100% acharam este documento útil (2 votos)
1K visualizações556 páginas

(2015) Teorias e Práticas Urbanas Edited by G Costa, H Costa e R Monte-Mór

1) O livro reúne 24 textos sobre teorias e práticas urbanas com o objetivo de discutir as condições para a sociedade urbana contemporânea. 2) Os textos abordam temas como planejamento urbano, direito à cidade, produção do espaço, agricultura urbana e o pensamento de Henri Lefebvre sobre a cidade. 3) O prefácio destaca a importância do pensamento de Lefebvre para pensar a cidade de forma emancipatória e como um processo ligado à construção da humanidade.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
100% acharam este documento útil (2 votos)
1K visualizações556 páginas

(2015) Teorias e Práticas Urbanas Edited by G Costa, H Costa e R Monte-Mór

1) O livro reúne 24 textos sobre teorias e práticas urbanas com o objetivo de discutir as condições para a sociedade urbana contemporânea. 2) Os textos abordam temas como planejamento urbano, direito à cidade, produção do espaço, agricultura urbana e o pensamento de Henri Lefebvre sobre a cidade. 3) O prefácio destaca a importância do pensamento de Lefebvre para pensar a cidade de forma emancipatória e como um processo ligado à construção da humanidade.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 556

GERALDO MAGELA COSTA

HELOISA SOARES DE MOURA COSTA


ROBERTO LUÍS DE MELO MONTE-MÓR
(ORGANIZADORES)

BELO HORIZONTE, 2015


Editora C/Arte

Editor capa e projeto gráfico


Fernando Pedro da Silva Rubens Rangel Silva

Coordenação Editorial Revisão


Fernando Pedro da Silva Alexandre Vasconcellos de Melo

Conselho EditoRial
João Diniz
Lígia Maria Leite Pereira
Direitos exclusivos desta edição:
Lucia Gouvêa Pimentel Editora C/Arte
Marília Andrés Ribeiro Av. Guarapari, 464
Cep 31560-300 - Belo Horizonte - MG
Marília Novaes da Mata Machado Pabx: (31) 3491-2001
Otávio Soares Dulci [email protected]
Vera Casa Nova www.comarte.com

Todos os direitos reservados. Proibida a re-


produção, armazenamento ou transmissão de
partes deste livro, através de quaisquer meios,
sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Catalogação na fonte
Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

T314

Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade urbana / Geraldo Magela


Costa (Org.), Heloisa Soares de Moura Costa (Org.), Roberto Luís de Melo Monte-Mór
(Org.) – Belo Horizonte: C/Arte, 2015.

556 p.; 17 x 24 cm; color.


ISBN 978-85-7654-289-6

1. Urbanização – Brasil. 2. Sociologia urbana. I Costa, Geraldo Magela (Org.). II.


Costa, Heloisa Soares de Moura (Org.). III. Monte-Mór, Roberto Luís de Melo (Org.).
IV. Título.
Índice para catálogo sistemático
I. Turismo e planejamento urbano : Brasil : Arquitetura paisagística urbana

CDD 307.76

Índice para catálogo sistemático


I. Urbanização : Brasil : Sociologia urbana
Para Carolina (in memoriam)
Sumário

9 prefácio
João Antônio de Paula

13 Apresentação

19 Construções teóricas da
problemática urbana brasileira:
rupturas, permanências,
transcendências e convergências
Geraldo Magela Costa

41 Natureza e cidade na periferia:


ampliando o direito à cidade
Heloisa Soares de Moura Costa

55 Urbanização, sustentabilidade,
desenvolvimento: complexidades e
diversidades contemporâneas na
produção do espaço urbano
Roberto Luís de Melo Monte-Mór

71 Muito além do jardim:


planejamento ou urbanismo, do que
estamos falando?
Ester Limonad
103 A origem estrutural da subversão
em sociedades capitalistas
contemporâneas, suas práticas
baseadas na vivência cotidiana
e um novo paradigma de um
contraplanejamento
Rainer Randolph

129 A cidade contra o Estado:


ensaio sobre a construção política de
escalas e institucionalidades
Rita Velloso

145 Produção do espaço na cidade do


neoliberalismo e novas aberturas no
espaço digital
Felipe Nunes Coelho Magalhães

169 A produção do espaço a partir de


Henri Lefebvre e a dimensão espacial
da ação política
Thiago Andrade dos Santos

193 Espaços urbanos coletivos,


heterotopia e o direito à cidade:
reflexões a partir do pensamento de
Henri Lefebvre e David Harvey
Orlando Alves dos Santos Junior

215 O direito à cidade na urbanização


planetária, ou: Henri Lefebvre por uma
nova cidadania urbana
João Bosco Moura Tonucci Filho

231 Da crítica do direito ao direito à cidade:


uma primeira aproximação
Marcos Gustavo Pires de Melo
259 O direito e a propriedade: o privado, o
público, o comum
Rafael de Oliveira Alves

283 O fetiche da Lei e a reforma urbana


no Brasil
Daniel Gaio

297 Do momento-espaço político:


o momento político e o espaço
diferencial
Natália Lelis

317 Cidades, urbanização, desenvolvimento


na Amazônia: notas para uma
interpretação lefebvriana
Harley Silva

343 Espaço e cultura: forjando um corpo


Deborah Cimini Cancela Sanches

369 O espaço da resistência:


uma construção teórico-prática
inspirada em Henri Lefebvre
Carolina Herrmann Coelho-de-Souza

393 (Fase) crítica das áreas verdes


urbanas: entre o industrial e o urbano
Ana Carolina Pinheiro Euclydes

419 Agricultura urbana: isto e aquilo


Daniela Adil Oliveira de Almeida

449 Economia popular e solidária na


contemporaneidade:
a heterogeneidade como recurso
Sibelle Cornélio Diniz
465 Empreendedorismo individual:
uma nova face do capitalismo
contemporâneo?
Júlia de Carvalho Nascimento

481 Aberturas e apropriações pela


mobilidade urbana: a potencialidade
transformadora das “pequenas
práticas” sociais
Marcelo Cintra do Amaral

511 Implosão e explosão: mercado


imobiliário e a Exópolis
belo-horizontina
Renan Pereira Almeida

523 Um rio, três políticas: o Ribeirão


Arrudas e sua inserção na Região
Metropolitana de Belo Horizonte
Leandro de Aguiar e Souza

551 Sobre os autores


Prefácio

Para Henri Lefebvre a construção do urbano tem a mesma espessura e complexida-


de que a construção da humanidade plenamente humanizada, que os dois processos
são promessas emancipatórias atravessadas por descaminhos, retrocessos, calmarias
dilacerantes, que o que bloqueia a construção do urbano é o mesmo que obstrui a
realização da liberdade e da igualdade.
Henri Lefebvre, foi dito, e bem dito, é o militante da emancipação. Seu pensa-
mento, que bebeu de todas as fontes da tradição cultural da modernidade, nunca se
deixou envolver pelo que não fosse a pura potência da liberdade, da criatividade, da in-
venção. Surrealista, quando isso foi uma das primeiras formas da revolução estética do
século XX, Henri Lefebvre esteve sempre para além da acomodação, da coonestação de
interesses particularistas, da submissão ao ditado conservador, seja em termos políticos,
seja em termos estéticos, seja em termos filosóficos.
Comunista desde a juventude, aderiu ao Partido Comunista Francês, em
1928, foi excluído do Partido em 1958, e nesses 30 anos jamais se submeteu ao dog-
matismo, ao esquematismo, ao pragmatismo da burocracia partidária. Independente,
autônomo, Lefebvre não hesitou, sempre, em fazer do pensamento a convocação da
possibilidade da felicidade, não deixou de pensar a contrapelo, na contramão das con-
veniências, da acomodação interessada.
Perfeitamente desabusado, alargou horizontes das temáticas canônicas do mar-
xismo para incluir nelas a vida cotidiana, as “intermitências do coração” como disse
Marcel Proust, o mundo da vida, do amor, do lazer, do conhecimento, do descanso.
Entendeu que a revolução que importa fazer só faz sentido, realmente, quando há mu-
dança da vida cotidiana, quando for mudar a vida, quando for, como disseram os teóri-
cos da Escola de Frankfurt, a superação da “vida danificada”.
É esse arrastar a revolução para a vida de todos, para a vida de cada um, que faz
da perspectiva de Henri Lefebvre uma espécie de “inventário” da emancipação humana.
Poucos pensadores no século XX viveram tão intensa e lucidamente os pro-
blemas do nosso tempo e ofereceram tão generosas, potentes e criativas perspectivas.
Nascido em 1901, falecido em 1991, Henri Lefebvre nos ensinou a pensar e a desejar
sem medo. Platão disse que o propósito da filosofia é salvar a cidade. De fato, é preciso
salvar a cidade que contra se mobilizam forças poderosas, o capital e suas agências. É
contra essas forças que se voltou sempre a fala iluminada e inegociável de Henri Lefeb-
vre. Fala que ao longo tempo dialogou com o mais avançado e disruptivo dos projetos
emancipatórios, do dadaísmo ao comunismo, do “situacionismo” ao feminismo, das lu-
tas estudantis de 1968 às lutas pelo direito à cidade, pela construção do urbano como
derrogação dos sistemas, como destruição da “colonização do mundo da vida”.
O livro que se vai ler, Teorias e práticas urbanas: condições para a sociedade ur-
bana, organizado por Geraldo Magela Costa, Heloisa Soares de Moura Costa e Ro-
berto Luís de Melo Monte-Mór, reúne 24 textos de professores e alunos da UFMG
e de convidados, é uma outra prova da extraordinária vitalidade da mensagem de
Lefebvre, que, dotada de plasticidade inesgotável, renova-se a cada momento, a
cada geração de leitores, a cada conjunto de problemas, instigando, provocando,
incitando, fazendo pensar e agir. Henri Lefebvre disse-nos que todos têm direito
à cidade, que ela não tem que ser a pura reiteração dos interesses do capital, que a
cidade está em disputa e que, adiado que seja, interditado, procrastinado, o urbano
virá como “livre apropriação do espaço, do tempo e dos objetos”, “como autogestão
de empresas, da produção e de unidades territoriais”, como substituição da regra do
“contrato” pelo “costume”. Este último aspecto da tríade, que Lefebvre vê como rea-
lizações da revolução urbana, costuma ser recebido com dúvidas e inquietações ex-
pandidas. Afinal, contestar a relação contratual parece bloquear qualquer forma de
intercâmbio. Para Lefebvre, o contrato, como já dissera Pasukânis, é uma das formas
cotidianas da presentificação do Estado. Com efeito, o Estado tem estruturalmente,
entre outras funções estratégicas, a de ser garantia da ordem capitalista, o guardião,
impessoal e exato, da equivalência das trocas mercantis capitalistas, isto é, dos direi-
tos da propriedade privada. Para Lefebvre, é exatamente isso que cabe revolucionar,
substituir a propriedade privada como fundamento da troca mercantil capitalista
pelo intercâmbio livremente acordado baseado na solidariedade, na reciprocidade,
na sustentabilidade, na valorização da vida melhor para todos.

10
Que esses objetivos e propósitos continuem, aparecendo, ainda, como utopias,
é parte do problema que se quer superar com a realização do urbano. Em 1965, no li-
vro Metafilosofia, que é anterior ao livro A revolução urbana, que é de 1970, Henri Lefe-
bvre havia sintetizado a sua visão de urbano, assim: “uma densa rede de organismos de
base, de unidades de produção e unidades territoriais, interligadas por equipamentos
modernos de máquinas eletrônicas.” Em 1965, isso era, tecnologicamente, uma simples
possibilidade, uma tendência. Cinquenta anos depois isso já se tornou “arroz de festa”,
confirmando a decisiva e perfeitamente necessária tese de Ernst Bloch: de que a “utopia
é consciência antecipadora” que é o imprescindível “sonho diurno” sem o qual o possí-
vel, a felicidade são adiados, sem precisão.

João Antonio de Paula


Cedeplar/UFMG

11
Apresentação

A inspiração de A revolução urbana de Henri Lefebvre

As mobilizações urbanas recentes são evidências da incontestável atualidade de A revolu-


ção urbana de Henri Lefebvre, publicado originalmente em 1970 (La révolution urbaine).
Elas se inseriram e se inserem no conjunto de práticas imprescindíveis à realização da so-
ciedade urbana e do urbano.

O urbano (abreviação de sociedade urbana) define-se, portanto, não como


uma realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira
recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualida-
de iluminadora (...) De agora em diante, o urbano é abstrato unicamente
sob o título de abstração científica, isto é, legítima. O conhecimento teórico
pode e deve mostrar o terreno e a base sobre os quais ele se funda: uma
prática social em marcha, a prática urbana em via de constituição, apesar
dos obstáculos que a ela se opõem (Lefebvre, 1999, p. 28, grifos do autor).

Um tanto complexas, mas inspiradoras, essas reflexões são aqui resgatadas para nos
ajudar a pensar a revolução urbana como um processo contemporâneo voltado para a
busca da emancipação via realização da sociedade urbana.
Estamos falando da emergência do novo, da emancipação social, do urbano ainda
virtual, mas possível. As políticas públicas, em parte materializadas e praticadas por meio
da aplicação dos instrumentos da reforma urbana (e pelas quais lutamos desde as últimas
décadas do século passado), já mostram sinais de esgotamento em suas possibilidades de
contribuir efetivamente para a realização do urbano ou da sociedade urbana. Entretanto,
a vitalidade da sociedade urbana emergente ainda está presente e manifesta aqui e em
outras partes do mundo, e desde seu anúncio por Lefebvre ao final dos anos de 1960,
parece constantemente se renovar e transmutar anunciando que a zona critica permanece
como força transformadora em direção a um processo emancipatório, em que pesem as
ameaças de retrocessos fundamentalistas.
A realização de um workshop e a subsequente edição deste livro1 são um convite
para que professores, alunos e pesquisadores das universidades reflitam sobre essas ques-
tões, procurando (re)pensar teorias e práticas (porventura praticadas) como uma forma
de buscar respostas para os desafios do novo, que se anuncia por meio daquilo que Lefeb-
vre denominou zona ou fase crítica.
“O que se passa durante a fase crítica?”, pergunta Lefebvre. E apresenta uma hipóte-
se como resposta:

A industrialização, potência dominante e coativa, converte-se em re-


alidade dominada no curso de uma crise profunda, às custas de uma
enorme confusão, na qual o passado e o possível, o melhor e o pior se
misturam (Lefebvre, 1999, p. 27).

Trata-se de um campo cego, nas palavras do autor:

Entre os campos, que não são aprazíveis, mas campos de forças e de con-
flitos, existem campos cegos. Não somente obscuros, incertos, mal explo-
rados, mas cegos no sentido em que há na retina, um ponto cego, centro
da visão e, contudo, sua negação (...) Em que consiste tal cegueira? No
fato de olharmos atentamente o campo novo – o urbano – vendo-o, po-
rém, com os olhos, com os conceitos, formados pela prática e teoria da in-
dustrialização, com um pensamento analítico fragmentário e especializado
no curso desse período industrial, logo, redutor da realidade em formação
(Lefebvre, 1999, p. 37-38, grifos do autor).

Portanto, uma das perguntas que inspiraram a edição deste livro foi: as teorias, as
linguagens e os métodos à nossa disposição, além de práticas identificadas, dariam conta
de iluminar este campo cego? Reconhecendo serem insuficientes, Lefebvre (1999) sugere:

1 Tanto o workshop que lhe deu origem quanto este livro são resultantes dos nossos projetos de pesquisa
(produtividade em pesquisa) financiados pelo CNPq: Análise de processos socioespaciais urbanos: teoria,
metodologia, prática e ensino (Geraldo Magela Costa); Urbanização, natureza e política urbana-ambiental
(Heloisa Soares de Moura Costa); e Urbanização e (sub)desenvolvimento sustentável: (planejar) novos
caminhos para uma produção do espaço mais justa e democrática (Roberto Luís de Melo Monte-Mór).

14
Um duplo movimento impõe-se ao conhecimento, desde que existem
tempo e historicidade: regressivo (do virtual ao atual, do atual ao passado)
e progressivo (superado do finito ao movimento que declara esse fim, que
anuncia e faz nascer algo novo) (Lefebvre, 1999, p. 33, grifos do autor).

Avaliar criticamente as teorias e as práticas, revisitar o passado, identificar o novo,


são condições para se pensar alternativas a serem postas em prática (Harvey, 2009). Essas
condições vão muito além, e transcendem as políticas públicas, institucionalizadas. São
transcendências que exigem (re)pensar teorias e práticas, levando em conta processos au-
tônomos de práticas urbanas; consensos com potencial criativo e de mudança; e, princi-
palmente, o potencial do dissenso, nos termos de Rancière (1996). Exige também pensar
as práticas “pequenas” e específicas e a possibilidade das práticas “grandes” e das práticas
unificadoras, o que é imprescindível quando se pensa a totalidade social.
Nesta década, mas com início na anterior e suas raízes há várias décadas, uma am-
pla discussão em torno da natureza e sentido das cidades, da sua extensão e sua articula-
ção com a região e com o campo, da sua mobilização interna, da sua riqueza e da sua segu-
rança para a vida coletiva, e das relações do urbano com o espaço natural, veio sendo feita
por um grupo de professores e alunos da UFMG, que se dedicaram ao estudo da natureza
da urbanização contemporânea, particularmente no Brasil. Colegas de outras universi-
dades com preocupações semelhantes, dentre vários outros interlocutores acadêmicos e
não acadêmicos nos nossos trabalhos de pesquisa, ensino e extensão, se somaram a essas
discussões e reflexões. Dentre os muitos encontros e debates, organizamos um workshop
de dois dias, em setembro de 2014, na UFMG, em Belo Horizonte, para apresentação e
debate dos trabalhos em andamento de vários de nós.
Os textos reunidos neste livro constituem uma tentativa de trazer alguma luz sobre o
campo cego da realidade urbana contemporânea. Foi proposto aos participantes não apenas
escrever coisas novas e ousadas, mas também dialogar com publicações que são referências
“clássicas” e com aquelas mais recentes sobre a problemática urbana, além de resgatar suas
próprias reflexões, como contribuições para se (re)pensar as teorias e as práticas urbanas.
Esperamos que o resultado ilumine o campo cego lefebvriano, contribuindo mo-
destamente para pensarmos todos a possibilidade de realização da sociedade urbana.
Pode-se dizer que todos os textos dialogam com teorias que contribuem para contex-
tualizar, problematizar e fortalecer as discussões sobre a questão urbana, especialmente
a brasileira. Vários deles discutem os avanços teóricos recentes e procuram refletir sobre
práticas concretas e/ou (im)possíveis, observadas no contexto urbano e metropolitano
brasileiro. Neste processo, as temáticas incluem questões do direito à cidade, da crítica do
Estado, do planejamento, do direito e das leis, bem como as possibilidades de explorar as
fissuras do espaço abstrato do capitalismo, para o que o conceito de espaço diferencial é

15
central. São identificadas e exploradas práticas de natureza tanto autônoma quanto hete-
rônoma, que podem constituir alternativas contra-hegemônicas que representem trans-
formações socioespaciais significativas para a emancipação social e política via realização
da sociedade urbana. Assim como no tempo em que Lefebvre escreveu O direito à cidade e
A revolução urbana, acreditamos que temos que pensar e mirar o impossível.

Geraldo Magela Costa


Heloisa Soares de Moura Costa
Roberto Luís Monte-Mór

REFERÊNCIAS
HARVEY, David. Espaços de esperança. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
LEFEBVRE, Henri (1970). A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

16
Construções teóricas da problemática
urbana brasileira:
rupturas, permanências,
transcendências e convergências
Geraldo Magela Costa

Introdução

Considero que as primeiras construções verdadeiramente teóricas e críticas sobre a proble-


mática urbana brasileira começaram nos anos de 1970 com a ruptura associada ao debate
latino-americano sobre a razão dualista e sua crítica. As divergências expostas entre, por um
lado, autores como Anibal Quijano e José Nun e, por outro, um grupo de pesquisadores
brasileiros, especialmente do CEBRAP,1 como Chico de Oliveira, Paul Singer, Fernando
Henrique Cardoso, além de Lúcio Kowarick e de Milton Santos, são contribuições teóricas
que permanecem, apesar de todo um conjunto de teorias, supostamente hegemônico, que
teve início com as rupturas da chamada escola francesa de sociologia urbana, promovi-
das inicialmente por Manuel Castells e que, em seguida, incorporaram as contribuições
marxistas-estruturalistas de Jean Lojkine, Christian Topalov, Edmond Preteceille, além de
David Harvey. Com estas correntes criou-se um conjunto de construções teóricas sobre
a problemática urbana no Brasil que, em síntese, convergia para a ideia de exclusão socio-
espacial urbana – a exemplo do que foi conceituado como “espoliação urbana” por Lúcio
Kowarick – os movimentos sociais urbanos em torno da provisão dos meios de consumo
coletivo o espaço urbano enquanto ambiente construído para a acumulação. Não há no-
vidade nisso. No entanto, são ideias e conceitos que também permanecem, mesmo após a

1 CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado em 1969 por professores e intelectuais
que, em sua maioria, foram afastados da universidade (especialmente da USP) por atos discricionários
decorrentes do golpe militar de 1964. Pertenciam ao grupo fundador, entre outros, Cândido Procópio
Ferreira de Camargo, Fernando Henrique Cardoso, Francisco de Oliveira e Paul Singer.
crítica pós-estruturalista e o resgate de contribuições que ficaram adormecidas por muito
tempo, especialmente aquelas de Henri Lefebvre, orientadoras de boa parte das reflexões
em momento mais recente, por meio de conceitos como urbano, sociedade urbana, direito
à cidade, espaço socialmente produzido e espaço diferencial, entre outros. Para esse resga-
te, destaca-se a contribuição do geógrafo Edward Soja, com a dialética socioespacial, além
daquela da Geografia brasileira, especialmente os escritos de Milton Santos. Ganha centra-
lidade neste momento o conceito de espaço, o espaço socialmente produzido, por meio da
análise dialética e interdisciplinar e transdisciplinar da problemática urbana.
A proposta com este ensaio é inicialmente resgatar as construções teóricas desde
os anos de 1970 até a última década do século XX e início do XXI, por meio de uma ava-
liação crítica que permita identificar rupturas e permanências para informar uma reflexão
sobre o momento mais recente em que avaliações e resgates críticos, além de novas con-
tribuições teóricas, caminham na direção de convergências importantes para o processo
de se (re)pensar a problemática urbana atual.
A primeira ruptura – situada especialmente na década de 1970 – tinha como obje-
to de reflexão a aglomeração urbana fordista-kenesiana por meio de uma visão totalizante
de inspiração marxista da problemática urbana, enquanto uma segunda suposta ruptura,
de natureza pós-estruturalista, (re)introduz a linguagem do culturalismo, o “objeto local”, o
“microssocial”, nos termos de Topalov (1988). Por um lado, este autor lamenta que este fato
tenha significado o “esquecimento organizado dos resultados de dez anos de pesquisa ur-
bana de inspiração marxista”, mas, por outro, ele identifica “tentativas de ultrapassar seus li-
mites preservando ao mesmo tempo os conhecimentos adquiridos” (Topalov, 1988, p. 23).
O terceiro momento considerado neste ensaio diz respeito não exatamente a uma
ruptura, mas a uma possível convergência de abordagens da problemática urbana. Em uma
reflexão sobre esse momento, Costa e Costa (2005) identificam, por exemplo, convergências
na análise e na práxis urbana nas abordagens da teoria do espaço de Lefebvre e do pensamento
ambiental. Afirmam que, se por um lado observa-se o retorno “dos positivismos” e da lingua-
gem do culturalismo (Topalov, 1988, p. 23), por lado, eram promissoras as continuidades e
convergências, as quais, concordando com Topalov, preservavam conhecimentos adquiridos,
a exemplo daqueles propiciados pela abordagem da economia política da urbanização.
Tanto Topalov (1988) quanto Costa e Costa (2005) estavam se referindo à pes-
quisa e à análise urbanas em que o objeto é o que se pode denominar de “cidades ou aglo-
merações urbano-industriais”. Nos termos de Lefebvre (1999) isso corresponde a um
momento em superação pelo processo de implosão-explosão que leva à fase crítica, em
que o urbano, virtual e possível, se anuncia na forma de uma problemática urbana que
se impõe em escala mundial. Ao se referir a este urbano, Lefebvre (1999) está de fato
construindo outra interpretação, uma outra ontologia para a análise da sociedade e sua

20
possível emancipação. Passa-se, portanto, de uma questão urbana, com um objeto ma-
terial e sensível, para uma problemática urbana, em que o urbano, a sociedade urbana,
se anuncia, ainda “não como uma realidade acabada (...), ao contrário, como horizonte,
como virtualidade iluminadora” (Lefebvre, 1999, p. 28). Trata-se de uma teoria que não
nega as questões urbano-industriais, mas que vai além delas para anunciar a possibilidade
da emancipação, para o que, nos termos de Lefebvre, a práxis socioespacial urbana é con-
dição necessária. É a partir dessa problemática que se pretende refletir sobre os percursos
e as convergências teóricas para sua análise e conhecimento.
Não se tem a pretensão neste ensaio de esgotar a identificação e a análise de todas as
construções teóricas sobre a problemática urbana em geral e brasileira em particular. Além
do limite temporal acima mencionado, o foco deste ensaio estará essencialmente nas di-
mensões socioeconômica, espacial e política da problemática urbana. Tendo consciência
dessa limitação, espera-se que as reflexões aqui desenvolvidas venham se somar a outras
para permitir avanços no entendimento das dinâmicas e das práticas urbanas no Brasil.
Afirmar que a primeira abordagem verdadeiramente teórica sobre a problemática
urbana brasileira teria ocorrido com a ruptura dos anos de 1970, não significa o esque-
cimento de outras análises sobre a questão urbano-industrial que já existiam no século
XIX – especialmente por meio das leituras de Engels sobre “a situação da classe operária”
nas principais cidades da Inglaterra – e também na primeira metade do século XX, com
a chamada sociologia urbana da Escola de Chicago. Portanto, antes de abordar a primeira
ruptura teórica acima mencionada, farei um breve resgate desse período.

As primeiras análises da problemática urbana: do século XIX à


primeira metade do século XX2

Desde aproximadamente 1760 estava em curso na Inglaterra a Revolução Industrial. Ob-


serva-se a partir de então um forte êxodo de trabalhadores do campo rumo às grandes cida-
des, como parte do processo de acumulação primitiva. Este momento de proletarização foi
de fundamental importância para o novo processo de acumulação que se iniciava. Citando
Galvêas: “Estavam, assim, criadas as condições para a diminuição dos salários reais, que vie-
ram a favorecer a rápida acumulação de capitais na economia.” Ainda segundo esse autor,

são dramáticos os registros nos livros de História de sofrimentos das


classes de menor renda nas grandes cidades: prolongamento da jorna-
da de trabalho – incluindo mulheres e crianças – para até 18 horas;
grande número de desempregados; grande promiscuidade nas mo-

2 Esta seção foi extraída, com algumas alterações, de Costa (1997)

21
radias, cada vez mais densamente habitadas, o que facilitava enorme-
mente o aparecimento de epidemias, como as de cólera e tifo; miséria;
morte em grande escala (Galvêas, 1983, p. xi).

Os relatos de Engels em A situação da classe operária em Inglaterra (1845) talvez se-


jam o que existe de mais importante para caracterizar os chamados problemas urbanos
naquele momento. Trata-se da descrição das condições extremamente precárias de mo-
radia e higiênico-ambientais das cidades industriais da época, com base em observações
feitas especialmente na cidade de Manchester. O advento da industrialização, apesar de vir
acompanhado, por um lado, desse processo de fragmentação e exclusão socioespacial nas
cidades europeias, em especial na Inglaterra, representava, por outro, “a época das grandes
esperanças” (Benevolo, 1981). Analisando estas situações nas cidades industriais do sécu-
lo passado, Benevolo sugere que a exclusão social daquele momento era diferente daquela
que se observava até então. Em suas palavras:

A pobreza – condição suportada há séculos sem esperança de alternati-


vas razoáveis – é agora reconhecida como “miséria”, quer dizer, é vista na
perspectiva moderna de um mal que pode e deve ser eliminado com os
meios à disposição (Benevolo, 1981, p. 44).

Ou seja, uma vez que teve início a geração de um grande excedente econômico, que não
existia no passado, isto poderia resultar em supressão da miséria.
As condições de precariedade ambiental, em especial as sanitárias, deram ori-
gem às primeiras propostas de urbanismo. De um lado, aquelas propostas dos socialis-
tas utópicos, que não viam solução para os problemas observados nas cidades indus-
triais e propunham ambientes novos que poderiam não somente evitar os malefícios
das cidades grandes, mas também influenciar na formação de uma nova sociedade,
coletivizada e socialmente igualitária.
De outro lado, surgem os inquéritos sanitários e as leis de desapropriações que termi-
nam por justificar e permitir a intervenção nas cidades, dando origem à “urbanística moder-
na” (Benevolo, 1981). Este sanitarismo urbano representava, sem dúvida, avanços impor-
tantes para o tratamento dos chamados problemas urbanos de então e, na leitura de Benevo-
lo, fica também clara a dimensão política, para além da técnica, das iniciativas de urbanismo:

Convém, portanto, buscar as origens do urbanismo moderno na época


em que as situações de facto se concretizaram em medida suficiente para
provocar não somente mal-estar, mas também o protesto das pessoas ne-
las envolvidas; aqui o discurso histórico deve ser necessariamente alarga-
do das formas de povoamento à problemática social da época, mostrando

22
o correcto posicionamento da urbanística moderna como parte da ten-
tativa em curso para estender a todas as classes os benefícios potenciais
da revolução industrial, e pondo a claro de uma vez por todas a inevitável
implicação política inerente ao debate técnico (Benevolo, 1981, p. 44).

Mais uma vez Benevolo caracteriza o período como sendo de “grandes esperan-
ças” e deixa claro que desde o momento de afirmação da Revolução Industrial e dos con-
sequentes problemas urbanos, estes só poderiam ser entendidos e enfrentados se devi-
damente considerados em suas dimensões sociais e políticas, para além da técnica. Mas,
é claro, há que se diferenciar o significado de política. Com as mudanças políticas obser-
vadas no continente europeu a partir de meados do século XIX, com governantes con-
servadores ascendendo ao poder nos principais países (Inglaterra, França e Alemanha,
principalmente), o urbanismo tomou um rumo diferente dos ideais igualitários dos so-
cialistas utópicos e das propostas surgidas a partir das condições sanitárias humanamente
insuportáveis das cidades, especialmente para a classe operária. É emblemático o exemplo
das intervenções de cunho político e ideológico promovidas pelo Barão de Haussmann
em Paris no final do século XIX, travestidas de soluções técnicas.
O urbanismo que se estabelece a partir do início do século XX, especialmente a
corrente progressista/racionalista (Choay, 1979), tem grande influência na forma de en-
tendimento do que seria a “problemática urbana” brasileira de então: problemas técnicos,
despolitizados.3 Segundo Monte-Mór (2007, p. 72):

(...) se os conceitos que o geravam [o urbanismo] provinham de teóricos


que desenvolviam uma análise crítica global da sociedade, enfocando a
cidade como um elemento integrado e decorrente do processo socioe-
conômico-político então vivido, para os “urbanistas” que os sucederam
tornou-se uma matéria despolitizada, quase um elemento físico-espacial
a ser tratado segundo uma visão formal-estética.

O próximo momento de análise sistematizada da cidade capitalista surge com a


Escola de Chicago, a partir dos anos de 1920 do século passado. A exclusão neste caso,
analisada por meio dos pressupostos da chamada Ecologia Humana e dos estudos da alie-
nação na metrópole na perspectiva de Simmel (1973) – que serviu de orientação para a
proposição do urbanismo como modo de vida de Wirth (1973) –, era entendida como a
não integração social dos recém-chegados à grande cidade industrial, no caso, a Chicago

3 Não é objetivo neste ensaio aprofundar a discussão das origens e consolidação de práticas urbanísticas.
Um bom nível de informação sobre estas questões pode ser encontrado em Benevolo (1981) e Choay
(1979). Uma excelente abordagem do caso brasileiro pode ser encontrada em Monte-Mór (2007).

23
dos anos de 1920, que vinha experimentando um extraordinário processo de imigração.
A análise, além de comparar a evolução na cidade com o que se observava nos reinos
animal e vegetal, buscava entender a transformação que se processava com a passagem de
um modo de viver nas pequenas comunidades e o “modo de vida urbano” e metropolita-
no, com base em observações empíricas do caso de Chicago. A analogia com a ecologia
animal e vegetal, por seu lado, servia de base para a descrição da dinâmica espacial da
forma urbana, por meio da competição, sintetizada na sequência competição pela vida
– processo de dominação – processo de sucessão, produzindo mosaicos “naturais” de co-
munidades definidas por posições de riqueza, etnias e ocupações no espectro social, que
responderiam às necessidades fundamentais da sociedade urbana (Park, 1973).

Primeiro momento: as rupturas dos anos de 1970

Escola Francesa de Sociologia Urbana


Foi essencialmente a partir da leitura do espaço urbano realizada pela Escola de
Chicago que Castells (1976; 1977; 1978; 1980) promoveu a crítica da sociologia urbana
e propôs uma abordagem de inspiração marxista – estruturalista/althusseriana – da ques-
tão urbana, especialmente a partir da França e dos países do capitalismo dito avançado,
o que veio a ser caracterizada como Escola Francesa de Sociologia Urbana. Em confe-
rência proferida na Community and Urban Sociology Section da American Sociological
Association, agosto de 1998 em São Francisco, Califórnia, Castells fez uma síntese do que
ele considera ser o conjunto de autores da “Escola Francesa” – “sociólogos urbanos” em
suas palavras – que caracterizou aquele momento importante de ruptura nas teorias de
análise da problemática urbana: Henri Lefebvre representado por ele mesmo; Marxismo
ortodoxo – Jean Lojkine, Christian Topalov, Edmond Preteceille (e eu acrescento o não
francês David Harvey); a Escola de Foucault; e o Marxismo estruturalista, althusseriano,
via Nicos Poulantzas, representado principalmente por Manuel Castells.4
Tanto os “marxismos ortodoxos”, com uma versão daquilo que veio a ser denomi-
nada economia política urbana (ou da urbanização) – com suas abordagens sobre a pro-
dução do ambiente construído, as condições gerais de produção, enfim da urbanização
como suporte ao processo de acumulação do capital –, quanto o “marxismo” estrutura-
lista de Castells – com sua análise sobre os meios de consumo coletivo e os movimentos

4 Não se fará aqui um resgate de todo esse momento que caracterizei como primeira ruptura por dois
motivos principais: a) por isto já ser suficientemente conhecido; e b) por não ser possível fazer este
resgate dentro do pouco espaço disponível para este ensaio. Também porque as abordagens desses
autores, especialmente Henri Lefebvre, serão comentadas nos momentos de ruptura subsequentes na
análise da problemática urbana.

24
sociais urbanos –, tiveram certamente influência nos desenvolvimentos das teorias de
análise da problemática urbana no Brasil.
A principal contribuição de Castells para a análise da cidade ou da aglomeração
urbano-industrial está na sua abordagem sobre os movimentos sociais urbanos, que se
constituem especialmente pela alegada incapacidade de o Estado capitalista – no caso
desse autor, nos países do capitalismo central – em dar resposta a demandas para estender
a dotação de meios de consumo coletivo para além daquela requerida para a reprodução
ampliada da força de trabalho, especialmente a industrial (Castells, 1980). Nesta linha de
raciocínio, o autor constata a politização da questão urbana, devida especialmente à forma
seletiva de investimentos e gastos do Estado na produção dos meios de consumo coletivo
– não assumida pelo capital5 – que estariam favorecendo as necessidades da produção em
detrimento da reprodução social ampliada.

De fato, não podendo atender ao conjunto das demandas sociais, o


Estado [no capitalismo monopolista de Estado] concentra seus investi-
mentos naquelas funções urbanas necessárias ao funcionamento do polo
dominante, isto é, do capital. Enquanto permanecem afastadas as neces-
sidades habitacionais, de transporte e equipamento social da população
(Castells, 1980, p. 25).

Veremos na seção a seguir que este entendimento é semelhante ao daqueles auto-


res que contribuíram para a formação de um pensamento marxista latino-americano de
análise da problemática urbana.

Emprego, “marginalidade” e pobreza no Brasil urbano6


Os pressupostos da teoria da Escola de Sociologia Urbana de Chicago, relaciona-
dos a não integração do migrante recém-chegado à cidade grande, tiveram repercussão
não só na análise, mas também em propostas de intervenção urbana no Brasil. As primei-
ras leituras sobre o “problema” urbano “favela”, em especial no Rio de Janeiro, bem como
as propostas de sua “solução”, passavam pela convicção de que o favelado era socialmente
não integrado na grande cidade. Daí propostas de intervenção voltadas para a erradicação
desta forma de morar, substituindo-a por outras formas que supostamente contribuiriam
para a integração social e espacial.
No entanto, a ruptura aqui identificada como “Desenvolvimentos da sociologia
e da Geografia na América Latina” não veio da crítica das abordagens tradicionais e fun-

5 Para isto, ver especialmente seu livro Cidade, democracia e socialismo (Castells, 1980), no qual ele discute
o papel dos movimentos sociais urbanos em um possível processo de transição para o socialismo.
6 Esta seção constitui uma versão revisada e atualizada de parte de minha tese de doutorado (Costa, 1984).

25
cionalistas, como o fez Castells, nem diretamente de contribuições da ruptura da Escola
Francesa de Sociologia Urbana, apesar de ambas serem de inspiração marxista.
Nos anos de 1960 e 1970, novos processos de exclusão urbana foram identificados
no Brasil e na América Latina em geral, especialmente por meio da periferização da forma
de morar dos trabalhadores pobres nas grandes metrópoles. Nesse momento, vários estu-
dos de autores brasileiros – especialmente pesquisadores do CEBRAP – começaram como
uma reação a análises anteriores sobre estes temas, como aquelas desenvolvidas por Quijano
(1974) e Nun (1969), que relacionavam o problema da pobreza urbana na América Latina
diretamente à questão da inserção da economia desse subcontinente, dos anos de 1950 em
diante, no processo dependente de industrialização, caracterizado pela produção capital-in-
tensiva, poupadora de mão de obra e controlada pelos grandes monopólios internacionais.
De acordo com essas análises, as características de tal industrialização deram origem a uma
população marginal em termos ocupacionais7 – massa marginal, nos termos de José Nun
(1969) – que estava largamente concentrada nas maiores aglomerações urbanas.
Enquanto esses autores viam a marginalidade urbana como um fenômeno mais
permanente e estrutural, visões alternativas “enfatizavam a forma como a marginalida-
de permite à classe dominante resolver temporariamente estrangulamentos no proces-
so de crescimento econômico” (Roberts, 1978, p. 159). Entre as principais contribui-
ções a essas visões destacam-se Oliveira (1981), Kowarick (1974; 1975; 1979), Faria
(1976), Cardoso (1973) e Singer (1973).
A principal diferença entre os dois enfoques estava na interpretação dada ao modo
de produção vigente nos países latino-americanos naquele momento. Quijano (1974) e
Nun (1969) tinham um entendimento dualista8 em relação ao desenvolvimento econô-
mico observado na América Latina, enquanto, por outro lado, Oliveira (1981) argumen-
tava que a economia não era dual, mas uma só, de forma que cada uma de suas “partes”
estava articulada ao todo e servindo de alguma forma à expansão do capital. A crítica des-
se autor está muito bem sintetizada a seguir:

7 Um dos trabalhos mais completos de revisão desta literatura talvez seja a tese de doutorado de Faria
(1976) sobre o que ele denominou “marginalidade ocupacional”.
8 A obra de Oliveira (1981) continua sendo, certamente, essencial para o entendimento da razão dualista
e sua crítica.

26
Assim boa parte da intelectualidade latino-americana nas últimas déca-
das [texto original escrito em 1972] dilacerou-se nas pontas do dilema:
enquanto denunciavam as miseráveis condições de vida de grande parte
da população latino-americana, seus esquemas teóricos e analíticos pren-
diam-nos às discussões em torno da relação produto-capital, economias
de escala, tamanho de mercado, levando-os, sem se darem conta, a cons-
truir o estranho mundo da dualidade e a desembocarem, a contragosto,
na ideologia do círculo vicioso da pobreza (Oliveira, 1981, p. 10).

Em parte, o argumento dual estava na aceitação da tese cepalina do subdesenvolvi-


mento, o que está explícito na crítica apresentada por Oliveira:

No plano teórico, o conceito do subdesenvolvimento como uma formação


histórico-econômica singular, constituída polarmente em torno da oposi-
ção formal de um setor atrasado e um setor moderno, não se sustenta como
singularidade: esse tipo de dualidade é encontrável não apenas em todos
os sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição
na maioria dos casos é tão somente formal: de fato, o processo real mostra
uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o
chamada moderno cresce e se alimenta da existência do atrasado, se se que
manter a terminologia (Oliveira, 1981, p. 12, grifos do autor).

Também a este respeito Kowarick (1974, [s.p.]) escrevia:

(...) não existem duas estruturas, uma “moderna” e outra “tradicional”, “ar-
caica” ou “marginal”, mas apenas uma lógica estrutural, de tipo capitalista,
que ao mesmo tempo gera e sustenta formas de inserção na divisão social
do trabalho “não tipicamente capitalista”, que longe de ser um peso morto
no processo de acumulação, constitui parte componente deste processo.

Essas diferentes formas de interpretar o desenvolvimento capitalista na América


Latina resultaram, naturalmente, em divergências nas análises do mercado de trabalho e
da composição da força de trabalho. Nun (1969) sustentava que existiam dois tipos de
superpopulação relativa: um exército industrial de reserva e uma massa marginal, este últi-
mo sendo disfuncional para o setor produtivo hegemônico na América Latina.
Cardoso (1973), por outro lado, rejeitava esta diferenciação e, consequente-
mente, o conceito de massa marginal, identificando toda a superpopulação relativa
com o exército industrial de reserva.
Em relação ao caso específico do Brasil, Oliveira não somente afirmava que a superpo-
pulação constituía um exército industrial de reserva, mas também que sua concentração
nas atividades terciárias era parte do modo de acumulação urbano, apropriado à expansão

27
do sistema capitalista no Brasil (Oliveira, 1981, p. 31). Sugeria ainda que a escassez de ca-
pital existia desde o início do processo de industrialização no Brasil, o que levou ao desen-
volvimento de um setor terciário intensivo em mão de obra. Em suas palavras:

A intensidade do crescimento industrial, que em trinta anos [1940-1970]


passa de 19 para 30% de participação no Produto Interno Bruto, não
permitirá uma intensa e simultânea capitalização nos serviços, sob pena de esses
concorrerem com a indústria propriamente dita pelos escassos fundos
disponíveis para a acumulação propriamente capitalista. Tal contradição
é resolvida mediante o crescimento não capitalístico do setor Terciário
(Oliveira, 1981, p. 33, grifos do autor).

Então, de acordo com este ponto de vista, que era também compartilhado por
Kowarick (1974; 1975) e Faria (1976), o crescimento de um setor terciário “informal”
não era excessivo, mas o resultado normal do processo de desenvolvimento capitalista
no Brasil. Estas atividades “não tipicamente capitalistas” eram úteis ao processo de acu-
mulação não somente porque elas empregavam temporária e ocasionalmente a reserva
de força de trabalho, mas também porque facilitavam a distribuição de produtos indus-
triais através de serviços intensivos em mão de obra, pequeno comércio, atividades de
transporte, reparos e manutenção e, consequentemente, poupavam capital (Roberts,
1978, p. 167), facilitando o processo de acumulação.
Valeria a pena perguntar se, apesar de ser conjunturalmente útil para o capital e não
ser permanente, nos termos da tese não dualista, esta parcela significativa da força de trabalho
teria condições adequadas de reprodução social urbana. A este respeito Cardoso afirmava
que o que é permanente “é o caráter cíclico da acumulação capitalista e a tendência à concen-
tração de renda, cujos efeitos são exacerbados quando o Estado não promove políticas com-
pensatórias” (Cardoso, 1975, p. 30). Isto era de fato uma questão crucial em uma sociedade
como a brasileira, que vinha passando por rápido processo de transformação econômica
e social, na qual o processo de acumulação estava rapidamente se tornando urbano com a
consequente concentração espacial de um grande contingente de força de trabalho.
Neste ambiente, era de se esperar que as interpretações dos chamados problemas
urbanos se voltassem para a questão dos meios de consumo coletivo necessários à re-
produção de uma força de trabalho (Castells, 1980) que era toda ela útil a uma estrutura
econômica única, de cunho capitalista, e que estava vivendo em condições de reprodução
socioespacial extremamente precárias.
Observa-se a crescente importância de certos meios de consumo coletivo, em es-
pecial aqueles ligados ao processo de morar nas grandes cidades, revelando outro aspecto
da pobreza urbana, além da questão dos baixos salários, que tinha suas raízes nas relações

28
sociais de produção no capitalismo. Kowarick referia-se a este aspecto da questão como
“espoliação urbana”, ou seja, “a extorsão total que resulta da ausência ou da precariedade
dos meios de consumo coletivo que são socialmente necessários em termos de subsistên-
cia” (Kowarick, 1979, p. 59). E, dessa espoliação, participava o Estado, que era parte inte-
grante da estrutura que tinha como centro o modo e as relações capitalistas de produção e
reprodução. O resultado disso foi se atribuir ao capital e ao Estado a responsabilidade por
toda esta situação, o que foi extremamente facilitado por estarmos vivendo um período de
regime autoritário, que tinha como objetivo principal a elevação do País, via crescimento
econômico, à categoria de grande potência mundial.
Com o grande crescimento populacional de nossas metrópoles, em especial nas dé-
cadas de 1960 e de 1970, o tema da periferização associa-se ao da marginalidade ocupacional
para constituir a nova base teórica de leitura do espaço urbano. Passa-se a uma forma mais
totalizante de entendimento dos chamados problemas urbanos, identificando-se melhor os
vários agentes responsáveis pelas mazelas de nossas cidades. A questão da dinâmica imobili-
ária, que estaria levando à manutenção de terras ociosas nas grandes cidades, e a atuação dos
agentes imobiliários urbanos passam a ser questões centrais nas pesquisas urbanas.
Tentando captar as características comuns dos problemas das grandes cidades lati-
no-americanas, Yujnovsky escreveu, já em 1975:

O setor privado possui a maioria da terra urbana e os direitos absolutos


de propriedade privada não são afetados pelas reformas constitucionais
que especificam que a propriedade deveria desempenhar uma função
social. A proporção de terras públicas é muito pequena e os controles
fiscais e de zoneamento não podem parar a especulação da terra. O pro-
blema é agravado naqueles países em que a inflação distorce a estrutura
de investimentos em favor do mercado imobiliário. Isto resulta em exces-
siva subdivisão e baixa densidade na periferia urbana, assim como mais
dificuldades políticas para controlar altas densidades nas áreas centrais
(Yujnovsky, 1975, p. 206, tradução nossa).

Neste esforço de síntese, o autor expressa de forma clara a problemática urba-


na latino-americana de então, bem como as dificuldades relacionadas à possibilidade
de combate à exclusão socioespacial nas cidades desse subcontinente. Não há dúvidas
sobre a possível contribuição desse tipo de percepção para a caracterização da proble-
mática urbana atual na América Latina.
Especificamente sobre o caso brasileiro, uma das primeiras e mais fortes denúncias
da exclusão socioespacial nas cidades talvez tenha sido o estudo de Camargo et al. (1976)
sobre o caso de São Paulo. Escrito em meados dos anos de 1970, o livro é descrito por seus
patrocinadores – a Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo –

29
como um trabalho que desmascara e denuncia o principal exemplo do que vinha sendo
chamado o “milagre econômico brasileiro”. Além da pobreza generalizada em termos tan-
to de “marginalidade ocupacional” quanto da precariedade e deficiência dos serviços ur-
banos, particularmente nas periferias, a análise enfatiza a questão da “lógica da desordem”,
uma expressão que caracterizava adequadamente o “desenvolvimento” observado em São
Paulo, bem como a ruptura teórico-crítica na análise da problemática urbana: apesar da
aparente desordem, o processo de crescimento urbano era governado por uma lógica,
aquela do desenvolvimento capitalista em formações sociais periféricas.
Enfim, há convergências nas abordagens teóricas que originaram, por um lado,
da ruptura produzida pela Escola Francesa de Sociologia Urbana e, por outro, pelo que
chamei de desenvolvimentos da sociologia urbana na América Latina. Tais abordagens,
que podem ser caracterizadas genericamente como o enfoque da economia política da
urbanização (ou urbana), continuam essenciais para o entendimento da problemáti-
ca urbana latino-americana em geral e brasileira em especial. Mudanças nas formas de
atuação do capital imobiliário, no papel do Estado e da chamada sociedade civil no pro-
cesso de planejamento e de gestão das políticas públicas, estas últimas especialmente a
partir do processo de (re)democratização dos anos de 1980 com o fim da ditadura, não
invalidam a afirmação da essencialidade do enfoque da economia política urbana para
a análise da problemática urbana brasileira atual.

Segundo momento: a (pseudo)ruptura do fim dos anos de 1980

Resgatar as teorias sobre a problemática urbana nesse período que tem início em fins dos
anos de 1980 não é uma tarefa banal. Em primeiro lugar, porque não houve de fato uma
ruptura quando comparada com aquela analisada na seção anterior. Em segundo lugar,
porque esse período já foi alvo de avaliações que, apesar de não serem muitas, são bas-
tante completas e consistentes, a exemplo daquelas realizadas por Soja (1989) e Topalov
(1989). Quanto a este último autor eu mesmo já me referi às suas avaliações em alguns
artigos (Costa, 2005; 2007; Costa; Costa, 2005) para caracterizar o que agora denomino
“(pseudo)ruptura”. Apesar disso, penso que não se pode prescindir de outras referências a
esta avaliação de Topalov, dada a intenção com o presente ensaio.
Por um lado, Topalov mostrava preocupação – dada uma suposta crise e rejeição
em relação às teorias marxistas de análise urbana –, com o retorno dos positivismos. Por
outro lado, o autor nos lembra de “novos” objetos da pesquisa urbana que teriam sido es-
quecidos pela abordagem da economia política da urbanização, mas que estariam sendo
incorporados: as questões do poder, da história e da política. E transcendendo tudo isto a
práxis e a teoria do espaço, com a (re)descoberta de Lefebvre (1993; 1999; entre outros).

30
Na verdade, não há novidade em relação à inserção da dimensão espacial nas teorias de
análise da problemática urbana. A obra seminal de Lefebvre sobre a produção do espaço
já havia sido publicada em 1974. E é exatamente a partir dessa obra que Soja (1989) ela-
bora suas reflexões sobre as chamadas “geografias pós-modernas” e a dialética socioespa-
cial, importantes para (re)colocar, na língua inglesa, a discussão sobre o espaço para além
da visão da abordagem de ambiente construído da economia política urbana.9
Outra discussão relevante para se entender esse momento de (pseudo)ruptura refere-
-se às contribuições dos chamados pós-estruturalismos para a análise da problemática urbana.
Fainstein (1997) faz uma boa análise crítica e comparativa entre a economia política urbana e
o ponto de vista pós-estruturalista. Segundo a autora, “no seu esforço para transcender o redu-
cionismo econômico marxista, os pós-estruturalistas parecem ter abandonado tanto a análise
econômica quanto o reconhecimento dos interesses de classe” (Fainstein, 1997, p. 28).
David Harvey também tem várias passagens de seus textos que avaliam limitações
das abordagens pós-estruturalistas, como, por exemplo, esta:

(…) a influência proliferante do que são vagamente denominados pós


-estruturalista e pós-modernista modos de pensar e de escrever torna par-
ticularmente difícil nos dias atuais encontrar algo tão mundano quanto
uma linguagem comum para expressão, particularmente na academia
(Harvey, 1996, p. 14, grifos do autor).

Porém, não se pode negar que contribuições de certas abordagens ditas pós-es-
truturalistas são imprescindíveis, não somente sobre práticas associadas a diferenças, mas
também como forma de contribuir para repensar e questionar teorias totalizantes sobre a
sociedade capitalista. Mesmo David Harvey, em momentos mais recentes tem reconhe-
cido essas contribuições. Vale aqui reproduzir uma passagem em Espaços de esperança, na
qual ele reflete sobre a mudança discursiva nas três últimas décadas (fins do século XX):

Essa mudança apresenta todo tipo de aspectos e é fácil ficar perdido


numa massa de complicações e complexidades. Mas o que é marcante
agora é o domínio de uma crença, quase similar a um conto de fadas,
sustentada por todas as partes envolvidas: a de que, um dia, houve estru-
turalismo, modernismo, industrialismo, marxismo, e de que se tem agora
pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-industrialismo, pós-marxis-
mo, pós-colonialismo e assim por diante (Harvey, 2009, p. 25).

9 Ver Costa (2007) para uma reflexão sobre as principais contribuições da teoria de espaço de Lefebvre
para a análise da problemática urbana brasileira.

31
Com isto, David Harvey não nega a importância de se considerar as contribuições
do pensamento dito pós-estruturalista, como se observa em outra passagem que se segue
naquela mesma obra:

Por exemplo, uma reação bem comum ao meu trabalho recente, par-
ticularmente a Justice, Nature and the Geography of Difference (1996), é
exprimir surpresa e descrença diante da maneira como pareço fundir
argumentos modernistas e pós-modernistas, estruturalistas e pós-es-
truturalistas (Harvey, 2009, p. 26).

Finalmente, considera-se também relevante para esse momento de (pseudo)rup-


tura, as contribuições das reflexões sobre o lugar, como parte da teoria do espaço e a pos-
sibilidade da práxis socioespacial a ela associada. Entre estas contribuições destacam-se
aquelas de Doreen Massey (1994) e de Milton Santos (1996).
Uma boa reflexão de Massey quanto a esta questão está em passagens de seu di-
álogo com David Harvey, a respeito da crítica que esse autor elabora sobre as ideias de
local e de lugar para a análise crítica e a práxis socioespacial, que para ele seria uma abor-
dagem não progressista ou reacionária dos processos socioespaciais. Segundo esse autor:
“Resistências regionais, as lutas pela autonomia local, organizações localmente estabelecidas,
podem ser excelentes bases para a ação política, mas elas não podem sozinhas suportar o
peso de mudanças históricas radicais” (Harvey, 1989b, p. 303, apud Massey, 1994, p. 141,
grifo do autor). Para Harvey, lugar estaria associado à ideia de comunidade, estático e es-
téril do ponto de vista da produção teórica e da prática.
Concordando com limitações desse tipo de luta, Massey argumenta, no entanto, a
favor de uma conceituação progressista de lugar, quando escreve:

(...) o que dá a um lugar sua especificidade não é uma longa história inter-
nalizada [ideia de comunidade], mas o fato de que ele é construído a partir
de uma constelação particular de relações sociais, se encontrando e se alte-
rando em um lócus particular (Massey, 1994, p. 153-154, tradução nossa).

Essas relações sociais, além de se alterarem em um lócus particular, carregam tam-


bém, segundo a autora, o potencial da mudança ao se estenderem para arenas mais amplas.
Milton Santos (1996, p. 257), por sua vez, refletindo sobre “o lugar e o cotidia-
no”, escreve:

Através desse conteúdo geográfico [lugar] do cotidiano poderemos,


talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teoriza-
ção) dessa relação entre espaço e movimentos sociais, enxergando, na

32
materialidade, esse componente imprescindível do espaço geográfico,
que é, ao mesmo tempo, uma condição para a ação; uma estrutura de
controle, um limite à ação; um convite à ação. Nada fazemos hoje que
não seja a partir dos objetos que nos cercam.

Enfim, tanto Massey quanto Santos situam a discussão sobre o lugar em um con-
texto de transformações constantes, o que significa uma abordagem socioespacial que
procura transcender abordagens ditas estruturalistas, por meio da inserção das práticas
cotidianas, das relações sociais, da política, enfim, em uma visão transescalar dos pro-
cessos socioespaciais urbanos.
Como conclusão, ainda que parcial, desta seção, afirma-se que não há uma ruptura
de fato. Por um lado, não há como negar a contribuição do pensamento dito pós-estrutu-
ralista, que trouxe inegáveis avanços para se pensar a práxis socioespacial, especialmente a
ambiental, a feminista, a étnica, entre outras manifestações de diferenças, mas também de
alteridade; mas, por outro lado, ao utilizarmos os pós-ismos para identificá-los, podemos
obscurecer sua importante contribuição enquanto processo social e político que não pode
ser entendido sem referência à totalidade se o objetivo, que acredito ser o do pensamento
crítico, é o de ter como visada no horizonte a possibilidade da apropriação e da emancipação.
Com base na discussão de Soja sobre a ideia de metafilosofia de Lefebvre10 po-
deríamos talvez dizer que tais abordagens poderiam também carregar o prefixo meta,
uma vez que transcendem mas não negam outras teorias e abordagens críticas. Por-
tanto, repetindo, não há ruptura de fato, mas uma transcendência que pode, por exem-
plo, enriquecer as análises ditas estruturalistas. Talvez devêssemos também falar de um
resgate das contribuições de autores “esquecidos” pela literatura de língua inglesa. Isto
nos remete ao 3º momento que, estamos sugerindo, mais apropriadamente se refere a
convergências de abordagens, não estranha umas às outras, pelo menos quando se trata
de teorias de análise da problemática urbano-espacial.

Terceiro momento: ruptura ou convergências?

As Geografias pós-modernas de Ed Soja – além, naturalmente, das contribuições de Da-


vid Harvey (1973), Milton Santos (1978; 1993) – já sinalizavam para convergências nas
construções teóricas sobre a problemática urbana. Mas, é neste terceiro momento que se
observa de forma mais definitiva a entrada em cena das teorias de Henri Lefebvre sobre

10 “Em grego, meta- carrega o significado tanto de além como depois (como no latim post-), e também
(relacionado do latim trans-) a mudança de lugar ou natureza, isto é, transportar e/ou transcender
(como nas raízes da palavra “metáfora”)”. (Soja, 1996, p. 33-34).

33
o O direito à cidade, A revolução urbana e A produção do espaço. É um momento em que se
estabelece e, no meu entendimento se torna imprescindível para a análise da problemática
urbana, o conceito de espaço socialmente produzido. No entanto, como se verá adiante,
apesar de imprescindível, este conceito não dá conta sozinho de orientar a análise da com-
plexa problemática urbana e espacial brasileira, especialmente se o objetivo é identificar a
possibilidade da práxis transformadora e emancipadora.
É bem conhecida a sequência das reflexões de Henri Lefebvre (1993) em The produc-
tion of space (1993, p. 49), que começa com o espaço absoluto, passando pelo espaço abstrato
e chegando ao espaço diferencial,11 que é a expressão da práxis socioespacial que se opõe à
tendência, no capitalismo, de o espaço abstrato se tornar hegemônico e homogeneizante.
Este espaço abstrato – o espaço da acumulação e da expropriação – abriga velhas
contradições, que permaneceram através da história e, principalmente, novas contradi-
ções que resultam do movimento constante de reprodução do capital no tempo e no es-
paço. As contradições se expressam a partir da

confrontação entre espaço abstrato, ou a exteriorização de práticas econô-


micas e políticas que se originam com a classe capitalista e com o Estado,
e espaço social, ou o espaço de valores de uso produzido pela complexa
interação de todas as classes na vivência diária (Gottdiener, 1993, p. 131).

A partir desse confronto Lefebvre elabora seu conceito de espaço diferencial:

Chamarei esse novo espaço de espaço diferencial porque, uma vez que o
espaço abstrato tende para a homogeneidade, para a eliminação de dife-
renças ou particularidades existentes, um novo espaço não pode nascer
(ser produzido) a não ser que acentue diferenças (Lefebvre, 1993, p. 52,
grifo do autor, tradução nossa).

A leitura de Lefebvre permite dizer que para ele essas diferenças, além de históricas,
a exemplo daquelas associadas à cultura, gênero e etnias, são resultado da práxis socioes-
pacial que procura manter e/ou resgatar o valor de uso do espaço – reapropriando-o so-
cialmente – da tendência em transformá-lo unicamente em valor de troca.12 Importante
dizer que o processo de construção de uma teoria de espaço por Lefebvre não está focada
em um objeto definitivo, acabado, mas em um processo, que procura incorporar a dimen-

11 Ver Costa (2007; 2013).


12 Penso que está ainda para ser construída, mas não será feita neste ensaio, a aproximação dessa
contribuição de Lefebvre com aquelas sobre o lugar, especialmente as desenvolvidas por Doreen
Massey (1994) e Milton Santos (1996).

34
são política do espaço em teoria e prática. Portanto, quando Topalov (1988) refere-se à
dissipação do objeto da economia política da urbanização (grandes regiões metropolita-
nas ou aglomerações industriais), isto não caracteriza uma ruptura nos termos da teoria
do espaço de Lefebvre. Para esta, trata-se de um momento a mais a ser observado no pro-
cesso contínuo de reprodução do capital no tempo e no espaço.
Entendo que há de fato uma convergência, que se dá não na forma de um discurso
vazio e abstrato. Ela tem concretude. Em termos teóricos, por meio da abordagem transdis-
ciplinar e, mais além, da visão lefebvriana de metafilosofia13 e da crítica da possibilidade de
outras linguagens que transcendam as narrativas estruturalistas totalizadoras e que amar-
rem todos os pós-ismos, através, por exemplo, da poesia, da linguagem literária,14 da música.
Mais uma vez, sugere-se que isto não possa ser visto como “pós-alguma coisa”, mas sim
como uma transcendência que está sempre indo além, incorporando as “velhas” e introdu-
zindo as novas visões da problemática urbana no capitalismo. Em termos de método, por
meio da abordagem transdisciplinar, da transdução (Lefebvre, 1999, p. 18), das cartografias
sociais e todos os métodos etnográficos postos ao nosso alcance. Em termos das práticas,
deve-se explorar a convergência na busca pela realização da sociedade urbana, por meio de
lutas pelo comum, pela poiesis (criação de obras) (Lefebvre, 2008, p. 36), pela apropriação,
pelo direito à cidade, o que significa a abolição das condições urbanas precárias da classe
trabalhadora, da espoliação urbana (Kowarick, 1979), da exclusão socioespacial, da des-
possessão (Harvey, 2010), expressões de visões da problemática urbana, da urbanização e
da cidade no capitalismo em todos os momentos de seu movimento de produção e repro-
dução: concorrencial/liberal, monopolista/fordista, produção flexível/neoliberal.15
Aonde pretendo chegar? Ou, talvez melhor, é possível chegar a algum lugar ou
algo definitivo a partir de uma reflexão sobre as teorias da problemática urbana brasileira?
Sim e não. Em se tratando de rupturas penso que estas jamais deixarão de existir, mesmo
que parcialmente. A dinâmica das relações sociais em constante transformação irá sempre
exigir a crítica teórica e novas formas de abordagem, não significando necessariamente te-
orias novas. Trata-se de um processo criativo e constante para iluminar os “campos cegos”:

13 “(...) o tipo de pesquisa e atividade teórica nas quais estamos aqui engajados pode ser descrita como
metafilosofia. A tarefa da metafilosofia é a de desvelar as características que eram da filosofia, sua
linguagem e seus objetivos, para demonstrar suas limitações e transcende-las”.. (Lefebvre, 1993, p. 405,
grifo do autor).
14 Em uma crítica da sociologia rural, Martins (2001, p. 34) escreve: “Há mais sociologia rural de alto
refinamento em obras de Gabriel Garcia Marquez, Manuel Scorza, John Steinbeck, José Saramago,
Juan Rulfo ou Guimarães Rosa do que em muitas de nossas análises complexas e elaboradas.”
15 Ver discussão sobre a cidade do neoliberalismo no texto de Felipe Nunes Coelho Magalhães desta
coletânea.

35
Não se trata mais da distinção trivial entre o que fica na sombra e o que é
iluminado, mesmo se acrescentarmos que a “iluminação” intelectual tem
limites, afasta ou menospreza isto ou aquilo, projeta-se aqui e não ali, põe
aquilo entre parênteses e isto em evidência. E isso não é tudo: há o que se
sabe e o que não se pode elucidar (Lefebvre, 1999, p. 39).

Conforme citação acima, penso que o que se exige são novos métodos, novas lin-
guagens, transcendências. Ao se falar em transcendência, por exemplo, está aí implícito que
não se está abandonando “velhas” teorias, com poder explicativo, a exemplo da abordagem
da economia política urbana, em suas diferentes visões, especialmente quando a análise da
problemática urbana tem como propósito orientar propostas e ações contra hegemônicas
incluindo-se aí o planejamento urbano e sua critica.16 David Harvey, já em 1989, chamava a
atenção para o processo de “formação de conceitos e a construção de teorias” como “aspec-
tos vitais da atividade humana” (Harvey, 1989a, p. 2, tradução nossa). Ele diz:

O mapa cognitivo não poderia ser estável ou mesmo coerente. A experi-


ência nos leva a construí-lo, transformá-lo e modificá-lo permanentemen-
te. A construção teórica objetiva, da mesma forma, busca um ordenado e
consistente mapa, apesar de nunca inteiramente fechado, para enriquecer
nosso entendimento e comando de práticas cotidianas (sociais, políticas,
econômicas e tecnológicas) (...) A escolha de um esquema teórico não é
de forma alguma fácil (...) uma vez que cada um mistura forças e limitações.

Isto posto, o autor nos coloca diante de uma reflexão e de uma pergunta que nos
remetem às questões das permanências e das convergências na escolha teórica:

O problema se torna mais agudo quando buscamos alguma metateoria


do processo urbano, o que significa um esquema teórico que tenha o
potencial necessário para por todas as visões parciais juntas não simples-
mente como uma visão composta, mas como um mapa cognitivo que
mostra como cada visão pode ela mesma ser explicada por e integrada
em alguma concepção maior sobre o que, afinal, é a cidade como um
todo, é o processo urbano em geral. Aqui as escolhas são mais limitadas
– deveríamos privilegiar Marx, Weber, Durkheim, Simmel ou os sociólo-
gos de Chicago? (Harvey, 1989a, p. 2, tradução nossa).

Em continuação Harvey justifica sua opção pela abordagem marxista como forma
de buscar uma teoria coerente e consistente para explicar o que ele chama de “configu-

16 Procuro discutir essa possibilidade do planejamento urbano e sua crítica quando reflito sobre a
aproximação entre teoria e prática inspirado nas contribuições de Henri Lefebvre (Costa, 2013).

36
ração única dos processos histórico-geográficos”. “A construção de tal teoria pressupõe
um continuo diálogo entre experiência, ação, formação de conceito, e teorização dialética”
(Harvey, 1989a, p. 8, tradução nossa).
Há nessas passagens de Harvey uma visível aproximação com o pensamento de
Lefebvre quando aquele autor nos fala sobre busca por uma metateoria que explique a
configuração única de processos históricos e socioespaciais, a necessidade de diálogo
com a experiência, a ação, enfim com a práxis levefebvriana, além da importância da for-
mação de conceitos e reconhecimento da necessidade da abordagem dialética.
Há, portanto, a busca de novos métodos, transcendências e novas práticas. E mais
importante, há convergências. O que está faltando talvez seja a aproximação de fato de
tudo isto. As lutas pelo comum (commons), que é uma prática mais que uma teoria, contri-
buem para esta aproximação entre teoria e prática (Costa, 2013). Pode-se dizer o mesmo,
por exemplo, das cartografias sociais. Para que se realizem é necessário que sejam conhe-
cidas as causas dos processos de exclusão socioespacial, de espoliação urbana, de despos-
sessão, que parecem inexoráveis. Para isto é preciso conhecer o movimento do capital no
tempo e no espaço, para o que os pressupostos da abordagem da economia política ur-
bana e sua crítica são imprescindíveis. Enfim, estamos falando de processos que, por um
lado, são simultaneamente econômicos, sociais, políticos e culturais e, por outro, referem-
-se tanto a conceitos teóricos quanto a práticas. Daí, como síntese, vale voltar à passagem
de Lefebvre em a A revolução urbana que inspirou a edição deste livro:

O urbano (abreviação de “sociedade urbana”) define-se, portanto, não


como uma realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de ma-
neira recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtuali-
dade iluminadora (...) De agora em diante, o urbano é abstrato unicamente
sob o título de abstração científica, isto é, legítima. O conhecimento teórico
pode e deve mostrar o terreno e a base sobre os quais ele se funda: uma
prática social em marcha, a prática urbana em via de constituição, apesar dos
obstáculos que a ela se opõem (Lefebvre, 1999, p. 28, grifos do autor).

Um tanto complexas, mas fascinantes essas reflexões para nos ajudar a pensar a
revolução urbana como um processo voltado para a busca da emancipação via realização
da sociedade urbana. E para isto é necessário dar sequência e/ou fazer brotar novas prá-
ticas urbanas vinculadas à teoria, sempre em processo dinâmico de aproximação com as
mudanças nas relações sociais, base da revolução urbana nos termos de Lefebvre:

(...) utilizando-se as palavras “revolução urbana”, designaremos o conjun-


to das transformações que a sociedade contemporânea atravessa para
passar do período em que predominam as questões de crescimento e de

37
industrialização (modelo, planificação, programação) ao período no qual
a problemática urbana prevalecerá decisivamente, em que a busca das so-
luções e das modalidades próprias à sociedade urbana passará ao primeiro
plano (Lefebvre, 1999, p. 19, grifo do autor).

Portanto, penso que prevalece a ideia de apropriação social como um processo,


um termo que é capaz de se referir às resistências e às práticas pró-ativas que se contra-
põem à expropriação, enfim, uma ideia que caminha em paralelo com o direito à cidade,
com a (re)conquista do comum (commons), com a luta pelo e no espaço diferencial,17
com a busca do urbano ou da sociedade urbana e, por que não, com a construção con-
tínua e permanente da revolução urbana.

REFERÊNCIAS
BENEVOLO, L. As origens da urbanística moderna. Portugal: Editora Presença; Brasil Livraria Martins Fon-
tes, 1981.
CAMARGO, C. P. F. et al. São Paulo 1975 – crescimento e pobreza. São Paulo: Edições Loyola, 1976.
CARDOSO, F. H. O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
CARDOSO, F. H. Autoritarismo e redemocratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
CASTELLS, M. Theory and ideology in urban sociology. In: PICKVANCE, C. (Ed.). Urban sociology.
London: Tavistock Publications, 1976. p. 60-84.
CASTELLS, M. The urban question: a Marxist approach. London: Edward Arnold, 1977.
CASTELLS, M. City, class and power. London: The Macmillan Press, 1978.
CASTELLS, M. Cidade, democracia e socialismo: a experiência das associações de vizinhos de Madri. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CHOAY, F. O urbanismo: utopias e realidades – uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.
COSTA, G. M. Collective consumption in an urbanizing society; basic sanitation provision in Brazil: 1960-1980.
London: London School of Economics and Political Science, 1984. (Tese de Doutorado).
COSTA. G. M. Teoria, pesquisa, problemas e planejamento urbanos no Brasil. Análise & Conjuntura, Belo
Horizonte, Fundação João Pinheiro, v. 6, n. 1, p. 48-58, 1991.
COSTA, G. M. Exclusão socioespacial na era urbano-industrial: uma introdução ao tema. In: ANAIS DO
VII ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 1997, ANPUR/MDU/UFPE, 1997. v. 2, p. 1421-1436.

17 As questões do direito à cidade, do comum e do espaço diferencial estão problematizadas e desenvolvidas


respectivamente nos textos de João B. M. Tonucci Filho, Rafael de Oliveira Alves e Natália Lelis, que
constituem artigos desta coletânea.

38
COSTA, G. M. A contribuição da teoria de espaço de Lefebvre para a análise urbana. In: LIMONAD, E.
Entre a ordem próxima e a ordem distante: contribuições a partir do pensamento de Henri Lefebvre. Niterói:
GECEL-UFF, 2003. (Livro eletrônico - CD- ROM. Disponível em: <http://www.anpur.org>).
COSTA, G. M. Análise de processos socioespaciais: contribuições metodológicas a partir da teoria e de
resultados de pesquisas. Geographia, v. 13, p. 29-47, 2005. Disponível em: <http://www.uff.br/geographia>.
COSTA, G. M. Teorias socioespaciais: diante de um impasse? Etc... Espaço, Tempo e Crítica, v. 1, n. 2, jul.-set.
2007. Disponível em: <http://www.uff.br/etc>.
COSTA, G. M. A aproximação entre teoria e prática urbana: reflexões a partir do pensamento de Henri
Lefebvre. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, n. 1, p. 168-189, jan.-jun. 2013. Disponível em:
<http://[email protected]>.
COSTA, H. S. M.; COSTA, G. M. Repensando a análise e a práxis urbana: algumas contribuições da teoria
do espaço e do pensamento ambiental. In: DINIZ, C. C.; LEMOS, M. B. (Org.). Economia e território. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 365-382.
FAINSTEIN, S. Justice, politics and the creation of urban space. In: MERRIFIELD, A.; SWYNGEDOUW,
E. (Ed.). The urbanization of injustice. New York: New York University Press, 1997. p. 18-44.
FARIA, V. E. Occupational marginality, employment and poverty in urban Brazil. Harvard University, 1976.
(PhD Thesis).
GALVÊAS, E. Apresentação. In: MALTHUS, Thomas Robert. Princípios de economia política e considerações
sobre sua aplicação prática. São Paulo: Victor Civita, 1983. p. ix-xxxvii. (Os Economistas)
GOTTDIENER, M. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993.
HARVEY, D. Social justice and the city. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973.
HARVEY, D. The urban process under capitalism: a framework for analyses. In: DEAR, M.; SCOTT, A. J.
(Ed.). Urbanization and urban planning in capitalist societies. New York: Methuen, 1981. p. 91-122.
HARVEY, D. The urban experience. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1989a.
HARVEY, D. The condition of postmodernity. Oxford: Basil Blackwell, 1989b.
HARVEY, D. Justice, nature and the geography of difference. Cambridge: Blackwell Publishers, 1996.
HARVEY, D. Espaços de esperança. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
HARVEY, D. O novo imperialismo. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
KOFMAN, E.; LEBAS, E. (Ed.).Writings on cities: Henri Lefebvre. Cambridge: Blackwell Publishers, 1996.
KOWARICK, L. Capitalismo, dependência e marginalidade urbana na América Latina: uma contribuição teóri-
ca. São Paulo: Editora Brasileira de Ciências, 1974. p.77-96. (Estudos CEBRAP, 8)
KOWARICK, L. Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
KOWARICK, L. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LEFEBVRE, H. Space: social product and use value. In: FREIBERG, J. (Ed.). Critical sociology: European
perspective. New York: Irvington Publishers, 1979. p. 285-295.
LEFEBVRE, H. The production of space. 3. ed. Oxford: Blackwell, 1993.

39
LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2008.
LOJKINE, J. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
MARTINS, José de Souza. O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural.
Estudos Avançados, v. 15, n. 43, p. 31-36, 2001.
MASSEY, D. Space, place and gender. Minneapolis: University of Minneapolis Press, 1994.
MONTE-MÓR, R. L. Planejamento urbano no Brasil: emergência e consolidação. Revista eletrônica
ETC... Espaço, Tempo e Crítica, n. 1, v. 1, abr.-jun. 2007.
NUN, J. Sobrepoblacion relativa, ejercito industrial de reserva y massa marginal. Revista Latino-americana de
Sociologia, v. 4, n. 2, p. 178-237, jul. 1969.
OLIVEIRA, F. A economia brasileira: crítica à razão dualista. 4. ed. São Paulo: CEBRAP, 1981.
PARK, R. E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VE-
LHO, O. G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. p. 26-67.
QUIJANO, A. The marginal pole of the economy and the marginalized labour force. Economy and Society,
v.3, n. 4, p. 393-428, nov. 1974.
ROBERTS, B. Cities of peasants. London: Edward Arnold, 1978.
SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Hucitec/USP, 1978.
SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo – razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro:
Zahar, 1973. p. 11-25.
SINGER, P. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense/CEBRAP, 1973.
SOJA, E. Postmodern Geographies. London/New York: Verso, 1989.
SOJA, E. Thirdspace: journeys to Los Angeles and other real-and-imagined places. Cambridge: Blackwell
Publishers, 1996.
TOPALOV, C. Fazer a história da pesquisa urbana: a experiência francesa desde 1965. Espaço e Debates, ano
VIII, n. 23, p. 5-30, 1988.
TOPALOV, C. La urbanization capitalista: algunos elementos para su análisis. Mexico: Editorial Edicol Me-
xico, 1979.
VELHO, O. G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
WIRTH, L. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, O. G. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1973. p. 90-113.
YUJNOVSKY, O. Urban spatial structure in Latin America. In: HARDOY, J. E. (Ed.). Urbanization in Latin
America: approaches and issues. Garden City: Anchor Books, 1975. p. 191-219.

40
Natureza e cidade na periferia:
ampliando o direito à cidade
Heloisa Soares de Moura Costa

Este texto tem a intenção de contribuir para a construção da interface urbano-ambiental


como um campo de pesquisa e de ação. Para tanto, apoia-se em objetos de pesquisa e
de formas de abordagem que considerem os processos, políticas e lutas espaciais como
simultaneamente urbanos e ambientais, além de serem também, evidentemente, sociais,
econômicas, culturais etc., seja revisitando análises anteriores ou incorporando novos
processos. As análises dos processos de produção do espaço e das políticas públicas,
bem como o envolvimento em processos de planejamento centrados na RMBH (Re-
gião Metropolitana de Belo Horizonte), constituem o referencial que vem alimentando
empiricamente a reflexão. Nesta trajetória pode-se mencionar uma constante revisão crí-
tica e conceitual dos mecanismos e instrumentos de regulação urbanística e ambiental,
identificando e analisando conflitos neste campo; identificando práticas que renovam e
questionam as relações entre natureza e cidade e, a partir dela, revisitando a discussão da
dinâmica imobiliária e habitacional em bases que transcendam à puramente econômica;
aprendendo a ver a cidade e a urbanização a partir dos elementos da natureza, em especial
a terra e a água, rediscutindo processos de gestão do espaço, com ênfase na complexidade
da gestão metropolitana, nosso referencial empírico mais imediato.
Apesar dos notáveis avanços na compreensão de processos tão variados nos úl-
timos anos, expressos em textos, planos, relatórios de pesquisa, trabalhos de conclusão,
permanece um descompasso entre o avanço das práticas espaciais e das formulações
teóricas correspondentes que efetivamente articule conceitualmente tais processos.
Alguns ensaios de aproximação foram feitos em momentos anteriores, seja ao proble-
matizar noções aparentemente cristalizadas de sustentabilidade urbana, seja tomando
emprestado elementos da ecologia política e de sua aparente antítese, a modernização
ecológica, seja tentando compreender as trajetórias das políticas urbanas e ambientais,
seja buscando entender o sentido contemporâneo de produção do espaço em metró-
poles do capitalismo periférico em que se mesclam agentes novos e tradicionais em
várias dinâmicas e configurações (Costa, 2000; 2006).
O presente artigo busca resgatar elementos do debate teórico nesta direção e ar-
ticular algumas contribuições sobre a natureza a partir da obra de Lefebvre, reforçando
seu valor de uso, mas crescentemente transformado em valor de troca ao ser inserida no
espaço abstrato do capitalismo, buscando apontar o caráter fictício (Polanyi, 1980), em-
bora real, de tal metamorfose. Assim, parte-se do princípio segundo o qual considerar dia-
leticamente os elementos da natureza na cidade – terra, água, energia, ar – em sua dupla
caracterização – valor de uso/valor de troca, bem comum/mercadoria – significa ampliar
o debate sobre o direito à cidade e à natureza como o direito ao comum, como valor de
uso coletivo em permanente embate com as pressões pela valoração econômica, como
luta por um espaço potencializador de mudanças, logo, como espaço diferencial.
Alguns pressupostos vêm norteando esta busca, tanto no que se refere à teoria ur-
bana e às experiências de planejamento, quanto aqueles associados às contribuições do
socioambientalismo, como se verá nas seções seguintes.

Notas seletivas sobre a trajetória da análise e da teoria urbana

A trajetória da análise e teoria urbana que nos acompanha vai desde a economia política da
urbanização à produção social do espaço (Lefebvre, 1991; 1999). Parte-se da concepção do
espaço como socialmente produzido, portanto, fruto da intervenção de agentes sociais que
têm interesses diferentes, muitas vezes conflituosos, cuja atuação também se pauta por racio-
nalidades distintas, mesmo em casos de interesses convergentes, o que é importante quando
se considera as possibilidades de alianças e mediações possíveis em situações concretas.
Da economia política da urbanização, ressalta-se a funcionalidade da cidade para
a acumulação capitalista, em especial para o processo de reprodução do capital e da força
de trabalho (Lojkine, 1976; Singer, 1973; e Maricato, 1979, para o caso brasileiro; entre
outros). Desta articulação entre acumulação e funcionalidade do espaço urbano, desen-
volvendo um olhar a partir da periferia (do capitalismo), surge o conceito de espoliação
urbana formulado por Kowarick (1979) ainda na década de 1970, numa espécie de ante-
cipação, pela negação, do conceito de direito à cidade. Assim, de uma certa forma, a perife-
ria (das grandes cidades), vista pelo olhar da economia política da urbanização, seria a não
cidade, espaço funcionalizado pelo capital na sua versão de inserção periférica no capita-
lismo agora globalizado, separada do espaço do poder e dificilmente vista como espaço

42
da festa, ainda que considerando-se visões menos economicistas possam ser identificadas
inúmeras formas de apropriação dos espaços coletivos nas periferias.
Uma vertente desta abordagem, desde então, se concentraria na análise mais específica
das estratégias e formas de atuação dos capitais fundiário e imobiliário na produção do espa-
ço, tendo por referência o debate sobre a renda da terra. No debate internacional da década
de 1970, as contribuições de Lipietz (1974), Topalov (1974) e Ball (1977) são referências
ainda válidas. Tal debate perde parcialmente o fôlego nos anos de 1980 e 1990 entre nós, res-
surgindo na última década transformado, possivelmente na mesma medida em que o capital
imobiliário ganha novo alento, redefinindo suas estratégias de organização da produção e do
trabalho, e de acumulação, tornando-se mais internacionalizado, abrindo-se a novos investi-
dores nas bolsas de valores, produzindo, desta forma, transformações significativas nas cidades
brasileiras. Autores como David Harvey, que já havia participado do início desse debate (Har-
vey, 1973), retomam a discussão contemporânea enfatizando o renovado papel do Estado
na atualização da valorização do espaço (Harvey, 2005), especialmente nas áreas centrais e
deterioradas que necessitam ser requalificadas, renovadas, e novamente inseridas nos circui-
tos de valorização do capital. São várias as análises de tais processos, muitas delas associando
valorização imobiliária a investimentos na área da cultura, eventualmente da natureza, e dos
espaços públicos e coletivos (Smith, 1996; Zukin, 1996). A disputa pela apropriação de tais
espaços vem caracterizando uma versão urbana dos commons (Harvey, 2012).
Vistos de uma perspectiva lefebvriana, as contribuições originárias da economia
política da urbanização remetem principalmente à dimensão do espaço abstrato, central
para a reprodução do capitalismo, à qual se articulam outras dimensões, o espaço social –
espaço da vivência, da sociabilidade e da apropriação das muitas dimensões implícitas na
vida urbana – e o espaço diferencial, uma outra formulação que não se diferencia integral-
mente da dimensão anterior, no qual a ênfase recai nas possibilidades de transformação,
nos movimentos sociais, nos germes da política implícitos no espaço e revelados e poten-
cializados pelas relações sociais ali estabelecidas.
O referencial teórico mais amplo, a noção de produção social do espaço (Lefe-
bvre, 1991; 1999), contempla, para efeitos da discussão aqui proposta, entre outros, os
seguintes aspectos:

• a produção material do espaço, do ambiente construído, envolvendo sua base eco-


nômica, a infraestrutura, as edificações, as materialidades, inclusive os espaços não
construídos, produtivos, de lazer e de preservação;
• a produção social da natureza, como ambiente transformado, muitas vezes mate-
rializada como paisagem na expansão urbana, vital para o metabolismo das cida-
des e para sua reprodução;

43
• a produção e reprodução de valores, modos de vida, manifestações culturais, sabe-
res, desejos e padrões de consumo;
• a produção e reprodução de relações sociais, de mercado e de poder, muitas vezes
“naturalizadas” e reproduzidas como privilégios, manifestações assimétricas mate-
rializadas espacialmente em várias formas de segregação e exclusão;
• a constituição e reprodução de um aparato de planejamento e regulação que estabelece
regras e critérios para a atuação dos agentes, estabelece acordos de convivência, instru-
mentos de compensação e de troca, bem como instâncias de explicitação e negociação
dos conflitos e disputas, em diferentes graus de representação dos grupos sociais.

Do interior desta complexidade em permanente transformação emergem as experi-


ências de planejamento, em especial a trajetória de políticas urbanas e ambientais brasileiras
das últimas três décadas. Em termos gerais como é amplamente conhecido, pode-se dizer
que há um movimento que parte do planejamento funcionalista de base modernista rumo
à construção de uma trajetória de intervenção rumo ao direito à cidade. Tal trajetória, além
de paulatinamente reconhecer, a partir de amplas lutas urbanas, os processos socioterrito-
riais populares e usualmente informais como parte constitutiva da urbanização brasileira,
incorporou em diferentes graus de representatividade, legitimidade e eventual radicalidade,
os processos, mecanismos e instâncias de participação ao planejamento urbano e ambiental.
Assim, os conflitos entre agentes sociais e seus interesses ocorrem tanto nos con-
frontos diretos, a exemplo de ocupações, remoções, disputas por localizações etc., como
no interior dos espaços, arenas e instâncias de debate e formulação de políticas urbanas e
ambientais. Os conselhos, audiências públicas, conferências, oficinas participativas, plená-
rias, assembleias, entre outros, passam a ser lugares de exercício da política e de definição de
políticas, acordos, negociações de diversas ordens. Embora constituam espaços públicos
(Dagnino, 2002) potencialmente democráticos, a participação em tais espaços é constan-
temente atravessada pelas assimetrias de poder – material e simbólico – que marcam as
condições de desigualdade entre os agentes sociais engajados no processo: do domínio
do conhecimento técnico e da linguagem, à disponibilidade de tempo e de recursos para
participar, das estratégias intimidatórias à destituição dos saberes comuns, entre outras.
O planejamento tal qual o vimos experimentando tem sido construído, por um
lado, com vistas a viabilizar a provisão direta dos elementos materiais da urbanização, os
investimentos em serviços e infraestrutura urbana, sanitária, industrial, habitacional, social
etc. e, por outro, para estabelecer os mecanismos regulatórios para a atuação dos diferen-
tes agentes na produção do espaço urbano e regional, a exemplo das legislações ambien-
tal, urbanística e tributária, entre outras. Numa generalização pode-se dizer que se trata
da produção do espaço abstrato, uma vez que são poucas as políticas que conseguem ir

44
além deste e atuar mais diretamente no espaço social. Já as lutas urbanas e mobilizações
sociais de forma mais ampla vão na direção das demais dimensões do espaço lefebvriano,
o espaço social e principalmente o espaço diferencial.
Compreende-se os objetivos, conteúdos e estratégias de planejamento, as políticas
públicas e as propostas de intervenção como decorrência das formas de leitura e de enten-
dimento dos processos de produção do espaço urbano e da natureza, ou seja, há uma clara
relação entre concepção teórica e prática espacial. Nesse sentido é importante apreender
como o debate ambiental surge e se articula com o debate urbano, ou pelo menos como a
urbanização aparece no debate ambiental, como se ensaia a seguir.

Socioambientalismo e urbanização1

O debate socioambiental contemporâneo vem se tornando cada vez mais complexo e, de


certa forma, polarizado, à medida que a temática ambiental vai sendo incorporada pelas vá-
rias áreas do conhecimento e pela prática dos agentes sociais. A partir da identificação de
desastres inicialmente tidos como fatos isolados, tem início as reações públicas e a progressi-
va associação da degradação ambiental às formas de produção e consumo (Hogan, 1989).
A partir de meados do século passado, o campo da ecologia política surgiu trazendo
a análise crítica das formas e custos de apropriação da natureza como um elemento central
para a compreensão do desenvolvimento capitalista. Num primeiro momento o debate
opunha ambientalistas e desenvolvimentistas, com forte participação de uma demografia
de viés neomalthusiano, que atribuía ao crescimento demográfico e consequentemente às
práticas e estratégias de sobrevivência dos grupos sociais pobres uma parcela considerá-
vel pela degradação ambiental de seus países e regiões. A seguir, a percepção de limites na
natureza, a noção de escassez, os custos crescentes associados à poluição industrial, entre
outros fatores, contribuíram para que a questão ambiental fosse formulada de forma mais
abrangente e internalizada, não sem lutas, por vários agentes sociais. Entre estes, estão os
movimentos ambientalistas e os movimentos sociais em geral, alguns setores do capital
produtivo, notadamente o industrial, os que exploram a natureza de forma intensiva e o
Estado, por meio de processos de regulação ambiental. Ao se institucionalizar progressiva-
mente, porém, o processo perde a radicalidade dos primeiros movimentos, então pautados
na crítica à modernidade capitalista e à sociedade urbano-industrial em geral.
Este processo, afeito ao campo da modernização ecológica (Harvey, 1996), teve o
mérito de incorporar alguns parâmetros ambientais aos processos produtivos e às políti-
cas públicas e privadas. Trata-se da introdução de parâmetros, mecanismos e instrumen-

1 Parte deste texto foi originalmente publicado em Costa (2012).

45
tos de regulação no âmbito do espaço abstrato e da eventual alteração das condições gerais
de produção. Nesse sentido internaliza para este campo, da produção do espaço abstrato,
um conjunto de conflitos e disputas acerca de que setores ou grupos sociais devem (ou
podem) arcar com os custos sociais e ambientais adicionais. Nas últimas décadas, ganha
força um movimento de repolitização da ecologia política, fundamentada por princípios
de justiça socioambiental e de reconhecimento dos conflitos socioambientais como uma
instância privilegiada de luta contra a desigualdade na apropriação social da riqueza e do
conhecimento. Nesta perspectiva ganham centralidade estudos sobre estratégias de de-
senvolvimento de reprodução social, em particular das formas de apropriação da natureza
de grupos sociais até então invisibilizados, populações tradicionais e pequenas comunida-
des, cujas práticas agrícolas, extrativas, culturais e reprodutivas são radicalmente transfor-
madas face à introdução das relações capitalistas de produção.
O debate em torno das mudanças ambientais, por exemplo, emerge do interior deste
campo polarizado, tendo como base os princípios da modernização ecológica, segundo a
qual a internalização de critérios ambientais constitui elemento central para os setores de
ponta do processo de acumulação, privilegiando-se a tecnologia e a internalização/redução
de custos ambientais para enfrentar a escassez de recursos. Os marcos regulatórios concebi-
dos pelos princípios da chamada economia ecológica pautam-se pela noção de valoração
econômica da natureza e operam a partir da busca pelo consenso. A generalização da pre-
valência do valor de troca implícita na concepção dos chamados serviços ambientais e o
estabelecimento de medidas compensatórias por perdas de qualquer ordem, individuais ou
coletivas, contribuem para naturalizar o consumo e a transformação da natureza em mer-
cadoria como fundamentos da sociedade contemporânea. A maior parte da legislação am-
biental, urbanística e social recente, inclusive aquela que resultou de expressiva mobilização
social – Estatuto da Cidade, Lei das Águas, entre outras –, internaliza tais princípios.
De fato, há uma progressiva incorporação da dimensão ambiental nas políticas pú-
blicas urbanas, por exemplo, na adoção de parâmetros urbanísticos que buscam resgatar
elementos da natureza nas cidades, como índices de permeabilidade dos solos na ocupa-
ção de lotes, adoção de limitações altimétricas em vista da incidência do sol ou por ques-
tões paisagísticas e topográficas, políticas de proteção e alerta contra riscos geológicos,
de inundações etc., especialmente em áreas de grande vulnerabilidade socioambiental. O
conceito de capacidade de suporte do ambiente construído, da infraestrutura ou da natu-
reza na cidade – cursos d’água, vegetação etc.–, vem sendo usado para informar padrões
de adensamento e de uso do solo. A instituição de zoneamentos de proteção ambiental,
novos e existentes, prolifera por planos de diferentes naturezas, com maior ou menor efi-
cácia, alguns articulados a usos e formas de ocupação controlados, outros não admitindo
a presença de pessoas ou atividades econômicas, o que, muitas vezes, desencadeia novas

46
disputas entre os agentes sociais envolvidos. Neste caso, o que está em questão são dife-
rentes visões das relações entre sociedade e natureza, que se materializam em múltiplos
conflitos socioambientais nas cidades e fora delas.
Mimetizando a legislação ambiental, a regulação urbanística passou a adotar a
noção de “avaliação de impacto” urbanístico, de vizinhança, entre outros, como uma
ferramenta a auxiliar a análise de licenciamento de atividades potencialmente transfor-
madoras do espaço. Da mesma forma, passa a prever explicitamente medidas compen-
satórias como moeda de troca para as concessões urbanísticas e construtivas. Repete-se
no âmbito intraurbano/metropolitano o processo de incentivo/punição presente nas
medidas compensatórias comumente utilizadas no licenciamento ambiental conven-
cional de atividades produtivas, que tem por elemento central o valor de troca, a valora-
ção econômica do ambiente natural ou construído.
Outra articulação importante tem sido a priorização de políticas relativas à vul-
nerabilidade e ao risco ambiental. Assim, políticas pioneiras de avaliação e contenção de
risco geológico (e eventualmente de inundações), a exemplo de políticas municipais esta-
belecidas para intervenções em favelas em Belo Horizonte e outras cidades brasileiras ain-
da no final do século passado, articulavam de forma direta o reconhecimento do direito de
permanência das famílias nas áreas ocupadas com a eliminação ou diminuição do risco,
dentro de padrões tidos como aceitáveis. Mais recentemente, esta questão foi retomada
em âmbito nacional, no bojo da elaboração de planos municipais de regularização fun-
diária, financiados pelos governos federal e estaduais, que vêm produzindo importantes
inventários das condições de irregularidade urbanística, ambiental e construtiva nos mu-
nicípios e propostas de intervenção com vistas à regularização.
Do ponto de vista da produção do espaço pelos agentes sociais formais, observa-se
uma progressiva incorporação da natureza nos processos de produção e valorização do espa-
ço, a exemplo da potente dinâmica imobiliária nos processos de expansão urbana, em que de
múltiplas formas a proximidade, acesso ou controle sobre a natureza vem promovendo a ele-
vação dos patamares de valorização da terra e dos imóveis, com importantes implicações para
a democratização do acesso à terra, logo para o direito à cidade (Costa, 2006). O controle e a
destinação das rendas diferenciais assim geradas vêm sendo objeto de disputa entre os agentes
sociais envolvidos, diretamente ou indiretamente, via propostas de utilização de instrumentos
de recuperação da mais-valia fundiária e imobiliária e outros instrumentos de políticas de uso
do solo como zoneamentos, planos diretores, planos de manejo, entre outros.
Em termos mais amplos o debate sobre a preservação e visibilização da nature-
za nos contextos urbanos e metropolitanos tem renovado e tornado mais complexo o
debate sobre a preservação ambiental e seus mecanismos, como as categorias de criação
de unidades de conservação e suas especificidades em ambientes mais intocados e am-

47
bientes em elevado grau de transformação como as áreas urbanas. O recente debate sobre
a revisão do Código Florestal e sua impermeabilidade para com as especificidades dos
ambientes urbanos é um exemplo da dificuldade de aprofundamento desta temática.
Por outro lado, a abordagem da ecologia política crítica destaca primordialmente a
ênfase no valor de uso, reconhecendo o acesso à natureza, à cultura e ao espaço como um
direito essencial das pessoas e das coletividades. Buscando a radicalidade original, retoma
o questionamento ao modelo civilizatório – produção, reprodução e consumo – gerador
de conflitos em torno do controle e apropriação de recursos desigualmente distribuídos.
O conceito de desenvolvimento, mesmo aquele dito sustentável, é questionado e asso-
ciado ao desenvolvimento capitalista, ainda que em sua fase dita ecológica, na qual ganha
importância a contradição entre destruir e preservar (O’Connor, 1988; Escobar, 1996).
As lutas que se estabelecem a partir daí têm caráter de emancipação social e empodera-
mento. Embora marcadamente distintas no debate teórico-conceitual, no campo das prá-
ticas espaciais as duas visões – modernização ecológica e ecologia política – coexistem,
tanto na formulação e implementação de políticas ambientais como na atuação concreta
dos agentes sociais envolvidos. Algumas destas práticas potencializam de forma clara o
espaço diferencial nos termos propostos por Lefebvre (1991).
Assiste-se assim a uma ampliação dos movimentos sociais que se articulam em
torno de questões ambientais urbanas ou motivadas pela urbanização e por situações de
injustiça socioambiental (Acselrad, 2004), como várias pesquisas que inventariam con-
flitos socioambientais atestam, a exemplo dos mapeamentos de conflitos elaborados por
vários grupos e laboratórios de pesquisa em universidades brasileiras.2
Considerando as escalas temporais e espaciais, há uma polissemia com relação a
qual a escala apropriada para o debate ambiental. No âmbito global, qual escala de tem-
po é privilegiada? O tempo geológico? O tempo de duração dos tratados internacionais?
Para Giddens (2009), o que está em jogo é a preservação não do planeta, mas sim, das
condições, ainda que transformadas, de reprodução da sociedade urbano-industrial em
suas várias dimensões. Dessa forma, reformulam-se os termos, mas não a essência, do tra-
dicional embate entre perspectivas otimista e catastrofista que há décadas pauta o debate
sobre população, meio ambiente e desenvolvimento. Há uma grande valorização do saber
dos especialistas – domínio da tecnologia, do instrumental analítico; entretanto, o debate
encontra-se ainda distante do cotidiano da sociedade, de suas práticas de produção, con-
sumo, uso e apropriação do espaço e da natureza.

