João Cassiano
CONFERÊNCIAS
VIII- XV
Volume 2
Tradução
Aída Batista do Val
EDIÇÕES SUBIACO
Juiz de Fora
- 2006-
Conferências VIII - XV - João Cassiano - Volume li -
ISBN 85-86 793-28-0
Tradução do latim (SC 42): Aída Batista do Val
Rua Conde do Bonfim, 1098 - T ijuca - RJ
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Plano geral de publicação
Volume 1: Conferências I-VII - 2003
Volume 2: Conferências VIII- XV - 2006
Volume 3: Conferências XVI - XXIV - 2007
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP)
Cassiano, João, ca36 0 - ca435.
Conferências 8 a 15 I João Cassiano; [tradução do
latim por Aída Batista do Val].
- Juiz de Fora: Edições Subiaco, 2006.
3\1. 236p. 21cm.
ISBN 85-86793-28-0
1. Vida monástica e religiosa I. Val, Aída Batista do li.
Título.
CDD255.19
SUMÁRIO
INTRODUÇ ÃO,?
CONFE RÊNCIAS
VIII SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE SERENO, 1 3
ÜS PRINCIPADOS
IX PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE ISAAC, 43
A ORAÇÃO
X SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE ISAAC, 79
A ORAÇÃO
PREFÁCIO DE CASSIANO PARA A COLEÇÃO DAS
CONFERÊNCIAS XI A XVII, 1 03
XI PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE
QUEREMOM, 1 05
A PERFEIÇÃO
XII SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE
QUEREMOM, 1 23
A CASTIDADE
XIII TERCEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE
QUEREMOM, 1 49
A PROTEÇÃO DE DEUS
XIV PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE
NESTEROS, 1 83
A CIÊNCIA ESPIRITUAL
XV SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE
NESTEROS, 2 1 1
ÜS CARISMAS DIVINOS
MAPAS, 223
ÍNDICE DAS CONFE RÊNCIAS, 225
INTRODUÇ Ã O
Com o lançamento do Segundo Volume das Conferências
de João Cassiano as Edições Subiaco dão prosseguimento à série
das sete Conferências j á publicadas no primeiro Volume. Espe
ramos que logo possamos ter o terceiro Volume, completando
assim a série de 24 Conferências.
Este segundo volume, tão bem editado como o primeiro,
apresenta igualmente a excelente tradução do texto latino da
Professora Aída Batista do Val. Somente aqueles que j á passaram
pela experiência de procurar traduzir alguma passagem das obras
de João Cassiano poderão dar o devido valor ao trabalho de
Aída Val. Um dos melhores e mais recentes estudos sobre João
Cassiano assim se refere a algumas das dificuldades que devem
enfrentar os que abordam os seus textos: "O seu estilo literário,
como de outros antigos monges, escapa de certo modo à
compreensão dos leitores de hoje. Embora utilizando um latim
gramaticalmente correto, suas formas e imagens literárias
parecem querer dissuadir, até mesmo os entendidos no assunto,
de abrir caminho por entre a complexidade das suas expressões
( . . . ) Os leitores de temas monásticos e os que participam dos
seus interesses continuam a valorizar muitos dos ensinamentos
de Cassiano, embora se dando conta que esses podem permanecer
ainda um tanto obscuros, pois tudo o que Cassiano escreve exige,
ao mesmo tempo, tradução e interpretação."1
1 STEWART, Columba, Cassian the Monk, Oxford University Press, New York -
Oxford, 1998, p. 3.
8 Introdução
Para quem inicia a leitura das Conferências, é importante
saber que, para uma boa e fiel compreensão do texto é indispen
sável conhecer também a outra obra anterior de Cassiano, as
Instituições. Essa primeira obra de Cassiano é assim denominada
(no plural) como um termo coletivo para significar os ensinamen
tos, costumes e estruturas da vida monástica. Destinada a ser
uma obra de iniciação para orientar e instruir, ela é mais do que
uma simples coleção de costumes e normas. Embora se referindo
primariamente à vida cenobítica, inclui também referências à vida
eremítica. É com satisfação que podemos informar que as Edições
Subiaco planej am publicar também, muito em breve, essa
indispensável obra de Cassiano. Já ao escrever as Instituições
parece ter ele planej ado completá-las primeiramente, com uma
série de dez Conferências atribuídas aos eremitas do deserto de
Cétia. Posteriormente acrescentou mais duas séries: as Conferên
cias XI a XVII e as de XVIII a XXIV.
No Prefácio que escreveu às Instituições, Cassiano afirma
que oferece essa obra visando ajudar os monges cenobitas no
processo da fundação de um novo mosteiro e por essa razão
salienta as relações do monge com seus irmãos (incluindo por
isso mesmo, o estudo dos principais vícios).
As Conferências, por seu lado, parecendo dirigidas prima
riamente aos anacoretas, apresentam-se, na verdade, como ins
truções visando, não tanto o seu modo de vida exterior, mas sim
a "pessoa interior" na sua busca de perfeição. O próprio Cassiano
desencoraj a a comparação meramente exterior e negativa entre
as duas formas de vida monástica e se refere antes ao comum
ideal de vida procurado porém de diversos modos (cf. Conf
XIV,4).
O título de Conferências provém da palavra latina "con
latio" que significa uma reunião ou agrupamento, quer sej a de
objetos ou de pessoas. Cassiano a utiliza neste sentido de pessoas
Introdução 9
reunidas para conversas, discussões ou ensinamentos, como
acontece quando um monge se dirige a um grupo dos seus
irmãos. Neste caso, a própria alocução pode tomar o nome de
"conlatio". Sabemos que é neste sentido que Cassiano deno
mina Conferências as suas 24 conversações entre um determi
nado "ancião" respondendo às questões colocadas pelo próprio
Cassiano ou por seu amigo Germano. Essa é a forma do diálogo
clássico (em grego: erotapokríseis) realizado por perguntas e
respostas. Um exemplo bastante conhecido deste estilo literário
é aquele utilizado no livro dos Diálogos, atribuídos a São
Gregório Magno e onde a vida e a doutrina dos santos, principal
mente a de São Bento, no segundo Livro, é assim apresentada e
ensinada.
É importante saber também, desde o início, que embora a
leitura das Conferências (e incluímos também as Instituições)
possa exigir um certo trabalho e esforço, a doutrina espiritual
que João Cassiano nos apresenta é de uma importância excep
cional. É sobretudo através das obras de Cassiano que as práticas
e os ensinamentos a respeito da vida ascética e posteriormente,
sobre o monaquismo cristão, nos quatro primeiros séculos foram
transmitidos do Oriente para o Ocidente onde apenas se
encontrava em suas primeiras tentativas e experiências. Através
da leitura dessas obras de Cassiano, nos mosteiros e posterior
mente, nos ensinamentos dos abades e dos escritos de muitos
bispos e doutores da Igrej a, é que progre ssivamente foi desen
volvida uma verdadeira Teologia da Vida Espiritual, não apenas
nos seus aspectos práticos, ascéticos, mas, sobretudo, em sua
dimensão profunda, que mais tarde se denominaria de experiência
mística.
As Conferências de VIII a XV que se encontram neste
volume se referem aos seguintes temas espirituais:
10 Introdução
- A Conferência VIII, do abade Sereno, juntamente com a an
terior (a VII), trata das distrações do espírito, as tentações das
dispersão e do seu combate e nesta última, mais particularmente,
do problema da queda dos anj os, do poder de sua influência
maligna e da lei natural e escrita.
- As Conferências IX e X, do abade Isaac e atualmente as mais
conhecidas e estudadas, tratam ambas da doutrina sobre a oração.
A primeira estuda a oração contínua como finalidade da vida
monástica. A Conferência X trata mais dos meios para lá se
chegar.
- As Conferências XI, XII, XIII, do abade Queremon, se re
ferem à perfeição da vida monástica enquanto realizada na
caridade. A Conf. XI estuda a Caridade na sua relação com a Fé
e a Esperança (o Temor de Deus). A Conf XII estuda a Caridade
na sua forma de castidade perfeita, só conseguida através da
perseverança, da paciência e da contínua ação de Deus em nós.
A Conf XIII, pode-se dizer que é a mais famosa de todas, pois
entra na questão cadente naquele tempo, do equilíbrio entre a
graça divina e a liberdade humana.
- As Conferências XIV e XV, do abade Nesteros, tratam da
Ciência espiritual, primeiramente em seus princípios teóricos e
depois no seu aspecto prático, ou sej a, dos meios para consegui
la. A Conferência XV considera mais os frutos daquela Ciência:
os carismas, o dom dos milagres e a sua autenticidade.
Parece ser oportuno notar que os ensinamentos de Cas
siano, apresentados como sendo dos próprios abades e pais espi
rituais dos desertos do Egito, transmitem-nos freqüentemente,
a doutrina de um dos mestres do próprio Cassiano, a saber, o
filósofo monge Evágrio Pôntico e conseqüentemente, também
de Origenes, sua importante fonte.
Não se deve esquecer, porém, que ao lado da tradição
Introdução 11
monástica do Egito, igualmente será o conhecimento e o estudo
da tradição oriental decorrente do monaquismo da Capadócia,
sobretudo da vida e obras de São Basílio onde o monaquismo
se reveste de outro aspecto igualmente essencial que é o da
experiência comunitária e eclesial. Nesta mesma linha de tradição,
embora j á no Ocidente, a figura e sobretudo as obras monásticas
de Santo Agostinho poderão trazer também o necessário
complemento à tradição de João Cassiano, talvez mais conhecida.
D. Abade Joaquim de Arruda Zamith, osb
Mosteiro de São Bento - Vinhedo - setembro 2005
VIII
SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE SERENO
Os PRINCIPADOS
1- A hospitalidade do abade Sereno
Terminadas as solenidades próprias do dia e dispersa a
comunidade, voltamos à cela do ancião, onde logo fomos
restaurados por uma lauta refeição . Com efeito, em lugar da
salmoura com uma gota de óleo que costumava constituir sua
refeição diária, o abade Sereno nos preparou uma porção de
molho, mi sturando- lhe um pouco mai s de óleo do que
costumava.
Quanto à gotícula de óleo a que me referi, j amais nenhum
solitário, ao preparar seu alimento, deixou de vertê-la na
salmoura. Não que ele o faça no intuito de sentir algum sabor
agradável ao prová-lo, pois dose tão minúscula não bastaria
sequer para passar da boca à garganta, quanto mais para untá
la. Ao contrário, essa gota se destina a reprimir o orgulho do
coração, que costuma insinuar-se, insensível e suavemente, por
ocasião de abstinências mais rigorosas. Assim, essa gota acaba
por mortificar os estímulos da própria presunção, uma vez que
quanto mais secretamente se pratica a abstinência, quanto mais
se tenta ocultá-la ao olhar dos homens, tanto mais sutil é a
tentação à qual ela induz aquele que a pratica. Em seguida,
14 Abade Sereno
Sereno nos serviu sal tostado, com três azeitonas por pessoa,
apresentando-nos, ainda, um cesto com grãos-de-bico tostados,
que os solitários chamam de "trogalia" e dos quais comemos
apenas cinco grãos cada um, aceitando também duas ameixas e
um figo. Exceder essa medida seria considerado culpável naquele
deserto.
Terminada a refeição, passamos a reclamar do ancião que
cumprisse sua promessa, respondendo à nossa indagação .
Apresentai vossa questão - retorquiu o ancião - cuj o exame
adiamos até agora.
2 Diversidade que notamos entre os espíritos malignos
-
Germano: Qual a causa de tão grande variedade de
potências inimigas que hostilizam o homem e por que existe
entre elas tanta diversidade? O bem-aventurado Apóstolo assim
as enumera, ao escrever: Nosso combate não é contra o sangue
nem contra a carne, mas contra os principados, contra as
autoridades, contra os dominadores deste mundo de trevas,
contra os espíritos do Mal, que povoam a região celeste (Ef
6, 1 2). E também: Nem os anjos, nem os principados, nem a
morte, nem a vida, nem as potências, nem qualquer outra
criatura nos poderá separar da caridade de Deus que está no
Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8,38-39).
De onde surgiram esses adversários cheios de tanta mal
dade contra nós? Porventura devemos crer que tais potências
foram criadas pelo Senhor precisamente para combater o homem
com tal poder e tal diversidade?
3 Resposta sobre a multiplicidade de alimentos de que trata a
-
Sagrada Escritura
Sereno: Entre as verdades que a autoridade das Sagradas
Os Principados 15
Escrituras destinou para nosso conhecimento, existem algumas
que se apresentam com tanta clareza e evidência que, mesmo
aos de inteligência limitada, aparecem sem a obscuridade de
uma significação mais secreta e até dispensam o auxílio da
exegese, pois manifestam significado e ensinamento que
transparecem nas próprias palavras e letras.
Em contrapartida, outras são tão veladas e obscurecidas
por certos mistérios, que exigem de nós uma série ilimitada de
diligentes exercícios para sua compreensão e interpretação. É
evidente que Deus tinha diversos motivos para agir desse modo,
pois, se os sacramentos divinos não fossem encobertos por um
véu em seu sentido espiritual, ficariam expostos a todos os
homens. Assim sendo, fiéis ou profanos, indiscriminadamente,
teriam a mesma facilidade em conhecê-los, não havendo,
portanto, nenhuma diferença entre a indolência e a operosidade
no que se refere à virtude e à prudência.
Além disso, Deus assim dispôs porque, mesmo entre os
irmãos na fé, a Escritura propicia um vastíssimo campo para a
investigação intelectual, de modo a oferecer matéria capaz de
conscientizar os preguiçosos de sua negligência e aprovar os
operosos por seu ardor e empenho.
A Escritura divina também, com bastante propriedade,
pode ser comparada a um campo fértil e fecundo. Nessa terra,
muito s produto s nascem e se desenvo lvem, servindo à
alimentação do homem sem necessidade de cozimento. Outros,
no entanto, se não passarem pelo fogo, a fim de perderem sua
aspereza natural, tomando-se doces e macios, se mostrariam
impróprios e até mesmo nocivos ao uso humano. Alguns, porém,
j á nascem a tal ponto adequados como comestíveis que, em uma
e outra forma, são agradáveis e saudáveis.
No entanto, alguns servem tão-somente à alimentação de
animais irracionais de carga ou feras selvagens, ou ainda de
16 Abade Sereno
pássaros, mas, de modo algum se destinam à alimentação do
homem, pois mesmo em sua aspereza nativa e sem qualquer
cozimento são apropriados à vida daqueles animais.
Parece-nos que o fertilíssimo paraíso das Escrituras espi
rituais apresenta uma clara analogia com o que acabamos de
descrever. Ali, o sentido literal de algumas passagens é tão
luminoso que sequer necessita uma exegese mais sublime, ofere
cendo aos ouvintes um alimento farto e nutritivo ao simples
ressoar de suas palavras, como no exemplo a seguir: Escuta,
Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (Dt 6,4); ou então :
Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua
alma e com toda a tua força (Dt 6,5).
Alguns textos, porém, se não forem trabalhados por uma
extenuante interpretação alegórica, e suavizados por um fogo
espiritual, seriam incapazes de fornecer ao homem interior um
alimento salutar, isento de qualquer corrupção. Ao contrário,
ser-lhes-iam nocivos e poderiam se transformar em alimento sem
utilidade. A esse respeito poderíamos fazer as seguintes citações:
Sejam os vossos rins cingidos e as vossas lâmpadas acesas (Lc
1 2,35), ou ainda: Quem não tiver uma espada, venda a túnica
para comprar uma (Lc 22,36), e também: Aquele que não toma a
sua cruz e me segue não é digno de mim (Mt 1 0,3 8). Foi quando
alguns monges, dos mais observantes, tendo de fato o zelo de
Deus, mas não um zelo esclarecido, interpretando tais palavras
de maneira profundamente ingênua (cf. Rm I 0,2), confeccionaram
para si cruzes de madeira que carregavam sobre os ombros,
tomando-se, assim, motivo de ridiculização e não de edificação
para os irmãos.
Algumas passagens, todavia, tanto do ponto de vista
histórico quanto do alegórico, podem ser entendidas de maneira
proveitosa e necessária. Pois nos dois sentidos a alma é capaz
de haurir um alimento nutritivo. Poderíamos citar, nesse sentido,
os seguintes textos: Se alguém te fere na face direita, oferece-
Os Principados 17
lhe também a esquerda (Mt 5,39), ou: Quando vos perseguirem
numa cidade, fugi para outra (Mt 1 0,23); e também: Se queres
ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres e terás
um tesouro nos céus. E depois, vem e me segue (Mt 1 9,2 1 ).
O campo das Escrituras produz também o feno que ali
menta os animais de carga (cf. SI 1 03, 1 4). Elas estão repletas de
tais alimentos que consistem em uma narrativa pura e singela,
na qual as almas mais simples e incapazes de captar a doutrina
em toda a sua perfeição e integridade vão colher, de acordo
com o próprio estado e as próprias necessidades, o alimento
que irá tomá-las mais fortes e vigorosas para as tarefas e os
trabalhos da vida ascética. A respeito de tais palavras é que se
afirma: Salvareis, Senhor, os homens e os jumentos (SI 35,7).
4 Sobre a dupla opinião que se pode formar no entendimento
-
das Sagradas Escrituras
Por tal motivo também nós, quando a Escritura é expressa
com clareza, podemos opinar sem receio sobre essas palavras.
Todavia, aquelas sentenças em que o Espírito Santo inseriu algo
de modo velado, reservando-as para nosso exercício e reflexão,
só podem ser apreendidas através de indícios e conj ecturas, e
unicamente com cautela é que seria possível examiná-las,
deixando a liberdade de j ulgar não só ao que fala, como também
ao que escuta. Acontece, às vezes, que surgem duas opiniões
diferentes sobre a mesma questão, sendo ambas aceitáveis. Sem
detrimento para a fé, seria possível adotar-se uma atitude
reservada, não se dando nem a uma nem a outra uma adesão
absoluta, mas também tampouco uma recusa total, de modo
que a primeira não contrarie a segunda, uma vez que nenhuma
das duas está em oposição à fé.
Vej a-se, por exemplo, o caso de Elias. Há quem diga que
18 Abade Sereno
ele veio na pessoa de João e que voltará como precursor da
vinda do Senhor (cf. Mt 1 1 , 1 4). Também lemos sobre a abomi
nação da desolação que se ergueu no lugar santo e cuj a origem
foi a estátua de Júpiter colocada no templo de Jerusalém. E que
de novo sobreviria na Igrej a por ocasião do advento do Anti
Cristo (cf. Dn 9,27; 2Mc 6,2; Mt 24, 1 5 ss). De maneira análoga, tudo
quanto se segue no Evangelho pode ser visto como j á cumprido
antes da tomada de Jerusalém, ou como devendo realizar-se no
fim do mundo. Nenhuma dessas opiniões entra em choque com
a outra. E a primeira interpretação não invalida a segunda.
5 - A resposta à questão que se propõe deve ser aceita livremente
Quanto à questão que propusestes, não me parece que
sej a bastante debatida entre os homens, nem suficientemente
clara para a maioria das pessoas. Portanto, o que vamos expor
pode ser considerado ambíguo por alguns, e, assim, devemos
ter uma opinião moderada a esse respeito. Contudo, como tal
questão não traz nenhum detrimento à fé na Trindade, convém
que nossa solução sej a considerada apenas como provável,
embora não se baseie somente em simples suposições e conjec
turas, mas tenha por base claros testemunhos da Escritura.
6 Deus nada criou de mau
-
Deus não permita que j amais afirmemos que ele tenha
criado algo de substancialmente mau. Pois que a Escritura nos
diz: Tudo que Deus fez era muito bom (Gn 1 ,3 1 ) . Ora, admitir
que esses demônios tenham sido criados em estado de maldade
por Deus, ou destinados desde o início, em seus diversos graus
de malícia, a enganar e arruinar os homens, seria contradizer a
Escritura e desonrar a Deus, j ulgando-o criador e inventor do
mal. Portanto, ele próprio teria feito tais naturezas e vontades
Os Principados 19
tão malévolas, exatamente para que elas se obstinassem no mal
e nunca conhecessem os bons sentimentos.
Eis, pois, o motivo de sua diversidade tal como a tradição
dos Pais nos ensinou a buscar através da Sagrada Escritura.
7 - A origem dos principados ou potestades
Antes de criar o mundo visível, Deus fez as criaturas espi
rituais e as virtudes celestes, para que, sabendo que tinham sido
criadas do nada para tão grande glória e bem-aventurança por
pura bondade do Criador, elas lhe dessem contínuas ações de
graças e se consagrassem ao seu perpétuo louvor. E dentre os
cristãos não há quem disso duvide. Não devemos j ulgar que
Deus, no princípio, tenha iniciado a obra de sua criação pelo
fundamento deste mundo, como se, durante os inúmeros séculos
anteriores, não tivesse a quem distribuir os benefícios de sua
bondade e tivesse ficado preso à sua solidão, sem poder exercer
sua munificência. Esse julgamento equivaleria a atribuir àquela
infinita, eterna e incompreensível majestade sentimento s
mesquinhos e inadequados, quando é o próprio Senhor que diz
a respeito daquelas potestades: Quandoforam criados os astros,
todos os meus anjos me louvaram em altas vozes (Jó 38,7- LXX).
Se eles estavam presentes à criação dos astros, se aplau
diram com exclamações de admiração e louvor o nascimento de
todas essas criaturas visíveis que saíam do nada, isso constitui
prova evidente de que sua criação foi anterior àquele princípio
em que se narra que o céu e a terra foram feitos.
Antes, pois, desse princípio dos tempos, definido por
Moisés, no Gênesis e cujo sentido literal é também aceito pelos
judeus para assinalar a idade deste mundo, (ressalvando-se aqui
nosso sentido cristão, segundo o qual o Cristo é o princípio de
todas as coisas), conforme esta palavra: Tudo foifeito por ele, e
20 Abade Sereno
sem ele nadafoifeito (Jo 1 ,3), de acordo com esse início, não há
dúvida de que Deus tenha criado todas essas potências e virtudes
celestes. Assim, o Apóstolo as enumera por ordem: Foi em Cristo
que foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis
e as invisíveis: tronos, soberanias, principados, autoridades,
tudo foi criado por ele e para ele (Cl 1 , 1 6).
8 - A queda do diabo e dos anjos
Do número desses, muitos dos mais privilegiados caíram
como nos informam com clareza as Lamentações de Ezequiel e
de Isaías, em que os vemos chorar e gemer sobre o príncipe de
Tiro ou sobre Lúcifer, que surgia pela manhã no horizonte. Do
primeiro, eis as palavras do Senhor a Ezequiel : Filho do homem,
pronuncia um lamento contra o príncipe de Tiro, e lhe dirás:
Tu eras um sinal da semelhança de Deus, repleto de sabedoria
e de beleza perfeita. Viveste entre as delícias do paraíso de
Deus coberto de gemas diversas: rubi, topázio, diamante,
crisólito, cornalina, jaspe, safira, turquesa e esmeralda,
trabalhados em ouro. Tamborins e flautas estavam a teu serviço,
prontos desde o dia em que foste criado. Eras um querubim
protetor, colocado sobre a montanha santa de Deus; passeavas
entre as pedras de fogo. Foste irrepreensível em teu proceder
desde o dia em que foste criado, até que a iniqüidade apareceu
em ti. No desenvolvimento do teu comércio, encheram-se as
tuas entranhas de violência e pecado; por isso eu te bani da
montanha de Deus e te fiz perecer, ó querubim protetor, em
meio às pedras de fogo. O teu coração se exaltou com a tua
beleza. Perverteste a tua sabedoria por causa do teu esplendor.
Assim, te atirei por terra, e fiz de ti um espetáculo à vista dos
reis. Em virtude da tua grande iniqüidade e, por causa da
desonestidade do teu comércio, profanaste os meus santuários
(Ez 2 8, 1 1 - 1 8) .
Os Principados 21
Quanto a Lúcifer, diz Isaías: Como caíste do céu, estrela
d'alva? Como foste atirado à terra, vencedor das nações! E,
no entanto, dizias em teu coração: Hei de subir até o céu, acima
das estrelas de Deus colocarei o meu trono, estabelecer-me-ei
na montanha do testemunho, nos confins do Norte. Subirei
acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo (Is
1 4 , 1 2 - 1 4).
Estes, todavia, não foram os únicos a decair daquele
apogeu de felicidade, segundo o testemunho da Escritura, pois
que o dragão, como ela nos refere, arrastou consigo a terça
parte das estrelas (cf. Ap 1 2,4).
Um dos apóstolos nos fala em linguagem ainda mais ex
plícita: Os anjos que não guardaram o seu principado, mas
deixaram o seu domicílio, ele os reservou para ojuízo do grande
dia, presos por cadeias eternas no meio das trevas (Jd 6,25). E
há também as palavras do salmista: Vós, porém, morrereis como
homens e caireis como um dos príncipes (SI 8 1 , 7). Qual seria o
significado de tais palavras, senão que muitos foram os príncipes
que caíram?
Por tais indícios podemos presumir a causa da diversidade
das potências adversas. Vale dizer, a diferença na perversidade.
Porque, ou aquelas potências conservam ainda as prerrogativas
da ordem anterior na qual cada uma foi criada, ou então,
precipitadas do céu, reivindicam, embora em sentido contrário,
a semelhança com os anjos que se mantiveram fiéis, usurpando
lhes os títulos de graus e de ordens, isso, porém, em relação à
perversidade, segundo cada uma delas se distinguia no mal.
9 - A queda do demônio começou com a sedução de Eva
Germano: Acreditávamos até agora que a causa e o
princípio da queda ou da prevaricação do demônio, aquilo que
o fizera decair da dignidade de anjo fora especificamente a inveja
22 Abade Sereno
que levou sua maligna impostura a enganar Adão e Eva.
1 O Resposta em que se explica a queda do demônio
-
Sereno: Ao lermos o Gênesis, vemos claramente que não
foi esse o início daquela ruína, do demônio nem de sua
decadência. Uma vez que, mesmo antes de os haver tentado, a
Escritura o designa com o nome de serpente, com a seguinte
descrição : Ora, a serpente era a mais sábia, ou segundo o texto
hebraico, o mais astuto dos animais da terra criados pelo Senhor
(Gn 3 , 1 LXX).
-
Podeis ver, portanto, que mesmo antes de haver iludido o
primeiro homem, o demônio j á se havia desvinculado da
santidade angélica, tanto que não só mereceu ser marcado com
esse nome infame, como também ser mostrado como excedendo
em perversidade a todos os animais da terra. Pois a Escritura
não nomearia com tal expressão um anj o bom, nem tampouco
designaria com tais palavras os que permaneceram fiéis. Mas
diz: A serpente era o mais astuto dos animais da terra. Daí
deduzimos que, se tal título de modo algum poderia ser aplicado
a um Gabriel ou Miguel, ou mesmo a qualquer homem de bem,
toma-se evidente que a designação de serpente e a comparação
com os outros animais não diz respeito à dignidade de um anjo,
mas à infâmia do prevaricador.
E mais ainda, a invej a do demônio, que o levou a enganar
o homem com suas artimanhas, tem como origem a ruína anterior,
pois ele via que o homem, formado do limo da terra, fora
chamado à glória que havia sido sua quando era um príncipe, e
da qual se lembrava que fora destituído.
Assim, a primeira queda que sofreu teve como causa o
orgulho, valendo-lhe esta, não só sua derrocada mas também o
nome de serpente. A essa primeira ruína seguiu-se uma segunda,
Os Principados 23
proveniente da invej a. Essa ainda o motiva para se levantar, entrar
em contato com o homem, com o qual é capaz de se entreter e
deliberar, mas a justa sentença do Senhor o relegou às profun
dezas; por isso, doravante não mais poderá, como antes, levantar
o olhar e assumir a posição ereta, vendo-se, portanto, condenado
a rastej ar preso ao solo e, humilhado, tem como alimento as
obras terrenas dos vícios. Até então o demônio era um adversário
oculto para o homem. Agora, no entanto, Deus o denuncia
publicamente. E estabelece entre ele e a raça humana uma pro
veitosa inimizade e uma salutar discórdia. Para que, evitado como
inimigo perigoso, ele não mais possa prejudicar o homem com
fictícias amizades.
1 1 - A punição de quem engana e de quem se deixa enganar
Todavia, como conseqüência de tudo quanto foi exposto,
é indispensável que aprendamos principalmente a fugir dos maus
conselhos.
Sej a o enganador condenado e punido convenientemente,
mas por outro lado, o que se deixou seduzir também não pode
escapar ao castigo, embora menos rigoroso do que o do sedutor.
É o que com clareza nos ensina o relato bíblico. Adão que foi
seduzido, ou melhor, segundo as palavras do Apóstolo, não
propriamente seduzido mas, para sua infelicidade, compactuado
com aquela que fora seduzida, é condenado somente ao trabalho
e ao suor do seu rosto ( l Tm 2, 1 4). Todavia, essa pena não lhe é
imposta por uma maldição pessoal, mas pelo efeito da maldição
e da esterilidade da terra.
A mulher, ao contrário, que fora a instigadora daquela
culpa, mereceu o castigo da tristeza, dos gemidos e das múltiplas
dores, tendo sido ainda condenada a ficar sempre suj eita ao
homem. Quanto à serpente, que fora a primeira a instigar aquela
24 Abade Sereno
perfídia, foi punida com eterna maldição.
Por isso, é imprescindível guardar-se com extremo cuidado
e circunspeção dos maus conselhos, visto que, da mesma forma
que esses punem o seu autor, também não deixam sem pecado e
sem castigo aquele que lhes dá ouvidos.
12 - São muitos os demônios e grande é a perturbação que
provocam no mundo
É tão densa a concentração dos espíritos maus nos ares,
espalhados entre o céu e a terra, e de tal maneira se agitam
febrilmente que, subtraí-los à nossa vista, foi uma feliz disposição
da providência divina, porque, do contrário, pelo terror que sua
presença inspira e pelo pavor das formas que revestem, segundo
seu bel-prazer, os homens ficariam indubitavelmente conster
nados e perderiam os sentidos, incapazes de suportar tal visão,
uma vez que os olhos carnais não foram feitos para experimentá
la.
Haveria também o risco de que os homens se tornassem
cada vez piores, viciados por seus exemplos e por sua imitação,
porquanto entre os seres humanos e as imundas potências do ar
surgiria uma perigosa familiaridade e um pernicioso convívio.
De fato, crimes vergonhosos são cometidos entre os ho
mens que as paredes das casas, a distância e o pudor ocultam
aos nossos olhos. Ora, se os homens tivessem a possibilidade de
observá-los abertamente seriam instigados a uma loucura ainda
maior porque não ocorreria nenhum momento em que fossem
privados de ver tais potências do mal cometerem seus crimes.
Pois, não estando elas como nós, suj eitas à lassidão corporal,
nem às solicitudes familiares ou às exigências do pão cotidiano,
nada têm como nós, que os obrigue a renunciar a seus proj etos.
Os Principados 25
1 3 - As potências adversas fomentam entre si as mesmas
hostilidades que empreendem contra os homens
É indubitável que os demônios fomentam entre si as
mesmas hostilidades com que infernizam os homens. De fato,
eles não cessam de suscitar entre si discórdias e conflitos sob a
proteção de certos povos que tomaram sob sua proteção e com
os quais estabeleceram estreitos laços de delituosa familiaridade.
É o que vemos com absoluta clareza representado numa visão
do profeta Daniel, na qual tem a palavra o anj o Gabriel : Não
temas, Daniel, porque desde o primeiro dia em que aplicaste
teu coração a compreender, mortificando-te diante do teu Deus,
tuas palavras foram ouvidas. E é por causa de tuas palavras
que eu vim. O príncipe do reino da Pérsia me resistiu durante
vinte e um dias, mas Miguel, um dos primeiros príncipes, veio
em meu auxílio. Eu o deixei afrontando os reis da Pérsia e vim
para fazer-te compreender o que sucederá a teu povo no fim
dos dias (Dn 1 0, 1 2- 1 4).
Não é possível negar que esse príncipe do reino da Pérsia
outra coisa não significa senão uma potência adversa, favorável
à nação persa e inimiga do povo de Deus. Vendo que, pelo
ministério do arcanjo, a situação se iria resolver a favor de Daniel,
como este suplicara ao Senhor, para impedir tal acontecimento,
aquele príncipe cheio de invej a se interpõe no caminho, a fim de
que a palavra de consolação levada por Gabriel não chegue
prontamente a Daniel e ao povo de Deus ao qual o arcanj o
preside.
E ele próprio afirma ao profeta ter sido o ataque tão
violento que teria impedido sua aproximação se o arcanjo Miguel
não o tivesse socorrido, enfrentando o príncipe persa e tomando
partido no combate em defesa de Gabriel. Só assim conseguiu
alcançar o profeta, após vinte e um dias, a fim de entregar-lhe a
26 Abade Sereno
instrução de que fora incumbido.
Um pouco adiante, declara ainda o profeta: Sabes por
que vim a ti? Agora volto para combater o príncipe dos persas
e, no momento em que parti, eis o príncipe da Grécia que
aparece. Entretanto eu te anunciarei o que a Escritura expressa
de verdade: E ninguém me ajudou em todas essas circunstâncias
a não ser Miguel, o vosso príncipe (Dn 1 0,20-2 1 ).
E ainda: Naquele tempo se levantará Miguel, o grande
príncipe, que está de pé pelos filhos de teu povo (Dn 1 2, 1 ).
Vemos, portanto, que há mais um outro que é príncipe da
Grécia. Além de favorecer a nação que lhe é suj eita, parece
adversário não só do povo de Israel como também dos persas.
Podemos concluir, pois, com segurança, que as discórdias,
os conflitos e as competições que as potências adversas instigam
entre as nações, também se repercutem entre elas. Alegram-se
com a vitória de umas e sofrem com a derrota de outras. Assim,
a concórdia não pode existir entre elas uma vez que cada uma
toma partido pelo povo que preside com implacável rivalidade.
1 4 - Origem dos termos "principados" e ''potências" atribuídos
aos espíritos malignos
À s opiniões precedentemente expostas, é evidente que
podemos acrescentar uma outra razão pela qual tais espíritos
são designados como principados ou potestades. É que além de
exercerem sobre diversos povos a dominação e o império,
também impõem seu jugo sobre espíritos inferiores e demônios,
os quais, de acordo com sua própria confissão, o Evangelho
declara que são legiões (cf. Lc 8,30).
De fato, não poderiam receber o nome de dominações se,
na verdade, não tivessem sobre quem exercer seu poder. Nem
tampouco potências ou principados, se também não houvesse
ninguém sobre quem pudessem reivindicar sua preeminência. A
Os Principados 27
blasfêmia dos fariseus que o Evangelho nos relata confirma bem
nossas afirmações: É por Belzebu, príncipe dos demônios, que
ele expulsa os demônios (Lc 1 1 , 1 5). Aliás, lemos em outro lugar
que estes são chamados dominadores deste mundo de trevas
(Ef 6, 1 2) e, ainda, um outro demônio é declarado príncipe deste
mundo (Jo 1 4,30).
Mas todas essas dignidades, como afirma o bem-aven
turado Apóstolo, se desvanecerão um dia, quando tudo for sub
metido ao Cristo, e ele entregar o reino a Deus Pai, após ter
aniquilado todo Principado, toda A utoridade, todo Poder (I Cor
1 5 ,24).
O que só poderá acontecer se forem subtraídos ao jugo
dos demônios tudo quanto esses submetem neste mundo por
seu poder, sua autoridade e sua dominação.
1 5 - Motivo pelo qual as santas virtudes celestes receberam o
nome de anjos e arcanjos
Não é sem razão ou causa que os nomes adotados para
designar as ordens angélicas correspondem à sua hierarquia e
exprimem suas funções e seus méritos. Com efeito, é claro que
em virtude da função que alguns têm de anunciar a vontade
divina são denominados anj os, isto é, mensageiros. Arcanj os,
por sua vez, como nos indica o próprio nome, são os que
comandam os anj os. Uns são chamados dominações porque, na
verdade, exercem domínio sobre várias categorias, o que tam
bém ocorre com os principados, que suj eitam a seu poder outros,
para os quais exercem o papel de príncipes. Tronos são os que
se encontram tão intimamente unidos a Deus e lhe são tão
próximos e familiares que a divina maj estade parece repousar
neles de modo especial, como em um trono, pois, de certo modo,
apóia-se com mais firmeza nesses espíritos.
28 Abade Sereno
1 6 A submissão dos demônios a seus príncipes, segundo a
-
visão de um irmão
Sabemos pelos testemunhos escriturísticos que os espíri
tos malignos são governados por potências ainda mais perversas,
às quais se submetem. Isso é claramente demonstrado por uma
resposta do Senhor à alusão caluniosa dos fariseus: Se eu expulso
os demônios por Belzebu, príncipe dos demônios (Lc 1 1 , 1 9).
. . .
Visões manifestas e diversas experiências dos santos igualmente
nos provam Isso.
Citaremos a esse respeito o caso de um irmão que, ao
caminhar certo dia pelo deserto, encontrou ao entardecer uma
caverna e ali penetrou para celebrar a sinaxe das V és peras.
Estando ele a cantar os salmos habituais, acabou por ultrapassar
a meia-noite. Terminado o oficio, o irmão alongou-se um pouco
a fim de se recuperar da fadiga. De repente, percebe uma multidão
de demônios a afluírem por todos os lados. Era uma profusão
infinita que avançava em longo desfile, uns precedendo os outros,
e alguns seguindo seu príncipe. Este, de aspecto aterrador,
excedia em altura a todos os demais. Foi erguido, então, um
trono no qual ele tomou assento como se fora um tribunal
elevadíssimo.
Nesse momento, deu-se início a um exame extremamente
meticuloso sobre a atuação de cada um. Aqueles que confes
savam não ter ainda conseguido enganar seus adversários, ele
expulsava de sua presença como incapazes e covardes e,
fremindo de furor, os censurava com veemência por tão longo
trabalho perdido. Em contrapartida, aqueles que se vangloriavam
de seus êxitos, isto é, de terem seduzido as almas que lhes foram
confiadas, ele cobria de elogios em meio à exultação e ao aplauso
geral, despedindo-os, publicamente cumulados de honrarias
como valentes guerreiros, propostos a todos como exemplos.
Dentre esses surge um, dando sinais de extrema perversidade.
Os Principados 29
Sua alegria é imensa, como se estivesse a relatar um triunfo
inaudito. Dando o nome de um monge de ilibada reputação, ele
afirma que, após ter este suportado incólume seu assédio inin
terrupto durante doze anos, ele acabara por vencê-lo naquela
mesma noite, instigando-o não só a cair no pecado da luxúria,
estuprando uma virgem consagrada, como ainda o convencera
a tomá-la por esposa.
Tal relato é causa de verdadeira explosão de alegria, e
aquele demônio se retira, engrandecido e cumulado de elogios
e de glória pelo príncipe das trevas.
Todavia, ao alvorecer, os demônios se dissipam ao olhar
do irmão, e este começa a duvidar das palavras do espírito
imundo. Ou, melhor, prefere acreditar que, mentindo segundo
seu hábito, ele quisesse ludibriá-lo, estigmatizando um irmão
inocente pelo crime de incesto. Lembra-se, então, da palavra do
Evangelho: Quando ele fala mentira, fala o que é próprio dele,
pois ele é mentiroso e pai da mentira (Jo 8,44).
Vai, então, a Pelúsio onde sabia que morava o irmão que,
segundo o espírito imundo, havia prevaricado. Aliás, tratava-se
de monge muito conhecido. Tendo-o, pois, procurado, veio a
saber que, naquela mesma noite em que o temível demônio
anunciara a sua queda à coorte dos espíritos malignos e ao seu
chefe, o monge abandonara o mosteiro e partira para a aldeia,
entregando-se ali ao pecado com a virgem mencionada.
1 7 A cada homem sempre estão vinculados dois anjos
-
Afirma-nos a Escritura que cada um de nós tem dois anjos
vinculados à sua pessoa, acrescentando ser um bom e o outro
mau.
Ao referir-se aos bons, diz-nos o Salvador: Não desprezeis
nenhum desses pequeninos, porque eu vos digo, os seus anjos
no céu vêem sempre a face de meu Pai que está no céu (Mt
30 Abade Sereno
18,10). E ainda conhecemos esta palavra: O anjo do Senhor
envolverá os que o temem e os salvará (SI 33,8). A esse respeito,
também temos o episódio de Pedro, relatado nos Atos dos
Apóstolos: É o seu anjo (At 12,15). O livro do Pastor nos dá uma
informação completa acerca dos dois anjos (Pastor de Hermas
II,6). Se, por um lado, consideramos o demônio que tenta o
bem-aventurado Jó, por outro lado, vemos, com clareza, que
este não conseguiu levá-lo ao pecado, apesar de todas as ciladas
e instigações com que o assedia.
Por isso o diabo pede ao Senhor que lhe dê poder sobre
ele. Pois sabe perfeitamente que a força de seu adversário não
vem dele mesmo, mas da proteção do Senhor que sempre o
defende. Lembremo-nos também do que foi dito sobre Judas : O
diabo esteja à sua direita (SI 108,6).
18 - A diferença da maldade existente nos espíritos que nos são
hostis é provada por dois filósofos
Para nós, as experiências que dois filósofos fizeram, atra
vés da magia, sobre a inércia ou força dos demônios, podem ser
bastante esclarecedoras. Alguns espíritos malignos, observando
o bem-aventurado Antão com certo desdém, por se tratar de
um homem ignorante e iletrado, à falta de outro recurso,
resolveram expulsá-lo da cela, mediante certos artificios mágicos
e astúcias demoníacas. Para consegui-lo, enviaram-lhe espíritos
de requintada perversidade, mordidos que estavam pela invej a,
pois viam que ele atraía diariamente multidões de fiéis que o
consideram um servo de Deus.
Mas aqueles espíritos ferocíssimos, ao se depararem com
Antão que, ora se persignava na fronte, ora no peito e ora se
inclinava em humilde súplica, retomam aos que os haviam
enviado, sem causar mal algum ao ancião. Outros, ainda mais
violentos, são também lançados contra ele e inutilmente pro-
Os Principados 31
curam atingi-lo. Alguns dos mais perniciosos se sucedem na
missão de atacar o valente soldado de Cristo, mas, em vão, des
pendem suas forças e voltam sem qualquer resultado.
Tantas armadilhas preparadas com tais requintes de magia
de nada serviram além de fazer brilhar a virtude singular inerente
à profissão de fé cristã. Tais demônios cruéis e poderosíssimos,
que os filósofos julgavam capazes até de escurecer o sol e a lua,
se tal missão lhes fosse confiada, não somente não tiveram poder
para causar o mínimo dano ao bem-aventurado Antão, como
nem mesmo conseguiram fazê-lo sair do mosteiro por um instante
sequer.
1 9 - Os demônios nada podem fazer contra os homens se,
primeiramente, não se apoderarem de suas mentes
Profundamente impressionados, os dois filósofos dirigi
ram-se ao encontro do abade Antão e, revelando-lhe a gravidade
dos assaltos que tramaram contra ele, confessaram-lhe que tais
maquinações eram motivadas pela secreta invej a que dele
sentiam. Disseram-lhe então que desejavam fazer-se cristãos
imediatamente. O abade indagou deles o dia daqueles assaltos e
informou-os de que, naquela ocasião, sofrera o mais doloroso
embate espiritual.
Por tal experiência, o bem-aventurado Antão provou com
clareza ser verdadeira a tese que expusemos com precisão e
defendemos ontem em nossa conferência, isto é, que os demônios
não têm o poder de ocupar a mente nem o corpo de qualquer
homem e tampouco a capacidade de invadir o íntimo da alma de
qualquer pessoa a menos que, primeiramente, a tenham destituído
de todos os santos pensamentos, tomando-a completamente
vazia de qualquer sinal de contemplação espiritual.
Todavia, convém saber que os espíritos imundos obedecem
aos homens de dois modos: ou é a santidade dos fiéis que os
32 Abade Sereno
submete pela graça divina e a virtude, ou se deixam seduzir
pelos sacrifícios dos ímpios e por certas encantações que lhes
parecem amistosas lisonjas .
Foi esse tipo d e ilusão que enganou o s fariseus, fazendo
os pensar que era por tal artifício que o Senhor, nosso Salvador,
submetia os demônios: É por Belzebu, príncipe dos demônios,
que ele expulsa os demônios (Lc 1 1 , 1 5) . Lembravam-se do cos
tume, que bem conheciam, dos seus magos e feiticeiros que
invocavam o nome de Belzebu e lhe ofereciam sacrifícios, que
sabiam que lhe eram agradáveis, conquistando assim sua inti
midade e adquirindo poder sobre os demônios a ele submetidos.
20 Indagação sobre os anjos apóstatas que, segundo o Gêne
-
sis, se uniram às filhas dos homens
Germano: A citação do Gênesis, feita ainda há pouco,
providencialmente, nos vem lembrar de um assunto que sempre
desej amos muito conhecer: Que devemos pensar a respeito
daqueles anj os apóstatas dos quais consta se terem unido às
filhas dos homens? Pode isso ser aplicado literalmente a naturezas
espirituais? (cf. Gn 6,2).
Quanto àquele testemunho evangélico que também citas
tes, acerca do diabo : Porque ele é mentiroso e seu pai também
(Jo 8,44), gostaríamos igualmente de saber a quem se deve reco
nhecer como sendo seu pai.
2 1 Resposta à questão apresentada
-
Sereno: Apresentais, a um só tempo, duas questões
bastante difíceis. Responderei a ambas de acordo com minhas
possibilidades e na ordem em que vós mesmos as colocastes:
Em primeiro lugar, direi que de modo algum se deve acreditar
Os Principados 33
que naturezas espirituais possam ter comércio carnal com mu
lheres. Se, de fato, isso fosse interpretado ao pé da letra, por
que não ocorreria de novo em nossos dias, ainda que raramente?
Teríamos, assim, visto nascimentos provenientes de demônios e
sem sêmen viril. E, principalmente, j á que se comprazem com
paixões vergonhosas, dariam preferência a praticarem tais atos
por si mesmos e não a levar os homens a cometê-los. Pois eis o
que afirma o Eclesiastes: O que foi é o que será: o que acontece
é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol.
Se é encontrada alguma coisa da qual se diga: Veja, isso é
novo, elajá existia nos tempos passados (Ecll,9-10- LXX). Mas
eis a solução para a questão proposta. Após a morte do justo
Abel, para que a raça humana não se originasse de um ímpio
fratricida, nasceu Seth, não só para substituir o irmão falecido
no lar paterno, como principalmente para herdar sua j ustiça e
sua piedade. Os filhos de Seth foram fiéis a seu exemplo e evi
taram qualquer sociedade ou aliança familiar com a linhagem
do sacrílego Caim. Isso é atestado com clareza na diferença ge
nealógica de um e de outro. Assim, pois, lemos no Gênesis:
Adão gerou Seth, Seth gerou Enos, Enos gerou Cainam, Cai
nam gerou Maleleel, Maleleel gerou Jared, Jared gerou Eno
que, Enoque gerou Matusalém, Matusalém gerou Lameque,
Lameque gerou Noé (Gn 5,4-30). Contudo, a genealogia de Caim
foi exposta à parte : Caim gerou Enoque, Enoque gerou Cainam,
Cainam gerou Maleleel, Maleleel gerou Matusalém, Matusa
lém gerou Lameque, Lameque gerou Jobel e Juba! (Gn 4, 17-2 1).
Assim, as gerações provenientes de Seth, o justo, não admitiram
alianças fora de sua linhagem e de seu sangue e conservaram-se
durante um longo tempo na fidelidade de seus ancestrais,
contraindo sempre alianças dentro de sua linhagem e j amais se
contaminando com os sacrilégios e os perversos descendentes
da raça impiedosa que transmitia o germe do mal.
Enquanto perdurou aquela separação entre as raças, os
34 Abade Sereno
descendentes de Seth, dignos de sua nobre origem, mereceram
graças à sua santidade a denominação de anjos de Deus ou,
como declaram alguns textos, filhos de Deus. Ao contrário, os
descendentes de Caim, em razão de sua impiedade ou da de
seus pais e, devido às suas obras terrestres, foram chamados
filhos dos homens.
Essa feliz e santa separação se manteve até que os filhos
de Seth, que também eram os filhos de Deus, vendo as j ovens
que nasciam da raça de Caim, inflamados por sua beleza,
começaram a tomar algumas como esposas. Essas, porém,
contaminaram seus maridos com os vícios de seus pais e logo
os corromperam, fazendo-os perder a santidade original e a
simplicidade ancestral. É com muita propriedade que a eles se
aplicam estas palavras da Escritura: Sois deuses, filhos do Deus
altíssimo! E, contudo, morrereis como homens, caireis como
qualquer dos poderosos I (SI 8 1 ,6-7).
De fato, eles esqueceram aquela verdadeira filosofia natural
herdada de seus pais, e que o primeiro homem, surgido logo
após a instituição de todas as naturezas, pôde contemplar com
absoluta clareza e transmitir à sua posteridade. Pois ele fora
testemunha da infância do mundo, ainda tenra e palpitante em
seu inédito frescor. E viu-se dotado de tal plenitude de sabedoria,
agraciado com o dom da profecia infuso em tão alto grau pelo
sopro divino, que, apesar de ser um habitante recém chegado a
este mundo, impôs o nome a todos os animais, sendo capaz de
discernir não só a ferocidade dos que eram selvagens e o veneno
das serpentes, como também a virtude das plantas e das árvores,
e ainda a natureza das pedras, chegando mesmo a conhecer,
embora sem experiência, o ciclo das estações. E assim, pôde ele
afirmar com toda a verdade: Foi ele que me deu a verdadeira
ciência de todas as coisas, quem me fez conhecer a constituição
do mundo e as virtudes dos elementos, o começo, o fim e o
Os Principados 35
meio dos tempos, a sucessão dos solstícios e as mutações das
estações, os ciclos do ano e as posições dos astros, a natureza
dos animais e os instintos dasferas, os poderes dos espíritos, a
força dos ventos e os pensamentos dos homens, a variedade
das plantas e as propriedades das raízes. Tudo que está oculto
e tudo o que está aparente eu conheço: porque foi a Sabedoria,
criadora de todas as coisas, que mo ensinou (Sb 7, 1 7-21 - LXX).
Essa ciência universal das naturezas foi transmitida à
linhagem de Seth corno urna tradição paterna enquanto conseguiu
proteger-se da raça sacrílega. Com a mesma santidade com que
a recebera, também ela a usava quer no culto divino, quer nas
necessidades ordinárias da vida. Mas, por se ter esse povo depois
mesclado com a raça ímpia, e também, por influência dos de
mônios, passou a utilizar para fins profanos e prejudiciais o que
aprendera com piedade. E a partir daquela ciência, instituiu com
virulência a estranha arte dos malefícios, dos artifícios e as
práticas supersticiosas da magia, ensinando aos seus pósteros o
abandono do santo culto da divindade para aderir à veneração
dos elementos, do fogo e dos demônios do ar.
Corno é que esse conhecimento das coisas ocultas não
desapareceu com o dilúvio e chegou aos séculos seguintes?
A solução do problema que nos ocupa não está vinculada
à resposta dessa nova indagação, todavia, j á que a ocasião se
apresenta, falarei também, embora sucintamente, a esse respeito.
Segundo antigas tradições, Carn, filho de Noé, fora iniciado em
tais superstições e artes sacrílegas e profanas. Sabendo que na
arca, onde devia entrar com seu pai, que era um justo, e com
seus virtuosos irmãos, não poderia introduzir um livro que
conservasse a memória daquelas pérfidas tradições, esculpiu
aquelas artes criminosas e invenções abomináveis em lâminas
metálicas de diversos metais inatacáveis pela água.
36 Abade Sereno
Terminado o dilúvio, com o mesmo cuidado com que ocul
tara aquelas sementes sacrílegas e de perpétua perversidade, ele
se pôs a procurá-las. E achando-as, transmitiu-as a seus descen
dentes. Eis, pois, o que há de verdadeiro na crença popular,
segundo a qual foram anjos que ensinaram aos homens seus
malefícios e diversas artes ocultas.
Da união dos filhos de Seth com as filhas de Caim nasceram
filhos piores que seus progenitores. Foram robustos caçadores,
homens violentos e belicosos, denominados gigantes pela
enormidade de seus corpos e por sua ferocidade (cf.Gn 6,4) .
