Educação
em Ciências e Matemática.

Investigando um objeto pouco frequente na área de Educação


em Ciências, exploramos o perfil socioeconômico e as trajetórias
de formação e atuação de professores de Química, identificando o
papel do capital econômico e cultural como condicionantes de suas
escolhas e encaminhamentos profissionais. Denunciamos, assim, o
peso da origem social nas desigualdades de oportunidades que os
agentes vivenciam e o fraco efeito das políticas de democratização
do ensino superior. Identificamos e investigamos um possível novo
conceito, que amplia a teoria dos capitais para incluir a ciência
como objeto, por meio do polêmico capital da ciência. Nossos
estudos teóricos e empíricos pretendem captar a especificidade da

52 |
ciência que representa um dos conteúdos com mais dificuldade de
aprendizagem e pouca atratividade de encaminhamento profissional.
Por fim, iniciamos a exploração do conceito de campo, que nos
parece fundamental para ampliar a sociologia da ciência presente
na Educação em Ciências, e que permite à área reconhecer suas
fragilidades e construir estratégias coletivas de reconhecimento e
autonomização.

Embora seja um autor que não enfrente diretamente as questões


centrais da área de Educação em Ciências e Matemática, ou seja,
não explique nem oriente metodologias para a melhoria do ensino
e da aprendizagem de Ciências ou Matemática, Bourdieu pode
trazer contribuições muito ricas para ampliar o objeto da nossa
área, incluindo os fatores sociais como participantes fundamentais
dos processos formativos e da constituição de um possível campo
científico. Além disso, conceitos novos, como o de capital da
ciência, apresentam a potencialidade de representar um avanço ou
atualização para a teoria geral da “economia das práticas” bourdiana
(PETERS, 2012). Nossos estudos sobre campo também representam
uma possibilidade de desenvolvimento e ampliação das pesquisas
sobre campo científico, por meio da exploração de dados e técnicas
pouco usados pela própria sociologia em geral (KLUGER, 2018).

| Referências
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sociológica dos condicionantes sociais para as escolhas da
docência como profissão. 2019. Dissertação (Mestrado em
Educação para a Ciência) – Faculdade de Ciências, Universidade
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53 |
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57 |
Atividades acadêmico-científico-
culturais nos cursos de licenciatura
em Matemática da UNESP: estratégia
de inculcação de um habitus
Vânia Cristina da Silva Rodrigues

1. Introdução
O presente trabalho tem como referência a pesquisa de
Rodrigues (2019), que analisou as horas obrigatórias destinadas à
componente curricular Atividades Acadêmico-Científico-Culturais
(AACC) nos cursos de Licenciatura em Matemática da UNESP de
Bauru, Guaratinguetá, Ilha Solteira, Presidente Prudente, Rio Claro
e São José do Rio Preto. A análise, pautada no referencial teórico-
metodológico de Pierre Bourdieu (1931-2002), é de natureza quali-
quantitativa. Foi realizada a partir de questionários respondidos por
219 egressos dos seis cursos de licenciatura e permitiu interpretar
as AACC como um espaço do currículo de reprodução e inculcação
do habitus do matemático, justamente relacionadas com as práticas
e/ou conhecimentos dos matemáticos que tendem a valorizar a
matemática acadêmica em detrimento da formação pedagógica,
social e cultural do futuro professor de matemática. O habitus está
na base que condiciona a maneira de agir e reagir dos sujeitos,
naquilo de que gostam e nas suas preferências políticas, artísticas,
religiosas e científicas.

O Estado Brasileiro, por meio de órgãos vinculados ao Ministério


da Educação (MEC), tem procurado intervir nos cursos de formação
de professores através de deliberações oficiais, dentre as quais se
destaca a instituição de Diretrizes Curriculares para a Formação
de Professores da Educação Básica (DCN). Essas deliberações,
no entendimento de Macedo (2003, p. 39), têm como objetivo a
regulação social, o “[...] controle curricular e preconizam alterações

58 |
nos espaços institucionais de formação”. Isto porque o documento
das diretrizes incluiu novos componentes curriculares, com destaque
para as AACC, tema deste trabalho.

Com carga horária mínima de 200 horas, as AACC são um espaço


aberto do currículo, organizado em um conjunto de atividades,
que poderão ser escolhidas e desenvolvidas pelos alunos durante
o seu percurso de formação. Segundo os documentos oficiais –
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores
da Educação Básica (DCN), em nível superior e seus respectivos
pareceres e resoluções – a inserção dessas atividades tem o intuito
de assegurar a introdução de novos elementos teórico-práticos, além
de promover a ampliação da formação cultural dos licenciandos.
Um outro aspecto dessa exigência legal parece ser o entendimento
de que o futuro professor não pode ter uma formação em que o
conhecimento se restrinja somente à sua área do conteúdo específico
(Matemática, História, Sociologia etc.).

Assumimos tal qual Moreira, Cury e Vianna (2005) que a profissão


do professor de Matemática é distinta da profissão de Matemático, o
que justifica a presente discussão. Estamos falando de uma prática
específica de um grupo de profissionais, os matemáticos, e tudo que
isso implica: a maneira de lidar com a Matemática, o local dessa
prática, os objetivos, os destinatários ou beneficiários da pesquisa
etc. Isso difere da prática matemática voltada para o ensino que
contempla objetivos diferentes, destina-se a um público diferente,
desenvolve-se em locais diferentes etc.

Além disso, as AACC enquanto atividades do currículo dos


cursos de Licenciatura em Matemática estão em consonância com
as pesquisas referentes à formação de professores, como as de
Gatti (2009), Fiorentini et al. (2002), Tardif (2007) e Imbernón (2006),
que apontam a importância e a necessidade de abarcar outros
conhecimentos, além dos específicos, para a formação docente, tais
como, o conhecimento pedagógico, o conhecimento do contexto

59 |
escolar do aluno e da escola, o conhecimento de ética, política e
cultura, dentre outros. Se é unanimidade aceitar a importância da
formação cultural, nosso interesse passa a ser em que medida essa
proposta está sendo contemplada, nos cursos de Licenciatura em
Matemática, em uma universidade pública do estado de São Paulo,
de reconhecida qualidade?

As orientações legais, ao serem tomadas como referência para a


elaboração dos projetos pedagógicos dos cursos de Licenciatura em
Matemática, podem ser interpretadas à luz das condições históricas
dos cursos, nas instituições em que são ofertados. A legislação,
instituições e pessoas – cujas ações são demarcadas também pelo
espaço que ocupam na sociedade e nas instituições – formam um
conjunto de estruturas estruturantes, na perspectiva de Bourdieu
(2011), que oferece as condições, o contorno e a sustentação de
um determinado tipo de formação de professor.

Nesse sentido, conforme destaca Farias (2017), conceitos


como habitus, campo e capital têm-se mostrado potentes quando
se pretende interpretar fenômenos sociais nas diversas áreas do
conhecimento. Dessa forma, tomamos como base a compreensão
de que a matemática pode ser entendida como um campo social
específico, no qual consideramos como polos de disputa a Matemática
acadêmica, praticada por matemáticos, e a Matemática escolar,
praticada por professores (FARIAS, 2017).

A constituição dos dados referentes às AACC, nos cursos de


Matemática da UNESP, se deu a partir de consultas aos projetos
pedagógicos de curso de cada unidade, das normas/regulamentos
das AACC e questionários aplicados a 219 egressos, com suas
respostas indicadas por EGR. Para realizar a análise dos objetos
constituídos, na pesquisa, utilizamos o processo de “emparelhamento
ou associação”, que segundo Fiorentini e Lorenzato (2012, p. 138-
139) consiste em uma estratégia de análise de informações a partir
de um modelo teórico prévio, um processo que visa relacionar uma
teoria com as informações obtidas de um dado objeto.

60 |
O texto se organiza a partir da discussão sobre quem são os
licenciandos dos cursos analisados e de que formação cultural
estamos falando. Em seguida, os conceitos da teoria de Bourdieu
serão considerados e a ideia de campo da Matemática, assim como
a de habitus serão estudadas mediante a análise das AACC. Por
fim, concluímos que as AACC se caracterizam como um espaço no
currículo de reprodução e inculcação de uma hierarquia das práticas
matemáticas, ao mesmo tempo em que pode ser compreendida
como uma estratégia de inculcação do habitus do matemático.

2. Os licenciados dos cursos de


Matemática da UNESP
É necessário considerar, segundo Setton (2010), que os estudantes
universitários possuem uma história, um processo de formação e
socialização, o que nos dá subsídio para entender a relação do modo
de incorporação de uma determinada prática. Em outras palavras,
“é a história da trajetória desses parceiros (grupos de pertença dos
agentes) que vai determinar relacionalmente os enfrentamentos, as
estratégias, as vantagens e desvantagens materiais e simbólicas
de cada indivíduo ou grupo social” (SETTON, 2010, p. 21).

Nesse sentido, o questionário utilizado para a constituição dos


dados sobre os egressos dos cursos analisados foi composto por
questões referentes aos dados pessoais, tais como, gênero, idade,
estado civil e cor/raça, números de filhos; dados socioeconômicos
indiretamente com questões referentes ao nível de escolaridade
e a profissão dos pais, a renda familiar e o tipo de moradia do
participante etc. Quanto à trajetória de escolarização, as questões
foram referentes: à escola frequentada no ensino fundamental e
médio (se particular ou pública), à modalidade de ensino médio
cursado, ao porquê da opção pela UNESP, ao motivo de terem
escolhido a Licenciatura em Matemática etc.

61 |
Em uma breve caracterização dos participantes da pesquisa,
foi possível verificar que 83,1% são naturais de São Paulo e, dentre
estes, 24,1% são originários da capital. A grande maioria (94,1%) é
oriunda de áreas urbanas. Foi possível verificar que a média de idade
dos egressos está compreendida em 26,7 anos. Quanto aos dados
relativos ao gênero, 50,2% se declararam do gênero masculino e
49,8% do feminino. Os dados obtidos nos questionários revelaram
ainda que os egressos, em sua maioria, são solteiros (62,6%) e
não possuem filhos (69,4%). Quanto à cor/raça, cerca de 53,9% se
declararam brancos, 39,3% pardos, 5,9% negros e 0,9% amarelo.
A análise nos possibilitou perceber que, em sua grande maioria, os
estudantes estudaram em escola pública (65,8%), escolheram o
curso mais atraídos pela Matemática do que pela docência e estão
ascendendo a um nível de escolaridade superior ao dos pais.

A escolaridade dos pais é uma variável importante de acesso a


oportunidades escolares, uma vez que remete ao capital cultural da
família. Através de ações simbólicas e materiais, a família tem um
papel crucial na vida escolar dos filhos, que resulta de ações muitas
vezes sutis, ou seja, ações que não são conscientes e que acabam
sendo adquiridas cognitivamente. Nesse sentido, Bourdieu (2015,
p. 46) destaca que

Na realidade, cada família transmite aos seus filhos, mais por vias
indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos,
sistemas de valores implícitos e profundamente interiorizados,
que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao
capital cultural e à instituição escolar. A herança cultural, que difere
sob os dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável
pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e,
consequentemente, pela taxa de êxito.

Analisando a renda familiar de forma geral, foi possível observar


que a maioria dos egressos (39,8%) possui renda entre 3 e 4,5 salários
mínimos, o valor médio da renda per capita está na faixa de um salário
mínimo e meio. Trata-se de estudantes provenientes das camadas

62 |
menos favorecidas que, conforme destaca Zago (2000), mantêm
uma relação heterogênea com a escola, marcada por uma natureza
bastante complexa, dadas as condições de vulnerabilidade materiais
e sociais, que priorizam muitas vezes necessidades básicas, tendo
em vista a instabilidade financeira.

Conforme destaca Tardif (2007), a trajetória pré-profissional dos


egressos dos cursos de licenciatura, ainda como alunos, contribui
com uma parte significativa do que eles sabem sobre o ensinar,
tendo em vista sua longa imersão como alunos no local aonde vão
trabalhar, quando iniciam seu processo de aquisição do habitus.
Nesse percurso, os futuros docentes começam a aquisição das
disposições necessárias, isto é, o habitus adequado a prosseguir na
carreira escolar e chegar à condição de agentes do campo acadêmico,
como professores ou pesquisadores.

Corroborando o exposto, as pesquisas de Santos (1996) e


Fiamengue (2002), ao articularem o estudo do perfil dos estudantes
aprovados no vestibular e o grau de elitização das universidades,
defendem que a UNESP tenderia a ser a menos elitizada dentre as
universidades públicas paulistas. Fiamengue (2002) baseia sua
argumentação nos seguintes fatos: heterogeneidade e porcentagem
expressiva de pais com escolaridade insuficiente; precariedade das
rendas familiares per capita e ausência de grandes propriedades na
família, ou seja, famílias que não possuem a propriedade de bens
de produção ou cargos de administração. A explicação para a não-
elitização, segundo Santos (1996), seria associada ao fato de a
UNESP oferecer diversos cursos noturnos em várias localidades
do interior.

Boa parte dos egressos são oriundos de famílias com baixo


capital cultural e econômico, o que implica a necessidade de se
considerar esse ponto de partida no que se refere à formação desses
estudantes, buscando caminhos para ampliar o seu repertório
cultural. Detentores de um capital cultural pouco valorizado pelas

63 |
instituições de ensino, esse problema parece se arrastar ao longo
da escolaridade e vem à tona quando esses alunos, que tiveram
precárias condições anteriores de aprendizagem, chegam ao Ensino
Superior e pretendem seguir carreiras voltadas ao ensino. O capital
cultural é uma importante ferramenta de legitimação dos herdeiros,
pensando-se no caso francês. Porém, devido às singularidades, é
importante uma reflexão no que concerne ao capital cultural e capital
econômico no Brasil, e qual deles seria de fato o condicionante
de legitimação de uma cultura dominante. Para Martins (2015), o
capital cultural é importante para a manutenção e reconversão,
porém, no Brasil o que existe é uma valorização do capital econômico
em detrimento do capital cultural, quando se refere ao acesso aos
melhores cursos e universidades.

A grande maioria ingressou na carreira docente, por falta de


opção em outras áreas. Nesse sentido, Diniz-Pereira (1996, 2006)
destaca que as licenciaturas estão entre os cursos com menor
relação candidato/vaga nos vestibulares, ou seja, não eram os
preferencialmente escolhidos pelos candidatos a uma vaga na
instituição. A este respeito, a teoria de Bourdieu (2004) esclarece
que em suas vidas os agentes fazem escolhas aparentemente
racionais, quando, na verdade, são escolhas produzidas pela história
individual ou coletiva, decorrentes das experiências vividas ao
longo da trajetória pessoal e social e dos condicionantes sociais
que os impediram de buscar cursos socialmente mais valorizados
e rentáveis: “[...] Os agentes de algum modo caem na sua própria
prática, mais do que escolhem de acordo com um livre projeto, ou
do que são empurrados para ela por uma coação mecânica [...]”
(BOURDIEU, 2004, p. 130, grifo do autor). Nas oportunidades de
acesso ao ensino superior, é possível verificar o resultado de uma
seleção direta ou indireta que, ao longo da escolaridade, pesa com
rigor desigual sobre os estudantes que fazem a opção pelos cursos
de licenciatura.

64 |
3. O que se entende por formação
cultural
As pesquisas relativas à formação de professores têm destacado
a importância das atividades culturais na formação de professores.
Kramer (1998, p. 21), por exemplo, ao defender uma política de
formação cultural para docentes, o faz a partir do entendimento de
que essa formação “é parte do processo de construção da cidadania,
é direito de todos [...]”. No entendimento da autora, essa formação
deve assegurar aos professores o acesso às mais variadas formas
de expressão artística,

Por que formação cultural? Porque com a literatura, o teatro, o


cinema, a poesia, a música, as conquistas da mídia, da Informática
e também com a escola podemos nos constituir como seres
humanos críticos, imbuídos de uma ética e de vontade de agir em
prol da justiça, da solidariedade e de um espírito de coletividade
que teimamos ainda em defender. (KRAMER, 1998, p. 23).

A autora destaca a riqueza do mundo da literatura e das


experiências culturais na vida do professor e enfatiza a questão da
importância desta formação, defendendo uma política de formação
que assegure a todos os professores o acesso a cinemas, centros de
cultura, museus, revista etc. Um argumento semelhante é utilizado
por Nogueira (2010, p. 11, grifo nosso), quando destaca que, “como
formador de futuros cidadãos, o professor, antes de tudo, precisa
estar conectado com o mundo da cultura, cultura essa entendida
como patrimônio de todos”. Os professores devem, ao longo da
vida profissional, segundo Nogueira (2008), ter contato com o
mundo da cultura de forma intensa e diversificada, uma vez que
tais oportunidades possibilitam ampliação dos horizontes, novas
formas de enxergar a realidade, os valores, a sociedade, enfim, a
vida.

65 |
Desta maneira, a universidade precisa desenvolver atividades
culturais, ampliando as possibilidades de fruição dos acadêmicos.
Sobre essa questão, Nogueira (2008, p. 39) destaca que tanto alunos
quanto professores “[...] não conseguem, efetivamente, investir na
própria formação cultural, sem pelo menos um incentivo por parte
das universidades ou locais de trabalho”. A autora sugere que, para
assegurar formação cultural dos professores, a universidade poderia:
incluir atividades culturais no currículo; elaborar um projeto de curso
(formação de apreciadores de arte, formação de bons leitores) no
qual a formação cultural permeasse todas as disciplinas do currículo
como práticas comuns entre os professores formadores; promover,
na formação continuada dos professores da educação básica, bem
como em seu projeto político-pedagógico, a produção e veiculação
de eventos artísticos e literários.

As implicações da formação cultural do professor na escola


também são objeto de estudo de Neitzel e Carvalho (2013). Para as
autoras, “a busca pelo conhecimento dá-se por diversas vias e uma
delas é pelo acesso aos bens culturais. Por meio da arte, o sujeito
amplia sua capacidade de reflexão e percepção, assim como sua
sensibilidade” (NEITZEL; CARVALHO, 2013, p. 1023). Isto é, a partir
da relação com a arte, o sujeito ampliaria, pela reflexão, percepção
e sensibilidade sua compreensão daquilo que o rodeia.

Carvalho (2001, p. 76) aponta para a importância de se defender


uma orientação cultural na formação dos professores “envolvendo
a dimensão da apreciação estética, a imersão em espaços culturais
e artísticos”, mas alerta que as questões culturais não têm sido
incluídas de forma explícita e sistemática nos processos de formação.
Almeida (2010, p. 15), por sua vez, sustenta a ideia de que quanto
maior e mais variado for o repertório cultural dos professores, mais
numerosas e apropriadas serão as escolhas possíveis para que este
possa mediar a construção de conhecimentos por parte dos alunos.
Nesse sentido, a ampliação do repertório do professor associa-se,
diretamente, ao contexto da escola e à prática docente.

66 |
Além disso, pode-se supor também que a desigualdade de
desempenho profissional de professores seria explicada, em parte,
pelas diferenças de seu capital cultural (SILVA, 2004). Isto porque,
segundo Silva (2004), o repertório cultural e o gosto pessoal dos
professores podem interferir diretamente na escolha das atividades
cotidianas, na apreciação das produções discentes e na seleção
de recursos e materiais didáticos. Ao efetivar a docência, este
professor pode expor traços de seu processo de socialização e
revelar a sua origem social e cultural. Ainda nesse sentido, Silva
(2004) argumenta que o capital cultural, na dinâmica da prática
pedagógica, pode ser uma ferramenta valiosa capaz de proporcionar
aos professores instrumentos que podem garantir a qualidade do
ensino oferecido aos alunos. De acordo com a autora, “do capital
cultural adquirido pelo professor vem a fertilidade das mediações
criativas que implementam as especificidades dos conteúdos que
ministra” (SILVA, 2004, p. 59). Dessa forma, segundo Silva (2004,
p. 59), a aquisição de capital cultural poderia trazer desdobramentos
que enriqueceriam a prática pedagógica, “tornando-a mediada por
criatividade nos exemplos que formula, por estabelecer relações
com áreas afins etc.”.

Wink Júnior, Ribeiro e Florissi (2017) destacam que o capital


cultural do professor poderia contribuir para o aprendizado do aluno
e os mecanismos pelos quais isso ocorreria seriam dois. O primeiro
é que professores com maior nível cultural podem obter êxito em
estimular o consumo de bens e serviços culturais das crianças.
O segundo é que docentes com maior nível de capital cultural podem
adotar práticas de ensino melhores e mais variadas, o que poderia
favorecer tanto a adaptação da criança ao ambiente escolar quanto
o estímulo ao desenvolvimento de suas habilidades. Nesse sentido,
um docente que se interessa por música poderia compartilhar esse
interesse com os alunos, embora a disciplina ministrada por ele seja
a Matemática, por exemplo.

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Os trabalhos destacados se relacionam pelo viés da formação
cultural estar atrelada às práticas dos professores em seus âmbitos
profissionais. Alguns autores concebem essa formação como
propiciadora de ampliação de repertório e sinalizam em suas
pesquisas o acesso a bens culturais como eixo diferencial dessa
formação propiciada pelas instituições de ensino.

Nesse sentido, a inserção de componentes curriculares, como


as AACC, pode conferir aos currículos de formação docente maior
atenção a este tipo de formação, justificada pela repercussão que
essas práticas podem ter, prioritariamente, no contexto escolar. No
contexto dos espaços de formação, a formação cultural configura-se
como um grande campo teórico para pensar processos educativos,
marcados pelas experiências culturais presentes no trabalho de
formação docente. Contudo, como será possível verificar no decorrer
deste trabalho, a formação cultural aludida, segundo a percepção
dos egressos, parece não ocorrer nos cursos analisados tendo em
vista a opção pela realização de atividades acadêmicas.

4. As AACC como um espaço do


currículo de inculcação do habitus do
matemático
Nas posições assumidas pelos sujeitos nos espaços sociais,
o conceito de campo traz a compreensão de certos espaços de
disposições sociais, nos quais determinados tipos de bem são
produzidos, consumidos e classificados. Esse conceito representa,
ainda, o espaço social de dominação e de conflitos, tendo cada
autonomia e sendo detentor de suas próprias regras de organização
e hierarquia social. Sendo assim, a fim de que um campo tenha êxito,
faz-se necessária a existência de elementos de disputa e pessoas
aptas na disputa do jogo, detentoras de habitus que reconheçam e
considerem as regras inerentes ao jogo, os objetos de disputas etc.
(BOURDIEU, 2011). Esse conceito – habitus – permite compreender

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como as preferências científicas são condicionadas. Disso decorre
que o fazer ciência depende do habitus; porém, não apenas dele,
mas também da posição ocupada pelo cientista dentro do campo.

A partir do reconhecimento da Matemática como um espaço de


lutas e tomando como base a compreensão de campo exposta por
Bourdieu (2011), a Matemática é tomada, conforme Farias (2017),
como um campo no qual o autor considera como polos de disputa
a Matemática acadêmica, constituída e construída na prática dos
matemáticos e pelos matemáticos, e a Matemática escolar, praticada
pelos professores e voltada para o ensino (MOREIRA; CURY; VIANNA,
2005).

A questão do habitus que se propõe a discutir, neste trabalho,


diz respeito ao habitus científico dos matemáticos que, conforme
destaca Farias (2017), impõem aos estudantes da graduação, por
meio das práticas que são desenvolvidas nesses cursos, maneiras
de ver a Matemática, de ver a educação e o ensino dessa disciplina,
bem como a maneira de se ver dentro do campo. Essa imposição
vai moldando o fazer, a prática, desses estudantes, portanto, vai
estruturando o habitus que, ao mesmo tempo, é estruturado por
condições sociais nas quais essa mesma prática se realiza.

As práticas dos integrantes de um mesmo grupo de um campo


se correlacionam porque cada um se ajusta ao outro adotando seus
regulamentos próprios, apresentando um mínimo de concordância
entre os habitus dos agentes mobilizadores (docentes dos cursos) e
das disposições suscitadas nos indivíduos (alunos destes cursos de
graduação) que se identificam com as práticas do grupo. Segundo
Kessler (2003), o habitus do professor de Matemática privilegia o
racional, o quantificável e o que pode ser verificado. Em contrapartida,
“desvaloriza elementos da ordem do sensível, como a emoção, a
intuição, a imaginação” (KESSLER, 2003, p. 244).

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Analisando o tipo de AACC validado pelos egressos, foi recorrente
a participação em pesquisas de Iniciação Científica (IC), grupos de
pesquisa, eventos científicos e publicações de trabalhos. Alguns
egressos relataram a participação em programas de Iniciação à
Docência, monitorias e eventos/atividades ofertadas pelos cursos.
Assim, foi possível constatar que a grande maioria dos estudantes
não participou de muitas atividades desvinculadas à academia. Isto
porque o capital cultural incorporado pelos egressos no decorrer de
sua trajetória universitária incide em suas escolhas, o que sugere a
propensão em investir nas atividades legitimadas pela universidade
(campo dominante), isto é, as atividades mais “rentáveis”.

Com base em Bourdieu (2011), apreendemos que as atividades


rentáveis estão diretamente relacionadas ao campo científico que
determina (rege) a Ciência. As atividades rentáveis possibilitam ao
estudante a obtenção do reconhecimento dos seus pares. Tendo
em vista a escolha dos estudantes pelas atividades acadêmicas em
detrimento do envolvimento em atividades não acadêmicas, inferimos
que tais atividades são vistas como menos rentáveis no espaço
universitário, portanto, a escolha é balizada pela instrumentalidade
do sucesso escolar, categoria constitutiva para a inserção e o
reconhecimento do estudante.

As escolhas, a prática, trazem à tona as estratégias de


conservação da ordem do campo e consequentemente as formas
de manutenção das posições sociais desses agentes. A formação
de professores torna-se, ao mesmo tempo, um instrumento e um
espaço de manifestação dessas estratégias. Isto porque os cursos
enquanto instituições do campo acadêmico, por meio de seus
agentes, conforme destaca Alvermann et al. (2011), tenderiam a
reforçar e a valorizar o capital possuído dentro do campo a partir da
percepção dos capitais mais valorizados nesse espaço. Segundo
Farias (2017), esses valores não seriam apenas percebidos, mas
inculcados. Além disso, mesmo ao reconhecerem os capitais mais
valorizados, os agentes se encaminhariam na direção do campo de
possibilidades que se apresenta a cada um.

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Para Bourdieu (2009), por ser dotado de um habitus, o agente
é, ao mesmo tempo, individual-coletivo e coletivo-individual.
Deste modo, seu posicionamento no mundo social é o resultado
das afinidades de disposição e da orquestração de habitus, tanto
individual quanto coletivo. Essa orquestração é conjuntural, quer
dizer, depende da conjunção necessária de disposições semelhantes
e de acontecimentos desencadeadores – além de um discurso que
assegure a eficiência simbólica do habitus, um discurso de autoridade
que seja capaz de autorizar.

O processo de identificação e/ou homologia é inconsciente,


não é desejado nem calculado. Como o que acontece com o aluno
quando assimila os seus interesses com os do seu orientador, isso
só pode ser eficaz no ponto de vista simbólico, pois constrói a base
de uma afinidade, garantida pela homologia das posições, entre os
habitus do orientador e dos orientados. As afinidades decorrentes da
orquestração dos habitus facilitariam a costura de vínculos entre os
agentes e facilitaria a inserção no campo. Além de uma cumplicidade,
há um sentimento de afeição, admiração e gratidão, resultado da
violência simbólica que está no princípio da inculcação da crença,
como destacado na fala de um dos egressos a seguir:

Eu acho que as AACC são importantes para a nossa formação


porque a gente pode validar os artigos e a Iniciação Científica que
a gente desenvolveu. Alguns amigos meus tiveram dificuldade de
cumprirem as AACC, eu não. Como na minha IC eu tive a sorte
de fazer com um professor muito bom, que publica bastante e
depois foi meu orientador de mestrado, [...] eu acabei conseguindo
apresentar os resultados da IC em vários eventos e publicar dois
artigos, então eu tinha mais horas do que o necessário (EGR-107).
Desde que entrei no curso ouvia sobre a importância do currículo
Lattes, [...] então para ter um bom currículo com chances de concorrer
ao mestrado, uni o útil ao agradável [...] como desde o primeiro
ano fiz IC, validei como horas de AACC tudo relacionado a minha

71 |
pesquisa8, dessa forma cumpri as atividades complementares e fui
construindo meu currículo que me possibilitou entrar no mestrado
(EGR-15).

A partir do referencial adotado, entende-se que os orientadores,


as experiências e o aprendizado durante a orientação têm impacto
sobre muitos aspectos da vida acadêmica do orientando. Para Santos
(2013), a formação do estudante, atrelada ao desenvolvimento
de pesquisa na graduação, vincula-se, também, às práticas do
produtivismo acadêmico. Na compreensão da autora, a inserção
dos alunos de graduação em projetos de pesquisa tem a função de
prepará-lo para a pós-graduação, visto que a pesquisa na graduação
consolida as práticas de produção e reprodução do conhecimento
presente na pós-graduação.

As estratégias dos estudantes podem ser identificadas como


ações práticas resultantes de estímulos de uma situação social
específica (por exemplo, um currículo Lattes competitivo) e tendem
a se adequar às necessidades/demandas impostas, algumas vezes
oriundas das agências de fomento, dos cursos e orientadores ou,
ainda, produto dos conflitos/anseios internos dos estudantes. A noção
de estratégia se refere, também, às práticas que são inconscientes,
dadas como congênitas, evidentes e produto dos habitus adaptados
à demanda social. As estratégias possibilitam o enfrentamento de
circunstâncias imprevisíveis e novas causadas pelo habitus, ainda
que demonstrem que são desenvolvidas em finalidades explícitas.
Para Bourdieu (2009, p. 102), as estratégias mais rentáveis são
determinadas “aquém de todo cálculo e na ilusão da mais autêntica
sinceridade, por um habitus objetivamente ajustado às estruturas
objetivas”.

8 Fazendo uma relação com o tipo de AACC que o EGR-15 disse ter cumprido, “o
tudo relacionado à minha pesquisa”, ao que tudo indica, trata-se participação em
eventos com apresentação de trabalhos, publicação de artigos.

72 |
Nesse sentido, os estudantes de graduação acabam se utilizando
de diferentes estratégias para se inserir, se manter e avançar em
seus cursos, compreendido pelo processo de incorporação de um
tipo de habitus. Um habitus capaz de induzir esses estudantes a
reconhecerem os símbolos distintivos de poder do campo, “[...] e
esse reconhecimento dá-se não só pelo poder da inculcação, mas
pela inculcação de um poder, de um modo de ser distinto” (FARIAS,
2017, p. 96). No processo de incorporação do habitus desejado,
dois egressos relataram que foi necessário se abster de participar
de atividades culturais para conseguir dar conta das demandas do
curso para aquele momento.

No primeiro ano do curso já tinha um objetivo: não queria ser


professor da educação básica, queria ser Matemático, então
eu participei intensamente de atividades como congressos e
eventos de Matemática, fiz Iniciação Científica, participei do PET
e até publiquei alguns trabalhos relacionados à minha IC. Foram
essas atividades que validei com AACC, uni o útil ao agradável,
eu precisava engordar meu Currículo Lattes e precisava cumprir
as horas de AACC para me formar. Então não fiz nenhum tipo de
atividade extra, nenhum tipo de atividade cultural oferecida pela
universidade, como a participação em coral ou grupo de teatro,
mesmo porque o tempo que eu tinha era dedicado a passar nas
disciplinas com boas notas e cumprir minhas obrigações com a
IC e o Programa de Educação Tutorial (PET) (EGR-30).
Validei como AACC as atividades relacionadas à minha pesquisa.
Por isso quando você perguntou se meu curso contribuiu para a
ampliação do meu repertório cultural eu disse que não, [...] tinha
alunos muito bons na minha turma e todos nós concorremos ao
mestrado e às bolsas, então não tinha como participar de coral ou
grupo de teatro, eu tive que focar, o curso e a IC exigiam isso (EGR-7).

Conforme destaca Santos (2013), no mercado acadêmico, a


Iniciação Científica tem se tornado pré-requisito para o ingresso no
mestrado e, posteriormente, no doutorado, por propiciar experiência
acadêmica aos estudantes (estruturação do habitus), elementos

73 |
fundamentais para a atuação na pós-graduação. A composição
do habitus dos estudantes vai sendo validada e perpetuada pelas
proposições do campo acadêmico da Matemática que predispõem
as ações. Portanto, responder com o habitus esperado tende a
ser normalizado entre os agentes. O estudante interessado busca
se adequar às imposições do sistema, compreendendo quando é
necessário se adaptar ou melhorar seu desempenho.

5. Considerações finais
Nesse trabalho, interpretamos sociologicamente a Matemática
como um campo, portanto, com seus agentes em disputa, com
dominantes e dominados, com uma doxa, que se impõe como
verdade pelos dominantes desse espaço social. De acordo com
Bourdieu (2013, p. 118): “no interior de cada um dos campos, há
uma hierarquia social dos objetos [...]”. Essa hierarquia tem dentre
seus parâmetros, em se tratando do campo científico, a definição
do que é científico e do que é ciência.

A teoria de Bourdieu possibilitou reflexões sobre os processos


no interior dos cursos de Licenciatura em Matemática da UNESP
que conferem menor prestígio às práticas, que visam ampliar a
formação dos licenciandos, para além da matemática específica. As
análises permitiram evidenciar que a maioria dos egressos durante a
graduação optou por validar como AACC as atividades acadêmicas,
em detrimento de outros tipos de atividades, por exemplo, as
atividades culturais. Para além das concepções manifestadas
nessas escolhas, existem relações hierarquicamente distintas e
distinguíveis, que estabelecem relações de poder entre os agentes
do campo da matemática. As AACC, na verdade, contribuem para
uma formação que está muito próxima da Matemática acadêmica,
mais distante da prática profissional do professor, perpetuada pelas
proposições do campo que predispõem as ações. Essas atividades
acabam se constituindo em uma boa maneira de inculcar o habitus
do campo, do Matemático.

74 |
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78 |
A constituição do habitus
profissional e dos saberes dos
professores: uma análise sobre o
campo da formação docente à luz
das concepções de Pierre Bourdieu
Luiz Gustavo Bonatto Rufino
Samuel de Souza Neto

| Introdução: Pierre Bourdieu e o


desanuviar da crítica nas relações sociais
Pierre Bourdieu desenvolveu seu constructo teórico alicerçado na
realidade histórica e social na qual vivia, isto é, a França do século
XX (apesar de ter também analisado outros contextos, a exemplo
da Argélia). Mesmo assim, suas ideias atravessaram fronteiras e se
tornaram importantes fomentadores dos mecanismos e estruturas
conceituais utilizados nas Ciências Sociais na atualidade. Seus
pressupostos têm sido utilizados em uma diversidade de áreas de
conhecimento e de intervenção social, a exemplo da política, da
economia, da antropologia, das artes, dos esportes, da literatura,
da educação, entre inúmeras outras.

Segundo Thiry-Cherques (2006), a obra de Bourdieu pode ser


enquadrada tanto na sociologia quanto na filosofia, sendo entendida
como uma teoria das estruturas sociais que leva em consideração
alguns conceitos-chave. Nesse capítulo, abordaremos alguns desses
conceitos, buscando sua interlocução com o campo da formação
de professores e tendo em vista a pertinência dessa temática na
atualidade.

Apesar de se basear em parte dos autores de tradição estruturalista,


a exemplo de Ferdinand de Saussure e Claude Lévi-Strauss, ao aceitar

79 |
a existência de estruturas objetivas, independente da consciência e
da vontade dos agentes, Bourdieu também apresenta contribuições
inovadoras ao sustentar que tais estruturas são produto de uma
gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de
ação. Assim, de acordo com a análise de Thiry-Cherques (2006), Pierre
Bourdieu se esforça para encontrar tramas lógicas ou problemáticas
que evidenciam a presença de uma estrutura subjacente ao
social, tornando-se vanguardista à medida que compreende que
as estruturas, as representações e as práticas constituem e são
constituídas dialética e continuamente.

Para Lahire (2002), as perspectivas inauguradas ou continuadas


por Bourdieu são importantes, uma vez que trazem reflexões de
forma consubstanciada à realidade social. Apesar de considerar
a necessidade de análise crítica e de promulgação de novas
interpretações às reflexões de Bourdieu (datadas de um tempo
histórico correspondente) a exemplo do determinismo ora subjacente
e do caráter desconstrutor da teoria desenvolvida pelo autor, Lahire
(2002) salienta que suas ideias repercutem em diferentes campos
sociais e propiciam uma diversidade de interpretações necessárias
na contemporaneidade.

Ao longo de sua trajetória, Bourdieu analisou e ressignificou


alguns conceitos importantes advindos do campo sociológico.
Evidentemente, não seria possível abordar todos eles em um único
capítulo. Nesse sentido, nossa análise recairá em conceitos tais
como “teoria da prática” (e conhecimento praxiológico), habitus,
campo e capitais. Mais especificamente, teceremos uma abordagem
analítica no campo da formação de professores.

Assim, entende-se que a formação docente é um campo social


complexo composto por diferentes agentes dotados de certos tipos
específicos de capitais. Nesse ínterim, buscaremos lançar olhares
para a transformação do habitus de aluno em habitus profissional,
cuja legitimação tem forte vinculação com o campo da formação.

80 |
Fundamentado em robustas compreensões sobre prática, Bourdieu
desanuviou perspectivas que permitem avançar nas interpretações
voltadas às relações sociais que não fiquem galgadas nem ao
elitismo da ciência, nem ao espontaneísmo das tomadas de decisão
irrefletidas, muito menos ao aplicacionismo da racionalidade técnica.
Trata-se de um vanguardismo analítico e propositivo que precisa
ser mais explorado no campo das ciências da educação.

Dessa forma, tomando-se de aporte a fundamentação ora


apresentada, o presente capítulo buscou, a partir de um ensaio
teórico, analisar o processo de constituição do habitus profissional
no campo da formação de professores, propondo interlocuções com
parte das ideias abordadas por Pierre Bourdieu. Para isso, dividimos o
texto em três tópicos. O primeiro busca aprofundar as compreensões
de prática à luz da teoria bourdieusiana. O segundo lança olhares
aos conceitos de habitus e campo, fundamentais no constructo
analítico de Bourdieu, propondo relações com o campo da formação
docente. O terceiro, por fim, procura sedimentar o lugar da prática
na constituição do habitus profissional dos professores, baseando-
se nas ideias do autor. Finalmente, apresentamos as considerações
finais do trabalho, proporcionando apontamentos e direções futuras
para as análises empreendidas ao longo do capítulo.

| O alicerce da prática no pensamento


bourdieusiano: análises e perspectivas
A concepção de prática é alicerçada por Bourdieu em ao menos
três instâncias. Primeiro, é a base da superação da dicotomia entre
os conhecimentos objetivistas e subjetivistas, uma vez que é por
meio do conhecimento praxiológico que o autor encontra uma seara
de análises sociológicas potencialmente importantes. Segundo, tem
sua materialidade na manifestação do habitus dos agentes inseridos
nos diferentes campos sociais, revestindo tal conceito de pertinência
e singularidade fulcrais para as Ciências Sociais. Terceiro, enquanto
categoria conceitual, Bourdieu contribuiu para o duplo movimento

81 |
de retomada das compreensões das práticas sociais de forma a
fugir das abstrações conceituais, do proselitismo e do elitismo por
vezes exacerbadamente presentes no campo científico e romper
com as perspectivas aplicacionistas muitas vezes hegemônicas.

Nesse ponto, cabe uma pequena digressão. De acordo com


Brown, Morgan e Aldous (2017), a proposta de uma sociologia da
prática sob a égide de Bourdieu tem demandado muita atenção,
especialmente nas últimas décadas. Esse incremento é tanto uma
contribuição quanto também foi beneficiado pelo que Schatzki,
Cetina e Savigny (2001) denominaram de “virada da prática” nas
Ciências Sociais. Esse movimento pode ser resumido pelo aumento
da compreensão de que a prática (o que é realizado repetidamente
em um dado contexto social) tem um papel causal na vida social,
muito mais do que simplesmente ser consequência dos discursos
sociais, narrativos ou interpretação voluntária dos agentes (BROWN;
MORGAN; ALDOUS, 2017).

Para que essa concepção de prática ganhe corpo e se constitua


como elemento balizador da obra bourdieusiana, o autor traz para
discussão a ideia de conhecimento praxiológico. Tal conceito é
centralizador e ponto fulcral para se compreender que prática é essa
que Bourdieu aborda e como ela se distingue de outras concepções,
usualmente galgadas no conhecimento objetivista e no conhecimento
subjetivista. Esse conflito inverídico entre objetivismo e subjetivismo
provocou poucas contribuições efetivas quando se busca entender
as disposições dos agentes frente às ações exercidas dentro dos
campos sociais (BOURDIEU, 2009).

Com efeito, compreender as nuances da prática nos leva,


como salienta Bourdieu (1983a, p. 47, grifo do autor), a considerar
o conhecimento não somente a partir dos sistemas de relações
objetivas (objetivismo), “mas também as relações dialéticas entre
essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais ela se
atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o duplo processo de
interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade”.

82 |
A esse tipo de conhecimento o autor denomina praxiológico. Isso
nos leva à necessidade de análise dos modos de desenvolvimento
da prática na realidade social. De acordo com Bourdieu (2009, p. 48),

[...] o mais temível obstáculo à construção de uma ciência adequada


da prática reside sem dúvida no fato de que a solidariedade que une
os eruditos à sua ciência (e ao privilégio social que a torna possível
e que ela justifica ou proporciona) os predispõem a professar a
superioridade de seu saber, muitas vezes conquistado mediante
imensos esforços, contra o senso comum e, até mesmo, em encontrar
nessa superioridade uma justificação de seu privilégio, em vez de
produzir um conhecimento científico do modo de conhecimento
prático e dos limites que o conhecimento erudito deve ao fato de
que ele repousa sobre o privilégio.

Para se compreender essa perspectiva de prática, nos apoiamos


inicialmente na definição de Bourdieu (2009) acerca do “senso prático”,
o qual representa aquilo que os indivíduos possuem e utilizam para
desempenhar suas ações ou se portar de determinadas formas frente
às diversas situações, a exemplo dos jogos de sociabilidade que se
expressam na linguagem do tato, da habilidade, da delicadeza, da
destreza ou do saber fazer (BOURDIEU, 2009). Segundo o autor, os
agentes inseridos no mundo social possuem um senso prático que se
atrela a um sistema de preferências e que pode ser entendido como
o “gostar de algo”, ou seja, suas disposições, além das estruturas
cognitivas e os esquemas de ação que fazem com que se perceba
a situação, seguida de uma resposta apropriada (BOURDIEU, 2009).

Para Bourdieu (2009, p. 133), “não é fácil falar da prática de uma


maneira que não seja negativa; e principalmente da prática no que
ela tem de mais mecânico em aparência, de mais oposto à lógica
do pensamento e do discurso”. Nesse sentido, o autor ressalta que
a prática não pode ser traduzida completamente pela linguagem
escrita, mas precisa da força dos gestos, dos ritos, da conduta
para ser decodificada. O autor menciona ainda que, dentro dessa
compreensão, toda aprendizagem é prática como, por exemplo, o

83 |
aprender dos esquemas, das condições, do pensar, da teoria, das
ações e dos discursos produzidos. Ainda para o autor, as ações
práticas, representadas pela linguagem dos sentidos, tal como o
tato, além dos ritos, rituais, cerimônias, os saberes fazer, etc., os
quais compõem o “senso prático”, não devem ser concebidas como
instâncias estanques ou cristalizadas, mas como ações dinâmicas
que se desenvolvem ao longo do tempo, não apenas por ocorrer
dentro de um intervalo temporal, “mas também porque ela joga
estrategicamente com o tempo e particularmente com o andamento”
(BOURDIEU, 2009, p. 135). Nesse direcionamento, considera:

É preciso abandonar todas as teorias que tomam explícita ou


implicitamente a prática como uma reação mecânica, diretamente
determinada pelas condições antecedentes e inteiramente redutível
ao funcionamento mecânico de esquemas preestabelecidos,
“modelos”, “normas” ou “papéis”, que deveríamos, aliás, supor que
são em número infinito, como o são as configurações fortuitas dos
estímulos capazes de desencadeá-los. (BOURDIEU, 1983a, p. 64).

Para Bourdieu (2010), as práticas não se deixam deduzir às


condições do presente que, aparentemente, podem parecer tê-las
suscitado, nem às condições do passado, portanto históricas e,
por isso, produtoras do habitus. Para se compreender as práticas,
é necessário focalizar as relações nas quais as condições sociais
constituidoras do habitus as engendram, além de se investigar as
condições sociais nas quais as práticas são colocadas em ação.

Dialogando com Bourdieu (2009), compreendemos que os


conhecimentos objetivista e subjetivista (fenomenológico) acabaram
se tornando as visões de mundo que impregnaram a constituição
das compreensões das relações sociais nos mais diversos campos.
A visão vanguardista de Pierre Bourdieu tem como eixo estruturador
o fato de buscar compreender o desenvolvimento do conhecimento
praxiológico e suas ligações com o senso prático e a estruturação
dos habitus dos agentes. Como salienta o autor, é preciso romper
com a lógica das regularidades objetivas como estruturadoras

84 |
das práticas, de modo que a prática tende a ser subordinada aos
cânones científicos que procuram formas de analisá-la de acordo
com pressupostos eruditos e não a partir do sentido vivido no jogo
social (BOURDIEU, 2009).

Nesse sentido, o habitus pode ser compreendido à medida que


temos um entendimento de prática que alicerça as disposições dos
indivíduos nessas estruturas mais ou menos estáveis. Assim, ele
opera no advento e na decorrência do conhecimento praxiológico.
O autor atribui à prática um estatuto epistemológico fundamental
nas disposições dos sujeitos nas ações humanas, possibilitando
“construir a teoria da prática ou, mais exatamente, do modo de
engendramento das práticas” (BOURDIEU, 1983a, p. 60).

Essa compreensão de prática é crucial para se entender o


campo da formação de professores. Os agentes inseridos no
campo da formação buscam adquirir determinados conjuntos de
capitais que os possibilitam exercer a docência. Ao imergirem na
realidade profissional, os professores então não apresentam como
direcionamento “aplicar” teorias e conhecimentos advindos de
seus cursos de formação (visão aplicacionista), mas desenvolver
saberes em consonância com suas práticas profissionais. É aqui
que o conceito de habitus ganha centralidade e destaque e pode
proporcionar contribuições robustas ao campo da formação.

| Habitus e campo: interlocuções


conceituais para a formação de professores
Muitos são os conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu ao
longo de sua extensa e qualificada obra. Entre os aspectos que mais
apresentam destaque nas interlocuções com o campo educativo da
formação de professores estão os conceitos de habitus e de campo.
Centrais em sua fundamentação e análise, tais conceitos permitiram
a Bourdieu desenvolver um amplo constructo teórico possível de
ser desmembrado em uma diversidade de campos sociais. Cabe

85 |
salientar que tanto um quanto outro são conceitos que devem ser
fundamentados a partir da visão de prática elencada no tópico
anterior.

No centro dessa análise está a concepção de habitus. Podemos


considerar que as ações práticas são desenvolvidas a partir do
engendramento do habitus, o qual, para Bourdieu (1983b, p. 15),
pode ser compreendido como “sistemas de disposições duráveis,
estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como
estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura
as práticas e as representações”. Para o autor, o habitus pode ser
regulamentado sem necessariamente obedecer a regras objetivas,
sendo coletivamente orquestrado a partir da dinâmica da relação de
interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade.

As “disposições”, representadas pelo habitus, são fundamentais


na observação das práticas por caracterizar a sua ação e a trajetória
no campo (BOURDIEU, 2008). Para o autor:

Produto da história, o habitus produz as práticas, individuais e


coletivas, portanto, da história, conforme os esquemas engendrados
pela história; ele garante a presença ativa das experiências passadas
que, depositadas em cada organismo sob a forma de esquemas
de percepção, de pensamento e de ação, tendem, de forma mais
segura que todas as regras formais e que todas as normas explícitas
garantir a conformidade das práticas e sua constância ao longo
do tempo. (BOURDIEU, 2009, p. 90).

Ora, podemos considerar então que as ações práticas, inseridas


nos contextos relacionados ao mundo social, são a manifestação
do habitus em sua estrutura tanto estruturada quanto estruturante,
isto é, as práticas ao mesmo tempo que manifestam o habitus são
também por ele manifestados, de forma que podemos considerar
que elas são produzidas pelo habitus da mesma forma que ele é
produto das práticas sociais, por meio do que o autor denomina de
efeito de “incorporação”. Dessa forma, concebemos que o habitus

86 |
representado por cada grupo social delineia ou, em linguagem
bourdieusiana, “orquestra” as práticas dos agentes nele inseridos. É
nesse sentido que o habitus do grupo social formado pelos médicos,
por exemplo, delimita uma série de condutas e ações regidas pelos
seus agentes que são muito mais enraizadas (incorporadas) do
que as leis e normas da profissão, por exemplo. Da mesma forma, o
denominado “habitus dos professores”, em linhas gerais, representa
um conjunto importante de estruturas que de alguma forma regem
a forma de organização das ações práticas desse grupo. De acordo
com Bourdieu (2009, p. 88):

O mundo prático que se constitui na relação com o habitus como


sistema de estruturas cognitivas e motivadoras é um mundo de
fins já realizados, modos de emprego ou movimentos a seguir, e
objetos dotados de um “caráter teleológico permanente”, como diz
Husserl, ferramentas ou instituições; isso porque as regularidades
inerentes a uma condição arbitrária (no sentido de Saussure ou de
Mauss) tendem a aparecer como necessárias, até mesmo naturais,
pois estão no princípio dos esquemas de percepção e de apreciação
por meio dos quais são apreendidas.

Ainda segundo Bourdieu (2009, p. 89), as estruturas do habitus


estão “no princípio da percepção e da apreciação de toda experiência
ulterior”. Dessa forma: “O habitus não é senão essa lei imanente, lex
ínsita inscrita nos corpos por histórias idênticas, que é a condição não
somente da concertação das práticas, mas também das práticas de
concertação” (BOURDIEU, 2009, p. 98). Em suma, Bourdieu (1983a)
preconiza que o habitus, grosso modo, é a “gramática geradora” das
práticas sociais. Nossas ações são guiadas por um conjunto de
esquemas (portanto, de habitus) que, embora individuais, refletem
em grande parte as estruturas representativas dos grupos sociais
em que nos inserimos, tais como, nossa classe social, nosso gênero,
nossa profissão, etc.

Perrenoud (2002) exemplifica a importância da compreensão


do habitus especificamente para os professores na perspectiva

87 |
reflexiva, afirmando que não somos conscientes de todos os nossos
atos durante o tempo todo, e nem temos consciência de que nossas
ações seguem estruturas estáveis. Portanto, inevitavelmente, agimos
durante boa parte de nossas ações de modo imediato ou, nas palavras
do autor, no “piloto automático”. O processo reflexivo permite então
a reconfiguração do habitus dos professores, a partir da tomada de
consciência de seus esquemas de ação para, possivelmente, eles
serem alterados.

Para Perrenoud (1997), o habitus dos professores delimita suas


práticas profissionais, porém, a formação docente, por diversas
razões, tem contribuído de forma ainda limitada nessa reconfiguração
dos esquemas de ação, fruto da falta de reflexividade presente em
seu interior e na cultura do magistério como um todo. Assim, o autor
contribui com seu olhar ao frisar que é preciso investir de forma mais
contundente “[n]a elaboração de uma teoria mais realista da prática,
mais descritiva e menos prescritiva, incidindo tanto no trabalho da
aula como naquilo que acontece à margem dela” (PERRENOUD,
1997, p. 50).

No caso dos agentes que compõem o grupo social dos professores,


as representações desenvolvidas pelas pessoas inseridas nesse
campo apresentam um habitus próprio, que pode ser denominado
de “habitus professoral” (LUGLI, 2005; SILVA, 2005; SILVA, 2011), ou
de habitus docente, ou habitus profissional para Perrenoud (2002).
Nesse sentido, é fundamental que sejam elucidadas as dinâmicas
de estruturação deste habitus uma vez que, por ser desenvolvido
no campo profissional e estar fortemente arraigado aos saberes
provenientes da experiência, os processos de formação docente
precisam compreendê-lo de forma apropriada.

O habitus dos professores engloba suas condições de ação


enquanto grupo social, bem como suas escolhas e são, portanto,
formados pelas rotinas e por esquemas operatórios, que controlam
as ações pedagógicas (PERRENOUD, 2001c). Nesse sentido,

88 |
podemos dizer que esse conceito proposto por Bourdieu (2009,
2002, 1983a) está justaposto no interior da profissão docente e
seu exercício envolve uma formação específica e o aprendizado de
seus fazeres. Dessa forma, se existe o interesse em compreender as
práticas dos professores, se faz fundamental elucidar as dinâmicas
de estruturação do habitus (SOUZA NETO; BENITES; SILVA, 2010),
pois ele agrega os processos da formação inicial/continuada, bem
como o desenvolvimento profissional no campo de atuação.

Outro conceito fundamental para nossa análise se refere à


compreensão de “campo”. Podemos compreender que a “teoria dos
campos”, na visão sociológica, contribuiu para a explicação das
relações entre os diferentes agentes inseridos no espaço social.
Para Bourdieu (1984), todo espaço social é constituído por múltiplos
campos caracterizados como configurações espaciais nas quais os
agentes estão inseridos, competindo, interagindo e se relacionando
de forma hierárquica.

De acordo com Hilgers e Mangez (2015), o ponto central dessa


concepção está na compreensão das relações existentes entre os
diferentes agentes e como eles se posicionam dentro dos campos.
Para os autores (HILGERS; MANGEZ, 2015, p. 2, tradução nossa9):
“a realidade social pode ser concebida fundamentalmente como
relacional – é então as relações entre os elementos, e não apenas os
elementos em si mesmos, que devem estar no centro das análises”.

Assim, para Bourdieu (1989), o campo pode ser compreendido


tanto como um território de forças, no qual as necessidades são
impostas aos agentes que nele estão inseridos, quanto um campo
de lutas, no qual os agentes se confrontam entre si. Os diferentes
meios e fins estabelecidos são baseados nas posições dos agentes
na estrutura do campo, seja para contribuir com a conservação,
seja para transformar essa estrutura.

9 No original: “social reality is conceived as fundamentally relational - it is therefore


the relationships among the elements, and not the elements themselves, that must
be at the heart of the analysis”.