2 Ver, entre outros, o Observatório dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais, Grupo de Estudos em
Temáticas Ambientais, FAFICH/UFMG, e o Observatório de Conflitos Urbanos, Laboratório Estado,
Trabalho, Território e Natureza, IPPUR/UFRJ.

48
No âmbito local, mais próximo das pessoas e de seu cotidiano, bem como da
formulação e implementação das políticas públicas, o debate aponta para o resgate do
discurso da sustentabilidade como uma utopia de futuro, possibilitando maior percep-
ção das relações entre efeitos de mudanças ambientais, ou situações de risco de forma
geral, e processos de produção do espaço. Ao incorporar criticamente os conceitos de
mitigação e adaptação, resignificando a linguagem que se generalizou a partir deste
subcampo temático, o debate pode contribuir para resgatar noções de planejamento
construído a partir do aprendizado social e reinventar alternativas de desenvolvimento
territorial de muitas formas, seja questionando as matrizes energética, produtiva e de
consumo, seja reorganizando a pauta de demandas dos movimentos sociais e atribuin-
do um sentido de urgência à transformação social e espacial.
Nesse sentido, cabe resgatar uma interessante distinção feita por Martine (1993)
em publicação pioneira sobre população, meio ambiente e desenvolvimento, apontando
diferentes ordens dos problemas ambientais: aqueles típicos de países industrializados, cujo
enfrentamento requeria mudanças nos modelos de desenvolvimento; e aqueles típicos da
urbanização incompleta da periferia do capitalismo, na qual o enfrentamento do passivo so-
cioambiental se daria por meio de políticas públicas sociais, sanitárias, ambientais, entre outras.
O debate contemporâneo reforça a necessidade de priorizar ambas as ordens de questões si-
multaneamente e redefine a agenda política nos lugares. Estabelece também a premência da
articulação entre mudanças nos comportamentos individuais – em especial nos padrões de
consumo –, iniciativas de sensibilização (a exemplo da campanha “um dia sem meu carro”)
e questões mais estruturais, ligadas às alternativas de produção e consumo, como critérios e
restrições ambientais, trabalhistas e locacionais que incidem diretamente sobre o processo de
acumulação e de reprodução social de forma mais ampla. Trata-se de identificar quais são as
mediações possíveis entre tais dualidades: global/local, individual/estrutural.
Com relação à urbanização é importante considerar que, longe de ser um processo
homogêneo e genérico, como frequentemente aparece nas modelagens de cenários futu-
ros, a urbanização brasileira é essencialmente desigual e excludente, materializando-se em
diferentes formas e intensidades. De um lado, há a desigualdade entre indivíduos, famílias
e grupos sociais envolvendo a desigualdade socioeconômica e cultural, de direitos e de
poder, nas formas de acesso à terra e à habitação, nas possibilidades de apropriação da
cidade e de seus atributos, nas oportunidades de trabalho e acesso a serviços, entre ou-
tras. De outro lado, existe a desigualdade entre os lugares e a capacidade de seus governos
em implementar políticas públicas, inclusive planejamento: desigualdade na capacidade
financeira, administrativa e política, desigualdade para atrair investimentos produtivos ou
culturais, para lidar com as demandas urbanas e sociais, para influir na disputa pela apro-
priação de recursos naturais e bens ambientais.

49
A percepção da urbanização como expressão destes tipos de desigualdade articu-
la-se ao debate sobre mudanças ambientais por meio de algumas mediações importantes:
além do planejamento e das políticas públicas, os estudos sobre vulnerabilidade, das pes-
soas e dos lugares (Hogan; Marandola Jr., 2009), ressaltam as dimensões humanas dos
processos de mudanças ambientais, tendo o clima como um elemento visível unificador
da compreensão ou pelo menos da visibilidade de tais mudanças que atingem a todos,
porém com diferentes intensidades e consequências.
A urbanização aparece frequentemente no debate ambiental – e é replicada na dis-
cussão sobre mudanças ambientais globais e locais – como necessariamente insustentá-
vel, muitas vezes reduzida ao simplificador e despolitizado conceito de “impacto antrópi-
co”. Além das evidências de consolidação da chamada transição urbana no país, que nesta
perspectiva o colocaria como generalizadamente insustentável, cabe sempre resgatar vi-
sões mais virtuosas do processo de urbanização, como o lugar do encontro, da cultura, da
festa, das múltiplas possibilidades de inserção na vida social.
A urbanização é fruto de um processo de produção e apropriação social do espaço,
no qual interagem agentes sociais com interesses distintos e do qual resultam diferentes
configurações sociais e espaciais. No caso da urbanização brasileira, marcada pela relação
centro/periferia, assiste-se atualmente a uma redefinição de tendências de configuração es-
pacial: à tradicional concentração da riqueza e dispersão da pobreza, típicas da formação das
metrópoles e suas periferias precárias, vêm se superpondo atualmente a dispersão da riqueza
e o adensamento seletivo da pobreza. As implicações socioambientais de tais mudanças ain-
da estão para ser mais bem avaliadas. Pode-se dizer que a urbanização periférica em termos
socioespaciais constitui a norma e não a exceção, o que requer uma mudança substancial nas
formas tradicionais de pensar a urbanização, a sustentabilidade e o planejamento.
Para os estudiosos e ativistas do campo ambiental é imprescindível compreen-
der a natureza da urbanização (brasileira), a diversidade dos processos de produção
e a apropriação do espaço e da natureza, bem como a intensidade das mudanças no
padrão demográfico atual, de forma a introduzi-las nas modelagens de cenários e ou-
tros instrumentos analíticos utilizados, nas lutas políticas, nas campanhas e demandas
por um outro futuro. Aos estudiosos da urbanização, planejadores e formuladores
de políticas, e movimentos sociais, cabe pensar o futuro e a transformação social a
partir de múltiplas perspectivas socioterritoriais em escalas que variam do global ao
local, incorporando a análise crítica das mudanças ambientais como um elemento
importante da realidade social, contribuindo, desta forma, para o avanço no debate
contemporâneo sobre a sustentabilidade na periferia do capitalismo e, em especial, no
contexto da urbanização brasileira. A interação dialética entre os dois processos pode
conduzir à ampliação do direito à cidade e à natureza.

50
Em termos dos processos políticos em curso nas duas últimas décadas, tal esforço im-
plica reforçar a construção e implementação de uma ordem jurídico-urbanística que reconhe-
ça e englobe a totalidade da cidade, suas formas e representações, expressa pela conflituosa tra-
jetória da matriz da reforma urbana. Implica também a luta pela construção de uma regulação
ambiental pautada na noção de direitos coletivos à natureza como valor prioritário que avance
no desenvolvimento de mecanismos de compensação – valoração e prestação de serviços
ambientais –, reforçando, inclusive, a dimensão das particularidades territoriais, porém sem
sucumbir à ideia de que tudo é compensável e pode ser reduzido a um valor monetário.
Trata-se, portanto, de reforçar politicamente o reconhecimento e a legitimidade de
um campo de ação na esfera socioambiental que abrange agentes sociais distintos com
posições e interesses em conflito, atuando a partir de instrumentos e mecanismos téc-
nicos e regulatórios – análises de impacto, planos diversos – e de instâncias de media-
ção – conselhos, conferências, audiências públicas –, que precisam ser permanentemente
problematizados de forma a cumprirem seu papel de lócus de discussão e de formulação
de políticas. Trata-se de um esforço de construção de uma epistemologia que incorpore
teoricamente este conjunto de questões, de forma crítica e propositiva.
Para finalizar, cabe apontar que vários trabalhos vêm contribuindo para a cons-
trução de uma ecologia política urbana (Heynen, 2014; Heynen, Kaika; Swyngedouw,
2006; Acselrad, 1999; Costa; Costa, 2005; Costa, 2000; Peet; Watts, 1996), ainda que
nem sempre nomeiem desta forma este campo disciplinar. Cabe destacar um texto pio-
neiro de Monte-Mór (1994), que inverte os termos do debate até então travado, ao ques-
tionar a concepção usual de espaço urbano como espaço morto e reforçar a importância
ambiental das cidades, bem como a necessidade de ressaltar a natureza nelas presente.
Outra tentativa inovadora foi feita por Swyngedouw (2001) ao usar a produção e cir-
culação da água na cidade como fio condutor explicativo de uma intrincada teia de relações
sociais, políticas, ecológicas e espaciais. O texto faz uma incursão pelo universo lefebvria-
no para explicar teoricamente o processo de urbanização concebido como essencialmente
híbrido, um “cyborg”, simultaneamente natural e social, real e fictício, chamando a atenção
para o que denomina de objetos intermediários, elementos de transição, de mediação entre
processos nos quais natureza e sociedade se confundem e se transformam dialeticamente.
Um exercício importante e necessário dentro da perspectiva adotada neste texto,
que não será nele desenvolvido mas permanece como um convite em aberto, será pensar
outros elementos da natureza como capazes de fazer tal mediação, a exemplo da terra.
Parafraseando Swyngedouw (2001), a terra é por excelência um objeto híbrido, síntese
de natureza e artefato, cultura e poder. A transformação da terra, de valor de uso em mer-
cadoria, é bem conhecida, e associa-se ao surgimento do capitalismo. Harvey (1996), por
exemplo, enfatiza esta transição como o momento da privatização da terra enquanto ele-

51
mento da natureza, levando-nos a perceber o quanto se vivencia atualmente transforma-
ção semelhante com outros elementos, como por exemplo, a água.
Nesse sentido Polanyi (1980) faz uma instigante leitura da transição para o capi-
talismo e da necessidade de transformação, de forma fictícia, do trabalho, da terra e do
dinheiro em mercadorias numa sociedade de mercado. Para ele,

o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos
quais consistem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas
existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a
substância da própria sociedade às leis de mercado (Polanyi, 1980, p. 84).

E ainda

(...) de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são
mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para a atividade huma-
na que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para
a venda mas por razões inteiramente diversas, e esta atividade não pode
ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada.
Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo ho-
mem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra
e, como regra, ele não é produzido mas adquire vida através do mecanis-
mo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a
venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias
é inteiramente fictícia (Polanyi, 1980, p. 84-85).

No caso brasileiro a terra é base de relações sociais de propriedade fundantes da


estrutura social brasileira, como já bem dissecou Martins (2010). A partir da Constitui-
ção Federal de 1988 e do instrumental jurídico-urbanístico-ambiental dela decorrente,
ao direito de propriedade vem se contrapondo o direito à propriedade, à terra, como
um direito humano fundamental. Assim como o direito à água, ao saneamento, à mo-
radia, podemos ampliar conceitualmente o leque, como direito à natureza, direito à ci-
dade de forma ampla, resgatando a centralidade do valor de uso, que articula os desejos
individuais e coletivos, como a dimensão que promove o encantamento em torno dos
quais as pessoas de mobilizam.

52
REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri. Discursos da sustentabilidade urbana. Revista Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos,
n. 1, p. 79-90, 1999.
ACSELRAD, Henri (Org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
BALL, Michael. Differential rent and the role of landed property. International Journal of Urban and Regional
Research, London, Edward Arnold, v. 1, n. 3, 1977.
COSTA, Heloisa Soares de Moura. Desenvolvimento urbano sustentável: uma contradição em termos?
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 2, p. 55-71, 2000.
COSTA, Heloisa Soares de Moura. Mercado imobiliário, Estado e natureza na produção do espaço metro-
politano. In: ____. et al. (Org.). Novas periferias metropolitanas: a expansão metropolitana em Belo Horizon-
te: dinâmica e especificidades no Eixo Sul. Belo Horizonte: C/Arte, 2006. p. 101-124.
COSTA, Heloisa Soares de Moura. Mudança climática e desenvolvimento: repensando a sustentabilidade
na perspectiva populacional In: TURRA, Cássio M.; CUNHA, José Marcos (Org.). População e desenvolvi-
mento em debate: contribuições da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Belo Horizonte: ABEP,
2012. p. 105-110.
COSTA, Heloisa Soares de Moura; COSTA, Geraldo Magela. Repensando a análise e a práxis urbana:
algumas contribuições da teoria do espaço e do pensamento ambiental. In: DINIZ, Clélio Campolina; LE-
MOS, Mauro Borges (Org.). Economia e território. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 365-382.
DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, espaços públicos e construção democrática no Brasil: limites e
possibilidades. In: _____. (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
p. 279-303.
ESCOBAR, Arturo. Constructing nature. Elements for a poststructural political ecology. In: PEET, Richard;
WATTS, Michael (Ed.). Liberation ecologies. Environment, development, social movements. London: New
York: Routledge, 1996.
GIDDENS, Anthony. The politics of climate change. Cambridge: Polity Press, 2009.
HARVEY, David. Social justice and the city. London: Edward Arnold, 1973.
HARVEY, David. Justice, nature and the geography of difference. London/New York: Blackwell Publishers,
1996.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
HARVEY, David. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. London/ New York: Verso,
2012.
HEYNEN, Nik. Urban political ecology I: the urban century. Progress in Geography, v. 38, n. 4, p. 598-604,
2014.
HEYNEN, Nik; KAIKA, Maria; SWYNGEDOUW, Erik (Ed.). In the nature of cities. Urban political ecology
and the politics of urban metabolism. London/New York: Routledge, 2006.
HOGAN, Daniel. População e meio ambiente. Textos NEPO 16. Campinas: Unicamp, 1989.

53
HOGAN, Daniel; MARANDOLA JR., Eduardo (Org.). População e mudança climática: dimensões huma-
nas das mudanças ambientais globais. Campinas: Nepo/Unicamp; Brasília: UNFPA, 2009.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LIPIETZ, Alain. Le tribut foncier urbain. Paris: Maspero, 1974.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Blackwell Publishers, 1991.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LOJKINE, Jean. Contributions to a Marxist theory of capitalist urbanization. In: PICKVANCE, Chris
(Ed.). Urban sociology. London: Tavistock Publications. 1976. p. 119-146.
MARICATO, Ermínia (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1979.
MARTINE, George (Org.). População, meio ambiente e desenvolvimento. Verdades e contradições. Campinas:
Editora Unicamp, 1993.
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2010.
MONTE-MÓR, Roberto Luís. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In:
SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia Aparecida de; SILVEIRA, Maria Laura (Org.). Território: globa-
lização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/ANPUR, 1994.
O’CONNOR, James. Capitalism, nature, socialism: a theoretical introduction. Capitalism, Nature, Socialism,
v. 1, n. 1, p. 11-38, 1988.
PEET, Richard; WATTS, Michael (Ed.). Liberation ecologies. Environment, development, social movements.
London/New York: Routledge, 1996.
POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda, 1980.
SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo, Paz e Terra, 1973
SMITH, Neil. The new urban frontier. London: New York: Routledge, 1996.
SWYNGEDOUW, Erik. A cidade como um híbrido: natureza, sociedade e “urbanização-ciborgue”. In:
ACSELRAD, Henri (Org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Ja-
neiro: DP&A/Lamparina, 2001. p. 99-120.
TOPALOV, Christian. Les promoteurs immobiliers. Paris: Mouton, 1974
ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. Cidadania; Revista do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, p. 205-219, 1996.

54
Urbanização, sustentabilidade,
desenvolvimento: complexidades e
diversidades contemporâneas na
produção do espaço urbano
Roberto Luís de Melo Monte-Mór

Introduzindo

Começar um texto com essas palavras desgastadas – mas que devem permanecer entre
nós ainda por muito tempo – implica ressaltar que é preciso re-significar velhos conceitos
se queremos explorar algumas das transições epistemológicas e ontológicas necessárias
para se avançar na compreensão das mudanças que vemos acontecer no mundo con-
temporâneo. Seria ótimo contar com novas/outras palavras para discutir a produção do
espaço (urbanização), a natureza humana e não humana (sustentabilidade), e as transfor-
mações desalienadas do mundo para a emancipação social dos povos (desenvolvimento).
Mas elas ainda não existem de fato, e isto indica que vivemos um momento de transição
entre modos de organização social, política e econômica, para não ousar falar em transi-
ção de modos de produção. Ademais, parece evidente que grandes narrativas como mo-
dernidade, progresso e sociedade industrial estão em crise, assim como a crise de concei-
tos assolava o século XIX quando o capitalismo se impunha como o paradigma que até
hoje informa a essência das nossas decisões e opções societárias.1 Vamos em frente, pois.

1 Bertell Ollman (1984) comenta a dificuldade relatada por Engels para explicar o sentido das palavras
tais como utilizadas por ele e Marx, redefinindo sentidos distintos dos então aceitos na ideologia
dominante. Renomear o mundo não é tarefa fácil, ainda que todos o façamos um pouquinho a cada dia.
Da urbanização e do urbano

Sobre a urbanização e o urbano,2 termos mais próximos, não podemos mais abrir mão do
sentido extensivo que lhes deu Lefebvre (e que enfatizei em vários textos) e nem podemos
descartar seu sentido de lócus privilegiado do consumo (coletivo) e assim, da reprodução
da força de trabalho, como definido por Castells há quatro décadas (ainda como nas cida-
des). Tampouco podemos esquecer sua condição de possibilidade para a reinvenção da
vida coletiva, novamente inspirados em Lefebvre. Ou mesmo dos espaços da sinergia, ou
do syneskism, com Jacobs e Soja,3 conceitos que permanecem centrais para pensarmos a
vida coletiva, a despeito das tecnologias da informação contemporâneas.
Assim, a urbanização contemporânea, vista como resultante do capital industrial se
impondo sobre as cidades e redefinindo-as através da implosão/explosão, tem no urbano
virtualmente estendido em formas intensivas e extensivas a todo o território o espaço pri-
vilegiado da vida coletiva, das condições para a emancipação social e para a (re)invenção e
realização do desejo (Lefebvre, 1999). Os sentidos radicalmente dialéticos do urbano – do
urbano-industrial ao urbano-utopia– estão irremediavelmente presentes nos amplos, com-
plexos e diversos processos dessa urbanização contemporânea.
Mas se o sinequismo sojeano também se estende por todo o espaço social, então
o território será cada vez mais fractalizado pelo urbano-industrial que se estende para
além das cidade se que produz uma multiplicidade e variedade de centralidades sem
as quais, disse Lefebvre, a realidade urbana não existe. Podemos então certamente falar
também de uma rede de informações voltada para a participação, para a politização do
espaço de vida e para a construção da cidadania, com suas implicações e limitações
concretas e como algo que se materializa no espaço social necessariamente urbanizado,
a partir das múltiplas centralidades desse tecido que se estende por todo o território. Aí
está o embrião da contradição dialética urbano-industrial versus urbano-utopia implíci-
ta na revolução urbana descrita por Lefebvre.
Dessa forma, os atributos do urbano-utopia, desse urbano lefebvriano, anunciado
como espaço da superação do urbano-industrial e que privilegia a coletividade e a soli-
dariedade, a complementariedade e a complexidade, a diversidade e a comunhão, entre
outros pares de conceitos que vêm sendo hoje resgatados e reafirmados como virtualida-
des e perspectivas, dão novo sentido à urbanização extensiva e intensiva dos nossos dias.

2 O caráter substantivo do urbano presente em Lefebvre, para além da simples adjetivação do que é
próprio da cidade, foi enfatizado em Monte-Mór (2007).
3 Jane Jacobs (1969) foi pioneira em enfatizar a sinergia criativa das cidades na produção do espaço, e
Soja (2000) (re)criou o termo grego synekism para reescrever a geo-história das primeiras cidades.

56
No entanto, são muitos, ainda e sempre, os problemas e perigos (como também
as soluções e oportunidades) contidos nessa dialética da urbanização. Como espaço
também privilegiado do consumo, é no urbano que se concentram as estratégias mais
fortes da dominação capitalista, da mercadificação fictícia do mundo, da subordinação
da natureza e da vida à acumulação, como enfatizou Polanyi (2011) ao descrever histo-
ricamente a emergência do capitalismo.4
Em contextos como o brasileiro, caracterizados pela forte presença de populações
pobres, a incompletude do espaço social produzido para a vida coletiva (urbana) é con-
frontada com a violência e intensidade da dominação do capital sobre os meios de produ-
ção, de consumo, de locomoção e das comunicações (hoje, ampliadas em escalas e ritmos
quase assustadores). Os potenciais de ganhos imediatos e de formação de valor para o
capitalismo globalizado colocam esses países em posição de destaque face à cobiça e ao
controle sobre os recursos humanos e não humanos, e assim, no centro da acumulação.
Ou seja, nos países “incompletamente organizados”,5 as possibilidades de como
ditização (mercadificação) do espaço social, da vida humana e da natureza e sua trans-
formação em novos ativos econômicos no mundo financeiro globalizado, são imensas.
Condicionam e transformam a vida no espaço urbano, nesse imenso território integrado
e integrador do tecido urbano-industrial emanado das grandes metrópoles industriais e
multiplicado nos vários mercados comandados pelos polos regionais e nas múltiplas sub-
centralidades do capital. Não são quaisquer mercados; são mercados abstratos o suficien-
te para serem compreendidos por uma ciência matematizada que discute (e influencia) a
formação dos preços nos mercados e a dinâmica da acumulação capitalista (mesmo sem
se dar conta desses processos e apenas analiticamente medindo os fenômenos como tais).
Uma cadeia de mercados, complexa e diversa, capitaneada pelos mercados globalizados e
por mercados controlados direta e indiretamente pela economia do setor público, articu-
lada com a economia capitalista mundial em seus vários níveis de organização territorial.
No Brasil, as regiões Sudeste e Sul6–São Paulo com maior ênfase, haja vista os
acontecimentos políticos recentes – e parte da região Centro-Oeste são espaços de quase
total hegemonia do capital, onde predominam as relações sociais de produção capitalistas
(em que pese suas imensas populações neocolonizadas e excluídas). De outra parte, o
Nordeste, o Norte e parte do Centro-Oeste (além de parte de Minas Gerais e as popula-

4 Marx tratou da questão em quase toda sua obra, do desvendamento da mercadoria ao conceito de
alienação.
5 O conceito de espaço “incompletamente organizado” como uma “especificidade do espaço nos países
subdesenvolvidos” é de Milton Santos (1978).
6 Talvez caiba lembrar que São Paulo e os três estados do Sul formavam a Região Sul, enquanto Rio, Minas,
Espírito Santo e Bahia formavam a Região Leste; hoje, essa velha regionalização parece mais adequada.

57
ções muito pobres de todo o país) são “ainda” dependentes do Estado, da economia do
setor público e de economias regionais e locais, hoje também chamadas populares e so-
lidárias, organizadas internamente segundo relações sociais de produção não capitalistas.
São, portanto, espaços sociais de múltiplas determinações, mesmo subordinados à lógica
geral do espaço abstrato do capital – o espaço econômico, como definiu Perroux (1961).
Nesse contexto,os dois circuitos da economia urbana, tal como propostos por Milton
Santos, encontrariam condições ideais para novas invenções, articulações e processos de
integração. Em espaços/tempos pós-fordistas de flexibilização da produção e do trabalho
– com impactos nas outras esferas econômicas e sociais – um dos desafios hoje postos à
sociedade e ao Estado, mas também ao mercado (em suas múltiplas formas), seria amplia
ressas relações, o que certamente traria benefícios para setores os mais diversos. Nesse caso,
tanto alguns setores capitalistas se beneficiariam – como afinal já vem acontecendo – quan-
to setores organizados em outras bases de relações sociais para a produção.
Mas como fazê-lo e em que sentido? Haveria que ser necessariamente em termos
radicalmente desiguais, com as proteções necessárias para pensar a economia não como
ciência abstrata voltada para a formação dos preços no mercado, a crematística aristotéli-
ca, mas sim como a gestão do espaço de vida, da casa coletiva, o nomos do oikós, sua orga-
nização socioambiental, cultural e política. E econômica, claro.
Algumas questões podem então ser colocadas: seria o urbano-utópico lefebvriano,
definido aqui muito simplificadamente como o espaço social (e diferencial) dos encontros,
das possibilidades, das representações, das potencialidades, das invenções, das liberdades
e das diversidades, uma alternativa ainda possível, em partes expressivas do Brasil, e por
certo do mundo? É possível seu fortalecimento onde já existe, e sua germinação onde já se
perdeu, através da promoção do encontro entre modos de integração econômica distintos,
da diversidade de modos de vida complexos e mais expostos à percepção contemporânea?
Seria possível produzir espaços e desenvolver relações sociais de produção diversas e com-
patíveis com a multiplicidade de possibilidades e potenciais, de encontros, de invenções
e livres expressões que o anunciado urbano da utopia lefebvriana necessita? Reconstruir
ou inventar democracias radicais, com (re)qualificações diversas, seria o caminho comum
necessário? Estas são algumas das imensas dúvidas que orientam o sentido regressivo-pro-
gressivo de um pensamento sobre o urbano-utopia inspirado em Lefebvre.
Entretanto, o que parece certo é que o espaço urbano-industrial produzido no final
do século passado, tanto no Brasil como em grande parte do mundo, mostrou uma capaci-
dade de extensão e de integração do espaço social (e abstrato, no caso) em escalas e inten-
sidades surpreendentes e nunca antes vistas. No Brasil, o urbano-industrial se estendeu por
quase todo o território em formas, processos e centralidades várias, atingindo até mesmo os
rincões mais distantes e inóspitos, como o interior da floresta amazônica. Serviços urbanos

58
e sociais variados, sistemas de transportes e comunicações, legislação e segurança pública,
aparatos vários, enfim, as condições gerais (urbano-industriais) de produção e reprodução
lançaram seus tentáculos por toda parte. Em meio às crises contemporâneas do capitalis-
mo, esse urbano se reinventa, se estende e ganha novos espaços, nas cidades, nos campos,
nas selvas. Mas, como já dito várias vezes, o urbano-utopia, da política, da reinvenção, da
revolução do quotidiano também se estende, politizando os espaços sociais, estendendo e
fortalecendo a cidadania, e eventualmente resgatando formas de vida e modos de integra-
ção econômica que podem dar origem a novas invenções de processos e formas socioes-
paciais mais compatíveis com a utopia contemporânea de emancipação, revisitada a partir
do urbano lefebvriano e caracterizada por novas relações com a natureza.

Da sustentabilidade e do urbano

Como a natureza tem entrado nesse processo intensivo e extensivo de produção de um


tecido urbano-industrial hegemônico e onipresente (ubíquo, no capitalismo global)?
Como a natureza pode entrar no urbano da utopia concreta e virtual dos nossos dias?
Historicamente, pode-se dizer que o poder do capitalismo industrial tomou as
cidades, implodindo e explodindo-as, e gerou o urbano como forma e processo subor-
dinados que se estenderam e ainda se impõem sobre todo o espaço social. Natureza,
pessoas e dinheiro transformaram-se em mercadorias fictícias, combinadas como re-
cursos naturais, força de trabalho e capital para criar um mundo abstrato e paralelo,
“desenraizado” (Polanyi, 2011), subordinadas assim ao processo de acumulação capi-
talista, hoje globalizado como nunca antes. A natureza veio sendo progressivamente
apropriada e transformada para servir às necessidades da civilização industrial, e assim
do capital, entendido como relação que permanentemente atribui valores de troca a
novas mercadorias identificadas no mundo concreto e no próprio desejo das pessoas,
cada vez mais tomadas/domadas pelas necessidades que lhes são criadas.7
A tudo isto, a relação urbano-natureza pode responder de formas variadas, mesmo
no contexto da permanente abstração do mundo humano e não humano, isto é, do capita-
lismo. Se nos países pobres o espaço permanece incompletamente organizado (em gran-
de parte pelo capital, mas não apenas) e o espaço social produzido se mostra predominan-
temente degradado e/ou excludente, nos países ricos a produção do espaço urbanizado
gera ambientes construídos fortemente naturalizados que tornam a vida pessoal e coletiva
menos alienante e alienada. Assim, poder-se-ia argumentar, quase fazendo coro a De Soto

7 Lefebvre (1991) denominou este estágio do capitalismo de “sociedade burocrática de consumo dirigido”.

59
(2000),8 que a inclusão do espaço de vida no sistema capitalista como ativo fungível é
condição de crescimento e até de sobrevivência. Seria mais uma falácia da pseudocon-
creticidade do mundo promovida pela dinâmica capitalista e sua consequente alienação.
Entretanto, duas fortes resistências, que poderíamos chamar de revoluções em
curso, têm também se expressado, ainda embrionariamente, no mundo contemporâneo.
De um lado, a revolução urbana anunciada por Lefebvre já em 1970 e tão questionada à
época, mas hoje com contornos cada vez mais claros. A práxis urbana resultante de um
processo de (re)politização da cidade e estendida ao território como um todo fez com
que novas vozes, novos povos (alguns já condenados à morte, como os índios brasilei-
ros) se organizassem e se colocassem como atores expressivos no contexto das lutas pela
emancipação, sempre ameaçadas mas nunca extintas. Os movimentos sociais, inicialmen-
te chamados de urbanos por estarem centrados nas cidades, agora estão em toda parte.
De outro lado, a questão dos limites colocados à acumulação capitalista globa-
lizada, e aos processos industriais em particular, pela natureza, ora em escala também
globalizada. As ameaças ambientais contemporâneas permeiam o imaginário de todo o
mundo, trazendo com força um novo conceito, aquele da palavra desgastada mencionada
no título deste texto: sustentabilidade. A preocupação com o futuro, tão própria do mo-
dernismo, ganhou novos contornos, novos valores e novas perspectivas diante da ameaça
à sobrevivência da vida no planeta. As gerações futuras passaram a integrar de fato nossas
preocupações quotidianas e cada vez mais o mundo não humano penetra nas preocupa-
ções de todos os povos. O velho antropocentrismo que informou o iluminismo ocidental
começa a ruir diante de um crescente ecocentrismo, ou mesmo biocentrismo que, ainda
há poucos anos parecia apenas ilusões e fundamentalismos dos ecologistas ditos radicais.
Nesse contexto, o virtual lefebvriano – esse futuro que informa e define o presente
– faz-se mais compreensível e atual. Aos processos de politização do urbano como es-
paço de vida, os quais vimos crescerem e se fortalecerem nas últimas décadas do século
passado, somou-se a problemática da sustentabilidade ambiental, que sem dúvida veio
para ficar.
Diante disso, o urbano-industrial ganhou nova perspectiva, novas oposições, e
se ainda não deixou de ser hegemônico certamente perdeu sua absoluta legitimidade.
Muitos são os atores e vozes que se voltam contra a civilização industrial, gerando revi-
sões críticas ontológicas e epistemológicas cada dia mais legitimadas. Como já dito em
outros textos, ao antigo campo só lhe resta se industrializar, subordinando-se à lógica

8 Hernando De Soto (2000) ficou mundialmente conhecido com suas propostas – e consultorias
internacionais – de economicizar o mundo da periferia capitalista através da generalização da
propriedade privada e sua transformação em ativos fungíveis como soluções para a exclusão e o baixo
crescimento econômico.

60
da acumulação capitalista que transforma a natureza e o mundo rural em mercadorias
fictícias (no limite, commodities), ou então se urbanizar, voltando a ser o espaço movido
pela reprodução, mas agora equipado em bases urbano-industriais. O urbano extensivo
(e intensivo nas centralidades múltiplas) passa a ser o elemento dominante e traz consigo
a chama e o gérmen da polis, da civitas, do encontro e assim, da utopia.
Como a sustentabilidade dos processos de produção e reprodução do espaço social
estáhoje pedindo para ser compreendida e investigada? Muitos já fizeram as ligações entre
os múltiplos sentidos da sustentabilidade, sendo Ignacy Sachs (Sachs; Vieira, 2007) um
dos pioneiros e mais amplos pensadores desta questão. A sustentabilidade há que ser ecoló-
gica, mas também social, econômica, espacial, e cultural, diz ele. Caso contrário, não o será.
Claro, o mundo do espaço abstrato e das mercadorias fictícias não vai se conven-
cer, ou se converter, a esta visão sustentável nos próximos anos, e assim, todo o discurso
que vemos crescer e se espalhar apenas esconde o curso dos negócios capitalistas. Pelo
contrário, pode-se esperar crises e conflitos socioambientais mais profundos antes que
um cenário mais otimista possa ser vislumbrado. Entretanto, parece também claro que
este caminho não tem volta e repensar o sentido de natureza no mundo contemporâneo
passou a ser tarefa premente e permanente neste século.
Portanto, indo além da sustentabilidade, como a natureza pode ser (re)pensada
diante desta ruptura relativa com a lógica simplória da acumulação capitalista como
permanente transformação do mundo – da natureza humana e não humana – em valor
e em mercadoria fictícia? O processo parece não ter fim, e em países de amplas popu-
lações pobres e subjugadas como o Brasil, o espaço para esta “acumulação primitiva”
é ainda muito grande. O caráter incompletamente organizado do espaço social pare-
ce abrir mais facilmente as portas para a entrada e o domínio do espaço abstrato. O
subdesenvolvimento é também, e talvez prioritariamente, marcado pela alienação das
populações de si mesmas e dos seus espaços de vida.
De outra parte, não há como negar o crescimento das populações antes excluídas
e hoje transformadas em atores com vozes por vezes expressivas no cenário contemporâ-
neo. Dos índios aos sem-terra, dos extrativistas aos pobres negros das periferias urbanas,
todos se fazem ouvir mais intensamente. Alguns conseguem se irmanar com o novo sen-
tido dado à natureza e à sua importância na construção de alternativas contemporâneas
para a crise societal (e natural). É possível de fato aprender com esses novos velhos atores,
ouvir suas vozes e fortalecê-las, amplificá-las?
Não são apenas os (neo)colonizados, os pobres e os excluídos que se irmanam nes-
ta nova compreensão do mundo. Setores vanguardistas (ou progressistas)9 das classes mé-

9 Novamente, faltam outras palavras novas, uma vez que “vanguardas” e “progresso” estão definitivamente

61
dias do mundo urbano-industrial, inclusive entre os povos ex-colonialistas, também se or-
ganizam nesse sentido e se fazem ouvir mundo afora, de norte a sul, leste a oeste. Em todos
os casos, a questão da natureza se faz sentir como referência e preocupação cada vez mais
forte. Não parece haver dúvidas de que aí se encontra uma força telúrica, um imaginário
utópico, promessa de encontros, sonho de emancipação que nos referenciam diretamente
ao urbano lefebvriano. Ou seja, o (re)encontro10 do urbano com a natureza resgata e amplia
a utopia lefebvriana. Se Lefebvre foi visionário e arguto ao perceber a revolução urbana no
seu nascedouro na segunda metade do século passado, neste séculoas novas relações com
a natureza estão redefinindo o estágio revolucionários da práxis urbana.
A urbanização extensiva, com seu duplo sentido de forma/processo socioespacial,
de extensão do urbano-industrial, mas também de extensão do urbano-utopia através da
pólis/política e da civitas/cidadania, agora penetra dialeticamente a todo o espaço social. A
natureza, nesse contexto, é recursos naturais para o capital e, quase somente para os poucos
ricos – e talvez para as populações tradicionais e congêneres – é também qualidade de vida.
A natureza transformada, ou o espaço intensa e extensamente urbanizado, é em geral suporte
de vidas precárias e alienadas da produção do seu espaço de vida e do seu trabalho.
Já na última década do século passado parecia claro que, à urbanização extensiva de-
veria corresponder uma naturalização extensiva, se se pretendesse atacar os problemas locais
e contribuir para a solução da crise global.11 Era tempo em que a ligação estreita e evidente
entre local e global se impunha como referencial, e mesmo como condicionante para se pen-
sar o mundo contemporâneo. A sustentabilidade urbana parecia impossível, mesmo para
colegas da ecologia que viam espaço urbanizado como espaço morto, impossível de con-
tribuir ou mesmo conviver com o bem-estar do homem na natureza. O espaço natural
era (re)construído no interior do tecido urbano. Casos como uma floresta no interior da
cidade do Rio de Janeiro eram exceções. Para além da periferia das cidades, estava o campo
ou o mato, desequipados dos requisitos para a vida moderna, para a civilização industrial.
A natureza voltou, no entanto, e está voltando com força, em sentidos vários. No con-
texto urbano, natureza e espaço social precisam agora interagir e se reconhecerem. O campo
cego que impedia a percepção do urbano nascente para Lefebvre, hoje impede ainda que se
perceba a natureza na vida quotidiana urbana. A percepção da natureza é hoje central para o
combate do campo cego da alienação de si ou do mundo, ou melhor, dos dois. À lógica da
produção industrial que dominou a cidade industrial Lefebvre opôs a lógica da reprodução

comprometidas com a consolidação do capitalismo industrial; no nosso contexto, do urbano-industrial.


10 Aqui, cabe apenas lembrar as propostas e modelos de cidades e de comunidades no século XIX,
quando o capitalismo industrial se impunha como hegemonia.
11 Ver Monte-Mór (1994).

62
coletiva da vida urbana, do urbano. Hoje, à lógica da produção industrial12 se opõe também
a lógica da reprodução da natureza, implícita nos escritos de Lefebvre, mas hoje, com maior
ênfase e visibilidade. Na verdade, com centralidade e legitimidade inquestionáveis, de muito
mais fácil percepção e compreensão do que a “revolução urbana” e até mesmo que o “direito
à cidade” (este hoje tão difundido) enfatizados por Lefebvre.
A sustentabilidade urbana foi tradicionalmente vista como algo à parte da natureza.
De fato, a articulação entre a questão urbana e a questão ambiental é bastante recente.13 Ao
final do século passado, as questões urbanas eram vistas como alheias e mesmo perniciosas
para a questão ambiental e a natureza só aparecia como natureza produzida no seio das cida-
des, na forma de parques, praças e jardins. Impossível, parecia àquela época, pensar em uma
articulação íntima do espaço urbano com o espaço natural. A natureza era restrita ao cam-
po, ou às matas e florestas não ocupadas pelo homem civilizado. Como referência, estava a
perspectiva de uma produção social do espaço humano inteiramente dominada pelo tecido
urbano-industrial, moldando, equipando e organizando territórios à sua imagem. A “terceira
revolução industrial” (Mandel, 1978) confirmava essa premissa na medida em que a pro-
dução de alimentos se transformava em negócio altamente lucrativo para o capital, e assim
a natureza avançava na sua transformação em mercadoria fictícia, parte do espaço abstrato.
Entretanto, se o urbano-industrial vem produzindo de forma hegemônica o espaço
em que vivemos, parece que só o urbano-natural pode garantir o espaço em que podemos
viver. A chamada sustentabilidade urbana demanda o resgate radical da natureza, uma im-
bricação do tecido urbano com o espaço natural, a extensão da natureza dentro do urbano
extensivo. Assim, o urbano que se anuncia é também o urbano-natural, cada vez mais forte-
mente impregnado na vida quotidiana, na produção de alimentos, nos parques lineares, nas
matas urbanas, nos espaços de apropriação coletiva – espaços (e objetos) comuns.
De fato, a naturalização do espaço urbano vem caminhando celeremente no mun-
do. A todo dia surgem novas experiências e práticas de inclusão da natureza no espaço de
vida, e mesmo nos espaços da produção capitalista. Nos países incompletamente organi-
zados, onde grande parte da população vive alienada e impotente face ao seu espaço de
vida, a natureza é em geral apropriada de forma destrutiva e degradante. Mesmo assim,
tentativas de reestruturar o espaço urbano-industrial em bases “sustentáveis” têm infor-
mado inúmeras experiências no mundo, tanto de organizações populares como de pla-
nejamento estatal. São inúmeras as experiências em ocupações urbanas periféricas, acam-
pamentos do Movimento dos Sem Terra, organizações não governamentais solidárias e/

12 Cabe enfatizar o sentido amplo do termo “industrial”, tomado como o predomínio do capital produtivo
industrial incluindo, com Mandel (1978), a “terceira revolução industrial”, isto é, a produção de alimentos.
13 Heloisa Costa (2000) explorou esta questão como possível “contradição em termos” no início do século.

63
ou de agricultura urbana, movimentos comunitários e iniciativas municipais, ainda que
insuficientes para determinar uma transformação qualitativa na organização do espaço
urbano-industrial atual. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a equi-
pe de planejamento da Universidade Federal de Minas Gerais, responsável pelo plano
metropolitano e seus desdobramentos há cerca de cinco anos, tem insistido em propor
uma restruturação metropolitana adaptando o conceito francês de trama verde e azul.14
Nas oficinas públicas e seminários conduzidos pela equipe no processo de planejamento
metropolitano, as respostas da população a esta proposta foram entusiásticas, quase de
encantamento, como disseram alguns participantes. Teoricamente, as populações metro-
politanas em Belo Horizonte – e podemos imaginar nas metrópoles brasileiras – parecem
estar prontas para transformar o urbano-industrial em urbano-natural.
Entretanto, parece não haver dúvidas de que (re)aprender a conviver com a natu-
reza no espaço de vida quotidiana e apropriar-se do espaço urbano-regional através de re-
lações urbano-naturais compatíveis com o tecido urbano-industrial que domina e condi-
ciona nossa vida urbanaé um dos maiores desafios hoje colocados às populações. Práticas
assentadas em forte interação com a natureza ligadas ao lazer, ao turismo, aos esportes, à
alimentação, além da crescente consciência da necessidade de preservação ambiental face
às ameaças contemporâneas, certamente podem contribuir para essas transformações.
Contudo, a mercadificação do mundo, das pessoas e da própria natureza pro-
duzem uma alienação recorrente, ampliada pelos meios de comunicação tradicionais,
em particular pela televisão. O aprofundamento do “meio técnico-científico e informa-
cional”,15 ampliando as possibilidades de intervenção e controle dos usuários nas redes
e meios de comunicação digital, e mesmo políticas ligadas aos setores de comunicação
tradicionais (televisão e rádio) mais democratizantes e participativas, com descentraliza-
ção de produção e difusão, podem modificar este cenário. De qualquer modo, o urbano-
-industrial parece definitivamente vir a sofrer transformações e mudanças expressivas a
partir do urbano-natural, provavelmente fortalecendo e redefinindo o sentido de utopia
concreta e virtual sugerido por Lefebvre.

14 A trame verte et bleue foi oficialmente criada na França em 2007, a partir de experiências regionais, em
particular na recuperação ambiental na região mineradora de Nord-Pas-de-Calais, e busca integrar
corredores ecológicos e biológicos, áreas de proteção ambiental e outros espaços onde a vegetação e a
água predominam. Para a proposta da trama verde e azul na RMBH, ver <www.rmbh.org.br>.
15 Conceito definido e trabalhado por Milton Santos em vários de seus textos; entre eles, ver Santos (1994).

64
Do desenvolvimento e do urbano

No mesmo ano em que Lefebvre escrevia sobre O direito à cidade (Lefebvre, 1968), Furtado
escrevia sobre a busca de uma ideologia do desenvolvimento para compreender o “subde-
senvolvimento e estagnação na América Latina” (Furtado, 1968), delineando este conceito
que se tornou central para os estudos que se seguiram na escola latino-americana egressa da
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). De um lado, enfatizava o desenvol-
vimento das forças produtivas, e de outro, a transformação das estruturas sociais e do seu
marco institucional como condições de crescimento e emancipação. Lefebvre, por sua vez,
depois de introduzir o conceito de direito à cidade, chegou à ideia da “revolução urbana”, à
época incompreendida e muito criticada. Seguindo seus estudos sobre espaço e política e
sobre a vida quotidiana, acabou por retomar a discussão de forma mais ampla focalizando
o cerne da questão à qual tudo se reporta, a sobrevivência do capitalismo. Seu foco passou
então a ser a produção do espaço e a reprodução das relações sociais de produção, condições
centrais para a sobrevivência (e superação) do capitalismo16 (Lefebvre, 1976).
Furtado já incluía em 1968 questões que retomaria em livros posteriores. Sua
crítica às interpretações clássicas da crise do capitalismo industrial, por J. S. Mill como
resultado da oferta excessiva de capital, e por Marx pela insuficiência estrutural da de-
manda, acabou por colocar a tecnologia como elemento central do desenvolvimento,
em enfoque que combina argumentos econômicos com argumentos sociopolíticos e
culturais. O caráter coetâneo do subdesenvolvimento na civilização industrial é cen-
tral no seu argumento. Dez anos depois, em Criatividade e dependência na civilização
industrial, Furtado aprofundou sua explanação sobre a ideologia do desenvolvimento
trazendo para o centro do debate a questão da criatividade. Sua postura quase antimo-
dernizante (ou seria pós-moderna?) da década de sessenta deu lugar, ao final dos anos
de 1970, a um argumento centrado no desenvolvimento endógeno que, junto com o
conceito de cultura, veio a se fortalecer nos trabalhos seguintes.
Para Furtado (1978), a ideologia do desenvolvimento é sucedânea da ideologia do
progresso. Se a ideologia do progresso significava um pacto interclasses dentro da nação, o
desenvolvimento representava um pacto internacional entre as classes dirigentes, implicando
a difusão das racionalidades, dos modos de organização e das formas de reprodução das rela-
ções sociais de produção dos velhos aos nos novos espaços dominados pelo capitalismo.

16 A revolução urbana foi publicada em 1970; em 1972, Lefebvre publicou Espaço e política, A vida quotidiana
no mundo moderno e A sobrevivência do capitalismo; em 1974, publicou o que é considerado sua obra
principal nesta temática, em que, sem abrir mão da metáfora, ou metonímia do urbano, Lefebvre aborda
a questão mais ampla, qual seja, A produção do espaço.

65
Da mesma maneira que a ideia de progresso transformou-se em alavanca
ideológica para fomentar a consciência de interdependência em grupos
e classes com interesses antagônicos, nas sociedades em que a revolução
burguesa destruíra as bases tradicionais de legitimação do poder, a ideia
de desenvolvimento serviu para afiançar a consciência de solidariedade
internacional no processo de difusão da civilização industrial no quadro
da dependência (Furtado, 1978, p. 76).

Visto desse ângulo, a desconstrução do conceito de desenvolvimento já há muito


vinha sendo feita. O pensamento estruturalista cepalino insistiu que desenvolvimento,
diferentemente de crescimento econômico, implicava transformações estruturais na eco-
nomia e na sociedade. A industrialização era o caminho da economia, e a modernização
estrutural, o caminho das instituições sociopolíticas e culturais. Furtado aprofundou a
questão enfatizando a dimensão endógena, criativa e libertária do desenvolvimento:

Sendo o desenvolvimento a expressão da capacidade para criar soluções


originais aos problemas específicos de uma sociedade, o autoritarismo
(de qualquer tipo, não apenas militar, mas das elites) ao bloquear os pro-
cessos sociais em que se alimenta essa criatividade frustra o verdadeiro
desenvolvimento (Furtado, 1978, p. 80).

Contemporaneamente, questionamentos sobre a hegemonia da cultura ocidental,


debates sobre a vida quotidiana, a crítica sistemática ao Produto Interno Bruto como medi-
da de bem-estar e emancipação socioeconômica, e a emergência de novos conceitos como
Felicidade Interna Bruta,17 Pós-Desenvolvimento,18 entre outros, anunciam polarizações e
redefinições radicais sobre a natureza do desenvolvimento. Críticas ao “des-envolvimento”19
das populações locais de suas práticas socioculturais como condição para a entrada de uma
racionalidade hegemônica baseada nas relações capitalistas e na modernização do consumo
têm informado a (re)organização das relações sociais de produção orientando-as para novos
arranjos, novos modos de integração social e econômica, sugerindo transformações concei-
tuais e práticas para um futuro próximo. Outras possibilidades se colocam, portanto.

17 O conceito de Felicidade Interna Bruta nasceu no Butão e vem sendo apropriado de forma tradicional
no mundo ocidental nos últimos anos resultando, em 2012, no relatório – World Happiness Report – do
The Earth Institute, da Universidade de Columbia, Nova York, liderado por acadêmicos como Jeffrey
Sachs e outros.
18 O conceito pós-desenvolvimento surgiu na década de 1980, junto com pós-colonialismo, pós-modernismo,
e outros “pós” (Monte-Mór; Ray, 1995). Arturo Escobar, Marshall Sahlins, Ivan Illitch e outros teóricos
tiveram seus textos reunidos na coletânea The post-development reader (Rahnema; Bawtree, 1997).
19 O próprio sentido etimológico das palavras para designar desenvolvimento tem sido ressaltado, desde o
português des-envolver, até o inglês de-envelop (“desenvelopar”) e o espanhol des-arrollar (“desembrulhar”).

66
Ademais, a questão ambiental vinha já pressionando o conceito de desenvolvimento
colocando limites ao crescimento e sugerindo o “estado estacionário”, entre outras propostas.
Assim, da ideologia de progresso à do desenvolvimento, do crescimento sustentado ao
desenvolvimento sustentável, são muitas as mudanças nas trajetórias recentes desse conceito.
Para o que nos interessa ao discutir as complexidades da produção do espaço
vis-à-vis a compreensão do urbano-utopia e o sentido contemporâneo de natureza, o
desenvolvimento necessariamente há que ser (re)pensado nas bases endógenos pro-
postas por Furtado (1984), tendo a criatividade como centralidade e o desenvolvi-
mento como “capacidade para criar soluções originais aos problemas específicos de
uma sociedade” (citação acima).
Visto dessa forma, o (des)envolvimento passa a ter seu sinal invertido, qual seja,
ao invés de des-envolver populações de suas bases socioculturais históricas para entrada
de um racionalismo instrumental necessário à difusão do capital, trata-se de des-envolver
essas populações das amarras que a “sociedade burocrática do consumo dirigido” (Lefeb-
vre, 1991) lhes vem impondo cada vez mais fortemente. Poder-se-ia então talvez falar de
um desenvolvimento em bases pós-modernas, centrado na complexidade e na diferença,
e rompendo com as determinações homogeneizantes do capitalismo globalizado.
Nesse contexto, as condições gerais de produção (urbano-industriais) que
marcam a extensão do tecido urbano sobre o território precisam também ser revistas,
voltadas que estão para promover a difusão da civilização industrial e das racionalida-
des próprias do espaço econômico abstrato, e assim, o des-envolvimento endógeno
das populações das suas bases culturais e econômicas locais. Também nesse contexto,
além da mudança do sentido do desenvolvimento, de algo exógeno gestado no bojo
da expansão imperialista do capital, para o sentido endógeno que Furtado propõe, po-
de-se apor ao des-envolvimento o sentido de re-envolvimento radical, isto é, da volta
(dialética) às raízes locais, o que certamente implica voltar também à natureza. Dialé-
tica porque não se trata da simples volta de caráter estático ou nostálgico, mas sim a
volta transformada e transformadora, revisitando e incorporando o futuro como refe-
rência, como no método regressivo-progressivo lefebvriano/marxiano. Voltar às de-
terminações culturais e históricas com os olhos na virtualidade do futuro. Visto des-
sa forma, é mais importante pensar hoje em diversidades do que em desigualdades,
como em tempos passados recentes. Desigualdades pressupõem igualdade, coisa que
não mais nos interessa, remetem à homogeneidade do espaço abstrato, das formas e
processos urbanos e socioespaciais próprios do urbano-industrial. As diversidades,
ao contrário, abrem caminhos para alternativas, para espaços da diferença, para cons-
truções socioespaciais geradas no bojo das realidades culturas enraizadas no mundo
concreto, na natureza humana e não humana.

67
Concluindo

Diante do quadro exposto, o que é possível fazer, como atuar? Quais as possibilidades de
avançarmos na produção de um conhecimento voltado para a ação transformadora?20
Quais são as complexidades que precisam ser aceitas e abraçadas, se queremos construir
uma agenda contemporânea para um projeto de emancipação social e política? Mais gra-
ve, quais as alternativas que se colocam à continuidade da crescente e intensa mercadifica-
ção do mundo, com resultados aparentemente funestos para a vida no planeta?
Promover, garantir e fortalecer múltiplos modos de organização socioeconômica,
diversidades étnicas, de raças, de gêneros, de crenças, de usos, de alimentos, enfim, de cul-
turas, parece ser um princípio central para a construção da emancipação social com base
no urbano-utopia, naturalizado e desalienado inspirado em Lefebvre, Furtado e outros
autores aqui citados. Entretanto, sabemos que isto pode também gerar fortes oposições e
conflitos, ódios e guerras, e todos os males que a sociedade de mercado, as hierarquias de
classes e raças, e as cristalizações de poder e riqueza tendem a criar.
A politização de todo o espaço social e o aprofundamento e fortalecimento do
sentido de cidadania – agora claramente estendido para além das cidades – parece ser
o principal antídoto, como também o elemento central da força do urbano-utopia le-
febvriano que almejamos construir. Quais serão as outras/novas condições gerais de
(re)produção que podem des-envolver de modo endógeno essas alternativas de diver-
sidades, essas formas complexas que reflitam os múltiplos arranjos socioespaciais que
estão por serem construídos, esses processos diversos, combinados e também comple-
xos que possam refletir a busca do possível-impossível do futuro virtual, dos espaços
diferenciais, reais-e-imaginados?21
O que parece ser nosso urbano-utopia virtual, afinal? Imerso na natureza... ou não será!

REFERÊNCIAS
COSTA, Heloisa Soares de Moura. Desenvolvimento urbano sustentável: uma contradição em termos?
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 2, p. 55-71, 2000.
DE SOTO, Hernando. O mistério do capital. Por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fra-
cassa no resto do mundo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001.

20 Inspirado no subtítulo do livro de John Friedmann (1987), em que pretende mapear as principais
tradições do planejamento desde o final do século XVIII –“do conhecimento à ação”.
21 Inspirado no subtítulo do livro de Edward Soja (1996) Thirdspace, em que o autor explora as implicações da
dialética da tríade lefebvriana para a compreensão das transformações no espaço urbano contemporâneo.

68
FRIEDMANN, John. Planning in the public domain: from knowledge to action. Princeton, N. J.: Princeton
University Press, 1987.
FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1984.
JACOBS, Jane. The economy of cities. New York: Random House, 1969.
LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. Paris: Anthropos, 1968.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri (1972). The survival of capitalism: reproduction of the relations of production. London:
Allison & Busby, 1976.
LEFEBVRE, Henri (1972). A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
MANDEL, Ernst. Late capitalism. London/New York: Verso, 1978.
MONTE-MÓR, Roberto Luís. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In:
SANTOS, M. et al. (Org.). Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1994. p. 169-181.
MONTE-MÓR, Roberto Luís. Cidade e campo, urbano e rural: o substantivo e o adjetivo. In: FELDMAN,
S.; FERNANDES, A. (Org.). O urbano e o regional no Brasil contemporâneo: mutações, tensões, desafios. Sal-
vador, EDUFBA, 2007. p. 93-114.
MONTE-MÓR, Roberto Luís; RAY, Sumanta. Post-*.ism & the Third World: a theoretical reassessment
and fragments from Brazil and India. Nova Economia, v. 5, n. 1, p. 177-208, 1995.
OLLMAN, Bertell (1976). Alienation. Marx’s conception of man in capitalist society. 2nd ed. Cambridge,
Mass: Cambridge University Press, 1984.
PERROUX, François. L’ économie du XXe siècle. Paris: Presses Universitaires de France, 1961.
POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
RANEHMA, Majid; BAWTREE, Victoria (Ed.). The post-development reader. London: Zed Books, 1997.
SACHS, Ignacy; VIEIRA, Paulo F. (Org.). Rumo à ecossocioeconomia. Teoria e prática do desenvolvimento.
São Paulo: Cortez Editora, 2007.
SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. São Paulo: Hucitec, 1978.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo:
Hucitec, 1994.
SOJA, Edward W. Thirdspace: journeys to Los Angeles and other real-and-imagined places. Cambridge,
Mass.: Blackwell, 1996.
SOJA, Edward W. Postmetropolis: critical studies of cities and regions. Oxford: Malden, Mass.: Blackwell
Publishers, 2000.

69
Muito além do jardim: planejamento ou
urbanismo, do que estamos falando?
Ester Limonad

Recorremos a um médico a um sinal de uma doença, a um advogado em busca de


auxílio legal e jurídico, a um contador para a contabilidade, a um administrador para a
gestão de uma empresa. Assim, ao se tratar de problemas que afligem uma cidade nada
melhor que chamar um especialista?
Ao contrário do que poderia parecer a uma primeira vista, essa é uma questão
complicada. A resposta seria sim, se seguirmos a lógica que, por assim dizer, rege o senso
comum e, soidisant, a racionalidade científica do positivismo, ou ainda, as práticas corpo-
rativistas, inspiradas nas guildas medievais. Lógica essa que busca atribuir a uma profissão,
a um corpo disciplinar específico uma responsabilidade, que por vezes está além de sua
capacidade. Aceitar uma resposta afirmativa, o sim, implica assumir uma perspectiva cura-
tiva, saneadora, medicinal, como se a crise da cidade e o caos urbano fossem efêmeros,
conjunturais e disfuncionais ao sistema capitalista contemporâneo. Uma alternativa seria
admitir uma resposta negativa, não chamar, se entendermos que um especialista, um pla-
nejador ou um urbanista, não teria condições de dar conta desses problemas.
Outra possibilidade seria, muito pelo contrário, se entendermos que os problemas
que se apresentam nas cidades contemporâneas possuem um caráter estrutural e estrutu-
rante do espaço social, problemas esses que são intrínsecos às próprias contradições e à
lógica desigual do capitalismo, que demandam soluções complexas e, muitas vezes, de ca-
ráter estrutural. Tal postura implica em decorrência, entender que o planejamento por si
só não é uma panaceia para todos os males, embora possa eventualmente contribuir para
melhorar as condições gerais de vida da população, a depender de quem decide, de como
e com que objetivos é implementado. E ainda, compreender que mesmo sua implemen-
tação enfrenta entraves de diferentes ordens, como veremos adiante. Muitas vezes se atri-
bui a causa do caos e da crise urbana a uma falta de planejamento, quando de fato se trata
de problemas de ordem política ligados a processos de tomada de decisão, usualmente
não transparentes e que tendem a privilegiar lobbies de interesses em detrimento das ne-
cessidades e interesses de grande parte da população (Limonad, 2013; 2014), como é o
caso, por exemplo, dos lobbies de transportes coletivos em muitas grandes cidades brasilei-
ras, que historicamente obstaculizam a implementação de transportes públicos de massa.
No entanto, para começar, importa entender o que é o planejamento, consideran-
do que o “planejamento (...) é uma palavra extremamente difícil e ambiciosa de se definir”
(Hall; Tewdwr-Jones, 2002, p. 1, tradução nossa). Soma-se a isso o fato de que o “o plane-
jamento não se desenvolveu como uma disciplina com cunho próprio. Não possui fun-
damento disciplinar original. Não possui princípios básicos próprios, ao contrário, se vale
de determinadas disciplinas fundantes, em que se incluem o direito, o desenho urbano, a
geografia, a sociologia e a economia” (Grant, 1999,1 tradução nossa).
Cabe, de início, reconhecer que há, já de longa data, uma certa tensão, um estra-
nhamento, entre o planejamento urbano e o urbanismo, que não é privilégio nosso, tupi-
niquim, ao contrário encontra-se disseminado em vários países. Em parte esta tensão teria
por base bases fundantes e concepções divergentes do que seriam o planejamento e o
urbanismo (Randolph, 2013; Rovati, 2013), bem como disputas corporativas em relação
às distintas atribuições profissionais (Figueiredo, 2011).
Por outra parte, quando surgem problemas que afetam o desenrolar da vida coti-
diana nas cidades, a causa geralmente é atribuída, por parte de políticos e da população em
geral, a uma falta de planejamento, e não a uma falta de urbanismo. Quando muitas vezes
sequer se tratem de problemas de planejamento ou, mesmo, de urbanismo, por estarem
relacionados a questões de cunho mais complexo que ultrapassam a própria capacidade
do planejamento em resolvê-los. Ainda mais se admitirmos que o planejamento se cons-
titui na maior parte das vezes em intervenções conjunturais localizadas sobre questões
estruturais próprias do sistema capitalista, que se vale das desigualdades socioespaciais e
do próprio planejamento para maximizar a acumulação.
Em termos da reflexão sobre os desafios ao planejamento e à sua prática, pare-
ce-nos mister explicitar de que planejamento estamos falando. Primeiro, trataremos de
apontar o imbróglio entre planejamento urbano e urbanismo, para a seguir estabelecer
alguns parâmetros e categorias, que nos permitam sistematizar as diferentes modalidades
de planejamento e de urbanismo, de modo a subsequentemente, apontar suas comunali-

1 GRANT, M. Planning as a learned profession. Plans and Planners, v. 1, n. 1, p. 21- 26, 1999 apud Thompson
(2000).

72
dades, especificidades e limitações. Para ao final, ponderar algumas alternativas possíveis
na perspectiva de construção de uma sociedade urbana, em termos lefebvrianos, em uma
tentativa de ir um pouco além do jardim.

Planejamento ou urbanismo: do que estamos falando?

Anselin, Nasar e Talen (2011) não diferenciam o planejamento do urbanismo, porém dis-
tinguem o planejamento urbano, o desenho urbano e o planejamento paisagístico (lands-
cape planning) como campos inter-relacionados de estudos. Embora Hall e Tewdwr-Jones
(2002) não procedam a uma distinção explícita entre esses campos e práticas, assinalam,
que se o senso comum identifica, usualmente, o planejamento com a necessidade do pla-
no e do desenho físico, que caracterizam a atribuição do arquiteto-urbanista, entendem
que as palavras plano, planejamento e planejador “não se referem à arte de desenhar um
plano físico ou desenho no papel”, explicando que a compreensão mais comum é que
“o planejamento está preocupado em alcançar de forma deliberada algum objetivo, e se
processa através da organização de uma sequência ordenada de ações”. E, concluem que
embora o planejamento possa demandar ou se beneficiar de algum tipo de plano físico,
muitas vezes o planejamento em si não envolve nenhuma representação física do que será
implementado (Hall; Tewdwr-Jones, 2002, p. 1).
Hebbert (2006) chama a atenção para a distinção entre o planejamento urba-
no anglo-saxão (town-planning), que teria por base metodológica a teoria racional-
compreensiva de planejamento e o que designa de urbanismo “latino”, para se referir
ao urbanismo catalão, implementado a partir dos anos de 1990, fundado nos princí-
pios da arquitetura e do projeto urbano. Muito embora acabe por confundi-los ao
assinalar que se “o planejamento se vê como uma atividade distinta da arquitetura
e da engenharia, o urbanismo é uma cultura partilhada ou base comum entre estas
profissões” (Hebbert, 2006).
Sanyal (2000, p. 316 et seq.) lança uma luz na polêmica, que cerca o planejamento
urbano e o urbanismo, ao alertar para a falta de integração entre o que designa de plane-
jamento físico, afeito ao campo disciplinar dos arquitetos-urbanistas, e o planejamento
social, campo de conhecimento de domínio de diferentes disciplinas.
De fato, pode-se observar que, em diversos países e lugares com matizes próprios,
por um lado, há uma linha de pensamento que identifica o planejamento urbano como
urbanismo, o que faz com que alguns autores caracterizem o planejamento urbano como
um urbanismo sem planos (Maricato, 2000; Villaça, 1999). E, de outro lado, tem-se uma
linha que os concebe como distintos campos de conhecimento, de práticas e de ativida-
des, defendida por aqueles que se entendem enquanto planejadores. O enfrentamento

73
dessas concepções, na prática, gera um certo estranhamento e um desencontro em ter-
mos de concepções analíticas, de metodologias, de processos e de práticas.
Porém, o planejamento urbano e o urbanismo, apesar de operarem um objeto co-
mum e de se assemelharem, não são a mesma coisa (Hall; Tewdwr-Jones, 2002; Allmen-
dinger, 2009; Anselin et al., 2011; entre outros). Sem dúvida, há uma interpenetração entre
ambos que torna difícil diferenciá-los. Uma diferenciação possível reside em pensarmos
o planejamento para além da cidade e da forma urbana, onde se encontra seu domínio
comum com o urbanismo. Ao pensar o planejamento como uma ação multi- e transes-
calar, que ultrapassa, que vai além da escala local, tem-se que a cidade torna-se uma escala
de reflexão, uma escala de ação e de intervenção do planejamento. Uma intervenção que
não necessariamente tem como produto um plano, um projeto de cidade, mas a definição
de tendências, de relações e de interações socioespaciais inter- ou transescalares relativas
a centralidades, a eixos de desenvolvimento e de crescimento, a áreas de preservação am-
biental, a zonas de recuperação e de expansão urbana para fins diversos, entre outras coi-
sas. Interações, relações e tendências que ultrapassam os limites da cidade. Ao passo que
a cidade em si define o limite da reflexão e de ação do urbanismo enquanto tal, que tem,
via de regra, um produto concreto: um plano, um projeto de cidade como resultado. Ao
se ultrapassar a escala da cidade propriamente dita, o urbanismo, o desenho urbano e o
planejamento de paisagens, que teriam por norte projetar o arranjo espacial dos volumes e
dos vazios em interação com as vias de circulação e os ambientes naturais, não têm como
dar conta dos processos socioespaciais mais gerais, que demandam um consumo cres-
cente do espaço social, para além do espaço construído (Carlos, 2012; 2014). Processos
esses que se constituem em objeto privilegiado de discussão e de reflexão de uma econo-
mia política do espaço social, bem como em um domínio de convergência de diferentes
corpos disciplinares das ciências humanas e das sociais aplicadas.
Há de se considerar, ainda que, historicamente, o planejamento urbano e o urba-
nismo possuem raízes distintas. As origens do urbanismo moderno situam-se nas revolu-
ções industriais dos séculos XVIII e XIX com o afluxo para as cidades de grandes hordas
de trabalhadores liberados das relações tradicionais de produção. Cidades estas que esta-
vam despreparadas para tal transição demográfica e que se viram sobrepovoadas, assola-
das por epidemias e com problemas de habitação, abastecimento e saneamento (Choay,
1983; Hall, 2014; Santos, 1981), pois até meados do século XIX muitas sequer contavam
com abastecimento de água e esgotamento sanitário (Esquivias, 1998).
O urbanismo emerge, assim, com uma intenção precipuamente reformadora de
higienizar e de sanear os ambientes malsãos, a partir de uma visão liberal dual maniqueísta
que identificava o belo com o progresso, a modernidade e a riqueza e o feio com o atraso e
a miséria. Promovia-se a higienização e o embelezamento das cidades através de propos-

74
tas urbanísticas, sem considerar e se preocupar com o que lhes antecedia ou sucedia, em
consonância com a perspectiva do liberalismo econômico, em que caberia ao Estado tão
somente proteger as fronteiras, emitir moeda e controlar a ordem social (Smith, 2009).
Portanto, se muma preocupação social, uma vez que em consonância com o ideário libe-
ral cada homem seria responsável por seu próprio destino.
No entanto, cabe diferenciar dentre as propostas urbanísticas, por um lado, aquelas
proposições de “fiéis servos do capitalismo financeiro e de ditadores totalitários” (Hall,
2014, p. 1-2), como as do movimento City Beautiful e as de Le Corbusier, representante
paradigmático de um urbanismo autoritário “cujas realizações malignas estarão sempre
entre nós” (Hall, 2014, p. 4), das propostas dos urbanistas utópicos do século XIX, como
Howard, Unwin e Geddes (Hall, 2014, p. 4).
Antecedem estas propostas, projetos de centros de poder e de cidades, erigidos
ao longo da história como estratégias de dominação do território2 e de povoamento,3
bem como são contemporâneas a diversos planos técnicos de cidades pensadas, proje-
tadas e construídas, desde o seu início, enquanto sedes de poder político,4 em núcleos
de povoamento para garantir o domínio político de territórios despovoados,5 em terras
conquistadas ao mar,6 muitas delas com planos elaborados por estrategistas militares,
por engenheiros ou arquitetos-urbanistas.
O planejamento, como o conhecemos, por sua vez, demarca uma ruptura, um rom-
pimento com o liberalismo e com a política do capitalismo competitivo, por atribuir ao Es-
tado um protagonismo essencial na produção do espaço para garantir as condições gerais
de reprodução para o capital. Sua origem tem por base, assim, a necessidade de intervenção
do Estado na organização socioespacial de uma sociedade através da provisão de habita-

2 Em termos da fundação de cidades com fins de dominação territorial e defensivo têm-se, entre outros
exemplos, desde a fundação de inúmeras colônias durante o Império Romano, que deram origem a
diversas cidades europeias contemporâneas, que tinham por base uma grelha distribuída ao redor do
foro romano e demais edificações de poder, até a fundação e construção de vilas e cidades nas Américas
durante o período colonial, tema este abordado por Sérgio Buarque de Holanda (1971).
3 Como são os casos recentes das cidades do agronegócio no centro oeste brasileiro (Sinop, Sorriso,
Colíder, Alta Floresta e outras) fundadas por companhias privadas de colonização durante a década de
1970 no âmbito do II e III Plano Nacional de Desenvolvimento.
4 Belo Horizonte, Goiânia, Teresina, no Brasil; La Plata, na Argentina, Washington DC, nos Estados
Unidos; Oslo, na Noruega etc.
5 Como é o caso de Ushuaia, atual capital da Terra do Fogo na Argentina, fundada no fim do século XIX
para garantir o domínio territorial da Argentina e que tem, mais recentemente, atuado como polo de
povoamento e desenvolvimento.
6 Um exemplo é a ocupação do Zuidersee (Mar do Sul) na Holanda, encerrado e transformado em pôlder
(terrenos aráveis alagados tomados ao mar, drenados pelos moinhos de vento), ainda na primeira metade do
século XX, em torno dos quais mais tarde se construíram algumas cidades como Almere, Lelystadt e outras.

75
ção popular, da organização da produção, da criação de frentes de trabalho, bem como de
políticas sociais de emprego e de renda já nas primeiras décadas do século XX, como por
exemplo, as políticas estatais na Rússia após a Revolução de 1917, as frentes de trabalho na
Itália de Mussolini a partir de 1922, as frentes de trabalho do New Deal norte-americano do
governo Roosevelt após a crise de 1929, às quais se soma a experiência do Tennessee Valley
Authority7 (TVA), que se converteu em paradigma do planejamento regional.
Destarte, embora vejamos o urbanismo como uma disciplina com um domínio pró-
prio e o planejamento como um campo de conhecimento, mais amplo e abrangente, em
que interferem e interagem fatores diversos, que ultrapassam o campo disciplinar do urba-
nismo, adotaremos, inicialmente, uma visão corrente nos países anglófonos que reputam o
urbanismo enquanto uma modalidade de planejamento físico (blueprint planning) que pri-
vilegia o plano, a forma urbana e o desenho urbano, e que, por conseguinte, tem sua ênfase
maior no resultado final, predefinido e preestabelecido pelo urbanista. Cabe notar que essa
designação já carrega em si a relevância atribuída ao projeto urbano, pois remete às pranchas
de impressão azul e brancas dos projetos e desenhos, usuais antes da informatização.
Este artifício heurístico de incorporar o urbanismo, em particular os movimentos
City Beautiful e o modernismo racional, como uma modalidade de planejamento físico volta-
do para a forma urbana, nos interessa por nos facultar adotar criticamente uma categorização
proposta por Yiftachel (1989). Para quem os diversos modelos e teorias de planejamento do
século XX podem ser agrupados em três vertentes, que haveriam se desenvolvido em para-
lelo, às quais designa de analítica, processual e da forma urbana, orientadas, respectivamente,
pelas seguintes questões: O que é o planejamento urbano? O que é um bom processo de
planejamento? O que é um bom plano urbano? (Yiftachel, 1989, p. 29).
Tewdwr-Jones (2005, p. 27) salienta que a vertente analítica das teorias de plane-
jamento para Yiftachel (1989) se limitaria a entender como as prioridades políticas po-
deriam inibir a implementação de planos diretores através do planejamento de políticas
de regulação e uso do solo por parte do Estado. Por sua vez, o eixo processual abordaria
a forma como as limitações profissionais, políticas e organizacionais podem limitar ou
interferir com a habilidade do Estado em alcançar os fins desejados no sistema de planeja-
mento. Ao passo que os enfoques da forma urbana teriam por foco os padrões e estruturas
urbanas mais desejáveis, usualmente desprovidos de uma discussão política e organiza-
cional (Tewdwr-Jones, 2005, p. 27). Já para Yiftachel (1989, p. 29) o debate analítico seria
explanatório e explicativo, enquanto os demais seriam basicamente descritivos.
Vários autores, entre os quais Adams (1994), Tewdwr-Jones (2005) e Allmen-
dinger (2009), em suas reflexões sobre o planejamento procuraram enquadrar de uma

7 Disponível em: <http://www.tva.gov>. Acesso em: 15 jan. 2015.

76
forma ou de outra, as diferentes correntes de pensamento e de prática de planejamento
nas vertentes propostas por Yiftachel (1989), ou mesmo propor outros esquemas que
abrangessem a diversidade de linhas e de contribuições do planejamento. Entre estes se
destacam Tewdwr-Jones (2005)8 e Allmendiger (2009).9
A classificação e as categorias que Allmendiger (2009) adota em seu esquema
são úteis para uma reflexão no âmbito do corpus teórico-metodológico do planeja-
mento. Todavia, por agregar a quase totalidade das modalidades, modelos e teorias de
planejamento na categoria de teorias indígenas e por dar ênfase principalmente aos
aspectos epistêmicos que alimentam a reflexão conceitual do planejamento urbano,
o seu esquema analítico não atende ao exercício a que nos propomos realizar aqui.
Qual seja, o de situar as inter-relações e diferenças entre o planejamento urbano e o
urbanismo, mediante uma sistematização dos diferentes modelos e teorias de planeja-
mento e de urbanismo a partir de suas distintas ênfases, no intuito de avançar em uma
discussão sobre o planejamento e sua possível contribuição para a construção de uma
sociedade urbana mais equânime.
Optamos, assim por adotar a categorização de Yiftachel (1989) em razão de seu
caráter instrumental para nossa sistematização e reflexão, a despeito de todas as críticas e
de seu caráter a-espacial e evolutivo, por entendermos que o seu mérito reside exatamen-
te em sua simplicidade, que nos permite elaborar uma matriz um pouco mais complexa
com o cruzamento das três categorias gerais, redefinindo-as e relativizando-as. Para tanto
procedemos a algumas modificações em seu esquema.
Primeiro, buscamos eliminar seu caráter dual. Não cabe questionar o que é um
bom planejamento; o que é um bom processo de planejamento; ou mesmo, o que é um
bom plano. Deixamos, assim, de considerar as questões que orientam a definição das
três categorias de Yiftachel (1989), que além de duais, são relativas, subjetivas, quimeras

8 Tewdwr-Jones (2005) segue a proposta de Yiftachel (1989) e reúne, em uma única categoria,
a processual, as modalidades do urbanismo modernista, do modelo racional-compreensivo, do
incremental, da matriz mista, de decisão centralizada, do planejamento transacional (Friedman,
2011), do planejamento colaborativo (Forester, 1980; Healey, 1992) e do planejamento libertário de
inspiração neoliberal (Sorensen; Day, 1981), quando de fato nem todos, como veremos adiante, podem
ser reputados de puramente processuais.
9 Allmendinger (2009) rejeita o esquema de Yiftachel (1989) devidos a sua linearidade e simplicidade,
que o impediriam de dar conta da heterogeneidade e da diversidade crescente das teorias e modelos de
planejamento. Por conseguinte, propõe uma categorização de cunho epistemológico para mapear as
teorias de planejamento, sistematizando-as em cinco vertentes, que compreenderiam as teorias exógenas,
as framing theories, as teorias sociais (Giddens, 1989; Habermas, 1984; Healey, 1992), as interpretações
filosóficas sociocientíficas (positivismo) e o que designa de teorias indígenas do planejamento, ou seja,
próprias do campo do planejamento.

77
que possuem múltiplas possibilidades de resposta, em que cada resposta irá depender de
quem pergunta e de quem responde: o governante, o planejador ou os grupos sociais en-
volvidos, bem como irá variar de acordo com os diferentes grupos de interesse.
Segundo, em decorrência, a eliminação dessas questões norteadoras demandou a
redefinição das três vertentes propostas por Yiftachel (1989) (analítica, processual e da
forma urbana), conforme expomos a seguir:

• Lógica analítico-conceitual: teria relação propriamente com os fundamentos teó-


rico-metodológicos, com a reflexão conceitual e teórico-metodológica no âmbito
do planejamento, que teria como categorias centrais o espaço social, o território, o
Estado, a governança, as escalas de planejamento etc. Esse âmbito estaria relacio-
nado diretamente com o que designamos de racionalidade acadêmico-científica
(Limonad, 2014a; 2014b).
• Lógica processual: abarca as modalidades preocupadas com os meios, com os pro-
cessos, com a organização e não necessariamente com os fins, com os resultados,
os quais irão variar em conformidade com as adaptações e interferências realiza-
das ao longo do processo de implementação. Relacionado diretamente com o que
designamos de racionalidade técnica de cunho governamental e/ou institucional
(Limonad, 2014a; 2014b).
• Lógica da forma urbana – do plano: abrange as propostas que têm seu foco nos re-
sultados, em um fim predefinido e preestabelecido a partir de um partido urbanístico.
Esse âmbito se constitui em domínio disciplinar do urbanismo, do desenho urbano
e do planejamento de paisagens propriamente ditos. A execução do plano possui um
reduzido nível de adaptabilidade e flexibilidade às demandas que porventura surjam
ao longo da implementação. Relacionada diretamente com uma racionalidade pro-
fissional, de caráter instrumental que atua no mercado em um sistema capitalista ou,
ainda, sob contrato, onde o profissional contratado executa o que lhe é encomendado.
Relacionada com uma racionalidade técnica-instrumental de ordem profissional.

Terceiro, considerando que os modelos e teorias de planejamento não se enquadram


ipsis litteris, sem tirar e nem por nas três categorias básicas de Yiftachel (1989) e que com sua
redefinição estas deixaram de estar limitadas às questões duais que as norteavam, procede-
mos a um cruzamento dessas categorias entre si, que resultou em outros três pares combina-
dos (analítico-processual, analítico-forma urbana, processual-forma urbana), não excluden-
tes entre si, que não se confundem, em que se mesclam de diferentes maneiras as caracterís-
ticas das categorias definidas acima. Estas diferentes ênfases possibilitam a inserção de outras
variáveis e a explicitação das diferentes posturas e focos em relação ao planejamento.

78
Teorias, tipos, modelos de planejamento

Apresentamos a seguir as várias modalidades de planejamento urbano e de urbanismo siste-


matizadas, segundo as lógicas assinaladas. Esta sistematização não é, nem se pretende exaus-
tiva, e tampouco os modelos apresentados são excludentes entre si. As várias modalidades
e tendências foram aglomeradas de modo a ressaltar seus pontos comuns e suas diferenças
no concernente ao respectivo foco na reflexão analítica, nos processos e nos resultados do
planejamento. Embora nenhuma tenha prevalecido sobre as outras, tendo havido muitas ve-
zes combinações entre elas, cada modalidade contribuiu para deixar suas marcas na prática
de planejamento, uma vez que cada modalidade apresenta diferentes ênfases no papel do
planejador, da sociedade, do desenho, bem como diferentes enfoques em relação a tomada
de decisão, ao horizonte temporal e à flexibilidade de adaptação das respectivas propostas.

Lógica da forma urbana e do plano


Os modelos em que prevalece a lógica da forma urbana seguem a orientação de
uma racionalidade profissional-instrumental delineada pelo conhecimento profissio-
nal especializado de arquitetos, urbanistas e engenheiros urbanos, ambientais e sanita-
ristas. Suas proposições e elaborações são de caráter técnico, prescritivo e normativo
com soluções acabadas em si mesmas.
O plano, o projeto urbano constitui uma condição essencial e razão de ser dessa
modalidade, apresenta-se como um produto específico de um saber profissional técni-
co, que se pretende científico, com um fim definido, em que prevalecem o desenho e as
abordagens da Arquitetura e da Engenharia. O caráter do plano fechado em si, como um
produto acabado, definido nas pranchas de desenho, impossibilitava sua adequação às
mudanças das condições socioeconômicas e de disponibilidade de recursos (Tewdwr-
Jones, 2005, p. 27). As propostas são elaboradas e realizadas sob encomenda e contrato
para atender uma demanda específica de agentes públicos ou privados em um horizonte
temporal predefinido. O resultado consiste em um produto negociado entre o contratan-
te e o contratado, com reduzida flexibilidade e adaptabilidade a demandas externas. Nessa
modalidade, a sociedade, as especificidades histórico-geográficas e o contexto socioeco-
nômico funcionam apenas como base de informações para uma eventual adequação do
projeto. Por conseguinte, as decisões são tomadas de cima para baixo sem nenhum grau
de interferência dos grupos sociais envolvidos.
Trata-se de propostas descoladas da realidade social, que a despeito de suas inten-
ções originais tendem, via de regra, a satisfazer os interesses do mercado e de classes mé-
dias afluentes em detrimento de grupos sociais com reduzido poder aquisitivo. A respon-
sabilidade do autor, do planejador, se encerra com o plano em si. Os problemas porven-

79
tura decorrentes não são de sua responsabilidade. Há diferenças de grau e de intensidade
entre as distintas modalidades que se inserem nessa linha, em termos da relevância que
atribuem ao desenho urbano e ao caráter estético da proposta, bem como em relação ao
papel da sociedade e dos agentes econômicos relacionados ao mercado imobiliário.
Suas raízes reportam-se aos planos higienistas10 do século XIX e às propostas
de embelezamento urbano do movimento City Beautiful,11 que ganharam laivos de
modernidade e de racionalidade técnico-científica com a emergência do Urbanismo
Modernista no século XX fundamentado nas propostas dos congressos internacionais
de arquitetura moderna (Choay, 1983; Hall, 2014).
Após a Segunda Guerra Mundial, Le Corbusier, porta-voz do urbanismo moder-
nista, expõe a disputa corporativa na diferenciação do papel do arquiteto, do urbanista
e do engenheiro na construção da cidade (Le Corbusier, 2000; Figueiredo, 2011), para
em seguida declarar que “o urbanista nada mais é que o arquiteto”. Retoma, assim, a ideia
vigente no século XIX de construção da cidade (Stadtbau)12 e integra em uma mesma
concepção a casa e a cidade. Vê ambas como um espaço a ser ordenado pela mente racio-
nal do arquiteto, a diferença entre uma e outra estaria ao nível da escala e dos programas
de necessidades (Limonad, 2005). É este espírito do urbanismo modernista que inspira a
concepção do plano urbanístico de Brasília (Monte-Mór, 2008, p. 38).
Porém, a despeito das intenções originais do modernismo racional de projetar as
cidades do futuro e com isso evitar a revolução (Le Corbusier, 1977), o resultado foram
projetos e planos que ao idealizar um esquema de necessidades irreal de “máquinas de
morar” para as classes com menor poder aquisitivo, contribuiu para a construção e dis-
seminação de conjuntos habitacionais desprovidos de urbanidade (Lefebvre, 1969), que
embora tenham colaborado para resolver problemas habitacionais, também contribuíram
para a discriminação e segregação social. A ironia final, segundo Hall (2014), é que estas

10 A origem dessas práticas no século XIX está relacionada ao advento das revoluções industriais e ao
afluxo de massas de trabalhadores liberados das relações tradicionais de produção para as cidades, que se
encontravam despreparadas para suportar a pressão demográfica e as demandas que se colocavam para o
desenvolvimento do capitalismo (Choay, 1983; Monte-Mór, 2008). Sob a égide dos planos higienistas e
do City Beautiful, em cidades de diversos países, inclusive no Brasil (Leme et al., 1999), quarteirões inteiros
eram postos abaixo, vias públicas eram abertas ou alargadas, habitações de baixa renda erradicadas, áreas
portuárias eram renovadas para deixar o sol penetrar e o ar circular (Choay, 1983, p. 96).
11 As propostas urbanísticas do movimento City Beautiful caracterizavam-se por ignorar o que lhes antecedia
e sucedia, apresentando uma preocupação pronunciada com a estética e a beleza dos projetos, ao passo que
as práticas higienistas preocupavam-se em sanear as cidades do capitalismo industrial competitivo.
12 Stadtbau era o termo corrente adotado para designar os projetos de cidade nos países de língua alemã, durante o
século XIX. Foi adotado por Camillo Sitte (1843-1903), para intitular sua obra A construção das cidades segundo
seus princípios artísticos, de 1889, onde procede a uma crítica ao urbanismo de sua época buscando estabelecer
princípios e formulações para os projetos de cidades com base em seu conhecimento e prática empírica.

80
experiências em vários lugares do mundo foram condenadas e consideradas como uma
expressão do “fracasso do planejamento”(Hall, 2014, grifo do autor, tradução nossa). O que
o leva a assinalar que se o planejamento “no senso comum significa um esquema ordenado
de ações para atingir objetivos definidos à luz de restrições conhecidas”, então essas experi-
ências não podem ser consideradas como planejamento urbano, mas um gênero de dese-
nho urbano baseado em um paradigma racionalista abstrato, “lamentavelmente testado em
cobaias humanas, com consequências desastrosas” (Hall, 2014, tradução nossa).
Muitos dos princípios do modernismo racional se mantiveram em outros modelos,
na implementação de planos diretores e planos de desenvolvimento local integrado, e mesmo
em práticas de planejamento urbano e regional, como a segregação de usos, o zoneamento
urbano, a organização e distribuição espacial de grandes volumes em vastos espaços vazios etc.

Lógica processual
Na segunda metade do século XX, a complexificação dos problemas urbanos co-
loca em xeque os planos urbanísticos orientados pelo modernismo racionalista. Na prática
as propostas urbanísticas, que poderiam ser entendidas como um planejamento lato sensu
segundo Villaça (1999), são substituídas por propostas de planejamento stricto sensu, em
que o desenho, o projeto e o plano em si perdem sua relevância. A proposta de planejamen-
to racional-compreensivo, pautada na abordagem sistêmica da sociedade, representou “(...)
uma mudança da velha ideia de planejamento como a produção de projetos para a cidade
desejada do futuro para uma nova ideia de planejamento como uma série contínua de con-
troles sobre o desenvolvimento de uma área” (Hall, 2014, p. 6, tradução nossa.).
Os modelos processuais emergem no pós-guerra e buscam assumir um caráter cien-
tífico e de neutralidade, sendo que os racional-compreensivo, incremental, da matriz mis-
ta e de decisão centralizada, pertencem a uma mesma matriz de pensamento com base na
análise sistêmica, inspirados nas teorias econômicas neoclássicas. Enquanto o planejamento
transacional, colaborativo, e mais recentemente o da cidade justa, teriam por fundamento
reflexões conceituais pautadas na teoria social crítica. Porém, a despeito de suas distintas ma-
trizes conceituais, todos são em diferentes graus e intensidade de cunho reformista.
O foco desses modelos é nos meios, não nos fins. Quem define os fins são os po-
líticos. Os planejadores são tecnocratas focados nos processos de implementação do pla-
no, cuja responsabilidade se limita ao plano. Sua ênfase é no caráter neutro e apolítico do
planejamento, enquanto a aplicação de um método científico para a implementação de
políticas (policy-making) para a promoção do bem comum. Porém,

no mundo contemporâneo comandado pelo lucro seria ilusão ou mesmo


ingenuidade acreditar na possibilidade de um reconhecimento universal

81
do que seria o bem comum como um meio de acabar com a pobreza, com
a desigualdade, a exploração e a segregação social (Marcuse,1998, p. 104-
105, tradução nossa).