Tomaram-se os primeiros a praticar a pilhagem e a rapinagem
contra seus vizinhos, preferindo viver do roubo que do suor de
seu trabalho e do próprio esforço. A tal ponto cresceram seus
crimes que o mundo não pôde ser purificado senão pelo dilúvio.
Obedecendo aos impulsos da paixão, os filhos de Seth
transgrediram o mandamento que, por um instinto natural,
haviam observado durante longo tempo, desde o princípio do
mundo. Por isso, tomou-se necessário restabelecê-lo por escrito:
Não contrairás com elas (com as filhas de Caim) matrimônios,
não darás tua filha a seus filhos, e não tomarás de suas filhas
para teu filho. Pois elas afastariam do Senhor o teu filho, e
seduziriam vossos corações para servirem e adorarem seus
deuses (Dt 7,3 ; Ex 34, 1 6; 1 Rs 1 1 ,2).
22 Objeção: Por que se pode imputar como culpa a união
-
dos descendentes de Seth com as filhas de Caim, se ainda não
fora proibida por uma lei explícita?
Germano: Seria justo incriminar os filhos de Seth por
sua presunção de se terem unido às filhas de Caim, se esse
preceito já lhes tivesse sido dado. Mas, desde que nenhuma lei
lhes prescrevia até então aquela separação, como imputar-lhes,
como falta, alianças contra as quais não havia ainda nenhuma
Os Principados 37
interdição? A lei não condena os crimes passados, apenas os
futuros.
23 Desde o início do mundo, os homens são passíveis de
-
julgamento e de punição pela desobediência à lei natural
Sereno: Deus, ao criar o homem, nele infundiu natural
mente toda a ciência da lei. Se ele a tivesse sempre observado,
como era a vontade do Senhor e como o fizera até então, não
seria necessário promulgar em seguida outra lei, ainda mais
escrita. Seria supérfluo oferecer externamente um remédio que
j á atuava com eficácia na alma do homem. Mas, desde que a
licenciosidade e o hábito do pecado alteraram significativamente
aquela lei natural, a rigorosa disciplina da lei mosaica lhe foi
acrescida para assegurar sua execução e sua fidelidade, ou,
servindo-nos das próprias palavras da Escritura, como sua
auxiliar a fim de que ao menos o temor do castigo presente
impedisse os homens de extinguir completamente os beneficios
da ciência natural. Como disse o profeta: Deus deu a lei como
ajuda (ls 8,20 - LXX). Por sua vez, o Apóstolo no-la apresenta
sob os traços de um pedagogo, destinado a formar e proteger
os homens para que o esquecimento não os levasse a se afastarem
da disciplina em que a natureza os havia educado (cf. 01 3 ,24).
Que, desde a origem da criação, tenha sido infundida no
homem toda a ciência da lei, atesta-o com evidência o fato de
que todos os santos, mesmo antes da lei e do próprio dilúvio,
terem observado os preceitos legais sem nenhum código escrito.
De fato, como poderia saber Abel, sem nenhuma prescri
ção explícita, que devia oferecer a Deus em sacrificio as primícias
de seu rebanho e a gordura de suas ovelhas, se uma lei inata não
o houvesse instruído? (cf. Gn 4,4). Como teria Noé distinguido,
antes de qualquer norma legal, os animais puros dos impuros,
38 Abade Sereno
se uma ciência natural não lhe houvesse mostrado? (cf. Gn 7,2).
E Enoque, onde teria aprendido a caminhar com Deus se
ninguém lhe comunicara as luzes da lei? (cf. Gn 5 ,22).
Onde Sem e Jafé teriam lido : Tu não descobrirás a nudez
de teu pai? (Gn 9,23 ; Lv 18,7), para andarem de costas e cobrirem
a nudez do pai? O que teria levado Abraão a recusar parte dos
despoj os do inimigo que lhe eram oferecidos (cf. Gn 14,22), para
não receber a recompensa por seus trabalhos e pagar a Mel
quisedeque os dízimos prescritos pela lei de Moisés? (cf. Gn 14,20).
Quem o teria instruído? Quem teria ensinado a Abraão e
também a Lot (cf. Gn 18- 1 9), a prestarem os humildes serviços da
hospitalidade aos peregrinos e viaj antes, lavando-lhes os pés,
quando não resplandecia ainda o mandamento evangélico? (cf.
Jo 1 3 ,34). Onde Jó teria obtido uma fé tão amadurecida, tanta
pureza na castidade, tanta ciência na humildade, na mansidão,
na misericórdia e na hospitalidade? Já que agora mesmo não as
vemos praticadas em tal grau, sequer por aqueles que sabem de
cor o Evangelho? Acerca de que santo lemos que não tenha
observado um único preceito da lei, mesmo antes que esta tenha
existido? Não se conhece qualquer deles que não haja guardado
as palavras do Deuteronômio : Ouve, Israel, o Senhor é o único
Senhor? (Dt 6,4). Qual deles não cumpriu o seguinte mandamento:
Não farás imagem talhada, nemfigura do que há no céu ou do
que há na terra, ou do que há nas águas abaixo da terra? (Ex
20,4). Quem dentre eles não obedeceu ao: Honra a teu pai e a
tua mãe? (Ex 20, 12). Ou aos outros preceitos que se encontram
no Decálogo : Não matarás, não cometerás adultério, não
furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás a mulher
do teu próximo? (Ex 20, 1 3 -17), e outros ainda até maiores, com
os quais eles se anteciparam não só à lei, mas até aos conselhos
evangélicos?
Os Principados 39
2 4 Aqueles que pecaram antes do dilúvio foram castigados
-
com justiça
Daí, vemos que Deus desde o princípio criou todas as
coisas com perfeição e, se estas tivessem permanecido no estado
e na disposição em que as criou, j amais teria sido necessário
acrescentar nada àquela ordenação inicial, como se fora uma
organização deficiente ou imprevidente. Por isso, reconhecemos
que foi devido a um j usto julgamento que Deus castigou os que
pecaram antes da Lei, até mesmo antes do dilúvio, porque trans
grediram a lei natural, o que os deixa sem nenhuma desculpa.
Nós, porém, não seremos coniventes com aquela calúnia blas
fema dos que, ignorando esse motivo que expusemos, rebaixam
o Deus do Antigo Testamento e, desprezando a nossa fé, escar
necem, dizendo : "Por que aprouve a vosso Deus promulgar,
após o decurso de tantos séculos, uma lei que até então fora
omitida? Se algo de melhor aconteceu no perpassar dos anos, é
evidente que, na origem do mundo, Ele teve planos menos sábios
e menos perfeitos e que, depois, então, como que instruído pela
experiência, começou a conceber projetos mais aprimorados para
o futuro, corrigindo, assim, suas primeiras concepções."
Tais afirmações, de modo algum, se podem adequar à
infinita presciência de Deus. Nem a insana heresia proferir tais
blasfêmias. Pois, como diz Eclesiastes: Reconheci que tudo o
que Deus fez subsistirá sempre, sem que se possa acrescentar
nada, sem nada suprimir (Ecl 3 , 1 4 - LXX). É por isso que a Lei
não foi dada para osjustos, mas para os injustos e insubmissos,
os ímpios e os pecadores, os criminosos e profanos ( 1 Tm 1 ,9).
Instruídos em uma doutrina sadia e íntegra, pela lei natural que
lhes era inerente, aqueles primeiros homens não necessitavam
de uma lei extrínseca e confiada às letras, a qual não lhes fora
dada senão como auxílio à lei natural. Daí se deduz que essa lei
40 Abade Sereno
escrita não lhes devia ser entregue, logo no princípio, por ser
então supérflua, uma vez que já estava vigente a lei natural ainda
não completamente violada. Por outro lado, a perfeição evan
gélica não lhes podia ser revelada antes que aprendessem a
observar a lei natural. De fato, como poderiam eles ouvir: Se al
guém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda?
(Mt 5,39). Pois os que não se satisfaziam em vingar as injúrias
pela lei de talião, reagiam a um leve tapa com pontapés e feri
mentos infligidos pelas armas, chegando por causa de um dente
a tirar a vida aos que os agrediam.
Impossível também dizer-lhes: Amai os vossos inimigos
Pois, j á eram considerados extremamente virtuosos os
(Mt 5,44).
que amavam os próprios amigos e os que, em relação aos ini
migos, se contentavam em evitá-los e em afastar-se deles com
ódio, sem atacá-los ou tirar-lhes a vida.
25 - Como se deve entender a palavra evangélica: O diabo é
mentiroso como seu pai
Tratarei agora daquela palavra do Evangelho que tanto
vos impressionou: O diabo é mentiroso como seu pai (Jo 8,44).
É totalmente contrário ao bom senso suspeitar, mesmo de modo
superficial, que o Senhor tenha dito que o demônio e seu pai
são igualmente mentirosos. Como foi visto há pouco, o espírito
não pode gerar espírito. Nem uma alma é capaz de procriar
outra alma. Apesar de não haver dúvida de que a carne, à qual a
alma está unida, sej a proveniente do sêmen humano.
O Apóstolo distingue perfeitamente as duas substâncias
de que o homem é formado, estabelecendo com precisão a
origem de cada uma: Assim, como respeitávamos nossos pais
humanos que foram nossos educadores, será que não devemos
nos submeter muito mais ao Pai espiritual para recebermos a
Os Principados 41
vida ? (Hb 1 2,9). Poderia haver algo mais claro do que essa
distinção?
Os homens são os pais de nossa carne, enquanto Deus é o
único pai de nossas almas. Embora devamos reconhecer que na
formação do corpo humano o homem tem apenas uma função
instrumental, podemos afirmar que a nossa criação é devida
essencialmente a Deus, Criador de todas as coisas. Como diz
Davi : As tuas mãos me criaram e me modelaram (Sl 1 1 8,73). E o
bem-aventurado Jó também falou: Não me derramaste como
leite e me coalhaste como queijo, de ossos e nervos me teceste
(Jó 1 0, 1 0- 1 1 - LXX). E enfim disse o Senhor a Jeremias: Antes que
eu te houvesse formado no seio materno, já te conhecia (Jr 1 ,5).
Por sua vez o Eclesiastes considera a natureza e a origem
de cada substância, examinando o início e o princípio de que ca
da uma provém e ainda o fim a que ambas tendem para concluir,
com bastante propriedade: Que o pó retorne à terra para se
tornar o que era, e antes que o espírito retorne a Deus que é
seu autor (Ecl 1 2,7 - LXX). Seria possível falar com maior clareza?
A matéria da carne, a que chama pó, porquanto provém do sêmen
masculino, e parece ser semeada por intermédio do homem, volta
à terra, tendo sido dela retirada. Mas o espírito, . ao contrário,
que não é gerado pela união de dois sexos, porque é unicamente
dom de Deus, volta a seu autor. É isso que significa aquele sopro
pelo qual Deus animou o corpo de Adão. Por esses testemunhos,
deduzimos com segurança que ninguém se pode imputar pai
dos espíritos, senão unicamente Deus, que os faz do nada quando
lhe apraz, pois os homens só podem ser considerados pais de nossa
carne. O diabo, portanto, enquanto foi criado como espírito ou an
jo, é originariamente bom, e não teve outro pai senão Deus, seu
criador. Mas, ao encher-se de soberba, disse em seu coração: Elevar
me-e i acima das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo (Is I 4, I 4).
Tornou-se, pois, mentiroso e não permaneceu na verdade (Jo 8,44).
42 Abade Sereno
Ao tirar, porém, a mentira de seu próprio repositório de
iniqüidades, o diabo toma-se mentiroso e pai da mentira. É o
que ele prova ao oferecer ao homem a divindade: Sereis como
deuses (Gn 3,5). Não permanecendo na verdade, mas se trans
formando desde cedo em homicida, tanto ao introduzir Adão na
condição de mortal, como também ao instigar o crime, acaba
levando Abel à morte, pela mão de Caim.
Mas o despertar da aurora põe fim a nossa dissertação -
que já se prolonga por duas noites - e a temas tão vastos e pro
fundos como o abismo dos mares. Minha rusticidade, impondo
me limites, traz-me de volta ao silêncio, como a um porto tran
qüilo e seguro. Quanto mais o sopro interior do Espírito divino
nos levar a essas profundezas, tanto mais se abriria a nossos
olhos a sua imensidade. Segundo a palavra de Salomão : (A
Sabedoria) se torna mais distante do que era, e esta grande
profundidade quem a atingirá? (Ecl 7,24 - LXX). Roguemos, pois,
ao Senhor que o seu temor e sua inexaurível caridade per
maneçam indeléveis em nós (cf. I Cor 13 ,8), fazendo-nos sábios
em todas as coisas e protegendo-nos sempre contra os dardos
do demônio. Pois o que faz a diferença entre perfeitos e im
perfeitos é que naqueles a caridade se acha profundamente
radicada e, tendo alcançado um grande grau de maturidade, os
mantém mais firmes e seguros na santidade, nestes, porém, ela
se encontra menos fortemente arraigada e mais frágil, deixando
os enredar-se mais depressa e mais freqüentemente nos laços
do pecado.
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'""'�
Após a conferência que acabávamos de ouvir, ficamos tão
inflamados por aquelas palavras, que nossa sede de uma doutrina
de tal plenitude era ainda mais ardente ao deixarmos a cela do
ancião, que quando ali havíamos chegado.
IX
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE ISAAC
A Ü RAÇÃO
1 - Introdução à conferência
As conferências do venerável abade Isaac, que ora
apresentamos, vêm, com a ajuda do Senhor, dar cumprimento à
promessa, feita no final do segundo livro das Instituições sobre
a necessidade da oração permanente e contínua. Revelando-as,
tenho esperança de satisfazer tanto as ordens do bispo Castor,
de feliz memória, quanto o vosso desejo, bem-aventurado bispo
Leôncio e venerável irmão Heládio. Antes do mais, porém, quero
desculpar-me pela vastidão da obra. Embora me tenha empenha
do para tomá-la mais concisa, e até omitido muitas coisas, esten
di-me além do que havia estipulado. De fato, o bem-aventurado
Isaac, após ter tratado copiosamente de diversos costumes, que
preferi resumir para não tomar este relato demasiado prolixo,
assim terminou sua palestra:
2 - Palavras do abade Isaac sobre a qualidade da oração
Toda a fmalidade do monge, bem como a perfeição de seu
coração tendem a uma contínua e ininterrupta perseverança na
oração. E, tanto quanto lhe permite a fragilidade humana, o mon-
44 Abade /saac
ge procura alcançar urna inalterável tranqüilidade e urna
permanente pureza de alma. E é esse o motivo que nos leva a
enfrentar não só o trabalho corporal corno ainda a contrição do
coração que procuramos praticar com indefectível empenho.
Na realidade, entre essas duas atitudes existe um vínculo
recíproco e indissolúvel. Pois, assim corno toda a estrutura das
virtudes tem corno escopo a perfeição da oração, assim, também,
sem essa meta que mantém reunidas todas essas partes, isto é,
as virtudes, nada permanecerá firme e estável. De fato, sem a
prática das virtudes, não se pode adquirir nem assegurar essa
constante tranqüilidade da oração de que falamos. Mas também
em contrapartida, as virtudes que predispõem à oração, sem a
fidelidade a esta, j amais chegarão à sua perfeição. Assim sendo,
não poderemos, com improvisado discurso, tratar corretamente
da eficácia da oração, nem atingir seu fim principal, que supõe a
prática das virtudes, a não ser que, preliminarmente, examinemos,
por ordem, os obstáculos que devem ser vencidos e os prepa
rativos que devem ser feitos para a sua obtenção. Instruídos
pela parábola evangélica (cf. Lc 1 4,28), compete-nos, primeira
mente, avaliar e reunir tudo quanto se fizer necessário para a
construção daquela elevada torre espiritual.
Contudo, os materiais assim preparados de nada nos ser
viriam, incapazes que seriam de sustentar a cúpula sublime da
perfeição, sem um trabalho anterior, que consiste em remover
todos os nossos vícios e desenterrar de nossa alma os resquícios
e as ruínas das paixões. Depois, lançando-se sobre a terra viva e
sólida de nosso coração, - corno se costuma dizer - ou melhor,
sobre aquela rocha de que fala o Evangelho (cf. Lc 6,48), os
inabaláveis alicerces da simplicidade e da humildade, essa torre
de nossas virtudes se poderá erigir, de maneira indestrutível e
segura e, em virtude de sua própria solidez, elevar-se até o mais
alto dos céus.
A Oração 45
Edificada sobre tais fundamentos, mesmo que se precipite
sobre ela o dilúvio das paixões, ou, como um aríete, se abatam
em cima dela as violentas torrentes das perseguições, ou, ainda,
que se choquem contra ela espíritos hostis, nada fará com que
se desmorone, ou mesmo, sej a abalada.
3 - De que modo a oração deve tornar-se pura e sincera
Para que a oração possa alcançar o grau de fervor e pureza
que lhe convém, cumpre-nos observar algumas normas. Primei
ramente devemos abolir por completo qualquer preocupação
relativa às tendências carnais. Em seguida, urge que não acei
temos, - j á não digo - qualquer solicitude - mas até mesmo a
lembrança de qualquer atividade ou interesse profano . De
maneira idêntica, é imprescindível renunciar às maledicências,
às palavras vãs, às tagarelices, aos gracej os. E, antes de mais
nada, suprimir com intolerância, os impulsos da cólera e as
demonstrações de tristeza. É preciso também erradicar completa
mente o foco pernicioso da concupiscência carnal e da ambição
do dinheiro.
Assim, profundamente erradicados e extirpados esses e
outros vícios semelhantes, que nem mesmo ao olhar humano
podem passar despercebidos; após a purificação que estabele
cermos, e que se concretiza pela pureza e a simplicidade da
inocência, é necessário lançar primeiramente, os inabaláveis fun
damentos de profunda humildade capazes de sustentar a torre
que elevará sua cúpula até os céus.
Sobre esta, colocar-se-á o edifício espiritual das virtudes,
impedindo-se à alma qualquer escapada que a leve a divagações
e pensamentos sensuais, para que assim, ela comece a se elevar
paulatinamente até a contemplação de Deus e à intuição das
realidades espirituais.
46 Abade lsaac
De fato, tudo aquilo que nossa alma engendrar antes da
hora da oração, nos será infalivelmente representado, pela memó
ria, enquanto oramos. Por conseguinte, tais como desejamos
ser durante a oração, urge que o sej amos também antes da
oração. Pois é de nossas condições anteriores que depende o
estado de nossa alma durante a oração.
Ao nos prostrarmos para rezar, atos, palavras e sentimentos
ressurgem - como um prelúdio aos olhos de nossa imaginação,
idênticos aos que aceitávamos anteriormente, suscitando, de
acordo com o que sentíamos então, a cólera ou a tristeza, ou
ainda, a recordação de nossas concupiscências e de nossa irasci
bilidade. Por isso, às vezes, - e envergonha-me dizê-lo - apre
sentamos um sorriso tolo à lembrança de algum gracejo ou
palavra inconveniente, porque nosso pensamento se pôs de novo
a revolutear pelos antigos devaneios.
Assim, tudo quanto nos pareça indesejável e inoportuno
durante a oração devemos apressar-nos a rejeitar com empenho,
no tempo mesmo que a precede, para que possamos observar o
preceito do Apóstolo: Orai sem cessar ( 1Ts 5 , 1 7). E ainda: Que
os homens orem em todo lugar, erguendo mãos santas, sem ira
e sem animosidade ( 1 Tm 2,8). Mas nunca nos tomaremos capazes
de atender a esta admoestação se nossa alma purificada de todo
contágio com o vício e totalmente entregue às virtudes, como a
seu estado natural, não se nutrir continuamente da contemplação
do Deus onipotente.
4 - A mobilidade da alma comparada com uma pena ou com
uma pequena asa
A alma, com bastante propriedade, poderia ser comparada
a uma pena sutil ou a uma asa levíssima. Se nenhuma umidade
exterior chegar a maculá-la ou impregná-la, a mobilidade ineren
te à sua substância fará com que, à menor aragem, ela se eleve
A Oração 47
naturalmente para as alturas celestiais. No entanto, se porventura,
for penetrada por respingos de qualquer líquido, tornar-se-á pesa
da e, ao invés dos arroubos celestiais, sua mobilidade infiltrada
de líquido irá puxá-la até a terra.
A mesma coisa se observa em relação à nossa alma. Se os
vícios e interesses do mundanos não vêm sobrecarre gá-la, ou se
não for maculada pela paixão pecaminosa, elevar-se-á, pelo
privilégio natural de sua pureza, ao mais leve sopro da meditação
espiritual, ascendendo às alturas e desprezando as coisas rasteiras
e terrenas erguer-se-á até as alturas celestes e invisíveis.
É, portanto, diretamente a nós que se dirige a advertência
do Senhor: Cuidado para que os vossos corações não fiquem
pesados pela devassidão, pela embriaguez, pelas preocupações
da vida (Lc 2 1 ,34).
Assim, caso desej emos que nossas orações cheguem até
os céus e penetrem mesmo além deles, empenhemo-nos para
libertar nossa alma de todo vício, purifiquemo-la de toda escória
da sensualidade a fim de restituí-la à sua natural subtileza. Aí,
nossa oração, livre do peso morto dos vícios, será capaz de
subir até Deus.
5 - Causas que oneram a alma
Todavia, observemos com cuidado quais as causas que o
Senhor aponta como responsáveis por onerar a alma. Ele não
mencionou adultérios, fornicações, homicídios, blasfêmias, ou
roubos. Ninguém ignora que tais pecados levam à morte e à
condenação. Mas ele se referiu à devassidão, à embriaguez, aos
cuidados e às preocupações mundanas. Contudo, quanto a essas,
não só as pessoas que vivem no mundo não as evitam, - chego
até a envergonhar-me ao mencionar - mas até alguns, que se
ufanam do nome de monge, se entretêm com esses divertimentos
48 Abade Isaac
como se fossem inofensivos ou mesmo de alguma utilidade.
Compreendidos ao pé da letra, esses três vícios tomam a
alma pesada, pois a afastam de Deus e a inclinam às coisas
terrestres. No entanto, não é dificil evitá-los, principalmente em
nossa condição, j á que tão longa distância nos separa da vivên
cia mundana e em nenhuma ocasião somos obrigados a nos preo
cupar com os interesses visíveis ou mesmo com os excessos na
comida ou bebida.
Mas há também uma embriaguez não menos funesta, um
inebriar-se espiritual, ainda mais dificil de ser evitado; e um outro
tipo de interesses e solicitudes temporais. E mesmo após termos
renunciado a todos os nossos bens, na completa abstinência de
vinho e de iguarias em que vivemos, e até mesmo em meio à
nossa solidão, elas freqüentemente nos envolvem. É, pois, a
respeito de tais coisas que diz o profeta: Despertai, vós que
estais ébrios, mas não de vinho (JI 1 ,5 - LXX). E outro também
diz: Enchei-vos de pasmo. Sim, ficai pasmos. Cegai-vos, sim,
ficai cegos. Embriagai-vos, mas não por vinho. Cambaleai, mas
não por causa da bebida forte (Is 29,9). Assim, o vinho que
provoca essa embriaguez, outra coisa não poderá ser senão o
furor dos dragões (Dt 32,33 - LXX) de que fala o profeta. E obser
vai de que raiz provém essa bebida: Pois sua vinha é vinha de
Sodoma e vem das plantações de Gomorra; suas uvas são uvas
venenosas e seus cachos são amargos (Dt 32,32 - LXX).
Sim, se não nos purificarmos completamente de todos os
vícios e não nos tomarmos isentos da sordidez das paixões,
certamente foi em vão que nos abstivemos dos excessos da
comida e da bebida, pois nosso coração carrega o peso de uma
embriaguez e de uma saciedade ainda mais funesta.
E o que nos vem provar que as preocupações com a vida
presente podem ainda se abater sobre nós, que praticamente
não nos imiscuímos nas atividades mundanas, é a regra pro-
A Oração 49
posta pelos anciãos na qual declaram que tudo quanto excede
às necessidades da vida cotidiana e às estritas exigências do
corpo, deve ser considerado solicitude e preocupação mundanas.
6 - A visão que um ancião teve acerca da operosidade descon
trolada de um irmão
Que os demônios são os instigadores de tais excessos é o
que nos ensina uma experiência irrefutável.
Um ancião dos mais experientes, ao passar perto da cela
de certo irmão, observou que este estava acometido da doença
a que aludimos, pois não se passava sequer um dia sem que ele,
agitado, não se afadigasse na construção ou reparação de coisas
supérfluas. De longe o ancião o viu tentando quebrar um bloco
de pedra duríssimo, com um martelo muito pesado, tendo a seu
lado um etíope que, com as mãos entrelaçadas nas dele, ajudava
o a desfechar as marteladas e o instigava a esse trabalho com
tochas de fogo. Por muito tempo deteve-se o ancião, impres
sionado com a crueldade dos ataques demoníacos e a imensa
ilusão em que o irmão se deixava enredar.
Como o irmão, exausto pelo excesso de trabalho, procu
rasse descansar, pondo fim à obra, o demônio novamente o
instigava, forçando-o a pegar mais uma vez o martelo e a
recomeçar, com a mesma urgência, o trabalho ininterrupto.
Assim, sucessivamente incitado, o irmão não sentia o peso de
tal labor.
Então, profundamente emocionado pelo cruel embuste do
demônio, o ancião, desviando-se de seu caminho, vai até a cela
do irmão e saudando-o lhe diz: "Que tipo de trabalho é esse que
estás fazendo?" E o irmão responde: "Trabalhamos neste bloco
de pedra duríssimo, e foi com imenso esforço que pudemos parti
lo". E o ancião, em resposta: "Bem disseste 'pudemos' pois não
o partiste sozinho, contigo estava um outro a quem não viste. E
50 Abade lsaac
que, neste trabalho, não só te ajudava como também com a maior
violência te instigava a prossegui-lo".
Portanto, para demonstrar que nossa alma não está imune
a essa doença dos interesses mundanos, não será suficiente que
nos mantenhamos afastados de negócios que fogem ao nosso
âmbito e dos quais, mesmo que quiséssemos, não nos seria
possível tratar. Nem tampouco desprezar aquilo ao qual, se nos
apegássemos, nos denunciaria não só aos homens espirituais
como também aos homens notáveis do mundo. Mas o que
demonstraria nossa liberdade em relação a tais interesses seria
poder afastar com inflexível determinação tudo quanto realmente
está a nosso alcance e poderíamos mascarar com um honesto
pretexto .
Poderíamos julgar que tais coisas não passam de ninharias
sem a menor conseqüência e que homens da nossa profissão as
admitem sem remorsos. Mas, na realidade, tais "ninharias," por
sua natureza, não sobrecarregam menos nossa alma, do que
outros interesses mundanos mais importantes, que, em virtude
de sua condição, costumam inebriar os sentidos das pessoas
mundanas. Tais bagatelas não permitem que o monge, purificado
de toda escória terrena, se eleve até Deus, em quem deve ter
sempre fixada a atenção de seu espírito. Pois, para o monge, a
mínima separação desse Bem supremo deve parecer uma verda
deira morte e o mais funesto dos fins.
Quando a alma, estabilizada nessa tranqüilidade e liberada
de todos os liames das paixões carnais, fixar a intenção do
coração naquele único e sumo Bem aí, então, se estará cumprindo
o preceito do Apóstolo : Orai sem cessar ( l Ts 5, 1 7). E ainda:
Que os homens orem em todo lugar, erguendo mãos santas,
sem ira e sem animosidade ( 1 Tm 2,8).
É que, na verdade, a alma, deixando-se absorver assim
por essa pureza, e restaurada segundo um modelo angélico e
A Oração 51
espiritual, passará a transformar todas as suas impressões, todos
os seus atos em puríssima e verdadeira oração.
7 - Pergunta-se: Será mais difícil conservar os bons pensa
mentos ou concebê-los?
Germano: Oxalá pudéssemos conservar os pensamentos
espirituais com a mesma facilidade com que os concebemos.
Mal, porém, nosso coração os concebeu, graças à lembrança de
uma palavra da Escritura ou de alguma ação meritória ou, ainda,
pela contemplação dos mistérios celestes, eles escapam numa
fuga insensível, esvaindo-se imediatamente. Se nosso espírito,
depois, descobre novas ocasiões de elevação espiritual, de
repente reaparecem as distrações e aqueles bons pensamentos,
que tínhamos conseguido reter, por sua vez esquivam-se numa
lúbrica volubilidade. A alma, incapaz de se fixar, não consegue
dar consistência aos santos pensamentos. E, mesmo quando pare
ce retê-los, acaba por pensar que ela os concebeu fortuitamente
e não por algum merecimento. Com efeito, como acreditar que
deveríamos atribuí-los à nossa livre vontade, quando sequer
somos capazes de conservá-los? Receio, porém, que o exame
dessa questão não nos afaste por demais de nosso assunto e não
retarde excessivamente os esclarecimentos prometidos a respeito
da natureza da oração. Portanto, deixemo-lo para mais tarde e
instantemente pedimos que neste momento nos dês instruções
acerca da natureza da oração, mesmo porque o bem-aventurado
Apóstolo nos adverte a j amais interrompê-la, quando diz: Orai
sem cessar ( I Ts 5 , 1 7). Assim, nosso desejo primordial é que nos
ensines qual a natureza e quais são as qualidades de que se deve
sempre revestir a oração. Depois, nos dirás os meios de que
devemos lançar mãos para nela perseverar, tomando-a inin
terrupta. Um coração que pouco se empenhe em praticá-la,
j amais poderá alcançá-la. Isso nos é demonstrado não só pela
52 A bade Isaac
experiência diária como também pelas reflexões que fizeste sobre
esse tema e nas quais ficou demonstrado que a finalidade do
monge e o cume de toda perfeição tem seu fundamento na
perfeição da oração.
8 Resposta: As diferentes modalidades de prece
-
Isaac: Considero impossível, sem uma absoluta pureza
de coração e uma iluminação especial do Espírito Santo, poder
compreender todas as formas de prece. Elas são tão numerosas
que podem ser encontradas em uma só alma e também em todas
as almas, segundo os estados e disposições de cada uma. E assim,
embora saibamos que a insensibilidade de nosso coração não
nos permite perceber todas elas, tentaremos, no entanto, descre
vê-las, na medida de nossa medíocre experiência.
A oração se modifica a todo instante, conforme o grau de
pureza em que a alma se encontra e, também, segundo a
disposição natural do momento. Sej a tal disposição fruto de
influências estranhas ou de sua própria operosidade, o certo é
que ninguém pode orar continuamente de maneira idêntica. A
oração é uma quando estamos felizes e outra quando nos
sentimos deprimidos pela tristeza ou pelo desespero. A oração
não é a mesma, se vivemos num estado de euforia por uma vida
espiritual realizada, ou se estamos passando por violentas
tentações; não é igual se imploramos o perdão de nossas faltas
ou se pedimos uma graça, uma virtude, ou a cura de um vício;
não é idêntica se nos achamos compungidos pelo pensamento
do inferno e o medo do j ulgamento, ou se nos encontramos
cheios de fervor pela esperança e o desej o dos bens eternos;
será diferente se nos sentimos inundados pela revelação dos
mistérios celestes ou paralisados pela esterilidade na virtude e a
aridez de pensamentos.
A Oração 53
9 - As quatro modalidades de prece
Falei sobre as diferentes espécies de prece, não tão extensa
mente quanto exigia a amplidão do assunto, mas na medida da
exigüidade do tempo disponível e da limitada penetração de nossa
inteligência e da falta de sensibilidade de nosso coração. Eis
nos pois, agora, diante da maior dificuldade, ou sej a, explicar
cada uma das diversas modalidades de prece que, segundo o
Apóstolo, são quatro : Recomendo-vos, antes de tudo, que se
façam súplicas, promessas (orações votivas), intercessões e
ações de graças ( 1 Tm 2, 1 ) .
Uma vez que parece fora de dúvida não se tratar de uma
divisão arbitrária do Apóstolo, devemos, prioritariamente, inda
gar em que acepção convém entender as seguintes denomi
nações: súplicas, orações votivas, intercessões e ação de graças.
A seguir, examinaremos se o orante deve assumir essas quatro
espécies simultaneamente, de modo que estejam sempre e em
qualquer condição presentes em sua oração ou se ele deve
apresentá-las separadamente, cada uma ao seu tempo. Então
haveria uma ocasião apropriada para as súplicas, outra, para as
orações votivas, um dia para as intercessões, outro, para a ação
de graças? Ou determinada pessoa faria as súplicas, enquanto
outra se dedicaria à ação de graças? Um faria as intercessões,
enquanto outro se encarregaria da ação de graças? E isso se
daria, segundo a capacidade que cada alma consegue atingir em
virtude de seu fervor e de seu empenho?
1 O - A ordem das diversas modalidades de prece
Primordialmente devemos examinar qual o sentido exato
desses termos e que diferença existe entre súplica, promessa,
intercessão e ação de graças. Depois é igualmente necessário
que se discuta se tais formas de oração devem ser praticadas
54 Abade Isaac
concomitantemente ou cada uma a seu tempo. Em terceiro lugar,
convém investigar se a ordem estabelecida pela autoridade do
Apóstolo contém ainda algum ensinamento especial para os fiéis,
ou, ao contrário, se convém encará-la com simplicidade e julgar
que o Apóstolo não teve, ao indicá-la, nenhuma intenção par
ticular. Essa última hipótese parece-me bastante absurda, pois
não é crível que o Espírito Santo, ao falar pela boca do Apóstolo,
o tenha feito aleatoriamente e sem motivo. Iremos, pois, retomar
cada uma dessas formas, na ordem j á indicada, e delas tratare
mos conforme a graça que Deus nos conceder.
1 1 As súplicas
-
Recomendo-vos, antes de tudo, que se façam súplicas. A
súplica é o grito, a prece do pecador tocado pela compunção
que implora o perdão por suas faltas presentes e passadas.
1 2 - A promessa ou oração votiva
A oração votiva ou promessa é o ato pelo qual oferecemos
ou prometemos alguma coisa a Deus. Os gregos a denominam
EV:XfÍ , isto é, voto, onde se lê em grego, -ràç Ev:xáç !lOV -r(j)
Kv plcp ànoôwaw, lemos em latim: Vota me a Domino reddam,
que significa: cumprirei minhas promessas ao Senhor. E, ao pé
da letra, equivaleria a "Cumprirei as orações prometidas ao
Senhor". O que, por sua vez, corresponde às palavras do Ecle
siastes: Sefizeres uma promessa ao Senhor, não tardes a cumpri
la (Ecl 5,3 - LXX). Em grego, corresponde, como vimos acima a:
'Eàv d)�Y,I EU:XfJV -r<P Kvplcp, isto é, se fizeres uma promessa
ao Senhor, não tardes a cumpri-la. Quanto a nós, vej amos como
observar tal preceito. Prometemos, quando renunciamos ao mun
do e nos comprometemos a morrer solenemente para todas as
atividades e vivências mundanas a fim de servir ao Senhor.
A Oração 55
Prometemos, quando, após termos desprezado todas as honras
do século e renunciado às riquezas terrenas, aderimos ao Senhor,
na perfeita contrição do coração e na pobreza de espírito.
Prometemos, quando fazemos voto de observar a mais pura
castidade do corpo e uma inalterável paciência e ainda nos
empenhamos em arrancar completamente de nosso coração as
raízes da ira ou da tristeza causadora da morte. Mas se, infiéis
a nossos votos, nos deixamos invadir pelo relaxamento e vol
tamos aos antigos vícios, seremos culpados por faltar a nossas
promessas e votos e dir-se-á de nós: Melhor é não fazer votos
do que fazê-los e não cumpri-los. O que no grego assim se ex
primiria: lv/ais vale não fazer promessas, do que fazê-las e não
cumpri-las (Ecl 5, 4).
1 3 - A intercessão
Em terceiro lugar vêm as intercessões, que são as preces
que, enquanto estamos com o espírito cheio de fervor, fazemos
pelos outros, seja que as façamos pelos nossos entes queridos,
sej a pela paz do mundo, sej a enfim, para nos servirmos das
palavras mesmas do Apóstolo, por toda a humanidade, pelos
reis, pelas autoridades e por todas as pessoas constituídas em
dignidade.
1 4 - A ação de graças
Em quarto lugar temos a ação de graças. Trata-se, aqui,
da prece que a alma com inefáveis arrebatamentos dirige ao
Senhor, quando relembra os beneficios com que Deus a cumulou
no passado e no presente, e considera, ainda, a infinita recom
pensa futura preparada por Deus para aqueles que o amam.
Com tal disposição do espírito, as orações se tornam às vezes
ainda mais fervorosas porque, contemplando com um olhar pu-
56 Abade lsaac
ríssimo as recompensas reservadas aos santos no futuro, o
coração se sente impelido a dirigir-:-se a Deus com sentimentos
de imensa alegria.
1 5 - Discute-se se tais formas de oração são necessárias a to
dos e devem ser rezadas concomitantemente ou se separadas e
individualmente
Essas quatro modalidades de prece constituem fontes
fecundas de oração. Com efeito, da súplica que nasce da compun
ção dos pecados, da promessa que brota da pureza de consciên
cia, da lealdade nas ofertas no cumprimento dos votos, da
intercessão que provém do ardor da caridade, e da ação de graças
que se origina da contemplação dos benefícios de Deus, de sua
grandeza e de sua bondade, j orram muitas vezes preces fervo
rosas e cheias de ardor.
É fora de dúvida que todas elas podem ser úteis e mesmo
indispensáveis para cada pessoa. E podemos observar a mesma
pessoa, de acordo com seus diferentes estados de alma, escolher
ora a súplica, ora as promessas, ora as mais puras e fervorosas
intercessões.
No entanto, a súplica parece convir mais especialmente
aos principiantes, que ainda estão presos aos espinhos e à memó
ria de seus antigos vícios. A segunda forma, por sua vez, parece
ser mais usada por aqueles que, j á tendo feito algum progresso
na vida espiritual e se empenhado na prática das virtudes,
asseguraram-se certa elevação do espírito; a terceira seria a forma
de oração dos que, tendo j á cumprido plenamente a exigência
de seus votos, sentem-se inspirados pela caridade, ante a
fragilidade de seu próximo, a interceder por ele.
Quanto à quarta, é o apanágio daqueles que, tendo
arrancado do coração o doloroso espinho do remorso, na tranqüi
lidade da alma purificada, recordam a generosidade e a miseri-
A Oração 57
córdia com que o Senhor os cumulou no passado, lhes concede
no presente, e lhes prepara no futuro, assim, com o coração
abrasado, se sentem atraídos por aquela oração inflamada,
incompreensível e inexprimível pela linguagem humana.
Acontece, no entanto, que a alma que alcançou esse ver
dadeiro estado de pureza, e nele j á começou a se radicar, conce
bendo, ao mesmo tempo, todas as formas de oração, esvoaça,
de uma para a outra, à semelhança de uma chama irreprimível e
voraz, extravasando, diante de Deus orações puríssimas e
inefáveis, inspiradas pelo Espírito Santo, que, mesmo sem o
nosso conhecimento , as apresenta a Deus com gemido s
inenarráveis. O orante, então, concebe e deixa transbordar de
seu coração, em um único instante, inefável profusão de súplicas
tão fervorosas que, em outro momento, não poderia exprimir,
j á não digo em palavras, mas nem mesmo revivê-las na
lembrança. Pode ainda acontecer que alguém alcance um estado
elevadíssimo de pureza e intensidade na oração, em qualquer
grau que esteja, mesmo no primeiro e mais humilde, e que
consiste na meditação do julgamento futuro. Pois, ao mesmo
tempo em que a alma apavorada treme, ao pensar no castigo
reservado aos culpados, experimenta um profundo sentimento
de compunção.
Da abundância de sua súplica, j orra a alegria do espírito,
inundando-a, não menos intensamente do que aquela que, no
esplendor de sua pureza, contempla os benefícios de Deus
plenificando-se de alegria e felicidade inexprimíveis. Pois, de
acordo com a palavra do Senhor ela começa a amar mais porque
sabe que muito lhe foi perdoado (cf. Lc 7,47).
1 6 - Que modalidades de oração devemos preferir?
Todavia, perseguindo nosso progresso espiritual e o
aperfeiçoamento nas virtudes, devemos procurar as formas de
58 Abade Isaac
oração que se inspiram na contemplação dos bens futuros e no
ardor da caridade ou, exprimindo-nos de uma maneira mais
modesta, e mais adequada à compreensão dos principiantes,
conviria que nos iniciássemos naquelas formas que brotam do
desejo de adquirir uma virtude ou de extirpar algum vício. De
fato, nenhum outro caminho nos levará aos sublimes pináculos
da oração, que já mencionamos, se não experimentarmos,
primeiramente, aquelas formas de súplicas, crescendo, depois,
paulatina e insensivelmente para experiências mais elevadas.
1 7 As quatro formas de oração oferecidas pelo Senhor
-
O próprio Senhor se dignou formular para nós essas quatro
formas de oração , dando-as como exemplo, para que se
cumprisse o que dele se diz nos Atos dos Apóstolos: Fiz meu
relato a respeito de todas as coisas que Jesus fez e ensinou
desde o início (At I , 1 ) . De fato, trata-se de uma súplica, quando
Jesus pronuncia as seguintes palavras: Pai, se é possível afasta
de mim este cálice (Mt 26,39). Ou estas que o salmista coloca em
seus lábios : Meu Deus, meu Deus, olha para mim, por que me
abandonaste ? (SI 2 1 ,2). E, em outras ocasiões semelhantes. E
também prometeu: Eu te glorifiquei na terra, concluí a obra,
que me encarregaste de realizar (Jo 1 7,4) ou ainda: E, por eles,
a mim mesmo me santifico, para que sejam santificados na
verdade (Jo 1 7, 1 9).
Constituem ainda uma súplica estas palavras do Senhor:
Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também
eles estejam comigo, para que contemplem minha glória que
me deste, porque me amaste antes da criação do mundo (Jo
1 7,24). E mais: Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que
fazem (Lc 23 ,34).
Mas pronuncia uma ação de graças, ao dizer: Eu te louvo,
ó Pai, Senhor do céu e da terra porque ocultaste essas coisas
A Oração 59
dos sábios e dos doutores e as revelaste aos pequeninos. Sim,
Pai, porque assim foi do teu agrado (Mt 1 1 ,25-26). E também
quando assim se exprimiu: Pai, dou-te graças porque me ouviste.
Eu sabia que sempre me ouves (Jo 1 1 ,4 1 -42).
Mas apesar de estabelecermos essas quatro modalidades
de prece, que podem ser praticadas separadamente e em ocasiões
diversas, o Senhor nos mostrou também por seu exemplo, que
podem ser todas reunidas em uma oração perfeita como a que
lemos no final do Evangelho de João (cf. Jo 1 7) e na qual ele fez
transbordar a plenitude de sua alma. O texto, demasiado longo
para ser transcrito, pode ser conferido pelo pesquisador cuida
doso.
É também essa a idéia do Apóstolo, quando na Epístola
aos Filipenses, cita em ordem um pouco diferente essas quatro
modalidades de oração. Mostra, então, que às vezes devem se
fundir em uma única e fervorosa súplica, ao dizer: Apresentai a
Deus todas as vossas necessidades pela oração e pela súplica,
em ação de graças (FI 4,6). Pensamos que ele quis nos ensinar
particularmente o seguinte : em toda oração e súplica a ação de
graças deve se unir à intercessão.
1 8 - A oração do Senhor
Essas diversas modalidades de prece serão seguidas de
um estado ainda mais sublime e de transcendência mais elevada
que consiste na contemplação única de Deus. No ardor da
caridade, a alma se funde dilatada pelo amor divino, e, em estado
de grande piedade, entra em colóquio familiar com Deus, como
se fora seu próprio Pai. A fórmula do Pai nosso não nos deixa
dúvida de que para nós constitui-se um dever buscar com
empenho esse estado de oração. Confessando com a própria
boca que o Deus e Senhor do universo é também nosso Pai,
estamos, na verdade, professando que fomos chamados a passar
60 Abade lsaac
da condição de servos para a de filhos adotivos.
Ao acrescentarmos : que estais nos céus (Mt 6,9), o tempo
de nossa vida passa a ser, desde então, nada mais que um exílio;
e a terra que habitamos, uma terra estrangeira que nos separa de
nosso Pai. Urge abandoná-la e, com todo ardor de nosso desej o
correr para a região em que proclamamos que nosso Pai reside.
Que nada em nosso comportamento nos tome indignos da
profissão que fazemos de nossa filiação e nada nos prive da
honra de tal adoção, como se fôssemos filhos degenerados,
privados da herança paterna e merecedores de incorrer na cólera
e na severidade de sua justiça.
Uma vez alcançada essa condição de filhos de Deus, sere
mos inflamados pelo afeto próprio dos bons filhos e, sem mais
buscar nossos interesses e sim a glória de nosso Pai, diremos :
santificado seja o vosso nome. Testemunhando, assim, que sua
glória é nosso desej o e nossa alegria, pois queremos ser imita
dores daquele que disse: Quem fala por si mesmo procura a
sua própria glória. Mas aquele que procura a glória de quem o
enviou é verdadeiro e nele não há injustiça (Jo 7, I 8).
Repleto desse afeto é que Paulo, esse vaso de eleição, vai
até desej ar tomar-se anátema e separado do Cristo, contanto
que lhe conquiste uma família numerosa e aumente a glória de
seu Pai pela salvação de Israel (cf. Rm 9,3). Sem receio ele pode
desejar morrer pelo Cristo, pois bem sabe que é impossível
morrer por aquele que é a própria Vida. E diz ainda: Alegramo
nos todas as vezes que somos fracos e sois fortes (2Cor I 3 ,9). E
por que nos admirarmos, se o "vaso de eleição" desej a tomar-se
anátema pela glória de Cristo, por causa da conversão de seus
irmãos e a salvação do povo privilegiado, quando o profeta
Miquéias queria passar por mentiroso e estranho à inspiração
do Espírito Santo contanto que a nação do povo judeu pudesse
escapar aos sofrimentos e calamidades do cativeiro que ele
A Oração 61
próprio predissera? Assim diz ele: Quisera Deus que o Espírito
não estivesse em mim e minhas palavras fossem mentiro
sas (Mq 2, l i ). E nada direi daquele anseio do Legislador que não
se recusa a seguir o destino de seus irmãos que devem morrer.
Senhor, diz ele, este povo cometeu um grave pecado: ou perdoa
lhes este pecado, ou apaga-me do livro que escreveste (Ex 32,3 1 -
32).
As palavras "santificado seja o vosso nome" podem tam
bém com muita propriedade expressar que Deus é santificado
pela nossa perfeição. Poderíamos então traduzir: santificado seja
o vosso nome por "Pai, faze-nos tais que mereçamos conhecer
ou entender a grandeza de tua santidade ou, ao menos, que
sej amos capazes de revelar a tua santidade em nossa vida
espiritual." É o que se realiza em nós, quando os homens, vendo
nossas boas obras, glorificam o Pai que está nos céus (Mt 5 , 1 6).
19 - Venha a nós o vosso reino
O segundo pedido do orante, que deve ser feito com a
alma purificada, é o seguinte: Venha a nós o vosso reino. Essa
petição exprime o anseio de ver chegar o mais cedo possível o
reino de seu Pai. Quer se refira esse reino ao que Cristo inaugura
cotidianamente no coração dos santos, o que acontece quando
ele, após ter expulsado o demônio de nossas almas, com seus
vícios fétidos, passa a reinar soberanamente em nós com o bom
odor das virtudes. Assim, dominada a fornicação em nossas al
mas, começa a reinar a castidade; superada a irascibilidade, surge
a tranqüilidade; e, calcada a soberba, emerge a humildade. Quer
esse reino signifique aquele que já está prometido a todos os
perfeitos e filhos de Deus, quando o Cristo lhes dirá: Vinde,
benditos de meu Pai, recebei de herança o Reino preparado
para vós desde a fundação do mundo (Mt 25, 34). A alma que
desej a e espera esse final feliz, com o olhar ardentemente fixo
62 Abade Isaac
no Cristo, exclama: venha a nós o vosso reino (Mt 6, 1 O). A alma
sabe, pelo testemunho de sua própria consciência, que quando
esse reino chegar, ela ali fixará sua morada. Em contrapartida,
não existe um só pecador que ouse pronunciar tais palavras,
nem formular semelhante desejo, pois a visão do tribunal parecerá
odiosa para aquele que, à chegada do juiz, não receberá coroa
nem palma como recompensa de seus méritos, pois lhe caberá
apenas um castigo iminente.
20 - Seja feita a vossa vontade
O terceiro pedido dos filhos é o seguinte: Seja feita a
vossa vontade assim na terra como no céu. Não existe maior
prece do que pedir que as coisas celestes possam ser comparadas
às do céu. De fato, quando dizemos: seja feita a vossa vontade
assim na terra como no céu, outra coisa não fazemos que pedir
que os homens sej am semelhantes aos anj os; e como esses
espíritos bem-aventurados fazem no céu a vontade divina,
também os homens, em lugar de satisfazerem a própria vontade,
devem cumprir na terra a vontade divina.
'i\.í está uma oração que, na realidade, só pode ser feita
por qttem de todo coração acredita que Deus dispõe todas as
coisas t1síveis deste mundo, sejam elas contrárias ou favoráveis,
para pmveito de seus filhos, por cuj os interesses ele zela com
mais sd]it:itude do que eles mesmos poderiam fazê-lo. Tal petição
deveriaáinda ser compreendida no sentido de que a vontade de
Deus é a!-:Salvação de todos, segundo a palavra bem conhecida
de São Paulo: Nosso Salvador quer que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade ( l Tm 2,4). O
profeta Isaías também nos fala a respeito dessa vontade divina:
Minha vontade se cumprirá plenamente (Is 46, 1 O). Ao pedirmos,
pois "Sej a fciita a vossa vontade assim na terra como no céu",
estamos fazenüo com outras palavras a seguinte oração : "como
A Oração 63
os que estão no céu, ó Pai, todos os que estão na terra se salvem
pelo conhecimento do vosso nome ! "
21 - O pão supersubstancial o u cotidiano
Depois acrescentamos: O pão nosso bnoúmov, isto é,
supersubstancial nos dai hoje (Mt 6, 1 1 ). Outro Evangelista (Lc
1 1 ,3) diz: cotidiano. O primeiro adjetivo exprime a nobreza e o
caráter dessa substância, que a elevam acima de qualquer outra
substância e fazem com que ela supere, por sua sublime grandeza
e santidade, todas as outras criaturas. Quanto ao segundo qualifi
cativo, exprime o caráter do seu uso e sua utilidade. O termo
"cotidiano" especifica que nossa vida espiritual é incapaz de
perdurar um só dia sem esse alimento.
Já a palavra "hoje" mostra que esse pão nos deve nutrir
diariamente, e que não é suficiente havê-lo recebido na véspera
se não nos for dado igualmente hoje.
Que nossa indigência diária nos advirta que devemos fazer
essa prece em qualquer ocasião ! Não há um só dia em que não
precisemos comer este pão, a fim de revigorar o coração do
nosso homem interior.
Mas podemos compreender também o termo "hoj e" com
o significado de tempo presente. Enquanto vivemos neste mundo,
dá-nos deste pão. Cremos também que o darás àqueles que o
merecerem no futuro, todavia, rogamos que no-lo dês hoj e,
porque sabemos que quem não o merecer nesta vida não poderá
dele participar no futuro.
22 - Perdoai-nos as nossas ofensas
Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoa
mos a quem nos tem ofendido (Mt 6, 1 2) . Ó inefável clemência de
Deus ! Não apenas nos ofereceu com essa fórmula um modelo
64 Abade Isaac
de oração, como também instituiu uma regra pela qual lhe
podemos ser agradáveis. A exigência que a fórmula encerra, ao
mandar-nos rezar sem cessar, também nos ensina que, ao
fazermos uso constante da oração, arrancamos da alma as raízes
da irascibilidade e da tristeza. Além disso, propicia ainda aos
orantes um caminho para que lhes sej a promulgado um julga
mento indulgente e compassivo atribuindo-nos, assim, de certo
modo, o poder de suavizarmos nós mesmos a própria sentença e
de forçá-lo a nos perdoar os delitos, segundo o exemplo de nossa
própria clemência, quando dizemos : Perdoai-nos como nós
perdoamos.