89 |
Podemos compreender que um campo é um domínio de atividade
social relativamente dinâmico e autônomo (com suas próprias
estruturas objetivas, regras, categorias, posições, convenções, rituais,
interesses, valores, etc.) que responde às regras de funcionamento
e instituições específicas as quais definem as relações entre os
agentes. Estes, por sua vez, lutam para obter uma condição de
dominação ou para se manter nessa condição hegemônica, a partir
do seu conjunto de capitais e de seu habitus. Importante ressaltar
que tanto os agentes inseridos no campo são afetados por seu
funcionamento, quanto também o influenciam a partir de relações
dialéticas. Para Bourdieu e Wacquant (1992, p. 97, tradução nossa10),
o campo pode ser compreendido como:

Uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições


objetivamente definidas, na sua existência e nas determinações que
impõem aos seus ocupantes, agentes das instituições, pela suas
situações atuais e potenciais (situs) na estrutura da distribuição de
espécies de poder (ou capital) cuja posse ordena acesso aos lucros
específicos que estão em jogo no campo, assim como pelas suas
relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação,
homologia, etc.).

Em sua vasta obra, Bourdieu abordou as interações sociais


em diferentes campos. Dentre os mais analisados pelo autor,
podemos citar: científico, religioso, artístico, econômico, político,
jurídico, educacional, entre outros. Apesar de cada um desses
campos apresentar características específicas, como regras e
relativa autonomia, Hilgers e Mangez (2015, p. 5, tradução nossa11)
10 No original: “[…] a network, or a configuration, of objective relations between
positions. These positions are objectively defined, in their existence and in the
determinations they impose upon their occupants, agents or institutions, by their
present and potential situation (situs) in the structure of the distribution of species
of power (or capital) whose possession commands access to the specific profits
that are at stake in the field, as well as by their objective relation to other positions
(domination, subordination, homology, etc.).”.
11 No original: “[...] it is possible to bring to light the invariants that shape and
structure them”.

90 |
consideram que, em linhas gerais, “é possível trazer à tona os
elementos invariantes que os formam e os estruturam”.

Dessa forma, podemos compreender que, onde quer que haja


relações sociais entre diferentes agentes pela busca do monopólio
pelo poder, podemos estabelecer campos e subcampos específicos,
ainda que as barreiras entre cada um possam não ser claramente
estabelecidas. Por exemplo: dentro do campo educacional, podemos
considerar diferentes subcampos, tais como o relacionado à
formação de professores em específico. Para Lisahunter, Smith e
Emerald (2015), essa concepção nos permite identificar e diferenciar
os diversos espaços sociais, assim como as práticas e as posições
de poder. Para esses autores, todos os campos contêm agentes
dominados e outros dominantes, sendo essa divergência um dos
fatores que leva às lutas em seu interior.

Uma importante conceituação apoiada pelas ideias de Bourdieu


se refere à intrínseca relação entre habitus e campo. Hilgers e Mangez
(2015) destacam que habitus e campo são produtos do encontro
de duas histórias, sempre incompletas e diferentes. As estruturas
sociais dos campos requerem certas estruturas de seus agentes
de forma que as delimitações dos habitus acabam por demarcar
os papéis dos agentes no interior do campo, isto é, se ele terá ou
não o monopólio do poder. O deslocamento entre habitus e campo
repercute na hysteresis, o que pode causar diversas crises tanto
para o sujeito quanto para o próprio campo no qual ele se insere.

Nesse sentido, o campo da formação de professores opera em uma


racionalidade específica a qual, por um lado, propõe uma interface
com o campo acadêmico científico (universidade) à medida que se
apoia na ciência para sua sustentação. Por outro lado, apresenta
forte implicação com uma realidade profissional concreta (o campo
educativo) representado pelo trabalho do professor na escola,
cuja racionalidade está imbricada com as dinâmicas profissionais
advindas desse espaço social. É nessa interlocução entre campos

91 |
que a formação busca constituir-se. Todavia, sob a perspectiva
sociológica apresentada por Bourdieu, podemos considerar que
tais relações entre campos são permeadas pela lógica do poder
de modo que intensas lutas e disputas acabam eclodindo. Desse
modo, a partir de agora discorreremos sobre o papel da formação
docente na constituição do habitus profissional dos professores.

| Entre o campo acadêmico e o escolar:


a fundamentação da prática como lócus
da constituição do habitus profissional
Em que pese a importância destinada às análises acerca dos
conceitos de habitus e campo, tais compreensões precisam ser
desenvolvidas em realidades sociais concretas, a exemplo do campo
da formação de professores. Como salientamos, é justamente na
interlocução entre o campo acadêmico e o campo profissional
(escolar) que a formação docente opera e se estrutura. Para isso,
ela está galgada em um amplo conjunto de capitais. Assim, a
compreensão ampliada do conceito de capital, segundo Bourdieu,
merece ser mais explorada.

Para a compreensão geral da constituição sociológica das


práticas, é importante estabelecermos alguns olhares introdutórios
ao conceito de “capital”. Lisahunter, Smith e Emerald (2015) apontam
que Bourdieu propõe uma conceituação de capital que vai além da
denominação econômica, marcadamente fundamental na obra de
autores como Karl Marx. Assim, para além do capital econômico, o
autor salienta a presença de outros, tais como, o social, o cultural e o
simbólico. O capital simbólico é, via de regra, a forma que os demais
capitais assumem quando eles são reconhecidos e valorizados
dentro de um determinado campo (BOURDIEU, 2010).

Bourdieu e Wacquant (1992) afirmam que os capitais só existem


em relação ao campo, uma vez que conferem, cada qual do seu

92 |
modo, poder ao campo. Para os autores, os capitais propiciam
também poder aos instrumentos de produção ou reprodução
materializados ou incorporados que constituem cada campo, além
das regularidades e regras que definem seu funcionamento, ou ainda
devido aos aportes financeiros engendrados no campo.

O capital econômico, como destacam Lisahunter, Smith e Emerald


(2015), se refere às questões econômicas que se configuram na
base da fundação ontológica das sociedades capitalistas. O capital
social, por sua vez, é definido pela rede de relações duráveis que
permanecem conectadas entre os agentes em seu interior. Com
relação ao capital cultural, cabe destaque aos valores e posses
culturais e atributos sociais valorizados socialmente no interior
de cada campo. Por fim, o capital simbólico é a representação da
atribuição de poder autoritário aos capitais econômico, social e
cultural, de forma que busca influenciar e até mesmo determinar a
natureza de um determinado campo.

Dessa forma, para Bourdieu (2009, 1983b), a gênese da


problemática entre a oposição da teoria e da prática pode ser
compreendida, nas ciências sociais, no que se refere ao contraponto
entre dois tipos de conhecimento: o subjetivismo, ligado à perspectiva
fenomenológica, o qual busca refletir sobre as experiências, mas,
via de regra, não pode ir além da mera descrição dessa “experiência
vivida”; e o objetivismo, o qual, por sua vez, busca estabelecer
regularidades objetivas (estruturas, leis, sistemas de relações, etc.),
introduzindo a perspectiva do conhecimento erudito, tendo como
foco racionalizar as práticas.

A oposição entre objetivismo e subjetivismo é danosa à


compreensão da prática à medida que opõe duas visões limitadas
sobre o ponto de vista das estruturas sociais advindas das relações
dialéticas existentes na esfera prática. Portanto, a compreensão
do conhecimento praxiológico, o qual busca operar nessa relação
dialética entre as estruturas estruturadas e estruturantes apresenta-

93 |
se como possibilidade de superação de ao menos parte dos
problemas orientados pela ótica da oposição de tipos diferentes de
conhecimentos e suas implicações para a prática social (BOURDIEU,
2009, 1983b), crucial no entendimento da formação docente.

Em suma, a “teoria da prática” estabelecida por Pierre Bourdieu


busca, dentro do campo da sociologia, formas de apreender a prática
sem basear-se nos conhecimentos objetivistas e subjetivistas. É
justamente no empreendimento do conhecimento praxiológico
que a compreensão de prática passa a fazer sentido, por meio
das categorias analisadas, tais como, habitus, campos, capitais,
entre outras. Essa análise é potencialmente importante para se
compreender a dinamicidade das ações práticas, tão característica
da esfera educativa, evitando-se incorrer ao risco já salientado de
entender a prática como produto mecânico das ações ou, ainda mais
grave, analisá-la como lócus de “aplicação” de teorias e técnicas.

O campo da formação de professores deve operar na dinâmica


estrutural que possibilita ao agente nele inserido (no caso, o futuro
docente, ou o professor em serviço) transformar seu habitus de
aluno (fruto dos processos de socialização na família e na escola)
em habitus profissional, para que esse agente possa intervir em
seu campo de intervenção (no caso, o campo educativo da escola)
legitimado por meio de práticas condizentes e coerentes com as
representações pertinentes a esse campo. À medida que a formação
se afasta desse processo de transformação de habitus e articula-
se apenas ao processo de aquisição de conhecimentos científicos
que posteriormente serão “aplicados” nos contextos de prática
profissional, tem-se uma ruptura com a própria lógica que legitima
esse campo, bem como a valorização de um tipo de conduta de
conhecimento que desconsidera os saberes praxiológicos na visão
bourdieusiana.

É dentro dessa conjuntura que, em termos epistemológicos,


gerou-se uma separação dentro do campo da formação docente

94 |
entre as esferas de produção de conhecimentos (lócus dos
conhecimentos fenomenológicos e objetivistas) e de sua disseminação
(lócus praxiológico). A racionalização científica a partir da visão
tradicional (racionalidade técnica) está sustentada em uma linha
dicotômica que separa os âmbitos destinados tanto à construção
dos saberes por meio das pesquisas, ou seja, a universidade, quanto
à sua implementação (ou propagação), cujo lócus está relacionado
à escola e ao ensino escolarizado de modo geral. Essa perspectiva
tem sido alvo de inúmeras críticas na literatura, uma vez que se
baseia no entendimento de que são os pressupostos científicos que
norteiam e direcionam as ações práticas por meio de sua aplicação,
modelo denominado de “aplicacionista” (SCHÖN, 2000).

Uma vez que a importância do campo da formação docente se


legitima justamente por meio de sua disposição na transformação,
tendo em vista a construção do habitus profissional dos agentes
nele inserido, diferentes estratégias devem ser adotadas. Não
se propõe, baseado nas análises de Bourdieu, o afastamento do
conhecimento científico, muito pelo contrário. Esse autor foi um
exemplo da importância de uma formação robusta galgada em
práticas científicas rigorosas e metódicas. Todavia, é fundamental
que se possa afastar as perspectivas elitistas da erudição acadêmica
que pouco repercute efetivamente com o trabalho realmente exercido
pelos atores sociais no campo educativo. À medida que a formação
de professores não é capaz de transformar o habitus, tem-se o risco
eminente de causar o efeito de hysteresis (BOURDIEU, 1984) quando
o docente não mais se reconhece dentro do campo no qual atua
(escola).

Assim, o desenvolvimento do habitus profissional é condição sine


qua non para o exercício profissional da docência. Evidentemente, os
cursos de formação de professores, sobretudo na formação inicial, não
devem ser os únicos responsáveis pelo exercício dessa transformação
de habitus. Todavia, por se tratar de um importante processo de
socialização, é fundamental que a formação apresente condições

95 |
efetivas de proporcionar parte dessa passagem de transformação
de habitus. Tal transformação não deve ser compreendida como um
empreendimento “pronto e acabado”, uma vez que o profissional
também se constitui no decorrer do desenvolvimento de sua relação
com seu trabalho. Desse modo, o desenvolvimento de saberes da
ação pedagógica alicerçados no trabalho também é fomentador
desse processo de disposição do habitus, o qual será “validado”
e possivelmente ressignificado no decorrer da história ao mesmo
tempo que dialeticamente também será ele construtor dessa própria
história.

Temos, dessa forma, uma proposta interpretativa que congrega


ao campo da formação docente importância crucial ao longo do
processo de construção do habitus dos agentes nele inseridos, bem
como de sua socialização. Porém, tal processo não acontece à revelia
de intensas lutas e disputas e da relação entre campos, cada qual
com sua singularidade e representatividade. Bourdieu nos ajuda a
tomar ciência dessas relações e, a partir delas, propor interpretações
menos ingênuas e mais fundamentadas sociologicamente em
paradigmas coerentes com o modo e o tempo em que vivemos.

| Considerações finais: pensar com Pierre


Bourdieu no século XXI
Muitos são os desafios enfrentados pelos agentes inseridos
nos diferentes campos sociais, sobretudo aqueles que não detêm
um conjunto de capitais simbólicos representativos e valorizados
para esses campos. As intensas lutas e disputas que caracterizam
uma sociedade marcadamente desigual e o monopólio do poder em
determinados grupos dominantes contribuem para a reprodução
de estruturas e práticas sociais fundamentadas na desigualdade.
Entretanto, longe de ser um fato dado e irrestrito, isto é, um movimento
socialmente imutável, Bourdieu salienta que as mudanças necessárias
são, sobretudo, transformações nas estruturas sociais, sem as quais
poucas ou nenhuma efetividade realmente será presumida.

96 |
Partindo-se de um recorte específico, galgado no campo da
formação docente, nesse capítulo objetivamos analisar, por meio de
um ensaio teórico, o processo de constituição do habitus profissional
no campo da formação de professores, propondo interlocuções com
parte das ideias abordadas por Pierre Bourdieu. Trata-se de uma
temática complexa e que fomenta diferentes frentes de investigação.
Apoiamo-nos em alguns conceitos-chave para delimitarmos um
campo de análise e interpretação, embora reconheçamos que outros
inúmeros desdobramentos podem ser dados a esse mesmo tema.

Em linhas gerais, podemos compreender que nosso pressuposto se


fundamentou no entendimento do campo da formação docente como
processo de socialização. Enquanto campo social na perspectiva
bourdieusiana, trata-se de um espaço de lutas e disputas entre os
agentes nele envolvidos, a exemplo dos professores formadores (das
universidades, Instituições de Ensino Superior), pesquisadores e
produtores de conhecimento científico, alunos em formação (futuros
profissionais), realizadores de políticas públicas que delimitam e
constrangem legalmente o processo, trabalhadores inseridos nos
contextos de prática profissional (a exemplo dos professores que
já estão atuando na escola), entre outros. A articulação entre esses
atores sociais possibilita a interação de um sistema altamente
complexo e repleto de nuances que precisam ser compreendidas
sob o ponto de vista das relações sociais desenvolvidas.

Pierre Bourdieu nos brinda com uma extensa análise que permite
romper visões ingênuas, avançar na perspectiva das relações
sociais e, sobretudo, vislumbrar a prática como lócus de interação
e produção de saberes, de disposição dos indivíduos por meio da
compreensão do habitus e de suas implicações nos diversos campos
sociais. Fomentar o debate arraigado a essas ideias no contexto
da formação deve ser uma iniciativa a ser explorada de modo mais
robusto tendo em vista sua pertinência.

97 |
O campo da formação docente tem sofrido com inúmeros
dilemas e perpassado por diversos desafios de ordem estrutural
e pragmática. A desvalorização da docência como profissão, a
baixa atratividade da carreira, as dificuldades em se compreender
a estruturação dos cursos de licenciatura, a academicização
da formação e o achatamento dos tempos destinados a ela, os
descompassos entre as compreensões de teoria e prática, entre
inúmeros outros aspectos, revestem a necessidade de desenvolver
olhares que possibilitem romper com paradigmas que não mais
correspondam com a atualidade.

O desafio em se compreender a prática no campo da formação


docente é apenas um dos inúmeros percalços necessários para seu
desenvolvimento. A atualidade do pensamento de Bourdieu reflete
sua pertinência e importância, bem como reforça a necessidade de
se ampliar e ressignificar parte de seu legado. O campo da formação
de professores não pode se furtar disso e, portanto, trata-se de uma
seara de possibilidades investigativas que se abrem e que devem
ser incentivadas nos próximos anos.

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100 |
Reflexões bourdieusianas sobre a
escola e a experiência educacional
vivenciada por pessoas surdas
Ernani Nunes Ribeiro
Edson Silva

| Introdução
É a partir da problemática referente às relações de poder entre
os sujeitos e o meio social que o sociólogo francês Pierre Bourdieu
(1930-2002) apontou um questionamento norteador de muitas de
suas pesquisas: “como as condutas podem ocorrer sem ser produto
de obediência às regras?” (BOURDIEU, 2005). Essa reflexão nos
provocou um despertar sobre o entendimento das relações de poder;
entre o modelo da educação construído pela tradição e o movimento
de inclusão educacional, com recorte das situações vivenciadas
por pessoas surdas. Logo, passamos a indagar: quais seriam as
situações sociais e históricas que, dialogadas com a perspectiva
da teoria bourdieusiana, poderiam apontar uma compreensão mais
nítida sobre a ilusória simbiose existente entre a educação tradicional
e a inclusão educacional de pessoas surdas?

Nossa pesquisa foi estruturada com abordagem qualitativa,


pois o caráter do estudo possibilitou uma sistematização como
forma de exemplificar os diversos aspectos inerentes ao estudo.
Compreendemos que, no campo pesquisado, o “objeto não é um dado
inerte e neutro, está possuído de significados e relações que sujeitos
concretos criam em suas ações” (CHIZZOTTI, 1998, p. 79). Realizamos
uma pesquisa bibliográfica buscando referências, informações
elaboradas e publicadas por estudiosos que possibilitem evidenciar,
aprofundar e dialogar com reflexões para o entendimento e análise
do tema estudado (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZ NAJDER, 1999).
Esta abordagem metodológica caminhou com todo o processo de

101 |
tessitura do estudo, uma vez que a revisita aos teóricos e aos dados
coletados faz parte do próprio processo criativo da ciência.

É comum pensarmos no contexto das experiências, pois muitas


vezes sentimos que somos agentes livres. Todavia, baseamos
nossas decisões cotidianas em pressuposições sobre o caráter,
comportamento e atitudes previsíveis e aparentes de outras pessoas
(PEREIRA, 2002). Somos constantemente moldados por opiniões,
costumes e atitudes12 que geram conceitos e preconceitos sobre
as situações que interpretamos pela linguagem, nos impelindo no
agir. As tradições, as religiões, os grupos políticos e até os times de
futebol são exemplos apresentados no empirismo que corrobora tal
perspectiva (PEREIRA, 2002). A harmonia é quebrada quando algum
sujeito demonstra inaptidão nas estruturas dos sistemas de ideias
e contraria o acordo simbólico. Ao apresentar postura destoante da
harmonia do modelo sistêmico de leis e costumes (muitas vezes
subjetivas) sustentado do grupo dominante, o sujeito é sobrepujado
à adequação ou eliminação das relações entre o coletivo a que
pertencia.

A tradição sociocultural registrada na história da educação traz


consigo um modelo secular moldado para atender as especificidades
de sujeitos enquadrados no padrão sistemático de ensino e
aprendizagem (SAVIANI, 2007). Essa compreensão social vem
percorrendo a história da educação brasileira desde a chegada
dos europeus no século XVI. Esse modelo não foi projetado para
atender a todas as singularidades, nem a todos os sujeitos que
participam dessa formação (SAVIANI, 2007), mas, criou-se uma
estrutura objetiva e meritocrática para herdeiros de capitais totais
(GRENFELL, 2018). O argumento defendido é que o processo de
ensino e aprendizado apenas funcionaria para os mais adequados

12 A atitude é um processo inter e intrapessoal, envolvendo três dimensões: a cognição,


a afetividade e o comportamento. É fortemente influenciada por predisposições
genéticas e aspectos fenotípicos oriundos dos discursos construídos, disponíveis
ou nutridos pela sociedade (PEREIRA, 2002).

102 |
ao ambiente escolar disciplinado (BOURDIEU, 2017). Este sistema
ainda perdura até o presente.

Igualmente, no passado, a escola se estruturava para poucos


escolhidos e oriundos hegemonicamente de classes sociais
detentoras de privilégios econômicos e tradição religiosa dominante
(BOURDIEU, 2017). Nesse contexto, as pessoas desprovidas de
bens capitais e, assim, pertencentes a classes sociais subjugadas,
estavam excluídas total ou parcialmente do acesso ao processo de
ensino e aprendizagem promovido pela educação formal (BOURDIEU,
2017).

| A teoria sociológica dos campos, do


habitus e dos capitais totais
O sociólogo Pierre Félix Bourdieu nasceu em Denguin, França,
em 1930. Oriundo de uma família de agricultores, o pai nunca
completou a educação formal, todavia, a mãe conseguiu estudar
até os dezesseis anos. Bourdieu conseguiu concluir a educação
básica e foi aprovado na seleção para a Ecole Normale Supérieure
(ENS) em 1951 e se graduou em 1955 com um diploma em Filosofia
(BOURDIEU, 2005). Porém, optou por trilhar a trajetória acadêmica
com a Sociologia13. Faleceu em Paris em janeiro de 2002. Sua história
de vida foi marcada pelo sentimento de questionar as relações
de poder e estratificação social por meio de pesquisas, reflexões
sociais e filosóficas que se estenderam e romperam os muros da

13 “Enquanto eu, empenhando-me resolutamente no campo das Ciências Sociais,


primeiramente na Etnologia, depois na Sociologia, rompia realmente com as
expectativas e as exigências do mundo filosófico para me submeter às exigências
de uma disciplina científica dotada do seu capital específico de problemas, de teorias
e de métodos, Michel Foucault continuou sempre presente no campo filosófico e
atento às expectativas do mundo intelectual parisiense, por grande que fosse a sua
distância em relação ao centro da instituição universitária, confirmada pelo seu
afastamento, em primeiro lugar, geográfico e, depois, social. Estas diferenças nas
situações objectivas estão, obviamente, numa relação de causalidade circular com
as disposições” (BOURDIEU, 2004, p. 87).

103 |
academia, e o impulsionaram ao ativismo por melhores condições
de existência de pessoas em classes sociais menos privilegiadas
(BOURDIEU, 2005).

Uma situação chama a atenção sobre a trajetória de Bourdieu.


Na França dos anos 196014, ocorreu uma reviravolta sobre as
decorrências do processo de massificação do ensino (BOURDIEU,
1992; GRENFELL, 2018). A educação era vista com o olhar otimista
e como meio para a ascensão social, contudo, estudos sociológicos
apontavam que o ensino mascarava características tecnicistas no
aprendizado de ofícios para atuação em meios industriais como mão
de obra qualificada, sobretudo na camada mais pobre da população
(BOURDIEU, 1992). Essa perspectiva inquietou Pierre Bourdieu com
o sentimento de frustração pelo baixo retorno social e econômico
auferido nos certificados escolares (BOURDIEU, 1992; GRENFELL,
2018). Tomado por tais angústias, Bourdieu (1992) pesquisou o
processo educacional questionando o modo como configurava-
se enquanto mantenedor das divisões de classes e reprodutor de
atitudes ideológicas. Para Bourdieu, compreender o objeto social
estudado viu a necessidade de socioanálise, pois concordava com
a importância de “objetivar o sujeito”, surgindo a questão de saber
como proceder a tal objetivação (CATANI, 2017; GRENFELL, 2018).

Nesse contexto, entendemos que, para a nossa análise, uma


amplitude reflexiva se faz necessária a partir de uma historicização
do processo inclusivista, por meio de um diálogo com o modelo
pedagógico tradicional. Esse investimento reflexivo esteve discorrido
ao longo de nosso estudo. Corroborando no que diz respeito
a Bourdieu (2011), a objetivação só pode ser realizada com as
ferramentas da própria teoria do espaço social e dos campos. Só
será possível entender com propriedade o processo de inclusão
14 “Bourdieu voltou para Paris em 1960, onde foi indicado como assistente do
importante intelectual francês Raymond Aron. Ele lecionou na Universidade de Lille
(1961-1964) antes de ser nomeado como Diretor de Estudos na École Pratique des
Hautes Études (uma precursora da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales –
Ehess). Subsequentemente, ele foi nomeado como Diretor do Centre de Sociologie
Européenne, que fora fundado por Aron” (GRENFELL, 2018, p. 30).

104 |
escolar de pessoas surdas e como estas têm vivenciado a ilusão da
inclusão/excludente a partir da pesquisa sobre sua gênese. É nessa
configuração que se faz imprescindível voltar ao ponto de partida.
Portanto, para a perspectiva bourdieusiana, se faz necessário o
processo de compreender a inserção do sujeito na situação social e
historicizar em seu contexto temporal, bem como, a objetivação do
agente transformador e transformado pela ação do tempo histórico,
ou seja, o transcendental histórico (CATANI, 2017).

Uma vez que o modelo educacional se sustenta enquanto


estrutura, esse mesmo modelo se atualiza como estruturante, o
que mantém as relações controladas e sem grandes revoluções
(BOURDIEU, 2017). As estruturas, embora apresentem fragilidades
paradigmáticas, mantêm-se iguais, uma vez que, quando um sujeito
consegue emancipar-se para entender as composições do campo,
tende a manter e até a conservar os modelos estruturais (BOURDIEU,
2017). O sujeito estrutura-se como recém-chegado ao campo e,
assim, o revolucionário é aquele que necessariamente tem o capital,
assumindo um enorme controle dos recursos coletivos (BOURDIEU,
2017).

Quanto mais a reprodução das relações de dominação estiver


dependente de mecanismos objetivos, que servem aos dominantes
sem que estes tenham necessidade de se servir de tais mecanismos,
tanto mais indiretas e, se podemos dizer, impessoais serão as
estratégias objetivamente orientadas em direção à reprodução:
escolhendo a melhor aplicação para seu dinheiro ou o melhor
estabelecimento secundário para o filho e evitando demonstrar
liberalidade, cortesia ou gentileza à faxineira (ou a qualquer outro
“subordinado”) é que o detentor de capital econômico ou cultural
assegura a perpetuação da relação de dominação que o une
objetivamente à sua faxineira e, até mesmo, aos descendentes
desta. (BOURDIEU, 2018, p. 202).

O espaço de posição social para Bourdieu (2011) apresenta-se


como o conceito de campo, compreendido enquanto um conjunto

105 |
de instituições sociais, indivíduos e discursos que se sustentam
mutuamente. A sociedade é composta por inúmeros campos que
se sobrepõem. Campo é um universo social com propriedades bem
definidas (BOURDIEU, 2007). Este conceito foi usado precisamente
para se referir a determinados espaços de posições sociais, nos
quais diferentes tipos de bens são produzidos, consumidos e
classificados.

O poder econômico não reside na riqueza, mas na relação entre


a riqueza e um campo de relações econômicas, cuja constituição
é inseparável do desenvolvimento de um corpo de agentes
especializados, dotados de interesses específicos; é nesta relação
que a riqueza se encontra constituída, como capital – isto é, enquanto
instrumento de apropriação de um equipamento institucional e de
mecanismos indispensáveis ao funcionamento deste campo e, ao
mesmo tempo, dos lucros que ele prodigaliza. (BOURDIEU, 2018,
p. 194).

O campo apresenta no interior uma distribuição desigual de


capitais de diferentes tipos (BOURDIEU, 1989). O sociólogo usou
a terminologia do capital pela natureza e pelas propriedades do
capital (recurso, acumulação, reprodução). No campo, os agentes
buscam ter mais capital específico do campo ou então lutam para
redefinir este capital específico (BOURDIEU, 2011), fazendo alusão a
jogos que disputam prêmios. A melhor estratégia para os melhores
espaços de poder está no fato de estrategicamente transformar
capitais em mais capitais e assim com mais aspectos distintivos
dos demais jogadores, legitimando-se como dominante para ocupar
espaços privilegiados nos mesmos campos de atuação.

De fato, a tendência da disposição culta para a generalização é


apenas a condição permissiva do esforço de apropriação cultural que
está inscrita como uma exigência objetiva na filiação à burguesia e,
deste modo, nos títulos que abrem o acesso aos direitos e deveres da
burguesia. Eis porque convém deter-se, em primeiro lugar, no efeito,
sem dúvida, mais bem dissimulado da instituição escolar, ou seja,

106 |
aquele que produz a imposição de títulos, caso particular do efeito
de atribuição estatutária, positiva (enobrecimento) ou negativa
(estigmatização), que todo grupo produz ao fixar os indivíduos
em classes hierarquizadas. Diferentemente dos detentores de um
capital cultural desprovido da certificação escolar que, a todo o
momento, podem ser intimidados a apresentar seus comprovantes,
por serem identificados apenas pelo que fazem, simples filhos de
suas obras culturais, os detentores de títulos de nobreza cultural –
neste aspecto, semelhantes aos detentores de títulos nobiliárquicos,
cujo ser é definido pela fidelidade a um sangue, solo, raça, passado
e pátria. (BOURDIEU, 2017, p. 27).

Chamamos a atenção a essa reflexão, pois certos padrões


socioculturais são difundidos por grupos dominantes e privilegiados
por capitais totais herdados, criando a ilusão de padrões com
o sentimento de que certas leituras das situações sociais são
consideradas superiores a outras, distinguindo-se entre alta e baixa
cultura (no entendimento sociocultural posto na métrica de normas
construídas pelo próprio grupo de privilegiados) (BOURDIEU, 2017).
A distinção, neste sentido, é uma forma de controlar os possíveis
candidatos a serem aceitos para o campo, haja vista que a classe
social não se define, nesse contexto, apenas pela posição nas
relações de capital monetário, mas pelo habitus de classe que está
normalmente associado a essa posição, propiciada pela acumulação
de capitais totais traduzidos em bens simbólicos (BOURDIEU, 2011).

Outrossim, é nessa questão que surge a ideia de ilusão naturalista


(BOURDIEU, 1989), começando com o entendimento de aspectos
sociais sendo considerados como naturais, inferindo sujeitos a
crerem que as ações e a estrutura social são tal como são por
uma ordem natural (GRENFELL, 2018). Ainda mais, passa a ser
apresentada, neste contexto, quando observamos no senso comum
as justificativas de naturalização de ações pertencentes à situação
social em uma métrica socioculturalmente construída e naturalizada.
O modo de pensar e agir passa a ser normatizado e serve como
instrumento de categorização entre os próprios agentes dos campos
(GRENFELL, 2018).

107 |
Os capitais podem ser categorizados, segundo Bourdieu (1989,
1992, 1995, 1998, 2001, 2007a, 2007b, 2008, 2011, 2013 e 2017),
como:

• Capital econômico: “[...] conjunto dos indicadores do patrimônio


econômico, cultural e social, além de sua evolução, necessários
para construir uma representação adequada do espaço social
[...]” (BOURDIEU, 2017, p. 117);

• Capital cultural: o estado “incorporado, ou seja, sob a forma


de disposições duráveis no organismo” (BOURDIEU, 1998,
p. 74), o estado objetivado (em bens culturais) e o estado
institucionalizados (em diplomas e títulos). (BOURDIEU, P. Os
três estados do capital cultural);

• Capital social: “[...] é o conjunto de recursos sociais ou


potenciais que estão ligados à pose de uma rede durável mais
ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-
reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo,
como conjunto de agentes que não somente são dotados de
propriedades comuns (passíveis de serem observadas pelo
observador. Pelos outros ou por eles mesmos), mas também
são unidos por ligações permanentes e úteis. (BOURDIEU, 1998,
p. 67);

• Capital simbólico: “Chamo de qualquer tipo de capital


(econômico, cultural, escolar ou social) percebido de acordo com
as categorias de percepção, os princípios de visão e de divisão,
os sistemas de classificatórios, os esquemas cognitivos, que
são, em parte, produto da incorporação das estruturas objetivas
do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do
capital no campo considerado” (BOURDIEU, 2011, p. 149). “[...] o
capital simbólico não é outra coisa senão o capital econômico
ou cultural quando conhecido e reconhecido, quando conhecido
segundo as categorias de percepção que ele impõe, as relações

108 |
de força tendem a reproduzir e reforçar as relações de força que
constituem a estrutura do espaço social” (BOURDIEU, 2004,
p. 163);

• Capital linguístico: “Por intermédio da estrutura do campo


linguístico enquanto sistema de relações de força propriamente
linguísticas fundadas na distribuição desigual do capital
linguístico (ou melhor, das oportunidades de incorporar os
recursos linguísticos objetivados), a estrutura do espaço dos
estilos expressivos reproduz em sua ordem a estrutura dos
desvios que separam objetivamente as condições de existência”
(BOURDIEU, 2008, p. 44-45). “Esta produção de instrumentos de
produção, tais como, as figuras de linguagem e de pensamento,
os gêneros, as maneiras ou os estilos legítimos e, de modo geral,
todos os discursos destinados a se tornarem “autoridade”, fontes
de “referência obrigatória”, e a serem citados como exemplos
de “uso correto”, confere àquele que a exerce um poder sobre a
língua e, por essa via, sobre os simples usuários da língua bem
como sobre seu capital” (BOURDIEU, 2008, p. 45).

O ideal de humano tem consigo todo um capital social, cultural,


estético etc., em outras palavras, a junção de capitais totais
(BOURDIEU, 2007a, p. 29).

A ideologia do gosto natural opõe, através de duas modalidades da


competência cultural e de sua utilização, dois modos de aquisição
da cultura: o aprendizado total, precoce e insensível, efetuado
desde a pequena infância no seio da família e prolongado pela
aprendizagem escolar que o pressupõe e o completa, distingue-se
do aprendizado tardio, metódico e acelerado, não tanto – conforme
o apresenta a ideologia do “verniz” cultural – pela profundidade e
durabilidade de seus efeitos, mas pela modalidade da relação com a
linguagem e a cultura que ele tende a inculcar como suplemento. Ele
confere a certeza de si, correlata da certeza de deter a legitimidade
cultural e a abastança, a qual serve para identificar a excelência: ele
produz a relação paradoxal, feita de certeza na ignorância (relativa)

109 |
e de desenvoltura na familiaridade que os burgueses da velha cepa
mantêm com a cultura, espécie de bem de família, do qual eles se
sentem os legítimos herdeiros.

Este sujeito dotado desses capitais totais e vivendo em uma


bolha de sujeitos semelhantes, vê na ausência destes aspectos uma
compreensão de menor humanização. A Sociologia da Educação
de Bourdieu (2011) notabilizou-se justamente por elencar outros
fatores além do fator econômico, trazendo para a equação a variante,
comparativamente ao sociocultural, na explicação das desigualdades
sociais. Sendo assim, os sujeitos que têm o capital total diminuto
não conseguem adentrar determinados espaços sociais.

Bourdieu (1998) afirmava que, com um mesmo diploma, jovens


com origens sociais mais elevada tendem a obter, no mercado de
trabalho, um rendimento maior de suas habilitações do que colegas
pertencentes às camadas populares15. Esse princípio pode ser
adequado ao contexto de nossa ponderação, uma vez que sujeitos
com deficiência são inseridos em escolas comuns e perpassam toda
a formação educacional sem as devidas adaptações para minimizar
as barreiras que impedem o desenvolvimento, tanto quanto os
demais educandos. Esses estudantes participam nas disputas de
emprego sem os repertórios necessários para competir por vagas de
trabalho que lhes dariam melhores condições de vida. Muitos desses
sujeitos, mesmo diplomados, são excluídos e vivem à margem da
sociedade, na ilusão de que são pertencentes ao mesmo espaço
social (BOURDIEU, 1989).

| A inclusão educacional de estudantes


surdos em perspectivas bourdieusianas
Relacionando as ideias bourdieusianas com nossas reflexões,
alegamos que incluir sujeitos em espaços escolares sem as devidas

15 Bourdieu nomeou este conceito como Lei do rendimento diferencial do diploma


(BOURDIEU, 1998).

110 |
estruturas assistivas e sem o reconhecimento das singularidades não
é incluir. Muitas vezes, acredita-se que apenas rampas, tradutores e
intérpretes de Libras são suficientes para o sujeito ser incluído. As
políticas de ações afirmativas da educação integrativa colocaram
jovens com deficiência (neste caso, a pessoa surda) de origens
desprovidas de capital econômico, linguístico e sociocultural em uma
realidade escolar predominantemente tradicional, com estruturas
excludentes destoando do coletivo adaptado em um ambiente
regido por uma métrica de normas, mantendo determinados grupos
silenciados. Para Bourdieu (1992), a educação deixou de ser uma
instância transformadora e democratizadora e se transformou em
um espaço de legitimação e reprodução das desigualdades sociais,
ou seja, um espaço educativo excludente.

Para o autor, diferentes características dos habitus trariam


consigo determinados fatores fundamentais ao bom ou mau
desempenho escolar (BOURDIEU, 1992). A escola, por sua vez, ignora
essas diferenças socioculturais, favorecendo jovens que trazem
consigo a bagagem cultural dos capitais totais. Como vimos, os
modelos escolares, construídos a partir das experiências históricas,
são apresentados enquanto sistemas duráveis e transponíveis de
disposições. Nesse sentido, são as estruturas dispostas a funcionar
como estruturantes (BOURDIEU, 1989). Em outras palavras, a
neutralidade da escola nada mais é do que a legitimação de valores
próprios das camadas privilegiadas, neste nosso contexto, a
manutenção das estruturas de uma escola tradicional, cunhada para
atender a determinada métrica normativa de sujeitos herdeiros de
determinados habitus e com capitais totais a serem potencializados
para a atuação nos campos sociais que ocuparão (BOURDIEU, 1998).

A inclusão seria, neste movimento, apenas um remendo ilusório,


uma vez que a escola exige do indivíduo não apenas conteúdos
propriamente ditos, mas comportamentos e experiências unicamente
obtidos pela métrica normalista que estruturou os habitus dos
dominantes (GRENFELL, 2018). A educação é naturalizada para os

111 |
indivíduos trazendo, desde sua infância, familiaridades com exigências
da escola secular (BOURDIEU, 2013). O conceito bourdieusiano de
habitus rompe com a filosofia cartesiana da consciência e, ao mesmo
tempo, possibilita evitar a alternativa restritiva entre o determinismo
causal e a determinação racional (GRENFELL, 2018). O habitus é
neste caso um mecanismo de interiorização das exterioridades:
interiorizado pelos indivíduos, em função da condição objetiva
de existência (GRENFELL, 2018). Apresenta-se como estratégias
cognitivas e habilidades que não passam pela consciência, mas
são incorporados em atitudes (BOURDIEU, 2011).

Considerando as reflexões de Bourdieu, é possível pensarmos


que a escola é um espaço de reprodução de estruturas sociais e de
transferência de capitais entre gerações (BOURDIEU, 2017, 2013,
1992). O legado econômico da família transforma-se em capital
cultural, construindo assim o habitus que a escola tende a valorizar e
estimular em uma disputa meritocrática (BOURDIEU, 2017). Sujeitos
surdos chegam aos espaços sociais em significativas desvantagens;
em virtude das lacunas apresentadas, não têm acesso aos capitais
disponíveis, muitas vezes devido às barreiras comunicacionais
e atitudinais enfrentadas cotidianamente desde o nascimento
(RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA, 2017).

Uma evidência dos mecanismos de perpetuação da desigualdade


é facilmente observada na frustração apresentada no fracasso
escolar, quando muitos educandos e famílias investiram menos
esforços no aprendizado formal, desenhando um círculo que se
autoalimenta (BOURDIEU, 1992). A baixa expectativa de investimentos
em capital cultural pode ser exemplificada com o entendimento de
muitos estudantes que, ao terminarem a Educação Básica (quando
terminam), projetam alcançar um emprego, por não ver sentido,
muitas vezes, em continuar estudando por mais quatro ou cinco
anos em uma formação universitária (RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA,
2017).

112 |
O reflexo excludente educacional resulta na constatação de que,
por muitas décadas, as pessoas surdas deixaram de avançar em
conhecimentos nos âmbitos social, político, educacional, psicológico
e linguístico (QUADROS, 2007). Muito disso ocorreu porque as
línguas de sinais foram proibidas, ridicularizadas, reprimidas,
minoradas e perseguidas. Inegavelmente, os sujeitos surdos foram
excluídos por barreiras comunicacionais16. Foram sentenciados ao
isolamento social e até familiar (QUADROS, 2007). Romper com
padrões socioculturalmente estabelecidos é um processo histórico
lento e arbitrário.

O conceito de histerese aponta uma perturbação na relação


entre o habitus e as estruturas de campo dos dominantes, as quais
foram assimiladas para ofertar, nesse recorte, demanda plural de
aceitação (GRENFELL, 2018). O processo de inclusão provocou uma
perturbação nos pilares estruturantes do campo educacional e dos
habitus que moldaram todo escopo educacional. Outrossim, o habitus
evolui em resposta a essas oportunidades novas, mas de maneira
imprevisível, sendo que as consequências para o posicionamento
de campo do indivíduo ainda não foram determinadas (GRENFELL,
2018). “O incorrigível é o indivíduo incapaz de se submeter às normas
do coletivo, de aceitar as regras sociais, de respeitar as leis públicas”
(GROS, 2018, p. 27).

16 São barreiras apresentadas nas comunicações e se configuram como qualquer


entrave ou obstáculo dificultando ou impossibilitando a expressão ou recebimento
de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou
não de massa (BRASIL, Lei n. 10.098, Capítulo 1, Artigo II, Item II). Compreendemos,
em nosso estudo, como a impossibilidade de expressar ideias e/ou informações
entre falantes de línguas diferentes, bem como o não uso de linguagens (visuais)
para expressar a troca de conhecimentos. As barreiras atitudinais são barreiras
sociais geradas, mantidas, fortalecidas por meio de ações, omissões e linguagem
produzidas ao longo da história humana, num processo tridimensional envolvendo
cognições, afetos e ações contra a pessoa com deficiência ou quaisquer grupos em
situação de vulnerabilidade, resultando no desrespeito ou impedimento aos direitos
dessas pessoas, limitando-as ou incapacitando-as para o exercício de direitos e
deveres sociais: são abstratas para quem as produz e concretas para quem vivencia
os efeitos (LIMA; SILVA, 2007).

113 |
A histerese atrelada ao movimento inclusivista, posta em uma
perspectiva psicológica, mostra-se atrelada também a aspectos
que o constroem em habitus e o direcionam para comportamentos
e motivações (GRENFELL, 2018). Porém, essas motivações e
comportamentos são constitutivos do mesmo sujeito. Nesse
sentido, “a coerência dos esquemas de ação, os habitus que os
atores podem interiorizar dependem da coerência dos princípios de
socialização a que estão submetidos” (SETTON, 2011, p. 69). É a
partir desse entendimento provocado pelo movimento de histerese,
correlacionado ao movimento de inclusão, que o entendimento de
inclusivismo apresenta uma lacuna estruturante, uma vez que o
inclusivismo se estrutura a partir das concepções legais, políticas
públicas e tecnicismos. Em outras circunstâncias, particularmente
em momentos de crise, o habitus precisa responder a mudanças de
campo quando estas são abruptas e às vezes catastróficas. Essa
resposta ocorre em virtude do fator tempo. Nessas circunstâncias,
as estruturas de campo passam por tremores e ficam instáveis
(LARROSA, 2015). Ainda não emergiram novas métricas culturais
para atender às novas configurações estruturantes do próprio campo
ou paradigma.

Assim, o movimento inclusivo deve ser visto no próprio


desenvolvimento humano, composto como um fator de mutação
nas relações sociais. Uma vez que a inclusão socioeducacional é
um encontro entre o incluidor e o incluído, existe uma conexão entre
subjetividades. Há disposições de agentes constituídos por habitus
difusos, frequentando o espaço do mesmo campo, sem muitas
vezes ter a herança de capitais totais semelhantes ou equivalentes.
Corrobora-se, assim, a afirmativa de que a humanidade é plural.
Uma vez ocorrendo o reconhecimento das singularidades, somos
impulsionados a rever a educação e pensá-la a partir das bases mais
estruturais, e não apenas no processo de adaptação da educação
tradicional. Percebemos que existe uma sensível problematização
entre o entendimento conceitual e as reais experiências inclusivas
(RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA, 2017). No plano do real significado,

114 |
o modelo de inclusão escolar ainda é insuficiente para atender
efetivamente os sujeitos categorizados como dependentes deste
movimento (RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA, 2017). Nesse sentido, a
inclusão socioeducacional é ampliada para a compreensão limitante
temporal e de finitude da existência e o reconhecimento do outro
como parte de nós mesmos.

O processo socializador e histórico discorrido pelas narrativas


proporcionadas em nosso estudo apresentou uma multiplicidade de
princípios e de estratégias para que sujeitos excluídos mantivessem-
se ativos nas disposições dos campos e assim disputassem,
mesmo em desvantagem, espaços legítimos de posicionamentos
(RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA, 2017). O acesso à educação de qualidade
possibilita significativas contribuições e estratégias para o sujeito ter
empoderamento, ocupando espaços a que, sem a formação adequada,
não teriam acesso (RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA, 2017). A socialização
hodiernamente enfrenta a perda de ideais, a ausência de utopia, a
falta de sentido. A perda de finalidades faz desaparecer a promessa
social ou política de um “futuro melhor” (TEDESCO, 1995). O modelo
tradicional de educação atribui ao sujeito social a responsabilidade
pelo processo de ensino e aprendizagem, respondendo o próprio por
todas as demandas. Esse modelo fracassou em promover equidade.

| Considerações finais
Em outras palavras, para Bourdieu (2011), as decisões e percepções
do mundo estariam previamente relacionadas à posição social, bem
como relacionadas ao grupo social ao qual o sujeito pertence. Nesta
circunstância, observa-se a existência de um discurso traduzido
em uma métrica de norma ou normalidade socioculturalmente
sistematizada a partir dos valores dos detentores dos capitais totais.
Todavia, a normalidade é apenas uma ilusão de manutenção de
status e privilégios sociais, para que os demais sujeitos desejassem
pertencer ao seleto grupo. Muitos dos que não estão enquadrados na
métrica dos modelos exemplares de capitais totais buscam ajustar

115 |
a vida e passam a existir apenas enquanto legitimadores dos que
dominam os habitus do espaço social, mantendo legitimados os
dispositivos de distinção entre as singularidades dos sujeitos.

Bourdieu (2017) comentou que as teorias podem nos apresentar


reflexões sobre as estruturas das tradições e ficarmos nesses debates
por um tempo infinito, seja pela tradição marxista, neofuncionalista
ou mesmo em leituras fenomênicas. “Existe uma espécie de épochè,
como diriam os fenomenologistas, de colocação em suspenso de
toda referência ao que acontece, que possibilita as discussões ditas
‘teóricas’” (BOURDIEU, 2017, p. 55). Neste contexto, ocorre uma
sobreposição da teoria frente à empiria. A experiência é sempre
objetivada. O que nos remete ao problema estruturante, no que
consiste em propor uma conexão com as coisas do mundo real, as
situações sociais e a vida dos sujeitos. A história de vida, a experiência
humana, é o nosso ponto norteador para dela teorizarmos.

Essa perspectiva criou uma tendência de manutenção do exercício


de atitudes. Os relatos registrados na história descrevem que os que
dominam os espaços privilegiados orientam os descendentes para
manter o status quo (RIBEIRO; SIMÕES; PAIVA, 2017). Os sujeitos
sem acesso às orientações das complexidades dos campos sociais,
muitas vezes, sequer reconhecem a ausência de direitos básicos,
acreditando ser natural estar na compreensão de mundo onde estão.
De certo, Bourdieu (2007) denunciou que as naturalizações das
ações sociais são respondidas pelo próprio processo complexo de
socialização. Por conseguinte, a ideia central da educação, enquanto
formação humana, em que historicamente foi defendido o princípio
de igualdade, foi questionada para rever os pilares normativos e
a sua veracidade empírica. Com efeito, a inclusão educacional
surgiu como movimento de resistência, bem como despertou um
sentimento de enfrentamento ao modelo dominante de educação
tradicional, provocando uma ruptura ao colocar na equação o
respeito às singularidades e, assim, estabelecer um norteamento no
qual prioriza-se a equidade para atender, com dignidade, os sujeitos
singulares na escola.

116 |
| Referências
ALVES-MAZZOTTI, A. J. O método nas Ciências Sociais. In:
ALVES-MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZ NAJDER, F. (org.). O
método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e
qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1999.

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BOURDIEU, P. F. Lições da Aula. São Paulo: Ática, 1995.

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BOURDIEU, P. F. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertand Brasil,


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119 |
Por uma abordagem bourdieusiana
para o estudo de trajetórias:
relações entre a origem social e
as experiências educacionais de
estratificações sociais populares
Jéssica dos Anjos Januário

| Introdução
A obra do filósofo e sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-
2002) versa sobre áreas de conhecimento e objetos de análise
pertencentes às mais diversas tradições de conhecimento. A sua
apropriação, conforme recordam Catani, Catani e Pereira (2001, p. 64),
indica a “variedade das formas de recepção e as formas peculiares
de invenção na leitura que se fez desse autor”. No que tange às
incursões do autor aferidas no contexto brasileiro, destacam-se as
áreas da Educação (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009) e da Sociologia
(VASCONCELLOS, 2012) enquanto principais receptoras de sua
perspectiva teórico-metodológica. Sobre a sua história de vida,
destaca Valle (2013, p. 414):

Sua biografia testemunha a fertilidade em conceitos e esquemas


teóricos e metodológicos de sua imaginação sociológica e da rica
experiência científica, vivida como forma de compromisso ético,
de engajamento político e como “esporte de combate”.

Constituindo o autor um marco sobre o qual o pensamento


social e a prática educacional em todo o mundo sofreram influência,
depreende-se, assim, nomeadamente a sua relevância para a subárea
que destas deriva, a Sociologia da Educação (NOGUEIRA; NOGUEIRA,
2002). Em seu fluxo, as reflexões de Pierre Bourdieu perpassam
desde instâncias societárias como a escola – com seus respectivos

120 |
sucessos (PIOTTO, 2009) e fracassos (PATTO, 1990) – até a análise
de indivíduos cujas narrativas podem encerrar uma perspectiva
escolar ou não-escolar (SPOSITO, 2003) ao longo do horizonte de
análises possíveis no âmbito deste lócus.

Dentre estes últimos, diversas são as abordagens consideradas


pelos estudos que detêm os agentes e as tramas relacionais capazes
de configurar suas ações no interior das produções dedicadas
às biografias no âmbito brasileiro contemporâneo das pesquisas
pertencentes à Sociologia da Educação (ALMEIDA, 2014; BUENO,
2007; LACERDA, 2014; PIOTTO, 2007; PORTES, 1999; SOUZA E SILVA,
2003; VIANA, 2000). Destarte, entre a demarcação educacional que
situa o intento de tais histórias de vida, encontram-se pessoas:
ora neste espaço social de exceções, ora de regras; ora dignas
de desempenhos notáveis, ora perversamente destituídas de sua
dignidade; ora designadas ao sucesso, ora fadadas ao fracasso.
Todas estas facetas, além de serem elementos que caracterizam
o sistema de ensino (BOURDIEU; PASSERON, 2014a), revelam a via
de mão dupla em que se dá o seu modus operandi: no próprio devir
de quem o opera, sendo um de seus efeitos o próprio operar das
vidas de quem nesta operação está.

No horizonte das propriedades, inclinações e disposições cuja


similaridade e aproximação pode vir a constituir os sujeitos em classes
ou grupos (BOURDIEU, 2007), configuram-se as camadas populares.
No espectro das tonalidades sociais, sua variação representa o
extremo desfavorecido que, como recorda Bourdieu (1996, p. 17),
define-se de modo relacional ao “conjunto daquilo que é excluído”
em relação ao que se considera legítimo, “[...] entre outras coisas,
pela ação contínua de inculcação e imposição mesclada de sanções
que é exercida pelo sistema escolar”. Neste sentido, Piotto (2007)
aponta que é a partir do marco da década de 1990 que começam a
surgir, no contexto brasileiro da Sociologia da Educação, estudos
que se ocupam de aspectos tais como: a) os processos percorridos
entre o acesso, permanência e conclusão das camadas populares

121 |
nos graus superiores universitários; b) suas práticas familiares de
escolarização; c) a própria experiência destes sujeitos ao longo do
interior do sistema de ensino, entre outros.

Considerando a relevância da origem social enquanto ponto


de partida e continuidade das histórias de vida e consequentes
experiências construídas ao longo do espaço dos possíveis
educacionais, o marco histórico do início da década de 1990 em que
os estudos pertencentes à Sociologia da Educação se dedicaram às
camadas populares (PIOTTO, 2007) e a relevância de Pierre Bourdieu
enquanto referencial a questões que a estas problemáticas permeiam
(BOURDIEU; PASSERON, 2014a, 2014b), emerge a questão central
do presente ensaio: como se dá a relação entre a origem social e as
experiências educacionais no recorte dos estudos sobre camadas
populares pertencentes à Sociologia da Educação referenciados
por Pierre Bourdieu a partir da década de 1990?

Assim sendo, o objetivo deste trabalho é investigar a relação


entre a origem social e as experiências educacionais no recorte
dos estudos sobre camadas populares pertencentes à Sociologia
da Educação referenciados por Pierre Bourdieu a partir da década
de 1990.

| Metodologia
A análise documental dos estudos analisados se deu a partir do
marco histórico e dos exemplos de pesquisa sugeridos por Piotto
(2007). Assim sendo, contou com os seguintes critérios de inclusão:
a) possuir a subárea da Sociologia da Educação enquanto escopo;
b) constituir as histórias de vida de um objeto empírico e/ou analítico
da produção; c) ser a produção no contexto brasileiro iniciada a
partir da década de 1990; d) conter a apropriação do referencial de
Pierre Bourdieu; e) ser orientado aos exemplos de pesquisa pela
autora citados.

122 |
A Análise Temática Reflexiva (BRAUN; CLARKE, 2019; BRAUN;
CLARKE; WEATE, 2016) foi utilizada ao longo do processo de
tratamento dos dados. Tal metodologia tem como finalidade identificar,
analisar e reportar padrões temáticos no interior de determinada
base de dados de modo a construir, por meio da reflexividade, do
conhecimento teórico e da transparência, o corpus particular de
interesse empírico (BRAUN; CLARKE, 2019).

| Resultados e discussão
Como desdobramento do tratamento dos dados realizados pela
Análise Temática Reflexiva encontram-se o “Quadro 1. Pesquisas
utilizadas enquanto referências para o estudo” e o eixo “Camadas
populares: relações entre a origem social e as experiências
educacionais”.

Quadro 1. Pesquisas utilizadas como referências para o ensaio


Referências Título Autoria Ano
O universitário de camadas Écio Antônio 1999
populares no espaço do Portes
herdeiro
Longevidade escolar Maria José 2000
Exemplos de pesquisas
em famílias de Braga Viana
inferidas por Piotto
camadas populares:
(2007) de acordo com
algumas condições de
os critérios de inclusão
possibilidades
do ensaio
“Por que uns e não Jailson de 2003
outros?”: caminhada de Souza e
jovens pobres para a Silva
universidade

Fonte: Elaboração própria

123 |
| Camadas populares: relações entre
a origem social e as experiências
educacionais
A partir do aporte referencial de Pierre Bourdieu, as trajetórias a
seguir são discorridas entre o enlace das histórias destas vidas e as
narrativas destas histórias (BOURDIEU, 2008) tecidas pelos próprios
agentes e seus meios que, com elas, nelas e por elas dialeticamente
agem por meio da práxis17 de seu habitus18 e de acordo com o campo19
e os capitais20 que nestes espaços se encontram.