O modelo racional-compreensivo, implementado a partir da década de 1950, ti-


nha por meta buscar a melhor solução racional a partir de um extenso exame da realida-
de, com a identificação de todos os problemas e soluções possíveis com o levantamento
dos respectivos leques de todas as consequências possíveis, tendo sido objeto de diversas
críticas. Seus críticos salientam sua incapacidade em dar conta da complexidade dos pro-
cessos de mudanças físicas da cidade (Tewdwr-Jones, 2005, p. 28). Lindblom (1959) e
outros planejadores chamam a atenção para o custo elevado de seus procedimentos, para
o longo tempo de análise e para a impossibilidade de se sistematizar todas as variáveis
e respectivas consequências, fazendo com que as propostas não conseguissem acompa-
nhar a velocidade das mudanças da conjuntura social e econômica, o que inviabilizava a
possibilidade mesma de propor soluções efetivamente racionais.
Como alternativa ao modelo racional-compreensivo, Lindblom (1959) propõe
o modelo incremental (muddling through), que teria por meta encontrar a solução satis-
fatória para o problema mais evidente, definido a partir de comparações sucessivas, ao
invés de se fazer um levantamento exaustivo dos problemas e do respectivo leque de con-
sequências. O papel da sociedade se limitaria a servir de fonte de informação. A propos-
ta de Lindblom (1959) baseia-se na implementação de uma série de pequenos ajustes
sucessivos para cada problema, sem definir fins e metas precisos, de modo que os planos
sejam flexíveis para acompanhar as mudanças da realidade. Uma consequência de sua
implementação era a transformação da cidade em uma colcha de retalhos de soluções
diversas, o que a médio prazo impediria a otimização das soluções implementadas, bem
como mudanças radicais. (Faludi, 1973). O que leva alguns autores a questionar se este
modelo era ciência ou um exercício de inércia.
A matriz mista (mixed scanning) de Etzioni (1967) surge como uma alternativa aos
modelos racional-compreensivo e incremental, mesclando-os. Seu ponto de partida é um
estudo geral panorâmico dos problemas, seguido pela eleição de uma questão fundamental
e definição de diversas ações incrementais, cujos efeitos cumulativos poderiam conduzir a
mudanças. Embora admita um papel um pouco mais ativo por parte dos grupos sociais en-
volvidos, sua proposta constitui uma variação do modelo incremental, o que faz com que
enfrente as mesmas dificuldades, a que se soma a definição de quais seriam as questões fun-
damentais e quais as medidas incrementais a serem adotadas para viabilizar uma mudança.
Ao passo que as modalidades anteriores envolvem uma participação ativa do po-
der público em decisões relativamente pouco negociadas com os grupos sociais interessa-

82
dos, Davidoff (1965, p. 331) propõe o planejamento advocatício (advocacy planning) sem
a interferência do poder público, partindo do principio de que

o planejamento da cidade é um meio de definir políticas. Uma política


apropriada em uma democracia é determinada pelo debate político. O
curso de ação correto é uma questão de escolha, não de fato. Os plane-
jadores devem se engajar no processo político como advogados dos
interesses governamentais e de outros grupos (Davidoff, 1965, p. 331,
tradução nossa).

Para Davidoff (1965) os pontos característicos do planejamento advocatício são:


a) a elaboração de planos por organizações ou grupos de interesse sem necessariamente
a participação do poder público; b) o levantamento e discussão de um conjunto plural
de propostas e alternativas; e c) não possuir uma sequência de etapas definida. Assim,
cabe ao planejador atuar como um consultor especializado oferecendo alternativas e pro-
pondo soluções diversas aos grupos de interesse sem tomar partido. As soluções a serem
apresentadas ao poder público devem ser negociadas a priori entre os grupos envolvidos
tendo o planejador como mediador.
Em contraste com as outras modalidades processuais, o planejamento advocatício
demanda uma intensa participação dos grupos envolvidos, bem como um amplo hori-
zonte temporal, sendo que a capacidade de decisão negociada se vê comprometida, na
medida em que tende a envolver grupos com disponibilidade de tempo para participar,
que tendem a ser beneficiados em detrimento de outros menos privilegiados.
O planejamento advocatício, assim como outros modelos pluralistas, apresenta
várias limitações, entre as quais se destacam, segundo Klosterman (1985), o fato de as
unidades de vizinhança urbanas serem heterogêneas, sem partilhar interesses comuns
como uma comunidade; os líderes não serem geralmente representativos do interesse
comum; sendo mais fácil representar interesses limitados e preservar o status quo do que
advogar interesses gerais difusos. A estas limitações somam-se a falta de informação por
parte do poder público para uma tomada de decisão adequada.
O modelo de decisão centralizada de Faludi (1987, p. 116) surge como uma de-
rivação do modelo racional-compreensivo. O plano deve servir como um guia geral para
facilitar as tomadas de decisão, e não como uma proposta fechada ou uma definição das
políticas a serem realizadas, de modo a deixar a possibilidade aos órgãos envolvidos defi-
nirem o curso de ação a ser adotado de acordo com as circunstâncias que cercam a exe-
cução do plano. A preocupação maior é com as decisões operacionais a serem tomadas
pelas agências de planejamento. Nesse modelo, assim como no racional-compreensivo e
incremental, a sociedade serve apenas como uma fonte de informação e de consulta.

83
Embora os modelos processuais tenham buscado adotar o caráter pluralista do
planejamento advocatício no processo de planejamento, padecem das mesmas limitações
deste em relação à participação dos grupos sociais de baixa renda e das minorias.13
Observa-se, assim, uma mudança qualitativa gradual nas propostas processuais em
relação às que privilegiam a forma urbana e o plano. Essas modalidades, ao abrirem espaço
para interferências e passarem a incorporar uma participação dos agentes envolvidos no
processo de planejamento, tornam o plano em si um elemento secundário, a ser definido
gradualmente no decorrer de sua implementação, o que abre, inclusive, a possibilidade de
discussão, ainda que limitada, com a população-alvo. À exceção do planejamento advoca-
tício, estas modalidades privilegiam um processo vertical de decisão de cima para baixo,
no qual prevalece uma negociação entre o saber técnico, as forças de mercado e as forças
políticas hegemônicas.

Entre a lógica da forma urbana – do plano e a lógica processual


A partir das duas últimas décadas do século XX, com a emergência do neolibera-
lismo, fim do Estado do Bem-Estar, advento da 3ª Revolução Industrial, início da acumu-
lação flexível e fim da hegemonia do modelo fordista de produção (Harvey, 1989), tem-se
um renascimento da importância do desenho, do caráter estético do projeto urbano de
autor e do plano em si, graças às propostas de planejamento estratégico, de planejamento
libertário e do novo urbanismo (new urbanism), bem como as propostas de renovação
urbana de áreas degradadas por parte de arquitetos-urbanistas icônicos de vanguarda.
Porém, as propostas dessas modalidades de planejamento deixam de seguir e
estar orientadas tão somente pelo que designamos de lógica da forma urbana – do
plano, uma vez que o horizonte temporal dos projetos e planos urbanos se amplia, e
as propostas ganham uma flexibilidade que permite a adequação dos planos às neces-
sidades impostas pelo mercado e às demandas do poder público, o que lhes confere
um certo caráter processual.
Trata-se de modalidades de planejamento urbano em que se combinam a lógi-
ca da forma urbana-do plano com a lógica processual do mercado e dos agentes públi-
cos envolvidos guiados pelas necessidades do mercado, em que se projetam enclaves
residenciais, industriais, turísticos ou de serviços de grande porte com edificações
icônicas de design ousado futurístico avançado para traduzir, como seus antecessores

13 Conforme salienta Klosterman, “sistematicamente excluídos dos processos de barganha estão os


grupos e indivíduos de baixa renda e minorias residentes em centros urbanos e áreas rurais decadentes.
Sem tempo, treinamento, recursos, lideranças, informação ou experiência necessária para participar
efetivamente no processo político, estes grupos não têm voz efetiva para determinar as políticas públicas
que modelam o seu mundo” (Klosterman, 1985, p. 7, tradução nossa).

84
(movimento City Beautiful e Urbanismo Modernista), uma atmosfera de modernida-
de global, bem como para atender as necessidades impostas à reprodução do capital
pela acumulação flexível.
O planejamento estratégico implementado na cidade de São Francisco, entre
1982-1984, conquista foro mundial e se difunde mundialmente como um guia para a
competitividade global com o plano estratégico de Barcelona (1993), que praticamente
institui a primazia do urbanismo latino (Hebbert, 2006) dos arquitetos urbanistas cata-
lães frente ao planejamento urbano (town-planning).
Ao invés de focar apenas nos problemas urbanos, o planejamento estratégico tem
por meta realçar os pontos fortes e o potencial das cidades para torná-las competitivas
no cenário global. Adota, assim, princípios do planejamento empresarial e do marketing,
transformando a cidade simultaneamente em um ente do e no mercado, em “sujeito” e
mercadoria. E, ao mesmo tempo, por empregar a abordagem sistêmica como os modelos
processuais de planejamento, aproxima-se deles a despeito de possuírem fundamentos
teóricos distintos. Entretanto, enquanto no planejamento estratégico os objetivos se defi-
nem a partir do que parece factível e lucrativo com base em um diagnóstico das potencia-
lidades a serem ressaltadas e dos hiatos a serem vencidos, os modelos processuais tradicio-
nais têm por norte alcançar soluções politicamente desejáveis.
Em síntese, o planejamento estratégico consistiria, em

(...) um projeto de cidade que unifica diagnósticos, concretiza atuações


públicas e privadas e estabelece um marco coerente de mobilização e
de cooperação de alguns atores sociais urbanos (...) O resultado do pla-
no estratégico não é uma norma ou programa de governo (...) mas um
contrato político entre as instituições públicas e a sociedade civil (Borja;
Castells, 1997, tradução nossa).

Por conseguinte, o planejamento estratégico dá ênfase às parcerias público-priva-


do e abre espaço e oportunidade aos processos de renovação e de revitalização urbana. Ao
contrário das propostas do Urbanismo Modernista, a sociedade não serve apenas como
fonte de informação, uma vez que “alguns atores sociais urbanos” são convocados a se mo-
bilizar e a participar. A partir da experiência de Barcelona, as propostas de planejamento
estratégico multiplicaram-se mundo afora, muitas apresentando desdobramentos e uma
série de problemas comuns. Entre seus pontos críticos, podemos destacar:

a) a dificuldade em se identificar as questões estratégicas, de modo a evitar ou mini-


mizar o desperdício de recursos humanos e materiais, pois o que é estratégico para
uns, não necessariamente o é para outras;

85
b) a alienação do uso da cidade por seus habitantes em razão da mercantilização da
cidade, via marketing urbano (Sánchez, 1997; 2010);
c) a concepção da cidade como uma mercadoria e um agente econômico regulado
pelo mercado (Vainer, 2000, p. 78 e 83);
d) os mecanismos enviesados de participação social, uma vez que esta é normatizada
de cima para baixo, sendo aberta apenas a alguns atores sociais selecionados;
e) a ideologização, espetacularização e banalização dos projetos urbanos orientados
para atrair investimentos e não para atender as necessidades dos cidadãos (Sán-
chez, 2010; Rizzo, 2013);
f ) suas propostas contribuíram para se passar do consumo no lugar ao consumo do
lugar, com a perda dos referenciais identitários (Lefebvre, 1969).

Lado a lado com as propostas do planejamento estratégico, tem-se a emergência


do planejamento libertário nos países centrais, que ganha força e expressão com o adven-
to do neoliberalismo no último quartel do século XX. Essa corrente busca sua inspiração
nas ideias de Friedman (2014) e de Hayek (2010), retomando as ideias do Estado mí-
nimo do liberalismo (Smith, 2009), porém agora com a responsabilidade adicional de
o Estado investir em setores pouco atrativos para a iniciativa privada de modo a gerar as
condições necessárias, os suportes técnicos e infraestruturas para assegurar a consecução
de seu propósito maior, qual seja, promover os interesses das forças do mercado.
Destarte, a proposta libertária enfatiza a natureza limitada das determinações legais
no enfrentamento dos dilemas do mundo contemporâneo. Para a superação das limita-
ções legais impostas às forças de mercado, defende que o plano deve servir apenas para
definir as regras e o quadro geral, as forças de mercado darão conta do zoneamento, das
formas de uso e de ocupação do solo, sem o constrangimento da intervenção do Estado.
O urbanista e o planejador são profissionais contratados para oferecer um produto
específico, determinado, porém passível de adaptações. Cabe ao planejador, então, ape-
nas “promover a discussão e sugerir opções (...) podendo advogar, mas não prescrever,
melhorias de design cívico” (Sorensen; Day, 1981, p. 393, tradução nossa). Compete-lhe,
assim, propor um leque de diferentes soluções estéticas e de desenho urbano que se adé-
quem aos interesses do mercado e de uma demanda solvável.Eventuais efeitos negativos
de vizinhança ou problemas sociais podem e devem ser decididos através do mercado e,
em caso de disputas, pela via jurídico-legal.
Na sequência do planejamento estratégico e do planejamento libertário temos o
movimento do novo urbanismo (new urbanism), norteado por um espírito semelhante
ao desses modelos e inspirado nas proposições do movimento City Beautiful. Para Fulton
(1996), as propostas do novo urbanismo, além de haver capturado “a imaginação do públi-

86
co norte-americano como nenhum outro movimento de planejamento urbano em déca-
das”, constituiriam uma proposta alternativa à dispersão urbana e aos modelos de subúrbios
norte-americanos. A despeito de os novos urbanistas renegarem as propostas do urbanismo
modernista e de considerarem o subúrbio como a causa responsável pelos crescentes con-
gestionamentos de trânsito, pela perda do sentido comunitário de vizinhança e de perten-
cimento dos espaços públicos, entre outras coisas, muitos dos novos urbanistas acreditam
que o desenho e o projeto urbanos podem influenciar padrões de comportamento social.
Convergem, assim para a definição dos projetos urbanos e mum espírito semelhante ao de
Le Corbusier (1977) e do movimento City Beautiful.
Suas propostas nostálgicas buscam resgatar a ambiência das pequenas cidades
norte-americanas e das pequenas cidades inglesas vitorianas do início do século XX, com
a meta de reintroduzir noções tradicionais de solidariedade e de vizinhança mediante a
definição físico-territorial de vizinhanças delimitadas por caminhadas curtas, privilegian-
do o aumento da densidade de ocupação e a redução do uso do automóvel, incentivando
o uso do transporte público, bem como promovendo a integração e a mescla de diferentes
usos do solo ao nível da quadra (Lara, 2001).
Os novos urbanistas esquecem, assim, conforme Marcuse (2000), que os habitantes
das pequenas cidades que lhes servem de modelo, idealizadas e mimetizadas em suas pro-
postas, se caracterizavam pela intolerância a tudo que era diferente e lhes era estranho, uma
vez que valorizavam a homogeneidade racial e financeira de suas comunidades. Destarte, as
propostas idílicas do novo urbanismo, ao criar simulacros de pequenas comunidades, têm
contribuído,paradoxalmente, para o aumento da gentrificação e da homogeneização visual,
para a proliferação de condomínios fechados e para o aumento da segregação social e racial.
Enfim, em relação aos tipos e/ou aos modelos assinalados, que enfatizam a lógica
da forma urbana – do plano ou que a associam a uma lógica processual, tem-se uma re-
duzida transparência no processo de tomada de decisão usualmente de cima para baixo,
em que prevalecem o saber técnico-profissional subordinado aos interesses do mercado
e do Estado. Em consequência, as possibilidades de apropriação social são limitadas e
definidas pelo plano em si, e a participação social, quando ocorre, tende a ser restrita, nor-
matizada e direcionada para a decisão e discussão de questões táticas e não estratégicas.

A lógica analítica e da forma urbana


As origens da reflexão analítica relacionadas à lógica da forma urbana podem ser
localizadas na passagem do século XVIII ao XIX, com a disseminação das ideias de Prou-
dhon e de Fourier, na França, e de Owen, na Inglaterra, designados por Engels (1974) de
socialistas utópicos, que fomentaram discussões relativas ao direito à habitação, a constru-
ção de falanstérios, de familistérios (Fourier) e de habitações operárias (Owen).

87
Ao fim do século XIX, inspirados pelas ideias daqueles socialistas utópicos,
Howard, Unwin, Osborn e Geddes relacionaram os problemas urbanos às questões so-
ciais e elaboraram propostas de cidades-jardim, quase que como comunidades socialistas.
Na concepção de Howard estas cidades-jardim, além de contemplar as necessidades das
diversas classes sociais, deveriam contribuir para melhorar as condições de vida dos traba-
lhadores, dando-lhes a opção de trabalhar no campo ou na cidade. Todavia, a necessidade
de financiamentos privados para a execução de seus projetos subordinou Howard e seus
seguidores às imposições do capital fundiário e incorporador, comprometendo a conse-
cução de seus objetivos socialistas em relação aos trabalhadores. Após a Segunda Guerra
Mundial, as proposições das cidades-jardim foram, em parte, retomadas nos projetos das
cidades (New Towns movement) construídas na Grã-Bretanha com a meta de reduzir a
concentração demográfica nos grandes centros urbanos.
A maior parte dessas contribuições tinha por alvo explícito a elaboração de planos,
propostas físicas de cidades, uma vez que acreditavam na possibilidade de encontrar solu-
ções para as questões sociais ao nível do desenho.

A lógica analítico-conceitual
A reflexão analítico-conceitual sobre a necessidade de intervenção sistemática
nas cidades tem diversas linhas relativas a diferentes campos teórico-epistemológicos
das ciências humanas e sociais, com destaque para as vertentes funcionalistas, sistêmi-
cas e da teoria social crítica.
Em termos das propostas de planejamento e de intervenção urbana orientadas
pela linha de pensamento das teorias funcionalistas e da Escola de Chicago, temos as con-
tribuições da teoria da modernização e da marginalidade social, implementadas a partir
da década de 1950 em vários países do chamado Terceiro Mundo com a meta de promo-
ver a modernização e integração social com o propósito de reduzir a pobreza e a miséria.
Essas propostas correlacionavam, a partir de uma perspectiva dual maniqueísta, o atraso,
o tradicional com a pobreza, e o progresso, a modernidade com a melhoria das condições
de vida. Não percebiam, assim, que dialeticamente esse atraso e pobreza eram necessários
para a própria acumulação de capital nessas formações sociais (Limonad, 1984).
Estas teorias da modernização e da marginalidade social prevaleceram junto com as
teorias do desenvolvimento, nas décadas de 1950 e 1960, e orientaram as ações práticas de
técnicos de governo em diversos países latino-americanos. No Brasil, em particular, temos as
ações de erradicação de favelas e de construção de grandes conjuntos habitacionais em áreas
fora da malha urbanizada. Estas teorias contribuíram para dar suporte a diversas políticas sociais
implementadas de cima para baixo, lado a lado com a implementação de propostas setoriais
de planejamento orientadas pelos modelos processuais, racional-compreensivo e incremental.

88
Muitas dessas propostas foram financiadas pela USAID14 e pela Aliança para o
Progresso nos anos de 1960, e a partir da década de 1970, passam a ser promovidas por
programas do Banco Mundial (Limonad, 1984). Essas propostas de planejamento foram
orientadas por ações estatais de intervenção de cima para baixo com a meta de solucionar
os problemas de habitação dos grupos sociais que se constituíam em demanda efetiva ou,
ainda, para promover a desconcentração populacional através do incentivo ao crescimento
das cidades médias, programa promovido pelo Banco Mundial a partir da década de 1970.
No limite entre a teoria da ação social e a teoria social crítica temos as contribui-
ções de Borja e Castells (1997) e de seus seguidores, que, posteriormente, fomentaram o
modelo Barcelona de planejamento estratégico, criticado de forma exaustiva por diversos
autores (Arantes et al., 2000; Sanchez, 1997; 2010; Rizzo, 2013).
Já no âmbito da teoria social crítica temos diversas contribuições desde o final da
década de 1960, a começar pela obra de Lefebvre (1969; 1991, entre outras), às quais
vieram se somar as contribuições de Harvey (1989) e de outros autores, bem como as
proposições da Internacional Situacionista e dos anarquistas, que contribuíram para que
o Direito à Cidade, enquanto bandeira de luta de movimentos sociais, conquistasse uma
maior preeminência. Muitas dessas contribuições têm por base o reconhecimento das
contradições inerentes ao desenvolvimento do capitalismo e ao papel instrumental po-
lítico-ideológico do planejamento a serviço dos interesses hegemônicos. E mais recente-
mente, estas proposições tem-se traduzido em planos e propostas alternativas, bem como
em ações coletivas de apropriação social e de ocupação de espaços públicos, implementa-
das por movimentos sociais conjuntamente com planejadores e/ou arquitetos-urbanistas
na perspectiva de construção de uma sociedade mais equânime.

Entre a lógica analítico-conceitual e a lógica processual


Os problemas e falhas dos planos massivos de renovação urbana serviram para
corroborar as objeções às propostas de especialistas de planejamento definidas de cima
para baixo, propiciando a virada comunicativa (Fainstein, 2000, p. 461). Assim, nas duas
últimas décadas do século XX, temos as proposições analítico-conceituais, primeiro do
planejamento transacional de Friedman (2011), e mais tarde, do planejamento colabo-
rativo de Forester (1980) e de Healey (1992), inspirado nas ideias da ação comunicativa
de Habermas (1984) de que a comunicação apenas pode ocorrer entre iguais sem ser
permeada por relações de poder.
Inicialmente, Friedman (2011) questiona os estilos tradicionais de planejamento
e enfatiza a necessidade de se democratizar o processo de planejamento. Por entender

14 USAID - United States Agency for International Development - a agência norte-americana de ajuda externa.

89
que um dos maiores problemas do planejamento seria planejadores e clientes não falarem
a mesma linguagem, tornando irracionais os esforços do planejamento racional-compre-
ensivo, propõe uma mudança na relação planejador-cliente. Essa mudança, por sua vez,
demanda uma disposição mútua em se estabelecer um diálogo continuado e uma base
de comunicação que permitam a mediação entre ambas as formas de conhecimento, para
se chegar a uma formulação consensual de planejamento, embora reconheça que nem
sempre o acordo é possível, dada a possibilidade de emergência de conflitos.
Como o planejamento transacional tem por base a racionalidade comunicativa, da
comunicação entre iguais, a tarefa do planejador seria se limitar a guiar o processo de planeja-
mento. As visões do cliente devem ser respeitadas, embora possam mudar durante o processo
de aprendizado mútuo. Assim, não cabe ao planejador querer que as coisas aconteçam, nem
fazer com que aconteçam, pois o processo de planejamento não pode ser forçado.
Não obstante as propostas de planejamento transacional e colaborativo tendam a ser
confundidas por diversos autores (Tewdwr-Jones, 2005; Allmendiger, 2009; entre outros),
distinguem-se em termos das relações a serem privilegiadas e do papel do planejador no
processo de planejamento. Ao passo que o planejamento transacional ressalta a importân-
cia da comunicação não distorcida, compreensível no nível da relação interpessoal plane-
jadores-clientes e na forma com que estes interagem, Forester (1980) argumenta que essa
comunicação é igualmente importante nos âmbitos organizacional, político e ideológico,
que constituem o quadro geral do discurso e da reflexão onde a comunicação se processa.
Assim, o planejamento colaborativo pressupõe um envolvimento maior do planejador com
os grupos sociais como um elemento necessário à propulsão e mediação do processo de
planejamento junto aos agentes institucionais e não apenas enquanto um guia e interlocutor.
Healey (1992), por seu turno, critica o planejamento tradicional por priori-
zar a racionalidade econômica em detrimento das necessidades dos cidadãos e do
ambiente, salientando que a imposição do saber técnico do planejamento representa
uma exclusão a priori de discursos alternativos. Entende, assim, que não cabe ao plane-
jamento colaborativo estabelecer a priori ideias e princípios fundantes do que é bom
ou mau, ao contrário, estes devem ser definidos no processo de planejamento. E para
isso acontecer esse processo deve ter por base a aceitação da alteridade, bem como
abertura e disposição para mudanças.
Antes de serem um fim em si mesmos, como ocorre na lógica da forma urbana-do
plano, os planos constituem uma mediação para o debate contínuo do planejador com
os grupos sociais afetados e interessados. As medidas a serem adotadas resultam de uma
aprendizagem mútua capaz de conduzir a uma comunicação intensiva. Destarte, os pla-
nos tendem a incorporar o conhecimento dos grupos sociais envolvidos, sendo mais do
que o produto de propostas de planejadores e burocratas na definição da cidade.

90
Nesta modalidade os grupos sociais possuem um papel ativo na gestão e têm
uma contribuição central a dar, com seu conhecimento e experiência, uma vez que o
planejamento colaborativo envolve um processo mútuo de aprendizagem e de troca de
experiências entre os planejadores e os grupos sociais envolvidos. A partir de um diá-
logo mútuo, colaborativo e continuado os planejadores e os grupos sociais envolvidos
definem e trabalham na formulação das soluções e medidas a serem adotadas, sendo
o planejamento implementado de forma descentralizada e focado na construção de
parcerias e de diálogos com a população.
Estas propostas representam um enorme avanço em relação aos modelos pro-
cessuais tradicionais alinhados com o status quo vigente e com as forças hegemônicas,
na medida em que, ao contrário de seus predecessores reconhecem que as desigualda-
des sociais são intrínsecas ao desenvolvimento do capitalismo, que existem diferentes
interesses sociais e, embora admitam a possibilidade de erupção de conflitos sociais,
acreditam na possibilidade de evitá-los através de soluções consensuais resultantes do
diálogo entre as partes envolvidas.
De forma diferente do planejamento advocatício, em que o planejador atua como
mediador, no colaborativo o planejador se engaja nas reivindicações com os grupos so-
ciais envolvidos. Os planejadores atuam lado a lado com os grupos sociais como coparti-
cipantes e contribuem com o seu conhecimento para mediara comunicação e a negocia-
ção entre os diferentes agentes e atores envolvidos.
Estas modalidades privilegiam a democratização do planejamento com a tomada
de decisão de baixo para cima, enquanto os demais modelos processuais tradicionais pri-
vilegiam a negociação entre os agentes hegemônicos ou de cima para baixo, assim como
as modalidades atinentes à lógica da forma urbana e do plano.
As críticas aos modelos comunicativos enfocam questões relativas à participação,
aos custos do processo e ao tempo necessário para a tomada de decisão. Uma vez que um
processo participativo de tomada de decisão demanda tempo, informação e instrumen-
talização dos grupos sociais para participar e decidir. Trata-se, assim, de um processo de-
morado que requer um tempo, que os mais pobres muitas vezes não dispõem, podendo
ter os seus interesses ignorados, comprometendo-se assim o processo de participação e
de tomada de decisão no curto prazo.
Os modelos comunicativos representam uma reação à tomada de decisão de cima
para baixo, e mesmo às soluções negociadas com a participação dos grupos alvo, onde ge-
ralmente se discutem as questões táticas e não estratégicas, de modo a legitimar o processo
de planejamento, aplicando-se aqui também as criticas levantadas por Klosterman (1985).
Apesar das mudanças recorrentes dos modelos de planejamento, nas vertentes
abordadas até aqui, a teorização e reflexão permaneceram focadas nos processos e nas

91
metodologias, sem se preocupar com os resultados materiais e políticos tangíveis, capazes
de contribuir para mudanças qualitativas. Isso leva Fainstein (2000) a criticar os modelos
comunicativos, salientando que embora estes tenham um compromisso com a equidade
e a diversidade, apresentam conflitos entre seus objetivos e os resultados alcançados, seja
em limites restritos, seja em áreas metropolitanas. Elabora, assim, a proposta da cidade
justa, com base em três parâmetros: igualdade, democracia e diversidade, com a perspec-
tiva de sua abordagem conceitual contribuir para influenciar a prática de planejamento,
sem se prender a uma fórmula de métodos ou processos, como os modelos processuais
tradicionais. Sua concepção da cidade justa envolve uma visão de um mundo onde as
decisões advêm da política, não do mercado, e ao que pode ser alcançado através de po-
líticas que favoreçam conquistas graduais de justiça social nas cidades. Porém, apesar de
suas intenções, a cidade justa não avança além das demais modalidades de planejamento
comunicativo, consistindo em uma proposta normativa de caráter reformista.
De certa forma, uma boa parte da discussão internacional recente sobre o planeja-
mento adota uma visão dual, sem chegar a reconhecer as contradições inerentes ao siste-
ma capitalista. Conforme Gualini (2005, p. 82), muitos autores pecam por reproduzir as
mesmas posturas paradigmáticas que criticam, sem chegar a oferecer um suporte teórico
e alternativas consistentes, mantendo uma certa crença em uma sensibilidade inata dos
planejadores para as questões sociais, como o suposto consenso do planejamento teórico
da proposta da “cidade justa” em relação a virada comunicativa.
Graças aos avanços dos movimentos sociais contra a globalização, financeirização
do espaço social e às contribuições conceituais da reflexão da teoria crítica, no início do
século XXI, diversas práticas e modalidades de planejamento norteadas por lutas relativas
ao Direito à Cidade (Lefebvre, 1969), à construção de uma sociedade urbana (Lefebvre,
1991) ganharam corpo em diversos países, através de distintos movimentos sociais e de
práticas processuais que buscam reconquistar a cidade para os cidadãos e se antepõem à
privatização dos espaços públicos e à produção do espaço social direcionada exclusiva-
mente ao aumento da acumulação de capital (Brenner et al., 2012).
Têm-se, assim, práticas que se insurgem, que se rebelam contra a ordem vigente,
assim como práticas que se propõem a subverter a ordem vigente, que compreendem
desde formas efêmeras de ocupação dos espaços públicos com festas, manifestações,
raves etc., até o desenvolvimento de hortas urbanas, a criação de parques lineares e de
atividades para melhorar as condições de vida dos cidadãos até movimentos de ocupa-
ção de imóveis urbanos na luta pela moradia. Incluem-se, aqui, também práticas de pla-
nejamento participativo que buscam sistematizar e estruturar as demandas e reivindi-
cações da população alvo junto ao poder público, em uma perspectiva de mudança nos
limites do sistema capitalista. Essas modalidades representam um avanço significativo

92
em relação às propostas do planejamento transacional (Friedman, 2011) e colaborati-
vo (Healey, 1992; Forester, 1980).
A atuação do planejador e mesmo de urbanistas críticos nesse contexto demanda
seu efetivo comprometimento político com a elaboração, formulação e implementação
de alternativas e de soluções na perspectiva de construção de uma sociedade mais justa
e equânime, de uma cidade definida para os cidadãos e não para o lucro, enquanto um
participante envolvido com os demais membros do grupo social e não apenas como um
consultor e mediador entre as partes envolvidas como no advocacy planning, ou como um
guia no planejamento transacional.

Onde estamos pisando?

Além das modalidades abordadas há atualmente distintas tendências no âmbito do pla-


nejamento e do urbanismo sobre as quais não iremos nos debruçar aqui, uma vez que a
sistematização das modalidades apresentadas permite-nos elaborar o esquema exposto a
seguir, onde podem se inserir outras modalidades.
Esse esquema torna evidente as diferentes matrizes teóricas do planejamento e do
urbanismo, assim como destaca o domínio disciplinar de arquitetos e urbanistas (terceira
coluna) que privilegia a lógica da forma urbana – do plano e seu quase alheamento das
lógicas processual e analítico-conceitual, domínio do planejamento urbano e regional
(primeira e segunda colunas do esquema).
Os arquitetos, planejadores paisagísticos e urbanistas abordam o desenho de uma
cidade enquanto uma composição de volumes tridimensionais, enquanto os planejado-
res têm propósitos e abordagens mais amplas em termos sociais, econômicos e ambien-
tais. Cabe ressaltar que as propostas urbanísticas e de desenho urbano, usualmente, são
definidas a partir de um contrato com um cliente, como, por exemplo, um empreendedor
privado ou público, sendo executada em bloco. Já no caso do planejamento, há múltiplos
atores e interesses em diferentes lugares, compreendendo diferentes propósitos, em diver-
sas escalas sendo os projetos executados com distintos horizontes temporais.
Jacobs (1961) já destacava que os arquitetos se importavam apenas com as edifica-
ções sem perceber contextos sociais mais amplos e as implicações sociais de seus projetos.
E, os planejadores, dada a interdisciplinaridade da prática e reflexão, tendem a enfatizar
várias metas e critérios, bem como um processo analítico e colaborativo em seus planos.
Gunder (2011, p. 191) assinala que os produtos do urbanismo e do desenho urbano
contemporâneos, domínio de arquitetos e de urbanistas, cada vez mais, atendem aos interes-
ses globalizados do setor privado, do capital corporativo e a agenda neoliberal, em detrimen-
to da satisfação do bem comum ou de um interesse público mais amplo, de um modo di-

93
ESQUEMA DAS MODALIDADES DE PLANEJAMENTO E DE URBANISMO

94
Fonte: Ester Limonad (2015).

95
ferente do planejamento. Pois os planejadores, em princípio, teriam uma preocupação com
valores humanos e não-mercantis por haverem sido capacitados a atuar como advogados do
interesse público, compreendendo contribuições e o trabalho de distintos campos profissio-
nais. Entende, ainda que, uma forma de trazer o desenho urbano e o urbanismo para o lado
do bem comum seria estes permanecerem como um subcampo do planejamento urbano
e regional, preocupados com a forma urbana, a estética e habitabilidade (Gunder, 2011, p.
184). O que contribuiria para os imperativos de equidade, justiça social e sustentabilidade
prevalecerem sobre as metas de lucratividade do desenho urbano, urbanismo e planejamen-
to paisagístico. Como se a bondade fosse um dom natural ou inato aos planejadores!
Porém, nem tudo são flores no planejamento. Gunder reconhece, que “os plane-
jadores fazem aquilo que se supõe que bons planejadores devem fazer. Isso raramente é
objetivo ou baseado em fundamentos válidos e razoáveis para as injustiças que o plane-
jamento produz frequentemente!” (Gunder, 2005, p. 187, tradução nossa). E, com base
em Lefebvre destaca que a política de planejamento corresponde a uma estratégia que
mistura valores ideológicos e crenças com a racionalidade como se tudo fosse ciência
tecnológica. Isto torna a racionalidade do planejamento um constructo ideológico, um
suporte das crenças e valores do planejador. Crenças e valores que não necessariamente
vão ao encontro de uma maior justiça social, pois conforme Talen (2011, p. 211), “os pla-
nejadores, também, têm bastante sangue em suas mãos”, principalmente quando se trata
de explorar o design e as edificações de arquitetos icônicos em planos que atendam aos in-
teresses hegemônicos. Um exemplo é a difusão de grandes complexos urbanos fechados
de luxo, enclaves residenciais e de serviços desenhados por arquitetos globais estrelares,
financiados pelo capital global. Lugares de onde os “abjetos, profanos e sujos são sistemati-
camente excluídos” (Banerjee, 2011, p. 208), que primam pela exclusão social, segregação
econômica e mesmo racial. Os quais são erigidos, muitas vezes, como parte de grandes
planos de desenvolvimento urbano e regional, lado a lado com grandes empreendimen-
tos econômicos de cunho industrial, extrativo ou de serviços, relacionados a implanta-
ção de polos industriais, áreas portuárias ou enclaves extrativos, como ocorre em diversas
partes do Brasil, através de investimentos de grandes corporações associadas a ação de
empreiteiras, secundadas pelo Estado.

Muito além do jardim, algumas perspectivas possíveis

A partir do exposto pode-se perceber que a falta de uma identidade disciplinar no plane-
jamento o aproxima de outros campos disciplinares e de conhecimento, o que converge
para a proposição de que “um mal dos campos de conhecimento mais recentes é sua su-
perposição e mistura com outros campos disciplinares, por vezes confundindo-se com

96
aqueles que lhe são mais próximos” (Quaini, 1979). Essa identidade disciplinar incerta
conduz não somente a uma confusão entre o planejamento e o urbanismo, mas com a ci-
ência política, a gestão pública e outros. Além de contribuir para a reflexão conceitual de o
planejamento tender a reproduzir fronteiras analíticas alheias, o que limita sua capacidade
de desenvolver uma reflexão explicativa e analítica ampliada em relação às práticas espa-
ciais (Gualini, 2005). Resulta, daí que a tendência mais comum é subordinar as questões
de planejamento à lógica da forma – do plano dos urbanistas, ou seja, a uma perspectiva
técnica, prescritiva e normativa, ou ainda, à lógica processual sistêmica, sem refletir sobre
seu papel na sociedade e na produção do espaço social.
À exceção das modalidades de planejamento e de urbanismo crítico inspiradas no
Direito à Cidade, em uma perspectiva de contra-planejamento, de ruptura de barreiras
disciplinares ou de conhecimento, as demais modalidades, mesmo as da virada comu-
nicativa, não reconhecem as contradições inerentes ao sistema capitalista e o caráter es-
trutural das desigualdades socioespaciais para a produção do espaço abstrato do capital.
Tampouco possuem uma perspectiva teórica ampla sobre o planejamento que inclua as
dimensões sociais, políticas e institucionais envolvidas na produção pública de espaço.
Por conseguinte, a maioria resvala para um reducionismo acrítico, subordinando os pro-
blemas a serem sanados a uma perspectiva (técnica) de planejamento.
Soma-se a isso, de distintas maneiras, uma visão acrítica de muitos desses modelos
seja do poder benévolo dos planejadores, seja do planejamento como algo essencialmente
benigno, dado seu possível caráter reformista e emancipatório dentro dos limites do sistema
capitalista voltado para satisfazer as necessidades das forças de mercado e do Estado. Pois,
muitos desses modelos têm por base matrizes teóricas pautadas em uma visão dual de valo-
res e normas. Não reconhecem, assim, que o planejador é destituído de fato de poder, que
muitas vezes a decisão está nas mãos daqueles que detém o poder político e econômico.
Para avançar rumo a outro planejamento, para ir além dos planos e projetos, faz-se
mister uma compreensão mais ampla do planejamento e, em particular, do planejamento
urbano, enquanto parte da produção social pública do espaço, que permita apreender a
natureza política das práticas espaciais do Estado, o seu papel na modernização dos esta-
dos nacionais e a sua inseparabilidades dos processos espaciais concretos.
Cabe entender o planejamento enquanto uma mediação, uma prática espacial vol-
tada para a produção e organização social do espaço, por parte do Estado, em uma socie-
dade determinada. Isso permite compreendê-lo dialeticamente como um poderoso ins-
trumento, produto de uma representação do espaço (Lefebvre, 1991) voltada para satisfa-
zer os interesses hegemônicos do bloco no poder de uma sociedade, em nome de atender
as necessidades dos grupos sociais subordinados. Essa capacidade do planejamento além
de contribuir para a produção de um espaço abstrato do capital e para subordinar as possi-

97
bilidades de apropriação social do espaço social à sua mercantilização, contraditoriamen-
te contribui para a legitimação política dos governantes e para a distribuição de recursos e
poder em um jogo in-transparente de alianças políticas.
A natureza política do planejamento, em que as decisões são tomadas de cima para
baixo, tende a atender aos interesses hegemônicos a uma representação do espaço das clas-
ses dominantes. Tentativas de subverter essa tendência podem ser localizadas em diferentes
graus nas práticas de planejamento que privilegiam a lógica processual informadas pela teo-
ria social crítica e nos esforços teóricos de reflexão de uma economia política do espaço. A es-
tas se somam algumas iniciativas do que poderíamos chamar de um urbanismo crítico, que
deixa de privilegiar diretamente a lógica da forma – do plano, incorporando a participação e
o conhecimento dos grupos envolvidos para a definição de soluções alternativas e não con-
vencionais (Odendaal, 2013; Rodrigues, 2014), buscando romper barreiras disciplinares.
Após décadas de polêmicas, em que muitos acreditavam na possibilidade do
planejamento chegar a um consenso universal passível de atender a um bem coletivo
geral, há uma certa convergência de opiniões entre os defensores das diferentes moda-
lidades de planejamento em relação ao caráter não científico da tomada de decisões e
de implementação de políticas. Adams (1994) assinala que a implementação prática e
a definição das soluções de planejamento dependem mais das alianças políticas entre
os atores de peso envolvidos e da capacidade de atração de recursos por parte de quem
decide, do que de procedimentos científicos de seleção da melhor solução técnica a ser
implementada em nome do interesse público. Ressalta, ainda que, durante o processo
de planejamento todos tentam influenciar as medidas a serem tomadas em proveito
próprio, pois o planejamento envolve barganhas e negociações dos distintos atores em
torno de escassos recursos. Para concluir que o planejamento é essencialmente uma
atividade política, e que em uma economia de mercado qualquer justificativa para o
planejamento urbano, enquanto uma intervenção do Estado sobre um processo de
desenvolvimento, “demanda uma prova de que tal intervenção produz um ambiente
urbano melhor do que aquele seria gerado pelo mercado” (Adams, 1994, p. 2).
Na perspectiva de uma economia política do espaço crítica há questionamentos
diversos sobre quem financia e quem se beneficia dos esforços da implementação dessas
modalidades de planejamento e muitos críticos se inserem e associam aos movimentos
sociais para impedir o avanço do capital, apoiar as reivindicações dos grupos sociais de
baixa-renda, das minorias para lhes garantir melhores condições de vida.
Porém, mesmo os modelos de planejamento orientados pela teoria social crítica
tendem a perceber que o planejamento pode ser uma “faca de dois gumes” com efeitos
positivos para certos grupos de interesse e impactos desastrosos para grupos sociais su-
bordinados. À exceção das poucas propostas que buscam se situar no âmbito de uma eco-

98
nomia política do espaço, a quase totalidade dos modelos abordados, quer sejam aque-
les que privilegiam a lógica da forma – do plano, quer sejam os que privilegiam a lógica
processual e, mesmo, a lógica analítico conceitual não incorporam nem as contradições
inerentes ao próprio capitalismo, nem o caráter dialético e estrutural de muitas questões
que se colocam, vistas como uma expressão das diferenças e desigualdades, que teriam
possíveis soluções próprias a partir da perspectiva das respectivas modalidades.
A questão é que, o planejamento ainda tem a contribuir para a produção de um
outro espaço, de uma sociedade urbana, embora seja um instrumento a serviço da produ-
ção do espaço abstrato do capital e do Estado, em que usualmente, as decisões de investi-
mento que contemplem as necessidades e interesses sociais coletivos, em particular dos
setores subordinados, depende da composição do bloco no poder (Poulantzas, 1978),
das alianças políticas, do regime político, da conjuntura econômica, da correlação de for-
ças sociais vigente por ocasião da implementação dos planos e da capacidade dos grupos
sociais envolvidos se mobilizarem em torno de seus interesses.
A possibilidade de o planejamento contribuir para reverter esse estado de coisas
estaria em se pautar em uma economia política do espaço social, em propostas de contra-
-planejamento, de alternativas de apropriação do espaço social na esfera do cotidiano, na
esfera de reprodução da vida material na ordem próxima.
Inserem-se nesta perspectiva diferentes movimentos com focos distintos, com pro-
postas particulares que vão ao encontro das necessidades dos cidadãos e de encontro às
necessidades da acumulação. Têm-se, assim, iniciativas em diversos países do mundo que
se antepõem à ditadura do tempo cada vez mais rápido do capital, como as slow-cities e a
slow-food. Às quais se somam iniciativas de apropriação dos espaços públicos reivindicando
-os para hortas urbanas, movimentos de ocupação de áreas públicas para fins de habitação,
etc. Iniciativas onde muitas vezes o desenho, o projeto urbano e o plano desempenham um
papel acessório, secundário, porém por vezes necessário para apoiar soluções alternativas de
escoamento de águas pluviais, de contenção de encostas, de soluções construtivas e habi-
tacionais. Iniciativas essas que podem e devem contar com o engajamento daqueles que se
coloquem na perspectiva de construção de uma sociedade urbana, de um espaço diferencial.

REFERÊNCIAS
ADAMS, D. Urban planning and the development process. Oxon: Routledge, 1994.
ALLMENDINGER, P. Planning theory. London: Palgrave-Macmillan, 2009.
ANSELIN, L.; NASAR, J. L.; TALEN, E. Where do planners belong? Journal of Planning Education and Rese-
arch, v. 31, n. 2, p. 196-207, 2011.
ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (Org.). A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000.

99
BANERJEE, T. Response to “commentary: is urban design still urban planning?”: whither urban design?
Inside or outside planning? Journal of Planning Education and Research, v. 31, n. 2, p. 208-210, 2011.
BORJA, J.; CASTELLS, M. Local y global. Madrid: Taurus, 1997.
BRENNER, N.; MARCUSE, P; MAYER, M. et. al. Cities for people, not for profit. New York: Routledge, 2012.
CARLOS, A. F. A. A produção da metrópole o novo sentido do solo urbano na acumulação do capital.
In: RIBEIRO, A. C. T.; LIMONAD, E.; GUSMÃO, P. P. (Org.). Desafios ao planejamento. Rio de Janeiro:
Letra Capital, 2012. p. 43-56.
CARLOS, A. F. A. A lógica do planejamento versus a dialética do mundo. In: LIMONAD, E.; CASTRO, E.
(Org.). Um novo planejamento para um novo Brasil?. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. p. 25-39.
CHOAY, F. El Urbanismo. Barcelona: Lumen, 1983.
DAVIDOFF, P. Advocacy and pluralism in planning. Journal of the American Institute of Planners, v. 31, n. 4,
p. 331-338, 1965.
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Martins Fontes, 1974.
ESQUIVIAS BLASCO, B. ¡Agua va! La higiene urbana en Madrid. (1561-1761). Madrid: Caja Madrid, 1998.
ETZIONI, A. Mixed Scanning: a third approach to decision-making. Public Administration Review, v. 27,
n. 5, p. 385-392, 1967.
FAINSTEIN, S. New Directions in planning. Urban Affairs Review, v. 35, n. 4, p. 451-478, March 2000.
FALUDI, A. (Ed.). A Reader in planning theory. Oxford: Pergamon Press, 1973. p. 1-10.
FALUDI, A. A Decision-centred View of environmental planning. Oxford: Pergamon Press, 1987.
FIGUEIREDO, G. C. O CAU e a farsa corporativa da vinculação exclusiva do urbanismo com a arquitetu-
ra. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 128.00, Vitruvius, jan. 2011. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.
br/revistas/read/arquitextos/11. 128/3694>.
FORESTER, J. Critical theory and planning practice. Journal of the American Planning Association, v. 46, n. 3,
p. 275-286, 1980.
FRIEDMAN, J. The transactive style of planning. In: FRIEDMAN, J. Insurgencies: essays in planning theory.
London: Routledge/RTPI, 2011. p. 15-28.
FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. São Paulo: LTC, 2014.
FULTON, W. The new urbanism challenges conventional planning. Land Lines, v. 8, n. 5, Sept. 1996.
GUALINI, E. The power of planning. disP, n. 161 p. 82-83, fev. 2005.
GUNDER, M. Sustainability planning’s saving grace or road to perdition? Journal of Planning Education and
Research, v. 26, p. 208-221, 2006.
GUNDER, M. The production of desirous space. Planning Theory, v. 4, n. 2, p. 173-99, 2005.
GUNDER, M. Commentary: is urban design still urban planning? An exploration and response. Journal of
Planning Education and Research, v. 31, n. 2, p. 184-195, 2011.
HABERMAS, J. The theory of communicative action. Boston: Beacon, 1984.

100
HALL, P. (1988). Cities of tomorrow. Chichester: John Wiley & Sons Blackwell, 2014.
HALL, P.; TEWDWR-JONES, M. Urban and regional planning. London: Routledge, 2002.
HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1989.
HAYEK, F. A.O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010.
HEALEY, P. Planning through debate: the communicative turn in planning theory. Town Planning Review,
v. 63, n. 2, p. 143-162, 1992.
HEBBERT, M. Town planning versus urbanismo. Planning Perspectives, v. 21, p. 222-251, July 2006.
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.
JACOBS, J. The death and life of great American cities. New York: A. A. Knopf, Random House, 1961.
KLOSTERMAN, R. E. Arguments for and against planning. Town Planning Review, v. 56, n. 1, p. 5-20, 1985.
LARA, F. Admirável urbanismo novo. Arquitextos, São Paulo, ano 1, n. 009.09, Vitruvius, fev. 2001. <http://
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.009/923>.
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977
LE CORBUSIER. Planejamento urbano. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969.
LEFEBVRE, H. The production of space. London: Blackwell, 1991.
LEME, M. C. S. A formação do pensamento urbanístico no Brasil: 1895-1965. In: LEME, M. C. S.; FER-
NANDES, A.; GOMES, M. A. F. (Org.). Urbanismo no Brasil 1895-1965. São Paulo: Studio Nobel, 1999.
LIMONAD, E. A trajetória da participação social. Dissertação de Mestrado. PUR/COPPE, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 1984.
LIMONAD, E. Paris em chamas: arquitetura ou revolução. Biblio 3w, v. XI, n. 644, p. 1-28, 2006.
LIMONAD, E. Da política a não política e a ingovernabilidade do território. In: PAES, M. T. D.; SILVA, C.
A.; MATIAS, L. F. (Org.). Geografias, políticas públicas e dinâmicas territoriais. Dourados: UFGD, 2013. p. 15-27.
LIMONAD, E. Estado, espaço e escala no Brasil, subsídios para a reflexão. Scripta Nova, Barcelona, v. XVIII,
p. 1-19, 2014a.
LIMONAD, E. Um novo planejamento ou um novo Estado para um novo Brasil?. In: LIMONAD, E.; CAS-
TRO, E. (Org.). Um novo planejamento para um novo Brasil? Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014b. p. 80-99.
LINDBLOM, C. E. The science of “muddling through”. Public Administration Review, v. 19, n. 2, p. 79-88,
spring 1959.
MARCUSE, P. Sustainability is not enough. Environment and Urbanization, v. 10, n. 2, p. 103-112, 1998.
MARCUSE, P. The new urbanism: the dangers so far. disP - The Planning Review, v. 140, p. 4-6, 2000.
MARICATO, E. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO,
E. (Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 121-192.
MARTINS, M. L. R. Elementos para pensar a questão ambiental urbana. In: LIMONAD, E.; CASTRO, E.
(Org.). Um novo planejamento para um novo Brasil? Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. p. 257-272.

101
MONTE MÓR, R. L. M. Do urbanismo à política urbana. In: COSTA, G. M.; MENDONÇA, J. G. (Org.).
Planejamento urbano no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. p. 31-65.
ODENDAAL, N. Experiential learning in African planning schools. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e
Regionais, v. 15, n. 1, p. 155-166, 2013.
POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
QUAINI, M. Marxismo e geografia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
RANDOLPH, R. Em busca de uma agenda para o planejamento urbano e regional – uma homenagem a
Ana Clara Torres Ribeiro. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 15, p. 11-31, 2013.
RIZZO, P. M. B. Planejamento urbano no contexto da globalização: caso do Plano Diretor do Campeche em
Florianópolis, SC. Tese de Doutorado. Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
ROVATI, J. F. Urbanismo versus planejamento urbano? Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 15,
p. 33-58, 2013.
SÁNCHEZ, F. Cidade e informação. Experimental, São Paulo, v. 3, p. 23-34, 1997.
SÁNCHEZ, F. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó: Argos, 2010.
SANTOS, M. Manual de geografia urbana. São Paulo: Hucitec, 1981.
SANYAL, B. Planning’s three challenges. In: RODWIN, L.; SANYAL, B. The profession of city planning. New
Brunswick, NJ: Center for Urban Policy Research, 2000. p. 312-333.
SMITH, A. (1776). An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations, 2009. Disponível em: <http://
www.gutenberg.org/files/3300/3300-h/3300-h.htm>. Acesso em: 15 jan. 2015.
SORENSEN, A. D.; DAY, R. A. Libertarian planning. The Town Planning Review, v. 52, n. 4, p. 390-402,
Oct. 1981.
TALEN, E. Response to “commentary: is urban design still urban planning?” Journal of Planning Education
and Research, v. 31, n. 2, p. 211-212, 2011.
TEWDWR-JONES, M. The planning polity. London: Routledge, 2005.
THOMPSON, R. Re-defining planning: the roles of theory and practice. Planning Theory & Practice, v. 1,
n. 1, p. 126-133, Sept. 2000.
VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (Org.). A
cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 74-104.
VILLAÇA, F. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In: DEÁK, C.; SCHIF-
FER, S. R. (Org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp, 1999. p. 169-243.
YIFTACHEL, O. Towards a new typology of urban planning theories. Environment and Planning B: Planning
and Design, v. 16, n. 1, p. 23-39, 1989.

102
A origem estrutural da subversão
em sociedades capitalistas
contemporâneas, suas práticas
baseadas na vivência cotidiana
e um novo paradigma de um
contraplanejamento
Rainer Randolph

Introdução

O presente texto propõe-se realizar uma releitura de duas contribuições nossas a respeito da
temática do planejamento público (urbano e regional, em princípio), que foram elaboradas
em dois momentos diferentes dentro da nossa trajetória de reflexão de mais de 20 anos. São
dois momentos marcados por dois diferentes posicionamentos a respeito de formas de pla-
nejamento que, aparentemente – e só na aparência – são opostos: no primeiro momento, em
meados da década de 1990, realizamos discussão e defesa de um planejamento chamado de
“comunicativo” pelos seus idealizadores (Randolph, 1995); agora, no segundo, em tempos
mais recentes, estamos defendendo a necessidade de repensar o planejamento e começamos
a propor uma outra forma que denominamos “subversivo” (Randolph, 2007; 2014).
Ao observar essas duas “pontas” da trajetória pode se achar que houve, nesse pe-
ríodo, uma profunda inflexão de nossa reflexão que devesse ter tornado obsoleto nosso
debate de 1995. Mas, um tanto paradoxalmente, isso não é o caso, como vai se perceber a
partir do nosso esforço em recuperar a abordagem de outrora.
Ver-se-á que “comunicação” e “subversão” são, por um lado, formas opostas de atu-
ação e práticas sociais; mas, por outro, e em determinadas circunstâncias históricas – nas
sociedades capitalistas contemporâneas –, a subversão parece ser a única maneira a “defen-
der” a comunicação contra “ataques” que a pretendem enfraquecer; e é essa defesa da co-
municação que fornece à subversão sua força própria. Nesse sentido, poder-se-ia até falar de
uma “potencialidade subversiva” da comunicação que explicitaria melhor o significado de
um “planejamento subversivo” se este existisse em sociedades capitalistas contemporâneas.
Em outras palavras, o pressuposto do presente ensaio é que para facilitar a compre-
ensão de um novo “modo” de planejamento, que se pudesse, talvez, chamar de “subversi-
vo”, seria recomendável se voltássemos à discussão do planejamento comunicativo. Mas,
que, para alcançar o entendimento dessa “força subversiva” desse novo planejamento, seria
necessário superar a abordagem comunicativa no sentido dialética, ou seja, sem negá-la.
Com isto, fica claro que no presente estudo não há necessidade em aprofundar todas
aquelas diferentes abordagens, formas, modos ou modelos do planejamento que podem ser
encontrados na bibliografia como o racional-compreensivo, o incremental, o advocacional,
o participativo e outros,1 cujas diferentes concepções e práticas nunca foram radicalmente
questionadas. Mais recentemente, nas décadas de 1980 e 1990, merecem menção outras
modalidades, como a comunicativa ou colaborativa, as quais retornaremos mais adiante, e,
por último, a estratégica, que se tornou hegemônica após meados dos anos de 1990.
Também será aprofundada a seguir uma outra discussão que diz respeito a uma
forma de planejamento que surgiu na virada do século e continua sendo discutida até
hoje. É o “planejamento insurgente” (Holston, 1995; Friedmann, 2002; Miraftab, 2009;
entre outros) que, até pela sua denominação, pode ter alguma semelhança com nossa pro-
posta chamada de “subversiva”. Afinal, qual a diferença entre “insurgência” e “subversão”.2
Como relatado por Miraftab, para John Friedmann, o planejamento insurgente se
preocupa com grupos marginalizados e oprimidos e oferece uma análise e compreensão
críticas das forças estruturais que marginalizam e oprimem populações (Miraftab, 2009, p.
46). Ele tem como origem uma perspectiva que vê o planejamento radical a partir da luta
anticolonial do Sul e pode ser caracterizado por três propriedades:

(i) o planejamento insurgente é transgressivo no tempo, lugar e ação (ao violar


socialmente aceitas ou impostas limitações, observação nossa): ele trans-
grede falsas dicotomias, por meio de ações públicas que abrangem arenas
formais/informais de política e espaços convidados/inventados de prática
da cidadania. Ele transgrede as fronteiras nacionais através da construção de
solidariedades transnacionais de pessoas marginalizadas... (ii) planejamento
insurgente é contra-hegemônico: ele desestabiliza relações normalizadas de do-
minação e insiste no direito dos cidadãos à dissidência, a rebelar-se e deter-
minar seus próprios termos de engajamento e participação. Planejamento
insurgente se vale de vantagens da natureza contraditória do capitalismo
neoliberal... (iii) o planejamento insurgente é imaginativo: recupera o idealismo
de uma sociedade justa – a imaginação que a ilusão neoliberal de que não

1 Ver aqui uma sistematização realizada na década de 1970 por Friedmann e Hudson (1974, p. 4 et seq.) e
a contribuição de Limonad neste próprio volume com o título “Muito além do jardim: planejamento e
urbanismo, do que estamos falando?”
2 Ver, para isso, Randolph (2014, p. 45 et seq.).

104
haja alternativa (There is no Alternative - TINA) tem suprimido. Planeja-
mento insurgente reconhece o valor simbólico de atividades de cidadania
insurgentes que oferecem esperança de que faça sentido trabalhar em dire-
ção a alternativas (Miraftab, 2009, p. 46, tradução nossa).

No decorrer do presente trabalho encontraremos alguns elementos do “planeja-


mento subversivo” aparentemente semelhantes com as características do insurgente aqui
apontadas. Entretanto, há uma grande diferença – e, em certo modo, divergência – entre
as perspectivas que sustentam essas duas abordagens.
Como veremos, essa divergência se expressa mais nitidamente nas diferentes
conceituações da noção de “colonização” ou “colonialismo”, que são a base para as duas.
Os autores que discutem o planejamento insurgente se referenciam, geralmente, nas
suas reflexões aos processos de dominação, marginalização e opressão que se instau-
raram através da colonização enquanto processo histórico. Na discussão da subversão,
no presente trabalho, a “colonização” será conceituada como “interna” a qualquer so-
ciedade capitalista contemporânea e especialmente naqueles sob forte influência do
neoliberalismo. Essa colonização interna não tem a sua origem num processo histórico
de dominação entre países (que pode até ter contribuído para que tome formas mais
dramáticas e destrutivas), mas expressa a dominação, no interior da sociedade capitalis-
ta, de determinadas esferas sobre outras esferas. Não se trata de “dicotomias” entre essas
esferas, mas de verdadeiras contradições entre lógicas, racionalidades e formas de ação
consolidadas que são as constituintes dessas sociedades.
Dar preferência, no nosso caso, ao termo da “subversão” e não adotar o da “insur-
gência” está longe de ser, portanto, uma mera questão semântica. Reflete compreensões
diferentes das respectivas noções, como já foi explicitado acima (Randolph, 2014). Nessa
nova aproximação à temática, ao tomar como referência básica leituras de concepções de
Habermas e de outros autores, não significa nenhuma oposição de uma perspectiva do
“Norte” contra uma do “Sul”; uma diferenciação que, obviamente, não poderia ser deter-
minada meramente pelo lugar onde vivem e trabalham os autores citados. Há “Nortes”
no “Sul” e vice-versa; de qualquer forma, um como a outra das perspectivas e abordagens
aqui adotadas se posicionam críticas em relação às meras “realidades” do mundo.
É, então, a nossa interpretação da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e
de outros textos seus que sustentará uma compreensão basilar de uma certa “cisão” con-
traditória e complementar de sociedades capitalistas contemporâneas; ou seja, onde con-
tradição e complementariedade constituem uma totalidade dialética dessas sociedades.
Assim, como ainda será mostrado, as noções-chave para a atual investigação se tornam a
“comunicação” e a mencionada “colonização”.

105
É a partir dessas duas noções que se pretende refletir sobre o termo “subversão” e
elaborar uma compreensão que, ao mostrar a mútua dependência entre comunicação e
subversão, permitirá descobrir em que medida uma “potencialidade subversiva” na lógica
comunicativa pode ser ativada para a transformação de sociedades capitalistas.
Para cumprir essa agenda, serão discutidos (i) a mencionada abordagem de Ha-
bermas que permite compreender, nas sociedades capitalistas contemporâneas, a co-
municação em sua relação contraditória com os sistemas econômicos e burocráticos
que procuram expandir, permanentemente, sua racionalidade instrumental-abstrata ao
mundo da vida. Esse processo será chamado de “colonização interna” da sociedade; (ii)
segue-se uma discussão da “subversão” como potencialidade estrutural, enquanto expressão
intrínseca da contradição entre sistemas e mundo da vida, mas cuja realização depende de
condições contingentes vinculadas a experiências cotidianas no mundo da vida; (iii) para
poder compreender a expressão da subversão enquanto forma de ação ou “agir”, será in-
troduzida a guinada pragmática na linguística que leva, na compreensão de Habermas, ao
abandono da pretensão de “verdade”, o que exige sua substituição como condição da ação
comunicativa por sinceridade subjetiva e correção normativa; (iv) assim se tornará possível ar-
rolar elementos de uma primeira caracterização de ações subversivas enquanto ações que
visam tanto preservar características comunicativas como, ao mesmo tempo, transcendê
-las; e, finalmente, (v) será levantada a hipótese de que a compreensão da subversão, como
aqui elaborada, impediria que o adjetivo “subversivo” pudesse ser articulado ao planeja-
mento para que desse origem a algo como um “planejamento subversivo” (como foi pos-
sível na junção da comunicação ao planejamento). Se nós mesmos usamos esta expressão
em trabalhos anteriores – e a origem desse uso pode ser localizada em 1995 ou mesmo
1993 –, foi no sentido de experimentar termos e noções que pudessem apontar novas
possibilidades e “horizontes” críticos para a reflexão sobre o planejamento. Reconhece-se
que a base conceitual ainda estava relativamente frágil, naqueles momentos. Equipados
com uma melhor “bagagem conceitual”,3 só mais recentemente parece possível reformu-
lar esse debate através da introdução de um conceito de práxis que estaria caracterizado
como “unificação de práticas subversivas com condições objetivas da sociedade”.
Como será mostrado, práticas de “colonização” e práticas de “subversão” podem ser
consideradas, ambas, como práticas de “planejamento”. Só enquanto dialeticamente opostas.
Uma como expressão de “planejamento” e a outra como ações de um “contraplanejamento”.
Já adiantando, parcialmente, o raciocínio que logo será elaborado no primeiro item
deste ensaio com maior profundidade, sabe-se que o planejamento, nas suas formas tra-
dicionais, teve como principal meta consolidar os sistemas econômicos e burocráticos

3 Ver, para isso, também Randolph (2014).

106
em sociedades capitalistas durante o século XX, (i) tanto mediante o aprimoramento da
lógica instrumental-abstrata (vide a própria trajetória desse planejamento) como o forta-
lecimento da sua vigência dentro do próprio sistema, (ii) como por meio da sua expansão ao
mundo da vida; processo por nos chamado de “colonização” ou racionalização.
Agora, se a mencionada “práxis unificadora” levaria ao fortalecimento da lógica comunica-
tiva tanto dentro do mundo da vida como na subversão do sistema – o que será discutido na última
parte deste ensaio –, o resultado seria contraditoriamente o mesmo da atuação do planejamento.
Colonização e subversão são dialeticamente opostos até por suas lógicas e dinâmicas contra-
ditórias. Mas constituem, como tese e antítese, uma totalidade (relativa) da relação entre as
duas racionalidades. Como ambas procuram resultados iguais, mas contraditórios – coloni-
zação, por um lado, subversão, por outro –, e as práticas de uma (manifestas na colonização)
são chamadas de “planejamento”, a práxis unificadora (responsável pela subversão) poderia ser
chamada sua antítese, ou seja, um tipo de “anti”- ou contraplanejamento que, na verdade, é sua
negação como instrumento da colonização ou racionalização do mundo da vida.
No item que se segue, serão abordados os assuntos, temas e questões aqui anuncia-
dos, numa maneira mais aprofundada e sistemática.

Processo da colonização do mundo da vida pelos sistemas


burocráticos e suas ameaças à comunicação

Há uma antiga e tradicional discussão nas ciências sociais sobre a antinomia ou dualismo
entre “estrutura” e “agência humana” (Feenberg, 2014, posição 5599). Sem querer aqui
entrar nessa discussão, pode-se interpretar, na base dessa oposição entre ação e estrutura,
que as propostas de planejamento do tipo “comunicativo” da década de 1990 de autores
como Forester (1980), Healey (1992) ou Brown (1987) propõem o fortalecimento de
uma lógica próxima à “agência” (comunicativa) que se oporia a uma lógica das “estruturas”
(abstratas-instrumentais). Foram criticados por não contemplar, explicitamente, determi-
nações ou relações estruturais como limitações para qualquer atuação social e comunica-
ção. Mesmo assim, essa proposta do planejamento comunicativo não pode ser enquadrada
num dualismo estrutura/organização/sistema versus superestrutura/agente/agência. Na
realidade, ela expressa uma profunda crítica a esse dualismo, à dominação do sistema e aos
códigos culturais dominantes (Randolph 1995, p. 12). Na medida em que essas formas de
planejamento incorporam e valorizam elementos da “ação coletiva”, é possível apropriar-se
da interpretação de Melucci para a atual discussão. Como diz esse autor, todas as

formas de ação coletiva desafiam a lógica dominante num terreno sim-


bólico. Elas questionam a definição de códigos, nominações da realidade.

107
Elas não perguntam, oferecem. Elas oferecem, através de sua própria
existência, caminhos diferentes para definir significados de ações indi-
viduais e coletivas. Não separam mudança individual da ação coletiva;
traduzem um apelo geral no aqui e agora da experiência individual. Elas
agem como nova mídia: esclarecem o que o sistema não diz de si mesmo, fa-
zem aparecer o silêncio, a violência e irracionalidade que são sempre escondidos
pelos códigos dominantes (Melucci, 1985, p. 812, tradução e grifos nossos).

Para esse autor, a face “estrutural” desses movimentos, que entram em conflito com
sistemas políticos, se revela quando decidem realizar mobilizações públicas.
Portanto, uma análise

das novas propostas do planejamento não pode ficar presa a interações face
a face e discursos dos agentes – sob pena de ser voluntarista ou românti-
ca; nem se voltar isoladamente para aspectos estruturais e sistêmicos – sob
pena de tornar-se positivista ou instrumentalista (Randolph, 1995, p. 12).

Essa “antinomia” entre estrutura e agência, como observado acima (Feenberg,


2014, posição 5599), divide ainda hoje a teoria social, que uma vez enfatiza um, e outra
vez o outro polo: a lógica da ordem social ou a ação de sujeitos na História. Ao dar ênfase
à estrutura se favorece a passividade, a “longa espera pela revolução inevitável que nunca
chega”. E, por outro lado, a teoria da ação não pode ir, em princípio, além de sugerir a “o
desejo de moralizar o mundo social ou de manipulá-lo tecnicamente de acordo com as
suas leis” (Feenberg, 2014, posição 5613, tradução nossa).
Em determinada medida, Habermas, na sua Teoria da Ação Comunicativa (Haber-
mas, 1981), expressa essa antinomia quando atribui à estrutura econômico-burocrática
em sociedades capitalistas (como “tipo-ideal”) a força de exercer uma dominância sobre
as demais esferas sociais de vidas privadas e públicas. Introduz para isso dois recortes nas
sociedades capitalistas contemporâneas que dão origem a diferentes dimensões ou esfe-
ras: um recorte que separa uma esfera de sistemas daquela do mundo da vida (quadro insti-
tucional) conforme as características das diferentes lógicas vigentes em cada uma delas. E
um segundo que, na perspectiva dos sistemas, separa as esferas pública e privada.
Essa concepção não tem, a princípio, a ver com a distinção da leitura crítica da socie-
dade capitalista entre estrutura (econômica) e superestrutura. Na verdade, Habermas não
se interessa pelas relações entre os dois “sub”-sistemas que seguem lógicas semelhantes – a
economia e o Estado. Não vamos aqui apresentar possibilidades de certas “traduções” da
concepção habermasiana em abordagens de marxistas mais “clássicos” como a de Gramsci.4

4 Ver, por exemplo, Costa (1994).

108
Uma certa oposição se estabelece, aqui, em primeiro lugar, entre os sistemas econô-
mico e administrativo e sua lógica instrumental-abstrata, que é responsável (dominante)
pela estruturação da sociedade, por um lado. E, por outro, aquele mundo dos “atores” com
suas “agências” comunicativo-concretas que conformam a sociedade civil. Entretanto, como
destacam os autores que trabalham com essa distinção, essa relação precisa ser compreendi-
da enquanto mútua (inter)dependência – certamente “dialética” de alguma maneira – entre
sistemas e mundo da vida cuja reprodução – enquanto sociedade capitalista – deve ser vista
como sempre precária por várias razões que não podem ser explicitadas aqui.
Seria pela obra de Claus Offe que se poderia encontrar maior suporte para com-
plementar a leitura parcial que aqui é realizada.5 Vale destacar sua discussão a respeito da
importância da política social e da universalização da forma-mercadoria para a estabilida-
de das estruturas econômicas e políticas em sociedades capitalistas nos países industriali-
zados para fortalecer a economia e a burocracia no seu papel dominante.6
Observado a partir de uma matriz conceitual critica, a função dos sistemas eco-
nômico e administrativo na produção e reprodução da estrutura da sociedade capitalista
pode ser descrita da seguinte forma:
(i) A principal característica das sociedades capitalistas ocidentais consiste na auto-
nomização (abstração real de relações e processos concretos), dentro da sociedade, de uma
esfera econômica e quase concomitantemente da público-administrativa. O sistema econô-
mico foi-se diferenciando e separando das demais outras manifestações e instituições sociais,
tornando-se hegemônico (num círculo virtuoso) em relação às demais esferas da vida social.
Consolidou-se na medida em que submeteu à sua própria lógica instrumental-abstrata (do
valor de troca) não apenas as atividades econômicas e administrativas precedentes (através
da hierarquia como princípio de condução sistêmica). Mas, conseguiu ancorar esta lógica
parcialmente por meio da expansão e extensão dos mercados e das burocracias (lugar de
condução sistêmica da sociedade) dentro do próprio quadro institucional mais abrangente
da sociedade. Utiliza-se, para isso, do dinheiro e do poder como meios principais de comuni-
cação entre sistema e quadro institucional – claro, em detrimento de valores, normas e mo-
tivações originais nessas esferas da vida social. Essas relações serão institucionalizadas, pelos
sistemas, através de “papéis” no mundo da vida como trabalhador e consumidor – na esfera da
economia – e como contribuinte ou cidadão e cliente – na esfera administrativa.
(ii) O quadro institucional da sociedade reúne as condições sociais de reprodu-
ção que, historicamente modificadas pelo avanço das esferas sistêmicas, mantêm sua
própria lógica de articulação, integração e controle social. Chamado de mundo da vida

5 Ver particularmente os ensaios que compõem seu livro publicado em 1984.


6 Ver a instigante investigação de Offe e Lenhardt (1984) e Offe e Ronge (1984).

109
(Lebenswelt), conceito emprestado inicialmente da fenomeno­logia, rompe-se com a
concepção que via a sociedade como um todo constituído de partes, pois

sujeitos socializados comunicativamente não seriam propriamente dito


sujeitos se não houvesse a malha das ordens institucionais e das tradições
da sociedade e da cultura. O mundo da vida, então, não constitui uma
organização à qual os indivíduos pertencem como membros, nem uma
associação à qual se integram, nem uma coletividade composta de mem-
bros singulares (Habermas, 1990b, p. 100).

A prática comunicativa cotidiana alimenta-se de um jogo conjunto, resultante


da reprodução cultural, da integração social e da socialização, e esse jogo está, por sua
vez, enraizado nessa prática.
Seguindo Habermas, na nossa abordagem de meados da década de 1990 (Ran-
dolph, 1995), argumentamos que essa racionalidade comunicativa-concreta, cuja expres-
são em relação à apropriação das coisas está orientada pelo valor de uso e que é determi-
nante para a reprodução do quadro institucional da sociedade, em princípio, é oposta ou
até contraditória à racionalidade instrumental-abstrata (orientada pelo valor de troca) que
conduz os sistemas e domina a própria estruturação da sociedade.
Em nosso entender, Habermas atribui aqui a contradição fundamental da socie-
dade capitalista não mais à relação entre capital e trabalho. Como ele mesmo argumenta,
para compreender a sociedade capitalista, é necessário expandir o conceito de “trabalho”
para o da “interação”, que se expressa, nessas sociedades, em duas formas antagônicas: atra-
vés de uma lógica instrumental da relação dos homens com as coisas que – no caso do
capitalismo – instaura a hegemonia do trabalho assalariado sobre outras formas; e de uma
lógica comunicativa da relação dos homens com os homens na base da mútua compre-
ensão que é imprescindível para a reprodução social propriamente dita (das tradições,
socialização, formação de personalidade).
Diante do discutido aqui anteriormente, Habermas propõe que a contradição funda-
mental da sociedade se expressa na relação dos sistemas com o mundo da vida, e especialmen-
te através do domínio da lógica instrumental-abstrata sobre a lógica comunicativa-concreta.
Uma lógica, a primeira, que se verifica naquelas relações – inclusive nessas dos homens com
os homens – que seguem o “modelo” fundamental da abstração dessas sociedades que é o da
mercadoria, da instrumentalização e das estratégias. Contra uma lógica que se encontra na-
quelas relações entre os homens caracterizados pelo reconhecimento mútuo, a compreensão
e expressão de uma dialética entre os sujeitos e seus objetos (como valor de uso).
Portanto, trocas do sistema administrativo com os agentes do mundo da vida
ocorrem, conforme a hegemonia exercida pelo sistema burocrático, por meio de uma ló-

110
gica instrumental-abstrata do poder que deriva exatamente desse mesmo caráter (abstra-
to) das esferas da sociedade – economia e burocracia do Estado – responsáveis pela sua
operação. Essa troca entre sistemas e mundo da vida não tem apenas como objetivo provi-
denciar os recursos que os subsistemas necessitam para sua reprodução: dinheiro e poder.
Mas, também, para poder atingir esse objetivo (de sua própria reprodução), o sis-
tema precisa ampliar, permanentemente, a vigência dessa sua racionalidade instrumental
-abstrata, seja a da mercadoria ou da burocracia, e “invadir” esferas da sociedade que ainda
mantêm outras formas de “integração” social. É esse processo que Habermas, referindo-se
a Marx, chama de “colonização” do mundo da vida pelos sistemas ou da ameaça perma-
nente de uma instrumentalização de lógicas comunicativas.

A “subversão cotidiana” como expressão da contradição


entre sistemas e mundo da vida em sociedades capitalistas
contemporâneas

Historicamente, a conquista da hegemonia pela lógica instrumental-abstrata nas


sociedades capitalistas contemporâneas e o esforço de ampliá-la por meio da colonização
do mundo da vida não foi – e nem é – um processo tranquilo, pois suscitou resistências
e lutas de todas as formas. A luta operária é uma dessas expressões que se voltou con-
tra a transformação completa – apesar do sucesso parcial do capital (“abstração real do
trabalho”) – do trabalho em mercadoria; mas há muitas outras lutas que procuravam se
contrapor, com sucesso, ao estabelecimento absoluto do domínio da lógica instrumental
-abstrata na sua expressão de mercadoria (mercantilização da vida).
Observa-se, no presente trabalho, esquematicamente dentro do arcabouço acima
apresentado, apenas dois “movimentos” contra a colonização para o caso das trocas entre
sistema administrativo e esfera pública do mundo da vida. Os conflitos, que são expressão
da “reação” da lógica comunicativa contra o avanço das mercantilização e burocratização
da vida, podem ser representados, tentativamente, na Figura 1, a seguir (Randolph, 1995).

111
Mundo da vida Sistemas

Esfera privada
econômico

Subversão
Esfera pública

Cliente administrativo

Cidadão

resistência

Figura 1 - Resistência e Subversão


Fonte: elaboração do autor

Esses “movimentos” dirigem-se contra as duas formas de troca entre sistema e mundo
da vida, regulados pelos sistemas, conforme descrito antes, e dão origem a conflitos que o sis-
tema compreende como “disfuncionais”. Esses conflitos surgem na medida em que os agentes
sociais da esfera pública se recusam (i) a serem tratados como (abstratos) clientes da burocracia
que têm o “direito” de receber certos serviços; ou (ii) mesmo de cumprir com seu “dever” de
cidadão de pagar seus impostos ou contribuir de outra forma para a reprodução da burocracia.
As duas formas de reação à atuação da burocracia podemos chamar de “resistên-
cia” ou “subversão”, sendo que

• há resistência como recusa dos agentes no mundo da vida de ser submetido à ló-
gica instrumental-abstrata;
• há subversão em momentos em que os agentes conseguem resignificar ou anular
ativamente não a lógica, mas as consequências de ações instrumentais e revertê-las
para fortalecer a lógica comunicativa na esfera pública.

Nesse sentido, os dois processos de resistência e subversão são duas formas da ra-
cionalidade comunicativo-concreta a “responder” à racionalidade instrumental-abstrata.
A resistência significaria uma ação voltada para a preservação dos valores sociais,
políticos e culturais de determinados grupos sociais sem se opor, explicitamente, às tenta-

112
tivas de colonização. Isto vem de encontro com a concepção de Canetti na interpretação
de Brighenti (2011, p. 83, tradução e grifo nosso):

A relação específica entre resistência e poder não é a resistência como


uma luta contra o poder, mas a resistência como um movimento de sub-
tração do poder. (...) Considerando que os teóricos críticos geralmente
concebem a resistência como uma luta e como um momento de conflito
de energia – eventualmente conflito no domínio político, como a revo-
lução – Canetti sugere uma perspectiva que concebe a resistência não
como revolução, mas como diavolução.

A subversão, por outro lado, está voltada ativamente contra a “colonização”; se


caracteriza, dialeticamente, pelo mesmo “expansionismo” como o da colonização. São
mobilizações e movimentos contra o colonialismo interno e sua expansão em sociedades
capitalistas; até naquelas onde a consolidação desse modo de produção está apenas
precária ou parcial, como é o caso brasileiro.
Precisa ficar claro que não se entende aqui ações subversivas como “golpe de Estado”
ou dirigidas contra a ordem, à lei, ao governo ou ao sistema em si. Subversão desestrutura
e procura aniquilar, sim, ações do sistema que estão voltadas contra a lógica comunicativa,
que pretendem enfraquecê-la como meio para levar adiante a colonização do mundo da
vida. Em Randolph (2014, p. 42 et seq.), discutimos diferentes formas de atuação “contra
o sistema” enquanto revolução, insurgência e subversão – a compreensão da subversão,
aqui proposto, segue aquela elaborada no contexto de vertentes da anarquia e do situa-
cionismo. É a própria capacidade “subversiva” da comunicação e de sua lógica concreta
que se “opõe” aos avanços da lógica instrumental, tanto na esfera pública como na privada.
Movimentos sociais urbanos – como aqueles que eclodiram em junho/julho de
2013, por exemplo – podem ter tido uma intenção “subversiva” e se opor a avanços do
domínio, cada vez maior, do valor de troca na cidade. Como diz Melucci:

Eu defino analiticamente um movimento social como uma forma de


ação coletiva (a) baseada na solidariedade, (b) envolvida em um conflito
e (c) rompendo os limites do sistema no qual a ação ocorre (Melucci, 1985,
p. 795, tradução e grifos nossos).

A subversão, dentro do arcabouço conceitual aqui esboçado, pode ou mesmo


precisa ser compreendida como uma prática social cotidiana, permanente, que faz parte da
vida diária dos agentes sociais quando estes se dão conta das, permanentes tentativas de
colonização da vida pelos sistemas econômicos e burocráticos. Práticas subversivas são
práticas contra-hegemônicas que, em última instância, procuram expandir a validade da

113
lógica comunicativa-concreta para além das limitações impostas pelos sistemas. Vale para
a subversão aquilo que Vaneigem expressa no final de seu livro a respeito da revolta:

O momento de revolta (...) é consagrado por nós no árduo trabalho de


nossas vidas diárias; dias que milagrosamente retêm as cores delicio-
sas e o charme de sonho que – como a caverna de um Aladim, mágica
e prismática em uma atmosfera muito própria – é inalienável nosso. O
momento de revolta é a infância redescoberta, o tempo objeto de uso de todos, a
dissolução do mercado e o início da autogestão generalizada (Vaneigem, 1967,
tradução nossa, grifos nossos).

Certamente, não se pode desconfiar que Habermas seja anarquista; não dizemos,
também, que aquele processo de “subversão cotidiana”, que nos parece uma derivação ló-
gica do seu pensamento (num sentido dialético, ao reverter o caráter contraditório das
atuais sociedades capitalistas às avessas), já seja “realizada” ou “real” em escala comparável
com aquele processo ao qual se opõe e que lhe dá sua “razão”: a colonização, pois parece
que o processo de burocratização e mercantilização continua avançando.
A subversão é muito mais uma (real) potencialidade que está se tornando “real” ou “rea-
lizada” sob certas circunstâncias (que precisam ser estudadas e estimuladas). Repetindo, a sub-
versão é um potencial que tem sua origem exatamente naquilo que a quer destruir: surge, dia-
leticamente, por causa da lógica intrínseca contraditória das sociedades capitalistas enquanto
manifestação dessas contradições. Tem como corolário básico a tendência de indestrutibilida-
de das tradições sociais, da socialização dos agentes e da formação das suas personalidades que
apenas são produzidos e reproduzidos (enquanto produtos e produtores) enquanto instituições
na base de uma ação comunicativa entre agentes sociais (Habermas, 1990); ou seja, fora dos
sistemas, mas não independentemente deles, como discutimos acima.
Por isso, pode se dizer que o mundo da vida constitui o “quadro institucional”
de uma sociedade (capitalista) que, em sua totalidade, está completamente atravessa-
da por contradições que até ameaçam permanentemente a sua própria existência, pois
não são os sistemas que conseguem reproduzir essa sociedade. Contraditoriamente,
essa reprodução, sempre ameaçada por crises (“produtivas” para os sistemas, de alguma
maneira), é possível graças às forças de subversão do mundo da vida, do cotidiano das
pessoas que se opõem, conscientemente ou não, à dominação dos sistemas e de sua
pretensão de se tornar totalitária.
Conforme apresentado a partir de uma perspectiva bem diferente, seria possível
localizar nas últimas obras de Foucault essa “força” no próprio sujeito; um

sujeito subversivo que contesta os sistemas hegemônicas de poder que,


por sua vez, representam saberes prontos e inquestionáveis. Esse sujeito

114
ousa saber por si mesmo, busca autonomia para sua construção, reinven-
ta-se, sem precisar de tutelas (Silva, 2011, p. 43, grifo nosso).

Há de se considerar que, como parte existencial desse processo de produção e re-


produção, o próprio quadro institucional também sofre modificações internas que podem
resultar de conflitos intrínsecos a ele e são, também, não apenas resultados da coloniza-
ção. Certamente uma boa parte de mudanças na transmissão de tradições, formas de so-
cialização e os resultados da formação de personalidades, se deve às próprias lutas conta a
colonização, como se pode observar na História. Podem significar “lutas” contra ameaças
de propagação de reificação, coisificação, naturalização ou alienação, que são reflexos do
mundo das mercadorias e das relações burocráticas (Feenberg, 2014, posição 5692 et seq.).
Levantamos a hipótese de que se um dia o capitalismo (os sistemas) conseguir
destruir essa sua própria base “social”, irá surgir algo que não terá mais nada a ver com
aquilo que conhecemos até hoje como sociedade humana. Há autores que argumentam
que – para o bem ou para o mal – as “revoluções” fracassaram por não terem sido capazes
de colocar no então vigente mundo da vida outras formas de produção e reprodução ins-
titucionais das sociedades.7

Um confronto entre “agir comunicativo” e “agir subversivo”


no contexto da virada pragmática da compreensão da verdade

Na seção anterior procuramos identificar a origem estrutural da “subversão” – e nisso a pre-


sente abordagem é quase oposta àquela de 2014 (Randolph, 2014) – e caracterizar, em pri-
meira aproximação, seu “exercício”, ou seja, a realização de processos ou práticas subversivas.
Agora, teremos condições de aprofundar aquela questão que foi levantada logo no
início deste ensaio: em que medida há mesmo um potencial subversivo na racionalidade
comunicativa (concreta) e como se pode expressar nos momentos em que a “subversão”
se opõe, explicitamente, a avanços da colonização – da ampliação social do domínio da
racionalidade instrumental. Ou, formulado como pergunta: Qual, afinal, a “racionalidade”
da ação subversiva ou do “agir subversivo” que surge do mundo da vida (do agir comu-
nicativo), mas expressa alguma estratégia ou tem, de alguma forma, um “objetivo instru-
mental” de combater a racionalidade instrumental? Quais as armas desse “combate”? Será
que opor-se à lógica instrumental-abstrata não exige entrar nessa mesma lógica?
Sem poder elaborar mais detalhadamente a este respeito, vale lembrar como essas per-
guntas são relevantes ou irrelevantes nas discussões das “teorias de planejamento”, segundo

7 Ver Bey (1985).

115
suas abordagens adotadas: para o planejamento racional “tradicional” como aquele que nem
problematiza qualquer possibilidade de o planejamento não ser instrumental a pergunta é
completamente irrelevante; ele é instrumento (de propagação da racionalidade instrumental)
por excelência. Por outro lado e ao contrário, para o planejamento comunicativo contemplar
a racionalidade comunicativa no processo de sua realização é parte definitória e indispensável.
No nosso caso, essa pergunta sobre a possibilidade (“real”) em articular, num mes-
mo processo, lógicas instrumentais, abstratos e mesmo liberais com lógicas comunica-
tivas, concretas e republicanas, surgiu em certo momento por ocasião de uma reflexão
sobre uma “terceira via” do planejamento (Randolph, 1999).
Ao aceitar o desafio expresso naquelas perguntas, apresentamos aqui uma primeira
reflexão sobre as características de uma prática subversiva que procura suas referências con-
ceituais, novamente, em Habermas; já nesse espírito, falaremos menos de prática, mas de
“agir” e de “ato (de fala)”. Ou seja, tentamos inserir a reflexão no contexto da discussão de Ha-
bermas acerca do “agir comunicativo” e do “agir instrumental” – noções que remetem ime-
diatamente à abordagem de mundo da vida e sistema, conforme discutido anteriormente.
O ponto de partida é o abandono de Habermas da “verdade” e da distinção tra-
dicional entre “fato” e “valor”. Ele procura “expandir a racionalidade” dessa distinção através
da uma guinada pragmática. Essa “expansão” cria uma outra racionalidade que permite
romper com o paradigma positivista-instrumentalista do planejamento – voltado para
“fatos” – e incorporar nele, como prática essencial, o debate sobre valores, normas, regras,
motivações etc. (Brown, 1987). De alguma forma, é isso o que é assumido na perspectiva
e como base do planejamento comunicativo.

A reinterpretação pragmática da problemática da validez exige evidentemen-


te a reviravolta completa daquilo que antes era tido como “força ilocucioná-
ria” de uma ação de fala. Pois, Austin tinha compreendido a força ilocucioná-
ria como o componente irracional da ação de fala: o elemento racional era
monopolizado pelo conteúdo da proposição assertórica (ou seja, pela sua
forma nominalizada). O significado e a compreensão estavam concentrados
ilicitamente nesse componente racional (Habermas, 1990a, p. 124-125).

Está em jogo, aqui, a introdução de validade que não está mais relacionada à rela-
ção da linguagem com o mundo objetivo (ou seja, à questão do “fato” e da “verdade”). Em
outras palavras pretensões de validez em atos de fala não são mais dirigidas a condições de
verdade e, com isto, não dizem mais respeito à relação da linguagem com o mundo objeti-
vo (Randolph, 1995). Como já mencionado, sem a distinção entre fato e valor haverá con-
sequências profundas para a discussão do planejamento, pois um dos grandes problemas
do planejamento desde Weber e Mannheim consistia como tratar a discussão de valores,

116
intenções, motivos etc. (as “razões” pragmáticas, que não eram acessíveis a uma raciona-
lidade orientada por objetivos) no próprio processo do planejamento. Manifestações de
valores, intenções, motivos, crenças etc. não podiam ser tratadas “racionalmente” – dentro
de uma lógica instrumental, abstrata e positivista. São essencialmente fenômenos oriun-
dos do mundo da vida e só podem ser compreendidos dentro do âmbito da sua lógica
comunicativa – o que os torna de caráter profundamente “irracional” e impossível a serem
acessíveis a um debate racional (isto é, ao planejamento) (Brown, 1987).
Como mostra Habermas, com essa “guinada pragmática” e a elaboração de uma
pragmática formal, a lógica comunicativo-concreta que rege o mundo da vida não pode ser
compreendida através de uma mera “semântica” da verdade dos atos de fala (relacionada à
“correspondência” entre fala e mundo objetivo) que se torna estreita demais; o que estão em
jogo são as pretensões de validez embutidos nos atos de comunicação (falas), o que leva à
introdução da sinceridade subjetiva e da correção normativa como conceitos para a sua validade.
Em outras palavras, uma “comunicação” – no sentido da racionalidade comunica-
tiva – pressupõe determinadas condições que precisam estar presentes para que ela seja
bem-sucedida (válida). O que regula a relação entre falantes e destinatários é a sinceridade:

É que existe simultaneamente uma relação com o mundo subjetivo (do


falante) configurado pela totalidade de experiências vivenciais, às quais
se tem acesso de modo privilegiado, e uma relação com o mundo social
(do falante, ouvinte e outros membros) configurado pela totalidade das
relações interpessoais tidas como legítimas. (...) Com suas ações de fala, os
participantes da comunicação referem-se a algo no mundo subjetivo, so-
cial ou objetivo; no entanto, o modo de se referirem ao mundo subjetivo e
social difere do modo como encaram o mundo objetivo. O tipo de referência
revela que esses conceitos de mundo só podem ser utilizados num sentido
analógico: os objetos não são identificados da mesma maneira que as expe-
riências vivenciais que eu manifesto ou dissimulo num enfoque expressivo
como sendo “especificamente minhas” como também diferem das normas
reconhecidas “por nós”, que nós seguimos ou infringimos num enfoque
conformista (Habermas, 1990a, p. 124 et seq., grifos do autor).

Portanto, a sinceridade subjetiva e a correção normativa são os dois pilares da racio-


nalidade comunicativa. Nessa compreensão do pragmatismo, há uma “analogia” com a
verdade, mas não uma distinção entre verdadeiro e falso. Simplificando, atos de fala são
proferidos de modo sincero quando, na perspectiva dos participantes, o falante realmente
quer dizer aquilo que diz. Ou, de modo insincero, em caso contrário.
Além dessas características e condições do uso comunicativo da linguagem (agir co-
municativo – em oposição a um agir estratégico), Habermas discute seu uso manifestamente
estratégico que possui um status derivado. Nesse caso, todos os participantes têm consciência

117
de que o entendimento linguístico está sob condições do agir estratégico – permanecendo
por isso deficitário. Eles sabem que têm de completar os efeitos perlocucionários de suas ações
de fala, mediados ilocucionariamente, através de efeitos empíricos desencadeados teleologica-
mente e contam com isso. Em última instância, eles dependem de um entendimento indireto.

Este caso do uso manifestamente estratégico da linguagem não pode ser con-
fundido, por seu turno, com os casos de um entendimento indireto que fica
subordinado ao fim do agir comunicativo. Em situações iniciais não estru-
turadas, por exemplo, o encontro casual no bar, a definição comum da situ-
ação só acontece porque o rapaz indiretamente dá a entender algo à loura
atraente. Do mesmo modo, o professor pedagogicamente prudente inspira
confiança em seu aluno através de elogios, para que ele aprenda a levar a
sério suas próprias ideias (Habermas, 1990a, p. 132-133, grifos nossos).

Esses casos são do tipo em que um agir comunicativo procura passo a passo criar
seus próprios pressupostos.
Por ocasião da discussão das condições para o planejamento comunicativo constata-
mos que suas ações precisam ser realizadas em situações de sinceridade e correção dos atos de
fala daqueles que estão envolvidos em situações de comunicação. Mesmo quando alguém
na sua fala segue imperativos ou normas, isto não precisa indicar um agir estratégico porque
pode estar baseado no seu prévio entendimento e aceitação. Se, na perspectiva dos partici-
pantes da comunicação, seus mundos de vida estiverem suficientemente entrelaçados,

todos os imperativos podem ser colocados perante este pano de fundo,


intersubjetivamente compartilhado e compreendidos conforme o mo-
delo das exortações normativamente autorizadas” (Habermas, 1990a,
p. 133, grifo nosso).

A pergunta é, já levantada criticamente por outros autores, se numa situação de contra-


dição entre uma lógica instrumental-abstrata e uma lógica comunicativa-concreta e sob domí-
nio da primeira sobre a segunda seria possível gerar uma situação como aquela exemplificada
pelo caso do professor junto a um aluno em que todos os partícipes fazem um esforço para
construir as bases para um agir comunicativo; ou será que nem haverá a possibilidade desse “en-
tendimento indireto” por causa de uma “assimetria” intransponível entre atores comprometidos
com valores do mundo da vida e aqueles que agem conforme a lógica instrumental-abstrata.
Ora, o exercício do poder numa sociedade capitalista realiza-se por mecanismos
que são genuinamente “estratégicos” – ou seja, por ações que não revelam suas inten-
ções verdadeiras. Ações de falas proferidas nesses momentos – como o é do planeja-
mento – não podem ser considerados sinceros, nem corretos, apesar de procurarem

118
criar uma impressão de serem “verdadeiras”. Parece-nos que o “caso-limite” de Haber-
mas do agir estratégico deve ser a regra e não a exceção.
Neste caso,

a pretensão de validez normativa encolhe-se, transformando-se numa


crua pretensão de poder, apoiada num potencial contingente de sanção,
não mais regulado convencionalmente e não mais deduzível gramatical-
mente. A expressão “mãos ao alto!” proferida pelo assaltante de banco,
que aponta o revólver para o caixa, exigindo a entrega do dinheiro, mos-
tra de modo dramático que as condições de validade normativa foram
substituídas por condições de sanção. A dissolução do fundo normativo
mostra-se sintomaticamente na estrutura da ameaça, que no agir estraté-
gico assume o lugar da seriedade e da sinceridade do falante, pressupostas
no agir comunicativo (Habermas, 1990a, p. 134).