Assim, respaldados por essa oração, só pedirão com con
fiança o perdão de suas faltas aqueles que se mostrarem com
padecidos com os que os tenham ofendido. Exatamente com
aqueles que os tenham ofendido e não ao seu Senhor. Com efeito,
pode-se notar que muitos de nós nos tomamos indulgentes com
as injúrias feitas a Deus, (o que é muito pior) apesar de sua
gravidade, mas quando essas nos são dirigidas, por menores que
sej am, mo stramo-nos inexoravelmente rigorosos. Como
conseqüência, aquele que não houver perdoado de coração ao
irmão injuriador, outra coisa não alcançará, com essa oração,
que a própria condenação em lugar de indulgência, uma vez que
ele mesmo pede um julgamento mais severo, ao dizer, "Perdoai
me como eu perdoei". Porque, se for tratado segundo seu pedido,
que lhe poderá advir senão que, segundo seu exemplo, Deus
também o trate com implacável cólera e ele seja punido com
uma sentença sem misericórdia? Portanto, se queremos ser
tratados com misericórdia, é imprescindível que também tratemos
misericordiosamente os que nos tenham injuriado, qualquer que
seja a ofensa recebida.
Alguns, temerosos com esse pensamento, omitem tais
palavras quando a igrej a reunida recita essa oração, pensando
evitar, com esse artifício, a condenação por sua própria boca .
A Oração 65
Ora, tais pessoas não percebem que, ao invés de se estarem
desculpando perante o Senhor, que quis mostrar antecipadamente
como iria j ulgar aqueles que o suplicam, estão assumindo uma
atitude inútil. Pois o Senhor, não desejando que o consideremos
um juiz por demais rigoroso e inexorável, nos ofereceu o próprio
parâmetro de julgamento, a fim de que julguemos nossos irmãos,
se temos alguma queixa contra eles, do mesmo modo pelo qual
desej amos ser julgados por Ele pois o julgamento será sem
misericórdia para aquele que não pratica a misericórdia (Tg
2, 1 3).
23 - Não nos induzais em tentação
Segue-se depois o pedido : Não nos deixeis cair em ten
tação (Mt 6, 1 3). Tais palavras levantam um dificil problema: Se
rogamos a Deus que não permita que sejamos tentados, que
prova lhe poderemos dar de nossa constância? Pois está escrito :
O homem que não foi tentado, não foi provado (Sir 34, 1 1 ). E
ainda: Feliz o homem que suporta a tentação (Tg 1 , 1 2).0 sentido,
pois, de tais palavras não é: "não permitais que j amais sej amos
tentados", mas, na verdade, queremos pedir: que "não permitais
j amais que sejamos vencidos pela tentação". Com efeito, Jó foi
tentado, mas não foi induzido em tentação, uma vez que não
acusou a Sabedoria divina, nem ingressou no caminho da impie
dade e da blasfêmia para o qual o tentador queria arrastá-lo.
Abraão foi tentado, José foi tentado, mas nenhum dos dois foi
induzido em tentação, porque nenhum deles deu ouvidos ao
tentador.
Em seguida, vem o último pedido: mas livrai-nos do mal
(Mt 6, 1 3), isto é, não permitais que sej amos tentados pelo demônio
além das nossas forças, mas com a tentação dai-nos os meios de
sair dela e a força para suportá-la ( I Cor 1 0, 1 3).
66 A bade lsaac
24 - Nada mais devemos pedir além do que se encontra na
oração do Senhor
Podeis, pois, ver aqui qual seja a oração que nosso próprio
juiz formulou para que pudéssemos abrandá-lo. Nela não en
contramos solicitação de riqueza, nem de honrarias; nenhum
pedido de poder ou de força, nenhuma menção de saúde física
ou de vida temporal. Com efeito, o criador da eternidade não
quer que lhe supliquemos nada de perecível, nada de torpe, nada
de eremero. Seria grave injúria à sua magnificência e munificência
negligenciar as petições dos bens eternos para preferir suplicar
lhe algo contingente e transitório. Essa última opção, antes,
acarretaria a cólera do juiz do que seu beneplácito.
25 - A natureza de uma oração mais sublime
A oração do Pai-Nosso parece conter toda a plenitude da
perfeição, uma vez que foi o próprio Senhor quem a formulou e
ensinou. Tal prece eleva às maiores alturas os que se habituaram
a rezá-la, colocando-os naquele estado ainda mais sublime de
que j á falamos anteriormente. Isto é, preparados para aquela
oração ardente da qual bem poucos fizeram a inefável expe
riência. Essa oração transcende todo o sentimento humano e
não se distingue por nenhum som da voz, nem movimento da
língua, nem pela articulação de palavras. A alma, iluminada pela
infusão da luz do céu, não se expressa mais pela linguagem
humana sempre imperfeita. Mas, ao contrário, reunindo em um
só fluxo todos os santos afetos, à semelhança de uma fonte
copiosíssima, derrama sua inefável oração, elevando-a até Deus
e manifestando tantas coisas naqueles poucos instantes que
depois, ao voltar a si, toma-se incapaz de exprimi-las novamente
ou mesmo recordá-las.
Nosso Senhor também de maneira idêntica nos revelou
A Oração 67
esse estado quando, ao se retirar para a solidão do monte, for
mulou a sua súplica (cf. Lc 5 , 1 6) ou quando, num inimitável
exemplo de fervor intenso na oração silenciosa de sua agonia,
chegou até ao suor de sangue (cf. Lc 22,44).
26 - As diversas causas da compunção
Com efeito, quem poderia expor, satisfatoriamente, por
maior que sej a sua experiência, a variedade e as próprias
causas e origens do sentimento de compunção, pelo qual a
alma, inflamada de um intenso ardor, prorrompe nas mais
puras e fervorosas orações? Tentarei, pois, exemplificar o
que disse, à luz do Senhor e na medida em que me sej a possível
recorrer às minhas recordações. Algumas vezes, ao cantar os
salmos, certo versículo me propiciava a ocasião de uma prece
fervorosíssima; em outros momentos, a voz melodiosa de um
irmão, intensamente suplicante, pode suscitar uma súplica
ardorosa até mesmo em almas entorpecidas. Sabemos também
que uma salmodia celebrada com correção e dignidade leva
às vezes os que apenas a ela assistem a grandes impulsos de
fervor. Igualmente, as exortações e conferências espirituais
proferidas por um homem reconhecidamente santo freqüen
temente contribuem para que se eleve de uma alma abatida
um fluxo de orações mais fecundas. É verdade, ainda, que a
morte de um irmão ou de algum ente querido nos proporciona,
por vezes, a ocasião de sentimentos de perfeita compunção .
E a recordação de nossa tibieza e negligência, em alguns mo
mentos, suscita em nosso coração um ardor salutar. Desse
modo, podemos ter certeza que não nos faltam as oportuni
dades em que, pela graça de Deus, podemos dissipar o torpor
e a sonolência de nossas almas.
68 Abade lsaac
27 - As diversas formas de compunção
Não é pequena a dificuldade que encontramos ao procurar
indagar como e sob que aspectos a compunção jorra do mais
íntimo da alma. Muitas vezes é fruto de uma inefável alegria e
de imensa exultação. Tão intensa que se toma intolerável e o
espírito se vê obrigado a se expandir, levando até a cela vizinha
a notícia de nossa felicidade e de nosso júbilo.
Outras vezes, em contrapartida, a alma toda se recolhe
em profundo silêncio, quando a surpresa daquela súbita ilumina
ção a arrebata completamente, extinguindo-lhe a voz e mantendo
todos os seus sentimentos suspensos no mais íntimo de seu ser.
Então, a alma, maravilhada, se abre para Deus com gemidos
inenarráveis. Por vezes, porém, a alma a tal ponto é sufocada
pelo sentimento de compunção e de dor, que tão-somente as
lágrimas são capazes de aliviá-la.
28 - Por que o dom das lágrimas não está em nosso poder?
Germano: A despeito de minha limitação, não ignoro esse
sentimento de compunção. Freqüentemente, ao lembrar-me de
minhas faltas, os olhos se me encheram de lágrimas e a visita do
Senhor de tal modo me revigorou com aquela alegria inefável a
que vos referistes, que a própria magnitude daquela alegria me
incutia que eu não devia desesperar do perdão de minhas culpas.
A meu ver, nada poderia haver de mais sublime que aquele estado,
se a sua renovação dependesse de nosso arbítrio. Acontece-me
às vezes, que, por demais desej oso de experimentar novamente
aquelas lágrimas de compunção, procuro lembrar-me de todos
os meus erros e pecados, mas não consigo reencontrar a fonte
das lágrimas, e meus olhos permanecem secos e duros como
uma pedra, sem que deles brote sequer uma gota de pranto.
Assim, tanto me rejubilo com a torrente de lágrimas, quanto
A Oração 69
sofro pela incapacidade de renovar essa experiência quando
desejo.
29 São diversos os sentimentos de compunção que provocam
-
as lágrimas
Isaac: Nem sempre as lágrimas provêm do mesmo sen
timento, e não são o privilégio de uma única virtude. Algumas
j orram ao relembrarmos nossos pecados que, como espinhos,
nos despedaçam o coração. É delas que se diz: Esgotei-me de
tanto gemer, banho o leito em meu pranto de noite (SI 6, 7). E
ainda: Deixa derramar torrentes de lágrimas dia e noite, não te
concedas repouso, não descanse a pupila dos teus olhos f (Lm
2, I 8).
Outras vezes, se originam da contemplação dos bens eter
nos e do desejo daquela glória futura. Essas prorrompem mais
abundantes em virtude da excessiva felicidade e da exultação
incomensurável que experimentamos enquanto nossa alma se
sente devorada pela sede do Deus vivo e forte, dizendo : Quando
terei a alegria de ver a face de Deus? O meu pranto é o meu
alimento de dia e de noite (SI 4 1 ,3 -4) e ela exclama cada dia,
gemendo e chorando : A i de mim, como é longo o meu pere
grinar! (SI 1 1 9,5), e também: Já se prolonga por demais o meu
desterro! (SI 1 1 9,6).
Por vezes, ainda, são lágrimas que brotam, - embora nossa
consciência não nos acuse de nenhuma falta mortal, - do medo
do inferno e do pensamento do terrível julgamento. Movido por
esse sentimento de medo foi que o profeta dirigiu a Deus esta
súplica: Não chameis vosso servo ajuízo, porque diante de vossa
presença não é justo nenhum dos viventes (SI 1 42,2). Há ainda
outra espécie de lágrimas que não provêm da própria consciência,
mas que rolam à lembrança do endurecimento e dos pecados
alheios. Foi essa espécie de lágrimas que Samuel derramou sobre
70 Abade Isaac
Saul (cf. 1 Rs 1 5,35) e que também o Senhor, no Evangelho, verteu
sobre Jerusalém (cf. Lc 1 9,4 1 ss) e também Jeremias, no passado,
ao dizer: Quem dará água à minha cabeça e a meus olhos uma
fonte de lágrimas para que eu chore dia e noite os mortos da
filha de meu povo! (Jr 9, 1 ). São essas mesmas as lágrimas a que
se refere o salmista, que diz: Comi cinzas com pão e misturei
minha bebida com lágrimas (Sl 1 o 1 , 1 O). Tais lágrimas se originam
de um sentimento bem diverso daquele que provoca os gemidos
do salmista personificando um penitente, pois provêm da idéia
do justo esmagado pelas inquietações e angústias que o acome
tem enquanto vive neste mundo, o que é ressaltado não apenas
pelo texto, como também pelo próprio título desse salmo deno
minado : Oração do pobre na aflição a derramar sua súplica
diante de Deus (Sl 1 0 1 , 1 ). O personagem de que trata o texto é
aquele a que se refere o Evangelho quando diz: Bem-aventurados
os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus (Mt 5 , 3).
3 0 - As lágrimas não devem ser provocadas quando não brotam
espontaneamente
Há uma grande diferença entre essas lágrimas e aquelas
que nos esforçamos por derramar quando o coração está árido
e os olhos secos. No entanto, não devemos considerar essas
últimas totalmente infrutíferas. Pois, é um bom sentimento o
que leva o orante a procurá-las, principalmente aquele que ainda
não conseguiu chegar à perfeição ou que não alcançou ainda a
completa purificação dos seus vícios antigos e atuais. Todavia,
aqueles que j á conhecem o amor à virtude não se torturem nem
tentem a qualquer preço provocar a efusão das lágrimas o que é
próprio do homem exterior. Mesmo se conseguirmos fazê-las
brotar, usando certos recursos, elas não são comparáveis àquela
efusão espontânea. Ao contrário, os esforços que despendemos
distrairão nossa alma de sua oração, para fazê-la mergulhar em
A Oração 71
pensamentos humanos, arrancando-a às alturas celestes na qual
a alma do orante, maravilhada, se deve manter imutavelmente
fixa. Tal esforço, irá impeli-la a se relaxar daquele intenso fervor
da oração, para se enfraquecer em busca de lágrimas estéreis e
forçadas.
31 - Conceito do abade Antão sobre a natureza da oração
Para que possais compreender a verdadeira natureza da
oração, irei expor-vos não a minha opinião, mas a do abade
Antão.
Tenho-o visto permanecer tanto tempo em oração, que,
muitas vezes, os primeiros rai os de sol o encontraram em seu
êxtase. Exclamava então no fervor de seu espírito : "Ó sol, por
que me importunas? Já te levantas para me arrastares do clarão
da verdadeira luz ! " Também é dele este pensamento celeste e
mais que humano, sobre o grau mais alto da oração : "Não é
perfeita a oração, enquanto o monge tem consciência de si
mesmo e de sua oração".
Se nos for lícito acrescentar alguma coisa a essa admirável
palavra, na medida em que o permitir nossa limitação, diremos
que a experiência nos revelou os sinais pelos quais reconhecemos
a oração ouvida pelo Senhor.
32 - Indícios de que a oração foi ouvida
Quando nenhuma hesitação se infiltrar em nossa oração,
e nenhum sentimento de desconfiança nela interferir mas, ao
contrário, pela própria efusão da oração sentirmos que estamos
sendo atendidos naquilo que pedimos, podemos estar certos de
que nossa oração foi eficazmente atendida por Deus. Pois tanto
mais mereceremos ser ouvidos por Deus e obter o que a ele
pedimos quanto mais acreditarmos que estamos sob seu olhar e
72 Abade Isaac
confiarmos que ele nos pode atender. Pois irretratável é aquela
promessa de nosso Senhor: Tudo quanto suplicardes e pedirdes
na oração, crede que vos será concedido (Me 1 1 ,24).
33 - Objeção: A confiança de ser atendido é exclusividade
dos santos
Germano: Acreditamos que essa confiança de sermos
ouvidos emana da pureza da própria consciência. Nós, porém,
cuj o espinho do pecado ainda nos compunge o coração, como
poderíamos presumir, sem nenhum respaldo de nossos méritos,
que nossas orações serão atendidas?
34 - As diversas causas que tornam atendidas nossas orações
Isaac: O Evangelho e os profetas atestam as diversas
causas pelas quais nossas orações são atendidas, pois variam
de acordo com as diferentes disposições de nossas almas. Assim,
tens, no consenso de duas pessoas que se põem em oração, um
dos motivos para que ela sej a atendida, pois segundo a própria
palavra do Senhor: Se dois de vós estiverem de acordo na terra
sobre qualquer coisa que queiram pedir, isso lhes será conce
dido por meu Pai que está nos céus (Mt 1 8, 1 9).
Tens, ainda, outra causa do atendimento da oração, quando
esta é feita naquela plenitude de fé que se compara ao grão de
mostarda: Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a
esta montanha: transporta-te daqui para lá, e ela se trans
portará, e nada vos será impossível (Mt 1 7, 1 9).
Tens, mais, na fidelidade à oração, naquela infatigável per
severança que o Senhor chama de "importunismo", a garantia
de sua aceitação: Digo-vos, mesmo que não se levante para dá
la porque é amigo, levantar-se-á ao menos por causa da sua
insistência, e lhe dará tudo aquilo de que precisa (Lc 1 1 ,8).
A Oração 73
Tens ainda na esmola outro motivo de atendimento :
Encerra a esmola no coração do pobre e ela intercederá por ti
no tempo da tribulação (Sir 29, 1 5).
E, tens também na conversão de vida e nas obras de
misericórdia, mais um motivo para seres ouvido, de acordo com
a palavra: Desata as cadeias da impiedade, tira os fardos que
oprimem (Is 58,6); e após algumas palavras em que condena a
esterilidade do j ejum ineficaz, o profeta acrescenta: Então,
invocarás, e o Senhor te ouvirá, clamarás e Ele dirá: Eis-me
aqui (Is 5 8,9).
Algumas vezes, enfim, é o acúmulo de tribulações que
causa o atendimento, como atestam as seguintes palavras: Na
minha angústia eu clamei ao Senhor e ele me respondeu (SI
1 1 9, 1 ). E, ainda, Não maltratarás o estrangeiro e não o oprimirás,
pois se ele me invocar, eu o ouvirei porque sou misericordioso
(Ex 22,2 1 e 27).
Evidencia-se, portanto, de quantas maneiras se pode
alcançar a graça de ser ouvido. Assim, por mais constrangedor
que seja o testemunho de sua consciência, ninguém se desespere
quando se tratar de pedir a salvação e os bens eternos. Porque,
apesar da contemplação de nossas misérias e da certeza de que
estamos completamente destituídos de todas as virtudes a que
nos referimos, e ainda, de que não temos aquele louvável con
senso de duas pessoas que rezam unidas, nem a fé comparável
ao grão de mostarda, e sequer praticarmos aquelas obras de
misericórdia descritas pelo profeta, mesmo assim, não pode
ríamos ter aquele "importunismo" que está ao alcance de quem
o desej a e ao qual, mesmo sozinho e sem nenhum outro mérito,
segundo a promessa do Senhor, será concedido tudo quanto lhe
for pedido?
Por isso, sem nenhuma hesitação na fidelidade, urge insistir
na oração, pois nossa perseverança haverá de obter tudo quanto
74 Abade lsaac
pedirmos, segundo o beneplácito de Deus. Pois o próprio Senhor,
desej ando nos conceder os bens celestes e eternos, nos exorta,
de certo modo, a obrigá-lo a isso, por nosso importunismo. E
ele, ao invés de repelir os importunos com desprezo, até os
encoraj a e os louva, prometendo-lhes conceder benignamente,
tudo quanto tiverem esperado com perseverança, dizendo: Pedi
e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto.
Pois o que pede, recebe; o que busca, acha; e ao que bate, se
abrirá (Lc 1 1 ,9- 1 0). E também: Tudo o que pedirdes com fé na
oração, recebê-lo-eis, e nada vos será impossível (Mt 2 1 ,22;
1 7, 1 9). Assim, mesmo que nos faltem todos os motivos de acei
tação acima mencionados, sej amos ao menos estimulados por
esse urgente importunismo, que, sem exigir grandes méritos ou
esforços desmedidos, está sempre à disposição de quem o deseja.
Todavia, estejamos bem certos de que não será ouvido aquele
que puser em dúvida esse atendimento.
Esse preceito de uma indefectível perseverança nos é
também lembrado pelo exemplo do bem-aventurado Daniel (cf.
Dn 1 0,2 ss) cuja oração, atendida desde o primeiro dia em que a
iniciou, só no vigésimo primeiro dia teve sua eficácia revelada.
Eis a razão pela qual também nós não devemos arrefecer
o ardor de nossas preces, caso o Senhor nos pareça demasiado
lento em nos ouvir. Talvez a Providência divina permita tal
lentidão para nosso proveito ou, ainda, o anj o encarregado de
nos trazer o benefício esperado, após ter se afastado da face do
onipotente, tenha sido retardado por alguma resistência diabólica.
Mas, ele não poderá nos comunicar a graça pedida, caso nos
encontre com o fervor enfraquecido. É o que infalivelmente teria
acontecido ao próprio profeta se, apoiado em uma incomparável
virtude, não tivesse mantido sua inquebrantável perseverança e
não tivesse prolongado sua oração até o vigésimo primeiro dia.
Portanto, que nenhum pensamento de desespero venha
A Oração 75
abater a confiança de nossa fé, quando acharmos que não
obtivemos o que rogávamos. Nem duvidemos da promessa do
Senhor que nos diz: Tudo quanto pedirdes com fé na oração,
haveis de recebê-lo (Mt 2 1 ,22).
Cumpre-nos, pois, recordar sem cessar a palavra do evan
gelista João quando nos diz: Esta é a confiança que temos em
Deus: se lhe pedimos alguma coisa segundo a sua vontade, ele
nos ouve ( l lo 5, 1 4).
São João exige, pois, essa confiança inabalável no que
conceme à vontade de Deus. E não no que se refere aos nossos
interesses ou nossa satisfação temporal. E foi isso também que
o Senhor nos mandou dizer na oração dominical : seja feita a
vossa vontade. Vale dizer: a "vossa", e não a "nossa" vontade.
Relembremos também a palavra do Apóstolo : Não sabemos o
que devemos pedir (Rm 8,26). E compreenderemos que às vezes
solicitamos coisas contrárias à nossa salvação. E é para nosso
maior proveito que tais coisas nos são negadas por Aquele que
vê nossas necessidades com mais verdade e mais justiça do que
nós. Tal foi sem dúvida o caso do Apóstolo das nações. Ele
suplicava ao Senhor que lhe fosse retirado o anj o de Satanás
que, para seu proveito e por vontade do Senhor, fora colocado
a seu lado para o esbofetear: Por isso três vezes, - diz ele -pedi
ao Senhor que o afastasse de mim. Mas ele respondeu: Basta
te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta
todo o seu poder (2Cor 12,8-9).Tal foi ainda o pensamento de
nosso Senhor, orando, na condição de homem, a fim de nos dar
também na oração um exemplo a imitar: Meu Pai, se é possível,
que passe de mim este cálice, contudo, não seja como eu quero,
mas como tu queres (Mt 26,39). Todavia, a sua vontade não era
diferente da do Pai. Pois ele viera para salvar o que estava
perdido, e dar a vida pelo resgate de muitos (Mt 1 8, 1 1 ; 20,28).
Quanto à sua vida, ele próprio diz: Ninguém a tira de
76 Abade lsaac
mim, mas eu a dou livremente. Tenho o poder de entregá-la e
poder de retomá-la (Jo 1 0, 1 8). E sobre a contínua concordância
de vontade que existia entre ele e o Pai, o bem-aventurado Davi
lhe atribui as seguintes palavras no salmo 3 9 : Com prazerfaço
a tua vontade; guardo em meu coração tua lei (SI 3 9,9). Com
efeito, se lemos sobre o Pai : Deus amou o mundo a tal ponto
que lhe deu seu Filho único (Jo 3, 1 6), também lemos sobre o
Filho : Ele se entregou por nossos pecados (Gi l ,4). E ainda sobre
o Pai : Ele não poupou o próprio Filho, mas o entregou por
todos nós (Rm 8,32).
E sobre o Filho : Ele foi oferecido porque ele mesmo o
quis (ls 53 ,7). A união de vontade entre o Pai e o Filho é assim
expressa de tal modo que até no mistério da Ressurreição se diz
que a vontade de ambos permaneceu uníssona. Pois foi o Pai
que, de acordo com o bem-aventurado Apóstolo, ressuscitou o
corpo do Filho : E Deus Pai o ressuscitou dos mortos (Gl 1 , 1 ).
Mas também o Filho protesta que erguerá o templo de seu corpo,
declarando : Destruí este templo e eu o reerguerei em três dias
(Jo 2, 1 9).
Instruídos, pois, pelo exemplo do Senhor, também nós
devemos concluir nossas súplicas com uma palavra semelhante
à sua, e acrescentar esta petição a qualquer oração que fizermos :
Contudo, não seja feito como eu quero mas como tu queres (Mt
26,39). É esse o sentido da tríplice inclinação que se faz nas
assembléias dos irmãos para concluir a sinaxe. Aquele porém,
que estiver absorvido na oração não estará atento a essa prática.
3 5 - A oração que deve ser feita na própria cela e de portas
fechadas
Antes de tudo, cumpre-nos observar com muito empenho
o preceito evangélico que nos exorta a entrarmos na cela,
fecharmos a porta e orarmos a nosso Pai.
A Oração 77
Eis como devemos agir:
Oramos em nossa cela quando, tendo afastado completa
mente nosso coração do tumulto e do ruído dos pensamentos e
preocupações, como que em secreta intimidade, manifestamos
ao Senhor nossas preces.
Oramos de porta fechada quando, cerrados os lábios e em
profundo silêncio, suplicamos Aquele que perscruta os corações
e não as palavras.
Oramos em segredo quando, apenas com o coração e a
alma atenta, apresentamos somente a Deus nossas súplicas, de
modo que, sequer as potências hostis possam reconhecer-lhes a
natureza. É por isso que devemos observar o mais absoluto
silêncio, a fim de que não venhamos a distrair os irmãos presentes
por nossos cochichos e clamores, ou não os perturbemos em
suas orações. Isso se faz necessário também para que nossos
inimigos que, nos assaltam principalmente durante a oração, não
conheçam o objetivo de nossa prece. Assim, então, cumpriremos
o preceito : Mantém fechada a tua boca, mesmo com aquela
que dorme contigo (Mq 7,5).
36 - A vantagem da oração breve e silenciosa
Por esse motivo, com efeito, nossa oração deve ser fre
qüente, porém, rápida. Porquanto, se muito a prolongarmos, o
inimigo traiçoeiro poderá insinuar algo estranho em nosso cora
ção. Pois, segundo o salmo 50, é este o verdadeiro sacrifício :
Meu sacrifício é minha alma penitente (Sl 50, 1 9) . Esta é a oblação
salutar, a oferenda pura, o sacrifício de justiça (SI 50,2 1 ), o
sacrifício de louvor (Sl 49,23), estas são as vítimas generosas,
os holocaustos cheios de gordura (SI 65, 1 5). E as oferendas de
um coração contrito e humilhado . S e n ó s mesmos as
apresentarmos a Deus, de acordo com o método ensinado e
com o devido fervor, poderemos cantar na certeza de sermos
78 Abade lsaac
ouvidos: Minha oração suba a vós como incenso e minhas
mãos como oferta vespertina (SI I 40,2).
Mas a aproximação da noite e da própria hora do sacrificio
vespertino nos exortam a que o celebremos sem demora. Nossa
conferência se prolongou bastante e, se a medirmos de acordo
com a nossa limitação, parecerá que dissemos muitas coisas,
mas, se a considerarmos segundo a sublimidade e a dificuldade
do tema, muito pouco foi tratado.
-.r;_
..._,.&:-"
A conferência do venerável Isaac nos maravilhara mais
do que nos saciara. Então, celebrada a sinaxe da tarde, descan
samos um pouco e, logo e aos primeiros clarões do amanhecer,
dirigimo-nos às nossas celas, com a promessa de que retoma
ríamos para uma exposição mais completa, alegres não só pelo
conhecimento adquirido como também pelo que nos fora pro
metido. Por enquanto só nos haviam falado sobre a excelência
da oração, mas ainda não nos haviam dito por que método ou
virtude íntima ela se tomaria ininterrupta.
X
SEGUNDA CONFE RÊNCIA DO ABADE ISAAC
A Ü RAÇÃO
1 - Introdução
Apesar do estilo canhestro, acabei de relatar, segundo a
graça a mim concedida, o s sublimes ensinamento s dos
anacoretas. Contudo, a própria clareza da exposição obriga
me, presentemente, a acrescentar um elemento novo que irá
assemelhar-se a uma verruga sobre um belo rosto. Não duvido,
porém, que os simples retirarão daí um ensinamento valioso no
que se refere à imagem do Deus onipotente, segundo o Gênesis,
uma vez que se acha em j ogo um dogma de tal importância que
a ignorância a esse respeito não poderia subsistir sem uma
grosseira blasfêmia e um grave detrimento para a fé católica.
2 - O costume vigente no Egito de anunciar a data da Páscoa
Na região do Egito, existe uma tradição há muito obser
vada: após o dia da Epifania, (que, segundo os sacerdotes da
quela província, comemora, em um único dia o batismo do
Senhor e seu aniversário natalício, uma vez que não se festej am
as duas datas, mas apenas uma celebração soleniza os dois
mistérios), o bispo de Alexandria envia cartas a todas as Igrejas
do Egito, incluindo não só as cidades como também os mosteiros,
80 Abade /saac
aos quais anuncia a data do início da Quaresma e o dia da Páscoa.
Poucos dias haviam decorrido após nossa conferência
anterior com o abade Isaac, quando, de acordo com aquele cos
tume, chegaram de Alexandria as cartas oficiais do bispo Teófilo.
Mas, além do anúncio da data da Páscoa, ele apresentava um
verdadeiro tratado contra a absurda heresia dos antropomorfitas,
destruindo-a com farto arrazoado.
Espalhou-se, então, um vivo descontentamento entre a
maioria dos monges que habitavam toda a província do Egito e
cuj a simplicidade fora surpreendida por tal erro. A maioria dos
anciãos se opõe àquela declaração, afirmando ser o bispo culpado
da mais grave heresia e decidindo que toda a comunidade dos
irmãos o considerasse excomungado, uma vez que contradizia
a Escritura, negando que o Deus onipotente tivesse figura hu
mana, quando esta afirma, com a maior clareza, que Adão foi
formado à sua imagem !
Em suma, os monges que habitavam o deserto de Cétia e
que excediam, não só em ciência como em perfeição, todos os
que viviam nos mosteiros egípcios, rejeitaram igualmente a carta
episcopal. Dentre os sacerdotes, à exceção apenas do abade
Pafnúcio, que pertencia à nossa comunidade, nenhum dos outros
que presidiam às três outras Igrejas do deserto permitiu que se
lesse a carta ou que fosse proclamada publicamente nas assem
bléias.
3 O abade Sarapião e a heresia do antropomorfismo em que
-
caiu em virtude de sua simplicidade
Entre os que se enredaram naquela heresia, estava jus
tamente o abade Sarapião que, mesmo tendo a seu favor uma
longa experiência de solidão, austeridade e disciplina ascética,
foi levado por sua ignorância doutrinária a abraçar esse erro.
A Oração (li) 81
Sua atitude, no entanto, foi tanto mais prejudicial àqueles
que professavam a verdadeira fé, quanto mais ele se destacava
sobre quase todos os outros monges pelo mérito de sua vida e
por sua idade.
Em vão o santo sacerdote Pafnúcio o exortara instante
mente a que retomasse o caminho da verdadeira fé. A Sarapião,
no entanto, isso parecia uma novidade, pois os antigos j amais
haviam conhecido ou ensinado tal doutrina.
Sucedeu, porém, nessa época que certo diácono de nome
Fotino, homem de consumada ciência, apareceu do território da
Capadócia, levado pelo desej o de ver os irmãos que habitavam
aquele deserto. O bem-aventurado Pafnúcio o recebeu com todas
as marcas da uma viva alegria e, para comprovar a doutrina
exposta nas cartas episcopais, levou-o à assembléia dos monges,
perguntando-lhe como as Igrejas católicas do Oriente inter
pretavam a passagem do Gênesis em que se lê: Façamos o
homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1 ,26). Fotino passou
então a explicar que a totalidade dos chefes de todas as Igrejas
são unânimes em ultrapassar o sentido material da expressão,
tomando-a apenas em sentido espiritual. E ele próprio defendeu
essa teoria com uma exposição repleta de testemunhos escritu
rísticos, mostrando como não se pode admitir que a incompre
ensível e invisível Maj estade possa ter algo da composição e
semelhança humanas. Pois uma natureza incorpórea absoluta
mente simples não é capaz de se tomar visível aos olhos nem
captável pela inteligência. Em vista disso, finalmente, o ancião
se deixou persuadir por tantos e tão poderosos argumentos,
retomando à fé da tradição católica.
Foi imensa a alegria que nos invadiu, a nós e ao abade
Pafnúcio, porquanto Deus não permitira que um homem tão
idoso e tão repleto de virtudes se desviasse para sempre do
caminho da verdadeira fé, por causa de sua ignorância e ingênua
82 Abade Isaac
simplicidade. Todos, então, nos erguemos para oferecermos ao
Senhor em comum nossas ações de graças. Mas, eis que, durante
essas orações, o ancião sentiu-se totalmente confuso, ao ver
que se desvanecia de seu coração a forma humana sob a qual
ele, enquanto rezava, se habituara a representar a divindade. De
repente, irrornpeu em lágrimas amargas e em lancinantes soluços.
Prostrado por terra, repetia em pungentes lamentações: Pobre
de mim ! Tiraram-me o meu Deus e não tenho a quem recorrer,
a quem adorar ou a quem invocar! Profundamente emocionados
à vista de tal acontecimento e impregnados pela graça da última
conferência do abade Isaac voltamos à sua presença. E, tão logo
o vimos, dirigimos-lhe as seguintes palavras:
4 - Retorno perante o abade Isaac e questionamento sobre o
erro em que incidiu o abade Sarapião
Mesmo sem o estranho acontecimento desses últimos dias,
o desej o despertado em nosso coração, ao falares sobre a natu
reza da oração, nos levou a tudo abandonar a fim de recorrer a
Tua Beatitude. No entanto, o grave erro em que incidiu o abade
Sarapião que, segundo julgamos, lhe foi insuflado pelos demônios
mais ardilosos, veio aumentar ainda tal desejo. Não foi pequena
a amargura que nos invadiu quando consideramos completa
mente perdido, em razão de sua ignorância, não apenas o fruto
de tantos e tão relevantes trabalhos admiravelmente suportados
neste deserto, durante cinqüenta anos, mas também afligia-nos
o risco em que ele incorria de se perder eternamente.
Qual a origem de tão grave erro? E qual o seu motivo?
Eis o que em primeiro lugar gostaríamos de saber. Em seguida
rogamos que nos ensines qual o meio de alcançarmos essa
qualidade de oração, sobre a qual já nos falaste não só com
tanta riqueza, mas também com tanta magnificência. Pois tua
admirável conferência, apesar de nos ter deixado urna viva irn-
A Oração (li) 83
pressão, não nos indicou como podemos praticá-la com perfeição
ou mesmo como seria possível alcançá-la.
5 Resposta sobre a origem da heresia antropomórfica
-
Isaac: Não nos devemos admirar de que um homem tão
simples e sem qualquer conhecimento adequado sobre a subs
tância e a natureza da divindade possa ter permanecido até agora
vítima da ignorância e de uma idéia errônea.
Na verdade, para falar com maior clareza, ele outra coisa
não fez senão permanecer radicado em antigos erros. Pois não
se trata, como pensastes, de uma ilusão recente dos demônios,
mas com certeza de uma antiga concepção pagã, visto que o
paganismo revestia de aparência humana os demônios aos quais
prestava adoração. De maneira análoga se pensa atualmente que
a incompreensível e inefável majestade do verdadeiro Deus deve
também ser representada sob a forma de alguma imagem. E tais
pessoas vivem na convicção de que estão na presença do nada
se, ao rezar, não têm presente uma imagem à qual possam apelar
ou que lhes seja possível manter permanentemente fixa em seu
pensamento e diante dos olhos.
Foi a propósito desse erro que Paulo escreveu as seguintes
palavras : Trocaram a glória do Deus incorruptível pela ima
gem do homem corruptível (Rm 1 ,23). E Jeremias também disse:
Meu povo trocou sua glória por um ídolo (Jr 2, 1 1 ).
Para muitos foi essa a origem desse erro. Mas para alguns,
que nunca foram contaminados pela superstição pagã, o pretexto
foram as palavras da Escritura: Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança (Gn 1 ,26), respaldadas pela ignorância e a
simplicidade. Foi assim que, dessa detestável interpretação surgiu
a heresia antropomorfita que afirma, com pertinaz perversidade,
que a infinita e simples substância da divindade se reveste de
nossos traços fisicos e de nossa configuração humana.
84 Abade lsaac
Todavia, qualquer um que tenha sido instruído na fé
católica rej eitará tal erro como blasfêmia pagã e, assim, poderá
alcançar a oração puríssima de que tratamos. Nessa, de modo
algum, se imiscui qualquer representação da divindade ou de
traços corpóreos porquanto até mesmo uma menção a esse
respeito já se constitui um crime, pois não se admite sequer a
lembrança de alguma palavra, a representação de uma ação ou
a forma de qualquer figura humana.
6 - Porque Jesus Cristo aparece a cada um de nós na humildade
ou na glória
Como j á foi esclarecido na conferência anterior (IX,8), é o
grau de pureza alcançado pela alma que determina a medida em
que esta será elevada ou formada na oração. Conseqüentemente
a alma irá contemplar Jesus ou na humildade de sua carne ou,
interiormente, j á glorificado e vindo no esplendor de sua
maj estade. De fato, não poderão contemplá-lo na glória de sua
realeza aqueles que ainda estão presos a certa enfermidade algo
j udaica, e que não possam dizer como o Apóstolo : Mesmo que
tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, agora já não o
conhecemos assim (2Cor 5, 1 6). Portanto, só serão capazes de
contemplar sua divindade com olhos puríssimos aqueles que,
elevando-se acima das obras e pensamentos mesquinhos e
terrenos, retiraram-se com ele para o alto monte da solidão. Li
vres do tumulto dos pensamentos e das paixões terrenas, isolados
da confusão dos vícios, vivendo nas sublimes alturas de uma fé
perfeita e praticando as mais eminentes virtudes, esses se tor
naram dignos de contemplá-lo com o puro olhar da alma. Por
isso, então, o Senhor lhes revelará a glória de sua face e a visão
do seu esplendor.
Jesus também se manifesta aos habitantes das cidades, vi
las ou aldeias, isto é, àqueles que se dedicam a uma vida ascé-
A Oração {li) 85
tica, mas não com o mesmo esplendor de glória com o qual apa
rece às almas bastante fortes, capazes de subir com ele o monte
das virtudes como o fizeram Pedro, Tiago e João (cf. Mt 1 7, 1 ).
Foi também na solidão que se revelou a Moisés (cf. Ex 3 ,2), e a
Elias (cf. 1 Rs 1 9,9ss). Nosso Senhor quis assim confirmar essa
doutrina e nos deixar o exemplo de uma pureza perfeita. Na
verdade, Jesus, por ser a fonte inviolável da santidade, não pre
cisava, para firmar-se nesse patamar de perfeição, de nenhuma
aj uda exterior, como o distanciamento dos homens e a solidão.
Ele, a própria plenitude da pureza, estava imune ao contato das
multidões, e o intercâmbio com os homens seria incapaz de
contaminá-lo, pois é ele o purificador e o santificador de tudo
quanto se macula. No entanto ele se retira para o monte afim
de rezar ali sozinho (Mt 1 4,23 ).
Sirva-nos seu exemplo de lição. Pois, se quisermos orar a
Deus com um coração puro e íntegro, afastemo-nos, como ele,
da turbulência e da inquietação das multidões, a fim de repro
duzir, mesmo vivendo neste corpo mortal, algo daquele estado
de bem-aventurança prometido aos santos na eternidade. Assim,
também para nós, Deus será tudo em todos ( 1 Cor 1 5 ,28).
7 Em que consiste nosso fim e a perfeita bem-aventurança
-
Consumar-se-á, então, em nós, aquela oração que nosso
Salvador fez ao Pai por seus discípulos: a fim de que o amor
com que me amaste esteja neles e eles estejam em nós (Jo 1 7,26).
E ainda: a fim de que todos sejam um, como Tu, Pai, estás em
mim e eu em ti para que eles sejam um em nós (Jo I 7,2 1 ). O
perfeito amor com que Deus nos amou primeiro ( I Jo 4, I O) haverá
de passar para nosso coração porque se cumprirá a oração do
Senhor, em cuja eficácia nossa fé acredita firmemente. E isso se
verificará quando todo nosso amor, todo nosso desejo, todo
nosso empenho, e nossos esforços, nossos pensamentos, nossa
86 Abade Isaac
vida, nossas palavras e aspirações se transformarem em Deus, e
aquela unidade que agora existe do Pai com o Filho e do Filho
com o Pai for comunicada ao nosso sentimento e ao nosso
espírito. E assim como Deus nos ama com uma caridade verda
deira, pura e indefectível, nós lhe estaremos unidos por um amor
perpétuo e indissolúvel a tal ponto que tudo a que aspiramos,
tudo quanto compreendemos ou quanto falamos transformar
se-á em Deus. Desse modo, chegaremos àquele fim que j á
havíamos predito e que o Senhor desejava para nós em sua
oração : que eles sejam um como nós somos um, eu neles e tu
em mim, para que sejam perfeitamente unidos (Jo 1 7,22-23) e
também para que se cumpra esta outra palavra: Pai, aqueles
que me deste, quero que onde eu esteja, eles também estejam
comigo (Jo 1 7,24).
Tal deve ser o escopo do solitário que nele deve concentrar
todo seu empenho para que, desde esta vida, mereça possuir a
imagem da futura bem-aventurança e, de certo modo, possa
prelibar, no seu corpo mortal a vida e a glória celeste. Este é o
fim de toda perfeição : ter a alma liberada de todo peso carnal
para ascender cada dia às sublimes realidades espirituais até que
toda a sua vida, todos os impulsos de seu coração se transformem
numa única e contínua oração .
8 - Pergunta sobre a disciplina da perfeição pela qual se con
segue alcançar a lembrança constante de Deus
Germano: À admiração suscitada pela conferência
anterior, que foi o motivo pelo qual decidimos te procurar,
acrescenta-se agora um assombro ainda maior. Na verdade,
quanto mais nos sentimos inflamados pelo desejo da perfeita
bem-aventurança, tanto mais profundo se toma nosso desânimo,
uma vez que ignoramos o caminho que nos conduziria a uma
vida de tanta sublimidade.
A Oração (II) 87
Todavia, nossos espíritos, durante a permanência na so
lidão da cela, estiveram seriamente ocupados, em prolongadas
reflexões, que talvez deveríamos expor à Tua Beatitude a quem
rogamos que nos escute com paciência. Primeiramente sabemos
que não te ofendes com as tolices dos fracos e, depois, convém
que elas sejam expostas, pois, assim, poderão ser corrigidos os
contra-sensos que apresentarmos.
Eis, pois, nossa opinião : Em qualquer arte ou disciplina,
não é de relance que se atinge a perfeição. Os primeiros passos,
na verdade, são necessariamente bem simples, uma vez que se
deve partir do que há de mais fácil e de menos austero. Assim,
nutrido como que por um leite revigorante, o espírito se desen
volve, elevando-se gradativamente das coisas mais rudimentares
às mais elevadas. Portanto, adquiridos os princípios básicos e,
de certo modo, galgada a porta para a profissão abraçada,
necessariamente e sem excessivos esforços, chega-se a conhecer
seus segredos e atingir sua perfeição. Com efeito, como poderia
uma criança pronunciar as simples sílabas se, primeiramente, j á
não houvesse aprendido a conhecer a s letras? Ignorando a
gramática, como poderá alguém tomar-se perito em retórica ou
filosofia?
O mesmo se verifica em relação à sublime ciência que nos
ensina a aderir a Deus em contínua união. Estou certo de que
também esta tem seus princípios básicos que, uma vez solida
mente estabelecidos, equivalem aos fundamentos sobre os quais
se ergue o edificio da perfeição, permitindo-lhe atingir magníficas
proporções.
De acordo com nossas humildes conj ecturas, o primeiro
passo consiste em conhecer a maneira de encontrar a Deus e
despertar em nós a sua lembrança. O segundo passo seria saber
como nos poderíamos manter nesse estado, imunes a qualquer
oscilação. E, não temos a mínima dúvida de que nessa perse-
88 Abade Isaac
verança, estaria o cume da perfeição.
Daí nosso desej o de aprender uma fórmula que suscite
em nós a lembrança de Deus e que seríamos capazes de fixar
constantemente.
Empenhados em mantê-la sem interrupção diante dos
olhos, desde que percebêssemos a possibilidade de que se esca
passe, teríamos ao menos para onde retomar nosso pensamento,
ao voltarmos a nós, podendo retomá-la em seguida e evitando
assim as penosas divagações.
Pois nosso pensamento quando volta a si, após evadir-se
durante a contemplação espiritual, nos dá a impressão de que
estamos despertando de um sonho letal, e recomeçamos, então,
a buscar algo com que possamos ressuscitar a lembrança de
Deus, que nos havia escapado. Nessa busca o tempo passa e,
antes de encontrarmos em que nos agarrar, ficamos novamente
à deriva, distantes de nosso objetivo. Assim, após termos tentado
em vão retomar nossa contemplação inicial, ou captar novamente
alguma visão espiritual, toda a nossa atenção se desvanece. É
óbvio, portanto, que tal confusão acontece por não dispormos
de nada determinado em que nos apoiarmos, como uma fórmula
qualquer diante dos olhos na qual possamos fixar nosso espírito,
depois de muitas divagações e devaneios, e reconduzi-lo como
a um porto de paz após um longo naufrágio.
Tal ignorância e as dificuldades que dela resultam cons
tituem para nossa alma um contínuo embaraço. Daí acontece
que, sempre errante, à semelhança de um ébrio, a alma oscila de
um lado para outro. E se, mais pelo efeito do acaso do que por
seu próprio empenho, surge algum pensamento espiritual, ela é
incapaz de retê-lo com firmeza ou por muito tempo. Embora as
idéias se sucedam sem interrupções, ela não percebe nem seu
início ou aparecimento, nem seu término ou desaparecimento.
A Oração (II) 89
9 - A eficácia da inteligência reforçada pela experiência
Isaac: Vossas indagações tão minuciosas quão sutis
indicam que j á estais muito próximos da pureza. Na verdade, o
próprio fato de alguém saber, em tal matéria, o que perguntar -
j á não digo sondar ou discernir - j á supõe uma capacidade que
não é comum. Esse privilégio é reservado àqueles que uma
meditação atenta e profunda e uma vigilância sempre alerta
possibilitaram perscrutar a profundeza destes problemas e que
o empenho permanente de uma vida mortificada, concedeu
bastante experiência para poderem aproximar-se do limiar da
pureza e bater-lhe à porta.
Já não direi que estais à porta da verdadeira oração a que
nos referimos, mas penso que vossa experiência j á vos permitiu,
de certo modo, tocar com as mãos os seus segredos íntimos e
ocultos e abordar parcialmente a sua realidade.
Assim, creio que não terei grande dificuldade, guiando
me o Senhor, em vos introduzir no santuário, pois j á moveis
pelo vestíbulo os vossos passos um tanto incertos. Portanto,
nenhum obstáculo vos impedirá de contemplar o que tenho a
vos mostrar. Com efeito, está bem perto do conhecimento quem
sabe, com prudência, o que deve investigar, e não está distante
da ciência o que começa a compreender o quanto ignora. Não
mais receio incorrer na falta de indiscrição ou de leviandade,
revelando-vos o que havia omitido em nosso debate anterior
sobre a perfeição da oração. No ponto em que vos encontrais,
por vosso empenho e experiência, julgo que, mesmo sem o auxí
lio da nossa palavra, a graça de Deus j á vo-lo tenha revelado.
1 O - O método da oração contínua
Trata-se de uma comparação bem apropriada a que
apresentastes entre a oração contínua e a instrução das crianças.
90 Abade lsaac
Essas não são capazes, sem wna preparação anterior, de aprender
o alfabeto e reconhecer as letras e nem mesmo traçá-las com
mão segura e firme, se previamente não tiverem tido perante os
olhos modelos cuidadosamente gravados em cera, a fim de que
por wna contemplação diária e wna imitação constante consigam
reproduzi-los.
O mesmo acontece com a contemplação espiritual. É ne
cessário que desta tenhais um modelo para que, com toda a
diligência, possais fixar o olhar sobre este, aprendendo, assim, a
revolvê-lo continuamente em vosso espírito, o que vos será
salutar. Também, servindo-vos de tal modelo e meditando-o,
sereis capazes de ascender às alturas mais sublimes.
Proponho-vos, pois, esse modelo de disciplina e de oração
que procurais, e que todo monge cuj o escopo consiste na lem
brança contínua de Deus deve ter por hábito meditá-lo ininter
ruptamente. Para atingir tal meta, urge, antes, que expulseis de
vosso espírito todos os outros pensamentos, pois não podereis
aplicar-vos a este modelo se não vos tiverdes libertado de todas
as preocupações e solicitudes corporais.
Essa experiência que nos foi transmitida pelos poucos Pais
sobreviventes, nós também só a comunicamos a um pequeno
número de almas verdadeiramente sedentas de conhecê-la.
Portanto, nós vos sugerimos, para que tenhais a permanente
lembrança de Deus, essa fórmula de verdadeira piedade: Ó Deus,
vinde em meu auxílio, Senhor, apressai-vos em socorrer-me!
(SI 69,2).
De fato, esse versículo, não sem motivo, foi especialmen
te escolhido de todo o corpo da Escritura, não só por poder ex
pressar todos os sentimentos imputáveis à natureza hwnana,
como também por ser passível de adaptar-se com justeza a todas
as circunstâncias e a todas as ocasiões de tentação.
Esse versículo serve para externar nosso apelo a Deus em
A Oração (11) 91
todos os perigos. É uma humilde e piedosa confissão, que mani
festa a vigilância de um temor solícito e permanente e a
compreensão de nossa fragilidade e, ainda, manifestando a
confiança de ser ouvido e a certeza de um socorro infalível
sempre e em todo lugar. Pois, quem nunca se omite de invocar
seu protetor pode estar seguro de tê-lo sempre a seu lado. Em
tais palavras se encontra também a voz do amor e da ardente
caridade, a consciência das insídias e o medo do inimigo por
parte de quem, vendo-se dia e noite assediado, reconhece não
poder salvar-se sem o socorro do seu defensor. Para os que são
importunados pelos assaltos demoníacos, essa invocação é uma
muralha inexpugnável, uma couraça impenetrável. Para os que
se vêem às voltas com a acédia, a angústia de espírito e as
tristezas, ou qualquer pensamento deprimente, é um escudo in
vulnerável, pois essa oração põe em fuga o desespero. Se, porém,
são as consolações que nos inundam o coração, o próprio ver
sículo nos adverte de que não podemos nos envaidecer, nem
nos orgulhar com uma felicidade que o Senhor mesmo garantiu
não ser indestrutível, e na qual ele assegurou não ser possível
permanecer sem a sua necessária proteção. Porque esse versículo
não é apenas uma expressão de oração contínua, mas uma súplica
para um socorro imediato. Esse versículo, repito, é imprescin
dível e proveitoso para todo aquele que se encontra em qualquer
dificuldade. Com efeito, quem desej a ser ajudado, sempre e em
qualquer circunstância, manifesta claramente que não só tem
necessidade do auxílio divino nas provações e tristezas, como
também na alegria e na consolação. Somente Deus nos liberta
na adversidade e, também, só ele é capaz de assegurar a per
manência da felicidade. Em uma e outra condição, a fragilidade
humana não resistiria sem seu socorro.
Vej o-me assaltado pela paixão da gula e meu espírito se
põe a fantasiar iguarias desconhecidas no deserto e, naquela
solidão desoladora, começo a imaginar pratos dignos de uma
92 Abade lsaac
mesa real, sentindo-me impulsionado pelo desej o de prová-los,
direi, então : Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai
vos em socorrer-me!
Acho-me tentado a antecipar a hora instituída para a
refeição, ou devo-me esforçar em meio a grandes sofrimentos
para guardar a medida estabelecida por uma j usta e habitual so
briedade. Urge, então, exclamar com um gemido : Ó Deus, vinde
em meu auxílio; Senhor, apressai-vos em socorrer-me!
As investidas carnais exigem jejuns mais severos, contudo,
a fragilidade do estômago e a enterite me dissuadem. Para que
me seja permitido realizar meus desejos ou para que as tentações
da concupiscência se acalmem sem recorrer a um jej um mais
rigoroso, eu rezarei : Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor,
apressai-vos em socorrer-me!
É chegada a hora regulamentar da refeição e dela devo
participar. Todavia, o pão, me repugna e sinto-me incapaz de
satisfazer às necessidades da natureza. Exclamo, então, com um
lamento : Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-vos
em socorrer-me!