17 Por práxis entende-se o processo de “interiorização da exterioridade e de


exteriorização da interioridade” que se coloca como alternativa às totalizantes
perspectivas objetivas e subjetivas de compreensão do mundo social. Tem como
objeto, portanto, “as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições
estruturadas nas quais elas se atualizam”, constituindo um “princípio gerador” situado
“no interior do movimento de sua efetivação” (BOURDIEU, 2003a, p. 40).
18 De acordo com Bourdieu (2003a, p. 53), habitus pode ser compreendido como “[...]
sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das
práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’
sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem
supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias
para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora
de um regente”.
19 Compreendidos a partir de suas propriedades (BOURDIEU, 1983, p. 89), campos
“se apresentam à apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou
de postos)” cujas disputas específicas dependem das posições nestes espaços. Tais
lutas, por sua vez, “podem ser analisadas independentemente das características
de seus ocupantes (em parte determinadas por elas) em suas formas específicas”.
20 Capitais configuram trunfos passíveis de conversão e reconversão de acordo
com aquilo que é valorizado pelas leis e formas de disputa dos campos ou,
complementarmente, entre si. Entre os seus principais tipos estão o econômico, o
social, o cultural e o simbólico, carregando nestas denominações a preponderância de
dado componente na materialidade daquilo que é valorizado em cada sistema. Para
o aprofundamento de cada um de seus tipos e vertentes de mobilização, consultar
Bourdieu (1986, 1989, 1998).

124 |
Em análise da inserção sociocultural de universitários oriundos
das camadas populares pertencentes a cada um dos 37 cursos
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Portes (1999)
apresenta dados provenientes de sua dissertação de mestrado e
da prática profissional acumulada em anos. Discute, por sua vez,
com literaturas sobre suas práticas culturais e sobre a relevância
da família e da escola no processo de socialização/escolaridade
deste grupo social.

Por meio de entrevistas, entre os aspectos da experiência


cultural deste jovem proveniente de diferentes frações das camadas
populares, o autor privilegiou aqueles referentes à verificação da
inserção social e cultural de suas vidas. Isto é, fora da universitária
em um sentido restrito, tais como, a prática de esporte, a frequência
a galerias de arte e museu, dentre outras. Em relação à diversidade
sociocultural dos estudantes, certa heterogeneidade fora encontrada
no que tange à “idade, sexo, cor, origem geográfica, estado civil”
e outras que, em comum, os circunscreviam enquanto “filhos de
trabalhadores de baixa renda” (PORTES, 1999, p. 67). A ocupação
dos pais e a multiplicidade de facetas em que as variáveis que os
caracterizam foram levantadas constitui-se, por si, em um inicial
aspecto observável entre a origem social deste grupo e a relação a
seguir verificada entre suas experiências educacionais.

No tocante a elas, verificou-se que a trajetória escolar destes


indivíduos fora vivenciada preponderantemente em escolas públicas
(64,9%) nos graus anteriores de ensino ao superior e com boa parte
de frequentadores de cursos preparatórios a esta etapa por um
período não inferior a seis meses (48,6%). Com idade de acesso
tardia em relação à regular (86,5% entraram na universidade com
mais de 19 anos) e histórico de trabalho remunerado ainda nos
anos iniciais, também tais pontos convergem em relação à origem
social que os distancia daqueles que, segundo o autor, seriam “mais
afortunados socialmente” (PORTES, 1999, p. 67).

125 |
A propósito do cotidiano universitário, verificou-se uma “formação
cultural deficiente” (PORTES, 1999, p. 68) no que se refere ao acúmulo
de desvantagens escolares, sociais e culturais no decorrer de suas
trajetórias:

Ao ter que lançar mão dessas estratégias de sobrevivência no interior


da academia, a consequência mais imediata é o pesquisado deixar
de competir em pé de igualdade com outros alunos. Ao não possuir
um capital cultural familiar21 nem tempo necessário exigido ao
cumprimento de suas obrigações acadêmicas, o pesquisado acaba
por acumular, mais uma vez, desvantagem que, em certos casos,
trarão consequências desastrosas à sua carreira, interferindo no
desempenho acadêmico, como por exemplo, no prolongamento do
tempo para formatura e o enfrentamento de inúmeras reprovações.
(PORTES, 1999, p. 69).

Entre o prolongamento das preocupações que distam daquelas


presentes no cotidiano do “herdeiro”22, o vislumbre dos “mistérios do
mundo acadêmico” (PORTES, 1999, p. 69), de acordo com o autor,
se dá de forma parcial e quase sempre individualizada e solitária.
Exemplo disso são os caminhos e estratégias que ora se deslocam
entre os polos da afetividade na relação aluno-professor, ora aos
da efetividade em relação ao conhecimento com eles e com os
esparsos contatos com os pares em sala de aula. Assim, o desejo
pela diferenciação de um “tempo” (PORTES, 1999, p. 75) em que
a carreira acadêmica e a identidade profissional pudessem ser
construídas, assim, se faz outra relevante marca do percurso menos

21 Por capital cultural familiar compreende-se o trunfo, geralmente transmitido de


maneira sutil e naturalizada, de uma cultura livre cuja língua – mesmo na falta de
esforços metódicos ou ações manifestas, “contribui para reforçar, nos membros da
classe culta, a convicção de que eles só devem aos seus dons esses conhecimentos,
essas aptidões e essas atitudes que, desse modo, não lhes parecem resultar de uma
aprendizagem” (BOURDIEU, 1998, p. 46).
22 Detentor do capital cultural que, simbolicamente em relação sistema escolar, a
ele se aproxima sendo responsável por vantagens que concernem desde a diferença
inicial entre os indivíduos diante da experiência escolar até, e dela consequente,
também pela diferença entre suas taxas de êxito (BOURDIEU, 1998).

126 |
privilegiado em relação às “condições materiais, em função do não
domínio das habilidades básicas para se inserirem nesses espaços”
deste grupo social (PORTES, 1999, p. 75).

Diante das dificuldades percorridas no processo de tornar-se


estudante, assim, o autor conclui que é no cursus em que as camadas
populares aprendem seu ofício, sendo este um fator divisor entre
a anterior condição de aluno. Contrapondo-se à arraigada visão
de que a experiência universitária vivenciada por estas frações é
necessariamente negativa e maioritariamente influenciada pela
“ingenuidade da ascensão social via curso superior” (PORTES, 1999,
p. 81), a partir do autor é possível vislumbrar que a longevidade
escolar entre elas é “vivida como uma perspectiva, como promessa
de libertação individual, pelo alargamento do leque de escolhas
possíveis (tanto em matéria de profissão quanto de atividade fora
do trabalho), pelo acesso ao saber e aos bens culturais” (PORTES,
1999, p. 80).

Alinhada à Portes (1999) na análise da longevidade escolar de


estudantes provenientes de estratos populares, por seu turno, Viana
(2000, p. 47) norteia-se a partir de questões como:

Em que consiste e como se expressa a presença familiar nesses


itinerários escolares atípicos? Em que a configuração familiar
desses indivíduos se diferencia de características mais gerais das
camadas populares? Quais os sentidos que uma escolarização
prolongada assume para esses pais e filhos? Esses processos
de mobilidade cultural e social são mediatizados por quais tipos
de relações intergeracionais e intersubjetivas? Noutros termos,
quais os custos subjetivos dessa mobilidade? Existem, além do
grupo de pertencimento, entendido enquanto o núcleo familiar no
sentido estrito, outros grupos de referência que se constituíram
em modelos impulsionadores dessas trajetórias escolares? Como
esses sujeitos concebem e se posicionam em relação ao futuro e
como se utilizam do tempo na construção de sua escolarização?

127 |
Para responder a estas questões, tal como Portes (1999), a
autora também se utilizara da entrevista enquanto instrumento
metodológico em um universo de sete estudantes de instituições
de ensino superior mineiras recrutados entre famílias com baixo
nível de escolaridade, situação econômica precária e cujos pais
exerceram ocupações de cunho manual. Para ela, as trajetórias
escolares deste grupo inscreviam-se secundariamente em relação
aos parâmetros de análise do estudo, bem como as informações
em relação à genealogia familiar de forma mais ampla. A saber,
tais traços analíticos assim se estruturaram: a) pelo significado
da escola e do ensino superior para os investigados e seus pais;
b) pelas disposições e condutas em relação ao tempo por parte dos
entrevistados e suas famílias; c) pelos processos de mobilização
escolar; d) pelos outros grupos de referência na família ampliada
e/ou exteriores a ela; e) pelos modelos socializadores familiares
ou tipos de presença educativa. Todos, em relação à origem social,
têm aspectos que em comum, como o fato de favorecerem a
sustentação de um período de escolarização longo e com vislumbres
de permanência futuros.

Em relação às características centrais do processo de construção


das escolaridades investigadas, primeiramente, verificou-se a
ausência de um projeto conscientemente elaborado – seja pelos
sujeitos e/ou por suas famílias – para o alcance do grau superior. Tal
imprevisibilidade, ademais, mostrou-se advinda de oportunidades
presentes em universos exteriores ao familiar e, concomitantemente,
dos logros constantes de “êxito escolar23” alcançados (VIANA,
2000, p. 51). Para além, a “autodeterminação” pôde ser constatada
enquanto condição “sine qua non” de certa sobrevida escolar –
compreendida pelo duplo sentido de se “fazer o possível” enquanto
tempo próprio de cumprimento de etapas não previstas a longo prazo
e esgotamento das possibilidades de luta – por diferentes frações
destas camadas (VIANA, 2000, p. 52). Tal conjuntura, por sua vez,

23 A autora o qualifica enquanto “não só bons resultados em termos de notas, mas


também a ‘simples’ inexistência de reprovações no período” (VIANA, 2000, p. 51).

128 |
aponta para condições em que a vulnerabilidade estivera presente
ao longo dos traços constitutivos destas biografias escolares.

Entre as formas específicas da presença das famílias, a ausência


também fora o tom da mobilização escolar que, de acordo com
a autora, grande parte da literatura corrobora enquanto sendo
um importante fator explicativo para a longevidade escolar. Tal
dissonância implicou no surgimento da questão sobre o que consistiria
e como se traduziria, afinal, a presença da família no sucesso escolar
dos filhos. Ao invés de deliberação, formas peculiares e periféricas
em relação ao que era estritamente escolar foram verificadas por
parte de dois mundos que, entre família e escola, dificilmente havia
conciliação. Assim, uma relevante constatação do estudo diz respeito
ao custo afetivo com que tais longevidades foram acessadas: a
partir de descontinuidades culturais e subjetivas entre as gerações
envolvidas, seja por seu aspecto resultante (“trânsfuga”), seja pela
própria dor do processo (clivagens em relação aos sentimentos de
pertencimento e ocorrência da “tríplice autorização24”).

Por fim, as histórias de vida relatadas pelos entrevistados de Viana


(2000) convergiram para a heterogeneidade de situações múltiplas
de configurações familiares e longevidade escolares, havendo certa
alternância entre os traços que, em cada uma delas, se sobressaíram.
O pano de fundo da abordagem centrada nas trajetórias escolares,
mesmo que secundariamente, apontou para similaridades entre
os casos de Portes (1999) , por exemplo, a “utilização frequente do
curso pré-vestibular, a dificuldade de conciliação entre trabalho e
estudo, a frequência à escola pública”, entre outros (VIANA, 2000,
p. 58).

24 “Trata-se de um tipo de relação intergeracional, cuja lógica fundamental orientadora


é a da emancipação da herança familiar, não a de sua reprodução. O primeiro
elemento desse fenômeno – o da ‘tríplice autorização’ – está no fato de que o
aluno-filho se autoriza a ‘deixar’ a família, a se distanciar cultural e socialmente dos
pais. Em segundo lugar, os pais autorizam o filho a se emancipar. Finalmente, um
reconhecimento recíproco, entre pais e filhos, de que a história do outro é legítima,
sem ser a sua” (VIANA, 2000, p. 56).

129 |
De acordo com a autora, tais diferenciações entre as esferas da
família, do filho-aluno e da escola puderam ser percebidas por meio
de uma análise da tessitura interdependente entre elas e que não se
restringiu à descrição formal de trajetórias. Este ensaio se questiona,
no entanto, sobre o uso feito desta definição e sobre aquilo que diz
respeito à sua compreensão. Se o conceito de trajetória bourdieusiano
é evocado, então tais fios constituem a trama vivida no interlace,
dentre outros, de seus habitus. Afinal, “[...] a vida constitui um todo,
um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido
como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de
um projeto [...]” (BOURDIEU, 2008, p. 74).

À luz de Pierre Bourdieu e por meio de um estudo centrado na


descrição e análise das trajetórias escolares de jovens estudantes
da Maré, Souza e Silva (2003) busca compreender, entre seus
objetos, as relações entre a origem social e a permanência escolar
daqueles que foram criados em espaços populares. Por meio da
perspectiva teórico-metodológica de seu referencial, coloca em
xeque as perspectivas absolutistas que permeiam ora a tendência
em privilegiar as questões estruturais, ora as questões individuais
correntes nos campos que compõem o trabalho.

Exemplo do posicionamento entre estas searas é aquela que


o autor realiza justamente entre o continuum educacional que ora
tende para as racionalizações explicativas dos fatores econômicos,
ora para os escapes centrados no desempenho cognitivo dos alunos.
Neste balanço, Souza e Silva (2003) apresenta uma postura crítica,
respectivamente, em relação ao primeiro enquanto elemento redutor
dos casos de curta permanência dos alunos de origem popular
no sistema escolar e, do mesmo modo, para o segundo enquanto
pêndulo voltado apenas para o desígnio das inteligências. Em diálogo
possível com Portes (1999) e Viana (2000), para ele:

A compreensão da permanência escolar decorre da dinâmica


estabelecida entre as características singulares do agente e as
redes sociais nas quais ele se insere. Relação que se dá em um

130 |
quadro histórico e social, produzido e produtor, de variadas formas,
das instituições sociais e dos diversos agentes. (SOUZA E SILVA,
2003, p. 128).

Considerando a relevância da posição ocupada pelo agente


nos campos escolar e familiar para a permanência escolar, o autor
aponta ainda elementos subsidiários a essa questão, por exemplo,
o desenvolvimento da “inteligência institucional25” – expressa,
como uma de suas vertentes, por meio da “boa vontade cultural26”
pelas frações populares. Veredito conferido pela família de forma
até anterior ao ingresso na instituição escolar, a classificação
entre a filiação e/ou fratria que é “capaz” e a que “não gosta/não
consegue aprender”, juntamente com processos como a “profecia
autorrealizadora” recebem, ao longo do trabalho, importantes
ponderações. Contrabalanceando o peso de suas realizações em
apenas uma figura – quer seja só a família, só o professor e/ou só
o aluno –, o autor dialoga com a construção destas noções a partir
de lógicas sociais. Se há profecia, considerando-a escrita, inclusive,
pelo aluno: “os alunos são avaliados de acordo com a representação
que eles constroem e que deles se constrói nesse espaço” (SOUZA
E SILVA, 2003, p. 130).

Neste mesmo sentido, a escola enquanto “necessidade” é


tematizada em relação à circulação do senso comum que impute a
culpabilização dos pais e filhos por uma possível saída precoce do
sistema. Aproximando-se da noção de “formas específicas da presença
da família” de Viana (2000), Souza e Silva (2003) designa como
“logística” a presença familiar no percurso escolar mobilizada por

25 Termo definido como “uma aguda sensibilidade para o jogo nos campos
institucionais, onde a consecução dos objetivos imediatos é mais importante, em
determinados momentos, que a defesa das posições mais profundamente arraigadas”
(SOUZA E SILVA, 2003, p. 129).
26 Bourdieu (2003b) designa a relação marcada entre o conhecimento e o
reconhecimento cultural, elemento característico do estilo de vida burguês e expresso
entre as correlações da posição atual, da trajetória passada/potencial e da disposição
quanto ao futuro que são, por sua vez, característicos desta classe.

131 |
meio de uma estrutura de apoio que, em seu caso, se deu sob forma
particularmente material. Demonstrando os interesses e estratégias
movimentados pelos membros familiares, a esta instituição deixa
clara a necessidade de tratamento enquanto campo bourdieusiano.
Afinal, seu trabalho permite compreendê-la a partir das marcas de
suas relações contraditórias e correlações de forças; no entrelaçar
de práticas solidárias e competitivas que expressam, em seu fim, as
“ambiguidades dos vínculos e rupturas de todos nós, seres sociais”
(SOUZA E SILVA, 2003, p. 132).

Em síntese, suas discussões tensionam questões – tal como em


Pierre Bourdieu – que se referem, em escalas dialeticamente micro e
macrossociais, aos mecanismos que operam sob as desigualdades
escolares. Sobre ela, Souza e Silva (2003) chama a atenção quanto
ao lugar institucional em que quase sempre se coloca a pergunta e
a resposta comumente tecidas para dar conta desta problemática.
Se esquivando dos determinismos que derivam de premissas
concernentes à teoria pedagógica “conservadora” e à “progressista”,
o autor conclui demonstrando sensibilidade ao abordar questões
morais, de pertencimento, desenraizamento, distanciamento, dentre
outras que, em meio à favela, seu grupo social encontra-se envolto.
Para os desafios do trabalho, sua postura de lucidez e esperança:
“o desejo permanente é que – mais do que contribuir para criar
novos pombos27 – possamos construir uma sociedade onde todos os
pássaros possam cantar, com dignidade, justiça e respeito” (SOUZA
E SILVA, 2003, p. 141).

27 Tal metáfora faz alusão à fábula presente em seu texto: “[...] o corvo, insatisfeito
com sua condição, admirava à distância a comunidade dos pombos – marcada pela
elegância, pela cultura e pela beleza. Até que, certo dia, toma uma posição radical:
pega uma lata de tinta branca e pinta-se inteiramente. Com essa nova roupagem,
dirige-se ao pombal; lá chegando, é rapidamente identificado pelos pombos originais,
que não permitem seu ingresso na sociedade. Decepcionado, decide voltar ao convívio
de seus pares – os corvos. Lá chegando, todavia, a decepção se faz mais profunda:
seus antigos irmãos não o reconhecem e o repudiam. Assim, sem ter o que tinha
e não alcançando o que desejava, ficou o pobre corvo só, lamentando sua singular
condição” (SOUZA E SILVA, 2003, p. 140).

132 |
| Considerações finais
Se falar de história de vida implica o pressuposto de que ela é uma
história e, inseparavelmente, também o conjunto de acontecimentos
da existência individual que compõe a narrativa desta história
(BOURDIEU, 2008), aquelas pela autora deste ensaio analisadas
representaram tramas complexas, múltiplas e heterogêneas em suas
idiossincrasias. No recorte do ingresso no sistema de ensino superior
brasileiro, as razões dos grupos sociais populares demonstraram-se
mais em suas probabilidades de acesso, permanência e conclusão
do que o contrário. Considerando a excepcionalidade do meio e da
presença destas frações neste meio, a partir dos estudos de Portes
(1999), Viana (2000) e Souza e Silva (2003) foi possível corroborar
Piotto (2007) no sentido de que estas foram exceções que, mais
do que incorporadas, fizeram-se regra por meio de processos de
entrada delineados anteriormente ao próprio ingresso universitário.
Se as chances eram improváveis, não os eram seus esforços e os
meios que os tornaram possíveis.

A relação entre a origem social dos agentes e o desempenho


escolar, ao longo das trajetórias consideradas, fez-se íntima na
intersecção entre campos, habitus e capitais que, dentre outros
elementos, representaram a práxis presente entre populares
indivíduos e sociedades. No contato com o jogo praticado entre
o sistema escolar e aqueles que com ele tiveram contato, é
possível afirmar que as camadas populares não só de suas regras
imprevisivelmente se apropriam, mas também por meio dele, em
justaposição se estruturam ao descontinuamente estruturar as
suas próprias (PIOTTO, 2007).

133 |
| Referências
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137 |
Contribuições da teoria
bourdieusiana para a compreensão
das desigualdades escolares e a
ideologia do dom
Hellen Cristina Xavier da Silva Mattos
Adelino Francklin
Maria Cristina da Silveira Galan Fernandes

| Introdução
Um dos pressupostos centrais da ideologia republicana é a
igualdade de oportunidades, na qual cada indivíduo poderá empenhar
esforços para atingir a posição social almejada. Nesse sentido, o
sistema escolar ganha destaque em uma sociedade meritocrática
por garantir igualdade social a todos. Alguns estudos da sociologia
da educação, contudo, têm demonstrado como o sistema escolar
pode não promover uma seleção neutra e ser o meio igualitário de
oportunidades. Estudos de Pierre Bourdieu, com a colaboração de
Jean-Claude Passeron, trazem uma crítica aos fundamentos da
sociedade meritocrática e ao posicionamento do sistema escolar
como alicerce dessa ideologia republicana (VASCONCELOS, 2002).

Pierre Bourdieu (1930-2002) foi um sociólogo que contribuiu para


o entendimento de como ocorrem as desigualdades escolares e
como a ideologia do dom é utilizada para reforçar o discurso liberal
da meritocracia. Utilizando-se de pesquisas quantitativas, Bourdieu
concluiu que o sucesso, e em certa medida o destino escolar dos
estudantes, não está atrelado ao esforço pessoal ou à inteligência,
mas recebe influências da origem social e herança familiar.

Bourdieu nasceu na pequena aldeia francesa Denguin, na região


do Béarn dos Pirineus. Foi filho de um carteiro e de uma professora

138 |
primária, os quais não tinham grandes instruções para compor o
repertório cultural de Bourdieu. Após ter frequentado a escola básica
local da região, foi para o Liceu de Pau, suficientemente longe para
que Bourdieu ficasse em um internato (GRENFELL, 2018).

Grenfell (2018) esclarece que essa experiência marcou o sociólogo,


pois Bourdieu era identificado como morador da área rural pela
vestimenta que era obrigado a usar (por ser aluno de internato)
e pelas zombarias recebidas diante de seu sotaque. Além disso,
Bourdieu foi criado com a língua Gascão e no Liceu era imposta a
língua oficial, o francês.

A educação, portanto, era uma faca de dois gumes: ela enfatizava


as idiossincrasias, mas ao mesmo tempo oferecia o meio para
se escapar do ambiente imediato. Não surpreende, portanto, que
Bourdieu tenha escolhido a educação e a cultura como os temas
principais de seus primeiros estudos na década de 1960. (GRENFELL,
2018, p. 35).

Bourdieu estudou diversos assuntos, mas, como ressaltado por


Grenfell (2018), a educação foi um elemento que teve destaque.
Em sua obra, Bourdieu desmistifica a ideologia do dom, percepção
que “[...] supõe talentos, aptidões, esforços individuais e que leva à
naturalização e personalização dos resultados escolares” (VALLE,
2015, p. 128), e afirma que o desempenho escolar é influenciado
pela origem social e cultural familiar. A escola utiliza uma linguagem
e conteúdos que estão relacionados com a cultura dominante e
avalia os alunos de acordo com suas aproximações ao que lhes é
imposto pedagogicamente (BOURDIEU; PASSERON, 2015). Para
discorrer sobre essa questão, Bourdieu problematiza a mediação
entre o agente social e a sociedade, uma vez que considera que o
agente não é um simples resultado da sociedade.

Neste capítulo, abordamos alguns dos conceitos utilizados


nas análises de Bourdieu para compreendermos as desigualdades
escolares, sendo eles os conceitos de habitus, campo, violência
simbólica, capital cultural, poder simbólico e ideologia do dom.

139 |
| Os conceitos de habitus e campo
Ao contrário das tradições deterministas, Bourdieu acreditava
no potencial da ação do agente. A grande questão de Bourdieu,
então, está em procurar a mediação do agente social e a sociedade
(ORTIZ, 1983). Ou seja, como os agentes se adaptam às situações
sem obedecer aos seus livres pensamentos? Para compreender
essa dinâmica, os conceitos de habitus e campo são essenciais e
conceitos-chave da abordagem bourdieusiana.

Ao escolher a palavra habitus para esse conceito, Bourdieu (2007,


p. 62) explica que “os utilizadores da palavra habitus se inspiravam
numa intenção teórica próxima da minha, que era a de sair da filosofia
da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador
prático de construções de objeto”. Bourdieu (2007) defende que o
indivíduo interioriza determinados conhecimentos de seu contexto
social (permeado pelo poder simbólico) e os exterioriza em suas
práticas. O habitus é uma ação criativa, geradora e não inerente
ao ser humano. É um conhecimento adquirido que se torna um
dispositivo para a prática do agente.

Peters (2013) explica que a teoria de Bourdieu é denominada


de praxiologia, sendo esta uma terceira via para sair do dualismo
objetivista e subjetivista. A praxiologia concebe a vida como
prática, sendo a prática social permanente no interior dos campos.
Os conceitos de habitus e campo, na teoria bourdieusiana, são
fundamentais para a compreensão do que seria a praxiologia.

Bourdieu (2007) utiliza o conceito de habitus para buscar superar


a dicotomia do “indivíduo X sociedade”. O autor afirma que “[...]
desejava pôr em evidência as capacidades ‘criadoras’, ativas,
inventivas, do habitus e do agente [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 61).
Nogueira e Nogueira (2002), ao explicarem tal conceito, destacam
que as disposições que regem a ação não se manifestam como
respostas mecânicas, mas que o indivíduo adapta essas orientações

140 |
em diferentes circunstâncias. Assim, o habitus é o conjunto de
disposições adquirido no contexto social que leva o indivíduo a agir
de uma certa maneira, em uma determinada situação.

Sapiro (2017a, p. 297) acrescenta que o “[...] habitus é o princípio


gerador dos esquemas de percepção, avaliação e de ação”.
O habitus, portanto, é uma maneira de agir do agente social. Como é
um processo de interiorização da realidade concreta, Maton (2018,
p. 76) complementa afirmando que “[...] o habitus é estruturado
pelas condições materiais da existência e também gera práticas,
crenças, percepções, sentimentos etc., de acordo com a sua própria
estrutura”. Portanto, a realidade social tem um papel decisivo para
a construção do habitus. Como esclarece Loyola (2002, p. 69), “O
habitus é um operador de racionalidade, mas de uma racionalidade
prática, inerente a um sistema histórico de relações sociais; assim,
transcende o indivíduo. O habitus é criador, inventivo, mas nos limites
de suas estruturas”.

Piotto (2009) também explica que é a partir do habitus que o


agente consegue circular, física e simbolicamente, no espaço social,
sendo que este é entendido por Bourdieu (2007) a partir de campos,
espaços de relações de luta e de poder. Para explicar esse conceito,
Bourdieu (2004) utiliza a ideia de um microcosmo que funciona
a partir de leis próprias, porém recebe influência de leis sociais
presentes na percepção macrocósmica da sociedade. Portanto,
apesar de ter seu próprio funcionamento, o campo não é totalmente
alheio às imposições do macrocosmo ou dos demais campos de
poder, mas detém uma autonomia parcial mais ou menos acentuada
(BOURDIEU, 2004).

O autor se refere às relações de luta e de poder porque no campo


está presente a disputa de conservar ou de transformar o próprio
funcionamento. Ou seja, o campo é uma estrutura objetiva, que tem
centralidade nas práticas dos agentes, mas pode ser modificado
ou até extinguido de acordo com as disputas de poder. Nesse

141 |
sentido, o campo é estruturado a partir de grupos dominantes e
grupos dominados. O que determina a estrutura e a posição dos
agentes nesses dois polos é a sua quantidade de capital legitimado
pelo campo. Quanto maior for a quantidade de capital específico,
valorizado em determinado campo, maior será a sua posição de
poder (BOURDIEU, 2004).

As estratégias e as práticas do agente recebem influências de


suas posições na estrutura de poder do campo, como esclarece
Bourdieu (2004, p. 25) a exemplo do campo científico: “[...] os agentes
fazem os fatos científicos e até mesmo fazem, em parte, o campo
científico, mas a partir de uma posição nesse campo – posição essa
que não fizeram – e que contribui para definir suas possibilidades
e suas impossibilidades”.

Ao trazer a proposta desse conceito, portanto, Bourdieu (2007)


ressalta que o campo de produção é um espaço social de relações
objetivas. A produção, nesse caso, inclui os bens simbólicos,
culturais, religiosos e científicos, bem como outros que podem
existir no mundo social. Bourdieu (2007) acrescenta que a noção
de campo permite descrever e redefinir a forma específica de que
se reveste cada microcosmo, os mecanismos e os conceitos mais
gerais (capital, investimento, ganho), o que evita o reducionismo que
foca no interesse material e no lucro monetário. Ainda de acordo
com Bourdieu (2007, p. 69):

Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que


faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo da
linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em
jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao
absurdo do arbitrário e do não-motivado os actos dos produtores
e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga,
reduzir ou destruir.

Nessa perspectiva, Bourdieu (2007) esclarece que no campo


há um jogo. Para ser jogado diante de suas regras, é preciso ter

142 |
os capitais e, acima de tudo, uma forma de ser específica. Dessa
maneira, a cada novo campo, um novo habitus é adquirido para
entrar nesse “jogo simbólico” pelas posições de poder.

Ao ingressar em um determinado campo, como no caso dos


estudantes que iniciam seus estudos nas universidades, o agente
acredita na validade do jogo simbólico estabelecido no campo. Essa
crença de que o jogo deve ser jogado é denominada por Bourdieu
(2004) de illusio. É a illusio que faz com que os estudantes acreditem
que vale a pena se envolver, que dá sentido ao jogo travado no
campo e que o jogo merece o investimento para se estar presente na
disputa. Assim, a proposta bourdieusiana é de uma teoria relacional,
em que esses conceitos de poder simbólico, habitus e campo se
enlaçam e permeiam as análises.

| A violência simbólica e o capital cultural


No Brasil, é difundido o mito da democratização através da
escola. O mito se deve ao fato de se acreditar que, por estarem na
escola, todos tiveram as mesmas oportunidades. Contudo, estar
matriculado na escola não significa que o aluno teve a oportunidade
de se dedicar aos estudos, tendo em vista que pode estar dividindo
o tempo da escola com o trabalho e se desgastando demais no
trabalho ou que o aluno pode não acompanhar o que o professor
ensina por alguma deficiência ou limitação que não foi percebida
pelo docente. Assim, o sistema educacional pode promover uma
inclusão excludente.

No caso de sua análise sobre a escola, Bourdieu traz os conceitos


de poder simbólico, habitus e campo para propor a teoria da violência
simbólica na ação pedagógica. Em seu livro A Reprodução, escrito
juntamente com Jean-Claude Passeron (BOURDIEU; PASSERON,
1975), são levantados os elementos e arranjos que acontecem nas
instituições escolares para exercer a violência simbólica e para
legitimá-la.

143 |
A violência simbólica está presente quando consideramos que
uma cultura é superior à outra. Ou melhor, quando uma cultura é
considerada como a certa e a que deve ser aprendida. A partir de
um caráter dissimulado, a instituição escolar legitima a cultura da
classe dominante como a correta. Em meio a essa situação, os
estudantes das camadas abastadas encontram na escola uma
extensão de sua cultura familiar e social, enquanto os estudantes
das camadas menos favorecidas sentem um mal-estar presente na
aculturação (BOURDIEU; PASSERON, 1975).

Nesse sentido, o poder simbólico é percebido como uma violência


legítima (por ser uma ação camuflada e naturalizada) e imposta
(por ser arbitrária). O caráter violento está na via de mão única
presente na escola: o professor ensina o objeto de aprendizagem que
é concebido como algo certo a ser aprendido. Bourdieu e Passeron
(1975) defendem que esse objeto de aprendizagem representa a
cultura das classes dominantes na sociedade, ou seja, apresenta os
conhecimentos de um determinado grupo como sendo o “verdadeiro”
a ser ensinado.

A ação pedagógica, ao impor um arbitrário cultural, atua


corroborando as relações de força presentes na sociedade. Como
afirmam os autores:

Na realidade, devido ao fato de que elas correspondam aos interesses


materiais e simbólicos de grupos ou classes diferentemente
situadas nas relações de força, essas AP [ação pedagógica] tendem
sempre a reproduzir a estrutura da distribuição do capital cultural
entre esses grupos ou classes, contribuindo do mesmo modo para
a reprodução da estrutura social [...] (BOURDIEU; PASSERON, 1975,
p. 25).

Além do arbitrário cultural, a violência simbólica também se


desdobra na autoridade pedagógica. Bourdieu e Passeron (1975,
p. 27) esclarecem que a autoridade pedagógica é necessária para
haver uma ação pedagógica, pois traz a “[...] violência simbólica

144 |
que se manifesta sob a forma de um direito de imposição legítima,
reforça o poder arbitrário que a estabelece e que ela dissimula.

A autoridade pedagógica é uma investidura que o campo passa


ao agente que a exerce sem perceber o caráter violento ao naturalizar
a imposição arbitrária. A escola não transmite apenas a cultura
considerada legítima, mas é arbitrária por também inculcar um
habitus em seus alunos por meio do trabalho pedagógico.

[...] a AP [ação pedagógica] implica o trabalho pedagógico (TP) como


trabalho de inculcação que deve durar o bastante para produzir uma
formação durável; isto é, um habitus como produto da interiorização
dos princípios de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após
a cessação da AP e por isso de perpetuar nas práticas os princípios
do arbitrário interiorizado. (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 44).

O sucesso do trabalho pedagógico, portanto, está na naturalização


da inculcação de um habitus que os estudantes transferem para
outros campos. Dessa maneira, a violência simbólica presente na
instituição escolar ganha força quanto maior for o nível de sua
dissimulação. Bourdieu e Passeron (1975) afirmam, ainda, que há um
duplo arbitrário na violência simbólica: a imposição de uma cultura
dominante como o próprio sinônimo de cultura e a inculcação da
cultura escolar.

Diante dessas análises, percebemos que a perspectiva


bourdieusiana sobre a escola traz elementos que questionam a
meritocracia e o otimismo pedagógico. Ao investigar o processo
de democratização do ensino na França, Bourdieu dirigiu uma
investigação que identificou um “mal-estar” presente na escola
e quais eram os elementos que favoreciam a exclusão social no
sistema de ensino.

Na escola, o estudante é avaliado por um estilo de fala, escrita


e comportamento considerado legítimo, ou seja, das classes
dominantes. Ainda assim, pouco se nota que há diferentes capitais

145 |
culturais e econômicos entre os alunos, o que contribui para uma
reprodução social, ou seja, o sucesso escolar de um grupo, que já
se encontrava em uma situação social confortável e o fracasso
escolar daquele grupo que já carecia de diferentes tipos de capitais.

Em seu estudo, Bourdieu e Champagne (2007) constataram que


não basta estar na escola para ter sucesso, visto que há uma série
de condições sociais relacionadas tanto ao trabalho escolar quanto
ao desempenho do estudante. Diante disso, os autores identificaram
que “[...] o processo de eliminação foi adiado e diluído no tempo: e isto
faz com que a instituição seja habitada a longo prazo por excluídos
potenciais, vivendo as contradições e os conflitos associados a
uma escolaridade sem outra finalidade que ela mesma” (BOURDIEU;
CHAMPAGNE, 1998, p. 221).

Ao considerar todos os estudantes iguais e dissimular o arbitrário


cultural, a escola privilegia aqueles que já recebem uma vantagem
em suas heranças familiares e camufla a influência social no
desempenho escolar. Com a meritocracia, a escola dissimula e, por
isso, legitima a diferenciação entre as pessoas, convertendo uma
desigualdade que é social em uma desigualdade escolar.

A exclusão que ocorre no interior das escolas se refere à


forma como a escola trabalha com as diferentes origens sociais
dos estudantes. Em seus estudos, Bourdieu e Passeron (2015)
compreenderam que os conteúdos ensinados e a forma pela qual
eram transmitidos estavam relacionados com a cultura de um
determinado grupo social. Os estudantes oriundos de camadas
culturalmente favorecidas encontravam na escola uma extensão da
cultura que partilhavam em seus ambientes familiar e social. Por
outro lado, os estudantes de camadas desfavorecidas culturalmente
encontravam na escola um ambiente desconhecido, com uma cultura
distante e uma linguagem diferenciada.

146 |
[...] enfim, a predisposição, socialmente condicionada a adaptar-
se aos modelos, às regras e aos valores que regem a escola,
todo esse conjunto de fatores que faz com que se sinta “em seu
lugar” ou “deslocado” na escola e que seja percebido como tal
determina, apesar de todas as aptidões iguais, uma taxa de sucesso
escolar desigual segundo as classes sociais, e particularmente
nas disciplinas que supõem toda uma aquisição, quer se trate de
instrumentos intelectuais, de hábitos culturais ou de rendimentos.
(BOURDIEU; PASSERON, 2015, p. 29-30).

Bourdieu e Passeron (1975) utilizam o conceito de capital cultural


para esclarecer a relação da origem social com o desempenho
escolar. Esse conceito se refere ao conjunto de informações, valores
e crenças que o agente recebe de seu contexto familiar e social ao
longo de sua formação. Tal conjunto de conhecimentos pode ser
usado como uma moeda de troca para conquistar determinadas
posições ou interesses em cada campo. Quanto mais o agente
receber esses conhecimentos de acordo com a cultura legitimada,
maior será o seu capital cultural e maiores as possibilidades de
troca. Dessa maneira, o conceito de capital cultural “[...] está na base
das estratégias de reprodução das classes dominantes” (VALLE,
2015, p. 154).

Como assinala Valle (2015), a escola é o lugar legitimado para


a transmissão do capital cultural e promove a diferenciação social
e a criação da elite intelectualizada. Para isso, os estudantes, ao
ingressarem na escola, encontram um campo que lhes exige o
capital cultural, a começar pela linguagem. Como explicam Bourdieu
e Passeron (1975, p. 82-83),

[...] a língua não é apenas um instrumento de comunicação, mas ela


fornece, além de um vocabulário mais ou menos rico, um sistema
de categorias mais ou menos complexo, de sorte que a aptidão à
decifração e à manipulação de estruturas complexas, quer elas
sejam lógicas ou estéticas, depende em certa parte da complexidade
da língua transmitida pela família.

147 |
A língua culta utilizada no campo escolar tem uma organização
voltada para aqueles que já dominam os seus códigos. O conteúdo é
ensinado a partir de uma língua com a qual nem todos os estudantes
apresentam familiaridade para perceber os sentidos colocados na
comunicação pedagógica. Diante disso, os estudantes oriundos de
camadas sociais que não utilizam a língua culta encontram-se em um
campo em que serão avaliados não apenas por seu conhecimento
diante do conteúdo, mas por uma forma de ser que representa a
cultura dominante: “Todo ensino, e mais particularmente o ensino
de cultura (mesmo científica), pressupõe implicitamente um corpo
de saberes, de saber-fazer e sobretudo de saber-dizer, que constitui
o patrimônio das classes cultas” (BOURDIEU; PASSERON, 2015,
p. 39). Nesse sentido, é a partir da escola que se torna possível
fazer a conversão do capital cultural herdado para o capital escolar.
Como esclarece Valle (2015, p. 124):

O que Pierre Bourdieu observa na França é um processo ativo e


intenso de reconversão de capitais, notadamente dos capitais
econômico e cultural, entre outros capitais (social, simbólico,
escolar, técnico), procedimento este que permite assegurar e/ou
melhorar a posição social de origem e que, graças às trajetórias
sociais e escolares geradoras de disposições específicas, define
modos de pensar, exprimir, agir e julgar de uma classe ou campo.

Assim, o enriquecimento do capital cultural e do capital escolar


pode contribuir para a ascensão social do agente, haja vista também
as alterações que podem ocorrer em seu habitus. Entretanto, esta
situação ocorre com menor frequência, pois a escola tem reproduzido
as desigualdades escolares, ao passo que deveria combatê-las. Os
poucos exemplos de ascensão social são utilizados, normalmente,
de maneira equivocada, para embasar discursos neoliberais e
meritocráticos.

148 |
| A ideologia do dom
Às vezes assistimos reportagens que mostram a trajetória de
uma pessoa que saltou de um patamar a outro da sociedade; que
viveu na periferia e passou no vestibular para medicina; que era
um office boy e tornou-se um grande empresário. Os depoimentos
de pessoas que tiveram ascensão social têm sido utilizados como
argumentos para reforçar o discurso de que todos são capazes e
que basta o esforço individual para obter o que se deseja. Nesta
lógica meritocrática, o sucesso escolar depende de cada aluno.

Ao analisarem o processo de democratização escolar que ocorreu


na França, Bourdieu e Passeron (1975, 2015) constataram que tal
processo ocorreu com os pressupostos da pedagogia liberal, a qual
baseia-se na ideologia do dom para formar os indivíduos de acordo
com as suas aptidões naturais. Nesse sentido, a democratização
da escola iria possibilitar as oportunidades necessárias para que
os indivíduos alcançassem o sucesso por meio de seus talentos
e esforços. Contudo, os estudos de Bourdieu e Passeron (1975,
2015) indicaram que o desempenho escolar recebe influência das
condições de origem social e familiar dos estudantes, o que contraria
a proposta da escola liberal.

Os estudantes que permanecem no sistema de ensino e buscam


os estudos superiores não estão aprendendo apenas os conteúdos,
mas uma performance do homem culto. Estão aprendendo a jogar
o jogo que a escola oportuniza a seus agentes. Ao procurarem se
aproximar e se inserir nos estudos dos professores, os estudantes
tornam-se “aprendizes de feiticeiro” e legitimam a força simbólica
que os professores têm sobre o campo intelectual (BOURDIEU;
PASSERON, 2015). Contudo, como esclarecem Nogueira e Nogueira
(2015, p. 58):

Embora todos vivam, em alguma medida, orientados pela idealização


do mundo intelectual, somente alguns trazem de sua origem social
os recursos necessários para serem efetivamente aceitos no

149 |
universo dos homens cultos. Todos, ou quase todos, legitimariam
os valores sustentados pelo sistema universitário, mas poucos
seriam os seus verdadeiros herdeiros.

Quando são aplicadas as avaliações internas e externas, após


terem sido abordados todos os conteúdos escolares, com recursos e
aulas entendidas como de excelente qualidade, muitos esperam que
o resultado possa ser o mesmo para todos os alunos. Entretanto,
os alunos possuem trajetórias de vida diferentes e podem assimilar
os conteúdos em tempos diferentes, de maneiras diferentes. Na
perspectiva bourdieusiana, essas diferenças se referem muito mais
a aspectos sociais do que individuais de esforço do aluno.

Ao propor tratamentos iguais para estudantes com capitais


culturais diferentes, reforça-se a tendência reprodutiva da escola.
A avaliação irá privilegiar os estudantes que têm habitus e
capital cultural já inculcados pela família e pelo contexto social e
demonstram, por causa disso, uma desenvoltura livre em relação à
cultura escolar. A escola tende a contribuir com a ideologia do dom,
ao premiar estudantes por seus supostos méritos. Camufla, assim, as
condições sociais que interferem no desempenho escolar e comuta
uma desigualdade social em desigualdade cultural (BOURDIEU;
PASSERON, 2015).

Além disso, o desdobramento da ideologia do dom na vida


dos estudantes (tanto pelas barreiras da linguagem quanto pela
ausência de habitus e capital cultural valorizados no campo escolar)
se manifesta na autorresponsabilização de seus desempenhos.
Nessa ideologia, considera-se que foi ofertada a chance de sucesso
e, se o estudante não conseguiu atingir êxito, a responsabilidade
pelo fracasso é dele, o que o leva a se sentir incapaz tanto para a
escola, quanto para as profissões que requerem o diploma. Segundo
Bourdieu e Champagne (1998, p. 223), a ideologia do dom faz com
que

150 |
[...] o sistema de ensino, amplamente aberto a todos e, no entanto,
estritamente reservado a alguns, consiga a façanha de reunir as
aparências da “democratização” com a realidade da reprodução
que se realiza em um grau superior de dissimulação, portanto, com
um efeito acentuado de legitimação social.

O horizonte que é apresentado a um adolescente que vive em


condições precárias de existência é limitado. O rol de opções que
lhe é apresentado geralmente difere das opções de trajetória que
são listadas para um adolescente de classe média ou de família
com elevado poder aquisitivo, ainda mais pelo fato de que o próprio
agente, por meio de seu habitus, não consegue enxergar outras
opções de caminhos a percorrer.

Para Bourdieu (2008), há uma tendência de reprodução social,


mas não predestinação. Assim, existe uma perspectiva de trajetória.
Exemplo disso é a pessoa que já foi presidiária, que não tem ensino
superior, pertence às camadas populares, por isso dificilmente
conseguirá um bom emprego e irá prosperar economicamente
na vida, tendo em vista o preconceito existente na sociedade. No
entanto, pode ocorrer que uma ou outra pessoa neste caso vivencie
situações excepcionais que colaborem para alterar sua trajetória de
vida. Assim, é possível afirmar que a origem social parece determinar
a herança, que por sua vez parece determinar a trajetória e ela parece
determinar o destino, mesmo que haja exceções.

Além de condicionantes sociais que podem interferir na trajetória,


o conceito de habitus também contribui para a tendência de
reprodução social. Maton (2018) esclarece que o habitus influencia
na percepção sobre o rol de opções para estratégias práticas dentro
de um campo. Ou seja, os agentes aspiram aquilo que consideram
provável que aconteça a partir de crenças condicionadas ao habitus
incorporado em experiências passadas:

151 |
São nossas condições materiais de possibilidades e impossibilidades,
de resultados prováveis e improváveis, que por sua vez moldam
nosso senso inconsciente do possível, provável e, crucialmente,
desejável para nós. Para resumir, nós aprendemos nosso lugar
de direito no mundo social, onde nos saíremos melhor tendo em
vista nossas disposições e recursos e também onde teremos
dificuldades. (MATON, 2018, p. 85).

Nesse sentido, o habitus direciona as ações ao proporcionar uma


“lente” que enxerga o que os agentes acreditam que seja viável de
acontecer. Nas palavras de Sapiro (2017b, p. 144), o habitus orienta
os agentes a ajustar “[...] expectativas subjetivas às possibilidades
objetivas, mas também [...] renunciar de imediato ao que ‘não é
para eles’”. Percebemos, portanto, que o habitus é um conceito que
Bourdieu utiliza para problematizar como os agentes participam,
inconscientemente, da reprodução social.

A tese do dom ou da predestinação pode ser desconstruída na


medida em que se percebe que há um arranjo social do campo, em
que os estilos estão sendo mudados e reconstruídos o tempo todo.
Para Bourdieu, os dados não nos são dados, mas são construídos,
a estrutura pode ser determinante, mas não determinista, e as
disposições são mais ou menos duradouras, mas não são estáticas.
Ao compreendermos e problematizarmos a ideologia do dom e
refletirmos sobre as determinações sociais presentes nas práticas
dos agentes, torna-se possível superar o “destino provável” da
reprodução social.

| Considerações finais
Investigar as razões das desigualdades escolares tem se tornado
uma missão, que ultrapassa a habilidade de ministrar conteúdos
de diferentes disciplinas para os educadores. É fundamental
que as aulas e os projetos pedagógicos contemplem também a
temática da desigualdade social e econômica, com a finalidade de
conscientização sobre as divisões de classes sociais. Além disso,

152 |
elaborar políticas públicas de acesso e permanência dos estudantes
nas escolas de modo efetivo, bem como propiciar educação de
qualidade para todos, é o caminho para dissipar as desigualdades
escolares e contribuir para uma sociedade que respeite as diferenças
e que seja mais justa.

Por fim, a teoria de Pierre Bourdieu contribui para a nossa


compreensão de como as desigualdades escolares se manifestam
e como a ideologia do dom é incorporada em discursos que tentam
legitimar a meritocracia. Acreditamos que a discussão sobre as
desigualdades escolares no Brasil precisa contribuir para pensarmos
o modelo de escola que mais colabore para a democratização da
educação.

| Referências
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clínica do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

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155 |
O conceito de habitus de Bourdieu
e a pedagogia histórico-crítica
Rafael Oliveira de Antonio

| Introdução
O propósito deste estudo foi analisar o conceito bourdieusiano de
habitus na pedagogia histórico-crítica, especificamente na catarse.
Esta entendida como o momento culminante do processo educativo,
representando a efetiva incorporação dos elementos da cultura
humana em sua historicidade, mediados pela ação pedagógica,
se tornando parte ativa da transformação social. A metodologia
desenvolvida se baseou em uma pesquisa teórica, de natureza
exploratória e abordagem qualitativa, dentro da literatura da área.

O homem é visto como um ser de natureza social, tendo sua


humanidade constituída no seio da cultura humana, diferindo
dos outros animais por não ter sua evolução condicionada a leis
biológicas, mas sim regido por leis socio-históricas (LEONTIEV, 1978).
Para Leontiev (1978), o surgimento do Homo sapiens – homem atual
– marca a ruptura com o despotismo da hereditariedade, ou melhor,
a evolução humana se liberta da dependência inicial das mudanças
biológicas transmitidas pela hereditariedade. A partir desse momento,
a espécie humana passa a ter todo o aparato biológico necessário
ao seu desenvolvimento socio-histórico ilimitado.

Cada nova geração adentra um mundo de cultura edificado pela


atividade humana de gerações passadas que, através do trabalho
– atividade vital do homem, depositaram sua humanidade em
objetivações materiais e ideativas (LEONTIEV, 1978). Essa dinâmica
da formação humana se dá por processos ao mesmo tempo
opostos e complementares de objetivação ↔ apropriação, sendo
o êxito deste último condicionado a reproduzir traços essenciais da
atividade humana acumulada no objeto. Desse modo, aprende-se

156 |
a ser humano no convívio social com seus pares mais experientes
da cultura – adultos, fato ilustrado por:

A tribo dos Guayaquils, no Paraguai, é das mais primitivas28 que


se conhece actualmente. [...] É difícil entrar em contato com eles,
pois não têm lugar de habitação fixa. Assim que os estrangeiros
se aproximam, fogem para os bosques. Mas conseguiu-se um dia
apanhar uma criança desta tribo com sete anos de idade. Pôde
assim conhecer-se sua língua que se verificou ser extremamente
primitiva. Noutra vez, o etnólogo francês Vellard encontrou uma
menina de dois anos num acampamento abandonado pela tribo.
Confiou sua educação à mãe dele. Vinte anos mais tarde (em 1958)
ela em nada se distinguia no seu desenvolvimento das intelectuais
europeias. Dedica-se à etnografia e fala francês, espanhol e
português. (LEONTIEV, 1978, p. 266-267).

Esse exemplo demonstra que as aptidões humanas não são inatas,


mas sim adquiridas por um processo educativo de apropriação da
cultura na qual o indivíduo faz parte, logo, ele aprende a ser homem.
Isso explica como essa criança indígena, mesmo inserida em um
grupo social com valores culturais diferentes, conseguiu incorporar
gostos e práticas próprias da sociedade europeia industrial da época.
À vista disso, a natureza humana, vinculada ao nascimento, não
determina o viver em sociedade, sendo necessário passar por um
processo educativo, que começa bem antes do ingresso da criança
na educação escolar.

Por sua vez, desde o nascimento, no lar, o processo de aquisição


da cultura se inicia, o capital cultural da família começa a fazer parte
da criança. Bourdieu (2007a) conceitua o capital cultural como todo
o acervo cultural que o indivíduo ou o núcleo familiar possui, sendo
classificado em três estados:

28 A palavra primitiva deve ser inserida no contexto histórico da época de publicação


da obra. O termo primitivo, no século XIX, remetia àquelas sociedades exteriores às
áreas de civilização europeias ou norte-americanas, e hoje poderia ser atualizado
para subdesenvolvidos (LAPLANTINE, 2003).

157 |
a) incorporado: disposições duráveis no organismo, exigindo
tempo dedicado para tornar-se parte da pessoa, um habitus,
não podendo ser transmitido instantaneamente e morre com
seu portador;

b) objetivado: sob a forma de bens culturais – escritos, pinturas,


esculturas, etc., transmissíveis em sua materialidade;

c) institucionalizado: objetivado sob a forma de um certificado de


competência cultural – diploma, por exemplo, garantindo ao
seu portador valor jurídico.

Advém pontuar, contudo, o papel da escola na educação formal ao


socializar o conhecimento cultural humano sistematizado. Quando
consideramos os diferentes volumes que as crianças apresentam
ao ingressarem na escola, principalmente ao compararmos os filhos
de pais diplomados e/ou privilegiadas culturalmente com os de
classes populares, observamos que estes últimos são os que mais
necessitam da escola. Não raro, essa é uma das únicas oportunidades
dos menos privilegiados culturalmente entrarem em contato com o
conhecimento filosófico, científico e artístico. Dessarte, a existência
da escola contemporânea, especialmente a pública, só se justifica
ao proporcionar uma proximidade dos pequenos com as máximas
objetivações humanas, melhor dizendo, não vivenciadas na esfera
cotidiana, então:

[...] o papel da escola não é mostrar a face visível da lua, isto é,


reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar os
aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os
fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata. (SAVIANI,
2011, p. 201).

Ademais, o autor parte do pressuposto do objeto da educação


ser constituído por:

158 |
a) seleção dos conteúdos culturais essenciais, baseado na noção
de “clássico” – resistiram ao tempo e ainda são atuais;

b) definir as formas mais adequadas de desenvolver o trabalho


pedagógico, organizando meios – conteúdos, espaço, tempo
e procedimentos.

Desse modo, essa abordagem educativa se distancia dos saberes


populares, religiosos ou tácitos, presentes no convívio social,
valorizando o ensino formal em relação à aclamada “escola da vida”.

O sistema escolar, conquanto, tem implícita a visão platônica de


mundo social, destacando os filósofos, os guardiões e só depois o
povo (BOURDIEU, 1998). Por isso, não é de se estranhar o cerceamento
histórico da socialização do conhecimento sistematizado por
diversas correntes pedagógicas, aprisionando o indivíduo da camada
popular na imediaticidade e no pragmatismo cotidiano. Prova disso
é a apreciação de uma obra de arte, pois ela só existe como objeto
simbólico, dotado de sentido e valor cultural, se for apreendida
por espectadores possuidores do conhecimento estético exigido
(BOURDIEU, 2006).

Os objetos da cultura material e intelectual, inclusive as artes,


seguem esse mesmo caminho de incorporação do conhecimento, com
a escola fazendo o papel de transmissão dessa riqueza intelectual
através dos conteúdos curriculares. Isto posto, a pedagogia histórico-
crítica surge como uma teoria pedagógica que defende a socialização
do conhecimento sistematizado e, consequentemente, combate a
alienação imbricada nas atividades constitutivas da vida humana
e de sua individualidade.

| O habitus em Bourdieu e a pedagogia


histórico-crítica
Originário no pensamento de Aristóteles e na escola medieval,
o habitus situa-se na noção aristotélica de hexis, representando

159 |
um estado incorporado e constituído do caráter moral que orienta
nossos sentimentos e vontades em situações cotidianas e, como
tal, nossa conduta (WACQUANT, 2007).