Habermas (1990a) aponta que contextos normativos fracos (por exemplo, a acei-
tação de normas abstratas em contexto concretos do mundo da vida) são suficientes para
um falante (por exemplo, o planejador) ter uma expectativa de comportamento (do “pla-
nejado”) que pode ser eventualmente criticado por este.
Uma caracterização, mas também um questionamento, mais aprofundada da pro-
posta comunicativa do planejamento foi objeto das nossas reflexões em outros trabalhos
(Randolph, 1995; 1999; 2008).

Condicionantes e características da ação subversiva

Após esse pequeno e superficial detour ao campo da linguística e da discussão sobre as


diferentes formas de agir, temos condições em avançar na compreensão de uma atuação,
prática ou ação, que poderia ser caracterizada como “agir subversivo” ou “ação subversiva”.
Criar uma base para esse avanço era o objetivo da seção anterior do ensaio.
Ao adotar a guinada pragmática introduzida por Habermas, o agir subversivo terá,
até certo ponto, na verdade na sua fase de preparação, características parecidas com as do agir
comunicativo. Assim, como foi discutido em relação à comunicação, os contatos entre os
agentes da subversão do mundo da vida não podem recorrer a uma pretensão de “verdade”
baseada na relação da fala com o mundo objetivo. Apelar a essa “verdade” (objetiva) é, aliás,
uma estratégia muito comum nas tentativas de colonização quando os “especialistas” se ad-
vogam ser os “donos” da verdade, inclusive apoiando-se em conhecimento científico.
Porque a “verdade” (pragmática) de qualquer ação depende das relações de sinceri-
dade e correção entre aqueles agentes do mundo da vida envolvidos em uma ação subversi-
va. Preservar sinceridade e correção é essencial para não colocar em risco a própria força de

119
uma subversão, que tem sua origem, em última instância, no reconhecimento coletivo – por
meio da racionalidade comunicativa – da contradição entre lógica comunicativa e lógica
instrumental. Na hora da decisão sobre ou da adesão a uma ação subversiva a falta de sinceri-
dade subjetiva e correção normativa levará infalivelmente à infiltração de uma racionalidade
latentemente estratégica nessas relações em que uma parte se tornará meio para o alcance de
determinados fins. Essa forma de “instrumentalizar” relações significa trair a causa da subver-
são porque resulta em apoio à colonização (avanço da racionalidade instrumental).
A preservação da racionalidade comunicativa nesses momentos não é nada trivial,
pois, ao contrário do agir comunicativo, o subversivo não tem, exatamente, como finalidade
uma compreensão mútua entre agentes do mundo da vida e os dos sistemas – uma compre-
ensão impossível nos moldes da racionalidade comunicativa por causa da contradição com
a racionalidade instrumental. No momento da interação, o agir subversivo se assemelha,
aparentemente, ao agir instrumental: o agir tem um fim – que é a subversão – e necessita
de certos meios para seu alcance. Ou seja, observando os dois momentos de gestação e re-
alização de ações subversivas, aparece seu caráter “híbrido” porque necessita, num primeiro
momento, assegurar a racionalidade comunicativa para elaborar a “verdade pragmática” de
sua ação; e no segundo momento da execução e interação com o sistema, a “eficácia” da ação
enquanto subversiva depende, em boa parte, de uma “programada incompreensão” do seu
significado por parte de agentes do sistema. Essa “incompreensão” não se deve a falhas subje-
tivas de determinados agentes, mas é estruturalmente programada porque apenas o “agente
do mundo da vida” – como antigamente o proletariado – tem realmente condições de com-
preender a sociedade na sua totalidade (especialmente na sua totalidade contraditória); o
“agente do sistema” interpreta a sociedade a partir de sua perspectiva instrumental e, apesar
de achar que também a compreende na sua totalidade (eis a origem de sua ideologia), ape-
nas a entende parcialmente – e se torna, por isso, suscetível a determinadas “incompreensões
programadas” que se aproveitam dos black spots nessa sua compreensão.
Nos termos de Habermas esse caráter “híbrido” (entre racionalidade comunicativa e
racionalidade estratégica latente) do agir “subversivo” enquanto atos de fala iam permitir apro-
veitar ambiguidades da própria língua para criar, proposital e “comunicativa”-mente, mal-en-
tendidos dirigidos a subverter ações criadas por meio de uma racionalidade instrumental.
Acreditamos que o cotidiano dos sujeitos está pleno desses “desvios” de compreensão
e da produção de incompreensões propositais que protegem a racionalidade comunicativa
dos avanços da racionalidade instrumental. Não se trata de um combate aberto entre essas
duas racionalidades, mas de uma verdadeira “subversão” diária de regras, ordens e orientações,
na esfera privada, que são imposições dos sistemas à vida das pessoas. Aqui, como também no
caso de um agir subversivo na esfera pública, não se trata de entrar numa “luta simbólica” entre
diferentes concepções ou propostas ou, eventualmente, “ganhar” tal disputa.

120
O caráter comunicativo da subversão pode tomar a forma de um “entendimen-
to indireto” que prepara as condições para a comunicação, como foi apontado por Ha-
bermas no seu exemplo do professor pedagogicamente prudente; não necessariamente
o agir subversivo precisa surgir preparado por grandes mobilizações e movimentos de
comunicação e compreensão mútua onde são asseguradas, minimamente, condições de
sinceridade e correção; a partir de algum núcleo, ele pode se ampliar e fortalecer quando
reconhecida sua base de sinceridade e correção – e, assim, de sua “verdade pragmática”
baseada numa “relação com o mundo subjetivo (do falante) configurado pela totalidade
de experiências vivenciais, às quais se têm acesso de modo privilegiado, e uma relação
com o mundo social”, como disse Habermas.
Já foram apontadas várias distinções entre agir subversivo e agir comunicativo.
Mas há uma diferença fundamental a respeito da compreensão de cada um a respeito das
contradições que atravessam as sociedades capitalistas.
Na abordagem aqui anteriormente apresentada, a origem dessas contradições
tinha sido identificada na relação (dialética) entre duas racionalidades que orientam e
estruturam duas esferas das sociedades capitalistas. O planejamento comunicativo não
ignora completamente essas contradições, mas vê a possibilidade de uma “mediação” –
através da ação comunicativa – entre as duas racionalidades.
Por sua vez, o agir subversivo se vale exatamente dessas contradições para seus
propósitos de transformação da sociedade não no sentido instrumental (em termos da
racionalidade estratégica), mas usando oportunidades de reverter a atuação do sistema
contra ele mesmo. Portanto, a “subversão” deve ser dirigida às expressões concretas des-
sas contradições que se expressam de uma forma variada em diferentes contextos sociais,
temporais e territoriais. Tendo em vista a contradição, as maiores potencialidades de sub-
versão se encontram na vida diária e na experiência cotidiana daquelas classes ou segmen-
tos sociais que, na sua experiência concreta, conseguem perceber as contradições – que
se expressam, muitas vezes, através do desencontro entre discursos oficiais da burocracia
(do Estado) e sua atuação concreta.
É importante para a nossa reflexão observar uma outra característica da subversão
que pode ser identificada a partir de sua comparação com a insurreição ou insurgência
(Randolph, 2014). Pode-se dizer que subversão e insurreição se referem, de modos dife-
rentes, a “momento proibido” da História.

(...) diferentemente <da revolução>, o levante, a insurreição é temporária.


Neste sentido, um levante é como uma experiência de pico (peak expe-
rience); oposta à consciência e à experiência “ordinárias”. Como festivais,
os levantes não podem acontecer a cada dia – senão não seriam “não or-
dinários” (Randolph, 2014, p. 43).

121
Seguindo a argumentação de Bey (1985), uma insurreição como colisão frontal
com o Estado terminal, o Estado informacional das megacorporações, o império do espe-
táculo e da simulação – ou seja, com o sistema –, hoje não pode levar a nada além de um
fútil martírio. As armas do sistema estão todas voltadas contra aqueles que se insurgem,
cujo armamento, por sua vez, não conta com nenhum apoio.
No entanto,

com isto Bey não descarta a possibilidade da insurreição. Pois, estes mo-
mentos de muita intensidade dão forma e sentido à totalidade da vida. O
mago volta – não se pode ficar no topo do telhado para sempre –, mas as
coisas mudaram, deslocamentos e integrações ocorreram – uma diferença
foi realizada (Randolph, 2014, p. 43, grifos do autor).

Se a insurreição é um “momento fora do tempo”, ações subversivas não só estão


“dentro do tempo”, mas contribuem, substancialmente, para a “(re)construção do tempo”,
pois estão imbricadas nas e dependentes, inseparavelmente, das contradições fundamen-
tais da sociedade. Por isso, uma das características mais importantes do “agir comunicati-
vo”, mesmo quando não combate explicita e abertamente a lógica instrumental, o avanço
do processo de abstração (mercantilização e burocratização), em síntese, a colonização
interna da sociedade, é que resulta numa transformação mais duradora da relação entre
mundo da vida e os sistemas. Essas transformações não se restringem apenas àquela “dife-
rença” de deslocamentos e integrações acima relacionadas. Trabalhamos com a hipótese
(uma “potencialidade”) de que o caráter contraditório da sociedade (que deixa os siste-
mas vulneráveis) não pode evitar que ações subversivas contra apenas suas realizações
concretas (que não pode deixar de produzir) terão consequências, a médio e longo prazo,
para a reprodução de sua lógica instrumental-abstrata. Com isso chegamos a um ponto
central que vai nos levar de volta, logo, à reflexão sobre o “planejamento”.
Em síntese, qualquer prática da subversão precisa partir da compreensão e do reco-
nhecimento concreto, através de experiências e de práticas, das contradições da sociedade.
E, diante do caráter real-abstrato dessas contradições, precisa encontrar formas de atuação
concreta que denunciem esse caráter, o desafiem e o impõem mudanças que não cheguem
a confrontar, diretamente, a ordem estabelecida, mas que começem a “erodir” e, em caso me-
lhor, “implodir” os processos de colonização interna e sua lógica instrumental-abstrata.
Até aonde esse processo leva a um fortalecimento da lógica comunicativa-concreta
fora do mundo da vida (vide experiência como a economia solidária e outras), é difícil de
prever. Utilizando como analogia a discussão de Lefebvre no seu livro A produção do espaço
sobre as contradições do “espaço abstrato” e da passagem para um “espaço diferencial” (Lefe-
bvre, 2013, p. 385 et seq.), pode-se aventurar que, provavelmente, uma transformação radical

122
da sociedade capitalista não levará a uma inversão de hegemonia e domínio ao ponto que a
lógica ou racionalidade comunicativa-concreta ocupe o lugar da lógica instrumental-abstra-
ta. Mas, pode surgir uma racionalidade nova que seja, de alguma maneira, “diferencial”.

A unificação de práticas subversivas com condições objetivas


da sociedade enquanto práxis do planejamento

Como mencionado anteriormente, a interpretação da subversão e do agir subversivo no con-


texto da concepção de Habermas os torna um “fenômeno normal” da sociedade capitalista,
que desde sempre fez parte integrante da dinâmica social e responsável (contraditória ou
dialeticamente) pela própria reprodução da sociedade capitalista – como foram os operários
e suas lutas que a burguesia precisava para a produção da mais-valia e seu aperfeiçoamento.
Já no debate com os autores situacionistas, a subversão assume certa conotação “anarquista”,
como apresentado mais detalhadamente em trabalho anterior (Randolph, 2014).
Ao contrário do que se esperava, nas palavras de Vaneigem (1967), uma mera “re-
volução do cotidiano” não foi suficiente para inaugurar uma nova sociedade nos fins dos
anos de 1960, pois passaram-se quase 60 anos, e os levantamentos que o autor acompa-
nhou em Praga, Estocolmo, Gdansk e tantos outros lugares não resultaram nas mudanças
esperadas. E aí ele vai se questionando

por que aquela luta não foi se intensificando, mesmo quando a miséria se
mostrou universal naquela época. E, responde que isto aconteceu por que
não se superou as razões particulares das lutas – “a fome, as restrições, o
tédio, doença, ansiedade, isolamento, o engano”. E, ao não conseguir su-
perar a percepção dessas razões como particulares, não foi revelada ou re-
conhecida a profunda racionalidade dessa miséria, seu vazio onipresente, sua
chocante abstração opressiva. Como diz Vaneigem, devem ser responsabi-
lizados pela miséria “o mundo do poder hierárquico, o mundo do Estado,
de sacrifício, de câmbio e do quantitativo – a mercadoria como vontade e
como representação do mundo” (Randolph, 2014, p. 46, grifos do autor).

Não deve ser considerado qualquer “fracasso” uma razão para deixar de acreditar
na possibilidade da subversão como foi discutido na seção anterior. O raciocínio de Va-
neigem mostra-se bastante parecido com aquele aqui apresentado, quando se pressupõe
que a ação subversiva não deva ser corrompida e não abandonada

sua própria racionalidade que não é uma abstrata mas concreta substituição
da forma universal e vazia, da mercadoria. É a realização da arte e da filosofia na
vida diária de todos que permite uma objetificação não alienante (Vaneigem,
1967, cap. 25, tradução nossa, grifos nossos; citado em Randolph, 2014, p. 47).

123
E Vaneigem continua

A força e extensão de uma linha de racionalidade nasce do encontro


deliberado de dois polos sob tensão. É a faísca que sai do golpe entre
subjetividade, que extrai a vontade de ser tudo do totalitarismo de con-
dições opressivas, e a maneira histórica fulminante do sistema genera-
lizada de mercadorias.
Conflitos existenciais não são qualitativamente diferentes daqueles ine-
rentes a toda a humanidade. É por isso que os homens não podem es-
perar controlar as leis que regem a sua história geral se eles não podem
controlar simultaneamente suas próprias histórias individuais. Se você vai
para a revolução e negligenciar o seu próprio eu, então você está indo para
trás, como todos os militantes. Contra o voluntarismo e a mística da re-
volução historicamente inevitável devemos espalhar a ideia de um plano
de ataque e meios, tanto racional e apaixonado, nos quais as necessidades
subjetivas imediatas e condições contemporâneas objetivas estão dialeticamente
unidas (Vaneigem, 1967, cap. 25, tradução nossa, grifos nossos; citado em
Randolph, 2014, p. 47).

Fala Vaneigem aqui de ideias de um plano de ataque e dos seus meios, nos quais as
necessidades subjetivas e sociais, enquanto base da ação subversiva, seriam dialeticamen-
te unificadas com as objetivas condições contemporâneas que são o destino da subversão.
Só quando são contemplados esses dois lados é que a ação subversiva pode realizar seu
verdadeiro potencial de transformação social.
De maneira semelhante, a partir da discussão sobre a contradição entre mundo
da vida e sistemas, aparece também uma “dialética” entre a origem da força subversiva no
cotidiano e a realização dessa força junto aos sistemas que necessita de alguma articulação
ou mesmo unificação para tornar o agir subversivo efetivo.
É a partir daqui que deve se retomar a discussão sobre o “planejamento”, pois esse
raciocínio faz levantar a dúvida se é algum processo parecido com um planejamento que
possa ser o meio para realizar essa unificação dialética – tanto “passionate” como “racio-
nal”, como diz Vaneigem, e que tem a ver com a própria dúvida levantada logo no início
do presente trabalho a respeito da necessidade lógica de compreender um planejamento
como “subversivo” apenas aquele que é resultado de uma subversão de toda a história dos
modelos de planejamento – ou seja, que não seria mais planejamento.
É importante notar que essa “articulação” entre nossa interpretação de uma possí-
vel concepção habermasiana da subversão com a abordagem situacionista, aparentemen-
te opostas, cria exatamente uma possibilidade – que ainda precisa ser melhor explorada –,
na qual uma discussão sobre planejamento e subversão se torna possível fora do contexto
das acima mencionadas abordagens do planejamento.

124
Em outras palavras, uma superação dialética dessa trajetória do planejamento não
pode resultar meramente em nenhum novo discurso ou nenhuma nova concepção do
planejamento ou, mesmo, nenhum planejamento com um discurso novo. Para algum
“planejamento” alcançar romper com as práticas anteriores é preciso superar, dialetica-
mente, as limitações de processos fundamentados quase exclusivamente em representa-
ções e discussões simbólicas (discursos), por um lado, ou o mero “intervencionismo”, por
outro. Isto significa, precisa deixar de ser prática e alcançar o verdadeiro patamar da práxis.
Um planejamento, nesse sentido, que quisesse se constituir como práxis, precisa
contemplar e incorporar aquele espaço social em sua totalidade, no qual acontece e se rela-
ciona com o processo (prática, trabalho; não se confunde com algum “planejamento com-
preensivo”) de uma forma que permita sua incorporação para além de meras representações e
do simbólico (do espaço) ou de até certo ponto. Sem poder aprofundar esse raciocínio por
ora, acredita-se que o conceito (da produção social) do espaço social de Lefebvre (2013) po-
deria ser apropriado aqui para permitir uma superação (dialética) do simbólico através de
sua “incorporação” numa “tríade” que está composta por um movimento dialético entre re-
presentações discursivas sobre o espaço dos especialistas (arquitetos, urbanistas, planejadores),
os espaços de representações daqueles que o experimentam e vivenciam diariamente e de suas
práticas espaciais que, como diz, “secretam” este espaço (Lefebvre, 2014, p. 97-98).
Ao retomar colocações do início deste texto, reconhece-se que o próprio uso da
expressão “planejamento subversivo” em trabalhos anteriores se justificava como meio
para apontar novas possibilidades e “horizontes” na reflexão sobre o planejamento e ex-
perimentar argumentos que possam contribuir para o processo de uma formulação mais
bem fundamentada conceitualmente. No trabalho aqui muitas vezes referenciado (Ran-
dolph, 2014) houve um avanço nesse sentido que tentamos levar mais adiante – sem ter
chegado a algum tipo de “fim” ou resultado “consolidado”.
Certamente, como já foi apontado aqui, um conceito da práxis precisa da nossa
especial atenção porque pode, talvez, permitir aprofundar a compreensão daquilo que o
Vaneigem (2014) chamou de “unificação de práticas subversivas com condições objeti-
vas da sociedade” – da necessidade de ter algum tipo de articulação das agências subver-
sivas no mundo da vida com um “componente” estrutural que as unifique. Essa práxis
de unificação poderia ser considerada semelhante, se bem contrária, àquelas práticas que
foram chamadas de “planejamento”. Talvez o próprio planejamento comunicativo possa
ser considerado uma espécie de “paradigma contrário”.
Contrário porque um planejamento como a mencionada “práxis unificadora”
tem como finalidade de se opor – e não “mediar” – à lógica instrumental-abstrata e, com
isso, fortalecer a lógica comunicativa tanto dentro do mundo da vida como na subversão do
sistema. É nesse sentido que não seria “revolucionário”, mas também não apenas “insur-

125
gente”. Comparado com a comunicativa, esse “contraplanejamento” tem algo de “pós-
moderno” porque não tem “projeto”. É mais um caminho que se constrói caminhando.
Falar mesmo de planejamento agora faz mais sentido do que em relação aos tipos
participativos e comunicativos: o contraplanejamento é um planejamento, só “às avessas”;
é a organização e explicitação das contradições internas às sociedades capitalistas contem-
porâneas: aquela que se desloca da contradição (dialética) entre capital e trabalho para
um bem mais profundo e, bem que se diga, perigosa: aquela entre a vida humana e os
mecanismos instrumentais e abstratos que é ao mesmo tempo “infra-“ e “superestrutura”:
relação de produção e regulação política da sociedade.
Por isso a importância, a nosso ver, de compreender colonização e subversão não
como opostos, mas dialeticamente contrárias, contraditórias. Mas que constituem, como
tese e antitese, uma totalidade social (relativa) da relação entre as duas racionalidades.
Como ambas procuram resultados iguais, mas contraditórios, e as práticas de racionaliza-
ção manifestas na colonização são chamadas de “planejamento”, a práxis unificadora (en-
volvida na “organização” da subversão) mereceria, talvez, ser chamada de “contraplaneja-
mento” como movimento contrário aos planejamentos acima referidos – mesmo aqueles
de abordagem relativamente crítica como a do comunicativo-colaborativo.
Assim, a “negação” do planejamento, como quer uma proposta subversiva, não é
nada mais do que um planejamento; mas um “contraplanejamento”. E esse “contraplane-
jamento” não é uma hipótese abstrata ou apenas uma mera “potencialidade” – como não
são as práticas subversivas; ele existe “realmente” e precisa ser reconhecido, identificado
e (não tanto) divulgado. Algo que foge completamente ao âmbito deste pequeno ensaio.

REFERÊNCIAS
BEY, H. The temporary autonomous zone, 1985. Disponível em: <http://hermetic.com/bey/taz3.html#label-
ThePsychotopology>. Acesso em: 15 dez. 2014.
BRIGHENTI, A. M. Elias Canetti and the counter-image of resistance. Thesis Eleven, v. 106, n. 1, p. 73-87, 2011.
BROWN, R. H. Social planning as symbolic practice: toward a liberating discourse for societal self-direc-
tion. International Journal of Sociology and Social Policy, v. 2, n. 1, p. 13-37, 1987.
COSTA, S. Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil. Uma abordagem
tentativa. Novos Estudos CEBRAP, n. 38, p. 38-52, mar. 1994.
FEENBERG, A. The philosophy of práxis: Marx, Lukács and the Frankfurt School. London/New York: Verso, 2014.
FORESTER, J. Critical theory and planning practice. American Planning Association Journal, p. 275-286, July 1980.
FRIEDMANN, J. The prospect of cities. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 2002.

126
FRIEDMANN, J.; HUDSON, B. Knowledge and action: a guide to planning theory. American Institute of
Planners Journal, v.1, p. 2-16, Jan. 1974.
HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1981. 2 v.
HABERMAS, J. Sobre a crítica da teoria do significado. In. _____. Pensamento pós-metafísico. Estudos filo-
sóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990a. p. 105-134.
HABERMAS, J. Ações, atos de fala, interações mediadas pela linguagem e mundo da vida. In: _____.
Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990b. p. 65-103.
HEALEY, P. Planning through debate: the comunicative turn in planning theory. Town Planning Review,
v. 63, n. 2, p. 143-162, 1992.
HOLSTON, J. Spaces of insurgent citizenship. Planning Theory, v. 13, n. 1, p. 35-52, 1995.
LEFEBVRE, H. La producción de le spacio. Madrid: Capitán Swing Livros S.L., 2013.
MELUCCI, A. The symbolic challenge of contemporary movements. Social Research, v. 52, n. 4, p. 788-816,
winter 1985.
MIRAFTAB, F. Insurgent planning: situating radical planning in the global south. Planning Theory, v. 8, n. 1,
p. 32-50, 2009.
OFFE, C. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
OFFE, C.; LENHARDT, G. Teoria do Estado e política social. In: OFFE, C. (Org.). Problemas estruturais do
Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 10-53.
OFFE, C.; RONGE, V. Teses sobre a fundamentação do conceito de “Estado capitalista” e sobre a pesquisa
política de orientação materialista. In: OFFE, C. (Org.). Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 122-137.
RANDOLPH, R. O planejamento comunicativo é possível? Indagações sobre novas formas de articulação entre es-
paço, Estado e sociedade. Trabalho apresentado no XIX Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG, 1995.
RANDOLPH, R. O planejamento comunicativo entre as perspectivas comunitarista e liberal: há uma “ter-
ceira via” de integração social? Cadernos IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, v. XIII, n. 1, p. 83-108, 1999.
RANDOLPH, R. Do planejamento colaborativo ao planejamento subversivo: reflexões sobre limitações e
potencialidades de Planos Diretores no Brasil. Scripta Nova, Barcelona, v. 245, p. 85-98, 2007.
RANDOLPH, R. A nova perspectiva do planejamento subversivo e suas (possíveis) implicações para a
formação do planejador urbano e regional – o caso brasileiro. Scripta Nova, Barcelona, v. X, p. 98-110, 2008.
RANDOLPH, R. Subversão e planejamento como práxis – uma reflexão sobre uma aparente impossibi-
lidade. In: LIMONAD, Ester; CASTRO, Edna (Org.). Um novo planejamento para um novo Brasil?. Rio de
Janeiro: Letra Capital Editora, 2014. v. 1. p. 40-57.
SILVA, K. S. A estética da existência como ética possível: Foucault e a reinvenção do sujeito. João Pessoa: UFPB,
Dissertação de Mestrado, 2011.
VANEIGEM, R. The revolution of everyday life: the reversal of perspective, 1967. Disponível em: <//http://
library.nothingness.org/articles/SI/en/pub_contents/5>. Acesso em: 07 mar. 2014.

127
A cidade contra o Estado:
ensaio sobre a construção política de
escalas e institucionalidades
Rita Velloso

Escalas são a solução geográfica de processos contraditórios de competição e cooperação.


Neil Smith

A vida urbana permanece ambígua, incerta, entre a decifração das mensagens conforme
seu código (reconhecido) e a metalinguagem que se contenta em parafrasear as mensa-
gens conhecidas, repetidas, redundantes. A cidade se escreve nos seus muros, em suas
ruas. Mas essa escrita nunca acaba. O livro não se completa e contém muitas páginas em
branco, ou rasgadas. E trata-se apenas de um borrador, mais rabiscado que escrito. Percur-
sos e discursos acompanham-se e jamais coincidem.
Henri Lefebvre

Nada mais estranho às utopias do que as questões de escala.


Antoine Picon

Uma constatação histórica sobre a escrita do urbanismo, a princípio exclusivamente


documental, foi o ponto de partida para este texto. Trata-se da década de 1970, quando
interpretada a partir de determinados textos então produzidos e considerada como um
plano de clivagem na teoria urbana, pois se passava dos sistemas de desenho e das ciências
do planejamento a um corpus coerente de uma teoria desenvolvida desde o marxismo
e fundamentada na luta de classes urbana. De modo rudimentar, pode-se resumir essa
abordagem mostrando que, nos anos de 1970, a teoria marxiana acerca da produção do
espaço pensou o crescimento e a transformação urbanos em termos da circulação de ca-
pital, bem como o uso do solo e a atividade econômica em termos da mais-valia urbana
(Castells, Lefebvre). Também se escreveria àquela altura uma importante crítica ao papel
desempenhado pelo Estado no planejamento (Lojkine).
Contudo, se é verdade que os teóricos marxistas atualizam o debate sobre o con-
flito de classes entre um proletariado urbano oprimido e os proprietários dos meios in-
dustriais de produção, é fato que o marxismo da segunda metade do século XX já não
podia aplicar ao espaço agigantado das cidades as mesmas categorias que F. Engels utiliza-
ra para explicar a Inglaterra oitocentista. Henri Lefebvre, fazendo essa constatação, olhou
à sua volta buscando outros campos com que pudesse debater a partir das próprias obras.
Dentre esses campos – teóricos, disciplinares ou empíricos – estão, principalmente, os
movimentos de oposição e resistência ao poder exercido pelo Estado, o corpo colocado
no centro da experiência urbana, e a cidade enquanto condição de possibilidade de uma
experiência determinada, em que se misturam o material e o imaginário, o construído e
o mental. Evidentemente, a reflexão sobre o espaço dupla e necessariamente ligado ao
Estado e à práxis social não foi exclusiva de Lefebvre.
A teoria urbana que se escreveu desde então partiu de um referencial conceitual
cujos autores estabeleceram o problema das escalas a partir da reflexão sobre a política e a
práxis socioespacial. Henri Lefebvre escreve, entre 1970-1974, A revolução urbana e A pro-
dução do espaço; entre 1976-1978, De l’Etat. Alguns textos que se descobre na vizinhança
das perguntas lefebvrianas permitem estabelecer com ele não uma ligação fortuita, como
pareceria à primeira vista, mas elos importantes – é o caso de Pierre Clastres e Michel Fou-
cault. Respectivamente, pesquisadores da antropologia e da filosofia políticas, campos de
que Lefebvre se aproxima para pensar o urbano substantivo, escrevem simultaneamente ao
filósofo: Clastres escreveu A sociedade contra o Estado em 1974; as aulas de Foucault que se
iniciam em janeiro de 1978 têm como tema a governamentalidade – a segurança, o cálculo
da população e o território envolvidos nessa prática.
Este trabalho é a primeira formulação de uma argumentação que toma de emprés-
timo aos referidos autores (Lefebvre, Clastres, Foucault) os conceitos de escala, sociedade
sem Estado e governamentalidade, para analisar formas atuais da práxis urbana enquanto
experiência da política, enquanto prática que implica os corpos, a linguagem e os compor-
tamentos. Pretende-se, com este texto, apresentar uma primeira discussão sobre o papel
da cidade como lugar privilegiado da luta política, da disputa por legitimidade de práxis socio-
espaciais diversas ou por concepções rivais de institucionalidade.1

1 A elaboração deste texto, apresentado no workshop “Teorias e práticas urbanas”, se deu como atividade
de uma pesquisa em curso, apoiada pelo CNPq, que é denominada “Arquiteturas da Insurreição. Uma
análise dos modos de engajamento das sociedades urbanas no presente das cidades e sua repercussão na
configuração material do espaço urbano”. Outros desdobramentos e o aprofundamento das teses aqui
esboçadas ainda terão lugar no desenvolvimento desta pesquisa.

130
Primeiramente, o texto se ancora na tese lefebvriana de que as relações de poder
estabelecidas e exercidas no cotidiano são necessariamente demarcadas por uma dimen-
são escalar, a qual, no urbano contemporâneo, evidencia e tensiona tanto o limite de mo-
bilização do espaço pelo Estado quanto as lutas por controle do espaço social. A questão
da escala, do modo como foi tratada por Lefebvre a partir dos anos de 1970, apresenta
desafios metodológicos e políticos para a teoria urbana contemporânea, e tem sido re-
centemente retomada por autores como Neil Smith, Erik Swingedouw e Neil Brenner,
cuja ênfase recai sobre a teoria e os limites de uma política de escala. Entendendo a escala
como categoria que é compreendida de modos diversos pela sociedade e pelo Estado, o
texto dialoga com alguns dos fundamentos dessa abordagem recente.
Num segundo momento, assumindo que também para o exercício da política é
válida a diferenciação entre o que se passa com a sociedade e nos governos quanto às for-
mas de sua ação, o texto discute determinadas repercussões da institucionalidade frente
ao processo contemporâneo de reterritorialização das escalas. Tal processo tensionou os
modos de mobilização do espaço pelo Estado, cuja ação era demarcada por uma forma
atemporal e estática de organização territorial. Se o Estado moderno, operando para pen-
sar o urbano em termos de troca e valor e mobilizando o espaço como força produtiva,
transformou, regulou e produziu o espaço urbano, empregando suas estratégia e institui-
ções para manter a coesão social e impor uma diferenciação espacial, no urbano contem-
porâneo esse modus operandi do Estado encontrou novos modos de oposição e resistência
por parte da sociedade que revelam ser processos multiescalares.
Finalmente, numa conclusão ainda preliminar, o texto explora as repercussões da
questão da multiescalaridade nas articulações, contestações e reivindicações dos grupos
urbanos para afirmar que a cidade, graças a atributos espaciais específicos, permanece
como lugar privilegiado da luta política e da mobilização contra o Estado.

Escalas

A tese lefebvriana de que no cotidiano de habitantes de regiões extensamente urbaniza-


das a escala se dá, principalmente, como arena, hierarquia e produto de relações sociais,
exigiu que a formulação do conceito se desdobrasse em dois momentos de sua obra. Re-
ferindo-se tanto às ideias de escala-nível (niveau) quanto à escala-território (echelle), Lefebvre
argumenta que a escala é expressão da ação coletiva, socialmente constituída, pois con-
figura-se como plataforma e container de certos tipos de atividade social. A escala-nível
(niveau) diz respeito a diferentes dimensões da realidade social dentro da modernidade
capitalista, configuradas hierarquicamente. Assim, o conceito se apresenta em A revolução
urbana (1974), onde são descritos os três níveis mais importantes na realidade social: o

131
global, o urbano e o cotidiano. Quanto à escala-território (echelle), desenvolvida sobretudo
em A produção do espaço (1974) e em De l’État (1976-1978), Lefebvre dá conta do senti-
do mais corrente do termo, isto é, relativo à amplitude de um domínio, à relação entre as
distâncias ou dimensões reais de um objeto, de um território ou lugar – que podem ser o
corpo, o local, o urbano, o regional, o nacional, o supranacional, o mundial e o planetário.
A discussão lefebvriana antevê que, à medida que a urbanização se espalha por
todo o planeta, todas as escalas geográficas são permeadas por uma imensa variedade de
ligações, conexões, comunicações, redes e circuitos. A interdependência entre as escalas
é intensificada e vemos se estabelecer, entre elas, novas hierarquias e novas configurações
de totalidades socioespaciais. No contexto do debate sobre a globalização, na esteira de
definições e operadores que lidassem simultaneamente com o local e com o global na
reterritorialização, por exemplo, da regulação do trabalho, e nos processos de reestru-
turação urbana daí decorrentes, a questão das escalas ganha muita relevância nos anos
de 1980 e 1990.2 Passa-se a pensar nas dinâmicas dos processos de reescalonamento.
As configurações escalares são continuamente descartadas e refeitas através de intensas
disputas sociopolíticas (Brenner, 2000).
Contudo, a consideração de escala como dinâmica coloca a pergunta sobre como
opera uma reconfiguração escalar que é sempre processo. Se a escala já não atua mais
como plataforma geográfica fixa de eventos, ações, fatos, mas pelo contrário, passa a ser
vista como arena em que se desdobram práticas socioespaciais, cada qual em suas pró-
prias dinâmica, evolução, contestação, performance e hierarquia, como categorizá-la?
Uma importante contribuição ao debate seria feita por Neil Smith, autor que afir-
mou, em 1984, a necessidade de compreensão da escala como plataforma para a circula-
ção de capital e ferramenta do desenvolvimento espacial desigual. Já em 1990, Smith diria
serem as escalas molduras para um amplo conjunto de atividades e lutas sociais. Nesse
trânsito do conceito, a escala definida pela teoria de Smith passa do campo político-e-
conômico (acumulação de capital, regulação do estado) ao campo da práxis social (re-
produção social, relações de gênero, mobilização, protestos, identidade, subjetividade); o
autor formula, então, o termo política de escalas, tanto para se referir ao âmbito de lutas que
se dão dentro de uma mesma escala geográfica, ou entre escalas de níveis hierárquicos
diferentes. Na escala como unidade espacial, por um lado, tem-se a produção, reconfigura-
ção ou constatação de uma dada ordenação socioespacial dentro de um limite geográfico.

2 Brenner (2000) elenca obras e autores que colocaram a questão urbana no centro da discussão
da globalização na medida em que esta rearticulou o espaço socioeconômico sobre muitas escalas
geográficas: Sassen (1991), Graham (1995), Graham (1997), Jessop (1997). Para Brenner, trata-se
de demonstrar que, no âmbito da globalização, a proposição de Manuel Castells para a questão urbana
encontra sua superação no problema da escala.

132
Por outro, na escala como modalidade de hierarquização, o que se leva em conta são relações
simbólicas, discursivas e estratégias organizacionais entre um conjunto de escalas geográ-
ficas somadas às ramificações das transformações entre as escalas; transformações essas
referentes a representações, significados, funções.
Da argumentação sobre a denominada política de escalas, o que se segue é uma afir-
mação um tanto generalizadante e de certa frequência nos textos da teoria urbana – a de
que a escala é uma construção social. É preciso, entretanto, dizer como os diferentes atores
sociais constroem sua percepção da escala na qual irão agir. Deve-se conceituar crítica e
realisticamente a escala, que não só não pode ser tomada por uma metáfora genérica da
socioespacialidade, mas deve ser compreendida epistemológica e não ontologicamente.
Camadas ou níveis distintos no interior das hierarquias, toda escala é sempre
relacional, afirma Neil Brenner (2000). Vistas, seja pelas instituições político-econô-
micas, ou na espacialidade social como tal, escalas nunca são fixas, estáticas ou perma-
nentes. Ao contrário, a escala é um resultado contingente das tensões que se dão entre
forças estruturais e as práticas sociais. Um lugar escalar é a concretização de relações
sociais de empoderamento e a arena em que tais relações se desdobram. Do ponto
de vista de uma epistemologia, a questão da escala será sempre uma ferramenta para
compreender os processos que configuram e constituem práticas sociais em níveis
diversificados de análise.
Analiticamente, deve-se levar em conta tanto a importância da escala no delinea-
mento das estratégias de movimentos sociais e na organização dos diversos atores sociais
quanto, considerando que o Estado age para dar condições à produção econômica, os
processos por meio dos quais as estruturas do Estado e as instituições governamentais
atuam na construção das escalas.
O Estado – conjunto de instituições estabelecidas que operam por esquemas es-
tratégicos e a partir de um princípio de inteligibilidade segundo o qual a sociedade é ge-
rida – lida com a questão escalar reduzindo o espaço à sua funcionalidade e a dimensão
temporal à sucessão e linearidade. Desse modo, o Estado atua sobre as escalas (local, urba-
na, regional/metropolitana, nacional, global) compreendendo-as principalmente como
hierarquias fixas para pensar as condições do planejamento e a dimensão produtiva com
a finalidade de fazer a proposição e o controle de políticas públicas.
A sociedade, por sua vez, experimenta escalas como fluxos, na medida em que o
espaço vivido pelos habitantes efetiva-se num conjunto de trocas, deslocamentos, conta-
tos. Trata-se de algo a que Lefebvre denomina “a experiência dos usuários”, afirmando-a
ser responsável por operar uma transformação qualitativa de substância dos territórios e
das dimensões locais; e daquilo que Foucault chama “rua, cereal, contágio”, remetendo à
cidade tornada possível graças à circulação:

133
(…) os três exemplos: a cidade, a escassez alimentar, a epidemia, ou, se
preferirem, a rua, o cereal, o contágio. Esses três fenômenos, vemos imedia-
tamente que têm entre si um vínculo bem visível, muito manifesto: todos
eles estão ligados ao fenômeno da cidade (…) esses três problemas têm
em comum que as questões que colocam giram finalmente todas elas em
torno do problema da circulação. Circulação entendida, é claro, no sentido
bem amplo, como deslocamento, como troca, como contato, como forma
de dispersão, como forma de distribuição (Foucault, 2008, p. 83-84).

Tomando a metrópole contemporânea brasileira como problema, de que maneira


poder-se-ia pensar a potência do cruzamento da dupla abordagem da escala pela socieda-
de e pelo Estado? As cidades brasileiras são, a cada vez mais, configurações resultantes de
processos simultâneos e interdependentes de desterritorialização. Para se ter uma ilustra-
ção disso, pense-se na amplitude dos deslocamentos causados pelo trabalho, ou no uso
dos espaços públicos coletivos, em que a segregação é a regra. São cidades resultantes de
uma urbanização extensiva, já que se configuram policêntricas, com seus centros tradicio-
nal e historicamente consolidados somados às novas centralidades periféricas, produzidas
de modos não mais estáticos nas periferias metropolitanas, cujos modos de vida e táticas
cotidianas são profundamente diversificados.
Talvez o caso brasileiro aponte um desafio metodológico em face da necessidade
de compreender a hibridização da escala fluxo/hierarquia quando se atua desde o plane-
jamento urbano. A considerar tal variável, o planejamento não poderá evitar se debruçar
sobre o processo político de constituição da escala, inscrito tanto no cotidiano quanto
nas macroestruturas sociais, e precisará desenvolver ferramentas conceituais adequadas à
abordagem desse problema.
As extensas cidades no Brasil obrigam à compreensão de interseções e interações
em que as escalas se dão no território, de seus centros até as franjas urbanas e conurbações.
Numa região metropolitana brasileira, governante, planejador e habitante não se livram
de mobilizar cotidianamente, cada um a seu modo, um raciocínio espacial que vai do in-
traurbano (da aglomeração consolidada a partir de um ou vários centros) à rede urbana e
de volta à microescala cotidiana de um território metropolitano.
Não podem, os moradores urbanos, esquivar-se ao exercício de, simultânea e frag-
mentariamente, experimentar situações num bairro, periferia ou centro de sua cidade e
tomar consciência dos relativos posicionamentos desta quanto a outros núcleos urbanos
integrantes de uma região ou aglomeração metropolitana. Quando nos dias atuais se dei-
xa ver, para além dos padrões cristalizados da urbanização brasileira e das formas de orga-
nização territorial do Estado, uma espécie de nova urbanidade nas regiões metropolitanas,
em que os ambientes urbanos expõem suas redes de encontros e cooperações – aleató-

134
rios e/ou planejados, e, por conseguinte, as tensões dessas novas articulações sociais –,
a pergunta que está colocada é em que condições o planejamento urbano – operando a
partir do Estado – ainda poderá ser levado a cabo.

Política

O urbano que se tornou, com Lefebvre, um substantivo, contém em sua conceituação


uma experiência política dos habitantes que é enunciada no plural. Tal enunciação, para o
filósofo francês, decorre da politização por que passa o próprio espaço social desde 1968,
quando é totalmente penetrado por uma práxis coletiva então confrontada com a im-
plosão/explosão de referências e configurações tradicionais da cidade. Os processos de
reterritorialização das escalas, expressos nesse novo tecido urbano estendido, tensiona os
modos de mobilização do espaço pelo Estado, cuja ação foi historicamente demarcada
por uma forma atemporal e estática de organização territorial. Operando para pensar o
urbano em termos de troca e valor, mobilizando o espaço como força produtiva, o Estado
moderno transformou, regulou e produziu o espaço urbano, empregando suas estratégias
e instituições para manter a coesão social e impor uma diferenciação espacial. No urbano
contemporâneo, esse modus operandi do Estado encontrou novos modos de oposição e
resistência que revelam ser processos multiescalares, uma vez que disputas pelo espaço so-
cial, contestações, reivindicações, dentre outras formas da práxis política, evidenciam-se
em todas as escalas geográficas; muitas vezes, simultaneamente em mais de uma delas.
“Nada de instituição sem espaço”, cita Lefebvre (1976-1978) ao apresentar sua
concepção do Estado como uma estrutura espacial de poder, isto é, “arquitetura social e
monumentalidade política”, só tornada concreta por meio da produção do espaço. Con-
dição para a reprodução generalizada (biológica, da força de trabalho, dos meios de pro-
dução, das relações de produção e de dominação), a definição lefebvriana para atuação do
Estado se coaduna àquela de Michel Foucault, em que o Estado implica uma prática de
controle do território viabilizada por meio de aparatos técnico-políticos.3 Forma hierár-
quica estruturada para o exercício do poder, o Estado age por meio de contínua relação de
subordinação-dominação utilizada por burocratas para controlar a sociedade.
Quando se afirma a vigência de uma política de escalas no urbano dos dias atuais, é
preciso pautar a reflexão num duplo desdobramento e perguntar como exercem a política
as duas esferas responsáveis pela construção das escalas – a sociedade e o Estado.

3 Foucault constrói o conceito de biopolítica a partir da sua argumentação de que o Estado é uma prática
de controle do território, de ação da polícia e a regulação da população. Nesse sentido, a biopolítica,
que designa uma mobilizacão da vida baseada em perspectivas e aparatos técnico-políticos, deve ser
compreendida necessariamente em relação às estratégias do Estado.

135
Para Michel Foucault, a política que se exerce por meio dos aparelhos de Estado
está ancorada em soberania, disciplina e segurança. A medida da eficiência política do Es-
tado toma-se por sua capacidade de regular e controlar o território. O Estado emerge nas
práticas do poder sempre exercido numa esfera pública, configuradas em dispositivos que
agem sobre o espaço do público, consolidados em leis, regulação e técnicas disciplinares.
A política, quando exercitada pelo Estado, toma a forma da institucionalidade cristalizada
em procedimentos, protocolos, organização. Na cidade, o aparato de Estado se estabelece
com a função de ordenar o complexo mundo urbano e racionalizar uma sociedade – cuja
fragmentação é sempre crescente – por meio de técnicas de controle que designam mol-
duras regulatórias para reger, estruturar e gerir os diversos espaços.
A síntese do exercício da política pelo Estado também é estabelecida nos termos
do conceito foucaultiano de governamentalidade, o qual se pode ser trazido ao debate da
construção social de escalas, pois se anuncia

conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises


e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma
bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo
principal a população, por principal forma de saber a economia polí-
tica e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança.
(…) a tendência, a linha de força, (…) que não parou de conduzir
para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de “go-
verno” sobre todos os outros – soberania-disciplina – e que trouxe,
por um lado o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos espe-
cíficos de governo e por outro lado, o desenvolvimento de toda uma
série de saberes (Foucault, 2008, p. 143).

Para Lefebvre, o Estado toma o espaço enquanto lócus por meio do qual o po-
der se afirma e exerce, não sendo a política mais do que a condição para que o espaço
resulte das relações de produção sempre a cargo dos grupos sociais dominantes. Nesse
sentido é que Lefebvre escreve sua argumentação de contraposição ao aparato de Estado,
afirmando ser tarefa da crítica do urbano desvendar processos e entraves da burocracia,
fazendo a crítica da política que concerne ao espaço. Lefebvre critica a intervenção estatista
na medida em que ela é incapaz de considerar de modo acurado os usuários dos lugares,
tampouco suas lutas e agendas, ou ainda a práxis dos processos de mudança social. Para
esse autor, a finalidade da crítica dirigida ao modo da política exercida pelo Estado deve
resultar na explicitação de que é a práxis que está no cerne da vida urbana.
Ora, a práxis é materializada num conjunto de forças e processos sociais que atu-
am sobre um lugar específico, implicando a conexão do microespaço dos corpos ao ma-
croespaço da cidade, à macroescala do global e dos circuitos econômicos. Lefebvre nos

136
permite avançar na compreensão de que a política, quando exercida pelos habitantes no
espaço, é primeiramente uma política dos corpos. O corpo, na cidade, é condição de pos-
sibilidade daquela experiência que se faz no espaço para a reivindicação ou contestação
do Estado. Isso é o que melhor traduz a ideia lefebvriana de apropriação – uma condição
urbana e política tal como é exercida pelo público, em que

o importante não são as regularidades institucionais, mas muito mais as


disposições de poder, as redes, as correntes, as intermediações, os pontos
de apoio, as diferenças de potencial que caracterizam uma forma de po-
der e que, creio, são constitutivos, ao mesmo tempo, do indivíduo e da
coletividade (Foucault, 2008, p. 307).

Identificar a apropriação do ambiente construído a uma ação política dos corpos é


assumir a cidade como mistura de imaginário e matéria, do mental e do construído, elabo-
ração teórica que é partilhada por Lefebvre e Foucault. Quando a política é vivida como
movimento, lugares e corpos formam uma articulação mutante, provisória mas potente,
um encontro por meio do qual a sociedade pratica o que Lefebvre denomina “os movi-
mentos de usuários, protestos e contestações” e Foucault chama de “as contracondutas”.
Com o termo contraconduta (contre-conduite) Foucault designa as lutas contra um poder
opressor (Foucault, 2008, p. 266); em outros termos, é o exercício da política que não se
dá senão em formas de resistência expressas em apropriação (e reapropriação) dos lugares
habitados – no sentido lefebvriano do termo.
É por meio da apropriacão e da contraconduta que a cidade pode se colocar
contra o Estado, pois tanto uma como outra são movimentos dos habitantes urbanos
articulados e difundidos graças aos processos multiescalares. Minha hipótese neste traba-
lho é que contraconduta e apropriação constituem-se em modos renovados de oposi-
ção e resistência da sociedade face ao modus operandi do Estado, e que já operam num
âmbito também renovado de institucionalidade.
Há na questão da institucionalidade uma dimensão que a situa para além do
aparato de governo. Trata-se de processos inerentes à vida política da sociedade que
dão conta das articulações autônomas de grupos em busca de estabelecer formas de
participação política, bem como consolidar sua representação nas esferas de tomada
de decisão. Em outros trabalhos4 vimos denominando essa dimensão institucionalida-

4 No trabalho coletivo de elaboração do macrozoneamento para a Região Metropolitana de Belo


Horizonte (RMBH), realizado entre 2013-2014, demos início à reflexão sobre a institucionalidade
instituinte, referindo-se aos processos participativos em que as grupos de moradores construíram uma
esfera de produção de conhecimento acerca dos territórios e de prospecção de problemas e questões
urbanas em conjunto com a equipe de técnicos. Naquelas ocasiões ficava evidente o aprofundamento e o

137
de instituinte, uma vez que se trata de compreender como grupos sociais se expressam
no território em termos de suas reivindicações e formas de lutas afetas à política urba-
na. O foco está em compreender de que modo os habitantes estão articulados coleti-
vamente para além das instituições do Estado que atuam em sua região, atravessando
a institucionalidade vigente nos instrumentos e processos administrativos para, além
desta, alcançar ganhos em sua agenda de enfrentamento de desigualdades, ou mesmo
transformar contextos socioespaciais.
Neste texto a institucionalidade é tomada em sua natureza expandida, por as-
sim dizer, o que significa reconhecê-la como espaço de politização, especialmente no
que tange à participação social quando desempenhada no urbano contemporâneo.
Para tal expansão do conceito, deve-se fazer uma exploração em torno da ideia de
governamentalidade, isto é, da política exercida como institucionalidade/poder e como
reivindicação/movimento. Em outras palavras, reconhecer que há uma instituciona-
lidade que é colocada em ação pela sociedade, é reconhecer os movimentos da socie-
dade urbana configurados, sobretudo em práticas e expressão reivindicatórias que se
desempenham sobre o território multiescalar, e que se valem – na experiência feita
pelo coletivo dos habitantes em contraposição aos aparatos do Estado – da contin-
gência e do imprevisto, “entregue à exterioridade, ao rumo ‘dos muitos’, à exposição
antes os olhos dos demais” (Virno, 2013).
A ação de grupos políticos urbanos particularmente organizados se dá a partir da com-
preensão da importância da escala na negociação das relações de poder; e a compreensão dos
processos escalares em jogo em seus respectivos territórios pode ser decisivo para as estra-
tégias de movimentos sociais e para os diversos atores sociais. É nesse sentido que se pode
começar a construir uma resposta para o problema da cidade contra o Estado a partir do texto
de P. Clastres, tentando verificar se a justificativa clastreana da “sociedade sem Estado” permite
ser trazida para a vida metropolitana. No que concerne à vida urbana, o conceito clastreano
da recusa da coerção que está implicada na recusa do Estado pode fornecer elementos à abor-
dagem do problema da microescala no espaço urbano, bem como dos inúmeros microterri-
tórios sociais que cruzam delimitações administrativas, fronteiras e bordas físicas das cidades,
arranjos espaciais de ordens escalares diversas que seguem se multiplicando na metrópole.

amadurecimento das populações em termos de conhecimento dos fluxos e circuitos de tomada de decisão
no interior da máquina estatal relativos ao planejamento metropolitano. Era certo que isso se deveu ao
intenso debate sobre a questão metropolitana instalado na RMBH, desde quando fazíamos o PDDI -
Plano Metropolitano, entre 2009-2011, e mesmo que esse engajamento dos moradores não redundasse
em participação efetiva, era inegável o ganho na cultura política. Foi a partir desse saber aumentado que
começamos a refletir sobre esse outro lado da institucionalidade: não a que está formalizada nos aparatos
de governo, mas a que instala espaços de diálogo da sociedade com seus governos.

138
Em primeiro lugar, quando Clastres questiona a vigência da “vida tragada pelo tra-
balho”, colocando no lugar a “vida sem excedente”, instala a possibilidade de uma ação po-
lítica capaz de resistir, e em alguma medida subverter, às relações capitalistas de produção,
instituindo uma esfera pública não estatal, mas de um grupo, de uma coletividade ou uma
comunidade conectados a outros de igual alcance, situados proximamente ou não.
Em segundo lugar, ao discutir a vontade de poder – hierarquia, autoridade –, colo-
cando no lugar a “chefia sem poder”, legitimada pelo prestígio que é uso da fala – lingua-
gem, deliberação, narração –, Clastres permite pensar conexões com a ideia lefebvriana de
apropriação. Trata-se de defender as experiências plurais, os usos e costumes não estatais e
construir novas formas políticas por meio de uma concreta apropriação e rearticulação do
saber/poder, que hoje está congelado no aparato administrativo do Estado.
Em terceiro lugar, ao discutir a coesão da sociedade em torno de um interesse
e projeto coletivo, quando há um arranjo social em que se desconhece a desigualda-
de como algo incontornável na fundação da vida “em grupo”, Clastres aponta para
uma atitude que é cara à articulação de grupos urbanos reivindicatórios, falando de
uma forma de cooperação que implica a atitude comunicativa dos homens, o saber
e o conhecimento em geral. Nos dias de hoje, poderíamos seguramente referir essa
construção clastreana à ideia de produtividade social, isto é, à solidariedade e ao parti-
lhamento que se desempenham para exatamente superar a desigualdade por meio da
comunicação dos sujeitos viventes e tudo o que nela está implicado: interação, repre-
sentações dialógicas e jogos linguísticos.
Finalmente, com sua crítica ao poder central, a sociedade sem Estado que recusa a
unificação pode nos levar a compreender mais acuradamente o papel que tem a práxis na
microescala urbana no jogo dos espaços de debate e disputa por direitos, oportunidades e
qualidade de vida, que é jogado nos territórios metropolitanos. A defesa que faz Clastres
da atomização permite desenhar um horizonte possível da disseminação de novos lugares
na metrópole em que valha a prerrogativa de uma comunidade local contra as corpora-
ções ou contra o poder central, permitindo exercer a apropriação como resistência.

Cidades

Manuel Castells afirmava em 1983 que, enquanto esfera de politização, a cidade apresen-
ta-se segundo três variáveis, a saber: o modo segundo o qual a população organiza suas
queixas e demandas para refletir as exigências cotidianas; a defesa de identidades territo-
riais, que se transforma num motivo potente para alcançar a mobilização; e, finalmente, os
esforços do aparato estatal local para a desmobilização dos grupos insurgentes, por meio
de cooptação e clientelismo (Castells, 1983). A despeito da intensa transformação dos

139
territórios que demarcam uma cidade na atualidade, ainda faz sentido e tem validade o
que Castells constata sobre a escala urbana quanto a sua caracterização para a luta política:
a cidade permanece como lócus vital de contestação e contraposição ao Estado quando
este não responde ao que a sociedade reivindica.
Para o intuito deste trabalho, que é o de estabelecer a correlação entre o urbano
multiescalar da atualidade, os limites da ação política dos habitantes das cidades e o las-
tro espacial dessa mesma ação, pode-se afirmar que, efetivamente, o que se transformou
foram a ressonância, o alcance e as articulações das lutas políticas travadas na cidade em
outras escalas, sejam nacionais e mesmo transnacionais.
Contudo, mesmo que já se tenha o reconhecimento empírico do papel que a
cidade desempenha nas insurgências, visível no ciclo global de lutas iniciado em Davos
em 1998 e que prosseguiu a partir de Seattle em 1999 até o Brasil de 2013,5 cumpre-se
hoje perguntar de que modo as cidades contribuem para o desempenho de ações po-
líticas de contestação, em escalas diversas. Para aprofundar o conhecimento da cidade
enquanto substrato da luta política atual é necessário compreender quais atributos ur-
banos são especificamente influentes nas queixas, formas de organização, bem como
na tomada de consciência dos insurgentes.
Em primeiro lugar, destaca-se o abrigamento, no espaço urbano, das capacida-
des para estabelecer tanto uma diversidade de relações quanto a instalação do controle
institucional. Uma cidade se concretiza justamente nessa dialética diversidade-controle,
na medida em que se configura num conjunto de espaços de diferença, alteridade e li-
berdade, mas também de controle e racionalização. À intensa possibilidade de conexão
humana corresponde a estruturação de organizações burocráticas aptas a controlar essas
conexões. A diversidade radical da cidade, que faz surgir nos espaços de trocas inovadoras,
intercâmbios interpessoais e coletivos, sempre por meio de processos intensos, também é
capaz de fazer emergir uma densa rede de controles institucionais desdobrados em pro-
tocolos para conter “o caráter ‘selvagem’ da vida urbana” (Nicholls, 2008, p. 846)..
Nessa dialética urbana de contrários (a liberdade e o encontro versus o controle e a
regulação), quando diferentes atores e organizações se defrontam com demandas e quei-
xas comuns, habitantes podem construir juntos conexões para aprimorar seus recursos de
luta. A cidade é profícua em estabelecer laços. Walter Nicholls (2008) apresenta uma in-

5 A discussão da extensão do que Antônio Negri denominou “novo ciclo global de luta” quanto à
dimensão espacial constitutiva dos recentes fenômenos de revoltas urbanas em muito excederia os
limites deste trabalho. Para uma referência inicial, descritiva e cronológica, remeto ao site <www.agp.
org, archive of global protets>: 1994-2009. Para esses desdobramentos posteriores, entre 1999 e 2013,
há uma extensa bibliografia crítica, dentre o que se destacam os textos de Negri, David Harvey, Tariq Ali,
Noam Chomsky, S. Zizek, Giuseppe Cocco.

140
teressante análise dos laços sociais que se estabelecem na cidade em função do apoio recí-
proco de indivíduos dentro de um grupo ou entre grupos que se aproximam esporadica-
mente (Nicholls, 2008). Para esse autor, os laços fortes são identitários: resultam na união
perene de um determinado grupo de reivindicação. Dão conta da combinação de alianças
no tempo, de intensidade emocional e de uma densa reciprocidade que permeiam as aju-
das recíprocas e a confiança mútua com vistas a buscar objetivos coletivos. De outro lado,
os laços fracos expressam ligações e solidariedades momentaneamente construídas, mas
permitem amplificar a ressonância das reivindicações, promovendo a troca de informa-
ções para além do próprio círculo do grupo. Os laços fracos formam redes de partilha de
saberes e constroem cooperações temporárias para alcançar um objetivo comum.
Por seu turno, o Estado empenha seu aparato de governo e estruturas burocráticas
para exatamente bloquear a capacidade associativa desses grupos urbanos, interrompendo
e coibindo os variados tipos de conexão entre diferentes organizações sociais. Governos
confirmam, invariavelmente, sua ocupação e disposição tradicionais sempre empenhadas
na manutenção da ordem para evitar a anarquia e a ruptura social. A proposição de um re-
gramento coeso e a instalação de protocolos e instituições, todos criados para levar a cabo
a função do Estado de contenção da movimentação social, permitem aos governos fazer
uma leitura nítida das reivindicações sempre de modo a pacificá-las, acolhendo-as na esfera
de alguma política pública, deixando-as abrigadas em campos estritos, mas, sobretudo, iso-
ladas umas das outras. Demandas da sociedade são mapeadas para serem controladas por
órgãos e agências específicas dentro do aparato do Estado, com o nítido objetivo da desmo-
bilização. Políticos, servidores públicos e corpo técnico dos governos assumem a tarefa de
controlar, com o emprego de ferramentas institucionais, posições-chave nos diálogos com a
sociedade. Para impedir que as reivindicações por demandas de um determinado grupo se
generalizem, sendo apoiadas pela sociedade em setores mais amplos, o Estado opera para
distinguir estratégias dos grupos e prepara a regulação da demanda por meio da oferta de
uma política pública; além disso, é prática corrente de gestão a criação de uma agência regu-
ladora para cada política pública, compartimentando fluxos dentro da máquina estatal. Por
fim, a burocracia do Estado permite a “participação” da população nos níveis periféricos do
âmbito decisório concernente à efetivação da política pública, sempre com vistas a obter um
“consenso” e difundir o discurso da eficiência e do profissionalismo.
Mas, para além da capacidade manifesta do Estado em “enclausurar” as mobilizações
dos grupos urbanos, a cidade ainda permanece contemporaneamente como o lócus em que
as alianças e coalizões se fazem entre múltiplos atores, graças a fatores tais como proximida-
de geográfica e as articulações entre vizinhanças. Na escala urbana afirmam-se movimentos
que em sua maioria estão fundados no conhecimento associado às experiências vividas no
cotidiano. É nesse mundo da vida urbano que se constroem as solidariedades e as estratégias

141
de luta dos movimentos. É que a regulação imposta pelo Estado em geral incide sobre a vida
urbana, e ainda mais diretamente sobre os processos cotidianos dessa vida. Políticas urba-
nas são um exemplo consistente nessa direção: a oferta de serviços, infraestrutura, bens de
consumo, bem como o atendimento aos direitos civis, sociais e a efetivação de justiça social.
Resistências e queixas se articulam em contextos urbanos que dão suporte às ex-
periências cotidianas vividas – ampla e repetidamente – nas cidades. Na escala urbana,
os grupos constroem molduras comuns para justificar e motivar suas ações e sua par-
ticipação. Podem articular-se na construção de diagnósticos e prognósticos de proble-
mas: por um lado, são capazes de compreensão partilhada das causas dos problemas;
por outro, são capazes de projetar a ação coletiva e pensar soluções para tais problemas
identificados. Por último, movimentos surgidos na escala urbana frequentemente par-
tilham um imaginário político que é decisivo para constituir uma contraesfera pública,
constituindo arenas alternativas de discurso.
Do que se discutiu nos momentos deste texto, pode-se depreender, a título de uma
conclusão provisória, fundamentos para uma teoria crítica urbana em cujo foco esteja a
construção social da escala, a cidade como lugar da luta política, além de uma instituciona-
lidade que dê conta dos processos instituintes, estes considerados como ideias-força que
ampliam o controle social sobre o planejamento e a gestão urbanos. Pretendeu-se analisar
o duplo enervamento da ação política, quando desempenhada pelos atores sociais ou pe-
los governos, e assim avançar na discussão de um referencial institucional que ultrapasse
a intervenção programada sobre uma população e sobre a prática de agentes sociais, isto
é, sobre aqueles que, ao fim e ao cabo, partilham vantagens e problemas socioespaciais
em um território urbano comum. Do ponto de vista dos movimentos reivindicatórios
urbanos, reuniu-se elementos para considerar a repercussão espacial da atuação dos sujei-
tos coletivos e instâncias institucionais em suas formas de articulação e arenas de debate.
Afirmou-se, finalmente, que um aprofundamento conceitual e prático sobre o problema
da construção social da escala em suas articulações variadas (diferentes níveis de especiali-
zação funcional, diferentes formas de reunião social) se faz a cada vez mais necessário para
detectar emergências e visibilidades novas (ou invisibilidades) nos territórios sempre de
modo a pensar as redes de troca de conhecimento e saberes vigentes no urbano contem-
porâneo como ferramentas muito potentes, seja de investigação ou proposição.

142
REFERÊNCIAS
BARNETT, C. What do cities have to do with democracy?. International Journal of Urban and Regional Rese-
arch, v. 38, p. 162-1643, 2014.
BRENNER, Neil. The urban question as a scale question: reflections on Henri Lefebvre, urban theory and
the politics of scale. International Journal of Urban and Regional Research, v. 24, n. 2, p. 361-378, June 2000.
BRENNER, Neil. The limits to scale? Methodological reflections on scalar structuration. Progress in Human
Geography, n. 25, v. 4, p. 591-614, 2001.
BRENNER, Neil. New state space: urban governance and the rescaling of statehood. Oxford e New York:
Oxford University Press, 2004.
BRENNER, Neil. A thousand leaves: notes on the geographies of uneven development. In: KEIL, R.;
MAHON, R. (Ed.). Leviathan undone? Towards a political economy of scale. Vancouver: University of Bri-
tish Columbia Press, 2009. p. 27-49.
BRENNER, N.; JESSOP, B.; JONES, M.; LEOD, G. Mac (Ed.). State/Space: a reader. London: Blackwell
Publishers, 2003.
CASTELLS, Manuel. The city and the grassroots: a cross-cultural theory of urban social movements. Los An-
geles: University of California Press, 1983.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
COX, K. Space and the urban question. Political Geography Quarterly, v. 3, n. 1, p. 77-84, 1984.
COX, K. The difference that scale makes. Political Geography, v. 15, n. 8, p. 667-70, 1996.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FOUCAULT, M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GOTTDIENER, Mark. The social production of urban space. Austin: University of Texas Press, 1985.
LEFEBVRE, Henri. La révolution urbaine. Paris: Éditions Gallimard, 1970.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.
LEFEBVRE, Henri. De l’Etat. Paris: Anthropos, 1976-1978.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri. O Espaço e o Estado (capítulo V). In: ____. A respeito do Estado. Tomo IV: As contradi-
ções do Estado moderno. Tradução/versão por José Augusto Martins Pessoa. [s.d.]. p. 259-324. manuscrito.
LOPES DE SOUZA, Marcelo. Com o estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos
e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta. Revista Cidades, v. 1, n. 1, p. 13-48, 2004.
MARSTON, S. The social construction of scale. Progress in Human Geography, v. 24, n. 2, p. 219-42, 2000.
NICHOLLS, W. J. The urban question revisited: the importance of cities for social movements. International
Journal of Urban and Regional Research, v. 32, p. 841-859, 2008.
NICHOLLS, W. Place, networks, space: theorising the geographies of social movements. Transactions of the
Institute of British Geographers, v. 34, p. 78-93, 2009.

143
NICHOLLS, W.; UITERMARK, J.; LOOPMANS, M. Cities and social movements: theorizing beyond
the right to the city. Environment and Planning-Part A, v. 44, p. 2546-2554, 2012.
NICHOLLS, W.; MILLER, B. Social movements in urban society: the city as a space of politicization. Urban
Geography, v. 34, n. 4, p. 452-473, 2013.
PICON, Antoine. Racionalidade técnica e utopia: a gênese da haussmanização. In: ANGOTTI SALGUEI-
RO, Heliana (Org.). Cidades Capitais do século XIX. Racionalidade, cosmopolitismo e transferência de mo-
delos. São Paulo: Edusp, 2001. p. 65-88.
SMITH, Neil. Uneven development. Cambridge, MA: Blackwell. 1984
SMITH, Neil. Afterword: the beginning of geography. In: _____. Uneven development. 2. ed. Cambridge,
MA: Blackwell, 1990. p. 60-78.
SMITH, Neil. Scale. In: JOHNSTON, R. J. et al. (Ed.). The dictionary of human geography. 4. ed. Cambridge,
MA: Blackwell, 2000.
SMITH, Neil. Contours of a Spatialized politics: homeless vehicles and the production of geographical
scale. Social Text, n. 33, p. 54-81, 1992.
SWYNGEDOUW, Erik. Neither global nor local: “glocalization” and the politics of scale. In: COX, K. R.
(Ed.). Space of globalization. New York: Guilford Press, 1997. p. 137-166.
SWYNGEDOUW, E. The Antinomies of the postpolitical city: in search of a democratic politics of envi-
ronmental production. International Journal of Urban and Regional Research, v. 33, p. 601-620, 2009.
SWYNGEDOUW, Erik. Designing the post-political city and the insurgent polis. Civic City Cahier 5. London:
Bedford Press, 2011.
SWYNGEDOUW, E. De-politicization (“the Political”). In: D’ALISA, G.; DEMARIA, F.; KALLIS, G.
(Ed.). Degrowth. London: Routledge, 2014. p. 90-93.
SWYNGEDOUW, E.; WILSON, J. Insurgent architects and the spectral return of the urban political. In:
ALLMENDINGER, P.; METZGER, J.; OOSTERLYNCK, S. (Ed.). Displacing the political. London: Rout-
ledge, 2014. p. 216-225.
SWYNGEDOUW, E. Insurgent architects, radical cities and the promise of the political. In: WILSON, J.,
SWYNGEDOUW, E. (Ed.). The post-political and its discontents. Edinburgh: University of Edinburgh Press, 2014.
SWYNGEDOUW, E. On The impossibility of an emancipatory architecture. In: LAHIJI, N. (Ed.). Can
architecture be an emancipatory project?. London: ZED Books, 2015.
SWYNGEDOUW, E. Insurgent urbanity and the political city In: MOSTAFAVI, Moshsen (Ed.). Ethics of
the urban: the city and the spaces of the political. Zurich: Lars Müller Publishers, 2015.
VIRNO, Paolo. Gramática da multidão. São Paulo: Annablumme, 2013.

144
Produção do espaço na cidade do
neoliberalismo e novas aberturas no
espaço digital
Felipe Nunes Coelho Magalhães

O urbano é expressão e processo definidor da sociedade, ao mesmo tempo causa e efeito


do social. É a reunião e o afloramento de processos e dinâmicas econômicas, sociais, po-
líticas, culturais, que fazem a cidade e são feitos por ela, potencializando tanto a produção
de valor econômico quanto a criação da obra. Esta interação constitutiva das transforma-
ções sociais com o espaço urbano ocorre em vários planos interligados. Este texto trabalha
com a hipótese de que a produção do espaço na metrópole contemporânea é sintonizada
ao neoliberalismo e sua lógica de garantir a primazia dos mercados na reprodução social
através do Estado. O fenômeno neoliberal se torna um elemento-chave na dialética socie-
dade-espaço, sendo um processo social aglutinador e determinante que interliga dinâmi-
cas variadas e dá o tom – a partir de uma dinâmica transescalar– da produção do espaço na
metrópole de hoje. Parto da abordagem de Henri Lefebvre acerca da produção do espaço
(Lefebvre, 1974), buscando interações entre o neoliberalismo, a economia política urba-
na e a produção do espaço em sentido amplo. Não se trata de propor totalidades – que os
processos urbanos hoje são todos vinculados ao neoliberalismo –, mas de buscar ligações:
como e onde elas ocorrem, através de quais agentes e com quais consequências.
A metrópole brasileira contemporânea é marcada por um paradoxo que nos afeta
diariamente: os problemas coletivos são tratados individualmente, e há uma incapacidade
de se agir coletivamente na direção de questões amplamente entendidas como proble-
mas concretos de caráter coletivo que conformam a vida cotidiana na cidade. As saídas
ofertadas e geralmente adotadas são de ordem individual, e o resultado geralmente é não
somente a reprodução dos problemas, mas a criação de novos desafios, a partir do con-
gestionamento das próprias tentativas individuais de se abordar aquilo que é de natureza
coletiva e da profunda exclusão de uma ampla parcela da população que não tem acesso
a tais opções de privatização/individualização das soluções.1 A crise de mobilidade é o
exemplo mais visível desse dilema, em que a fragilidade das buscas por saídas coletivas,
somada a uma série de incentivos à adoção de soluções individuais, faz com que a situa-
ção se deteriore num ciclo vicioso de difícil reversão. Para além da questão da mobilidade
(que é mais visível e afeta inclusive os privilegiados), este princípio também se faz presente
de forma decisiva nos serviços públicos: saúde, educação, habitação, lazer, segurança etc.
Há um ciclo vicioso na deterioração do que é público, seguida da ampliação do merca-
do privado para a oferta daquele serviço, que por sua vez contribui, de formas diversas,
para sucatear ainda mais o provimento público do serviço. Na saúde este processo ocorre
de forma emblemática, através da sucção de recursos do circuito público para o privado,
criando uma situação em que há, de um lado, um mercado de serviços de saúde altamente
especializado e sofisticado com altos níveis de remuneração e lucratividade que contribui
para dificultar a melhoria da oferta pública do serviço, pois competem pelos mesmos re-
cursos. No caso da educação, trata-se de uma relação em que a precariedade do público
é precondição para a expansão do mercado que atende a tal demanda (um eventual salto
de qualidade no público esvaziaria o ensino privado abruptamente). Ou seja, há uma rela-
ção entre a reprodução do sucateamento da esfera pública e a expansão e a especialização
dos mercados privados para os serviços de consumo coletivo. Esta é a lógica de funciona-
mento da metrópole hoje. Trata-se de um princípio que se aplica a diversas situações na
cidade, e que se relaciona, fundamentalmente, ao neoliberalismo em seu impacto na vida
cotidiana e na reprodução social de forma ampla.
O neoliberalismo urbano baseia-se numa lógica econômica que promove a financei-
rizaçãoda cidade que fomenta e pega carona na valorização imobiliária e se agencia através
de um fortalecimento do poder de fogo dos capitais imobiliários na conformação da política
urbana e de uma forma de planejamento voltada para o abastecimento deste mecanismo
através de projetos e planos urbanos diversos, sendo o processo de gentrificação a frente de
expansão territorial de um meio urbano ultravalorizado que este modelo de planejamento
busca promover.2 Na cadeia de produção e extração de valor, há uma apropriação de exce-
dentes advindos do aprofundamento da economia imaterial dos serviços avançados, sobre-
tudo através da renda da terra, fortemente potencializada pelo crescimento econômico.

1 Sendo que o crescimento da classe média baixa no contexto recente atua justamente no sentido de criar
mercados ampliando este acesso.
2 As causas práticas da valorização imobiliária recente são diversas, abarcando elementos macroeconômicos
e demográficos (ver Magalhães; Tonucci; Silva, 2012). Sua interação com a política urbana no formato
de aproveitamento e promoção desta valorização tem um ponto de partida importante nesta dinâmica
mais ampla.

146
A economia urbana que sustenta este mercado imobiliário – inflado por suas liga-
ções com a político urbana e o setor financeiro– é marcada por uma predominância dos
serviços avançados, que ao abarcar atividades de apoio direto à organização do comando
e controle da esfera produtiva se posiciona na ponta de canais diversos de valor extraí-
do da produção, da distribuição e do consumo, recebendo fluxos de lucros e dividendos
oriundos de capitais de diversas naturezas e de grande alcance e elasticidade territorial. O
setor financeiro é a expressão máxima deste padrão de canalização de valor advindo de
fontes diversificadas, abarcando atividades desde a indústria até a mobilização da renda
da terra, que permite uma criação de vínculos extrativos de valor com a economia urbana
de forma ampla e difusa. A hegemonia do setor financeiro passa pelo poder de criar tais
vínculos e estas estruturas de canalização de mais-valor na sua direção. No entanto, seja
através do alto nível de remuneração de suas atividades, ou de participações mais diretas
nos investimentos, há um conjunto de atividades econômicas de apoio direto a esta lógi-
ca de ampla financeirização que também participa, em graus diversos de inserção, deste
grupo para o qual flui a extração de mais valor, e abrange escritórios de advocacia, conta-
bilidade, comunicação social, engenharia, serviços de consultoria e assessoria diversos,
dentre outros. A inserção do Estado neste circuito constitui uma peça fundamental, pois
o neoliberalismo nada mais é do que uma forma de organização do governo e de uso da
estrutura de poder institucionalizada (Dardot; Laval, 2014).
Se esta nova economia urbana é sustentada por fluxos de renda em parte advin-
dos de outros espaços, o setor imobiliário cria um mecanismo semelhante em relação
aos serviços avançados: apreende parte dos valores que ele extrai de uma base produtiva
maior através da remuneração da renda da terra, criando oportunidades para o capital
rentista organizado no setor imobiliário em novos patamares. E neste processo, este es-
paço urbano transformado em mercadoria, produto do capital imobiliário, se torna tam-
bém um produto financeiro, um título lançado no mercado e que concorre com outros
papéis – desde ações até títulos de dívida pública ou derivativos diversos. Nisso, há um
processo de financeirização do espaço urbano que é mais aprofundado que a simples
vinculação do imobiliário ao mercado de capitais, pois trata-se de uma abertura para
que o setor financeiro atue na própria cidade transformada em “fábrica social”, tendo a
renda da terra como uma forma de canalização de valor da economia imaterial urbana
do terciário avançado.3 Ou seja, há um passo adiante no encadeamento da canalização
de valor: da esfera produtiva como um todo na direção dos serviços avançados (que já

3 Em Hardt e Negri (2009, p. 250), assim como a fábrica – espaço central no formato fordista de
acumulação – gera lucro, a metrópole – lócus do capitalismo cognitivo do terciário avançado
contemporâneo – gera renda.

147
inclui neste elo grandes porções do setor financeiro), para a renda da terra que sustenta
materialmente a localização destas atividades altamente dependentes dos núcleos me-
tropolitanos, para o mercado imobiliário financeirizado. Nesse sentido, há que se avaliar
tanto a própria valorização imobiliária quanto a canalização de rendimentos para a renda
da terra urbana através deste novo vínculo, e este é um processo-chave da cidade do ne-
oliberalismo, potencializado por ela e constituindo suas bases.
A primeira seção a seguir trata da centralidade da produção social do espaço urbano
para este esquema, formando um nó borromeano entre Estado, capital e produção simbó-
lica na produção do espaço. Em seguida, trato de um novo elemento em cena no cenário
político que vem se fortalecendo de forma articulada a esta economia imaterial urbana,
que é o fortalecimento de um meio articulado através da internet, que se torna um novo
canal criador de rotas de fuga na produção de subjetividades, permitindo que sintonizações
ocorram em canais críticos e independentes do circuito de produção e extração de valor do
neoliberalismo urbano, trazendo implicações práticas decisivas para a dimensão simbólica
(fundamental) da produção do espaço, e renovando as condições do campo de luta pelo
direito à cidade. Na interação entre metrópole e internet, há uma retroalimentação cumu-
lativa que cria interações potencializadoras de novos vetores (culturais, econômicos, polí-
ticos), com potenciais resultados políticos, seja na direção da emancipação ou da reprodu-
ção de vetores micropolíticos conservadores com possíveis efeitos concretos significativos.
A abordagem lefebvriana a respeito da abertura (Lefebvre, 1991), ao tratar de ra-
chaduras e fissuras no espaço social e no cotidiano que podem ser exploradas como pon-
tos férteis na criação de transformações possíveis, provê paralelos com a noção deleuziana
da linha de fuga como rota emancipatória que cria diferenças como saídas de situações
heterônomas. Embora existam divergências significativas entre estes dois universos teó-
ricos, procuro pontos de convergência e de diálogo possível tendo o espaço diferencial
lefebvriano como um norte. Nesta tentativa de diálogo, há uma necessidade de inserções
empíricas que apontam na direção da etnografia voltada para o domínio da micropolíti-
ca, tendo como foco a criação de um campo de novas práticas a partir do adensamento
do espaço digital. É a partir da intensificação das interações entre o urbano e este espa-
ço de fluxos aberto e horizontal, em ligação com uma negação do aprofundamento da
produção hegemônica do espaço da cidade neoliberal, que se constituem os eventos de
junho de 2013 na metrópole brasileira. A genealogia da interação entre redes, movimen-
tos e conflitos urbanos é um aspecto que abre uma agenda de pesquisa importante para
o entendimento do caráter destas novas movimentações, para a qual proponho alguns
elementos iniciais de análise na segunda parte deste ensaio, após a discussão acerca da
produção social do espaço e o neoliberalismo na metrópole. Reconheço que a entrada
de novas formas de comunicação trazem potencialidades e riscos, podendo alimentar

148
dinâmicas transformadoras virtuosas, e também a reprodução de ciclos repressores, auto-
ritários, regressivos. Procuro focar nas positividades sem perder de vista as possibilidades
abertas neste campo também para vetores (ultra-)conservadores.4

O neoliberalismo e a produção social do espaço

A dimensão simbólica do fato social é um construto central na produção do espaço ur-


bano. A vida na metrópole envolve uma inserção aprofundada numa rede de significa-
dos, valores, crenças e subjetividades que são constantemente reproduzidos, reiterados,
reinventados, apropriados, transformados. Como argumentado por toda uma trajetória
de pensamento na teoria antropológica, esta é uma dimensão fundante da sociedade,
a partir da qual resultam formas de produção e reprodução material, instituições, dife-
rentes configurações do parentesco e das relações com os próximos, distintas formas de
interação com o meio natural etc. A conceituação da produção do espaço em Lefebvre
opera numa interação entre a centralidade da dimensão simbólica, a proeminência do
Estado (na conformação do espaço abstrato) e a crítica da economia política em sua
perspectiva materialista fundante. Em Lefebvre, os signos e significados acerca do que
consiste o espaço entram numa dialética com o concreto de forma decisiva. O espaço
do medo, a própria noção de que a cidade é um território de risco e violência, por exem-
plo, retroalimenta ciclos que reproduzem os fatos que criam essa percepção num dado
momento inicial. Interpretar a cidade a partir desse pressuposto implica trabalhar com
a ideia de que estes significados são constantemente reiterados e reproduzidos num
processo contínuo de subjetivação em torno do espaço urbano, e este é um processo
fundamental na construção do que a cidade se torna, nos seus devires. Este aspecto é
bem sabido pelos estrategistas urbanos da proeminência do city marketing a partir da
década de 1990, que procuram atuar na alteração da imagem da cidade através de uma
espetacularização de suas fachadas, projetadas através da publicidade para o mundo vi-
sando a inserção da cidade em circuitos globais de circulação de turistas e investidores,
e mais recentemente, de jovens profissionais urbanos de fácil mobilidade territorial su-
postamente atraídos por um meio urbano “vibrante”. Desde os projetos voltados para a
atração de mais turistas até estes mais recentes, vinculados à estratégia da cidade criativa
ligada a um argumento de desenvolvimento econômico a partir da atração de capital
humano pelos atributos do espaço urbano,5as estratégias giram em torno da necessida-

4 Sobretudo em função de seu pragmatismo marcante em relação a meios e fins, que em determinadas
circunstâncias (sendo as eleições o exemplo concreto mais significativo) ganha força decisiva em
campos que estejam em disputa.
5 Para a versão do autor do conceito, que também é o consultor-empresário que vende a estratégia para

149
de de alteração da imagem da cidade e desua promoção/inserção em circuitos globais
em formação e aprofundamento.
Do outro lado do espectro, a cidade, como laboratório aberto de possibilidades,
é um terreno fértil com intrínseca capacidade criativa de novos vetores políticos, econô-
micos ou culturais, onde se reinventam maneiras diversas de se lançar projetos de no-
vas aberturas emancipatórias. É pertinente o argumento de Amin e Thrift (2013) de que
novas aberturas políticas passam pela retomada da capacidade da esquerda de construir
realidades (world-making), no sentido da importância da produção de valores na esfera
simbólica como um ponto de partida para qualquer projeto de transformação social. Nos
exemplos usados por aqueles autores, tanto o movimento dos direitos civis nos EUA da
década de 1960 quanto as feministas de primeira onda na luta pelo sufrágio universal ti-
veram como pontapé inicial a cultivação de um terreno (moral e afetivo) de convenci-
mento e de criação da imagem concreta e possível do futuro desejado: uma sociedade
sem apartheid racial ou de gênero. A cidade é um ente potencializador dessa tarefa de
tecer alternativas concretas partindo da construção simbólica de mundos possíveis. Ou
como propõe a abordagem castoriadiana, trata-se de construir “significações sociais ima-
ginárias” (Castoriadis, 1982) que dão conteúdo e significado aos eventos e às possibilida-
des. As geografias são sempre “reais-e-imaginadas” (Soja, 1996), e a transformação dessa
invenção coletiva de um sentido subjetivo do real presente é fundamental na criação do
novo. Nesse sentido, surge a questão: Quais são os obstáculos para a realização desta(s)
potência(s) na metrópole brasileira contemporânea? A hipótese que se apresenta é que
a resposta para tal pergunta passa pela ligação entre processo urbano e neoliberalismo e
suas diversas operacionalizações e vetores sociopolíticos resultantes.
Argumento que esta subjetivação e construção de significados na metrópole con-
temporânea acerca de seu próprio conteúdo simbólico perpassam o neoliberalismo em
sentidos diversos e são fundamentais na sua reprodução. Grande parte destas significa-
ções são ideológicas – no sentido da criação instrumental de signos, valores e vetores
simbólicos em geral em função de finalidades objetivas de agentes bem definidos, seja no
âmbito do Estado ou do capital. No entanto, as formas com que elas ganham vida pró-
pria e se reproduzem podem se distanciar destas fontes e entram numa lógica do social
como produzido no cotidiano da vigilância do próximo, em que as pessoas se policiam
mutuamente, punindo o diferente e coibindo o surgimento de aberturas.6 A aglomeração

governos de centenas de cidades e regiões no norte global, ver Florida (2005). Para uma crítica deste
novo modelo de planejamento urbano neoliberal, ver Peck (2005; 2007).
6 Cunha et al. (2003) tratam da leitura lefebvriana de terrorista nessas linhas; e o conceito de abertura
como brecha desta reprodução cíclica no cotidiano através do espaço social é trabalhado por Lefebvre
(vida cotidiana no mundo moderno ano).

150
é um meio potencializador, seja na direção da reprodução perversa de vetores destruti-
vos,7 ou no caminho oposto, aumentando potências virtuosas, criadoras, produtivas. Esta
é uma orientação e uma preocupação fundamental no argumento aqui proposto: partin-
do deste pressuposto, trata-se de abordar o conjunto de questões em torno de como se
tornar a cidade menos propensa a produzir vetores causadores de sofrimento humano e
mais apta a alimentar sua inerente potência criadora de emancipações, liberdades, obras,
encontros e alegrias. É acompanhado desta operação que podemos chegar a uma pers-
pectiva pós-humanista e pós-antropocêntrica8 de forma mais plena, como resultado da
emancipação do conjunto de amarras e controles que promovem, inclusive,o distancia-
mento e a negação da natureza, através da reprodução de formas de ser e estar no mundo
vinculadas ao imperativo da produção e à esteira incessante do labor (em contraste com
o trabalho e a obra, como na perspectiva arendtiana). Atualmente esta é uma prática (que
corresponde a uma cosmovisão) que em termos efetivos é restrita a determinados grupos
que se afirmam como alteridades radicais em relação ao urbano-industrial, ao estatal e ao
hegemônico, como é o caso das populações indígenas – mas que constitui uma virtuali-
dade potente no contexto atual marcado pela profundidade urgente da crise ecológica. As
rachaduras evidenciadas e ampliadas na metrópole nos eventos de(sde)junho de 2013
apontam possibilidades de aumento no alcance, tanto subjetivo quanto concreto de tais
narrativas emancipatórias em novas bases, apontando para a produção contra-hegemôni-
ca de um espaço diferencial mais abrangente e aberto. Argumento que o neoliberalismo
urbano constitui um mecanismo reprodutor de condições que diminuem o potencial de
crescimento destas manifestações de alteridade.
Sob o neoliberalismo, o cidadão se torna o indivíduo maximizador de satisfações
pessoais sujeito a restrições orçamentárias e que faz cálculos de risco e retorno de acordo
com cada situação específica, tornando-se um empreendedor de si mesmo, incorporando
a empresa como um modo de condução (moral inclusive) do pensamento e da ação, sem
que exista espaço para a ação coletiva que não seja ligada a estruturas de escolha racional
com retornos em potencial envolvidos. O Estado e o mercado enviam sinais (alterando
estruturas de incentivo e desincentivo a determinadas ações e comportamentos) que este
sujeito interpreta e aprende a se adaptar a novas condições, criando a habilidade de en-

7 Um bom exemplo é a perspectiva da vida na metrópole como causadora de um aumento na frequência


de doenças mentais, de acordo com pesquisas recentes que abordam o caso da cidade de São Paulo como
particularmente agudo, em função da exposição a situações de vulnerabilidade ligadas a causas diversas de
risco aliada a fontes de pressão psicológica advindas do imperativo da competição (Andrade et al., 2012).
8 Como na obra de Bruno Latour e outros autores pós-estruturalistas e advindos da antropologia contemporânea,
como Eduardo Viveiros de Castro ou Tim Ingold, ou na perspectiva da biopotência contida no trabalho
imaterial para a constituição do comum na direção de uma alter-modernidade em Hardt e Negri (2009).

151
xergar oportunidades e se posicionar de modo a aproveitar essas oportunidades. O que
ocorre quando se aglomeram no espaço um conjunto grande e denso de agentes eco-
nômicos agindo de acordo com o cálculo individual utilitarista são alguns processos de
déficit de ação coletiva marcantes na metrópole contemporânea (tratados pela teorização
da economia neoclássica simplesmente como falhas de mercado ou externalidades que se
congestionam), sendo o engarrafamento no trânsito sua caricatura mais visível.
Trazendo uma ilustração de um contexto regulatório distinto, com outro pa-
drão de neoliberalismo em convivência com um Estado forte e outras características
histórico-geográficas, um trágico exemplo deste cidadão transformado no indivíduo
do cálculo utilitarista pelo Estado neoliberal levado às últimas consequências pode ser
visto em operação em alguns discursos no período imediatamente posterior ao furacão
Katrina na cidade de Nova Orleans em 2005. O próprio evento foi marcado por uma
visível ausência de ação coletiva nas preparações anteriores e reparações subsequentes,
engendrando uma forte desigualdade espacial, socioeconômica e racial em relação aos
impactos do desastre. Mas a proposta de prognóstico advinda de ideólogos neoliberais
para a ação do Estado no contexto imediatamente posterior revela preceitos em opera-
ção muito importantes para esclarecer a forma de governo que se almeja atingir, e em
cuja direção o neoliberalismo operando em menores escalas geográficas foi levando
a ação do setor público. Edward Glaeser (2005) talvez ofereça o mais característico
destes manifestos, conclamando que a solução mais eficiente para a reconstrução da
região, ao invés do governo reconstruir as áreas devastadas pelo desastre, seria o pro-
vimento de cheques ou vouchers para que as pessoas tivessem liberdade de escolha nas
soluções mais adequadas às suas vontades individuais. Ademais, argumenta Glaeser
(2005), em função de restruturações geoeconômicas diversas ao longo do tempo, que
tornaram obsoleta uma economia urbana historicamente formada em torno de ativi-
dades portuárias que já não eram tão significativas como no passado, aquela cidade era
marcada por uma ineficiência em termos de produtividade que poderia ser corrigida
através de um movimento migratório na direção de centros mais dinâmicos.
Esta é uma alteração importante na relação Estado-sociedade, na natureza do con-
trato social, e no formato de cidadania que altera direitos de acordo com uma lógica de
mercado. Como colocado por Dardot e Laval,

o desaparecimento de qualquer confiança em “virtudes” cívicas sem


dúvida engendra efeitos performáticos na forma com que os novos ci-
dadãos-consumidores atualmente enxergam suas contribuições no reco-
lhimento de impostos na direção de despesas coletivas e o “retorno” que
recebem em parâmetros individuais. Eles não são convocados a julgarem
instituições e políticas públicas de acordo com os interesses da comuni-

152
dade política, mas exclusivamente em concordância com seu interesse
individual. A própria definição do sujeito político se encontra radicalmente alte-
rada (Dardot; Laval, 2014, p. 254, grifos do autor).

Trata-se de uma mudança que corresponde a uma transformação no espaço so-


cial na direção da aplicação de princípios do mercado a outros domínios anteriormente
isolados de sua influência, que tem uma dimensão objetiva material que não opera sem
a construção de uma base simbólica-ideológica correspondente. Foucault (2008) inter-
preta esta tendência do neoliberalismo ao se inserir em dimensões da sociedade (e da
vida) a partir de uma alteração nos fundamentos e pressupostos em relação ao liberalismo
clássico. Nas palavras de um comentador,

o liberalismo clássico se baseou na lógica das trocas: o que Adam Smith


concebeu como a universal e humana “propensão às trocas e ao escambo
das coisas, umas pelas outras” (...) Mas de acordo com Foucault, o neo-
liberalismo é fundado numa lógica radicalmente nova: “uma mudança
das trocas para a competição no princípio do mercado... a coisa mais im-
portante a respeito do mercado é a competição, isto é, não a equivalência,
mas ao contrário, a desigualdade.” Para os neoliberais, “a competição, e
somente a competição, pode garantir a racionalidade econômica.”
Consequentemente, os neoliberais propõem uma nova imagem do
Homo Oeconomicus. Agora “ele não é um aliado das trocas”, mas “um
empreendedor de si mesmo... sendo ele mesmo seu próprio capital,
seu próprio produtor, a fonte de seus próprios ganhos”. Ao invés de
enxergar a economia política simplesmente como outra faceta de
uma paisagem social mais ampla, a lógica neoliberal enxerga todos os
fenômenos sociais como resultados dos cálculos econômicos e deci-
sões individuais dos atores individuais. Como Foucault argumenta, o
neoliberalismo “envolve, de fato, a generalização da forma econômica
do mercado. Envolve sua generalização por todo o corpo social, in-
cluindo o todo do sistema social geralmente não conduzido através,
ou sancionado pelas trocas monetárias”. Isto significa que todas as re-
lações e fenômenos sociais, sem exceção, “são analisados em termos
de investimento, custos de capital, e lucros... sobre o capital investido”.
Até tais coisas como “o casamento, a educação das crianças, e a cri-
minalidade” devem ser concebidas desta forma. A análise econômica
pode ser aplicada a qualquer conduta humana que “reage à realidade
de forma não aleatória”. Isto é, a lógica do mercado pode e deve ser
aplicada, de acordo com o dogma neoliberal, a todas as atividades hu-
manas e a todo o comportamento (Shaviro, 2010, p. 4).

Ou, na perspectiva de Dardot e Laval (2014), autores que trabalham a partir das
elaborações foucaultianas acerca do neoliberalismo,

153
um novo discurso ressaltando o “risco” inerente na existência individual
e coletiva busca persuadir as pessoas de que os aparatos do Estado social
são profundamente nocivos à criatividade, à inovação e à autorrealização.
Se todos são responsáveis por seus destinos, a sociedade não deve nada
a ninguém. Todos devem constantemente se provar como merecedores
das condições de sua existência. A vida é uma gestão de risco perpétua,
autocontrole constante, e uma regulação do comportamento de si mes-
mo que mistura ascetismo e flexibilidade. A palavra-chave da sociedade
de risco é “autorregulação” (Dardot; Laval, 2014, p.167).