Pretendo dedicar-me à leitura, a fim de fixar meu pensa
mento, impede-me, porém, a enxaqueca; ou bem, à hora terça,
o sono obriga-me a pender a cabeça sobre a página sagrada,
vendo-me forçado a ultrapassar o tempo estabelecido para o
repouso ou a antecipá-lo. Enfim, durante a sinaxe, o sono me
domina a tal ponto que chego a alterar o ritmo da recitação
canônica dos salmos. É igualmente hora de invocar: Ó Deus,
vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-vos em socorrer-me!
Algumas vezes não consigo conciliar o sono e, exausto
pelas insônias diabólicas, acho-me incapaz de usufruir o neces
sário repouso. Suspirando, ponho-me a orar: Ó Deus, vinde em
meu auxílio; Senhor, apressai-vos em socorrer-me!
A Oração (11) 93
Em outras ocasiões, nos embates contra os vícios, irrom
pem os assaltos da carne que, cúmplices do sono, tentam
arrancar-me um consentimento. Para evitar que o fogo inimigo
queime as flores delicadas e perfumadas da castidade, excla
marei: Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-vos em
socorrer-me!
Amainados os grilhões da sensualidade e, extintos os ar
dores carnais em meus membros, para que essa virtude alcança
da, ou melhor, essa graça de Deus permaneça indestrutível em
mim, direi : Ó Deus, vinde em meu auxílio, Senhor, apressai-vos
em socorrer-me!
Se os estímulos da ira, da tristeza e da cobiça me per
seguem, e vej o-me forçado a abandonar a mansidão que me
propusera como um ideal amado, a fim de não ser vencido pela
cólera, e não ser levado à amargura e ao fel, do fundo da alma
lançarei um gemido : Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor,
apressai-vos em socorrer-me !
Se, tentado pela acédia, pela vanglória o u pelo orgulho, a
negligência e a tibieza alheia despertarem em mim certo
sentimento de complacência, para que não me deixe sucumbir
por essa perniciosa sugestão do inimigo, direi, com profunda
contrição : Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-vos
em socorrer-me!
Extirpado o tumor da soberba, alcancei a graça da hu
mildade e da simplicidade, por uma contínua compunção do
espírito. Mas, temendo que de novo : Não me pisem os pés dos
soberbos, nem me expulsem as mãos dos malvados (SI 3 5 , 1 2),
exclamarei com todas as forças: Ó Deus, vinde em meu auxílio;
Senhor, apressai-vos em socorrer-me!
Extenuado por inúmeras divagações do espírito e pela
instabilidade do coração, e incapaz de reprimir a dispersão dos
pensamentos, não consigo rezar sem ser assediado por imagens
94 Abade lsaac
vãs, lembrança de palavras ditas ou ouvidas, de coisas que j á fi
zera ou vira fazer. Com alma semelhante a um deserto árido,
sinto que não estou em condições de conceber qualquer pensa
mento espiritual. Para conseguir libertar-me de tal desolação,
visto que dela não é possível salvar-me nem com lágrimas, nem
com suspiros, só me resta implorar: Ó Deus, vinde em meu
auxílio; Senhor, apressai-vos em socorrer-me !
Recuperada novamente a direção da minha alma e estabili
zados os pensamentos, readquiri, também, o j úbilo do coração
e uma alegria inefável unida aos êxtases espirituais. E tudo isso
me foi concedido pela visita do Espírito Santo. Pois, além de
uma exuberância espiritual, graças a uma iluminação do Senhor,
percebi que me eram revelados os mistérios mais sagrados que
até então me tinham sido ocultos.
Para merecer conservar-me nesse estado luminoso durante
muito tempo, clamarei freqüentemente com toda a solicitude: Ó
Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-vos em socorrer
me!
Sou assaltado por diabólicos terrores noturnos, e os espí
ritos imundos amedrontam-me com seus fantasmas; o excessivo
pavor chega a tirar-me a esperança da salvação e da própria
vida. Como em um porto de salvação, refugio-me naquele versí
culo, clamando : Ó Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apres
sai-vos em socorrer-me!
Vej o-me, novamente reanimado pelas consolações do Se
nhor e como que reavivado por sua vinda, parecendo-me estar
rodeado por uma multidão de anjos, então, aqueles que eu te
mia mais que a própria morte, e cuj o contato e, até mesmo a
simples aproximação, era suficiente para enregelar-me o corpo
e a mente, a esses, de repente, sou capaz de enfrentar e desafiar
para a luta. Para perseverar muito tempo nesse vigor sobrena
tural, exclamarei, ainda, com todas as forças: Ó Deus, vinde em
A Oração (li) 95
meu auxílio; Senhor, apressai-vos em socorrer-me!
Assim, esse versículo deve ser nossa oração permanente:
na adversidade, para dela sermos libertados e na prosperidade,
para que nela nos possamos manter sem que o orgulho nos infle
o espírito. Por isso, seja ele continuamente meditado em teu
coração. Empenhado em qualquer trabalho ou ocupado em
algum ofício, não te canses de repeti-lo. Ao comer, dormir ou
descansar, ou em qualquer outra circunstância da vida humana,
medita-o, pois tal pensamento se tomará para ti uma fórmula de
salvação que, não apenas te protegerá de todas as invectivas
demoníacas, como também te purificará de todos os vícios e de
toda a impureza terrena, elevando-te até à contemplação das
coisas celestes e invisíveis, e àquele fervor inefável na oração
que tão poucos conseguem experimentar. Encontre-te o sono a
meditar esse versículo, até que, disciplinado por sua meditação
constante, sej as capaz de repeti-lo mesmo adormecido. Ao
acordares, seja essa invocação a primeira coisa que te ocorra
antes de qualquer outro pensamento. E, ao recomeçares tua
j ornada, não deixes que se obscureça por nenhuma outra idéia.
Reza-o de j oelhos, ao levantar-te, e em seguida, acom
panhe-te ele em todos os teus trabalhos e ações sem que jamais
te abandone. Meditá-lo-ás, segundo o preceito do Legislador:
sentado em tua casa, o u andando pelo caminho (Dt 6, 7),
dormindo ou levantando-te. Escrevê-lo-ás no limiar de tua porta,
sobre teus lábios, nas paredes de tua morada e no santuário de
teu coração, pois assim será o único refrão quando, prostrado,
te puseres a orar ou, ainda, quando te ergueres, para os afazeres
da vida. Tomar-se-á, sem dúvida, tua constante oração.
1 1 - A oração perfeita que se alcança pelo método já exposto
É indispensável, então, que a alma guarde, incessan
temente, essa fórmula, uma vez que, à força de repeti-la e meditá-
96 Abade lsaac
la sem trégua, ela se tome tão enraizada que o orante recuse e
rej eite todas as riquezas e beneficios de toda espécie de pensa
mento. Assim, o espírito restrito à pobreza desse único versículo,
alcance, por um declive fácil, a primeira das bem-aventuranças
evangélicas: Felizes os pobres em espírito porque deles é o rei
no dos céus (Mt 5,3).
Assim, quem se tornar um pobre insigne, graças a tal
pobreza, será capaz de cumprir a palavra profética: O pobre e o
indigente louvarão o nome do Senhor (SI 73,2 1 ). De fato, será
possível maior e mais santa pobreza do que a de um homem
que, sabendo-se privado de qualquer arrimo ou recurso, solicita
da generosidade de outro o socorro cotidiano de que necessita,
convicto de que toda sua vida e todo o seu ser são sustentados
a cada instante pelo auxílio divino? Assim, ele confessa, com
toda a justiça, ser um verdadeiro mendigo de Deus, e o dia todo
lhe dirige sua súplica: Sou um pobre e um mendigo, mas o Senhor
é meu socorro (SI 3 9, 1 8 - LXX).
Então, pela iluminação do próprio Deus ele alcançará a
multiforme ciência divina, e se saciará com a contemplação dos
mistérios mais sublimes e profundos, conforme as palavras do
profeta: Os altos montes são refúgio dos cabritos e os rochedos
são abrigo das marmotas (SI I 03, 1 8).
Esse texto se adapta com a maior propriedade ao sentido
que j á expusemos. Pois, quem persevera na inocência e na
simplicidade não prejudica nem molesta ninguém; ao contrário,
feliz com sua simplicidade, mais não deseja que um abrigo que
o deixe a salvo da rapina de seus inimigos insidiosos. Trans
formando-se em uma espécie de ouriço espiritual, e encontrando
refúgio e proteção sob a rocha evangélica, torna-se, assim,
protegido pela lembrança da paixão do Senhor, e a meditação
constante daquele versículo, escapando a todas as ciladas e
investidas do inimigo. No livro dos Provérbios há uma menção
a respeito desses ouriços espirituais: Os ouriços, espécie fraca,
A Oração (11) 97
construíram sua habitação nos rochedos (Pr 3 0,26 - LXX). Com
efeito, que existe de menos forte que um cristão, de mais frágil
que um monge? Não apenas é desprovido de qualquer recurso
para vingar as inj úrias que recebe, como também falta-lhe o
direito de conceber a mais leve reação, mesmo que somente ín
tima e sem nenhuma manifestação verbal.
Aquele que alcançou tal estado e continua a progredir
não só possui a simplicidade da inocência, mas ainda, revestido
da virtude da discrição, toma-se o exterminador das serpentes
venenosas e mantém satanás esmagado sob os pés. O ardente
fervor de sua alma faz com que ele se assemelhe a um cervo es
piritual, apascentando-se nas montanhas dos profetas e dos após
tolos e saciando-se com seus sublimes e misteriosos ensina
mentos.
Revigorado por esse alimento espiritual, de que se nutre
infatigavelmente, impregna-se de tal maneira dos sentimentos
expressos nos salmos, que doravante passará a recitá-los não
mais como composições do profeta, mas como se fosse ele pró
prio seu autor, transformando essa salmodia em oração pessoal,
impregnando-a da mais profunda compunção . O monge
considera, então, que eles foram escritos especialmente para ele
e que, rezando-os, exprime não apenas o que foi realizado his
toricamente em relação ao profeta, mas também tudo quanto se
verifica cotidianamente em sua própria experiência.
Com efeito, as Sagradas Escrituras nos são reveladas, de
certo modo, com maior clareza e são suas veias e suas entranhas
que nos são expostas, uma vez que não só nossa experiência
nos permite reconhecê-las como também pressupõe esse mesmo
conhecimento, já que o significado das palavras não nos é trans
mitido através de explicações, mas mediante nossa própria vi
vência. Imbuídos dos mesmos sentimentos que inspiraram o
canto ou a composição dos salmos, tomamo-nos como que seus
co-autores, pois, mais do que acompanhar seus pensamentos,
98 Abade Isaac
antecipamo-nos a eles e captamos seu sentido. São como que,
por assim dizer, recordações despertadas em nós pelas santas
palavras. Lembramo-nos, assim, das investidas diárias, que
suportamos no passado e ainda agora suportamos; dos efeitos
de nossa negligência; das conquistas obtidas por nosso zelo e
dos beneficios propiciados pela divina Providência; das instiga
ções fraudulentas do inimigo; das frustrações devidas ao sutil e
fugaz esquecimento; dos erros causados pela fragilidade huma
na ou pela cegueira de uma ignorância imprevidente. De fato,
encontramos todos esses sentimentos expressos nos salmos, mas,
como os contemplamos com muita clareza, como refletidos num
espelho puríssimo, temos de tudo que nos foi dito um conheci
mento profundo. Instruídos por nossos próprios sentimentos,
não são para nós, como coisas que nos foram ensinadas, mas
como algo que, por assim dizer, apalpamos por as haver compre
endido profundamente, não como coisas confiadas à nossa
memória, mas ao contrário, geradas por nós do fundo do coração,
à semelhança de sentimentos naturais que fazem parte de nosso
ser. Pois não é a leitura que nos faz compreender o sentido dessas
palavras, mas nossa própria experiência (cf. VIII,25).
Por esse método, nossa alma conseguirá alcançar aquela
pureza de oração que foi o escopo de nossa precedente confe
rência e ao qual pretendi chegar, na medida da graça que o Senhor
se dignou me conceder. Não se vincula essa oração à consi
deração de qualquer imagem, nem se expressa através de palavras
ou de sons, mas se lança num fluxo ardente da alma, por um
transporte insaciável do espírito . Arrebatada para fora dos
sentidos e de toda a matéria visível, a alma se eleva até Deus
com gemidos inefáveis e ardentes suspiros.
1 2 - Como conservar imutáveis os pensamentos espirituais
Germano: Além de teres exposto essa doutrina espiritual,
A Oração (li) 99
como havíamos pedido, apresentaste também, com clareza e
luminosidade, a própria doutrina da perfeição. Pois haveria,
caminho mais curto e mais sublime para o encontro com Deus
que a meditação de um único versículo que nos faz transpor
todas as fronteiras do visível e encerra em tão poucas palavras
todos os sentimentos que uma oração é capaz de expressar?
Resta-nos então uma só coisa cuja explicação pedimos.
Por que meio poderemos fixar, no espírito, permanentemente,
esse versículo que nos ofereceste como fórmula de oração, a
fim de que, libertados pela graça de Deus da inépcia dos pen
samentos mundanos, nos firmemos imutavelmente nos pensa
mentos espirituais.
1 3 - A mobilidade dos pensamentos
Acontece, às vezes, que acorre à nossa mente alguma
passagem de um salmo e desejamos meditá-la. Mas, inconsciente
mente, ela se escapa e partimos para outro texto da Escritura.
Começando o espírito a meditar e a aprofundar esse último, um
novo texto surge na memória, expulsando o precedente. Nesse
meio tempo, insinua-se ainda outro versículo que provoca nova
mudança. Assim, a alma, voluteando continuamente de um salmo
a outro, de um texto do Evangelho a um do Apóstolo, e deste
saltando para os profetas e dali para os relatos espirituais, in
constante e volúvel, rodopia de um lado para o outro, através
de todo o corpo da Escritura, incapaz, por sua própria vontade,
de se fixar ou rej eitar alguma coisa ou, tampouco, apreender,
aprofundar ou esgotar qualquer texto, restando-lhe tão-somente
tocá-los ou prová-los superficialmente, sem experimentar ou
penetrar seu sentido espiritual e sem deles tirar o mínimo pro
veito. Sempre irrequieta e a vaguear, perdido o rumo, mesmo
durante a sinaxe, a alma, como que ébria, divaga a esmo e nada
1 00 Abade lsaac
consegue desempenhar satisfatoriamente. Desse modo, se reza,
vem-lhe à memória algum salmo ou alguma leitura j á feita; se
canta, medita outra coisa alheia ao conteúdo do salmo; se recita
alguma leitura, recorda-se de algo que deveria fazer. Assim, nada
acolhendo e nada recusando, como exigem a disciplina e a
ocasião, a alma parece agir como um j oguete de combinações
fortuitas sem nenhuma possibilidade de se fixar nas coisas em
que se compraz.
Portanto, é imprescindível que aprendamos a bem desem
penhar esses exercícios espirituais, ou, pelo menos, a guardar
imutavelmente em nosso espírito, o versículo que nos ofereceste
como fórmula de oração, a fim de que nossas idéias não flutuem
num perpétuo vai-e-vem, segundo sua inconstante mobilidade,
mas permaneçam sob o domínio de nossa vontade.
1 4 - Como é possível adquirir a estabilidade do coração e dos
pensamentos
Isaac: Parece-me ter respondido de maneira bastante
satisfatória à vossa pergunta, quando tratei anteriormente do
estado de oração, todavia, atendendo a vosso insistente pedido
de voltar a esse assunto, direi, embora de maneira sucinta, como
alcançar a estabilidade do coração. Três são os instrumentos
que contribuem para estabilizar um espírito dissipado: as vigílias,
a meditação e a oração. A fidelidade e o empenho na prática
desses exercícios conferem à alma uma inabalável firmeza. Tal
firmeza, porém, não será adquirida, a menos que, precedente
mente, não se tenha excluído qualquer solicitude e cuidado com
a vida presente, por uma dedicação contínua ao trabalho, e isso,
não se tendo em vista qualquer motivo ambicioso, mas apenas
encarando as necessidades sagradas do mosteiro, uma vez que
só assim nos será possível cumprir o preceito do Apóstolo: Orai
sem cessar ( l Ts 5, 1 7).
A Oração (II) 101
Na verdade, quem reza apenas quando se põe de j oelhos,
reza muito pouco, e aquele que, mesmo com os j oelhos em terra,
se deixou levar pelas divagações do próprio coração, nem sequer
rezou.
Assim, é imprescindível que, antes da oração, cada um
procure revestir-se das disposições que gostaria de ter durante
o tempo que lhe vai consagrar. Por isso convém que, antes da
oração, j á nos encontremos com as mesmas disposições com
que desejaríamos ser encontrados naquela ocasião, pois é uma
lei indiscutível que as condições da alma do orante dependem
de seu estado anterior.
Desse modo, ou ele ascende às coisas celestes, ou arrasta
se para as terrenas, de acordo com os pensamentos com que
antes se entretinha.
�
,....,�
Termina aqui a segunda conferência que o abade Isaac
nos fez e que ouvimos com imensa admiração. Profundamente
impressionado s por sua doutrina sobre a meditação do
mencionado versículo, que ele expusera como uma prática a ser
observada pelos principiantes, ficamos também nós com intenso
desej o de experimentar esse método. Acreditávamos tratar-se
de um exercício conciso e fácil. A experiência mostrou-nos,
então, ser ele menos simples e mais difícil do que o antigo
procedimento em que passávamos de um texto a outro, através
de todo o corpo da Escritura, sem nenhuma referência específica
e sem nos fixarmos em nenhum deles.
Conclui-se, portanto, que ninguém está excluído do
caminho da perfeição por falta de cultura. E uma educação menos
esmerada não é empecilho para que se alcance a pureza do
coração e da alma. Todos, no entanto, podem alcançá-la se,
1 02 Abade lsaac
conservando o espírito puro e íntegro voltado para Deus, se
dedicarem à prática da meditação ininterrupta daquele simples
versículo aconselhado.
PREFÁCIO DE CASSIANO PARA A COLEÇ ÃO DAS
CONFERÊNCIAS XI A XVIP
A perfeição a que chegastes vos faz refulgir neste mundo
como um luzeiro de admirável claridade, e muitos monges santos,
edificados por vosso exemplo, emulam-se com grande esforço
em imitar vossa virtude. No entanto, santos irmãos Honorato e
Eucherio, estais de tal modo fascinados pela glória dos homens
sublimes, que primeiramente nos transmitiram os fundamentos
da vida anacorética, que um dos vossos, dirigente de um nume
roso cenóbio, desej a que sua congregação, para a qual vossa
experiência de vida já constitui uma grande lição, sej a instruída
de acordo com os ensinamentos daqueles Pais. Um outro,
também, se propõe a penetrar até os confins do Egito, no intuito
de testemunhar pessoalmente a experiência de vida daqueles
anciãos.
Por isso, deixando vossa província que lhe parecia entor-
1 Embora os volumes de "Sources Chrétiennes" agrupem as Conferências
de maneira diferente da adotada pelo próprio Cassiano, é evidente que
pretendem apresentar sua obra tal como seu autor a compôs. Daí, os prefácios
colocados por Cassiano como cabeçalhos das três coleções: I-X, XI-XVII,
XVIII-XXIV, têm direito ao lugar que lhes compete.Tais conferências se
apresentam como cartas enviadas a alguns monges. Esta foi endereçada a
Honorato e Eucherio. Honorato, fundador e primeiro abade do mosteiro de
Lérins, foi mais tarde bispo de Arles (426); tendo morrido em 429. Eucherio,
primeiramente monge de Lérins, tomou-se depois bispo de Lião.
1 04 Prefácio
pecida sob o céu glacial da Gália, desej ou levantar vôo, à
semelhança de uma casta rolinha, . até aquelas famosas terras
que o sol da justiça contempla bem de perto, e onde uma profu
são de virtudes faz brotar seus frutos amadurecidos.
Desde então, o aguilhão da caridade me espicaçou. E,
tomado de preocupações com o desej o de um e as fadigas do
outro, não mais fugi ao perigo tão temível de escrever, esperando
tão-somente que ao primeiro sej a aumentada a autoridade
perante seus filhos, e ao segundo sej a poupada uma arriscada
navegação. Uma vez que vossa fé e vosso fervor não se puderam
contentar com os doze volumes sobre as Instituições Ceno
bíticas, escritas como me foi possível, em memória do bem
aventurado bispo Castor, e também com as dez conferências
dos Pais do deserto de Cétia, por mim organizadas, por solici
tação dos bispos Heládio e Leôncio, eis agora sete conferências
escritas no mesmo estilo e que considero de meu dever vos
dedicar. Eu as ouvi de três Pais que residem em outro deserto,
os primeiros que consegui visitar. Assim podereis conhecer, por
meio destas, o prosseguimento de minha viagem. Além disso,
elas completarão o que meus escritos precedentes podem ter
contido de obscuro ou de incompleto sobre o tema da perfeição.
Se não conseguirem estancar a sede realmente santa que
vos anima, outras sete conferências, que devo remeter aos santos
das ilhas Stecades, satisfarão, espero, vossos ardentes desejos.
XI
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE QUEREMOM
A P ERFEIÇÃO
1 - A cidade de Tenessos
No tempo em que habitávamos o mosteiro da Síria, após
termos recebido os primeiros rudimentos da fé e conseguido
certo progresso, sentimo-nos atraídos a uma perfeição mais pro
funda e resolvemos partir imediatamente para o Egito. Gosta
ríamos de penetrar até o mais remoto deserto da Tebaida, a fim
de visitar o maior número possível de santos cuj a fama se havia
espalhado por todo o mundo e, mesmo sem a capacidade de
imitá-los, desej ávamos, ao menos, poder conhecê-los.
A travessia nos levou a uma cidade do Egito chamada
Tenessos, circundada de todos os lados pelo mar ou pelos lagos
salgados.
Não dispondo de terras que pudessem ser cultivadas, seus
habitantes dedicavam-se exclusivamente ao comércio marítimo,
dele tirando todos os recursos. Essa deficiência de terra acabou
por levar os moradores de Tenessos a importar, de lugares lon
gínquos, através de seus navios, o material necessário se dese
j assem realizar alguma construção.
1 06 Abade Queremom
2 - O bispo Arquébio
Querendo Deus favorecer nossos desej os, fez com que
nossa chegada coincidisse com a vinda do bispo Arquébio,
homem de eminente santidade e grande notoriedade. Depois de
arrebatado à comunidade dos anacoretas para tomar-se bispo
de Panéfisis, nunca abandonou, durante toda sua vida, a estrita
observância da solidão, e em nada, também, amenizou sua
extrema obediência, j amais se permitindo qualquer negligência
na antiga humildade. Tampouco se ufanava da dignidade com
que o haviam distinguido. De fato, considerava que, se o tinham
designado para essa missão, não fora graças às suas aptidões
para cumpri-la, lamentando tão-somente ter sido expulso, como
indigno, da vida anacorética, pois julgava não ter sabido alcançar
a pureza de coração exigida por tão elevada profissão.
A eleição de um bispo o levara a Tenessos naquele dia, e
ele nos recebeu com todos os sinais da mais afetuosa caridade.
Ao saber de nosso desejo de visitar os Pais até as mais longínquas
províncias do Egito, disse-nos: "Vinde, vinde, e, nesse ínterim,
podereis conhecer os anciãos que residem não muito longe de
nosso mosteiro. A idade avançada j á faz com que seus corpos se
inclinem para a terra, e a santidade brilha com tal esplendor em
seus rostos que apenas a contemplação daqueles monges já equi
vale a um profundo ensinamento. Eles vos transmitirão aquilo
que infelizmente eu não vos poderei comunicar, e a sua santa
vivência vos instruirá mais que suas palavras. Minha indigência
impede-me de vos oferecer qualquer coisa. E, uma vez que não
possuo a preciosa pérola do Evangelho, que ora buscais, indicar
vos-ei, porém, onde a podereis comprar" (cf. Mt 1 3 ,45).
3 Descrição do deserto em que habitavam Queremom, Nes
-
teros e José
Em seguida o bispo Arquébio, tomando o bastão e a pe-
A Perfeição 1 07
quena sacola própria dos monges itinerantes, nos conduziu ele
próprio até Panéfisis, sede de seu episcopado. Essa cidade fora
outrora tão opulenta, e seus arredores tão férteis que, segundo
o que dizem, fornecia tudo quanto necessitava a mesa real.
Todavia, um violento terremoto de tal modo agitou o mar que o
fez transpor seus limites, submergindo todas as aldeias e transfor
mando aqueles campos fecundos em pântanos salgados, seme
lhantes aos que o profeta menciona em sentido espiritual no
salmo 1 06 : Mudou águas correntes em deserto e fontes de água
borbulhante em terra seca; transformou as terras férteis em
salinas, pela malícia dos que nelas habitavam (SI 1 06,33 ss).
Diversas povoações construídas em pontos elevados foram
abandonadas por seus moradores e formaram uma espécie de
ilhas em meio àquela inundação. Assim, os santos que partiam
em busca de solidão encontravam nesses lugares um retiro
favorável e o isolamento desejado. Portanto, foi aí que se fixaram
em minha companhia três anacoretas de idade provecta: Quere
mom, Nesteros e José.
4 O abade Queremom e o pretexto alegado para recusar a
-
conferência solicitada
O santo bispo Arquébio preferiu nos levar, em primeiro
lugar, ao abade Queremom, visto ser este o mais próximo do
mosteiro e também o mais idoso dos três. Já completara cem
anos e só o espírito permanecia ainda alerta. A idade e o hábito
da oração de tal maneira o haviam curvado que estava quase
reduzido à altura de sua primeira infância, locomovendo-se
apenas com o auxílio das mãos. Os membros ressequidos
pareciam já mortos e, no entanto, ele se mantinha rigorosamente
observante de suas antigas austeridades. Ao mesmo tempo em
que contemplávamos a extraordinária beleza de sua face e aquele
1 08 Abade Queremom
estranho caminhar, pedimos-lhe humildemente que nos comuni
casse algumas palavras sobre sua doutrina, confessando-lhe que
nosso desej o de conhecer os fundamentos e as instituições da
vida espiritual fora a verdadeira causa de nossa visita.
Gravemente e a suspirar o ancião nos respondeu: "Como
posso expor-vos minha doutrina? A fragilidade da velhice, obri
gando-me a mitigar o antigo rigor, reduziu-me também a cora
gem de falar. E como terei a presunção de vos ensinar aquilo
que eu próprio j á não pratico? Como vos recomendarei a obser
vância do que eu mesmo j á deixei de fazer ou faço tão mal? Por
isso não permiti até o presente que monges jovens viessem residir
em minha companhia, receando que meu exemplo lhes pudesse
arrefecer o fervor. Os ensinamentos do mestre carecem de
autoridade a menos que não se gravem pelo exemplo no coração
do ouvinte."
5 - Nossa resposta
Completamente confusos por essas palavras e grandemente
compungidos, respondemos ao abade : "Para nossa edificação,
seria suficiente considerar o lugar em que vives e a solidão que
suportas e que até para j ovens robustos seria difícil enfrentar.
Teu silêncio mesmo significa para nós um grande ensinamento e
nos comunica uma profunda compunção, todavia, suplicamos
que o rompas por alguns momentos para auxiliar-nos, já não
ousamos dizer, a imitar tua virtude, mas, tão-somente, para po
dermos contemplá-la. Nossa tibieza, que talvez o Senhor te tenha
revelado, não merece receber a graça que pedimos, mas, con
cede-a, ao menos, por causa das fadigas de uma viagem extre
mamente penosa, pois viemos do mosteiro de Belém até aqui,
unicamente pelo desej o de ouvir teus ensinamentos e pelo amor
a nosso progresso."
A Perfeição 1 09
6 - Resposta do abade Queremom: os três meios de combater
os vícios
Então o bem-aventurado Queremom assim nos falou: "O
homem dispõe de três meios para evitar os vícios: o medo do
inferno e das leis humanas; a esperança e o desej o do reino dos
céus; a tendência ao bem e o amor às virtudes. Com efeito, o
medo execra o contágio com o mal, pois está escrito : O temor
do Senhor odeia o mal (Pr 8, 1 3). A esperança também repudia
todos os vícios, porque: Os que esperam em Deus não pecarão
(SI 3 3 ,23). E o amor não teme a ruína dos pecadores pois a cari
dade jamais acabará (I Cor 1 3 ,8); e ainda: A caridade cobre uma
multidão de pecados ( 1 Pd 4,8). Eis por que o bem-aventurado
Apóstolo faz consistir toda a economia da salvação na prática
perfeita dessas três virtudes. Agora, declara ele, permanecem a
fé, a esperança e a caridade ( 1 Cor 1 3 , 1 3 ) . A fé afugenta os vícios
pelo temor do juízo final e dos suplícios eternos; a esperança
leva nosso espírito ao desapego da vida presente e, ante a ex
pectativa das recompensas eternas, nos impele à rej eição dos
prazeres corporais. Mas é a caridade que, inflamando-nos o
coração com o amor do Cristo e das virtudes espirituais, nos
inspira uma profunda aversão a tudo que lhe sej a contrário.
Embora essas três virtudes pareçam tender para o mesmo
fim, enquanto nos induzem à abstenção das coisas ilícitas, há
entre elas grande diferença pelo grau de primazia que as
distingue. As duas primeiras são próprias dos que se iniciam na
busca da perfeição, mas que ainda não possuem o amor à virtude.
A terceira, porém, é específica de Deus e daqueles que receberam
a sua imagem e semelhança, porque é próprio unicamente de
Deus fazer o bem, sem que seja induzido pelo medo ou pela
espera de uma recompensa, mas exclusivamente por bondade.
Pois, como diz Salomão : O Senhor tudo criou para si mesmo
(Pr 1 6,4). Foi sua bondade que o fez espalhar com fartura seus
1 10 Abade Queremom
benefícios sobre os bons e os maus. As ofensas dos homens não
o cansam j amais, nem o irritam suas iniqüidades. Sua bondade
permanece sempre perfeita e sua natureza, imutável.
7 - Os degraus pelos quais se ascende à perfeição da caridade
Aquele que aspira ao estado de perfeição deve superar
esse primeiro degrau do temor, j á indicado por nós como próprio
da condição servil e do qual se escreveu: Quando tiverdes feito
tudo o que vos mandarem, dize i.· somos servos inúteis (Lc 1 7, I O).
Vencida essa etapa, elevar-se-á, por um progresso contínuo, ao
degrau superior da esperança, não mais condizente com a posição
do escravo, apropriado, todavia, à condição do mercenário. Pois
a esperança fica à espera de uma recompensa. Confiante no
perdão dos pecados e sem receio do castigo e, ainda, consciente
das boas obras praticadas, ele se encontra na expectativa do
prêmio que o Senhor, benévolo, graças à sua conduta, na certa
lhe concederá. No entanto, ele não chegou ainda àquele amor
filial que, confiando na indulgência e na liberalidade paternas,
sabe que tudo quanto é do pai também é seu.
A esse estado não ousava aspirar o pródigo do Evangelho,
acreditando que, ao dissipar os bens paternos, perdera também
a condição de filho. Não mereço ser chamado teu filho, trata
me como a um dos teus empregados (Lc 1 5 , 1 9). Após ter desejado
saciar-se com a comida lançada aos porcos, sem dela se ter po
dido fartar, vale dizer, depois de se ter alimentado dos vícios
mais vergonhosos, ele cai em si e, tocado de um temor salutar,
horroriza-se com a imundícia dos porcos e receia o cruel tor
mento da fome. Esses sentimentos lhe dão a impressão de se ter
tomado um escravo e, pensando no pagamento que recebem
os daquela categoria, almej a ser um deles. E diz consigo mesmo:
Quantos empregados de meu pai têm pão com fartura, e eu
aqui a morrer de fome. Vou voltar para meu pai e dizer-lhe:
A Perfeição 111
Pai, pequei contra Deus e contra ti, já não mereço ser chamado
teufilho, trata-me como um dos teus empregados (Lc 1 5 , 1 7- 1 9).
No entanto, o pai corre ao encontro do filho, acolhe aquela
palavra de humilde confissão, inspirada pela ternura, com uma
ternura ainda maior. E, não satisfeito de conceder ao filho o
solicitado, restitui imediatamente a este sua antiga dignidade.
Também nós, empenhemo-nos em alcançar esse terceiro grau
próprio dos filhos que reconhecem como seu, tudo quanto per
tence ao pai. E, pela graça de uma caridade inabalável, pro
curemos receber em nós essa imagem e semelhança com o Pai
celeste para que possamos proclamar, imitando o verdadeiro
Filho : Tudo o que o Pai tem é meu (Jo 1 6, 1 5).
É também o que o Apóstolo nos anuncia, ao dizer: Tudo
vos pertence: Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte,
as coisas presentes e as futuras. Tudo é vosso ( 1 Cor 3 ,22). É o
próprio preceito do Senhor que nos convoca a essa semelhança:
Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5, 48).
Nos primeiros graus, o amor do bem é algumas vezes inter
rompido, quando a tibieza, a alegria ou o prazer vêm fragilizar
o vigor da alma, privando-a do medo do inferno ou do desejo
das recompensas eternas. Todavia devemos reconhecê-los como
que patamares, isto é, etapas de uma aprendizagem para alcançar
mos a caridade, pois, segundo o apóstolo João : Não há temor
no amor, ao contrário, o perfeito amor exclui o temor, porque o
temor implica um castigo, e o que teme não chegou à perfeição.
A memos, portanto, porque Deus nos amou primeiro ( l Jo 4, 1 8-
1 9) . Não há outro caminho para ascendermos à verdadeira
perfeição. Porque Deus nos amou, em primeiro lugar, tendo
como único objetivo a nossa salvação. É assim que urge amá
lo, também, unicamente por reciprocidade ao seu amor.
Esforcemo-nos, portanto, com intenso fervor, para pas
sarmos do temor à esperança, e da esperança à caridade de Deus
1 12 Abade Queremom
e ao amor das virtudes; emigremos por amor ao bem, e permane
çamos fixos nesse amor, tanto quanto for possível à natureza
humana.
8 Superioridade dos que renunciam ao vício pela prática da
-
caridade
Existe grande diferença entre um homem que mortifica os
estímulos do vício pelo temor do inferno e pela esperança da
recompensa futura, e um outro que dele se afasta motivado pelo
sentimento da divina caridade e por horror ao mal e às suas im
purezas. Aquele que possui o tesouro da pureza unicamente pelo
amor e desej o da castidade não pensa nas recompensas futuras,
mas se regozij a com a consciência de que o bem presente lhe
proporciona, e tudo faz, não por temer uma punição, mas por
encontrar sua felicidade na prática da virtude. Este, mesmo que
sem ninguém para testemunhar, evita as ocasiões de pecado e
não se apraz com as tentações dos deleites ocultos. Porque o
amor sincero que nutre pela virtude o faz expulsar do coração
tudo quanto lhe é contrário, por inspirar-lhe verdadeiro horror.
Pois uma coisa é odiar o contágio do vício e da carne, pelo
amor da virtude já alcançada, e outra coisa é refrear a concu
piscência ilícita em vista da recompensa futura. Uma coisa é
temer a perda de algo que j á se possui, outra, recear males
vindouros. Enfim, é sinal de um estado de perfeição bem mais
avançado ser virtuoso por amor à virtude, que evitar o mal por
receio à punição. Porquanto, no primeiro caso o bem é volun
tário, enquanto que no segundo, parece forçado e obtido com
dificuldade, pelo receio dos suplícios ou pelo desejo das recom
pensas.
Assim, o que renuncia às seduções do vício por temor, se
removido o medo, retomará ao obj eto de seu amor. Nunca pos
suirá a estabilidade no bem, e jamais ficará imune aos assaltos
A Perfeição 1 13
do mal, j á que não estará de posse da paz profunda e perma
nente proporcionada pela castidade. De fato, onde reinam as in
quietações da guerra, toma-se impossível escapar sem o risco
de ferimentos. O soldado, por exímio que sej a no combate e
destemido na luta, embora tenha desferido contra o inimigo
golpes fatais, estará ele próprio inexoravelmente exposto a ser
atingido. Ao contrário, aquele que superou os assaltos dos vícios
fruirá sempre de uma profunda paz, não tendo outra inclinação
senão o amor à virtude. Assim, irá perseverar nesse estado sem
dificuldade, uma vez que j á se entregou a ele sem reservas, jul
gando não existir maior infortúnio que uma transgressão à sua
castidade.
Considera a pureza seu mais valioso e maior tesouro, e o
maior dos danos a virtude perniciosamente arruinada pela
contaminação com o vício. O testemunho e a consideração dos
homens, bem como o respeito humano em nada irão alterar a
sua observância, e também a solidão não a mitigará. Sempre e
em qualquer lugar ele está consciente da presença do supremo
juiz, e sua consciência regerá não somente seus atos, mas ainda
seus pensamentos, pois, seu principal empenho será agradar
àquele juiz ao qual ninguém pode iludir, enganar ou evitar.
9 - A caridade transforma o escravo em filho, conferindo-lhe
simultaneamente a imagem e semelhança de Deus
Se alguém, não presumindo de suas forças, mas confiando
na graça divina, mereceu chegar a tais disposições, abandonará
a condição servil, caracterizada pelo temor e pelo desej o merce
nário da esperança, mais veiculada à recompensa do que à bon
dade daquele que a concede, e começará a passar à condição
de filho adotivo, na qual não mais subsiste o medo nem a ambição
do prêmio (cf. I Cor 1 3 ,8). Deus, ao falar sobre o medo e a cari
dade, mostra o papel que convém a cada pessoa. O filho honra
1 14 Abade Queremom
o pai, e o escravo teme o senhor. Se sou pai, qual a honra que
me cabe e, se sou o senhor, onde está o temor que me é devido?
(Ml 1 ,6 - LXX). O escravo necessariamente teme porque, se co
nhece a vontade de seu senhor e não a cumpre, será açoitado
muitas vezes (Lc 1 2,47). Todavia, para aquele que o amor fez
chegar à imagem e semelhança divinas, a esse apraz fazer o bem
pelo próprio bem. Possui a paciência e a mansidão divinas e não
se irrita com os defeitos do próximo; ao contrário, vai implorar
o perdão por suas fraquezas, por causa da grande piedade e
compaixão que sente em relação a estes, pois está lembrado de
que sofreu também o aguilhão de paixões semelhantes, até o dia
em que aprouve ao Senhor preservá-lo de tais tentações. Sabe
que não foi por seus esforços que conseguiu libertar-se das inves
tidas carnais, mas porque aprouve ao Senhor protegê-lo daquelas
paixões. E, na absoluta tranqüilidade de seu coração, canta a
Deus o seguinte versículo de Davi: Porque o Senhor me quebrou
os grilhões da escravidão, eu lhe ofertarei um sacrifício de
louvor (SI 1 1 5, 1 6- 1 7), e ainda: Se o Senhor não fosse meu socorro,
em breve eu habitaria na região do silêncio (SI 93, 1 7).
E essa humilde disposição de sua alma fá-lo-á cumprir o
preceito da perfeição evangélica: Amai vossos inimigos e faze i
o bem aos que vos odeiam; orai pelos que vos perseguem e vos
caluniam (Mt 5 ,44).
Teria assim o merecimento de ser configurado à imagem
e semelhança de Deus, e ainda receberia o título de filho. Porque
foi dito : Desse modo vos tornareisfilhos de vosso Pai que está
nos céus, porque ele faz nascer o sol igualmente sobre maus e
bons, e cair a chuva sobre justos e injustos (Mt 5 ,45). Foi o que
João compreendeu quando disse: Para que tenhamos plena con
fiança no dia do julgamento, porque tal como ele é, também
somos nós neste mundo ( l Jo, 4, 1 7). Como o homem tão fraco e
frágil poderia, na sua natureza, ser semelhante a Deus, senão
tentando imitá-lo pela caridade cultivada em seu coração, e
A Perfeição 115
exercida a favor dos bons e dos maus, dos justos e dos inj ustos?
É pela prática do bem pelo próprio bem que se pode chegar a
essa adoção de filhos de Deus, a respeito da qual João declara:
Todo aquele que nasceu de Deus não comete pecado porque o
nascimento que recebeu de Deus o conserva puro, e o diabo
não pode tocá-lo ( l Jo 3 ,9).
E, novamente: Sabemos que quem nasceu de Deus não
peca, pois o nascimento que recebeu de Deus o conserva puro
e o maligno não o toca ( I Jo 5 , 1 8).
Não se deve entender isso a respeito de qualquer pecado,
mas somente em relação ao pecado mortal. Quanto aos peca
dores que não pretendem converter-se ou purificar-se, diz o
mesmo Apóstolo : Se alguém vê seu irmão cometer um pecado
que não leva à morte, que ele ore, e Deus dará a vida a esse
irmão, se, de fato, o pecado cometido não conduz à morte.
Existe um pecado que conduz à morte, mas não é a respeito
deste que eu digo que se ore ( I Jo 5, 1 6).
Quanto aos pecados que não são mortais e dos quais os
discípulos mais fiéis de Cristo e os mais vigilantes não estão
isentos, o Apóstolo assim se exprime: Se dissermos que não
temos pecado enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não
está em nós ( I Jo 1 ,8), e ainda: Se dissermos que não pecamos,
fazemos de Deus um mentiroso, e sua palavra não está em nós
( l Jo 1 , 1 0). Pois é impossível a quem quer que sej a não cair em
faltas leves por palavras ou pensamentos, por ignorância, esque
cimento, necessidade, vontade ou surpresa e, embora tais peca
dos não sej am mortais, cumpre que deles nos arrependamos.
1 O - A perfeição da caridade consiste em orar pelos inimigos.
Indício pelo qual se reconhece que a alma ainda não está
purificada
Portanto, aquele que chegou ao amor do bem e à imitação
1 16 Abade Queremom
de Deus terá entranhas de misericórdia e, também, irá orar por
seus perseguidores, dizendo : Pai, perdoai-lhes porque não
sabem o que fazem (Lc 23,34).
De fato, a ausência de compaixão pelas faltas do próximo
é um claro indício de uma alma ainda não purificada da sordidez
do vício, pois, ao invés de se apiedar daquela situação, é capaz
de censurá-la como um rígido juiz. Como poderia alguém chegar
à perfeição do amor se ainda não consegue cumprir aquilo que
o Apóstolo diz ser a plenitude da lei : Levai os fardos uns dos
outros e assim cumprireis a lei do Cristo? (Gl 6,2). Pois, na ver
dade, esse não possui a caridade que não se irrita, não se or
gulha, não julga mal, tudo sofre, tudo suporta ( l Cor 1 3 ,4-7).
Porque ojusto cuida das necessidades do seu gado, mas o ímpio
tem as entranhas cruéis (Pr 1 2, 1 0 - LXX). Ora, o monge está
suj eito às mesmas faltas que condena nos outros com desumana
e rigorosa severidade. Com efeito, o rei inflexível cairá na des
graça (Pr 1 3 , 1 7 - LXX). Ora, Quem se faz de alguma maneira
surdo aos gritos do pobre não será o uvido quando ele mesmo
clamar (Pr 2 1 , 1 3 - LXX).
1 1 - Porque se diz que são imperfeitos os sentimentos de temor
e de esperança
Germano: Foi com vigor e eloqüência que dissertaste
sobre a perfeita caridade de Deus, mas algo ainda muito nos
perturba, pois, ao exaltá-la tão bem, nos apresentaste como im
perfeições o temor de Deus e a esperança pelas recompensas
eternas. Ora, parece-nos que o profeta, sobre esse ponto, enuncia
um sentimento completamente oposto, quando diz: Teme i a Deus
todos os santos, pois nada falta aos que o temem (Sl 3 3 , 1 0). E
ele ainda confessa: Inclinei meu coração para a observância de
teus mandamentos, tendo em vista a recompensa (Si l l 8, 1 1 2).
Por outro lado, o Apóstolo também nos diz: Foi pela fé que
A Perfeição 1 17
Moisés, ao se tornar adulto, recusou-se a ser chamado filho da
filha do Faraó, preferindo ser maltratado com o povo de Deus
a gozar por um tempo do pecado. Pois considerava a humi
lhação de Cristo um tesouro maior do que as riquezas do Egito,
porque tinha os olhos fixos na recompensa (Hb 1 1 ,24-26). Por
tanto, como acreditar que tais sentimentos sej am imperfeitos,
quando o bem-aventurado Davi se gloria de ter obedecido aos
mandamentos divinos na esperança da recompensa, e o legislador
desprezou, pelo mesmo motivo, uma adoção régia, preferindo
os mais cruéis sofrimentos aos tesouros do Egito?
1 2 Os diferentes graus da perfeição
-
Queremom: A Sagrada Escritura convoca nosso livre
arbítrio a diversos graus de perfeição, conforme o estado e a
capacidade de cada um. De modo algum poderia propor a todos
a mesma meta de perfeição, porque todos não possuem a mesma
virtude, a mesma vontade e o mesmo fervor. A palavra divina
estabelece assim diversos graus e diversas medidas na perfeição.
Temos disso uma comprovação evidente na variedade das bem
aventuranças evangélicas, onde se diz: Bem-aventurados os que
herdarão o reino dos céus, bem-aventurados os que possuirão a
terra, bem-aventurados os que serão consolados, bem-aventu
rados os que serão saciados (cf. Mt 5,3 ss). E, todavia, achamos
que há uma grande diferença entre possuir os céus e habitar a
terra, qualquer que sej a esta e, também, entre os que são conso
lados e os que são saciados por terem fome e sede de j ustiça. E
ainda existe uma grande distância entre os que alcançarão
misericórdia e os que merecerão extasiar-se com a gloriosíssima
visão de Deus: Um é o brilho do sol, outro é o brilho da lua, e
outro o brilho das estrelas. E até de estrela para estrela há
diferença de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos
mortos ( l Cor 1 5,4 1 -42).
118 Abade Queremom
É verdade que a Sagrada Escritura louva os que temem a
Deus, quando diz: Bem-aventurados os que temem a Deus (SI
1 27, 1 ), e lhes promete por esse meio uma felicidade perfeita,
mas também está escrito : Não há temor no amor; ao contrário,
o perfeito amor lança fora o temor, porque o temor implica um
castigo, e o que teme não chegou à perfeição do amor ( 1 Jo
4, 1 8).
Mesmo que a Escritura louve a glória de servir ao Senhor:
Servi a Deus no temor (SI 2, 1 1 ). E ainda: É uma glória para ti
ser chamado meu servo (Is 49,6 LXX). E mais: Feliz aquele
-
servo que o Senhor, ao chegar, achará assim ocupado (Mt 24,46).
Contudo, Jesus Cristo diz a seus apóstolos: Já não vos chamarei
mais servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas vos chamarei amigos, porque tudo quanto ouvi de meu
Pai eu vos darei a conhecer (Jo 1 5 , 1 4- 1 5). E também: Sereis meus
amigos se fazeis o que vos mando (Jo 1 5 , 1 3 ). Estais vendo,
portanto, que a perfeição abrange diferentes graus, e que Deus
nos convida a ascendermos de um patamar a outro, a fim de que
aquele que se tomou feliz e perfeito no temor de Deus progrida
de virtude em virtude (SI 83 ,8), de perfeição em perfeição e se
eleve, na fervorosa prontidão de sua alma e no j úbilo da mente,
do temor à esperança. Mas ele ouvirá ainda uma vez o chamado
divino que o convidará a atingir um estado de maior santidade
que é o amor. Aquele que se houver mostrado "servo bom e
fiel" (Mt 24,45), merecerá a intimidade reservada aos amigos e a
adoção dos filhos (cf. 01 4,5). É nesse sentido que nossas palavras
deverão ser compreendidas. A consideração das punições eternas
ou das recompensas celestes, prometidas aos santos, certamente
não é inútil mas, embora sej a capaz de colocar os que a abraçam
no caminho da bem-aventurança, a caridade, na qual se encontra
uma confiança maior e uma alegria mais duradoura, afasta a
alma do temor servil e mercenário, elevando-a ao amor de Deus
e à condição de filho, e ainda toma mais perfeitos os que a pra-
A Perfeição 1 19
ticam. Como disse o Salvador: Muitas são as moradas na casa
de meu Pai (Jo 1 4,2) . Todos os astros brilham no céu; mas há
grande diferença entre a luz do sol e da lua e a das estrelas (cf.
1 Cor 1 5 ,4 1 ). Assim, o Apóstolo mostra que a caridade excede
não apenas o temor e a esperança, como ainda os mais admirá
veis carismas concedidos aos homens, porquanto, após haver
enumerado todos os dons espirituais, ele se propõe a descrever
a caridade, iniciando seu discurso com as seguintes palavras:
Agora vo u mostrar-vos um caminho incomparavelmente
superior: Mesmo que eu falasse todas as línguas, as dos anjos
e as dos homens, se eu não tivesse a caridade seria como um
bronze que soa ou como um címbalo que tine. Mesmo que eu
tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios
e de toda a ciência, mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de
transportar montanhas, se não tivesse caridade, eu nada seria
( 1 Cor 1 2,3 1 ; 1 3 , 1 -3). Podeis ver, pois, que nada é mais precioso,
nada mais perfeito, nada mais sublime e, direi até, nada mais
eterno que a caridade, porquanto as profecias desaparecerão,
as línguas cessarão, a ciência também será destruída, mas a
caridadejamais passará ( I Cor 1 3 ,8). Sem ela os mais admiráveis
carismas, até mesmo a glória do martírio, se reduzirão a nada.
1 3 - O temor que nasce da magnitude da caridade
Quem, portanto, atingiu a perfeição dessa caridade, elevar
se-á ainda a um grau mais sublime que é o temor na caridade.
Tal temor não se origina no terror aos castigos, nem no desejo
da recompensa, mas provém da própria magnitude do amor.
Trata-se de um misto de respeito e de afeição solícita como a
que o filho tem pelo pai, o irmão pelo irmão, o amigo pelo amigo
e a esposa pelo esposo. Não teme os maus tratos nem as censuras,
mas receia deixar escapar, por mínima que sej a, qualquer ofensa
capaz de fragilizar o amor. Portanto, não apenas as palavras,
1 20 Abade Queremom
mas também os atos, se revestem de imensa ternura para que
essa mútua dileção não se arrefeça, por pouco que sej a.
O profeta Isaías expressa, com perfeição, a beleza desse
sentimento, ao dizer: A sabedoria e a ciência serão a riqueza
capaz de salvar-te, mas o temor do Senhor é o teu tesouro (Is
3 3 ,6). De fato, o profeta não poderia exprimir com maior clareza
a dignidade e o mérito desse temor, uma vez que foi dito que a
sabedoria e a ciência divinas, que são as riquezas de nossa alma,
só podem ser resguardadas por esse temor de Deus. E é para
que se preserve esse temor que as palavras proféticas exortam,
não os pecadores, mas os santos, quando diz: Temei o Senhor,
todos os seus santos, porque nada falta àqueles que o temem
(Sl 3 3 , 1 0). Aquele que teme a Deus desse modo certamente al
cançou a perfeição. Ora, é certamente a respeito do temor servil
que fala o apóstolo João : Aquele que teme não atingiu a per
feição do amor, porque o temor supõe o castigo ( l Jo 4, 1 8).
Há uma considerável distância entre o temor, ao qual nada
falta e que é o tesouro da sabedoria e da ciência, e o outro
temor, o imperfeito. Este último outra coisa não é senão o prin
cípio da sabedoria (SI 1 1 o, 1 O), e como implica um castigo, está
excluído do coração dos perfeitos quando atingem a plenitude
da caridade. Porque o temor não faz parte da caridade, e a
caridade perfeita afugenta o temor ( I Jo 4, 1 8).
Com efeito, estando o princípio da sabedoria no temor,
onde estaria sua perfeição senão na caridade do Cristo, que con
tém em si aquele outro temor perfeito, próprio do amor, e con
siderado não mais o início, porém a plenitude da sabedoria e da
ciência? Assim, pois, há dois graus no temor: o primeiro, que é
próprio dos principiantes, que ainda tremem servilmente sob o
jugo do senhor (MI 1 ,6 - LXX). E aquele de que também fala o
Evangelho : Não vos chamarei mais servos, porque o servo não
sabe o que faz o senhor (Jo 1 5, 1 4), e ainda, o escravo não per
manece na casa para sempre, mas o filho permanece (Jo 8,35).