É, porém, em Bourdieu que encontramos o conceito de habitus


descrito como um sistema de esquemas individuais, constituídos de
disposições estruturadas socialmente e estruturantes mentalmente,
fundando comportamentos específicos de um grupo social e
orientações constantes no agir cotidiano (BOURDIEU, 2011).
Outrossim, ele se caracteriza como um conhecimento adquirido,
uma disposição incorporada, quase postural (BOURDIEU, 2006).

O habitus, portanto, é um conjunto de disposições cumulativas


ao longo da vida e trajetória social, incorporado pela necessidade
e transformado em natureza social. Isso possibilita ao indivíduo
interagir nas mais diferentes situações, mesmo inconscientemente,
graças a esse conjunto de valores reunidos, que reverbera no seu
percurso social. Desse modo, ele confere uma certa homogeneidade,
relativa às predisposições em termos de gostos e condutas morais
de grupos e/ou indivíduos que compartilham uma mesma posição
no espaço social.

Não obstante, apesar do habitus estar inscrito pelas experiências


passadas, nos corpos dos indivíduos (BOURDIEU, 2001), ele não
se define como algo estático ou definitivo. Há uma reestruturação
ininterrupta com o passar do tempo e para Bourdieu (2002) o
habitus se mostra como um produto da história, produzindo práticas
individuais e coletivas em conformidade com a própria história.

A desejada socialização do conhecimento sistematizado,


tornando-se um habitus para o indivíduo, é cerceada historicamente
por diferentes correntes pedagógicas, impondo a marginalidade na
educação aos grupos dominados pela coerção da força material
– capital econômico – e do poder simbólico – capital cultural. Em
razão disso, a escola deixa de cumprir o seu papel de transmissora

160 |
do acervo cultural humano, sistematizado na forma de disciplinas
e conteúdos que integram o currículo escolar.

Saviani (2012) classifica essas teorias pedagógicas em dois


grupos:

a) teorias não críticas: escola tradicional, escola nova e pedagogia


tecnicista, tendo uma visão ingênua da educação como
autônoma em face à sociedade, deixando de reconhecer suas
limitações em promover a igualdade social;

b) teorias crítico-reprodutivistas: sistema de ensino como violência


simbólica, escola como aparelho ideológico do estado e escola
dualista; compreendem a educação a partir de sua estrutura
socioeconômica, colocando a escola como reprodutora da
sociedade, inclusive das desigualdades sociais. Por conseguinte,
as teorias crítico-reprodutivistas passam do ilusório das
teorias não críticas para a impotência frente à marginalidade
educacional.

Bourdieu (2006) conceitua a violência simbólica como uma


contínua imposição da cultura da classe dominante aos segmentos
menos privilegiados da sociedade, praticada de forma não
física e fundamentada em valores coletivamente construídos e
disseminados. Presente nas mais diversas instituições sociais,
na escola ela perpetua as desigualdades de classe ao valorizar e
transmitir a cultura legitimada, não refletindo a cultura da massa
popular (BOURDIEU, 2007b). Dessa maneira, a cultura escolar é uma
cultura particular, a seleção de disciplinas e conteúdos ensinados é
resultado de relações de força entre grupos sociais, convencionando
o que é culto, ou ao contrário, rotulando o vulgar e o comum.

Diante das teorias pedagógicas em tela, em 1984 surge uma


concepção educacional contra hegemônica, que sistematizou a
pedagogia histórico-crítica (SAVIANI, 2003). Essa fundamentada
no materialismo histórico-dialético, de construção coletiva e em

161 |
constante movimento histórico de reformulação e aperfeiçoamento,
não enxerga a educação como externa à estrutura social.

Nesse sentido, a educação não é o fim em si mesmo, constituindo-


se em uma mediação entre a prática social como ponto de partida
e chegada da prática educativa, e a escola atuando nos momentos
intermediários desse método: problematização – levantar questões
suscitadas pela prática social, instrumentação – dispor recursos
teóricos e práticos para a sua compreensão e possível solução e
catarse – viabilizar sua incorporação como parte da vida dos alunos
(SAVIANI, 2008).

Pode-se dizer que a catarse é a “[...] efetiva incorporação dos


instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos
de transformação social.” (SAVIANI, 2012, p. 72), representando o
ponto culminante do processo educativo. Antes o patrimônio cultural
humano – sistematizado no currículo escolar – era alheio ao sujeito,
porém agora incorporado por ele, transforma seu entendimento da
realidade e proporciona uma nova visão de mundo. Assim, há uma
mudança qualitativa na consciência de sua prática ao possuir em
suas mãos, na forma de instrumentos culturais, o que de melhor
a humanidade produziu em matéria de conhecimentos filosóficos,
sociológicos, científicos, artísticos, literários e da cultura corporal.

O processo catártico na educação é muito nítido na alfabetização,


colocando o educando em contato com a cultura letrada, apropriada
de modo sistemático e intencional, como condição necessária para
acessar todo o acervo cultural da nossa sociedade. No entanto,
para a catarse se efetivar é preciso um trabalho educativo contínuo
e processual, de forma a permitir a incorporação dos instrumentos
culturais de modo irreversível – impossibilidade de regredir à
condição anterior (SAVIANI, 2012).

Para compreendermos a concepção de catarse na pedagogia


histórico-crítica, podemos tomar como referência o habitus, definido

162 |
por Bourdieu e Passeron (2011) como uma formação durável de
internalização cultural no educando através do trabalho pedagógico.
Ou seja, o habitus é o “[...] produto da interiorização dos princípios
de um arbitrário cultural capaz de perpetuar-se após a cessação da
ação pedagógica e por isso perpetuar nas práticas os princípios do
arbitrário interiorizado” (BOURDIEU; PASSERON, 2011, p. 53).

Vale ressaltar que a referência do conceito de habitus de Bourdieu


para explicar a catarse na pedagogia histórico-crítica é articulada
com o conceito de “segunda natureza” de Gramsci (MARTINS;
CARDOSO, 2015). Isso explica o ler e escrever, por exemplo, ser tão
natural a ponto de termos dificuldade em nos lembrarmos de quando
não éramos alfabetizados, aparentando ser uma habilidade inata
e não fruto de um processo sistemático, intencional e de enorme
esforço intelectual e motor. Sendo assim, podemos suscitar que:

Estuda-se a história literária dos livros escritos naquela língua, a


história política, as lutas dos homens que falaram aquela língua. A
educação do jovem é determinada por todo este complexo orgânico,
pelo fato de que – ainda que só materialmente – ele percorreu todo
aquele itinerário, com suas etapas, etc. Ele submerge na história,
adquire uma instituição historicista do mundo e da vida, que se
torna uma segunda natureza, quase uma espontaneidade, já que não
é pedantemente inculcada pela “vontade” exteriormente educativa.
(GRAMSCI, 1991, p. 135, grifo nosso).

A segunda natureza de Gramsci representa uma construção


cultural sobre a natureza biofísica do aluno. Considerando que
essa natureza humana é produzida por ele próprio, incorporando
a experiência cultural acumulada nas produções humanas
sistematizadas nos conteúdos escolares – cultura letrada. A partir
daí, o que foi incorporado não se encerra e coloca em movimento
uma evolução qualitativa constante e ilimitada.

163 |
| Considerações finais
A marginalidade na educação é um processo contínuo e
orquestrado por diversas correntes pedagógicas, não permitindo que
a classe popular desfrute de toda riqueza cultural historicamente
produzida pela humanidade. Aqui trata-se de destacar o acesso aos
conhecimentos clássicos – continuam vivos e atuais apesar do
longo espaço temporal de sua produção – na formação omnilateral
do indivíduo. Dessa forma, não basta as teorias não críticas
atribuírem um papel redentor para a escola ou as teorias críticas-
reprodutivistas denunciarem o sistema escolar como reprodutor das
desigualdades sociais. Torna-se necessária uma pedagogia com
base no entendimento da educação como mediadora no interior da
prática social.

Para preencher essa lacuna, a pedagogia histórico-crítica surgiu


com uma postura contra hegemônica, fundamentada no materialismo
histórico-dialético e defendendo a socialização do conhecimento
sistematizado nas suas formas mais desenvolvidas para as classes
marginalizadas. Nesse contexto, a catarse – ápice da prática
educativa – aproxima o conhecimento escolar mais elaborado e as
lutas sociais, elevando a escola não só como espaço de reprodução
social, mas sim como mediadora do processo de transformação da
sociedade.

Dado isso, o habitus bourdieusiano na educação, correlacionado


com o conceito de “segunda natureza” de Gramsci (1991), sintetiza
quando um conhecimento específico atinge uma disposição durável
e irreversível, mesmo após cessar a ação pedagógica. Esse estágio
idealizado é o esperado para uma mudança qualitativa do educando
em sua prática social, criticidade e expansão da sua visão de mundo
para além do seu cotidiano.

Por fim, a pedagogia histórico-crítica enxerga na socialização


do conhecimento sistematizado em suas formas mais elevadas,

164 |
convertido em um habitus, uma nova disposição diante da sociedade,
modificando a prática social das classes populares na sua trajetória
de vida, que impactará a transformação da sociedade como um
todo.

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Associados, 2012.

WACQUANT, L. Esclarecer o habitus. Educação & Linguagem, São


Paulo, v. 10, n. 16, p. 63-71, jul./dez. 2007.

| Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) –
Código de Financiamento 001.

166 |
O habitus feito corpo e o ensino da
educação física escolar
Fábio Tadeu Reina
Luci Regina Muzzeti
Willian Gabriel Felício

| Introdução
A Educação Física escolar, disciplina obrigatória na grade comum
curricular nacional, tendo como objetivo primário a formação integral
do aluno para constituir pleno exercício de sua cidadania, conforme
proclamado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB 9394/96), ganha um destaque nesse cenário, devido à grande
aceitação do alunado para com os conteúdos legitimados pela
cultura do movimento especializado na nossa sociedade. Portanto,
essa aproximação aos saberes preconizados e desenvolvidos nas
escolas torna o professor de educação Física agente imprescindível
nesse processo ensino aprendizagem para que o aluno se aproprie
dos conhecimentos de esportes, danças, lutas, jogos e ginásticas,
pois a ele cabe a seleção e transmissão destes conteúdos que serão
trabalhados durante as suas aulas.

Dessa forma, constatamos o nascer de uma nova ideia na área


da Educação Física escolar que traz uma perspectiva que pretende
democratizar, humanizar e pluralizar a prática pedagógica dá área,
maximizando o olhar que, até então, estava reduzido a uma visão
biológica, para um trabalho docente que introjeta as dimensões
cognitivas, afetivas, motoras e socioculturais dos alunos. Com isso,
para abarcar toda essa gama de fatores, o professor de Educação
Física deve nortear-se por aquilo que está posto nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN 1997) específicos da Educação Física,
que trazem os princípios da diversidade, inclusão, preconceito e
gênero para serem desenvolvidos ao longo de todo o aprendizado

167 |
do aluno, rompendo assim com o que muitas vezes está arraigado
e naturalizado como condição na nossa sociedade.

Diante disso, esse estudo aparenta-se como uma abordagem


sociológica, tendo como aporte teórico principal os estudos de
Pierre Bourdieu e colaboradores, pois ao nos apropriarmos de suas
categorias de analise sociológica, tais como: habitus, capital cultural,
dentre outras, permitiu-nos desenvolver um mapa teórico que
apontou os fatores que, de alguma forma, imbricaram na construção
da héxis corporal dos professores de Educação Física, na condição
de relevância para com os conteúdos a serem desenvolvidos no
interior da escola, no sentido de uma aprendizagem significativa
do aluno.

Por meio dos estudos de Bourdieu (1990), parafraseando sua


fala, deduzimos que há uma intrínseca relação entre o conhecimento
embutido no conteúdo legitimado e posto literariamente, com aquele
que o professor detém por conta do acúmulo de capital cultural
herdado ao longo de sua trajetória de vida, social e acadêmica,
principalmente no momento em que começa a vivenciar a atuação
docente no interior da escola.

Toda essa complexidade de condicionantes e disposições,


adquiridas e acumuladas, chamada de herança cultural adquirida
nesse percurso histórico, faz com que os professores desenvolvam
um conjunto de saberes, informações, códigos linguísticos, posturas,
que se materializam nas escolhas dos conteúdos e pela valorização
que atribuem a eles (conteúdos), culminando no êxito ou fracasso
do seu trabalho docente.

| Metodologia
Esse estudo é proveniente de apontamentos da nossa dissertação
de mestrado e da tese de doutorado já realizados e publicados em
periódicos, tais como, Revista Educere e Revista Ibero-Americana,

168 |
momentos em que buscamos apontar como a disciplina de Educação
Física escolar torna-se de extrema relevância para adolescentes
das camadas populares no processo de sua aprendizagem formal
no interior da escola. Mas para que isso ocorresse, o professor de
Educação Física teve um papel de extrema relevância, pois existe
uma aceitação muito grande dos alunos para com essa área do
saber e uma afetividade muito presente e importante nesse processo
ensino e aprendizagem.

Para desempenhar sua função docente de maneira exitosa no


trato com os conteúdos, e por serem eles adquiridos muitas vezes
de maneira procedimental, a héxis corporal do professor construída
na sua trajetória de vida é condição preponderante para que o aluno
entenda e receba a informação correta do conhecimento a ser
adquirido motoramente.

Nesta direção, para coletar todos os dados referentes à história


de vida dos professores de Educação Física, utilizamos um roteiro de
questões que construímos embasados na teoria de Bourdieu, para
a posteriori realizar as entrevistas, tendo como fundamento Ludke
e André (1986), já que a finalidade era apontar as condicionantes
para a construção de suas héxis corporal.

Como participantes dessa pesquisa, elegemos cinco professores


de Educação Física, efetivos numa unidade municipal de ensino,
região periférica de uma cidade do interior paulista, sendo quatro
professoras e um professor, todos lotados nessa mesma escola.
Devido sua origem social, provenientes de famílias de classe
média baixa, tendo como probabilidade histórica a aquisição de
condicionantes e disposições semelhantes.

Ditados pela teoria de Bourdieu, acreditamos que haveria


semelhanças nas respostas proferidas e isso se comprovou, pois,
segundo Bourdieu (1998), agentes sociais provenientes de uma
mesma fração de classe, tendo um mesmo patrimônio (acúmulo

169 |
de capital econômico, cultural e social) tendem a possuir habitus
semelhantes, o que nos fez crer que os resultados aqui encontrados
se comprovam e tornam-se importantes em outras unidades de
ensino onde os professores possuam características iguais a esses
aqui pesquisados.

Os cinco professores entrevistados (como já dito, quatro


professoras e um professor) têm idade entre 30 e 45 anos e são
formados em Educação Física em faculdades do estado de São Paulo,
nas décadas de 1980 e 1990, faculdades localizadas e pertencentes à
mesma região do Estado. Além disso, todos possuem pós-graduação,
fato que comprova a ampliação do seu capital cultural específico
dessa área e é relevante na abordagem dos conteúdos a serem
ministrados.

Feita essa descrição do local e dos participantes da pesquisa,


nesse momento nos remetemos às etapas constituintes do processo
metodológico para que realmente a pesquisa se concretizasse.
Como primeiro momento, destacamos a elaboração de um oficio
endereçado à Secretaria Municipal de Educação, solicitando a
autorização para realizar a pesquisa na rede municipal em escolas de
ensino fundamental II; esse ofício continha os objetivos da pesquisa
e o projeto como um todo.

Após ter feito isso, quando recebemos o deferimento do oficio,


fomos até a escola com outro documento também oficializado
para a direção da escola, para realizar a pesquisa naquele espaço
escolar, tendo o aval da direção. O terceiro e último ato foi procurar os
professores para explicar o objetivo do estudo e marcar as entrevistas
individualmente em local e horário que não fosse prejudicá-los nos
seus afazeres e compromissos do dia a dia.

O local escolhido foi a própria escola e o horário estabelecido foi o


horário do ATPC. Fizemos várias visitas para realizar as entrevistas,
que foram todas gravadas e transcritas para análise dos dados

170 |
coletados. Ao findar todas, tivemos um outro momento importante
da pesquisa, que foi o acompanhamento de um bimestre inteiro de
aulas presencias na perspectiva conceitual e procedimental. Tudo
foi anotado em bloco de notas para ratificar o dito nas respostas
proferidas diante das perguntas elaboradas e respondidas por eles.

Os nomes a eles atribuídos são fictícios para preservar suas


identidades e manter a ética da pesquisa. Por isso, optamos por
nominá-los com letras do alfabeto, caracterizando-os como agentes
sociais pertencentes à classe média baixa, conforme verificado em
seus depoimentos.

| A héxis corporal constituída pelo


professor como meio de transmissão dos
conteúdos na Educação Física escolar.
Na educação Física escolar, a transmissão e aquisição das
habilidades motoras especializadas dos esportes, lutas, danças,
jogos e ginásticas se dá pela dimensão procedimental enquanto
princípio metodológico, ou seja, há necessidade de utilizar os
segmentos corporais de maneira coordenada e hierarquizada para
aprender determinados conteúdos. Como exemplificação, podemos
citar que, para aprender o voleibol, temos que aprender toque,
manchete, saques, ataque, bloqueio, movimentos especializados
culturalmente determinados e legitimados no universo esportivo e
na sociedade de modo geral. Portanto o professor, para transmitir
esse conhecimento de maneira prática, deverá saber realizar esses
movimentos que se exteriorizam no seu corpo.

A maioria dos exercícios eu mesmo faço, se são simples de executar


apenas peço para eles mesmos fazerem, mais se são difíceis de
realizar eu mesmo faço para que eles, ao me verem fazer, também
realizem. (PROFESSORA A)

171 |
A héxis corporal, segundo Bourdieu (1998), expressa a motricidade
enquanto esquema postural que é, ao mesmo tempo, singular e
sistemático, pois é solidário de todo sistema de técnicas do corpo
e de instrumentos e carregado de uma miríade de significações e
de valores sociais.

Como a demonstração é fator inerente na aprendizagem dos


conteúdos elencados e desenvolvidos na escola, as crianças
principalmente da primeira infância e da infância posterior tendem
a imitar os adultos na reprodução sistemática desses movimentos
até por conta da pequena experiência de vida que tem em relação
a conhecimentos como esses materializados na escola de forma
metódica.

Em relação aos adolescentes do ensino fundamental II, onde


esses professores pesquisados lecionam, a exigência de uma
héxis corporal mais complexa também se faz necessária. Todo o
conhecimento se exteriorizará na maneira como irão usar o seu
capital linguístico para informar o movimento, a postura da cabeça e
das outras partes corporais para manipular bolas ou outros objetos
que caracterizam a realização da tarefa proposta ou até mesmo
o tom da voz quando tiverem que chamar a atenção para algum
detalhe do movimento.

Essa realidade fica comprovada com a fala de uma professora


quando ela diz:

Aqui nessa escola, as crianças falam demais, então às vezes eu


tenho que gritar sim, se for para ser escutada, para ser entendida
na regra que eu tenho que ensiná-los, tem dias que estão mais
calmos, então nesse dia dá para falar numa boa. (PROFESSORA A)

Portanto, todas essas disposições e percepções adquiridas


pelos professores como condição fundamental para transmitir um
conteúdo são fruto do habitus primário, adquirido por eles no seio
familiar desde a mais tenra idade.

172 |
Segundo Bourdieu, o habitus é um conjunto de disposições
estruturadas no agente segundo a maneira pela qual ele interiorizou
as estruturas objetivas em que viveu um processo de socialização
determinado. Essas disposições estruturam as categorias de
percepção e apreciação que, por sua vez, orientam a ação dos
agentes.

Constatamos, diante disso, a resposta de um professor cuja


frequência a essas práticas esportivas o credenciou a proporcionar
a seus alunos uma seleção de conteúdos diversificados.

Dessa forma, vai contar muito para estruturar e reestruturar sua


prática pedagógica, no que concebe à aprendizagem do aluno, às
experiências vivenciadas pelos professores em outras agências de
socialização, por exemplo, a participação em projetos esportivos
e culturais desde muito pequenos e com bastante frequência.
Com essa condição instaurada na sua trajetória de vida, mais a
aprendizagem sistemática e pedagogicamente constituída na escola
e no curso de graduação lhes dará subsídios importantes para
inculcar nos seus alunos gestos corporais para uma consciência
corporal necessária ao bom êxito da aprendizagem dos conteúdos
organizados e aplicados no interior da escola.

Essas vivências tão importantes na constituição de um


habitus primário, exteriorizado numa héxis corporal rentável, ficam
constatadas na fala de um professor:

“Ah! Isso sim, frequentava campos de futebol, e todos os outros


tipos de esportes que podíamos ter acesso.” (PROFESSOR D).

Dessa condição consolidada surgem os gostos, as escolhas, os


modos de vestir-se, gesticular-se, de falar, que levam os alunos à
autonomia de usufruir com sucesso esses saberes adquiridos por
meio da prática pedagógica do professor, materializada na sua héxis
corporal, para uma possível ascensão social e escolha profissional.

173 |
Acredito que me identifiquei desde criança com a Educação Física
escolar, embora tenha começado a fazer matemática primeiro,
larguei o curso e descobri que eu era mais ligado em esporte, que
tinha mais a ver comigo. (PROFESSOR E).

Esse gosto e escolha consciente de ser um professor de


Educação Física escolar leva-os a cuidar do seu corpo e de seus
trajes, somados ao zelo com todo o processo de estruturação das
práticas pedagógicas provenientes dos planos de ensino elaborados,
na condição de imbricação do corpo como instrumento fundamental
na transmissão dos conteúdos particularizados dessa área do
conhecimento.

A condição exposta acima fica ratificada no cuidado com o corpo,


quando uma professora coloca isso da seguinte maneira:

Na minha casa é raro ter refrigerante, a comida a mais natural


possível, muita fruta e pouca fritura. Eu acho muito importante
conscientizar os alunos sobre a importância de como o corpo é
visto na sociedade, a imagem corporal que você transmite é a visão
de mundo que você vive. Eu trabalho isso teórica e praticamente.
(PROFESSORA B)

Em todas as aulas, verificamos que os professores trajavam


sempre roupas apropriadas para quando era necessário demonstrar
os exercícios; suas roupas eram na maioria calças de agasalho,
usando tênis como calçado e camisetas que lhes traziam liberdade
de gestos.

Nessa direção, pela incorporação das disposições adquiridas,


percebemos a cobrança dos professores de Educação Física junto
aos seus alunos quanto à necessidade de estarem nas aulas
devidamente uniformizados (tênis, shorts ou bermuda e camiseta).

Quando algum aluno não tivesse com a indumentária apropriada


para a prática, ficava sem fazer a aula; nos dois meses que ali

174 |
estivemos, isso aconteceu muito raramente. Todos os alunos já
tinham incorporado essa condição de vestuário de forma muito
efetiva. Este fato fica comprovado com a fala de uma das professoras
entrevistadas:

Eu sou uma professora muito chata com relação a vestuário na


aula de Educação Física, principalmente com o tênis, senão tiver
tênis não faz a aula. Se um aluno me fala ‘não tenho’, eu pergunto
qual o seu número que ele usa de tênis e tento arrumar algum para
ele. (PROFESSORA A).

Em relação à linguagem utilizada nas aulas, vimos que os


professores utilizam sempre um vocabulário simples e de fácil
entendimento por parte dos alunos. Vimos também que há uma
preocupação grande dos professores com a questão do cuidado
com o corpo.

Nas minhas aulas falo direto sobre obesidade, tenho várias crianças
obesas, dou dicas sobre que tipo de alimentação é mais saudável,
além de regularmente pelo menos três vezes por semana eu faço
ginástica, vou na academia. (PROFESSORA D).

Essa condição leva os professores a criar um comportamento em


relação a hábitos alimentares regrados no intuito de manter sempre
um corpo esteticamente magro e em condições de poder exercer
sua profissão com eficiência. Na Educação Física, o uso do corpo
por parte do professor é instrumento importante no aprendizado
dos alunos em relação aos conteúdos propostos, portanto, isso os
leva a trabalhar esta questão do corpo com seus alunos de maneira
teórica e prática.

Inclusive salientam que, no momento em que vivemos, há uma


concorrência desleal com os jogos virtuais e o tempo de exposição
à televisão. Daí entenderem que a Educação Física escolar torna-se
imprescindível para o movimentar-se do aluno no intuito de levá-
los à conscientização da vida ativa, como meio de uma melhor

175 |
qualidade de vida. Destacam ainda que o movimento em si pode
ser realizado por todos sem distinção de gênero e raça, já que ele é
universal, embora a sociedade normatize as tendências de práticas
nesse campo.

Dessa maneira, teoricamente, eles abordam a questão de gênero,


mostrando aos alunos a diferenciação do corpo do menino em
relação ao corpo da menina e, nesse sentido, apontam a preferência
dos meninos em relação aos esportes e das meninas com relação
às expressões corporais e à estética corporal. Utilizam-se também
filmes para trabalhar essa temática. Em relação ao conteúdo esporte,
ministram o ensinamento do futsal, atletismo, basquetebol e de
ginástica postural mais para as meninas do que para os meninos.

Eu gosto de trabalhar com atletismo, me chama a atenção as regras


que mudam, eu sempre estou a par delas, eu gosto de atletismo por
assistir bastante, vou muito na pista de atletismo, levo os alunos
para competir. (PROFESSOR D).

Em todos os depoimentos dos professores de Educação Física


entrevistados nesta pesquisa, constatamos a hegemonia do
paradigma esportivista, no qual o esporte surge majoritariamente
nas aulas como prática pedagógica de aprendizagem de movimentos
metodicamente apreendidos na escola.

Eu gosto de dar aulas de esporte, não gosto de dar aulas de ginástica


ou qualquer outra coisa. Desde cedo você dá o esporte e se a criança
começar a aprender, aí ela dará um valor ao esporte que poderá leva-
la quem sabe a ser um atleta no futuro. (PROFESSOR E).

Portanto, todas essas disposições inculcadas pelos alunos diante


dessas ações práticas, motoras, planejadas e organizadas pelos
professores conduzem à soma do saber coletivamente enraizado e
exteriorizado que formam a sua héxis corporal a cada patamar de
sua trajetória de vida.

176 |
Esse jeito de lidar com essas questões vem das disposições
adquiridas nas suas trajetórias históricas de vida, na exteriorização
do seu habitus, nessa héxis corporal que fundamenta seu trabalho
na escola e que, muitas vezes, é imitada pelos alunos como modelo
a ser seguido para se ter sucesso e uma possível ascensão social. 

Esta afetividade instaurada entre os professores e os alunos


traz, em muitos casos, uma grande proximidade entre ambos. Com
isso, o aluno sente-se confiante em dialogar com os professores
assuntos de interesse pessoal, que terminam caracterizando-se
como conselhos e orientações que, assimilados de forma positiva
pelo aluno, podem reestruturar suas atitudes, levando-os ao êxito
escolar.

O apontamento acima fica caracterizado na fala de um professor,


quando ele responde a essa questão da seguinte maneira:

A afetividade é tão grande entre nós professores e alunos, aqui


nessa escola, que penso ser um diferencial no comportamento
deles, a ponto de sermos confidentes em assuntos de natureza
estritamente particular dos seus cotidianos. (PROFESSOR C).

E por fim, toda essa complexidade onde se dá o processo ensino


e aprendizagem e a prática pedagógica concretizada tem um local
físico constituído. Os espaços físicos e os materiais oferecem
condições de trabalho multivariado aos professores que oportunizam
várias experiências motoras para seus alunos e que engendram
em seus habitus e exteriorizam em sua héxis corporal tudo aquilo
relacionado ao corpo, sua maneira de ver e perceber o mundo que
vive, seus valores e juízos, suas escolhas e estilos de vida.

| Considerações finais
Pudemos identificar nesse estudo que a héxis corporal, ou seja,
o habitus feito corpo, é constituído durante todas as experiências
vivenciadas pelos professores ao longo de seus percursos de vida

177 |
e que essa constituição se torna fundamental no trato com os
conteúdos a serem trabalhados no âmbito escolar, tanto para o
sucesso quanto para o fracasso na aprendizagem do aluno.

Para entender tais relações, é necessário considerar a sua héxis


corporal como produto de uma construção social proveniente de
suas trajetórias de vida e cada gesto ou postura como a expressão
individual de um agente social total. Portanto, dessa perspectiva,
é possível entender que a lógica da prática desses professores
entrevistados e sujeitos dessa pesquisa têm como epicentro o seu
habitus que se reestrutura ao longo de seu itinerário de vida.

Devido às suas trajetórias de vida serem calcadas na prática


esportiva, ratificam aquilo que muitos estudos cientificamente
comprovaram, inclusive o nosso, no interior da escola, ou seja, o
esporte como conteúdo predominante na prática pedagógica, uni
lateralizando e reduzindo o processo de formação dos alunos nessa
área do conhecimento acadêmico.

Diversificar as experiências culturais nesse campo será de


extrema valia para o professor de Educação Física adquirir um
repertório motor que dê conta do ensino dos conteúdos legitimados
e propostos no interior da escola, e culminar com as necessidades
eminentes na formação integral dos alunos, na busca do pleno
exercício de sua cidadania e de pertencimento da fração de classe
Na qual está inserido.

Por fim, nessa direção, diante do todo exposto nesse estudo,


deduzimos que investir na formação docente, principalmente na
formação continuada e em serviço dos professores de Educação
Física, é levá-los a estruturar e reestruturar seu habitus primário,
exteriorizado numa héxis corporal rentável para o bom êxito do
processo de ensino para uma aprendizagem significativa do seu
alunado.

178 |
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180 |
REINA, F. T.; RIBEIRO, P. R. M.; MUZZETI, L. R.; ROMANATTO,
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download/5517/4887. Acesso em: 27 ago. 2020.

181 |
Trajetória profissional: um relato da
mulher/profissional em um universo
masculino
Flávia Baccin Fiorante
Cassiano Ferreira Inforsato
Luci Regina Muzzeti

| Introdução 29

A análise do gênero, masculino e feminino, se relaciona a uma


construção histórica, variável no tempo e no espaço. Desconsiderando
as diferenças biológicas e sexuais entre homens e mulheres, as
sociedades elaboram de maneira diferenciada, social, econômica e
culturalmente determinadas uma série de normas, valores, costumes
e práticas que se destinam ao modo de ser e agir específicos a
homens e a mulheres, construindo relações entre ambos permeadas
por assimetria na distribuição de poder (CAMPOS; TEIXEIRA, 2010).

Diante dessas considerações iniciais, salientamos que o


objetivo desta reflexão é: apresentar a trajetória profissional de uma
professora de um curso de Educação Física de uma Instituição de
Ensino Superior do interior do estado de São Paulo. Destaca-se que,
dentre todos os professores do curso, ela era a única mulher com
graduação na área a atuar com disciplinas de cunho esportivo em
um universo visivelmente masculino.

O capítulo está pautado no método praxiológico do autor destaque


deste trabalho, ou seja, o francês Pierre Bourdieu, que destaca o
método ressaltando que este:

[...] tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas
que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também
29 Este trabalho apresenta um recorte temático da pesquisa de Inforsato (2016).

182 |
as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições
estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-
las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e da
exteriorização da interioridade [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 47).

A pesquisa desenvolvida é caracterizada como qualitativa.


Dentre as possibilidades de exercitar este tipo de pesquisa, optamos
pela abordagem que privilegiasse como recurso metodológico a
pesquisa bibliográfica, juntamente com a pesquisa empírica. Esta
foi composta de uma entrevista estruturada com perguntas abertas,
com base em um roteiro utilizado em trabalhos anteriores que
tratam do mesmo tema, tais como: Muzzeti (1992, 1997), Reina
(2009), Fiorante (2011), Suficier (2013) e Manzan (2014). Tais
estudos tiveram o mesmo propósito deste artigo, ou seja, estudar
a trajetória em diferentes contextos, tendo como suporte teórico
as categorias bourdianas: habitus, capital cultural; capital social e
capital econômico; estratégias – considerando quatro aspectos na
análise final, são eles: Família, Escola, Ensino Superior e Atuação
Profissional.

Ao término das entrevistas, as respostas obtidas foram transcritas


totalmente na íntegra e sem modificações na fala da entrevistada;
mantivemos a fidedignidade do capital linguístico e, posteriormente,
analisamos o discurso, verificando suas práticas, comportamentos,
estratégias, expectativas em relação à vida esportiva, profissional,
histórico familiar, trajetória esportiva, desvelando, entre outras, os
mecanismos que influenciam a prática pedagógica desta docente
a partir do corpus teórico de Pierre Bourdieu.

As respostas obtidas permitiram conhecer como se deu a


reestruturação do habitus, o qual possui um viés esportivo, bem
como apontar as disposições adquiridas pela docente durante sua
trajetória de vida.

183 |
| A biologização do social e a socialização
do biológico: o gênero em Bourdieu
Para Bourdieu (1983), o habitus tem como produto, além da herança
cultural, um “sistema de disposições” adquirido em um determinado
meio familiar, sob determinadas condições objetivas, e também o
gênero dos diferentes agentes. Bourdieu (2002) destaca na obra
A Dominação Masculina que os gêneros masculino e feminino são
construídos e naturalizados nas diferentes agências de socialização,
tais como, a família e a escola.

O gênero não se define simplesmente em relação ao sexo


masculino ou feminino, mas representa/resulta das relações de
poder entre eles. A construção simbólica do corpo biológico produz
habitus diferenciados e diferenciadores – por meio da biologização
do social e da socialização do biológico, sendo assim, o agente no
processo de socialização torna-se homem ou mulher (BOURDIEU,
2002).

O gênero representa um processo que procura explicar os


atributos específicos que cada cultura e fração de classe impõem ao
masculino ou feminino, considerando a construção social construída
hierarquicamente como uma relação de poder entre os sexos.

Tais atribuições fazem com que homens e mulheres ocupem


socialmente lados opostos, antagônicos, reforçando a lógica da
dominação masculina, que chega a impor às mulheres o compromisso
de serem virtuosas, delicadas, morais e, aos homens, a necessidade
da força, da virilidade, da coragem e da bravura. Tais adjetivos marcam
o universo masculino no campo da atividade física, principalmente
entre os que optam por se graduar em Educação Física.

Os princípios antagônicos da identidade masculina e da feminina


se inscrevem, assim, sob maneiras permanentes de servir o corpo,
ou de manter a postura, que são como que a realização, ou melhor,

184 |
a naturalização de uma ética (BOURDIEU, 2002). Os homens e as
mulheres também são identificados por gênero, classe, raça, etnia,
idade, nacionalidade, etc., e, desta forma, assumem “identidades
plurais, múltiplas”, produzindo diferentes “posições de sujeito” e
diferentes comportamentos nos diversos contextos sociais, seja
na família, na escola e no local de trabalho.

Dentre os contextos sociais, citamos a forma com que a família


e a escola agem em relação às meninas e aos meninos durante a
formação do habitus primário. Tais atitudes são fundamentais no
processo de constituição da identidade de gênero e na ratificação
do habitus, ou seja, no sistema de disposições e de comportamentos
naturais. Desta forma, os gêneros não tendem a se manifestar de
forma igualitária, há comportamentos, atitudes, trejeitos, esperados
do gênero feminino e outros esperados e típicos do que se constitui
como masculino, por exemplo, a prática de determinadas modalidades
esportivas.

Os habitus de gênero são fruto da educação informal, [...] inculcação


e incorporação que se iniciam no processo de socialização infantil e
continuam através de variadas e constantes estratégias educativas
de diferenciação, no mais das vezes implícitas nas práticas de
vários agentes e instituições como a família, a igreja, a escola e os
meios de comunicação. (CARVALHO, 2004, p. 1).

As relações pedagógicas que são construídas na escola e na


universidade são carregadas de simbolizações, nas quais as crianças
e os jovens aprendem normas, conteúdos, valores, significados,
que lhes permitem interagir e conduzir-se de acordo com o gênero
feminino ou masculino, ou seja, de acordo com o habitus que cada
grupo julga adequado.

O papel dos adultos, como pais e professores, é fundamental para


a transmissão de atitudes sexistas, pois demonstram expectativas
que ajudam na construção da imagem do que é ser menino e
menina, ou seja, eles estão na base da criação do habitus que se

185 |
espera de cada um deles, o qual estará em constante construção e
reestruturação, sendo estruturante e estruturado pelas experiências
vivenciadas nos diversos contextos sociais, tais como: amigos,
igrejas, clubes, etc. O habitus concebido como sistema de disposição
organizará o adequado, o possível ou o aceitável para cada um dos
gêneros.

| A trajetória da professora
A docente pesquisada é do gênero feminino, graduada e Mestre
em Educação Física. Atualmente, faz Doutorado em Ciência do
Movimento na UNIMEP. É casada com um Engenheiro, possui dois
filhos, ambos cursando Ensino Superior; o filho cursa Engenharia
Mecânica e a filha Odontologia em universidades privadas.

Ela frisou que a escolha do curso ficou por conta dos filhos e
que em nenhum momento os incentivou a cursar Educação Física.
A família pertence à classe média alta, avós maternos a paternos
trabalhavam na lavoura, o pai cursou até o segundo ano do atual
Ensino Fundamental e a mãe até o quinto ano do Ensino Fundamental.

Pertence a uma família de oito filhos, do quais apenas um não fez


curso Superior. Sobre o fato de os pais receberem amigos em casa,
L respondeu: “Nossa, sim e muito. Recebíamos familiares, vizinhos
e amigos dos meus pais né, eram as pessoas que frequentavam
nossas casas. Inclusive amigos meus, na nossa faixa etária tinha
um grupo de amigos que eram bem recebidos lá em casa.”.

Em relação às práticas culturais: “Época de inverno nós íamos


para local frio: Serra Negra, Campos do Jordão e no verão nós íamos
para a praia, mas feriados e muitas férias sempre na fazenda. Éramos
sócios do Clube de Campo de Piracicaba. Desde pequenininha
frequentava museus com meus pais, cinema, teatro, através das
apresentações de balé que fazia desde os três anos, e também
peças de teatro e eventos esportivos.”.

186 |
Fica clara, aqui, a relação deste agente com as práticas culturais.
Bourdieu (1989) afirma que, para se obter, ou melhor, para se apropriar
dessa familiaridade com a cultura e com a linguagem por meio da
aprendizagem insensível, imperceptível, oferecida, muitas vezes,
inconscientemente pela família, é necessário que a família possua
disposições, inclinações a consumir os bens culturais considerados
legítimos e que, consequentemente, incite os seus descendentes a
essas práticas.

Nesta perspectiva, existe uma íntima relação entre o nível de


instrução da família e a disposição para consumir os bens simbólicos,
pois para se consumir um bem simbólico (viagens, leitura, música,
museus, teatro etc.), é necessário que o agente ou o grupo de agentes
possuam os instrumentos de apropriação, ou seja, possuam os
códigos necessários para decifrá-los (BOURDIEU, 1989).

Além disso, o autor salienta que, no caso da frequência a teatro,


museus e cinemas, a família deve possuir também capital econômico
suficiente para sua fruição. Sobre práticas culturais esportivas, a
agente participou de projetos esportivos das seguintes modalidades:
“Natação, tênis de campo, voleibol, handebol, eu joguei tudo, tive
vivência com todos os esportes, inclusive por competir pela escola
e depois por federação e assim por diante, mas sempre me envolvi
com modalidade esportiva.”.

Notamos nesse trecho da fala uma íntima relação com o esporte,


principalmente com algumas modalidades esportivas que tendem
a ser de certa forma mais praticadas por homem, justamente por
exigirem dos participantes algumas capacidades físicas como a
força e a velocidade, as quais permeiam de forma enfática o universo
masculino.

Em relação à infância, obtivemos a seguinte resposta: “Brincava


de jogar futebol com meus irmãos.”. Iniciando os questionamentos
sobre a trajetória escolar, a docente salientou que: “Sempre estudei

187 |
em escola particular, eu era para ir para a pública, eu fui a única
filha que com cinco para seis anos entrei no primeiro ano e escola
estadual na época não aceitava, daí meus pais acabaram me
colocando na escola particular e aí fiquei para a vida inteira. Meus
pais me tiveram com bastante idade, aí participaram mais ou menos
da minha vida escolar. Mudei de escola só uma vez por conta dos
meus pais considerarem o ensino mais puxado.”.

Sobre a função da escola, as expectativas em relação ao sistema


de ensino e o veredicto escolar: “Nossa, como instrução, é ter uma
vida melhor, poder ter um rumo diferente até deles né, como eu
falei até nessa parte de lavoura e muitas vezes você acaba sendo
sacrificado por temperatura, perde plantação, enfim eles queriam
que a gente fosse mais do que eles. Acho que tudo isso porque
eles tiveram uma vida muito sofrida. Meus pais cobravam bastante
as tarefas e não ficavam no pé para saber se você tinha tarefa ou
não, eles sempre diziam que a responsabilidade era da gente, né
então tinha que cumprir com as obrigações. “Olha, engraçado né
por que meu pai, e ainda existe isso até hoje, achar que engenheiro
e médico que iam ser os doutores né, então meu pai gostaria que
algum filho fosse médico né, me lembro quando ele veio propor para
eu fazer uma faculdade particular de medicina, disse eu vou pagar,
eu brinquei e falei: ah pai! eu não fico bem de branco, eu quero fazer
Educação Física.”.

Bourdieu (2002) destaca a figura do pai no que se refere à


“predição profilática”, utilizando jargões como: “tenha senso”, “mais
tarde você vai compreender”, “você vai desonrar todos nós”, “bem
que eu te disse”, o que está automaticamente relacionado com o
fato de o agente ter uma escolarização bem-sucedida podendo,
assim, viabilizar a aspiração por uma ascensão social, no caso desta
família, rumo à elite.

Perguntamos à docente se ela teve professor particular: “Eu tive


quando pequenininha, na primeira, segunda série, mas não era assim
particular, mas para me ajudar a estudar porque minha mãe não

188 |
tinha paciência, então eles acharam melhor. Era até uma vizinha,
uma senhora que era tão engraçado, que além de dar aula particular,
ela dava aula de etiqueta”.

Quando perguntamos sobre a relação dela com os professores:


“Minha relação com meus professores acho que sempre foi boa,
sempre me puxando para o lado do bem, eu sempre fui uma aluna
aplicada, com relacionamento muito bom assim, interpessoal
com os professores né, e levava bronca, me chamavam quando eu
conversava demais, eu sempre vi de maneira positiva e nunca como
represália ou qualquer coisa assim, e sempre com conselhos de que
valia a pena tanto no estudo quanto no esporte, foram positivos na
minha vida.”.

Segundo Bourdieu (1998), a família desta fração de classe visualiza


a escola como a esperança de um futuro promissor, investindo no
meio escolar as reais chances de sucesso profissional, ascensão
social, transmissão de valores, comportamentos, garantindo a
manutenção da posição de classe ou até mesmo o ingresso na elite.

Mesmo tendo um distanciamento do sistema de ensino, os pais


davam explicações sobre as profissões mais rentáveis, reforçando o
prestígio social e financeiro do médico e do Engenheiro no mercado
de trabalho.

Nos questionamentos envolvendo a prática da disciplina


Educação Física no interior da escola, a professora disse: “Eu fazia
todas as aulas, como fui atleta, eu gostava de tudo, nunca reclamei,
sempre fiz tudo. No atletismo, voleibol, não sei se ter facilidade com
esporte ou não, nunca reclamei e sempre fiz, e adorava competição.
Meus professores foram ótimos, na pré-escola até o quarto ano eu
tive professora, que inclusive é casada com um professor colega
aqui da universidade; ela foi um exemplo de vida para mim até para
cursar Educação Física, e os outros depois no fundamental II, ensino
médio também, sempre ensinando e percebia que eles davam ênfase
e apoiavam mais os alunos que gostavam de praticar né, e eu fui

189 |
uma dessas que eu sempre fiz tudo. Meu rendimento era 100% na
Educação Física, mas nas outras disciplinas eu também ia bem,
gostava sempre mais da área de biológicas do que das áreas de
exatas, mas me dava bem.”.

Essa simpatia com a disciplina Educação Física e a destreza


pelas modalidades esportivas pode ter sido um dos fatores
importantes para a estruturação do habitus primário dessa docente
e, consequentemente, ter influenciado de maneira significativa a
escolha da profissão que, segundo o relato próprio, estava de acordo
com os anseios da família.

A docente prestou também vestibular para Agronomia em


uma universidade pública, passando apenas na primeira fase e,
concomitantemente, prestou Educação Física na UNIMEP.

Ao longo do período de graduanda, ela citou que: “As disciplinas


que eu tive mais afinidade é fácil, então vamos começar pelas
dificuldades; no começo do curso eu tive um pouquinho de dificuldade
com Anatomia, mas só, e as outras acho que tudo foi muito tranquilo,
fui uma super boa aluna na graduação e uma delas que assim na
parte esportiva que eu tive grande dificuldade foi Basquetebol,
dificuldade até não sei se relação com professor né. E as que eu tive
mais afinidade: nas várias Ginásticas Artísticas, Ginástica Rítmica,
Ginástica Geral, Handebol, Voleibol, Atletismo, eu me dei bem assim
até por essa parte motora e por gostar mesmo do curso, entrei de
cabeça, posso falar que eu fui uma excelente aluna.”

Sobre o fato de ser graduada em Educação Física e o status


conquistado, ela frisou: “Ah me proporcionou, por exemplo, eu pude
em vários momentos estar fora do país através da Educação Física
tendo pouquíssimo gasto, mas isso foi até por esforço meu por
participar de grupo de estudo junto com a UNICAMP né, ter relação
com outros profissionais voltados para aula da ginástica, porque tem
muitos colegas que fizeram a graduação e foram tão bons alunos ou

190 |
até mais do que eu, mas depois não buscaram, não almejaram além
disso, então eu falo que me proporcionou sim, conhecer pessoas,
lugares, a minha parte cultural e assim por diante.”.

A docente foi atleta da modalidade voleibol por cinco anos e


Bailarina por dezoito anos. Ingressou na instituição onde atua através
de concurso público em 2009, participou de Projetos de Extensão e
Iniciação Científica, possui uma carga horária de 28 horas, ministra
as disciplinas de: Movimentos Gímnicos, Ginástica Rítmica, Dança
e Estágio Supervisionado.

Para a docente, ser professora desta Instituição é: “Um sonho


que eu sempre tive porque sou daqui de Piracicaba, e demorei
pra conseguir isso, viajei bastante, fazia até mil km por semana
trabalhando em outras faculdades, e depois quando eu tive
oportunidade de prestar o concurso e vir para cá, para mim foi um
orgulho de fazer parte, é um lugar que eu me sinto bem, que eu
gosto, os professores, o companheirismo, eu gosto deste grupo.
Me dou bem com os professores, todos homens”

Neste último trecho da fala, ela destaca o fato de ser a única


mulher em um universo masculino e salienta o fato de ter um bom
relacionamento com eles.

Sobre a metodologia utilizada em aula: “Então, metodologia


de ensino ai pega né... Metodologia de ensino, tem diferença de
metodologia quando a gente pensa nela, e métodos né, então assim,
a minha disciplina, as disciplinas são teórico-práticos, que eu tento
abordar a parte teórica em sala de aula com participação dos alunos,
e a prática em cima daquela teoria indo a partir do saber do meu
aluno, então é essa a metodologia, mas quando a gente também
pensa na metodologia, tem diversas. Tem diversas formas de aplicar
né, você pode falar teórico-prático.”.

191 |
| Reflexões finais...
Este estudo pretendeu analisar a trajetória de vida de uma
professora de um curso de Educação Física de uma Instituição de
Ensino Superior do interior do estado de São Paulo. Reforçamos
novamente que, dentre todos os professores do curso, ela era a
única mulher com graduação na área.

Assim, elencamos para a reflexão final quatro aspectos centrais


que nortearam a entrevista e a análise dos dados, são eles: família,
escola, ensino superior e atuação profissional.

Em relação à família, a docente é casada, mãe de dois filhos.


Disse, ao longo da entrevista, que nunca incentivou os filhos a terem
a mesma profissão que ela. Demonstrou ter uma rede de relações,
ou seja, um capital social que se estende além do vínculo familiar
e um capital cultural próprio da fração de classe à qual pertence,
afirmando que era comum frequentar museus, teatros, cinemas,
realizar viagens e eventos esportivos. Sobre a infância, relatou que
brincava de futebol juntamente com os outros irmãos.

Sobre a Escola, sempre estudou em escola particular, os pais


visualizavam a escola como uma forma de ascensão social, no caso
desta família, rumo à elite. A entrevistada também afirmou que,
quando pequena, teve uma professora particular pelo fato de a mãe
ter mais idade e se mostrar sem paciência para verificar as tarefas.
Ressaltou que os pais davam explicações sobre o sistema de ensino
e as profissões mais rentáveis no mercado de trabalho. Em relação às
aulas de Educação Física, a docente disse que participava de todas
as aulas, sempre com muita motivação. Destacou o fato de ser tido
atleta. Citou a participação da família ou o apoio dos professores
em relação ao sistema de ensino, salientou a participação efetiva
da família, vislumbrando na escola as esperanças de crescimento
pessoal e profissional.

192 |
Quanto ao aspecto Ensino Superior, a docente citou ter sido uma
excelente aluna ao longo da graduação e teve afinidades com várias
disciplinas: Ginástica Artística, Ginástica Rítmica, Ginástica Geral,
Handebol, Voleibol e Atletismo, já as que ela teve menos afinidade
foram: Anatomia e Basquetebol.

Já no aspecto Atuação Profissional, citou que o fato de ser


professora desta instituição lhe proporcionou um status profissional
e que, inclusive, realizou algumas viagens internacionais por conta
dessa atuação, sentindo-se orgulhosa por fazer parte do corpo
docente. Cita o fato de ser a única mulher a ministrar aula no curso e
de ter uma boa convivência com os demais colegas, todos homens.

O fato de ministrar disciplinas de cunho esportivo está relacionado


com um habitus esportivo, devido às vivências na infância, à relação
de bom rendimento junto a práticas esportivas (participando ou
efetivamente como atleta) e à participação e simpatia pelas aulas
de Educação Física Escolar.

Nesse sentido, compreendemos que este trabalho possa se


constituir como algo justificável ao momento atual e que contribua
com os outros estudos e reflexões que tenham em vista o mesmo
propósito, ou seja, analisar trajetórias em diferentes públicos e
contextos, enriquecendo as discussões sobre esta questão.

| Referências
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as desigualdades fomentadas pela política social. Rev. Katál,
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em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/
view/2364. Acesso em: 10 maio. 2016.

193 |
BOURDIEU, P. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

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194 |
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matrimonial: um estudo de normalistas formadas em São Carlos
nos anos 40. 1997. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de
Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São
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Pedagogia: o caso da FCLAr. 2013. Dissertação (Mestrado
em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
Araraquara, 2013.

195 |
A construção social do corpo da
mulher
Katiusca Marusa Cunha Dickow

Esse capítulo é destinado à reflexão de uma construção social do


corpo da mulher a partir da análise sociológica de Pierre Bourdieu,
que sugere ser a primeira tarefa da sociologia a de reconstituir
a totalidade a partir da qual se pode descobrir a unidade entre a
consciência subjetiva que o indivíduo tem do sistema social e a
estrutura objetiva desse sistema (BOURDIEU, 2004). Os conceitos
reflexionados serão o da violência simbólica e da dominação
masculina, entremeados à conscientização da importância de uma
educação sexual emancipatória que auxilie no entendimento e na
desconstrução de padrões e estereótipos sociais.

O exercício da escrita relacionado às temáticas de gênero


se apresenta como uma intensa possibilidade de delinear uma
construção social e cultural do que é “ser mulher” e como essa
construção se molda, se flexiona e se modifica nos processos
históricos. Para Weitz (1998), ao longo da história, as ideias sobre
as mulheres e seus corpos têm sido alteradas de tal forma que
apenas olhando para suas experiências corporais, assim como para
a maneira com que essas experiências foram e são socialmente
construídas, poderemos entender sua vida, sua posição na sociedade
e as possibilidades de resistência contra essa posição. Tamanha
alteração refletida em nossos modos de ser e pensar resulta em
estruturas de pensamento tão rígidas que parecem imutáveis e
intransponíveis, como se estivéssemos na posição forçada de
espectadoras de um triste filme sobre nós, construído e narrado
por outros.

O que significa escrever um capítulo sobre mulher sendo mulher?


Se pararmos para refletir, o que de nossos pensamentos e verdades
são construções nossas e não sociais? Quem construiu o corpo

196 |
feminino? Segundo Colling (2004), escrever sobre mulheres é lidar
com sombras, com fantasmas, com o imaginário masculino e com
aquilo que chamamos de representações. Representações essas que
foram se conceituando e se concretizando nos processos históricos,
culturais e sociais a partir de um olhar que não era nosso e sim dos
homens, nos levando a pensar que este corpo sempre teve muito
pouco de nosso e muito mais o que alguns gostariam que fôssemos.

Conforme Céli Pinto (2003, p. 1), “inventamos histórias, inventamos


sujeitos, inventamos o homem, inventamos até uma natureza
necessária para podermos negar as nossas invenções”. E existe
uma longa história do corpo feminino contado através do olhar
masculino. Ao longo dos processos históricos, é possível verificar
inúmeras situações e pensamentos relacionados à fragilidade e
inferioridade da mulher em relação ao homem que foram sendo
reafirmados como verdades absolutas, abrindo uma grande margem
para as relações de desigualdade de gênero, violência, machismo
e opressão às mulheres, mascaradas por sua “natureza feminina”
frágil, débil e incapaz.

Esse pensamento é marcado por diversos momentos históricos


e suas concepções filosóficas, religiosas e científicas. Desde Eva
até os dias de hoje se constituem provas e teorias androcêntricas
de nossa “inferioridade natural”, exaltando a ideia da mulher como
algo impuro, incapaz de adquirir conhecimento, sabedoria e ética,
resultando em uma forma de pensar que nos definiu como um ser
naturalmente inferior, física e mentalmente, e que por conta disso
precisa ser protegido, orientado e punido por suas imperfeições
(COLLING, 2004).

A lógica do pensamento androcêntrico impõe-se como neutra e


inevitável porque se sustenta na ideia da criação do mundo segundo
a divisão dos gêneros relacionais, masculino e feminino, inscrita nas
diferenças biológicas entre os corpos que sugerem uma essência
natural de hierarquização de um corpo forte e viril sobre um corpo

197 |
frágil e debilitado. Essa visão androcêntrica, regida por uma suposta
neutralidade, não necessita de discursos para legitimá-la por estar
apoiada na ordem biológica “natural” de divisão dos sexos Assim,
acaba por impor a força da ordem masculina como princípio da
divisão de tarefas, trabalhos e direitos na construção de um mundo
social que legitima a dominação do homem ao reforçar a ideia da
mulher como frágil, incapaz e naturalmente dependente. As próprias
práticas legitimam as suas disposições como resultado de uma
incorporação constante do preconceito desfavorável contra o
feminismo.