Em Foucault (2008), a biopolítica representa uma forma de governo baseada no


controle da população, que no neoliberalismo se define a partir de uma autolimitação do
próprio Estado para abrir espaço para que o mercado atue, mas de uma forma mais sofistica-
da, em que a governamentalidade se torna uma atividade de governar a conduta das pessoas
utilizando-se do instrumento do Estado. Hardt e Negri (2005, p. 22) interpretam o biopoder
como um aprofundamento da sociedade disciplinadora (uma primeira fase de acumulação
de capitais através dessa forma de poder, centrada na indústria, da qual o fordismo foi a mais
alta expressão), cuja genealogia é analisada por Foucault em Vigiar e punir, na direção de uma
sociedade de controle: o biopoder é uma forma de poder que regula desde dentro, que todo
indivíduo incorpora, sendo que a produção e a reprodução da vida em si são agenciadas no
poder.9 O controle do desejo se torna central neste dispositivo de poder:

Desde a idade clássica do disciplinamento, o poder não pode ser exerci-


do através da simples coerção sobre um corpo. Ele deve andar de mãos
dadas com o desejo individual (...). Isto assume que ele entra no cálculo
individual; que ele até participa neste cálculo; agindo nas antecipações
imaginárias dos indivíduos: fortalecer o desejo (através de recompensas),
enfraquecê-lo (através de punições), desviá-lo (substituindo objetos).
Esta lógica, que consiste na definição indireta da conduta, é o horizonte
das estratégias neoliberais para promover a “liberdade de escolha” (Dar-
dot; Laval, 2014, p. 169).

Acerca do controle da vida em si, Foucault (2008, p. 312-315) interpreta que sob o
neoliberalismo a produção de seres humanos se torna a produção de capital humano, sendo
o tempo dedicado pela mãe um tempo de treinamento e capacitação para potencializar tal
capital biológico, antecipando um mercado de genética que vá atuar nessa produção. Segundo

9 Gilles Deleuze (1992) trabalha com a ideia de sociedade de controle, partindo da abordagem foucaul-
tiana acerca do disciplinamento para sua sofisticação em formas contemporâneas de controle em que a
fábrica (disciplinadora; organizada no formato do molde) é substituída pela empresa: um ente modula-
dor, uma alma.

154
Foucault (2008, p. 334-335), este é o ápice da generalização do homem econômico para todo
o corpo social, sendo um investimento (tempo da mãe com o filho) que provê retorno (renda
futura do filho; utilidade simbólica para a mãe). Na interpretação de Dardot e Laval,

o termo “governamentalidade” foi introduzido [por Foucault] para se re-


ferir às múltiplas formas de atividade através das quais seres humanos,
que podem ou não ser membros de um “governo”, buscam conduzir a
conduta de outros seres humanos – isto é, lhes governar. Pois o Estado,
longe de contar exclusivamente com o disciplinamento para acessar o ser
mais internalizado dos indivíduos, tem como objetivo final atingir o au-
togoverno por parte do próprio indivíduo, ou seja, produzir certa forma
de relacionamento consigo mesmo. (...) Governar é, portanto, conduzir
a conduta dos seres humanos, especificando que esta conduta pertence
tanto ao próprio indivíduo quanto aos demais. Por isso o governo requer
a liberdade como uma condição de possibilidade: governar não é somen-
te governar contra a liberdade, ou apesar dela; é governar através da liber-
dade – isto é, explorar ativamente a liberdade permitida aos indivíduos
para que eles conformem por si mesmos a certas normas de seu próprio
acordo (Dardot; Laval, 2014, p. 5).

Aqueles autores argumentam que essa análise permite refutar a simples oposição
entre Estado e mercado, que constitui uma das principais barreiras a uma definição preci-
sa do que é o neoliberalismo. Reitera-se que esta ação do Estado garante as bases sobre as
quais o mercado pode atuar, crescer e aprofundar sua presença no tecido social – o que
abrange um amplo espectro de ações proativas do Estado (nada mínimo nesta garantia
de condições de produção e extração de valor), desde o aparato jurídico-regulatório até a
reiterada acumulação primitiva (que Harvey (2004) propõe como “acumulação por es-
poliação”) constantemente repetida e renovada através da produção do espaço. O neoli-
beralismo é, assim, um modo de governamentalidade que institui uma concepção jurídica
por dentro do capital e das relações de produção, ligado a uma subjetividade que se opera
no autodisciplinamento dos indivíduos a partir das intenções operacionalizadas dessa for-
ma de governo. Dardot e Laval defendem que, “longe de pertencer a uma ‘superestrutura’
destinada a expressar ou limitar o econômico, o jurídico pertence às relações de produção desde
seu início, pois ele informa o econômico por dentro” (Dardot; Laval, 2014, p. 10, grifo do
autor). Há, portanto, uma complementaridade inseparável entre o simbólico/ideológico,
o econômico e político (capturado pelo Estado), sendo que

continuar acreditando que o neoliberalismo pode ser reduzido a uma


mera “ideologia”, uma “crença”, uma “mentalidade” que os fatos objetivos
seriam suficientes para dissolver, assim como o sol dissolve as nuvens da
manhã, é de fato confundir o inimigo e condenar à impotência a si mes-

155
mo. O neoliberalismo é um sistema de normas hoje profundamente ins-
crito nas práticas de governo, políticas institucionais e estilos de gestão.
Adicionalmente, deve-se ressaltar que este sistema é resistente ao ponto
de atingir muito além da esfera da mercadoria e das finanças onde o ca-
pital dita as regras. Ele efetiva uma extensão da lógica de mercado para
muito além das fronteiras precisas do mercado, notavelmente gerando
uma subjetividade “responsável” ao sistematicamente criar competição
entre os indivíduos (Dardot; Laval, 2014, p. 14).

A subjetivação exercida no espaço social do neoliberalismo se torna uma prática


cotidiana real impregnada e orientada por uma sintonização a sinalizações que partem do
Estado na direção de criar uma autoconduta individual que seja coerente com a primazia
do mercado (“não há proteção social, prepare-se para se inserir como empreendedor in-
dividual”; “não há serviços públicos ou estruturas de uso coletivo confiáveis, resolva seus
problemas através do mercado” etc.) e que faça com que os indivíduos incorporem e ge-
neralizem os cálculos utilitaristas de custo e benefício; risco e retorno, naturalizando-os no
seu comportamento cotidiano. Ou seja, cria-se uma cultura. E esta não se limita ao imagé-
tico, imaginado, simbolizado10 (mesmo que estes ingredientes sejam fundamentais), mas
se traduz em práticas concretas num amplo leque de esferas da sociabilidade, abrangendo,
como colocado acima, desde o casamento e a criação dos filhos até as relações de amizade
e o lazer. No diálogo com a perspectiva lefebvriana, atua-se no plano do espaço social, da
esfera simbólica no espaço vivido, que não é nem o espaço percebido na prática, nem o
espaço concebido nos planos urbanos, nos mapas, nas representações do espaço, mas a
rede de significados sociais e o plano simbólico entrecruzados com o espaço.
Há, portanto, uma ligação entre os sentidos da cidade contemporânea com a prima-
zia do mercado e do Estado agindo em função do agenciamento das condutas individuais.
O neoliberalismo canaliza as potências do urbano para o mercado e neste processo há um
direcionamento das potencialidades para o mercado: aquilo que não entra no mercado, que
não é mercantilizável, deixa de ser potencializado, deixa de florescer. As políticas de incentivo
à cultura são um bom exemplo de tentativas de lidar com este problema no domínio da pro-
dução cultural, que corresponde a uma fração da sociedade com poder de mobilização para
conseguir efetivar tal linha de fuga através de uma ligação direta com o Estado. Mais recen-
temente, outra saída buscada por estes grupos diretamente ligados à produção cultural é o
direcionamento dos esforços na construção do comum, sendo as ocupações urbanas outro
exemplo de ação direta visando escapar ao imperativo da solução para a questão da habita-
ção popular através do mercado (subsidiado por parcerias público-privadas). No entanto, há
um amplo leque de outras atividades, produções e agenciamentos que permanecem sujeitos

10 E muito menos à produção artístico-cultural.

156
a esta imposição, portanto, apontando para potenciais de ampliar o leque deste tipo de ação
como resposta à neoliberalização da metrópole. Assim como a metrópole contemporânea
se reproduz através de mecanismos que interligam a produção social do espaço à dimensão
simbólica sintonizada a padrões hegemônicos, a alteração deste quadro passa necessaria-
mente por uma transformação no plano simbólico em sua interseção com a produção do
espaço na metrópole. Negando-se o imperativo do mercado como única saída possível, e
remobilizando a ideia do que constitui a cidade em sintonia com sua capacidade criadora
inerente para muito além dos vetores utilitaristas mercantilizáveis, atua-se na construção de
uma esfera simbólica com potenciais políticos significativos.

A internet e o direito à cidade:


questões acerca do início de uma relação

Esta segunda seção propõe levantar questões acerca do cruzamento entre internet e metró-
pole a partir do quadro delineado acima, e da hipótese de que as erupções de junho de 2013
foram resultados justamente deste encontro, tendo sido canalizados através do espaço social
agenciado e mobilizado eletronicamente. Traçar uma breve genealogia da produção social
do ciberespaço na metrópole brasileira é um primeiro passo importante na direção da aná-
lise de seus efeitos sobre a cidade. A internet intensifica sua presença no espaço social nos
últimos anos a partir da ampliação do acesso aos equipamentos necessários para tal, e às tec-
nologias digitais, na generalização recente das redes sociais anteriormente restritas a círculos
menores, mais específicos, de usuários. A ampliação e o aprofundamento do espaço digital
em interface com o urbano traz consequências para este, abrindo um campo de possibilida-
des de ação, bem como uma agenda de pesquisa, e invocando a necessidade de teorização
acerca das implicações desta relação para a produção do espaço urbano.
A partir da década de 1980, uma pequena subcultura urbana constituía-se no Brasil
em torno do agrupamento de usuários de computadores pessoais, na troca e na reprodu-
ção de softwares piratas e jogos eletrônicos (que a tecnologia digital permitiria realizar sem
limites físicos pela primeira vez), bem como no compartilhamento aberto de conhecimen-
to técnico aplicado na manutenção de máquinas, na instalação e elaboração de softwares
etc. O início da década seguinte traz alguns progressos tecnológicos importantes que per-
mitem a interligação dos computadores em redes, que através do surgimento do modem
poderia ser feita através das linhas telefônicas. O acesso às primeiras redes locais que per-
mitiam esse tipo de interligação telefônica entre computadores era feito através dos BBS
(Bulletin Board Systems), que eram softwares que organizavam as trocas de informações,
softwares e dados entre usuários. Além dos chats, dentre as formas de trocas de dados e
informações que este sistema permitia, estava o newsgroup, que era um fórum de discussão

157
aberta de assuntos diversos. Os provedores de acesso a estes serviços eventualmente seriam
os primeiros ofertantes de acesso à internet no Brasil – num primeiro momento somente
aos provedores de e-mail (em 1993 em São Paulo), e posteriormente à World Wide Web
(espalhando pelo Brasil em 1995), que viria a substituir as redes locais através do acesso
direto ampliado que elas mesmo proviam à grande rede interligada mundialmente.
A partir da interligação das comunidades localmente organizadas nas BBS atra-
vés do acesso que a rede mundial permitia, os newsgroups se interligavam nacional e glo-
balmente. A plataforma utilizada para a construção dessa ferramenta era a Usenet, rede
que já era usada em universidades norte-americanas desde o início da década de 1980 e
que tem seu acesso interligado à Web na década seguinte. A criação ilimitada de fóruns
temáticos separados por país, língua e assunto permitiu o surgimento de um espaço de
discussões que promovia um encontro entre usuários de forma completamente horizon-
tal, sem a necessidade de autoridades exercendo funções centralizadas de controle (com
a exceção de moderadores com capacidades de exclusão de mensagens e de usuários, e
que eram convocados em situações de desrespeito e abuso). A ferramenta complementar
de comunicação e interação entre usuários era o chat, também anteriormente limitado às
redes locais, e que com a internet ganha escala mundial, mas quase sempre se delimitando
às comunidades de mesma língua, e que tem um histórico de alcance muito mais amplo
que os newsgroups, sendo frequentemente dividido em diversos canais de acesso. Neste
momento, começa a aparecer um código próprio dos usuários mais assíduos das redes,
uma etiqueta, uma série de termos e gírias específicas, e um conhecimento detalhado so-
bre sua geografia virtual cujos caminhos aprofundavam seu alcance, suas ramificações e o
grau de especialização destas. Também neste período a rede começa a servir como ponto
de encontro e trocas para subculturas e grupos sociais distintos já anteriormente consti-
tuídos e que enxergam uma oportunidade de ampliar os canais de diálogo através dos no-
vos sistemas interligados digitalmente. Isso ocorre na década de 1990, tanto no ambiente
dos chats (através da sua organização em canais de interesse para conversa sobre assuntos
específicos) quanto nos grupos de discussão da Usenet, que no Brasil se consolidava nos
newsgroups do Universo On-line (UOL), e abrangiam 525 fóruns on-line de temas diver-
sos, desde economia, esportes, política e cultura (com ramificações e sub-ramificações
focando em subdivisões específicas dentre estes guarda-chuvas maiores) até grupos orga-
nizados por cidades, regiões e comunidades de imigrantes estrangeiros. As listas de e-mail
também foram canais importantes de agregação de comunidades on-line, na maioria das
vezes de acesso aberto, e constituindo grupos de discussão e ação em torno de temas e
agremiações específicas, muito frequentemente usado por comunidades no meio da pro-
dução artístico-cultural e dentre acadêmicos, separados por campos de conhecimento,
com variados níveis e padrões de regionalização.

158
Outro formato de consolidação de uma comunidade própria da internet em inter-
ligação com agrupamentos existentes fora da rede e que utilizam das ferramentas on-line para
ampliar o alcance de suas trocas que surge no final dos 90 e cresce exponencialmente no
início da década de 2000 são os blogs. Jornalistas, poetas, escritores, críticos de música e
cinema, e a enorme massa de estudantes dos campos correspondentes compunham um
grupo que iniciavam suas próprias páginas independentes on-line e escreviam regular-
mente sobre temas diversos, fazendo surgir a figura do blogueiro. Muito antes de o forma-
to ser adotado pelas próprias empresas de mídia e por jornalistas de renome que passam
a atuar independentemente, ou com patrocínios diretos de partidos políticos ou grandes
empresas, os blogueiros criam uma grande constelação de canais de acesso independen-
te à informação disponibilizada e processada de formas diversas, permitindo também
que movimentos sociais, partidos políticos, e grupos diversos tenham seus próprios ca-
nais de comunicação com a internet como um todo, sem a necessidade de passar por
canais comerciais de difusão da informação (que muitas vezes criam um viés inerente,
não somente devido à vinculação frequente dos controladores dos grandes meios de
comunicação a grupos de interesse privado específicos, mas também devido à influência
exercida por grandes anunciantes no conteúdo dos jornais destes meios empresariais
tradicionais). Assim como nas ferramentas descritas acima, os blogs também constituí-
ram uma subcultura própria, com interfaces com dinâmicas situadas fora do espaço da
rede e que o utilizavam como suporte, mas conformando neste ponto de encontro um
código de práticas e valores típicos de um agrupamento social bem definido. Ademais,
são espaços de difusão que funcionam como as rádios independentes (nas favelas, por
exemplo), divulgando informações, relatos acerca de eventos diversos e fazendo jornalis-
mo independente e autônomo de forma geral.11 Outro aspecto importante que deve ser
levado em consideração em relação à blogosfera é que a presença da contracultura on-line
é marcante desde os primórdios das BBS descritos acima, e têm nos blogs um terreno
fértil para sua reprodução. Desde grupos vinculados à música criada por fora da indústria
cultural em sua vertente comercial principal (o chamado mainstream) até anarquistas de
tendências diversas utilizavam a internet como ponto de encontro para trocas de dados e
informações desde a primeira metade da década de 1990, promovendo eventos, encon-
tros de usuários de comunidades virtuais etc.,12 o que continua a ocorrer com estas novas
ferramentas, de maior alcance em potencial.

11 Não por acaso as rádios independentes tendem a ser severamente reprimidas pelas autoridades reguladoras
da mídia, jamais interessadas em criar formas de regulamentação que poderiam contemplar tais experiências.
12 No plano específico da política, ressalta-se que este caldo anti-establishment do mundo virtual não é e
nunca foi exclusivamente progressista e/ou vinculado a um pensamento de esquerda, sendo muitas
vezes povoado por grupos radicais situados no outro extremo do espectro político.

159
A expansão destas formas rizomáticas de agregação e encontro se dá tanto no cresci-
mento do próprio acesso às tecnologias por parte de contingentes mais ampliados quanto
no aumento do alcance de cada uma dessas formatações das ferramentas tecnológicas dis-
poníveis, que atingem grupos distintos, geralmente maiores que as primeiras interfaces que
surgiram nos anos de 1990 descritas acima. Outro aspecto significativo é que a liberdade de
expressão advinda da independência das redes cria canais de acesso irrestrito, tanto para os
difusores de mensagens quanto para seus leitores em potencial, o que possibilita uma aber-
tura para a utilização destes novos meios de difusão de informação por grupos que precisam
fazê-lo por fora dos meios tradicionais por motivos diversos. Desde os newsgroups em seus
primeiros anos no UOL, as discussões atingem níveis acentuados de aprofundamento em
função da presença de especialistas nos temas que muitas vezes debatiam entre si, em inte-
ração com o público mais amplo, e em temas mais interligados à política propriamente dita,
muitas vezes a figura do militante se fazia presente nos debates. Num primeiro patamar, a
internet recriava o espaço da praça pública onde se conversava sobre assuntos correntes que
afetavam a esfera pública e o comum de forma relativamente aberta (o que no interior jamais
deixou de existir), e que na escala da metrópole é substituída pelos jornais com suas diversas
barreiras à entrada, suas distorções, seu isolamento e sobretudo sua via de mão única nesse
trânsito da informação, que o público amplo recebe e reage somente em sua escala imedia-
ta. Inaugurava-se aí uma interseção discursiva com a esfera pública radicalmente aberta à
intervenção e à participação do público amplo, que se torna também ponto de encontro ali-
mentador de reciprocidades e com um enorme potencial latente de transbordamento para
o espaço fora dos computadores e suas redes. Este potencial é comercialmente explorado
por promotores de eventos e empresas visando nichos de mercado específicos, sendo que
sua vertente política permaneceria em fermentação por mais alguns anos. E se a discussão
em praça pública tinha significativas barreiras à entrada e sua própria forma de censura das
minorias e dos subalternos, a internet constitui um espaço mais aberto que propicia e fertiliza
os encontros internos a estes grupos e entre eles, gerando também um transbordamento
para o público amplo com consequências políticas virtuosas. O terceiro espaço comunitário
da sociedade de esquina, que cumpre um papel importante na sociabilidade urbana em pe-
quena escala (Whyte, 2005), transborda para o espaço digital de forma complementar ao
urbano, retroalimentando pontos de encontro e trocas mútuas que ocorrem nas ruas de for-
ma potencialmente autônoma, horizontal e altamente diversificada. Mas isso não acontece
sem reações de discursos machistas, homofóbicos, racistas, xenófobos, contra populações
indígenas, contra os pobres, dentre outros – também difundidos e articulados digitalmente,
e muitas vezes tendo alimentadores instalados nos meios de comunicação tradicionais. Este
tipo de atuação gera um efeito cascata em enorme escala na ação dos usuários/leitores que
replicam este formato de discurso no meio digital.

160
As redes sociais em seu formato atual surgem no início de 2004, se espalhan-
do rapidamente pela internet brasileira ainda naquele ano. Assim como os newsgroups e
as listas de e-mail anteriormente, elas se tornam um espaço de encontro entre ativistas e
o público geral, provocando um progressivo ganho de escala nesta interação, a partir da
combinação entre blogs e a divulgação viral/exponencial de textos nas redes, formatadas
tecnologicamente em padrões que facilitam o espalhamento de postagens em progressão
geométrica, possibilitando o alcance de públicos em escala inédita. As novas ferramentas
ampliam o raio de alcance das informações compartilhadas de forma orgânica, descen-
tralizada e horizontal, em que os agentes propagam informações exponencialmente, com
audiências sem limites de quantidade de visualizadores em potencial. Este é o dispositivo
que permitiu que a fermentação da conversa política na internet atingisse a escala atual-
mente vista, sendo que os blogs cumpririam um papel-chave neste contexto, por abriga-
rem textos maiores, repletos de informações que os usuários compartilhariam à enésima
potência. Durante os eventos de junho de 2013, ganhou destaque também o crescimento
de mídias descentralizadas, horizontais e em grande medida autônomas na cobertura di-
reta dos atos nas ruas, o que amplia em potencial a capacidade da rede de criar canaliza-
ções que passem por fora do controle dos meios tradicionais com alcance inédito, muitas
vezes divulgando amplamente, através de imagens gravadas ou em transmissão em tempo
real, eventos não difundidos pela grande mídia.
A profusão de redes distintas aumenta o grau de heterogeneidade da internet, bem
como sua capacidade de criação de rotas de fuga sem obstáculos significativos, como bem
evidenciam as inúmeras tentativas por parte da indústria fonográfica de cercear o compar-
tilhamento de arquivos de áudio on-line e as sempre bem-sucedidas saídas tecnológicas que
a comunidade de usuários dedicados a esta atividade cria de forma autônoma através da
simples produção de novas ferramentas. No entanto, em algumas situações tais aberturas
na direção da fuga de restrições impostas verticalmente não ocorrem facilmente. Além de
casos diversos de censura a determinados tipos de conteúdo, alterações nas tecnologias de
algumas redes sociais geram impactos importantes no padrão aberto, horizontal e rizomá-
tico das interações que se verificavam anteriormente, em função de um privilégio à difusão
do conteúdo em páginas pagas pelos usuários. Trata-se de alterações na configuração técni-
ca da rede que gera efeitos significativos nas interações entre usuários e no próprio caráter
horizontal e rizomático,geralmente presente nas redes, podendo diminuir consideravel-
mente o grau de alcance de publicações sem vínculos a fontes de renda que permitam pro-
movê-las. Outro fator preocupante para alguns ativistas que se articulam através de redes
sociais é o potencial de ligação de algumas dessas tecnologias com aparelhos de vigilância
e repressão de ações de protesto, inclusive em padrões ilegais de quebra de sigilo e acesso a
informações pessoais e trocas de mensagens privadas entre usuários, fazendo surgir a dis-

161
cussão acerca da necessidade de se criar tecnologias autônomas que continuem na lógica
(incontrolável, em função da natureza descentralizada da própria rede) de criação de rotas
de fuga, buscando evitar que estes padrões verticais e autoritários surjam em tentativas de
vigilância, manipulação e ordenamento, bem como de extrair valor das redes.
O ponto a ser destacado no argumento proposto é que as aberturas para novos
vetores no espaço social surgem a partir da interação entre as redes e a cidade, em que es-
tes dois domínios se complementam e se retroalimentam criativamente. Não se trata de
propor que a internet em si crie potenciais, mas que seu entrecruzamento com o urbano
engendre transformações importantes em ambos. A partir deste quadro proponho três
transbordamentos em potencial com algumas manifestações concretas já evidenciadas
deste valor de uso complexo consolidado nas redes eletrônicas na direção da produção do
espaço urbano com possíveis consequências para os embates em torno do direito à cidade:

A internet e o sinoicismo urbano


O sinoicismo inerente à cidade – nos termos de Soja (2000), “o estímulo gera-
do pela aglomeração”, ou seja, a capacidade criadora que a própria cidade carrega em si
e reproduz histórica e socialmente – é um atributo urbano que ganha potência em sua
interação com as redes eletrônicas. Trata-se fundamentalmente de duas aglomerações de
pessoas e informações em circulação que compartilham de algumas características im-
portantes: são entes agregadores, produtores de encontros e conflitos, criadores de dife-
renças e de possibilidades de afirmação, que promovem o espaço para o debate aberto, e
potencializam a criação em si (seja em vetores capturados pela lógica da mercadoria ou
aqueles que vão na direção da obra). O encontro da internet com a cidade resulta num
efeito multiplicador em ambos, pois eles interagem se retroalimentando, tendo seus veto-
res de criação e expansão potencializados um pelo outro.
Diversos foram os eventos da cidade que surgiram em função da internet nos últi-
mos anos: desde o retorno dos blocos de carnaval de rua em algumas cidades, até eventos
político-culturais como a Praia da Estação em Belo Horizonte,13 as bicicletadas e massas
críticas de cicloativistas, dentre outras formas de transbordamento das redes na direção
das ruas. Mas o ápice maior de todos estes acontecimentos foram as manifestações pós-
-junho de 2013, que tiveram um ponto de partida ignitor fora das redes, na ação de mo-
vimentos sociais específicos, mas ganharam escala e se tornaram o evento multitudinário
que vivenciamos em função da capacidade compartilhada e mutuamente reforçadora da
metrópole e da internet de fazer multidão. Daí a heterogeneidade marcante da rede, que é
também a diferença própria da metrópole, caracterizada por colorações políticas distintas

13 Ver Souza (2013).

162
em interseção com classe, mas também com sexualidade, etnia, gênero, lugar e em formas
distintas de estabelecer relações com a natureza.
Ángel Rama (1985) propõe a ideia da cidade letrada como um conjunto de ato-
res articulados em atividades de produção intelectual engendrando um construto social
particularmente forte na constituição histórica do fenômeno urbano na América Latina.
Por um lado, os letrados urbanos cumpriram um papel essencial nas diversas rodadas de
colonização e modernização conservadora do território de forma intensamente articulada
com os países de centro e estabelecendo estreitas ligações com o poder, articulando legiti-
mações da ordem estabelecida através do agenciamento duplo do campo da cultura e das
artes com o direito e as instituições. Por outro, fortaleciam circuitos situados no plano da
alteridade urbana que afirmavam oposições e resistências aos projetos hegemônicos. Neste
campo da subjetividade em disputa no contexto contemporâneo acidade letrada entra em
cena de forma renovada, pois agora se encontra potencialmente liberada das amarras de
suas relações anteriores com o poder ou com certa prática jornalística e de produção artís-
tico-cultural, utilizando a internet como uma plataforma de ligação direta com o público
amplo, fazendo surgir uma série de figuras-chave inseridas neste meio da cidade das letras
atuando de forma independente e intensa nas redes eletrônicas sem a mediação da grande
mídia. Ou seja, potencializa-se também o contato direto entre a produção intelectual e o
público amplo, o que envolve consequências neste campo de subjetividades em disputa.

A internet e o comum
A lógica de acessibilidade da biblioteca pública, um padrão de organização que
provê acesso gratuito a determinado serviço de forma aberta e irrestrita a todos, pode ser
encontrada na internet em diversas partes, de forma descentralizada, horizontal e orgâni-
ca. Seja nas práticas que desafiam as legislações de direitos autorais vigentes nos down-
loads de arquivos de áudio (que nada mais é que a antiga cópia de fitas cassete em escala
ampliada e sem restrições físicas e geográficas), que criam um enorme acervo de acesso
irrestrito aos usuários; na construção autônoma de enciclopédias on-line cujos autores são
os próprios usuários; na confecção de softwares livres por comunidades virtuais de desen-
volvedores/usuários que não somente são disponibilizados gratuitamente, mas perma-
necem em constante desenvolvimento por parte dos próprios utilizadores, ou em outros
domínios de disponibilização de textos, imagens, sons e vídeos feitos e compartilhados
pelos próprios usuários para o público em geral, a internet cria o comum constantemente
e produz insumos inúmeros para sua produção e difusão fora do ambiente digital.
A divulgação aberta de um amplo catálogo de conhecimento aplicado on-line, lança
no âmbito do comum um enorme estoque de informações anteriormente de acesso restri-
to e que se torna patrimônio do público amplo. De forma geral, tais informações, anterior-

163
mente restritas a círculos específicos e de acesso controlado e restrito – somente conhecíveis
depois de rituais de iniciação aos grupos que produzem e protegem tais conhecimentos –,
tornam-se crescentemente disponíveis ao público amplo, o que ocorre também em outros
domínios diferentes, passando a abranger também a própria atuação política em sentido am-
plo, democratizando e ampliando o acesso à informação anteriormente restringida a deter-
minados grupos bem definidos.14 O mesmo se aplica à produção de conhecimento, ainda
sujeito a restrições de acesso em função dos periódicos científicos profundamente mercanti-
lizados pelas grandes editoras (sobretudo no circuito acadêmico do mundo anglófono), mas
onde surge toda uma rede de blogs, aulas e seminários disponibilizados on-line, plataformas
de compartilhamento eletrônico de conteúdo etc. Um bom exemplo são as redes on-line de
pesquisadores e acadêmicos, onde autores compartilham sua produção intelectual direta-
mente com outros usuários e o público em geral – o que já engendrou conflitos diretos com
os periódicos detentores de direitos autorais de muitos artigos disponibilizados por seus au-
tores. Mas talvez seja a Wikipédia15 o exemplo mais rico do potencial de criação de um bem
comum do conhecimento aberto ao acesso e à colaboração descentralizada e horizontal por
parte de todos, talvez sendo a maior experiência coletiva de criação colaborativa (e de frutos
abertos à apropriação irrestrita de todos) da história.
Ou seja, há na internet uma tendência de criar o comum, de fazê-lo crescer, que
necessariamente transborda para fora da rede e dos computadores, trazendo potenciais
resultados na cidade. O que aparece como obstáculo, a rede tende a colocar em evidência
e a se afirmar contra, construindo rotas de fuga e formas (muitas vezes baseadas em sim-
ples mecanismos tecnológicos) de driblar estas tentativas de reafirmação do cerceamento,
da privatização e da exclusividade mercantilizada. O conflito com o poder no espaço não
virtual se dá muitas vezes em função deste transbordamento e da tensão resultante entre
regras e forças que atuam na manutenção de estruturas e o comum em construção, que
tende a atropelar, desrespeitar, ignorar e escapar de tais tentativas de enquadramento.

14 O que pode inclusive constituir um risco para alguns destes grupos, auxiliando a ação de aparatos de
vigilância e repressão em contextos onde eles são acionados por governos visando restringir determinadas
formas de ação política. Outro problema é o transbordamento de discussões internas a alguns destes
grupos para o público amplo em função da utilização das plataformas eletrônicas como meio de condução
das interações – sendo que partidos políticos se tornam especialmente vulneráveis a este risco.
15 Que apresenta uma variação de conteúdo ainda muito significativa de acordo com a língua de utilização
(justamente em função da quantidade e assiduidade de seus colaboradores).

164
A internet e a democracia radical
A rede provê territórios que multiplicam as possibilidades de encontros importan-
tes no campo da busca pelo aprofundamento do processo democrático:16 dos movimen-
tos sociais uns com os outros, dos movimentos com outras organizações, e destes com a
sociedade civil em geral. Expõem-se plataformas, reivindicações e, sobretudo, processos de
exclusão e de injustiça que permaneceriam escondidos, ou de cobertura restrita aos meios
independentes. Os mecanismos que impedem a realização da democracia verdadeira ga-
nham exposição e são revelados para um público potencialmente mais ampliado. As pos-
sibilidades de se canalizar formas de participação eletronicamente também são interminá-
veis. Tentativas parciais e instrumentais deste tipo de participação através da internet – vi-
sando substituir o acalorado e imprevisível espaço de debate presencial – já foram tentadas
no nível da administração municipal em algumas grandes cidades brasileiras, no formato
do orçamento participativo digital. No entanto, se realizado de forma complementar aos
espaços presenciais de participação, os meios eletrônicos podem gerar um efeito positivo
muito significativo na ampliação e no aprofundamento dos canais de participação.
Para além e para fora deste ponto de vista institucional, a rede potencializa tam-
bém o crescimento da democracia fora do Estado e da estrutura partidária institucional,
na ampliação de um corpo crítico independente, seja através dos movimentos sociais
(em novas rodadas renovadas de mobilização) ou de outras formas mais autônomas
e horizontais de reivindicação e construção política, na direção da democracia radical
contra o Estado como um processo dinâmico e criador de possibilidades transformado-
ras tal qual aclamada por Abensour (1998). A reconstrução da esfera pública em novos
formatos como saída para o aprofundamento da simbiose capital-Estado promovida
pelo Estado forte neoliberal é um tema transversal aglutinador das reivindicações e afir-
mações construtivas advindas desta massa crítica da democracia radical, que têm na
internet um ponto de encontro e mobilização com grande potencial.

Considerações finais

Este é um cenário renovado no que diz respeito às condições do embate pelo direito
à cidade. Os encontros descritos nos parágrafos anteriores se complementam e cons-
tituem uma potente base para a mobilização de estratégias voltadas para o direito à
cidade neste novo contexto. No entanto, eles ainda não se demonstraram suficientes.

16 A perspectiva de democracia radical e autonomia a que referimos aqui não se reduz a uma linha específica
dentro desta orientação normativa, mas advém de diversos autores: Castoriadis (1982) e sua aplicação
prática ao planejamento urbano em Souza (2002); Abensour (1998); e Santos (2002).

165
A força da mídia tradicional permanece muito pouco abalada, e as dificuldades do
transbordamento da fermentação que ocorre na internet para fora das redes ainda são
impositivas, apesar da magnitude dos eventos de 2013.17 Mas trata-se de um caminho
iniciado e anunciado, que não pode se pautar somente no comum (por retirar qual-
quer resistência diante dos projetos que visam aprofundar a simbiose capital-Estado)
e nem somente em torno da reconstrução radicalmente democrática do público (que
ignoraria o potencial de todos estes novos vetores autônomos construtores de reali-
dades fora do Estado e transversalmente interligados pelo comum), sendo justamente
o encontro do direito à cidade com o comum e a democracia radical o ponto de pos-
sibilidades mais férteis no atual contexto.
Se a produção de subjetividades visando a autoconformação de uma raciona-
lidade própria acompanhada de um autopoliciamento dos indivíduos é uma base im-
portante do neoliberalismo, as respostas devem vir necessariamente (embora não ex-
clusivamente) nestes mesmos termos, na subjetivação construtiva de racionalidades
e afetos outros, não baseados na competitividade e na conduta de si de acordo com
preceitos empresariais aplicados a todos os domínios da vida, mas na cooperação, na
colaboração, na retomada do público e na construção do comum e da democracia
radical a partir de uma lógica diametralmente oposta àquela da generalização socioes-
pacial do mercado, da empresa e do indivíduo do cálculo utilitarista (Dardot; Laval,
2014, p. 320-321). A internet vem possibilitando a criação de um campo que pode vir
a atuar justamente nesta direção da construção de outros sujeitos a partir de um plano
simbólico distinto e oposto àquele da competição e do imperativo da inserção na lógi-
ca de mercado, com transbordamentos e novos afloramentos possíveis que alteram as
condições dos devires políticos na metrópole contemporânea. Mas não sem disputas
com polarizações hegemônicas que visam dominar também seus territórios ou por
parte do ultraconservadorismo que também utiliza estas novas ferramentas na propa-
gação molecular e silenciosa de seus posicionamentos, cujos resultados políticos já se
fazem visíveis e concretos, partindo de agenciamentos no formato do microfascismo

17 Além, é claro, dos riscos destes novos movimentos multitudinários, ao deixarem de fazer a passagem
a uma fase mais organicamente estruturada de transformações, criarem vetores que reforcem poderes
conservadores e autoritários simplesmente substituindo autoritarismos antigos por novas formas,
como foi o caso do desenrolar de alguns eventos da primavera árabe. Ainda há uma efemeridade
marcante nestes movimentos multitudinários posteriores à Primavera Árabe (que constitui, sobretudo
no sul global, uma fase pós-fórum social mundial, com muitos paralelos àquelas experiências), que
todavia operam na tentativa de construir transições na direção de segundos passos para além das
acampadas, dos ocupas, das manifestações de rua, como as assembleias populares e horizontais e
seus resultados ainda tímidos atestam. As ocupações urbanas atuais são um exemplo do potencial do
transbordamento produtivo destes novos vetores.

166
como descrito por Deleuze e Guattari, que também se faz presente de forma decisiva
nas sociabilidades do espaço digital.18
Em termos mais amplos, torna-se necessário também pensar as implicações do
fortalecimento do espaço digital a partir da perspectiva lefebvriana da produção do es-
paço. Qual a natureza deste espaço digital (distinto do que Lefebvre trata como virtual) a
partir das categorias lançadas por Lefebvre (1974), como espaço absoluto, histórico, abs-
trato, contraditório e diferencial? Como ele interage com os demais? Lançamos apenas
algumas reflexões preliminares acerca de implicações da expansão e do aprofundamento
deste espaço sobre o espaço socialmente produzido, que demandam maiores esforços de
pesquisa e teorização e abrem algumas possibilidades para o pensamento crítico acerca da
produção do espaço na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS
ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado: Marx e o momento maquiaveliano. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998.
AMIN, Ash; THRIFT, Nigel. Arts of the political: new openings for the left. Durham: Duke University Press, 2013.
ANDRADE, L.H. et al. Mental disorders in megacities: findings from the São Paulo Megacity Mental He-
alth Survey. PLoS ONE, v. 7, n. 2, p. e31879, 2012. Disponível em: <http://www.plosone.org/article/in-
fo%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0031879>. Acesso em: ago. 2014.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CUNHA, A. et al. O terror superposto: uma leitura lefebvriana do conceito de terrorismo e suas relações
com o mundo contemporâneo. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 5, n. 2, 2003.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. The new way of the world: on neoliberal society. Nova York: Verso, 2014.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: ____. Conversações. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1996. v. 3.

18 Nos termos daqueles autores, “o conceito de Estado totalitário só vale para uma escala macropolítica
(...) Mas o fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro,
em interação, antes de ressoarem todos juntos no Estado nacional-socialista. Fascismo rural e fascismo
de cidade ou de bairro, fascismo jovem e fascismo ex-combatente, fascismo de esquerda e de direita,
de casal, de família, de escola ou de repartição: cada fascismo se define por um microburaco negro,
que vale por si mesmo e comunica com os outros, antes de ressoar num grande buraco negro central
generalizado. (...) É uma potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo perigoso, porque é
um movimento de massa: um corpo canceroso mais que um organismo totalitário. O cinema americano
mostrou com frequência esses focos moleculares, fascismo de bando, de gangue, de seita, de família, de
aldeia, de bairro, de carro e que não poupa ninguém” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 92).

167
FLORIDA, Richard. Cities and the creative class. New York: Routledge, 2005.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GLAESER, Edward. Should the government rebuild New Orleans or just give residents checks? The Econo-
mists’ Voice, v. 2 n. 4, 2005. Disponível em: <http://are.berkeley.edu/~ligon/Teaching/EEP100/glaeser05.
pdf>. Acesso em: ago. 2014.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Harvard University Press, 2009.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
MAGALHÃES, F. N. C.; TONUCCI, J.; SILVA, H. Valorização imobiliária e produção do espaço: novas
frentes na RMBH. In: MENDONÇA, J.; COSTA, H. (Org.). Estado e capital imobiliário: convergências atu-
ais na produção do espaço urbano brasileiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2012.
PECK, Jamie. Struggling with the creative class. International Journal of Urban and Regional Research, v. 29,
n. 4, 2005.
PECK, Jamie. The creativity fix. Eurozine – Fronesis, v. 24 n. 1, 2007. Disponível em: <http://www.eurozine.
com/articles/2007-06-28-peck-en.html>. Acesso em: ago. 2014.
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participati-
va. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SHAVIRO, Steven. The “bitternecessity”of debt: neoliberal finance and the society of control. Mimeog. 2010.
Disponível em: <http://www.shaviro.com/Othertexts/Debt.pdf>. Acesso em: ago. 2014.
SOJA, Edward. Thirdspace. Journeys to Los Angeles and other real-and-imagined places. Oxford: Blackwell, 1996.
SOJA, Edward. Postmetropolis. Critical studies of cities and regions. Oxford:Blackwell, 2000.
SOUZA, Marcelo L. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
SOUZA, Marcos Felipe Sudré. A festa e a cidade: experiência coletiva, poder e excedente no espaço urbano.
Letra Capital/Anpur, 2013.
WHYTE, William Foote (1943). Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degra-
dada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

168
A produção do espaço a partir de
Henri Lefebvre e a dimensão espacial
da ação política
Thiago Andrade dos Santos

Introdução1

Protestos populares como os de junho de 2013, no Brasil, trazem à pauta a chama-


da “problemática urbana” e com ela a luta de classes, pois, na contemporaneidade, os
trabalhadores urbanos estão no centro do processo de acumulação, e as metrópoles
são a materialização das relações sociais de produção. Tais protestos revigoraram o
pensamento dialético e mostraram que o espaço não é um mero palco para a ação po-
lítica. Nesse sentido, torna-se importante a reflexão acerca das (im)possibilidades de
emancipação social a partir desses protestos, levando em consideração a centralidade
da crítica da economia política do espaço desenvolvida por Henri Lefebvre. Penso,
portanto, que um retorno a aspectos mais teóricos seja salutar nesse momento em que
ainda se busca compreender algo tão significativo.
Embora muitos pesquisadores, em suas análises, já tenham retomado diversos
pontos da teoria lefebvriana, ratifica-se aqui a importância do retorno a Henri Lefebvre
para as ciências sociais e humanas e para a possibilidade de romper a alienação na contem-
poraneidade, pois seus estudos ainda mostram-se imprescindíveis para a compreensão e
crítica do mundo moderno. As palavras escritas por Lefebvre são minuciosamente pen-
sadas para causar o estranhamento a um mundo que tenta se passar por inequívoco para
os olhos e para o pensamento. Seu projeto de transformação social, calcado na dialética

1 Esta pequena reflexão é parte integrante de um estudo mais amplo, a dissertação de mestrado do próprio
autor, que trata do processo de metropolização de Belo Horizonte.
marxiana, passa pelo desvendamento das contradições imanentes ao modo de produção
capitalista e chega à reapropriação da práxis social.
Conforme nos mostra Soja (1993), uma das mais importantes contribuições de
Lefebvre foi trazer a problemática espacial para o centro das análises do mundo contem-
porâneo, pensando o espaço como um meio indispensável para a manutenção de uma
hegemonia ou para a resistência e para luta contra hegemônica. Suas análises acerca de
temas como a urbanização e a produção do espaço nos convidam a desvendar as estratégias
que os grupos, indivíduos, instituições ou classes sociais constroem para se materializar
no espaço. Como nos diz Lefebvre (1991, p. 38, tradução nossa), “a prática espacial de uma
sociedade secreta o espaço desta sociedade” e “a prática espacial de uma sociedade é reve-
lada pela decifração de seu espaço”. Essas práticas espaciais, por sua vez, são a expressão da
dialética e conflituosa relação entre os espaços de representação e as representações do espaço,
que são munidos de diferentes lógicas, ritmos, necessidades e vontades. A tarefa de se pen-
sar a respeito das possibilidades de transformação social e das formas de manifestação da
dimensão política da sociedade no espaço passam, portanto, pela relação dialética entre
essas dimensões da produção do espaço apreendidas por Henri Lefebvre; o vivido, o con-
cebido e o percebido, e pelo estudo do espaço produzido a partir desses embates.
Dentro dessa perspectiva que articula a sociedade com o seu espaço social, o urba-
no, enquanto uma virtualidade possível (Lefebvre, 1999, p. 47), brota da realidade concreta
como uma possibilidade de emancipação social. O urbano é uma utopia que faz parte do
possível e se revela ao pensamento pelo método dialético. O possível, por sua vez, faz parte
do real e é isso que, essencialmente, distingue o urbano lefebvriano de uma pura abstração.
O urbano, então, surge no pensamento e na ação prática como uma utopia concreta que
está inscrita no real como a anunciação de um processo de transformação que talvez não
conduza a um fim determinado por uma mente iluminada, mas que seja a inspiração per-
manente que poderá conduzir os seres humanos ao fim da alienação. Para Lefebvre, o urba-
no é a manifestação do espaço diferencial que poderá nascer da superação do espaço abstrato,
o espaço do capital. A vida urbana, portanto, ainda não começou (Lefebvre, 2001, p. 108).
Enquanto a ideia que se tem de cidade e de metrópole faz referência a uma realidade
processual, mas concreta (prático-sensível), o urbano lefebvriano é um “objeto” em ato
e em potencial, portanto, inesgotável (Lefebvre, 2001, p. 111-112). Assim como propu-
seram os pintores surrealistas com suas obras que criticavam a falta de imaginação que
reinava no início do século XX, o urbano lefebvriano representa a busca pelo retorno da
utopia e da criatividade humanas que têm sido cerceadas dentro do modo de produção
capitalista. Porém, ao contrário daqueles, este não trata a utopia de modo abstrato, mas de
modo concreto e derivado de uma prática, a prática urbana. Nesse sentido, as possibilida-
des de emancipação social no espaço urbano devem ser analisadas pelo modo como as

170
diversas práticas que dele se apropriam e lidam com o tempo e com o espaço, ou seja, é
importante sabermos em que medida elas propõem outros tempos e outros espaços, mas
que não estejam vinculados à reprodução das relações capitalistas de produção.

A produção do espaço a partir de Henri Lefebvre

O pensamento de Henri Lefebvre traz uma proposta metafilosófica e possui elementos teó-
ricos que articulam temas como o cotidiano, a alienação, a cidade, o urbano, o rural, o capita-
lismo, as representações, as práticas espaciais, a linguagem, a ritmanálise, o espaço e o Estado.
As palavras escritas por Lefebvre são minuciosamente pensadas para causar o estranhamen-
to a um mundo que tenta se passar por inequívoco para os olhos e para o pensamento. Seu
projeto de transformação social passa pelo desvendamento das contradições imanentes ao
modo de produção capitalista e chega à ação teórica e prática. Lefebvre buscou, ao longo
de sua extensa obra, não perder de vista a totalidade dos processos sociais, evitando, assim,
análises fragmentadas. A fragmentação do pensar e do agir sempre foi combatida veemen-
temente por Lefebvre, de modo que, em sua abordagem, todos os conceitos e categorias de
análises convergem uns para os outros, pois tinha em conta que a realidade em si mesma não
é fragmentada. A fragmentação da realidade advém das formas como nós a interpretamos.
Para Lefebvre, o momento da produção do espaço mostra de forma mais cristalina o modo
como todos esses temas abstraídos da realidade concreta se relacionam.
De acordo com Carlos (2001, p. 11), “ao produzir sua existência, a sociedade pro-
duz, continuamente, o espaço”. O espaço, enquanto um conceito, possui sua faceta de abs-
trato, mas ganha concretude por ser o lugar de realização da vida humana e sua configu-
ração varia no tempo e no espaço (Carlos, 2001, p. 11). Ao levar em consideração o papel
central do espaço em qualquer sociedade e para qualquer modo de produção, Lefebvre,
munido da dialética imanente ao método progressivo-regressivo, buscou compreender o
momento contemporâneo. Esse método permite que pensemos o passado, o presente e
também o virtual como constituintes do movimento da totalidade social. Para entender-
mos a posição dominante exercida pela lógica do capital na sociedade contemporânea, é
necessária a compreensão do espaço produzido por ela, o espaço abstrato. O espaço abs-
trato surge da superação de um espaço sacralizado, metafísico e atribuído às divindades, o
espaço absoluto, no qual prevaleciam relações não necessariamente mediadas pelo dinheiro
e pela mercadoria. O espaço abstrato pode ser descrito como geométrico, ótico, fálico e
homogeneizante na aparência e fragmentado em sua essência. O espaço abstrato procura
se alojar em todas as dimensões da existência social como meio para atingir seu objetivo,
servir à reprodução ampliada do capital e do mundo das mercadorias. No capitalismo, o
próprio espaço é uma mercadoria produzida para a troca e as relações que o produzem

171
também assumem as formas fetichizadas e alienadas, assim como no processo de pro-
dução das mercadorias. A alienação, então, foi expandida do chão da fábrica para todo o
espaço social e isso se concretiza com a captura das vidas dos trabalhadores pelos rimos
e rituais do cotidiano, voltados para a produção, circulação e consumo das mercadorias.
Nessas estratégias, as cidades, que são os lócus privilegiados para o processo de acumula-
ção, tornaram-se verdadeiras unidades produtivas.
Conforme Lefebvre (1991, p. 285, tradução nossa), o espaço abstrato é “produto
de uma violência” (nem sempre física), “ele é político; instituído por um Estado, portanto,
institucional”. Nesse espaço, objetiva-se fazer aparecer uma coerência que reduza e sub-
meta a fluidez da dialética à rigidez da lógica formal. A espontaneidade do mundo e das
pessoas tem que pedir licença ou autorização para emergir e, assim mesmo, sob forte vigi-
lância. Na perspectiva de Lefebvre,

o espaço abstrato, que é um instrumento de dominação, sufoca tudo


o que é concebido nele e busca sair dele. Embora isso não seja uma
característica definitiva do espaço abstrato, não obstante, não há nada
secundário ou casual sobre essa tendência. Esse espaço é letal e destrói
as condições históricas que lhe deram origem, suas próprias diferenças
(internas), e quaisquer diferenças que dão sinais de desenvolvimento,
a fim de impor a sua racionalidade abstrata. A negatividade que o hege-
lianismo atribui à temporalidade histórica, sozinha, é fato característico
do espaço abstrato, e isso em um duplo sentido, ou melhor, operando
com força redobrada: isso se opõe a todas as diferenças atuais ou po-
tenciais (Lefebvre, 1991, p. 370, tradução nossa).

Esse espaço é voltado para a (re)produção das relações de produção, assim como para
a reprodução das forças produtivas. Para esse fim, Lefebvre aponta a função da espetaculari-
zação que impera em todo o espaço. O autor se refere aos espaços de consumo produtivo,
produtores de mais-valia, e aos espaços de consumo “improdutivo”, que são aqueles onde
a espetacularização da vida cotidiana ocorre e onde as relações de produção são repro-
duzidas. Nesses locais, consome-se também o próprio espaço. Isso é importante para a
compreensão da urbanização contemporânea, pois, “apesar de não aparentarem, os es-
paços de lazer estão ligados aos espaços de (re)produção de mercadorias e das relações
sociais de produção” (Lefebvre, 2008, p. 50). Para identificarmos essas situações coloca-
das por Lefebvre, basta observarmos o modo como determinados setores do capital e do
próprio poder público das cidades têm lucrado com o turismo, (re)valorizando as formas
e conteúdos das cidades e do meio rural. Ademais, os símbolos e signos da natureza são
transformados em elementos constituintes dos empreendimentos imobiliários, incidindo
diretamente no preço dos imóveis e nos lucros das empresas.

172
Conforme pudemos começar a perceber, o pensamento lefebvriano permite que pen-
semos a sociabilidade moderna para além da crítica da economia política desenvolvida por
Marx, para ser mais exato, apoiando-se nela para enxergar mais adiante. Por identificar a espa-
cialidade do modo de produção capitalista e da sociedade como um todo, o autor promoveu
uma passagem não dicotômica da “crítica da economia política das coisas no espaço” para a
“crítica da economia política do espaço e de sua produção, pois, para Lefebvre, a primeira so-
zinha não é suficiente para compreender os processos socioespaciais em toda a sua complexi-
dade (Lefebvre, 1991, p. 299, tradução nossa). O espaço não é um vazio, portanto. Ele é forma
e conteúdo que conserva os resíduos de formações sociais passadas e os novos elementos
produzidos em um constante processo dialético de (re)significação dessas formas/conteúdo.
Devido ao caráter transdisciplinar do espaço, o autor promove uma crítica direta
às disciplinas parcelares e clama por uma ciência que dê conta de entender o espaço em
sua multiplicidade sem, no entanto, fragmentá-lo. A teoria espacial em Lefebvre surge,
então, como um instrumento de compreensão da realidade para religar os nexos causais
dos processos sociais que estavam sendo tratados de forma fragmentada nas ciências
sociais. A teoria do espaço religa o físico (natureza e o cosmos), o mental (lógica e abstra-
ções formais) e o social (Lefebvre, 1991, p. 11). Nesse sentido, o espaço social e o tempo
social são indissociáveis e produtos das relações sociais.
Lefebvre rejeita abordagens de cunho historicista/evolucionista para a compre-
ensão do espaço social, assim como o uso instrumental de seus conceitos e categorias de
análise. Para ele, cada modo de produção produziu e produz o seu espaço social e esse é o
resultado direto do trabalho social. Falando de outro modo, a produção do espaço social
enquanto obra compõe o escopo do processo de humanização dos seres humanos, por
compor uma das dimensões do processo de objetivação do social. Na perspectiva lefeb-
vriana, pensar o espaço social é pensar a sociedade que o produziu, o organiza e dele se
apropria, pois o espaço possui uma função estratégica e serve, portanto, a uma determi-
nada lógica (Lefebvre, 2008, p. 38) que, nos últimos séculos, tem sido a lógica do capital.
O espaço, portanto, é um meio e não um fim (Lefebvre, 2008, p. 44). Essa fala permite
que se compreenda a insuficiência de abordagens como as da vertente estruturalista e
da economia política da urbanização para a compreensão dos processos socioespaciais
em toda a sua complexidade. Pensar os fenômenos sociais incorporando a espacialidade
como algo imanente aos seres humanos evita que se caia em uma espécie de fetichismo
do espaço, pois a cidade não constrói a si mesma, assim como as mercadorias não produ-
zem a si mesmas. Na condição de criador desses processos há, portanto, o ser humano,
enquanto ser genérico, e suas formas de organização social.
A partir dessa perspectiva, devemos pensar o espaço social e a sua produção como
processos que resultam do dialético embate entre dimensões distintas da realidade social

173
identificadas teoricamente por tríades como os espaços de representação (vivido), as represen-
tações do espaço (concebido) e as práticas espaciais (percebido). Costa (2007) infere que para
Lefebvre existe uma multiplicidade de espaços que se relacionam dialeticamente e não
podem, portanto, ser compreendidos apenas separadamente. Ao invés de criar categorias
fragmentadas, Lefebvre buscou captar as particularidades e as dinâmicas próprias de cada
uma das dimensões do espaço, entrelaçando-as por seu método dialético que está na base
de sua proposta teórica sobre o processo de produção do espaço (Costa, 2007). Desse
modo, a compreensão dos processos socioespaciais demanda a análise da ligação estrutu-
ral e dialética entre esses três termos.

O vivido do espaço não permanece fora da teoria. Certamente, seria bas-


tante banal insistir sobre o vivido cotidiano para erigi-lo imediatamente em
teoria. Descrever os “defeitos” do elevador que permitiu às pessoas abasta-
das conquistar os estágios superiores dos imóveis, quebrando completa-
mente os contatos garantidos pela escada e pelo seu andar, isso não leva
adiante. Todavia, a teoria não deve colocar o vivido entre parênteses para
promulgar conceitos. Ao contrário: o vivido faz parte do teórico e a sepa-
ração cai (mas, não a distinção e o discernimento) entre conceber e viver.
A análise do espaço aburguesado valida a teoria do espaço abstrato. Mais
ainda: unindo o vivido e o concebido, ela mostra o conteúdo da abstração
e reúne, por isso mesmo, o sensível e o teórico. Os sentidos se tornam teóri-
cos, a teoria revela o sentido do sensível2 (Lefebvre, 1991, p. 316).

A dimensão do vivido expressa a experiência imediata do ser com o espaço e suas


dimensões diversas. Esses espaços de vivência não podem ser delimitados ou cartogra-
fados, pois são fluidos e com constantes incorporações das experiências adquiridas. O
vivido refere-se aos espaços de representação do mundo que os indivíduos constroem
para si mesmos pela afetividade ou repulsão em relação às pessoas, aos espaços e às coisas.
Esse processo envolve, essencialmente, uma construção simbólica. Na dimensão do vivi-
do, portanto, os indivíduos constroem abstrações ou representações de um mundo que
foi por eles, efetivamente, experienciado.3
Embora alguns autores, como Yi-Fu-Tuan, alinhados a estudos fenomenológicos
digam que a construção das noções de espaço e lugar se dê no âmago do próprio indivíduo,
tal construção é, essencialmente, social e não individual. Não se pode negligenciar o fato
de a vida estar repleta de representações do espaço construídas por grupos, indivíduos ou
classes sociais e que estas chegam até nós e nos dizem o que é certo ou o que é errado, o

2 Tradução Grupo “As (im)possibilidades do urbano na metrópole contemporânea”, do Núcleo de


Geografia Urbana da UFMG, 2012.
3 Essa ideia assemelha-se com o que diz o conceito de lugar, que é caro aos geógrafos.

174
que é belo ou o que é feio e isso interfere diretamente na esfera das vivências individuais.
Consequentemente, estas representações também têm o poder de interferir na vida co-
letiva. A relação entre o vivido e o concebido é, portanto, dialética e suas determinações
podem ser apreendidas nas práticas espaciais dos sujeitos.
Nesse cenário, a compreensão da luta de classes no mundo contemporâneo pas-
sa por um viés espacial e é necessário (re)encontrá-la na teoria e na prática, uma vez
que esta costuma ser mascarada pelas representações do espaço. Ao invés da aparente
“luminosidade”, diversos muros visíveis, ou não, fragmentam as vivências no espaço so-
cial e isso incide diretamente nas práticas espaciais. Nesse sentido, uma das grandes
contradições envolvendo a luta de classes na sociedade contemporânea passa pela
compreensão de que esta se manifesta não apenas no espaço, mas também pela crise da
apropriação desse espaço. Para Lefebvre,

o espaço do usuário é vivido, não representado (concebido). Em relação ao


espaço abstrato das competências (arquitetos, urbanistas, planificadores),
o espaço das atividades realizadas cotidianamente pelos usuários é um es-
paço concreto. O que quer dizer subjetivo. Espaço dos “sujeitos” e não dos
cálculos, espaço de representação, tem uma origem: a infância com suas
provações, suas aquisições e suas carências. O conflito entre a inevitável ma-
turação, longa e difícil, e a imaturação que deixa intactas as fontes e reservas
iniciais, marca o espaço vivido. O “privado” se afirma aí, mais ou menos for-
temente, mais conflitualmente, contra o público4 (Lefebvre, 1991, p. 362).

As abstrações decorrentes do concebido do espaço interagem dialeticamente com


a dimensão do vivido do espaço e o resultado desse embate ganha concretude nas práti-
cas espaciais. As práticas espaciais representam a relação direta do corpo e da mente dos
indivíduos com o mundo onde cada um constrói para si uma noção de tempo e de espa-
ço. Aparentemente, essa construção assume um caráter fenomenológico, como algo que
parte exclusivamente de dentro para fora, mas, na realidade, essa relação entre o ser social
e o mundo é mediada por acúmulos de saberes, de modos de vida, de tradições, de leis, de
regras e de tantas outras determinações socialmente produzidas. Nesse sentido,

a relação com o espaço de um “sujeito”, membro de um grupo ou de uma


sociedade, implica sua relação com seu próprio corpo e vice-versa. Con-
siderada integralmente, a prática social pressupõe o uso do corpo: o uso
das mãos, dos membros e dos órgãos sensoriais e os gestos de trabalho
como uma atividade não relacionada ao trabalho. Esse é o domínio do

4 Tradução Grupo “As (im)possibilidades do urbano na metrópole contemporânea’, do Núcleo de


Geografia Urbana da UFMG, 2012.

175
percebido (a base prática da percepção do mundo exterior, para por isso
em termos psicológicos) (Lefebvre, 1991, p. 40, tradução nossa).

Portanto, o corpo tem que ser pensado como um “projeto inconcluso” (Harvey,
2000, p. 136), sujeito a interferências externas, mas que carrega a potência transformadora
das condições materiais de sua existência. Esse corpo é espaço e está no espaço e as manei-
ras com que se relaciona com o espaço social são possibilitadas pelo modo como os seus
sentidos e seu pensamento relacionam-se com os outros e consigo mesmo. Assim sendo,
aqueles que buscam controlar a vida social para fins específicos têm a necessidade de ades-
trar os indivíduos, tornando suas vidas programadas para que as práticas sociais delas de-
correntes sejam engessadas e previsíveis. Esse adestramento é baseado na repetição e, como
nos diz Lefebvre (2004, p. 39-45), envolve a interiorização de ritos, ritmos, gestos, gostos,
enfim, modos de ser e de agir. Em Vigiar e punir, Foucault (1987) buscou compreender os
artifícios que, na modernidade, os homens vêm desenvolvendo para o governo de si e dos
outros. Por esse estudo, é possível a identificação de uma nascente arte de governar “que toma
a população como finalidade e instrumento” (Martins, 2010, p. 4). No panóptico com sua
forma espacial sui generis, Foucault estudou a incorporação de comportamentos programados
e controláveis pela onipresença da vigilância e pela ameaça da punição. No entanto, a maior
descoberta de Foucault foi ter notado, de maneira perspicaz, que essa forma de vigilância e de
punição estava saindo da prisão e começando a ser aplicada pelo Estado a todos os espaços.5
Seria uma espécie de urbanização panóptica sob o controle do Estado de polícia. Nas metró-
poles, especialmente nos centro comerciais atuais, o controle da criminalidade e das práticas
subversivas vêm acontecendo, crescentemente, pela vigilância garantida por meio de câmeras
de segurança espalhadas por todos os cantos. Ao longo dos tempos, o governo dos homens,
expressado pelos instrumentos de vigilância e de punição, delata que “o poder produz indiví-
duos docilizados e tornados produtivos” (Martins, 2010, p. 4). As leis, por exemplo, cumprem
esse papel. Os tabus que envolvem a sexualidade feminina e masculina em uma sociedade
ainda machista como a brasileira representam bem um tipo particular de vigilância que parte
de cada indivíduo e incide sobre o outro e sobre si mesmo. Nesse caso específico, não é neces-
sário que atuem as leis, pois as pessoas sentem-se forçadas a adotar comportamentos compa-
tíveis com aquilo que as outras pessoas esperam dela e não o que realmente têm vontade de
fazer ou de ser. A possibilidade do julgamento dos outros sobre nós é atormentadora.

5 Há divergências entre Lefebvre e Foucault quanto à questão do espaço. Quanto a essa divergência,
Lefebvre diz que “Foucault nunca explica qual espaço é aquele que ele está se referindo, nem como ele
preenche a lacuna entre o (epistemológico) domínio teórico e a prática, entre o mental e o social, entre
o espaço dos filósofos e o espaço das pessoas que lidam com as coisas materiais” (Lefebvre, 1991, p. 4,
tradução nossa). Porém penso que suas abordagens não são de todo excludentes.

176
Assim, as abstrações vão ganhando concretude nas práticas dos indivíduos, mistu-
rando-se às vivências nos lugares. Entretanto, em sua busca por reproduzir as relações so-
ciais de produção capitalistas e atingir a tudo e a todos, os produtores do espaço abstrato
não conseguem homogeneizá-lo por completo, pois, apesar de objetivar a homogeneidade,
este espaço não é homogêneo (Lefebvre, 1991, p. 287, tradução nossa). Ao tomarmos a vida
cotidiana dos trabalhadores urbanos como objeto, veremos que no cotidiano de uma me-
trópole há uma mistura entre acomodação e insatisfação em relação aos ritmos da produ-
ção, sentimentos estes que são despertados pelos descompassos e disritmias entre os ritmos do
corpo e os ritmos das mercadorias. A ampliação desse desconforto em relação ao cotidiano
e seus ritmos acontece, pois, na mesma proporção que o capital reproduz o valor de forma
ampliada, que também reproduz suas contradições de forma ampliada e por essas contradi-
ções é possível percebermos os momentos de ruptura e de movimento da totalidade social.
Portanto, o que impede a homogeneização do espaço pelo espaço abstrato são suas contra-
dições internas expressadas, essencialmente, pela luta de classes. É por meio dessas contra-
dições do espaço abstrato que o devir dá sinais de possibilidade concreta e é o que Henri
Lefebvre, a partir de uma perspectiva aberta ao novo, buscou apontar.

A produção e a indução das diferenças

O capitalismo nasceu das práticas mercantis que se generalizaram a tal ponto que aqueles
que detinham o poder político, a nobreza feudal e os membros do clero, não encontraram
meios para contê-las e foram tendo que fazer concessões diversas até o capital se pôr de pé
na história. Do mesmo modo, quaisquer práticas que almejem o não instituído e buscam ir
além do modo de produção vigente devem propor o fim do cotidiano e dos ritmos volta-
dos para a produção, que incidem sobre os trabalhadores. Ademais, essa ação calcada nos
interesses de classe somente será revolucionária se destruir a sociedade de classes, portanto,
superar a si mesma (Lefebvre, 2008, p. 166). Se o espaço está sendo utilizado como forma
de acumulação e de repressão social, pensando no caso do processo de metropolização,
por exemplo, ele também pode ser revertido como um espaço de luta e de resistência. É
nesse sentido que Lefebvre trabalha com a concepção de estratégia urbana.

Colocamos, a partir de agora, a noção de estratégia urbana, para a ela re-


tornar. O que implica distinções entre prática política e prática revolu-
cionária, ou, noutros termos, uma estrutura da práxis. A prática social é
analisada enquanto prática industrial e prática urbana. O primeiro objeti-
vo da estratégia seria o de arrancar a prática social à prática industrial para
orientá-la em direção à prática urbana, de modo que esta transponha os
obstáculos que barram seu caminho (Lefebvre, 1999, p. 76).

177
Em Lefebvre (1991), a perspectiva da transformação social passa invariavelmente
pela capacidade dos sujeitos históricos, que buscam transformações mais significativas,
produzirem espaços sociais distintos daqueles construídos à imagem do modo de produ-
ção dominante. Nessa interpretação, não necessariamente, deve-se promover um fecha-
mento à práxis como pensa Harvey (2000, p. 240), mas seu oposto, uma abertura em que
as diferenças entre os indivíduos possam ser a entrada para uma ação política abrangente,
partindo da maioria e não de uma minoria intelectualizada. A perspectiva dialética do
pensamento de Lefebvre aponta para o possível e para a transformação social. O conceito
de espaço diferencial representa a possibilidade concreta de que um mundo diferente e pos-
sível surja de práticas espaciais autônomas em meio à impossibilidade de o Estado e o ca-
pital manterem o caótico e contraditório espaço que eles produziram (Lefebvre, 1991, p.
290 apud Costa, 2007). De acordo com Gottdiener (1993, p. 126), Lefebvre entende que
o espaço é, ao mesmo tempo, o local geográfico da ação, da práxis social, e a possibilidade
social de engajar-se na ação, pois é nele que ocorrem os eventos (função de receptáculo)
e isso significa a permissão social para se engajar nesses eventos (função de ordem social).
O espaço diferencial surgiria, então, da incapacidade de reprodução das relações de pro-
dução advindas do estranhamento do homem em relação ao caráter fetichista e alienado
do mundo das mercadorias, cujo próprio espaço das cidades, outrora local da reprodução
social, da política e da festa, é tornado uma mercadoria cara e produzida para o consu-
mo de poucos. Então, o conceito lefebvriano de espaço diferencial pode indicar uma direção
para que a ação revolucionária possa brotar como o resgate da utopia e da esperança, uma
virtualidade, portanto. O autor não coloca esse novo espaço, que tem no urbano seu lócus
como um fim em si mesmo, mas sim como um meio. O urbano é um processo no qual a
luta de classes pode se engajar.

O espaço-tempo urbano, desde que não seja mais definido pela raciona-
lidade industrial – por seu projeto de homogeneidade –, aparece como
diferencial (...) Para definir tais propriedades do espaço diferencial urbano
(do tempo-espaço), introduzimos conceitos novos, como iso-topia e hete-
ro-topia, completados pelo de u-topia (Lefebvre, 1999, p. 45).

Nesse sentido, como mudar o rumo da sociedade em direção ao espaço diferencial


em oposição ao homogeneizante espaço abstrato? É preciso o resgate da utopia. O espaço
abstrato, na impossibilidade de solucionar completamente suas contradições internas,
produz o que Lefebvre denomina diferenças induzidas, que são, em alguma medida, estra-
tégias para que a crítica social permaneça no interior de um conjunto ou de um siste-
ma engendrados de acordo com uma determinada lei ou de uma determinada ordem
preestabelecida. Esse tipo de diferença atua, portanto, como reprodutora desse mesmo

178
sistema (Lefebvre, 1991, p. 382). Para exemplificar, em face dos chamados “problemas
urbanos”, clamar por um melhor planejamento urbano por parte do Estado emperraria
transformações mais radicais, pois apenas estaríamos a reafirmar a importância do pró-
prio Estado nessa dada formação social.6 Grosso modo, isso seria uma das diversas formas
de diferença induzida. Por sua vez, “a diferença produzida supõe o contrário, a explosão de
um sistema; ela nasce dele; ela sai pela abertura que aparece com o desabamento de um
fechamento” (Lefebvre, 1991, p. 382). As diferenças induzidas conduzem à situação de
diferença mínima, ou seja, superam-se abstratamente as diferenças imanentes à sociedade,
enquanto as diferenças produzidas conduzem à diferença máxima, ou seja, a exacerbação
das diferenças. Nas sociedades contemporâneas, o Estado fetichiza a política ao se colocar
diante de todos como o ser político que irá solucionar os conflitos sociais com sua racio-
nalidade consensual, a razão de Estado (Rancière, 1996). Na realidade, esses conflitos de
interesse deveriam conduzir a uma práxis e à radicalização da política, ou seja, à maximi-
zação das diferenças para que possa brotar um sentido de coletividade.
O espaço diferencial, para Lefebvre, é a materialização de um espaço comum,
onde não se tentaria quantificar ou homogeneizar as diferenças, mas reconhecê-las, pois
elas não são quantificáveis ou homogeneizáveis. O que seria acentuar as diferenças? Para
exemplificar, seria reconhecer que o outro é diferente e, portanto, possui necessidades
também diferentes. O espaço diferencial consiste, essencialmente, em um espaço político
em que todos poderiam efetivamente construí-lo e se apropriar dele, o contrário do que
ocorre com as leis impostas pelo Estado, que proclamam uma igualdade entre os diferen-
tes, portanto, diferenças induzidas que só dissimulam as diferenças. Importante salientar
que, nesse caso, diferença não é desigualdade, mas o reconhecimento das particularidades
do outro sem inferiorizá-lo por conta disso. O espaço diferencial pensado por Lefebvre se
aproxima da comunidade pensada por Marx, na qual às formas de alienação, fetichismo
e de estranhamento seriam destruídas. De acordo com Pogrebinschi (2009, p. 135), na
comunidade pensada por Marx,

não há mais classes, pois o político (diferente da política de Estado) não


permite cisões de nenhuma ordem; não há mais antagonismo entre elas,
pois a associação unifica as partes singulares do todo, formando um múl-
tiplo único; não há mais separação entre Estado e sociedade civil, pois a
comunidade que se fará a partir da associação nasce da superação dessa
cisão por meio do encontro de duas partes que formam um todo único;

6 É certo que a melhoria das infraestruturas urbanas são sempre bem-vindas, pois existem pessoas
morrendo todos os dias pela ausência de serviços básicos, mas é preciso pensar cuidadosamente em
que medida isso representa uma transformação social mais ampla ou não. A ação reformista emperra a
transformação radical por não questionar os fundamentos da sociedade de classes.

179
não há mais poder, pois em seu lugar surge a potência; não há mais políti-
ca, pois encontra-se, finalmente, o lugar do político.

Esse espaço social não representa um mundo perfeito e livre de contradições, mas uma
realidade em que as diferenças entre os indivíduos e/ou grupos sociais que a compõem se-
riam solucionadas pela práxis política e não por abstrações homogeneizantes como as leis do
Estado. O urbano, na perspectiva lefebvriana, representa essa utopia, enquanto possibilidade
concreta, logo, pode-se perceber a importância dos estudos de Lefebvre para a compreensão
do aspecto revolucionário da urbanização. Esse pensador foi quem melhor tratou da dimen-
são política da urbanização de forma não fragmentada. Devemos promover a passagem da
cidade produzida como um produto a ser vendido no mercado para a cidade produzida en-
quanto obra, algo que é parte do processo de humanização dos seres humanos.

O urbano, uma utopia concreta?


Um movimento do pensamento em direção a um certo concreto e talvez
para o concreto se esboça e se precisa. Esse movimento, caso se confirme,
conduzirá a uma prática, a prática urbana, apreendida ou re-apreendida
(Lefebvre, 1999, p. 18).
Por mais que se possa defini-lo, nosso projeto – o urbano – não estará nun-
ca inteiramente presente e plenamente atual, hoje, diante de nossa reflexão.
Mais do que qualquer outro objeto, ele possui um caráter de totalidade
altamente complexo, simultaneamente em ato e em potencial, que visa à
pesquisa, que se descobre pouco a pouco, que só se esgotará lentamente
e mesmo nunca, talvez. Tomar esse “objeto” por real, como um dado da
verdade, é uma ideologia, uma operação mistificante. O conhecimento
deve considerar um número considerável de métodos para apreender esse
objeto, sem se fixar numa démarche. (...) Todas as noções, todas as baterias
de conceitos entrarão em ação: forma, estrutura, função, nível, dimensão,
variáveis dependentes e independentes, correlações, totalidade, conjunto,
sistema etc. Tanto neste como em outros casos, porém mais do que em ou-
tros casos, o resíduo se revela o mais precioso (Lefebvre, 2001, p. 111-112).

Para Lefebvre (1999, p. 47), “o urbano é um campo de tensões altamente com-


plexo; é uma virtualidade, um possível-impossível que atrai para si o realizado, uma pre-
sença-ausência sempre renovada, sempre exigente”. O processo de urbanização capitalista
altera substancialmente a forma como nos relacionamos com o tempo e com o espaço,
com a natureza e com o ser humano e é, sobretudo, um processo social que modifica a
forma como nos relacionamos com nós mesmos e com os outros. Lefebvre (1999, p. 16)
introduz o termo “sociedade urbana”, tentando descrever essa sociedade que nasce da in-

180
dustrialização e a sucederá, uma sociedade que será construida a partir desse processo de
transformação e de lutas ainda em curso. Segundo Lefebvre (1999, p. 33-34), “cada modo
de produção produziu um tipo de cidade, que o ‘exprime’ de maneira imediata, visível e
legível no terreno, tornando sensíveis as relações sociais as mais abstratas, jurídicas, políti-
cas, ideológicas”. Conforme Lefebvre,

estranho e admirável movimento que renova o pensamento dialético: a


não cidade e a anticidade vão conquistar a cidade, penetrá-la, fazê-la ex-
plodir, e com isso estendê-la desmesuradamente, levando à urbanização
da sociedade, ao tecido urbano recobrindo as remanescências da cidade
anterior à indústria (...) a implosão-explosão (metáfora emprestada da fí-
sica nuclear) é a forma destrutiva como a indústria adentra nas cidades,
fazendo prevalecer a não cidade, ou seja, a enorme concentração (de pes-
soas, de atividades, de riquezas, de coisas e de objetos, de instrumentos,
de meios e de pensamento) na realidade urbana, e a imensa explosão, a
projeção de fragmentos múltiplos e disjuntos (periferia, subúrbios, resi-
dências secundárias, satélites etc.) (Lefebvre, 1999, p. 25-26).

O urbano em Lefebvre implica uma disputa política no e pelo espaço, portanto,


uma práxis em torno da concretização ou não dessa utopia burguesa. De um lado, a busca
pela homogeneização da práxis social e, do outro, as possibilidades de resistência dos que
buscam o diferente e a possibilidade de um processo de transformação. Portanto, a urba-
nização carrega consigo o possível e o impossível e a distância entre eles está sutilmente
estabelecida pelo jogo de forças entre as classes sociais.
Pode-se, então, dizer que as diversas invasões de propriedades privadas no campo
e nas cidades, assim como os diversos protestos e greves, podem indicar a possibilida-
de de concretização do urbano lefebvriano? Sim e não, pois a natureza dessas invasões
e protestos diversos também pode revelar a alienação desses movimentos que, muitas
vezes, estão reproduzindo até mesmo inconscientemente as categorias essenciais dessa
sociedade baseada na exploração do trabalho e, portanto, nem sempre é possível dizer que
estes são politizados a ponto de almejarem o rompimento da ordem estabelecida. Esses
movimentos, quando não são politizados, acabam caindo em uma perspectiva reformista
que poderíamos colocar no rol das diferenças induzidas. A ideia de reforma implica mudar
algo, mas deixando que sua essência permaneça a mesma. Conforme Marx (2004, p. 93),
os trabalhadores pedirem “um salário diário justo para um trabalho diário justo” não altera
mais que suas condições imediatas de vida, o que é necessário para que não se tornem
uma massa de miseráveis, mas o sentido da luta revolucionária deveria ser a “abolição dos
sistemas de salários”. Nesse sentido, para se ter noção da radicalidade de uma ação polí-
tica é preciso, sobretudo, verificar a sua relação com o tempo e com o espaço, pois não

181
há como almejar mudanças radicais sem que se proponha uma nova forma de utilização
do tempo-espaço social. Entretanto, a questão não é tão simples, pois se deve levar em
conta que conhecer os aspectos teóricos acerca da ação política no espaço é fundamen-
tal, mas ter que viver o cotidiano duro das grandes cidades castiga aqueles que possuem
pretensões de adotar medidas mais radicais. Juntamente com a alienação, é possível que
tal situação explique em partes algumas posições reformistas dentro da luta de classes. É
preciso, portanto, ter cautela para tratar dos movimentos sociais dentro e fora das cidades.
Mesmo com todos os contratempos, é importante retirarmos o pessimismo em
relação aos processos sociais para podermos repensar a cidade e o urbano. É preciso reti-
rar o véu que recobre o urbano e a potência transformadora que ele contém. A cegueira
em relação ao urbano consiste em não ver sua lógica e seu movimento dialético e seu va-
zio e sua virtualidade estarem “preenchidos” principalmete pelo urbanismo, atento apenas
a funcionalidade das operações e dos objetos (Lefebvre, 1999, p. 47). Esse urbano velado
escapa ao pensamento que se cega e se fixa apenas nas luminosidades atrasadas em rela-
ção ao atual (Lefebvre, 1999, p. 47). “O urbano, abreviação de sociedade urbana, define-se
portanto não como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira
recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualidade iluminadora”
(Lefebvre, 1999, p. 28). Lefebvre clama por uma nova ciência que dê conta de compre-
ender a urbanização e a produção do espaço em toda a sua complexidade e possibilidade.
O urbano proferido por Henri Lefebvre é uma virtualidade, algo em disputa e in-
crito no real como possibilidade e que se desenha no horizonte como um projeto utópi-
co, tendencialmente, mas não exclusivamente da classe burguesa, que, apesar de deter os
meios de produção de mercadorias e de nossas vidas, o controle dos meios de comunica-
ção e do Estado não consegue a completa homogeneização do espaço abstrato. O espaço
abstrato não se homogeneíza por conta da potencialidade que a luta de classes encontra
em meio às próprias contradições inerentes a esse processo de homogeneização. Monte-
-Mór (2003, p. 262), inspirado por Lefebvre, chama de “urbanização extensiva a materiali-
zação sociotemporal dos processos de produção e reprodução resultantes do confronto
do industrial com o urbano, acrescida das dimensões sociopolítica e cultural intrínsecas
à pólis”. Para o autor, essa espacialidade social resultante do encontro explosivo da indús-
tria com a cidade – o urbano – se estende levando as relações de produção por todo o
espaço onde as condições gerais de produção determinadas pelo capitalismo industrial
de Estado se impõem à sociedade burocrática de consumo dirigido. Entretanto, no seu
bojo, ampliam-se também as relações e organizações políticas que são próprias da cida-
de (Monte-Mór, 2003, p. 262). A ideia de urbanização extensiva permite a compreensão,
por exemplo, dos processos de metropolização como fenômenos que carregam consigo
tanto a dinâmica própria da apropriação dos espaços pelo capital quanto a possibilidade

182
de politização dos demais agentes sociais mediante as contradições que são estendidas
espacialmente no momento da produção desses espaços.
A abordagem metafilosófica de Henri Lefebvre acerca do processo de urbanização
não trata de forma separada as dimensões econômica, política, cultural, teórica e prática
dos processos sociais. Para construir a sua argumentação e crítica, partindo de outra onto-
logia em relação às ideias de Marx e de marxistas, Lefebvre entende o capitalismo como um
processo, assim como o seu produto, o espaço (Costa, 2003, p. 11). O espaço sempre foi
político, estratégico e ideológico, “é uma representação literalmente povoada de ideologia”
(Lefebvre, 2008, p. 61-62). Para Lefebvre (2008, p. 67), “existe uma política do espaço, pois
o espaço é político”, logo, sua teoria e sua ciência “dependem de uma dupla crítica, ela pró-
pria política: a crítica de direita e a crítica de esquerda”. Em relação ao método de pesquisa,
deve-se, em vez de pressupor uma lógica ou um sistema preexistente, por exemplo, a lógica
do capitalismo, descobri-la e revelá-la sem que se parta dela, tentando apreender a função
prática e estratégica que o espaço desempenha, pois este é um meio, uma mediação, e não
um fim ou um começo. “Do mesmo modo, se há um ‘ponto de vista de classe’, é impossível
metodologicamente partir dele, é preciso chegar a ele” (Lefebvre, 2008, p. 38-39).
Por essa perspectiva, a obra de Henri Lefebvre contém elementos teóricos para
a compreensão desses processos em sua globalidade sem que se fragmente a realidade
social que o produziu. Nessa conflituosa realidade, as forças opressivas e libertadoras
formam um par dialético. Evita-se o fetichismo de colocar o urbano no campo místico,
procurando trazê-lo para o domínio do real e da dialética. Portanto, os conflitos e as con-
tradições que pairam por todo o espaço social podem ser a porta de entrada para a desa-
lienação, desde que, em vez de conduzirem a conquistas de alcance imediato conduzam a
radicalização das relações que as produziram.

Um breve ensaio crítico acerca das manifestações de junho de


2013 no Brasil: a necessidade de se (re)pensar a ação política
também por um viés espacial

O mês de junho de 2013 ficará marcado para sempre na história do Brasil por conta dos
expressivos protestos populares, nos quais, em pleno mês de Copa das Confederações,
dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas das principais capitais brasileiras para
manifestar suas indignações diversas contra aquelas opressões que lhes afligiam. Esta
reflexão que estamos propondo torna-se relevante, pois tais protestos ocorreram num
momento em que a apropriação das cidades pelos diversos capitais estava em ato e
facilitada por conta da realização de megaeventos esportivos, o que escancarou as con-
tradições desses processos. Os protestos de junho deram novo fôlego ao pensamento

183
dialético, principalmente no que toca as questões que envolvem a luta de classes no
espaço urbano, pois a reprodução social sempre que chega a momentos de crise cria
um ambiente tenso e propício à revoltas, protestos e greves.
Não há como não relacionar os protestos de junho no Brasil com a questão urbana.
Para além do fato de esses protestos terem o ambiente urbano como palco e as metrópo-
les serem o lócus da vida social, da produção das mercadorias e das relações de produção,
esse espaço social também pode ser o objetivo do engajamento na ação política. A luta de
classes está nas cidades e salta aos olhos juntamente com o aparecimento das contradi-
ções intrínsecas à sua produção enquanto mercadoria. Para Maricato,

as cidades são o principal local onde se dá a reprodução da força de tra-


balho. Nem toda melhoria das condições de vida é acessível com me-
lhores salários ou com melhor distribuição de renda. Boas condições de
vida dependem, frequentemente, de políticas públicas urbanas – trans-
porte, moradia, saneamento, educação, saúde, lazer, iluminação pública,
coleta de lixo, segurança. Ou seja, a cidade não fornece apenas o lugar,
o suporte ou o chão para essa reprodução social. Suas características e
até mesmo forma com se realizam fazem a diferença. Mas a cidade tam-
bém não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou,
em outras palavras, também um grande negócio, especialmente para os
capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e
rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles
que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam ape-
nas extrair ganhos (Maricato, 2013, p. 33).

No caso do Brasil, que na última década passou de devedor para credor de muitos
países dentro da economia global, a ideia de que há dinheiro e que ele tem sido utilizado
desproporcionalmente em favor dos interesses do capital foi também um estopim para
os protestos. Os trabalhadores urbanos dependem das metrópoles para sobreviver, pois
é nas zonas industriais, produtivas, ou nos centros comerciais, reprodutivos, que eles ven-
dem a sua força de trabalho para conseguir seus salários ao final do mês e é nas áreas resi-
denciais que vivem suas vidas “fora” do ambiente produtivo. Nesse sentido, o processo de
metropolização das cidades trouxe consigo a questão do transporte público, da periferiza-
ção, da gentrificação, da violência e tantas outras contradições, as quais o Estado brasileiro
vem tentando lidar a partir do rótulo dos chamados “problemas urbanos”, que na reali-
dade são a manifestação das contradições do próprio capital. Ao retirar a carga dialética
que o termo “contradição” contém, a razão de Estado busca solucionar abstratamente esses
“problemas urbanos” por meio de uma racionalidade que visa consensos mais do que a
horizontalização da ação política. Dado que, atualmente, são nas metrópoles que ocorre
a reprodução social de grande parte da população mundial e esta depende de seu coti-

184
diano para ganhar a vida, os protestos de junho mostraram que boa parte dessas pessoas,
representadas principalmente por jovens estudantes, não querem mais apenas consensos
na produção do espaço urbano, mas querem mais participação popular na produção das
cidades em que vivem e se reproduzem.7
A princípio, os protestos ocorridos em São Paulo organizados pelo Movimento
Passe Livre (MPL) direcionaram seus gritos de insatisfação contra o aumento de R$ 0,20
centavos nas passagens de ônibus. Em poucos dias, os protestos alcançaram diversas outras
capitais do país, muito em função da utilização da internet. Apesar de tudo ter sido iniciado
por um movimento de esquerda que luta pela causa dos trabalhadores urbanos dependen-
tes do transporte público, o que se viu em meio a esses protestos foi uma profusão de recla-
mações diversas, o que nos permite inferir que, mesmo esses protestos tendo sido iniciados
por um movimento de esquerda, o MPL, eles tornaram-se, em alguma medida, apropria-
dos também por pessoas sem qualquer posicionamento político ou mesmo por aqueles
simpáticos às ideias da direita, que traziam principalmente críticas à corrupção. De modo
geral, os gritos e cartazes mostraram que, mais do que simplesmente o aumento das passa-
gens, as pessoas protestavam contra a pauperização dos trabalhadores urbanos brasileiros
por conta do encarecimento do custo de vida, contra os abusivos investimentos nas obras
para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, contra os baixos investimentos na reprodução
social apesar da grande cobrança de impostos, contra a corrupção, pediam melhorias na
área da saúde, da educação etc. Essa multidão, composta principalmente por jovens estu-
dantes de renda média, mas que também continha uma significativa parcela composta por
pessoas de várias idades e faixas de renda, reivindicava, perante as administrações estatais
brasileiras nas esferas federal, estadual e municipal, condições adequadas para a reprodução
de suas vidas nas metrópoles brasileiras. Portanto, em quase todas as falas, cartazes e gritos,
a questão urbana estava presente. E o que seria a questão urbana? Na visão de Castells,

fundamentalmente, a questão urbana se refere à organização dos meios


de consumo coletivo na base da vida cotidiana de todos os grupos so-
ciais: habitação, educação, saúde, cultura, comércio, transporte etc. No
capitalismo avançado isso expressa a contradição fundamental entre, de
um lado, a crescente socialização do consumo (como um resultado da
concentração de capital e de meios de produção), e de outro lado, a ló-
gica capitalista de produção e distribuição de seus meios de consumo, o
resultado disso é o aprofundamento da crise nesse setor, ao mesmo tem-
po, protestos populares demandam a melhoria das condições materiais
coletivas de sua existência cotidiana. Em uma tentativa para resolver essas

7 Tal constatação pode ser apreendida por meio das perspectivas estratégicas do Movimento Passe Livre
(Movimento Passe Livre, 2013, site<http://saopaulo.mpl.org.br>).

185
contradições e seus conflitos resultantes, o Estado, cada vez mais, inter-
vém na cidade; mas, como a expressão de uma sociedade de classes, o
Estado, na prática, age de acordo com as relações de forças entre as classes
e os grupos sociais, geralmente em favor da hegemônica fração da classe
dominante. É dessa maneira que os problemas especificados tornam-se
globalizados, a questão urbana, cada vez mais, relaciona o Estado ao co-
tidiano e provoca crises políticas (Castells, 1978, p. 3, tradução nossa).

Grosso modo, para Castells, a questão urbana é a disputa entre as classes pelos
bens de consumo coletivo, em seus diferentes níveis (Castells, 2000, p. 150). Entretanto,
a questão urbana pensada e praticada dessa forma não contempla temas complexos e am-
plos que devem também incorporar o possível e que passam, portanto, pela reapropriação
da práxis social. Sendo assim, pode-se dizer que a grande conquista que os protestos de
junho já alcançaram foi o fortalecimento do lado dos trabalhadores urbanos na luta de
classes que ocorre no espaço urbano, entretanto, ainda é cedo para dizer se eles podem
caminhar no sentido de reverter essa “arapuca” para o trabalho, que é a metrópole, contra
seus criadores e gestores. Como disse Harvey, ao comentar os protestos no Brasil, “o direi-
to à mudança da cidade não é um direito abstrato, mas sim um direito inerente às nossas
práticas diárias, quer estejamos cientes disso ou não” (Harvey, 2013, p. 54).
Entende-se que esses protestos no Brasil mostraram a potência que a ação polí-
tica coletiva possui e também que as contradições na e da produção do espaço urbano
tornam-se vias pelas quais a ação política pode brotar. Mesmo que ainda não possamos
apontar claramente os desdobramentos de tais protestos para o cenário da luta de classes
no Brasil em longo prazo, eles demonstraram, direta ou indiretamente, a insatisfação das
pessoas com o modo que o Estado e o capital produzem e se apropriam das cidades em
detrimento dos trabalhadores que as produzem. Independentemente das posições políti-
cas e partidárias, os manifestantes queriam mais meios para se apropriar de suas cidades e
de suas vidas. A partir desse cenário, é preciso que não fiquemos restritos à superfície do
fenômeno e busquemos compreender suas determinações.
Além da flexibilização do processo produtivo, a partir da década de 1970, a frag-
mentação da ação política revolucionária passa também pela complexificação e diversi-
ficação das formas de se ganhar a vida, ou seja, a diversificação da atividade produtiva.
Não há trabalhadores apenas dentro de fábricas, o trabalho assalariado se generalizou
cada vez mais. A generalização do trabalho abstrato, produtor de mais-valia, encontra no
ambiente urbano novas formas e possibilidades de manifestação, como é o caso do tra-
balho imaterial, setor de serviços, aquele que ocorre fora das fábricas e é necessário para
a reprodução das relações de produção. Já no período do regime de acumulação fordista,
as diferenciações entre as funções no ambiente do trabalho e nos salários pagos aos tra-

186
balhadores contribuíram para a fragmentação da ação política, que Marx, outrora, atri-
buiu ao proletariado. Atentando para a forma como os trabalhadores se relacionam com
o tempo-espaço, principalmente nas metrópoles, percebe-se que há uma fragmentação
da consciência de classe como se as partes fossem independentes da totalidade, como se
essas partes fossem uma totalidade em si mesmas. As pessoas que lutam por melhorias no
transporte público só conseguem pensar no transporte, as pessoas que trabalham em um
supermercado brigam por melhorias no âmbito de seu trabalho no supermercado, o mo-
vimento feminista luta dentro de seu nicho específico etc. Na contemporaneidade, aque-
les que lutam por uma mudança radical na estrutura social, essencialmente na estrutura
de classes, estão diante de uma difícil tarefa, a construção de uma crítica espaçotemporal
que conduza à, por exemplo, uma conscientização de classe que possa romper a própria
fragmentação dos trabalhadores e também incluir outros grupos sociais. Há uma visível
fragmentação entre a ação e o pensamento. A divisão do trabalho ultrapassou os muros da
fábrica e alcançou todo o espaço social mediado pela forma dinheiro e pela mercadoria.
Os trabalhadores, mesmo para além dos muros das fábricas, são adestrados a repetir, a
fragmentar e não unir, a agir sem pensar e a pensar sem agir. Essa constatação nos permite
entender melhor as formas pelas quais as relações de produção se reproduzem e também
a importância que assume a crítica radical direcionada para a produção em sentido amplo,
tendo o espaço social também como um objeto pelo qual se luta.
Bihr (1999, p. 99) mostra que o movimento operário convergiu para um “mesmo
efeito global; a sua fragmentação”. Alienado, esse proletário cada vez mais se distancia na
teoria e na prática de suas próprias condições de existência e da possibilidade de trans-
formação. A luta de classes ganha então novos atores? Ou, seria o mesmo movimento
operário esse ator? Segundo o próprio Bihr (1999, p. 143), com o surgimento de novos
movimentos sociais a partir da década de 1970, a luta de classes se fragmentou ainda mais.
Estes movimentos acabaram se caracterizando por lutas particulares e que aparentemen-
te situavam-se fora da esfera imediata do trabalho e da produção. Havia uma hostilidade
recíproca entre aqueles novos movimentos e o movimento operário, este último lutava
no interior da esfera do trabalho e da produção, enquanto o primeiro, por questões que
transcendiam os muros das fábricas.
Como apontado por Bihr (1999, p. 153), apesar de grande parte do discurso desses
novos movimentos sociais, em larga medida, terem sido cooptados pelo capital, eles mostra-
ram que era necessária a “ampliação do terreno para o aprofundamento da questão em jogo
da luta de classes e, portanto, do combate político nas formações capitalistas centrais”, pois

as condições da reprodução do capital ultrapassam amplamente seu sim-


ples movimento econômico (seu ciclo de “valor em processo”) para se

187
estender à totalidade das condições sociais da existência. (...) Em outras
palavras, os “novos movimentos sociais” colocaram em evidência o fato
de que “tudo é (tornou-se) político”, desde as relações entre homens e
mulheres até a organização do espaço-tempo social e que, consequente-
mente, é preciso ampliar a luta anticapitalista (Bihr, 1999, p. 153).