A Perfeição 121
Por essas palavras a Escritura nos quer persuadir a passar do
temor do castigo à plena liberdade do amor e à confiança,
apanágio dos amigos e dos filhos de Deus. Enfim, o bem-aventu
rado Apóstolo, que j á transcendera pela virtude da caridade
divina aquele grau do temor servil, proclama, com certo desdém
àquela espécie de temor, que fora enriquecido pelo Senhor com
os dons mais sublimes : Deus não nos deu um espírito de medo,
mas um espírito de força, de amor e de sobriedade (2Tm 1 ,7).
Depois ele exorta os que cheios de amor ardente pelo Pai celeste
e que pela adoção divina se haviam transformado de servos em
filhos, dizendo: Com efeito, não recebestes um espírito de escra
vos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos
adotivos, pelo qual chamamos: Abba Pai! (Rm 8, 1 5). É também
acerca do temor inspirado pelo amor de que fala o profeta ao
enumerar os sete dons do Espírito Santo que desceram sobre o
Homem-Deus no momento da Encarnação : Sobre ele repousará
o Espírito do Senhor: Espírito de sabedoria e de inteligência,
espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de
piedade (Is 1 1 ,2), finalmente, como coroamento desses dons, ele
dirá, o espírito de temor de Deus o cumulará (Is 1 1 ,3).
Na verdade, esse Espírito se expande de tal modo que, ao
se apossar de uma alma, não se atém apenas a uma de suas
partes, mas invade-a totalmente. E não poderia atuar diferente
mente porquanto, sendo inseparável da caridade, que nunca se
extingue ( 1 Cor 1 3 ,8), não apenas plenifica essa alma, mas dela se
apodera sem que os prazeres da terra possam enfraquecer sua
ação (cf. l Jo 4, 1 8). Eis a diferença que existe entre esse temor
que se origina da caridade e o temor servil. Foi, pois, desse
temor de perfeição que o Espírito cumulou o Homem-Deus,
que não apenas veio resgatar o gênero humano, mas oferecer
em sua pessoa uma forma de perfeição e um exemplar de todas
as virtudes. Quanto ao temor servil, aquele que era o verdadeiro
Filho de Deus, que não cometeu pecado e em cuja boca mentira
1 22 Abade Queremom
algumafoi encontrada, j amais poderia ter conhecido ( I Pd 2,22).
1 4 - A castidade perfeita
Germano: Após nos teres tão bem instruído sobre a per
feição da caridade, desej amos também ardentemente que nos
fales sobre a perfeição da castidade, pois não duvidamos que os
sublimes graus de amor que mencionaste, e que conduzem à
imagem e semelhança divina, não podem existir sem a perfeição
da castidade. Mas seria possível conservar essa virtude perma
nentemente sem que a integridade de nosso coração sej a per
turbada pelas seduções da concupiscência? Vivendo na carne,
ser-nos-ia possível ficar tão distanciados das paixões carnais a
ponto de j amais sentir seus aguilhões? Eis o que gostaríamos de
aprender.
15 - Queremom adia a explicação solicitada
Queremom: Seria o sinal da mais elevada bem-aven
turança e de um merecimento singular discorrer constantemente
sobre esse sentimento que nos faz aderir ao Senhor, sej a no sen
tido de aprender, sej a no de ensinar. Nossos dias e nossas noites,
segundo a expressão do salmista, se consumiriam em sua
meditação ( cf. SI 1 ,2). E nossas almas, devoradas por uma fome e
uma sede insaciáveis de justiça, se nutririam sem cessar desse
alimento celestial. Mas temos também um corpo que é um
verdadeiro animal de carga e do qual temos que nos ocupar a
exemplo da benigníssima providência de nosso Salvador, para
que ele não desfaleça durante a caminhada (cf. Mt, 1 5 ,32), pois: O
espírito é pronto, mas a carne é fraca (Mt 26,4 1 ) . Tomemos,
portanto, agora um pouco de alimento, mesmo frugal, para que,
uma vez satisfeita essa necessidade, o espírito possa, com mais
empenho, aplicar-se à questão que desejais aprofundar.
XII
SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE QUEREMOM
A C ASTIDADE
1 - Palavras do abade Queremom sobre a castidade
Terminada a refeição, que nos pareceu mais penosa que
agradável - tão ávidos estávamos pelo alimento espiritual
prometido - o santo ancião, percebendo nossa ansiedade, assim
nos falou: "Apraz-me ver não apenas o ardor que demonstrais
em aprender, como também a lógica com que formulais vossa
questão, pois a ordem com que a apresentais é perfeitamente
racional. Com efeito, a plenitude de tão sublime caridade supõe
naturalmente a infinita recompensa de uma irrestrita e indefec
tível castidade, pois essas duas virtudes tão semelhantes estão
de tal modo associadas entre si que uma não pode existir sem a
outra, e ambas se destinam a proporcionar a mesma alegria e o
mesmo prêmio aos que as praticam.
A dúvida que propondes, portanto, se resume no seguinte:
o fogo da concupiscência, cuj o ardor nossa carne sente como
congênito, poderia ser totalmente extinto? Eis o que, por um
debate semelhante ao anterior, procurarei esclarecer. Primeira
mente examinaremos com grande cuidado o que o bem-aven
turado Apóstolo pensa a esse respeito: Mortificai, diz ele, os
vossos membros terrenos (Cl 3,5). Mas, antes de prosseguir, de-
1 24 Abade Queremom
terminemos quais são esses membros que ele nos ordena mor
tificar. O Apóstolo, por tais palavras, não nos quer recomendar
que amputemos as mãos ou os pés ou que nos submetamos a
uma bárbara mutilação, mas, pelo amor à santidade perfeita, a
destruir o corpo de pecado que, naturalmente, é formado por
diversos membros. Em outro lugar ele afirma: afim de que esse
corpo de pecado seja destruído (Rm 6,6). E ele próprio explica
em que consiste essa destruição ao dizer: Para que não mais
sirvamos ao pecado (Rm 6,6). E é, gemendo, que pede a sua li
bertação : Infeliz que sou! Quem me libertará desse corpo de
morte ? (Rm 7,24).
2 O corpo de pecado e seus membros
-
Este corpo de pecado é constituído por todos os elementos
característicos dos vícios. Vinculam-se a ele as faltas cometidas
por pensamentos, palavras e atos. Tais membros com muita pro
priedade são chamados terrestres porque os que deles se servem
não poderiam proclamar com autenticidade: Nossa vivência está
nos céus (FI 3 ,20). Em outro trecho o Apóstolo, elencando os
membros desse corpo assim se exprime: Mortificai, pois, os
vossos membros terrenos: fornicação, impureza, concupis
cência, desejos maus, e a cupidez que é idolatria (Cl 3 ,5).
Ele j ulgou que devia mencionar em primeiro lugar a
fornicação, que se consuma pela união carnal. Em segundo lugar,
cita a impureza que, mesmo sem a presença de uma mulher, se
insinua em nós durante o sono, ou mesmo quando estamos
acordados, se negligenciamos nossa vigilância. A lei condenava
essa impureza, não só privando os impuros da participação nas
carnes dos sacrifícios, como também afastando-os do acam
pamento da comunidade, e determinava: Se alguém se encontrar
em estado de impureza e comer da carne de um sacrifício de
comunhão oferecido ao Senhor, será exterminado do meio do
A Castidade 1 25
seu povo (Lv 7,20 - LXX). E tudo quanto ele tocar se tornará
impuro (Nm 1 9,22).
No Deuteronômio também se lê: Se em teu meio houver
um homem que se tornou impuro por causa de um sonho
noturno, ele deverá sair do acampamento e não voltará senão
após se ter banhado ao cair da tarde. Assim, ao pôr-do-sol
poderá voltar ao acampamento (Dt 23, 1 0- 1 1 ) .
Depois, o Apóstolo considera como terceiro membro do
pecado a libidinagem ou luxúria que, aninhando-se no íntimo da
alma, pode existir mesmo sem a paixão corporal. De fato, a
palavra libidinagem não se origina de libido, isto é, aquilo que
agrada?
Em seguida, passando dos pecados maiores aos menores,
ele enumera como quarto membro os maus desejos [ concupis
centia mala] , que não se refere apenas à impureza, j á mencio
nada, mas ainda a todas as paixões perniciosas que se originam
de uma vontade corrompida. F oi a seu respeito que o Senhor
falou no Evangelho : Aquele que olhar para uma mulher com o
desejo de possuí-lajá cometeu adultério com ela em seu coração
(Mt 5 ,28). Toma-se muito mais difícil reprimir um desej o da alma
se, na ocasião, nos defrontamos com uma presença sedutora.
Por isso toma-se evidente que à perfeição da pureza não pode
bastar, apenas, a continência corporal, mas cumpre acrescentar
lhe a integridade da mente.
Enfim, Paulo designa como último membro do corpo de
pecado a avareza. Referindo-se a esse vício, o Apóstolo pretende
mostrar que não apenas estamos impedidos de cobiçar as coisas
alheias, mas ainda que devemos até desprezar, com coração mag
nânimo, aquilo que nos pertence. Os Atos dos Apóstolos mostra
nos ser essa a atitude dos fiéis na Igrej a primitiva: A multidão
dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém conside
rava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo era posto em
comum. Aqueles que possuíam terras ou casas, as vendiam,
1 26 Abade Queremom
traziam o dinheiro e o depositavam aos pés dos apóstolos. De
pois, era distribuído, segundo as necessidades de cada um (At
4,32.34-3 5). E para que não pareça ser essa perfeição apanágio
de uns poucos, o Apóstolo classifica a avareza como idolatria
(cf. Cl 3,5). Nada mais merecido. Na verdade, quem não socorre
as necessidades dos pobres e despreza a lei do Cristo, valorizando
mais seu dinheiro que os preceitos do Senhor, comete o crime
de idolatria uma vez que prefere o amor de algo material à divina
caridade.
3 Necessidade de mortificar a fornicação e a impureza
-
Vemos, portanto, que, por amor ao Cristo, muitos são
capazes não só de abdicar da posse de uma fortuna, como tam
bém de estancar de seu coração qualquer sentimento de cobiça;
conseqüentemente não seria lícito acreditar na possibilidade de
extinguirmos, do mesmo modo, todo ardor da fornicação? Ora,
o Apóstolo j amais teria associado uma coisa possível a outra
impossível, e muito menos recomendado a prática de ambas se
não as julgasse exeqüíveis. E ele está tão seguro de que podemos
extirpar de nossos membros a fornicação e a impureza ( cf. Cl
3,5), que não se limita a ordenar que as mortifiquemos, mas chega
a proibir que tais palavras sej am pronunciadas entre os cristãos:
Fornicação e qualquer impureza ou avareza nem sequer se
nomeiem entre vós, como convém a santos. Nem ditos
indecentes, picantes ou maliciosos, que não convém, mas antes
ações de graças (Ef 5,3-4).
Além disso, o Apóstolo ensina que tais coisas são perni
ciosas e nos excluem do reino de Deus, acrescentando: Pois é
bom que saibais que nenhumfornicador ou impuro ou avarento
- que é um idólatra - tem herança no Reino de Cristo e de
Deus (Ef 5,5), e em outro lugar declara ainda: Nem os impudicos,
nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem
A Castidade 1 27
os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os
avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos, nem os assal
tantes herdarão o Reino de Deus ( l Cor 6,9- 1 0). Depois disso,
não mais devemos duvidar que possamos abolir completamente
de nossos membros a fornicação e a impureza, uma vez que ele
nos manda extinguir tais vícios do mesmo modo que fazemos
em relação à avareza, às palavras insensatas ou maliciosas, à
embriaguez e ao furto, pecados que podemos facilmente debelar.
4 Para a obtenção da pureza da castidade não é suficiente o
-
empenho do homem
No entanto, devemos estar certos de que de nada nos valerá
enfrentar as mais rigorosas abstinências, vale dizer, suportar a
fome e a sede, as vigílias, o trabalho estafante, a aplicação
permanente na leitura, pois nada disso fará com que mereçamos
a permanente pureza da castidade. É preciso que pela experiência
aprendamos que a perfeição da nossa integridade é um dom
liberal da graça de Deus.
Então, qual seria o fruto de nossa perseverança indefectível
na prática de tais exercícios espirituais? Alcançar a misericórdia
divina mediante tal perseverança e merecer por uma dádiva do
Senhor a libertação dos assaltos da carne e da impiedosa tirania
dos vícios. Mas não confie alguém, j amais, em alcançar por tais
esforços a inviolável castidade pela qual tanto anseia. Por isso,
é imprescindível que cada um sinta em relação a tal virtude tanto
desejo e tanto amor quanto sentem os avarentos, pelas riquezas,
devorados que são pela cobiça, ou os ambiciosos, insaciáveis de
honrarias, ou os libertinos exasperados por uma paixão feminina.
Enfim, cada um desses, no ardor de uma impaciência excessiva,
desej a satisfazer sua paixão. Em contrapartida, aquele que está
consumido por um insaciável desejo de perfeita integridade des
prezará o alimento, mesmo apetitoso, a bebida, mesmo neces-
1 28 Abade Queremom
sária, o repugnará, renunciará mesmo ao sono, até o exigido
pela natureza, ou ao menos, só cederá a ele, com a alma tomada
pelo receio e pela desconfiança, de tão pérfido inimigo da pureza
e de adversário tão obviamente declarado da castidade.
Pela manhã, verificada sua integridade, alegre-se pela
pureza que lhe foi conferida. E compreenda com clareza que
não a obteve mediante seu zelo ou sua vigilância, mas que seu
corpo só será preservado durante o tempo que aprouver à mise
ricórdia divina.
Quem estiver seguro dessa verdade, reprimirá qualquer
sentimento de orgulho que se possa insinuar acerca da própria
virtude. Nem a suave tranqüilidade que desfrutará o levará a
uma segurança enganosa, pois está persuadido de que, sem o
permanente socorro da graça, logo poderia recair na impureza.
A fim de que esse auxílio j amais o abandone, urge dedicar-se in
fatigavelmente e com toda a humildade à oração e à compunção
do coração.
5 - Utilidade dos assaltos carnais
Quereis uma prova da veracidade do que acabamos de
afirmar e que vos convencerá a um só tempo que é para nosso
crescimento que suportamos os combates carnais por mais hostis
e perigosos que sejam? Considerai os que, pela própria natureza,
são impotentes e por que motivo são tão tíbios e covardes na
busca da virtude? Não seria por se julgarem impolutos em relação
à castidade? Que ninguém imagine, contudo, que, exprimindo
me assim, esteja declarando que entre esses não se encontre
alguém capaz da perfeita renúncia.
O que pretendo dizer é que, se alcançaram tal domínio da
própria natureza, isso se deve ao combate que travaram com
imensa coragem para conseguirem a palma da perfeição e que
seu desej o foi tão intenso que suportaram a fome, a sede, as vi-
A Castidade 1 29
gílias, a nudez e toda a sorte de privações, não apenas com
paciência, mas também com alegria. Pois o homem no sofrimento
trabalha para si mesmo e se esforça para impedir a sua ruína
(Pr 1 6,26 - LXX), e ainda: Para o homemfaminto mesmo as coisas
amargas parecem doces (Pr 27,7 - LXX). Aliás, nunca podemos
dominar ou reprimir o desej o das coisas presentes se não
substituirmos tais aspirações nocivas por outras mais nobres e
saudáveis. A vivacidade de nosso espírito não nos pode privar
de todo desejo ou temor, de toda alegria ou tristeza. Se desejamos
banir de nosso coração a concupiscência carnal, é indispensável
que o preenchamos com as alegrias espirituais. Assim nossa alma,
impregnada por tais desej os, terá doravante onde fixar seus
pensamentos, libertando-se das seduções das alegrias constan
temente presentes mas tão efêmeras. Quando nossa alma, gra
ças às práticas cotidianas, houver chegado a esse estado, ela
fará a experiência do conteúdo deste versículo, que todos nós
cantamos, na freqüente salmodia, mas do qual bem poucos têm
a perfeita compreensão : Tenho sempre o Senhor presente ante
meus olhos, pois se o tenho ao meu lado não vacilarei (Sl 1 5,8).
Somente chegará eficazmente ao pleno entendimento
dessas palavras aquele que, tendo alcançado a pureza da alma e
do corpo de que falamos, compreenderá que para evitar a recaída
no antigo estado, a todo instante foi sustentado pelo Senhor e
protegido constantemente por sua destra, isto é, por suas ações
santificantes.
Não é à esquerda de seus santos que o Senhor sempre se
mantém, mas sim à sua direita porque o homem santo sempre
age de maneira direita. Os pecadores e os ímpios não o podem
ver, pois não têm esse lado direito onde o Senhor habitualmente
permanece. E por isso, não podem dizer como o profeta: Tenho
os olhos sempre fitos no Senhor, pois ele tira meus pés das
armadilhas (S1 24, 1 5). Tais palavras são válidas tão-somente
130 Abade Queremom
na boca daquele que considera todas as coisas deste mundo co
mo perniciosas, supérfluas e inferiores, ao menos em relação à
perfeita virtude. Em contrapartida, aquele que busca a perfeição
aplica todo seu esforço, todo seu olhar e todo seu zelo em cultivar
a castidade do coração de tal modo que, a alma liberta e santi
ficada, acrisolada por essas práticas, se vai aprimorando na
medida de seu amadurecimento. A santidade perfeita da alma e
do corpo é a meta dessa caminhada.
6 - A paciência extingue a chama da impureza
Quanto mais o homem se tomar paciente e manso de
coração, tanto mais progredirá na pureza do corpo. Quanto mais
dominar a violência tanto mais se radicará na castidade. Pois é
impossível evitar as revoltas da carne sem antes reprimir os
movimentos da alma.
Uma das bem-aventuranças louvadas por nosso Salvador
nos revela essa verdade: Bem-aventurados os mansos porque
eles possuirão a terra (Mt 5 ,4). Não nos resta outro recurso para
possuir nossa terra, vale dizer, para submeter à nossa vontade a
terra rebelde de nosso corpo senão, primeiramente, firmar nosso
espírito em paciente brandura. Nos combates desferidos em nossa
carne pela paixão, j amais triunfaremos se não revestirmos as
armas da mansidão, como diz o salmista: Os mansos herdarão
a nova terra e nela gozarão de imensa paz (S1 36, 1 1 .29). E o pro
feta, no decorrer do salmo, nos ensina como obter essa terra:
Espera o Senhor e guarda seus caminhos, e ele te exaltará pa
ra que possuas a terra como herança (Sl 3 6,34).
É, pois, evidente que ninguém pode chegar à posse daquela
terra se não seguir, com mansidão e inalterável paciência, os
caminhos austeros e os preceitos do Senhor que, exaltando-o,
com sua mão, irá retirá-lo do vício da paixão carnal.
Pois os mansos possuirão a terra e não só a possuirão,
A Castidade 13 1
como também nela .fruirão de uma imensa paz (SI 3 6, 1 1 ). Ao
contrário, aquele que em seu corpo continua suj eito às revoltas
da concupiscência, não poderá ter a experiência dessa paz de
uma maneira estável. Fatalmente os demônios não desistirão de
torturá-lo com assaltos cruéis e, ferido por seus dardos inflama
dos de luxúria, acabará por perder a posse da terra até o dia em
que o Senhor fará cessar as guerras naface da terra, quebrará
os arcos, destruirá as lanças e queimará no fogo os escudos e
as armas (SI 45, 1 0). Esse fogo é aquele que o Senhor veio trazer
sobre a terra (cf. Lc 1 2,49). Os arcos e as armas que ele irá que
brar são os que as potências do mal usavam contra o homem,
numa guerra incessante, dia e noite, para transpassar-lhe o
coração com as flechas inflamadas das paixões. Mas, quando o
Senhor, reprimindo as guerras, o houver libertado de todos os
assaltos da carne, ele poderá chegar a um tal estado de pureza,
que a confusão, que tanto horror lhe causava, se dissipará e ele
começará a comprazer-se nessa nova experiência. Como num
puríssimo tabernáculo, ele desfrutará as delícias de uma paz
imensa. Na verdade, não disse o salmista que : Nenhum mal há
de chegar perto de ti, nem a desgraça baterá à tua porta? (SI
90, 1 O). Pela virtude da paciência, cumprir-se-á a palavra profética,
de modo que ele não só herdará a terra como ainda desfru
tará de uma imensa paz (SI 36, 1 1 ) .
Com efeito, onde ainda subsistem as perturbações da
guerra, ninguém pode gozar de uma paz completa. Pois, na ver
dade, o profeta não diz apenas: "que se deleitará na paz", mas
afirma que essa paz é imensa. Com tal expressão ele demonstra
que, de fato, a paciência é o melhor remédio para o coração
humano. Segundo a palavra de Salomão: O homem manso é um
médico para o coração (Pr 1 4,30 - LXX). Pois não apenas a ira, a
tristeza, a acédia, a vanglória e a soberba são extirpadas pela
mansidão, mas ainda a concupiscência e a raiz de todos os outros
vícios são destruídas por ela.
132 Abade Queremom
Também, de acordo com Salomão : A longanimidade faz
a prosperidade dos reis (Pr 25 , 1 5 - LXX). Por isso, aquele que é
manso e sereno não se irrita com a cólera nem se turba com a
tristeza ou a acédia; não é agitado pela invej a nem inflado pela
soberba. É o que afirma o salmo 1 1 8 : Os que amam vossa lei
têm grande paz e não há nada que os faça tropeçar (Sl 1 1 8, 1 65).
Por isso é com toda a razão que encontramos no livro dos Pro
vérbios a seguinte palavra: Mais vale um homem paciente que
um soldado valoroso, e um homem senhor de si que o con
quistador de uma cidade (Pr 1 6,32 - LXX). Todavia, até que pos
samos experimentar essa paz profunda e permanente, estamos su
jeitos a múltiplos combates. Muitas vezes devemos repetir entre
lágrimas e gemidos o seguinte versículo: Estou aflito e infeliz,
inteiramente contristado, meus rins estão cheios de ilusão e
nada há de ileso em minha carne, em face de tua cólera, não
há paz em meus ossos, por motivo de minha loucura (SI 3 7,7-8).
Na verdade, esse lamento é o mais apropriado no momento
em que, após um longo período de pureza corporal, julgando j á
estarem superadas permanentemente a s impurezas carnais,
sentimos novamente seus aguilhões se insurgirem contra nós,
por força das excitações de nosso coração. Ou ainda, quando a
ilusão dos sonhos nos macularem como outrora. Quando um
homem, durante algum tempo, pôde rejubilar-se por sua pureza
de alma e de corpo, por acreditar que irá perseverar nesse feliz
estado, ele será levado a se gloriar interiormente como Davi :
Nos momentos mais felizes eu dizia: jamais hei de sofrer des
graça alguma (SI 29,7). Contudo, quando Deus para seu cres
cimento o abandona, ele sente que aquele estado de pureza, no
qual tanto confiava, começa a vacilar e em meio àquela pros
peridade espiritual ele se sente abalado. É então que deve
recorrer ao autor de sua integridade, rezando : Senhor, honra e
poder me concedia a vossa graça, mas escondestes a vossa
face e perturbei-me (Sl 29,8). Que ele diga também com o bem-
A Castidade 133
aventurado J ó : Mesmo que e u m e tornasse puro como a água
da neve, minhas mãos brilhassem de brancura imaculada, vós
me faríeis parecer coberto de imundice, e as minhas próprias
vestes teriam nojo de mim (Jó 9,3 0-3 1 ) .
No entanto, quem se macular por sua própria culpa não
poderá se dirigir nesses termos a seu Criador. Até que a alma
chegue ao estado de perfeita pureza, convém que ela passe fre
qüentemente por essas alternativas necessárias a seu amadure
cimento para que, enfim, a graça de Deus, atendendo a seus de
sej os, a confirme para sempre naquele grau de castidade. En
tão, poderá dizer com total veracidade: Esperando, esperei no
Senhor e ele, inclinando-se, ouviu meu clamor. Retirou-me da
cova da morte e de um charco de lodo e de lama. Colocou os
meus pés sobre a rocha, e devolveu a firmeza a meus passos
(SI 3 9,2-3).
7 - Os diferentes graus da castidade
Minhas possibilidades não são suficientes para explicar
ou aprofundar convenientemente os diversos graus de castidade
pelos quais devemos subir até chegar àquela inviolável pureza.
Contudo, de acordo com a seqüência de nosso assunto,
que assim o exige, tentarei apresentá-los, segundo minha
medíocre experiência. Deixo aos perfeitos falarem com mais
perfeição sobre esse assunto, sem todavia prejudicar aqueles
que, em virtude de uma prática mais fervorosa, possuem uma
castidade em grau mais elevado. Assim, quanto mais zelosos
vivem, mais sobressai a força de sua perspicácia.
Portanto, distinguirei, para chegar ao excelso cume da
perfeita castidade, seis graus - perfeitamente distintos uns dos
outros - omitindo muitos intermediários que, apesar de nume
rosos, por sua subtileza, dificilmente são apreendidos pelo espíri
to e expressos pela palavra. São essas etapas, todavia, que mar-
1 34 Abade Queremom
cam os avanços da castidade em seu caminho para a perfeição.
Porque, à semelhança dos corpos físicos que crescem dia a dia
de maneira insensível, e assim chegam, mesmo inconsciente
mente, ao pleno desenvolvimento, uma alma fortalecida e uma
castidade madura também são adquiridas paulatinamente.
O primeiro grau da castidade para o monge consiste em
não sucumbir durante a vigília às tentações da carne. O segundo,
em não deter seu espírito em pensamentos voluptuosos. O tercei
ro, em não se deixar levar pela concupiscência, mesmo sutil
mente, em presença de uma mulher. O quarto, em não admitir
nenhum estímulo sensual durante o dia. O quinto, em tratar a
geração humana com tranqüilidade de olhar e pureza de pensa
mento, quando se fizer necessário abordá-la, em alguma confe
rência ou leitura, sem se deixar afetar pela mínima emoção, como
se examinasse uma função atribuída ao gênero humano, não
permitindo que o inquietem lembranças perturbadoras e enca
rando o fato como indiferente, como se fora um estudo sobre
uma fábrica de tij olos ou qualquer outra atividade.
O sexto grau da castidade consiste em não se deixar iludir,
ainda que em sonhos, pelos atraentes fantasmas femininos, pois,
embora acreditemos estarem tais ilusões isentas de pecado, são
todavia indícios de uma secreta concupiscência.
São diversas as causas que as fazem surgir. É possível que
cada um sej a tentado durante o sono, de acordo com os
pensamentos ou os hábitos que lhe são familiares durante o dia.
De um modo são tentados os que conheceram a união carnal, e
de outro, os que não tiveram essa experiência. Estes últimos
são habitualmente inquietados por sonhos mais simples e mais
puros facilmente debeláveis. Quanto aos outros, são perturbados
por imagens indecorosas e insistentes, até que, gradativamente,
e conforme a medida de castidade que se esforçam para atingir,
acabam por detestar, mesmo adormecidos, o que outrora lhes
era prazeroso.
A Castidade 135
Podem, enfim, algumas pessoas chegar àquele estado que
Deus, por intermédio de seu profeta, promete aos homens cora
j osos como recompensa de seus esforços: Eu quebrarei o arco,
a espada e suprimirei as lutas de vossa terra e vos farei dormir
em paz (Os 2, 1 8).
Assim, será possível a alguém chegar àquela extraordinária
pureza alcançada pelo abade Sereno e por alguns poucos
semelhantes a ele (cf.VII, I ) .
No entanto, excluí dos seis graus dos quais acabei de tratar
esses poucos homens, pois, bem raros são os que conseguem
chegar àquela perfeição e mesmo nela acreditar, por se tratar de
um dom da divina liberalidade que não pode ser proposto a todos
como se fora um preceito universal. Assim, nossa alma deve
estar a tal ponto marcada pela pureza da castidade que, uma vez
completamente adormecido todo movimento natural da carne,
não venha a sofrer qualquer conseqüência da sensualidade.
Por outro lado, não devo omitir a opinião de outros acerca
dessa impureza da carne. Tais pessoas afirmam que o que acon
tece durante o sono não seria proveniente da ilusão dos sonhos,
mas que tais impurezas são produzidas pelo excesso de certos
humores que provocam determinadas fantasias sedutoras em
um coração enfermo, e esclarecem que, uma vez extinta essa
conseqüência da corrupção, também cessa a ilusão que lhe deu
ongem.
8 - Os que não têm a experiência da castidade não podem tra
tar de sua natureza nem de seus efeitos
Mas ninguém poderá aceitar esses critérios, nem decidir
com segurança o que seja ou não possível, se não chegou, por
uma profunda experiência, aliada a uma grande pureza de
coração, a penetrar até o âmago da carne e do espírito, à luz da
palavra divina que segundo o bem-aventurado Apóstolo : é viva,
136 Abade Queremom
eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes;
penetra até dividir a alma e o espírito, junturas e medulas. Ela
é capaz de discernir as disposições e intenções do coração (Hb
4, 1 2). Mantendo-se, assim, entre a alma e o corpo, o monge dis
tinguirá com toda a equidade, à semelhança de um espectador
ou um juiz imparcial, o que é uma conseqüência necessária e
inevitável da condição humana e o que é resultado de hábitos
viciosos da incúria da juventude, não se deixando enganar em
seu julgamento pelas opiniões falsas dos homens, mas também
não sendo influenciado pelos preconceitos de pessoas inexpe
rientes. Por isso, terá como parâmetro de seu julgamento sua
própria experiência e, com uma apreciação correta dos fatos,
examinará as exigências da pureza sem incorrer no erro dos que
atribuem à natureza o que é devido à negligência. Dessas pessoas
é dito com muita propriedade no Livro dos Provérbios: A loucura
do homem corrompeu seus caminhos, mas ele acusa Deus em
seu coração (Pr 1 9,3 - LXX). Talvez se encontre alguém que desej e
contestar minha opinião. Suplico-lhe, então, que não m e contra
diga com argumentos preconcebidos e que antes observe a dis
ciplina da vida religiosa. Depois de segui-la durante alguns meses,
na medida para nós determinada pela tradição, ele poderá
verificar, pela própria experiência, a veracidade de minhas pala
vras.
Como se poderia discutir sobre a finalidade de uma arte
ou de qualquer outra disciplina, sem anteriormente haver
aprofundado, com o máximo empenho, tudo quanto se refere à
sua perfeição? Se eu digo, por exemplo, que é possível extrair
do trigo uma espécie de mel, ou um óleo muito doce, como o
que se obtém dos grãos de rabanete ou de linho, qualquer pessoa
que ignore tais coisas diria que isso é contra a natureza e me
acusaria de mentiroso. Mas se, por outro lado, eu apresento
algumas testemunhas, afirmando que viram, provaram e fizeram
aquilo que eu afirmara, poderia explicar o processo pelo qual se
A Castidade 137
pode dar ao trigo a limpidez untuosa do óleo e a doçura do mel.
Seria possível então que eles persistissem em negar tais resulta
dos? E, porventura, não seria mais razoável censurar a obstinação
daquele que se recusa a acreditar em minhas afirmações, apoiadas
em muitos e fiéis testemunhos, em provas evidentes, e principal
mente em experiências, do que contestar a veracidade de minhas
palavras?
Portanto, é possível ao homem chegar a esse estado de
castidade que tanto desej a. Pelo empenho de seu coração, será
totalmente libertado das solicitações voluptuosas e apenas
lamentará faltas involuntárias, pois seu corpo só terá que expul
sar, durante o sono, um excesso de humor supérfluo e acabará
por compreender com segurança a condição e a medida da pró
pria natureza. Assim, após um longo tempo quando, ao acordar,
encontrar sua carne maculada, sem nenhuma responsabilidade
consciente de sua parte, atribuirá isso às condições e às exigên
cias da natureza.
Com certeza esse monge chegou a um estado onde, quer
de noite, quer de dia, no sono ou na oração, sozinho ou em
meio aos homens, permanece inalterável. E, na intimidade de
sua cela, não temerá o olhar inevitável do próprio Deus, pois
nada terá a esconder nem de Deus nem de qualquer pessoa.
Mas, a suavíssima luz da castidade, cumulando-o de contínuas
delícias, ele poderá dizer como o profeta: A própria noite se
tornou luminosa em meio às minhas delícias, mesmo as trevas
para vós não são escuras; a noite resplandece como o dia e a
escuridão é tão brilhante como a luz (SI 1 3 8, 1 1 - 1 2). Como tal
afirmação parece estar acima das leis da natureza, o profeta
acrescenta a seguir: Fostes vós que me formastes as entranhas
(SI 1 3 8, 1 3). Isto é, não foi por meu esforço ou minha virtude que
mereci tal pureza, mas porque vós mesmo extinguistes em meus
rins o prazer voluptuoso.
138 Abade Queremom
9 - Pergunta-se: Será possível guardar a castidade durante o
sono ?
Germano: De certo modo, estamos convencidos, pela
experiência, de que é possível guardar a pureza durante o dia. E
não negamos que o rigor próprio da continência e a resistência
mesma da alma possam impedir qualquer revolta da carne. Mas
seria isso igualmente possível durante o sono?
Dois são os motivos para crermos que isso não sej a pos
sível. Expor tais razões nos leva a certo acanhamento, todavia,
de certo modo nos vemos obrigados a isso pela necessidade de
obtermos o remédio. Contamos, pois, com a tua indulgência se,
porventura, proferirmos algo constrangedor.
O primeiro motivo dessa impossibilidade decorre do rela
xamento do vigor do espírito durante o sono, que não mais per
mite controlar uma emoção que se insinue.
O segundo motivo se origina do excesso de urina acumu
lado durante o sono, que pode provocar certa excitação nos
membros enlanguescidos. Todavia, mesmo que esse prazer não
obtenha o consentimento da alma, a desordem do corpo nos
encherá de humilhação.
1 O O sono não poderia prejudicar os que são castos
-
Queremom: Parece que ainda não compreendestes qual
sej a a verdadeira essência da castidade. Por isso, acreditais que
ela só possa ser preservada durante o dia, mediante as exigências
de uma vida de austeridade. Daí julgardes que se toma impossível
salvar sua integridade durante o sono, quando se enfraquece o
vigor espiritual. A castidade, no entanto, não depende apenas,
como pensais, de uma rigorosa vigilância. Mas tal virtude subsiste
pelo amor que nos inspira e pela felicidade que nos proporciona.
Não se deve falar em castidade, mas sim em continência, enquan-
A Castidade 139
to houver qualquer resíduo d e atração pelo prazer voluptuoso.
Cumpre reconhecer, portanto, que o sono não pode preju
dicar aqueles que, pela graça de Deus, acolheram no íntimo do
coração o amor pela castidade, embora, momentaneamente, se
tenha interrompido aquela vigilância. Aliás está comprovado,
com segurança, que o amor pela castidade não sofre nenhum
dano quando se interrompem as austeridades habituais. Mas essas
muitas vezes são insuficientes para os que nela depositam exa
gerada confiança.
Tudo aquilo que é penosamente reprimido propicia uma
trégua passageira ao combatente, mas não a segurança da paz
profunda que sucede à labuta.
Ao contrário, porém, se esse vício for vencido por uma
virtude radicada no âmago da alma, uma vez dominado, mantém
se tranqüilo, sem dar o mínimo sinal de revolta, permitindo a
seu vencedor usufruir de uma paz constante e segura. Enquanto
experimentarmos algum impulso carnal, reconheçamos que não
alcançamos ainda a perfeição da castidade, mas que ainda
continuamos expostos às imperfeições da continência e a
combates cuj os resultados são sempre duvidosos.
Quanto a estabelecer que tais impulsos carnais são inevitá
veis, j á que os próprios eunucos, apesar de mutilados, lhes estão
suj eitos, convém compreender que, embora incapacitados de
gerar, não lhes foi retirado nem o ardor carnal, nem o efeito da
concupiscência. Portanto, se esse3 mesmos desejam manter-se
puros, urge que não se omitam no que se refere à humildade, à
contrição do coração e à austeridade da abstinência.
Convém reconhecer, contudo, que a prática de tal virtude
para essas pessoas exige menos empenho e menos esforço.
11 - Existe grande diferença entre a continência e a castidade
A castidade perfeita se distingue dos esforços iniciais da
1 40 A bade Queremom
continência pela paz profunda que sempre a acompanha. A
castidade autêntica não mais tem a combater os impulsos da
concupiscência que lhe causam verdadeiro horror, conservando
por isso sua inviolável pureza, o que significa a própria santidade.
É chegada a hora em que a carne, renunciando a combater o
espírito, a ele se une para aspirar à mesma virtude e realizar em
paz aquela aliança de que fala o salmista: Como é bom e suave
os irmãos viverem juntos bem unidos (Sl 1 32, 1 ). Os vínculos de
uma paz sólida os unem e possuem a bem-aventurança prometida
pelo Senhor: Se dois dentre vós estiverem de acordo na terra
sobre qualquer coisa que queiram pedir, isso lhes será concedido
por meu Pai que está nos céus (Mt 1 8, 1 9). Aquele, pois, que
chegar ao estado prefigurado por Jacó ao lutar contra o anjo, e
que houver superado suas paixões nos combates pela continência,
submetendo o nervo da coxa, isto é, paralisando a força de seus
instintos, merecerá o nome de Israel pela pureza perfeita dos
desejos de seu coração. O bem-aventurado Davi, sob a inspiração
do Espírito Santo, assinalou essas duas etapas diferentes,
dizendo : Em Judá o Senhor Deus é conhecido, e seu nome é
grandioso em Israel (Sl 75 ,2), isto é, na alma que deve confessar
seus pecados, pois Judá significa confissão. Mas pelo termo
Israel (Sl 75 ,2), cuj o sentido é aquele que vê a Deus ou, ainda,
homem que anda conforme os caminhos de Deus, significa que
não só Deus é conhecido, mas que grande é seu nome.
Pois o salmista, convocando-nos a ascender a alturas mais
sublimes, nos quer também mostrar o lugar em que apraz ao
Senhor estabelecer na paz sua morada (Sl 75,3). Se alguém
merecer chegar a esse estado de paz, graças à vitória sobre suas
paixões, poderá elevar-se a patamares mais altos, àquela Sião
espiritual, àquela contemplação divina onde fixará sua morada;
pois não é nos combates da continência, mas na observância
indefectível da virtude e na constante tranqüilidade do coração
que o Senhor reside.
A Castidade 141
Ali o Senhor não mais s e contenta em reprimir e rechaçar
o inimigo, mas vai quebrar para sempre o poder dos dardos
inflamados que a concupiscência desferia contra nós.
Podeis ver, assim, que a morada do Senhor não está na
continência, mas na paz da castidade. Na observância e na
contemplação da virtude ele estabelece sua morada. O salmista
tem toda a razão de preferir as portas de Sião a todas as tendas
de Jacó. Pois anuncia: O Senhor ama as portas de Sião mais
que as casas de Jacó (Sl 86,2).
Reconhecei, portanto, que tudo quanto pode ocorrer du
rante o sono, em nada prej udica aqueles que se estabilizaram
firmemente em uma castidade perfeita; mas é inevitável a como
ção da carne, uma vez que as necessidades naturais excitam os
membros em repouso.
Uma vez que isso só acontecerá de quando em vez, e que
apenas a condição do corpo durante o sono provocou esse
estímulo, convém saber que o corpo voltará ao repouso sem
qualquer conseqüência, e também sem qualquer lembrança
voluptuosa. No entanto, como devemos conciliar a lei do corpo
com a da alma, convém mortificar até o uso da água, de modo
que, o excesso de humores cotidianos, fluindo mais demora
damente nos membros desidratados, tome tal impulso carnal,
que sabemos inevitável, ainda mais raro e lento, suscitando, por
assim dizer, uma chama sem calor, uma chama que em lugar de
queimar, refresque, como a que aparece na admirável visão de
Moisés (cf. Ex 3 ,2). A sarça de nosso corpo, envolvida por um
fogo inocente, não será consumida, pois acontecerá com ele o
mesmo que sucedeu com os três j ovens na fornalha, para os
quais o orvalho do Espírito divino afastou de tal modo a chama
da fornalha dos caldeus que o cheiro do fogo nem sequer lhes
roçou os cabelos, nem tocou a fímbria de suas vestes (cf. Dn
3 , 94).
Assim, já neste corpo mortal, começaremos a nos regozijar
1 42 Abade Queremom
do que Deus prometeu a seus santos, mediante seu profeta: Se
caminhares pelo fogo, não te queimarás, e a chama não te
consumirá (Is 43,2).
1 2 As maravilhas particulares operadas por Deus em favor
-
dos santos
De fato, são magníficos e admiráveis, mas só compre
endidos por aqueles que deles fizeram a experiência, os dons
que Deus, em sua inefável generosidade, concedeu a seus fiéis,
mesmo ainda neste corpo de corrupção.
O profeta que, à luz de seu espírito purificado, os conheceu
em si mesmo e nos outros, exclama: Admiráveis são vossas obras
e minha alma se rejubila em conhecê-las (Sl l 3 8, 14). Porventura
teria dito o profeta algo de novo ou de grandioso se houvesse
unicamente se referido às outras obras de Deus? Pois poderia
alguém não admirar as obras de Deus na grandiosidade da
criação? Mas os dons que Deus concede a seus santos, por sua
graça diária e generosa, e com os quais ele os cumula com
particular munificência, ninguém poderá realmente conhecer,
senão a alma que deles usufrui, no segredo da própria cons
ciência, e essa, terminado o arrebatamento que a enlevava, de
volta às coisas materiais e terrenas, não mais encontra imagens
ou palavras para traduzir essa experiência, que nem mesmo a
inteligência e a reflexão são capazes de conceber.
Quem não admiraria em si mesmo as obras do Senhor, ao
perceber que o instinto da gula que, anteriormente tanto buscava
os prazeres dispendiosos e quase sempre fatais da boca, agora,
completamente debelado, o reduz a tomar raramente e a contra
gosto um alimento insuficiente e insípido?
Quem não se sentiria maravilhado com as obras de Deus,
ao reconhecer que o fogo da concupiscência, que antes consi
derava inerente à própria natureza e talvez até mesmo inextin-
A Castidade 1 43
guível, acha-se de tal modo arrefecido que j á não experimenta
em seu corpo nenhum sinal de revolta, por tênue que sej a?
Quem não tremeria, diante do poder divino, ao observar
homens outrora cruéis e truculentos, que se exasperavam diante
da mínima sujeição, transformados em pessoas tão mansas que,
não apenas ficam insensíveis diante das injúrias, mas até magna
nimamente se regozij am ao recebê-las?
Quem não admiraria as obras de Deus e não exclamaria,
com todo o amor: Eu bem sei que o Senhor é grande (Sl 1 34,5),
ao observar a si mesmo ou a qualquer pessoa transformar-se de
avarento em generoso, de pródigo em continente, e de orgulhoso
em humilde, e quem buscava as facilidades e comodidades da
vida passar a aceitar o que é penoso e austero, procurando
abraçar voluntariamente as dificuldades e a pobreza das coisas
presentes?
Essas são, de fato, as maravilhas divinas que a alma do
profeta e aquelas que a ele se assemelham reconhecem, cheios
de admiração, quando elevados à mais alta contemplação.
São os prodígios operados por Deus na terra e cuj a visão
faz o mesmo profeta exortar todos os povos à admiração : Vinde
ver, contemplai os prodígios de Deus e a obra estupenda que
fez no universo, reprime as guerras naface da terra, quebra os
arcos, as lanças destrói e queima nofogo os escudos e as armas
(SI 45,9- 1 0). Pois, existiria prodígio maior que ver ambiciosos
publicanos transformados em apóstolos, ferozes perseguidores
convertidos em pregadores do Evangelho, prontos a tudo sofrer
e, propagando, ao preço da própria vida, a fé que perseguiam?
Tais são as obras divinas que o Filho atesta que operava cada
dia em união com o Pai. Meu Pai trabalha sempre e eu também
trabalho (lo 5, 1 7). Tais são as obras de Deus que o bem-aven
turado Davi já celebrava, ao dizer: Bendito seja o Senhor, Deus
de Israel, porque só ele realiza maravilhas! (Sl 7 1 , 1 8). Também
1 44 Abade Queremom
é acerca delas que fala o profeta Amós : É ele que faz tudo, tudo
transforma e torna a sombra da morte brilhante como a luz da
.
aurora (Am 5 , 8 LXX). Poi s : São essas as transformações
-
operadas pela direita do Altíssimo (SI 76, 1 1 ). E é acerca dessa
obra de salvação que o profeta dirige a Deus a seguinte oração:
Confirmai, ó Deus, o que operastes em nós (SI 67,29).
Silenciarei aqui as maravilhas secretas da graça de Deus
que iluminam a cada momento a alma de seus santos. Quem
poderia esquivar-se à admiração da alegria espiritual que eleva
o espírito abatido, inspirando-lhe um grande júbilo? E aqueles
arrebatamentos ardentes do coração, as consolações inebriantes
tão inefáveis quanto inauditas, capazes de nos despertar de um
profundo torpor tal um pesado sono, para nos lançar na oração
mais fervorosa e em êxtases inéditos e, ainda, naquela alegria
que o Apóstolo define como a que: Os olhos não viram, os ou
vidos não ouviram, e o coração do homem jamais experimen
tou? ( l Cor 2,9). Mas Paulo se refere àquele que, tendo estado
sob o domínio do vício, é incapaz de perceber a generosidade
divina. No entanto, o Apóstolo e os que lhe são idênticos podem
dizer: A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito ( I Cor 2, I O).
1 3 - Apenas os que a experimentaram sabem como a castidade
é aprazível
Quanto mais progride a alma na pureza, mais também
avançará na contemplação divina. E em seu íntimo cresce uma
admiração por Deus que ela não encontra palavras para traduzir,
nem expressões adequadas para descrever. Assim como quem
nunca experimentou a alegria não pode imaginá-la, quem não
fez essa experiência não é capaz de exprimi-la.
Porventura aquele que conheceu a doçura do mel poderia
explicá-la a quem j amais a provou? Em vão. As palavras pro
nunciadas entram por seus ouvidos, mas não lhe transmitem a
A Castidade 1 45
sensação que seu paladar não experimentou. O mesmo acontece
com quem mereceu alcançar o cimo da virtude a que nos
referimos. Esse recorda em seu espírito as maravilhas que Deus
fez naqueles que lhe pertencem, mediante uma graça toda
especial. E no êxtase em que o lança a contemplação de tanta
magnitude, num ímpeto de amor, exclama do íntimo de seu
coração : Admiráveis, Senhor, são vossas obras, e minha alma
se apraz em reconhecê-las (SI 1 3 8, 1 4).
Uma admirável obra de Deus, portanto, é ver um homem
ainda vivente neste mundo renunciar a qualquer inclinação carnal
que, em meio a tantas circunstâncias diversas, o assalta, conser
vando sua alma em uma tranqüilidade inabalável diante das
múltiplas tentações que o cercam.
Fundamentado em tal virtude é que vivia um ancião de
Alexandria rodeado por uma multidão de infiéis. Esses o criva
vam não só de impropérios, mas até de injúrias. Um dia eles o
provocaram com esta pergunta insolente: "Mas que milagres
fez esse Cristo a quem adorais? O grande milagre que fez, res
pondeu o ancião, é o de não me abalar nem me ofender com
todas as vossas injúrias, por maiores que sejam".
1 4 - Pergunta: Qual o tipo de abstinência e em quanto tempo
se pode chegar à perfeita castidade ?
Germano: Não podemos considerar tal castidade uma
virtude humana ou pertencente à terra, pois mais parece um
privilégio do céu, um dom particular dos anjos. Profundamente
admirados e perturbados, tais palavras nos incutiram mais temor
e desânimo que desej o e zelo para adquiri-la.
Pedimos, portanto, que nos instruas, o mais completamente
possível, sobre as observâncias exigidas e o tempo necessário
para consegui-la, a fim de que possamos adquirir os meios e a
esperança de alcançá-la. Pois estamos tentados a considerar isso
1 46 Abade Queremom
um empreendimento impossível para homens que vivem na terra,
a menos que nos indiques o método e o caminho para chegarmos
a tal virtude.
1 5 Resposta: O tempo necessário para se reconhecer que a
-
perfeita castidade é uma virtude possível
Queremom: Seria temerário querer determinar com pre
cisão um tempo para que se adquira essa castidade de que fa
lamos. Principalmente em virtude da diversidade de disposição
e de zelo existentes entre as almas. Tal precisão seria difícil
mesmo em se tratando de artes materiais e de disciplinas visíveis,
nas quais a aplicação e as aptidões naturais contribuem para um
sucesso mais ou menos rápido. O que poderei fazer, no entanto,
será indicar, com muita segurança, uma observância que se deve
seguir e o tempo necessário para que se possa reconhecer ao
menos se a possibilidade de adquirir tal virtude não é algo ilu
sório.
Aquele que se retira de todas as conversas fúteis, que
consegue banir de seu coração qualquer movimento de ira e
ainda toda solicitude e preocupação terrestre, contentando-se
com dois pães diários e bebendo até mesmo água com certa
parcimônia, limitando seu sono a três horas ou talvez mesmo a
quatro horas, de acordo com outra regra, e acreditando que
jamais poderá alcançar aquela virtude por seus próprios méritos,
por seu empenho ou sua abstinência, esperando, não obstante,
obtê-la unicamente da misericórdia do Senhor - pois, sem tal
convicção vãos seriam quaisquer esforços humanos - tal homem
não necessitaria mais de seis meses para reconhecer que não lhe
é impossível atingir aquela perfeição.
Todavia, o sinal mais evidente de que alguém está próximo
da pureza é o reconhecimento da inanidade de seus próprios
esforços. Quando se chegou a compreender toda a verdade con-
A Castidade 1 47
tida no seguinte versículo: Se o Senhor não construir a casa,
em vão trabalharão seus construtores (SI 126, 1 ), não se considera
a pureza adquirida um motivo de mérito ou de orgulho. Porque
é indubitável que se deve tal virtude à misericórdia do Senhor e
não à própria diligência. Essa compreensão leva também a que
não se trate os outros com um rigor impiedoso, uma vez que se
tem a consciência de que a virtude humana nada é se não está
apoiada na força divina.
1 6 - A meta e o remédio da castidade
Portanto, j á é vitorioso aquele que, combatendo com todas
as suas energias o espírito de fornicação, não espera que o
sucesso dependa do mérito de seus esforços. Essa convicção de
nossa fragilidade, aparentemente fácil e compreensível para
qualquer pessoa, na realidade é de tão difícil aceitação para os
principiantes, quanto a própria perfeição na castidade. Pois, mal
pressentiram as primeiras alegrias da pureza, um sentimento de
complacência se insinua secretamente no íntimo da consciência,
levando-os a crer que aquele êxito se deve à sua própria dili
gência. Por isso, convém que lhes sej a retirado, por vezes, o au
xílio divino e suportem a tirania das paixões que a graça de
Deus havia extinguido. Só assim, a experiência os fará compre
ender que j amais teriam obtido a virtude da pureza mediante
suas próprias forças e sua operosidade.
No entanto, essa conferência sobre o mais alto grau da
castidade perfeita já se prolongou excessivamente. Portanto,
vamos concluí-la de maneira breve, resumindo em uma única
frase, todos os pensamentos até agora desenvolvidos com tantas
minudências. A perfeição da castidade consiste na total rej eição
do monge por qualquer prazer libidinoso, durante a vigília, e na
ausência de qualquer perturbação de ilusões perniciosas, durante
a tranqüilidade de seu repouso durante a noite. Se algum estímulo
1 48 A bade Queremom
carnal, pela cumplicidade de sua alma entorpecida, e sem qual
quer conivência com a vontade, o surpreender durante o sono,
não se julgue culpado por sensações que independem de sua
vontade e não resultam de nenhuma solicitação física.
Da perfeição da castidade, falei da maneira que me foi
possível. E posso afiançar que tratei de tal assunto, sem limitar
me ao aprendizado por outros recursos que não fossem minha
própria experiência. Suponho que os covardes e os negligentes
julgarão tais coisas impossíveis. Contudo, os que aspiram à per
feição e os homens espirituais terão outra concepção dessa rea
lidade, e aceitarão minhas palavras.
Os homens distam entre si tanto quanto distam suas op
ções, isto é, as metas para as quais tendem seu coração : céu ou
inferno, Cristo ou Belial. Vej amos, pois, o que diz o nosso Salva
dor a esse respeito : Se alguém quer me servir, siga-me e onde
eu estiver, estará também meu servo (Jo 1 2,26). E ainda: Onde
está vosso tesouro, aí estará também vosso coração (Mt 6,2 1 ) .