Essa lógica foi originariamente construída, sem dúvida alguma,


em um estágio muito antigo e muito arcaico de nossas sociedades
e permanece em cada um de nós, homem ou mulher (BOURDIEU,
2002). Ela insiste em classificar a diferença sexual por conotações
binárias forte/fraco, mente/corpo, capaz/incapaz, construindo na
inferioridade feminina uma certeza científica e fazendo com que as
leis, constituições e construções das sociedades estejam alicerçadas
por esse pensamento. Isso tem legitimado erroneamente o corpo
das mulheres como propriedade dos homens, como no exemplo
dado por Weitz (1998), quando cita que, nas sociedades antigas,
com a lei babilônica, as mulheres que eram estupradas não recebiam
nenhum apoio ou indenização; quem recebia essa indenização era
o marido ou pai da vítima como uma forma de ressarcimento ao
dano causado a sua propriedade.

Conforme afirma Grosz (2000, p. 67), “o pensamento misógino


encontrou uma justificativa conveniente para a posição social
secundária das mulheres ao contê-las no interior dos corpos que são
construídos como frágeis, imperfeitos, não confiáveis, sujeitos a várias
intrusões que estão fora de controle consciente”. A especificidade
corporal das mulheres é utilizada para justificar e afirmar as posições
sociais e as capacidades cognitivas diferentes dos dois sexos, sendo
comumente o termo feminino direcionado ao corpo e às emoções
e o masculino à mente e à razão. Suas diferenças biológicas são

198 |
sempre transfiguradas em “defeitos” naturais que precisam ser
controlados e tratados. Toda a segregação social e política a que
as mulheres foram direcionadas historicamente resultou em sua
ampla invisibilidade como sujeito em uma perspectiva que acaba
por agir como um longo e pesado véu de conceitos e disposições
que insistem em colocar-nos, de todas as formas, físicas, mentais
e sociais, na posição de subordinação.

Louro (2015) afirma que, em diversos momentos da História,


tivemos atos contra a opressão das mulheres ou tentativas de
transgressão a esse sistema, no entanto, essas ações só foram
reconhecidas como um movimento social organizado no Ocidente
no século XIX. E mesmo que ainda fossem ações e questionamentos
que partiam de uma frente parcial da sociedade (mulheres brancas
de classe média) estimularam um processo de luta por igualdade
de direitos e condições relacionados à legitimação da mulher na
sociedade, expressada por meio da oportunidade do estudo, o
direito ao voto e o acesso a determinadas profissões, por exemplo.
Ao contínuo dessas organizações e expressividades sociais se
somaram diversas outras questões relacionadas às exclusões de
gênero, classe e raça que constantemente traçam uma luta árdua
e diária que se refere à equidade de direitos e do ser e estar em
sociedade por meio de grupos, marchas e protestos públicos, além
de muitas pesquisas que resultam em artigos, jornais e livros.

Como o objetivo desse estudo não é o de constituir um resgate


histórico do feminismo e de todos os outros movimentos sociais que
lutam contra a opressão, sem que com isso se diminua a importância
desses movimentos, o ponto escolhido para reflexão nesse resgate
histórico é justamente que sim, todos os corpos se diferem uns dos
outros de maneiras distintas. Mas, o que realmente os transforma
são as práticas sociais como uma adequação às exigências de
suas culturas específicas na tentativa de se moldar a um ideal
desenhado e instituído em cada sociedade ou época, resultando em
corpos completamente normatizados que carregam pressupostos

199 |
de gênero determinantes em seu modo de ser e pensar, ou seja,
o que quer ser uma mulher tem que ser feminino e o que quer ser
homem, masculino (WEITZ, 1998).

Na importância de contrapor esse tipo de pensamento, se


torna fundamental demonstrar que não são propriamente as
características sexuais que definem os indivíduos, mas sim a forma
como essas características são representadas em determinada
sociedade e momento histórico. Nesse sentido, as incessantes
discussões sobre a perspectiva de corpos fundamentalmente sociais
não são geridas no intuito de negar que a constituição do gênero
biologicamente, mas sim a construção social e histórica produzida
sobre as características biológicas. Ou seja, como a representação
das características sexuais é trazida para a prática social ou, como
se refere Connell (2013), no gênero é a prática social que dirige
os corpos. Dessa forma, Butler (2003) designa as identidades de
gênero e sua estrutura binária como construções performáticas
pela repetição estilizada de atos ou de performances que, repetidas
ao longo do tempo, se tornam normas individualizadas e produzem
efeitos de realidade percebidos como fatos. A repetição performática
e constante da diferença sexual dita como biológica transforma a
hipótese dos sexos em uma divisão sexual rígida e inerte maquiada
em uma aparência de classificação natural.

Para Bourdieu (1995), a construção da diferença entre os sexos


deve ser refletida como produto da cultura. Dentro das sociedades
patriarcais, ou seja, nas sociedades organizadas verticalmente
segundo o primado da masculinidade, a visão falonarcísica, em
que o falo é instituído como princípio da diferença entre os sexos,
estabelece sobre esta diferença natural entre os corpos biológicos
as diferenças sociais hierarquizadas. A dominação é masculina e se
manifesta por meio dos corpos socializados (habitus) e das práticas
sociais ritualizadas desde a própria cosmologia mediterrânica.
O reverenciar da virilidade se perpetua ao longo da duração da
mitologia coletiva e essa perspectiva social nas relações de gênero

200 |
é “construída através do princípio de divisão fundamental entre
masculino, ativo e o feminino, passivo, expressa e direciona o
desejo masculino como desejo de posse, de dominação erotizada
e o desejo feminino como desejo da dominação masculina e como
subordinação erotizada” (BOURDIEU, 2001, p. 31). Isso forja o ato
de dominação da mulher como uma fonte de prazer e proteção
para ela, já que, por ser desprotegida e incapaz, a quer e precisa
ser dominada para pertencer ao mundo. Bourdieu denominará tal
situação como “sociodicéia masculina” (2001, p. 33), ao definir a
força capaz de condensar a operação de legitimar uma dominação,
inscrevendo-a em uma natureza biológica, sendo ela própria uma
construção social naturalizada.

Dessa maneira, podemos entender que o corpo não é apenas


um texto da cultura, é também um lugar prático de controle social.
Por meio de rotinas e práticas aparentemente triviais, convertidas
em atividades automáticas e habituais como a maneira à mesa
ou os hábitos de higiene, a “cultura se faz corpo” (BORDO, 1997,
p. 20). Especificamente o corpo das mulheres se insere no controle
social de um modelo de patriarcado que, ao longo do tempo, dita as
normas de beleza, bem-estar, saúde, economia, religião, tornando-as
hierarquicamente subordinadas aos homens pela sua desvalorização
simbólica, articulada assim como pela ênfase excludente e periférica
em relação a seus deveres e diretos na sociedade (SANDAY, 1993).

A representação da inferioridade feminina, incansavelmente


repetida, inscreveu-se nos pensamentos dos homens e das mulheres,
inserindo-se nas relações de gênero como dominação simbólica.
Dessa maneira, tal dominação é produzida e sustentada pelo fato
de os dominados incorporarem as mesmas estruturas percebidas
pelos dominantes, resultando em uma dominação de cumplicidade
das estruturas que foram incorporadas nas ações prolongadas de
contato com essas estruturas dominantes e de domínio (SCOTT,
1990). Isso explicaria o fato de, por diversas vezes, as próprias
mulheres expressarem atos de reconhecimento ao senso comum

201 |
porque elas são portadoras de uma consciência de dominadas,
que não constitui uma passividade generalizada. Essa consciência
faz com que muitas mulheres acreditem viver processos naturais
e normais de gênero sem nunca se questionarem de onde vieram
os conceitos e determinações do que é ser mulher. Lamas (2002)
define o gênero como um filtro e uma armadura, nesse sentido,
filtra nossa percepção do mundo e restringe nossas opções de vida
e serve como uma armadura que muitos homens se utilizam para
justificar suas atitudes discriminatórias em relação às mulheres.

Portanto, “a violência simbólica é uma violência que se exerce com


a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também daqueles que a
exercem na medida onde uns e outros não têm consciência de exercê-
la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1995, p. 55), não se caracterizando
por uma violência física, mas sim uma violência suave, insensível,
subjetiva e quase imperceptível às suas próprias vítimas. Essa
violência é exercida essencialmente pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento ou do reconhecimento de um
princípio simbólico que se exerce pelo sentimento de aceitação
do dominante como um processo natural. Podemos pensar que
ela acaba por se instituir a partir do consentimento do dominado,
justamente pela crença ligada à naturalidade dos processos de
dominação que Bourdieu vai denominar de “adesão dóxica” ao
mundo social por estar relacionado a um reconhecimento prático.
Esse reconhecimento contém um sentimento de familiaridade que
vai além da compreensão lógica baseada na relação de “harmonia
entre duas ordens de coisas: as classes e as classificações, as
posições e as disposições” (CATANI, 2017, p. 158).

Somos entremeados por séculos e séculos de uma cultura de


gênero binária, excludente e sexista, que oculta e deprecia um gênero
a favor do reconhecimento do outro, que constrói um processo
qualitativo de comparação tão intensificado e reforçado que cria
modos de ser e estar nas mulheres sempre em correlação com a
proximidade ou afastamento do que é ser um homem: “Ela é tão

202 |
líder que parece um homem”, “Ela se veste como um homem”. Esse
binarismo faz com estejamos sempre procurando enquadrar as
pessoas em dois “compartimentos” opostos e complexos, em uma
problemática que se intensifica quando pensamos na quantidade
de informações, exigências e definições que existem dentro desses
dois compartimentos em detrimento de inúmeros scripts de gênero
existentes que se vêm diariamente sendo pressionados e julgados
por não se encaixarem nos padrões desses compartimentos binários.
Como complementa a denúncia de Pombo (2017), as insuficiências
do modelo binário e hierárquico de diferença sexual já não dão
conta do entendimento e do acolhimento dos novos arranjos da
sexualidade e da família, nem das subjetividades e identidades
contemporâneas, ou seja, a sociedade e suas múltiplas relações de
dados afetivos, eróticos e sensuais já não comportam essa redução
científica definida na dicotomia macho e fêmea. Como nos traz
Garcia (2001), existe uma nova ótica e posição moral, ética e estética
de ver o mundo.

Mas por que é tão difícil e trabalhoso tirar esse pesado véu da visão
androcêntrica macho e fêmea, forte e frágil, dominante e dominado
tão emaranhado nas estruturas sociais? O que Bourdieu (2002)
chamará de o poder hipnótico da dominação se traduz em um círculo
profundo e vicioso no qual, para pensar em formas de sair desse
círculo de dominação, acabamos correndo o risco de recorrer aos
modos de pensar criados pela própria dominação. Esse movimento
acaba por acontecer justamente por, como homem ou mulher,
estarmos presentes no próprio círculo do qual nos esforçamos para
sair, incorporando a todo o momento as estruturas e formas de ser
e estar dessa dominação. Segundo Bourdieu (2007), não podemos
esperar sair deste círculo sem pensarmos em uma estratégia prática
de objetivação efetiva do sujeito em que a divisão entre os sexos
não esteja estabelecida como uma normalidade e uma naturalidade
a ponto de não ser pensada nem questionada justamente por ser
entendida como uma circunstância inevitável que está inserida e
incorporada nos corpos e nos habitus dos agentes.

203 |
Os corpos podem ser traduzidos como resultantes dessa
incorporação que, ao funcionarem como esquemas de percepção,
pensamento e de ação dessas formas binárias e androcêntricas
de se pensar as relações biológicas e sociais, funcionam como
mecanismos de confirmação das matrizes universais que definem
as funções binárias e estabelecem as relações sociais de força.
Essa experiência prática do corpo que é produzida na aplicação
desses esquemas nascidos da incorporação de estruturas sociais
torna-se a fonte de construção, em cada agente, de uma relação com
seu corpo complexa, contínua e duradoura, expressa na maneira
particular de postar o corpo, de conduzi-lo e de apresentá-lo aos
outros. Essa incorporação torna-se responsável pelo surgimento da
distância entre o corpo legítimo e o corpo experimentado e o corpo
legítimo engendrando as formas de ser e estar dos agentes dentro
de um determinado campo social.

As divisões constitutivas da ordem social e das relações de


dominação se inscrevem em duas classes de habitus diferentes,
sob a forma de hexis corporais opostos e complementares que
levam a classificar todas as práticas segundo distinções redutíveis à
oposição entre o masculino e o feminino. Na hexis corporal habitam
as conformações físicas propriamente ditas e as expressões do
corpo relacionadas às expectativas sociais como a postura, a
atitude, a moral e, ao serem estabelecidas essas “condições”
adequadas a cada corpo, instaura-se a determinação automática
dos movimentos permitidos a cada gênero (BOURDIEU, 2004). Por
exemplo, quando a mulher está de saia e não pode abrir as pernas
ao se sentar, ou tem que se equilibrar em um salto alto, ou precisa
se vestir desse ou daquele jeito em determinado ambiente, proibindo
ou desencorajando as condutas impróprias, sobretudo na relação
com o outro sexo, ao mesmo tempo em que seu corpo é moldado
para ser feminino, sensual, delicado. Ou seja, seu corpo é como
um objeto a ser moldado para satisfazer o modelo de dominação
masculina que determina as possibilidades e principalmente as
impossibilidades determinadas ao sexo feminino.

204 |
Esse pensamento relacionado às maneiras de usar o corpo nos
leva a refletir sobre os signos exteriores que estão, a todo momento,
agindo simbolicamente nas relações sociais determinantes do ser
mulher justamente por esses princípios estarem sempre apoiados
na comparação com o sexo masculino e por estarem intimamente
associados à atitude moral. Essa atitude moral determinará os
gestos adequados a cada gênero em uma proporção que reafirma
a honra e a virilidade masculina por meio de uma postura ereta, um
corpo bem definido e um olhar para frente e movimentos firmes,
em contraposição a um modo de submissão feminina que se
traduz em gestos como o de se curvar e inclinar-se e nas posturas
mais flexíveis e suaves. Essas marcas corporais são de tamanha
forma reproduzidas como naturais que, por muitas vezes, se torna
inimaginável se opor a regras e discursos que estão mascaradas por
trás dessa naturalidade, como Bourdieu (2012) explica ao afirmar
que quando os pensamentos e percepções dos dominados estão
estruturados em conformidade com as mesmas estruturas da relação
de dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são,
inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão.

Porém, por mais exatas que sejam essas relações e os princípios


de visão e divisão do mundo natural, sempre haverá a possibilidade
de reflexão do sentido das coisas, um lugar da luta cognitiva a
propósito das realidades sexuais, oferecendo aos dominados uma
possibilidade de resistência contra o efeito de imposição simbólica.
Sobre essa ótica, é preciso um árduo e extenso trabalho cotidiano de
questionamentos, reflexões, diálogos e enfrentamentos relacionados
à forma como homens e mulheres percebem-se como sujeitos e como
se percebem uns aos outros no sentido de, pelo menos, dar margem
a dúvidas quanto a atributos ditos essenciais de cada gênero. Entre
eles, que “os homens devam ser ativos e dominadores e que as
mulheres sejam passivas ou sedutoras” (ZWICK, 2004, p. 79). Para
essa compreensão, um dos desafios necessários é deslocar-se dos
binarismos cristalizados, desconstruindo essa lógica dicotômica.
Essa desconstrução envolve uma problematização tanto da oposição

205 |
entre os polos como a internalidade de cada um. Observa-se esses
polos através de suas coerências e paradoxos, que não se fixam
como entidades e sim são construídos como tal (SCOTT, 1990).

Uma das consequências mais significativas da desconstrução


dessa oposição binária por meio de uma educação sexual
emancipatória reside na possibilidade de que se compreendam e
incluam as diferentes formas de masculinidade e feminilidades
constituídas socialmente. Essa educação pressupõe o
desenvolvimento de ações e reflexões sobre o entendimento da
construção histórica e social do gênero, buscando superar padrões
de comportamentos hierarquizados e estereotipados (LOURO, 1997).

| Referências
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BOURDIEU, P. As mulheres e a história. Lisboa: Dom Quixote,
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Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004.

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ZWICK, A. M. Violência sexual e percepção do corpo. In: ZWICK,


A. M. Corpos e Subjetividades em exercício interdisciplinar. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2004.

208 |
Violência doméstica e familiar contra
as mulheres: a dominação masculina
e a dimensão simbólica
Mariana Passafaro Mársico Azadinho
Débora Raquel da Costa Milani

A violência contra as mulheres é considerada uma grave violação


de direitos humanos. A sua legitimação e perpetuação têm sido
possíveis em razão dos mitos prescritos na sociedade, que devem
ser combatidos. Essa violência permanece como a mais evidente
manifestação da desigualdade de gênero no Brasil, compondo um
cotidiano perverso sustentado por relações sociais profundamente
machistas.

De acordo com o relatório global da organização internacional


Human Rights Watch (HRW, 2019), há uma epidemia de violência
doméstica no Brasil: no final de 2017 mais de 1,2 milhão de casos
de violência doméstica encontravam-se pendentes na Justiça
brasileira; naquele mesmo ano, das 4.539 mulheres assassinadas,
pelo menos 1.133 foram vítimas de feminicídio30 – expressão mais
extrema da violência contra as mulheres. E os números podem ser
ainda maiores ao considerar que muitos casos não são enquadrados
corretamente como violência de gênero.

A pesquisa “Visível e invisível – A vitimização de mulheres no


Brasil 2ª edição” realizada pelo Datafolha e Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, que trouxe números sobre as diversas violências
sofridas por mulheres no ano de 2018, constatou que, a cada minuto,
nove mulheres foram vítimas de algum tipo de agressão no Brasil
naquele ano (DATAFOLHA, 2019).

30 Crime previsto no Código Penal Brasileiro, inciso VI, § 2º, do Art. 121, quando
cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”.

209 |
Todos os dias, um número significativo de mulheres, jovens e
meninas são submetidas a alguma forma de violência no Brasil. Sob
diversas formas e intensidades, a violência de gênero é recorrente
e se perpetua nos espaços públicos e privados, encontrando nos
assassinatos a sua expressão mais grave.

De fato, o próprio conceito definido na Convenção Interamericana


para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada
em Belém do Pará em 1994, em seu artigo 1º, aponta para esta
amplitude, definindo violência contra as mulheres como “qualquer
ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito
público como no privado” (BRASIL, 2008). Vale dizer que nessa
convenção o Brasil também se comprometeu a agir efetivamente
para acabar com a violência contra as mulheres.

De acordo com o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres


(BRASIL, 2008), as desigualdades de gênero são entendidas como
desigualdades estruturantes da sociedade brasileira, sob a ideia de
que os valores e crenças sobre capacidades e habilidades de homens
e mulheres definem espaços e possibilidades disponíveis a cada
um destes grupos. A divisão sexual de tarefas e responsabilidades
explicita tal concepção, pois estão calcadas em estereótipos e
preconceitos que definem qual é a contribuição dos diferentes
grupos para a sociedade.

Esse sistema de preconceitos permeia todas as relações sociais e


irá afetá-las de forma profunda e negativa, estabelecendo diferenças
entre as pessoas, negando direitos fundamentais e gerando conflitos,
o que gera efeitos devastadores, como a perda do respeito pela pessoa
humana; a restrição à liberdade; a introdução da desigualdade, o
estabelecimento e manutenção da discriminação, a promoção da
injustiça (DALLARI, 1996/1997).

210 |
De acordo com o senso comum e seu sistema de preconceitos,
além de estabelecerem diferenças entre homens e mulheres, a
sociedade também cria hierarquia, de modo que a mulher ocupa
uma posição socialmente inferior. Com relação ao machismo, que
se baseia nessa hierarquização, afirma Chauí (1991, p. 227):

[...] arriscaríamos as seguintes hipóteses para compreendê-lo e


ao seu avesso complementar: em primeiro lugar, a repetição, no
interior da casa, do que se passa na sociedade e na política como
um todo, isto é, a privatização e a pessoalização das formas de
autoridades; em segundo lugar, também a reiteração do mecanismo
sócio-político de transformação da assimetria (no caso homem-
mulher, pais-filhos, irmão-irmã) em hierarquia, a diferença sendo
simbolizada pelo mando e pela obediência; em terceiro lugar, a
compensação pela falta de poder real no plano sócio-político,
o machismo funcionando como racionalização, assim como a
feminilidade (‘atrás de todo grande homem, há uma grande mulher’,
indicando que há um poder ou autoridade femininos que se exercem
sob a condição de serem dissimulados e ocultados pela obediência
e pelo recato).

Nesse sentido, o conceito de gênero é fundamental para que se


compreenda e supere os preconceitos e a relação assimétrica entre
homens e mulheres, permitindo a análise da desigualdade entre
eles a partir do construído e a participação em conjunto da busca
de soluções para a superação da desigualdade (VACCARI, 2001).

A violência de gênero está presente na cultura de todos os


países, independentemente do seu grau de desenvolvimento. Ela se
expressa e se reproduz culturalmente por meio de comportamentos
irrefletidos, aprendidos histórica e socialmente, nas instituições com
família, escola, igreja, Estado, que contribuem diretamente para a
opressão masculina sobre a feminina.

Essa violência constitui-se como um fenômeno sócio-histórico,


varia de acordo com os valores, costumes e leis, manifestando-se

211 |
nas diversas classes sociais, raças/etnias, credos e regiões onde as
diferenças culturais e naturais são critérios para criar desigualdades
sociais, econômicas e políticas. “Tais diferenças são reforçadas
pelas instituições sociais, sociedade e Estado, servindo como um
instrumento de poder das classes dominantes para subjugar as
classes subalternizadas.” (TAVARES; NERY, 2012).

O combate à violência contra a mulher no Brasil vem de longa


data. O ditado popular “em briga de marido e mulher não se mete a
colher” foi contestado e desmistificado pelo movimento feminista
que tomou força nos anos 1970, o qual produziu reflexões e ações,
demonstrando que a violência contra a mulher é sustentada e
se alimenta pelo sistema capitalista, patriarcal e racista. Neste
mesmo período, expuseram a violência como um mecanismo de
poder dos homens sobre as mulheres, gerado por uma sociedade
desigual, aprofundando e difundindo os estudos em torno das
relações sociais de gênero, instrumento de reflexão fundamental
para compreendermos a construção social do homem e da mulher
na sociedade (COELHO; ZELIC, 2019).

Impende ressaltar que a violência vivenciada pelas mulheres


dentro de seus lares representa uma expressão de outra violência: a
violência simbólica, proposta por Pierre Bourdieu (2017), entendendo-
se que tais práticas violentas diluem-se no cotidiano, não se
percebendo as mulheres como vítimas de violência.

Segundo Bourdieu (2017, p. 8-9), a dominação masculina e o


modo como esta é imposta e vivenciada resultam da:

[…] violência simbólica, violência suave, insensível, invisível às


suas próprias vítimas, que se exerce, essencialmente, pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou,
mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou,
em última instância, do ‘sentimento’.

212 |
A violência simbólica legítima é destacada por Bourdieu (2017)
como aquela constituída no poder de impor e de inculcar de maneira
imperceptível os valores e a dominação por meio de instrumentos
de conhecimentos e comunicação, embora ignorados como tais na
realidade social. Isto é, os sujeitos sociais envolvidos concebem
o mundo social como ele se apresenta, visto como natural, uma
aceitação tácita da posição que se encontra, com limites definidos pela
sua posição ocupada na sociedade, não abrindo questionamentos
para a ordem vigente.

O processo pelo qual a violência simbólica acontece se dá por


meio de expressões e significados socialmente reconhecidos, que
escondem as relações de força existentes entre dominantes e
dominados.

Os dominados aplicam categorias do ponto de vista dos dominantes


às relações de dominação, fazendo-as assim serem vistas como
naturais. [...]. A violência simbólica se institui por intermédio da
adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante
(e, portanto, à dominação), quando ele não dispõe, para pensá-la e
para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais
que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum
e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de
dominação, fazem esta relação ser vista como natural. (BOURDIEU,
2017, p. 46-47).

Segundo Bourdieu (2017), o homem aprende a lógica da dominação


masculina e a mulher absorve essa relação inconscientemente,
sendo a repetição entendida como inerente ao ser humano. Na
lógica da dominação, o dominado reconhece o poder exercido pelo
dominante e as instituições como o Estado, a família, a igreja e a
escola colaboram como agentes de perpetuação dessa relação de
dominação.

Assim, a categoria simbólica significa a forma como a violência se


apresenta, ao ato de imposição que se dá por meio de significações,

213 |
legitimando desta forma o interesse do mais forte, dissimulando
as relações de força existentes. Ou seja, não sendo a força física
suficiente na garantia e imposição do modo de pensamento
dominante, utilizam-se de símbolos, instrumentos de comunicação
e linguagem como meio eficazes de transmitir a sua cultura, os seus
valores, as suas ideias como universais.

A dimensão simbólica da violência consiste em um instrumento


a serviço da dominação, que está por trás de todas as formas de
violência, sedimentadas nas práticas sociais e incorporadas ao
habitus, conceito também proposto por Bourdieu (1998). Para
entender como a violência simbólica manifesta-se, é necessário
entender como ocorre o processo de assimilação dos indivíduos do
mundo objetivo, como se dá a relação da subjetividade dos indivíduos
com o mundo no qual estão inseridos, sendo o habitus resultado da
mediação entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo.

O habitus, historicamente construído ao longo do tempo no seio


das diferentes comunidades humanas, torna-se um elemento natural
na vivência. Segundo Bourdieu (1994, p. 76), “enquanto produto da
história, o habitus produz práticas, individuais e coletivas, produz
história, portanto, em conformidade com os esquemas engendrados
pela história”.

Assim, as práticas sociais discriminadoras tendem a produzir


nos sujeitos sociais esquemas de percepção e ação legitimando as
condições sociais da dominação masculina. A sociedade como um
todo já internalizou a concepção de que a mulher é naturalmente
inferior ao homem e, às vezes, até a própria mulher não consegue
reconhecer essa situação. A dominação masculina impõe-se,
portanto, de maneira sutil, subordinando as mulheres ao seu poder,
expressando-se não só na relação conjugal, mas em todas as esferas
da vida social.

214 |
Nessa seara, Bourdieu (2017) traz a relação entre os gêneros
como uma relação que se dá ao nível simbólico, em que prevalece a
ordem masculina de ver as coisas e, para tanto, se utiliza da noção de
violência simbólica, reproduzindo um habitus que tende a conceber
o mundo por meio da ótica masculina e de sua dominação.

Dessa forma, é possível afirmar que a permanência no ciclo da


violência contra as mulheres e a manutenção destas na relação
violenta não acontece de forma consciente e deliberada por parte
delas, haja vista que elas muitas vezes não se percebem como
vítimas da violência. Segundo o Instituto de Pesquisa DataSenado
(SENADO FEDERAL, 2018), um fator preponderante, que aparece em
sua grande maioria, quase que como um padrão nessas mulheres,
é a subnotificação.

Destarte, constitui-se um desafio identificar as expressões da


violência simbólica e propor uma mudança das práticas sociais. Como
confirma Bourdieu (2017), é preciso lutar contra qualquer forma de
dominação social, constituindo-se a violência doméstica e familiar
contra as mulheres numa delas. Para tanto, é necessário modificar
esse habitus, interrompendo a reprodução da violência simbólica
e propor alternativas que venham superar essas desigualdades,
através da construção de práticas sociais, como ações educativas,
que possibilitem a autonomia das mulheres, proporcionando
relações mais igualitárias entre os sujeitos sociais. Deve-se, portanto,
contribuir para uma mudança e questionamento da dominação
masculina, desmistificando e rompendo certos comportamentos,
preconceitos, estereótipos.

Sabemos que não há verdades absolutas e que não se pode


estabelecer um padrão de comportamento considerado universal –
seja em relação ao gênero, à sexualidade propriamente dita – como
o mais correto, o normal; bem como que não há que se falar em
hierarquia. A complexidade é uma característica fundante do ser
humano, o que implica uma série de relações sociais, econômicas,
políticas e inclusive simbólicas.

215 |
Segundo Louro (2012, p. 89-90),

[...] se admitirmos que a escola não apenas transmite conhecimentos,


nem mesmo apenas os produz, mas que ela também ‘fabrica’ sujeitos,
produz identidades étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos
que essas identidades estão sendo produzidas através de relações
de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente
comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que
faz isso cotidianamente, com nossa participação ou omissão [...]; e,
por fim, se não nos sentimos conformes com essas divisões sociais,
então, certamente, encontramos justificativas não apenas para
observar, mas, especialmente, para tentar interferir na continuidade
dessas desigualdades.

No Brasil, desde 2004, o Plano Nacional de Políticas para as


Mulheres trata a educação como um dos eixos fundamentais para a
construção de uma sociedade igualitária entre mulheres e homens.
A preocupação com a igualdade de gênero, raça, etnia, liberdade
de orientação sexual, com fortalecimento dos direitos humanos,
perpassa transversalmente o planejamento das políticas federais,
devendo a educação de qualidade estar intrinsecamente associada
à busca da igualdade entre os seres humanos e à valorização da
diversidade da sociedade brasileira (BRASIL, 2013).

Nesse sentido, o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres


(BRASIL, 2008) propôs uma intervenção pública de caráter
multisetorial que deve buscar, simultaneamente, desenvolver ações
que: desconstruam as desigualdades e combatam as discriminações
de gênero; interfiram nos padrões sexistas/machistas ainda
presentes na sociedade brasileira; promovam o empoderamento
das mulheres; garantam um atendimento qualificado e humanizado
àquelas em situação de violência. Logo, a noção de enfrentamento
não se restringe apenas à questão do combate, mas compreende
também as dimensões da prevenção, da assistência e da garantia
de direitos das mulheres.

216 |
Importante salientar que, no âmbito preventivo, estão as
ações que desconstroem os mitos e estereótipos de gênero e que
modifiquem os padrões sexistas, perpetuadores das desigualdades
de poder entre homens e mulheres e da violência contra as mulheres.
A prevenção inclui ações educativas, bem como ações culturais que
disseminem atitudes igualitárias e valores éticos que colaborem
para a valorização da paz e para o irrestrito respeito às diversidades
de gênero, raça/etnia, geração, orientação sexual, entre outras.

Uma ação pedagógica realmente pautada na diversidade cultural


deve ter como princípio uma política curricular da identidade e
da diferença. Na educação escolar, trabalhar na perspectiva da
diversidade cultural significa uma ação pedagógica que vai além
do reconhecimento de que os alunos sentados nas cadeiras de
uma sala de aula são diferentes, por terem suas características
individuais e pertencerem a um grupo social, mas é preciso efetivar
uma pedagogia da valorização das diferenças (NOGUEIRA; FELIPE;
TERUYA, 2008).

Assim, diferentes atores sociais (Poder Público, comunidade


escolar e sociedade civil) devem se unir para a construção permanente
de um projeto educativo que respeite e promova os direitos humanos
e o exercício da democracia, possibilitando ações e intervenção que
poderão auxiliar na construção permanente de sujeitos de direitos
no âmbito escolar e, desta forma, contribuirão para a formação de
sujeitos mais humanos e sensíveis em nossa sociedade, em um
efetivo combate de diversas violações aos direitos humanos, como
a violência doméstica e familiar contra mulheres.

Portanto, a promoção e afirmação dos direitos humanos no


cotidiano do contexto escolar são vistas como uma possibilidade
de encurtar e minimizar as distâncias e desigualdades culturais,
sociais, políticas e econômicas existentes em nossa sociedade,
bem como oportunizar a apropriação de saberes sobre a noção de
direitos que viabilizem e fortaleçam laços de convivência de nossos

217 |
educandos, tendo presente o respeito à diversidade e à pluralidade
com relação aos jeitos diferentes de ser e de conviver (BRASIL,
2009).

É necessário que a escola reconheça o seu papel importante


na educação para combater as relações autoritárias, questionar
a rigidez dos padrões de conduta estabelecidos para homens e
mulheres e apontar para sua transformação, devendo desenvolver,
também, uma ação educativa voltada para refletir em torno de
discussões referentes à saúde e ao bem-estar do ser humano e às
questões de gênero, modificando-se o habitus, superando as formas
discriminatórias, que se dão por meio da cultura da dominação
masculina, e possibilitando uma forma mais igualitária de se viver,
não só entre homens e mulheres, mas entre todos os sujeitos
inseridos nas mais diversas formas de relações sociais. Com isso,
é possível enfrentar qualquer forma de dominação social, inclusive
a violência doméstica e familiar contra as mulheres.

| Referências
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1994. n. 39, p. 46-86. (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em:
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222 |
Desvelando as questões de gênero
dentro da escola
Maria Fernanda Celli de Oliveira
Laís Inês Sanseverinato Micheleti
Andreza Olivieri Carmignolli Lopes

| Introdução
O presente trabalho trata-se de um recorte da dissertação de
mestrado defendida no ano de 2017 com o título Trajetória social e
sexualidade: a estruturação da identidade de gênero na Educação infantil
(OLIVEIRA, 2017) que visou identificar e desvelar na práxis, partindo
da trajetória social de três agentes escolares do gênero feminino e
com base nos conceitos apreendidos por Pierre Bourdieu e equipe,
como se dão as representações de gênero destas e como podem
interferir na estruturação da identidade de gênero das crianças
ligadas a elas.

As questões relacionadas ao gênero vêm ganhando cada vez mais


espaço em todos os âmbitos, sobretudo na escola, principalmente
com base na crescente exposição midiática, mesmo que muitas
vezes equivocada. Compreender e, principalmente, discutir tais
questões vêm se tornando algo imprescindível em todas as camadas
da sociedade.

Os mais diversos tabus e preconceitos estabelecidos sócio e


culturalmente criaram uma considerável barreira em relação ao
assunto, perpetuando, assim, a relação de dominação presente
em nossa sociedade. Os fatores morais instituídos historicamente
podem ser o caminho para compreendermos a estrutura social
baseada na condição de dominados e dominantes. Segundo Ribeiro
(2005), a repressão sexual é sofrida pelas mulheres desde a Idade
Média, quando o clero sentenciou o sexo como pecado visando à
dominância das massas. Vale ressaltar que as relações sexuais

223 |
estabelecidas como fator de culpa estavam intrinsecamente
ligadas à mulher, uma vez que a Igreja a sentenciava como um
mal para a sociedade, devido ao seu poder de convencimento e,
assim, de dificuldade relacionada à dominação soberana do clero.
Desta maneira, a mulher estava destinada apenas à procriação e
assistência dos lares.

Conforme Bourdieu (1999), esse trabalho de reprodução fora


vivenciado até pouco tempo principalmente por três instâncias:
família, Igreja e escola. Segundo ele,

É sem dúvida à família que cabe o papel principal na reprodução


da dominação e da visão masculina, é na família que se impõe a
experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação
legítima dessa divisão [...] (BOURDIEU, 1999, p. 103).

E continua,

Quanto à Igreja, marcada pelo antifeminismo profundo de um clero


pronto a condenar todas as faltas femininas à decência, sobretudo
em matéria de trajes, e a reproduzir, do alto de uma sabedoria, uma
visão pessimista das mulheres e da feminilidade [...] (BOURDIEU,
1999, p. 103).

Bourdieu (1999, p. 115) destaca ainda que

Outro fator determinante da perpetuação das diferenças é a


permanência que a economia dos bens simbólicos (do qual o
casamento é uma peça central) deve à sua autonomia relativa,
que permite à dominação masculina nela perpetuar-se, acima das
transformações dos modos de produção econômica: isto, com o
apoio permanente e explícito que a família, principal guardiã do
capital simbólico, recebe das Igrejas e do Direito.

Segundo Bourdieu (1999, p. 104), mesmo após se desvencilhar


da tutela da igreja, a Escola continuará a produzir, reproduzir e
“transmitir os pressupostos da representação patriarcal baseada

224 |
na homologia entre a relação homem/mulher e a relação (adulto/
criança) e, sobretudo, talvez, os que estão inscritos em suas próprias
estruturas hierárquicas, todas sexualmente conotadas [...]”.

Assim, visando superar possíveis resquícios desta interferência


estabelecida historicamente, com base na função da educação
relacionada à formação moral e social dos indivíduos, as escolas
vêm se empenhando em compreender as questões relacionadas
ao gênero, desde a Educação Infantil, quando as questões estão
ligadas especialmente a brinquedos, brincadeiras e comportamentos
socialmente preestabelecidos.

Porém, há uma dicotomia em relação ao trabalho da temática


dentro das instituições de ensino, uma vez que as opiniões acerca da
inserção desse tema desde a mais tenra idade não são soberanas.
Assim, mesmo com a latente necessidade de compreender e desvelar
como tais questões se desdobram na escola e, sobretudo, interferem
na sociedade, ainda encontramos, comumente, opiniões contrárias e
negativas no que tange à temática, seja pela desinformação, receio
ou preconceitos preestabelecidos no seio familiar.

Perante essas considerações introdutórias, o objetivo deste


estudo, baseado nas lacunas e contradições encontradas acerca da
temática de gênero dentro da Educação Infantil, buscou compreender
e desvelar como a herança cultural de agentes escolares pode vir
a interferir na estruturação da identidade de gênero de crianças
relacionadas a elas seja enquanto filhos(as) ou alunos(as), visando
trazer à tona “a interferência do paradigma do consenso, enfatizando
a ideologia das aptidões inatas vistas como um dom social e natural,
realçando ainda mais a submissão ao poder masculino” (OLIVEIRA,
2017, p. 9).

A fim de trazer uma melhor compreensão ao leitor, serão


apresentados a seguir os conceitos-chave desenvolvidos por Pierre
Bourdieu utilizados na elaboração deste estudo, a saber, habitus,
capital cultural, herança cultural e gênero.

225 |
| Dos conceitos à praxis
Habitus
Habitus é o conceito chave da teoria bourdieusiana e pode ser
entendido como “um sistema de disposições duráveis e transponíveis
que, integrando todas as experiências passadas, funciona em cada
momento como uma matriz de percepções, apreciações e ações
[...]” (BOURDIEU, 1983, p. 65). Segundo Ortiz (1983), o habitus é
adquirido no meio familiar produzindo ações que o levam de maneira
consciente ou inconsciente às estratégias de reprodução, visando
manter ou melhorar a posição do grupo social na estrutura de
classes.

O habitus se apresenta, pois, como social e individual: refere-se a


um grupo ou a uma classe, mas também ao elemento individual;
o processo de interiorização implica sempre internalização da
objetividade, o que ocorre certamente de forma subjetiva, mas
que não pertence exclusivamente ao domínio da individualidade.
(ORTIZ, 1983, p. 17).

Embora a formação inicial do habitus se dê no seio familiar, através


de um conjunto de disposições que o indivíduo possui integrando
este determinado grupo ao longo de suas vidas, estes não podem ser
considerados imutáveis, uma vez que cada um possui peculiaridades
que sofrem transformações ocasionadas pelo movimento inerente
da vida. A maneira como um agente torna-se um ser social está
ligada à instância do habitus que chamamos de hexis, ou seja, aquilo
que é visto pelo outro com base em sua postura, linguagem, roupas,
comportamentos que são incorporadas através da visão do outro
sobre si.

Desta maneira, cada indivíduo possui uma bagagem que fora


herdada socialmente e que integra seus componentes objetivos
(externos ao indivíduo) considerando três categorias, a saber,
capital econômico (ligado a bens e serviços), capital social (rede
de relacionamentos sociais) e capital cultural.

226 |
| Capital cultural
Conforme Bourdieu (2007, p. 74), a acumulação de capital
cultural faz parte de um exercício de incorporação que dependerá
das condições materiais de existência disponibilizadas ao indivíduo,
requerendo, assim, investimento pessoal que deverá ser feito pelo
indivíduo. “[...] O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma
propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da ‘pessoa’,
um habitus”.

O capital cultural tal qual desenvolvido por Pierre Bourdieu (2007,


p. 74) apresenta-se em três estados:

[...] no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposições


duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens
culturais – quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que
constituem indícios ou a realização de teorias ou de críticas dessas
teorias, de problemáticas, etc.; e, enfim, no estado institucionalizado,
forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como
se observa em sua relação ao certificado escolar, ela confere ao
capital cultural – de que é, supostamente, a garantia – propriedades
inteiramente originais.

Em poucas palavras, podemos descrever o capital cultural


apresentado no estado incorporado como algo que não pode ser
transmitido de maneira imediata, ou seja, só há a transmissão
de maneira hereditária, sendo necessário o investimento pessoal
e intransferível de tempo. Este capital nasce e morre com seu
portador, sendo considerado um capital simbólico que depende da
incorporação do capital cultural que se dá no conjunto familiar.

No estado objetivado, é a apropriação e aquisição de bens


materiais, pressupostos por capital econômico e simbólico que se
investe no capital cultural, que, por sua vez, também dependerá do
conjunto familiar que transmite valores e estratégias de reprodução.

227 |
Já no capital cultural institucionalizado, estão considerados os
diplomas ou certificações que detêm um valor convencional que
requer a instituição de valores e investimentos escolares.

Segundo a teoria bourdieusiana, a transmissão inicial de capital


cultural é advinda da família, em forma de uma herança cultural.
Ressalta-se, ainda, que essa transmissão faz-se imperceptível,
uma vez que se trata de uma transmissão de conhecimentos não
metódica, sendo reconhecida como forma de herança cultural.
Essa, por sua vez, pode ser entendida como um conjunto de
saberes, valores e conhecimentos que são passados familiarmente.
(OLIVEIRA, 2017, p. 19).

| Herança cultural
Segundo Bourdieu, Boltanski e Saint-Martin (1978), a herança
cultural é transmitida à sua descendência pela família, através de
um conjunto de saberes, conhecimentos e códigos que distinguem
um grupo de outro.

Conforme a teoria bourdieusiana, é na família que as primeiras


apropriações relacionadas à cultura são incorporadas e interiorizadas
e estão ligadas à linguagem e à cultura. Essa interiorização da fruição
de bens e práticas culturais se legitima no seio familiar e torna-se
um aprendizado natural para o indivíduo, uma vez que se dá sem
esforços ou processos metódicos, tornando-se, assim, imperceptível.
Neste sentido, tal aprendizado passa a ser atribuído ao mito do
dom, da vocação e das aptidões inatas, ou seja, é a transmissão de
capital cultural advinda da família em forma de herança cultural.
Desta maneira, a herança cultural pode ser entendida,

[...] como um conjunto de conhecimentos, saberes, informações,


códigos linguísticos, dentre outros, que os diferenciam de outros
grupos. Contudo, vale ressaltar que mesmo que a primeira
diferenciação entre as crianças seja estabelecida no seio familiar,
é a escola quem a reproduz socialmente, favorecendo e legitimando

228 |
as desigualdades sociais, tratando muitas dessas diferenças, sejam
elas econômicas ou culturais, como um dom visto como natural,
evidenciando as relações do dominado e dominante. (OLIVEIRA,
2017, p. 23).

Neste sentido, é imprescindível destacar a importância da escola


na formação social e cultural do indivíduo, uma vez que a instituição
de ensino perpetua a estrutura da sociedade, certificando a cultura
erudita como legítima e enfatizando ainda mais os privilégios
sociais. Desta maneira, as classes sociais que apreendem um
capital cultural e social que mais se aproximam da cultura exigida
pelo sistema escolar tendem a ter um percurso menos sofrível e
consideravelmente exitoso. Vale ressaltar ainda que o investimento
do capital cultural realizado pelas famílias dependerá do capital
social detido por este, o que também é herdado socialmente.

O ensino valorizado dentro da instituição escolar elitista privilegia


os privilegiados e desprivilegia os desprivilegiados, ou seja, a
escola é uma extensão da sociedade que legitima as desigualdades
escolares.

| Gênero
Segundo Bourdieu (1999, p. 9), o trabalho construído de maneira
coletiva de “socialização do biológico e biologização do social”
produziu uma estrutura social vista como naturalizada”, em que a
divisão da realidade desvela-se como natural. Em outras palavras,

A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como
se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de
ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado
objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas
“sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos
corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de
esquemas de percepção, de pensamento e de ação. (BOURDIEU,
1999, p. 17).

229 |
Neste sentido, Bourdieu (1999, p. 7), discorre que a distinção de
gênero resultante da dominação masculina trata-se de uma violência
simbólica, perpassando a questão biológica, e afirma:

[...] sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta


e vivenciada, o exemplo por excelência dessa submissão paradoxal,
resultante daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência
suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação
e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento,
do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento.

Desta maneira, “as disposições perante o gênero enquadram-


se como resultado da trajetória social e da herança cultural,
principalmente em relação aos aspectos relacionados com a cultura
familiar e escolar” (OLIVEIRA, 2017, p. 24).

Assim, a dominação masculina (BOURDIEU, 1999) que é concedida


aos homens afirma e reafirma as estruturas sociais e os habitus
que são moldados por meio dessas concepções, reproduzindo
as divisões sexuais, que tendem a constituir as mulheres como
objetos simbólicos que as coloca em uma condição de dependência
simbólica.

| Percurso metodológico
O presente trabalho parte de uma pesquisa realizada em uma
cidade de médio porte do interior paulista, que se deu em uma
instituição de Educação infantil. Para este estudo, foram entrevistadas
três agentes escolares do gênero feminino. Vale ressaltar que as
participantes foram indicadas pela diretora da Instituição31 e que
não houve nenhum colaborador do gênero masculino disponível
para a entrevista.

31 A diretora está incluída como uma das colaboradoras da pesquisa.

230 |
Para a obtenção dos dados, foi realizada, junto às três agentes
escolares de uma instituição de Educação infantil, uma entrevista
semiestruturada, visando estabelecer a trajetória social das
participantes e a estruturação da identidade de gênero das mesmas,
desvelando como esta pode influenciar a estruturação da identidade
de gênero das crianças diretamente relacionadas às elas. O roteiro
elaborado para as entrevistas semiestruturadas foi baseado nas
pesquisas desenvolvidas por Muzzeti (1992, 1997).

Para a análise dos dados, foi utilizado o método praxiológico (ORTIZ,


1983), tal qual desenvolvido por Pierre Bourdieu e sua equipe, cujo
objetivo é analisar os conceitos por meios da práxis, ou seja, por
meio das relações estabelecidas socialmente. Neste sentido, [...]
o conhecimento praxiológico inverte o conhecimento objetivista,
colocando a questão das condições de possibilidade dessa questão
(condições teóricas e, também, sociais) e mostra, ao mesmo tempo,
que o conhecimento objetivista se define fundamentalmente, pela
exclusão dessa questão: na medida em que ele se constitui contra
a experiência primeira – apreensão prática do mundo social – o
conhecimento objetivista se afasta da construção da teoria do
conhecimento prático do mundo social e dela produz, ao menos
negativamente, a falta, ao produzir conhecimento teórico do
mundo social contra os pressupostos implícitos do conhecimento
prático do mundo social. O conhecimento praxiológico não anula
as aquisições do conhecimento objetivista, mas conserva-as e as
ultrapassa, integrando o que esse conhecimento teve que excluir
para obtê-las. (ORTIZ, 1983, p. 47).

Desta maneira, podemos compreender o método praxiológico


(ORTIZ, 1983) como a leitura do comportamento humano, observado
na prática, como instrumento científico, conhecendo e desvelando
a complexidade das relações sociais.

Os resultados obtidos foram apresentados em subtópicos, a


saber, Família, relação agente-aluno X relação agente-filho(a), Escola
X Casa, a fim de estabelecer uma melhor compreensão da teoria
bourdieusiana na práxis.

231 |
| Análise da trajetória social das agentes
escolares
As agentes escolares foram identificadas como pertencentes a
duas classes sociais distintas: camada popular e camada média,
com base nos conceitos apreendidos pela teoria bourdieusiana,
traçando sua trajetória social levando em consideração os dados
referentes à própria agente e seu núcleo familiar quanto a: grau de
escolarização, profissão, número de pessoas pertencentes ao núcleo
familiar, local de vivência: zona rural, urbana, centro, periferia.

| Participantes da camada popular


Márcia
Márcia tem 37 anos, é mãe de três filhos, professora (não
graduada) da instituição de educação infantil analisada e vem de
uma fratria de 12 pessoas, sendo que 9 são filhos dos mesmos
pai e mãe e 1 filho apenas do mesmo pai. A família morou durante
7 anos na zona rural, em uma cidade da Bahia. De acordo com a
entrevistada, tudo o que se cultivava e se produzia era utilizado para
consumo próprio.

Família
Em relação à família, Márcia afirma que o pai não concordava
com o trabalho da mãe, uma vez que dedicar-se a este afastava-a
das obrigações do lar. Por outro lado, a mãe aceitava completamente
a ocupação do pai, visto que esta trazia estabilidade econômica à
família que, apesar de ser de uma classe econômica baixa, possuía
meios para se manter sem grandes desafios.

Podemos entender as dicotomias ligadas ao gênero e denunciadas


pelo sociólogo francês, ao enfatizarmos que,

232 |
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas
que são produto da dominação ou, em outros termos, quando
seus pensamentos e suas percepções estão estruturados de
conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação
que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente,
atos de reconhecimento, de submissão. (BOURDIEU, 1999, p. 22).

Em outras palavras, apesar de termos a falsa impressão de


uma considerável liberdade para pensar e agir, ainda aceitamos a
condição de dominados. Ao ser questionada quanto ao fato do que
seria um homem bem-sucedido, ela responde:

Ah, um homem com uma boa profissão, que estuda, “tipo” advogado
[risos] assim... (OLIVEIRA, 2017, p. 41).

No que diz respeito a uma mulher bem-sucedida, Márcia discorre:

Uma mulher realizada com casa própria, seus filhos [...] um bom
trabalho que não precise trabalhar o dia todo, ter um tempo pra
você e um tempo pros filhos, trabalhar só meio período. (OLIVEIRA,
2017, p. 41).

Neste sentido, Bourdieu (1999, p. 18) explica que “a força da ordem


masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a
visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade
de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”.

Agente-aluno(a) X Agente-filho(a)
No tocante ao seu relacionamento com as crianças em fase de
educação infantil na condição de alunos(as) e enquanto filhos(as),
Márcia demonstra contradições relacionadas às questões de gênero
ao relatar que não interfere nas brincadeiras das crianças na escola,
afirmando que não há algo próprio para meninos ou meninas,

233 |
Não, sabe porque, porque os meninos brincam juntos, até a ‘moneca’
ele pega ela pega, tem um carrinho eles pegam, a bola a ‘mema’
coisa, todos brincam junto, não, não acho diferença, não sou assim.
Eles brincam juntos, então.... os meus filhos chega na casa da
prima eles brinca junto. Aí ele pega a boneca e fala ai: vai pegar
o carro, você não pode brinca de boneca, não, eu não sou assim.
(OLIVEIRA, 2017, p. 41-42).

Ao ser questionada sobre o fato de permitir que as filhas brinquem


com o que quiserem, Márcia afirma que sim, desde que não apresente
risco. Porém, ao ser indagada quanto ao fato de trabalhar as questões
de gênero em casa, ela discorre,

Ah, o que eu falo é assim, o que eu falo é assim: ‘Tem brincadeiras


que vocês brincam, mas, que não tem importância, não importa
que vocês brincam, mas que é mais de menina, do resto, eu nunca
converso muito essas coisas com eles”. (OLIVEIRA, 2017, p. 42).

Escola X casa
Márcia afirma que as questões de gênero não devem ser tratadas
na escola e que para ela isso não é um problema.

Dolores
Dolores tem 26 anos, é casada, mãe de duas filhas e trabalha
como auxiliar de escritório na instituição de ensino pano de fundo
para a pesquisa. Possui ensino médio completo. Sempre viveu na
zona urbana e vem de uma família de 6 pessoas, sendo: pai, mãe e
quatro irmãos.

Família
Segundo a entrevistada, o marido não está satisfeito com a
ocupação atual dela, pois,: “Ele acha que eu não ‘tô’ aonde eu deveria
‘tá’, eu gosto muito de comércio, de vendas e hoje em dia eu ‘tô’

234 |
trabalhando de auxiliar de escritório”. Perguntado, então, sobre o que
ela acha da profissão do esposo, Dolores responde que gosta, pois,
“[...] hoje em dia ele ‘tá’ dentro de uma empresa que tem crescimento,
ele vai passar pra motorista, eu acho que ele faz o que ele gosta”
(OLIVEIRA, 2017, p. 51). Porém, não demonstra uma condição de
dominada ao ser questionada quanto ao fato do que significa ser um
homem ou mulher bem-sucedidos, afirmando que isto está ligado a

[...] ter uma base né, ter família, ter um bom trabalho, dar valor
né?! É ter valores, isso pra mim é ser um homem bem-sucedido,
porque muitos não têm valores né, familiares, não têm estrutura,
então eu acho que ter uma boa estrutura familiar, um bom trabalho.
(OLIVEIRA, 2017, p. 43-44).

Agente-aluno(a) X agente-filho(a)
Enquanto agente escolar, Dolores destaca que não aprova as
brincadeiras de “faz de conta”, pois, segundo suas palavras, “[...]
abre muito a imaginação, então eu sempre tive cautela com isso, o
que é real e o que não é real (OLIVEIRA, 2017, p. 44) ”.

Quanto ao fato de existirem coisas próprias de meninas ou


meninos, a participante afirma que

[...] hoje em dia pra minha filha eu vejo de uma maneira diferente,
porque, as coisas mudaram muito, mas quando eu era criança eu
brincava de pipa, de pião, eu brincava de bolinha de gude, então, se
você ver bem eu brincava com coisas que era de menino e mesmo
assim minha opção foi de gênero, é feminina né, eu me considero
feminina, então, é, eu acho que hoje em dia eu vejo mais isso, porque
“tá” se discutindo muito isso, então eu tenho preocupação pelas
minhas filhas, mas não que eu descrimino se ela quiser brincar de
bola, ela vai brincar de bola, mas sabendo que é um brinquedo que
é do amiguinho, no caso, um menino. (OLIVEIRA, 2017, p. 44).

235 |
Em relação ao fato de existirem brincadeiras próprias de meninos
e meninas ela discorre,

Acho que ‘lutinha’, é brincadeira de menino, sempre é uma


brincadeira que não é legal, mas é uma brincadeira de menino, eu
acho que menina não tem que ‘tá’ no meio. E eu acho que boneca,
maquiagem, cabeleireiro... que a minha filha ama brincar disso,
então, é de menina, não que é... se um menininho estiver brincando
com ela, ela não vai...ela vai falar: ‘-Não, você não vai brincar porque
é brincadeira de menina’, mas eu acho que tem eh... sim, diferença
sim. (OLIVEIRA, 2017, p. 44).