Há que se relativizar as análises de Bihr, pois no Brasil, por exemplo, os trabalhadores


urbanos ainda têm que lutar pelos itens básicos destinados à sua reprodução, o que não era
necessariamente o contexto europeu dos anos de 1970, pois esses países possuíam políticas
de assistência social resultantes do chamado “pacto fordista”. No Brasil das décadas de 1960
e 1970, em que o processo de proletarização estava em pleno vapor por conta das políticas
voltadas para a industrialização dos grandes centros, os trabalhadores que passaram a morar
e trabalhar nas cidades encontraram precárias condições de vida (Freitas, 2006, p. 164). Em
relação a esse aspecto, Lefebvre (2008, p. 53) já apontava que todo o espaço se tornou lugar
da reprodução das relações de produção, o que exige que a luta dos trabalhadores atue em
escalas mais amplas de enfrentamento. Apesar de ambas as formas de luta, a dos operários e
a dos demais movimentos sociais, integrarem a totalidade social e as contradições que mo-
tivam suas reivindicações possuírem raízes no modo de produção capitalista, elas permane-
ceram desarticuladas entre si e isso reflete no amortecimento do poder revolucionário do
movimento operário e os próprios limites desses novos movimentos sociais, além da pró-
pria falta de mediação entre eles (Birh, 1999, p. 154-155). Para Bihr,

a luta anticapitalista deve se desenrolar simultaneamente dentro e fora do


trabalho, visando à reapropriação da totalidade das condições sociais de
existência, acabando com a separação entre movimento operário e “no-
vos movimentos sociais”, prejudicial ao primeiro assim como aos últimos
(Bihr, 1999, p. 157).

Talvez essa fragmentação dos trabalhadores explique, em parte, a diversidade de


reclamações e de ideologias em meio aos protestos de junho de 2013 no Brasil, muito
embora os motivos que levaram aquela multidão para as ruas fossem comuns às contradi-
ções manifestadas no processo de apropriação da práxis social e das cidades pelo capital.
A urbanização mostrou sua outra face, a face da politização e da ação política, pois o estra-
nhamento por ela causado pode ser também um elemento detonador de diversos tipos
de revoltas populares. O desafio passa a ser o de reunir as diversas causas trazidas pelos
trabalhadores por meio da conscientização de classe sem promover um fechamento da
ação, ou seja, sem impor as vontades de algum intelectual orgânico.
Portanto, apesar de reconhecermos a importância dos protestos de junho de 2013
no Brasil para o conjunto da luta de classes e para a ampliação da ação política no país, não

188
podemos fetichizar todo e qualquer movimento social como sendo de natureza radical. É
preciso que a partir deles e suas conquistas e fragilidades se possa ir desenvolvendo táticas
que proponham também a reapropriação da práxis social, do tempo e do espaço sociais,
subvertendo seus usos e suas estratégias hegemônicas. O que é importante salientar é que
o espaço estava lá, servindo de palco e de motivação para ação e, assim, mostrou sua po-
tencialidade para ser também esse elemento unificador.
Pode-se dizer que esses protestos de junho de 2013 avançaram em busca de algo
não instituído, do vir-a-ser? Sim e não. Penso que apesar de não necessariamente buscarem
derrubar o instituído, protestos trouxeram novas pautas e avanços para o debate acerca das
(im)possibilidades do urbano. Nas assembleias populares horizontais, que ocorriam nos dias
em que não havia grandes protestos, todos os participantes tinham poder de opinar e sem
que houvesse qualquer tipo de hierarquia. Essa experiência representou um grande proces-
so de aprendizado em relação ao que poderia ser uma verdadeira democracia para todos
aqueles que tiveram a oportunidade de participar. Penso que pequenas, mas representati-
vas ações como essas são apenas o início de um longo caminho para que o urbano e para
que o direito à vida urbana se concretizem, devendo ser contínuos e ampliados.
Aos indivíduos, grupos e classes sociais que buscam uma transformação radical
não basta apenas protestar por melhores salários, melhores condições de vida, melhores
serviços públicos etc., além dessas reivindicações básicas, é importante propor novas for-
mas de apropriação do tempo-espaço social. O espaço e o tempo não são fins em si mes-
mos, mas são meios e mediações que atendem a fins específicos e que, se servem para as
estratégias de dominação, servem também para a resistência. Os protestos e experiências
de enfrentamento no espaço urbano que encerram suas demandas no fornecimento de
condições materiais básicas para a manutenção de suas vidas tendem a perder a sua força
à medida que o Estado e o capital vão atendendo suas reivindicações. Não adianta propor
mudanças para que as coisas permaneçam as mesmas. É imprescindível que surjam ações
que possam gerar ganhos efetivos e que sempre caminhem no sentido da superação das
classes e que não apenas restabeleçam o pacto entre elas. Para Bihr, tratando da fragmen-
tação da ação política na década de 1970,

a superação de seu particularismo, entretanto, só era possível se identifi-


cassem sua questão em jogo comum: a reapropriação de condições so-
ciais de existência alienadas pela submissão às exigências da reprodução
do capital, a construção de uma sociedade liberta da dominação capita-
lista. O que supunha de novo que se estabelecesse uma ligação orgânica
entre os “novos movimentos sociais” e a luta de classe do proletariado.
Assim, a ausência de mediação entre os dois devia necessariamente de-
sembocar na ausência de mediação entre os próprios “novos movimen-
tos sociais (Bihr, 1999, p. 155).

189
Em Belo Horizonte e em praticamente todas as metrópoles brasileiras, diversos ou-
tros movimentos sociais motivados por todos os processos de apropriação das cidades pelo
capital têm buscado se apropriar de alguns espaços como forma de protesto, impondo práti-
cas sociais distintas às que são prescritas pelo Estado para esses locais. Somente para citar al-
guns exemplos, temos os movimentos Praia da Estação, Batalha de DJs e Marcha das Vadias.
Quais os impactos causados na estrutura social que esses movimentos sociais, que trazem
para o debate temas diversos, ainda não sabemos, mas a conquista deles é a politização de
grande parcela da população que até então estava distante da ação política. Em um primeiro
momento, eles trazem causas particulares, mas ao se depararem com a estruturação imposta
à vida urbana, tendem a descobrir que suas causas estão conectadas com algo mais amplo.
Acima de tudo, os protestos de junho de 2013 no Brasil, assim como os diversos outros pro-
testos que têm ocorrido no Brasil e no mundo, são importantes para a constatação de que
a figura dos trabalhadores enquanto agentes políticos não desapareceu, apesar de sua frag-
mentação no seio do espaço social. Os trabalhadores materializam-se no espaço por meio de
suas diversas manifestações socioeconômicas e socioespaciais, como mendigos, operários,
balconistas, engenheiros, médicos, professores, bancários, sem-teto, sem-terra, estudantes,
catadores de lixo etc. Dessa forma, renegar a existência e a essência política dos trabalhado-
res é sucumbir às alienações e aos fetichismos que são traços marcantes da modernidade.
A grande questão que ecoa nesse momento é como continuar avançando rumo à eman-
cipação social? Para tentar refletir sobre essa e outras questões penso que o retorno à teoria
do espaço de Henri Lefebvre é, nesse instante, algo indispensável, pois se há algo que ficou
evidente nesses protestos é a centralidade do espaço para o engajamento na ação política.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1944). A indústria cultural: o esclarecimento como mis-
tificação das massas. In: ____. (Org.). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1985.
BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. 2. ed. São Paulo: Boi-
tempo Editorial, 1999.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Trad. João Wanderley Geraldi.
Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.
pdf >. Acesso em: 25 out. 2011.
CARLOS, Ana Fani. Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contexto, 2001.
CASTELLS, Manoel (1972). A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. Itens 1e 2 da Parte II: A
ideologia urbana.

190
CASTELLS, Manoel. City, class and power. Londres: The Macmillan Press, 1978.
COSTA, Geraldo Magela. A contribuição da teoria do espaço de Lefebvre para a análise urbana. In: X EN-
CONTRO ANUAL DA ANPUR, 2003.
COSTA, Geraldo Magela. Teorias socioespaciais: diante de um impasse? In: VII ENCONTRO NACIO-
NAL DA ANPUR, Porto Alegre, 24-28 de maio de 1999. Publicado na revista eletrônica ETC... Espaço, Tem-
po e Crítica, n. 2, v. 1, jul.-set. 2007. Disponível em: <http://www.uff.br/etc/UPLOADs/etc%202007_2_2.
pdf>.
FOUCAULT, Michel (1975). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 1987.
FREITAS, Eliano de Souza Martins. O movimento ecológico e a (re)produção social da metrópole ao sul
de Belo Horizonte. In: COSTA, Heloisa Soares de Moura (Org.). Novas periferias metropolitanas – a expan-
são metropolitana em Belo Horizonte: dinâmica e espacificidades no Eixo Sul. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.
GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993.
HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Editora Loyola, 2000.
HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Ermínia. Cidades rebeldes: passe livre e as manifes-
tações que tomaram o Brasil. Boitempo, 2013. p. 47-61.
LEFEBVRE, Henri (1974). The production of space. 3. ed. Oxford: Blackwell, 1991.
LEFEBVRE, Henri (1970). A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri (1969). O direito à cidade. São Paulo. Centauro, 2001.
LEFEBVRE, Henri (1992). Rhythm analysis: space, time and everyday life. Trans. Stuart Elden; Gerald Mo-
ore. London/New York: Continuum, 2004.
LEFEBVRE, Henri (1972). Espaço e política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins. Belo Ho-
rizonte: Editora UFMG, 2008.
LEFEBVRE, Henri (1974). A produção do espaço. Versão preliminar para estudos; tradução: Grupo “As (im)
possibilidades do urbano na metrópole contemporânea”, do Núcleo de Geografia Urbana da UFMG (do ori-
ginal: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000), Belo Horizonte: IGC/UFMG, 2012.
MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido! In: ____. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifesta-
ções que tomaram o Brasil. Boitempo, 2013. p. 32-46.
MARX, Karl (1865). Salário, preço e lucro. Bauru, SP: EDIPRO, 2004.
MARTINS, Sérgio. Poder, política, urbano e a caixa de Pandora. Cidades, Presidente Prudente, v.7, n. 11, p.
79-120, jan.-jun. 2010.
MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Outras fronteiras: novas espacialidades na urbanização brasileira. In:
CASTRIOTA, L. B. (Org.). Urbanização brasileira: redescobertas. Belo Horizonte: C/Arte, 2003. p. 260-271.
MOVIMENTO PASSE LIVRE (MPL). Disponível em: <http://saopaulo.mpl.org.br/>. Acesso em: 18
maio 2014.
POGREBINSCHI. Thamy. O enigma do político: Marx contra a política moderna. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira, 2009.

191
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, A. (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Le-
tras; Brasília: MinC; Rio de Janeiro: Funarte, 1996.
SOJA, Edward. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993.

192
Espaços urbanos coletivos, heterotopia
e o direito à cidade:
reflexões a partir do pensamento de
Henri Lefebvre e David Harvey
Orlando Alves dos Santos Junior

Introdução1

A subordinação da cidade ao desenvolvimento capitalista e a sua necessidade incessante de


produção de capital excedente implica um processo constate de crescimento urbano, ba-
seado na destruição-reconstrução das cidades, com graves impactos sociais, ambientais e
políticas associados a essa dinâmica. Para isso, o capital se apropria dos espaços urbanos co-
letivos da cidade visando garantir as condições necessárias para a produção-reprodução das
relações capitalistas. O desafio nesse contexto seria imaginar e construir um tipo totalmente
diferente de cidade que rompa com a dinâmica do capital, fundado em novas formas de
apropriação da cidade, o que implica articular teoria e práxis. Mas para isso ocorrer torna-
se necessário criar um novo conhecimento sobre o urbano e um forte movimento social
anticapitalista focado na transformação do cotidiano da vida urbana como seu objetivo, o
que envolve novas formas de apropriação dos espaços urbanos comuns. É nesse contexto,
e desde uma perspectiva dialética, que o presente ensaio articula as formulações de Henri
Lefebvre e de David Harvey, buscando contribuir para a compreensão dos processos de pro-
dução do espaço no capitalismo contemporâneo, a discussão sobre o futuro das cidades e as
perspectivas de transição para uma sociedade urbana fundada na justiça social e na demo-
cracia. Cabe destacar que, efetivamente, muitas das formulações de Harvey têm como ponto
de partida os insights de Lefebvre. Desde o livro Social Justice and The City (1973), Harvey
vem incorporando as ideias e concepções de Lefebvre na sua reflexão sobre o espaço urbano

1 Uma versão reduzida deste artigo foi publicada anteriormente em Santos Junior (2014).
e a produção capitalista do espaço, assim como nas suas formulações em torno da teoria do
desenvolvimento geográfico desigual. Mais recentemente, percebendo que a ideia do direito
à cidade vinha experimentando um certo ressurgimento na última década, Harvey retoma
as reflexões de Lefebvre no seu livro Rebel Cities (2012), atualizando o debate em torno do
direito à cidade e da revolução urbana.
Para tanto, este ensaio está organizado em torno de quatro ideias centrais: (i) uma
concepção dialética de espaço para problematizar a produção e a apropriação dos espaços
urbanos coletivos da cidade; (ii) o reconhecimento dos espaços urbanos coletivos como
espaços atravessados por contradições, disputas e conflitos materiais e simbólicos entre
diferentes agentes; (iii) o direito à cidade como uma necessidade e como um projeto utó-
pico; e (iv) o desafio da articulação das práticas heterotópicas na perspectiva da rebeldia
criativa pelo direito à cidade e da transição para uma nova sociedade urbana.

Primeira ideia: uma concepção dialética de espaço para


problematizar a produção e apropriação dos espaços urbanos
coletivos da cidade

É interessante começar esta reflexão questionando o que é um espaço urbano coletivo ou


comum. Seria o espaço público o espaço produzido pelo Estado, o espaço apropriado por
grupos ou coletividades, ou o espaço da ação política?
Do ponto de vista físico urbanístico, um espaço urbano coletivo ou comum po-
deria ser considerado como aquele espaço que, dentro da cidade, é de uso público e pos-
se coletiva, e pertence ao poder público ou à sociedade como um todo. Por exemplo, os
espaços de circulação (como a rua ou a praça), os espaços de lazer e recreação (como os
parques urbanos ou praças), os espaços de contemplação (como uma cachoeira), ou os
espaços de preservação ou conservação (como uma reserva ecológica). Em todos estes
casos, estaria garantido o livre direito de ir e vir de todos os cidadãos.
Mas também existem os espaços urbanos coletivos ou espaços públicos que pos-
suem uma certa restrição ao acesso e à circulação, como os edifícios públicos, as instituições
de ensino e saúde, os centros de cultura. Nesse caso, temos, por exemplo, os hospitais e as
escolas, que definem regras de acesso, uso e circulação desses espaços. De fato, por mais li-
vres que sejam os espaços públicos, cabe perguntar, em cada contexto, quem efetivamente
se apropria desses espaços e quem exerce o poder e define as regras de acesso aos mesmos.
O espaço coletivo, entretanto, não é apenas um espaço físico. Para além da sua
materialidade, do ponto de vista político, o conceito de espaço público ou esfera pú-
blica se distingue da esfera privada e se refere ao espaço do interesse público (Bobbio,
2006), da constituição das identidades e da ação coletiva (Sader, 1988), da representa-

194
ção e da expressão coletiva da sociedade (Dahl, 1997), da liberdade política (O’Don-
nell, 1999), da condição de igualdade (Arendt, 1981), da formação democrática da
opinião e da vontade pública (Habermas, 1997).
Portanto, haveria diversas maneiras pelas quais poder-se-ia pensar a respeito dos
espaços urbanos coletivos, tanto do ponto de vista da sua apropriação material como
simbólica. Assim, antes de abordar especificamente os espaços urbanos coletivos, le-
vanta-se aqui uma breve reflexão em torno do próprio espaço, baseada nas contribui-
ções de David Harvey e de Henri Lefebvre.
Dentro da tradição dialética, Lefebvre (1991) propõe uma concepção em torno
do espaço fundada em uma triplicidade: a prática espacial (o espaço da percepção decor-
rente da realidade cotidiana); as representações do espaço (o espaço concebido, o espaço
representado), e os espaços de representação (o espaço vivido através das imagens e sím-
bolos, os espaços da paixão e da ação). Para o autor, “a prática espacial, as representações
do espaço e os espaços de representação contribuem de diferentes formas para a produ-
ção do espaço de acordo com suas qualidades e atributos, de acordo com a sociedade ou
o modo de produção em questão, e de acordo com o período histórico” (Lefebvre, 1991,
p. 46, tradução nossa). Lefebvre (2008, p. 55), portanto, “nega o espaço como um dado a
priori, seja do pensamento (Kant), seja do mundo (positivismo)”. O autor argumenta “que
toda a sociedade – e, portanto, todos os modos de produção com suas variações (isto é,
todas aquelas sociedades que caracterizam este conceito geral) produzem um espaço, seu
próprio espaço” (Lefebvre, 1991, p. 31, tradução nossa).
Harvey (1973; 2006) também propõe uma conceituação de espaço tripartite, mas
baseada na concepção absoluta, relativa e relacional do espaço:

Se tomarmos o espaço como absoluto ele se torna uma “coisa


em si mesmo” com uma existência independente da matéria. Ele
possui então uma estrutura que podemos utilizar para classificar
ou para individualizar fenômenos. A caracterização de um espa-
ço relativo propõe que ele deve ser entendido como uma relação
entre objetos, a qual existe somente porque os objetos existem e
se relacionam. Há outra acepção segundo a qual o espaço pode
ser tomado como relativo, e proponho chamá-lo espaço relacio-
nal – espaço tomado, à maneira de Leibniz, como um estando
contido em objetos, no sentido de que um objeto existe somen-
te na medida em que contém e representa dentro de si próprio as
relações com outros objetos (Harvey, 1980, p. 4-5).

O autor argumenta que em uma concepção dialética “o espaço não é nem absoluto,
relativo ou relacional em si mesmo, mas pode transformar-se em um ou em outro, dependen-

195
do das circunstâncias” e da práxis humana (Harvey, 1980, p. 5). Assim, complementa o autor,

o problema da correta conceituação do espaço é resolvido através da prá-


tica humana em relação a ele. Em outras palavras, não há respostas filosó-
ficas para as questões filosóficas que surgem sobre a natureza do espaço
– as respostas estão na prática humana (Harvey, 1980, p. 5).

A conceituação proposta por Harvey pode ser facilmente articulada com a de Le-
febvre. E é exatamente isso que Harvey (2006, p. 133, tradução nossa) propõe:

Proponho, portanto, um salto especulativo no qual colocamos a tríplice


divisão do espaço-tempo absoluto, relativo e relacional contra a divisão
tripartite do espaço experenciado, conceituado e vivido identificado por
Lefebvre. O resultado é uma matriz de três por três dentro da qual os pon-
tos de intersecção sugerem diferentes modalidades de compreensão dos
significados do espaço (e do tempo).

Além disso, Harvey propõe articular essa matriz conceitual com os conceitos mar-
xistas de valor de uso, valor de troca e valor, gerando uma nova matriz analítica. Nessa
perspectiva, o autor destaca que “tudo o que se refere ao valor de uso se situa na esfera do
espaço e tempo absolutos”, enquanto que “tudo o que diz respeito ao valor de troca se en-
contra no espaço-tempo relativo porque a troca envolve movimentos de mercadorias, di-
nheiro, capital, força de trabalho e pessoas ao longo do tempo e do espaço”. Por fim, como
valor é um conceito relacional, sua referência é, portanto, o espaço-tempo relacional”, su-
blinhando que “valor, Marx afirma, é imaterial, mas objetivo” (Harvey, 2006, p. 141).
Aqui já seria pertinente recolocar a questão em torno do que seria um espaço
urbano coletivo. Tomando como referência a abordagem de Harvey e de Lefebvre,
poderíamos dizer que os espaços de uso comum não seriam absolutos, relativos, nem
relacionais em si mesmo, mas caracterizados por dimensões relacionadas a estas três
dimensões em permanente tensão dialética.
Inspirado em um exemplo dado pelo próprio Harvey (2004), no qual o autor
tenta entender uma casa situada em um determinado espaço, pode-se olhar para um
espaço urbano coletivo, por exemplo, a Área Portuária da Cidade do Rio de Janeiro, e
reconhecer essas três dimensões. A área do Porto tem uma materialidade física e jurídica
relacionada ao espaço absoluto. Além disso, é possível situar a mesma área com relação a
outros locais, sejam de moradia, de trabalho, de lazer, comércio, e também com relação
aos fluxos de pessoas, serviços e dinheiro, reconhecendo, assim, sua posição no espaço
relativo. Por fim, também é possível tentar compreender a relação da área do Porto com
o processo de construção do parque imobiliário local e com os mercados imobiliários

196
globais, com a financeirização da economia, a história da cidade, os patrimônios históri-
cos existentes e o seu significado como um lugar atravessado por sentimentos e memó-
rias pessoais e coletivas, entre outros aspectos. Todos esses aspectos sustentam a área do
Porto como lugar de atividades econômicas, de lazer e circulação. Harvey sustenta que
a profunda compreensão sobre o processo de transformação dos espaços ao longo do
tempo, a área do Porto no exemplo aqui considerado, somente poderia ser alcançada
através da identificação dos efeitos produzidos simultaneamente por estas três formas
de espaço-temporalidade. Apesar de todas as dificuldades na aplicação dessa concepção
de espaço, como reconhece o próprio autor, as ideias que vêm desta abordagem dialética
podem abrir caminhos inovadores de se pensar as diferentes formas de apropriação dos
espaços urbanos coletivos pelos distintos agentes sociais e os conflitos sociais daí decor-
rentes, além de iluminar novas possibilidades de ação e rebeldia coletiva.
Dessa abordagem, pode-se perceber como os diferentes espaços comuns são vividos
e apropriados como espaços de experiência e de percepção associados ao cotidiano (espa-
ços experenciados pelas pessoas, quem usa os diferentes espaços e como os usam); como
são representados enquanto espaço (espaços conceitualizados de diferentes maneiras, como
espaços abertos ou fechados, distantes ou próximos, espaços de negócios ou de lazer etc.), e
como espaços de representação (espaço vivido, as sensações, as imaginações, as memórias,
as emoções e significados associados ao espaço comum). Os espaços urbanos coletivos são,
portanto, vividos tanto materialmente como intelectualmente e emocionalmente.
O que interessa reter desta discussão é que a práxis humana está produzindo, se
apropriando e resignificando os espaços comuns. Além disso, como registra Lefebvre
(1991, p. 55), “no que concerne a luta de classes, seu papel na produção do espaço é fun-
damental, tendo em vista que sua produção é efetuada fundamentalmente por classes,
frações de classes e grupos representativos de classes. Hoje, mais do que nunca, a luta de
classes se inscreve no espaço” (Lefebvre, 1991, p. 55, tradução nossa).

Segunda ideia: Os espaços urbanos comuns das cidades como


espaços atravessados por contradições, disputas e conflitos
materiais e simbólicos entre diferentes agentes

Aqui o ponto de partida é o reconhecimento da diversidade de agentes e interesses que


intervêm sobre a produção da cidade e suas diferentes formas de se relacionar com o solo
urbano, com a moradia e com os equipamentos urbanos como valores de usos e valores de
troca, entendidos como conceitos relacionais (Harvey, 1980). O que é valor de uso para um
determinado agente pode ser valor de troca para outro, e vice-versa, em função das diferentes
formas de reprodução material e simbólica dos agentes na cidade (Bourdieu, 1989; 1997).

197
Esta abordagem permite ver a cidade como uma arena onde se defrontam diferen-
tes agentes com diversos interesses. Cada agente busca atingir seus objetivos, seja relativo
à própria existência e reprodução social na cidade (viver bem ou ter ganhos simbólicos
relativos ao status de morar em um lugar especial) – valor de uso –, seja relativo às possibi-
lidades de ganhos materiais e acumulação de riqueza – valor de troca. Nessa perspectiva,
Bourdieu traz uma importante contribuição ao afirmar que o espaço objetivado, fisica-
mente realizado, das cidades seria a expressão do espaço social:

O espaço social reificado (isto é, fisicamente realizado ou objetivado) se


apresenta, assim, como a distribuição no espaço físico de diferentes espé-
cies de bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos
fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanen-
te) e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses ser-
viços mais ou menos importantes (em função de seu capital e também
da distância física desses bens, que também depende de seu capital). É na
relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espa-
ço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado
(Bourdieu, 1997, p. 161).

O espaço da cidade seria, portanto, a expressão das “grandes oposições sociais ob-
jetivadas no espaço físico”, na forma, por exemplo, da divisão entre o centro e a periferia, e
tenderia a se reproduzir nas formas de representação “e na linguagem sob a forma de opo-
sições constitutivas de um princípio de visão e de divisão, isto é, enquanto categorias de
percepção e de apreciação ou de estruturas mentais” (Bourdieu, 1997, p. 162). Assim, o
espaço da cidade se traduziria nas expressões que opõem os moradores dessas diferentes
áreas (por exemplo, no caso do Rio de Janeiro, a oposição entre o morador do asfalto e o
favelado, ou entre o carioca e o fluminense).
Deste patamar, Bourdieu (1997, p. 162) destaca que,

como o espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estrutu-


ras espaciais e nas estruturas mentais (...), o espaço é um dos lugares onde
o poder se afirma e se exerce, e sem dúvida, sob a forma mais sutil, a da
violência simbólica como violência desapercebida (...)

Pode-se concluir que, da mesma forma, os diversos agentes também se relacionam


de diferentes maneiras com os espaços urbanos coletivos – como espaços materiais ou
espaços políticos –, buscando garantir a sua reprodução social – valor de uso – ou ganhos
materiais e acumulação de riqueza – valor de troca. Na perspectiva da abordagem aqui
proposta, é possível refletir sobre os conflitos urbanos na cidade em torno de duas dimen-
sões interligadas: a apropriação material e simbólica dos espaços comuns.

198
Em relação à primeira dimensão, é válido considerar que determinadas formas de
apropriação dos espaços urbanos coletivos, por parte de certos agentes, podem ameaçar ou
colocar em risco as possibilidades de reprodução social de outros agentes, por dificultar ou
impedir o acesso a certos bens que se encontram distribuídos no espaço, afetando a qualida-
de de vida na cidade. E as possibilidades de apropriação dos espaços urbanos comuns pelos
agentes são diferenciadas segundo a posição dos mesmos na estrutura social, que se expressa
na estrutura urbana, e “os benefícios que eles proporcionam são resultado de lutas dentro
dos diferentes campos”, nos quais os agentes estão inseridos (Bourdieu, 1997, p. 163). Em
geral, os grandes projetos urbanos exemplificam bem esta disputa, ao promoverem remo-
ções e reestruturações que ameaçam as possibilidade de reprodução de diversos agentes.2
Essa dimensão se refere, portanto, às disputas materiais e às formas de apropriação
dos espaços urbanos coletivos. Mas existe uma segunda dimensão, interligada a esta, que
diz respeito às representações que os agentes têm dos espaços comuns, ou seja, à esfera
simbólica da vida, envolvendo os esquemas valorativos e de percepção que cada agente
tem em torno desses espaços.
Essas diferentes formas de representação e de percepção também têm um efeito
prático sobre a maneira como os agentes vivem e se apropriam dos espaços urbanos co-
letivos. Nesse ponto, pode-se pensar nas disputas em torno de conceitos, regras e leis que
regem os usos dos espaços públicos, que legitimam certas práticas de apropriação desses
espaços e deslegitimam outras. Essas disputas também são fonte de conflitos. E aqui, da
mesma forma, as possibilidades de definição das regras de uso e apropriação dos espaços
urbanos comuns pelos agentes são diferenciadas segundo sua posição na estrutura social.3
Então, os conflitos urbanos incluem não apenas as disputas materiais pela apro-
priação dos espaços urbanos comuns, mas também as disputas simbólicas, envolvendo as
leis, as regras e os conceitos que legitimam ou deslegitimam as práticas sociais dos agentes
sociais em torno dos espaços urbanos comuns. Em síntese, a capacidade de dominar os
espaços urbanos coletivos, sobretudo apropriando-se material ou simbolicamente dos
bens e serviços que se encontram neles distribuídos, depende do capital dos agentes nas
suas diferentes formas (econômico, cultural, político, simbólico etc.) (Bourdieu, 1997).

2 Diversos projetos urbanos implementados no Brasil ilustram bem este processo, entre os quais pode-se
citar: o Projeto do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, a implantação do Complexo Pretroquímico do
Estado do Rio de Janeiro (COMPERJ), o Projeto Olímpico do Rio de Janeiro e o Projeto Linha Verde em
Belo Horizonte. Um panorama dos impactos desses projetos encontra-se em Oliveira et al. (2012).
3 O artigo de Freire (2013) é bastante ilustrativo dessas disputas simbólicas, no caso, envolvendo o conflito
em torno da tentativa de remoção da comunidade da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro, no âmbito das
intervenções vinculadas à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016.

199
Como Lefebvre argumenta, o espaço comum, na sociedade capitalista, é um espa-
ço apropriado na perspectiva de se constituir um sistema, uma coerência, o que remete
ao conceito de coerência estruturada, da teoria do desenvolvimento desigual de Harvey
(2005). Como essa coerência seria alcançada? Para Lefebvre (2008, p. 56), “mascaran-
do-se suas contradições”, o “caráter ao mesmo tempo, global e pulverizado, conjunto e
disjunto”, homogêneo e desarticulado dos espaços. A estratégia dominante tentaria asse-
gurar, desta forma, produção de relações sociais e a reprodução dessas relações de classes
através do espaço inteiro, “aí incluídos o espaço urbano, os espaços de lazeres, os espaços
ditos educativos, os da cotidianidade etc.” (Lefebvre, 2008, p. 49).
No entanto, como lembra Lefevbre, apesar de mascaradas, as contradições do es-
paço explodem por uma dupla razão. Em primeiro lugar, decorrente da própria produção
e apropriação social, em especial, pelo capital. Ao mesmo tempo que pretende ser, na lógi-
ca do capitalismo, um espaço global, conjunto e racional, sua dinâmica de funcionamen-
to despedaça, comercializa, vende, divide o espaço em parcelas, tornando-o “ao mesmo
tempo global e pulverizado”. Em segundo lugar, no plano institucional, essas contradições
apareceriam entre “a propriedade privada do solo, que se generalizaria por todo o espaço,
com exceção dos direitos das coletividades e do Estado” (Lefebvre, 2008, p. 57) e a globa-
lidade, o conhecimento e a estratégia do próprio Estado. Em outras palavras, existiria uma
contradição entre o espaço abstrato (concebido, global e estratégico) e o espaço apropria-
do, imediato, vivido e fragmentado. Contradição esta que se expressaria nos planos de
ordenamento do solo e nos projetos parciais de produção e apropriação do espaço por
parte dos incorporadores e agentes econômicos.
De forma similar, o conceito de coerência estruturada do espaço, elaborado por
Harvey (2005; 2006), também expressa essa tentativa, por parte do capital, de criar um
espaço à sua imagem e semelhança, no contexto das restrições espaciais existentes sob
condições tecnológicas determinadas. No entanto, essa coerência estaria, do mesmo
modo, sujeita a constantes tensões e contradições decorrentes da própria dinâmica do
capitalismo, e tenderia a ser abalada pelas forças da acumulação e da superacumulação,
pela mudança tecnológica e pela luta de classes. No entanto, esse poder de destruição
da coerência estruturada dependeria “da mobilidade geográfica tanto do capital como da
força de trabalho, e essa mobilidade depende da criação de infraestruturas fixas e imobili-
zadas” (Harvey, 2005, p. 150).
Assim, a dinâmica capitalista seria marcada pela tensão entre a preservação e a con-
tinuidade dos elementos constitutivos da coerência estruturada existente em um espaço
e tempo determinados (relações de poder, reprodução social, valores, cultura etc.), e a
destruição dessa mesma coerência, para dar lugar a um novo espaço para a acumulação
de capital. Para Harvey (2005, p. 150),

200
continuamente, portanto, o capitalismo se esforça para criar uma
paisagem sociais e física da sua própria imagem, e requisito para
suas próprias necessidades em um instante específico do tempo,
apenas para solapar, despedaçar e inclusive destruir essa paisa-
gem num instante posterior do tempo. As contradições internas
do capitalismo se expressam mediante a formação e a reforma-
ção incessantes das paisagens geográficas. Essa é a música pela
qual a geografia histórica do capitalismo deve dançar sem cessar.

Em suma, trazendo essa abordagem para o tema de análise deste ensaio, tem-se uma
concepção em torno dos espaços urbanos coletivos das cidades marcada por conflitos e con-
tradições. Isso permite refletir sobre as formas de apropriação material e simbólica desses espa-
ços pelos diferentes agentes sociais, bem como sobre as dinâmicas de produção, preservação,
reprodução, destruição e criação de novos espaços urbanos comuns, identificando os fatores
que incidem sobre suas homogeneidades e heterogeneidades, continuidades e rupturas.

Terceira ideia: o direito à cidade como


necessidade e como projeto utópico

No capitalismo, certos espaços comuns, enquanto espaços físicos produzidos pelo Estado,
são fundamentais para a reprodução do capital: vias, estradas, praças, portos, aeroportos,
ruas, vilas, prédios públicos, o que resulta em tipo específico de urbanização. Da mesma
forma, certos espaços públicos como espaços políticos também são crucias: Parlamento,
o Poder Executivo, agências do Estado etc. A urbanização envolve, portanto, a criação de
espaços comuns que garantam as condições de produção e reprodução do capital.
Mas, o espaço urbano é mais do que a criação das condições de reprodução do
capital. O espaço urbano é, ao mesmo tempo também, a produção e a reprodução das
relações de produção capitalista. Nessa perspectiva, Lefebvre destaca que “o capitalismo
só se manteve estendendo-se ao espaço inteiro” (Lefebvre, 2008, p. 117), o que implica
na necessidade do capital produzir e reproduzir seu próprio espaço. Ao longo da História,
o capitalismo tem modificado as cidades segundo suas exigências: “Mais ou menos des-
pedaçada em subúrbios, periferias, aglomerações satélites, a cidade torna-se, ao mesmo
tempo, centro de decisões e fonte de lucro” (Lefebvre, 2008, p. 175). E nesse processo
de produção da cidade “se emprega uma imensa força de trabalho, tão produtiva quanto
a força de trabalho empregada na manutenção e alimentação das máquinas (Lefebvre,
2008, p. 175). Na mesma perspectiva analítica, Harvey argumenta que “urbanização é
em si mesma produzida. Milhares de trabalhadores estão envolvidos em sua produção,
e seu trabalho é produtor de valor e de mais valor. Porque não focar, portanto, na cidade,

201
em vez de na fábrica como o local principal de produção de mais-valor?” (Harvey, 2012,
p. 129-130, tradução nossa). Em suma, torna-se necessário considerar a produção da
cidade como um processo de produção de mais valor.
A partir desta abordagem, pode-se dizer que a produção da cidade capitalista está asso-
ciada, inevitavelmente, à luta de classes. Como Harvey (2012, p. 115, tradução nossa) sustenta,

se a urbanização é tão crucial na história da acumulação de capital, e se


as forças do capital e seus inúmeros aliados devem incansavelmente se
mobilizar para periodicamente revolucionar a vida urbana, então, lutas
de classe de algum tipo, não importa se elas são explicitamente reconhe-
cidas como tais, estão inevitavelmente envolvidas. Isto ocorre porque as
forças do capital têm que lutar fortemente para impor sua vontade sobre
processos urbanos e populações inteiras, que nunca estarão, mesmo sob
a mais favorável das circunstâncias, sob seu controle total.

Considerando a produção do espaço, existe ainda um outro aspecto importan-


te levantado por Lefevbre (2008) relacionado ao que poderíamos chamar de “fetiche
do espaço”. Lefebvre, lembrando Marx, afirma que as mercadorias, produzidas e tro-
cadas por meio do dinheiro como coisas, contêm e dissimulam as relações sociais, e
argumenta que, do mesmo modo, pode-se falar do espaço. Assim, pode-se dizer que a
apropriação privada do solo, a subordinação do espaço ao capital e a institucionalidade
mediada pelo Estado seriam responsáveis por criar o fetiche do espaço, dissimulando
as relações sociais contidas nos espaços comuns.
É a partir dessa abordagem que ganha sentido a ideia do direito à cidade, tal como for-
mulada por Henri Lefevbre (1967, p. 158, tradução nossa): “o direito à cidade é como um grito
e uma demanda.” Como observa Marcuse (2012), em Lefebvre, a ideia do direito à cidade
aciona duas dimensões: de um lado, uma exigência, uma demanda às necessidades de repro-
dução social na cidade; de outro, um projeto, uma demanda coletiva por uma nova cidade,
expressando o direito de reivindicar algo que não existe ainda, o direito a uma outra cidade.
Como exigência, o direito à cidade expressaria uma demanda às necessidades de
reprodução social na cidade, e estaria vinculado às lutas contra a despossessão – estamos
nos referindo às reivindicações em torno da moradia, do saneamento, da mobilidade, da
educação, da saúde, da cultura, da participação democrática etc. Assim, “o grito expressaria
necessidades materiais de vida, a aspiração por direitos mais amplos, para além das neces-
sidades materiais, para levar uma vida satisfatória” (Marcuse, 2012, p. 31, tradução nossa).
Nesta perspectiva, o direito à cidade como uma exigência (o direito à cidade
como um grito) poderia ser traduzido na diversidade de agendas dos movimentos so-
ciais urbanos que emergem em distintos países, em especial na América Latina: os mo-

202
vimentos dos sem-teto, pela reforma urbana, pelo saneamento ambiental, pela cidade
justa, justiça ambiental, passe livre nos transportes coletivos, contra as remoções, pelo
direito dos imigrantes, os movimentos culturais, entre outros. Essa heterogeneidade é
perceptível também nas lutas institucionais em torno de mudanças na legislação urba-
na, envolvendo a criação de zonas de especial interesse social, programas de habitação
de interesse social, programas de regularização fundiária de favelas e bairros populares,
além da ampliação dos espaços de participação política, tais como o Orçamento Parti-
cipativo e os conselhos municipais com a participação da sociedade. Todas essas lutas
poderiam ser consideradas parte do direito à cidade na medida em que incidem sobre a
desmercantilização e ampliação do acesso ao solo urbano, à habitação e aos serviços pú-
blicos. Em suma, esse conjunto de mobilizações repercute sobre aspectos fundamentais
da reprodução social na cidade. No entanto, é preciso considerar que estas lutas dizem
respeito apenas a esta dimensão do direito à cidade. De fato, em toda a sua plenitude, o
direito à cidade não pode ser realizado no âmbito da urbanização capitalista.
Como demanda coletiva por um novo projeto de cidade, o direito à cidade está
ligado à criação de uma vida alternativa urbana menos alienada, que promova a emanci-
pação humana. Trata-se do direito de reconstruir a cidade na perspectiva da justiça social
e da felicidade. Assim, o direito à cidade expressa o direito de reivindicar uma outra cidade.
Como registra Marcuse (2012, p. 34, tradução nossa):

A demanda pelo direito à cidade é uma demanda por um direito


amplo e abrangente, um direito não apenas no sentido legal de
um direito a benefícios específicos, mas um direito no sentido
político, uma reivindicação não somente para um direito ou um
conjunto de direitos por justiça dentro do sistema legal existente,
mas um direito em um plano moral mais elevado que exige um
sistema melhor no qual os potenciais benefícios da vida urbana
possam ser plena e totalmente realizados.

Como afirma Lefebvre (2008, p. 34), “tomando em toda a sua amplitude”, o direito
à cidade apareceria como um projeto utópico, ou nos termos do próprio autor, um projeto
“utopiano”, no sentido de algo que “não é possível hoje, mas pode ser amanhã” (Lefebvre,
2008, p. 162). Assim, “reivindicar o direito à cidade é, com efeito, reivindicar um direito a
algo que não existe ainda” (Harvey, 2012, p. xv, tradução nossa). Desta forma, “a definição
do direito à cidade é, em si mesma, objeto de luta, e esta luta se desenvolve concomitante-
mente com a luta pela sua materialização” (Harvey, 2012, p. xv, tradução nossa).
Nesse sentido, antes de opor uma perspectiva a outra (a necessidade versus o pro-
jeto utópico), parece mais fértil articular dialeticamente essas duas dimensões. O desafio

203
estaria, assim, na articulação das lutas vinculadas às demandas por necessidades funda-
mentais para a reprodução social na cidade e a agenda em torno de um projeto utópico
por uma nova cidade, justa, democrática e emancipadora.
Historicamente, a cidade industrial foi subordinada ao desenvolvimento capitalis-
ta e ao seu incessante movimento de produção de mais-valia e sobreacumulação, o que
implica no crescimento urbano ininterrupto, com todos os seus perversos efeitos sociais,
ambientais e políticos. Para Harvey (2012, p. 80, tradução nossa), a “urbanização capi-
talista tende perpetuamente a destruir a cidade como um bem comum social e político
habitável”. De fato, o processo de acumulação de capital, sustenta Harvey (2012, p. 80,
tradução nossa), “ameaça destruir os dois recursos fundamentais de propriedade comum
que sustentam todas as formas de produção: o trabalhador e a terra”, sublinhando que
terra habitada “é um produto do trabalho humano coletivo”. Assim, no capitalismo, “a ur-
banização se expressa na produção permanente de bens urbanos comuns (ou sob a forma
de espaços públicos e bens públicos) e de sua perpétua apropriação e destruição por inte-
resses privados” (Harvey, 2012, p. 80, tradução nossa).
Em síntese, na perspectiva do direito à cidade, torna-se fundamental articular
as lutas em torno das necessidades de reprodução social e do projeto utópico por uma
nova cidade aos espaços urbanos comuns. Tais espaços incidem diretamente nas condi-
ções de reprodução social na cidade, tanto no sentido da ampliação do acesso à moradia,
ao saneamento ambiental, à mobilidade urbana, à cultura e ao lazer, à saúde e à educação,
ao meio ambiente sustentável etc. como no sentido da desmercantilização desses bens e
serviços. Mas os espaços urbanos comuns da cidade também dizem respeito às formas
de sociabilidade, às formas de apropriação do espaço e do tempo, e expressam valores e
ideários sobre a cidade que se deseja viver.
Dessa forma, sustenta Harvey (2012, p. xvi), “nossa tarefa política, Lefebvre
sugere, é imaginar e reconstituir um tipo totalmente diferente de cidade que supere a
revoltante confusão de uma globalização e urbanização capitalista fora de controle”, o
que envolve novas formas de apropriação dos espaços públicos como espaços urbanos
comuns. No entanto, “isto não pode ocorrer sem a criação de um vigoroso movimento
anticapitalista que tenha centralmente a transformação da vida urbana cotidiana como
seu objetivo” (Harvey, 2012, p. xvi).
Isso coloca o desafio de uma reflexão sobre os sujeitos da transformação social. Sem
aprofundar tal tema neste ensaio, dois aspectos parecem cruciais: a necessidade de redefinir o
conceito de classe, tal como sugere David Harvey (2012), a partir dos agentes que constroem
a cidade; e a necessidade de romper com uma visão homogeneizadora da classe trabalhadora.
Enfrentar as condições históricas e sociais contemporâneas do capitalismo neoli-
beral requer avançar sobre a interpretação marxista tradicional centrada na relação entre

204
capital e trabalho no âmbito da produção, como lugar de apropriação de mais-valor, o
que leva a tratar as lutas urbanas como conflitos relacionados ao âmbito da reprodução,
desprovidos de potencial revolucionário, por não envolver a classe trabalhadora enquanto
tal. Essa interpretação muitas vezes pareceu acreditar que a expansão do assalariamento
geraria uma homogeneização dos trabalhadores e que, decorrente das condições objeti-
vas da estrutura produtiva, poderia se desenvolver uma consciência de classe.
É evidente que esta visão reducionista negligencia os mecanismos pelos quais o
capitalismo neoliberal ao mesmo tempo que tem a capacidade de homogeneizar, no sen-
tido de subordinar tudo a forma-mercadoria, promove a diferenciação dos trabalhadores,
acionando distinções simbólicas envolvendo a cultura, as relações de gênero, as caracte-
rísticas étnicas, os padrões de consumo, as crenças religiosas, entre outros fatores. Assim,
no contexto da homogeneização das relações de mercado, o capitalismo neoliberal seria
caracterizado por sua forte capacidade de fragmentar e dividir, o que se expressaria igual-
mente na produção de diferenciações e desigualdades espaciais.
Visando avançar sobre essa abordagem, Harvey levanta duas questões centrais.
Em primeiro lugar, o autor não vê “nenhuma razão pela qual não se deva interpretar as
lutas no local onde os trabalhadores vivem como luta de classes e como luta por direi-
tos de cidadania”, já que “a dinâmica da exploração de classe são não se limita ao local
de trabalho”, (Harvey, 2012, p. 128-129, tradução nossa), como mostram as práticas de
despossessão promovidas pelo capitalismo neoliberal contemporâneo, tais como as re-
moções de comunidades decorrentes dos grandes projetos urbanos e as privatizações
de espaços urbanos comuns. Como o autor sustenta, “estas formas de exploração são e
sempre foram vitais para a dinâmica global da acumulação de capital e a perpetuação do
poder de classe” (Harvey, 2012, p. 129, tradução nossa).
Em segundo lugar, Harvey (2012, p. 129-130) argumenta que a “urbanização é em
si mesma produzida. Milhares de trabalhadores estão envolvidos em sua produção, e seu tra-
balho é produtor de valor e de mais valor”. Assim, prossegue ele, “porque não focar, portan-
to, sobre a cidade, no lugar da fábrica, como o principal local de produção de mais-valor?” A
questão que emerge desta reflexão diz respeito a saber então quem são esses trabalhadores que
produzem a cidade. Para além dos trabalhadores da construção civil em particular, existem
outras forças de trabalho envolvidas na produção da cidade que merecem ser considerados.
Nesse contexto, a luta pelo direito à cidade poderia se constituir em ideário capaz
de promover a unidade de classe no contexto da fragmentação e diferenciação neoliberal.
Como afirma Harvey (2012, p. 137, tradução nossa),

o direito à cidade não é exclusivamente um direito individual exclusivo,


mas sobretudo um direito coletivo. É, inclusive, não apenas dos traba-

205
lhadores da construção, mas também de todos aqueles que facilitam
a reprodução da vida cotidiana: profissionais da saúde, professores, os
técnicos do metrô e da rede de saneamento, os encanadores e eletri-
cistas, os montadores de andaimes e os operadores de guindaste, os
trabalhadores dos hospitais e os motoristas de caminhões, ônibus, táxi,
os trabalhadores de restaurantes e os artistas, os bancários e os admi-
nistradores da cidade. O direito à cidade busca uma unidade a partir
de uma incrível diversidade de espaços sociais fragmentados e locais
dentro de inúmeras divisões do trabalho.

Na perspectiva da abordagem aqui proposta, são esses os sujeitos da transfor-


mação social que têm o potencial de formar o movimento anticapitalista, conforme
sugerido por Lefebvre, fundamental para garantir a plenitude do direito à cidade, como
uma exigência política classista.

Quarta ideia: o desafio da articulação das práticas


heterotópicas na perspectiva da rebeldia criativa pelo direito
à cidade e da transição para novos futuros urbanos

Lefebvre (1999; 2008) formula três conceitos importantes para pensar as contradições
na produção e apropriação do espaço: espaços isotópicos, espaços heterotópicos e es-
paços utópicos.
De forma simplificada, os espaços isotópicos, definidos pela isotopia, por se cons-
tituírem no mesmo lugar, poderiam ser concebidos como espaços homólogos à lógica
do capital, tendo funções e estruturas análogas na perspectiva da reprodução do capital,
sendo, portanto, espaços do capital, mercantilizados, ou seja, valor de troca. Nesse sentido,
os espaços produzidos pelo poder público, na lógica da criação das condições de repro-
dução do capital ou na lógica da dominação política, também poderiam ser concebidos
como espaços isotópicos. Assim, pode-se dizer que os espaços de participação criados e
utilizados como mecanismos de dominação seriam igualmente espaços isotópicos.
Os espaços heterotópicos, caracterizados pela heterotopia, pelo espaço da diferen-
ça, seriam espaços contrastantes, às vezes de conflitos, apropriados pelos agentes como
espaços de reprodução da vida, desmercantilizados, representando, portanto, valor de uso.
Tais espaços se referem à multiplicidade de usos dos espaços na vida cotidiana da cidade.
Por fim, os espaços utópicos, definidos pela utopia, pelo não-lugar, pelo alhures,
são os que não existem plenamente ainda. Para Lefebvre (1999, p. 45-46), o utópico “é
real. Ele está no coração desse real, a realidade urbana, que não está, ela própria, desprovi-
da dessa semente. No espaço urbano, o alhures está em toda parte, e em nenhuma parte.”

206
Para Harvey (2012, p. xvii, tradução nossa):

O conceito de heterotopia (radicalmente diferente do de Foucault) de


Lefebvre delineia espaços sociais liminares de possibilidade onde “algo
diferente” não apenas é possível, mas fundamental para a definição das
trajetórias revolucionárias. Este “algo diferente” não surge necessaria-
mente de um plano consciente, mas simplesmente do que as pessoas
fazem, sentem, percebem, e conseguem articular com a busca de signi-
ficado para as suas vidas diárias. Tais práticas criam espaços heterotópi-
cos em todos os lugares. Nós não temos que esperar a grande revolução
para a constituição desses espaços.

O interessante desta análise é que esses espaços heterotópicos não surgiriam


apenas depois de uma ruptura com o sistema capitalista, a partir da qual poder-se-ia
planejar a construção dos mesmos e a realização de novos espaços utópicos. Tais espa-
ços já existem e atravessam a cidade.
Assim, pode-se identificar a heterotopia nas inúmeras práticas do movimento so-
cial, nas manifestações culturais e nas ações coletivas pela desmercantilização da cidade,
que promovem novas formas de apropriação dos espaços urbanos coletivos. Os espaços
da cidade ganham novos significados através dessas práticas: praças, ruas, prédios ocu-
pados coletivamente, museus, teatros, parques, rios, praias, galpões abandonados, trens,
ônibus, metrô, escadarias, pontes, escolas, entre outros. Nenhum espaço público escapa
das novas possibilidades criadas, de modo que todos estes podem ser reapropriados de
forma criativa por meio de ações coletivas.
No caso do Brasil, a organização e luta dos Comitês Populares da Copa, surgi-
dos no contexto da organização desses megaeventos esportivo nas cidades-sedes da
Copa do Mundo de 2014, pode ser vista como exemplo dessas práticas heterotópicas.
Através de ações de resistências aos despejos de comunidades afetadas pelas interven-
ções urbanas, da mobilização e de manifestações de rua contra a mercantilização e eli-
tização das cidades, da denúncia contra as violações de direitos humanos associadas
a este megaevento esportivo, e da defesa da gestão pública dos estádios de futebol, os
Comitês Populares da Copa estão incidindo diretamente na defesa dos espaços urba-
nos comuns e promovendo novas formas de apropriação das cidades. Nesse contexto,
destacam-se as mobilizações coletivas desenvolvidas pelo Comitê Popular da Copa e
das Olimpíadas do Rio de Janeiro contra a remoção dos moradores da Vila Autódro-
mo, localidade vizinha à área onde será construído o Parque Olímpico (Freire, 2013),
que se tornou um “símbolo de resistência”, tanto às remoções de assentamentos popu-
lares como do projeto empreendedorista neoliberal de cidade que vinha sendo cons-
truído pela poder público municipal.

207
Assim, parece interessante pensar as transformações urbanas e os conflitos con-
temporâneos à luz desses conceitos. De uma maneira esquemática, parece possível afir-
mar que a conjuntura atual está marcada pela disputa entre dois ideários de política ur-
bana: o ideário da cidade neoliberal e o ideário do direito à cidade, com seus diferentes
impactos sobre a dinâmica das cidades.
No ideário da cidade neoliberal, se situam as estratégias de empresariamento
urbano, city marketing, e reestruturação urbana neoliberal (Harvey, 2005; Hackworth,
2007; Theodore; Peck; Brenner, 2009). A política urbana é transformada em relações
de mercado, no qual ganha quem tem maior poder para impor os lucros e os custos
da ação do poder público. Nessa concepção, a participação social estaria fundada no
reconhecimento dos agentes como clientes-consumidores, portadores de interesses
privados, impedindo a construção de uma esfera pública que seja a expressão do inte-
resse coletivo. No plano do planejamento, esse ideário busca sua legitimação através de
estratégias discursivas fundadas nos modelos de planejamento estratégico, na promo-
ção de megaeventos (em especial os megaeventos esportivos como a Copa do Mundo
e as Olimpíadas) e na difusão de modelos de cidades considerados bem-sucedidos na
construção de um ambiente favorável aos negócios. Tais estratégias são empreendidas
e difundidas pela ação de atores hegemônicos que envolvem agências multilaterais, ins-
tituições financeiras, governos nacionais e locais. A cidade não é mais tratada na sua
totalidade e a noção de cidadania perde sua conexão com a ideia de universalidade.
Por isso mesmo, surge um novo vocabulário que expressa a representação da relação
entre poder público e sociedade, concebida como um conjunto de interesses privados:
clientes, consumidores e parcerias público-privadas. A questão é avaliar o poder de essa
concepção continuar influenciando a neoliberalização das políticas urbanas nos países
centrais e periféricos e discutir seus efeitos em termos políticos, sociais e ambientais
sobre as diferentes cidades. A permanecer a força dessa concepção, pode-se prever para
os próximos anos um aumento das desigualdades sociais, a perda de legitimidade das
instituições políticas e o agravamento das injustiças ambientais.
Do ponto de vista do capital, a difusão da governança empreendedorista e da ci-
dade neoliberal pode ser vista como processos de criação de isotopias, de mercantilização
dos espaços urbanos comuns das cidades e de sua subordinação à lógica do capital.
O outro ideário, do direito à cidade, está em construção, tanto no seu aspecto
teórico como na práxis sociopolítica. Em gestação em um largo conjunto de experi-
ências de ação coletiva, mobilização social e gestão pública, essa concepção afirma o
caráter público do planejamento urbano e a necessidade de enfrentamento dos me-
canismos de produção de desigualdades sociais decorrentes da vigência da subordi-
nação da produção e gestão da cidade à lógica do mercado e do lucro capitalista. Esse

208
ideário tem jogado um papel decisivo na resistência a mercantilização da cidade e na
construção de alternativas ao projeto de cidade neoliberal. Não obstante, é preciso
reconhecer que este ideário ainda está longe de se constituir em força hegemômica,
pelo menos na conjuntura atual.
Do ponto de vista da transição para uma revolução urbana, o desafio seria promo-
ver heterotopias, desmercantilizar os espaços urbanos comuns e de construir a articulação
e a unidade entre os diferentes grupos heterotópicos em torno de um novo projeto utópi-
co e da ação coletiva visando o direito à cidade na sua plenitude, através da construção de
uma cidade totalmente diferente. Mas essa revolução urbana não deve ser vista como um
momento específico no tempo, desconectado das práticas heterotópicas atualmente em
curso. Como sublinha Harvey (2012, p. xvii, tradução nossa),

a teoria do movimento revolucionário de Lefebvre é o oposto: o espontâ-


neo caminha junto no momento de “irrupção”, quando grupos heterotópi-
cos díspares de repente veem, mesmo que apenas por um breve momento,
as possibilidades de ação coletiva para criar algo radicalmente diferente.

Para Lefebvre, “em poucas palavras, a revolução urbana e a democracia concreta


(desenvolvida) coincidem” (Lefebvre, 1999, p. 126).
O desafio da transição para a revolução urbana requer a construção de uma pla-
taforma política coletiva e de uma coalizão popular que promova o conflito em torno da
apropriação dos espaços urbanos comuns, que envolva não apenas o acesso aos espaços
atualmente existentes, mas também a criação de novos espaços urbanos comuns de so-
cialização e de ação política que possibilitem essa unidade e a promoção de novas formas
de apropriação da cidade. Mas isso requer também o reconhecimento da existência de
múltiplas práticas heterotópicas dentro da cidade, com suas diferentes potencialidades de
se transformarem em possibilidades alternativas.

Considerações finais

A intenção deste artigo foi explorar o diálogo entre as abordagens de Henri Lefebvre
e David Harvey na discussão de alguns conceitos e concepções em torno dos espaços
urbanos comuns e o direito à cidade. Privilegiou-se identificar os pontos de convergên-
cia e complementariedade entre os dois autores em detrimento de suas diferenças. De
fato, muitas das ideias presentes nas obras de Lefebvre estão postas na forma de insights
e não são tão desenvolvias de forma sistemática como nas obras de Harvey. No entanto,
como o próprio Harvey reconhece, Lefebvre é uma constante inspiração para as suas
próprias ideias. Isso não ocorre sem razão. Ambos são pensadores que têm como refe-

209
rência fundamental Marx, o pensamento dialético, o materialismo histórico e geográfico
– para usar a formulação de Harvey (2006) – e tem como empreendimento intelectual
contribuir para preencher uma lacuna no pensamento marxista, de problematizar o es-
paço como categoria analítica-chave para a compreensão da dinâmica capitalista e para a
construção de alternativas para a sua superação.
A construção de novos futuros urbanos alternativos requer a compreensão do
fenômeno urbano contemporâneo, com todas as mudanças decorrentes da globali-
zação neoliberal e as raízes urbanas das crises do capitalismo na atualidade (Harvey,
2012). E relembrando Lefebvre (1999), é possível dizer que a reflexão sobre o fenô-
meno urbano deve definir uma dupla estratégia, articulada e inseparável: a estratégia do
conhecimento e a estratégia sociopolítica.
No âmbito da estratégia do conhecimento, é necessário elaborar uma crítica radi-
cal dos modelos urbanísticos tradicionais e de suas contradições e o desenvolvimento de
uma ciência do fenômeno urbano. Nessa perspectiva, inspirados em Bourdieu (2004),
é possível afirmar que é preciso esperar da análise científica em torno da dinâmica ur-
bana revelações radicais. As análises comprometidas com o ideário do direito à cidade
têm por desafio colocar em perspectiva os discursos e as visões perspectivas dos agentes,
desvelando o sentido de suas práticas e interesses e os conflitos sociais e políticos daí de-
correntes, na busca pela legitimação e universalização de suas posições particulares. Isso
implica romper as barreiras e os bloqueios que impedem que o fenômeno urbano seja
reconhecido, ou seja, utilizando os termos propostos por Lefebvre, que mantêm o fenô-
meno urbano prisioneiro da análise fragmentária, subordinado aos conceitos urbanísticos
da sociedade industrial. Assim, é necessário que a análise sobre o fenômeno urbano des-
vele os processos de diferenciação, segmentação e segregação urbana como elementos
estruturadores da dinâmica socioespacial, os processos de mercantilização da cidade e as
formas de apropriação dos espaços urbanos comuns pelo capital.
No plano da estratégia sociopolítica, cabe mais uma vez uma referência a Lefeb-
vre (2001, p. 112-113), que propõe uma estratégia urbana baseada em dois pontos: (i)
“um programa político de reforma urbana”, formulado com base no conhecimento da
realidade, produzido pela ciência da cidade e sustentado por forças sociais e políticas que
assumem o papel de sujeitos dessa proposta; e (ii) “projetos urbanísticos bem desenvolvi-
dos, compreendendo ‘modelos’, formas de espaço e de tempos urbanos, sem se preocupar
com seu caráter atualmente realizável ou não, utópico ou não”, resultado do imaginário
coletivo e da práxis “que se investe na apropriação (do tempo, do espaço, da vida fisiológi-
ca, do desejo)” e que também inclui “[o] estilo de vida, [o] modo de viver na cidade e [o]
desenvolvimento do urbano em relação a este plano”. Ou seja, tais projetos também têm
que incidir sobre as formas de apropriação dos espaços urbanos comuns.

210
Nesse plano, parece fundamental atualizar a concepção e a agenda de lutas
pelo direito à cidade “como uma demanda política classista” (Harvey, 2012, p. 136),
de forma que esta responda aos desafios decorrentes das transformações sociais e
econômicas contemporâneas. Nesse mesmo sentido, pode-se falar também do desa-
fio de desenvolver uma nova pedagogia emancipatória de planejamento das cidades
que incorpore esses elementos.
Harvey (2012, p. 127-128, tradução nossa) fornece uma grande contribuição
para a construção dessa agenda alternativa, ao apontar três questões essenciais que
devem ser enfrentadas:

l) O primeiro é o esmagador empobrecimento material de grande parte


da população do mundo, junto com a frustração concomitante do poten-
cial para o desenvolvimento pleno das capacidades humanas e poderes
criativos. (...).
2) A segunda questão deriva dos claros e iminentes perigos das degrada-
ções ambientais fora de controle e das transformações ecológicas. Isso,
além disso, não é apenas uma questão material, mas também uma ques-
tão espiritual e moral que envolve mudar o sentido em torno da natureza,
bem como a relação material para isto. Não há nenhuma solução pura-
mente tecnológica para esta pergunta. Tem que haver mudanças de estilo
de vida significativas (...), bem como grandes mudanças no consumismo,
produtivismo, e arranjos institucionais.
3) O terceiro conjunto de questões, que sustenta as duas primeiras, de-
riva de uma compreensão histórica e teórica da trajetória inevitável do
crescimento capitalista. Por uma variedade de razões, o crescimento sis-
temático é uma condição essencial para a contínua acumulação e repro-
dução do capital. Esta é a lei historicamente definida e socialmente cons-
truída da interminável acumulação de capital que tem de ser desafiada e,
posteriormente, abolida. (...)

A questão central apontada por Harvey (2012, p. 128) é que

qualquer alternativa anticapitalista tem que abolir o poder da lei capitalis-


ta do valor para regular o mercado mundial. Isso exige a abolição da rela-
ção de classe dominante que sustenta e comanda a perpétua expansão da
produção e realização do mais-valor.

Ao olhar as experiências de práticas heterotópicas em curso nas cidades, pode-se


concluir que se está diante de grandes desafios na perspectiva da construção de novos espa-
ços urbanos comuns e de um novo projeto de cidade que expresse essa alternativa anticapi-
talista. No entanto, é possível dizer, mais uma vez inspirados em Lefebvre, que é preciso ver

211
nessas experiências e na diversidade de práticas urbanas heterotópicas empreendidas pelos
diferentes agentes sociais aprendizados que conformam a práxis que poderá gerar uma nova
utopia do direito à cidade, capaz de desenvolver ações coletivas de rebeldia criativa e novos
processos de reapropriação, pelos seres humanos, do seu espaço e da sua temporalidade, na
perspectiva da transição urbana para uma cidade mais justa e democrática.

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense, 1981.
BOBBIO, Noberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2006.
BOURDIEU, Pierre (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Efeitos do lugar. In: ____. (Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
p. 159-166.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo:
Editora Unesp, 2004.
DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
FREIRE, Letícia de Luna. Mobilizações coletivas em contexto de megaeventos esportivos no Rio de Janei-
ro. O Social em Questão, v. 1, p. 121-128, 2013.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997. v. II.
HACKWORTH, Jason. The neoliberal city: governance, ideology, and development in American Urbanism.
New York: Cornell University Press, 2007.
HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec. 1980.
HARVEY, David. Justice, nature and the geography of difference. Oxford: Blackwell Publishing, 1996.
HARVEY, David. Space as a key word. Paper for Marx and philosophy conference, 29 May 2004, Institute
of Education, London. Mimeo, 2004. Disponível em: <http://frontdeskapparatus.com/files/harvey2004.
pdf>. Acesso em: 15 jun. 2012.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
HARVEY, David. Spaces of global capitalism. Towards a theory of uneven geographical development. Lon-
don: Verso, 2006.
HARVEY, David. Rebel cities: from the right to the city to the urban revolution. Verso: London; New York, 2012.
LEFEBVRE, Henri. The right to the city. In: KOFMAN, E.; LEBAS, E. (Ed.). Writings on cities. London:
Blackwell, 1967. p. 63-184.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford (UK): Blackwell Publishing, 1991.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

212
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
MARCUSE, Peter. Whose right(s) to what city? In: BRENNER, Neil; MARCUSE, Peter; MAYER, Margit.
Cities for people, not for profit. London: Routledge, 2012. p. 24-41.
O’DONNELL, Guillermo. Teoria democrática e política comparada. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio
de Janeiro, v. 42, n. 4, p. 577-654, 1999.
OLIVEIRA, Fabrício Leal de et al. (Org.). Grandes projetos metropolitanos: Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012.
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Urban common space, heterotopia and the right to the city: reflec-
tions on the ideas of Henri Lefebvre and David Harvey. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian
Journal of Urban Management), v. 6, n. 2, p. 1-12, maio/ago. 2014.
THEODORE, Nik; PECK, Jamie; BRENNER, Neil. Urbanismo neoliberal: la ciudad y el imperio de los
mercados. Temas Sociales, n. 66, p. 1-11, mar. 2009.

213
O direito à cidade na urbanização
planetária, ou: Henri Lefebvre por uma
nova cidadania urbana
João Bosco Moura Tonucci Filho

O direito à cidade: onde, ainda?

Em meio à pluralidade do vozerio e da imagética multitudinária que invadiu as ruas brasi-


leiras durante as jornadas de junho de 2013, reiteradas vezes defrontei-me com bandeiras
e gritos pelo direito à cidade. A expressão está na boca de todos, apropriada e difundida –
outros diriam banalizada – por um amplo espectro de sujeitos políticos: de movimentos
urbanos radicais a entidades internacionais, como o Banco Mundial e a UN-Habitat. A
existência de uma Carta Mundial pelo Direito à Cidade, elaborada entre 2004 e 2005
ao longo do Fórum Social das Américas, do Fórum Social Urbano e do V Fórum Social
Mundial, atesta a atualidade global da ideia. Ideia originalmente formulada pelo filósofo
marxista Henri Lefebvre, ainda em 1968.
Segundo Lefebvre (1999; 2008), com a industrialização a cidade vai sofrer um
duplo processo de implosão/explosão, perdendo seus traços anteriores de totalidade
orgânica, sentido de pertencimento, espaço demarcado e monumentalismo. A realidade
urbana (induzida pela industrialização) torna-se causa indutora, e a problemática urbana
impõe-se à escala mundial. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, per-
dem o sentido da cidade como obra criativa e coletiva. É contra esse estado de coisas que
o autor vai formular conceitualmente o direito à cidade: direito à vida urbana e à centrali-
dade, à realização do urbano como uso em detrimento da troca.
Em recente publicação, Andy Merrifield (2013) questiona se ainda hoje a noção
lefebvriana do direito à cidade guardaria seu vigor original. Basicamente, o argumento
principal de Merrifield é que, ante o processo de urbanização planetária e completa ur-
banização da sociedade, a cidade desapareceu, pelo menos enquanto realidade concreta
(fenômeno igualmente vislumbrado por Lefebvre). Como reclamar então por um direito
a algo que é agora tão somente história, memória, o espectro de uma experiência urbana
pretérita? Ademais, ao mesmo tempo que as aglomerações urbanas se tornaram dema-
siado colossais e disformes para serem reivindicadas em sua totalidade por seus mora-
dores, os protestos que tomam as ruas e praças em todo mundo se fazem em prol de um
horizonte de transformação social e radicalização democrática que extravasa os limites
metropolitanos, alcançando outras escalas espaciais. Ante essas contradições – mas ainda
inspirado pela natureza espacialmente politizada da obra de Lefebvre –, Merrifield sugere
que passemos do direito à cidade à “política do encontro”, não mais restrita a uma luta por
direitos confinada à circunscrição da cidade.
Não tenho aqui a pretensão de polemizar com a proposta de Merrifield, mas ape-
nas apontar para o fato de que talvez a própria obra de Lefebvre aponte saídas teórica e
politicamente produtivas para superar a contradição entre o grito do direito à cidade e
o processo de urbanização planetária. Como se verá adiante, isso fica mais evidente ao
explorarmos outras obras e textos do autor nas quais as questões urbanas – e o direito à
cidade – são rediscutidas nas suas relações com a problemática da cidadania, dos direitos
e da possibilidade de desvanecimento do Estado na modernidade.
Destarte, o que aqui proponho é acompanhar como a ideia do direito à cidade é
enunciado originalmente por Lefebvre, delinear seu momento de formulação teórica e
política mais precisa, seguir os rastros da sua temporária submersão em meio à démarche
do pensamento lefebvriano, e acercar-se, enfim, da sua reemergência, já transformada, ao
final da vida do autor, pela articulação com outras problemáticas levantadas pelo mundo
contemporâneo, principalmente com a questão da cidadania e dos direitos do cidadão no
bojo da emergente sociedade urbana.

Direito à vida urbana: a cidade do uso, da festa e do encontro

A ideia do direito à cidade foi originalmente formulada em termos conceituais pelo


filósofo marxista francês Henri Lefebvre (1901-1991), que, no catártico ano de 1968
– mas pouco antes da irrupção de maio – publicou, pela Éditions Anthropos, um pe-
queno livro intitulado Le droit à la ville. Até então, Lefebvre se permitira investigar temas
à margem do marxismo oficial e dogmático (como a vida cotidiana, a alienação, a festa,
a espontaneidade, o mundo rural, a modernidade etc.) a partir de uma renovação do
método dialético, e se colocara, logo no pós-II Guerra, numa posição de crítica ao so-
cialismo de Estado, o que lhe custara não apenas a censura – e subsequente expulsão –
do Partido Comunista Francês, mas também haver sido relegado à periferia no panteão

216
do pensamento crítico: posição essa que só há pouco começa a ser revertida, ante o
reconhecimento do vigor e atualidade do seu pensamento.
O interesse de Lefebvre pela questão urbana remonta anteriormente ao livro Intro-
dução à modernidade (1962), em que o autor discorre algumas notas críticas acerca da ex-
periência de Mourenx, cidade nova planejada nos Pirineus franceses, a poucos quilôme-
tros de Navarrenx, sua querida terra natal. Os espaços racionalmente organizados, as vias
cartesianamente desenhadas, as máquinas de morar dos grandes conjuntos habitacionais,
a separação criteriosa de todas as funções urbanas: esse espaço concebido por tecnocratas
a serviço da modernização representava para Lefebvre a negação de tudo que a cidade
tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível (Merrifield, 2006). N’A
proclamação da Comuna, de 1965, o pensador aponta a Comuna de Paris de 1971 como
a primeira expressão de um urbanismo revolucionário, ao sabor do situacionismo. Mas
é na pequena coletânea de ensaios O direito à cidade, rascunhados ao longo da década de
1960, que Lefebvre realiza a sua primeira incursão substantiva em torno da problemática
urbana, que iria se desdobrar em outras obras fundamentais ao longo da década de 1970
(como A revolução urbana, 1970, Espaço e política, 1972, e A produção do espaço, 1974).
Para Lefebvre (2008), a cidade, dos gregos à Idade Média, constituiu-se como
uma totalidade orgânica, obra máxima da civilização. Socialmente produzida, a cidade é
diferente de todos os demais produtos: O que lhe dá especificidade é o primado do valor
de uso sobre o valor de troca. Como se usa a cidade? Por meio das suas ruas, quarteirões,
monumentos e espaços públicos: pela festa, momento de consumo improdutivo de ener-
gias e recursos em favor tão somente do prestígio e do prazer. Não pode haver cidade
sem centralidades, sem um centro dinâmico repleto de urbanidade, momentos vividos,
espaços públicos vibrantes, encontros encantadores, confrontos das diferenças e reconhe-
cimentos recíprocos a cada esquina.

(...) a cidade é obra a ser associada mais com a obra de arte do que com o
simples produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações
sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por
seres humanos, mais do que uma produção e reprodução de objetos. A
cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e
de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições his-
tóricas (Lefebvre, 2008, p. 52).

O desenvolvimento do capitalismo industrial rompe essa unidade, destrói as bar-


reiras e a simbiose entre a cidade e o campo, coloniza e secciona a vida cotidiana. A cidade
tradicional (pré-capitalista, pré-industrial) explode no tecido urbano informe e estendi-
do, formado por fragmentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, cidades-satélites

217
etc.). A cidade, outrora valor de uso (fruição, beleza), é transformada em mercadoria, pro-
duto com valor de troca, espaço privado para realização do lucro.

(...) não é a razão que convém incriminar, mas sim um certo racionalismo,
um racionalismo limitado e os limites dessa racionalidade. O mundo da
mercadoria tem sua lógica imanente, a do dinheiro e do valor de troca
generalizado sem limites. Uma tal forma, a da troca e da equivalência, só
exprime indiferença diante da forma urbana; ela reduz a simultaneidade e
os encontros à forma dos trocadores, e o lugar de encontro ao lugar onde
se conclui o contrato ou quase contrato de troca equivalente: o reduz ao
mercado. A sociedade urbana (...) tem uma lógica diferente da lógica da
mercadoria. É um outro mundo. O urbano se baseia no valor de uso. Não
se pode evitar o conflito (Lefebvre, 2008, p. 87).

Posteriormente, Lefebvre (2014) vai argumentar que o fracasso do urbanismo em


produzir uma cidade viva e habitável não pode ser creditado somente ao capitalismo, à
busca pelo lucro, já que o socialismo encontrou a mesma dificuldade: esse fracasso es-
taria antes relacionado ao próprio pensamento ocidental, que, desde os gregos, foi capaz
apenas de produzir uma concepção meramente instrumental do urbano. Para o autor, so-
mente os poetas entenderam a cidade como morada dos homens.
É a partir de Paris que Lefebvre (2008) vai tecer suas reflexões. O risco da demo-
cracia urbana, que se torna evidente nas jornadas de 1848, e vai se confirmar na Comuna
de 1871, assusta a burguesia ascendente. Qual a resposta, a estratégia política colocada
em curso pelo poder? Expulsar os trabalhadores do centro da cidade, remodelando-a à
imagem e semelhança da nova classe dominante. É este o sentido principal das reformas
urbanas empreendidas pelo Barão de Haussmann em Paris, entre 1853 e 1870, que dila-
ceraram o coração tortuoso e vivo da cidade medieval, abrindo-a em vastos bulevares a
serem povoadas por edificações padronizadas.
Destarte, com a industrialização, uma extrema segregação se impõe aos grupos,
etnias, estratos e classes sociais, destruindo morfologicamente a cidade e ameaçando a
vida urbana. Os trabalhadores, expulsos da cidade para as periferias, perdem o sentido da
cidade como obra criativa e coletiva. O habitat (a moradia reduzida à função, o habitante
submetido à cotidianidade alienada) substitui o habitar (o viver plenamente a cidade). O
urbanismo, ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade fragmentadora,
intensifica as segregações ao preconizar a separação e disjunção funcional das atividades
urbanas e da sociedade no espaço.

Apesar das boas intenções humanistas e das boas vontades filosóficas, a


prática caminha na direção da segregação. Por quê? Por razões teóricas e em

218
virtude de causas sociais e políticas. No plano teórico, o pensamento analí-
tico separa, decupa. Fracassa quando pretende atingir uma síntese. Social e
politicamente, as estratégias de classes (inconscientes ou conscientes) visam
a segregação (...) As segregações que destroem morfologicamente a cidade e
que ameaçam a vida urbana não podem ser tomadas por efeito nem de aca-
sos, nem de conjunturas locais. Contentemo-nos com indicar que o caráter
democrático de um regime é discernido em relação à sua atitude para com a
cidade, para com as “liberdades” urbanas, para com a realidade urbana, e por
conseguinte, para com a segregação (Lefebvre, 2008, p. 99, grifos do autor).

Entretanto, e contraditoriamente,

sobre essa base abalada, a sociedade urbana e “o urbano” persistem e mes-


mo se intensificam. As relações sociais continuam a se tornar mais com-
plexas, a se multiplicar, a se intensificar, através das contradições mais dolo-
rosas. A forma do urbano, sua razão suprema, a saber a simultaneidade e o
encontro, não podem desaparecer. (...) O uso (o valor de uso) dos lugares,
dos monumentos, das diferenças, escapa às exigências da troca, do valor de
troca. (...) o urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, desequi-
líbrio permanente, sede da dissolução das normalidades e ações, momento
do lúdico e do imprevisível. (...) Desta situação nasce a contradição crítica:
tendência para a destruição da cidade, tendência para a intensificação do
urbano e da problemática urbana (Lefebvre, 2008, p. 84-85).

É contra esse estado contraditório entre a desolação provocada pela crise da cida-
de e a esperança utópica carregada pelo urbano (pela vida urbana) que Lefebvre formula
a ideia iluminadora do direito à cidade. Ele assim aponta a sua definição:

(...) o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centrali-
dade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e
empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momen-
tos e locais etc.). A proclamação e a realização da vida urbana como reino
do uso (da troca e do encontro separados do valor de troca) exigem o
domínio do econômico (do valor de troca, do mercado e da mercadoria)
(Lefebvre, 2008, p. 139, grifos do autor).

O direito à cidade não pode ser concebido como um direito de visita ou


de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito
à vida urbana, transformada, renovada. Pouco importa que o tecido ur-
bano encerre em si o campo e aquilo que sobrevive da vida camponesa
conquanto que “o urbano”, lugar de encontro, prioridade do valor de uso,
inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem
entre os bens, encontre sua base morfológica, sua realização prático-sen-
sível (Lefebvre, 2008, p. 117-118, grifos do autor).

219
O direito à cidade tampouco se confunde com a ideologia da participação, simu-
lacro de informação e de atividade social para obter a aquiescência dos interessados. “É
evidente que a participação real e ativa já tem um nome. Chama-se autogestão” (Lefebvre,
2008, p. 104, grifo do autor). Lefebvre estranha ainda que o direito à natureza (ao campo
e à “natureza pura”) tenha entrado, à sua época, para a prática social em favor dos lazeres,
contra o barulho, a fadiga, a excessiva concentração das cidades:

Face a esse direito, ou pseudodireito, o direito à cidade se afirma como um


apelo, uma exigência. Através de surpreendentes desvios – a nostalgia, o
turismo, o retorno para o coração da cidade tradicional, o apelo das centra-
lidades existentes ou recentemente elaboradas – esse direito caminha lenta-
mente. A reivindicação da natureza, o desejo de aproveitar dela são desvios
do direito à cidade. Esta última reivindicação se anuncia indiretamente,
como tendência de fugir à cidade deteriorada e não renovada, à vida urbana
alienada antes de existir “realmente”. A necessidade e o “direito” à natureza
contrariam o direito à cidade sem conseguir eludi-lo (Isto não significa que
não se deva preservar amplos espaços “naturais” diante das proliferações da
cidade que explodiu) (Lefebvre, 2008, p. 117, grifo do autor).

O autor vai enfrentar também o problema dos lazeres – os “hobbies”, a “criativida-


de”, as férias, a produção cultural industrializada –, subordinados ao valor de troca na vida
cotidiana da sociedade de consumo dirigida, a eles opondo a festa:

O problema é acabar com as separações “cotidianidade-lazeres” ou “vida co-


tidiana-festa”. O problema é restituir a festa transformando a vida cotidiana.
A cidade foi um espaço ocupado ao mesmo tempo pelo trabalho produtivo,
pelas obras, pelas festas. Que ela reencontre essa função para além das fun-
ções, na sociedade urbana metamorfoseada (Lefebvre, 2008, p. 128).

Contra o centro de consumo – centralidade própria da cidade capitalista, lu-


gar de consumo e consumo de lugar –, contra o centro de decisão do neocapitalismo,
sobreposto ao centro de consumo, Lefebvre (2008) propõe uma outra centralidade,
própria à sociedade urbana. Insuficiente denominá-la centralidade da cultura – pois a
cultura se deixa facilmente burocratizar e institucionalizar: centralidade lúdica, reunião
do educativo, do formativo, do informativo. Criação de espaços qualificados, comple-
xos e apropriados à festa e à invenção, ao encontro, ao jogo, ao esporte, ao teatro. Re-
encontro do lugar do habitar sobre o habitat. Lefebvre fala da construção de uma nova
cidade, sobre novas bases, numa outra escala. Cidade voltada à apropriação, por meio,
sobretudo, da arte, que reconstitui o sentido da obra e da fruição. Em oposição à cidade
eterna e aos centros estáveis, a cidade efêmera, as centralidades móveis. A criação de

220
novos lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontro, onde a troca não
esteja subordinada ao comércio e ao lucro.

Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e não apenas de


produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de
simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas (Lefebvre, 2008, p. 105).

Necessária como a ciência, não suficiente, a arte traz para a realização da


sociedade urbana sua longa meditação sobre a vida como drama e frui-
ção. Além do mais, e sobretudo, a arte restitui o sentido da obra; ela ofe-
rece múltiplas figuras de tempos e de espaços apropriados: não impostos,
não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra
(Lefebvre, 2008, p. 116, grifos do autor).

Uma leitura apressada e descuidada pode sugerir que Lefebvre está propondo uma
nostalgia romântica, um retorno ao paraíso perdido anterior à modernização capitalista,
quando tudo seria integrado, artesanal e autêntico. Mas no seu pensamento não há idea-
lização do passado, tampouco regresso possível à cidade tradicional ante o inevitável pro-
cesso de completa urbanização da sociedade.

Atualmente, Lewis Mumford, G. Bardet, entre outros, imaginam ainda uma


cidade composta não por citadinos, mas por cidadãos livres, libertados da
divisão do trabalho, das classes sociais e da luta dessas classes, constituindo
uma comunidade, associados livremente para a gestão dessa comunidade.
Compõem assim, como filósofos, o modelo da cidade ideal. Imaginam a
liberdade no século XX como a liberdade da cidade grega (singularmente
travestida por uma ideologia: apenas a cidade como tal possuía a liberdade,
e não os indivíduos e os grupos). Portanto, pensam na cidade moderna se-
gundo o modelo da cidade antiga, identificada com a cidade ideal e simul-
taneamente racional. A ágora, lugar e símbolo de uma democracia limitada
aos cidadãos e que exclui as mulheres, os escravos, os estrangeiros, continua
a ser, para uma certa filosofia da cidade, o símbolo da sociedade urbana em
geral. Extrapolação tipicamente ideológica (Lefebvre, 2008, p. 47-48).

Impossível considerar a hipótese da reconstituição da cidade antiga; pos-


sível apenas encarar a construção de uma nova cidade, sobre novas bases,
numa outra escala, em outras condições, numa outra sociedade. Nem
retorno (para a cidade tradicional), nem fuga para a frente, para a aglo-
meração colossal e informe – esta é a prescrição (Lefebvre, 2008, p. 106).

Mas quem pode se encarregar dessa tarefa? “Apenas grupos, classes ou frações de
classes sociais capazes de iniciativas revolucionárias podem se encarregar das, e levar até
a sua plena realização, soluções para os problemas urbanos (...)” (Lefebvre, 2008, p. 113).

221
Para a classe operária, vítima da segregação, expulsa da cidade tradicio-
nal, privada da vida urbana atual ou possível, apresenta-se um problema
prático, portanto político. Isso ainda que esse problema não tenha sido le-
vantado de forma política e que a questão da moradia tenha ocultado até
aqui, para essa classe e seus representantes, a problemática da cidade e do
urbano (Lefebvre, 2008, p. 104, grifos do autor).

Lefebvre vai considerar então a necessidade da classe operária levar adiante, si-
multaneamente, duas classes de proposições, ou uma estratégia urbana: a) Um programa
político de reforma urbana, estratégia reformista, mas que se torna “necessariamente” revo-
lucionária ao enfrentar as estruturas da sociedade existente, das questões da propriedade
da terra aos problemas da segregação; b) Projetos urbanísticos compreendendo “modelos”
e formas experimentais de espaço e de tempos urbanos, independentemente de serem
realizáveis ou utópicos.

Só o proletariado pode investir sua atividade social e política na realiza-


ção da sociedade urbana. Só ele também pode renovar o sentido da ati-
vidade produtora e criadora ao destruir a ideologia do consumo. Ele tem,
portanto, a capacidade de produzir um novo humanismo, diferente do
velho humanismo liberal que está terminando sua existência: o humanis-
mo do homem urbano para o qual e pelo qual a cidade e sua própria vida
cotidiana na cidade se tornam obra, apropriação, valor de uso (...) (Lefeb-
vre, 2008, p. 140, grifos do autor).

O autor defende que “o socialismo só pode ser concebido como produção orien-
tada (...) para as necessidades da sociedade urbana. Os objetivos emprestados apenas à in-
dustrialização estão em vias de serem superados e transformados” (Lefebvre, 2008, p. 126,
grifo do autor). E mais: “O duplo processo de industrialização e de urbanização perde
todo o seu sentido se não se concebe a sociedade urbana como objetivo e finalidade da
industrialização, se se subordina a vida urbana ao crescimento industrial” (Lefebvre, 2008,
p. 137). O que Lefebvre (2008, p. 140) propõe é, “ao lado da revolução econômica (plani-
ficação orientada para as necessidades sociais) e da revolução política (controle democrá-
tico do aparelho estatal, autogestão generalizada) uma revolução cultural permanente”:
transformar o mundo (Marx) e indissociavelmente mudar a vida (Rimbaud).
Sem perder essa perspectiva revolucionária, ainda em 1968, Lefebvre (2008) já
situava o direito à cidade entre outros direitos do homem e do cidadão:

Surgem direitos; estes entram para os costumes ou em prescrições mais


ou menos seguidas por atos, e sabe-se bem como esses “direitos” concre-
tos vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão inscritos

222
no frontão dos edifícios pela democracia quando de seus primórdios
revolucionários: direitos das idades e dos sexos (a mulher, a criança, o
velho), direitos das condições (o proletário, o camponês), direitos à ins-
trução e à educação, direito ao trabalho, à cultura, ao repouso, à saúde, à
habitação. (...) A pressão da classe operária foi e continua a ser necessária
(mas não suficiente) para o reconhecimento desses direitos, para a sua
entrada para os costumes, para a sua inscrição nos códigos, ainda bem
incompletos (Lefebvre, 2008, p. 117, grifo do autor).

Cidadão, citadino: por uma nova cidadania


na urbanização planetária

Na “Introdução” à proposta urbanística apresentada por Henri Lefebvre e pelos arquite-


tos franceses Pierre Guilbaud e Serge Renaudie, em julho de 1986, para a International
Competition for the New Belgrade Urban Structure Improvement (Lefebvre; Guilbaud;
Renaudie, 2009) promovida pelo então Estado da Iugoslávia, o filósofo nos lembra que a
ruptura da cidade ameaça seu papel como lugar da civilização: ou o urbano será o espaço
da dissociação caótica da sociedade, ou um espaço de reapropriação da vida cotidiana.

O “direito à cidade”? (...) Isto significa (...): não permitir a perda do patri-
mônio histórico, não permitir que o espaço desmorone, restaurar o centro
como um lugar de criação, civilização. O direito à cidade vem como um
complemento, não tanto aos direitos do homem (como o direito à edu-
cação, à saúde, segurança etc.), mas aos direitos do cidadão: aquele que
não é apenas um membro de uma “comunidade política” cuja concepção
permanece indecisa e conflituosa, mas de um agrupamento mais preciso
que coloca várias questões: a cidade moderna, o urbano. Este direito leva
à participação ativa do cidadão-citadino no controle do território, e na sua
gestão, cujas modalidades ainda precisam ser especificadas. Ele leva tam-
bém à participação do cidadão-citadino na vida social ligada ao urbano; ele
propõe que se proíba o deslocamento dessa cultura urbana, que se proíba a
dispersão, não empilhando os “habitantes” e “usuários” um em cima do ou-
tro, mas inventando, nos domínios e níveis do arquitetônico, do urbanístico
e do territorial. Este direito pressupõe uma transformação da sociedade (...)
Por conta da autogestão, um lugar é esboçado entre o cidadão e o citadino
(Lefebvre; Guilbaud; Renaudie, 2009, p. 1-2, tradução nossa).

No artigo “Dissolving city, planetary metamorphosis”, originalmente publicado


no Le Monde Diplomatique (maio, 1989) sob o título “Quand la ville se perd dans une
métamorphose planétaire”, Henri Lefebvre (2014) constata, já ao final de sua vida e com
certa melancolia, o desvanecimento, no decorrer das últimas ilusões da modernidade, da
esperança de que o urbano – enquanto soma de práticas produtivas e experiências históri-

223
cas – pudesse ser o caminho para novos valores, para uma civilização alternativa. Para ele,
paradoxalmente, quanto mais a cidade é estendida, mais as relações sociais se deterioram,
mais a condição dos citadinos se degrada. A urbanização pode ter alterado ligeiramente a
cotidianidade, mas seus conteúdos não foram transformados: ela serviu mais para preser-
var e proteger as relações de dependência, dominação, exclusão e exploração.

Desse modo, o fenômeno urbano é profundamente transformado. O


centro histórico desapareceu como tal. Tudo o que resta são, por um lado,
o centro de poder e de tomada de decisão e, por outro, espaços falsos e
artificiais. É verdade, é claro, que a cidade permanece, mas apenas como
museu e como espetáculo. O urbano, concebido e vivido como uma prá-
tica social, está em processo de deterioração e, talvez, de desaparecimen-
to (Lefebvre, 2014, p. 567, tradução nossa).

Um segundo paradoxo é identificado por Lefebvre (2014): centros e periferias se


pressupõem e se opõem, englobando todo o planeta nesse período histórico de mutação
em que o urbano e o global se cruzam e se perturbam mutuamente. A planetarização do
urbano, que tanto estende quanto ameaça a vida urbana, deverá abarcar todo o espaço no
terceiro milênio, se não controlada. Não sem consequências nefastas: homogeneização,
fragmentação e hierarquização do espaço, que produzem simultaneamente a aniquilação
das diferenças, a mercantilização do espaço, a segregação.
No processo de submissão das cidades às instituições – tecnocracias e burocracias ini-
migas da vida urbana –, o citadino (citadin) vê reduzidos seus direitos formais como cidadão
(citoyen), assim como as oportunidades de exercer esses direitos: cidadão e citadino foram dis-
sociados. Enquanto ser um cidadão significava permanecer por um longo período de tempo
em um território, na cidade moderna o citadino está em movimento perpétuo, e as relações
sociais tendem a se tornar internacionais. Lefebvre se questiona, ao fechar o texto:

Dadas estas tendências, não é necessário reformular o arcabouço para a


cidadania (la citoyenneté)? O morador da cidade e o cidadão precisam ser
ligados, mas não confundidos. O direito à cidade implica nada menos do
que um conceito revolucionário de cidadania (Lefebvre, 2014, p. 569-
570, tradução nossa, grifo do autor).

Já no texto “From the social pact to the contract of citizenship” (Lefebvre, 2003),
extraído do livro Du Contract de citoyenneté, originalmente publicado em 1990, o pensador
vai refletir sobre a passagem do “contrato social” rousseauniano – fundado no princípio
da “vontade geral” da sociedade civil – a uma Nova Cidadania: horizonte de extensão da
democracia, desvanecimento do Estado e generalização da autogestão.

224
Quando nos nossos escritos afirmamos a verdade da proposição, “entre
o Estado e o mercado não há nada”, nós colocamos um falso dilema, por-
que entre os dois já existe burocracia; amanhã poderá haver autogestão
(...) (Lefebvre, 2003, p. 243, tradução nossa).

Para Lefebvre (2003), na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,


as noções de “homem” – enquanto membro da raça humana – e de “cidadão” – enquanto
membro de uma determinada sociedade civil – tinham o mesmo status: suas demandas
e afirmações tinham a mesma fonte e envolviam a mesma recusa ao despotismo, à tiraria
e à violação da Liberdade. Como, para os iluministas, a razão era baseada na natureza, os
direitos humanos baseados na razão seriam também direitos naturais. Pela influência dos
filósofos, o “homem” em geral, sujeito a uma razão universal, ganhou proeminência. Mas
para ser “homem” era necessário, além da óbvia exclusão do sexo feminino, ser também
proprietário. Todavia, Lefebvre considera que, a despeito da sua restrita formulação origi-
nal, os Direitos do Homem foram progressivamente, no curso de muitas lutas, estendidos,
diversificados. Aos poucos, o direito à propriedade – que não é extinto – deixa de definir
exclusivamente o que é ser “homem”. Vê-se a introdução dos direitos à educação, à saúde,
à aposentadoria, de direitos às mulheres, às crianças, aos idosos.
Assim, durante dois séculos, enquanto os direitos do homem encontraram seu
caminho no pensamento de sua época, os direitos do cidadão foram deixados no limbo,
ainda que estivessem originalmente definidos nas primeiras declarações: direito de livre
locomoção dentro das fronteiras nacionais, direito à liberdade de opinião, direito à vota-
ção (representação). Assim continua Lefebvre:

Ao longo da história do chamado mundo “moderno” (...), o fosso entre di-


reitos humanos e direitos do cidadão se ampliou. Os primeiros são imple-
mentados, se diversificam, dão origem a conferências internacionais, a épicas,
titânicas, às vezes tragicômicas lutas. E o que dizer dos outros, os direitos do ci-
dadão? Congelados, reduzidos ao mínimo para a sobrevivência, à sua defini-
ção inicial, que parece ser definitiva (Lefebvre, 2003, p. 249, tradução nossa).