�
"-":'�
Foram essas as palavras que o abade Queremom nos dirigiu
sobre a castidade perfeita. E, terminada a exposição sobre sua
admirável doutrina acerca dessa sublime virtude, tamanho era
nosso espanto que nos sentíamos como que asfixiados. Ele,
contudo, ao perceber que a maior parte da noite já transcorrera,
aconselhou-nos a que não sonegássemos à natureza o sono
exigido, receando que o torpor do corpo não nos debilitasse a
alma, privando-a de seu santo e vigoroso fervor.
XIII
TERCEIRA CONFE RÊNCIA DO ABADE QUEREMOM
A P ROTEÇÃO DE D EUS
1 - Introdução
Após alguns momentos de sono, voltamos para celebrar a
sinaxe matutina e encontrar o venerável ancião, uma vez que o
abade Germano se achava perturbado por um grande escrúpulo.
A instrução anterior nos havia inspirado um profundo desej o de
uma castidade até então inédita para nós. Contudo, naquela
conferência, o abade Queremom, com suas palavras, havia
anulado o mérito de qualquer diligência e operosidade humanas,
estabelecendo que, apesar de todos os nossos esforços na prática
do bem, o êxito de todo esse zelo dependia tão-somente da
generosidade da graça divina.
Ao sair de sua cela, o abade Queremom, deparando-se
conosco, que debatíamos aquela questão, abreviou sua salmodia
e suas orações, e veio indagar o motivo de nossa comoção.
2 - Por que não se atribui o mérito da virtude ao zelo de quem
a pratica?
Germano: Diante da sublimidade da virtude única que
nos revelaste na instrução noturna, tomamo-nos como que im
possibilitados de acreditar naquelas palavras - permita-me que
1 50 Abade Queremom
o diga. Parece-nos absurdo admitir que a recompensa pela
perfeição da castidade, que o homem adquire ao preço de
perseverança e de labor, não lhe sej a concedida como fruto da
eficácia de seu zelo e operosidade.
Se, porventura, vemos um lavrador trabalhar sem trégua
no cultivo de suas terras, seria irracional atribuir-lhe também o
êxito pela colheita?
3 - Não é apenas a perfeição da castidade que não existe sem o
auxílio de Deus. Pode-se dizer o mesmo em relação a qualquer
outro bem.
Queremom: O próprio exemplo apresentado evidencia
que a operosidade de quem se esforça de nada vale sem o socorro
divino. Mesmo tendo empreendido todos os seus esforços para
a valorização de sua terra, um agricultor não pode atribuir à sua
atividade pessoal a abundância da messe e a riqueza da colheita.
Pois, muitas vezes, teve a experiência da inanidade de sua dili
gência! Porquanto, sem as chuvas propícias e um inverno ameno,
j amais a iria colher! Quantas vezes testemunhamos frutos graú
dos e plenamente amadurecidos, arrebatados das mãos que esta
vam prestes a colhê-los, por ter faltado o auxílio de Deus !
Aos agricultores indolentes, cuj a charrua não lavra o cam
po com freqüência, a liberalidade divina não vai conceder uma
colheita abundante. Mas os zelosos e diligentes também poderiam
prolongar sua atividade indefinidamente que de nada adiantaria,
se a misericórdia do Senhor não os fizesse prosperar.
Portanto, mesmo em caso de sucesso, o homem, em seu
orgulho, não pretenda igualar-se à graça ou entrar em concor
rência com ela, reivindicando sua parte nos beneficios de Deus
ou vangloriando-se de que a abundância de sua colheita sej a a
resposta ao mérito de seu zelo.
Mas, de preferência, observe e examine bem todos os es-
A Proteção de Deus 151
forças que fez com o desej o de se enriquecer, e concluirá que
seria incapaz de fazê-los, se Deus com sua proteção e misericór
dia não o tivesse sustentado, concedendo-lhe a energia necessária
para o cultivo daquela terra.
De fato, sua vontade e sua atividade teriam sido vãs, não
lhe houvesse a divina clemência propiciado condições para a
realização de um trabalho, por vezes inviável, pelo excesso ou
pelo déficit de chuvas.
O vigor dos bois, a saúde do corpo, o sucesso dos traba
lhos, a prosperidade dos empreendimentos, tudo isso foi gratuita
mente concedido pelo Senhor. Assim, é imprescindível rezar para
que, como está escrito : O céu não se torne como bronze, e a
terra como ferro (Dt 28,23), e mais: O que a lagarta deixou, o
gafanhoto devorou; o que o gafanhoto deixou, o roedor devo
rou; e o que ficou do roedor, o devastador comeu (JI 1 ,4).
E não é apenas em tais circunstâncias que o trabalho do
bom lavrador necessita do socorro divino. Este ainda precisa
afastar os incidentes imprevistos, já que pode ter suas esperanças
frustradas, pois, mesmo que a terra se cubra de frutos opimos, é
possível perder o grão armazenado em seus celeiros ou em sua
eira.
A conclusão hialina de quanto dissemos é que Deus é o
único princípio não só das nossas boas ações, como também
dos nossos bons pensamentos. Uma vez que nos inspira o início
de nosso querer e nos dá ainda forças, além do momento favo
rável, para a realização de nossos santos desej os. Porque todo
bem, todo dom perfeito vem do alto, do Pai das luzes (Tg 1 , 1 7).
Pois, segundo o Apóstolo, é Deus quem começa, prossegue e
consuma em nós todo bem: Aquele que dá a semente ao se
meador e que lhe dará o pão como alimento, ele mesmo multi
plicará as vossas sementes e aumentará os frutos da vossa
justiça (2Cor 9, 1 O). A nós compete seguir com humildade, dia
riamente, a graça de Deus que nos atrai. Podemos também re-
1 52 Abade Queremom
sistir a essa solicitação divina, conforme a palavra das Escri
turas: Homens de cabeça dura, incircuncisos de coração e de
ouvidos (At 7,5 1 ) . E ainda escutar o Senhor que, através de
Jeremias nos censura: Não se deverá levantar aquele que tomba?
Não voltará aquele que se desviou? Por que persiste esse povo
de Jerusalém em perpétua loucura? Obstinam-se na má fé,
recusando-se à conversão (Jr 8,4-5).
4 - Objeção: Como fizeram os pagãos para guardar a castidade
sem a graça de Deus?
Germano: Não podemos, de modo algum, contestar vossa
opinião, como contrária à piedade. No entanto, tal teoria parece
se opor ao exercício da liberdade. Tanto mais que vemos diversos
pagãos brilharem não só por sua paciência e frugalidade, como
também, - o que é maravilhoso - por sua castidade. E, como
acreditar que essas virtudes lhes tenham sido concedidas por
um Deus que lhes teria aprisionado o livre arbítrio, quando esses
sábios do mundo ignoravam o significado da graça divina e até
mesmo desconheciam o verdadeiro Deus? De acordo com o
testemunho dos autores e da tradição, devemos acreditar que
adquiriram essa grande pureza mediante seus próprios esforços?
5 - Resposta acerca da pseudo castidade dos filósofos
Queremom: Apraz-me que vosso intenso amor pela
verdade vos inspire objeções cuja refutação fará a fé católica
parecer mais solidamente edificada e, se me é lícito dizer, mais
verídica. Que sábio poderia admitir proposições tão contra
ditórias? Ontem havíeis pretendido que o homem não seria capaz
de adquirir a pureza celestial da castidade mesmo com o auxílio
da graça divina e, agora, asseverais que até os pagãos podem
possuí-la por sua própria virtude !
A Proteção de Deus 1 53
Todavia, indubitavelmente, é o desej o de aprofundar a
verdade, como já afirmei, que vos inspira essa obj eção. Portan
to, no interesse da verdade, atentai bem para o que penso a esse
respeito.
Primeiramente, cumpre-nos acreditar que j amais os filó
sofos atingiram aquela castidade da alma que nos é exigida. Pois
não é apenas a fornicação, mas pensai bem, é a própria impureza
que nem sequer deve ser pronunciada entre nós (cf. Ef 5,3).
Eles talvez tenham sido relativamente castos, isto é, tenham
experimentado uma castidade parcial, !lE PL:X.fÍV, ou, continência
corporal, que consistia apenas em reprimir a paixão voluptuosa
da união carnal. Quanto à pureza interior da alma, à pureza
perpétua do corpo, não só não foram capazes de conquistar,
mas nem mesmo de imaginá-la.
Em suma, Sócrates, o mais célebre dentre eles, não se
acanhou de confessar o que j á afirmei. Um dia em que certo
fisionomista, cpumoyvl.o!lwv, o acusava de corromper crianças,
O!l!la·tu nmôE pmno'O , conteve a indignação de seus discípu
los empenhados em defendê-lo com estas poucas palavras :
Ilaúoao8E, hatpm· El!lL yáp, f:nf::x.w ÔÉ ; que significam:
Calma, amigos, sou o que ele diz, mas consigo dominar-me.
Assim, toma-se evidente, de acordo com a confissão de Sócrates,
que esses filósofos podiam perfeitamente reprimir o vício e
abster-se de consumar suas paixões, mas eram impotentes para
banir do coração os desejos maus e os pensamentos voluptuosos.
Com que horror não deveríamos recordar aquela sentença
de Diógenes: "O que os filósofos deste mundo não se enver
gonham de publicar, como algo memorável, nós não podemos
repetir nem ouvir sem que o rubor nos inflame o rosto".
A um homem que ia enfrentar uma punição por adultério,
consta que o filósofo deu o seguinte conselho : "Não adquiras
com a morte, aquilo que te pode ser oferecido de graça". To
1 54 Abade Queremom
ÔWpEàV JtWÀOÚ !..t E VOV 8avá·np !lYJ àyó pat;E .
Comprova-se, assim, que tais filósofos não tiveram a
mesma noção de castidade que se exige de nós. Confirma-se,
outrossim, que nossa circuncisão espiritual, como a concebemos,
só pode ser adquirida pela graça de Deus e é encontrada apenas
naqueles que o servem com o coração perfeitamente contrito.
6 - Sem a graça de Deus qualquer esforço torna-se inútil
Em muitas coisas, ou melhor, em todas elas, podemos
provar que o homem necessita continuamente do auxílio divino.
E, se a fragilidade humana nada pode realizar no plano da
salvação, tal verdade toma-se muito mais evidente quando se
trata da aquisição ou preservação da castidade. Porquanto, sem
mesmo abordar ainda a dificuldade de atingir a sua perfeição,
examinemos sucintamente os meios de adquiri-la. Quem seria
capaz, pergunto, sem qualquer apoio humano, e mesmo inspirado
por grande fervor, de suportar o horror da solidão e de contentar
se com pão seco como único alimento, mesmo que suficiente
para saciá-lo? Quem poderia, sem as consolações do Senhor,
tolerar uma sede permanente e privar seus olhos humanos do
suave deleite do sono matinal, estabelecendo, para seu repouso,
um rigoroso horário de quatro horas noturnas? A quem seria
possível, sem o socorro da graça divina, empenhar-se sem trégua
em um trabalho tão intenso quanto pouco produtivo para os
interesses deste mundo ou, ainda, dedicar-se à leitura contínua
e incansavelmente?
Eis, portanto, tudo quanto somos incapazes de almej ar
sem a inspiração divina, e também, de realizar sem seu socorro.
Não é apenas nossa experiência que pode comprovar a vera
cidade do que dizemos, mas ainda certos indícios e argumentos
tomam irrefutáveis o que afirmamos.
A Proteção de Deus 1 55
Com efeito, muitas vezes, sem que nos falte boa vontade
e também um desej o ardente, nos propomos a executar deter
minado projeto de grande utilidade. Todavia, nossa fragilidade
nos impede de realizá-lo, destruindo nossa esperança. Portanto,
se a misericórdia de Deus não nos vem em auxílio, dando-nos a
força de que carecemos, nosso bom propósito não se con
cretizará. Por isso, embora numerosos os que desejam lealmente
se consagrar à aquisição da virtude, muito poucos são os que
conseguem levar a termo aquele projeto, perseverando em seus
esforços. Pois, mesmo que nossa incapacidade não invalide nos
so intento, não somos completamente livres para fazer o que
desejamos.
E não somos fiéis observantes, como gostaríamos, do
silêncio da solidão, das restrições do j ejum, da leitura assídua,
mesmo dentro das nossas possibilidades. Pois, apresentando-se
a ocasião, tomamo-nos relapsos em relação às nossas práticas
salvíficas. Por isso, vemos que é imprescindível implorar ao
Senhor tempo e lugares favoráveis para essa observância. É o
que o Apóstolo declara: Quisemos fazer-vos uma visita, por
mais de uma vez, mas Satanás nos impediu ( l Ts 2, 1 8).
Algumas vezes, também, para nosso próprio proveito, sen
timos que estamos sendo impedidos de praticar nossos exercícios
espirituais, que nossa boa intenção se enfraquece, enquanto nosso
entusiasmo para a ascensão se bloqueia. Deixamo-nos levar,
então, pela debilidade da carne. Mas muitas vezes isso nos
acontece para nos levar a uma perseverança salutar.
O bem-aventurado Apóstolo dá-nos a conhecer esse proce
dimento de Deus para conosco. Roguei três vezes ao Senhor
que Satanás ficasse longe de mim. O Senhor, porém, me disse:
Basta-te a minha graça, pois é na.fraqueza que aforça se realiza
plenamente (2Cor 1 2,8-9). E ainda: Pois não sabemos o que pedir
e como pedir (Rm 8,26).
1 56 Abade Queremom
7 - O plano primordial de Deus e sua cotidiana providência
Deus não criou o homem para que se perca, mas, sim,
para que viva eternamente. E esse desígnio de Deus permanece
imutável. Por isso, desde que vê brilhar em nós a mínima centelha
de boa vontade, ou mesmo quando é Ele próprio a suscitá-la de
nosso duro coração de pedra, reanima-a e revigora-a por sua
inspiração. Pois é sua vontade que todos os homens se salvem e
cheguem ao conhecimento da verdade ( I Tm 2,4). Pois o Senhor
afirma: É a vontade de meu Pai que está nos céus que não se
perca nenhum desses pequeninos (Mt 1 8, 1 4) . E também está
escrito : Deus não quer que uma única alma se perca, mas ele
diftre a execução de sua sentença afim de que o quefoi rejeitado
não se perca definitivamente (2Sm 1 4, 1 4). Deus é verdadeiro e
não mente quando afirma sob juramento: Eu vivo, e não quero
a morte do pecador, mas que se converta de seu mau caminho
e tenha vida (Ez 3 3 , 1 1 ).
Se sua vontade é que não se perca nenhum daqueles
pequeninos, seria possível, sem um imenso sacrilégio, pensar-se
que ele não desej e a salvação universal de todos, mas apenas de
alguns? Portanto, aquele que se perde, perde-se contra a vontade
de Deus. A cada dia Ele clama: Convertei-vos, convertei-vos
dos vossos maus caminhos. Por que haveis de morrer, ó casa
de Israel? (Ez 3 3 , 1 1 ). E, novamente: Quantas vezes eu quis reu
nir os teusfilhos como uma galinha reúne seus pintinhos debai
xo das asas, mas não quiseste (Mt 23,37). Ou, então : Por que
este povo é rebelde ? Por que Jerusalém é continuamente re
belde? (Jr 8,5). E mais: Eles sefirmam nafalsidade e não querem
se converter (Jr 5,3).
A graça do Cristo está sempre à nossa disposição e, como
ele quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhe
cimento da verdade ( I Tm 2,4 ) , chama a todos sem exceção. Vinde
a mim, vós todos que estais fatigados e carregais pesados far-
A Proteção de Deus 1 57
dos, e eu vos aliviarei (Mt 1 1 ,28). Se apenas alguns fossem
chamados, e não todos, poder-se-ia concluir que todos não estão
sobrecarre gados, sej a pelo pecado original, sej a pelo pecado
atual. E, assim, não seria verdadeira a seguinte afirmação da
Escritura: Todos pecaram e estão privados da glória de Deus
(Rm 3 ,23). Portanto, não seria j usto acreditar que a morte passou
para todos os homens porque todos pecaram (Rm 5, 1 2).
Assim, todos os que se perdem, o fazem contra a vontade
de Deus, pois a morte não foi criada por Deus. E isso é atestado
pela Escritura: Deus nãofez a morte, nem tem prazer em destruir
os viventes (Sb 1 , 1 3 ).
É por isso que, muitas vezes, quando solicitamos a Deus
coisas incompatíveis com o nosso bem, em lugar do que nos
seria proveitoso, ele demora em nos atender, ou se recusa
totalmente a fazê-lo. Em contrapartida, quando está em j ogo
nosso bem, sua bondade nos impõe, mesmo contra todas as
nossas resistências, o que j ulgamos prej udicial, como o faria o
melhor dos médicos. Freqüentemente Deus retarda ou impede
o detestável efeito de nossos maus propósitos e das funestas
tentativas que nos levariam à morte. Desse modo, o Senhor nos
leva à vida, arrancando-nos ao abismo do inferno.
8 - A graça de Deus e o livre arbítrio
É a própria palavra de Deus que, pela boca do profeta
Oséias, descreve com muita elegância, os cuidados de sua
providência, e o faz, usando a figura da infiel Jerusalém, que se
apressa, com pernicioso ardor, em cultuar os ídolos. De fato,
ela assim se exprime : Quero correr atrás de meus amantes,
daqueles que me dão o meu pão e minha água, minha lã e meu
linho, meu óleo e minha bebida (Os 2 5) . Todavia, a bondade
,
divina, considerando mais sua salvação que seus caprichos, assim
responde : Por isso, cercarei seu caminho com espinhos e o
1 58 Abade Queremom
fecharei com uma muralha para que não mais encontre seu
caminho. Perseguirá seus amantes sem os alcançar, procurá
los-á, mas não os encontrará. Então dirá: Quero voltar ao meu
primeiro marido, pois eu era outrora mais feliz do que agora
(Os 2,6-7).
Novamente o Senhor descreve, mediante a seguinte com
paração, a arrogância e obstinação com as quais nossa alma
rebelde responde ao seu apelo para retomarmos ao caminho da
salvação: Vós me chamareis meu Pai, e não vos afastareis de
mim. Mas, como uma mulher que trai o seu amante, assim vós
me traístes, casa de Israel (Jr 3, 1 9-20).
Após comparar Jerusalém com a esposa adúltera que aban
dona o marido, o próprio Senhor se compara, com exatidão, em
seu amor e em sua inexaurível compaixão, ao homem ardente
mente apaixonado. Uma vez que não se deixa vencer pelas injú
rias, não o podemos ver abandonar o cuidado por nossa salva
ção, ou ser induzido a renunciar a seu projeto inicial, forçado,
de certo modo, a recuar diante de nossas iniqüidades.
A ternura e a permanente dileção que o Senhor revela
para com o gênero humano não poderiam ser expressas com
mais felicidade por nenhuma outra figura do que a do homem
apaixonado, que ama sua mulher com amor ardentíssimo. Quan
to mais se sente rej eitado por ela, mais se inflama seu ardoroso
zelo. A proteção divina está sempre presente em nossa vida e
j amais nos desampara. É tamanha a ternura do Criador por sua
criatura que sua providência não só a acompanha, mas a precede
constantemente. É dessa experiência que fala o profeta: Deus
virá com seu amor ao meu encontro (Sl 5 8, 1 1 ) .
Ao perceber em nós qualquer boa vontade incipiente, logo
derrama sobre nós sua luz e sua força, inspirando-nos o desej o
d a salvação e incrementando a semente que Ele próprio plan
tou e viu nascer com nosso esforço. E é assim que se exprime:
A Proteção de Deus 1 59
A contecerá então que antes de me invocarem, eu já terei
respondido; enquanto ainda estiverem falando, eu já os terei
atendido (Is 65,24). E diz mais: À voz do teu clamor, ele fará
sentir a sua graça; ao ouvi-lo, ele te responderá (Is 3 0, 1 9).
Deste modo, o Senhor não apenas nos inspira santos de
sej os, como também nos propicia a ocasião de voltar à vida,
oferecendo-nos as circunstâncias favoráveis e mostrando aos
que se desviaram o caminho seguro da salvação.
9 - A eficácia da nossa boa vontade e o valor da graça de Deus
Mas eis onde a razão humana se embaraça, se é verídica
a afirmação de que o Senhor dá a quem pede; quem o procura
acha-o; e abre a quem bate (cf. Mt 7,7). Em contrapartida, tam
bém é encontrado por quem não o procura; aparece visivelmente
entre aqueles que não o invocam e, diariamente estende as mãos
a pessoas incrédulas e rebeldes (c f. Rm 1 0,20-2 1 ; Is 65, 1 -2). Por
vezes, chama os que lhe resistem e se mantêm distantes e atrai
outros, mesmo sem que o desej em, para o caminho da salvação.
Além disso, por sua benignidade impede os que se inclinam para
o pecado de concretizarem seu iníquo proj eto. E que dizer dos
textos abaixo, que parecem em contradição uns com os outros?
Talvez a alguém possa parecer que nossa salvação deva
ser atribuída ao nosso livre arbítrio em virtude da palavra do
profeta Isaías: Se estiverdes dispostos a ouvir, comereis osfrutos
da terra (Is 1 , 1 9). Também diz a Escritura: A escolha de Deus
não depende da vontade ou dos esforços do ser humano, mas
somente de Deus que usa de misericórdia (Rm 9, 1 6). E ainda:
Deus retribuirá a cada um segundo suas obras (Rm 2,6). Todavia,
também nela se encontra: É Deus quem opera em nós o querer
e o agir, segundo seu agrado (FI 2, 1 3). E ainda lemos: É pela
graça que fostes salvos mediante a fé. E isso não vem de vós, é
1 60 Abade Queremom
dom de Deus! Não vem das obras de modo que ninguém pode
gloriar-se (Ef2,8-9). Mas, também foi escrito: Aproximai-vos de
Deus e Ele se aproximará de vós (Tg 4,8), encontramos em outro
lugar: Ninguém vem a mim, se o Pai que me enviou, não o
atrair (Jo 6,44). Se por um lado é dito : Conduz teus passos pelo
caminho reto, e sejam firmes todas as tuas veredas (Pr 4,26 -
LXX). Por outro, ao rezar, dizemos: Dirigi meus passos em tua
presença (SI 5 ,9), para que meus pés não vacilem (SI 1 6,5). E
ainda: Formai um coração novo e um espírito novo (Ez 1 8,3 1 ). E
pela boca de Ezequiel nos é feita esta promessa: Dar-lhes-ei um
só coração e porei em seu íntimo um espírito novo: removerei
de seu corpo o coração de pedra, dar-lhes-ei um coração de
carne, a fim de que andem segundo meus estatutos e guardem
as minhas normas e as cumpram (Ez 1 1 , 1 9-20). E o Senhor ainda
nos prescreve o seguinte : Purifica teu coração da maldade,
Jerusalém, para que sejas salva (Jr 4, 1 4).
E eis que o profeta suplica ao Senhor de conceder-lhe
aquilo mesmo que Ele ordena: Criai em mim, ó Deus, um
coração puro (SI 50, 1 2); e também: Lavai-me e ficarei mais
branco do que a neve (SI 50,9). Que significa para nós: Acende i
em vós a luz da ciência (Os 1 0, 1 2 - LXX). E o salmista também
nos diz: Deus ensina a ciência ao homem (SI 93, 1 O). O Senhor
abre os olhos ao cego (Si l 45,8). E nós também pedimos a Deus
com o profeta: Não deixeis que se me apague a luz dos olhos e
fechem pela morte, adormecidos (SI 1 2,4).
A que conclusão devemos chegar senão a de que todos
esses textos declaram a uma só vez a força da graça de Deus e a
nossa liberdade? Pois, mesmo que o homem por si mesmo possa,
às vezes, aspirar à virtude, de fato, irá sempre necessitar do so
corro divino.
É certo que não depende da própria vontade que alguém
goze de boa saúde. Nossos desejos não nos libertam das enfermi-
A Proteção de Deus 161
dades. De que adianta desej armos a graça de sermos saudáveis,
se Deus que nos concedeu a vida não nos facultou também o
vigor da incolumidade? Por outro lado, de um bem natural que
o Criador nos proporcionou, provém, muitas vezes, um início
de boa vontade que, todavia, não conseguirá atingir a virtude
perfeita, a menos que o Senhor não a auxilie. E para que essa
verdade fique ainda mais evidente, eis o testemunho do Apóstolo:
Querer o bem está a meu alcance, não consigo porém realizá
lo (Rm 7, 1 8).
1 O - A fragilidade do livre arbítrio
A existência de nosso livre arbítrio é confirmada pela
Sagrada Escritura: Guarda teu coração com todo o zelo (Pr 4,23).
Mas o Apóstolo manifesta essa fragilidade, declarando: O Senhor
guarde vossos corações e vossas inteligências no Cristo Jesus
(Fl 4,7). E Davi declara a força do livre arbítrio, ao dizer: Inclinai
meu coração para obedecer aos vossos mandamentos (SI
I 1 8, I I 2), mas ele também ensina a sua fragilidade, ao rezar:
Inclina meu coração para teus mandamentos e nunca para a
avareza (SI I I 8,36). O mesmo diz Salomão : Incline o Senhor pa
ra Ele nossos corações, afim de que andemos em todos os seus
caminhos e guardemos os ensinamentos, os estatutos e as
normas que deu a nossos pais ( l Rs 8,58).
Todavia é o poder de nosso livre arbítrio que o salmista
designa, ao dizer: Preserva tua língua do mal, e teus lábios das
palavras enganosas (Sl 3 3 , I 4). Nossa oração, contudo, exprime
nossa fraqueza, ao dizer: Ponde uma guarda em minha boca,
Senhor, e vigias às portas dos lábios (SI I 40,3).
O Senhor também declara o vigor de nosso livre arbítrio,
através de Isaías: Desata as cadeias de teu pescoço, filha de
Sião cativa (Is 52,2). No entanto, o profeta canta sua fragilidade:
É o Senhor que quebra as correntes dos cativos (SI 1 45,7). E
1 62 Abade Queremom
ainda: Ó Senhor, quebrastes-me os grilhões da escravidão! Por
isso vos oferto um sacrificio de louvor ( S I 1 1 5 , 1 6- 1 7) . No
Evangelho, ouvimos o Senhor a nos chamar, a fim de que por
nosso livre arbítrio corramos ao seu encontro : Vinde a mim,
todos vós que estais fatigados e sobrecarregados por vossos
fardos, e eu vos aliviarei (Mt 1 1 ,28). Mas o Senhor mesmo enfatiza
nossa incapacidade, dizendo : Ninguém pode vir a mim se o Pai,
que me enviou, não o atrair (Jo 6,44). E o Apóstolo, assinalando
nosso livre arbítrio diz: Correi de modo a que conquisteis o
prêmio ( ! Cor 9,24) . E São João Batista atesta nossa fraqueza:
Ninguém pode receber coisa alguma se não lhefoi dada do céu
(Jo 3 ,27). Jeremias nos manda que guardemos nossas almas com
toda a solicitude: Tornai cuidado com vossas almas (Jr 1 7,2 1 ),
mas o mesmo Espírito diz pela boca de outro profeta: Se o Senhor
não vigiar nossa cidade, em vão vigiarão os que a guardam (SI
1 26, 1 - LXX). O Apóstolo, ao escrever aos filipenses, procura
mostrar que eles são livres: Trabalhai em vossa salvação com
temor e tremor (Fl 2, 1 2), mas logo acrescenta, ressaltando-lhes a
fraqueza: É Deus quem opera em vós o querer e o agir, do mo
do que lhe aprouver (F! 2, 1 3 ).
1 1 - Pergunta-se: A graça de Deus precede ou acompanha a
nossa boa vontade ?
A graça e o livre arbítrio se interpenetram e de modo tão
confuso e estranho que entre muitos autores um grande debate
é travado, para estabelecer a verdade entre as duas alternativas
seguintes: seria a nossa boa vontade incipiente que despertaria
a compaixão de Deus por nós, ou, ao contrário, seria a piedade
de Deus que nos levaria a esse despertar da boa vontade?
São muitos os que adotam uma ou outra dessas concep
ções e, ultrapassando em suas afirmações um critério j usto, caí
ram em erros diferentes, e até, às vezes, contrários uns aos outros.
A Proteção de Deus 1 63
Se dissermos que o princípio da boa vontade nos cabe, que seria
de Paulo, o perseguidor (cf. At 9), e de Mateus, o publicano? (cf.
Mt 9,9). Ambos foram atraídos à salvação, apesar de um se rego
zij ar no sangue e no suplício dos inocentes, e o outro, na violência
e na rapina dos bens públicos. Se, ao contrário, afirmarmos que
o princípio da boa vontade se origina sempre de uma inspiração
divina, que diremos da fé demonstrada por Zaqueu ou da piedade
do ladrão crucificado? (cf. Lc 1 9,2ss; 23 ,40ss). Pois, em virtude de
um ardente desejo, conquistaram como que por violência o reino
dos céus, prevenindo, de certo modo, o especial chamado divino.
Ainda, se atribuirmos ao nosso livre arbítrio a aquisição
da virtude e a observância dos mandamentos de Deus, como
poderemos orar: Confirmai, ó Deus, o que operastes em nós?
(Sl 67,29). E, também: Tornaifecundo o trabalho de nossas mãos?
(SI 89, 1 7).
Sabemos que Balaão foi pago para amaldiçoar Israel, mas
não lhe foi permitido satisfazer tal desejo (cf. Nm 22,5ss). Deus
também preservou Abimelec de tocar em Rebeca não podendo
ele, assim, consumar seu pecado (cf. Gn 20,6). 1
A ciumada entre os irmãos de José fizeram com que ele
fosse levado para bem distante (cf. Gn 3 7,28), preparando, assim,
o êxodo dos filhos de Israel para o Egito. Desse modo, em lugar
do fratricídio premeditado, acabaram condicionando o socorro
que os salvou quando a fome assolou aquela região. Foi o que o
próprio José disse aos irmãos ao se ver reconhecido : Não tenhais
medo, nem vos entristeçais por me terdes vendido para ser
conduzido aqui. Foi para vossa salvação que Deus me enviou
adiante de vós (Gn 45,5). E pouco depois: Deus me enviou à
vossa frente a fim de que sobrevivêsseis e não vos faltasse
alimento para isso. Não foi por vossa determinação mas pela
vontade de Deus que fui enviado. Para me tornar como um pai
1 O episódio em questão refere-se a Sara e não a Rebeca.
1 64 Abade Queremom
para o Faraó e senhor de toda a sua casa e príncipe de todo o
Egito (Gn 45,7-8). E, como após a morte do pai, os irmãos conti
nuassem temerosos, falou-lhes novamente: Não temais: por
ventura podemos resistir à vontade de Deus? Vossa intenção
era prejudicar-me, mas Deus transformou o mal em bem, afim
de me exaltar. Pois foram salvos numerosos povos (Gn 50, 1 9-
20). Igualmente o bem-aventurado Davi declara no salmo 1 04
que todas aquelas coisas aconteceram por um projeto especial
de Deus: Mandou, então vir afome sobre a terra e os privou de
todo o pão que os sustentava; um homem enviara à sua frente,
José que foi vendido como escravo (SI 1 04, 1 6- 1 7).
Embora nos pareça aqui que a graça e o livre arbítrio
estej am em conflito, ambos estão em consonância. E a piedade
impõe-nos o dever de aceitar esses dois elementos. Privar o ho
mem de qualquer deles seria desprezar a própria regra de fé da
Igrej a. Com efeito, tão logo Deus percebe nossa intenção de
nos voltarmos para o bem, ele acorre ao nosso encontro, nos
orienta, nos reconforta. É o que nos diz Isaías: À voz de tua sú
plica, ele tefará misericórdia; assim que a ouvir ele te atenderá
(ls 30, 1 9). E é o próprio Senhor quem nos afirma: Invoca-me no
dia da tribulação, eu te libertarei e tu me glorificarás (Sl 49, 1 5) .
Se, ao contrário, percebe em nós resistência ou tibieza, dirige
exortações salutares a nosso coração que renovam ou despertam
em nós as boas intenções.
1 2 - A boa vontade não deve ser exclusivamente atribuída nem
ao livre arbítrio nem ao homem
Não é lícito pensarmos que Deus criou o homem incapaz
de querer ou de fazer o bem. Assim, não poderíamos dizer que
ele lhe teria concedido o livre arbítrio, uma vez que só lhe permi
tiria querer e poder praticar o mal. Desse modo, desmentiria
aquela palavra do Senhor: Eis que o homem se tornou como um
A Proteção de Deus 1 65
de nós, conhecendo o bem e o mal (Gn 3 ,22).
Não penseis que o homem, no estado anterior à queda,
tenha ignorado totalmente o bem. Nesse caso, seria forçoso ad
mitir que ele fora criado como um animal insensato e irracional.
O que seria um absurdo e totalmente contrário à fé católica.
Pois, de acordo com a sábia palavra de Salomão, Deus criou o
homem reto (Ecl 7,29 - LXX), vale dizer, capaz de satisfazer-se
continuamente com a ciência do bem. Contudo, os próprios
homens se embaraçaram com a elaboração de muitos raciocínios
(Ecl 7,29 - LXX), tomando-se, como foi dito, seres conhecedores
do bem e do mal. Assim, após sua prevaricação, Adão obteve a
ciência do mal que antes não possuía, não perdendo, todavia, a
ciência do bem, que anteriormente j á recebera.
As palavras do Apóstolo manifestam com a maior clareza
que, após a queda de Adão, o gênero humano não perdeu a
ciência do bem: Os pagãos, que não têm a lei, mas praticam
naturalmente as coisas que são da lei, embora não tendo a lei,
a si mesmos servem de lei. Eles mostram que o objeto da lei
está gravado em seus corações, dando disto testemunho sua
consciência e seus pensamentos que, alternadamente, se acusam
e se defendem no dia em que Deus - segundo meu Evangelho
julgar, por Jesus Cristo, as ações secretas dos homens (Rm 2, 1 4-
1 6) .
Nesse mesmo sentido, o Senhor censura pelas palavras
do profeta a cegueira dos judeus, não natural, mas voluntária,
com que eles mesmos se armavam com obstinação. Assim, diz,
pois: Ouvi, ó surdos! Olhai e vede, ó cegos! Mas quem é cego
senão o meu servo ? Quem é surdo como o mensageiro que en
vio ? (Is 42, 1 8- 1 9).
E, temendo que se possa atribuir tal cegueira à natureza e
não à vontade, ordena em outro lugar: Faze i sair este povo que
é cego, embora tenha olhos, este povo de surdos, apesar de ter
1 66 Abade Queremom
ouvidos (Is 43 ,8). E insiste em outro lugar: Eles têm olhos, mas
não vêem, ouvidos, mas não ouvem (Jr 5 ,2 1 ). O Senhor também
diz no Evangelho : Porque vêem sem ver e ouvem sem ouvir
nem entender (Mt 1 3 , 1 3). A profecia de Isaías se cumpriu em
relação àquele povo. Podeis ouvir certamente, mas não haveis
de entender; podeis ver certamente, mas não podeis compre
ender. Embota o coração deste povo, torna pesados os seus
ouvidos, tapa-lhe os olhos, para que não veja com os olhos, e
não ouça com os ouvidos, e não suceda que o seu coração
venha a compreender e que ele se converta e consiga a cura (ls
6,9- 1 o - LXX). Finalmente para mostrar que eles eram capazes de
fazer o bem, o Senhor censura os fariseus, dizendo-lhes: Por
que não julgais por vós mesmos o que é justo ? (Lc 1 2,57). Com
certeza ele não os teria censurado deste modo, se não soubesse
que eram capazes de discernir o que é justo.
Toma-se, pois, imprescindível de nossa parte evitarmos
atribuir ao Senhor todo o mérito dos santos, de tal maneira que
só iremos responsabilizar a natureza humana pelo que tem de
mau e de perverso. Nesse caso, seríamos refutados pelo teste
munho do sapientíssimo Salomão e, mais ainda, pelo próprio
Senhor que assim se expressa, na oração que faz, quando se
verifica o término da construção do templo : Meu pai Davi teve
a intenção de construir uma casa para o Nome do Senhor, Deus
de Israel, mas o Senhor disse a meu pai Davi: Planejaste edificar
uma casa para meu Nome e fizeste bem. Contudo, não serás tu
que edificarás essa casa para meu Nome ( l Rs 8, 1 7- 1 9).
Esse pensamento e esse proj eto do rei Davi seriam bons e
inspirados por Deus, ou maus e devemos imputá-los ao homem?
Se Davi concebera um bom proj eto inspirado por Deus, por que
Aquele que o inspirou, não lhe permitiu levá-lo a bom termo?
Se era mau, e suscitado pela própria vontade humana, por que o
Senhor o teria louvado? Não nos resta senão aceitar que se tra-
A Proteção de Deus 1 67
tava de um bom proj eto e concebido pelo próprio homem.
Diariamente podemos estabelecer tais julgamentos em
relação a nossos próprios pensamentos. Davi não recebeu o
privilégio exclusivo de conceber por si mesmo bons pensamentos.
Nossa natureza não foi condenada a j amais experimentar o sabor
do bem ou formular algum pensamento reto.
Portanto, não podemos duvidar de que toda alma possua
naturalmente as sementes de virtude depositadas em si mesma
pela benevolência do Criador. Mas, se o auxílio divino não as
incrementar, não poderão jamais chegar ao crescimento perfeito,
porque segundo o bem-aventurado Apóstolo: Aquele que planta
nada é; aquele que rega nada é; mas importa tão-somente Deus
que dá o crescimento ( ! Cor 3 ,7).
O Pastor, no livro que parece ser de sua autoria, ensina
com toda a clareza que o homem possui a liberdade de inclinar
se quer para um lado, quer para o outro. Nesse livro é mencio
nado que dois anjos estão vinculados a cada um de nós. Um
bom e o outro mau, mas a opção de seguir a um ou a outro de
pende da nossa decisão. Assim sendo, resta sempre ao homem a
liberdade de negligenciar ou amar a graça de Deus (cf. VIII, l 7).
Se assim não fosse, o Apóstolo não teria dado o seguinte
conselho : Trabalhai pela vossa salvação com temor e tremor
(Fl 2, 1 2). Claro que não se teria expressado de tal modo se não
estivesse certo de que depende de nosso livre arbítrio o zelo ou
a negligência pela nossa salvação.
Mas, para que não acreditemos que podemos dispensar o
socorro divino para a realização dessa obra magnânima, acres
centa: É Deus quem opera em vós o querer e o agir, de acordo
com sua vontade (Fl 2, 1 3).
Do mesmo modo adverte a Timóteo : Não negligencies a
graça que te foi dada (2Tm 4, 1 4), e ainda: Por este motivo eu te
exorto a reavivar a graça de Deus que há em ti (2Tm I ,6).
1 68 Abade Queremom
.O Apóstolo, ao escrever aos coríntios, adverte-os de que
não se tomem indignos da graça de Deus, mediante obras não
meritórias: Visto que somos colaboradores dele, exortamos-vos
a que não recebais a graça de Deus em vão (2Cor 6, I ).
Simão, por exemplo, recebeu-a em vão e, por isso, não
lhe foi de nenhum proveito. Não obedeceu a Pedro quando por
ele foi assim admoestado: Arrepende-te, pois, dessa tua maldade
e ora ao Senhor que possa te ser perdoado este pensamento do
teu coração; pois eu te vejo na amargura do fel e nos laços da
iniqüidade (At 8,22-23).
Assim, de acordo com o que foi dito, Deus previne a von
tade do homem. A misericórdia de meu Deus me prevenirá (SI
5 8, 1 1 ). Depois, novamente será a vez de nossa vontade prevenir
a Deus quando, para nosso bem, ele tarda em nos atender a fim
de provar nosso livre arbítrio : Minha prece se eleva até vós
desde a aurora (SI 87, 1 4). E ainda: Chego antes que a aurora e
vos imploro (SI 1 1 8, 1 47), e mais: Os meus olhos antecipam as
vigílias (SI 1 1 8, 1 48). Ele nos chama e nos convida, quando diz: O
dia todo estendi as mãos a um povo desobediente e rebelde (Rm
1 0,2 1 ). E também nós o convidamos, ao lhe dizer: Clamo a vós,
ó Senhor, sem cessar todo o dia (SI 87, 1 O). Mas, como diz o pro
feta, Deus nos espera: O Senhor espera para ter piedade de vós
(Is 30, 1 8). E nós, também, o esperamos : Esperando, esperei no
Senhor e ele me olhou (SI 3 9,2), e ainda: Esperei a vossa salvação,
Senhor (SI 1 1 8, 1 66). Deus também nos conforta, ao nos dizer
através do profeta Oséias: Eu os adverti efortifiquei seus braços,
mas eles meditam o mal contra mim (Os 7, 1 5). E também nos
exorta a que nos fortifiquemos a nós mesmos: Fortificai as mãos
desfalecidas, robustecei os joelhos vacilantes (Is 35,3).
E Jesus vai exortar: Se alguém tem sede, venha a mim e
beba (Jo 7,37). E o profeta, por sua vez, clama ao Senhor: À
força de gritar estou cansado; minha garganta já ficou enrou-
A Proteção de Deus 1 69
quecida. Os meus olhos já perderam sua luz, de tanto esperar
pelo meu Deus! (SI 68,4). E é certo que o Senhor está sempre em
busca do homem, como bem nos demonstram as palavras do
Cântico dos Cânticos: Procurei-o e não o encontrei; chamei-o,
mas ele não respondeu (Ct 5 ,6). E também a esposa o procura,
com lamentos carregados de lágrimas: Durante as noites, em
meu leito, busquei aquele que meu coração ama; procurei-o
sem encontrá-lo (Ct 3 , 1 LXX).
-
1 3 - Os esforços humanos não podem substituir a graça de
Deus
Assim, sempre a graça de Deus coopera com o livre arbítrio
para o nosso bem, protegendo-o, auxiliando-o e defendendo-o.
Algumas vezes a graça divina exige ou espera de nossa boa
vontade algum empenho a fim de não parecer que concede seus
dons a um indivíduo completamente fragilizado pela inércia e
pelo ócio. De qualquer modo, a graça procura como pretexto
as ocasiões em que o homem, tendo sacudido seu torpor e sua
indolência, demonstre um mínimo de boa vontade e um certo
alento a fim de que sua liberalidade não pareça irracional.
Todavia, mesmo então ela permanece gratuita. Porque,
como conseqüência de um empenho tão pequenino e insigni
ficante, ela recompensa com a imensa glória da imortalidade e
os dons da eterna bem-aventurança com inestimável magnifi
cência.
É bem verdade que a fé do ladrão crucificado foi por ele
expressa em primeiro lugar (cf. Lc 23,40). Mas por isso não convém
pensar que a bem-aventurança da entrada no paraíso não lhe
tenha sido gratuitamente prometida.
Também não deveis acreditar que foi apenas por sua
palavra de arrependimento: Pequei contra o Senhor (2Sm 1 2, 1 3),
e não pela misericórdia de Deus que o rei Davi foi perdoado de
1 70 Abade Queremom
seus dois crimes gravíssimos e mereceu ouvir do profeta Natã
aquelas palavras: O Senhor perdoou a tua iniqüidade e não
morrerás (2Sm 1 2, 1 3).
Acrescentar o homicídio ao adultério foi obra de seu livre
arbítrio. Receber a repreensão do profeta Natã foi obra da divina
clemência; humilhar-se e reconhecer seu pecado foi fruto de sua
vontade. Ter merecido em tão curto tempo o perdão de crimes
tão abomináveis, foi dom da misericórdia do Senhor.
Que dizer de uma confissão tão breve e da incomparável
recompensa da generosidade divina? O Apóstolo, considerando
a grandeza da retribuição futura, assim se refere às inúmeras
perseguições de que era vítima: Com efeito, a insignificância
de uma tribulação momentânea acarreta para nós um peso
eterno e incomensurável de glória (2Cor 4, 1 7).
E declara também em outro passo : Os sofrimentos do
tempo presente não têm proporção com a glória futura que se
manifestará em nós (Rm 8, 1 8) .
Quaisquer esforços provenientes da fragilidade humana
não poderiam ser comparados à futura recompensa, e o empenho
demonstrado pelo homem não pode reduzir o papel da graça,
porque, de fato, essa é sempre gratuita.
Eis por que, após atestar que foi pela graça de Deus que
recebeu a dignidade apostólica, o mestre dos gentios proclama:
Pela graça de Deus sou o que sou ( I Cor 1 5 , 1 0). O Apóstolo, por
sua vez, soube responder ao chamado da graça, uma vez que
ele assim continua: E a graça que Deus reservou para mim não
foi estéril, a prova é que tenho trabalhado mais que todos eles,
não propriamente eu, mas a graça de Deus comigo ( I Cor 1 5 , 1 0).
Ao dizer: trabalhei, refere-se ao esforço de seu próprio
arbítrio, ao acrescentar: não eu, mas a graça de Deus, indica a
força da proteção divina. Enfim, pela palavra: comigo, declara
A Proteção de Deus 171
que a graça cooperou não com um ocioso ou displicente, mas
com alguém que se empenhou em um trabalho estafante.
14 Deus, ao enviar-nos as tentações, põe à prova a força de
-
nosso livre arbítrio
No livro de Jó, o atleta amado por Deus, quando o de
mônio o reivindica para um combate singular, notamos uma aná
loga ação da justiça divina.
Se Jó não houvesse lutado contra seu adversário com suas
próprias forças, mas somente com a graça de Deus que o cobria
com sua proteção, se ele houvesse suportado, sem o apoio da
virtude de sua própria paciência, mas unicamente apoiado pelo
socorro divino, o enorme peso daquelas múltiplas tentações
inventadas pelo inimigo com tão cruel artimanha e tantas catás
trofes, como o demônio não insistiria com maior razão naquela
calúnia j á anteriormente proferida: É a troco de nada que Jó
serve a Deus? Não cercaste como de uma muralha a sua pessoa,
a sua casa e todos os seus bens? Mas estende tua mão e toca
em tudo quanto ele possui; juro-te que te amaldiçoará em tua
face! (Jó 1 ,9- 1 1 - LXX) .
Mas o diabo não ousa, apesar de exímio caluniador, voltar
àquela recriminação após a luta. E por tal procedimento ele con
fessa que não foi a força de Deus que o venceu, mas a do pró
prio Jó.
Contudo, por isso, não somos autorizados a acreditar que
a graça faltou totalmente a Jó. Pois foi ela que deu ao tentador
um poder proporcional à capacidade de resistência de Jó. A graça
divina não o protege do ataque de modo a não deixar lugar à
virtude humana, todavia, limita-se a fazer com que seu cruel ini
migo não lhe retire a razão e a posse de si mesmo, para, em
seguida, liquidá-lo pela desigualdade de inteligência e o peso de
um combate insuperável.
1 72 Abade Queremom
Assim, Deus nos prova a fé para tomá-la mais vigorosa e
triunfante. O exemplo do Centurião do Evangelho nos apresenta
a mesma lição. É evidente que o Senhor sabia que curaria seu
servo pelo poder de sua palavra, preferiu, no entanto, oferecer
sua presença corporal, dizendo : Eu irei e o curarei (Mt 8,7).
O outro, porém, sentindo crescer o ardor de sua fé, supera
aquele oferecimento e exclama: Senhor, eu não sou digno de
que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e meu
servo será curado (Mt 8,8).
O Senhor, tomado de admiração, louva-o e o exalta mais
que a todos os crentes de Israel, dizendo : Em verdade vos digo:
jamais encontrei tão grande fé em Israel (Mt 8, 1 0).
Mas não haveria glória nem merecimento se o Cristo
houvesse louvado naquele homem tão-somente os dons que Ele
mesmo lhe outorgara.
Lemos que a justiça divina ofereceu igualmente essa prova
de fé ao mais ilustre dos patriarcas ao dizer: Depois disso, Deus
provou A braão (Gn 22, 1 LXX). Com efeito, não foi aquela fé
-
inspirada pelo próprio Senhor, que Ele queria provar, mas a fé
que Abraão, ele mesmo, era capaz de testemunhar livremente,
uma vez que fora eleito e iluminado pelo Senhor.
Por conseguinte, não imerecidamente a firmeza de sua fé
foi reconhecida e assim lhe foi dito, quando a graça de Deus,
retirada um momento em virtude da provação, lhe foi devolvida:
Não estendas a tua mão contra o menino e não lhe faças nada.
Agora eu sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio
filho, teu filho único (Gn 22, 1 2 - LXX).
Talvez, também nós façamos a experiência desse gênero
de tentação para que tenhamos o mérito da provação. No Deu
teronômio, o Legislador prevê com clareza essa possibilidade.
Caso se levante no meio de ti um profeta ou um visionário,
anunciando-te um sinal ou prodígio, e acontecer o sinal ou
A Proteção de Deus 1 73
prodígio anunciado, e ele te disser: vamos, sigamos outros
deuses - que te são desconhecidos - e prestemos-lhes culto, tu
não ouvirás as palavras desse profeta ou desse visionário por
que o Senhor vosso Deus vos estará pondo à prova para ver se
o amais de todo o vosso coração e de toda a vossa alma (Dt
1 3 , 1 -3). Pois, então, quando Deus houver permitido o apare
cimento desse profeta ou visionário, irá ele proteger todos cuja
fé desej a provar, de modo a não deixar lugar à liberdade, a fim
de que eles lutem contra o tentador com suas próprias forças?
A justiça do Senhor não teria permitido que eles fossem
tentados se não soubesse que eles seriam capazes de uma força
de resistência igual à do ataque que receberiam, de sorte que
poderiam, com toda a equidade, ser julgados culpados ou dignos
de elogio, segundo sua atuação.
Em conformidade com tal doutrina, assim dizia o Apóstolo:
Portanto, quem julga estar de pé, tome cuidado para não cair.
Não tendes sido provados além do que é humanamente su
portável. Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além
de vossas forças ( l Cor 1 0, 1 2- 1 3).
Pelas palavras : Quem pensa estar de pé tome cuidado
para não cair, ele adverte para que sejam vigilantes em sua liber
dade. Pois bem sabe o Apóstolo que, uma vez recebida a graça,
depende de quem a recebeu, permanecer firme por seu zelo ou
cair por sua negligência. Ao prosseguir: Não tendes sido
provados além do que é humanamente suportável, ele censura
a fraqueza e a inconstância que dominam as almas ainda não
fortalecidas e as tomam impróprias para suportar os assaltos
das potências malévolas contra as quais ele próprio luta, coti
dianamente, como escreve aos efésios: A nossa luta não é contra
o sangue e a carne, mas contra os principados, as potestades,
os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos
espalhados pelo espaço (Ef6, 1 2). Contudo, ao acrescentar: Deus,
1 74 Abade Queremom
que é fiel, não permitirá que sejais tentados além do que é hu
manamente suportável ( 1 Cor 1 o, 1 3), certamente o Apóstolo não
desej a que o Senhor não permita a tentação, mas que as pessoas
não sejam tentadas além de sua capacidade de resistência.
A primeira advertência do Apóstolo, portanto, refere-se à
condição do livre arbítrio humano, enquanto que a segunda alude
à graça que modera os assaltos dessa mesma tentação.
Toda essa argumentação vem confirmar que a graça divina
excita o livre arbítrio, mas não o protege, nem o defende, a
ponto de não precisar recorrer às próprias forças no combate
travado contra seus inimigos espirituais.
Caso saia vencedor, o homem aprenderá a reconhecer a
graça de Deus; ao contrário, se for vencido, responsabilizará
sua fragilidade.
Assim aprenderá a não contar com suas próprias forças,
mas a recorrer sempre ao auxílio divino e a seu protetor.
Não se trata aqui de uma opinião pessoal, mas de teste
munhos evidentes apoiados na Sagrada Escritura. Recordemos,
com efeito, o que se lê no livro de Josué: Estas são as nações
que o Senhor deixou subsistir para provar por meio delas os
israelitas, para ver se eles todos guardavam os preceitos do
Senhor seu Deus, e aprendessem a combater (Jd 3 , 1 -2; 2,22). Bus
quemos entre as coisas humanas algo que tenha certa analogia
com a incomparável clemência de nosso Criador; embora não
pretendamos, de modo algum, encontrar qualquer igualdade com
sua ternura. Tentaremos, no entanto, vislumbrar apenas uma mera
semelhança com sua indulgente bondade. Suponhamos uma mãe
amorosa e cheia de solicitude por seu filhinho. Durante muito
tempo ela o carrega nos braços até que finalmente ele possa
aprender a caminhar. Antes do mais, ela o leva a engatinhar.