Escola X casa
Dolores afirma que as questões de gênero não devem ser tratadas
dentro da escola, pois, segundo ela, “Eu acho que cada um nasce
do jeito que é ‘pa’ nascer, isso não muda” (OLIVEIRA, 2017, p. 45).
Porém, discorre que tais questões devem ser trabalhadas dentro
de casa,

Eu acho que tem que ser, tem que tomar cuidado né, pra não
confundir, porque quando eles são pequenos eles são muito... a
formação que eles vão adquirir, são esponjinhas, então tudo o que
você jogar eles vão sugar, então eu acho que tem que ter muita,
muito cuidado pra jogar esse tipo de informação. (OLIVEIRA, 2017,
p. 46).

| Participante da camada média


Antonela
Antonela tem 41 anos, é casada, mãe de uma filha e trabalha
como diretora da instituição de Educação Infantil aqui analisada.
Possui graduação e vem de uma família de cinco pessoas, sendo:
pai, mãe e três irmãos. Viveu a vida toda na zona urbana.

236 |
Família
Antonela não demonstra distinção ao afirmar o que significa ser
um homem ou mulher bem-sucedidos, dizendo que, para ambos, o
que importa é “ter um bom trabalho, estar bem atualizado” (OLIVEIRA,
2017, p. 48).

Agente-aluno(a) X agente-filho(a)
Quanto ao fato de existirem brinquedos, brincadeira ou algo
próprio para meninos e meninas, ela responde,

Ah, eu acho que, por exemplo, a boneca é mais de menina sim, a


criança e às vezes quer brincar de boneca, mas não sabe que a
boneca é de sexo feminino ou de sexo masculino e pega e fala ah..‘-
ah é um bebê, meu bebê’; e a bola também, várias meninas gostam
de brincar de bola e, e bola é mais pra menino, então, eu acho que
assim, o gênero bola, aí a criança menina não pode brincar de bola,
não vejo porque não [...] brincadeiras de menina, por exemplo, as
meninas, elas gostam mais é... boneca, brincar de mamãe e filhinha,
casinha, e os meninos eu acho que mais bola, carrinho, caminhão,
os jogos em si, tem hoje vários jogos, eu acho que o Lego-Lego
vale pros dois. (OLIVEIRA, 2017, p.48).

Escola X casa
Antonela afirma que as questões relacionadas ao gênero devem
ser tratadas em casa e não na escola:

[...] eu chamo os pais, de repente em casa gosta de brincar, aí nós


vamos descobrir o porquê. [...] Entendeu? Porque na escola há uma
diversidade, assim uma diversidade. Pode brincar, a professora
dá um jogo, tanto, não sei se sabe... entra menino e menina, mas
dando os projetos, meninos e meninas, mas se tiver alguma coisa
que vá prejudicar a gente vai estar conversando. (OLIVEIRA, 2017,
p. 49 )

237 |
Em relação à filha, afirma que fala sobre as questões relacionadas
ao gênero da seguinte maneira,

Ah, eu sempre falo assim, é... por exemplo, é... você é menina, é...
tomando banho, vamos tomar banho, tomar banho com a mamãe,
então sempre assim, frisando que é menina. Porque ela sempre
falo dos amiguinhos, de todos, fala o nome deles, então menina...
friso que ela é menininha. (OLIVEIRA, 2017, p. 49).

| Discussões finais
Com base nos dados coletados e com a análise realizada,
podemos destacar que as agentes participantes deste estudo
demonstraram possuir valores incoerentes e contraditórios, no que
tange às questões de gênero, sobretudo quanto ao comportamento
e atitudes a serem exercidas na Educação infantil. A condição de
dominação estabelecida histórica e socialmente está presente em
suas falas e torna-se imperceptível às participantes.

Neste sentido, destaca-se a desmistificação da escola enquanto


uma instituição neutra como uma das maiores contribuições de
Pierre Bourdieu à educação, que desvelou a legitimação desta quanto
às desigualdades sociais antes vistas como um mito do dom e da
vocação apreendidos pelos indivíduos.

Bourdieu denunciou a condição de dominados e dominantes


presentes na sociedade e por extensão dentro da escola, interferindo
de maneira direta na identidade de gênero dos indivíduos e, também,
na estruturação da identidade de gênero das crianças inseridas
nesta instituição. Neste sentido, a superação desta condição faz-se
inerente à busca pela formação de cidadãos íntegros que saibam,
sobretudo, respeitar e considerar os indivíduos de maneira igualitária
e pertencentes a uma sociedade com deveres e direitos.

238 |
| Referências
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999.

BOURDIEU, P. Escritos de Educação. NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A.


(org.). Petrópolis: Vozes, 2007.

BOURDIEU, P.; BOLTANSKI, L.; SAINT-MARTIN, M. As estratégias


de reconversão. In: DURAND, J. C. (org.). Educação e hegemonia
de classe: as funções ideológicas da escola. Rio de Janeiro:
Zahar, 1978.

MUZZETI, L. R. Trajetórias escolares de professoras primárias


formadas em São Carlos nos anos 40. 1992. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Centro de Educação e Ciências
Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1992.

MUZZETI, L. R. Trajetória social, dote escolar e mercado


matrimonial: um estudo de normalistas formadas em São Carlos
nos anos 40. 1997. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de
Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, 1997.

MUZZETI, L. R. Escritos de educação. Educação & Sociedade, ano


XXI, n. 73, p. 257-261, dez. 2000.

OLIVEIRA, M. F. C. Trajetória social e sexualidade: a estruturação


da identidade de gênero na Educação Infantil. 2017. Dissertação
(Mestrado em Educação Escolar) - Faculdade de Ciências e
Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
Araraquara, 2017.

ORTIZ, R. Pierre Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

239 |
RIBEIRO, P. R. M. A sexualidade também tem história:
comportamentos e atitudes sexuais através dos tempos. In:
BORTOLOZZI, A. C.; MAIA, A. F. (org.). Sexualidade e infância.
Bauru: FC/CECEMCA; Brasília: MEC/SEF, 2005. p.17-32.

| Agradecimentos
A dissertação utilizada como embasamento para o recorte aqui
apresentado foi realizada com apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPQ).

240 |
Desigualdade social e gênero: uma
reflexão sobre a violência simbólica
Angelita de Lima Oliveira
Pamela Alves Batista
Débora Raquel da Costa Milani
Paulo Rennes Marçal Ribeiro

| Introdução
Este trabalho apresenta uma breve reflexão sobre as relações
de dominação em nossa sociedade, sobretudo nas relações de
sexo e gênero, a partir do referencial teórico de Pierre Bourdieu
(1999, 2011) sobre a violência simbólica como mecanismo que
possibilita a reprodução das desigualdades sociais. Para o autor
(2011, p. 171): “A violência simbólica é essa violência que extorque
submissões que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em
‘expectativas coletivas’, em crenças socialmente inculcadas”. Dessa
forma, as estruturas sociais predominantes reiteram-se a partir da
transmissão de valores comuns. Valores esses que tornam o próprio
indivíduo parte do mecanismo de reprodução social, corroborando
para a sua manutenção. Essas estruturas reverberam em várias
vertentes sociais, cultural e economicamente, pois em um contexto
capitalista acabam por eclodir em um sistema de exploração.
Sendo assim, as relações de sexo e gênero também fazem parte
da tessitura das desigualdades sociais, trazendo em seu cerne o
exercício da chamada violência simbólica que, segundo Bourdieu
(1999), é uma forma de coação no processo de socialização.
Sobretudo, essa coação recai sobre a mulher, que acaba por fazer
parte do funcionamento e entendimento de mundo do indivíduo,
restringindo-lhe a papéis sociais previamente determinados com
justificativa claramente arbitrária e de fundos ideológicos sexistas.
Tais papéis partem de pressupostos que desconsideram o processo
de historicidade, pautando-se em diferenças corporais anatômicas,

241 |
entendidos e interpretados culturalmente, desviando os indivíduos
das possibilidades de questionamento e consciência de si e do meio,
tomando o que é construção histórica e social como natural, dando
embasamento para manter privilégios de um gênero em detrimento
ao outro.

A ideologia de submissão de um gênero ao outro, nos elucida


Bourdieu (1999), se faz por um processo de transformação da
história em natureza, ganha legitimidade em vários vieses sociais,
institucional ou não, dando base para comportamentos sexistas
nas práticas sociais. Portanto, se fazem necessárias contribuições
reflexivas no que tange ao debate das relações de gênero e sexo,
transfigurando em quebra desse paradigma nas práticas, contribuindo
para uma sociedade igualitária.

| Relações de dominação e seus


desdobramentos
Quando refletimos sobre as relações de dominação que permeiam
nossa sociedade, logo evidenciamos um entrelaçamento entre
elas. A dominação não institui-se em um só âmbito, mas sim nas
conjecturas de várias vertentes, totalizando em uma sistemática
não perceptível em relação aos dominados.

Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista


dos dominantes, as relações de dominação, fazendo-as assim
serem vistas como naturais, o que pode levar a uma espécie de
autodepreciação ou até autodesprezo sistemático. A violência
simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado
não pode deixar de conceder ao dominante. (BOURDIEU, 1999,
p. 56).

Ainda em Bourdieu (1999), as estruturas de pensamento mais


sedimentadas que parecem intrínsecas do ser têm uma origem,
ou seja, o que a priori é considerado intrínseco do gênero se dá por

242 |
meio de disposições dadas historicamente. Sendo assim, essas
disposições acabam por engendrar uma violência imperceptível,
que, mesmo oprimindo, explorando, determinando comportamentos,
normatizando os indivíduos, é considerada aceitável e, de forma
sutil, acaba por enraizar-se na consciência do indivíduo. Iasi (2007,
p. 18) nos esclarece sobre o processo de formação de consciência:

A vivência das relações já está preestabelecida como realidade dada;


a percepção da parte pelo todo, em que o vivido particularmente
como uma realidade pontual torna-se realidade; por esse mecanismo,
as relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para se
tornarem naturais, levando à percepção de que “sempre foi assim
e sempre será”; essas relações não permanecem externas, mas
interiorizam como normas e valores; comportamento, formado com
o superego, um componente que o indivíduo vê como dele, como
autocobrança e não como exigência externa.

Portanto, valores construídos socialmente são deturpados,


dando à ordem social o caráter inerente ao indivíduo, coibindo para
que se faça aquilo que é esperado. Um exemplo básico de prática
social de coerção que acontece nas relações de gênero é atribuir
conteúdos específicos a determinados gêneros, como brinquedos,
livros didáticos, mídias publicitárias. Para meninas, esses objetos
exprimem o cuidado com o outro e com a casa, o que de maneira
sutil indica a não existência da mulher senão para servir, ainda que
essa subserviência esteja sempre atrelada a comportamentos como
doçura, meiguice, delicadeza/fragilidade. Isso deixa subentendido
que se espera de todos os indivíduos do gênero feminino tais modos
de agir, pensar, comportar-se.

Quando isso não acontece, há uma cobrança social de forma


repressora, perpassando o exercício da violência simbólica, exigindo
do gênero feminino atributos que, em uma sociedade capitalista
competitiva propagadora de padrões individualistas, são justamente
colocados como de menor valor mercadológico.

243 |
A dominação masculina, que constitui as mulheres como objeto
simbólico, cujo ser é um ser percebido, tem por efeito colocá-las
em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor, de
dependência simbólica: elas existem primeiro pelo olhar do outro,
ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes e disponíveis. Delas
se espera que sejam “femininas”, isto é, submissas, sorridentes,
simpáticas, contidas e até mesmo apagadas (BOURDIEU, 1999).

Ainda em Bourdieu (1999), a força da ordem masculina, o


androcentrismo se impôs como neutro e a própria ordem social
funciona para ratificação da dominação de gênero. Nessa perspectiva,
encontra-se a divisão sexual do trabalho que, embora não seja
material, se impõe simbolicamente e é reproduzida historicamente.
Outro exemplo apontado por Bourdieu (2011, p. 169-170) é a relação
estabelecida “entre os irmãos mais velhos e os mais moços”.

Destarte, imputar características de menor valor mercadológico


como naturais do gênero feminino possibilita o seu não
questionamento e ao mesmo tempo sua exploração de forma
sistemática. Assim, o sexo fonte de inferiorização social da mulher
passa a interferir, de modo positivo para atualização da sociedade
competitiva na constituição das classes sociais (SAFFIOTI, 1979).

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua


(PNAD) de 2016, do IBGE (2018), taxa de frequência no ensino médio
entre as mulheres é de 73,5% versus 63,2% entre os homens (AGÊNCIA
IBGE NOTÍCIA, 2018). Ainda de acordo com o IBGE (2018), a média
salarial dos homens é de R$2.306,00 enquanto a das mulheres é de
R$1.764,00. Eles ocupam 62,2% dos cargos gerenciais nas empresas
e elas apenas 37,8%. De acordo com o levantamento:

Em relação aos rendimentos médios do trabalho [...], as mulheres


seguem recebendo cerca de ¾ do que os homens recebem. Contribui
para a explicação deste resultado a própria natureza dos postos
de trabalho ocupados pelas mulheres, em que se destaca a maior
proporção dedicada ao trabalho em tempo parcial. (IBGE, 2018).

244 |
No mesmo sentido, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (INEP, 2018) aponta que, em 2016, as mulheres
representavam 57,2% dos estudantes matriculados em cursos de
graduação no Brasil. No ensino superior, 45% dos professores são
mulheres.

Assim, fica exposta a interface entre desigualdades econômicas


de gênero, a exigência de esforços maiores para as mulheres
conseguirem determinados cargos que, de maneira implícita e sutil,
parecem ser designados aos homens.

Posteriormente, foi aprovada uma nova legislação garantindo


alguns direitos para trabalhadores domésticos. O congresso e toda
imprensa a denominaram como a PEC das domésticas; claramente,
na expressão usada, se subentende que a profissão é tão explorada
economicamente que precisou de uma lei para pleitear direitos
básicos, conseguidos há tempos por outros trabalhadores. Esta
profissão também está associada ao gênero feminino, apesar de
nenhuma lei proibir o trabalho masculino nessa área, trazendo
evidências da força da ordem social de dominação de gênero nas
relações de trabalho.

A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que


tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça;
a divisão sexual do trabalho, atividades diferentemente atribuídas
a cada um dos dois sexos. (BOURDIEU, 1999, p. 48).

Para Camurça (2007), o sistema de dominação da mulher reinventa,


reproduz e perdura, estrutura-se a partir de quatro mecanismos que
o sustentam:

1) A prática da violência contra as mulheres para subjugá-las;


2) O controle sobre o corpo; 3) A manutenção das mulheres em
situação de dependência econômica e 4) A manutenção, no âmbito
do sistema político e práticas sociais, de interdições à participação
política das mulheres. (CAMURÇA, 2007, p. 20).

245 |
Destarte, arraigadas em estruturas sociais, ideários de sujeição
abrangem o indivíduo, fazendo com que essas relações perdurem
vistas como naturais, tanto para o dominante como para o dominado,
culminando em uma divisão sexual do trabalho. Sendo assim,
para atender a demanda de um contexto social, mulheres acabam
moldando-se a determinados papéis dados como naturais do sexo
que, em uma sociedade capitalista, são de caráter de exploratório.
Conforme aponta Bourdieu (2011, p. 170, grifo do autor):

Um dos efeitos da violência simbólica é a transfiguração das


relações de dominação e de submissão em relações afetivas, a
transformação do poder em carisma ou em encanto adequado
a suscitar um encantamento afetivo (por exemplo, nas relações
entre patrões e secretárias). O reconhecimento da dívida torna-se
o reconhecimento, sentimento duradouro em relação ao autor do
ato generoso, que pode chegar à afeição, ao amor, como vemos
com particular clareza nas relações entre gerações.

Podemos encontrar um exemplo desse tipo de relação naquela


desenvolvida no trabalho doméstico. Conforme apontam dados da
CEPAL (2019, p. 158, tradução nossa32):

As trabalhadoras domésticas remuneradas não enfrentam apenas


os efeitos da desigualdade de gênero. Eles exercem uma ocupação
de baixo reconhecimento social, associada à sua classe, origem
étnica, racial ou nacional. Historicamente, as relações de trabalho
no setor de trabalho doméstico remunerado têm sido marcadas
por uma intersetorialidade de desigualdades e hierarquias. O nível

32 No original: “Las trabajadoras domésticas remuneradas no solo enfrentan los


efectos de la desigualdad de género. Se desempeñanen una ocupación de bajo
reconocimiento social, asociado a su origen de clase, étnico, racial o de nacionalidad.
Históricamente las relaciones laborales en el sector del trabajo doméstico remunerado
han estado marcadas por una interseccionalidad de desigualdades y jerarquías. El
nivel socioeconómico, la condición étnicoracial, el género, el país de origen o el estatus
migratorio son diferencias que, en sociedades conun alto grado de discriminación y
racismo, colocan a las mujeres en una posición de alta vulnerabilidad desde el punto
de vista de los derechos”.

246 |
socioeconômico, A condição étnico-racial, o gênero, o país de origem
ou a situação migratória são diferenças que, em sociedades com
alto grau de discriminação e racismo, colocam as mulheres em
posição de alta vulnerabilidade do ponto de vista de direitos.

Ou seja, além das sujeições relacionadas com seu nível


socioeconômico, a posição de vulnerabilidade é agravada pelas
questões de gênero, étnico-raciais, dentre outras. Assim, a relação
de dominação e de sua consequente violência simbólica passa a
ser vista, principalmente pelo dominado, como algo positivo; no
exemplo de Bourdieu (2011), como afeto e amor.

Por outro lado, justificado como dom natural, a mulher passa a


exercer atividades associadas ao emocional que, em um sistema
utilitarista, é considerado de menor valor remuneratório, consolidando
um abismo social entre gêneros.

Bourdieu (1999) observa que mesmo barreiras externas são


abolidas, dando espaço a liberdades formais, como o direito ao
voto, à educação e o acesso a todas as profissões. Adquire-se um
freio interno, a autoexclusão travestida de vocação, decorrente de
barreiras simbólicas, exteriorizadas por meio de ideologias sexistas
e comportamentos.

Em Guillaumim (2005), o ideário que permeia a apropriação


da mulher como objeto tem como pilar principal o sexo genital
como base para restringir à mulher a condição determinada, e de
dominação social em várias vertentes, tornando-as propriedade.
A autora sustenta que há duas ordens de apropriação da mulher
dentro do cerne da família: de cunho privado e a coletiva, caracterizada
pelas instituições como estado e igreja. Destarte, essas ordens
funcionam como agente de ação legitimadora dessa naturalização,
dando alicerce para as estruturas sociais na inserção de simbologias
sexistas.

247 |
Para Souza Lobos (2011), as regras de dominação de gênero se
reproduzem em várias esferas sociais. Considera-se esfera social
um ambiente de contato, que vai além do físico, no qual o indivíduo
se encontra incorporado.

Podemos considerar então a educação como uma dessas esferas,


que traz como âmbito a incorporação do indivíduo ao meio formal,
possibilitando a inserção deste em um mecanismo de reprodução
social. Contudo, a escola como ambiente físico da esfera educacional
formal pode ser considerada uma agente propagadora de ideologia
sexista, exercendo a violência simbólica de forma velada, respaldada
por uma concepção de naturalidade de sexo e gênero e não como
construção social.

Segundo Moreno (1999), a escola transmite os sistemas de


pensamentos e atitudes sexistas, aquelas que marginalizam a mulher
e a levam a ser considerada um elemento de segunda categoria.

Entretanto, existe uma possibilidade de quebra de paradigma, o


caráter socializador da escola, pois, a mesma instituição que reproduz
as relações arbitrárias de gênero também pode corroborar para o
desmantelamento da ordem social de dominação, tendo em vista uma
atuação efetiva no papel de repensar os processos de socialização
e suas práticas. Isso promove relações igualitárias, proporcionando
aos seus indivíduos a capacidade de gerar questionamento das
estruturas vigentes, reverberando consequentemente não só no
mundo do trabalho, mas em todas as dinâmicas sociais arbitrárias
de um sistema exploratório.

A Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL,


2019) destaca a impossibilidade de uma economia defensável sem
o desmonte da divisão sexual do trabalho injusta, o que não se
faz possível sem a quebra de estruturas baseadas em relações
de dominação e ideologias sexistas. Esses estudos revelam que
as mulheres ainda não são representadas igualmente no mundo

248 |
da ciência, em campos voltados para áreas de tecnologias,
matemática e engenharias, ou seja, é como se prevalecesse uma
forma de consciência coletiva que restringe essas áreas, que
em uma sociedade capitalista tecnicista são de maior prestígio
econômico e estão diretamente vinculadas em um plano simbólico
reservado aos homens. Conforme aponta o estudo: “A violência
é uma consequência da discriminação e das relações de poder e
subordinação que naturalizam a desigualdade e das hierarquias
sociais” (CEPAL, 2019, p. 159, tradução nossa33).

Destarte, essa consciência coletiva está fundamentada em


violência simbólica e consegue, sem maior reflexão do dominado,
a coação da autonomia e a reprodução para interesse do capital.

| Considerações finais
O processo de formação de consciência histórico-cultural, de
caráter sexista e alienadora dadas como naturais, faz um caminho do
externo para o interno e garante sua reprodução de forma sistemática,
de modo que o indivíduo tenha aceitação no meio. É tecido um
mecanismo de manutenção social, onde o próprio dominado se
defende como algo biológico e inato do sexo, o que se dá por meio
de uma violência simbólica.

Contudo, essa violência tem papel primordial nas relações de


dominação de sexo e gênero; enraizada no processo educacional,
reverbera nas relações de trabalho, caracterizando a exploração da
mulher sistematicamente a determinados papéis no mercado de
trabalho. Em um sistema capitalista, associa não involuntariamente,
mas com o desígnio de manter o gênero privilegiado no poder
econômico, reservando à mulher trabalhos de ordem emocional
e afetiva. Esses trabalhos são considerados pelo contexto social

33 No original: “La violencia es una consecuencia de la discriminación y de las


relaciones de poder y subordinación que naturalizan la desigualdad y las jerarquías
sociales.”.

249 |
próprios das habilidades intrínsecas do gênero feminino, deixando
subentendida a demanda de pouco esforço. Justificando a diferença
na remuneração e na exploração da força de trabalho feminino,
acentua-se o abismo social de sexo e gênero.

A escola como agente da educação formal e socializadora


pode fornecer subsídios para a desconstrução das estruturas que
fomentam a dominação masculina.

| Referências
AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. Estatística de gênero: responsabilidade
por afazeres afeta inserção da mulher no mercado de trabalho.
Rio de Janeiro, 07 mar. 2018. Disponível em: https://bit.ly/34VNp9Y.
Acesso em: 25 ago. 2020.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand,


1999.

BOURDIEU, P. Razões Práticas. Campinas: Papirus, 2011.

CAMURÇA, S. ‘Nós mulheres’ e nossa experiência comum.


Cadernos de Crítica Feminista, Recife: SOS Corpo, ano 1, n. 0,
p. 12-25, 2007. Disponível em: https://bit.ly/2GoIPr8.Acesso em:
10 abr. 2020.

COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE


(CEPAL). La autonomía de lasmujeresenescenarios económicos
cambiantes. Santiago: CEPAL, 2019. Disponível em: https://bit.
ly/3oSOYNz. Acesso em: 30 jun. 2020.

GUILLAUMIM, C. Práctica del poder e idéia de naturaleza. In:


CISNE, M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. São
Paulo: Cortez, 2014.

250 |
IASI, M. O processo de consciência. São Paulo: CPV, 1999.

IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no


Brasil. Brasília: IBGE, 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.
gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf. Acesso em:
27 jun. 2020.

INEP. Mulheres são maioria na Educação Superior brasileira.


Brasília: INEP. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3oWhPR9.
Acesso em: 27 jun. 2020.

MORENO, M. Como se ensina menina a ser menina. São Paulo:


Moderna, 1999.

SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade.


Petrópolis: Vozes, 1979.

SOUZA-LOBO, E. A classe operária tem dois sexos: trabalho,


dominação e resistência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2011.

251 |
Perspectivas feministas na
criminologia e no sistema penal:
uma reflexão sobre a dominação
masculina a partir de Pierre Bourdieu
Irene Rogatti Portero Ferrari
Paulo Rennes Marçal Ribeiro

Nesse ensaio, apresentamos uma reflexão, com base nos trabalhos


de Pierre Bourdieu, sobre a dificuldade de alterar valores e práticas
de dominação masculina na esfera penal. A construção do campo
jurídico e especificamente da criminologia, assim como as demais
ciências modernas, teve como fundamento valores androcêntricos
em clara oposição ao feminino. Essa dicotomia entre masculino e
feminino posicionou e ainda posiciona as mulheres num lugar de
inferioridade. No entanto, a diferença de gênero é ignorada, já que o
paradigma da ciência assegura a dominação masculina ao mesmo
tempo que a mantém velada (BARATTA, 1999).

A criminologia, ao estabelecer-se tradicionalmente enquanto


ciência, não conferiu à mulher nenhum lugar de destaque e, até
década de 1970, verifica-se uma ausência quase total do feminino
nos estudos criminológicos, seja como transgressora ou como
vítima. Ademais, quando era considerada para a análise, tinha suas
experiências distorcidas para enquadrarem-se no modelo dominante,
desenvolvido a partir da perspectiva masculina (MATOS; MACHADO,
2012).

Com a eclosão dos movimentos feministas da segunda onda34 e


sua expansão para além da luta por igualdade, passa-se a questionar

34 Refere-se ao movimento de luta das mulheres que ocorreu a partir da segunda


metade do século XX, cujas pautas denunciavam a estrutura do patriarcado nas
diversas estruturas sociais, como poder político tanto na esfera pública quanto no
âmbito privado (SAFFIOTTI, 2004).

252 |
a negligência do feminino nas diversas áreas de conhecimento.
As preocupações epistemológicas e políticas impulsionam a
emergência dos estudos de gênero na criminologia, de forma a trazer
o protagonismo feminino na integração deste saber. Além disso, a
mudança de paradigma para emergência de uma criminologia crítica
(com enfoque macrossociológico) em detrimento à criminologia
positivista (centrada em controles punitivos e na etiologia do crime)
cria um contexto mais favorável às perspectivas feministas neste
campo (MATOS; MACHADO, 2012).

A partir da inclusão da estrutura de gênero nos estudos do crime,


as teorias feministas evidenciaram a problemática da criminalidade
feminina, discutindo papéis sociais, status socioeconômico e
múltiplas faces desta marginalização (ISHIY, 2014). Dessa forma, a
introdução do feminismo na criminologia, ao trazer outros marcadores
sociais na constituição do feminino, apresentou a alternativa de um
novo discurso sobre a criminalidade, contrapondo-se ao discurso
tradicional vigente que considerava a transgressão feminina um
produto de predisposições psicobiológicas (MATOS; MACHADO,
2012).

Matos e Machado (2012) apontam que, no discurso tradicional,


a mulher autora de crimes é considerada uma dupla desviante, pois,
além de transgredir a lei com o ato criminoso, também transgride
a norma de conduta adequada ao seu gênero. Dentro da imagem
social do feminino, não é esperado que a mulher cometa crimes,
sendo essa uma característica específica do sexo masculino.
Portanto, ao transgredir a lei, ela é punida com mais rigor do que
o homem, julgada moralmente como um ser perverso. As autoras
também apontam que a criminologia tradicional, ao determinar tipos
específicos de crimes das mulheres (como prostituição, infanticídio
e aborto) associando-os à figura feminina, rejeita outros fatores
envolvidos na análise, desconsiderando a heterogeneidade de
crimes que são cometidos pelas mulheres. Além disso, o discurso
tradicional representa a mulher transgressora como uma mulher

253 |
irracional; vítima da própria biologia e de coação, geralmente por
uma figura masculina, ela entra na criminalidade por fatores que
são alheios à própria vontade.

É interessante notar que, mesmo que tenha se passado mais de


cinco décadas desde que as primeiras contribuições feministas nos
ofereceram novas estratégias para pensar a mulher na esfera penal,
algumas posturas essencialistas sobre gênero e divisão sexual ainda
sobrevivem nos discursos jurídicos e nas práticas institucionais,
seja na forma da punição à transgressão ou na proteção da mulher
enquanto vítima. Essas práticas encontram resistência de mudança
por se relacionarem a um sistema de reprodução de valores de
dominação.

Antes de analisarmos esses aspectos, é importante compreender


de que forma essas disposições são mantidas e reproduzidas
historicamente, compondo o mundo social e suas práticas. Para isso,
utilizaremos as reflexões de Pierre Bourdieu cuja sistematização de
ferramentas teórico-metodológicas possibilita-nos a compreensão
da sociedade e seus mecanismos estruturais, evidenciando aspectos
de dominação (masculina) obscurecidos nas relações sociais.

Bourdieu (2012), ao adotar uma postura de análise histórica e


sociológica, afasta-se das classificações essencialistas, afirmando
que a ordem das coisas é construída e incorporada ao mundo social
através do habitus, que é definido como

[…] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que,


integrando todas as experiências passadas, funciona a cada
momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de
ações. Podemos entender que, através do processo de socialização,
ocorre uma internalização daquilo que é externo ao indivíduo e uma
exteriorização do que lhe é interior. (BOURDIEU, 1994, p. 61).

Dessa forma, o habitus pode então ser considerado um esquema


de ações e percepções que, estando presente como disposições

254 |
permanentes no mundo social, é introjetado, sendo ao mesmo tempo
individual e social. Através do processo de socialização, o habitus
é incorporado ao mundo social sendo geralmente formado por um
sistema de oposição (relações homólogas e interconectadas) cujos
significados são de ordem cosmológica e universal, o que legitima
a divisão sexual.

Por inscrever-se nos corpos através de naturalizações, a divisão


sexual parece fazer parte da “ordem das coisas como se diz por
vezes para falar do que é normal, natural e inevitável” (BOURDIEU,
2012, p. 17).

Laqueur (2001) também questiona a naturalização da divisão


sexual e assinala como os corpos estão localizados em esfera
situacional sendo, portanto, invenções culturais. De acordo com
o autor, a ideia de um sexo único era largamente aceita desde a
antiguidade até o século XVII, e o sexo masculino era adotado como
um modelo de perfeição. A mulher, neste contexto, era considerada
um homem invertido e acreditava-se que ela possuía um pênis e
testículos assim como o homem. Porém, a falta de calor mantinha
sua genitália na parte interna de corpo enquanto o homem, provido
de calor e potência, externalizava seus órgãos reprodutivos. A mulher
era, portanto, um homem imperfeito.

Estabelecia-se assim a ideia de inferioridade feminina e da


superioridade masculina e a ela eram atribuídas as características
cognitivas e morais necessárias para atuar no mundo social.
Observamos que os limites entre o masculino e o feminino eram
políticos e não biológicos, já que, de acordo com a concepção do
sexo único, homens e mulheres eram semelhantes em seus corpos,
diferindo apenas em grau de perfeição (LAQUEUR, 2001).

As descobertas da anatomia e o desenvolvimento do conhecimento


científico não foram, por si sós, suficientes para modificar as
concepções do modelo de sexo único já que as observações
das diferenças anatômicas entre os corpos eram diminuídas ou
desconsideradas, para poderem se encaixar ao modelo masculino.

255 |
O estabelecimento do modelo de dois sexos, a partir do século
XVIII, deu-se a partir de uma pluricausalidade de transformações
(epistemológica, social e política) e embora tenha relativamente
substituído a noção de sexo único, foi desenvolvida tomando como
base os aspectos culturais de gênero utilizados e estabelecidos por
ele anteriormente (LAQUEUR, 2001).

Por conta disso, a concepção de inferioridade feminina não


mudou, mas apoiava-se em uma nova explicação: a natureza. A
perspectiva naturalista demonstrava que as limitações femininas
estavam circunscritas em seus corpos e essa ideia foi utilizada
como justificativa para que a mulher não pudesse assumir
responsabilidades cívicas ou ocupar o espaço público, devendo ao
invés disso dedicar-se à maternidade, algo para o qual a natureza
a preparou. A divisão sexual tornou-se então a nova narrativa e
passou a representar a ordem das coisas.

De forma análoga, Bourdieu (2012, p. 20), ao discutir a construção


dos corpos afirma,

O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como


depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes.
Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas
as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua
realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos
biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do
mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens
sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho,
na realidade da ordem social.

O autor defende que há um uso arbitrário do biológico cujas


diferenças visíveis entre os corpos masculinos e femininos foram
construídas a partir da perspectiva androcêntrica, e que ela institui a
hierarquização de valores, além de atribuir aos homens os símbolos
de força, virilidade, honra. Nesta perspectiva, é reservado à mulher
o polo oposto e negativo da dicotomia, fragilidade, medo, fraqueza,

256 |
“como se a feminilidade se medisse pela arte de se fazer pequena”
(BOURDIEU, 2012, p. 39).

Deve-se notar, no entanto, que a permanência destas disposições


é resultado de um trabalho histórico de reprodução por parte de
agentes e instituições específicas que, por utilizarem construções
sociais naturalistas, patriarcais e androcêntricas, legitimam e
perpetuam o discurso dominante, tradicionalmente masculino.

Sabendo-se que os valiosos ritos de instituição são essenciais


nos processos de aprendizagem e perpetuação destes valores,
não nos causa estranheza que os aparatos do Estado e demais
instituições, como escola, igrejas, família e a própria esfera jurídica,
sejam mecanismos de aprendizagem e reprodução dos valores
masculinos (BOURDIEU, 2012).

A este poder que age sob os corpos e os impele a incorporar e


reproduzir inconscientemente essas disposições dominantes dá-se
o nome de violência simbólica. Bourdieu (2011, p. 171), ao descrever
a violência simbólica, afirma que

[...] a violência simbólica é essa violência que extorque submissões


que sequer são percebidas como tais, apoiando-se em “expectativas
coletivas”, em crenças socialmente inculcadas. Como a teoria
da magia, a teoria da violência simbólica apoia-se em uma teoria
da crença ou, melhor, em uma teoria da produção da crença, do
trabalho de socialização necessário para produzir agentes dotados
de esquemas de percepção e de avaliação que lhe farão perceber
as injunções inscritas em uma situação, ou em um discurso, e
obedecê-las.

É importante ressaltar que a violência simbólica não pode ser


resolvida apenas a partir de uma tomada de consciência daquilo
que está inconsciente, ou seja, torná-lo cognoscível, por um ato de
vontade. Isso porque parte desta experiência é inscrita nos corpos
em forma de predisposição e é vivenciada com alta carga emocional.

257 |
Ou seja, mesmo quando há alguma abertura externa para a adoção
de novos paradigmas, há uma tendência de permanência da estrutura
de dominação e, assim sendo, velhas condutas continuam a ser
reproduzidas.

Conforme Silva (2017), a visão androcêntrica ao se impor como


ordem das coisas impregna todos os campos, de forma silenciosa
e neutra, sendo reconhecida e validada pelo dominante e dominado.
Para a autora, seja no campo jurídico, acadêmico ou político,
evidencia-se uma constante luta pela supremacia do homem e
invisibilização da mulher.

A visão androcêntrica continua presente nas práticas institucionais


do campo jurídico, em especial na esfera penal e na criminologia,
reproduzindo antigos paradigmas que expressam a dominação
masculina e a violência simbólica.

Colombaroli (2013) aponta que, no sistema penitenciário, o


tratamento dispensado às mulheres encarceradas para que recebam
visita íntima é diferenciado, sendo que as mulheres usufruem deste
direito apenas se cumprirem o requisito de bom comportamento
carcerário e forem legitimadas após uma série de avaliações
realizadas pela equipe, incluindo a comprovação burocrática de
que possuem vínculo afetivo com o parceiro. O direito garantido
em lei é concedido como uma recompensa após serem atendidas
uma série de exigências moralistas e as mesmas regras não são
aplicadas aos homens.

A autora também aponta as inadequações do sistema penitenciário


para atender as especificidades da mulher, citando a ausência de
profissionais de saúde especializados em saúde feminina, a ausência
de uma arquitetura adequada para receber mulheres, a ausência
de creches e espaços adequados para mulheres lactantes, como
exemplos da opressão a que se submetem por se distanciarem
do padrão hegemônico masculino. De forma semelhante, Andrade

258 |
(2016, p. 19) afirma que o cárcere é “o resultado de um sistema
patriarcal que recorre à violência para fundamentar o domínio do
homem sobre a mulher”.

Com relação à prescrição de condutas, Colombaroli (2013) aponta


que a lei penal a faz em separado para mulheres e homens e sob
uma perspectiva androcêntrica, reserva às primeiras maior atenção
ao mundo privado e à sexualidade. Sendo este corpo destinado
à vida familiar e não pública, “limita-se aos chamados delitos de
gênero, como o infanticídio, o aborto, os homicídios passionais,
a prostituição e outros delitos relacionados aos crimes de seus
companheiros e maridos” (COLOMBAROLI, 2013, p. 6). A autora
considera que a marginalização das mulheres no discurso penal
se deve muito mais ao sexismo da ciência do que à baixa taxa de
criminalidade cometida pelas mulheres.

Da mesma forma que ocorre com as mulheres transgressoras,


as mulheres vítimas também estão sujeitas aos efeitos deletérios
da visão androcêntrica que, ao desconsiderar seu protagonismo, a
colocam em situação de marginalidade, mesmo quando deveriam
protegê-la.

É observada a adoção de uma perspectiva masculina da


vulnerabilidade absoluta principalmente nos casos de violência
doméstica e familiar, quando, por exemplo, prossegue-se as ações
penais a despeito da vontade das mulheres, causando revitimizações
(MARQUES; ERTHAL; GIRIANELLI, 2020).

Dessa forma, Andrade (2005 apud MARQUES; ERTHAL;


GIRIANELLI, 2020, p. 145) mostra que

[...] ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia


de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de
um processo de controle que certamente se inicia na família, em

259 |
vez de proteger, o SJC35 duplica a vitimação feminina, pois, além
da violência representada por diversas condutas masculinas, a
mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do
sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de
violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais
capitalistas (a desigualdade de classes) e a violência das relações
sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero), recriando
os estereótipos inerentes a essas duas formas de desigualdade.

Do mesmo modo, Andrade (2016) também acusa o sistema penal


de revitimizar as mulheres vítimas por não construir meios capazes
de prevenir a violência ou evitá-la. Isso porque desconsidera a relação
de gênero e outros marcadores sociais envolvidos na dinâmica da
violência.

Um exemplo disso é demonstrado nos estudos realizados por


Garcia, Freitas e Hofelmann (2013) ao avaliarem o impacto da Lei
Maria da Penha (Lei 11.340 de 2006) sobre o feminicídio, forma
mais extrema de violência de gênero, cometida contra a mulher.
As autoras realizaram um estudo temporal nos períodos de 2001
a 2011 (antes e depois da vigência da Lei) e observaram que não
houve queda significativa nas taxas de mortalidade de mulheres
por agressão. Elas demonstram que, embora tenham ocorrido
mudanças legais e políticas no Brasil com o objetivo de proteger
a mulher, elas causaram pouco ou nenhum efeito, pois não vieram
acompanhadas de mudanças na cultura e nas práticas institucionais.
Diante do exposto, parece-nos necessária a mudança de paradigmas
e práticas institucionais que marginalizam, invisibilizam, revitimizam
a mulher no sistema penal e campo jurídico, que sejam capazes de
desarticular o discurso tradicional vigente e devolvam seu lugar de
protagonista nestas questões.

Nesse sentido, as teorias feministas, ao criarem uma criminologia


de cunho feminista, se apresentam enquanto uma solução possível,
pois propõem uma mudança pragmática no modo de produzir
35 Sistema de Justiça Criminal.

260 |
conhecimento, adotando o conceito de gênero enquanto categoria
independente (PEREIRA; SILVA, 2015). De acordo com as autoras,
estes saberes construídos com base na narrativa dos oprimidos
possibilita uma revolução das estruturas de poder, viabilizando a
superação do caráter masculino do sistema penal.

Sabemos que adentrar um campo cujos discursos foram


construídos “por homens para homens e sobre mulheres” para, num
segundo momento, transformar-se em discursos de “homens, para
homens e mulheres” (ANDRADE, 2016 apud MENDES, 2014) não é
tarefa fácil. Conforme pontua Bourdieu (2004, p. 130),

[...] os agentes de algum modo caem na sua própria prática, mais


do que a escolhem de acordo com um livre projeto, ou do que são
empurrados para ela por uma coação mecânica. Se isso acontece
dessa maneira, é porque o habitus, sistema de disposições adquiridas
na relação com um determinado campo, torna-se eficiente, operante,
quando encontra as condições de sua eficácia, isto é, condições
idênticas ou análogas àquelas de que ele é produto.

No entanto, o autor também afirma que os campos não são


estruturas fixas. São um produto da história e o que o determina
são as ações dos indivíduos e dos grupos que os compõem, bem
como os interesses específicos de seus membros (BOURDIEU,
2004). Nesse sentido, podemos pensar que o campo jurídico pode
e deve ser um campo de lutas e neste caso uma luta não apenas
pela igualdade, mas pela desarticulação da dominação masculina.

De acordo com Thiry-Cherques (2006), o campo é marcado pela


disputa e para adentrá-lo é necessário o uso de estratégias e capitais
(cultural, econômico, social), além da conquista de posições no
plano simbólico que podem conservá-la ou colocar em jogo a ordem
até então dominante. O autor afirma que

[...] o campo é caracterizado pelas relações de força resultantes


das lutas internas e pelas estratégias em uso. Sejam estratégias
defensivas ou subversivas. Mas, também, pelas pressões externas.

261 |
Os campos se interpenetram, se inter-relacionam. [...] A homologia
estrutural entre os campos faz com que seja possível, por exemplo,
que a produção cultural influencie a hierarquia simbólica e que
esta contribua para a conservação ou para a subversão da ordem
política. (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 40).

No entanto, deve-se reconhecer que as perspectivas feministas


são plurais e que é dessa forma que devem contrastar com os
estudos criminológicos. Além disso, ela é apenas uma das formas
de se compreender a realidade compartilhada das mulheres, mas
não é a única (PIMENTEL, 2008).

Tendo isso em vista, considerar as contribuições das perspectivas


feministas na construção de uma nova epistemologia criminológica
mostra-se uma estratégia para modificar as antigas concepções de
gênero, pois problematizam e evidenciam aspectos da dominação
masculina sob o qual construiu-se e reproduziu-se este saber na
esfera penal. Ao considerar as relações de gênero um importante
marcador social de análise, ao lado da classe e raça, a criminologia
feminista propõe uma revolução nas estruturas de poder, tirando
a mulher do silenciamento e da marginalidade, seja ela vítima ou
transgressora da lei.

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Acadêmico, Maringá, v. 16, n. 183, p. 14-25, ago. 2016. Disponível
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THIRY-CHERQUES, H. R. Pierre Bourdieu: a teoria na prática.


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arttext&pid=S0034-76122006000100003&lng=en&nrm=iso .
Acesso em: 06 jun. 2020.

264 |
Bourdieu e (o conceito de) literatura:
o capital cultural entre o cânone e o
ensino
Isabela Boaventura Pimenta Gomide
Wellington Furtado Ramos

Dentre as inúmeras contribuições de Pierre Bourdieu para os


estudos literários, destacam-se, sobremaneira, suas considerações
sobre a gênese do campo literário como campo intelectual, mediado
pelo poder simbólico tal qual se dá a conhecer a discussão, sobretudo,
em As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1996).
Nessa obra, o intelectual aponta a tese de que “Flaubert, Baudelaire
e Manet [...] ao negarem o modelo estabelecido [pelas regras dos
sistemas artísticos/estéticos de seu tempo], não conseguiram
libertar a arte do jogo interativo que a prática discursiva pressupõe”
(COUTINHO, 2003, p. 58).

O campo literário aloca-se em uma posição adjacente a outros


campos simbólicos, isto é, mesmo que apresente um espaço não
físico de combates de forças dentro de si próprio, sofre influências
diretas e indiretas do campo artístico e intelectual, quiçá de outros
campos simbólicos, dos quais o campo literário faz parte. Pensemos
em campo como um espaço, determinado e limitado por tópicos
em comum ou dispares, como “um espaço de relações objetivas”
(BOURDIEU, 1996, p. 207) onde se estabelecem diferentes lutas e
conflitos de interesses entre aqueles que participam desse campo
específico (entre as classes dominantes e dominadas) na busca
por poder.

Assim, passando em revisão sobre a proposição do sociólogo


e sua reverberação no âmbito dos estudos literários, no Brasil, é
possível notar uma predileção pela perspectiva que aponta, do ponto
de vista de uma Sociologia da Literatura, para as contribuições de

265 |
Pierre Bourdieu ao estudo da arte literária. Em um sentido contrário,
mas não contraditório, a discussão proposta neste capítulo visa
privilegiar a concepção de capital cultural para atravessar a reflexão
sobre a educação estética dos sujeitos, tendo como perspectiva a
Teoria Literária, ou seja, mirando da literatura para a sociologia, e
não o contrário como se costuma fazer.

Nesse sentido, é preciso destacar que o empreendimento se


limita a um esboço teórico, ancorado na discussão de Bourdieu
(1979) sobre o Capital Cultural como hipótese para dar conta da
desigualdade no desempenho escolar (BOURDIEU, 1999). Nessa
esteira de pensamento, conjectura-se em que medida tal contribuição
serve de amparo à Teoria Literária, com ênfase na sua interface com
o ensino de literatura, a fim de pensar essa educação literária como
uma educação estética.

Para tanto, e por privilegiar o crivo teórico, a discussão aqui


proposta se apresentará circunscrita à articulação da noção de
cânone literário, tal qual apresentada por Roberto Reis (1992) em
seu “Cânon”, às contribuições de Pierre Bourdieu presentes em “Os
três estados do capital cultural”36 (1979), O poder simbólico (1989)
e em As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário (1996).

Sendo a proposição bourdieusiana calcada em um olhar


sociológico, algumas premissas desta área de conhecimento
precisam ser evidenciadas e, em virtude do recorte aqui apresentado,
as premissas acerca da literatura também carecem de atenção. Assim
como a explanação dos conceitos bourdieusianos aqui utilizados.
Algumas destas ideias iniciais são amplamente conhecidas e
discutidas para diferentes leitores, no entanto, retomá-las fará com
que o vínculo, aparentemente frágil, entre o Letramento Literário e
o Capital Cultural seja devidamente evidenciado.

36 Texto presente nas páginas 71 a 79 do livro Escritos de Educação (CATANI, M. A.;


CATANI, A. 1999.).

266 |
Tratar do conceito de cultura é fundamental para o caminho que
se propõe trilhar neste capítulo. O termo cultura, segundo Raymond
Williams (1983), tem sua origem no verbo latino colere, cujo significado
englobava sentidos como habitar, cultivar, proteger e honrar com
veneração. No decorrer dos séculos e das transformações das
línguas, os sentidos se fragmentaram. Por exemplo, a semântica
de habitar gerou o vocábulo colônia, a de honrar com veneração o
termo culto. O sentido que nos interessa mais, o de cultivar, deu
origem ao substantivo cultura (WILLIAMS, 1983).

Vale ressaltar que nomenclaturas e definições acompanham as


transformações sociais, uma vez que são produtos desta mesma
sociedade. Assim, a cultura tem seus significados e apreensões
modificados através dos anos e sofre metaforizações.

Sendo assim, por ter origem em sociedades cujas práticas eram


vinculadas às lavouras, o sentido primário da palavra se referia
ao cuidado com o crescimento natural. De acordo com Raymond
Williams, no livro Keywords: A vocabulary of culture and society (1983,
p. 83, tradução nossa37), a palavra cultura “em todos os primeiros
usos, era um substantivo que se referia a um processo: o cuidado
com algo, basicamente com colheitas ou com animais”. No decorrer
do tempo, a palavra “cultura” assimilou a esse sentido primário
alguns processos do desenvolvimento humano acompanhando os
pensamentos iluministas do século XVIII.

Pensada com a transformação da sociedade devido à


Revolução Industrial, a ideia de cultura estendeu-se de processos
específicos como a cultura (o cultivo) de capacidades humanas
individuais a processos mais gerais, como o cultivo coletivo dessas
capacidades, o que geraria a ideia da cultura de um povo como “o
autodesenvolvimento histórico da humanidade” (WILLIAMS, 1983,
p. 89, tradução nossa38). Absorvendo, nesse momento, um forte

37 No original: “in all its early uses was a noun of process: the tending of something,
basically crops or animals”.
38-No original: “the historical self-development of humanity”.

267 |
ideário diferenciador de classes, o processo de clivagem da cultura
como bem pertencente a uma classe social cujo acesso era negado
a outras camadas sociais começa a se delinear aí, em termos da
modernidade. Ao integrar tal noção de posse, o termo adquire um dos
seus primeiros sentidos modernos que é o de “um novo movimento
social e intelectual” (WILLIAMS, 1983, p. 88, tradução nossa39).

De forma sucinta, o final da trajetória etimológica da palavra


cultura feita por Raymond Williams resulta em três categorias
amplas e ativas de uso: a primeira de desenvolvimento intelectual,
espiritual e estético, a segunda de um modo particular de vida, em
um sentido antropológico, e a terceira de independência e abstração
que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual (sendo
materiais e simbólicas). À argumentação traçada neste capítulo
interessa o primeiro uso e, principalmente, o terceiro.

Como se poderá notar, o primeiro e o terceiro usos do vocábulo


cultura vêm, principalmente, ao encontro da noção de literatura,
cuja aproximação, no seio de nossa argumentação, se dá pela
máxima de Ricardo Reis em “Cânon”: “O lugar da literatura é a
cultura” (REIS, 1992, p. 13). E o é, de fato, visto que a literatura
é um bem material concebido no seio das práticas e atividades
intelectuais. Consequentemente, esse bem de cultura apresenta suas
alterações e se adapta às necessidades de perceber o mundo e às
predeterminações oriundas do espaço social que a produz e modifica,
como se pode perceber por meio de sua acepção dicionarizada, tal
qual encontrada no Dicionário Houaiss (2020)40.

39 No original: “a new social and intellectual movement.”.


40 “literatura. substantivo feminino. 1 ensino das primeiras letras; 2 uso estético da
linguagem escrita; arte literária; 3 conjunto de obras literárias de reconhecido valor
estético, pertencentes a um país, época, gênero etc.; 4 conjunto das obras científicas,
filosóficas etc., sobre um determinado assunto, matéria ou questão; bibliografia;
5 ofício, trabalho do profissional de letras; 6 conjunto de escritores, poetas etc. que
atuam no mundo das letras, numa determinada sociedade; tertúlia; 7 disciplina
escolar composta de estudos literários; 8 boletim, folheto, conjunto de instruções
etc. que acompanham certos produtos, para orientar o cliente ou o comprador sobre
seu emprego; 9 pej. palavreado vazio, de caráter inautêntico, artificial ou superficial”.
(HOUAISS, 2020, s/p).

268 |
A conceituação de literatura encontra dificuldades ao tentar
estabelecer uma definição fechada. Por certo, no bojo da Teoria da
Literatura, a busca por compreender este bem de cultura viabiliza um
olhar às especificidades desta expressão artística e, assim, assegura a
possibilidade de identificar o caráter literário de produções artísticas:
a literariedade. Vale ressaltar que a dificuldade de encerrar uma
definição se dá, sobretudo, devido ao fato de esse caráter literário
(a literariedade) de uma obra ser definido por critérios socialmente
estabelecidos, o que faz(em) dele(s), portanto, não permanente(s),
mas mutável(is).

A esse respeito, por exemplo, Jonathan Culler (1999), em seu


capítulo “O que é literatura e tem ela importância?”, estabelece uma
comparação entre ervas e literatura. Segundo ele, uma erva daninha
é uma planta que, para o jardineiro ou lavrador, se faz maléfica ao
cultivo que se estabelece em seu jardim ou sua horta. Portanto,
não há uma “qualidade essencial” de “daninheza das ervas” que as
permita identificar, mas uma relação dialética do olhar do cultivador
em relação ao que é cultivado. Assim também o conceito de
literatura se espraia para além da segurança precária que a acepção
dicionarizada pode proporcionar. Nas palavras de Culler (1999,
p. 27-28, grifo nosso),

Encontramo-nos de volta à questão-chave, “O que é literatura?”,


que não irá embora. Mas que tipo de questão é essa? Se quem
está perguntando é uma criança de cinco anos de idade, é fácil.
“Literatura”, você responde, “são histórias, poemas e peças”. Mas
se o indagador é um teórico literário, é mais difícil saber como
enfrentar a indagação. Poderia ser uma questão sobre a natureza
geral desse objeto, literatura, que vocês dois já conhecem bem.
Que tipo de objeto ou atividade é? O que faz? A que propósitos
serve? Assim compreendida, “O que é literatura?” pede não uma
definição, mas uma análise, até mesmo uma discussão sobre por
que alguém poderia, afinal, se preocupar com a literatura.

269 |
Seguindo o rastro dessa ideia, o olhar para a literatura jamais
pode ser posto como alheio à sociedade e ao real. Mesmo que,
historicamente, a literatura tenha sido posta como um “território
desinteressado”, no qual a ficcionalização parecesse se distanciar
da materialidade do real, a aproximação ocorreu por meio do
caráter mimético/representacional da literatura. Outro traço
significativamente constante da literariedade é a língua, a qual
também tende a reafirmar a ligação da literatura com a realidade.
O vínculo da literatura com a língua perpassa a necessidade de
expressão dos sujeitos e, além, evidencia laivos de poder simbólico.

Segundo o Dicionário Houaiss (2020), a palavra poder tem origem


etimológica latina como verbo que tem entrada no dicionário latino
como: possum, potes, posse, potui. É assimilado a esse verbo o sentido
de “poder, ser capaz de” (HOUAISS, 2020). Com as transposições
culturais, assim como aconteceu com a palavra cultura previamente
discutido, o verbo possum adequou-se às necessidades comunicativas
do ambiente que ocupa.

Tais adequações exigiram que processos de metaplasmos, seja


por aglutinação ou apagamento, gerassem palavras como o adjetivo
potis que significa “senhor possuidor”. Nesse ponto a palavra já
havia sofrido os processos de metaforização, levando em conta
que, historicamente, só eram concedidos direitos de participação na
política e na vida pública se o sujeito tivesse um acúmulo razoável
de capital econômico e cultural, posto que só aqueles cuja posição
social e estudo eram reconhecidos podiam participar das decisões
sobre a comunidade.

As adaptações e adequações deste termo originam uma infinidade


de palavras que contêm significações de possibilidade e possuir. Nos
usos atuais, esses mesmos nichos de sentido definem o verbo poder
como: ter a faculdade ou a possibilidade de algo, seja moralmente,
por influência, autorização ou capacidade; e o substantivo poder
como: direito ou capacidade de decidir, agir e ter voz de mando;
autoridade, seja esse direito natural ou adquirido.

270 |
O vínculo entre possibilidade e posses, termos que também se
original do verbo latino possum, traçam o caminho para a compreensão
do uso do substantivo poder que tem maior relevância a este artigo.
Com efeito, poder é a capacidade de se conseguir algo, quer seja
por direito, controle ou influência. Reside em um esquife seguro de
não subjugação e exerce sobre as vontades alheia as próprias.