Lefebvre se pergunta se não teria sido um erro do Marxismo haver subestimado


ou mesmo ignorado tanto os direitos humanos quanto as lutas universais pela sua con-
quista, expansão e aprofundamento, pelas suas origens “burguesas”. E responde que pro-
vavelmente sim, ainda que os marxistas não tenham deixado de afirmar a sua aliança à
Revolução Francesa. Destarte, e como efeito da restrição dos fins da luta de classes, o con-
ceito de cidadania foi ignorado, não analisado ou desenvolvido.
Para o autor, se o homem é definido em termos da raça humana, da racionalidade
e da sociedade em geral, a cidadania é definida pela filiação a uma sociedade específica,

225
e então pela nação e nacionalidade: isso inclui algo diferente e acima do contrato social.
Porém, Lefebvre (2003) ressalta que o pertencimento não pode mais ser simplesmente
definido por família e nome (nascimento) ou por lugar (residência): ele se multiplicou,
na medida em que nós pertencemos à nossa família, à cidade, a uma região, a uma ocupa-
ção, a um país de origem, a um Estado, a um continente, a uma ou mais culturas etc. Por
conseguinte, a relação entre os membros de uma sociedade com o seu Estado e nação – a
cidadania – precisam ser redefinidos, estipulados em condições específicas que vão além
dos direitos de representação da democracia liberal.

(...) a formulação “moderna” da cidadania tem de assumir a forma de um


contrato. Entre quem e quem? Entre o Estado e os cidadãos. E isso dimi-
nui (a ponto de, eventualmente, remover), a distância entre o Estado, o
governo, o poder estabelecido, por um lado, e os cidadãos – a sociedade
civil –, por outro. Consagrar a relação em um contrato não dá ao Estado
maior peso. A formulação política da relação, ao contrário, reduz a ten-
dência para a autonomia da esfera do político e do Estado, sua exteriori-
dade vis-à-vis a sociedade civil e sua autoridade soberana. A contradição
que vai para o coração do político, acima da “política”, oferece o caminho
para uma solução (Lefebvre, 2003, p. 250, tradução nossa).

É então que Lefebvre (2003), aproveitando-se da comemoração do bicentená-


rio da Revolução Francesa, e em oposição à cidadania fundada numa noção universal
e abstrata do homem incapaz de reconhecer a complexidade e diversidade de suas
filiações sociais, e que em troca de uma série de obrigações (impostos, serviço mili-
tar, declaração de propriedade etc.) oferece apenas o direito ao voto, vai propor um
conjunto de Novos Direitos do Cidadão. Direitos ligados à vida cotidiana no mundo
moderno, muitos dos quais já apareceram e desapareceram, alguns previamente for-
mulados, outros antecipados na prática social. Lefebvre (2003, p. 250-254) enumera
– e discute brevemente – os seguintes direitos: “direito à informação”, “direito à livre
expressão”, “direito à cultura”, “direito à identidade dentro da diferença (e igualdade)”,
“direito à autogestão”, “direito à cidade” e “direito a serviços”. Enquanto em 1968 Lefe-
bvre (2008, p. 134) afirmava que o “direito à cidade se manifesta como forma superior
dos direitos (...)”, é curiosa a sua breve menção em 1990:

O direito à vida urbana, com todos os seus serviços e vantagens (...). Com
as suas implicações e consequências, que ainda não estão firmemente
ligados à nova cidadania. A ligação entre “ser um morador da cidade” e
cidadania é inevitável nas sociedades que estão se tornando urbanizadas
(Lefebvre, 2003, p. 253, tradução nossa).

226
Ademais, é importante frisar a distinção que Lefebvre estabelece entre o “direito
à cidade” em relação ao “direito a serviços”, que incluem notavelmente serviços urbanos
(públicos e privados) e uma ligação com os direitos costumeiros, calcados não na forma-
lidade da lei instituída, mas na prática da vida cotidiana:

Este é talvez o mais importante, e todavia o mais implícito dos direitos,


aquele que tira o cidadão do isolamento e dá sentido a todas as suas obri-
gações. Ele tem o direito de utilizar serviços, em primeiro lugar, os serviços
públicos: limpeza das ruas, recolhimento de lixo, transporte etc. (...) Este
direito aos serviços públicos nem sempre precisa ser formulado. Isso nem
sempre é verdadeiro no caso de serviços não públicos. Mas regras práticas
continuam implicitamente a governá-los. Um lojista normalmente não se
recusa a vender ao cliente (solvente!) o que ele quer. Aqui passamos de uma
prática que está consagrada na lei, estipulada, estabelecida, à prática social:
a vida cotidiana ordinária, regida por acordos tácitos que são mais fortes do
que as leis e criam a sociedade civil. (...) Desta forma, a cidadania se apre-
senta, mas sem força legal ou jurídica, no comportamento habitual, isto é,
no cotidiano (Lefebvre, 2003, p. 253, tradução nossa).

A sua definição de “direito à autogestão” inclui uma explícita dimensão espacial (as-
sim como econômica) na realização da democracia:

A autogestão é definida como os saberes e o controle (no limite) por um


grupo – uma empresa, uma localidade, uma área ou uma região – sobre
as condições da sua existência e da sua sobrevivência em meio à mudan-
ça. Por meio da autogestão, esses grupos sociais são capazes de influen-
ciar a sua própria realidade. (...) O crescimento da democracia é assim:
ou a democracia entra em declínio – ou o direito à autogestão é trazido à
definição da cidadania (Lefebvre, 2003, p. 252, tradução nossa).

Para Lefebvre (2003), esses direitos (não dogmáticos), a serem organizados e co-
locados em prática, completariam, democraticamente, o projeto abandonado da ditadura
do proletariado: sem brutalidade, fariam o Estado desvanecer.

Do direito à cidade à cidadania urbana: aberturas do político

Neste texto, procurei investigar como se deu originalmente a delimitação teórica e política
da noção do direito à cidade para Henri Lefebvre, e como posteriormente essa ideia foi pelo
autor associada a outras problemáticas, particularmente às suas reflexões sobre direitos e ci-
dadania e sobre o desvanecimento do Estado num mundo já urbano. Essa leitura transver-
sal da sua obra me permite aqui explorar, ainda que introdutoriamente, uma série de ques-

227
tões que, a meu ver, contribuem para reposicionar Lefebvre como um pensador crítico do
político ainda potente para enfrentamento dos impasses da nossa contemporaneidade.
Lefebvre se alinha radicalmente a um marxismo radical para o qual a supera-
ção da propriedade privada e do trabalho alienado capitalistas só é possível mediante
o desvanecimento do Estado moderno: daí suas profundas críticas ao socialismo real
e seus embates com o Partido Comunista Francês. A despeito dessa inegável dimen-
são antiestatista do pensamento político de Lefebvre, a reconstituição aqui esboçada
de algumas tramas de sua obra coloca em relevo um aspecto geralmente ignorado ou
mesmo rechaçado entre os marxistas mais ortodoxos: a ideia de que mesmo lutas por
direitos e por cidadania – no e contra o Estado – possam ter um alcance revolucionário.
Ao articular dialeticamente a tese de que a inscrição de direitos dos cidadãos no âmbito
do Estado pode apontar caminhos para a própria superação desse Estado, Lefebvre se
aproxima dos movimentos da nova esquerda que emergiram no pós-1968, e de certo
modo ainda da posição de certos autores pós-estruturalistas – como Foucault e Deleu-
ze –, pelo menos quanto à importância conferida às lutas táticas, às conquistas incre-
mentais e a uma política posicional não apenas programática e estratégica, mas aberta à
festa, ao momento espontâneo e à diferença.
Entretanto, para Lefebvre, essas aberturas do político não deveriam perder de vista
o projeto revolucionário de supressão do capitalismo e desvanecimento da forma-Estado,
ainda que tal projeto não deva ser estritamente confiado ao proletariado industrial como
sujeito predestinado à tomada do poder. Em termos organizativos do político, trata-se da
superação da tecnoburocracia pela autogestão generalizada: o que implicaria ainda na
passagem do direito formal moderno, associado à ordem distante do Estado, ao direito
consuetudinário tecido na prática social da vida cotidiana, no universo da ordem próxima
da comunidade. Lefebvre se aproxima aqui dos debates mais contemporâneos da teoria
crítica, em que a superação do capitalismo – e a passagem da política ao político – se vis-
lumbra nos processos de radicalização democrática e na constituição do comum como
cerne do comunismo (Douzinas; Zizek, 2010).
Ademais, a perspectiva aberta por Lefebvre sobre uma nova cidadania urbana
dispersa em múltiplas escalas e calcada na vida cotidiana também poderia ser posta a
dialogar com produções mais recentes, como os estudos sobre as cidadanias insurgen-
tes dos pobres urbanos nas metrópoles do Sul global investigadas por Holston (2008),
ou as genealogias urbanas da cidadania moderna empreendidas por Isin (2002), na
qual o forasteiro, o estranho e o estrangeiro são alçados a um primeiro plano como
sujeitos sociais contestatórios, desestabilizando formulações abstratas e estáveis da ci-
dadania associada exclusivamente ao Estado. A ligação entre o cidadão e o citadino na
urbanização planetária tal qual entrevista por Lefebvre, ao permitir repensar a cidadania

228
(e seus direitos) a partir da vida cotidiana, aponta para a superação de um dos fun-
damentos da cidadania moderna ocidental: a dissociação aristotélica entre o oikos (o
mundo privado da não política) e a polis (o mundo público da política).
Mesmo que o direito à cidade tenha se deslocado para as margens na démarche do
pensamento lefebvriano – não devemos perder de vista o calor do momento político de
1968 e o apelo que o slogan carregava então –, o autor não o abandonou até o final de sua
vida, como se pôde ver nos textos aqui explorados. Por quê? Talvez pela sua percepção de
que o direito à cidade funcionasse como uma metonímia do direito à vida urbana, direito ao
urbano que se debate para nascer nos rastros da produção de um espaço urbano planetário.
Ainda, como negar que, independentemente dos nossos mais eloquentes debates intelectu-
ais, o direito à cidade continue a movimentar e a inspirar movimentos sociais urbanos em
todo mundo? Que ele, não reduzido a um direito juridicamente constituído, afirma-se como
bandeira de luta contra as múltiplas segregações que se impõem pelas vias da tecnocracia es-
tatal e do urbanismo neoliberal, contra a mercantilização brutal do espaço urbano em curso?
O direito à cidade, mesmo que redefinido em meio a um irreversível processo de
urbanização planetária detonado pela implosão/explosão da cidade, parece constituir
ainda um chamado político potente, contrariando o entendimento de Merrifield (2006):
via a luta por outra cidadania radical centrada na vida cotidiana, e contra a subordinação
do urbano ao domínio do mundo da mercadoria, da racionalidade industrial homogenei-
zante e do sufocamento da sociedade civil pelo Estado. Enfim, pela liberação das poten-
cialidades desse urbano apenas entrevisto: um espaço de encontro, de reunião do que é
segregado, de expressão de diferenças – de abertura do político.

REFERÊNCIAS
DOUZINAS, Costas; ZIZEK, Slavoj (Ed.). The idea of communism. London/New York: Verso, 2010.
HOLSTON, James. Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil. Princeton:
Princeton University Press, 2008.
ISIN, Engin F. Being political: genealogies of citizenship. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri. From the social pact to the contract of citizenship. In: ELDEN, S.; LEBAS, E.; KO-
FMAN, E. (Ed.). Henri Lefebvre – Key writings. London/New York: Continuum, 2003.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008.
LEFEBVRE, Henri. Dissolving city, planetary metamorphosis. In: BRENNER, Neil (Ed.). Implosions/ex-
plosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: JOVIS, 2014.

229
LEFEBVRE, Henri; GUILBAUD, Pierre; RENAUDIE, Serge. International competition for the New Bel-
grade urban structure improvement. In: BITTER, Sabine; WEBER, Helmut (Ed.). Autogestion, or Henri Lefe-
bvre in New Belgrade. Vancouver/Berlin: Fillip Editions and Sternberg Press, 2009.
MERRIFIELD, Andy. Henri Lefebvre: a critical introduction. New York: Routledge, 2006.

230
Da crítica do direito ao direito à cidade:
uma primeira aproximação
Marcos Gustavo Pires de Melo

O papel das formas sociais na completude da


crítica materialista

Neste texto procuro fazer uma primeira aproximação entre o conceito de “direito à cidade”,
tal como enunciado por Lefebvre (2001b), e as críticas das formas sociais, especialmente da
forma política e da forma jurídica. Acredito que esse passo se insere em um movimento mais
amplo de reavaliação do pensamento crítico acerca da produção do espaço urbano contem-
porâneo e, principalmente, do planejamento urbano. Tal reavaliação objetiva uma radicaliza-
ção dessa crítica, tanto no sentido de tomar os problemas pela sua raiz quanto no sentido de
colocá-la dentro da perspectiva da consolidação de um projeto de emancipação mais amplo.
Essa necessidade se revela a partir da observação das dificuldades que o próprio
pensamento que se diz crítico vem encontrando em avançar em suas formulações. Se to-
marmos o caso brasileiro como exemplo, encontraremos um impasse entre as esperanças
depositadas no movimento da Reforma Urbana (materializado tanto na Constituição de
1988 como no Estatuto da Cidade de 20011) e a realidade urbana cada vez mais desigual,

1 Infelizmente, no espaço deste texto não será possível desenvolver a vinculação direta entre a crítica da
forma política e da forma jurídica e o Estatuto da Cidade. Posso, no entanto, rapidamente, destacar
algumas das questões que eu acredito serem essenciais para essa vinculação. Primeiramente, é imperativo
observar que as esperanças depositadas no Estatuto da Cidade nascem da crença de que o Estado pode ou
poderia ser o guardião do interesse geral. A crítica da forma política procura justamente demonstrar que
o Estado só assume esse papel de maneira abstrata encobrindo que o real interesse comum na sociedade
capitalista é a reprodução ampliada do valor e a reprodução das relações de classe. Em segundo lugar,
fragmentada, segregada, alienante e excludente. A reprodução dos velhos vícios na produ-
ção do espaço urbano parece ocorrer apesar dos supostos avanços legislativos na área, ou
até mesmo em concordância com os mesmos. De forma geral, como veremos através de
alguns exemplos, a postura do pensamento crítico tem assumido um tom reformista que
advoga contra os “maus usos” dos instrumentos urbanísticos, da má vontade política em
implantá-los e em prol de instrumentos e planos mais elaborados que seriam, enfim, os
meios pelos quais a questão urbana encontraria uma solução. Não raro, também encon-
tramos formulações que exteriorizam as causas do “mau funcionamento” dos instrumen-
tos jurídicos, alegando uma falta de transparência ou uma falta de cultura participativa
da população. A questão se diluiria, assim, no problema mais geral da baixa densidade
democrática do sistema político e social brasileiro.2
Não pretendo negar aqui que essas concepções carreguem algum grau de verda-
de em um nível específico de determinações. Pelo contrário, o presente estudo pretende

e como materialização jurídica da primeira crença, nos deparamos com a celebração da subordinação
da propriedade à função social a ser determinada no Plano Diretor. Do mesmo modo, como dito
para o “geral” do interesse defendido pelo Estado, arrisco a dizer que o social é meramente formal e
que o estatuto máximo da propriedade no capitalismo, que é ser propriedade privada e a circular como
mercadoria, continua a ser a determinação social real. Sem a alteração da propriedade da terra enquanto
mercadoria, o mecanismo de produção do espaço continua a atuar embora com restrições impostas de
maneira externa, a sua essência permanece a mesma (e mais, acaba sendo reforçada e legitimada como
natural). Para uma primeira crítica da concepção de “função social da propriedade”, ver Melo (2012). Em
terceiro lugar, podemos dizer que a transformação das relações espaciais em relações jurídicas consolida
o fetichismo espacial (que substitui as relações espaciais por relações entre lugares, as relações de classe
por relações entre localidades). Nesse sentido, as medidas acabam por se concentrar na modificação das
aparências espaciais sem alterar a dinâmica que produz a exclusão, como bem exemplificado pelo artigo
de Stein (2014). Por fim, cumpre observar que mesmo os instrumentos pensados para a execução desse
controle por parte do Estado para garantir o cumprimento da “função social” acabam sendo parte de
estratégias de valorização do espaço e da constituição de ativos financeiros que permite novas dinâmicas
de acumulação no espaço urbano, com bem definido por Martins e Gomes (2009).
2 Um exemplo dessa maneira de abordar o problema pode ser encontrado em Fernandes (2013) quando
da sua proposta de revisitação dos resultados de dez anos de vigência do Estatuto da Cidade. O autor
nos fornece um interessante diagnóstico da realidade urbana brasileira e insiste nos desafios que ainda
precisam ser enfrentados para que o que a lei determina se efetive. No entanto, quando analisa os motivos
pelos quais esse último passo ainda não ocorreu ele acaba por deslocar toda a atenção de sua análise para
a subjetividade dos atores que ainda não teriam a devida consciência da presteza dos novos aparatos
jurídicos, especialmente juristas e planejadores. Mais adiante o autor ressalta a falta de conhecimento e
de mobilização da população em torno da luta pela efetivação de seus direitos já garantidos pelo Estado
e decreta em tom de desabafo: “A verdade é que o Brasil, e os brasileiros, ainda não fizeram por merecer
o Estatuto da Cidade” (Fernandes, 2013, p. 233). Essa análise não é de todo falsa, mas sua parcialidade
– ao se ater a um nível muito específico (o sociológico) da análise – acaba por deixar escapar outras
determinações que são igualmente importantes.

232
sugerir que as insuficiências dessas abordagens são fruto mais das dimensões que elas
ignoram do que aquelas que lhes retêm a atenção. Explico-me. Diante da aparente con-
tradição entre os avanços democráticos resultantes do movimento da Reforma Urbana
e a realidade cada vez mais antidemocrática das nossas cidades, a literatura crítica sobre
o tema tem se debruçado sobre o conteúdo de tais planos ou sobre o resultado sensível,
para não dizer superficial, de determinadas políticas.3 Não ignorando a importância desse
esforço, acredito que se tem falhado em investigar as causas dessa situação, motivo pelo
qual a crítica permanece incompleta e adquire traços reformistas, idealistas, voluntarista e,
consequentemente, moralistas. O resultado disso é que as soluções práticas ficam presas
em “mais do mesmo”: mais planos, mais participação, mais leis etc. O que falta, a meu ver,
é uma concepção mais ampla da crítica que coloque no seu campo de ação também as
formas sociais através das quais as relações e os sujeitos sociais se determinam. Para o caso
específico do planejamento urbano isso envolve a crítica da forma mercadoria, da forma
política e da forma jurídica, bem como das inter-relações e derivações entre elas. Essa nova
dimensão complementa e modifica – mas não nega – a crítica anterior e ajuda a construir
o sentido ampliado de uma crítica materialista. Antes de avançarmos, portanto, detenha-
mo-nos um pouco mais no significado desta última.
O que denomino por “crítica materialista” nasce da crítica marxiana ao idealismo
alemão iniciada em 1843 com a Crítica da filosofia do direito de Hegel e consolidada n’A Sa-
grada Família de 1845 e n’A ideologia alemã entre 1845 e 1846. Esta última assume especial
importância pela análise empreendida por Marx das determinações reais da consciência
e da crítica à formulação idealista da História.4
A partir do desenvolvimento marxiano pode-se especificar melhor o teor da crítica
materialista: em primeiro lugar ela é pautada por uma crítica ao idealismo – pensamento

3 Isso não implica, e é importante dizer logo de início, uma completa indiferença ou inutilidade dos conteúdos
jurídicos que se revestem da forma jurídica. É claro, como também argumentado por Chasin (2000a;
2000b), que os trabalhadores ou as classes excluídas não são indiferentes à forma específica pela qual se
efetiva sua dominação. Significa somente o reconhecimento de que estas formas representam apenas
uma emancipação parcial que não atacam radicalmente as origens dos vícios que são, ao mesmo tempo,
espaciais e sociais. Da mesma maneira que “formas de propriedade privada” continuam sendo “propriedade
privada”, formas específicas de Estado continuam sendo Estado. A forma política não desaparece com essas
transformações, o que não significa que as condições de luta contra elas se alterem sensivelmente, como na
discussão marxiana acerca do sufrágio universal apresentada por Pogrebinschi (2009).
4 Segundo a qual a História nada mais é do que a expressão fenomênica do Conceito em desenvolvimento. Essa
“mistificação” é operada por filósofos e ideólogos que abstraem os conceitos reais de suas respectivas bases
reais e históricas e os transformam em um Conceito trans-histórico que se autodesenvolve na História (Marx,
2007, p. 50). Nessa acepção: “O homem existe para que exista História, e a História existe para que exista a
demonstração da verdade. Sob essa forma trivializada criticamente se repete a sabedoria especulativa de que o
homem e a História existem para que a verdade chegue à autoconsciência” (Marx, 2011, p. 96, grifos do autor).

233
filosófico baseado na inversão entre sujeito e predicado que possui a tendência a tornar abso-
lutas categorias propriamente históricas; consequentemente, e em segundo lugar, ela remete
ao estudo das relações sociais reais e seus desdobramentos sobre o ser e a consciência; e,
como derivação direta das duas últimas, ela é pautada pela revisitação crítica das categorias e
formas sociais que estruturam determinado modo de produção e suas relações de explora-
ção e opressão de classe. Importante destacar que a ideia de ideologia que nasce dessa crítica
não se resume ao engano, à mistificação ou à falsa consciência. A ideologia possui uma base
real, é a consciência invertida do real invertido, ou melhor, para usar a expressão de Rouanet
citado por Codato (2011, p. 155): “é assim a percepção exata do real fetichizado.” Isso nos
afasta de qualquer tipo de projeto de emancipação que seja pautado na simples revelação ou
libertação da consciência. O processo de autoemancipação é, ao mesmo tempo, um proces-
so de autoconscientização, ou seja, é um processo que nasce na experiência real contra deter-
minações reais do ser e da consciência. É nesse sentido que cabe trazer a questão das formas
sociais para a linha de frente do pensamento crítico, uma vez que são elas que estruturam a
“realidade invertida” e dão suporte para a existência e a reprodução não somente da “cons-
ciência invertida” como também da própria estrutura de uma sociedade dividia em classes.
Podemos então sedimentar essa concepção recorrendo à advertência de Hirsch (2010, p.
20) sobre a construção de uma teoria materialista do Estado:

O Estado não é simplesmente definido como ligação organizativa dada e


funcional, mas como expressão de uma relação de socialização antagônica
e contraditória. A abordagem materialista-histórica leva em conta não ape-
nas o fato de que as relações de dominação política têm base e condições
materiais, fundadas nas estruturas da produção social. Isso é o que deveria
fazer qualquer teoria social e do Estado. O seu ponto decisivo é mais o fato de
que elas não são diretamente observáveis pelos homens – na terminologia
de Marx, elas são “fetichizadas”. Trata-se, portanto, de entender as instituições
e os processos políticos como expressão de relação de domínio e de explora-
ção, bem como os conflitos e as lutas delas resultantes, e que lhe são opacas.
Esse é o entendimento marxiano sobre a ciência como crítica. Por isso, não se
trata apenas de explicar como o Estado funciona ou deve funcionar, mas que
a relação social ele apresenta e como ela pode ser superada.

Nessa citação está presente tanto a compreensão de que a reprodução social se dá


através de formas (fetichizadas) que intermediam as relações entre os indivíduos, quanto
a de que sua origem tem por base as próprias contradições do modo de produção capita-
lista, ou seja, que tanto a forma política (representada pelo Estado) quanto a forma jurídica
(representada pelo Direito) são derivadas e necessárias para a reprodução do capitalismo.5

5 A empreitada de fazer a derivação lógica e histórica da forma política foi assumida por um grupo de

234
Talvez valha a pena insistir uma última vez no significado das formas sociais e nos
seus poderes conformadores da prática social. Jessop (1990), por exemplo, procura espe-
cificar um pouco mais a famosa definição de Marx, segundo a qual o capital não é uma
coisa, mas uma relação social; ele afirma que o capital é “uma relação social determinada
por uma forma” (Jessop, 1990, p. 197, tradução nossa) e que, consequentemente, “a acu-
mulação de capital é o resultado complexo da mudança no equilíbrio das forças das clas-
ses em luta na medida em que elas interagem dentro de um quadro social determinado
pela forma valor” (Jessop, 1990, p. 197, tradução livre). Mascaro (2013) talvez seja quem
apresente a questão de maneira mais clara:

A reprodução social não se constitui apenas de atos isolados ou meramen-


te dependentes da vontade ou da consciência dos indivíduos. Para utilizar
uma expressão de Marx, pelas costas dos indivíduos passa uma série de
constructos sociais. A apropriação do capital, a venda da força de trabalho,
o dinheiro, a mercadoria, o valor são formas constituídas pelas interações
sociais dos indivíduos, mas são maiores que seus atos isolados ou sua von-
tade ou consciência. Formas sociais são modos relacionais constituintes
das interações sociais, objetificando-as. Trata-se de um processo de mútua
imbricação: as formas sociais advêm das relações sociais, mas acabam por
serem suas balizas necessárias (Mascaro, 2013, p. 20-21).

(...) a forma-trabalho, no capitalismo, já parte da pressuposição de que a força de


trabalho pode ser trocada por dinheiro, mediante o artifício do acordo de von-
tades que submete o trabalhador ao capitalista. A subjetividade portadora de
vontade, portanto, é uma forma necessária pressuposta de tal interação. A forma
social permite, enseja e a si junge as relações sociais (Mascaro, 2013, p. 21).6

pesquisadores que, durante a década de 1970, ficaram conhecidos como a “escola derivacionista”. Para a
recuperação das discussões desenvolvidas por eles, ver Holloway e Picciotto (1978) e Clarke (1991). Mais
recentemente, Mascaro (2013) propõe uma revisitação da problemática derivacionista – apoiando-se na
formulação de Joachim Hirsch – e sua articulação com a crítica da forma jurídica feita por Evegni Pashukanis.
6 A partir desse exemplo didático de Mascaro (2013) podemos vislumbrar as limitações de uma crítica que
se atenha à crítica dos conteúdos das relações sociais e não analisando as formas sociais que as determinam
e balizam. Tomemos, por exemplo, a relação salarial – que pressupõe, conforme exposto, a compra e venda
da força de trabalho, ou seja, a conformação do trabalho enquanto mercadoria. Uma crítica da relação
salarial poderia se pautar no nível salarial, dizendo que os salários estão demasiadamente baixos. Essa crítica,
no entanto, atendo-se simplesmente à denúncia dos baixos salários não vislumbra nem as determinações
do salário (reduzindo-as à simples vontade ou moral dos capitalistas), nem a exploração inerente à própria
relação da compra e venda da força de trabalho e muito menos a redução dos sujeitos a meras mercadorias
(operação necessária para que se efetive a compra e venda da força de trabalho). A crítica apenas dos
conteúdos ignora a dialética existente entre forma e conteúdo e reduz o horizonte emancipatório da crítica.
No pensamento crítico sobre o planejamento que se atém somente aos conteúdos, isso significa que a
crítica recai sobre as zonas, mas raramente sobre o zoneamento; sobre os representantes, mas raramente

235
Essa prevalência da crítica dos conteúdos sobre a crítica das formas – ou, o
que é pior, a falência na transição de um para o outro – acaba por nos fazer retornar
sempre aos terrenos do puro idealismo,7 reforçando o fetichismo (em suas mais di-
versas dimensões), que também é a base do pensamento criticado em primeira ins-
tância. A falência da crítica pode se desdobrar em uma falência da prática que busca a
emancipação – único projeto capaz de fazer frente à produção capitalista das cida-
des e suas consequências –, mesmo se considerarmos menos os problemas do pro-
jeto político e mais os problemas das estratégias para atingi-lo,8 ou seja, o “inimigo”
permanece parcialmente oculto e, por isso, sobrevive. A parcialidade da postura crí-
tica contamina a percepção política de quais são os meios necessários (ou possí-
veis) para a realização daquilo que identificamos como o conteúdo que desejamos.
Retornando ao problema do planejamento e sua relação com a realização do cha-
mado “direito à cidade”, é imperioso observar que o planejamento urbano (especialmente
no Brasil) se efetiva na produção do espaço urbano através da mediação de duas insti-
tuições que expressam e encarnam duas formas política típicas do modo de produção
capitalista: o Estado e o Direito. Importa, portanto, observar em que medida essas duas
formas sociais reduzem e condicionam as experiências subjetivas e de classe em prol da
reprodução de relações fetichizadas e opressoras.9

sobre a representação; sobre os planos, mas raramente sobre o próprio planejamento.


7 O esforço, por exemplo, de se encontrar um conceito de “planejamento” que valha para todos
os tempos e formações sociais, que revele a essência do planejamento ainda ocupa teóricos do
planejamento como o próprio Friedman (2003a; 2003b). Essa postura acaba por reforçar a ideia
fetichizada e fetichizante de que o planejamento seria uma inclinação natural do ser humano ou uma
atividade meramente técnica perdendo de vista as especificidades da produção social do espaço da
qual o planejamento é parte organicamente articulada.
8 Enquanto o projeto político de emancipação exige a superação das formas sociais, as estratégias para tal
não podem se basear na pura negação. É preciso se ter em mente que as próprias formas são resultado da
existência de contradições do modo de produção capitalista e podem ser estrategicamente exploradas
a fim de que essas fissuras resultem em rupturas. No entanto, é importante saber qual fissura pode ser
revolucionariamente explorada e como ela pode sê-lo; por isso a compreensão da dimensão do projeto
emancipatório (e da crítica que ajuda a construí-lo) é importante. O estudo realizado por Lewrg (1980)
é icônico de como a identificação de que o próprio Estado possui um viés de classe oxigenou as lutas
socialistas nos fins da década de 1970.
9 Vale ressaltar também que essa observação é uma pequena parte de uma agenda de pesquisas das
relações entre forma política/forma jurídica e o modo de produção capitalista. Talvez as duas dimensões
mais importantes dessa pesquisa seja a demonstração histórica da especificidade e da importância de
ambas para o próprio surgimento e consolidação do capital e da necessidade lógica dessas formas
para o processo de reprodução ampliada do valor. Meu esforço, neste trabalho, concentra-se somente
na determinação de que essas formas impõem as relações sociais (e consequente espaciais) entre os
indivíduos e entre as classes. Isso será suficiente para sugerir a incompatibilidade entre essas formas

236
Forma política, forma jurídica e reprodução de
classes no capitalismo

O movimento que proponho nesta seção diz respeito à desmistificação do Estado e do


Direito enquanto duas formas vazias nas quais qualquer conteúdo poderia ocupar de ma-
neira neutra. Consequência direta disso é a crítica de que o Estado ou o Direito poderiam
ser os representantes do “bem comum” ou do “interesse geral”, completamente descom-
prometidos com quaisquer interesses específicos de classe.
De fato, essa postura representa o ápice da construção hegeliana do Estado, se-
gundo a qual este seria a racionalidade superior e unificadora da conflituosa sociedade
civil, o espaço no qual as lógicas individuais se transubstanciariam em uma razão supe-
rior, fazendo do próprio Estado a encarnação da Razão, a verdadeira vida coletiva (ou
genérica) dos homens, a Ideia consciente de si (Sampaio; Frederico, 2009).10 Em sua
atividade jornalística na Gazeta Renana, Marx ainda era tributário dessa concepção, o
que se revela em seu artigo crítico sobre o roubo da lenha, no qual ele acusa o Estado de
estar se rebaixando à particularidade dos interesses da propriedade privada e ignorando
o interesse universalmente humano representado pelos direitos costumeiros da livre
apropriação da lenha (Abensour, 1998; Lowy, 2011). Segundo a exposição de Enderle
(2010), a insuficiência da mera requisição de que os interesses das classes mais pobres
fossem absorvidos na racionalidade política superior do Estado não escapam ao jovem
filósofo, uma vez que essa transformação não altera o estatuto real da pobreza, ou seja,
a mera representação política da pobreza na esfera política não diz nada a respeito da
existência da pobreza na esfera social.11

sociais e o tipo de relação socioespacial implícita na concepção lefebvriana de “direito à cidade”.


10 Aqui se opera o que Marx, segundo Sampaio e Frederico (2009), irá identificar como uma inversão
hegeliana entre predicado e sujeito. Ao final do trajeto dialético, Hegel assume o Estado – uma produção da
ação dos homens – como um sujeito-objeto, ou seja, uma criação que ganha vida própria, que possui uma
razão superior aos próprios homens e que confere um sentido comum a vida individual. Dessa maneira, os
homens passam a ser determinados pela sua própria obra; o predicado passa a determinar o sujeito.
11 “Ao que tudo indica, a insuficiência de uma resolução desse feitio para a contradição entre Estado e
sociedade civil não escapou ao rigor teórico de Marx à época. Primeiramente, havia o problema de se
entender a realidade social (no caso presente, a ‘existência da classe pobre’) partindo-se do Estado como
ideia de ‘organismo’, ‘articulação consciente’ etc. A pobreza, de problema originário, genuinamente social,
passa a ser explicada por uma derivação, como ausência de uma qualidade política, estatal. Em segundo
lugar, e como consequência necessária, essa contradição superada no acolhimento, pelo Estado, do
direito consuetudinário da classe pobre como direito positivo. O problema, aqui, é que a pobreza, em
sua realidade social, permanece intocada, tendo recebido apenas uma forma política, legal. A sociedade
civil não se realiza como universal concreto pela superação, na própria sociedade civil, da particularidade
da propriedade privada, mas apenas conquista uma universalidade abstrata, permanecendo dominada,

237
É nesse espírito que Marx se lança na crítica da filosofia hegeliana do direito, o que
culminaria na crítica da política moderna e da emancipação política, compondo o quadro
geral da crítica ao idealismo especulativo alemão. Não convém resgatar aqui todo esse
itinerário que se desdobra ao longo de toda a obra de Marx, embora passe a concorrer
cada vez mais com a crítica da anatomia da sociedade civil (da economia política), mas
vale destacar algumas conclusões importantes para compreender o papel do Estado na
consolidação do modo de produção capitalista e na reprodução das relações de classe.
Primeiramente é importante ressaltar que o Estado moderno é uma formação iné-
dita e específica, na medida em que se baseia em uma separação entre a esfera política e a
esfera social, ou seja, somente a partir da modernidade o poder político é secularizado e
desvinculado de características personalizadas.12 Nesse sentido, a divisão entre Estado e
sociedade civil também é própria à política moderna. Nessa separação a sociedade passa
a ter uma dupla existência: uma política ligada às coisas em comum dos homens e outra
social, dedicada à existência particular, à individualidade. Universal e particular são postos,
assim, em polos diferenciados e antagônicos.
Essa distinção é extremamente funcional à sacralização e autonomização também
da esfera econômica, bem como à livre circulação e reprodução do valor, conforme des-
tacado por Wood (2006):

A diferenciação da esfera econômica no capitalismo pode, portanto, ser


assim resumida: as funções sociais de produção e distribuição, extração e
apropriação de excedentes, e a alocação do trabalho social são, de certa for-
ma, privatizadas e obtidas por meios não autoritários e não políticos. Em
outras palavras, a alocação social de recursos e de trabalho não ocorre por
comando político, por determinação comunitária, por hereditariedade, cos-
tumes nem por obrigação religiosa, mas pelos mecanismos do intercâmbio
de mercadorias. Os poderes de apropriação de mais-valia e exploração não
se baseiam diretamente nas relações de dependência jurídica ou política,
mas sim, numa relação contratual entre produtores “livres” – juridicamente
livres e livres dos meios de produção – e um apropriador que tem a proprie-
dade privada absoluta dos meios de produção (Wood, 2006, p. 35).

Podemos observar desde já que a própria cisão entre esfera política e esfera econô-
mica (da qual surge e se funda a forma política) é genética e essencial à aparição da própria

em seu seio, pela particularidade dos interesses” (Enderle, 2010, p. 16, grifo do autor).
12 Essa situação é distinta, por exemplo, tanto da Antiguidade grega clássica, na qual a indistinção entre a
esfera política e esfera social eram representadas na união perfeita entre indivíduo e cidadão – conforme
demonstrado por Held (1987) – quanto do período feudal no qual privilégios políticos e econômicos
coincidiam através da mediação da posse da terra – como revelam os estudos do próprio Marx (2008).

238
definição da relação de trabalho capitalista – com sua dupla liberdade, na qual o trabalha-
dor é livre para vender sua força de trabalho, mas coagido a vendê-la porque também é livre
dos meios de produção. A distinção entre a esfera política e a esfera social – que é reduzida
ao econômico através da generalização do valor enquanto determinante da vida social – faz
com que as questões econômicas (incluindo aqui a exploração que se efetiva na compra e
venda da força de trabalho) apareçam puramente como questões privadas, individuais e,
portanto, distantes das reflexões acerca da universalidade da própria sociedade, da socieda-
de em seu conjunto, da atividade política (Pogrebinschi, 2009). Se não, vejamos.
A fim de que o Estado seja apresentado enquanto um universal que paira acima
das particularidades da sociedade civil e possa, assim, dizer-se como determinante ra-
cional desta, ele se define a partir das abstrações dessas particularidades. Ali onde exis-
tem particularidades o Estado não está, uma vez que ele se dedica tão somente ao que
concerne não aos homens, mas ao Homem. Revela-se, dessa maneira, a parcialidade de
uma emancipação que seja mediada pelo Estado: a emancipação política só é alcançada
através da abstração daquilo do que se quer emancipar; a consequência é que quem se
emancipa é o próprio Estado, ou seja, a emancipação só se dá na esfera política (abstra-
ta) (Marx, 2010c).13 No entanto, como o Estado se coloca como sujeito da História e
meio da emancipação dentro da estrutura social ele acaba por efetivamente evitar que
a emancipação avance para além dos limites impostos por ele mesmo. Por esse motivo
é que Marx (2010c) encara o Estado como alienação das forças próprias do homem na
forma de força política; como fonte de uma alienação política.14
Nesse processo toda a sociedade, bem como o indivíduo, assume uma dupla exis-
tência, uma “profana” (material) e uma “sagrada” (política). No plano político ele é laico,
mas no plano material ele é religioso. Nesse exercício bipolar não conseguirá evitar entrar

13 É interessante notar que a própria definição do Estado enquanto um universal que se constitui através
da abstração das situações reais e particulares dos indivíduos determina sua impotência em face das
determinações materiais. O Estado não consegue tratar das contradições reais sem deixar, ao mesmo
tempo, de ser Estado, ou seja, sem deixar de ser um universal abstrato, uma vez que ele teria de tomar
partido e se reduzir a uma particularidade. O próprio Estado decreta sua insuficiência, embora – como
vimos – ele seja essencial para aquilo que ocorre na esfera econômica, o que impede sua neutralidade.
Mas o Estado também não é só impotente em face das particularidades da esfera privada como também
depende delas para que se possa dizer universal, a eliminação das diferenças da sociedade civil equivaleria
à destituição de sentido da existência da esfera pública. Por isso o Estado se assenta na parcialidade da
emancipação proposta por ele mesmo. Em uma sociedade na qual a religião foi efetivamente superada,
não há sentido na existência de um Estado laico.
14 À parcialidade da emancipação política, Marx (2010c; 2010a) opõe o que ele denomina de “emanci-
pação humana”, baseada não somente na restituição ao homem das suas forças próprias que se encon-
tram alienadas, por exemplo, na forma política, mas também na construção de uma sociedade na qual
essas alienações – inclusive a religiosa – seriam inviáveis e desnecessárias.

239
em contradição consigo mesmo, de modo que entre Estado e sociedade civil não existe
uma elevação, mas uma contradição não resolvida que se agrava na medida em que um
pressupõe a existência do outro embora se baseiem em objetivos antitéticos.
A esfera política, no entanto, não é um mero disfarce das relações econômicas
como poderia parecer em uma primeira vista.15 É preciso insistir no caráter de clas-
se da emancipação política e na funcionalidade de sua parcialidade para a estrutura
da sociedade burguesa e sua divisão em classe. O segredo encontra-se efetivamente
no processo imposto de abstração, a fim de que se constitua uma esfera política tida
como a esfera do comum.
A esfera política atua como uma espécie de filtro que condiciona, a priori, as rela-
ções sociais que são legítimas de ocorrerem na esfera da determinação do comum. É isso
que permite com que a exploração não apareça enquanto um problema político – que diz
respeito à estrutura social – e somente como uma questão individual. Mais do que isso,
a criação de uma esfera política abstrata faz com que as relações de exploração efetivadas
na esfera econômica apareçam como uma mera relação entre iguais livres. Como a esfera
política se coloca como determinante (na figura do Estado), ela cria a aparência de que a
liberdade e a igualdade meramente formais, que surgem a partir da abstração das qualida-
des reais, sejam a verdadeira existência. O Estado tenta recriar o mundo – e um mundo
superior – ao duplicá-lo na esfera política.16
Uma “duplicação” abstrata é imposta à sociedade civil para que se constitua uma
comunidade política (lugar da determinação do coletivo). Essa imposição é, na verdade,

15 Importante lembrar aqui as rápidas advertências anteriores sobre a concepção de ideologia que supera a
mera mistificação ou falsa consciência.
16 “Do ponto de vista político, Estado e organização da sociedade não são duas coisas distintas. O Estado é a
organização da sociedade. Na medida em que o Estado admite a existência de anomalias sociais, ele procura
situá-las no âmbito das leis da natureza, que não recebem ordens do governo humano, ou no âmbito da vida
privada, que é independente dele, ou no âmbito da impropriedade da administração, que é dependente dele”
(Marx, 2010b, p. 38, grifos do autor). Dessa operação de “duplicação” e “domínio aparente” do Estado sobre a
sociedade civil, revela-se também a incapacidade do Estado em resolver a contradição entre “interesse geral” e
“interesse privado”: “O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da admin-
istração, por um lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está baseado
nessa contradição. Ele está baseado na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os
interesses gerais e os interesses particulares. Em consequência, a administração deve restringir-se a uma atividade
formal e negativa, porque o seu poder termina onde começa a vida burguesa e seu labor. Sim, frente às con-
sequências decorrentes da natureza associal dessa vida burguesa, dessa propriedade privada, desse comércio,
dessa indústria, dessa espoliação recíproca dos diversos círculos burgueses, frente a essas consequências a
lei natural da administração é a impotência” (Marx, 2010b, p. 39, grifos do autor). O Estado é o representante
do “bem comum” somente se entendermos por bem comum algo abstrato e alheio às reais contradições de
classe, ou seja, como algo que independente das relações de classe dentro do capitalismo.

240
uma distorção em relação às relações reais de classe: no exato momento em que as classes
se imprimem no lugar da deliberação coletiva lhes são impostas abstrações que as desca-
racterizam como classe em primeira instância:

Nesse contexto, poderíamos dizer então dos interesses econômicos das clas-
ses, que o seu espaço de aparecimento (o seu “teatro”, para manter a metáfora) é
igualmente o espaço do seu desaparecimento – ou mais propriamente, dos seus
aparecimentos sob uma forma reificada: partidos políticos sem base social,
políticos que representam a si mesmos, ações legislativas compreendidas em
função de seus próprios fins etc. Logo, a condição para que os interesses eco-
nômicos das classes existam politicamente é que eles sejam invisíveis: isto
é, que eles encontrem um símbolo ideológico viável no espaço politico que
os escamoteie e negue. Todavia, uma vez que os interesses sociais assumem
uma forma-política, eles passam a existir conforme os princípios e a lógica desse
espaço (Codato, 2011, p. 158, grifos do autor).

Essa imposição afeta as relações reais de classe, uma vez que as neutraliza em diver-
sas categorias não conflituosas ou cujo conflito se limita a esfera política. Ao imputar for-
mas políticas às contradições sociais os trabalhadores se afastariam das verdadeiras causas
de seu sofrimento, trairiam seu “instinto social” e passariam a se limitar ao campo próprio
da política que, em última instância, se baseia na continuidade das relações privadas da
sociedade civil, fonte da exploração e da miséria.17
Raciocínio semelhante poderia ser empregado para as questões envolvendo a es-
fera jurídica. Fine (1984) destaca, por exemplo, através da análise histórica feita por E. P.
Thompson, como a implantação de um regime jurídico normativo e positivista (tal como
é a esfera jurídica na modernidade) resultou de uma disputa entre as novas jurisprudên-
cias burguesas e o direito tradicional,18 baseado nos costumes, implicando em uma indi-
vidualização da luta por direitos que persiste até hoje. O pensamento de Foucault – apesar
de seu formalismo – também é um laboratório a partir do qual Fine (1984) ressalta o

17 “Já demonstramos ao ‘prussiano’ o quanto o entendimento político é incapaz de descobrir a fonte


da penúria social. Mais um comentário sobre essa sua concepção. Quanto mais culto e universal for
o entendimento político de um povo, tanto mais o proletariado – ao menos no início do movimento
– desperdiça suas forças em rebeliões insensatas, inúteis e sufocadas em sangue. Por pensar na forma
política, ele vislumbra a causa de todas as mazelas na vontade e todos os meios para solucioná-las na
violência e na derrubada de uma determina forma de Estado” (Marx, 2010b, p. 48, grifos do autor).
18 Também Pachukanis (1988) notou essa diferença fundamental: “Considerada por um indivíduo que
viva num regime econômico natural, a economia baseada nas relações de valor vai aparecer como uma
deformação artificial de coisas simples e naturais, da mesma forma que o modo de pensamento jurídico vai
aparecer para o indivíduo médio como contrário ao ‘bom senso’ normal” (Pachukanis, 1988, p. 25). Essa
observação afasta de antemão qualquer naturalização do pensamento jurídico típico da era moderna.

241
poder coercitivo e disciplinador da forma política sobre a produção de subjetividades,
vinculando qualquer ato emancipador à superação não só da forma jurídica, mas também
de outras formas de se exercer o poder disciplinador da sociedade moderna.
No entanto, é somente com o pensamento de Evgeni Pachukanis que encontra-
mos o esboço19 de uma crítica das formas jurídicas a partir da sua derivação das relações
tipicamente capitalistas – reforçando, ao menos logicamente, seu caráter intrínseco de
classe. Não irei me ater aqui no contexto histórico no qual esse pensador se insere nem
na contextualização da sua construção dentro do campo jurídico russo.20 Importa mais
recuperar as consequências da derivação da forma jurídica a partir da mercadoria, tanto
para a construção dos sujeitos como para a mediação das relações sociais.
Sendo completamente fiel às formulações marxianas, Pachukanis (1988) ques-
tiona se as categorias jurídicas tão usuais ao campo (tais como norma jurídica, relação
jurídica, sujeito jurídico) seriam autônomas (completamente instrumentais) ou fruto
do processo histórico de consolidação do modo de produção capitalista. Ele adverte,
em uma posição que lembra a de Hirsch (2010) acerca do Estado, que remeter o con-
teúdo das normas ou das instituições ao julgo de classe não é suficiente para construir
uma teoria crítica sobre o Direito.21
Assim como para o caso do Estado, Pachukanis defende que também o Direito é
uma particularidade histórica da era moderna. Essa posição pode soar tão estranha quan-
to fazer semelhante afirmação em relação ao Estado, mas Kashiura Junior (2011) esclare-
ce bem a questão quando diz:

Na história ocidental, durante a Antiguidade e o medievo, não havia com-


pleta diferenciação daquilo que hoje se identifica como o direito. A forma
jurídica não apresentava fronteiras claras quer quanto à religião – misticis-
mo e uma pretensa vontade divina constituindo regras de conduta –, quer
quanto à política – a vontade do soberano como lei, status sociais funda-
mentando privilégios. O romano que pronunciava palavras sagradas para
selar um pacto profano, o vassalo que se ligava por laços de dependência
pessoal ao suserano, o sistema de provas conhecido como ordália e o di-
reito oriundo das monarquias absolutas, para ficar apenas com exemplos
os mais patentes, atestam a indiferenciação da forma jurídica em relação a
outros domínios da vida social (Kashiura Junior, 2011, p. 48).

19 O caráter incompleto da obra de Pachukanis é recordado tanto por Naves (1996) como por Kashiura
Junior (2011).
20 Essa recuperação pode ser encontrada em Naves (1996) e Vásquez (2010).
21 “Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da
regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista
sobre a regulação jurídica como forma histórica determinada” (Pachukanis, 1988, p. 21).

242
A forma jurídica não é somente contemporânea ao modo de produção capitalista,
mas é uma derivação direta dele, ou seja, as próprias categorias jurídicas são fruto da ativi-
dade concreta dos homens. Para Pachukanis (1988), assim como a mercadoria é o átomo
da economia política burguesa, a pedra angular do Direito é o sujeito jurídico. Este, por
sua vez, é derivado da generalização da necessidade de circulação das mercadorias.22 Essa
derivação está calcada na observação de Pachukanis (1988) de que a regulação jurídica
diz respeito à normatização das relações entre dois indivíduos cujo interesse é conflitan-
te23 – lá onde o conflito de interesses não existe, o jurista nada tem a dizer.
Na circulação de mercadoria existe a necessidade (para a reprodução das próprias
mercadorias) de que os dois possuidores se encontrem livre e voluntariamente no mercado
e façam uma troca entre dois iguais que se reconhecem (caso contrário não se trata de uma
relação sacralizada, puramente econômica, capitalista). O interesse geral real (sem quaisquer
mistificações) aqui é a reprodução do valor que, no entanto, pode conflitar com o interesse
individual de uma das partes – especialmente em uma sociedade divida em classes na qual
uma classe é explorada por outra justamente no momento da venda de uma mercadoria
(da força de trabalho). Por esse motivo, e porque as mercadorias não podem ir sozinhas ao
mercado se trocarem de maneira autônoma, é preciso que surja uma subjetividade própria e
abstrata que interaja no nome da mercadoria. Essa figura é o sujeito de direito.24

Assim, o vínculo social entre os homens no processo de produção, vínculo


que se coisifica nos produtos do trabalho, e que toma forma de uma lega-
lidade elementar, impõe, para sua realização, a necessidade de uma relação
particular entre os homens, enquanto indivíduos que dispõem de produ-
tos, enquanto sujeitos cuja “vontade habita nas próprias coisas”. “O fato de
os bens econômicos serem frutos do trabalho constitui uma propriedade
que lhes é inerente; o fato de eles poderem ser negociados constitui uma
segunda propriedade, que depende somente da vontade de seus proprie-
tários, sob a única condição de tais bens serem apropriáveis e alienáveis.”
Eis a razão pela qual, ao mesmo tempo que o produto do trabalho reveste

22 Uma crítica da derivação de Pachukanis a partir da circulação de mercadorias pode ser encontrada em
Fine (1984) e revisitada em Pogrebinschi (2009).
23 “Uma das premissas fundamentais da regulação jurídica é, assim, o antagonismo dos interesses
particulares ou privados. Este antagonismo é tanto condição lógica da forma jurídica quanto causa real
de evolução da superestrutura jurídica. A conduta dos homens pode determinar-se pelas regras mais
complexas, mas o momento jurídico desta regulamentação inicia-se onde começam as diferenças e as
oposições entre interesses” (Pachukanis, 1988, p. 44).
24 Temos novamente aqui uma crítica aos idealismos que rondam as interpretações das categorias do
direito: “A propriedade no modo de pensar jurídico nasceu, não porque tenha surgido aos homens a
ideia de se atribuírem reciprocamente tal qualidade jurídica, mas porque passar-se por proprietário era a
única maneira de poderem trocar suas mercadorias” (Pachukanis, 1988, p. 82).

243
as propriedades da mercadoria e se torna portador de valor, o homem se
torna sujeito jurídico e portador de direitos. A pessoa cujo determinante é
a vontade, é o sujeito de direito (Pachukanis, 1988, p. 71).

As relações dos homens no processo de produção envolvem assim, num


certo estágio de desenvolvimento, uma forma duplamente enigmática.
Elas surgem, por um lado, como relações entre coisas (mercadorias) e,
por outro, como relações de vontade entre unidades independentes uma
das outras, porém, iguais entre si: tal como as relações entre sujeitos jurí-
dicos (Pachukanis, 1988, p. 75).

A derivação da forma jurídica em si não constitui o ponto central do argumento


aqui construído, mas sim, seus efeitos sobre as relações sociais, especialmente sobre
as interações contraditórias entre as classes. Primeiramente, é importante notar que a
aparição da figura do sujeito de direito reduz o homem ao indivíduo egoísta e isolado
portador de uma vontade abstrata que somente se efetiva na forma de um contrato
(uma troca) (Pogrebinschi, 2009). Em segundo lugar, o sujeito de direito completa o
caráter fetichista da mercadoria – que exerce seu poder na própria definição do que é
um sujeito25 – que esconde o caráter social da produção (a figura do produtor acaba
por desaparecer do campo dos direitos, uma vez que somente vemos relações entre
compradores e vendedores), escondendo também “o domínio social de uma classe so-
bre a outra através de coisas (...)” (Kashiura Junior, 2011, p. 54); os indivíduos passam
a conceberem a si mesmos como sujeitos portadores de direitos (se creem possuidores
reais de liberdade e igualdade meramente formais) de maneira independente daquilo
que ocorre na esfera material, desvinculando a posse (o exercer efetivo) de direitos dos
processos de produção de mercadorias.26 Por fim, temos as consequências do surgi-
mento da figura do sujeito de direito sobre os conflitos de classe. O Direito se coloca
como a solução dogmática, neutra e técnica para os conflitos sociais e, desse modo,
media e influencia as demandas que originalmente eram de classe que se transfiguram
em demandas por direitos abstratos – deixando assim intocada as determinações reais.
A solução jurídica se apresenta, portanto, como única, verdadeira, suficiente, como a
solução pacífica e pacificadora dos conflitos. Assim, e em resumo:

25 A vontade da troca de mercadorias é a real vontade do sujeito de direitos abstrato. Isso é tão verdade
que, na realidade concreta, os indivíduos que efetivamente possuem seus direitos garantidos de antemão
(sem qualquer necessidade de luta) são os portadores de mercadorias. O mesmo pode ser dito, por
exemplo, do cidadão: a verdade da cidadania é ser, de alguma forma, capital.
26 É por esse motivo que Pogrebinschi (2009) vai afirmar que o Direito é também uma mediação entre
o homem e si mesmo, um desvio desnecessário que se apresenta como natural e acima dos indivíduos,
constituindo-se, portanto, como uma forma de alienação.

244
É o sujeito de direito, em sua abstração, que permite a organização da
sociedade em termos formais, despolitizados. Para Pietro Barcellona, “la
idea de la subjetividad abstracta es, en estos términos, absolutamente
necesaria: 1) para garantizar la distancia entre pensamiento y ser, y en
consecuencia la disponibilidad del objeto y de la naturaleza; 2) para
mediar la universalidad general del orden y la individualidad empírica
de la existencia, para presuponer un proyecto de orden a partir de una
antropóloga individualista; 3) para liberar las relaciones entre los indi-
viduos de las determinaciones específicas de las relaciones personales
y poderlas representar como relaciones objectivadas entre esferas de
libertad abstracta; 4) para liberar la riqueza y los recursos necesarios
para satisfacer las necesidades humanas, de toda determinación per-
sonal que los convertía en mera proyección de las jerarquías y de los
Estados” (...) Seria impossível conceber e manter a ideia de “ordem” por
meio do direito positivo se, em vez do sujeito abstrato, fosse considerado
o sujeito concreto, o ser humano com suas carências reais determinadas
na história. “Sujeito de direito” é a forma indispensável para que o direito
funcione socialmente segundo os interesses das classes dominantes; a abstra-
ção de suas qualidades reais – todos são iguais perante a lei – consolida a
desigualdade real. Enfim, a abstração do sujeito concreto em sujeito de
direito não é para beneficiá-lo, mas para moldá-lo como engrenagem
do sistema (Melo, 2012, p. 142-143).

A conclusão necessária do exposto acima é que tanto a forma política (na figura
do Estado) como a forma jurídica (na figura do Direito) não são expressão nem meio
de uma emancipação que vá além daquela representada pela sociedade capitalista. Se
formos desejosos da construção de relações sociais (incluindo as espaciais) que vão
além daqueles contemporaneamente experimentas, é imperativa a superação dessas
formas sociais,27 tanto quanto da forma valor.

Os (des)caminhos do direito à cidade

Esta última parte do texto propõe uma recuperação e uma aproximação ao conceito
lefebvriano do “direito à cidade” através de uma investigação do seu caráter eminen-
temente revolucionário e das possibilidades de sua realização. Interessa-me, por um
lado, frisar a amplitude da crítica que Lefebvre desenha na obra homônima28 e, por

27 É claro que, conforme destacado por Mascaro (2013), essas duas formas sociais são marcadas por
uma simbiose. Se logicamente é possível distingui-las, na prática existe uma dupla determinação que as
reforçam. Iasi (2005), por exemplo, já considera a luta pela emancipação como a destituição do Estado e
do Direito que não se diferenciam em dois momentos distintos (Direito e Estado são intercambiáveis).
28 Importa observar que o tema do “direito à cidade” retorna em diversos momentos da obra lefebvriana

245
outro, investigar a adequação – ou antes, inadequação – desse conteúdo às formas
política e jurídica.
Qualquer discussão que pretenda ter como objeto o “direito à cidade” – e que
possua o pensamento de Henri Lefebvre como ponto de partida e como horizonte te-
órico – tem de lidar com a dificuldade inicial de que mesmo na obra dedicada espe-
cificamente ao tema, Lefebvre (2001b) não nos apresenta um conceito fechado, uma
definição precisa do que seja afinal esse direito.29
Podemos supor que essa “flexibilidade” seja em parte responsável por todo tipo de
interpretações e usos políticos ao qual ele esta sujeito. Souza (2010) nos alerta para o fato de
que há uma aparente adesão não só de acadêmicos, mas também de diversas organizações
governamentais e não governamentais, nacionais e internacionais ao slogan do “direito à ci-
dade”. A aparência se desfaz quando notamos que essa adesão raramente vem acompanhada
da correta observância da dimensão crítica e da radicalidade da abordagem lefebvriana. O
conceito se tornou um guarda-chuva que abriga os mais diferentes significados.
Ainda segundo Souza (2010), no senso comum o direito à cidade é entendido
como uma junção de boas condições de habitação com algum tipo de participação popu-
lar (para a qual meras práticas de consultas já são suficientes).30 Nesse sentido, o direito à
cidade representaria a crítica ao neoliberalismo em prol de um reformismo de esquerda
keynesiano do ponto de vista econômico e um reformismo do sistema político através da
correção dos vícios representativo por meio de mais participação.
Harvey (2012) parece cair nessa armadilha ao tentar conciliar uma concepção
extremamente radical do que seria o “direito à cidade” como “bem mais que um direito
de que um indivíduo ou grupo acesse os recursos que a cidade encarna: é um direito de
mudar e reinventar a cidade de acordo com o desejo de nossos corações” (Harvey, 2012,
p. 3-4, tradução nossa) com um projeto político limitado ao “controle democrático sobre

e seu significado parece flutuar entre concepções mais radicais e concepções mais reformistas. Para
os objetivos aqui perseguidos – tendo em mente que minha própria apropriação do termo tendo a
favorecer sua vertente revolucionária – e procurando não me alongar em demasiado no texto, me detive
mais no sentido contido tanto n’O direito à cidade como n’A revolução urbana.
29 O comprometimento com a manutenção da abertura da definição dos conceitos é uma postura
teórico-política do autor. Em outra obra, Lefebvre chega ao capítulo final com a seguinte afirmação
acerca do conceito, extremamente próximo do “direito a cidade”, de “sociedade urbana”: “Contudo, esse
desenvolvimento não está acabado. Longe disso. Pretendê-lo seria dogmatismo. Seria inserir o conceito
de ‘sociedade urbana’ numa epistemologia da qual convém desconfiar: porque prematura, porque põe o
categórico acima do problemático e porque detém e talvez desvie o movimento que eleva o estudo do
fenômeno urbano ao horizonte do conhecimento” (Lefebvre, 1999, p. 149).
30 “De fato, em muitos casos o ‘direito à cidade’ parece significar o seguinte: o direito para uma vida melhor,
uma vida mais ‘humana’ no contexto da cidade capitalista, a sociedade capitalista sob as bases de uma
(‘reformada’ ou ‘melhorada’) ‘democracia’ representativa” (Souza, 2010, p. 317, tradução nossa).

246
a produção e a utilização do excedente” (Harvey, 2012, p. 22, tradução nossa) através de
um Estado reformado (submetido ao controle popular democrático). Harvey, como bem
destacado por Souza (2010), acaba por retomar a crença da reforma do Estado e falha
em perceber como a própria forma política (o Estado) serve de obstáculo – como desvio,
ideologia e mediação – à realização do conteúdo que ele deseja imprimir à vida urbana.
A tarefa mais urgente talvez seja então a de resgatar a radicalidade emancipatória
que o conceito de “direito à cidade” procura encerrar. O percurso do filósofo francês pode
então ser mais bem compreendido tendo como perspectiva essa tentativa de construção
de um significado transcendente da vida na/pela cidade que se encontraria em estado la-
tente, embora nunca realizado em sua plenitude sob as contradições da cidade industrial;
direito à cidade e sociedade urbana são conceitos complementares (quando não coin-
cidentes) que remetem um ao outro. O movimento teórico que vai da urbanização ao
urbano (da cidade industrial ao direito à cidade; da cidade industrial à sociedade urbana)
é captado por Sangla (2010) como sendo composto por pelo menos três momentos:

(...) um primeiro momento de definição do fenômeno urbano e de análise


de suas relações com o processo de industrialização; um segundo momen-
to que examina certas ferramentas conceituais de análise e que traça gran-
des linhas de um programa multidisciplinar de pesquisas sobre o urbano;
e um último momento mais político de proposições que visam à apropria-
ção cidadã da vida urbana (Sangla, 2010, p. 69-70, tradução nossa).

Apesar de nossa atenção se voltar para esse terceiro momento – eminentemente


Político –, a construção feita pelo autor nos impede de tomá-lo separadamente do res-
tante da argumentação. A análise rigorosa do fenômeno urbano e das ideologias que pre-
tensamente o revelam e o solucionam (como o urbanismo) é que demanda uma ação
Política: a superação das contradições é posta pelo próprio objeto,31 não é imposto pelo
pesquisador. Isso significa dizer que o “direito à cidade” nasce da crítica ao fenômeno ur-
bano contemporâneo, é uma reação à realidade urbana imposta pela cidade industrial; seu
caráter é essencialmente negativo: a negação do processo de produção do espaço urbano
industrial (e das relações socioespaciais que ele implica) que paradoxalmente torna possí-
vel, mas impede a realização da sociedade urbana.
Para dar início a esse raciocínio devemos retornar ao próprio Lefebvre e entender
o que estamos exatamente negando (ou, ainda melhor, o que estamos exatamente criti-
cando). Primeiramente, é importante frisar que esse autor não se presta a nenhum tipo de
construção idealista: não se trata aqui de negar um “modelo” de cidade em prol de outro

31 Como requer o método propriamente dialético, conforme enunciado por Kashiura Junior (2011).

247
considerado como superior, ou de focar simplesmente nas deficiências ou na degradação
do ambiente construído, ou mesmo de combater a segregação via uma inclusão mais apa-
rente que real, mas de buscar as raízes reais desses fenômenos.32 A própria cidade é produto
da atividade humana e, portanto, marcada pelo desenvolvimento histórico dos modos de
produção.33 Não é, no entanto, produto passivo, mas ela mesma mediação das relações do
homem com o próprio homem, ao mesmo tempo produto e produtora de relações sociais:

Desta forma, a cidade é obra a ser associada mais com a obra de arte do
que com os simples produto material. Se há uma produção da cidade,
e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres
humanos por seres humanos, mais do que uma produção de objetos. A
cidade tem uma história; ela é obra de uma história, isto é, de pessoas
e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições
históricas (Lefebvre, 2001b, p. 52).34

O fenômeno urbano contemporâneo (a cidade industrial) é resultado do processo de

32 “Porém, não podemos nos perder numa representação idílica da cidade, nos refugiarmos numa
concepção nostálgica e perigosa de que houve um paraíso perdido para o qual poderíamos
ou deveríamos caminhar. Isso porque se a cidade é essencialmente e sobretudo obra, impõe-
se compreender as relações entre os homens e as obras nas e pelas quais realizam sua natureza
específica. É preciso considerar concretamente (portanto, a partir da práxis, social e historicamente
determinada) como e por que os homens, ao se objetivarem em atividades produtoras de obras, nelas
e por elas se realizam e se ‘perdem’, se alienam” (Martins, 2008, p. 56).
33 Talvez seja prudente esclarecer que Lefebvre não entende o termo “produção” em sua acepção restrita.
Produzir não se limita somente à produção de objetos, de exterioridades alheias ao sujeito. A produção
envolve também a produção das próprias subjetividades, não raro expressas na própria produção de objetos.
O sentido de produção é mais abrangente do que o ato econômico de produção de mercadorias e serviços,
mas se refere também a toda uma forma de ser de uma sociedade, à própria mediação do homem com o
mundo. Nesse sentido, pouco ou quase nada escapa ao termo “produção”; produção também se refere às
relações sociais, à linguagem, ao espaço etc. “Num sentido amplo, herdado de Hegel, mas transformado pela
crítica da filosofia em geral e do hegelianismo em particular, pela contribuição da antropologia, a produção
não se limita à atividade que fabrica coisas para trocá-las. Existem as obras e os produtos. A produção em
sentido amplo (produção do ser humano por ele mesmo) implica e compreende a produção de ideias, das
representações, da linguagem. (...) Assim, a produção não deixa nada fora dela, nada do que é humano. O
mental, o intelectual, o que passa pelo ‘espiritual’ e o que a filosofia toma como seu domínio próprio, são
‘produtos’ como o resto. Há produção das representações, das ideias, das verdades, assim como das ilusões
e dos erros. Há a produção da própria consciência” (Lefebvre, 2001b, p. 44-45).
34 Nota-se aqui que a proximidade entre cidade e obra (que resulta também na aproximação entre sujeito
e objeto) faz jus à acepção mais ampla de produção já referenciada anteriormente. É curioso notar,
entretanto, que no modo de produção capitalista ocorra a redução da obra ao produto (entendido aqui
como a produção reduzida à mercadoria e ao valor de troca), mistificando as demais dimensões da
produção do homem pelo homem e reduzindo o próprio homem ao produto, a mera mercadoria.

248
industrialização e expressão espacial do modo de produção capitalista que, em grande me-
dida, se baseia na negação da cidade tradicional (Lefebvre, 2001b; 1999; Martins, 2008). A
transição entre a cidade mercantil e a cidade industrial é também uma ruptura tanto em rela-
ção às funções sociais do espaço urbano (a cidade passa a ser a sede do espaço da produção)
quanto a sua determinação (a cidade passa a ser determinada pelo processo de valorização do
valor representado pela industrialização). Observamos, pois, a inversão da predominância da
cidade enquanto valor de uso para a predominância da cidade como valor de troca.
A produção do espaço, da qual a cidade é fruto, passa a ser regida pela mediação da
forma mercadoria de modo tal que o próprio espaço passa a integrar os circuitos de valori-
zação do valor e de circulação dos capitais. A própria cidade é parte integrante do processo
de produção (tanto em seu sentido econômico restrito quanto em seu sentido mais amplo)
e componente necessário da reprodução ampliada do valor: condições gerais de produção
(Topalov, 1979; Lojkine, 1981), meios de consumo coletivo (Castells, 2000), absorção
de produção (capital) excedente por meio da produção do ambiente construído (Harvey,
2012), possibilidade de absorção de mais-valia via renda fundiária ou pelo comprometi-
mento de trabalho futuro35 (Harvey, 1984) ou mesmo pela criação de novos “estilos de vida”
que determinam novas rodadas de mercantilização (Harvey, 2012) – como no caso da cul-
tura. A produção do espaço passa a ser regida pelos imperativos da reprodução do capital e
não pela necessidade dos seus habitantes. De fato, até mesmo as necessidades do homem
são reduzidas para que estas se alinhem com a reprodução do valor,36 consolidando a famosa
inversão entre fins e meios. Revela-se assim que a cidade deixa de estar sobre o controle dos
homens, para estar sobre o controle da mercadoria, do mundo das mercadorias.

35 Vale destacar, embora aqui seja impossível desenvolver essa ideia, como a instituição de ativos financeiros,
cujo lastro é o terreno urbano, possuem um papel essencial na aceleração da acumulação capitalista.
Mais importante ainda é notar como a ação do Estado é essencial para a efetivação desse processo,
como no caso brasileiro, no qual o próprio Estatuto da Cidade é responsável por essa institucionalização,
conforme argumento de Martins e Gomes (2009).
36 Paradoxalmente, no modo de produção capitalista as forças produtivas se desenvolvem como nunca
antes, mas ainda assim as necessidades básicas do homem são reduzidas ou parcialmente atendidas.
Existe, nessa perspectiva, um verdadeiro empobrecimento antropológico da própria natureza humana:
“Com o capítulo O direito à cidade, começa o último movimento, mais político e programático do livro
homônimo. Lefebvre nota logo de início que a pobreza das realizações do urbanismo moderno tem em
parte a ver com o fato de que ele assume uma redução antropológica, notoriamente no que concernem
as necessidades humanas. Estas se tornam não mais que a funções empobrecidas e predeterminadas,
centradas somente no indivíduo de maneira que se garanta o funcionamento do mercado capitalista.
A evolução das necessidades, dos desejos e da criatividade é ignorada ou evitada, como os ‘tempos do
encontro’ que definem o próprio urbano (...)” (Sangla, 2012, p. 87, tradução nossa).

249
A história que Lefebvre (2001b) procura construir é a da perda do que nunca foi,
ou do que ainda pode ser,37 da desvinculação entre o homem e sua expressão maior no
mundo, da transformação da cidade como obra para a cidade como produto (tomado
aqui em sua acepção restrita). O quadro é de uma cidade que não expressa o homem, mas
que o reprime; que não o liberta, mas o confronta. A criatura se volta contra o criador, mo-
vimento revelado na completa fetichização das relações espaciais que deixam de serem
relações entre os atores reais nas suas experiências reais, para se transformarem em mera
relação entre lugares: o centro degradado, a periferia distante, o interesse da cidade, a cida-
de competitiva etc. Toda uma série de conceitos que até hoje povoam nossas formulações
sobre a cidade, mesmo do ponto de vista crítico. Esse automatismo encobre as tendên-
cias reais, propõem soluções superficiais e contaminam o discurso crítico de moralismos,
como nota o próprio Lefebvre (2001b) acerca do combate à segregação:

As tendências antissegregacionistas seriam antes ideológicas. Apegam-se ora


ao humanismo liberal, ora à filosofia da cidade, considerada como “sujeito”
(comunidade, organismo social). Apesar das boas intenções humanistas e
das boas vontades filosóficas, a prática caminha na direção da segregação. Por
quê? Por razões teóricas e em virtude de causas sociais e políticas. No plano
teórico, o pensamento analítico separa, decupa. Fracassa quando pretende
atingir uma síntese. Social e politicamente, as estratégias de classe (incons-
cientes ou conscientes) visam à segregação (Lefebvre, 2001b, p. 98).

A tentativa de combate à segregação unicamente através de uma reorganização do


espaço, um reordenamento dos territórios, não altera em absolutamente nada as tendên-
cias de exclusão espacial próprias à dinâmica de produção do espaço capitalista baseada
na valorização e desvalorização, na alocação e subalocação de investimentos, conforme
destacado por Merrifield (2011). E mesmo que um ordenamento espacial ótimo pudesse

37 “Se o espectro do comunismo não assusta mais a Europa, a velha obsessão foi substituída pela sombra da
cidade, pelo pesar por aquilo que morreu porque o matamos, pelo remorso talvez. A imagem do inferno
urbano que se prepara não é menos fascinante, e as pessoas se precipitam em direção às ruínas das cidades
antigas a fim de consumi-las turisticamente, acreditando assim curar a saudade que sentem” (Lefebvre,
2001b, p. 101). E em outro momento: “Aqui está tudo o que é necessário para criar um mundo, a
sociedade urbana ou ‘o urbano’ desenvolvido. Mas esse mundo está ausente, essa sociedade só está diante
de nós em estado de virtualidade. Corre o risco de perecer ainda como embrião. Nas condições existentes,
ele morre antes de nascer. As condições que fazem surgir as possibilidades também podem mantê-las em
estado virtual, na presença-ausência. Não seria esta a raiz do drama, o ponto de emergência das nostalgias?
O urbano é a obsessão daqueles que vivem na carência, na pobreza, na frustração dos possíveis que
permanecem como sendo apenas possíveis. Assim, a integração e a participação são a obsessão dos não
participantes, dos não integrados, daqueles que sobrevivem entre os fragmentos da sociedade possível e
das ruínas do passado: excluídos da cidade, às portas do ‘urbano’.” (Lefebvre, 2001b, p. 102).

250
ser concebido e mantido, isso não resolve em nada a pobreza da vida urbana contempo-
rânea. A expulsão dos trabalhadores do centro de Paris pelas intervenções de Haussmann
não foi mero ato autoritário, mas estava calcado em uma economia política do espaço
que pressupõe um novo mecanismo de produção do espaço (através de sua integração ao
mundo das mercadorias) que são excludentes por natureza. Antes de ser um ato político,
é um ato econômico – e é político na medida em que é a instituição do “econômico”.
O próprio uso daquele espaço é substancialmente alterado, e juntamente com a expul-
são do valor de uso tradicional ocorre também a expulsão dos seus usuários tradicionais,
não adaptados ou não capazes de desfrutar do novo centro transformado em mercadoria.
Dessa forma, as primeiras lutas pelo direito à cidade – representadas na Comuna – não
são somente pelo retorno dos trabalhadores ao centro, mas também pela libertação do
centro da sua dominação pelo valor de troca (Martins, 2008).
O importante é frisar aqui o resultado desse estado de coisas – do espaço aliena-
do, do espaço estranhado – sobre a construção das subjetividades e das relações entre os
indivíduos. A cidade industrial – obra monumental da sociedade capitalista – se volta
contra seus habitantes que a percebem como um elemento hostil, contra o qual devem
lutar todos os dias para sobreviver. O registro sociológico dessa condição aparece tanto
na descrição das ruas londrinas feita por Engels (2010) em sua visita a Inglaterra como no
comportamento blasé identificado por Simmel (1967). Não haveria como ser diferente:
se a cidade também é produção significa que ela é exteriorização do homem no mundo,
ou seja, ela é fruto do trabalho. Em uma sociedade dominada pela reprodução do valor,
o estatuto do trabalho não pode ser outro do que o trabalho estranhado como bem de-
monstrado por Marx (2008). Nessas condições o trabalhador é estranhado em relação
ao produto do seu trabalho, em relação ao processo de produção, em relação aos outros
trabalhadores e, talvez o mais importante, em relação à produção genérica do próprio ho-
mem. Cada uma dessas condições é derivada diretamente da outra e seu rebatimento na
produção do espaço é quase que imediato: o homem em oposição à cidade, o homem
em oposição ao planejamento, o homem em oposição aos outros habitantes da cidade, o
homem em oposição à possibilidade da obra.
Como o homem está alienado do próprio homem a constituição social não ocorre
de forma direta, mas através de mediações que, como vimos, são baseadas em abstrações da
real condição dos indivíduos e das classes.38 Na cidade capitalista ocorre, portanto, reunião

38 Cumpre recordar que caso a sociedade política – esfera da existência social – fosse composta a partir da
condição real dos indivíduos o que teríamos é a elevação à problemática social das realidades conflituosas
vividas pelos indivíduos, ou seja, o aparecimento da luta de classes cuja solução, a fim de se manter a
coesão e a própria existência da sociedade, seria a abolição das condições primárias de estranhamento,
ou seja, a abolição da propriedade privada dos meios de solução.

251
sem encontro, em uma espécie de negação da própria essência da forma urbana (da simul-
taneidade). E mesmo os encontros não se dão de maneira direta, mas mediados por formas
homogêneas e homogeneizadoras, dentre as quais a mais evidente é a própria forma merca-
doria – tudo se relaciona enquanto mercadoria. Merrifield (2011) capta bem esse cenário:

Os habitantes das cidades hoje vivem com uma terrível intimidade, a in-
timidade trágica da proximidade sem sociabilidade, da presença sem re-
presentação, da reunião sem realmente encontro. A tragédia do morador
urbano é a tragédia de ter tido muitas esperanças, e de ver essas esperanças
seriamente frustradas (Merrifield, 2011, p. 469-470, tradução nossa).

A tragédia do habitante das cidades não é de apenas “presença sem representação”,


mas também a da “proximidade sem sociabilidade” e a de “encontro sem o ‘verdadeiro
encontro’”, ou seja, trata-se de um ser e não-ser, de um estar e não-estar, que, ao contrário
de se oporem, são simultâneos. O que se desponta aqui é um pertencimento que não
preenche ou que não satisfaz, ou seja, um pertencimento que, na verdade, revela-se como
pura alienação, estranhamento.39 É importante já notar que mesmo aqueles que habitam
a cidade e possuem o estatuto formal de cidadãos não remediam a situação descrita pelo
autor. Isso já nos aponta de volta para o questionamento da natureza e da parcialidade
de uma emancipação mediada pela cidadania, ou seja, mediada não somente pela forma
-política (Estado) como também pela forma-jurídica. Uma emancipação cuja natureza é
abstrata e idealista, que esconde que só existe uma garantia de direitos em uma sociedade
capitalista: deter o poder de mercadoria. O que se advoga, então, é em prol de uma cidada-
nia real, o que envolve, necessariamente, uma crítica daquelas formas sociais responsáveis
pela reprodução das relações alienadas, incluindo aqui as relações de produção do espaço.
A reassociação entre cidadão e habitante da cidade não é feita através de uma expansão da
cidadania moderna, e sim na crítica dessa mesma cidadania que pressupõe a cisão.
De fato, dando força para a interpretação acima apresentada, o autor segue:

[Lefebvre acaba por] lançar uma última consideração sobre a aparência


de uma nova visão democrática: ela certamente demandaria uma refor-
mulação da noção de cidadania; uma na qual o habitante e o cidadão de
alguma forma englobassem um ao outro novamente. De fato, “o direito à

39 As ressalvas feitas por Jappe (2014) nos ajudam a evitar que limitemos nossa compreensão de alienação
a uma mera perda do que antes já fora, ou seja, a luta contra a alienação não se trata de uma recuperação
de uma natureza pura que foi perdida; ou então que desvinculemos a luta contra as alienações política
e jurídica da luta real e dos processos reais de dominação das coisas sobre os homens. Nesse sentido, é
importante sempre ter em mente a ponte que existe entre “alienação”, “fetichismo” e crítica da economia
política, como fundamento da crítica à alienação e base do processo de emancipação.

252
cidade”, ele conclui, é como um proverbial “grito e exigência” que “impli-
ca nada menos que uma nova e revolucionária concepção de cidadania”
(…) (Merrifield, 2011, p. 470, tradução nossa).

É nesse sentido que podemos compreender as ressalvas que o próprio Lefebvre


(2001) faz em relação à política de integração40 e à política de participação41 (em relação
às quais, Purcell (2002) vai opor – com toda razão – as noções políticas de apropriação42
e de participação direta e ampliada). O direito à cidade não significa, portanto (e como
anunciei anteriormente), mera reorganização dos espaços ou mera disposição dos grupos
sociais dentro da cidade, sendo perfeitamente possível ter o acesso à centralidade ou estar
localizado dentro dela sem a ela pertencer – e ainda assim pertencer a quê? Tampouco
significa meramente poder se esbaldar com as amenidades urbanas e com os equipamen-
tos de consumo “coletivo”, sendo perfeitamente possível – e até mesmo mais provável –
que nos guetos das classes mais abastadas vigore a mesma miséria de experiência humana
que no centro degradado. Onde existir a segregação real, e não somente a correspondente

40 “A integração também se torna um tema obsedante, uma aspiração sem objetivo. O termo ‘integração’,
tomado em acepções bastante diversas, aparece nos textos (jornais, livros e também em conversas) com
uma frequência tão grande que revela alguma coisa. De um lado, esse termo designa um conceito, que diz
respeito e que se insere na prática social, que revela uma estratégia. Por outro lado, é um conotador social,
sem conceito, sem objetivo nem objetividade, que revela uma obsessão, a obsessão de se integrar (nisto,
naquilo: num grupo, num conjunto, num todo). (...) Que resulta disso? Sem nenhuma dúvida, fenômenos
paradoxais de integração desintegrante que incidem especialmente sobre a realidade urbana” (Lefebvre,
2001b, p. 103). Sangla (2012) também chama a atenção para a generalização da miséria humana que se
esconde por detrás do mote da integração: “A exigência de ‘integração’ (que nos vemos claramente hoje em
dia a respeito das questões sobre os imigrantes) se torna uma forma de impedir a aceitação dos indivíduos
que sejam levemente diferentes das normas dominantes” (Sangla, 2012, p. 86, tradução minha).
41 “Outro tema obsedante: a participação (ligada à integração). Mas não se trata de uma simples obsessão. Na
prática, a ideologia da participação permite obter pelo menor preço a aquiescência das pessoas interessadas
e que estão em questão. Após um simulacro mais ou menos desenvolvido de informação e de atividade
social, elas voltam para a sua passiva tranquilidade, para o seu retiro. É evidente que a participação real e ativa
já tem um nome. Chama-se autogestão. O que levanta outros problemas” (Lefebvre, 2001b, p. 104).
42 “Apropriação inclui o direito dos habitantes de acessar fisicamente, ocupar e usar o espaço urbano, e dessa
forma essa noção tem sido o foco primário daqueles que defendem o direito das pessoas de estarem
fisicamente presentes no espaço das cidades. (…) A apropriação não é apenas o direito de ocupar um
espaço urbano previamente produzido, mas também é o direito de produzir um espaço de modo que ele
satisfaça as necessidades de seus habitantes. Justamente porque apropriação dá aos habitantes o direito
do ‘uso pleno e completo’ do espaço urbano do curso da vida cotidiana (...) que o espaço precisa ser
produzido de uma maneira que torne esse uso pleno e completo possível. O aspecto de valor de uso do
espaço urbano precisa, portanto, ser a consideração primária nas decisões acerca da produção do espaço.
A concepção de espaço urbano como propriedade privada, como uma mercadoria a ser valorizada (ou
usado para valorizar outras mercadorias) no processo de produção capitalista, é precisamente contra o
que o direito de apropriação se coloca” (Purcell, 2002, p. 103, tradução nossa).

253
ao fetiche espacial; onde houver separação e mediação do homem com o próprio homem
não foi efetivado ainda o direito à cidade.

O direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de


visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como
direito à vida urbana, transformada, renovada. Pouco importa que o tecido
urbano encerre em si o campo e aquilo que sobrevive da vida camponesa
conquanto que “o urbano”, lugar de encontro, prioridade do valor de uso,
inscrição no espaço de um tempo promovido à posição de supremo bem
entre os bens, encontre sua base morfológica, sua realização prático-sen-
sível (Lefebvre, 2001b, p. 117-118).

O direito à cidade acaba por se definir na medida em que se opõe à atual vida urba-
na, ao atual homem urbano enquanto produto e produtor da cidade alienada.43 Toda posi-
tividade que o filósofo francês concede ao termo provém da oposição ao que ele nega. Em
outra obra dedicada ao tema, Lefebvre (1999) descreve o urbano como aquele que “reú-
ne diferenças e faz diferir aquilo que reúne (...)” (Lefebvre, 1999, p. 156), mas que não se
rende a um sistema estático de diferenças, pelo contrário, possui um comprometimento
com o movimento, com uma centralidade que exclui o fechamento; “ele faz diferir de uma
maneira refletida o que diferia sem o saber: o que só era distinto, o que estava ligado às
particularidades no terreno” (Lefebvre, 1999, p. 156). Lefebvre (1999) se utiliza de uma
comparação com a linguagem para tentar definir melhor o que quer dizer:

Mesmo se a língua pode aparecer como sistema acabado, o uso da língua e


a produção de discursos quebram essa aparência. Não se pode, pois, definir
o urbano por um sistema (definido), por exemplo, por desvios em torno de
invariâncias. Ao contrário. Sua noção impede prescrever o que reduz, o que
suprime as diferenças. Ela implicaria, antes, a liberdade de produzir diferenças
(de diferir e de inventar o que difere) (Lefebvre, 1999, p. 156).

Merrifield (2011), não sem alguma razão, elege justamente a ideia de uma polí-
tica dos encontros como a fonte de um novo projeto político emancipador.44 Segundo

43 “Nesse sentido, definir o urbano pela ideia de agrupamento, de encontro, de simultaneidade, significa
que uma das tarefas da revolução será criar novas relações urbanas, e não, como em uma literatura pós-
-moderna (apressadamente confundida com as teorias lefebvrianas por autores como Manuel Castells
e Jean-Pierra Garnier) de desfrutar as relações já existentes nos centros privilegiados (o que é sujeito a
questionamentos haja vista o empobrecimento das relações sociais também nos bairros aburguesados)”
(Sangla, 2012, p. 86, tradução minha).
44 Infelizmente, Merrifield (2011) desarticula a política dos encontros do conceito de sociedade urbana
ou de direito à cidade, em uma clara redução desses dois últimos simplesmente a conceitos que dizem

254
ele: “A noção de ‘encontro’, no final das contas, é a narrativa de como as pessoas se reú-
nem enquanto seres humanos, de por que as coletividades se formam e como a solida-
riedade, de alguma forma, surge, se consolida e cresce” (Merrifield, 2011, p. 473). Não
se trata, portanto, de uma simples expansão volumétrica no rol dos direitos ou mesmo
na extensão da qualidade de cidadão para o maior número de pessoas possíveis. Trata-
se de uma luta contra a “ausência” representada pela alienação através da afirmação de
uma forma de “presença” dos indivíduos, sem abstrações.
Para que as diferenças possam se expressar de maneira direta e imediata, para que
os indivíduos se reconheçam e interajam simplesmente como seres humanos, é necessá-
rio que não se submetam – nem na constituição de sua subjetividade individual nem na
constituição da vida social – a nenhuma determinação que os reduza a algum dividendo
comum. As diferenças precisam aparecer como elas realmente são e a mediação entre elas
deve ser obra única e exclusa dos próprios indivíduos que interagem. Como destacado
por Iasi (2005), essa é justamente a conclusão que Marx chega à Crítica ao Programa de
Gotha, quando conclui que a mera socialização do resultado dos trabalhos não é condi-
ção suficiente para que se efetive a emancipação do homem. A passagem é icônica: Marx
(2004) encara o problema da repartição para o consumo do fruto do trabalho que teria
se tornado coletivo. Nesse cenário ele supõe que cada trabalhador poderia receber exata-
mente o equivalente daquilo que produziu, mas adverte, logo em seguida, que essa relação
de distribuição ainda opera dentro dos limites do direito burguês precisamente porque
reduz o homem – com todas suas capacidades e necessidades – a uma única dimensão,
ou seja, ainda reduz o homem ao trabalhador. É dessa compreensão da exigência de uma
medida comum de toda forma jurídica que Marx vai decretar a necessidade da superação
do próprio direito e afirmar que na sociedade emancipada “de cada um segundo suas ca-
pacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (Marx, 2004, p. 136).
É na luta contra a redução das subjetividades e em prol das possibilidades do en-
contro dos diferentes que descobrimos um dos caminhos de aproximação entre o direito
à cidade e as críticas das formas política e jurídica. É também nessa intersecção que pode-
mos remeter a concepção de direito à cidade de volta ao projeto radical de emancipação
perseguido por Karl Marx ao longo de sua obra (projeto que se inicia de modo restrito
aos campos da filosofia e da política, mas que ao longo dos anos vai ganhando seus con-
tornos mais definitivos – e mais rigorosos – na crítica da economia política).

respeito à organização do espaço. Nesse sentido, esse autor julga que “sociedade urbana” ou “direito à
cidade” são projetos políticos que excluem os não habitantes das cidades, o que, a meu ver, não encontra
ressonância nos escritos lefebvrianos.

255
A luta pelo direito à cidade é, ao fim e ao cabo, uma luta contra o uso regulado e
vigiado do espaço urbano, do espaço dos encontros, do espaço da produção (em seu sen-
tido amplo). É o direito, de certa maneira, à desordem e à imprevisibilidade; o direito a um
componente anárquico dentro do espaço urbano que não responde as necessidades de
homogeneização e previsibilidade do espaço abstrato. O direito à cidade se revela como
a demanda de uma produção do espaço que se dê em função dos homens reais e não a
partir de subjetividades abstratas e pasteurizadas como no caso da subjetividade jurídica
e política. Somente ali onde os diferentes se encontram em suas diferenças reais, sem que
este processo ou seu resultado estejam previamente condicionados por determinadas for-
mas sociais derivadas da necessidade justamente de domesticar essas diferenças, é que a
sociedade urbana pode florescer.

REFERÊNCIAS
ABENSOUR, Miguel. A democracia contra o Estado: Marx e o momento maquiaveliano. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998.
CASTELLS, Manuel (1972). A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
CHASIN, José (1984). Democracia política e emancipação humana. Ensaios Ad Hominem, São Paulo, n. 1,
Tomo III – Política, p. 91-100, 2000a.
CHASIN, José (1993). Marx – a determinação ontonegativa da politicidade Ensaios Ad Hominem, São Pau-
lo, n. 1, Tomo III – Política, p. 129-162, 2000b.
CLARKE, Simon. The State debate. In: _____. (Ed.). The state debate. New York: Palgrave, 1991.
CODATO, Ariano. O espaço político segundo Marx. In: CODATO, Adriano; PERISSINOTTO, Renato.
Marxismo como ciência social. Curitiba: Editora UFPR, 2011.
ENDERLE, Rubens. Apresentação. In: MARX, Karl. Crítica da Filosofia do direito de Hegel. 2. ed. São Paulo:
Boitempo, 2010.
ENGELS, Friedrich (1845). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.
FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, mais de dez anos depois. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20,
n. 1, jan./jun. 2013.
FINE, Robert. Democracy and the rule of law: liberal ideals and Marxist critiques. 2. ed. London: Pluto Press, 1984.
FRIEDMANN, John. Toward a non-euclidian mode of planning. In: CAMPBELL, Scott; FAINSTEIN,
Susan (Ed.). Readings in planning theory. 2. ed. Malden/USA, Oxford/UK, Carlton/Australia: Blackwell
Publishing Ltd., 2003a. p. 75-80.
FRIEDMANN, John. Why do planning theory? Planning Theory, v. 2, n. 7, p. 7-10, 2003b.
HARVEY, David. Rebel cities: form the right to the city to the urban revolution. London/New York: Verso, 2012.

256
HARVEY, David. The limits of capital. Oxford: Blackwell Publisher, 1984.
HELD, David. Modelos de democracia. Belo Horizonte: Editora Paidéia Ltda., 1987.
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Esta-
do. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
HOLLOWAY, John; PICCIOTO, Sol (Ed.). State and capital: a Marxist debate. London: Edward Arnold, 1978.
IASI, Mauro Luís. Direito e emancipação humana. Revista da Faculdade de Direito, v. 2, n. 2, 2005.
JAPPE, Anselm. Alienação, reificação e fetichismo da mercadoria. Limiar, v.1, n. 2, 2014.
JESSOP, Bob (1982). Accumulation strategies, state forms and hegemonic projects. In: ____. State theory:
putting the capitalist state in its place. Cambridge: Polity Press, 1990.
KASHIURA JUNIOR, Celso Naoto. Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pa-
chukanis. Revista Jurídica Direito & Realidade, Monte Carmelo, v. 1, n. 1, jan./jun. 2011.
LEFEBVRE, Henri (1970). A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri (1972). A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 2001a.
LEFEBVRE, Henri (1968). O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001b.
LEWRG. The London-Edimburgh Weekend Return Group. In and against the state, 1980. Disponível em:
<http://libcom.org/library/against-state-1979>. Acesso em: jul. 2014.
LOJKINE, Jean. O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
LOWY, Michael. Política. In: RENAULT, Emmanuel; DUMÉNIL, Gérard; LOWY, Michael (Org.). Ler
Marx. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
MARTINS, Sérgio. A neutralização do direito à cidade na (re)produção da metrópole antiurbana. In: SILVA,
Catia Antonia da; CAMPOS, Andrelino (Org.). Metrópoles em mutação: dinâmicas territoriais, relações de
poder e vida coletiva. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
MARTINS, Sérgio; GOMES, Glaúcia Carvalho. A verdade que está no erro: a importância do Estatuto da
Cidade para a (re)valorização do espaço. Revista da ANPEGE, v. 5, p. 123-139, 2009.
MARX, Karl (1875). Crítica ao Programa de Gotha. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). A dialética do trabalho:
escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
MARX, Karl (1844). Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução. In: ____. Crítica da Filosofia do
direito de Hegel. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010a.
MARX, Karl (1844). Glossas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”. De um prussiano. In:
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010b.
MARX, Karl (1844). Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010c.
MARX, Karl (1844). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1845-1846). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1845). A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2011.
MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

257
MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural. 2. ed. São
Paulo: Outras Expressões/Dobra Editorial, 2012.
MERRIFIELD, Andy. The right to the city and beyond: notes on a lefebvrian re-conceptualization. City,
v. 15, n. 3-4, June-Aug. 2011.
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. 1996. 207 f. – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.
PACHUKANIS, E. B. (1926). Teoria geral do direito e do marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.
POGREBINSCHI, Thamy. O enigma do político: Marx contra a política moderna. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 2009.
PURCELL, Mark. Excavating Lefebvre: the right to the city and its urban politics of the inhabitant. GeoJour-
nal, Netherlands, v. 58, p. 99-108, 2002.
SAMPAIO, Benedicto Arthur; FREDERICO, Celso. Dialética e materialismo: Marx entre Hegel e Feuerba-
ch. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. (Pensamento crítico; v. 5)
SANGLA, Sylvain. Politique et espace chez Henri Lefebvre. 2010. 317 f. – École doctorale – Pratiques et theo-
ries du sens, Université Paris VIII, Vincennes Saint-Denis, 2010.
SIMMEL, Georg (1902). A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Which right to which city? In defence of political-strategic clarity. Interface, v. 2,
n. 1, p. 315-333, May 2010.
STEIN, Samuel. De Blasio’s doomed housing plan. Jacobin, issue 15/16, 2014. Disponível em: <http://
www.jacobinmag.com/2014/10/de-blasios-doomed-housing-plan/. Acesso em: out. 2014.
TOPALOV, Christian. La urbanization capitalista: algunos elementos para su análisis. Mexico: Editorial Edi-
col Mexico, 1979.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez (1976). O direito na transição ao socialismo. In: VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez.
O valor do socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
WOOD, Ellen Meiksins (1995). Democracia contra o capitalismo e a renovação do materialismo histórico. São
Paulo: Boitempo, 2006.