Depois, segurando-o pela mão, faz com que a criança se aprume
para que possa apoiar os pés alternativamente. Em seguida, dei-
A Proteção de Deus 1 75
xa-o sozinho um instante, se o percebe inseguro, porém, toma
o logo pela mão, sustentando-lhe os passos hesitantes e evitando
que venha a cair. Ou então ela o deixa cair suavemente para em
seguida reerguê-lo. Agora, ei-lo que se tomou um rapazinho.
Logo estará em plena força da adolescência e da maturidade.
Então passará a encarregá-lo de pequenas tarefas a fim de
exercitá-lo sem o oprimir, permitindo-lhe lutar com os compa
nheiros.
Ora, nosso Pai que está nos céus sabe bem melhor a quem
deve carregar em seu seio cheio de graça, e a quem deve exercitar
no uso do livre arbítrio para, à luz de sua face, assegurar-lhe a
virtude. Contudo, Ele ainda o socorre em seus trabalhos, escuta
seus apelos, não o abandona quando este o suplica e chega
mesmo a libertá-lo do perigo, embora o próprio agraciado nem
sempre se dê conta.
1 5 - A graça multiforme da vocação divina
Dessa argumentação resulta claramente que são inescru
táveis os julgamentos e insondáveis os caminhos de Deus (Rm
I 1 ,3 3 ), pelos quais ele atrai o gênero humano para a salvação.
No entanto, as vocações relatadas no Evangelho nos confirmam
essa realidade. Nem André, nem Pedro, nem os outros apóstolos
estavam preocupados com sua salvação quando Cristo os elegeu
por uma graça espontânea de sua condescendência ( cf Mt 4, 1 8).
Zaqueu, levado por um sentimento de fé, esforça-se para
ver o Senhor e procura compensar sua pequena estatura, subindo
em um sicômoro. O Senhor não só o acolhe, mas ainda, concede
lhe a bênção de hospedar-se em sua casa (cf. Lc 1 9,2 ss).
O Senhor também atrai Paulo que lhe é um obstinado
opositor (cf. At 9,3ss). A um outro ele ordena que o siga tão in
separavelmente que chega a recusar-lhe o curto prazo para que
sepulte o próprio pai (cf Mt 8,2 1 ss). A Comélio, que se dedica
1 76 Abade Queremom
continuamente à oração e à esmola, como recompensa, lhe é
mostrado o caminho da salvação na figura de um anjo que lhe é
enviado e que lhe ordena chamar Pedro a fim de aprender por
seu intermédio as palavras de salvação para ele e todos os seus
(cf. At 1 0).
Assim, a sabedoria multiforme de Deus propicia a salvação
aos homens com inescrutável e variada piedade e, segundo a
capacidade de cada um, concede a sua graça generosa.
Até mesmo, ao operar as curas, não o faz de maneira
uniforme, segundo o poder de sua maj estade divina sempre
inalterável, mas prefere atuar de acordo com a medida de fé
encontrada em cada um ou por ele mesmo concedida.
Ao leproso, que acredita que apenas a vontade do Cristo
podia purificá-lo, ele diz: Eu quero, sê purificado (Mt 8,3). A um
outro, que o suplica que vá até sua casa para ressuscitar a filha,
impondo-lhe a mão, ele atende ao pedido e, entrando na casa,
procede da maneira esperada (cf. Mt 9, 1 8).
Mas a um terceiro que crê consistir a salvação no poder
da palavra de Jesus, pois assim falou ao Senhor: Dizei uma só
palavra e meu servoficará curado (Mt 8,8), mediante sua palavra,
devolve a saúde aos membros paralisados, dizendo : Vai e seja
feito conforme acreditaste (Mt 8, 1 3).
Aos que esperam a cura, tocando a fímbria de sua veste,
concede generosamente o dom da saúde (cf. Mt 9,20). Mas não é
apenas aos que pedem, que oferece a saúde. Também socorre,
espontaneamente, os que já haviam perdido a esperança: Queres
ser curado ? (Jo 5 ,6), pergunta Ele, perscrutando os desejos de
alguns, no intuito de lhes satisfazer a vontade: Que queres que
tefaça? (Mt 20,32). A uma outra, ignorante dos meios de alcançar
o que desej a, indica, generoso: Se creres, poderás ver a glória
de Deus (Jo 1 1 ,40). Em outros, tão intensamente derrama seu
poder de cura que o evangelista chega a dizer: Ele curava todas
A Proteção de Deus 1 77
as enfermidades (Mt 1 4, 1 4). Em relação a certas pessoas, o abismo
de seus beneficios viu-se forçado a estancar-se, pois foi dito a
seu respeito: Jesus não pôde realizar milagres entre eles, por
causa da incredulidade que encontrou (Me 6,5-6).
Eis como a liberalidade de Deus opera segundo a fé hu
mana que reconhece. Pois ele diz a um: Faça-se conforme a tua
fé (Mt 9,29), e a outro : Vai! Seja feito conforme acreditaste (Mt
8, 1 3). E a um outro, ainda: Sejafeito como queres (Mt 1 5 ,28). E
novamente a alguém: Tua fé te salvou (Me 1 0,52; Le 1 8,42).
1 6 - A graça divina excede os estreitos limites da fé humana
Ninguém, contudo, se ponha a pensar que tais argumentos
tenham por finalidade estabelecer que todo o fundamento da
nossa salvação consiste no poder de nossa fé pessoal, conforme
opinam alguns erradamente. Atribuindo todo o mérito ao livre
arbítrio, afirmam tais pessoas que a graça de Deus é concedida
segundo o merecimento de cada um. Ao contrário, nós decla
ramos que a graça de Deus transborda esse limite e muitas vezes
ultrapassa as fronteiras da incredulidade humana.
É o que sucedeu, como convém recordar, com o fun
cionário real de que nos fala o Evangelho. Convencido de que
seria mais fácil curar seu filho doente do que ressuscitá-lo, uma
vez morto, apressa-se a implorar a presença do Senhor, dizendo :
Senhor, desce, antes que meu filho morra (Jo 4,49). E o Cristo,
que todavia, lhe censurara a incredulidade, responde: Se não
vedes sinais e prodígios, não acreditais (Jo 4,48). Jesus, no en
tanto, não pauta sua atuação, segundo a fragilidade da fé daquele
homem. Vai expulsar a febre letal, não com sua presença, mas
por sua palavra poderosa: Vai, teu filho vive (Jo 4,50). Também
na cura do paralítico, derrama sua graça com a mesma supe
rabundância. Ao que pedira apenas para ser liberado das enfer
midades que lhe atacavam o corpo, o Senhor começou por lhe
1 78 Abade Queremom
dar a saúde da alma: Tem confiança, meu filho, teus pecados te
são perdoados (Mt 9,2).
E, nesse ínterim, como os escribas não quisessem acreditar
em seu poder de perdoar os pecados dos homens, para confundi
los, por sua palavra devolve aos membros do paralítico a saúde
de que estavam privados, dizendo: O que é mais fácil dizer:
Teus pecados te são perdoados, ou: levanta-te e anda? E para
que saibais que, na terra o Filho do Homem tem o poder de
perdoar os pecados ele diz ao paralítico levanta-te, pega a
- -
tua cama e vai para casa (Mt 9,4-6).
Agiu da mesma maneira em relação ao doente que, deitado,
esperava em vão havia trinta e oito anos, à beira da piscina, a
cura pela movimentação das águas. Espontaneamente, demonstra
a magnificência de sua liberalidade. De fato, querendo o Senhor
induzi-lo a aceitar o remédio para sua saúde, interpela-o: Queres
ser curado ? (Jo 5,6). O enfermo, porém, lamenta a falta de qual
quer ajuda humana: Senhor, não tenho ninguém que me leve à
piscina quando a água se movimenta (Jo 5,7). O Senhor, então,
perdoa sua incredulidade e sua ignorância; devolvendo-lhe a
saúde, não do modo que esperara, mas da maneira que sua
misericórdia determinara. E diz ao paralítico : Levanta-te, pega
a tua maca e vai para a tua casa (Jo 5 , 8).
Mas que pode haver de tão maravilhoso nessas curas rea
lizadas pelo poder do Senhor, uma vez que a graça divina operou
verdadeiros prodígios por meio de seus servos? Quando Pedro
e João entraram no Templo, um pobre homem, manco de
nascença, incapaz de dar um passo, lhes pede uma esmola. Eles,
porém, ao invés de lhes oferecerem as reles moedas solicitadas,
concederam-lhe a possibilidade de caminhar. E o coxo, que espe
rara a consolação de uma simples esmola, foi enriquecido com
o dom da cura não esperada. De fato, assim se expressou Pedro :
Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho te dou: em nome
A Proteção de Deus 1 79
de Jesus Cristo de Nazaré, levanta-te e anda (At 3,6).
1 7 - A insondável providência de Deus
Fundamentados em tais exemplos evangélicos, podemos
reconhecer, com toda a evidência, as diversas e inúmeras manei
ras e os insondáveis caminhos pelos quais Deus procura a sal
vação do gênero humano. Ele próprio impulsiona a boa vontade
de alguns que já se encontram cheios de zelo, para que cheguem
a um fervor ainda mais intenso. E em outros, mesmo que não o
desej em, Ele procura inspirar sentimentos bem intencionados.
Assim, ora nos aj uda a realizar as boas intenções j á formuladas,
ora nos inspira as primícias de santas aspirações, propiciando
nos não só a capacidade de iniciarmos as boas obras, como
também dando-nos a força de nelas perseverar.
Daí se deduz que, ao orarmos, nós o invocamos não apenas
como protetor e salvador, mas também, como nosso socorro e
sustentáculo, j á que o Senhor é o primeiro a nos chamar e nos
atrair à salvação. Mesmo quando disso não temos consciência,
ele é nosso protetor e salvador. Todavia, quando vem em auxílio
de nossos esforços, acolhendo-nos e protegendo-nos, sempre
que a ele recorremos, devemos reconhecê-lo como nosso socorro
e refúgio.
Considerando, pois, o espírito de liberalidade multiforme
que se revela nessa providência de Deus, o bem-aventurado
Apóstolo se sente como que mergulhado num oceano imenso e
profundo da divina compaixão e exclama: Ó abismo da rique
za, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis
seus juízos e impenetráveis seus caminhos! Quem, com efeito,
conheceu os caminhos do Senhor? (Rm 1 1 ,33-34).
A admiração da ciência divina reduzia a um estado de
temor um homem como o doutor dos gentios. Como poderia
1 80 Abade Queremom
alguém, pois, considerar possível à razão humana medir a pro
fundeza daquele infinito abismo?
Sim, quem quer que sej a que presuma compreender ou
explicar com perfeição as ações de Deus, pelas quais opera a
salvação dos homens, além de impugnar a formulação do Após
tolo, com audácia sacrílega, afirma que os juízos de Deus são
penetráveis ao olhar humano e seus caminhos passíveis de
reconhecimento. Ora, o mesmo Senhor testemunha contra tais
pessoas: Meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo
de agir não é o meu, diz o Senhor; mas tanto quanto o céu
domina a terra, tanto é superior à vossa a minha conduta e
meus pensamentos ultrapassam os vossos (ls 5 5 ,8-9).
O Senhor, querendo expressar por meio de uma compara
ção com o afeto humano, todo o amor que incansavelmente nos
dedica, não encontrou em toda a criação melhor exemplo do
que a ternura de um coração matemo, e assim falou: Pode uma
mulher esquecer-se de seu filhinho ? Não ter ternura pelo fruto
de suas entranhas? (ls 49, 1 5). Mas não contente com essa com
paração, ele a transcende imediatamente, dizendo: E, mesmo
que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca (ls 49, 1 5).
1 8 - Os Santos Padres demonstraram que o livre arbítrio não é
suficiente para a salvação
Para aqueles que se deixam guiar pela luz da experiência
e não pela eloqüência das palavras, e sabem medir a magnitude
da graça e a limitação do livre arbítrio tal verdade toma-se
irrefutável. A corrida não é para os ágeis, nem a batalha para
os bravos, nem o pão para os prudentes, nem a riqueza para os
sábios (Ecl 9, 1 1 - LXX), mas é o mesmo Espírito que produz todas
essas coisas e as distribui como lhe apraz ( t eor 1 2, 1 1 ).
Portanto, uma fé segura e uma quase perceptível experiên
cia de Deus nos demonstram que, segundo o Apóstolo, o Criador
A Proteção de Deus 181
do universo opera tudo em todos, com o sentimento do mais
compassivo dos pais e do mais benigno dos médicos.
Ora ele nos inspira o desej o da salvação e nos infunde o
ardor de uma boa intenção; ora nos incute a força de concretizar
mos as boas ações, levando-nos à perfeição das virtudes. Algu
mas vezes nos salva de uma ruína iminente ou nos impede de
uma queda vertiginosa, mesmo a nosso contragosto, outras, nos
propicia as ocasiões e circunstâncias favoráveis à salvação, impe
dindo, também, nossos esforços mais violentos para consumar
nossos impulsos fatais.
Alguns, espontaneamente, correm para ele que logo os
acolhe. A outros que lhe resistem, ele atrai, forçando-os a assu
mirem uma boa disposição.
Mas sejamos conscientes de que nem sempre tudo nos é
concedido por Deus, principalmente quando perseveramos em
resistir às suas inspirações.
Todo o processo da nossa salvação deve ser atribuído à
graça divina e não a nossos atos meritórios. São as próprias pa
lavras do Senhor que nos ensinam tal verdade, ao afirmar: Reco
nhecereis vossa má conduta pela qual vos tornastes impuros e
sentireis desgosto de vós mesmos pelo mal que cometestes. E
sabereis que eu é que sou o Senhor, quando eu proceder
convosco em atenção ao meu nome e não em consideração aos
vossos erros e vossos costumes corrompidos, ó casa de Israel
(Ez 20,43-44).
Assim, todos os Santos Padres católicos que aprenderam
o aperfeiçoamento do coração, não em virtude de vãs discussões,
mas pela prática das boas obras, determinaram alguns princípios.
Primeiro : é pelo dom de Deus que surge em nós o desej o
de todo o bem, mas nossa liberdade permanece livre de inclinar
se para um ou outro lado.
1 82 Abade Queremom
Segundo: é por efeito da graça que praticamos as virtudes,
mas sem que nosso livre arbítrio sej a a isso coagido.
Terceiro : uma vez adquirida a virtude, perseverar na
mesma ainda é um dom de Deus, embora nossa liberdade,
empenhada nesse esforço não se tome prisioneira.
O Deus do universo opera tudo em todos, mas isso con
siste em excitar, proteger e fortalecer nosso livre arbítrio e não
em tolher o que ele mesmo nos outorgou.
Portanto, qualquer hábil conclusão, proveniente de uma
hábil e humana argumentação, que pareça contradizer tal sen
timento, deve ser evitada e não adotada, porque põe em risco a
perda da fé. Porque a fé não se origina da inteligência, mas sim
a inteligência da fé, porquanto está escrito : Se não credes, não
podeis compreender (Is 7,9 - LXX). E, ainda, se Deus opera tu
do em todos, como explicar que, simultaneamente, tudo sej a
atribuído ao livre arbítrio? A inteligência e a razão humanas são
incapazes de compreender plenamente tal verdade.
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Após o bem-aventurado Queremom nos ter assim revi
gorado com o pão de sua doutrina, não mais sentimos o cansaço
de tão penosa viagem.
XIV
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NESTEROS
A CIÊNCIA ESPIRITUAL
1 -Palavras do abade Nesteros sobre a ciência própria dos
religiosos
A ordem com que prometi relatar as conferências de nossos
Pais, e também os acontecimentos de nossa viagem, levam-me,
neste momento, a expor as instruções que nos foram transmitidas
pelo abade Nesteros, homem notável sob todos os aspectos e
possuidor de uma consumada ciência espiritual.
Como havíamos memorizado algumas passagens da
Sagrada Escritura, das quais muito desej ávamos penetrar o
sentido, o abade Nesteros, tendo-o percebido, esclareceu-nos
com as seguintes palavras: "Existem no mundo inúmeras varie
dades de ciências e tão diferentes quantas são as artes e as
profissões. Embora quase todas sejam inúteis, pois apenas servem
aos interesses da vida presente, nenhuma todavia dispensa, para
a compreensão de seu conteúdo doutrinai, um método próprio
e recursos adequados, graças aos quais oferece às pessoas
empenhadas a possibilidade de aprendizagem.
Se, pois, as artes profanas, em seu ensinamento, seguem
métodos específicos e bem definidos, quanto mais nossa religião,
com mais forte razão, não deveria adotar um método e um ordena
mento bem seguros, uma vez que tem por finalidade a contem-
1 84 Abade Nesteros
plação arcana dos mistérios invisíveis, não aspirando a nenhum
bem temporal, mas visando, apenas, às recompensas eternas?
Nossa concepção religiosa abrange, pois, duas ciências: a
primeira, :rcpaxn x rí , correspondente à parte ativa (isto é, à
ascese) que se adquire pela correção dos costumes e a purificação
dos vícios. A segunda, a 8Eooprrnxrí, (a teoria), que consiste na
contemplação das coisas divinas e no conhecimento dos mais
sagrados mistérios.
2 - A aprendizagem da ciência espiritual
Ao que desej a alcançar a teoria, urge que adquira, em
primeiro lugar, por seu zelo e suas virtudes, a ciência prática.
Pois é possível adquirir-se a prática sem a teoria, mas é impossível
chegar-se à teoria sem passar primeiro pela prática. São dois
degraus metodicamente dispostos para que a fragilidade humana
possa galgá-los, elevando-se aos mais altos patamares.
Subindo-os gradativamente, como dissemos, poderemos
chegar à contemplação. Caso, porém, negligenciemos o primeiro
degrau, j amais alcançaremos o segundo. É em vão que aspirare
mos à contemplação de Deus, se não soubermos evitar a contami
nação dos vícios: Pois o Espírito de Deus odeia a perfídia e
nunca habitará um corpo sujeito ao pecado (Sb 1 ,5 e 4).
3 A prática da perfeição se fundamenta em dois requisitos
-
A prática da perfeição se fundamenta em dois princípios:
o primeiro, consiste em conhecer a natureza dos vícios e o
método para extirpá-los. O segundo, em discernir a ordem das
virtudes e adequar a alma de tal forma a essa prática, que ela
passe a obedecer não com o esforço de um escravo, como se a
isso fosse obrigada, mas com alegria e docilidade, como se
estivesse a alimentar-se de um bem natural, encontrando suas
A Ciência Espiritual 1 85
delícias em trilhar esse caminho estreito e difícil.
De fato, como poderemos chegar ao conhecimento das
virtudes, que é o segundo grau da ciência prática e à contem
plação dos mistérios celestes, que é o estágio mais elevado da
teoria, se não compreendermos a natureza desses vícios e não
nos comprometermos com a sua erradicação?
Toma-se, pois, evidente que é necessário, antes do mais,
vencer as dificuldades menores antes de aspirar a ascender a
patamares superiores. Pois, quem não pode compreender as
coisas inatas em seu íntimo, como poderá compreender as que
lhe são estranhas? Convém, portanto, saber que é bem mais
penosa a erradicação dos vícios que a aquisição das virtudes. O
que digo não é resultado de uma convicção pessoal, mas são
palavras do Criador que, bem conhecendo as condições de suas
criaturas, por isso mesmo nos declara, através de seu profeta:
Dou-te hoje poder sobre as nações e sobre os reinos para
arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para
edificares e plantares (Jr 1 , 1 0).
A destruição das coisas nocivas vem expressa por quatro
termos: arrancar, demolir, arruinar e destruir, enquanto a aqui
sição da virtude e da justiça se exprime, apenas, por dois vo
cábulos: edificar e plantar. Do que se deduz com clareza que é
mais difícil arrancar e erradicar os vícios entranhados no corpo
e na alma, do que edificar e plantar as virtudes espirituais.
4 -A vida ativa se direciona para diversas profissões e interesses
Já expliquei que a prática, embora se fundamente em
dois pontos principais, ramifica-se, depois, em diversas profissões
e interesses. Alguns desses interesses orientam seus esforços
para os segredos do deserto e a pureza de coração, como outrora
o fizeram Elias e E li seu e, nos nossos tempos, Antão e os outros
que se propuseram a seguir-lhes o exemplo. Sabemos que esses
1 86 Abade Nesteros
fizeram a experiência de uma grande intimidade com Deus no
silêncio da solidão.
Muitos, porém, dedicaram seus esforços e seu zelo à ins
trução dos irmãos e à direção de seus mosteiros como, recen
temente, o abade João que governou o grande mosteiro próximo
à cidade de Thmuis, e tantos outros monges, dos quais podemos
de maneira semelhante recordar as virtudes e os milagres dignos
dos tempos apostólicos.
Alguns, também, se consagraram à piedosa tarefa de fundar
hospitais onde trataram os estrangeiros, exercendo aquela cari
dade que tomou Abraão e Lot, tão agradáveis a Deus no passado,
e no presente, o bem-aventurado Macário, homem de infinita
doçura e paciência, que dirigia o hospital de Alexandria com tal
virtude que em nada se tomou inferior a quantos viveram na
solidão do deserto.
Assim, alguns se dedicaram aos cuidados dos enfermos,
outros preferiram a defesa dos miseráveis e oprimidos, uns, ao
ensino dos ignorantes, outros, à distribuição de esmolas aos po
bres. E todos alcançaram, por seu zelo e sua piedade, um lugar
entre os homens mais santos e admiráveis.
5 - A perseverança na profissão abraçada
É extremamente útil e conveniente que cada qual, de
acordo com o estado de vida que escolheu ou segundo a medida
da graça de Deus que lhe foi confiada, se esforce com todo o
ardor e solicitude em alcançar a perfeição na obra empreendida.
E, mesmo admirando as virtudes dos outros em suas diferentes
opções, j amais abandone a que escolheu, pois, como ensina o
Apóstolo : A Igrej a é um só corpo que tem diversos membros
(cf. Rm 1 2,4 ss), cada qual com uma função diferente, assim nós,
em Cristo, temos um só corpo e cada um de nós é membro
um dos outros, e temos dons diferentes, segundo a graça que
A Ciência Espiritual 1 87
nos foi dada. É o dom de profecia? Profetizemos em proporção
com afé recebida. É o dom do serviço? Prestemos esse serviço.
É o dom de ensinar? Dediquemo-nos ao ensino. É o dom de
exortar? Exortemos. Quem distribui donativos, faça-o com
simplicidade. Quem preside, presida com solicitude e quem se
dedica a obras de misericórdia, faça-o com alegria (Rm 1 2,6-8).
Um membro não pode reivindicar o ministério dos outros.
Nem os olhos podem substituir as mãos, nem o nariz, nem os
ouvidos. Todos também não podem ser apóstolos, nem profetas,
nem doutores, nem se expressar em línguas diferentes, nem ter
o dom da interpretação (cf. I Cor 1 2,28).
6 - A inconstância dos fracos
Acontece com freqüência que os que ainda não estão bem
seguros na profissão abraçada, ouvindo louvores a outros que
vivem em condições diferentes, sentem-se emulados por tais
louvores e desejam segui-los e imitá-los imediatamente.Tais
impulsos, porém, são inúteis, pois a fragilidade humana impossi
bilita a um só homem adquirir todas as virtudes que acabamos
de mencionar, pois, quem as quisesse acumular, expor-se-ia, ao
persegui-las, a não conseguir qualquer delas com perfeição, e
acabaria por se prejudicar em lugar de lucrar com tantas modifica
ções e variações.
São muitos os caminhos que levam a Deus. Que cada um
persevere, portanto, até o fim, nessa via em que j á entrou e nela
permaneça com indefectível fidelidade até alcançar a perfeição.
7- Um exemplo do exercício da castidade que demonstra que
nem todas as práticas convêm a todos os indivíduos
Além do prej uízo que causaria ao monge tal inconstância
que, devido à sua fragilidade de espírito, o levaria a experimentar
1 88 Abade Nesteros
diversas práticas diferentes da sua, esse procedimento o con
duziria a um risco mortal, pois uma prática que santifica a um,
pode levar outro, que o queira imitar por presunção, à própria
perdição .
Por isso, daremos um exemplo do que pode acontecer a
alguém que desej asse imitar a virtude de certo homem ao qual o
abade João costumava se referir, apenas para que seus religio
sos o pudessem admirar, mas nunca para que o imitassem. Certo
dia, aquele santo abade viu alguém em trajes seculares que lhe
vinha ao encontro para oferecer-lhe as primícias de sua colheita.
Nessa ocasião, estava j unto ao abade um possesso atormentado
por um demônio dos mais cruéis que além de resistir a todos os
exorcismos do abade já lhe declarara que j amai s iria obedecer
lhe . Tão logo, porém, o possesso viu o recém-chegado, foi to
mado por tal pavor que fugiu, pronunciando o nome daquele
homem com profundo respeito . Nesse momento, o ancião to
mado de grande admiração pela evidência da graça recebida,
sentia aumentar sua perplexidade, principalmente por estar o
citado homem em vestes seculares. Assim, começou a sondá-lo
cuidadosamente sobre suas condições de vida e sua profissão .
O recém-chegado disse ao abade ser u m homem que vi
via no século, estar comprometido pelo casamento e morar no
campo. O bem-aventurado João, no entanto, refletindo sobre
tão grande graça e virtude, procurava, com maior interesse, des
vendar o segredo daquela vida.
O homem acabou por dizer-lhe que vivia no campo, do
trabalho de suas mãos e não praticava qualquer virtude. Apenas,
todas as manhãs, antes de começar sua labuta, e à tarde, antes
de voltar à casa, entrava na igrej a para agradecer a Deus por lhe
ter dado seu pão cotidiano . Também j amais tocara em sua co
lheita, antes de oferecer ao Senhor suas primícias e seu dízimo .
Nunca conduzira seus bois através da seara alheia, antes de os
A Ciência Espiritual 1 89
haver açaimado, temendo causar algum dano a seu próximo,
por sua negligência, por mínima que fosse.
Mas, como tais informações não parecessem suficientes
ao abade João para explicar tão grande graça concedida, e como
insistisse em conhecer o segredo daquele mérito, um respeitoso
receio apossou-se daquele homem que, não obstante, acabou
por confessar que há doze anos atrás ele desej ara tomar-se
monge, mas obrigado pela vontade imperiosa de seu pai, viu-se
constrangido a se casar. Desde então, porém, ele vivia com sua
mulher como se fora sua irmã, tendo ela conservado sua vir
gindade, sendo que até agora com ninguém partilhara aquele
segredo. Ao ouvir esse relato, o abade foi tomado de maior ad
miração ainda. E não se omitiu de dizer, diante daquele lavrador,
que bem compreendia por que o demônio, que mesmo a ele
havia resistido, não suportara a presença daquele visitante. Pois
acreditava o abade que, ele próprio, sem riscos, não poderia
pretender a tamanha virtude, não apenas no ardor de sua ju
ventude, mas mesmo agora, na sua idade provecta. O abade
João sempre teve em grande admiração aquele fato, mas nunca
o propôs à imitação de nenhum dos seus monges. Ele sabia que
muitas experiências, capazes de levar alguns à perfeição, podem
conduzir outros à desgraça. Porque nem todos podem pretender
receber determinadas graças que Deus destinou a outras pes
soas.
8 A ciência espiritual
-
Voltemos, porém, à exposição da ciência espiritual, que
motivou nossa preleção. De fato, a prática, como anteriormente
j á mencionamos, se aplica a diversas profissões e diferentes
condições de vida, enquanto a teoria compreende apenas duas
partes: uma que se destina à interpretação histórica da Sagrada
Escritura e a outra à inteligência espiritual. Por isso, Salomão,
1 90 Abade Nesteros
ao enumerar a multiforme graça da Igrej a, acrescentou: Ela não
teme a neve em sua casa, porque toda sua família tem vestes
duplas (Pr 3 1 ,2 1 - LXX).
Por sua vez, a ciência espiritual compreende três gêneros:
a tropologia, a alegoria e a anagogia, segundo o que nos afirmam
os Provérbios: Escrevei essas coisas em três caracteres sobre a
extensão de vosso coração (Pr 22,20 - LXX).
O gênero histórico se refere ao conhecimento das coisas
passadas e visíveis. O Apóstolo fala historicamente, ao declarar:
Está escrito que Abraão teve doisfilhos, um da escrava e outro
da mulher livre. O da escrava nasceu segundo a carne e o que
nasceu da mulher livre foi filho da promessa (0 1 4,22-23). O que
segue, porém, pertence ao gênero alegórico, uma vez que o
Apóstolo mostra que aquele acontecimento é, de fato, figura de
outro mistério que se iria realizar posteriormente.
E a esse respeito, ensina: Esses fatos têm o sentido ale
górico, pois essas mulheres representam as duas Alianças. A
primeira, Agar, que vem do monte Sinai, gera filhos para a
escravidão. Porque Sinai é um monte da Arábia, mas cor
responde à Jerusalém atual, que é escrava com seus filhos (G1
4,24-25).
Em seguida, o Apóstolo passa ao sentido anagógico. A
anagogia parte do mistério espiritual, para, em seguida, elevar
se aos segredos do céu mais sublimes e sagrados. Assim, ele
afirma: A Jerusalém do alto, ao contrário, é livre e é nossa
mãe, pois está escrito: Rejubila-te, estéril, que não dás à luz,
prorrompe em gritos de alegria, tu que não sentes as dores do
parto, porque os filhos da mulher abandonada são mais
numerosos do que os da mulher que tem marido (0 1 4,26-27) .
A tropologia nos apresenta a interpretação moral, que tem
por escopo a correção dos costumes e a formação ascética. Como
se entendêssemos uma como a expressão da vida ativa, e a
A Ciência Espiritual 191
outra como ciência contemplativa ou ainda como se quiséssemos
interpretar Jerusalém e Sião como figuras da alma do homem,
segundo a palavra: Louva o Senhor, Jerusalém, louva o teu Deus,
Sião (SI 1 47, 1 2).
Podemos, pois, concluir que de uma única configuração é
possível deduzir quatro interpretações. De modo que a única e
mesma Jerusalém pode ter quatro acepções diferentes. No
sentido histórico, será a cidade dos judeus; segundo o sentido
alegórico, a Igrej a de Cristo, no sentido anagógico, a cidade
celeste, que é a mãe de todos nós (Gl 4,26), e, por fim, no sentido
tropológico, a alma do homem, que algumas vezes é louvada e
outras censurada pelo Senhor.
Desses quatro gêneros de interpretação, vejamos o que
diz o Apóstolo : Ora, irmãos, suponhamos que eu me apresente
entre vós falando em línguas: em que vos serei útil, se não vos
comunicar nem revelação, nem conhecimento, nem profecia,
nem ensinamento ? ( ! Cor 1 4,6).
A revelação diz respeito à alegoria que manifesta, ao ex
plicar, segundo o sentido espiritual, as verdades ocultas sob o
relato histórico.
Assim, por exemplo, se tentarmos desvendar o sentido
das seguintes palavras: Nossos pais estiveram todos debaixo da
nuvem e todos passaram pelo mar; na nuvem e no mar todos
foram batizados em Moisés; todos comeram do mesmo alimento
espiritual e todos beberam da mesma bebida espiritual; defato,
bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava. Essa
rocha era Cristo ( ! Cor 1 0, 1 -4). Deveríamos ver nessa passagem
uma alegoria que prefigura o corpo e o sangue de Cristo que
recebemos diariamente.
A ciência, também mencionada pelo Apóstolo, faz par
te da tropologia, que nos faz discernir com prudência a utilidade
e a honestidade das coisas que dependem de um julgamento
1 92 Abade Nesteros
prático, isto é, cuj a avaliação fica a nosso próprio critério. Como
quando nos mandam j ulgar se convém a uma mulher ter a cabeça
coberta quando ora ao Senhor ( I Cor 1 1 , 1 3). Esse tipo de inter
pretação, como j á explicamos, comporta uma avaliação moral.
Aprofecia, citada pelo Apóstolo em terceiro lugar, refere
se à anagogia, que dá ao discurso uma interpretação das coisas
invisíveis e futuras, como no seguinte texto : Irmãos, não que
remos deixar-vos na ignorância a respeito dos mortos, para
que não fiqueis tristes como os outros, que não têm esperança.
Com efeito, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos
também que Deus, por meio de Jesus, levará com ele todos os
que adormeceram. Eis o que temos a vos dizer, de acordo com
o ensinamento do Senhor: nós, os vivos, se ficarmos aqui na
terra até a vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que
tiverem morrido, pois o Senhor mesmo, à voz do arcanjo e ao
som da trombeta de Deus, descerá do céu. Então acontecerá,
em primeiro lugar, a ressurreição dos que morreram em Cristo
( l Ts 4, 1 2- 1 5). Esse foi, pois, um texto de exortação anagógica.
A doutrina se atém à simples exposição histórica, sem
que a ela se acrescente qualquer sentido, além do que se deduz
das próprias palavras. Assim, quando Paulo escreve: De fato,
eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo tinha recebido,
a saber: que o Cristo morreu por nossos pecados, segundo as
Escrituras, foi sepultado e ao terceiro dia foi ressuscitado,
segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas ( 1 Cor 1 5 ,3-5). E
também, quando afirma: Deus enviou seu Filho, nascido de mu
lher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei
(GI 4,4-5). E ainda: Escuta, Israel, o Senhor teu Deus é o único
Senhor (Dt 6,4).
9 - Deve-se partir da ciência ativa para ascender até a espiritual
Portanto, se alimentais o projeto sincero de alcançar a
A Ciência Espiritual 1 93
luz da ciência espiritual, levados não pelo desej o de uma leviana
vanglória, mas inspirados por uma graça recebida para a vossa
purificação, entusiasmai-vos, primeiramente por aquela bem
aventurança do Evangelho : Bem-aventurados os puros de
coração porque eles verão a Deus (Mt 5,8), a fim de que possais
atingir também aquela de que fala o anjo a Daniel : Os que tive
rem sido instruídos fulgirão como o brilho do firmamento, os
que tiverem introduzido muitos nos caminhos da justiça luzi
rão como as estrelas, com um perpétuo resplendor (Dn 1 2,3).
Encontramos, também, em outra profecia, as seguintes
palavras: Acende i em vós a luz da ciência enquanto tendes tempo
(Os 1 0, 1 2 - LXX).
Percebo em vós um grande interesse pela leitura. Conser
vai-o. E, com máximo entusiasmo, apressai-vos para adquirir a
plenitude daquela ciência prática, isto é, a ética, sem a qual a
pureza da contemplação estaria fora de alcance, porque ela não
virá através da doutrina dos mestres, mas só será concedida aos
que se tomarem perfeitos pela eficácia de sua própria conduta,
como uma espécie de recompensa por nossa fadiga e nosso
empenho.
Não é através da meditação da lei que alguém adquire a
sua compreensão, pois ela será dada como fruto da operosidade,
e quem a recebe pode cantar com o salmista: De vossa lei eu
recebi a inteligência (SI 1 1 8, 1 04). Portanto, os que eliminaram
suas paixões, podem exclamar, cheios de confiança: A vós, Se
nhor, salmodiarei, e pelo caminho reto quero seguir (Sl 1 00, 1 -2).
Na verdade, só é capaz de compreender as palavras que
canta quem tem o coração puro e trilha o caminho da inocência.
Se quereis, pois, preparar em vosso coração um santuário sa
grado de ciência espiritual, purificai-vos, primeiramente, da
impureza dos vícios e despoj ai-vos de qualquer influência das
coisas mundanas. Porque é impossível a uma alma ocupada,
mesmo que superficialmente, com as coisas terrenas, merecer o
1 94 Abade Nesteros
dom da ciência ou a capacidade de produzir frutos espirituais
ou de aproveitar as leituras sagradas.
Atentai, todos vós, principalmente e de modo especial,
tu, João Cassiano, uma vez que tua juventude tornará mais dificil
ainda a observância das recomendações que farei. Se queres,
pois, que tua aplicação à leitura e teu entusiasmo pelo trabalho
não sejam vãos, guarda um profundo silêncio.
É este o primeiro passo a ser dado na vida prática: receber
as instruções e deliberações dos anciãos com a alma atenta, mas
em absoluto silêncio, empenhando-te em guardá-las em teu
coração, apressando-te em colocá-las em prática, e não em te
tomares o mestre de outros. Dessa última tendência nasce, de
fato, a funesta presunção, enquanto do silêncio se originam os
frutos da ciência espiritual.
Nas conferências dos anciãos não ouses interferir, a menos
que seja para perguntar o que te seria prejudicial ignorar, ou in
dispensável conhecer.
Não faças como alguns que, a fim de vangloriar-se e os
tentar sua sapiência, questionam uma doutrina que já conhecem
perfeitamente.
Não é possível para alguém, que estuda para conseguir os
louvores dos homens, obter algum dia o dom da verdadeira ciên
cia. Pois, quem está dominado pela paixão da vanglória é neces
sariamente escravo de vários outros vícios e, particularmente,
da soberba. Porque alguém, uma vez vencido na luta travada na
vida prática e moral, j amais obterá a ciência espiritual que dela
se origina.
Sede, pois, em todas as ocasiões, prontos para ouvir, mas
morosos parafalar (Tg 1 , 1 9). Por temer que te sirva a advertência
de Salomão: Viste um homem precipitado no falar: há mais
esperança num tolo do que nele (Pr 29,20 - LXX). Não tenhas a
presunção de ensinar a alguém qualquer coisa que já não o tenhas
A Ciência Espiritual 1 95
praticado. Também nisso é preciso seguir a ordem que o Senhor
instituiu e seu exemplo. Pois dele foi dito : Jesus primeiro fez,
depois ensinou (At 1 , 1 ). Cuida em não te precipitares, dando en
sinamentos sobre algo que ainda não praticaste, para não seres
incluído no número daqueles mencionados pelo Senhor no
Evangelho: Portanto, fazei e observai tudo quanto vos disserem.
Mas não imiteis as suas ações, pois dizem, mas não fazem.
A marram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos
homens, mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movê
los (Mt 23,3-4). E ainda: Aquele, portanto, que violar um só des
tes mandamentos menores e ensinar os homens a fazerem o
mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus (Mt 5 , 1 9).
Mas, então, o que acontecerá com aquele que ousa ensinar os
mais graves e numerosos preceitos, os quais ele mesmo, contudo,
negligencia? Não mais podemos considerá-lo o menor no Reino
dos Céus, mas o primeiro no suplício do inferno.
É imprescindível, pois, que evites imitar os que, tendo
adquirido uma grande loquacidade e perícia na linguagem, simu
lam possuir a ciência espiritual que discutem com habilidade,
pois sabem dissertar com elegância sobre qualquer assunto que
lhes apraza e, por isso, iludem os que não aprenderam a discernir
o verdadeiro caráter de tal ciência. Ora, uma coisa é expressar
se com facilidade e brilho em seu discurso, outra, é penetrar até
o âmago o sentido das coisas celestes e contemplar com o olhar
do coração purificado os mistérios ocultos e profundos. Esses
mistérios, todavia, embora nenhum ensinamento humano possa
explicar, as almas puras, pela iluminação do Espírito Santo, são
capazes de apreender.
1 O - A escola da verdadeira ciência
Se quiseres adquirir a verdadeira ciência das Sagradas
Escrituras, apressa-te, primeiramente, em alcançar uma profunda
1 96 Abade Nesteros
e inabalável humildade de coração. Pois será ela que te irá con
duzir não a uma ciência capaz de te inflar de vaidade ( cf. 1 Cor
8, 1 ) , mas àquela que te iluminará na perfeição da caridade, pois
é impossível a uma alma que não se acha purificada obter o dom
da ciência espiritual.
Evita, pois, que o teu zelo pela instrução, em lugar de te
conseguir as luzes da ciência e a glória eterna prometida pela
aquisição da verdadeira doutrina, não se tome instrumento de
perdição pelo orgulho que em ti despertará.
Depois, é necessário que empregues todos os esforços
para te desembaraçares de todas as preocupações terrenas a fim
de te dedicares à leitura das Escrituras com assiduidade, ou me
lhor, sem trégua, até que essa meditação contínua penetre teu
espírito e o transforme em sua própria imagem, tomando-o
semelhante à Arca da Aliança que contém as duas tábuas de
pedra (cf. Hb 9,4-5), vale dizer, a salvação da dúplice Aliança,
símbolo da força eterna dos dois Testamentos.
Como a uma de ouro, ela conserva o memorial puro e
fiel, que guarda em si com solidez indefectível toda a doçura do
maná espiritual, pão dos anj os, e a natureza celeste das santas
verdades. Ali se encontra, ainda, a vara de Aarão, que para nós
representa o estandarte da salvação, sinal de nosso Sumo
Pontífice, nosso Senhor Jesus Cristo, cuja memória sempre
renasce para nós. Pois é Ele a verdadeira vara que, após ter sido
cortada da raiz de Jessé, renasceu para nós mais viva e verde
jante do que nunca (c f. Is 1 1 , 1 ) .
Todos esses símbolos são protegidos por dois querubins.
Graças à plenitude da ciência histórica e espiritual - pois a palavra
querubim significa plenitude da ciência - esses querubins preser
varão continuamente o propiciatório de Deus, vale dizer, a paz
da alma, defendendo-a contra os assaltos dos espíritos das trevas.
Assim, a alma elevada até tomar-se não só a arca da Aliança
A Ciência Espiritual 1 97
sagrada, mas ainda o reino sacerdotal, pelo amor indissolúvel
da pureza absorvida pelo conhecimento espiritual, e por seu
invencível amor à pureza, realizará o mandamento sacerdotal
dado pelo Legislador: Não sairá do santuário de seu Deus e
não o profanará (Lv 2 1 , 1 2). Referem-se tais palavras ao coração
purificado em que o Senhor prometeu fazer sua constante mo
rada: Em meio deles habitarei e caminharei (2Cor 6, 1 6).
Eis por que nos devemos empenhar na contínua leitura
das Sagradas Escrituras, decorando-as diligentemente, pois essa
meditação perene nos proporcionará um duplo fruto. Em pri
meiro lugar, enquanto nosso espírito estiver ocupado com a
leitura e o estudo, os maus pensamentos não têm oportunidade
de envolver a alma em suas artimanhas. Além disso, se nossa
memória está aplicada na memorização daqueles textos, já tan
tas vezes repassados, mas ainda não totalmente compreendidos,
é porque, talvez, não estivéssemos, no momento da leitura, com
a necessária liberdade de espírito. Mais tarde, contudo, liberados
de qualquer solicitação exterior, e no silêncio da noite, esse
sentido oculto, nos será revelado durante o sono pelo Senhor.
11 - Os múltiplos sentidos da Sagrada Escritura
À medida que, através daquele estudo, nosso espírito se
renova, também a Escritura parece se apresentar sob outro
aspecto, e a beleza das coisas sagradas e a compreensão de seu
sentido mais profundo começam também a se desvendar para
nós. Na realidade, ela se ajusta à capacidade da inteligência
humana que está a perscrutá-la. Ao homem carnal, ela aparece
com um sentido terreno, mas ao homem espiritual, apresenta-se
com o sentido divino. Por isso, aqueles que anteriormente a
viam envolta em nuvens espessas, não são capazes de lhe sondar
as subtilezas e lhe admirar a luminosidade.
Um exemplo poderá esclarecer ainda mais essa verdade.
1 98 Abade Nesteros
Para isso, que me sej a permitido citar um único testemunho da
lei, que nos irá mostrar que todos os preceitos divinos, sem
exceção, se aplicam a todo o gênero humano, segundo o estado
a que chegou cada um .
Está prescrito na Lei: Não cometereis adultério (Ex 20, 1 4).
O homem carnal, ainda suj eito a paixões vergonhosas, observa
esse mandamento simplesmente ao pé da letra. Mas, aquele que
j á se desvinculou dessa conduta degradante e das afeições im
puras vai observar tal preceito de um modo espiritual. Isto é,
vai procurar libertar-se dos cultos idolátricos, como de qualquer
outra superstição pagã, tais os augúrios e presságios, a ob
servação dos sinais dos dias e dos tempos e das conj ecturas ti
radas de certas palavras ou de certos nomes, que vão conspurcar
a simplicidade de nossa fé. É desse tipo de impureza que se diz
que Jerusalém se maculou, quando o profeta a censura de haver
pecado sobre as colinas elevadas, e à sombra dos bosques
frondosos (Jr 3 ,6).
E Deus, novamente pela boca de seu profeta, a repreende:
Que eles se levantem e te salvem, aqueles que preparam o mapa
do céu e observam os astros, que comunicam a cada mês como
irão as coisas (ls 47, 1 3 ). E, em outro texto, o Senhor também re
prova essa fornicação a seu povo com estas palavras: O espírito
de fornicação os perde e eles se prostituem, afastando-se de
seu Deus (Os 4, 1 2).
Àquele que já se libertou desses dois tipos de impureza,
ainda falta um terceiro que deve evitar e que consiste nas
superstições j udaicas de que fala o Apóstolo: Observais os dias,
os meses, as estações e os anos (Gl 4, 1 0), e ainda adverte: Por
que vos submeteis a proibições do tipo: Não pegues, não proves,
não toques! (Cl 2,2 1 ).
Sem dúvida esse texto se refere a superstições legais;
portanto, se alguém as seguir, irá se separar do Cristo e não se-
A Ciência Espiritual 1 99
rá digno de ouvir as palavras do Apóstolo: Fui eu que vos des
posei a um único esposo, o Cristo, apresentando-vos a ele como
uma virgem pura (2Cor 1 1 ,2).
Ao contrário, serão dirigidas a ele, estas outras palavras
do mesmo Apóstolo: Receio, porém, que como Evafoi enganada
pela astúcia da serpente, assim também vossos pensamentos
sejam desviados da simplicidade e da pureza exigidas para o
seguimento de Cristo (2Cor 1 1 ,3).
Quem tiver conseguido escapar à sordidez de tal fornicação
deverá, além disso, se preservar da quarta impureza, que é o
adultério, referente à profissão herética, assim anunciada pelo
Apóstolo: Sei que, após minha partida, surgirão entre vós lobos
ferozes que não pouparão o rebanho. Além disso, do vosso
próprio meio, aparecerão homens com doutrinas perversas que
arrastarão discípulos atrás de si (At 20,29-3 0).
Quem puder evitar essas faltas deverá temer uma forni
cação ainda mais subtil, que consiste na leviandade e na divagação
do espírito. Não me refiro especialmente aos pensamentos torpes,
mas a qualquer pensamento inútil ou vazio de Deus, que se toma
para o homem perfeito uma vergonhosa impureza.
1 2 - Como podem ser esquecidos os poemas seculares
Germano: No entanto, perturbado no início por grande
emoção, não me foi possível evitar um profundo gemido. Meu
Pai, disse eu, o que acabas de explicar com tantos pormenores,
deixam-me em maior desânimo do que o experimentado até ago
ra. Além das inúmeras misérias que tiranizam geralmente as al
mas frágeis, sinto em mim um outro obstáculo à minha salvação
que consiste na minha cultura literária.
Por medíocre que sej a tal cultura, todavia, ou pelo em
penho de meus mestres, ou por meu interesse pelas leituras, de
tal forma essas ocuparam meu espírito, que este, agora, se en-
200 Abade Nesteros
contra completamente impregnado pelas obras dos poetas, pelas
fábulas frívolas e pelos relatos de combate, com os quais ocupei
o espírito desde minha primeira infância e em minha j uventude.
Até quando me entrego à meditação e à oração, salmodiando
ou implorando o perdão dos pecados, eis que a lembrança incon
veniente dos poemas outrora estudados, de seus heróis e com
bates perturba minha imaginação, como fantasmas que me lu
dibriam a mente, impedindo que minha alma se liberte para a
contemplação das coisas celestes. E, mesmo derramando muitas
lágrimas diariamente, não consigo afugentar tais recordações.
1 3 - Como podemos desembaraçar a alma das dificuldades
Nesteros: O mesmo mal que te faz temer a impossibilidade
de adquirir a pureza de coração, pode servir-te de instrumento
para alcançá-la.
Esse empenho, esse interesse que disseste dedicar ao es
tudo profano, urge, agora, aplicá-los na leitura e na meditação
da Sagrada Escritura. Pois teu espírito ficará necessariamente
ocupado com tais frivolidades literárias, até que as tenhas
afugentado por novos estudos. Todavia, substituindo aqueles
poemas efêmeros e terrestres, tua mente será capaz de produzir
frutos espirituais e divinos.
Conseguindo, porém, que essas idéias novas se enraízem
profundamente em teu espírito e se transformem em seu alimento,
aqueles pensamentos anteriores pouco a pouco se irão dissipar
e acabarão por desaparecer. O espírito do homem não pode ficar
vazio de pensamentos e, enquanto não se ocupar com coisas
espirituais, será inevitável que se embarace com o que aprendeu
anteriormente. Se não encontrar interesses novos aos quais pos
sa recorrer e dedicar-se, será impossível que não se vincule de
novo às idéias que o ocuparam e nas quais meditou assiduamen
te desde a infância.
A Ciência Espiritual 20 1
Assim, para que a ciência espiritual se firme com solidez
em ti e para que não sej a algo de efêmero em tua vida, como
acontece com aqueles que não se empenham na própria instru
ção, mas que apenas se deixam influenciar superficialmente pelo
ensinamento de outros, à semelhança dos que aspiram um leve
perfume exalado no ar, é indispensável, para que tal ciência
penetre no âmago de tua alma e aí permaneça visível e indelével,
observar, com toda a solicitude, o seguinte procedimento :
quando, durante uma conferência, for tratado um assunto que
conheces com perfeição, nunca escutes com desdém aquilo que
j á sabes, ao contrário, aceita-o com agrado em teu coração,
com aquele interesse e respeito que sempre merece a palavra de
Deus. Assim deves agir, quer estej as ouvindo quer estej as
anunciando a desej ável palavra de salvação.
Por mais freqüente que seja a exposição das coisas sa
gradas, uma alma, que de fato estej a sedenta da verdadeira
ciência, j amais se sentirá saciada ou aborrecida com a sua
repetição. Ao contrário, ela lhe parecerá sempre inédita e cada
dia mais desej ável. Assim, quanto mais a alma se alimentar
daquela palavra, mais ávida ficará por sua escuta e, portanto, a
usará para firmar-se cada vez mais nas verdades que aprendeu.
Um sinal evidente de uma alma tíbia e orgulhosa consiste
em receber com indiferença e fastio o remédio oferecido pelas
palavras de salvação, por mais assídua que sej a a freqüência
com que as escuta. Como diz a Escritura: Quem tem o apetite
saciado, calca aos pés o favo de mel; para o faminto, porém, o
amargo parece doce (Pr 27,7 - LXX).
Se acolheres com zelo tais ensinamentos, se os esconderes
no íntimo do coração, e os meditares em silêncio, no futuro,
amadurecidos em profundas reflexões e aperfeiçoados na
tranqüilidade da paciência, serão esses semelhantes a certos
vinhos generosos e aromáticos capazes de alegrar o coração do
homem.
202 Abade Nesteros
Podes então derramá-los do receptáculo de tua alma como
precioso licor, e eles então irão fluir de tua experiência, como
de um manancial perene, suas águas, impregnadas de virtudes,
distribuídas em canais permanentes e inesgotáveis.
Irá suceder, assim, o que os Provérbios anunciam a res
peito do homem que desse modo observou o que lhe foi ensi
nado: Bebe a água do teu poço e das correntes de tua cisterna.
Derramar-se-ão tuasfontes porfora e teus arroios nas ruas (Pr
5 , 1 5 - 1 6 - LXX).
E, de acordo com a palavra do profeta Isaías: Serás como
um jardim bem irrigado, como um manancial de águas ines
gotáveis. Reerguerás as ruínas antigas, reedificarás sobre os
alicerces seculares; chamar-le-ão o reparador das brechas, o
restaurador das moradias em ruínas (Is 58, 1 1 - 1 2).