Ainda contando com a acepção dicionarizada, pelo dicionário


Houaiss (2020) o termo simbólico evoca significações construídas
por meio de abstrações e pré determinações coletivas, como o
símbolo, melhor dizendo, simbólico remete a dois principais sentidos:
o primeiro de “relativo a, que tem caráter de ou serve como símbolo
[...] que consiste em ou que opera por meio de símbolos; metafórico,
alegórico” (HOUAISS, 2020) e o segundo, por um crivo psicanalítico
lacaniano “campo de reencontro, estruturação e tomada de sentido
dos fenômenos como uma linguagem; um dos três registros
essenciais (juntamente com o real e o imaginário) do campo da
psicanálise” (HOUAISS, 2020).

À vista disto, a junção da porção imaginária da reestruturação da


psiquê humana, da capacidade de reproduzir de forma metafórica,
alegórica e simbólica as estruturas de possibilidade e posse,
domínio e controle recai em uma definição de que poder simbólico
é a capacidade, inerente ou não ao sujeito, de exercer domínio,
posse, controle ou influência por meio de alegorias, metaforizações
e símbolos. E, por este motivo, define a concepção social, uma ideia
de “verdade” única, que estabelece a ordem e os sentidos dentro do
campo de atuação, atingindo preceitos sobre o sentido do mundo
coletivo e, por isso, particular. Essa absorção ambivalente ocorre
devido ao fato de ao mesmo tempo que o sujeito influi no coletivo
o coletivo formata e influi na construção do sujeito.

Para o sociólogo francês, o poder simbólico “é um poder de


construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do
mundo social)” (BOURDIEU, 1989, p. 9). Dessa forma, o poder

271 |
simbólico, entendido como um controle invisível, como exposto
pela etimologia e significação das palavras que compõem o termo,
utiliza-se da instância formadora que a literatura ocupa para influir
na construção da realidade empírica. Valendo-se das palavras de
Bourdieu (1989, p. 11):

[...] cumprem a sua função política de instrumentos de imposição


ou legitimação da dominação, que contribuem para assegurar
a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)
dando reforço da sua própria força às relações de força que as
fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber,
para a ‘domesticação dos dominados’.

Conforme posto por Bourdieu acima, a dominação de uma classe


sobre a outra configura o que ele denomina de Violência simbólica
(BOURDIEU, 1989). Violência simbólica e poder simbólico são termos
comumente relacionados, uma vez que a violência é o resultado
direto das lutas de poder simbólico. Entende-se por lutas pelo poder
mecanismos ou agressões diretas que assegurem a manutenção
da posição de poder pelos dominadores e/ou possibilitem àqueles
dominados adquirir algum tipo de poder que não tinham.

Entendendo que, de forma arbitrária – e por isso violenta –


esse processo de “domesticação dos dominados” (WEBER apud
BOURDIEU, 1989, p. 11) acontece de diversas formas, em vias gerais,
do mesmo modo como ocorre no campo literário com a classificação
entre “alta e baixa” literatura, o apagamento de sujeitos nas obras
(principalmente minorias) ocorre a partir do domínio sobre e pela
língua.

É preciso evidenciar o fato de a nossa constituição enquanto


sujeitos estar mediada pela língua; ao passo que o indivíduo tem
consciência de si, ele se insere em uma ordem simbólica pré-
concebida que o constitui. Logo, a linguagem se põe não como
estatuto de verdade, mas como ferramenta de mediação da realidade
através da qual se acessam as percepções e sentimentos. A esse

272 |
respeito, cabe lembrar a proposição de Ferdinand de Saussure
(1995, p. 16) em seu Curso de Linguística Geral: “A linguagem tem
um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um
sem o outro”. Ou ainda, mais adiante, quando afirma que a língua é
“ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem
e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo
social, para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”
(SAUSSURE, 1995, p. 17).

Desse modo, esclarece-nos Edward Lopes (2007, p. 19, grifos do


autor) em Fundamentos da Linguística Contemporânea:

Tudo isso é outro modo de dizer que, além de modelizantes, porque


imprimem nos indivíduos de um mesmo grupo social o mesmo
modelo do mundo, uma mesma visão ideológica -, os sistemas
semióticos são também modelizáveis, quer dizer: eles se convêm
reciprocamente porque, afinal de contas, não fazem mais do que
simular as funções e propriedades do sistema modelizante primário
ao qual refletem, e que é constituído por uma língua natural.

Daí que se depreende a convergência da proposição de Roland


Barthes (2013) em seu Aula com a noção de poder simbólico da
língua tal qual lida em Bourdieu. Nas palavras de Barthes (2013,
p. 11-12, grifo do autor):

É, com efeito, de poder que se tratará aqui, indireta, mas


obstinadamente. A “inocência” moderna fala do poder como se ele
fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm;
acreditamos que poder fosse um objeto exemplarmente político;
acreditamos agora que é também um objeto ideológico, que ele se
insinua nos lugares onde não o ouvíamos de início, nas instituições,
nos ensinos, mas, em suma que ele é sempre uno. E, no entanto,
se o poder fosse plural, como os demônios? “Meu nome é Legião”,
poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos,
maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por
toda parte, vozes “autorizadas”, que se autorizam a fazer ouvir o
discurso de todo poder: o discurso da arrogância. Adivinhamos

273 |
então que o poder está nos mais finos mecanismos do intercâmbio
social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda
nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos,
nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas,
e até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo:
chamo de discurso de poder todo discurso que engendra o erro
e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns
esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento
contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é
contra os poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço
social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico;
expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam
uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-
germinar no novo estado de coisas. A razão dessa resistência e
dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo
trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à
sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o
poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou, para
ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.

Esse poder da língua, de construir e modalizar os sujeitos está,


similarmente, presente na literatura. Mas, ainda na esteira de Barthes
(2013 , p. 12), se “a linguagem é uma legislação, a língua é seu código.
Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que
toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva”.
Entretanto, “a língua não se esgota na mensagem que engendra”
(p. 14) e se pudéssemos “[chamar] de liberdade não só a potência
de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a [potência] de
não submeter ninguém, [então,] não pode haver liberdade senão fora
da linguagem” (p. 16). Como “a linguagem humana é sem exterior:
é um lugar fechado [só nos] resta, por assim dizer, trapacear com a
língua, trapacear a língua” (p. 16).

Assim, como um sistema modelizante secundário, que traz à lume


a potência de consciência de seu poder simbólico, a literatura desliza
o poder da língua. Barthes (2013, p. 16-17, grifo do autor) conclui
parcialmente seu raciocínio com a máxima:

274 |
Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que
permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução
permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura [...]
porque o texto é o próprio aflorar da língua e porque é no interior
da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela
mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras
de que ela é o teatro.

A literatura distingue-se, desse modo, pela forma incomum de


expressão. A distinção entre uma comunicação não literária e a
literária dá-se pela forma como esta última expressa o que deseja
expressar. No âmbito da comunicação literária, o “como” se expressa
é tão ou mais importante do que o “que” se diz. Isto é, o cuidado com a
forma auxilia, de modo significativo, a compreensão do pensamento
exteriorizado por ela. A capacidade interpretativa dessa qualidade
intrínseca da literatura acaba sendo o primeiro sinal do abismo
causado pelo que Pierre Bourdieu entende como capital cultural,
como será exposto logo a seguir.

Segundo Roberto Reis (1992, p. 3):

Todo saber é produzido a partir de determinadas condições


históricas e ideológicas que constituem o solo do qual esse saber
emerge. Toda interpretação é feita a partir de uma dada posição
social, de classe, institucional. É muito difícil que um saber esteja
desvinculado do poder. Com isso deduzimos que os textos não
podem ser dissociados de uma certa configuração ideológica, na
proporção em que o que é dito depende de quem fala no texto e de
sua inscrição social e histórica.

Isto posto, entende-se que a língua, além de perpetuar estruturas


de poder, veicula – mesmo que de forma inconsciente – pareceres e
juízos enraizados nas estruturas de poder social. Devido ao fato de
ela (a língua) ocupar um lugar central na noção de literatura, essa
também difunde tais ideologias, ainda que seja encarada como a
“trapaça salutar” a que se referia Roland Barthes.

275 |
Entendido o conceito de Cultura e de Literatura, norteadores da
discussão proposta, percorrer-se-á a compreensão do que é o capital
cultural. Inicialmente, a noção capital precisa ser abordada, mesmo
que en passant. Devido ao lugar do termo no campo da economia,
em especial na sua origem como abreviação de “‘capital stock’ – uma
participação material ou fundo monetário” (WILLIAMS, 1976, p. 51,
tradução nossa41), a palavra capital engloba diversas significações
relacionadas a investimentos – todo bem econômico aplicável à
produção – e patrimônios – bens disponíveis ou riquezas.

Outorga-se, ao combinar aos termos capital e cultura proveniente


das referências e explicações postas anteriormente, que a teoria
proposta por Bourdieu, em 1999, é fundamentada na concepção
econômica de investimento e posses dos bens oriundos de uma
prática intelectual ou da própria formação intelectual, espiritual
e estética de sujeitos – de cultura. Situado nesse crivo, todas as
especificidades envolvidas nas relações socioeconômicas projetam-
se para os níveis de cultura e suas nuances.

À vista disso, um adendo sobre a relação entre poderio financeiro


e a posse de capital cultural é preciso, mesmo consciente, que as
colocações feitas não dão conta de toda a complexidade deste vínculo.
Tal relação se dá devido ao fato de sujeitos, cujas necessidades
são supridas sem que estes tenham de vender seu tempo para
sobreviver, poderem dispor de mais tempo para desenvolver-se
intelectualmente e/ou produzir bens de cultura. Da mesma forma,
por terem capital monetário acumulado, têm maior acesso aos bens
culturais e, inegavelmente, mais sucesso acadêmico e facilidade na
conservação ou transmissão da herança de cultura. Esta relação é
proposta no texto “Os três estados do capital cultural” (BOURDIEU,
1999) quando o sociólogo francês sugere que os conhecimentos
necessários para o “sucesso” escolar são adquiridos como um bem
material.

41 No original: “‘capital stock’ – a material holding or monetary fund”.

276 |
Ademais, as condições para dar conta de algo próprio à construção
dos sujeitos são delineadas pelos esboços das condições materiais
e não pelas habilidades e capacidades inatas dos sujeitos. Esvai-se,
assim, um crivo determinista da cultura – como desenvolvimento
intelectual, espiritual e estético – e assume-se uma construção
sócio-histórica compreendendo as implicações que circundam o
acesso ao capital cultural, por meio dos seus estados, e se explicita
a deliberação com a qual as propriedades materiais definem o
“sucesso” no espaço escolar.

Portanto, esse capital cujo cerne é a constituição dos sujeitos


pode manifestar-se de três formas: em um estado incorporado, em
um estado institucionalizado e em um estado objetivado (BOURDIEU,
1999).

Em seu estado incorporado, o capital cultural é assimilado. Melhor


dizendo, os conhecimentos são incorporados por sujeitos e ocupam
e subsistem na materialidade de seu portador, dentro dos seus
limites e potencialidades, sendo parte integrante dele. No estado
institucionalizado, o reconhecimento institucional presentifica o
capital cultural por meio de certidão de competência cultural e
ignora, de forma internalizada e quiçá intencional, as diferentes
possibilidades da assimilação do capital incorporado e de acesso
ao capital objetivado. Por fim, em seu estado objetivado, o capital
cultural é materializado e composto por produções artísticas. Ele
existe como capital ativo, completamente alheio ao sujeito – mesmo
que produzido por ele – atuando de forma mais palpável que os
demais.

Tendo isso em mente, podem-se relacionar os estados do


capital cultural à prerrogativa literária porque alguns dos requisitos
essenciais para se ler e compreender literatura são permeados pela
posse destes manifestos economicamente culturais. A leitura, por
exemplo, é condicionada aos estados incorporado e objetivado já que,
para se ler “bem” a linguagem literária, depende-se da assimilação

277 |
de conceitos alheios pela disposição de tempo e por meio de outras
produções intelectuais materializadas (para além do processo de
aquisição da faculdade da linguagem e do desenvolvimento da
competência de ler e escrever), o que nos encaminha para a relação
crucial à consciência de que o sentido do texto está fora dele (ou,
melhor dizendo, se faz na relação dialética que o ato de leitura
materializa).

Ainda cuidando do processo de leitura, a literatura é circunscrita


em um plano exterior a ela, necessitando do leitor e da leitura para
que exista de forma completa. Melhor dizendo, nenhuma obra se
faz antes do leitor. Todo leitor é um acumulado de pré-noções, é
munido de saberes e atravessado pela sua cultura. Pensando assim,
a ideia de habitus – também na perspectiva sociológica – ocupa
espaços no que se diz de leitura. Pensemos em habitus como uma
subjetividade socialmente construída, como o resultado dialético
entre a sociedade, que precede o indivíduo, e a prática deste indivíduo
que altera a sociedade. Não é esse o atravessamento da leitura e
do leitor sobre a literatura?

Lançado um olhar aos estados do capital cultural, pode-se deduzir


que a arte – a literatura, a música, a pintura – a língua e a religião
são instrumentos de conhecimento e de construção do mundo,
denominados de sistemas simbólicos por Bourdieu (1989). Para esse
sociólogo, ao pensar em poder simbólico, os sistemas simbólicos
são postos como “aspecto ativo” do conhecimento, os quais, dentro
da teia social, têm a capacidade de alterar, questionar ou reafirmar
ideologias. Note-se que ideologias, neste caso, são entendidas como
uma força com a qual se coabita inconscientemente, cujo poder
alienante e de controle é reproduzido e replicado por esses bens
culturais.

De acordo com Bourdieu (1989, p. 10):

278 |
A cultura dominante contribui para a integração real da classe
dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos
os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para
a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à
desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para
a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento
das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.

O efeito ideológico é espalhado com a finalidade de legitimar


as estruturas de poder e domínio de uma classe sobre a outra. E,
ao controlar os sistemas simbólicos, controla-se os sujeitos, pois
esses sistemas os constroem culturalmente. Pessoas submetidas
aos ideários do capital, além de não se perceberem apagadas e
subjugadas dentro dele, tendem a reproduzir e a sentir-se culpadas
por não serem parte da cultura dominante. As ideologias são postas
como produto coletivo ou coletivamente apropriado e servem aos
interesses particulares que tendem a ser apresentados como
interesses universais.

Sendo assim, os sistemas simbólicos só podem exercer um poder


estruturante, de manutenção das estruturas, por serem estruturados
pelo mesmo sistema que os produz, mantém e distribui (tal como
ficou explicitado, no início do capítulo, acerca da lógica da língua).

Essa relação dialética entre a literatura e o sujeito leitor reafirma


a prerrogativa de que o campo artístico e, subsequentemente, o
campo literário são capazes de, ao mesmo tempo, reproduzir as
estruturas, fomentar questionamentos e munir, de capital cultural,
os sujeitos para as lutas que acontecem nestes campos. Então,
esse processo de construção e organização dos sujeitos é inerente
à literatura, ferramenta para a formação dos sujeitos que podem ser
usadas para manutenção ou rompimento das estruturas de poder.

Isso posto, deve-se voltar o pensamento a esta classe dominante


e ao poder que ela exerce nas produções simbólicas no âmbito
de cultura, assim como entrever a violência com que esse poder
simbólico (BOURDIEU, 1989) se instaura nessas relações.

279 |
Primeiramente, há que se questionar a forma com que essa
classe dominante consegue poder e interferência sobre os sistemas
simbólicos. Retomando uma proposição já feita, de acordo com a
noção de cultura do século XVIII, os sujeitos de uma determinada
classe social entendiam como cultura as normas, comportamentos
e produções compartilhadas entre grupos seletos, garantindo, assim,
seu status acima dos demais. Então, historicamente, essa classe
herda esse status da mesma forma como herda o capital financeiro
e as propriedades. Para além do óbvio, o poderio financeiro o qual
lhes permite comprar, vender e distribuir os bens de cultura que lhes
interessa também lhes possibilita tempo para consumir e atribuir
valor às produções culturais. O valor atribuído e a legitimação dele
reiteram o poder dessa classe sobre as demais.

Em segundo lugar, à arte é atribuído– pelo sistema do capital que


reifica todas as coisas a seu alcance – um valor mercadológico e, por
assim o ser, essas classes cujo poderio econômico é extremamente
alto podem adquiri-la, modificá-la e censurá-la. Conscientes do poder
formador e alienante dos bens de cultura – porque as produções
artísticas e culturais são capazes de fazer com que o ser humano
se perceba enquanto ser humano –, essas classes têm interesse
em manejá-las a seu bel prazer. Com efeito, quando uma produção
intelectual é produzida fora do âmbito de domínio dos detentores
do capital, esses buscam assimilá-la o mais rápido possível, torná-
la “sua” para que seu domínio não se perca.

Em terceiro lugar, interessa a essas classes dominantes


controladoras de bens de cultura que as demais classes, componentes
da maior parte da população, estejam alienadas e não participem
ativamente de processos históricos e tomadas de decisão. E é
nesse ponto que o poder e a violência simbólica, conceitos de Pierre
Bourdieu (1989), florescem. A premissa de poder parece espalhar-
se em todas as esferas sociais, não somente nos espaços em que
a reconhecemos de imediato. Segundo Barthes (2013 , p. 11-12):

280 |
Adivinhamos, então que o poder está presente nos mais finos
mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas
classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes,
nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas
relações familiares e privadas, [...] chamo discurso de poder todo
discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade
daquele que o recebe.

Isto posto, a ideia de discurso de poder e, por conseguinte, a


violência que ele presume são enraizadas no consciente coletivo,
alienando os sujeitos subjugados por ele.

Para melhor compreender essa questão, a percepção de Indústria


Cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1944) é muito pertinente, pois
sugere que a produção de bens de cultura específicos, em larga
escala, facilita a veiculação de ideologias ou melhor, usa-se os
momentos de lazer das classes dominadas – momentos estes
que deveriam ser usados para potencializar as capacidades destes
sujeitos e os permitir decodificar a realidade – para distanciá-las
do pensamento crítico. Esse distanciamento assegura o efeito
ideológico proveniente do poder simbólico.

Podemos pensar, por exemplo, na indústria de best-sellers da


literatura contemporânea, fomentada por uma indústria editorial
multimilionária, que propaga livros cujas preocupações passam
longe da materialidade e dos problemas sociais e históricos e se
voltam à busca de um parceiro ideal ou simplesmente reproduzem a
exclusão de determinados grupos sociais. Esse processo alienante/
excludente reforça o poder e assegura o silenciamento/apagamento
dos que sofrem violência simbólica.

Levando em consideração as ideias expostas até este momento,


é inegável que o poder simbólico se enraíza, inclusive, na consciência
do que é literatura – boa ou ruim, legitimada ou obliterada – e o
método de se ensiná-la. É importante ter em mente esse horizonte
ao tratar das questões literárias, principalmente ao tratar do cânone

281 |
literário porque sua definição e formação atravessam os estados
do capital cultural.

A ideia de cânone literário tem origem no termo cânon que


“deriva da palavra grega ‘kanon’ que designava uma espécie de
vara com funções de instrumento de medida; mais tarde o seu
significado evoluiu para o de padrão ou modelo a aplicar como
norma” (E-dicionário de termos literários, 2020). Aplicado à literatura,
esses moldes, modelos e normas são postos em um conjunto de
obras sacralizadas. Segundo Roberto Reis (1992, p. 4):

[...] o conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão)


e, assim, não pode se desvincular da questão do poder: obviamente,
os que selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para
fazê-lo e o farão de acordo com os seus interesses (isto é: de sua
classe, de sua cultura, etc.) [...] Nas artes em geral e na literatura, que
nos interessa mais de perto, cânon significa um perene e exemplar
conjunto de obras – os clássicos, as obras-primas dos grandes
mestres –, um patrimônio da humanidade (e hoje, percebemos com
mais clareza, esta “humanidade” é muito fechada e restrita) a ser
preservado para as futuras gerações, cujo valor é indisputável.

Devido a essa colocação, pode-se dizer que o cânone literário vai


ao encontro de premissa de capital cultural em seus estados. No
estado objetivado, a ideia de um conjunto de obras (bens de cultura
em sua forma material) adquiridos por meio de capital econômico
ou da posse de instrumentos por meio do estado incorporado
permitem absorver as características destes bens materiais. Isso
ocorre, principalmente, no estado institucionalizado, posto que
esse apanhado de obras – por servirem de molde – certificam ou
deslegitimam os textos literários.

Seguindo essa linha de raciocínio, os laivos de poder permeiam


a noção de cânone na literatura e presumem que nelas existe um
valor inato e inerente à obra, um status de “alta literatura” que veicula
o poder simbólico. Diante disso, entende-se que “[o] problema não

282 |
reside no elenco de textos canônicos, mas na própria canonização”
(REIS, 1992, p. 6), posto que não se leva em conta os elementos
externos que transpõem o cânone literário. O julgamento da alta
cultura, ou baixa cultura, também reside nesse espaço, sendo elas
determinadas pela mesma classe dominante.

Outra discussão importante é a distinção entre cânone e clássico,


os quais normalmente são colocados em um mesmo balaio embora
não sejam sinônimos. O que assegura a noção de clássico é o tempo,
pois “um clássico é uma obra de gerações” (E-dicionário de termos
literários, 2020). Normalmente, os clássicos fazem parte do cânone,
mas o cânone engloba somente obras cujo status é reconhecido
pelo sistema literário e enquanto clássico

[...] tanto pode ser [considerado] uma obra antiga que persistiu
pela sua excelência como uma obra ou autor que se destaca como
referência fundamental na sua própria época, o que é reconhecido
pela maior parte da crítica segundo critérios objetivos. (E-dicionário
de termos literários, 2020).

O sistema literário é, nessa discussão, uma parte da chave-


interpretativa que será proposta. Sistema Literário é um conceito,
criado por Antonio Candido (1997), o qual entende que a tradição se
dá por meio da tríade: autor-obra-público. O sistema literário inexiste
fora das relações concebidas para operarem nele, ou, melhor dizendo,
a obra literária não seria produzida sem o autor e o autor não o seria
sem uma produção e ambos – autor e obra – não comporiam um
sistema se não houvesse quem o lesse.

Entendendo que todos os bens de cultura são parte de


uma concepção mercadológica (reservada a um aspecto da
pluridimensionalidade da sociedade, mas privilegiada nos termos da
sociedade do capital), a intenção de quem produz (usualmente) seria
vender seus produtos, isto é, impossível que textos literários circulem
sem um mercado sociocultural – de críticos literários, editores,
professores, outros escritores etc. – o que nos leva a entender que são

283 |
os leitores que legitimam a obra enquanto tal. Consequentemente,
o sistema literário é um processo de manutenção e renovação, de
forma cíclica e dialética, certamente bastante complexo por incluir
em si microssistemas simultâneos que gozam de diferentes tipos
de prestígio cultural (econômico, simbólico) e podem se sobrepor
ou se distanciar em um macro sistema dinâmico.

Tendo esse processo em vista, a noção de um sistema literário


pode ser entendida dentro do capital cultural. Em outras palavras,
fundamentada na concepção econômica de investimento e posse dos
bens de cultura, a ideia de sistema literário escusa alguns princípios
de dominação de uma classe sobre outra, pois depende da recepção
para que se concretize. Isso posto, diversos exemplos podem ser
arrolados nessa lógica: como uma “etiqueta institucional”, o conceito
de literatura envolve a diferenciação entre leitores especializados
e leigos, comércio especializado e massificado, preferências em
estudos acadêmicos que privilegiam textos e autores já estabelecidos
ou, pelo contrário, reavivam nomes marginalizados ou iluminam
ilustres desconhecidos. Nessa “bolsa de valores do sistema literário”,
livros que estão fora desse sistema são apagados, pois não constam
na linha temporal canônica. Esse apagamento funciona como meio
de manutenção do poderio da classe dominadora sobre as classes
dominadas, já que estas possuem meios de divulgação e fomento
para que obras – que lhes interessem – sejam mais distribuídas.

Pensando nisso, a prerrogativa de incorporação da dita “baixa


literatura”, obliterada da historiografia literária, à “alta literatura”,
que ocorre com as renovações do sistema literário, ocupa lugar
análogo à incorporação cultural feita pelas classes dominadoras.
Por exemplo, textos considerados como manifestações literárias
na concepção de Candido foram assimilados pelo sistema literário
ao serem relidos por autores na atualidade e, assim, legitimados
como literatura.

Tendo em mente que toda estrutura de pensamento é como um


par de óculos que permite que vejamos algumas coisas e bloqueia a

284 |
visão de outras, as informações dadas até o momento nos permitem
enxergar com nitidez os motivos de a educação da e para a literatura
encontrar entraves nos ambientes escolares. Isso é semelhante à
proposta de Pierre Bourdieu, ao entender que as discrepâncias do
sucesso escolar cabiam a uma estrutura maior que a de habilidades
e capacidades dos sujeitos individuais.

Posto que “[a] leitura do mundo antecede a leitura da palavra”


(FREIRE, 1989, p. 9), entender o que é o capital cultural bem como
as estruturas sociais que o cercam pode servir de lente para
enxergarmos a educação para ler literatura.

Historicamente, o acesso à literatura por meio da escrita e


oralidade – como estados do capital cultural – era um privilégio
só da classe detentora de capital financeiro. Muitos sujeitos não
eram alfabetizados e não tinham acesso a livros. No decorrer dos
anos, com projetos sociais e governamentais, com a globalização
de alguns acessos, com o barateamento dos custos dos livros e o
projeto educacional parcialmente fortificado, muitos sujeitos tiveram
acesso à literatura.

Mas basta acessá-la? Acesso não mediado da literatura não serve


para nada. A capacidade de se ler, simplesmente decodificar as letras
postas no papel, tem crescido no país paulatinamente. No entanto, o
analfabetismo funcional tem tido um crescimento significativo com
leitores incapazes de compreender ou fazer inferências acerca do
que leram. Ler é um processo sistemático e exige uma assimilação
de capital incorporado além de precisar de instrução, de informação.
Assim, simplesmente entregar um livro para alguém ler, assumindo
que essa habilidade vem de forma inata – como se pensava em
habilidades no ambiente escolar – não tem fundamento. É preciso,
para se ler literatura, que se passe pelo letramento literário e que,
com mediação, alcance gradativamente a capacidade de se ler até
os mais complexos textos literários.

285 |
Tal formação para se ler literatura deve respeitar as especificidades
dos sujeitos e compreender que alguns aprendizes, por vezes,
carecem de mais atenção e direcionamento do que outros. Mas
todos, independente dos capitais culturais adquiridos, não atingirão
competências leitoras sem mediação. Cabe, assim, ao mediador
levar e desenvolver um rompimento das estruturas.

Barthes propõe, no texto Aula (2013), que trapaceemos as


estruturas de poder. Assim, retomamos a sua proposição já sinalizada
anteriormente: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro
magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de
uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim:
literatura” (BARTHES, 2013). O autor propõe que trapaceemos as
prerrogativas de que a literatura, não só como esquiva da violência
simbólica, mas também como equipamento para cultura – nesse
caso, a cultura enquanto formação – está presente de aspectos
intelectuais e afetivos. A literatura e a educação literária como
educação estética são capazes de reorganizar nossa realidade e
alterar a forma como vemos o mundo, de forma positiva ou negativa.

Portanto, a discussão posta neste capítulo concerne o enfoque


à literatura e à educação literária como “sistema simbólico”, visto
que ela funciona como meio de conhecimento, comunicação e
formação cultural dos sujeitos. Nossa visada é feita com ar de grave
preocupação, pois forças e contingências externas a ela influenciam
a literatura mais do que por ela são influenciadas (aparentemente,
considerando a perda de centralidade cultural que a literatura passa
especialmente na aurora do séc. XX). A importância do texto literário
e da capacidade trapaceira que só a linguagem literária proporciona
é de grande valor. Por vezes, olhar para dentro do texto nos salva.

É preciso evidenciar que as influências ocorrem obviamente,


mas, aqui, valendo-nos das palavras de Ricardo Reis (1992, p. 14):
“não pretende decretar que todo texto literário, subjugado por um
factum, sucumba invariavelmente nas garras tenazes do poder.”.

286 |
Consciente de que a arte é um bem de cultura e nela é o lugar da
literatura talvez pudéssemos olhar para questões de valor literário,
como foi posto ao discutir o cânone, ou mesmo para o ensino de
literatura de novas formas, Roberto Reis (1992, p. 13) afirma: “sempre
há algo fora do texto à espera da nossa indagação”. Mesmo que seja
imprescindível o olhar para dentro do texto, a proposta aqui feita é
de que talvez haja espaço para se olhar aquém/além dele, por meio
dele, através dele. Afinal, se a literatura é parte da cultura (e ela é –
o condicional, aqui, é retórico), por que não ajustar nossos óculos
com lentes sociológicas? Ou melhor, com lentes bourdieusianas?

| Referências
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Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.

BARTHES, R. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia


literária do Colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de
1977. Tradução Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Cultrix, 2013.

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Magali de Castro. In: CATANI, M. A.; CATANI, A. (org.). 2. ed.
Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 71-79.

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literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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COUTINHO, F. M. A. Pierre Bourdieu e a gênese do campo literário.


Revista de Letras, n. 25, v. 1/2, p. 53-59, jan./dez. 2003.

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J. Teoria literária: uma introdução. Tradução Sandra Guardini
Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999. p. 26-47.

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Dicionário Houaiss Eletrônico. Versão. 1.0. CD-ROM. Rio de
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Janeiro: Editora Objetiva, 2009. Disponível em: https://houaiss.
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Acesso em: 19 set. 2020.

HOUAISS. sf. “Simbólico”. In: HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S.


Dicionário Houaiss Eletrônico. Versão. 1.0. CD-ROM. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2009. Disponível em: https://houaiss.
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Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix,
1995.

WILLIAMS, R. Keywords: A vocabulary of culture and society


(Revised edition). New York: Oxford University Press, 1983.

289 |
Poder judiciário e o ensino religioso
nas escolas públicas: a face da
laicidade à brasileira aplicada à
educação básica via ADI nº 4439
Luiz Carlos de Souza Junior

1. Linhas introdutórias: história e


legislação pertinente
Desde o século XIX, quando houve verdadeira “transição das
liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas”
(SARLET, 2012, p. 33) – e, especialmente, por meio das Constituições
do segundo pós-guerra, os direitos fundamentais conferiram aos
indivíduos o acesso a prestações sociais estatais, como a educação,
além de outorgar ao Estado a realização da justiça social. A educação,
a partir disso, passou a ser alocada na categoria de direito social
fundamental.

Dessa forma, fixaram-se, no início do século XX, os direitos sociais,


culturais, econômicos e coletivos. Com base nesta fase, exige-se uma
prestação material do Estado, por isso, passou-se por um período
de juridicidade questionada, de crise de observância e execução das
normas, até a formulação dos preceitos de aplicabilidade imediata
dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2015).

Neste viés, a educação na Constituição Brasileira em vigor é tratada


como um direito social, conforme o artigo 6º. No corpo permanente
do referido Diploma encontra-se, especificamente no artigo 20542,

42 Os dispositivos constitucionais a respeito do tema educação se encontram no


Título VIII (Da Ordem Social) Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto)
Seção I (Da Educação, arts. 205 até 214). Por uma questão de objetividade didática
e foco de análise, cabe neste estudo, por óbvio, a abordagem de dispositivos ou
princípios que mais se avizinham ao tema proposto.

290 |
três objetivos básicos, sendo eles o pleno desenvolvimento da
pessoa; o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação
da pessoa para o trabalho. É possível perceber, portanto, o caráter
valorativo antropológico-cultural, político e profissional que reside
nestes objetivos.

Por óbvio, a concretização dos objetivos supramencionados


ocorrerá por força da implementação de um sistema educacional
baseado em valores democráticos, tendo a educação formal, através
do ensino ministrado nas escolas, amparo e solidificação a partir do
texto da Constituição, quando esta prevê a universalidade, igualdade,
liberdade, pluralismo, gratuidade do ensino público, valorização dos
profissionais de educação escolar, gestão democrática da escola e
padrão de qualidade.

Ainda a partir da esfera constitucional, o artigo 210 estabelece


que serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental,
de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos
valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. O parágrafo
primeiro do referido diploma estabelece que o ensino religioso, de
matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais
das escolas públicas de ensino fundamental.

Em respeito ao Princípio da Supremacia da Constituição, a Lei nº


9.394, de 20 de dezembro de 1996, a qual estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional (LDB), faz menção expressa ao ensino
religioso em três dispositivos: no caput do artigo 33 e em seus
parágrafos 2º e 3º. Todos com redação dada pela Lei nº 9.475, de
22 de setembro de 1997.

Inicialmente, após praticamente replicar a Constituição Federal


sobre a matrícula facultativa a respeito da disciplina, o artigo 33 da
LDB expõe que o ensino religioso é parte integrante da formação
básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das
escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à

291 |
diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas
de proselitismo.

Em continuidade de previsão, o parágrafo primeiro prevê que


os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a
definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as
normas para a habilitação e admissão dos professores. O segundo
parágrafo determina que os sistemas de ensino ouvirão entidade
civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a
definição dos conteúdos do ensino religioso.

Além dos diplomas legais apresentados, é mister citar, em caráter


geral, o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e
a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil
(Decreto nº 7.107/2010), firmado em 13 de novembro de 2008, e
promulgado pelo Brasil em 11 de fevereiro de 201043, pois na Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 4439 (ADI nº 4439), o artigo 11,
§ 1º é alvo de análise dos ministros do Supremo Tribunal Federal,
no que tange à declaração de constitucionalidade do dispositivo.

Expressamente em seu artigo 11, há a previsão de que a República


Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa,
da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeite
a importância do ensino religioso em vista da formação integral da
pessoa. Em seguida, no §1º prevê que o ensino religioso, católico e
de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa
do Brasil, em conformidade com a Constituição e outras leis vigentes,
sem qualquer forma de discriminação.

43 Referido Acordo foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
Legislativo nº 698, de 7 de outubro de 2009 e entrou em vigor internacional em 10
de dezembro de 2009.

292 |
2. Estado laico, educação e identidade
religiosa brasileira
Com o desenvolvimento da ciência, da técnica e do racionalismo
nas sociedades modernas e na história ocidental, a visão a respeito
da religião nas sociedades tradicionais da Idade Média, sob
diversos aspectos, foi abalada pelo processo de secularização44,
fenômeno histórico-social intimamente conectado com o avanço
da modernidade.

A secularização, por este prisma, tem como característica o


próprio declínio da religião, a qual perde sua força e autoridade
sobre a vida privada nas sociedades modernas secularizadas, nas
quais preceitos da tradição religiosa cristã deixam de ocupar as
bases da organização social, sendo enfraquecidos o domínio das
instituições e os símbolos religiosos (BERGER, 2003).

No século XVIII, em decorrência de tais processos, com a


constituição dos Estados modernos, institucionalizou-se o conceito
de laicidade. Esta expressão, no campo de pesquisa aqui delineado, se
materializa através da dimensão institucional responsável pela tutela
da liberdade e igualdade frente a todas as formas de pensamento
ou crenças, exceto, evidentemente, as formas fundamentalistas de
cunho discriminatório.

44 Marramao assevera que os termos séculariser (1586) e sécularization (1567)


utilizados à época, eram verdadeiros neologismos relacionados ao tormentoso e
vagaroso processo de afirmação de uma jurisdição secular – ou seja: laica, estatal
- sobre amplos setores da vida social até então sob o controle da Igreja Católica
(MARRAMAO, 1994).

293 |
Inerente ao termo laicidade45 devem coexistir, na esteira de
pensamento de Ugarte, quatro normas de cunho institucional:
a neutralidade negativa, a neutralidade positiva, a liberdade de
apostasia e a neutralidade das leis civis (UGARTE, 2013).

Em síntese, a neutralidade negativa diz respeito à efetivação


da intervenção estatal como garantidor da liberdade de expressão
religiosa e da livre convicção individual ou coletiva, assim, tutelando
o direito à liberdade de crença e manifestação de fé, tanto nos
espaços públicos (direito de reunião insculpido no artigo 5º, XVI,
CF/88) quanto no âmbito dos templos de qualquer culto. Na seara
constitucional pátria hodierna é tutelada a inviolabilidade de
consciência e de crença, sendo que é assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, de acordo com os ditames legais, a
proteção aos locais de culto e às suas liturgias (artigo 5º, VI, CF/88).

Noutro giro, a neutralidade positiva é caracterizada por uma


concepção isonômica e, porque não dizer, republicana de Estado
laico diante das tradições religiosas. Estado este que se encontra
impossibilitado, por força da própria lei, de estabelecer cultos religiosos
ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou
manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvando-se a colaboração de interesse público46.

45 É necessário não empregar as expressões laicidade e laicismo como sinônimos,


pois não o são. O laicismo é identificado mais como um movimento ideológico de
setores da sociedade e do Estado que excluem a influência e o poder da religião em
assuntos considerados externos aos das instituições religiosas (economia, política
etc.). Cifuentes (1989, p. 157-158) corrobora que “existe, portanto, entre Igreja e
Estado, entre religião e política, uma separação lícita e necessária – a laicidade –
e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo. [...] A laicidade é uma
prerrogativa consubstancial à ordem autonômica do Estado e o laicismo supõe a
ruptura arbitrária e artificial do elo essencial que une toda a atividade com a ordem
teonômica” .
46 Neste sentido, a própria Lei Magna de 1988 positivou tal entendimento em seu
artigo 19, inciso I, consagrando o denominado Princípio da Laicidade do Estado.

294 |
A terceira norma está relacionada com a liberdade de apostasia,
que define e impõe a igual dignidade jurídica do ateísmo, visto como
expressão de confiança no pensamento livre e racional, baseando-
se na descrença ou negação da realidade transcendental47.

Por fim, a norma relativa à neutralidade das leis civis é entendida


como aquela que prevê o distanciamento necessário entre a ordem
jurídica impregnada de valores democráticos e os códigos morais
religiosos nos quais estão prescritas suas posições em relação às
regras de comportamento humano.

Dessa forma, evidencia-se que é justamente

[...] o caráter laico do Estado, que lhe permite separar-se e distinguir-


se das religiões, oferece à esfera pública e à ordem social a
possibilidade de convivência da diversidade e da pluralidade
humana. Permite, também, a cada um dos seus, individualmente,
a perspectiva da escolha de ser ou não crente, de associar-se ou
não a uma ou outra instituição religiosa. E, decidindo por crer, ou
tendo o apelo para tal, é a laicidade do Estado que garante, a cada
um, a própria possibilidade da liberdade de escolher em que e como
crer, enquanto é plenamente cidadão, em busca e no esforço de
construção da igualdade. (FISCHMANN, 2012, p. 16).

É evidente que a história do Brasil e da própria educação no


país, a partir da invasão portuguesa, é indissociável ao cristianismo
católico. No período colonial, por exemplo, destaca-se a ação jesuíta
na criação de escolas (“escolas de ler e escrever”) e no ensino
sistematizado (LEITE, 1937, p. 45).

Houve reformas educacionais no Brasil na metade século do XVIII


mesmo com a expulsão dos jesuítas. Em 1759, o ensino permaneceu
47 Deve-se ressaltar que o fato de ateus, agnósticos e céticos não seguirem uma
tradição religiosa, não acreditarem, duvidarem ou terem percepção diversa a respeito
da existência de um Ser Transcendente não se relaciona com a falta de virtudes e
valores centrados no ser humano e que são baseadas na realização de projetos que
promovem a vida, a dignidade de todos os seres, a justiça e a paz.

295 |
enciclopédico, os que lecionavam eram, majoritariamente, os mesmos
docentes das escolas jesuítas e o modelo pedagógico ainda era
norteado por métodos disciplinares e autoritários (RIBEIRO, 1993).

Mesmo num cenário potencialmente influenciado pelos ideais da


Revolução Francesa e inspirados pelo federalismo norte-americano
havendo os conservadores, ainda alinhados com o ideário do
absolutismo monárquico (REIMER, 2013), em análise à Constituição
Imperial de 182448, observa-se que o cristianismo católico ainda se
encontrava resguardado pelo Estado.

No início do século XX, os antigos seminários foram substituídos


pelos grandes colégios também confessionais de Institutos e
Congregações religiosas, porém, todos eram pagos e, ordinariamente,
concediam bolsas de estudos para alunos que não tinham condições
de custear os estudos, tendo em vista a desobrigação tributária que
já favorecia tais entidades.

Na atualidade, talvez uma visão otimista pudesse apontar que,


mesmo diante de um histórico cristão e o inegável multiculturalismo,
o Brasil seja composto por uma diversidade ampla de crenças
perfeitamente integradas nos diversos contextos sociais brasileiros.
Entretanto, alguns elementos demonstram outra realidade nacional.

Desde o senso do ano de 2000, apontamentos técnicos já


demonstravam que a diversidade religiosa brasileira é quase neutra,
já que 73,8% dos brasileiros se autodeclaravam católicos, 15,4%
evangélicos e logo a seguir, por ordem de tamanho, vinham os sem
religião com 7,3% de autodeclaração (PIERUCCI, 2006).

48 “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio.


Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular
em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo” – art. 5 (Brasil,
1824). Além disso, professar a religião do Estado era condição para ser nomeado
Deputado, de acordo com o artigo 95, inciso III, do texto constitucional supracitado.

296 |
Então quer dizer que, na estreitíssima faixa dos restantes 3,5% se
encontra a diversidade religiosa brasileira? O que se percebe é que,
embora haja a presença de grande quantidade de tradições religiosas
citadas pelos entrevistados (budistas, espíritas, muçulmanos,
judeus, esotéricos, hinduístas, religiões orientais – Seicho-no-iê,
Messiânica, Perfety Liberty, Shinto, Bahai, Taoísmo – umbandistas,
candomblecistas etc.), nelas se congregam populações muito
pequenas.

Neste sentido,

Na tabulação avançada do Censo Demográfico 2000, divulgada


em maio de 2002, nosso pluralismo religioso aparece bem
desmilinguido: quase binário. [...] É com grandes números para os
cristãos e reduzidas contas de somar para os outros – quando não
de subtrair – que o Censo vem mostrar que a diversidade religiosa
brasileira, hoje, é quase nada. [...] Vivemos na verdade num país
noventa por cento cristão (89,2%). Isso quer dizer que do alto de seus
oligopólios e prerrogativas o espectro do monoteísmo ainda ronda
nossos confusos destinos pesadamente. [...] Nossa diversidade
religiosa ainda é balbuciante (PIERUCCI, 2006, p. 49-51).

Passados dez anos da pesquisa comentada acima, às portas da


segunda década do século XXI, o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) não apresenta cenário muito diverso no país,
sendo que 86,8% da população brasileira se autodeclara cristã, sendo
64,6% católicos e 22,2% evangélicos (IBGE, 2012). Dessa forma, o
Brasil se configura como uma enorme nação católica ao redor do
mundo, com as duas grandes vertentes cristãs (cristãos católicos e
cristãos evangélicos) tomando os dois primeiros lugares no pódio,
englobando aproximadamente 150 milhões de pessoas.

Outro referencial complementar que urge ser apresentado é


relativo aos dados sobre casos de intolerância religiosa no Brasil,
coletados no período entre 2011 a 2015, que aponta as maiores
vítimas de intolerância religiosa no Brasil. A Secretaria Especial

297 |
de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos apresentou relatório
no qual consta que 53% dos seguidores de religiões de matriz
africana são vítimas de intolerância religiosa no Brasil, em segundo
lugar aparecem os cristãos católicos (9%), seguidos de cristãos
evangélicos (8%), muçulmanos (4%) espíritas (2%), outras (15%) e
9% sem informação49.

Se calcularmos em números, cerca de cinco vezes os seguidores


de religiões de matriz africana são mais atacados em relação
ao grupo que vem em segundo lugar. Além disso, em análise à
realidade do país, verificam-se conflitos de origem discriminatória,
preconceituosa ou intolerante.

A partir da divulgação de dados do Instituto Brasileiro de Geografia


e Estatística (IBGE), há de se observar atitudes discriminatórias de
cunho religioso também no ambiente escolar. Dentre os motivos
que desencadeiam as agressões entre estudantes na escola em
2015, está o fator da opção religiosa do indivíduo. Constata-se um
percentual de estudantes com idade entre 13 a 17 anos que se
sentiram humilhados por provocações de colegas da escola nos
30 dias anteriores à pesquisa50.

3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade


nº.4439: a via judicial de perpetração de
violência simbólica.
Enquanto legitimado ativo para propositura de ação direta de
inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF),
o Procurador-Geral da República (PGR) ajuizou ação direta de
49 Relatório sobre a Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015), Brasília,
DF, 2016.
50 A pesquisa aponta que o maior motivo que leva os estudantes a se agredirem é
a aparência do corpo, acompanhado pela aparência do rosto, cor ou raça, religião,
orientação sexual e região de origem. Amostra 2. Diretoria de Pesquisas, Coordenação
de População e Indicadores Sociais, Pesquisa Nacional de Saúde Escolar.

298 |
inconstitucionalidade por meio da qual se formulou pedido para
que a Suprema Corte desse interpretação conforme a Constituição
ao artigo 33, §§ 1º e 2º da Lei de Diretrizes e Bases e ao artigo 11,
§ 1º do acordo Brasil-Santa Sé. Ainda, caso se julgasse incabível o
pedido principal formulado, pretendia-se obter subsidiariamente a
declaração de inconstitucionalidade do trecho “católico e de outras
confissões religiosas”, constante no art. 11, § 1º, do Acordo Brasil-
Santa Sé.

De acordo com o Fiscal da Constituição, o ensino religioso


confessional (vinculado a uma religião específica) não pode ser
ofertado pelas escolas públicas do país, sob a alegação de que o
ensino religioso deve voltar-se para as práticas, história e dimensões
sociais das distintas religiões, incluindo posições não religiosas,
assim ministrada a referida disciplina sob uma perspectiva laica
por docentes regulares da rede pública de ensino, e não por agentes
vinculados às confissões religiosas.

Ainda na esteira do requerente da ação em comento,

[...] o princípio da laicidade é incompatível com os modelos


(i) confessional, que tem como objetivo a promoção de uma ou
mais confissões religiosas e é, preferencialmente, ministrado por
representante da confissão; e (ii) interconfessional ou ecumênico,
cujo objetivo é a promoção de valores e práticas religiosas, com
base em um consenso entre as religiões dominantes na sociedade,
e pode ser ministrado tanto por representantes das comunidades
religiosas, quanto por professores da rede pública, sem filiação
religiosa declarada. (STF, 2017, p.4).

Os ministros do Supremo Tribunal Federal foram subsidiados


por 18 entidades aceitas na condição de Amicus Curiae. Destas,
apenas 7 manifestaram-se contrariamente ao pleito da Procuradoria
Geral da República. Todos os demais se posicionaram no sentido
da procedência dos pedidos formulados na ação.

299 |
Houve convocação de audiência pública a qual foi realizada
em 15 de junho de 2015, tendo sido ouvidos representantes do
sistema público de ensino, de grupos religiosos e não-religiosos e
de outras entidades da sociedade civil, bem como de especialistas
com reconhecida autoridade no tema. Participaram da audiência
dez entidades, que foram previamente convidadas. Além destas, o
relator da ação direta deferiu a participação de outros 21 órgãos e
entidades, inscritos nos termos do edital de convocação. Em síntese,
dos 31 participantes da audiência, 23 defenderam a procedência
da ação e 8 defenderam a improcedência da ação.

No entanto, por maioria dos votos (6 x 5)51, os Ministros julgaram


a ação direta improcedente, declarando-se a constitucionalidade
dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11,
§ 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil
e a Santa Sé, restando assentada a constitucionalidade do ensino
religioso de natureza confessional como disciplina facultativa dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, isto
é, a disciplina pode ser vinculada a religiões específicas.

Não cabe aqui um estudo pormenorizado de cada voto dos


Ministros, mas um relato do que ficou estabelecido pela decisão
da maioria da Corte com força vinculante e efeito erga omnes.

Primeiramente, assentou-se que deverá ser assegurada pelo


Estado a oferta de ensino confessional de crenças variadas e será
o Ministério da Educação que deve fixar os requisitos formais para
execução de tal requisito.

Dessa forma, os alunos seguem sem ter a obrigatoriedade


de participação nas aulas de ensino religioso; para aqueles que
se matricularem na disciplina, ela será ministrada pelo agente
51 Pela improcedência do pedido votaram os ministros Alexandre de Moraes,
Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia.
Manifestaram-se pela procedência da ação os ministros Luís Roberto Barroso (relator),
Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello.

300 |
da confissão religiosa que se dispuser a atender tal demanda
educacional. Portanto, o espaço público será fornecido pelo Estado
para que o representante de confissão religiosa apresente a sua
doutrina religiosa específica.

O Ministro Luís Roberto Barroso sustentou que haveria clara


violação à separação formal entre Estado e as Religiões

[...] nos casos em que se exige que os professores da disciplina


sejam representantes religiosos ou pessoas credenciadas por
Igrejas e, ao mesmo tempo, se admite que sejam remunerados
pelo Estado, em contrariedade à vedação expressa do art.19, I da
Constituição. (STF, 2017, p. 14).

No entanto, a decisão do Plenário foi no sentido de que caberá


ao Estado estabelecer regras administrativas gerais a fim de que
se concretize parcerias voluntárias “sem transferências de recursos
financeiros, em regime de mútua cooperação com todas as confissões
religiosas que demonstrarem interesse” (STF, 2017, p. 23).

Quanto ao conteúdo da matéria em estudo, a Corte Suprema não


acolheu o entendimento do Procurador-Geral da República sobre
as aulas serem voltadas para a história e a doutrina das religiões
diversas, ministradas de forma isenta. A decisão aponta para o ensino
baseado nos princípios de cada religião que houver representante
para transmiti-la, assim, o Estado não deve intervir na determinação
de conteúdo programático de forma a direcionar os estudos para
uma religião apenas.

Em que pese a maioria dos Ministros pensarem de modo diverso,


a decisão prolatada soa como a permissão do ensino estanque
sem comprometimento com o diálogo e a compreensão mútua a
partir da interação entre os credos distintos, mas que possuem um
discurso humanista repleto de valores universais que poderiam ser
trabalhados do âmbito da multi, trans ou interdisciplinaridade.

301 |
Tal entendimento do Supremo denota que cada líder religioso se
fará presente em sala de aula para transmitir sua posição doutrinária
sem levar em conta o serviço pedagógico que poderia estar voltado
para a cooperação mútua entre as crenças em prol de uma sociedade
que valorize o diálogo inter-religioso e o ecumenismo.

Impugnando a determinação dos ministros para que os agentes


de confissões religiosas usem o espaço escolar para apresentar
seus conteúdos religiosos, considera-se de suma relevância um
profissional de educação para ministrar as aulas de ensino religioso,
com formação pedagógica voltada para essa área do saber, a fim de
que se possa satisfazer as necessidades técnicas e a complexidade
que envolve a matéria. No inteiro teor do acórdão da decisão em
análise pouco se tratou, por exemplo, da “ciência da religião”, em
rara citação, o Ministro Alexandre de Moraes52 (tendo votado pela
improcedência do pedido), lamentavelmente, não reconheceu tal
área do conhecimento como saber colaborativo para o trabalho
educacional com o ensino religioso.

4. Campo educacional e a escola


do sistema de ensino público como
otimizadora da dinâmica de reprodução
social
Pela ótica do aporte teórico escolhido neste estudo53, parte-se
do princípio de que o contexto vivenciado no Estado democrático

52 Referido Ministro assim se posicionou: “Nem mesmo a disciplina “ciência da


religião”, reconhecida como ramo das ciências humanas entre 1850 e 1870, por
iniciativa do alemão Friederich Max Miller, se confunde com o ensino religioso, pois
essa disciplina realiza uma análise neutra e é dividida em história das religiões
(ramo empírico de pesquisa científica) e religiões comparadas (ramo sistemático de
pesquisa de várias culturas religiosas), não abrangendo o objeto principal e primordial
do ensino religioso: os dogmas da fé” (STF, 2017, p. 16).
53 Convém alertar que, por óbvio, ao refletir sobre a escola, não se trata de mera
transposição direta da teoria de Bourdieu para a realidade brasileira, haja vista as
diferenças culturais e históricas que separam os dois contextos.

302 |
brasileiro possui campos sociais54 relativamente autônomos entre
si e que são ocupados por agentes que vivenciam um jogo social
próprio.

Convém, ainda, recordar que no campo jurídico há um corpo de


produtores especializados que têm a posse dos instrumentos de
produção simbólica e interpretação do texto jurídico (BOURDIEU,
1989). Do campo jurídico emanam certos entendimentos que irão
formar a visão da sociedade na modernidade contemporânea em
torno de diversos temas e, por isso, o direito, como todo sistema
simbólico, além de estruturado, é estruturante, pois expande a sua
própria estrutura, haja vista que possui atribuições simbólicas
arbitrárias, fazendo a própria sociedade criar um modo de percepção
da realidade a partir das categorias simbólicas ditadas pelo próprio
campo jurídico.

A ideia genérica de campo estabelecida pela teoria bourdieusiana


busca explicar os elementos que são produzidos ideologicamente
pelos espaços sociais e a relação existente entre as partes
constitutivas destes mesmos espaços, ou seja, é uma teoria que
vê o campo como microcosmo inerente a um macrocosmo que se
constitui pelo espaço social global.

Explica o autor (BOURDIEU, 2004, p. 19):

É para escapar a essa alternativa que elaborei a noção de campo.


[...] Digo que para compreender uma produção cultural (literatura,
ciência etc.) não basta referir-se ao conteúdo textual dessa
produção, tampouco referir-se ao contexto social contentando-
se em estabelecer uma relação direta entre o texto e o contexto.
Minha hipótese consiste em supor que entre esses dois polos, muito
distanciados, entre os quais se supõe, um pouco imprudentemente,
que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário que
chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico, isto é, o
universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que
54 O conceito de campo desponta nas ciências sociais no final da década de 1970,
proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, objetivando a compreensão geral
das relações sociais e a detecção dos jogos de dominação.

303 |
produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência.
Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece
a leis sociais mais ou menos específicas.

Assim, para Bourdieu, o sistema de ensino como instituição


relativamente autônoma desenvolve uma dinâmica de reprodução
social, de reprodução da cultura dominante, ele é um “dos fatores
mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de
legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural
e o dom social tratado como dom natural” (BOURDIEU, 2007, p. 39).