Também te será dada a bem-aventurança prometida pelo
mesmo profeta: Aquele que te instrui não se esconderá mais, e
verás com teus olhos aquele que te ensina. Ouvirás com teus
ouvidos estas palavras: É aqui o caminho, anda por ele, sem te
desviares, quer para a direita, quer para a esquerda (Is 30,20-
2 1 ).
Acontecerá, assim, que não só a orientação de teu coração
e seu empenho, como também as distrações e desvios de teu
pensamento transformar-se-ão numa santa e contínua meditação
da lei divina.
1 4 - A alma não purificada é incapaz de dar ou receber a ciên
cia espiritual
Como j á dissemos, é impossível conhecer ou ensinar tais
coisas a menos que delas se tenha uma real experiência. Como
alguém, sem tal conhecimento, poderia conceber essa ciência e
também comunicá-la? Pois, caso tenha a presunção de discor
rer sobre esse assunto, sua palavra seria vazia, ineficaz e chegaria
A Ciência Espiritual 203
aos ouvidos dos que o escutam sem lhes penetrar o coração,
pois não estaria apoiada nas boas obras, nem brotaria do tesouro
de uma boa consciência uma vez que se trata do melancólico
fruto da negligência e da estéril vaidade.
De fato, é impossível a uma alma impura adquirir a ver
dadeira ciência espiritual, por maior que seja sua assiduidade à
leitura. Ninguém confiaria a um vaso infecto um perfume nobre,
um mel excelente, um licor precioso. Pois seria muito mais fácil
ao vaso, já corrompido por uma exalação desagradável, estra
gar o perfume, do que o perfume comunicar ao vaso qualquer
aroma ou suavidade. Pois o que é puro se corrompe muito mais
rapidamente, do que se purifica o que já está corrompido. As
sim se o vaso de nosso coração já não estiver completamente
purificado da contaminação fétida dos vícios, ele não será digno
de acolher o perfume da bênção, que o profeta compara ao óleo
que desce da cabeça até a barba de Aarão e que escorre sobre
as fímbrias de sua veste (SI 1 32,2).
Na verdade, esse coração não poderá conservar inalterada
a ciência espiritual ou as palavras da Escritura, pois: Suas pala
vras são mais doces do que o mel, o mel que sai dos favos (SI
1 8, 1 1 ).
De fato, que relação poderia haver entre a justiça e a
iniqüidade, que sociedade, entre a luz e as trevas, que acordo,
entre o Cristo e Belial? (2Cor 6, 1 4- 1 5).
15 Objeção: Muitos que não têm o coração puro possuem a
-
ciência; ao contrário, muitos santos não a possuem
Germano: Essa afirmação não nos parece fundada sobre
a verdade, nem apoiada em raciocínio assaz plausível. Todos os
que recusam a fé em Cristo ou a corrompem, por opiniões
inverídicas e falsidade dogmática, não têm o coração puro.
Como, pois, acontece que muitos judeus, heréticos, e mesmo
204 Abade Nesteros
católicos, enredados em muitos vícios, conseguem um perfeito
conhecimento das Escrituras, enquanto uma multidão incal
culável de santos, todos com o coração perfeitamente purifi
cado de qualquer mácula, praticam uma religião que se satisfaz
com a simplicidade da fé e vivem na ignorância dos segredos de
uma ciência mais profunda?
Como se sustenta, então, essa conclusão de que a ciência
espiritual está condicionada à pureza do coração?
1 6 Os homens maus não podem possuir a verdadeira ciência
-
Nesteros: Não se pode compreender bem minha doutrina
se não forem diligentemente examinadas todas as suas ilações.
Já nos referimos a esse tipo de pessoas, que nada mais têm que
certa loquacidade no discurso, certa desenvoltura de expressão,
mas, por outro lado , são incapazes de penetrar o sentido
profundo e os mistérios que encerra a Escritura. Pois a verdadeira
ciência só é possuída pelos verdadeiros adoradores de Deus e
não pelo povo do qual se disse : Escutai bem, povo insensato e
sem inteligência: vós que tendes olhos para não ver e ouvidos
para não ouvir (Jr 5,2 1 ). E de novo : Porque rejeitaste a ciência,
eu te rejeitarei por minha vez, e não suportarei que desempenhes
as funções de meu sacerdócio (Os 4,6). Pois j á foi dito que todos
os tesouros da sabedoria e da ciência estão ocultos em Cristo
(C! 2,3). Então, como acreditar que aquele que não se esforçou
na busca do Cristo, ou que, após tê-lo encontrado, blasfemou
com boca sacrílega, ou maculou sua fé com obras impuras possa
ter adquirido a verdadeira ciência? Ora, o Espírito de Deus odeia
a astúcia e não habita em um coração que se escravizou ao
pecado (Sb 1 ,5 e 4).
Assim, não há outro meio de se chegar à ciência espiritual,
senão a conformação à seguinte norma, tão elegantemente ex
pressa por um dos profetas: Semeai para vós a justiça e colhei
A Ciência Espiritual 205
a esperança da vida; acendei para vós as luzes da ciência (Os
1 O, 1 2 - LXX). Primeiramente, cumpre semear por causa da justiça,
vale dizer, propagar nossa perfeição ascética mediante as obras
de justiça. Depois, convém que colhamos os frutos das virtudes
espirituais, expulsando os vícios carnais. Por tal método po
deremos acender em nós a luz da ciência. O salmista também
nos manda seguir esse critério, ao ensinar: Feliz o homem sem
pecado em seu caminho, que na lei do Senhor Deus vai pro
gredindo! Bem-aventurado os que perscrutam seus preceitos.
Portanto, ele não começou por dizer: Felizes os que perscrutam
seus preceitos para acrescentar: Feliz o homem sem pecado em
seu caminho, mas começa dizendo : Feliz o homem sem pecado
em seu caminho (SI 1 1 8, 1 -2). Mostrando, assim, com clareza,
que ninguém pode compreender a palavra de Deus, a menos
que, purificado, j á não tenha trilhado o caminho da conversão
em Cristo.
Os homens que mencionastes não estão em condições de
possuir aquela ciência negada aos que não se empenharam na
pureza de coração. Conhecem, porém, uma ciência falsa que
não merece esse nome e que é dita 'l!JEUÔ<..Óvu �-tov. É a essa
-
que o bem-aventurado Apóstolo se refere: Timóteo, guarda o
depósito, evita o palavreado vão e ímpio, e as contradições de
uma falsa ciência ( 1 Tm 6,20). Que em grego, assim se escreve:
-ràç àvn8ÉmÇ Lll Ç 'l!JcUÔWVÚ !!OU YVWOEWÇ .
Quanto às pessoas que parecem ter adquirido uma certa
ciência e que se aplicam ao estudo da Sagrada Escritura, sem
abandonar os vícios carnais, são muito bem definidas pelos
Provérbios, na seguinte passagem: Um anel de ouro no focinho
de um porco, tal é a mulher formosa e insensata (Pr 1 1 ,22 -
LXX). Pois, de que serviria a um homem conseguir adornar-se
com a beleza das palavras escriturísticas, se acaba por atolar-se
na estrada dos vícios, maculando suas obras e seus sentidos no
206 Abade Nesteros
lodo das paixões? A ciência que é um ornamento para quem a
usa corretamente, ao contrário, cobre de vergonha os que a profa
nam. Por isso, para tais pessoas não somente não serve de adorno
como ainda pode levá-las à maior ignomínia pela sordidez da
lama em que chafurdam.
Pois o louvor não é belo na boca do pecador (Sir 1 5 ,9). E
Deus também interroga, pelo profeta: Como ousas repetir os
meus preceitos e trazer minha Aliança em tua boca? (SI 49, 1 6).
Os Provérbios aludem a essas almas que não se fixaram no temor
do Senhor, - o qual se define como o fundamento da ciência e
da sabedoria - (Pr 1 5 ,33 - LXX). Podem até se ter esforçado para
descobrir o sentido das Escrituras por uma meditação constante,
no entanto : Para que serve o dinheiro na mão do insensato,
uma vez que ele não pode comprar a sabedoria? (Pr 1 7, 1 6 -
LXX).
A verdadeira ciência espiritual de que tratamos é tão
diferente da ciência profana, com tanta freqüência maculada pelo
vício, que muitas vezes a vimos brilhar em pessoas simples que
ignoravam a eloqüência e mal sabiam ler. É o que foi comprovado
a respeito dos apóstolos e de tantos santos homens. Em nada se
assemelhavam esses a certas árvores cuj a vegetação luxuriante
as cobre de folhas inúteis. Eles, ao contrário, vergam sob o peso
dos verdadeiros frutos da ciência espiritual. É a respeito de tais
homens que está escrito nos Atos dos Apóstolos: Os interroga
dores ficavam admirados vendo a segurança com que Pedro e
João falavam, pois sabiam que eram pessoas simples e sem
instrução (At 4, 1 3) .
Portanto, se desej as respirar aquele perfume incorruptível,
empenha-te, primeiro, com todas as tuas forças para obter do
Senhor uma castidade perfeita. Pois ninguém alcança a ciência
espiritual se j á não dominou as paixões sensuais e, sobretudo,
os desej os voluptuosos. Pois, no coração do homem bom re
pousa a sabedoria (Pr 1 4,33). E mais: Quem teme o Senhor en-
A Ciência Espiritual 207
contrará a ciência e a justiça (Sir 32,20).
O bem-aventurado Apóstolo também nos ensina que pa
ra chegar à ciência é preciso observar a ordem prescrita. Na
verdade, ao querer enumerar todas as virtudes, explicando, ain
da, a sua sucessão, isto é, a relação que existe entre elas, indi
cando-nos a origem e a conseqüência existente entre essas, assim
escreve: Pelas vigílias, pelosjejuns, pela castidade, pela ciência,
pela longanimidade, pela bondade, pelo Espírito Santo e pela
caridade sincera (2Cor 6,5-6).
Nessa ordem em que apresenta as virtudes, o Apóstolo
pretende demonstrar que existe uma seqüência entre elas, pois
das vigílias e dos j ejuns se deve passar à castidade; da castidade
à ciência; da ciência à longanimidade; da longanimidade à
bondade, da bondade ao Espírito Santo; do Espírito Santo à
recompensa de uma caridade perfeita.
Quando, mediante essa doutrina e essa ordem chegares à
ciência espiritual, certamente possuirás, como j á afirmei, uma
doutrina não estéril e insegura, mas vivenciada e fértil em frutos.
Confiarás, então, a semente da palavra de salvação ao coração
de teus ouvintes, e o orvalho abundante do Espírito Santo a fará
germinar e frutificar, segundo a promessa do profeta: O Senhor
dará chuvas às sementes onde quer que a semeares, e o pão
que produzirá será farto e substancial (ls 30,23).
1 7 - A quem se deve revelar o caminho da perfeição
Cuida, também, para que, ao teres adquirido tais conheci
mentos pelo estudo e por uma laboriosa experiência e, ao haveres
alcançado a idade madura, não te deixes levar, por um desejo de
vanglória, comunicando-os ao acaso a homens indignos por sua
maneira de viver. Irias, assim, incorrer na culpa indicada pelo
sapientíssimo Salomão: Não conspires, ó ímpio, contra a casa
do justo, nem te deixes seduzir porque estás saciado (Pr 24, 1 5
208 Abade Nesteros
- LXX), e também: Não convém ao insensato viver entre delícias
(Pr 1 9, 1 0 - LXX). E, ainda: Não há necessidade de sabedoria
ondefalta o bom senso (Pr 1 8,2 - LXX). E, mais: O insensato não
gosta das palavras de prudência, porque embora compreenda
não obedece (Pr 29, 1 9 - LXX) .
Também está escrito : Não fales ao ouvido do insensato,
para que ele não ridicularize a sabedoria de tuas palavras (Pr
23 ,9 - LXX). E ainda: Não deis as coisas santas aos cães, nem
lanceis as vossas pérolas aos porcos, para não acontecer que
as pisem aos pés e, acometendo-vos, vos despedacem (Mt 7,6).
Assim, é necessário que escondas aos indignos os mistérios
das verdades espirituais para poderes cantar com Davi, total
mente seguro : Guardo em meu coração vossas palavras, afim
de não pecar contra vós (SI 1 1 8, 1 1 )
.
Caso me perguntes a quem deves ensinar os segredos da
Sagrada Escritura, o sapientíssimo Salomão te ensinará: Dai a
bebida forte àquele que desfalece, o vinho àquele que tem
amargura, que ele beba e esquecerá sua miséria e já não se
lembrará de suas mágoas (Pr 3 1 ,6-7 - LXX). Vale dizer: àqueles
cuj a compunção pela vida passada abate pela mágoa e a tristeza,
derrama com fartura a alegria da ciência espiritual, à semelhança
de um vinho que alegra o coração do homem (Sl 1 03 , 1 5). Re
anima-os por palavras salutares para que não caiam no deses
pero, e não se vej am esmagados pelo peso da angústia e não su
cumbam a uma excessiva tristeza (2Cor 2,7).
Quanto aos que vivem na tibieza e na negligência, nenhum
sofrimento lhes atinge o coração, pois deles é dito: Aquele que
vive suavemente e sem sofrimento acabará na miséria (Pr 1 4,23
- LXX).
Então, com o maior zelo que te for possível, evita deixar
te levar pelo amor da vanglória, a fim de que possas estar incluído
no elogio que o profeta faz de quem não empresta seu dinheiro
A Ciência Espiritual 209
com usura (Sl 1 4,5). A palavra do Senhor é assim definida pela
Escritura: As palavras do Senhor são verdadeiras como a prata
totalmente depurada, sete vezes depurada pelo fogo (Sl 1 1 ,7).
Logo, aquele que a espalha por amor ao elogio dos homens
procede como quem empresta seu dinheiro com usura. Portan
to, não só não merecerá qualquer elogio, como ainda atrairá
para si os suplícios eternos.
Na verdade, preferiu dissipar o dinheiro de seu Senhor
para garantir uma vantagem temporal, a colocá-lo para render,
como está escrito: Devias ter depositado meu dinheiro no banco,
para que, ao voltar, eu recebesse com juros o que me pertence
(Mt 25,27).
1 8 - As causas que tornam infrutífera a doutrina espiritual
A ineficácia da doutrina espiritual resulta de duas causas.
Ou quem ensina não tem experiência do que desej a comunicar,
e suas palavras, portanto, não passam de um ruído vazio para o
auditório, ou seus ouvintes são perversos e cheios de vícios com
um coração endurecido que se fecha à salutar e santa doutrina
do homem espiritual. É a respeito de tais pessoas que o profeta
declara: Embota o coração deste povo, ensurdece-lhe os ouvidos,
fecha-lhes os olhos, de modo que não veja nada com os olhos,
não ouça com os ouvidos, para que não suceda que seu coração
venha a compreender, que ele se converta e consiga a cura (Is
6, 1 0 - LXX).
19 Mesmo os indignos, às vezes, recebem a graça da ciência
-
espiritual
Todavia, a admirável prodigalidade de nosso Deus, que
deseja a salvação de todos os homens e também que cheguem
ao conhecimento da verdade ( 1 Tm 2,4), permite, às vezes, que
210 Abade Nesteros
mesmo aquele que, por não ter uma vivência irrepreensível,
não se tomou digno de pregar o Evangelho, consiga a graça
da ciência espiritual, para a salvação de muitos outros.
Isso nos leva, naturalmente, a explicar em uma conferência
semelhante a esta, os diversos modos pelos quais o Senhor
concede o carisma das curas para expulsão dos demônios. Mas
reservemos tal instrução para esta tarde, depois que tivermos
tomado algum alimento. Pois a alma recebe sempre, com mais
facilidade, o que lhe é dado paulatinamente e sem excessiva fadiga
corporal.
XV
SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE NESTEROS
Os C ARISMAS DiviNos
1 Discurso do abade Nesteros sobre a tríplice causa dos mi
-
lagres
Após a sinaxe da tarde, sentamo-nos ambos sobre duas
esteiras, como é costume entre os monges, e ficamos à espera
da instrução prometida.
Por respeito ao venerável ancião, durante algum tempo,
permanecemos em silêncio. O abade Nesteros, porém, tomou a
iniciativa de rompê-lo e o fez com o seguinte discurso: "A ordem
dos argumentos da palestra anterior exige que examinemos a
natureza dos carismas espirituais. Ensina-nos a tradição dos
antigos que tais carismas podem se revestir de três formas. Na
verdade, o primeiro motivo do dom da cura está no fato de que
esse carisma acompanha e mostra os méritos e a santidade dos
justos e eleitos. Os apóstolos, por exemplo, e multidões de santos
operaram milagres e prodígios pelo poder do Senhor que lhes
ordenou: Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os
leprosos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça
deveis dar (Mt I 0,8).
O segundo motivo provém do fato de que Deus, para a
edificação da Igreja e para recompensar a fé dos enfermos, e
também daqueles que apresentam seus doentes, concede, por
212 Abade Nesteros
vezes, a realização de milagres, embora através de intermediários
que amiúde são pessoas pecadoras ou pouco dignas. Sobre tais
pessoas o Senhor fala no Evangelho: Naquele dia, muitos me
dirão: Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos?
Não foi em teu nome que expulsamos demônios? E não foi em
teu nome que fizemos muitos milagres? Então, eu lhes direi:
Jamais vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a
iniqüidade (Mt 7,22-23). Ao contrário, quando falta a fé aos do
entes ou àqueles que os apresentam, Deus não permite, mesmo
aos santos, a realização do milagre. O evangelista Lucas comenta
a esse respeito : E Jesus não podia realizar ali nenhum milagre
por causa da incredulidade deles (Me 6,5-6). 1
Foi nessa mesma ocasião que o Senhor declarou: Havia
igualmente muitos leprosos em Israel no tempo do profeta
Eliseu, todavia, nenhum deles foi purificado a não ser o sírio
Naamã (Lc 4,27).
Enfim, o terceiro motivo das curas deve-se, tão-somente,
a um j ogo de ilusões e artificios do demônio que, mediante esses
sinais, pretende fazer com que pessoas envolvidas em crimes
manifestos sejam admiradas e consideradas como servos de Deus.
Para os espíritos malignos esse é um meio de persuadir os
outros a que imitem seus próprios vícios. Assim, abre-se uma
porta à crítica e compromete-se a própria santidade da religião.
No mínimo, o que poderá acontecer a quem se j ulga com o dom
da cura e tem o coração inflado pelo orgulho é tomar-se vítima
de uma queda por demais deplorável.
Acontece, assim, que os demônios invocam o nome daque
las pessoas cuj a completa ausência de santidade e de qualquer
fruto espiritual eles bem conhecem e simulam que estão sendo
1 Esta citação escriturística aqui atribuída a Lc na verdade pertence a Me
6,5-6.
Os Carismas Divinos 213
afugentados daqueles corpos, que j á lhes pertenciam, como se
seus méritos os queimassem de maneira insuportável.
Acerca de tais pessoas, porém, é dito no Deuteronômio :
Caso se levante do meio de ti um profeta ou um visionário,
anunciando-te um sinal ou um prodígio, e suceder o sinal ou o
prodígio que anunciou e te disser: vamos seguir outros deuses
- que te são desconhecidos - e prestemos-lhes culto, tu não
ouvirás as palavras desse profeta ou desse visionário, porque o
Senhor vosso Deus vos põe à prova para ver se o amais de todo
o vosso coração e de toda a vossa alma (Dt 1 3 , 1 -3). E também
está escrito no Evangelho : Surgirão falsos Cristas e falsos
profetas, que apresentarão grandes sinais e prodígios de modo
a enganar, se possível, até mesmo os eleitos (Mt 24,24).
2 Em que devemos admirar os santos
-
Assim, j amais devemos admirar as pessoas por causa de
seus milagres, mas, de preferência, examinar se elas se tomaram
perfeitas pela correção de seus vícios e pela conversão de seus
costumes. Isso não se obtém pela fé professada por um outro
ou por motivos exteriores, mas pela graça dispensada a cada
pessoa em proporção com seu zelo.
Tal é a ciência prática a que o Apóstolo dá o nome de
caridade e que, de acordo com sua autoridade, devemo s pre ferir
às línguas dos anjos e dos homens, e mesmo à plenitude da fé,
capaz de transportar montanhas. Segundo o mesmo Apóstolo,
tal virtude é superior a todas as ciências e a todas as profecias,
inclusive à distribuição dos bens aos pobres ou à própria glória
do martírio (cf. 1 Cor 1 3 , 1 -3). Pois, após ter enumerado todos os
carismas, Paulo declara: A um o Espírito dá a mensagem de
sabedoria, a outro a palavra de ciência, segundo o mesmo Es
pírito, a outro o mesmo Espírito dá afé, a outro, ainda, o único
e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro o po-
214 Abade Nesteros
der de operar milagres ( 1 Cor 1 2,8- 1 0) . No entanto, ao falar sobre
a caridade, o Apóstolo a coloca acima de todos os dons, decla
rando : Passo a mostrar-vos um caminho superior a todos os
outros ( 1 Cor 1 2,3 1 ) .
Assim, ele nos mostra com a máxima clareza que a suma
perfeição e a bem-aventurança não consistem em operar mara
vilhas, mas dependem da pureza da caridade. De fato, todos os
outros carismas estão destinados a desaparecer no fim dos tem
pos, enquanto a caridade irá permanecer eternamente (cf. 1 Cor
1 3 ,8). Por isso nunca vimos nossos Pais muito empenhados na
realização de milagres.
Ao contrário, mesmo quando o Espírito Santo lhes havia
concedido essa graça, nunca desejavam exercer tal carisma, a
menos que a isso os obrigasse uma necessidade extrema e
inevitável.
3 - O morto ressuscitado pelo abade Macário
É o caso de nos lembrarmos do abade Macário, o primeiro
monge a habitar o deserto da Cétia e que, certo dia, ressuscitou
um morto.
Com efeito, certo herege, seguidor da pérfida doutrina de
Eunômio, tentava perverter, pela subtileza de sua dialética, a
sinceridade da fé de alguns homens, chegando mesmo a iludir
muitos deles. Foi então que determinados católicos, profun
damente abalados por aquela gravíssima subversão, suplicaram
ao abade Macário que viesse libertar a simplicidade da fé dos
egípcios daquele naufrágio de infidelidade.
À chegada de Macário, o herético procurou vencer aquele
homem simples e ignorante, atacando-o com os artifícios de sua
dialética e as dificuldades dos silogismos aristotélicos. O bem
aventurado Macário, porém, interrompeu imediatamente todo
aquele falatório com uma palavra apostólica: O Reino de Deus
Os Carismas Divinos 215
não consiste em palavras, mas em poder ( l Cor 4,20). Vamos,
pois, até as sepulturas e invoquemos o nome do Senhor sobre o
primeiro morto que encontrarmos. Mostraremos, assim, nossa
fé através das obras, como está escrito (cf. Tg 2, 1 4), e o teste
munho divino irá indicar com toda a evidência onde estão as
marcas da verdadeira fé. Não será, pois, mediante disputas vazias,
mas por meio do poder dos sinais e do julgamento daquele a
quem não se pode enganar que manifestaremos a verdadeira fé.
Ouvindo tais palavras, o herético constrangido diante do povo
que o cercava, simula imediatamente aceitar a condição que lhe
é proposta, assegurando que se submeteria à prova exigida no
dia seguinte.
No dia marcado, todos afluem ao lugar designado, ávidos
por contemplar o espetáculo. Contudo o herege, aterrorizado
pela consciência de sua infidelidade, foge, abandonando até o
próprio Egito.
O bem-aventurado Macário, em companhia do povo reu
nido, após tê-lo esperado até a hora nona, compreendeu que ele
havia evitado aquele encontro, em virtude de sua má consciên
cia. Tomando, então, consigo aquela multidão, que o herege
arrastara para o mau caminho, dirigiu-se ao cemitério em que o
encontro fora aprazado.
No Egito existe um costume, adotado por seu s habitantes
em conseqüência das inundações do rio Nilo que, durante grande
parte do ano, deixam toda a extensão territorial c o berta pelas
águas, como se fosse um mar imenso, por onde só s e pode tran
sitar de barco. Assim, por não permitirem as águas que os mortos
sej am sepultados na planície, após serem embalsamados com
perfumes, são transportados para grutas que se enc ontram em
lugares mais elevados que o resto do solo. Sem ess e cuidado, a
permanente umidade ali existente impediria cavar a terra para a
sepultura, e a força da inundação rejeitaria logo os corpo s , aca-
216 Abade Nesteros
bando por arrastá-los.
O bem-aventurado Macário, tendo parado junto a uma
das sepulturas mais antigas, assim falou: "Homem, se aquele
herege, aquele filho da perdição tivesse vindo aqui comigo, e se
eu te houvesse chamado, invocando o nome de Cristo, tu te
terias levantado diante de toda esta multidão que quase foi
pervertida por sua heresia?" O morto, levantando-se, respondeu
afirmativamente com um "sim".
O abade Macário, então, interrogou-o a respeito de sua
vida: quem tinha sido, quando vivera e se conhecera o nome de
Cristo. O morto respondeu que vivera na época dos mais antigos
reis e que nunca ouvira o nome de Cristo. "Dorme em paz,
retrucou Macário, para seres ressuscitado com todos os outros,
no fim dos tempos e segundo tua condição".
Assim, aquela virtude e aquela graça, se dependessem
apenas do venerável abade, teriam permanecido ocultas, se a
necessidade de toda a província e se seu devotamento e sincero
amor ao Cristo não o tivessem impelido a realizar tal milagre.
Pois, claro que ele não o fez por ostentação da vanglória, mas
pelo amor do Cristo e para o bem de todo o povo.
O Livro dos Reis nos mostra o bem-aventurado Elias
agindo do mesmo modo, para salvar a fé de todo um povo,
colocada em perigo pelos artifícios dos falsos profetas. Por esse
motivo, pediu que o fogo do céu descesse sobre as vítimas co
locadas sobre a lenha.
4 - O milagre realizado pelo abade Abraão sobre o seio de uma
mulher
Convém lembrar ainda os grandes feitos do abade Abraão,
cognominado ánÀouç, isto é, o simples, em virtude de sua
simplicidade e inocência.
Tendo ele saído do deserto a fim de fazer uma colheita no
Os Carismas Divinos 217
Egito, durante os dias da Qüinquagésima, isto é, os cinqüenta
dias que seguem a Páscoa, foi abordado por uma mulher que
levava nos braços uma criança semimorta por falta de leite. Aos
prantos, a mulher começou a suplicá-lo. Apiedado, o venerável
ancião fê-la beber um copo d'água sobre o qual fizera o sinal da
cruz. Mal acabara ela de beber a água, que de seu seio, antes
ressequido, começou a j orrar leite com fartura.
5 - A cura de um coxo pelo mesmo abade Abraão
O mesmo abade, indo certa vez a uma aldeia, foi cercado
por um grupo de pessoas que se divertiam à sua custa. Para
escarnecê-lo, mostraram-lhe um homem cuj o j oelho contraído
j á há muitos anos, impedia de andar, obrigando-o a rastej ar-se.
"Abade Abraão, disseram para tentá-lo os que o ridiculariza
vam, se és o servo de Deus, restitui a esse homem a antiga saúde,
para que possamos crer que o nome de Cristo, que tu cultuas,
não é invocado por ti em vão".
Imediatamente o abade, inclinando-se, segurou o pé
enrij ecido, e esticou-o, invocando o nome de Cristo. Ao contato
de sua mão, o joelho ressequido e curvado endireitou-se, e o
enfermo, reconquistando o uso de suas pernas, j á há muito
esquecido, começou a andar cheio de alegria.
6 - Não devemosjulgar os méritos de umapessoa pelos milagres
que realiza
Assim, aqueles homens veneráveis não se vangloriavam
pela realização de tais prodígios. Ao contrário, confessavam que
seus méritos pessoais não prevaleciam e que estavam atuando
unicamente em virtude da misericórdia do Senhor. Se eram
admirados por seus milagres, recusavam a glória humana, citando
as palavras do Apóstolo : Homens, por que vos admirais assim ?
218 Abade Nesteros
Ou por que fixais os olhos em nós, como se por nosso próprio
poder ou piedade tivéssemosfeito este homem andar? (At 3 , 1 2).
Segundo aqueles santos varões, não deviam ser consi
derados por tais milagres, mas de acordo com as virtudes que
haviam adquirido à custa de empenho e operosidade.
Acontece, porém, como acima j á havíamos mencionado,
que homens de espírito perverso e de fé corrompida podem
expulsar demônios e realizar milagres em nome do Senhor. Os
apóstolos se queixaram ao ver essas coisas, dizendo : Mestre,
vimos alguém expulsar demônios em teu nome e quisemos
impedi-lo porque ele não te segue conosco (Lc 9,49) . Jesus,
porém, disse: Não o impeçais, pois quem não é contra vós, está
a vosso favor (Lc 9,50). Mas, quando, no fim dos tempos tais
pessoas disserem: Senhor, Senhor, não foi em teu nome que
profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em teu
nome que fizemos muitos milagres? (Mt 7,22). Jesus atesta que
responderá: Nunca vos conheci, afastai-vos de mim, vós que
praticais a iniqüidade (Mt 7,23 ).
Assim, para que esses homens, aos quais ele próprio con
cedeu o dom dos milagres, não se envaideçam por tal carisma, o
Senhor adverte com as seguintes palavras: Não vos alegreis
porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, por
que vossos nomes estão inscritos no céu (Lc 1 0,20).
7 - Para os homens carismáticos, a virtude não consiste em
operar prodígios, mas em praticar a humildade
Enfim, o autor de todos os milagres e prodígios, ao convi
dar os discípulos para que acolham sua doutrina, indica ele
próprio, com a maior clareza, a seus mais fiéis e verdadeiros
seguidores o que devem observar com o mais profundo zelo.
Vinde e aprendei de mim não a expulsar demônios pelo poder
do alto, não a curar leprosos, não a restituir a vista aos cegos,
Os Carismas Divinos 219
não a ressuscitar os mortos, porque, embora algumas vezes eu
realize tais milagres por intermédio de meus servidores, não cabe
à condição humana participar da glória devida unicamente a
Deus. Vós, porém, insiste o Senhor: aprendei de mim porque
sou manso e humilde de coração (Mt 1 1 ,28-29) .
Eis, pois, o que todos são capazes de aprender e praticar.
Quanto a fazer milagres e sinais, nem sempre é necessário, nem
convém a todos, nem a todos é concedido.
A humildade, portanto, é a mestra de todas as virtudes, o
fundamento inabalável do edificio celeste, o dom por excelência
do Salvador. E só aquele que procura seguir o Senhor, não em
seu poderio e seus prodígios, mas em sua humildade e paciência,
é capaz de realizar, sem perigo de envaidecimento, todos os
milagres operados por seu Mestre. Quanto àquele que se mostra
impaciente para comandar os espíritos malignos, curar os doentes
e se fazer admirar pelo povo pelos prodígios que realiza, embora
em suas operações invoque o nome de Cristo, esse não pode ser
seu discípulo porque sua alma soberba não segue o Mestre da
humildade.
O Salvador, no momento de voltar ao Pai, queria deixar
para os discípulos uma espécie de testamento e por isso lhes dis
se: Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos ou
tros. Como vos amei, amai-vos também uns aos outros (Jo 1 3 ,
34). E acrescentou em seguida: Nisso reconhecerão todos que
sois meus discípulos, se tiverdes amor unspelos outros (Jo 1 3 ,35).
E Jesus está certo ao advertir que sem a humildade e a
mansidão não se pode chegar a esse amor.
Por isso, nossos antepassados j amais julgaram perfeitos e
imunes à vanglória os monges que se gabavam diante dos homens
de seus carismas de exorcistas e, cheios de jactância e ostentação,
divulgavam entre seus admiradores a graça que eles haviam mere
cido ou que acreditavam ter recebido.
220 Abade Nesteros
Mas, na verdade, aquele que se apóia na mentira alimen
ta-se de vento e persegue um pássaro a voar (Pr 1 0,4). Indubitavel
mente, acontecer-lhe-á o que está escrito nos Provérbios: Assim
como se reconhecem com facilidade os ventos, as nuvens e a
chuva, também se reconhecerá o que se glorifica de um falso
dom (Pr 25, 1 4 - LXX).
Por conseguinte, se alguém operar milagres em nossa
presença, não o devemos louvar por tais sinais, mas pela santi
dade de seus costumes. Não nos interessa indagar se os demônios
lhe são submissos, mas se possui os sinais da caridade de que
nos fala o Apóstolo (cf. I Cor 1 3 ,4ss).
8 - É mais digno de admiração repelir os próprios vícios do
que expulsar demônios dos corpos dos outros
De fato, é um milagre mais admirável extirpar da própria
carne a chama da luxúria que expulsar espíritos impuros dos
corpos alheios; um sinal mais prodigioso conter pela paciência
os impulsos violentos da ira que comandar as potências do ar.
Pois é de maior valia rechaçar do próprio espírito a tristeza
devoradora dos corações, que libertar o corpo de febres e de
outras enfermidades. Enfim, sob muitos aspectos, é uma virtude
superior e mais nobre sanar os males da própria alma do que
curar as doenças alheias. Quanto mais a alma se eleva acima do
corpo, tanto mais sua cura é superior; porque quanto mais é
preciosa e excelente a substância, tanto mais grave e deplorável
seria sua ruína.
9 - Uma vida íntegra é superior à realização de milagres
Foi a respeito dessas curas exteriores que Jesus falou
aos bem-aventurados apóstolos, advertindo-os: Não vos alegreis
porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, porque
Os Carismas Divinos 22 1
vossos nomes estão escritos no céu ( Lc I 0,20).
Pois não foi graças ao poder dos apóstolos que se veri
ficavam as curas, mas pela invocação do nome de Jesus. Por is
so, o Senhor os exortava a que não reivindicassem a bem-aven
turança ou a glória por causa desses sinais devidos exclu
sivamente ao poder de Deus, mas se empenhassem apenas
naquela pureza de vida e de coração que lhes mereceria a
inscrição de seus nomes no céu.
1 O - Revelação sobre a experiência da castidade perfeita
Pelo testemunho de muitos e pelos oráculos divinos,
podemos provar o que dissemos anteriormente. Eis, pois, o que
pensava o bem-aventurado Pafnúcio a respeito dos prodígios
que despertam a admiração e da graça da pureza. Ou, melhor,
sobre o que veio a saber a esse respeito pela revelação de um
anj o . Aquele santo abade passara tantos anos em tão grande
austeridade, que se considerava completamente imune a todas
as armadilhas da concupiscência carnal, tanto mais que sabia
que vencera o demônio em todos os assaltos abertamente
travados contra ele.
Certo dia, desejando preparar, para alguns santos varões
que viriam visitá-lo, uma refeição à base de lentilhas, chamada
athera, uma chama que escapara do fomo queimou-lhe a mão.
Esse incidente contristou-o profundamente, pois dizia con
sigo mesmo : "Por que o fogo me ataca, uma vez que o próprio
demônio j á cessou suas investidas bem mais cruéis contra mim?
No terrível dia do julgamento final, quando o fogo inextinguível
e inquiridor dos méritos de cada um me penetrar, como não me
fará ele sua presa, se esse fogo extrínseco e transitório não me
poupou?"
Perturbado por pensamentos tão tristes, acabou por ador
mecer. Apareceu-lhe então um anjo do Senhor que o interpelou
222 Abade Nesteros
com as seguintes palavras: "Por que estás triste, Pafnúcio? Se o
fogo terreno investe contra ti, é porque a chama de tua concupis
cência interior ainda não está totalmente extinta. Enquanto tais
raízes estiverem vivas dentro de ti, esse fogo terreno não te
deixará usufruir da verdadeira paz. Portanto, só não sentirás
mais suas instigações quando, pela experiência que te mostrarei,
reconheceres que todos os estímulos carnais estão comple
tamente destruídos em tua alma. Vai, pois, e procura uma j ovem
de grande beleza que esteja despida. Se puderes tocá-la, sentindo
teu coração isento de qualquer emoção e, experimentando tua
tranqüilidade interior inabalada, então, o contato com aquela
chama visível te será tão suave e inofensivo como o foi na
fornalha para os três j ovens da Babilônia."
O ancião, abatido por aquela revelação, não se atreveu a
fazer aquela experiência, mas interrogou sua consciência, exa
minou a pureza de seu coração e concluiu que sua castidade
ainda não tinha a perfeição exigida para poder submeter-se àquela
prova.
Não me devo admirar, pensou o ancião, se mesmo após
ter vencido as investidas dos espíritos impuros, eu me ressinta
dos efeitos do fogo que eu j ulgava serem menos cruéis que os
ferocíssimos ataques demoníacos. No entanto, é uma virtude
mais sublime e uma graça mais elevada ser capaz de extinguir a
concupiscência carnal do que subj ugar os assaltos do demônio
ou expulsá-los dos corpos dos possessos, afugentando-os com
o sinal da cruz ou com a invocação do nome do Senhor, por
que os espíritos malignos nos assaltam apenas pelo exterior.
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Aqui o abade Nesteros terminou sua exposição sobre a
verdadeira doutrina dos dons carismáticos, mas ainda continuou
seus ensinamentos, acompanhando-nos até a cela do abade José,
que distava da sua cerca de seis milhas.
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ÍNDICE DAS CONFERÊNCIAS
Vill - SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE SERENO
Os PRINCIPADos
pág. cap.
13 1. A hospitalidade do abade Sereno
14 2. Diversidade que notamos entre os espíritos malignos
14 3. Resposta sobre a multiplicidade de alimentos de que trata
a Sagrada Escritura
17 4. Sobre a dupla opinião que se pode formar no entendi-
mento das Sagradas Escrituras
18 5. A resposta à questão que se propõe deve ser aceita livre-
mente
18 6. Deus nada criou de mau
19 7. A origem dos principados ou potestades
20 8. A queda do diabo e dos anjos
21 9. A queda do demônio começou com a sedução de Eva
22 1 o. Resposta em que se explica a queda do demônio
23 11. A punição de quem engana e de quem se deixa enganar
24 12. São muitos o s demônios e grande é a perturbação que
provocam no mundo
25 13. As potências adversas fomentam entre si as mesmas
hostilidades que empreendem contra os homens
26 1 4. Origem dos termos "principados" e "potências" atribuí-
dos aos espíritos malignos
27 15. Motivo pelo qual as santas virtudes celestes receberam
o nome de anjos e arcanjos
28 1 6. A submissão dos demônios a seus príncipes, segundo a
visão de um irmão
226
29 1 7. A cada homem sempre estão vinculados dois anjos
30 1 8. A diferença da maldade existente nos espíritos que
nos são hostis é provada por dois filósofos
31 19. O s demônios nada podem fazer contra o s homens se,
primeiramente, não se apoderarem de suas mentes
32 20. Indagação sobre os anjos apóstatas que, segundo o
Gênesis, se uniram às filhas dos homens
32 21. Resposta à questão apresentada
36 22. Objeção: Por que se pode imputar como culpa a união
dos descendentes de Seth com as filhas de Caim, se
ainda não fora proibida por uma lei explícita?
37 23 . Desde o início do mundo, os homens são passíveis de
julgamento e de punição pela desobediência à lei na-
tural
39 24. Aqueles que pecaram antes do dilúvio foram castiga-
dos com justiça
40 25 . Como se deve entender a palavra evangélica: O diabo
é mentiroso como seu pai
IX - PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE ISAAC
A ORAÇÃO
pág. cap.
43 1. Introdução à conferência
43 2. Palavras do abade Isaac sobre a qualidade da oração
45 3. De que modo a oração deve tomar-se pura e sincera
46 4. A mobilidade da alma comparada com uma pena ou
com uma pequena asa
47 5. Causas que oneram a alma
49 6. A visão que um ancião teve acerca da operosidade
descontrolada de um irmão
51 7. Pergunta-se: Será mais difícil conceber os bons pensa-
mentos ou concebê-los?
52 8. Resposta: As diferentes modalidades de prece
53 9. As quatro modalidades de prece
227
53 1 0. A ordem das diversas modalidades de prece
54 11. As súplicas
54 12. A promessa ou oração votivtt
55 13. A intercessão
55 14. A ação de graças
56 1 5. Discute-se se tais formas de oração são necessárias a
todos e devem ser rezadas concomitantemente ou se
separadas e individualmente
57 1 6. Que modalidades de oração devemos preferir?
58 1 7. As quatro formas de oração oferecidas pelo Senhor
59 1 8. A oração do Senhor
61 1 9. Venha a nós o vosso reino
62 20. Seja feita a vossa vontade
63 21. O pão supersubstancial ou cotidiano
63 22 . Perdoai-nos as nossas ofensas
65 23 . Não nos induzais em tentação
66 24 . Nada mais devemos pedir além do que se encontra na
oração do Senhor
66 25 . A natureza de uma oração mais sublime
67 26. As diversas causas da compunção
68 27. As diversas formas de compunção
68 28. Por que o dom das lágrimas não está em nosso poder?
69 29. São diversos os sentimentos de compunção que pro-
vocam as lágrimas
70 30. As lágrimas não devem ser provocadas quando não
brotam espontaneamente
71 31. Conceito do abade Antão sobre a natureza da oração
71 32. Indícios d e que a oração foi ouvida
72 33 . Objeção: A confiança de ser atendido é exclusividade
dos santos
72 34. As diversas causas que tornam atendidas nossas ora-
ções
76 35. A oração que deve ser feita na própria cela e de portas
fechadas
77 36. A vantagem da oração breve e silenciosa
228
X SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE ISAAC
-
A ORAÇÃO
pág. cap.
79 1. Introdução
79 2. O costume vigente n o Egito d e anunciar a data da
Páscoa
80 3. O abade Sarapião e a heresia do antropomorfismo
em que caiu em virtude de sua simplicidade
82 4. Retomo perante o abade Isaac e questionamento sobre
o erro em que incidiu o abade Sarapião
83 5. Resposta sobre a origem da heresia antropomórfica
84 6. Porque Jesus Cristo aparece a cada um de nós na hu-
mildade ou na glória
85 7. Em que consiste nosso fim e a perfeita bem-aventu-
rança
86 8. Pergunta sobre a disciplina da perfeição pela qual se
consegue alcançar a lembrança constante de Deus
89 9. A eficácia da inteligência reforçada pela experiência
89 I O. O método da oração contínua
95 11. A oração perfeita que se alcança pelo método já ex-
posto
99 1 2. Como conservar imutáveis os pensamentos espirituais
99 13. A mobilidade dos pensamentos
1 00 14. Como é possível adquirir a estabilidade do coração e
dos pensamentos
XI - PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE QUEREMOM
A PERFEIÇÃO
pág. cap.
1 05 1 . A cidade de Tenessos
1 06 2 . O bispo Arquébio
1 06 3 . Descrição do deserto em que habitavam Queremom,
Nesteros e José
1 07 4. O abade Queremom e o pretexto alegado para recusar
a conferência solicitada
229
1 08 5 . Nossa resposta
1 09 6 . Resposta do abade Queremom: os três meios de com
bater os vícios
1 1 o 7. Os degraus pelos quais se ascende à perfeição da cari
dade
1 1 2 8. Superioridade dos que renunciam ao vício pela prática
da caridade
1 1 3 9. A caridade transforma o escravo em filho, conferindo
lhe simultaneamente a imagem e semelhança de Deus
1 1 5 1 O. A perfeição da caridade consiste em orar pelos ini
migos. Indício pelo qual se reconhece que a alma ainda
não está purificada
1 16 1 1 . Porque se diz que são imperfeitos os sentimentos de
temor e de esperança
1 17 1 2. Os diferentes graus da perfeição
1 19 13. O temor que nasce da magnitude da caridade
1 22 14. A castidade perfeita
1 22 15. Queremom adia a explicação solicitada
XII - SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE QUEREMOM
A CASTIDADE
pág. cap.
1 23 I. Palavras do abade Queremom sobre a castidade
1 24 2. O corpo de pecado e seus membros
1 26 3. Necessidade de mortificar a fornicação e a impureza
1 27 4. Para a obtenção da pureza da castidade não é sufici
ente o empenho do homem
1 28 5. Utilidade dos assaltos carnais
130 6. A paciência extingue a chama da impureza
133 7. Os diferentes graus da castidade
135 8. Os que não têm a experiência da castidade não podem
tratar de sua natureza nem de seus efeitos
1 3 8 9. Pergunta-se: Será possível guardar a castidade durante
o sono?
1 3 8 1 0. O sono não poderia prejudicar os que são castos
23 0
1 39 11. Existe grande diferença entre a continência e a casti-
dade
1 42 12. A s maravilhas particulares operadas por Deus e m fa-
vor dos santos
1 44 13. Apenas o s que a experimentaram sabem como a casti-
dade é aprazível
1 45 14. Pergunta: Qual o tipo d e abstinência e e m quanto tem-
po se pode chegar à perfeita castidade?
1 46 15. Resposta: O tempo necessário para se reconhecer que
a perfeita castidade é uma virtude possível
1 47 1 6. A meta e o remédio da castidade
XIII - TERCEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE QUEREMOM
A PROTEÇÃO DE DEUS
pág. cap.
1 49 1 . Introdução
1 49 2 . Por que não se atribui o mérito da virtude ao zelo de
quem a pratica?
1 50 3 . Não é apenas a perfeição da castidade que não existe
sem o auxílio de Deus. Pode-se dizer o mesmo em re
lação a qualquer outro bem.
1 52 4. Objeção: Como fizeram os pagãos para guardar a cas
tidade sem a graça de Deus?
1 52 5 . Resposta acerca da pseudo castidade dos filósofos
1 54 6. Sem a graça de Deus qualquer esforço toma-se inútil
1 56 7. O plano primordial de Deus e sua cotidiana providên
cia
1 57 8. A graça de Deus e o livre arbítrio
1 59 9 . A eficácia da nossa boa vontade e o valor da graça
de Deus
161 1 0. A fragilidade do livre arbítrio
1 62 11. Pergunta-se: A graça de Deus precede ou acompanha
a nossa boa vontade?
23 1
1 64 1 2 . A boa vontade não deve ser exclusivamente atribuída
nem ao livre arbítrio nem ao homem
1 69 1 3 . O s esforços humanos não podem substituir a graça
de Deus
1 7 1 14. Deus, ao enviar-nos as tentações, põe à prova a força
de nosso livre arbítrio
I 75 1 5 . A graça multiforme da vocação divina
1 77 1 6 . A graça divina excede os estreitos limites da fé humana
1 79 1 7. A insondável providência de Deus
1 80 1 8 . Os Santos Padres demonstraram que o livre arbítrio
não é suficiente para a salvação
XIV - PRIMEIRA CONFE RÊNCIA DO ABADE NESTEROS
A CiÊNCIA EsPIRITUAL
pág. cap.
1 83 1. Palavras do abade Nesteros sobre a ciência própria
dos religiosos
1 84 2. A aprendizagem da ciência espiritual
1 84 3 . A prática da perfeição se fundamenta em dois requisi
tos
1 85 4. A vida ativa se direciona para diversas profissões e
interesses
1 86 5 . A perseverança na profissão abraçada
1 87 6. A inconstância dos fracos
1 87 7. Um exemplo do exercício da castidade que demonstra
que nem todas as práticas convêm a todos os indiví
duos
1 89 8. A ciência espiritual
1 92 9. Deve-se partir da ciência ativa para ascender até a es
piritual
1 95 1 0. A escola da verdadeira ciência
1 97 11. Os múltiplos sentidos da Sagrada Escritura
1 99 12. Como podem ser esquecidos os poemas seculares
200 13. Como podemos desembaraçar a alma das dificuldades
232
202 1 4 . A alma não purificada é incapaz de dar ou receber a
ciência espiritual
203 1 5 Obj eção: Muitos que não têm o coração puro possuem
a ciência; ao contrário, muitos santos não a possuem
204 1 6. Os homens maus não podem possuir a verdadeira
ciência
207 1 7 . A quem se deve revelar o caminho da perfeição
209 1 8 . As causas que tornam infrutífera a doutrina espiritual
209 1 9 . Mesmo os indignos, às vezes, recebem a graça da ciên
cia espiritual
XV - SEGUNDA CONFERÊNCIA DO ABADE NESTEROS
Os CARisMAs DrviNos
pág. cap.
211 1. Discurso d o abade Nesteros sobre a tríplice causa
dos milagres
2 1 3 2. Em que devemos admirar os santos
2 1 4 3. O morto ressuscitado pelo abade Macário
2 1 6 4. O milagre realizado pelo abade Abraão sobre o seio
de uma mulher
217 5. A cura de um coxo pelo mesmo abade Abraão
2 1 7 6. Não devemos julgar os méritos de uma pessoa pelos
milagres que realiza
2 1 8 7. Para os homens carismáticos, a virtude não consiste
em operar prodígios, mas em praticar a humildade
220 8 . É mais digno de admiração repelir os próprios vícios
do que expulsar demônios dos corpos dos outros
220 9 . Uma vida íntegra é superior à realização de milagres
22 1 1 0 . Revelação sobre a experiência da castidade perfeita
233
•
O UTRAS P U B LI CACÕ ES DAS .
E D I ÇÕES SUB IACO
- VIDA DE SANTO HONORATO
(Sermão de Santo Hilário e a Vida dos Padres do Jura)
- CONCORD ÂN CIA DA REGRA DE S ÃO BENTO
(latim)
- A PROCURA DE DEUS
Esther de Waal - 4a edição
- TRATADO SOBRE A ORAÇ ÃO
Tertuliano, S. Cipriano, Orígenes - 2a edição
- LIVRO DE VIDA MONÁ STICA, CAMINHO DO
EVANGELHO
Roger Visseaux, osb
- A REGRA DE S Ã O BENTO - formato de bolso - bilíngüe
Tradução de D. João E. Enout,osb - 3a edição
- A REGRA DE S Ã O BENTO - formato de bolso
Tradução de D. Basílio Penido,osb - 2a edição
- A REGRA DE S Ã O BENTO APLICADA À VIDA DE
SEUS OBLATOS E OBLATAS
lvone Faria (Ir. Joana Evangelista,Obl.osb)
234
- OS VOTOS NA RB
Ir. Lídia Tavares de Lemos,osb
- DUAS LEITURAS DA VIDA DE S Ã O BENTO
D. A. Vogüé,osb - D. Anselm Grün,osb - 23 edição
- DEUS FALA AO TEU CORAÇ ÃO
( espiritualidade bíblica)
D. Eduardo de Souza Schulz,osb
- O IDEAL MON Á STICO E A VIDA CRISTÃ
DOS PRIMEIROS DIAS
D. Germain Morin,osb
- CONFE RÊNCIAS - Volume I ( 1 a 7)
João Cassiano
- GERTRUDES DE HELFTA - VIDA E EXERC Í CIOS
ESPIRITUAIS
- ENSINAMENTOS ESPIRITUAIS DE DOROTEU DE
GAZA
- FONTES - OS M Í STICOS CRISTÃ OS DOS
PRIMEIROS S É CULOS
Olivier Clément
- CADERNOS DE HIST Ó RIA MONÁ STICA - Volume I
Introdução - Organização : D . Justino de A. Bueno,osb
- SABEDORIA QUE BROTA DO COTIDIANO
Viver a Regra de São Bento hoj e
Ir. Joan D. Chittister,osb
23 5
- ENSINAMENTOS DE UM ABADE
D. Abade Joaquim de Arruda Zamith,osb
- LECTIO DIVINA ONTEM E HOJE
Guigo II, cartuxo, Enzo Bianchi, Giorgio Giurisato,
Albert Vinnel 3a ed. aumentada
-
- VIDA E MILAGRES DE S Ã O BENTO - Segundo
Livro dos Diálogos de São Gregório Magno - 5a edição
- UMA LECTIO DIVINA NA B ÍBLIA E COM A B ÍBLIA
I. P. Iglésias,osb
- OS MÍ STICOS CISTERCIENSES DO S É CULO XII
D. Bernardo Bonowitz - Organizador
- SALMOS PARA SENTIR E SABOREAR AS COISAS
INTERNAMENTE
Pe. Benj amím Gonzaléz Buelta,sj
- A GLÓ RIA DE DEUS É O HOMEM VIVO
Uma herança da Igreja primitiva
Pe. Leonardo Meulenberg
- APTO A GANHAR ALMAS
Direção espiritual no contexto monástico - 2a edição revista
e aumentada
D . Bernardo Bonowitz,ocso
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Outubro - 2006