Ao tratar-se de herança cultural e religiosa no Brasil, foi possível


vislumbrar o quanto o país recebeu de influência religiosa na
formação de sua identidade e no histórico educacional e que, mesmo
numericamente, o que impera neste território é força majoritária do
cristianismo. Possibilitar que atores sociais pertencentes a tradições
religiosas específicas adentrem a sala de aula para divulgar sua
própria doutrina, transparece uma verdadeira dinâmica de reprodução
da cultura dominante. Faça-se uma projeção de como será nos
milhares de municípios interioranos do Brasil, onde há apenas
paróquias católicas e igrejas evangélicas: não seriam a catequese
e a escola dominical transportadas para o chão da sala de aula
das escolas públicas? Não seria uma espécie de reforço escolar da
dogmática lição já ministrada no ambiente religioso específico?

Segundo a decisão da Corte Suprema, não há nessa situação


proselitismo, pois a matrícula na disciplina é facultativa. De acordo
com este pensamento, o estudante seguidor de religião minoritária
no Brasil não é prejudicado na sua liberdade de crença, pois pode
se ausentar da sala de aula durante a exposição dos agentes ou
ministros religiosos. E quanto à urgência da inclusão daqueles
que, por séculos, já são pela sociedade colocados às margens?
E quanto ao diálogo entre as confissões religiosas no ambiente
próprio da construção do saber e da cidadania? E quanto à unidade
na diversidade?

304 |
No caso de uma família candomblecista, hindu ou confucionista
habitante de uma cidade na qual haja apenas ministros religiosos
cristãos, a aula de ensino religioso, dita de matrícula facultativa,
seria o espaço da ausência ou do ócio, pois, há de se investigar,
quantas escolas públicas no Brasil ofertam atividade alternativa
para aqueles estudantes que não cursam tal disciplina no horário
programado para o ensino confessional; será que há atividades
pedagógicas de cunho integrador entre a religião que professam e
a dinâmica de inclusão das minorias?

À época da decisão do Tribunal Excelso através da ADI nº 4439,


os dados do questionário da Prova Brasil, respondido por 53.341
diretores de escolas públicas brasileiras, apontavam que 55% dos
diretores declararam que não há outra atividade prevista para os
alunos que optam por não frequentar as aulas de ensino religioso.

Na mesma pesquisa, ficou constatado que, sendo facultativas


por previsão expressa da Carta Maior, 37% dos diretores sinalizaram
que as aulas de ensino religioso eram obrigatórias na escola onde
prestam seus serviços educacionais. Por outro lado, o mesmo estudo
apontou que uma em cada cinco escolas públicas do país sequer
oferece a disciplina55.

Frisa-se que, para Bourdieu, no mundo social, independente da


consciência e vontade dos agentes, há estruturas objetivas exteriores
ao ser humano (condições materiais de existência do indivíduo –
e nessa concepção o autor foi influenciado por Marx) que podem
coagir a ação e representação dos indivíduos. Porém, referidas
estruturas são socialmente construídas, por outro lado, são produto
de uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e
de ação que são constitutivos do habitus e das estruturas sociais,
particularmente o que Bourdieu (2004) chama de campos e grupos.

55 Dados colhidos a partir da reportagem da “Uma em cada 5 escolas do Brasil


não oferece ensino religioso”, publicada on-line na revista Isto É Dinheiro, em 28 de
setembro de 2017.

305 |
A partir desta teoria, pode-se afirmar que a cultura escolar
não é neutra, mas é entendida como cultura de classes. Com o
entendimento majoritário dos ministros do STF, fica manifesto que
as classes populares, por exemplo, são submetidas a uma violência
simbólica, quando a ação pedagógica exerce a imposição de um
arbítrio cultural que legitima o saber das classes dominantes e
nega a existência de outra ou outras culturas legítimas, resultando
em desvalorização do saber e do saber-fazer que os dominados
efetivamente detêm (BOURDIEU; PASSERON, 1992).

Para Bourdieu (1997, p. 22),

A violência simbólica é uma violência que se exerce com a


cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos
que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de
exercê-la ou de sofrê-la. A sociologia, como todas as ciências, tem
por função desvelar coisas ocultas; ao fazê-lo, ela pode contribuir
para minimizar a violência simbólica que se exerce nas relações
sociais.

Trata-se, portanto, de uma violência que não é reconhecida


como tal, pois diante do aceite de pressupostos fundamentais, pré-
reflexivos, os agentes sociais acham natural o mundo posto, sendo
que estes são submetidos a determinismos e produzem eficácia
àquilo que os determina.

Em uma realidade como a brasileira, conforme demonstrado


estatisticamente, é de fácil percepção que na maioria dos espaços
escolares o que irá preponderar com a decisão do STF é a visão
cultural que nos condiciona a privilegiar os elementos da cultura
dominante e torna inferiores e desprezíveis os valores das culturas
dominadas ou minoritárias. Trata-se, por exemplo, da centralização
dos valores ocidentais como parâmetro para compreender o mundo,
sem considerar a essencialidade de uma visão holística – do grego
holos que significa “contemplar o mundo em sua totalidade” – do
ser humano enquanto ser religioso, enfraquecendo o ensino a partir

306 |
da ótica da interdependência e complementaridade das visões
religiosas, passível de plena ressignificação do fenômeno religioso
e até mesmo do “não crer”.

Vale revisitar Paulo Freire (2000) e recordar a educação como


prática de liberdade, como processo por meio do qual o homem
constitui e conquista, historicamente, sua própria forma, sua própria
liberdade que amadurece no confronto com outras liberdades, na
defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, professores
e do Estado. O que diverge desta concepção reveste-se de violência
simbólica, quando a minoria não se faz ouvida parece ser tratada
como tradições religiosas invisíveis.

Tais apontamentos não são em desfavor à disciplina ensino


religioso, muito pelo contrário. Acredita-se num ensino religioso
– diverso dos moldes da decisão da ADI nº 4439 – como área
do conhecimento, independente e autônomo, inclusive como
componente curricular da área de ciências humanas, tendo como
objeto de estudo o fenômeno religioso e a religiosidade – indo na
contramão do que expressou o Ministro Alexandre de Moraes, para
o qual o objeto principal e primordial do ensino religioso são os
“dogmas da fé” – garantindo o “tratamento do fato religioso que
advém das experiências humanas, historicamente fundadas, em
sua relação com o transcendente e a religiosidade como dimensão
inerente ao ser humano” (UMBRASIL, 2019, p. 46).

5. Conclusão
A partir da previsão expressa na Constituição Brasileira, a
educação no país será oferecida no intuito de promover o exercício
da cidadania e o ensino será ministrado com base no pluralismo
de ideias.

Tanto a Lei Magna de 1988 quanto a Lei nº 9.394/1996 (LDB)


estabelecem o ensino religioso como disciplina de matrícula

307 |
facultativa, o legislador infraconstitucional enfatizou, neste sentido,
a importância do respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.  

Assim, percebe-se que o que se discutiu no Plenário da Corte foi


a laicidade do Estado brasileiro e como ela deve se manifestar no
âmbito da escola do ensino fundamental público.

O que restou decidido, no entendimento da maioria dos Ministros,


foi um modelo de ensino religioso pautado na voz das religiões
majoritárias, haja vista que a maior representatividade numérica das
mesmas no vasto território brasileiro é flagrante. Esse protótipo faz
soar como unilateral o ensino religioso, o que constitui verdadeira
violência simbólica.

As múltiplas tradições religiosas presentes no Brasil possuem


fundamentos, linguagens, narrativas, símbolos, ritos que vão além
dos preceitos que vinculam os seus adeptos. De fato, são verdadeiros
projetos de valores que, uma vez compreendidos na sua singularidade,
são capazes de levar o ser humano, crente ou não, a ultrapassar o
campo da informação histórica e cultural, fazendo-o adentrar no
universo do outro, com todas as suas diferenças, proporcionando
abertura a novas realidades. Com a disseminação deste ponto de
vista, o ensino religioso poderia ir além do discurso confessional
e poderia, inclusive, ser discutida a sua facultatividade. Estaria o
Brasil maduro para isso?

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UMBRASIL. Matrizes curriculares da educação Básica do Brasil


Marista: área de ciências humanas e suas tecnologias. 3. ed.
Curitiba: PUCPRESS, 2019.

311 |
Disputas entre poderes: controle
judicial e o direito à educação no
campo do poder
Adriana Duarte de Souza Carvalho da Silva
Joyce Mary Adam
Renan Ramos Chaves

| Introdução
Um olhar sobre os processos pelos quais se opera o controle
judicial de políticas educacionais no Brasil nos remete ao conceito
de campo do poder de Pierre Bourdieu (2014) e às formas pelas
quais seus atores disputam capitais específicos, além da definição
legítima do mundo social. Indica-se, ao longo do trabalho, como a
Constituição de 1988, principal regra do jogo no qual se determinam
as condições dessa disputa, justamente legitima tais conflitos.

Dessa forma, buscamos avaliar o processo de ampliação do


controle judicial de políticas educacionais no Brasil, utilizando os
conceitos de campo e capital, compreendendo de que forma os atores
sociais, especialmente o Judiciário e as Secretarias de Educação,
se movimentam no campo do poder, disputando espaços, capitais
e a imposição de sua visão de mundo em torno da implementação
de políticas educacionais.

Recorremos a uma pesquisa jurisprudencial no sítio eletrônico


do Tribunal de Justiça de São Paulo, no período de 2010 a 2017,
e análise textual através do software NVivo 12. A análise empírica
nos permite breves diagnósticos a partir do referencial teórico de
Bourdieu.

312 |
| O controle judicial de políticas educacionais
Quando falamos em controle judicial de políticas educacionais
nos referimos ao processo pelo qual o Poder Judiciário, em qualquer
de suas instâncias, intervém diante da omissão do Estado na garantia
de algum direito fundamental. Uma análise do texto constitucional
permite verificar que o controle judicial de políticas educacionais é
autorizado pelo legislador constituinte em dois artigos. O primeiro
deles é o seguinte:

Art. 208. § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito


público subjetivo.

Dizer que o ensino obrigatório é um direito público subjetivo


implica afirmar que qualquer indivíduo, representado por advogado,
pode demandar judicialmente a garantia desse direito em caso de
omissão do Poder Executivo. Conforme Amaral Júnior (2011, p. 51):
“[...] o [direito] subjetivo expressa a posição dos sujeitos em face das
normas existentes. Assinala, em outras palavras, o que cada qual
pode pretender ou reivindicar de forma garantida. [...] estabelecendo
o que pode ser concretamente exigido”. Dessa forma, a educação
básica é um direito reivindicável junto ao Poder Judiciário quando
omisso o Poder Executivo. Em geral, isso é feito por meio do remédio
constitucional chamado Mandado de Segurança56.

Discutir se determinado direito é ou não subjetivo refere-se


também à discussão da eficácia da norma jurídica. A Constituição
também determina:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,


será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,

56 O mandado de segurança é assegurado no artigo 5º, LXIX, da Constituição, nos


seguintes termos: LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito
líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável
pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa
jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

313 |
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Segundo Amaral Júnior (2011), uma norma jurídica precisa ter


eficácia, ou seja, precisa produzir efeitos jurídicos. No caso do
direito à educação, esse feito será obtido se a norma for aplicada e o
direito garantido através de serviços públicos. O autor explica que a
eficácia de uma norma demanda que seja seguida pelo destinatário
e, caso não o seja, que este seja punido pela transgressão. Quanto
ao acesso à educação básica, o destinatário é claramente o Estado
e, para que a norma tenha eficácia, são necessárias prestações
positivas do Estado e alocação de recursos públicos garantindo-
se ao cidadão o direito à educação. Em outras palavras, o direito à
educação demanda que o Poder Executivo determine despesas no
orçamento público e que o Poder Legislativo autorize os gastos.
No que se refere à garantia de matrícula em escola pública de
educação infantil, há enorme insegurança jurídica decorrente do
não cumprimento da normatividade constitucional pelo Estado.

O segundo artigo constitucional que possibilita a judicialização


das políticas educacionais é o artigo 5º, em seu inciso XXXV:

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão


ou ameaça a direito.

Sabe-se que o artigo 5º é aquele que garante direitos individuais


fundamentais. Assim, o legislador constituinte coloca uma norma
de direito processual civil na Constituição para garantir que direitos
lesionados ou sob ameaça sejam necessariamente apreciados pelo
Judiciário. Podemos avaliar que o artigo 5º determina o princípio
da judicialidade dos atos e da inafastabilidade do Poder Judiciário,
que historicamente surgem para impedir a negação do acesso
ao Poder Judiciário. Considerando que a educação é um direito
subjetivo, se esse direito é ameaçado ou lesado, então o Judiciário
pode apreciá-lo. O fato é que o direito à educação é lesado quando o
Poder Executivo deixa de pôr em prática ações necessárias para sua

314 |
implementação. Assim, a judicialização das políticas educacionais é
reflexo das omissões do Executivo, com autorização constitucional.
A Constituição, em seu artigo 208, determina:

§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público,


ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade
competente.

Nota-se, no texto constitucional, um cenário de conflitos


autorizados entre os três poderes, independentes e harmônicos
entre si, que se articula como um sistema de contrapesos, visando
a garantia e eficácia do próprio ordenamento jurídico, e esse cenário
nos permite breves apontamentos a partir de Bourdieu.

| Campo, capitais e controle Judicial


O conceito de campo, em Bourdieu (2014)57, remete a uma forma
de apresentar o espaço social a partir de microcosmos relativamente
autônomos e dotados de certa topografia social, ou seja, uma
estrutura de relações e posições objetivas que influenciam nas
ações ou tomadas de posição dos agentes sociais que as ocupam.

Essa visão da dinâmica social permite análises mais ou menos


independentes das particularidades dos agentes que ocupam tais
ou quais posições na malha relacional, o que explica a metáfora tão
usada pelo sociólogo de que o mundo social é permeado por jogos.
Dessa forma, reconhecer as regras do jogo nos permite evidenciar
os movimentos possíveis dos agentes nele envolvidos, sobretudo
quando tais regras estão codificadas no ordenamento jurídico. As
funções públicas, estabelecidas em organogramas de instituições
criadas ou autorizadas por lei ou pela Constituição, com escopos
específicos de competências e atividades, nos permitem ver Estado
como campo. Conforme Bourdieu (2014, p. 31):
57 A publicação póstuma de um curso sobre o Estado, ministrado por Bourdieu
entre 1989 e 1992, nos permite uma cômoda economia de referências bibliográficas.
Todavia, o sociólogo também discorre sobre o Estado em publicações anteriores,
como O poder simbólico, Razões práticas e La noblesse d’état.

315 |
[...] a gênese desse subuniverso do mundo social, que é o campo
da alta função pública, pode ser vista como o desenvolvimento
progressivo [...] de um conjunto de regras do jogo amplamente
impostas, a partir das quais se estabelece, no interior do mundo
social, uma comunicação que pode ser uma comunicação
pelo conflito. [...] [P]odemos dizer que o Estado é o princípio de
organização do consentimento como adesão à ordem social, a
princípios fundamentais da ordem social, e que ele é o fundamento,
não necessariamente de um consenso, mas da própria existência
das trocas que levam a um dissenso.

É importante pontuarmos a imprudência e negligência de


submeter todos os jogos do Estado ao ordenamento jurídico, mesmo
que a administração pública brasileira se submeta ao conceito de
legalidade estrita com uma redução significativa dos movimentos
possíveis. Os próprios jogos políticos que levam à ocupação de
posições-chave no Estado carregam consigo uma ampla margem
de liberdade, bem como os jogos que resultam na definição do
próprio ordenamento jurídico através do Poder Legislativo. O que
se codifica no ordenamento jurídico, entretanto, são regras gerais
de movimentos autorizados e seus limites.

As regras do jogo também situam determinadas posições


como locais privilegiados de conflito e o próprio controle judicial
das políticas públicas já apresentado configura essas posições e
conflitos a partir do princípio da tripartição dos poderes, previsto
na Constituição e vigente no ordenamento brasileiro ao longo de
nossa história republicana, com exceção de momentos específicos
de autoritarismo e inchaço do Poder Executivo. Dessa forma, temos
na judicialização uma possibilidade de reversão e sanção imposta
de um poder a outro quando houver violação às regras de jogo,
definidas no ordenamento jurídico, ou à sua interpretação.

Todavia, a judicialização não configura um único movimento


possível para sanar direta ou indiretamente tais violações, e
reconhecer a possibilidade de controle judicial implica reconhecer

316 |
também as condições dessa possibilidade. A exequibilidade somente
pelo Poder Judiciário, os ritos processuais, as formas de instrução e
tramitação e as competências específicas são alguns dos elementos
construídos ao longo da história através do acúmulo de capitais
específicos que permitem somente a instâncias específicas do
Poder Judiciário, cada qual num momento próprio do andamento
processual, deliberar com tal ou qual poder sobre a administração
pública omissa, negligente ou disfuncional.

Enquanto Weber (2004) recorre à mínima condição comum


dos Estados para cunhar seu conceito canônico de Estado como
monopólio da violência legítima, Bourdieu (2014) expande esse
entendimento para o monopólio da violência física e simbólica
legítima, construído a partir do acúmulo e concentração de capitais
ao longo dos anos (legitimidade, informação, recursos materiais) e
que transforma essa instituição em local de enunciação e definição
por excelência do mundo social sobre um território.

Ao falarmos de capitais, temos outra contribuição weberiana


popularizada por Bourdieu: o uso do léxico econômico para tratar
das dinâmicas sociais. Se o capital financeiro é o que permite maior
ou menor liberdade de ação nos jogos do mercado, tal entendimento
é expansível para quaisquer recursos acumuláveis e mobilizáveis
na consecução das ações almejadas no interior de um campo, no
andamento de um jogo. Complementando as ideias de campo e
capital, pode-se trazer a ideia de capital simbólico, que significa
compreender que em cada campo está em jogo um capital específico,
um capital que só faz sentido para quem está no jogo e conhece
as regras.

É importante pontuarmos que os recursos mobilizáveis são


diversos e concentram-se em posições sociais muito distintas no
que se refere à judicialização de políticas públicas. Embora o Poder
Judiciário seja o único autorizado a dar andamento ao jogo (dotado
de capital simbólico para tal), este somente o faz se provocado.

317 |
É necessário que um agente social distinto, ciente da violação
cometida (dotado de capital cultural para tal), inicie o processo.

Por fim, é necessário delimitar um conceito já apresentado e


instrumental para nossa exposição: a violência simbólica. Para
Bourdieu (2014), o que difere a violência simbólica das outras formas
de violência é exatamente não ser reconhecida como tal e, portanto,
contar com a cumplicidade daqueles que a sofrem. A violência que
não é percebida automaticamente não gera denúncia. Como poderia
um agente social desprovido do conhecimento de que uma violação
é uma violação buscar livrar-se do arbítrio que lhe é imposto? Dessa
perspectiva, é importante verificarmos que os atores sociais mais
necessitados de provocar a judicialização de uma política pública
são exatamente aqueles cujo acesso à justiça é mais dificultoso,
o que usualmente leva a distorções na oferta de políticas públicas
(CORRÊA, 2014; FERRAZ, 2011). Os destinatários da judicialização,
todavia, dispõem de recursos mobilizáveis para tentar reverter as
acusações sobre si em plena conformidade com as regras do jogo.

Conforme veremos no próximo tópico, é comum que os municípios


sejam condenados pelos juízes ao pagamento de astreinte no caso de
matrícula negada ao aluno até que este seja matriculado na escola.
Todavia, em geral, os municípios recorrem da decisão afirmando
que não há recursos orçamentários disponíveis para a garantia do
direito. Além disso, é comum que o município alegue intervenção do
Judiciário em políticas públicas, que são prerrogativas dos poderes
representativos. A seguir, veremos como o Judiciário lida com essas
justificativas.

| Análise textual da jurisprudência


selecionada
A jurisprudência analisada foi selecionada no endereço eletrônico
do Tribunal de Justiça de São Paulo, na aba jurisprudência, que
possibilita a pesquisa por tema e por data. Para facilitar a leitura e

318 |
compreensão, identificamos as decisões pela data de sua publicação,
mas sua referência completa consta nas referências deste capítulo.
A busca foi feita a partir do texto “vaga em creche”. Foram escolhidas
aleatoriamente decisões entre 2010 e 2017, referentes à garantia do
direito à vaga em escola de educação pública e gratuita infantil. Os
dados obtidos foram inseridos no software NVivo 1258, que possibilita
análises de dados quantitativos por meio da Análise de Conteúdo.
Para a presente pesquisa, usamos o recurso de análise textual.

A jurisprudência selecionada para análise são decisões em


segunda instância, o que implica que um juiz de primeira instância
já tomou uma decisão e determinou uma obrigação de fazer, mas
o município recorreu em segunda instância, ao Tribunal de Justiça.
Lembramos que, conforme o § 2º, do artigo 211 da Constituição, a
educação infantil é prerrogativa municipal, por isso a obrigação de
fazer é gerada para o município.

É fundamental lembrar que o Processo Civil brasileiro é regido


pelo princípio do segundo grau de jurisdição. Segundo Barroso
(2007), esse princípio surgiu para garantir o direito à ampla defesa
e possibilita, no caso estudado, que os municípios condenados
em primeira instância tenham o direito ao recurso contra os atos
judiciais. As decisões de segunda instância são tomadas por três
desembargadores. Barroso (2007, p. 67) salienta que se trata de um
princípio fundamental para a democracia, afirmando:

É inconcebível em um Estado Democrático de Direito a existência


de atos judiciais decisórios que não possam ser impugnados por
recursos, se tal fato ocorresse facilitaria a aplicação errada do
direito posto, a corrupção e o autoritarismo dos magistrados, que
estariam certos de que suas decisões não seriam revistas.

As decisões em segunda instância aqui analisadas referem-se


à solicitação de matrícula em escola infantil municipal negada ao
responsável pela criança. São sete decisões entre 2010 a 2017 e
58 Trata-se de um software produzido pela QSR International. Utilizamos a versão
12 PRO.

319 |
todas concedem o direito à matrícula, à revelia da afirmação do
município de que não é possível ofertá-la. Embora o § 1º do artigo
208 da Constituição determine que o acesso ao ensino obrigatório
é direito subjetivo, o inciso I do mesmo artigo enfatiza:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17


(dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita
para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Dessa forma, conforme os artigos constitucionais estudados, o


acesso à educação infantil pública e gratuita não é direito subjetivo. É
justamente por isso que optamos por analisar decisões judiciais que
garantem o acesso à vaga na educação infantil para compreender a
justificativa dos juízes nos casos concretos. Conforme veremos, as
decisões são baseadas no fato de que, embora a educação infantil
não seja obrigatória, ainda é um direito social fundamental e não
pode o município negar a matrícula.

A jurisprudência selecionada foi inserida no software supracitado


para análise textual. O software possibilita a inserção de expressões/
conceitos selecionados e exibe suas relações no texto. A busca foi
feita em todas as decisões incluídas e as referências foram cruzadas
para a construção da árvore de conceitos. A primeira busca foi
por expressões usadas pelos desembargadores que justificariam
a intervenção do Poder Judiciário em matéria de política pública
educacional, conforme é possível verificar a seguir:

Figura 1. Análise textual do conceito “direito à educação”

Fonte: Elaboração própria

320 |
O software buscou o conceito de “direito à educação” em todos
os textos e exibiu suas relações com outros conceitos, palavras e
categorias analíticas. A figura nos possibilita avaliar as relações entre
os conceitos e a construção do pensamento dos desembargadores.
Pela análise textual, verificamos que a garantia do direito à educação
nas decisões relaciona-se com “direitos humanos”. Complementando
essa análise, outra justificativa para a intervenção do judiciário é o
fato de a educação ser considerada um “direito fundamental”.

Figura 2. Análise textual do conceito “direito fundamental”

Fonte: Elaboração própria

A relação entre os conceitos mostra como a educação é


considerada um direito líquido e certo. O direito líquido e certo é
aquele que não precisa de provas para ser, estando garantido por
lei e sendo condição para ingresso na justiça com mandado de
segurança.

A “separação dos poderes” tem sido argumento comum


dos municípios. Conforme o Agravo Regimental nº 0001114-
64.2012.8.26.0224/50000: “[...] a Municipalidade sustenta, em
síntese, que não há obrigação de oferecimento de vaga em período
integral e que a decisão recorrida configura ingerência do Judiciário
no plano de governo do Município [...]”. A resposta dada no mesmo
agravo é: “Anote-se que, em tema de educação, por se tratar de direito
fundamental, o poder público não possui discricionariedade para
optar entre garanti-la ou não. Está obrigado ao seu cumprimento,
existindo certa discricionariedade tão somente no tocante à forma

321 |
de fazê-lo”. O agravo menciona também a Súmula 65, do TJSP, que
determina:

Súmula 65: Não violam os princípios constitucionais da separação


e independência dos poderes, da isonomia, da discricionariedade
administrativa e da anualidade orçamentária as decisões judiciais
que determinam às pessoas jurídicas da administração direta
a disponibilização de vagas em unidades educacionais ou o
fornecimento de medicamentos, insumos, suplementos e transporte
a crianças ou adolescentes.

É fundamental mencionar que as decisões de 2010, 2012 e 2014


consideram a educação como um direito indisponível, ou seja, o
sujeito do direito não pode abrir mão do mesmo. Uma vez que o
indivíduo não pode abrir mão, o Estado não pode deixar de cumpri-
lo. Na jurisprudência de 2010, o enquadramento enquanto direito
indisponível é justificado pelo inciso IV do artigo 208 do texto
constitucional, que elenca como dever do Estado a garantia de
educação infantil em creche e pré-escola às crianças de até cinco
anos de idade.

Figura 3. Análise textual do conceito “direito indisponível” (2010, 2012 e 2014)

Fonte: Elaboração própria

Ainda na jurisprudência supracitada, a educação infantil é


considerada fundamental para o desenvolvimento integral da criança.
Já na jurisprudência de 2012, a decisão justifica que a educação é
um direito indisponível porque está vinculado ao bem comum.

As decisões também reconhecem a educação infantil como


direito subjetivo, muito embora essa não seja a interpretação literal
no artigo 208 da Constituição. Conforme a Apelação nº 1021941-

322 |
82.2015.8.26.0577: “Trata-se de norma expressa, cuja eficácia é
plena, sendo inarredáveis as conclusões de que as crianças até
essa idade têm direito subjetivo ao pronto e efetivo atendimento em
creche e pré-escola e de que o Estado tem o dever de assegurá-lo”.
Para apoiar a decisão, os desembargadores citam o § 2º do artigo
54 do Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, que em seus artigos 4º, incisos IV e X, e 5º,
caput apontam que a autoridade pública que não garantir o ensino
obrigatório será responsabilizada.

Figura 4. Análise textual do conceito “direito subjetivo” (2012, 2013, 2014, 2017)

Fonte: Elaboração própria

A análise jurisprudencial possibilita notar enorme congruência nas


decisões judiciais, já que os mesmos argumentos são rotineiramente
utilizados para justificar a intervenção do Poder Judiciário em
políticas educacionais, ou seja, resguardar o direito à educação de
crianças e adolescentes.

Em geral, a negação de matrícula em escola pública de educação


infantil tem uma justificativa orçamentária, no sentido de que não há
vaga por indisponibilidade de recursos orçamentários. Certamente
trata-se de um argumento consistente, dada a inconstância de verbas
para educação no país. Esse argumento, contudo, não é considerado
válido diante do fato de que a educação é um direito fundamental,
o que mostra a lacuna existente entre nosso ordenamento jurídico
e a situação financeira do país, resultando num distanciamento
entre a validade formal e a validade material da norma jurídica.
Não adentraremos no mérito das justificativas, mas é de especial
interesse uma análise dos argumentos empregados.

323 |
Na temática das políticas públicas, é comum referir-se à ideia
de “escolhas trágicas” para entender porque determinados direitos
sociais não se transformam em serviços públicos e programas
sociais. O ministro Celso de Mello (2011), na elaboração de um
relatório justamente sobre o direito à educação, explica o conceito:

A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente


escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução
de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também,
com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela
Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo
que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções
por determinados valores, em detrimento de outros igualmente
relevantes, compelindo o Poder Público, em face dessa relação
dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira
e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”.

Bobbio (2000) explica que a democracia implica liberdade da


população em exigir dos governos, mas o crescimento das demandas
implica uma redução das possibilidades de resposta. Historicamente,
o crescimento das demandas encontra-se localizado na passagem
do Estado liberal para os Estados sociais, considerados aqueles que
passam a constitucionalizar direitos sociais59. No Brasil, os direitos
sociais foram constitucionalizados há menos de um século e ainda
encontramos dificuldades quanto à obtenção e gerenciamento de
recursos suficientes para a efetivação da garantia desses direitos.

Talvez esse seja um dos maiores desafios das democracias que


ainda não adotaram o Estado mínimo por completo, se é que é
possível fazê-lo. Como garantir todos os direitos constitucionalizados
sem gerar um déficit público perigoso? Certamente o crescimento do
neoliberalismo em todo o mundo é uma resposta para essa questão,
mas não responde como lidar com a pobreza e a vulnerabilidade
social apenas pelo mercado.
59 O primeiro Estado-nação a constitucionalizar direitos sociais foi o México, em
1917, seguido da Alemanha, em 1919. O Brasil o fez, pela primeira vez, na Constituição
de 1934.

324 |
Com a internacionalização do Direito Humano à educação e
com o Brasil tornando-se signatário de tratados e convenções
internacionais sobre o tema, a população ganha força no sentido
de exigir a universalização desse direito, pautada não apenas no
Direito pátrio, mas também na ordem internacional. É nesse contexto,
da forte presença de uma legislação social nas democracias
consolidadas, que a reserva do possível começa a ser utilizada.
Segundo Souza (2013), o conceito surge na jurisprudência alemã e
inclui a ideia de que há um limite social básico, e que não é obrigação
do Estado excedê-lo sob o risco de comprometer a plena efetivação
dos direitos sociais. O autor conclui que o princípio da reserva do
possível está relacionado a duas dimensões: a disponibilidade de
recursos orçamentários para concretizar um direito e a razoabilidade
da pretensão social por esse direito.

Embora a primeira dimensão tenha uma resposta objetiva


compreendida nas próprias leis orçamentárias, a segunda deixa
ampla margem para subjetividade, dada a dificuldade em se avaliar
coletivamente a razoabilidade de uma pretensão por direitos,
especialmente num país continental. Temos assim um impasse
que dificulta ações mais abrangentes e imputa a necessidade de
ações individuais, consumindo mais recursos (inclusive tempo) do
Estado e das famílias que aspiram pelas vagas negadas. Contudo, a
pretensão pode ter como base a própria Constituição, considerando-
se os direitos fundamentais como pretensão razoável.

Figura 5. Análise textual do conceito “reserva do possível”

Fonte: Elaboração própria

325 |
A análise textual evidencia a relação entre “reserva do possível”
e que “não pode ser invocada”, além de aparecer junto a outros
conceitos utilizados pelos juízes para justificar o controle judicial
de políticas públicas, como a “separação dos poderes” e o “mínimo
existencial”. Segundo Weber (2013), o conceito de mínimo existencial
refere-se à dignidade da pessoa humana, concretizada por meio
de seus direitos fundamentais. O conceito não trata do mínimo
vital, ou seja, apenas o necessário à sobrevivência. Ele depende das
condições econômicas e culturais da sociedade à qual se refere,
sujeitando-se a critérios específicos. A educação, por exemplo, não é
necessária à simples manutenção da vida, como o são a alimentação
e a saúde, mas é considerada fundamental para uma vida digna e
com autonomia.

Uma vez que o mínimo existencial supera a sobrevivência da


vida humana, então insere-se no conceito os direitos sociais como
moradia, trabalho, educação e cultura. Dessa forma, é bastante
comum que o controle judicial de políticas públicas seja justificado
com base no mínimo existencial. O estudo da jurisprudência mostra
que os dois argumentos são utilizados para justificar a judicialização
das políticas públicas: em primeiro lugar as Secretarias de Educação
afirmam que a disponibilização de novas vagas em creches supera
a reserva do possível; consequentemente, os juízes afirmam que a
vaga é necessária para atender ao mínimo existencial. Dessa forma,
o mínimo existencial visa responder exatamente à dimensão da
razoabilidade da pretensão contida na reserva do possível.

Souza (2006) faz uma discussão central para essa pesquisa ao


questionar a autonomia do Poder Executivo diante das políticas
públicas e das demandas sociais. Para a autora, a autonomia é
relativa e limitada por fatores complexos que refletem a realidade
histórica do país. Dentro dessa perspectiva teórica, entendemos
que a autonomia dos governos em formular políticas educacionais
no Brasil é limitada pelo desenho institucional que alinha os gastos
com educação ao crescimento da economia, uma vez que a alocação
de recursos é calculada em termos de percentuais de impostos.

326 |
Assim como há limitações impostas à atuação do Estado, notam-
se também limitações estruturais sobre o público-alvo das políticas
públicas. A distribuição desigual de capital econômico e cultural
entre os cidadãos usualmente implica possibilidades diferenciais
de acesso à justiça, de modo que as parcelas mais vulneráveis
encontram maiores dificuldades em iniciar um processo judicial. Tais
dificuldades tendem a preservar ou reforçar a desigualdade social
quando há intervenção do Judiciário sobre as políticas sociais, uma
vez que as decisões são pontuais e frequentemente atravessam
critérios estabelecidos pelo Poder Executivo para priorizar a oferta
de recursos escassos (CORRÊA, 2014; FERRAZ, 2011).

| Considerações finais
Ao longo do texto, analisamos conflitos entre instâncias do
Estado para a efetivação de direitos sociais, especificamente do
direito à educação. Uma autocrítica necessária a partir de Bourdieu é
que nossa análise parece totalmente maculada por um pensamento
de Estado.

Recorrer ao Estado para que se reconheça pretensão razoável


para um projeto de vida que traz a educação formal como garantidora
de autonomia implica certas questões. Devemos nos lembrar que
os currículos são definidos pelo Estado, sendo a educação formal
o meio por excelência de inscrição do pensamento de Estado no
indivíduo. Devemos nos lembrar que toda autonomia é relativa dentro
dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico, sob o risco de
sanção e controle pelo próprio Estado. Por fim, devemos nos atentar
para a distribuição desigual de acesso à educação, que traz consigo
uma distribuição desigual de acesso a diversos serviços do próprio
Estado, como o acesso à justiça.

Em nossa defesa, pensando com e contra Bourdieu, sustentamos


que explicitar tais conflitos, suas regras e regularidades, suas formas
de produção e suas consequências é uma forma de instruir-se sobre

327 |
as regras do jogo. A distribuição desigual de acesso à educação e
à justiça pode e deve ser negociada no câmbio de capitais, tendo
no acesso limitado ao capital cultural legítimo um convite para o
fortalecimento de diversas formas de capital social. Cabe aos atores
sociais a instrumentalização dos argumentos aqui evidenciados
e das possibilidades de acesso ao controle judicial das políticas
educacionais.

Como exemplos de atuação que transcendam a iniciativa


individual, temos no terceiro setor possibilidades de mobilizações
individuais ou coletivas de facilitação do acesso à justiça quando
necessário para garantir às parcelas mais vulneráveis o direito
à educação. Temos ainda possibilidades de que o próprio Poder
Executivo se aproprie dos dados de judicialização como métrica
para o planejamento de políticas públicas, verificando eventuais
falhas cometidas e corrigindo distorções do Poder Judiciário.

Nesta perspectiva não restam dúvidas de que o controle judicial


sobre políticas públicas pode ser utilizado justamente para averiguar
a eficiência dos poderes representativos em efetivar direitos sociais.
Todavia, a qualidade da democracia e os direitos fundamentais não
podem depender da atuação do Judiciário em casos concretos,
pois são universais e devem ser resultado das políticas públicas
propostas pelo Executivo e pelo Legislativo. Mas enquanto tal
cenário hipotético e desejável não se concretiza, resta ao cidadão,
ao terceiro setor e ao próprio Poder Executivo conhecer e apropriar-
se das regras do jogo com vistas à universalização do acesso à
educação.

| Referências
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BARROSO, D. Manual de Direito Processual Civil: teoria geral e


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1992). São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

BOBBIO, N. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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330 |
TJSP. Apelação / Reexame Necessário nº 0001706-
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TJSP. Agravo Regimental nº 0003574-83.2015.8.26.0526/50000.


Relator: Ricardo Dip. Comarca de Salto. Data: 23.10.2017.
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Ahmed. Comarca São José dos Campos. Data: 04.12.2017.
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Data: 12.01.2018. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/
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TJSP. Apelação nº 1012660-44.2015.8.26.0564. Relator:


Renato Genzani Filho. Comarca São Bernardo do Campo.
Data: 26.11.2018. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/
consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 13 ago. 2019.

TJSP. Súmula 65. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/


Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/SumulasTJSP.pdf. Acesso
em: 15 jan. 2019.

WEBER, M. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin


Claret, 2004.

WEBER, T. A ideia de um “mínimo existencial” de J. Rawls.


Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, p. 197-210, jun. 2013.

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Sobre quem organiza

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Darbi Masson Suficier é doutor em Educação Escolar pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
Pesquisador em estágio pós-doutoral na Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara - UNESP.
E-mail: [email protected]

Luci Regina Muzzeti é doutora em Educação pela Universidade


Federal de São Carlos (UFSCar). Livre-Docente em Sociologia da
Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP). Professora Associada da Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara - UNESP.
E-mail: [email protected]

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Sobre quem escreve

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Adelino Francklin é formado em História pelo Centro Universitário da
Fundação Educacional Guaxupé (2004), tem mestrado em Educação
pelo Centro Universitário Moura Lacerda (2016) e é doutorando em
Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente, é
professor de Filosofia e Sociologia na Universidade do Estado de
Minas Gerais (UEMG). Tem experiência na área de Ciências Humanas
e Sociais, com ênfase em Filosofia e Sociologia da Educação.
E-mail: [email protected]

Adriana Duarte de Souza Carvalho da Silva é formada em Ciências


Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(2005), tem mestrado em Sociologia (2007) pela mesma instituição
e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal de São
Carlos (2013). É professora do Centro Universitário Claretiano em
Rio Claro. Tem experiência na área de Políticas Públicas, com ênfase
em Políticas Educacionais.
E-mail: [email protected]

Andreza Olivieri Lopes Carmignolli é formada em Matemática pela


Universidade de Araraquara – UNIARA (1999) e Pedagogia pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP
(2015). Atualmente, é professora na Secretaria Estadual de Educação
de São Paulo – SEE/SP. Tem experiência na área de matemática,
com ênfase em jogos.
E-mail: [email protected], [email protected]

Angelita de Lima Oliveira é formada em Pedagogia pelo Centro


Universitário Estácio Ribeirão Preto (2012), com especialização em
psicopedagogia. Atualmente, é professora da Prefeitura Municipal
de Araraquara e mestranda no programa de Educação Sexual. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em Avaliação da
Aprendizagem.
E-mail: [email protected]

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Camila de Toledo Piza é graduanda em Licenciatura em Química pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
no campus de Araraquara. Tem experiência nas área de ensino de
ciências com ênfase na sociologia da educação.
E-mail: [email protected]

Carlos Henrique Aparecido Alves Moris é formado em Química


(Licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP), Instituto de Química, campus Araraquara
(2018). Atualmente, desenvolve mestrado no programa de pós-
graduação em Educação para a Ciência da UNESP, campus Bauru.
Tem experiência na área de Ensino de Ciências, com ênfase em
Sociologia da Educação.
E-mail: [email protected]

Cassiano Ferreira Inforsato é formado em Educação Física pela


Universidade Metodista de Piracicaba (2001), tem mestrado em
Educação Física - Pedagogia do Movimento pela Universidade
Metodista de Piracicaba (2004) e doutorado em Educação pela
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP/
FCLAr) (2016). Atualmente, é professor no Colégio Anglo - Portal do
Engenho - Piracicaba. Tem experiência na área de Didática, Esportes,
com ênfase em esportes coletivos e lutas.
E-mail: [email protected]

Débora Raquel da Costa Milani é formada em Pedagogia pela


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
(2002), tem Especialização em Educação a Distância pela UNISEB,
Especialização em Práticas de Letramento e Alfabetização (PLA)
e Especialização em Educação Empreendedora, pela Universidade
Federal de São João Del Rei (UFSJ), Especialização em Psicopedagogia
Institucional pela Faculdade São Luís/SP, Mestrado em Educação
Escolar (2006) e Doutorado em Educação Escolar, ambos pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho’ (UNESP)
(2012). Atualmente, atua como docente e orientadora no Programa de

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Pós-graduação em Educação Sexual da UNESP. É docente nos cursos
de Direito, Enfermagem, Educação Física, Administração e Ciências
Contábeis da Faculdade Anhanguera Educacional, docente nos
cursos de Pedagogia e Administração da Faculdade de Taquaritinga
FTGA. PEB-I Efetiva da Rede Estadual de Ensino. Apresentadora
do Programa Café com Educação pela TVM e Rádio Saudades FM.
Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos
seguintes temas: Educação para diversidade cultural, Sociedade
e cidadania, Educação sexual, Culturas contemporâneas, Práticas
escolares, Culturas juvenis e Mídias digitais.
E-mail: [email protected]

Denise Silva Vilela possui Licenciatura Plena em Matemática


pela Universidade Federal de Minas Gerais (1988); especialização
em História da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) (1992); mestrado em Lógica e Filosofia da Ciência
pela UNICAMP (1996) e doutorado em Educação Matemática
pela UNICAMP (2007). É docente da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), pesquisadora do Programa de Pós-graduação em
Educação da UFSCar. Atua principalmente nas áreas de Educação
Matemática e História, Lógica e Filosofia da Matemática e da
Educação Matemática; Sociologia e Educação Matemática.
E-mail: [email protected]

Edson Silva é formado em Filosofia pela Universidade Católica


de Pernambuco (UNICAP, 1991), tem Mestrado em História pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1995) e Doutorado
em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP,
2008). Atualmente, é Professor Titular de História na Universidade
Federal de Pernambuco. Tem experiência em pesquisas na área de
História do Brasil, com ênfase nos temas história indígena/os índios
na História no Nordeste e em Pernambuco nos séculos XIX e XX;
memórias indígenas; relações socioambientais e História Ambiental
no Semiárido/Agreste pernambucano; Ensino da temática indígena.
E-mail: [email protected]

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Ernani Nunes Ribeiro é formado em Licenciatura Plena em História
pela Fundação de Ensino Superior de Olinda (FUNESO, 2007), tem
Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) (2011) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE) (2020). Atualmente, é professor Adjunto de
Políticas Educacionais e Fundamentos da Educação na Universidade
Federal de Pernambuco. Tem experiência em pesquisas na área
da Educação Inclusiva, com ênfase em estudos sobre o paradoxo
da inclusão excludente educacional; histórias de vida e retratos
sociológicos da inclusão educacional; sociologia da inclusão
educacional; a atuação do intérprete de Libras na educação e usos
educacionais da técnica da audiodescrição.
E-mail: [email protected]

Fábio Tadeu Reina é formado em Educação Física pela Fundação


Educacional de São Carlos (1986), tem mestrado em Educação
Escolar (2005) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP). Atualmente, é professor de Educação
Física na Universidade de Araraquara. Tem experiência na área
motricidade humana, com ênfase em formação de professores e
práticas pedagógicas.
E-mail: [email protected]

Flávia Baccin Fiorante é formada em Educação Física pela


Universidade Metodista de Piracicaba (1998), tem mestrado em
Educação Física/Pedagogia do Movimento pela Universidade
Metodista de Piracicaba (2003) e doutorado em Educação pela
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP/
FCLAr) (2011). Atualmente, é professora nos cursos de graduação
em Educação Física, Pedagogia, Enfermagem e Biomedicina nas
Faculdades Integradas Einstein de Limeira. Tem experiência na
área de Formação de professores e Didática, com ênfase no ensino
superior.
E-mail: [email protected]

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Gabriela Agostini é formada em Química (licenciatura) pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),
Instituto de Química, campus Araraquara (2016), tem mestrado em
Educação para a Ciência pela UNESP, Faculdade de Ciências, campus
Bauru (2019). Atualmente, cursa o doutorado no programa de pós-
graduação em Educação para a Ciência da UNESP, campus Bauru.
Tem experiência na área de Ensino de Ciências, com ênfase em
Sociologia da Educação.
E-mail: [email protected]

Hellen Cristina Xavier da Silva Mattos é formada em Pedagogia


pela Universidade Federal de São Carlos (2018) e tem mestrado
em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (2020).
Atualmente, é doutoranda em Educação na Universidade Federal
de São Carlos. Tem experiência na área de Educação, com ênfase
em Sociologia da Educação.
E-mail: [email protected]

Irene Rogatti Portero Ferrari é formada em Psicologia pela


Universidade Paulista (UNIP) (2007), é mestranda em Educação
Sexual pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP). Tem experiência na área de Psicologia Jurídica e
Penitenciária, com ênfase em reintegração social de egressos do
sistema prisional
E-mail: [email protected]

Isabela Boaventura Pimenta Gomide é formada em Letras Licenciatura


Habilitação Português/Inglês e suas respectivas literaturas pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2019), cursa mestrado
no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Tem experiência na
área de Estudos de Linguagens, com ênfase em Literatura Brasileira,
Literatura utópica e distópica e ensino de Literatura .
E-mail: [email protected]

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Jéssica dos Anjos Januário é formada em Educação Física e Esporte
pela Universidade de São Paulo (2014), tem mestrado em Educação
pela Universidade de São Paulo (2017) e é doutoranda em Educação
Física pela Universidade Estadual de Campinas (2018-Atual). Tem
experiência na área da Educação, Sociologia, Educação Física e
Esporte, com ênfase nos aspectos sociológicos, educacionais,
socioculturais e pedagógicos do fenômeno esportivo.
E-mail: [email protected]

José Vilani de Farias é formado em Licenciatura Plena em Matemática


pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007), tem
mestrado em Matemática pela Universidade Federal Rural do
Semiárido (2013) e doutorado em Educação pela Universidade
Federal de São Carlos (2017). Atualmente, é professor do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte.
Tem experiência na área de Educação Matemática , com ênfase em
Sociologia da Educação Matemática.
E-mail: [email protected]

Joyce Mary Adam é formada em Química (1984) e Pedagogia (1987)


pela Universidade Estadual de Campinas, tem mestrado (1989) e
doutorado (1996) pela mesma instituição e é livre-docente pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (2007).
É professora da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, campus de Rio Claro. Tem experiência na área de Política e
Gestão da Educação.
E-mail: [email protected]

Julia Beatriz Giaccheto Barbieri é formada em Matemática


(Licenciatura) pela Universidade Cesumar (2020). Atualmente, é
graduanda de Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Tem experiência nas áreas de
Ciências Sociais e Educação Matemática, com ênfase em Sociologia
da Educação.
E-mail: [email protected]

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Katiusca Marusa Cunha Dickow é formada em Bacharelado e
Licenciatura em Dança pela Universidade Estadual do Paraná (2005),
tem mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (2016) e é doutoranda em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É professora
das disciplinas de História da Dança e Ritmos Brasileiros na
Especialização em Teoria e Movimento da Dança com Ênfase em
Dança de Salão na Faculdade Metropolitana de Curitiba/PR. Tem
experiência na área de Danças populares, com ênfase em Dança
de Salão.
E-mail: [email protected]

Laís Inês Sanseverinato Micheleti é formada em Pedagogia pela


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
(2018). Atualmente, é mestranda em Educação Escolar pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
E-mail: [email protected]

Luciana Massi é formada em Licenciatura em Química pela


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
(2005), tem mestrado em ciências pela Universidade de São
Paulo (USP) (2009) e doutorado em Ensino de Ciências pela USP
(2013). Realizou estágio de doutoramento com Bernard Lahire na
École Normale Supérieure em Lyon e com João Teixeira Lopes na
Universidade do Porto e estágio de pós-doutoramento na Faculdade de
Educação da USP (2018). Atualmente, é professora do Departamento
de Educação na UNESP. Tem experiência na área de Sociologia da
Educação e Educação em Ciências.
E-mail: [email protected]

Luiz Carlos de Souza Junior é formado em Direito pelo Centro


Universitário Salesiano de São Paulo – U. E. Lorena (2008) e em
Filosofia pela Universidade de Franca, tem especialização em Filosofia
pela Faculdade Internacional Signorelli (2015) e mestrado em Direito
pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (2017). Atualmente,

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é professor de Direito Constitucional e Psicologia Jurídica na
Universidade Vale do Rio Verde (UninCor). Tem experiência na área
jurídica, com ênfase em Direito Constitucional e Teoria do Direito.
E-mail: [email protected]

Luiz Gustavo Bonatto Rufino é formado em Educação Física


(bacharelado e licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (UNESP) Rio Claro (2010 e 2013, respectivamente)
e em Pedagogia pelo Centro Universitário Claretiano (2020). Tem
mestrado em Desenvolvimento Humano e Tecnologias pela UNESP
(2012) e doutorado em Ciências da Motricidade por essa mesma
instituição (2018). Atualmente, é professor nas redes públicas
municipais de Paulínia e Campinas e no Centro Universitário de
Jaguariúna – UNIFAJ. Tem experiência na docência (em todos os
níveis de ensino), em processos de formação inicial e continuada,
produção de livros e outros materiais didáticos, consultorias e
assessorias educativas, em cursos e capacitações, na gestão físico-
esportiva e políticas públicas e na área de lutas e artes marciais,
com ênfase no campo da formação profissional e na Educação
Física.
E-mail: [email protected]

Maria Cristina da Silveira Galan Fernandes é formada em Ciências


Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP) de Araraquara (1987), tem mestrado em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC
(1994), doutorado em Educação Escolar pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) de Araraquara (2002) e
realizou estágio de Pós-doutorado em Educação na Universidade
Federal de Goiás – UFG (2018). Atualmente, é professora Associada
na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Tem experiência
na área de Educação, com ênfase em Sociologia da Educação.
E-mail: [email protected]

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Maria Fernanda Celli de Oliveira é formada em Pedagogia pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
(2013), tem mestrado em Educação Escolar pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) (2017) e é
doutoranda em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP). Atualmente, é professora substituta do Departamento de
Educação na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP). Tem experiência na área de Sexualidade, Cultura e
Educação sexual, com ênfase em Sexualidade infantil.
E-mail: [email protected]

Mariana Passafaro Mársico Azadinho é formada em Direito pelo


Instituto de Ensino Superior COC (2006), mestranda em Educação
Sexual pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Atualmente, é advogada e professora na Faculdade de
Taquaritinga (FTGA-UNIESP).
E-mail: [email protected]

Matheus Monteiro Nascimento é formado em Licenciatura em Física


pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2013), tem mestrado
em Ensino de Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(2016) e doutorado em Ensino de Física pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2019). Atualmente, é professor Adjunto do
Departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Tem experiência na relação entre a Sociologia da Educação, do
conhecimento e da ciência com a área da Educação em Ciências,
com ênfase em análises de desigualdades educacionais.
E-mail: [email protected]

Pamela Alves Batista é formada em Psicologia pela Universidade


Paulista (2004). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase
em Psicologia do Desenvolvimento Humano. Atualmente, trabalha
como psicóloga na Prefeitura de Araraquara.
E-mail: [email protected]

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Paulo Rennes Marçal Ribeiro é formado em Psicologia (1985)
pelo Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
de Campinas (PUCCAMP), tem graduação em Pedagogia (1983)
e mestrado em Educação (1989) pela Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); especialização
em Psiquiatria e Psicologia Clínica da Infância (1988) e doutorado
em Saúde Mental (1995) pela Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); e pós-doutorado
em Saúde Mental (1996-1997) pelo Instituto de Psiquiatria da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É Livre-Docente em
Sexologia e Educação Sexual pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) (2007). Atualmente, é Professor
Associado (MS-5) no Departamento de Psicologia da Educação.
É especialista do Conselho Estadual de Educação – SP e atua
nas áreas de Educação e Psicologia, com ênfase na pesquisa em
Sexualidade Humana, principalmente com os seguintes temas:
educação sexual, história da sexualidade e da educação sexual,
adolescência, sexualidade e sociedade. Atualmente, é professor e
orientador de mestrado e doutorado nos seguintes Programas de
Pós-graduação da UNESP, em Araraquara: Educação Sexual, do qual
é o coordenador do Programa; e Educação Escolar, no qual coordena
a Linha de Pesquisa Sexualidade, cultura e educação sexual.
E-mail: [email protected]

Rafael Oliveira de Antonio é formado em Educação Física pela


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (2007).
Atualmente, é mestrando em Educação Escolar na Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de Araraquara.
Tem experiência na área de Educação, com ênfase em: cultura
corporal, educação infantil, psicologia histórico-cultural e pedagogia
histórico-crítica.
E-mail: [email protected]

344 |
Renan Ramos Chaves é formado em Processamento de Dados pela
Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga (2011), tem especialização
em Administração Pública pelo Centro Universitário de Maringá (2014)
e em Sociologia e Ensino de Sociologia pelo Centro Universitário
Claretiano (2016). É assistente administrativo na Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Experimental
de São João da Boa Vista.
E-mail: [email protected]

Samuel de Souza Neto é formado em Educação Física e Pedagogia


pelo Pontifício Instituto das Missões (PIME) de Assis (1977 e 1980,
respectivamente) e em Letras pela Universidade Estadual Paulista
"Júlio de Mesquita Filho" (UNESP) de Assis. Tem mestrado em
Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) (1992) e
doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) (1999).
Atualmente, é professor associado do Departamento de Educação
da UNESP – Rio Claro. Tem experiência no campo da Educação e
da Educação Física, com ênfase no campo dos saberes docentes,
formação profissional, estágio supervisionado, epistemologia da
prática, campo profissional. Desse quadro emergem quatro eixos
de pesquisa: formação de professores (inicial e contínua), inserção
profissional, profissões do ensino em meio escolar e o trabalho e
políticas públicas docentes.
E-mail: [email protected]

Vânia Cristina da Silva Rodrigues é formada em Matemática pela


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1998), tem
mestrado em Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (2001) e doutorado em Educação pela Universidade
Federal de São Carlos (2019). Atualmente, é professora adjunta
na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Tem experiência na
área de Educação, com ênfase na formação inicial e continuada de
professores.
E-mail: [email protected]

345 |
Wellington Furtado Ramos é formado em Letras Licenciatura
Habilitação Português/Inglês e suas respectivas literaturas pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2007), tem mestrado
em Teoria Literária e Estudos Comparados no Programa de Pós-
graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul (2011) e doutorado em Letras pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (2017). Atualmente, é professor adjunto
na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Tem experiência
na área de Literatura, com ênfase em Teoria Literária, Literatura
Comparada, Literaturas Brasileira e Portuguesa Contemporâneas
e Ensino de Literatura.
E-mail: [email protected]

Willian Gabriel Felício é formado em Educação Física pela


Universidade de Araraquara (2011), tem mestrado em Fisiologia do
Exercício pela Universidade de Campinas (2017) e doutorado em
Educação Escolar pela Universidade Júlio de Mesquita Filho (2020).
Atualmente, é professor coordenador do EAD na Universidade de
Araraquara. Tem experiência na área de treinamento desportivo,
com ênfase em turmas de treinamento escolar.
E-mail: [email protected]

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