258
O direito e a propriedade:
o privado, o público, o comum
Rafael de Oliveira Alves

Apresentação

Nos últimos anos os debates sobre a cidade têm apresentado um tom cada vez mais tenso
e conflituoso. Tanto teórica quanto politicamente, a cidade e o urbano tornaram-se palco
de disputas. Por um lado, os discursos hegemônicos e as práticas políticas enfatizaram
um empreendedorismo urbano para melhorar a eficiência da cidade em crise. Por outro,
diversos atores questionam os grandes projetos e as intervenções urbanísticas e, em subs-
tituição, propõem novas formas de apropriação e de produção das cidades.
Nessa tensão podemos observar que, de um lado, o Estado e o capital excepcio-
na, desapossa, explora e ordena o espaço (Agamben, 2004; Harvey, 2006; Klein, 2008),
enquanto, por outro, a multidão ocupa e produz o comum, o urbano, a cidade (Hardt;
Negri, 2000; 2005; 2009; Lefebvre, 2001). Essa síntese ilumina-nos a pensar neste artigo
que o direito à cidade pode ser um processo de apropriação direta dos tempos e espaços
da cidade e da própria vida para constituição do comum, isto é, em uma relação social que
não se regula pelo direito de propriedade pública nem pelo direito de propriedade privada
– regimes esses fundados na alienação e na exploração.
Enquanto a “propriedade privada” é resultado dos processos de acumulação e
de alienação típicos do capitalismo, a denominada “propriedade pública” constitui-se
como propriedade privada do Estado. Porém, não estamos procurando “nem a proprie-
dade privada do capitalismo nem a propriedade pública do socialismo, mas o comum
no comunismo”(Hardt, 2014). Por isso, nosso interesse está nas margens, nas tentativas
de identificar pontos de explicação que possam desvelar certas experiências espaciais de
vidas, hoje entendidas como ofensas à propriedade privada ou pública, e que permitam o
entendimento do que pode vir a ser a construção do “comum” na cidade.
Certamente, esse comum caminha pela ilegalidade (Marcuse, 2013), pelo desen-
tendimento (Rancière, 1996) e pela insurgência (Holston, 1996) que impõem novas
subjetividades e novas espacialidades não autorizadas ou não planejadas sobre a cidade
– negando, assim, a ordem abstrata do Estado e do capital materializada no regime de pro-
priedade privada. Nessa tendência podemos observar diversas lutas cotidianas tentando
uma forma de apropriação direta da cidade, isto é, sem a mediação do Estado e do mer-
cado. Nossa suspeita é que sejam possíveis espaços comuns construídos e autogeridos.
Mas antes de tocar nesse comum, precisamos dialogar com certas bases tradicio-
nais e críticas sobre o direito de propriedade.
Os apontamentos que se seguem foram, em parte, originados de um incômodo
geral diante do senso comum jurídico que admite e defende o direito de propriedade sem
analisar os seus fundamentos. E quando o faz, o direito mantém um discurso sobre o direi-
to de propriedade como um direito natural, absoluto e inviolável, a despeito de qualquer
contraste com a realidade material.
De outro lado, não podemos afiançar uma crítica ao direito de propriedade nome-
ando esse direito como ideologia e, em sequência, afirmá-lo como ilusão.
Temos por pressuposto que o direito e o Estado são abstrações reais, isto é, cons-
trutos humanos abduzidos da realidade material histórica. Como uma abstração real, o
direito precisa, não somente, ter eficácia sobre o mundo, mas também justificar-se perante
os homens. Logo, tanto a filosofia política quanto a ideologia e senso comum servem à
justificação do direito. Em especial, Macpherson (1981) anota que a propriedade priva-
da constitui-se como um direito não somente porque há (a) normas positivas e institui-
ções garantidoras de sua aplicabilidade imediata (eficácia), mas também porque (b) os
homens passam a acreditar em sua centralidade como um direito moral essencial para a
vida em sociedade . Nesse passo, direito positivo e ideologia proprietária são igualmente
importantes para a manutenção de uma certa ordem social.
Com esse repertório inicial desde já posicionamos o direito de propriedade como
um regime político, historicamente determinado como uma abstração real. Todavia, não
devemos descuidar das formulações teóricas e políticas que sustentam idealmente o direi-
to de propriedade. Assim, tentaremos recuperar fundamentos tradicionais e críticos sobre
o direito de propriedade privada para indicar, ao final, indícios do que poderia vir a ser um
outro regime de direito, de propriedade e de subjetividade do comum.
O texto, assim, divide-se em três partes. Primeiramente, reunimos os fragmentos tra-
dicionais de Locke, de Rousseau e de Bentham, que sustentam o direito moderno de pro-
priedade privada. Em complemento apoiamo-nos em Marx e em Pachukanis como cami-

260
nhos necessários ao encaminhamento de uma crítica e de eventuais tentativas de superação
do modelo moderno de propriedade. Em uma segunda seção, estreitamos nossa abordagem
para evidenciar os tradicionais atributos do direito de propriedade privada e demonstrar que
a mesma forma jurídica da propriedade privada acompanha a propriedade pública. Por isso,
sentimos a necessidade de uma terceira seção, em que tentamos reunir apontamentos para
uma nova forma jurídica, nomeada agora de “comum”. Nessa senda, Marx, Lefebvre, Agam-
ben e Esposito indicam-nos meios para pensar um outro direito de propriedade, não mais
como poderes absolutos, exclusivos e individuais, mas como uma reapropriação do domí-
nio sobre a vida, o espaço, a cidade. Enfim, uma forma de vida em comum.

Fundamentos da propriedade privada

Locke
O direito de propriedade moderno pode encontrar um dos seus principais fun-
damentos no pensamento de John Locke (1632-1704). Tentando resolver questões pró-
prias de seu tempo, Locke procurou formular fundamentos racionais para o Estado, em
oposição aos fundamentos típicos do direito divino. Nesse sentido, importa-nos conside-
rar especialmente sua formulação acerca do direito de propriedade.
Para tanto, precisamos aceitar seus dois pressupostos. (1) Originalmente, toda a
terra estava disponível a todos os homens em igual condição: “Deus, que deu o mun-
do aos homens em comum” (Locke, 1994, p. 97); e (2) o homem é um sujeito racional,
senhor de si mesmo e de seu próprio trabalho: “o homem, sendo senhor de si mesmo e
proprietário de sua própria pessoa e das ações de seu trabalho” (Locke, 1994, p. 108).
Disso extrai-se a conclusão de que o homem tem a capacidade de transformar a natureza
por meio de seu trabalho. Consequentemente, os objetos dessa atividade constituem ex-
tensões de seu próprio corpo, portanto, sua propriedade privada: “o trabalho de seu corpo
e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua” (Locke, 1994, p. 98).
Anote-se que a principal característica desse direito de propriedade privada está
em considerá-la uma extensão da identidade individual. Logo, a propriedade privada
precisa ser preservada inviolável tal qual a pessoa do indivíduo. Daí advém o poder geral
(erga omnes) de excluir todos os demais homens do usufruto comum da natureza agora
apropriada pelo indivíduo: “Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza
o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos
outros homens” (Locke, 1994, p. 98).
Esse direito poderia ser limitado tão somente em razão da utilidade dos bens extraí-
dos da natureza: “retirar uma vantagem qualquer para sua existência sem desperdício. Tudo
o que excede a este limite é mais que a sua parte e pertence aos outros” (Locke, 1994, p. 100).

261
Contudo, esse estado de natureza que permite a constituição de uma propriedade
privada a partir do seu próprio trabalho tem alguns “inconvenientes”. Por exemplo, a “cor-
rupção e os vícios de indivíduos degenerados” demandam a administração de punições a
crimes contra a lei da natureza. Por isso, parece ser necessário a constituição de um governo
civil que limitasse o poder e a liberdade daquele homem em estado de natureza. Contudo,
os homens acordam em limitar sua liberdade e seu poder naturais porque tem em mente
“o objetivo de melhor proteger sua liberdade e sua propriedade” (LOCKE, 1994, p. 159).
Feito isso, o Estado vem como garantidor da ordem natural, qual seja, permitir que a apro-
priação privada seja protegida e mantenha-se inviolável.

Rousseau
Essa primeira concepção de Locke sobre os fundamentos da propriedade privada
e dos limites da ação do Estado inspirou a modernidade e continua vigente no direito e
no senso comum. Todavia, apesar da tentativa de um discurso racional iluminista, essa
primeira narrativa abstrai-se da história.
Rousseau (1712-1778), não muito divergente, acompanha a forma contratualis-
ta entre os homens para justificar a constituição do Estado moderno. Contudo, em um
outro ponto de fundamentação, Rousseau tenta nos explicar a origem e os fundamen-
tos da desigualdade entre os homens (Rousseau, 2001). Nesse libelo encontramos um
empenho em demonstrar racionalmente por que os homens são desiguais, apesar de
sua natureza igualitária: “O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra a ferros”
(Rousseau, 2001, p. 10).
Para Rousseau, a desigualdade entre os homens nasce com a instituição da pro-
priedade privada, que tem como primeiro fundamento um ato de tomada e de cercamen-
to de terra “o primeiro que tendo cercado um terreno se lembrou de dizer: isto é meu”
(Rousseau, 2001, p. 91). Todavia, esse ato de conquista não poderia gerar “direitos” e, nes-
se estado de natureza, a propriedade seria tão somente resultado da “força” e do assalto.
Assim, a diferença material entre os homens é instaurada por um “fato” e não a
partir de um “direito”. Constatado isso, Rousseau sentencia que aqueles com mais posses
(poder) procuram constituir formas de garantirem esse estado de coisas. Daí surge a ne-
cessidade da construção de um governo de leis, que viria a substituir a força e o assalto e
garantir direitos sobre as propriedades originalmente constituídas.
Em outros termos, o contrato social que resultará no Estado moderno limita o po-
der (liberdade natural) do indivíduo, mas, em compensação, atribui-lhe a liberdade civil
e direito de propriedade (garantia da diferença material obtida em estado de natureza).
Nesse sentido, Rousseau é bem preciso ao diferenciar a posse (“efeito da força”) e o direito
de propriedade (“baseada num título positivo”) (Rousseau, 2001, p. 31). Essa diferen-

262
ciação será muito útil às teorias jurídicas, ainda quando invertida em um diagrama que
posiciona a posse como consequência da propriedade.
Nesse patamar, Rousseau consegue lançar luzes sobre a origem histórica e mate-
rial do direito de propriedade. Por isso, creditamos a Rousseau uma primeira tentativa
de avanço quando da identificação de elementos pré-civis ao direito de propriedade que
serão mantidos pelo Estado e pelo direito modernos.

Bentham
Em uma vertente tipicamente liberal e utilitarista, Bentham (1748-1832) esclare-
ce-nos de forma enfática que o direito de propriedade não tem uma fundamentação na-
tural, isto é, não existe um “direito natural de propriedade”. Ao contrário, toda propriedade
é consequência do direito, ou seja, “antes das leis, não há propriedade” (Bentham, 1962,
tradução nossa).
Essa proposição deve ser compreendida dentro do escopo maior de Bentham que é
indicar os princípios organizativos da sociedade para ampliar a felicidade social. Diante desse
objetivo, o direito teria um importante papel para “prover subsistência”, “prover abundância”
“favorecer a igualdade”, mas, eminentemente, o direito serviria para “manter a segurança”.
Segundo essa linha argumentativa, “sem o direito não há segurança; e, consequente-
mente, nenhuma abundância, e nem mesmo a certeza de subsistência, e a única igualdade que
pode existir nesse estado de coisas é a igualdade da miséria” (Bentham, 1962, tradução nossa).
Em outras palavras, manter a segurança significa garantir a manutenção das expec-
tativas sociais. Nesse sentido, portanto, o direito de propriedade ganha centralidade no
pensamento liberal porque estabiliza as expectativas sociais, isto é, mantém a ordem posta.
Bentham está ciente das desigualdades materiais e de capacidades: “pobreza não é
obra das leis, ela é a condição primitiva da raça humana” (Bentham, 1962, tradução nos-
sa). Contudo, a necessidade de se garantir a propriedade impõe-se para permitir que o
talento e o trabalho dos mais pobres também possam ser garantidos pelo direito. Ou seja,
sem a garantia da propriedade não há segurança para os ricos e, consequentemente, não
há incentivo ao trabalho, invenção e indústria dos mais pobres. Por outro viés, a proprie-
dade privada mantém o status dos ricos e, simultaneamente, alimenta o sonho dos pobres
de se converterem em proprietários. Assim, a ordem vigente também seria desejada e de-
fendida pelos despossuídos, mantendo-se, então, os vínculos sociais vigentes.

Marx
Todavia, o percurso até então delineado mostra-se insuficiente a uma crítica do
direito de propriedade, hoje. Por isso, consideramos válido reavivar os apontamentos ori-
ginais de Marx (1818-1883) sobre os fundamentos da propriedade privada moderna a

263
partir de seus Manuscritos de 1844. Nessa virada crítica, veremos o trabalho como funda-
mento da propriedade.
Por um lado, Locke acentua que o trabalho do homem gera um objeto que se torna
extensão de seu corpo e, portanto, sua propriedade. De modo diverso, Marx compreende
que o trabalho igualmente gera um objeto, mas um objeto “alienado” (separado) do tra-
balhador e que, sob o regime do capital, torna-se “estranho” ao trabalhador (Marx, 2007).
Se em Locke os frutos do trabalho são imediatamente apropriados pelo indivíduo
como extensão de seu corpo, em Marx observamos que o trabalho gera uma propriedade
desde o início alienada ao/do trabalhador. Eis, pois, a marca da propriedade moderna:
sob o regime do capital, o trabalhador está impedido de se apropriar diretamente dos bens
produzidos por seu trabalho.
Todavia, esse não é um processo simples. A objetivação do trabalho, que resulta
em uma separação estranhada entre trabalhador e o produto do trabalho, ocorre em várias
dimensões simultâneas.
Detalhando melhor: o trabalho constitui-se como uma atividade alienante porque
(1) o trabalhador trabalha para outrem e não para si mesmo; (2) o objeto produzido não
é apropriado pelo trabalhador mas por outrem; (3) o trabalho não realiza o homem, que
busca em outras atividades mundanas sua realização como ser humano; e (4) o trabalho
separa os homens que se veem como estranhos na linha de produção. Marx sumariza que
a propriedade privada conforma-se a partir do conceito de “trabalho exteriorizado”, ou seja,
“homem alienado, trabalho alienado, vida alienada, e homem afastado” (Marx, 2007).
Um alerta torna-se necessário para compreender tanto este estado de coisas como
também alinhar possíveis vias de sua superação.
O trabalho, enquanto atividade humana, gera necessariamente uma objetivação
que chamamos de propriedade, sempre externa ao homem. Contudo, algo estranho
acontece sob o capitalismo que impede o homem de se realizar nesta atividade criadora
que é o seu trabalho. Tal obstáculo é o regime de trabalho capitalista que resulta em pro-
priedade privada, ou seja, um regime de poder que permite a apropriação privada dos ob-
jetos produzidos pelo trabalho de um por outrem, que não o trabalhador. Nesse sentido, a
propriedade privada não é a causa da alienação, mas resultado do processo de objetivação
do trabalho engendrado pelo tipo de regime social vigente, isto é, capitalista.
A tentativa comunista de superação desse estado de coisas não inviabilizaria, por-
tanto, toda e qualquer tipo de propriedade, mas tão somente preceituaria a impossibili-
dade de apropriação privada dos produtos do trabalho. Assim, podemos ver no Manifesto
Comunista de 1848: “O comunismo não retira a ninguém o poder de apropriar-se de sua
parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outro por
meio dessa apropriação” (Marx; Engels, 1997).

264
Sobre essas linhas é importante para nós manter a distinção entre o “processo de
constituição da propriedade privada” (trabalho objetivado que é apropriado privadamen-
te com exclusão dos seus criadores) do “processo de objetivação” (processo ontológico
de exteriorização criativa do sujeito sobre o mundo).
Essa demarcação se faz importante porque pretendemos reafirmar que o trabalho
gera, além de um processo primeiro de “objetivação”, um outro processo que denomina-
mos de “subjetivação”. Ou seja, o trabalho produz não somente objetos externos ao ho-
mem, mas também produz o próprio homem. Ou ainda, o trabalho produz não somente
a mercadoria para o mercado, mas também produz o trabalhador, o mercador e o consu-
midor necessários ao capital.
Assim exposta, percebemos que a propriedade tem um fundamento originário
subjetivo que é o trabalho. Porém, enquanto produto do trabalho, a propriedade tem o
poder de gerar subjetividades que, no caso da modernidade, conforma sujeitos-proprietá-
rios e também sujeitos-despossuídos.
Esse processo de subjetivação pode ser observado quando Marx enfatiza os efeitos
da propriedade privada “do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho
alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de
apropriar-se de seu próprio produto” (Marx, 2013).
Essas subjetividades explicam-nos os regimes de poder vigentes em nossa socieda-
de. Se ontologicamente poderíamos pensar em uma identidade entre o trabalho (ativida-
de criadora) e a propriedade (objetivação) daí tributária, sob o capital, há uma cisão entre
o trabalho e a propriedade que resulta em modos de vida diversos. Aos sujeitos-proprie-
tários, então, é garantido um poder geral de apropriação privada (acumulação), enquanto
aos sujeitos-despossuídos é vedado a fruição direta dos frutos de seu trabalho – demar-
cando, assim, as possibilidades de vida, de ser e de ter em uma sociedade capitalista.
Assim sendo, queremos destacar, a partir de Marx, que (1) um processo de obje-
tivação do trabalho gera uma propriedade que (2) passa por um momento de apropria-
ção privada associado a (3) um processo de constituição das subjetividades proprietárias
necessárias à reprodução do capital. Em termos esquemáticos teríamos: propriedade =
objetivação + apropriação + subjetivação. Logo, a força do capital está em coordenar a
produção de mercadorias e, principalmente, a produção de sujeitos.
Em específico, a subjetivação resultante da propriedade privada torna-se essencial para
que o valor trabalho inserto em mercadorias se realize no mercado. Uma vez que “as merca-
dorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras” então “os seus
guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas” (Marx, 2013).
Nesse sentido, o processo primeiro de objetivação que resultou em propriedade
privada precisa ser seguido de um processo de subjetivação, que gera os sujeitos proprie-

265
tários necessários à realização do valor no mercado. Nesse mercado cada mercadoria, en-
quanto invólucros de valor, é confrontada até localizar o seu equivalente para troca. Mas,
como a troca não se faz entre objetos diretamente, precisamos constituir e utilizar a for-
ma jurídica de “sujeito de direito” para que o momento da troca se aperfeiçoe. Contudo,
(1) “as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria”,
logo, (2) as relações sociais aí fundadas “não passam de personificações das relações eco-
nômicas” (Marx, 2013). O capital converte, assim, as pessoas em sujeitos de direitos tão
somente para atender a necessidade de realizar em valor as mercadorias apropriadas pri-
vadamente a partir do trabalho objetivado.
Temos aí, portanto, uma dificuldade ontológica e moral: os sujeitos-proprietários
são apenas meios para o fim principal que é a realização do valor trabalho na operação de
troca. Mas superamos esse dilema para que as propriedades se reconheçam como equi-
valentes e igualmente disponíveis a operação de troca (alienação). Faremos isso justapon-
do como iguais os sujeitos constituídos desigualmente no processo de fabricação. Essa
operação desenrola-se, ao final, como contrato jurídico: uma forma jurídica que permite
aos sujeitos visualizarem-se como igualmente capazes de expressar e dispor suas vontades
sobre os seus objetos (seus próprios).
Contudo, tal negócio jurídico que iguala sujeitos proprietários revela-se tão mágico
quanto o fetiche da mercadoria. Em Marx (2013) vemos a mercadoria sublimar as suas re-
lações de produção e buscar seu equivalente no mercado. Em arremate, Pachukanis (1988,
p. 75) elucida que “o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico”.
Então, no passo seguinte, podemos replicar o fetiche da mercadoria em um fetiche
do direito de propriedade. Vejamos: o direito de propriedade, esse regime político que
permite a uns se apropriarem do resultado do trabalho de outros, revela-se como uma
máscara que o indivíduo carrega consigo. Assim, o direito de propriedade consegue ocul-
tar as relações constitutivas tanto do objeto quanto de seus sujeitos proprietários. A mági-
ca do fetiche do direito de propriedade acontece, pois, em dois momentos sobrepostos:
(1) primeiro, quando o sujeito é apresentado como portador de poderes especiais para
excluir os demais homens do proveito dos objetos por eles trabalhados; e, também, (2)
quando a própria coisa nos é apresentada como detentora dos poderes especiais de exclu-
são, destituída de seus laços genealógicos e também de seus sujeitos proprietários.
Ao dizer que a “propriedade privada” funciona tal qual o fetiche da mercadoria,
esperamos destacar que a propriedade privada não é um sujeito (proprietário), tampouco
uma coisa (mercadoria). Ao contrário, a propriedade privada ou o direito de proprieda-
de privada constitui-se como um regime político, social e econômico que para funcionar
realiza um fetiche de atribuir, ora ao sujeito, ora a coisa, poderes especiais de exclusão e
de equivalente disponibilidade à troca. Em síntese, a propriedade encontra seus funda-

266
mentos em um processo de alienação do trabalho objetivado e de constituição de sujeitos
proprietários e de sujeitos despossuídos.

Elementos da teoria jurídica do direito de propriedade

Do exposto até aqui, a propriedade privada tem por fundamento genealógico o trabalho que
(1) se objetiva (aliena-se) e (2), segundo o regime vigente, pode ser apropriado de modo
privado por aqueles que não a produziram. Lembremos, ainda, que esse modo de apropria-
ção privada é concomitante a um processo constitutivo de subjetividades proprietárias e
subjetividades despossuídas. Logo, o direito de propriedade aqui analisado é uma relação
social de “objetivação” e de “subjetivação” concomitantes que se vale da forma mercantil para
permitir a representação de sujeitos ou de coisas como equivalentes no momento da troca.
Todavia, o direito moderno tem sérias dificuldades em encontrar esse fundamento
subjetivo da propriedade privada, bem como compreender suas consequências subjeti-
vas. Frente a essas limitações, a teoria jurídica busca explicar a posse como um fato deduzi-
do do direito de propriedade que precisa ser protegido. Depois de superado o limiar fático
material da posse, o direito moderno procura concentrar seus esforços na descrição dos
poderes inerentes à propriedade. A seguir, tentamos delinear esses contornos da teoria
jurídica sobre o direito de propriedade.

Teorias sobre a posse


No debate jurídico sobre os fundamentos do direito de propriedade encontramos,
geralmente, a discussão prévia sobre a posse: ora como um fato, ora como um direito –
todavia, sempre, deduzida a partir do conceito de um direito de propriedade.
Assim, a chamada a “teoria subjetiva” de Savigny (1779-1861) compreende que há
posse quando presentes simultaneamente um corpus e um animus domini. Aqui, portanto, a
posse é um fato – contato físico entre sujeito e coisa – que terá repercussões jurídicas porque
está presente um elemento psíquico qualificado do sujeito de direito (animus domini). Assim
sendo, em razão (1) da vontade do sujeito (animus) que se direciona a um objeto (corpus), e
(2) porque o direito pretende manter a ordem social estabilizada, o fato da posse será reco-
nhecido e lhe serão atribuídos os efeitos jurídicos protetivos contra toda e qualquer ameaça
externa. Desse raciocínio aperfeiçoa-se a posse como um direito a ser protegido porque é
necessário proteger a vontade do indivíduo (animus) sobre certos bens (corpus).
Em linha diversa, Jhering (1818-1892) contrapõe sua “teoria objetiva”, que reforça a
distinção entre a posse – um poder de fato – e a propriedade – um poder de direito. Jhering
está nesse momento preocupado em afastar o elemento subjetivo (animus) como funda-
mento do direito e reforçar a finalidade econômica da propriedade. Nesse sentido, o que

267
faz a propriedade privada ter valor é a possibilidade de utilizá-la economicamente e, para
tanto, é preciso ter a sua posse (“imitir-se na posse”). Por isso, a posse precisa ser protegida
enquanto uma manifestação, exteriorização do direito de propriedade. Logo, protege-se a
posse por ser essa uma consequência fática do direito de propriedade necessária à valoriza-
ção do capital: sem a posse, o direito de propriedade esvazia-se de valor econômico.
No plano jurídico brasileiro, o Código Civil (CC) adota tal corrente explicativa
para fundar o seu art. 1196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exer-
cício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.” Uma vez definido o
possuidor, o direito apresenta-lhe garantias: “O possuidor tem direito a ser mantido na
posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se
tiver justo receio de ser molestado”(CC, art. 1210). Eis, então, mais uma vez, o esforço do
direito em atribuir efeitos para proteção da pessoa: protege-se a posse porque intenta-se
preservar a inviolabilidade do indivíduo.

Poderes inerentes à propriedade


Superado, pois, os fatos entorno do direito de propriedade, devemos precisar os
contornos jurídicos desse arranjo proprietário. Tradicionalmente, o direito de proprieda-
de moderno pode ser caracterizado como sendo um direito (a) complexo, (b) absoluto,
(c) perpétuo e (d) exclusivo.
(a) É um direito complexo porque envolve diversos outros direitos (poderes) jus-
tapostos. Classicamente, definimos o direito de propriedade como o conjunto das facul-
dades de usar (jus utendi), fruir (jus fruendi), dispor (jus abutendi) e reaver a coisa (rei vindi-
catio). Ou na literalidade da norma civil brasileira: “O proprietário tem a faculdade de usar,
gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a
possua ou detenha” (CC, art. 1228).
(b) Em regra geral, tais direitos têm uma natureza absoluta, o que permite ao sujei-
to proprietário fazer uso desses poderes na forma mais extensa possível. Daí são deduzi-
das as correntes em defesa do caráter ilimitado do direito de propriedade, em consequen-
te espelho do princípio maior da livre iniciativa e do individualismo. Esse caráter absoluto
do direito de propriedade explica-se em razão do seu sujeito: o direito de propriedade
garante a liberdade de o indivíduo fazer ou deixar de fazer algo em relação às suas coisas.
Contudo, não podemos deixar de indicar a contradição na modulação desse cará-
ter absoluto do direito de propriedade. Tanto a Constituição Federal (CF, art. 5º, XXIII)
quanto o Código Civil (CC, art. 1228§1º) estabelecem que esse direito precisa atender
uma função social. Poderíamos, assim, destacar como função social da propriedade priva-
da capitalista (1) o seu valor de troca, isto é, a propriedade deve ser desembaraçada e estar
disponível ao livre trânsito no mercado. Por outro lado, insistimos em reivindicar (2) um

268
certo valor de uso que, certamente, atende aos interesses não capitalistas de seu proprietá-
rio. A contradição da função social surge quando tentamos indicar interesses dos não pro-
prietários ou dos sujeitos-despossuídos como determinantes do direito de propriedade.
Logo, a contradição encontra-se na manutenção de um direito de propriedade ainda que
agora vinculado a interesses não proprietários.
(c) Um terceiro aspecto fundante do direito de propriedade é a sua perpetuidade.
Uma vez constituído o direito de propriedade, torna-se estável no tempo ad infinitum. Essa
natureza perpétua do direito de propriedade atende o interesse de manter estabilizadas as
relações sociais, sem questionar os seus fundamentos históricos ou ontológicos. No tex-
to constitucional brasileiro podemos, ainda, ver claramente a defesa da propriedade por
meio dos institutos da herança (CF, art. 5º, XXX) e intocabilidade do direito adquirido
(CF, art. 5º, XXXVI) – tão necessários à manutenção da ordem vigente.
Tal perpetuidade somente pode ser afastada em casos excepcionais e sob a pecha
de intervencionismo estatal. Como apontado na Constituição (CF, art. 5º, XXIV) e no
Código Civil (CC, art. 1228§3º) o proprietário somente perde o seu direito de forma não
voluntária nos casos de desapropriação, seja por necessidade ou utilidade pública (Decre-
to-lei 3365/1941), interesse social (Lei 4132/1962) ou por descumprimento da função
social (Lei 8629/1993 e Lei 10.257/2001). Nesses casos de desapropriação perde-se um
direito de propriedade de forma compulsória, mas, ainda assim, se realiza uma troca en-
tre ativos, uma vez que o Estado deve atender várias condições necessárias e prévias para
recompor o patrimônio do sujeito proprietário. Então, o que se observa é que a vontade
absoluta do sujeito-proprietário é afastada para que a circulação da propriedade se realize.
Excepcionalmente, o direito de propriedade pode ser extinto nos casos de expro-
priação previstas no art. 243 da Constituição Federal, ou no art. 91, II, alínea b, do Código
Penal – em ambos dispositivos como sanção a prática de crime. Ou se desejar, poder-se-ia
aventar que, mais uma vez, a vontade proprietária é afastada para que a propriedade circu-
le e, assim, compense o Estado ou a sociedade pelo crime cometido.
(d) Por fim, o elemento mais característico do direito de propriedade privado é
a exclusividade, ou seja, um poder atribuído pelo direito ao indivíduo-proprietário para
excluir todos os demais sujeitos (proprietários e não proprietários). Essa concepção mo-
derna tenta reeditar um tipo de propriedade unitária do antigo direito romano (plena in
re protestas). Diferentemente, no período feudal prevalecia uma sobreposição de direitos e
de sujeitos sobre a mesma coisa (jura in re aliena).
Portanto, a propriedade privada moderna procura centralizar todos os poderes
proprietários em uma única pessoa (o indivíduo proprietário) para que seja possível a sua
circulação mais livre no mercado. Esse domínio pleno do direito de propriedade será inter-
pretado como um direito subjetivo erga omnes, isto é, oponível a todos. Em suma, o direito

269
de propriedade aperfeiçoa-se quando consegue delinear a exclusividade do sujeito proprie-
tário sobre determinada coisa excluindo todos os demais de sua fruição concomitante.
Esse poder de excluir os demais será instrumentalizado por diversos instrumentos
jurídicos e institucionais: ações possessórias, interdito proibitório, manutenção na pos-
se, desforço imediato, reintegração da posse, indenização por perdas e danos etc. Além, é
claro, há todo um rol de hipótese de crimes contra o patrimônio: furto, roubo, extorsão,
usurpação, dano, apropriação indébita, estelionato, receptação, violação de direito autoral
ou patente etc. – sempre disponíveis à proteção dos interesses do sujeito-proprietário.
Contudo, essa forma de propriedade unitária (plena in re protestas) passa por um
processo de fragmentação por meio de processos variados de financeirização. Desse modo,
a compreensão do direito de propriedade privada pertencente a um único sujeito com po-
deres de excluir todos os demais vai se tornando residual e contrária ao ciclo do capital.
Tradicionalmente, já poderíamos visualizar diferentes direitos reais sobre coisa
alheia: hipoteca, servidão, direito de superfície, usufruto, direitos de uso, penhor, anti-
crese etc. Contudo, a inovação contemporânea não está em justapor um outro sujei-
to-indivíduo limitando os poderes do sujeito-proprietário. Bem diferente, o direito de
propriedade tende cada vez mais a ser inscrito no circuito financeiro e, a partir daí, a
coisa (mercadoria) circula como ativo econômico sem a necessidade de sua transposi-
ção física (tradição) entre sujeitos diferentes.
Então, o direito moderno de propriedade privada passa a ser redefinido por meio
de transações financeiras e de títulos mobiliários. A isso nomeamos como a tendência con-
temporânea de fragmentação do direito de propriedade por meio da financeirização. Como
exemplos de instrumentos temos os institutos da propriedade fiduciária (CC, art. 1361; Lei
9514/1997), os certificado de recebíveis imobiliários (CRI), as cédulas de crédito imobi-
liário (CCI), as letras de crédito imobiliário (LCI), as letra de crédito imobiliário vinculada
(LCIV), as letras hipotecárias (LH), além dos fundos de investimento imobiliário (FII), re-
gulados pela Lei 8668/1993. Adicionalmente, devemos incluir os certificados de potencial
construtivo (Cepac) constituídos a partir de legislação municipal sobre concessão onerosa
de potencial construtivo vinculada a operações urbanas (Lei 10257/2001).
Esses mecanismos do direito contemporâneo contribuem para reforçar a separa-
ção entre “coisa útil” e “coisa de valor”, uma vez que, como já exposto por Marx, o processo
de produção concentra-se em gerar coisas de valor ao invés de produzir mais coisas úteis.
Essa cisão entre coisa útil e coisa de valor

só se realiza na prática quando a troca já conquistou um alcance e uma


importância suficientes para que se produzam coisas úteis destinadas à
troca e, portanto, o caráter de valor das coisas passou a ser considerado
no próprio ato de sua produção (Marx, 2013, [s.p.]).

270
Isto indica-nos que as novas configurações do direito permitem que a proprie-
dade já seja uma coisa de valor e disponível a circulação no mercado desde o momento
de sua produção física. Nesse sentido, os institutos jurídicos acima citados permitem,
pois, que os incorporadores, desde a concepção do seu produto imobiliário, lancem
as bases para títulos mobiliários de valor para circular no mercado financeiro. Logo,
não é o valor de uso ou a demanda da sociedade que orienta a produção imobiliária,
mas sim o valor de troca, e consequentemente, seus títulos mobiliários, que orientam
o circuito da produção.

Elementos da propriedade pública


Do exposto até aqui compreendemos que o direito de propriedade oculta o seu
fundamento objetivo (o trabalho objetivado) e, em seu lugar, instaura uma forma jurí-
dica (máscara) que apresenta o sujeito proprietário como detentor de poderes especiais
para excluir os demais sujeitos não proprietários do uso e da apropriação do produto do
trabalho objetivado. Assim, o direito reedita o fetiche da mercadoria e, agora, sustenta um
segundo fetiche ao indicar o sujeito-proprietário como fundamento dos poderes ineren-
tes à propriedade privada. Todavia, esse sujeito não é a causa, mas sim a consequência da
propriedade privada (apropriada privadamente) que necessita circular no mercado e que,
para tanto, precisa de um mediador, no caso, o sujeito-proprietário.
Essa construção do direito de propriedade que articula a forma mercadoria junto à
forma do sujeito de direito depende, entretanto, de um aparato protetivo, isto é, um tercei-
ro instituto sobreposto que garanta a estabilidade das relações. Assim, somente podemos
compreender o direito de propriedade moderno a partir do Estado. Apesar de a proprie-
dade encontrar seu fundamento subjetivo no trabalho, o direito de propriedade atribui ao
sujeito-proprietário os poderes de exclusão e assegura que tais poderes serão garantidos e
viabilizados a partir da força monopolizada pelo Estado moderno.
Esse tipo de Estado moderno nasce quando consegue monopolizar, não somente
o uso da violência legítima, mas também o domínio sobre um dado território. É assim que
passamos a compreender o conceito de Estado moderno a partir do conceito de sobera-
nia: esse poder de jurisdição sobre uma certa população em um determinado território.
Esse poder geral de dizer o que é o direito e quem são os sujeitos desse direito
performa o chamado “poder de império” (ius imperii), que autoriza o Estado a impor seu
poder de polícia e de administração geral sobre a sociedade – desde o controle de frontei-
ra até a definição de início e fim da vida.
Seguindo as teorias contratualistas, percebemos que o Estado deve realizar certos
objetivos e que, para tanto, lhe foram transferidos poderes especiais. Consequentemente,
a teoria contratualista assenta suas bases na teoria do mandato. Por essa doutrina jurídica o

271
Estado (organização estatal) não tem vontade própria, mas é mero mandatário do “povo”
para a realização do “interesse público” (interesse geral da sociedade civil).
Nesse sentido, o Estado surge como gestor do interesse público. Logo, toda ação estatal
deve atender o interesse público. Em termos formais administrativistas, o Estado deve atuar
segundo o princípio da legalidade, isto é, adstrito às determinações do direito que ele próprio
positivou. Assim, o interesse público a ser realizado pelo Estado encontra-se inscrito na lei –
norma essa aprovada pelo próprio Estado. Observamos, então, o fechamento lógico-formal
do direito, que se autorreferência para encontrar seu próprio fundamento de validade.
Nesses termos e limites, podemos apreender a partir do art. 3º da Constituição
Federal a enunciação do interesse público que deve ser alcançado pela ação estatal. Para
realizar tais objetivos o Estado vai fazer uso de poderes especiais (competências legislati-
vas e competências executivas) e promover direitos fundamentais (CF, art. 5º, 6º, 7º etc.).
Nesse arranjo jurídico-político, o Estado detém autonomia para organizar diversos
aparatos administrativos e, também, um determinado patrimônio (base de bens proprie-
tários). Diante disso, o Estado moderno precisa, além de seu poder de império, fazer uso
de seu “poder de gestão” (ius gestionis) de modo a administrar o seu próprio patrimônio.
É, portanto, nessa segunda vertente do poder que devemos indagar se o Estado
adotaria uma forma jurídica distinta da propriedade privada para a gestão dos seus bens
segundo o interesse público. Na seara jurídica, os manuais são uníssonos em descrever
uma suposta singularidade dos bens públicos bem distinta dos bens particulares, o que
conformaria um regime jurídico-administrativo especial. Não somente haveria uma su-
premacia do interesse do sujeito-Estado sobre os interesse particulares, mas também a
própria qualidade dos bens públicos seria diversa do direito de propriedade privada. Em
suma, se fosse possível o diálogo crítico, o campo jurídico diria que haveria uma forma
jurídica diferente para os bens públicos em contraste com a forma jurídica típica da pro-
priedade privada que acompanha a forma mercantil.
Seguindo essa suposta linha argumentativa, os bens públicos não seriam mercadorias,
isto é, não seriam o produto objetivado do trabalho apropriado privadamente pelo Estado.
Nesses termos, Estado não se constituiria como um sujeito de direito especial que levaria seus
bens ao mercado para a livre circulação e consequente realização de seu valor de troca. Então, a
tradição jurídica estaria correta ao dizer que os bens públicos (a) não são se constituem como
mercadoria e, portanto, (b) não estariam livremente disponíveis à circulação no mercado.
Se o fundamento do direito da propriedade pública não se encontra no circuito de
produção tal qual a propriedade privada, então, devemos investigar retrospectivamente seus
nexos constitutivos. Certamente, não podemos nos contentar em apenas reiterar um certo
positivismo que identifica o fundamento da propriedade no direito positivo estatal. Por esse
argumento, são propriedades públicas aqueles bens indicados pelas normas jurídicas, como

272
o exemplo que pode ser visto no art. 20 da Constituição Federal brasileira. Outra via inves-
tigativa seria perquirir historicamente a cadeia dominial pública. Por aqui, revolveríamos ao
marco temporal da invasão portuguesa das terras hoje identificadas com o território brasi-
leiro. Àquela época, por força de um arranjo político internacional, os países ibéricos pude-
ram assinar o Tratado de Tordesilhas (1494) acerca da titularidade das terras descobertas
e a descobrir. Tais terras do Reino Português se apresentavam como patrimônio da Coroa
Portuguesa. Assim, o patrimonialismo típico do medievo indicava que os bens pertenciam
aos reis portugueses, que poderiam, por direito, fazer uso direto ou dar em concessão. Assim,
entre diversas cartas régias e sistemas de gestão variados, a Coroa Portuguesa concedia direi-
tos de uso e de exploração da terra. Com a independência política, o novo Estado brasileiro
substitui a Coroa Portuguesa na qualidade de sujeito titular das terras brasileiras.
A partir desse excurso, o fundamento primeiro da propriedade pública brasileira,
de fato, não seria um processo produtivo capitalista. Ao contrário, assistimos a um proces-
so de “acumulação primitiva” (Marx, 2013), fundado em cercamentos, roubos, fraudes,
pilhagens, remoções forçadas etc. – conduzidas diretamente e legitimadas pelo Estado e
pelo direito. O intento maior dessa forma de espoliação é iniciar um processo de acumu-
lação de capitais e separar o trabalhador de sua base de subsistência – destruindo, assim,
o sistema econômico anterior e constituindo novas subjetividades para o capital: o traba-
lhador livre assalariado e o consumidor.
Contudo, Harvey nos adverte que a acumulação primitiva não foi um episódio
isolado na histórica capitalista, mas faz parte de seu funcionamento estrutural. Em ou-
tras palavras, os processos de cercamento, saque, pilhagem, fraude que possibilitaram a
acumulação primitiva permanecem como dispositivos ativos do capital autorizados pelo
Estado e pelo direito. Harvey acentua que os processos de despossessão tornaram-se cen-
trais e cotidianos para o funcionamento do capitalismo (Harvey, 2006).
Como se vê, o fundamento da propriedade pública estatal é um ato de violência inse-
rido num processo de acumulação ampliado. Ou seja, toma-se a terra para colocá-la a serviço
das forças capitalistas. Os bens públicos assim constituídos vão se servir como infraestrutura
necessária ao capital. Então, se não é justo atribuir ao direito de propriedade pública o mesmo
fundamento da propriedade privada fundada no processo produtivo, vemos que a proprieda-
de pública revigora com mais intensidade o fundamento do direito, qual seja, o direito funda-
do num ato de violência. Em conclusão, o fundamento do direito de propriedade pública esta-
tal encontra-se no processo de despossessão, que não é episódico, mas cotidiano. De extração
forçada de valores para colocá-los à disposição do circuito de acumulação capitalista.
O segundo elemento com que a tradição jurídica descreve a propriedade pública é
a inalienabilidade, ou seja, os bens públicos não seriam mercadorias disponíveis à livre cir-
culação no mercado. Nos manuais jurídicos a propriedade pública não se constitui como

273
a mercadoria tampouco adota a forma mercantil porque o Estado é mero mandatário
da vontade geral. Logo, não pode o gestor dispor livremente dos bens de seu mandante.
Então, o direito de propriedade pública seria um regime jurídico protetivo contra as tenta-
tivas de dilapidação de eventuais gestores públicos.
A partir desse preceito a tradição jurídica destaca como atributos especiais dos
bens públicos: a impenhorabilidade, a imprescritibilidade e a inalienabilidade. A impe-
nhorabilidade impede que os bens públicos possam servir para a satisfação de qualquer
dívida líquida. Em regra geral os pagamentos devidos pelo Estado far-se-ão por meio de
precatórios (CF, art. 100). A imprescritibilidade impede que bens públicos sejam adquiri-
do por meio de usucapião (CF, art. 183§3º, art. 191, par. único). E a inalienabilidade seria
o atributo que impede a livre negociação dos bens públicos no mercado (CC, art. 100).
Assim sendo, teríamos uma forma jurídica especial para os bens públicos. Con-
tudo, se verticalizarmos a análise, essas marcas distintivas revelam, em verdade, uma am-
pliação do poder de exclusão típico da propriedade privada. Os bens públicos, portanto,
não estariam sob um regime diferente; ao contrário, sobre eles seria ampliado o regime de
direito propriedade tipicamente privado.
Dito doutro modo, esses atributos de impenhorabilidade, imprescritibilidade e
inalienabilidade ampliam o poder geral de exclusão – que vem sendo a marca distintiva
do regime jurídico do direito de propriedade privada. Retornamos, pois, a tese deste texto,
de que a forma jurídica do direito de propriedade pública segue os mesmos contornos da
forma jurídica de direito de propriedade privada.
Ademais, a intocabilidade dos bens públicos é relativa, como demonstrado tanto na
norma civil quanto no comando constitucional. Diretamente, os bens públicos podem ser alie-
nados quando não afetos a uma finalidade pública específica (CC, art. 101). Para tanto, deve-se
observar a legislação e os requisitos para a alienação (CF, art. 37, XXI, Lei 8666, art. 17-19).
Logo, o argumento de inalienabilidade que sustentava a singularidade de uma su-
posta forma jurídica diferente para os bens públicos parece decair no seio da legislação
vigente – que, de modo algum, caminha para superação do regime capitalista.
Levando nosso argumento à terminologia administrativista reforçamos a paridade
entre propriedade privada e propriedade pública. Ao examinar o direito de propriedade
privada anotamos que o sujeito-proprietário detém poderes especiais de usar, fruir, dispor
e reaver sua coisa com a máxima liberdade, de modo perpétuo e de forma exclusiva. Ora,
atributos de um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo são totalmente integra-
dos à defesa da propriedade pública, seja essa classificada como “bens de uso comum”,
“bens especiais” ou “bens dominicais” (CC, art. 99).
Os chamados “bens de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e
praças” (CC, art. 99, I) parecem indicar uma categoria de bens abertos ao público. Dessa

274
leitura, é recorrente a ideia de que bens públicos estão sempre abertos ao livre acesso da
população. Se fôssemos dar consequência deveríamos dizer que os bens estariam dispo-
níveis a todos, indistintamente, para livre uso e livre fruição.
Todavia, para todos os exemplos aventados no art. 99 do Código Civil, o Estado
cria normas especiais de acesso, podendo, inclusive, vedar o livre acesso. Como exemplo
poderíamos citar desde as disposições acerca sobre o acesso e uso da água até as mais co-
mezinhas posturas públicas municipais para uso e fruição de ruas, praças e calçadas. Isso
nos indica que os bens de uso comum são regime proprietário estatal que mantém os atri-
butos de exclusividade, por meio do qual o Estado decide sobre o uso e a fruição possíveis
sobre esses bens. Em suma, temos certo que o regime jurídico dos “bens públicos de uso
comum do povo” não estão disponíveis ao livre uso e à fruição do povo.
Ainda que os bens de uso comum do povo não venham acompanhados de uma
liberdade de disposição (alienação), tal qual os bens tipicamente privados, observamos a
possibilidade de alienação, precisando-se, para tanto, tão somente de prévia autorização
legislativa e avaliação do valor (CC, art. 100 c/c Lei 8666/1993, art. 17).
Na sequência, os “bens especiais” (CC, art. 99, II) são aqueles bens destinados a
um serviço público específico, geralmente, típico da administração pública. Como exem-
plos são apontados escolas, hospitais, sedes de órgãos públicos etc. Em todos esses ca-
sos vemos uma propriedade afetada a um serviço público específico. Contudo, aqui se
mantém os atributos principais da forma jurídica de propriedade privada: exclusividade
e perpetuidade para usar e fruir por parte de seu sujeito proprietário, no caso, o Estado.
Por fim, os “bens dominicais” (CC, art. 99, III) são bens ainda não afetados a uma
finalidade específica. Claramente, há uma divergência na tradição dos bens dominicais
sem uso, o que violaria o princípio constitucional da função social da propriedade (CF,
art. 5º, XIII). De todo modo, mantém-se o entendimento de que certos bens públicos são
reservados para uso futuro. Para isso, seria necessário, mais uma vez, manter seus atributos
de exclusividade e perpetuidade. E, de forma mais gravosa, o poder geral de exclusão im-
pedem seu apossamento e usucapião (CF, art. 183 §3º, art. 191, par. único).
Contraditoriamente, essa categoria de bens dominicais estaria mais próxima do mer-
cado e pronta à circulação mercantil, uma vez que não se vincularia a um interesse específico.
Assim, os bens dominicais representam ativos econômicos do Estado e podem ser alienados
desde que observados requisitos legais de prévia avaliação e procedimento licitatório.
Do exposto, portanto, assentamos que os bens públicos reeditam o regime de pro-
priedade privada em todos os seus principais atributos que convergem para o poder geral
de exclusão. Porém, não somente os elementos da tradição jurídica aproximam o regime
proprietário público do modelo privado. Então, devemos trazer a leitura crítica até esses
limites da propriedade pública.

275
A propriedade privada, portanto, constitui-se como um regime de poder constituído
histórica e socialmente que permite a apropriação de trabalho objetivado alheio por aquele
que não o produziu. Do mesmo modo, a propriedade pública encontra seu fundamento em
um apossamento violento e reitera esse processo cotidianamente, extraindo valor de modo
coativo. O Estado e o direito empreendem diretamente e legitimam esses processos de apos-
samento e de despossessão que criam a um novo regime proprietário cercado.
A propriedade privada uma vez constituída oculta seu fundamento genealógico
e apresenta-se como poder deduzido diretamente do sujeito proprietário. Do mesmo
modo, o direito de propriedade pública oculta seu fundamento constitutivo baseado na
violência e, em seu lugar, posiciona um suposto interesse geral ou interesse público, positi-
vado nas normas estatais e gerido pelo Estado, sempre apartado da sociedade.
Para performar-se a propriedade privada precisa criar o seu sujeito de direito, como
fetiche, isto é, descolado dos processos constitutivos. Em paralelo, a propriedade pública
também demanda a criação de um sujeito de direito, Estado, apartado dos processos mate-
riais constitutivos. Assim, o sujeito Estado apresenta-se como a construção idealista racio-
nal de uma sociedade e não mais como uma condensação de lutas de forças antagônicas.
A consequência desse arranjo normativo é apresentar o sujeito Estado com po-
deres para exercer de modo mais amplo possível sua liberdade de negócio (absoluto) e
proteger sua mercadoria contra os não proprietários (exclusividade) e isso de forma pe-
rene (perpetuidade), uma vez que a existência do Estado não pressupõem uma mudança
estrutural nos modos de produção e de aquisição da propriedade.
Nesse campo, dentre os poderes proprietários, o Estado pode forçar a circulação
da propriedade alheia por meio de desapropriação. Além, é claro, de reiterar a máxima
proteção contra os não proprietário, no caso, cidadãos, proibindo-lhes o uso, o gozo, a
fruição e mesmo a prescrição aquisitiva (usucapião).
Diante desse quadro restritivo, acompanhamos Carol Rose (1986) em suas con-
clusões de que a “propriedade pública é um oximoro”, isto é, uma contradição interna de
termos. Uma vez que “coisas abertas ao público não são propriedade, mas sua antítese”
(Rose, 1986, p. 712, tradução nossa).
Desse modo, abandonamos a crença de que a propriedade pública pudesse consti-
tuir-se algo diverso da propriedade privada, como alternativa ao modelo de alienação e de
acumulação privada. Ao contrário, os traços acima analisados indicam-nos a repetição do
modelo proprietário privado sobre o patrimônio público, incluindo o processo de objeti-
vação fundado na violência e no processo de subjetivação alienante, por meio do qual os
sujeitos do Estado, os cidadãos, estão impedido de acessar os bens públicos.
Mesmo diante da distinção entre (a) uma propriedade pública pertencente e geri-
da pelo governo (Estado) e (b) uma propriedade pública pertencente e gerida diretamen-

276
te pela sociedade (Rose, 1986), encontramos a base liberal: o direito de cercamento do
bem (apropriação privada e acumulação) e o direito de excluir todos os demais.
Assim, retornarmos ao nosso mote inicial de reflexão: “Devemos examinar outra
possibilidade: nem a propriedade privada do capitalismo, nem a propriedade pública do
socialismo, mas o comum no comunismo” (Hardt, 2014). Se, em parte, conseguimos
deslindar os contornos do direito de propriedade privada e de sua variante propriedade
pública, temos, agora, de enfrentar outras dificuldades para investigar esse comum, que
não seja fundado na alienação e na acumulação privada.

Elementos para o comum

Nesta seção final pretendemos, pois, recuperar nossos aportes teóricos sobre a
propriedade privada e apontar linhas argumentativas que indiquem um outro modelo
em que todas as coisas possam ser em comum (omnia communia).
Das seções anteriores, consideramos os fundamentos jurídicos tradicionais e uma
leitura crítica como passos necessários para nossa compreensão sobre a propriedade priva-
da. Adotamos que o direito de propriedade privada tem seu fundamento num regime de
poder que autoriza a apropriação privada do trabalho objetivado por aqueles que não o pro-
duziram (objetivação alienante). Em seguida, esse mesmo regime constrói uma máscara de
sujeito de direito que leva a mercadoria sob a forma de propriedade privada à circulação no
mercado (subjetivação proprietária). Em um sobreposto fetiche, esse sujeito-proprietário
apresenta-se como detentor de poderes especiais – social e historicamente conformados –
para cercar a coisa e excluir os demais de seu uso e fruição. Por fim, deixamos registrado que
essa forma de propriedade manifesta-se igualmente quando temos como sujeito proprietá-
rio o Estado e as mercadorias em questão são bens públicos estatais.
Em síntese, podemos dizer que a propriedade privada moderna nasce a partir de
(a) um processo de objetivação do trabalho que é apropriado privadamente e (b) a partir
de um processo de subjetivação por meio do qual são criadas subjetividades possíveis de
proprietários e não proprietários ou despossuídos.
Se nosso intento é vislumbrar a possibilidade de um outro regime, devemos nos apoiar
em alguns pontos entorno do comunismo. Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista
de 1848, sintetizam a teoria comunista como a “supressão [Aufhebung] da propriedade priva-
da” (Marx; Engels, 1997), por entenderem que a base do regime capitalista encontra-se no
processo de alienação do trabalho objetivado que se converte em propriedade privada.
Contudo, devemos diferenciar que esse comunismo “não tira a ninguém o poder
de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por esta apropriação, subjugar
a si trabalho alheio” (Marx; Engels, 1997). Essa demarcação é importante para compreen-

277
der que o trabalho gera sempre uma propriedade, uma objetivação, mas que, sob o capita-
lismo, é convertida em propriedade privada, alienada, ao trabalhador.
Por isso, se estamos nos vinculando para a superação desse estágio de coisas, deve-
mos, então, buscar uma via contrária à alienação e em favor da apropriação. Nessa toada,
devemos compreender a “substituição positiva da propriedade privada como apropria-
ção da vida humana” (Marx, 2007). Esse comunismo proposto por Marx evidencia uma
mudança ontológica no processo de subjetivação em que teríamos: “o homem produz o
homem, a si mesmo e a outros homens” (Marx, 1997). Conseguinte, teríamos algo bem
diverso das quatro dimensões da alienação apontadas na seção anterior. Ou seja, no co-
munismo, o trabalho cria um sujeito novo que não se estranha diante do objeto criado,
tampouco se vê estranhado diante dos outros homens, ou mesmo alienado de sua con-
dição de ser social. A isso devemos dar o nome de apropriação dos meios de produção
social, que, mais uma vez, se faz concomitantemente em (a) uma apropriação do trabalho
objetivado e (b) uma apropriação de sua condição de ser social.
Em paralelo a esse argumento, o comunismo que pretende superar a propriedade
privada passaria por processos autogestionários. De modo claro, haveria autogestão quan-
do um grupo social “já não mais aceita passivamente as condições de existência, quando
já não permanece passivo diante das condições que lhe são impostas, tentando ao invés
dominar e governar tais circunstâncias”(Lefebvre, 1980, p. 95). Para alcançar tal domínio
sobre as condições de existência, os homens precisam superar a forma jurídica da proprie-
dade privada, que, além de alienar o trabalhador e impedi-lo de se apropriar da produção
social, limita sua ação aos limites de sua condição jurídica de sujeito despossuído.
Ainda para Lefebvre (2001), esse passo importante de superação poderia ser
associado ao direito à cidade. Esse direito não tem, entretanto, sinonímia com o Estado,
tampouco com a propriedade privada. Ao contrário, esse direito à cidade abrir-se-ia
para uma nova condição de vida que envolveria “o direito à ‘obra’ (à atividade partici-
pante) e o direito à ‘apropriação’ (bem distinto do direito à propriedade)” (Lefebvre,
2001, p. 143). Desse modo, qualquer tentativa de superação não poderia ser vista como
retorno ao regime de alienação ou ao regime proprietário.
Agamben (2004) sugere-nos, então, para esse final, “desativar o direito”. Ao invés
de reivindicar mais Estado e mais direito como instrumentos de libertação, deveríamos
caminhar por vias outras sem dependermos da violência jurídica e estatal para comandar
coercitivamente vida. Se, como exposto por Agamben (2004), o direito e o Estado de exce-
ção modernos tentam capturar a vida, então deveríamos, sim, insistir na desativação desses
dispositivos de controle biopolítico. Em lugar dessa transcendência apartada da vida, deve-
ríamos buscar um “direito puro” que pudesse ser identificado com a própria práxis humana
(Agamben, 2004, p. 133), em que a vida constitui-se como a norma a ser vivida.

278
Assim, teríamos que contrapor o direito positivo moderno, coercitivo e fundado
na violência, a um outro direito vivo. Nessa senda, Cava (2013) vem nos afirmar que os
“direitos vivos incluem a reapropriação da produtividade social”. Daí, o comum que esta-
mos procurando reafirma-se como “um direito que é potência afirmativa, e não norma”.
Em suas palavras, “o direito do comum se constitui da esfera de potência e realização dos
sujeitos em estado de luta e reinvenção, que engendram formas de vida e, nesse mesmo
processo, resistem à expropriação de seu produzir e seu viver”(Cava, 2013, p. 24).
Por isso, nossa aposta em um direito aberto que se faz norma enquanto se vive a
vida, e não um direito morto que se apresenta como norma a ser imposta sobre a vida.
Nessa trilha, acompanhamos Esposito, que também “aposta na biopolítica afirmativa, da
vida e já não sobre a vida” (Esposito, 2013). Ao invés de reivindicar uma norma transcen-
dente para governar a vida, o comum nos indica que a vida pode ser a sua própria nor-
ma imanente. Para tanto, precisamos desenlaçar a vida do direito moderno em uma ação
concomitante que permita tanto (a) “desativação dos aparatos de imunização negativa”
quanto (b) “ativação de novos espaços do comum”(Esposito, 2013). Primeiramente, en-
tão, devemos evitar os contrários do comum (o próprio, o privado, o imune) que dissolvem
os laços comunitários. Mas nessa guia, Hardt e Negri (2009, p. 160) alertam que “família”,
“nação” e “corporação” são formas de corrupção do comum, pois reforçam identidades
(idion, proprio) por meio de hierarquias e exclusões. Em complemento à desativação da
propriedade privada, devemos ativar os espaços do comum, que, assim esperamos, vão
desde a ocupação física dos espaços da cidade até a conquista biopolítica dos “recursos da
inteligência e da linguagem, do simbólico e do imaginário, das necessidades e dos desejos”
(Esposito, 2013) – enfim, de todas as condições de existência e de produção social.
Nessa disputa contra a ordem moderna hegemônica constituída e regulada pelo
capital, devemos voltarmo-nos para um movimento biopolítico produtivo contínuo. Du-
rante essa caminhada passaremos, obrigatoriamente, por resistências e insurgências até
alçarmos poderes constituintes de uma nova “forma de vida” em comum.
Essa outra forma de vida, não alienada e não subjetivada pelo direito moderno, pode
ser iluminada a partir dos textos monásticos estudados por Agamben (2013). Ali, Agamben
se propõe a refletir uma “forma de vida” que não seja capturada pelo direito, bem como um
“uso dos corpos e do mundo” que não fosse convertido em propriedade. Se o direito moderno
captura e excepciona a vida (Agamben, 2004), o comunismo que estamos a tracejar poderia
indicar um outro modo de vida que produz e usa o mundo, sem, contudo, convertê-lo em
propriedade privada, isto é, sem cercá-lo e impedir todos os outros de sua fruição.
Uma inspiração desse outro regime de vida poderia comunicar-se com o enun-
ciado de Atos, 4, 32: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém
dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum (omnia

279
communia).” Essa comunidade está oposta a pretensões proprietárias, isto é, pretensões
de cercamento e de exclusão. Contudo, o comum que se constitui não diz respeito ape-
nas a uma dimensão material, mas, essencialmente, a uma nova subjetividade que vin-
cula os homens em comunidade (cor et anima una).
Aparenta-nos, pois, ser essa forma de vida o oposto à alienação constitutiva da pro-
priedade privada moderna. Nesse sentido, a comunidade de que nos fala Esposito (2003;
2013) não vem nos indicar ser proprietário de uma coisa ou de uma identidade. Etimolo-
gicamente, comunidade justapõe um cum, que vem a ser um vínculo, um múnus, no mais
das vezes, traduzível como uma obrigação, um ofício, um encargo. Logo, a comunidade
é constituída, exatamente, por uma falta, uma falha original, que vincula os sujeitos em
comum obrigação para com os outros. Ao invés de um fechamento identitário, a comuni-
dade indica-nos uma abertura obrigacional ao outro, mas que não se resolve comutativa-
mente pela troca de valores equivalentes.
Essa falta que nos vincula em comunidade quer nos dizer que

um “dever” une os sujeitos da comunidade (…) que faz com que não
sejam inteiramente donos de si mesmos (…) expropria-os, em parte ou
inteiramente, sua propriedade inicial, sua propriedade mais própria, isto
é, sua subjetividade (Esposito, 2003, p. 30).

Em um diálogo possível, a pobreza monástica relatada por Agamben (2013)


constitui uma comunidade a partir de um ato violento de “abdicação” (abdicatio omnis
iuris), isto é, abdicação de todos os direitos, incluindo aí a condição de sujeito de direito
e de ser proprietário. O voto de pobreza não é somente o abandono de bens proprie-
tários pretéritos, mas, antes, a constituição de um novo sujeito que prescinde do fecha-
mento proprietário ou identitário para viver.
Nesse cenário, deixamos de observar aquele sujeito de direito individual com “ani-
mus domini” que se apossa para criar direito de propriedade, segundo a tradição jurídica.
Em seu lugar, teríamos um outro “usus”que não se converte em propriedade privada. Esse
uso sem pretensão de apropriação privada converter-se, por fim, em uma “forma de vida”.
Aqui, então, já não teríamos mais a separação entre uma norma abstrata e a sua
subsunção coercitiva sobre a vida. Ao contrário da tradição jurídica moderna em que o
direito é o modelo que a vida deve seguir, essa forma de vida em comunidade (omnia
communia), esse hábito, esse ethos, revela para nós a possibilidade de um direito vivo, em
que a vida em comum se torna a sua própria norma.
Certamente, esse comunismo da forma de vida em comum pode parecer des-
conectado da realidade. E, em verdade, talvez seja esse nosso propósito: não se vincular
à reprodução de um modo de vida proprietário que nos aliena e nos assujeita. Essa

280
também é nossa hipótese comunista por meio da qual “uma subjetivação individual
projeta um fragmento de real político na narração simbólica de uma História” (Badiou,
2012, p. 137). Nosso fragmento do real de uma forma de vida em comum pode parecer
intangível, mas, de todo modo, continuamos a encontrá-lo cotidianamente nas fissuras
das resistências e das insurgências que ocupam a cidade e a vida diretamente sem as
mediações do mercado e do Estado. Por isso, nossa hipótese comunista não se retém
no plano discursivo apenas, mas se direciona ao plano de ação: desativar o direito mo-
derno e em seu lugar projetar uma nova forma de vida em comum.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, G. The highest poverty: monastic rules and form-of-life. Stanford: Stanford University Press, 2003.
ATOS. In: Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave-Maria. Disponível em: <http://www.claret.com.br/biblia/51/
ATOS-DOS-APOSTOLOS>. Acesso em: 31 out. 2014.
BADIOU, A. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012.
BENTHAM, J. The works of Jeremy Bentham, 1962, v. 1. New York: Russell & Russell. Disponível em: <http://
oll.libertyfund.org/titles/bentham-the-works-of-jeremy-bentham-vol-1>. Acesso em: 31 out. 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 31 out. 2014.
BRASIL. Lei 10406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 31 out. 2014.
CAVA, B. Pachukanis e Negri: do antidireito ao direito do comum. Revista Direito e Práxis, v. 4, n. 6, p. 2-30, 2013.
ESPOSITO, R. Communitas: origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.
ESPOSITO, R. Comunidade, imunidade, biopolítica. E-Misférica, v. 10, n. 1, 2013. Disponível em: <http://
hemisphericinstitute.org/hemi/pt/e-misferica-101/esposito>. Acesso em: 31 out. 2014.
HARDT, M. O comum no comunismo. 07/03/2014. Disponível em: <http://blog.indisciplinar.com/texto-o-co-
mum-no-comunismo-de-michael-hardt/>. Acesso em: 31 out. 2014.
HARDT, M.; NEGRI, A. Imperio. Cambridge Mass: Harvard University Press, 2000.
HARDT, M; NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
HARDT, M.; NEGRI, A. Commonwealth. Cambridge Mass.: Belknap Press of Harvard University Press, 2009.
HARVEY, D. O “novo imperialismo”: ajustes espaço-temporais e acumulação por desapossamento. Lutas
Sociais, n. 13-14 e 15-16, p. 9-21, 2006.
HOLSTON, J. Espaços de cidadania insurgente. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, p.
243-253, 1996.

281
KLEIN, N. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
LEFEBVRE, H. Henri Lefebvre: uma vida dedicada a pensar e a teorizar sobre a luta de classes. Encontros
com a Civilização Brasileira, n. 21, p. 87-108, 1980.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Vozes, 1994.
MACPHERSON, C. B. Property: mainstream and critical positions. Toronto: University of Toronto Press, 1981.
MARCUSE, P. The five paradoxes of public space, with proposals, 14/05/2013. Disponível em: <http://pmar-
cuse.wordpress.com/2013/05/12/blog-33-the-five-paradoxes-of-public-space-with-proposals/>. Acesso
em: 31 out. 2014.
MARX, K. (1844). Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Amtivalor, 2007. Disponível em: <http://
www.marxists.org/portugues/marx/1844/manuscritos/index.htm>. Acesso em: 31 out. 2014.
MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013. (edição Kindle).
MARX, K.; ENGELS, F. (1848). Manifesto do Partido Comunista. Lisboa: Avante, 1997. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/index.htm>. Acesso
em: 31 out. 2014.
PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.
RANCIÈRE, J. Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996.
ROSE, C. M. The Comedy of the commons: custom, commerce, and inherently public property. The Uni-
versity of Chicago Law Review, v. 53, n. 3, p. 711-781, 1986.
ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, 2001. Ridendo Castigat Mores.
Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/desigualdade.html>. Acesso em: 31 out. 2014.

282
O fetiche da Lei e a reforma
urbana no Brasil
Daniel Gaio

Introdução

Passados 26 anos da data em que a Constituição Federal (CF/88) afirmou a centralida-


de do Plano Diretor Municipal – conforme diretrizes gerais fixadas por legislação federal
(art. 182) – para estabelecer como a cidade pode assegurar direitos a todos os seus cida-
dãos, são fartos os diagnósticos de que a esperada inversão de prioridades e a redução das
desigualdades sociourbanísticas não se concretizaram, ainda que tenham existido experi-
ências exitosas em diversos pontos do País.
São inúmeras as causas que explicam esse insucesso, e possivelmente a capaci-
dade de pressão do capital imobiliário foi e é determinante, mas o que se pretende nes-
te trabalho é analisar a relação entre o marco regulatório urbanístico e a efetivação da
reforma urbana no Brasil, e, nesse sentido, debater em que medida a crença excessiva
na institucionalidade e na legislação urbanística não se tornaram um obstáculo para a
concretização do direito à cidade.

Um breve histórico do papel da Lei na implementação


da reforma urbana

O ideário da reforma urbana vem sendo objeto de discussões há pelo menos cinco dé-
cadas, e ainda não há perspectivas claras acerca da possibilidade de sua concretização.
Desde o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963) – realizado em duas etapas
nos municípios de Petrópolis (RJ) e de São Paulo (Bonduki; Koury, 2010) – aos pou-
cos foi se desenvolvendo a ideia de que a criação de um marco regulatório urbanístico
seria um pressuposto fundamental para a democratização do solo urbano, sobretudo
no que se refere à moradia social.
A seguir serão apontadas propostas legislativas e outros documentos afins que em
maior ou menor grau se direcionam para a implementação de uma reforma urbana. Cabe
esclarecer que o sentido de reforma urbana aqui empregado se relaciona com a aplicação
de instrumentos que possibilitem provocar mudanças na estrutura fundiária socialmente
excludente. Por consequência, restam excluídas desse conceito as práticas de renovação
e/ou reestruturação urbana baseadas no modelo haussmaniano.
Conforme mencionado anteriormente, a primeira tentativa mais orgânica de
construção de um marco regulatório urbanístico se iniciou com o Seminário de Habita-
ção e Reforma Urbana, cuja Resolução Final estabeleceu como questão central atribuir à
habitação o status de direito fundamental, exigindo que houvesse limitações ao direito de
propriedade por meio de um conjunto de medidas estatais visando à justa utilização do
solo urbano (Arquitetura, 1963). O papel da Lei, nesse caso, era indispensável, pois a re-
gulação da terra urbana se baseava, dentre outras coisas, na capacidade de financiamento
dos planos de habitação social a serem implementados, sobretudo por meio do imposto
da habitação, que incidiria sobre: i) o registro de loteamentos urbanos; ii) a transferência
de lotes; iii) a transferência de mais de 100 m² de área construída; e iv) a não utilização de
imóveis urbanos (Arquitetura, 1963).
Já na década de 1970 foi intenso o debate para que o Poder Público estabeleces-
se mecanismos tendentes a reduzir a desigualdade – que é intrínseca aos planos urba-
nísticos (Correia, 1998, p. 19) –, de modo que urbanistas, juristas e gestores públicos
defenderam que instrumentos urbanísticos, como o coeficiente único de aproveita-
mento, deveriam possibilitar uma divisão mais equitativa entre todos os proprietários
de imóveis urbanos (Moreira et. al., 1975, p. 8).
Mas foi por meio da Carta de Embu – produzida em fins de 1976 por diversos
juristas e planejadores urbanos – que a ideia do solo criado e da transferência do direi-
to de construir ganhou visibilidade nacional e forte adesão na comunidade acadêmica
por ser considerada uma das soluções para a rápida verticalização das grandes cidades
brasileiras. Isso porque tal proposta foi concebida como instrumento de caráter urba-
nístico com a intenção de controlar a intensificação do uso do solo e a sobrecarga de
demanda de infraestrutura, além de possibilitar a implantação de áreas verdes e equipa-
mentos sociais (Gaio, 2015, p. 222).
Baseava-se o documento na implantação de um coeficiente único para todos os
terrenos urbanos, sendo que toda edificação acima desse patamar deveria ser considera-
da solo criado. O eixo principal da proposta, amparada principalmente na experiência

284
francesa, considerava que a ampliação do coeficiente de aproveitamento implicava sis-
tematicamente o acréscimo da demanda por equipamentos públicos, os quais deveriam
ser custeados por quem pleiteava o benefício (Lira, 1987, p. 57). Por meio da entrega
de áreas à Administração municipal – que seriam destinadas ao sistema viário e à cria-
ção de equipamentos públicos e de lazer –, os proprietários beneficiários do solo criado
ofereceriam à coletividade as compensações necessárias ao reequilíbrio reclamado pela
criação do solo adicional. Veja-se que a proposta se baseia na ideia de proporcionalidade
entre solos públicos e privados, possibilitando que parte dos espaços públicos se desti-
nem à preservação do meio ambiente.
Inegavelmente influenciada pelas propostas defendidas pela Carta de Embu
(1976), a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU)
– vinculada à Secretaria de Planejamento da Presidência da República – apresentou em
1977 o Anteprojeto de Lei de Desenvolvimento Urbano (O anteprojeto, 1977), cujo
conteúdo representava avanços na satisfação dos interesses da coletividade, tais como:
i) condicionamento do direito de construir à função social da propriedade (art. 1º, IV);
ii) recuperação das mais-valias (art. 2º, VIII); iii) urbanização compulsória (art. 44 c/c o
art. 2º, IV, alíneas “d” e “e”); iv) coeficiente de aproveitamento 1, sendo permitida a criação
de solo com contrapartida à municipalidade quando houver conveniência de um maior
adensamento populacional (art. 50 e §1º).
Dentro desse contexto favorável a avanços na reforma urbana, o então Conselho
Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) apresentou em 1982 o Anteprojeto de
Lei de Desenvolvimento Urbano (Documento, 1982). Ainda que tenha retrocedido ao não
ter previsto o coeficiente único de aproveitamento por Lei federal (art. 29), outros avanços
foram apresentados, dentre eles: i) as diretrizes/princípios da justa distribuição dos benefí-
cios e dos ônus decorrentes do processo de urbanização (art. 2º, III, “b”) – atual diretriz do
Estatuto da Cidade (art. 2º, IX da Lei Federal 10.257/01) –, e do fortalecimento do direito
de posse às pessoas de baixa renda (art. 2º, III, “f ”); ii) o estabelecimento de limites à expan-
são urbana; iii) o condicionamento da licença de construir à existência de equipamentos e
serviços públicos (art. 31); iv) a previsão de contrapartida ao Poder Público em virtude de
mudança dos parâmetros urbanísticos (art. 33); v) a edificação compulsória (art. 34).
Algumas das medidas acima referidas que possibilitariam um maior controle do Es-
tado sobre a utilização do solo urbano foram duramente contestadas pelo mercado imobi-
liário (Reforma, 1982, p. 16), de modo que o Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano
enviado pelo Governo Federal ao Congresso Nacional em 1983 (A Lei, 1983, p. 15) trouxe
vários retrocessos com o objetivo de desfazer a ideia de que o mesmo seria socializante
(CNDU, 1983, p. 28), destacando-se o deslocamento da regulação para o poder local.
Dessa forma, enquanto alguns mecanismos deixam de ter um condicionamento prévio

285
estabelecido pelo legislador federal – como a ausência de contrapartida em decorrência
da alteração dos parâmetros urbanísticos –, enquanto outros somente seriam aplicados se
houvesse uma deliberação do legislador municipal (ex: o município poderá condicionar a
licença de construir à existência ou à programação de equipamentos urbanos e comunitá-
rios – art. 5º; o município poderá determinar o parcelamento e a edificação compulsórios
– art. 29). De modo geral, percebe-se que há a previsão de instrumentos, porém estes não
possuem vinculatividade, técnica esta que será retomada ao longo deste texto.
Apesar das limitações acima mencionadas, o Projeto de Lei 775/83 sofreu ainda
fortes críticas de setores empresariais relacionados ao mercado de solos e da construção ci-
vil ou diante das resistências do que se considerou uma “intervenção na propriedade priva-
da”, e passou por um longo processo de tramitação, até a sua aprovação, em 2001.1 Contri-
buíram para a referida aprovação: i) a vinculação da efetivação de instrumentos à regulação
local, em que dependeria ainda da correlação de forças existente em cada município; ii) a
incorporação de instrumentos como o solo criado e as operações urbanas – os quais foram
propostos pelas entidades imobiliárias (De Grazia, 2002, p. 30-31) a partir de experiências
concretas em algumas capitais brasileiras; iii) e a percepção de que os setores populares
estavam desmobilizados após tanto tempo de espera (Burnett, 2009, p. 253-254).

As apostas no Estatuto da Cidade

O otimismo com a promulgação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) se insere em um


momento histórico de maior confiança nas instituições públicas em decorrência do pro-
cesso de redemocratização e das promessas daí advindas. Exemplifica bem esse processo
o fato de os movimentos sociais e das ONGs terem apresentado durante o processo cons-
tituinte uma Emenda Popular pela Reforma Urbana com um total de 250.000 assinaturas.
Na década de 1990, multiplicaram-se os conselhos municipais e estaduais de direitos, e
cidades como Porto Alegre (RS), Santo André (SP) e Belo Horizonte (MG) tiveram ex-
periências exitosas de orçamento participativo.
Além da participação mais ativa da sociedade civil organizada, a crença na ins-
titucionalidade para efetivar a reforma urbana foi reforçada pela presença de gover-
nantes com projetos de esquerda em várias capitais do país desde o final da década de
1980 (Costa, 2012, p. 171). Os conteúdos programáticos defendidos por estas ges-
tões em grande parte correspondiam à plataforma dos movimentos sociais urbanos:
política habitacional a fundo perdido ou com fortes subsídios; acesso à terra urbani-

1 Para informações mais completas acerca da tramitação legislativa do Estatuto da Cidade, ver De Grazia
(2002).

286
zada; habitabilidade; cumprimento da função social da propriedade com a eliminação
dos grandes vazios urbanos; recuperação das mais-valias urbanísticas; participação
popular efetiva nos processos decisórios.2
Há de se destacar ainda nesse processo a percepção dos intérpretes do Direito, que
enxergaram na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade a superação da concepção
privatista e liberal do direito de propriedade, o que permitiria o uso social dos imóveis ur-
banos por meio da regularização fundiária de assentamentos informais consolidados, de
programas habitacionais e através da captura das mais-valias (Fernandes, 2006, p. 8-11).
Ainda que tenha registrado a importância da mobilização da sociedade, Fernandes
(2002, p. 10) ressaltou naquele momento que “(...) em grande medida o sucesso – ou não
– da nova lei vai depender da ação dos juristas brasileiros”. Na mesma linha, Saule Júnior
(2001, p. 34) discorreu acerca da relevância dos instrumentos jurídicos do Estatuto da
Cidade, para, ao final, concluir que esta legislação é o marco legal sonhado e desejado por
diversos atores sociais urbanos nas últimas décadas. Aliás, de modo geral, as palestras e
a produção acadêmica apresentada nos Congressos de Direito Urbanístico do Instituto
Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) partiram dos mesmos pressupostos, ou seja, a
importância histórica do referido marco legislativo e a preocupação em conferir efetivida-
de aos instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade.
Esse modo de compreender a legislação urbanística se explica pelo próprio objeto
de atuação dos intérpretes do Direito – o domínio das técnicas jurídicas –, e também pelas
condições historicamente favoráveis à visão privatista do direito de propriedade, tornan-
do-se necessário criar uma nova cultura jurídico-urbanística nas faculdades de Direito, no
Poder Judiciário e no Ministério Público. Em decorrência desse cenário e de construção
de regulamentações e interpretações jurídicas, corre-se o risco de cair em uma armadilha
ao valorizar excessivamente o sistema jurídico como espaço de efetivação de direitos.

O esvaziamento da efetividade das leis urbanísticas


relacionadas à reforma urbana

Após o Estatuto da Cidade completar 10 anos, a Rede Nacional de Avaliação e Capa-


citação para a Implementação de Planos Diretores Participativos realizou uma extensa
pesquisa sobre a efetividade do Plano Diretor nos municípios brasileiros, tendo sido ana-
lisados 526 relatórios municipais, 26 relatórios de estudo de caso, 27 relatórios estaduais
e um relatório nacional (Santos Júnior; Silva; Sant’ana, 2011, p. 21). A razão para eleger o

2 Uma avaliação conjuntural da época em relação à participação da sociedade pode ser encontrada em
Daniel (1994).

287
Plano Diretor como objeto e estudo se deve à opção do legislador constituinte em defini-
-lo como instrumento básico da política urbana (art. 182, §1º, CF/88).
Os resultados da pesquisa em relação à reforma urbana são decepcionantes, como
apontam Oliveira e Biasotto (2011, p. 95):

(...) de maneira geral, os planos diretores pós-Estatuto da Cidade pouco


ou nada avançaram na promoção do acesso à terra urbanizada. Embora
a grande maioria dos planos tenha incorporado os princípios e diretri-
zes do Estatuto – o que, certamente, não é um fato insignificante –, rara-
mente essas orientações se refletiram nos zoneamentos, nos parâmetros
urbanísticos definidos, na regulamentação dos instrumentos de política
fundiária ou na definição de políticas e medidas voltadas para promover a
democratização do acesso à terra urbanizada e bem localizada.

Diante desse quadro, é necessário refletir a respeito das causas e técnicas que pro-
vocam o esvaziamento da efetividade dos instrumentos que possibilitariam reduzir as de-
sigualdades sociourbanísticas. Uma das técnicas comumente aplicadas consiste no deslo-
camento da competência legislativa para outros entes federativos, notadamente por meio
do fracionando da produção normativa em leis básicas e posteriores regulamentações, de
modo que a concretude do direito em questão dependa de uma sequência de atos.
A estratégia de mitigar e limitar a efetividade de direitos fundamentais já foi adotada
pelo próprio legislador constituinte ao condicionar a aplicação de instrumentos garantido-
res da função social da propriedade a ser realizada pelos municípios à edição de lei federal
regulamentadora (art. 182, § 4º, CF). No mesmo sentido, a Constituição Federal estabe-
lece que “a propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor” (art. 182, § 2º, CF).
Ainda que não seja correto interpretar de modo literal a exclusividade do Plano
Diretor para definir a função social da propriedade – já que esse princípio é materiali-
zado por uma pluralidade de normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais
editadas pelos três entes federativos (Gaio, 2015, p. 161) –, quanto mais tardia for a
densificação da função social da propriedade por instrumentos urbanísticos e ambien-
tais, mais difícil será a sua exequibilidade. Percebe-se que essa “aposta” por parte do
capital imobiliário vem dando certo, como mostra o trabalho relatado por Oliveira e
Biasotto (2011) acerca da inefetividade dos instrumentos relacionados à democratiza-
ção do acesso à terra urbanizada e bem localizada.
As estratégias de procrastinação de instrumentos de reforma urbana também fo-
ram uma marca do Estatuto da Cidade. Com exceção da obrigatoriedade do Plano Di-
retor – aliás já determinada pela Constituição Federal (art. 182, § 1º) –, da garantia de

288
participação popular e dos instrumentos de regularização fundiária (usucapião e conces-
são de uso especial – MP 2.220/01), via de regra o Estatuto da Cidade não estabeleceu
mecanismos vinculativos à gestão do território.
Embora seja desejável levar em consideração a diversidade sociourbanística dos
municípios brasileiros, o Estatuto da Cidade deveria ter estabelecido um conteúdo míni-
mo obrigatório do Plano Diretor mais amplo do que o existente, abrangendo, dentre ou-
tros itens, a espacialização do parcelamento e edificação compulsório combinado com a
definição dos critérios de cumprimento da função social da propriedade, a espacialização
das zonas especiais de interesse social e os mecanismos de recuperação das mais-valias.
Outra medida que progressivamente foi sendo esvaziada após o Anteprojeto de
Lei de 1977 (anteriormente citado) é a definição do coeficiente único de aproveitamento,
instrumento que possui a vantagem de estabelecer uma maior relação de igualdade entre
os proprietários, bem como de favorecer a redistribuição de recursos entre os não pro-
prietários por meio da aplicação da outorga onerosa do direito de construir (solo criado).
Entretanto, com a aprovação do Estatuto da Cidade, estabeleceu-se uma cláusula aber-
ta para que os municípios decidam acerca da modalidade de zoneamento – a partir do
coeficiente variável ou único (art. 28, § 2º da Lei 10.257/01) –, tendo até o momento
prevalecido a pressão exercida pelos incorporadores imobiliários nos Poderes Executivo
e Legislativo locais, de modo que poucas foram as cidades brasileiras que efetivaram o
coeficiente único para toda a zona urbana. Ressalta-se que em momento algum a adoção
do coeficiente único por Lei federal feriria a autonomia municipal, pois ao local caberia
a possibilidade de autorizar um adensamento maior mediante o pagamento de outorga
onerosa onde houvesse condições urbanísticas e ambientais adequadas.
Independentemente da modalidade de zoneamento utilizada, o Estatuto da Ci-
dade definiu a obrigatoriedade de a política urbana observar o princípio da justa dis-
tribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização (art. 2º, IX,
Lei 10.257/01), mas não estabeleceu mecanismos vinculativos para a sua operacio-
nalização. Além do coeficiente único de aproveitamento, a sujeição do referido princí-
pio diretamente pelo Estatuto da Cidade seria possível em outras situações: i) quando
houvesse aumento do potencial construtivo para determinada zona (vide proposta do
Anteprojeto de Lei de Desenvolvimento Urbano de 1982); ii) ao estabelecer contra-
partidas objetivas para o licenciamento de empreendimentos de maior porte; iii) ao
exigir outorga onerosa de alteração de uso rural para urbano.
A percepção do legislador federal de que cabe aos municípios a definição das
contrapartidas se repetiu nas modificações do Estatuto da Cidade sobre a previsão das
novas regras para a ampliação do perímetro urbano (Lei 12.608/12). Embora a referida
normativa contenha avanços, como a instituição de mecanismos para garantir a justa

289
distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização do territó-
rio de expansão urbana e a recuperação de mais-valias (art. 42-B, VII, Lei 10.257/01),
os resultados seriam mais efetivos se o próprio Estatuto da Cidade delimitasse os con-
tornos jurídicos de sua aplicação, citando-se como exemplo a outorga onerosa de alte-
ração de uso rural para urbano.
Nessa alteração do Estatuto da Cidade (art. 42-B), constata-se a existência de ape-
nas um exemplo de contrapartida já definida pelo legislador federal, a “previsão de áreas
para habitação de interesse social (...) quando o uso habitacional for permitido” (art. 42-B,
V, Lei 10.257/01). Resta aguardar como será a postura dos legisladores municipais quan-
to ao grau de exigência das áreas para habitação social. Entretanto, não será difícil supor
que muitos prevejam percentuais irrisórios em locais inacessíveis e com topografia irre-
gular. Solução diversa seria o Estatuto da Cidade fixar um percentual mínimo para habi-
tação social – que, aliás, deveria ser estendido aos loteamentos/condomínios horizontais
situados nas demais áreas urbanas –, além de estabelecer uma programação temporal de
urbanização para as áreas de expansão nas cidades, sob pena de se repetir o histórico pro-
cesso de especulação imobiliária.

Direito, ideologia e legitimação

Embora existam muitos exemplos de leis e políticas redistributivas, o papel histórico


conferido ao Estado em um sistema capitalista é o de atender aos interesses da classe do-
minante (Monreal, 1988, p. 180). O fato de o aumento do processo de acumulação do
capital imobiliário nas cidades ter colaborado decisivamente para a elevação do valor do
solo e a consequente redução da capacidade de compra da casa própria pelos estratos
médios e baixos da população mostra o quanto é fraca a regulação do mercado fundiário
pelo Poder Público.
Ora, a ação ou omissão do ente público acerca da regulação do solo urbano pos-
sibilita afirmar que é falsa a crença de que o Direito é neutro, ele “é parcial, pois traduz
vontade política e encerra determinada dimensão valorativa” (Portanova, 1992, p. 65).
Portanto, torna-se imperioso analisar se o Direito tem desempenhado um papel transfor-
mador da realidade ou se tem se constituído um obstáculo à efetivação da reforma urbana.
Já foi dito que a aprovação do Estatuto da Cidade foi fruto de um longo proces-
so de reivindicação dos setores comprometidos com a concretização do direito à cidade.
Não há também como negar as conquistas advindas dessa legislação e de outras que re-
gulamentaram a obrigatoriedade do Plano Diretor participativo e dos instrumentos de
regularização fundiária (usucapião, concessão de uso especial, demarcação urbanística, e

290
legitimação da posse3). Mas pergunta-se, o Estatuto da Cidade não foi também responsá-
vel por ocasionar desmobilização social e legitimação da realidade sociourbanística?
Nesse sentido, pode-se aplicar ao Estatuto da Cidade a premissa defendida por
Monreal (1988, p. 181) quando diz que “(...) basta que as normas sejam introduzidas nas
vias de expressão formal do Direito para que, do ponto de vista “jurídico”, o objetivo pró-
prio tenha sido alcançado”. Continua o referido autor: “(...) não faltam casos, nos quais
a classe dominante, como meio para acalmar exigências sociais justas de outras classes,
concordam em editar as leis (...), com a certeza de que, em sua aplicação, ocorreria o des-
virtuamento que melhor lhe conviesse” (Monreal, 1988, p. 182).
No mesmo sentido aponta Santos (1983, p. 141):

(...) historicamente a função política geral do Estado consiste em disper-


sar as contradições sociais e as lutas que elas suscitam de modo a mantê-
-las em níveis tensionais funcionalmente compatíveis com os limites es-
truturais impostos pelo processo de acumulação e pelas relações sociais
de produção em que ele tem lugar.

Afirma Baldez (2003, p. 83) que é propositada a estratégia de retirar os movimentos


populares do campo político para imobilizá-los na teia jurídica. Portanto, o descolamento
da política para o jurídico é interessante para o sistema, fato este percebido pelo movimento
social de reforma agrária, que historicamente resiste em aderir à institucionalidade.
Ainda que o campo normativo possibilite em alguns casos a efetivação de direitos,
alguns teóricos denunciaram que as legislações urbanísticas – em especial o Plano Dire-
tor Municipal – podem se caracterizar uma ficção jurídica se não houver uma articulação
entre a Lei e a gestão (Osório; Menegassi, 2002, p. 52; Burnett, 2009, p. 141). Nesse caso,
as normativas urbanísticas podem cumprir uma função ideológica de legitimar as desi-
gualdades porque são consideradas portadoras do interesse da coletividade (Resende,
1982, p. 119-120). Essa também é a percepção de Maricato (2000, p. 124) ao afirmar que
no Brasil o planejamento urbano modernista/funcionalista foi importante instrumento
de dominação ideológica, tendo contribuído para ocultar a cidade real e para a formação
de um mercado imobiliário especulativo.
O Estatuto da Cidade também cumpriu esse papel de legitimação, pois acreditou-
-se que este seria um marco divisório nos processos de apropriação do solo. A crença na
democratização do solo fez com que os movimentos sociais urbanos e técnicos compro-
metidos com a reforma urbana priorizassem a aprovação do Plano Diretor Municipal e a
adoção de estratégias jurídicas para a concretização dos instrumentos urbanísticos, prin-

3 Vide a Lei 10.257/01, a MP 2.220/01 e a Lei 11.977/09.

291
cipalmente os relacionados à regularização fundiária. Essa confiança excessiva na institu-
cionalidade e a falsa percepção de que a mera existência de um aparato legal traria avanços
sociais (fetiche da Lei) foram decisivas para abrandar as críticas acerca das lacunas e das
contradições do Estatuto da Cidade, mas sobretudo tirou o foco do problema central:
detectar os processos e as estratégias de resistência em tornar reais os avanços prometidos
pela referida Lei federal. Como afirma Harvey (2011, p. 336), “damos a impressão de ser
incapazes de pensar para além das estruturas e normas estabelecidas”.
Estas resistências ao cumprimento das funções sociais da cidade (art. 182, caput,
CF/88) começaram antes mesmo do Estatuto da Cidade – como, aliás, alertaram Aran-
tes (2000) e Vainer (2000) –, por meio de um processo que provocou o esvaziamento do
Plano Diretor Municipal e colocou em destaque o conceito de cidade-empresa – isto é,
a ideia de que uma cidade competitiva tem a função de atrair capitais externos e que tem
como principal característica a criação de novos arranjos institucionais, como as negocia-
ções entre Poder Público e os empreendedores privados para definir os destinos locais.
Esse fenômeno de mercantilização da cidade tem se estruturado na flexibilização
do uso do solo e na desregulamentação urbanística, criando cidades de exceção por meio
de regras ad hoc que geram descontinuidades no seu espaço legal (Vainer; Oliveira; Lima
Júnior, 2012, p. 16). A viabilização jurídica dessa estratégia se baseou em instrumentos
como a operação urbana consorciada e a outorga onerosa do direito de construir a partir
do coeficiente variável, os quais foram inseridos no Estatuto da Cidade por solicitação do
próprio mercado imobiliário. Embora não seja objeto deste trabalho a análise da constitu-
cionalidade destas regras ad hoc, resta evidente que o processo de planejamento participa-
tivo, previsto pela Constituição Federal (art. 182) e pelo Estatuto da Cidade (arts. 39, 40
e 43 da Lei 10.257/01) para assegurar a concretização das funções sociais da cidade, vem
sendo sistematicamente violado em municípios como Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Ainda que o descumprimento do texto constitucional e do Estatuto da Cidade es-
teja sujeito a invalidações judiciais, conclui-se que o não cumprimento dos instrumentos
relacionados ao usufruto equitativo da cidade não vai se resolver no meio jurídico, mas por
meio da política (Oliveira; Biasotto, 2011, p. 95). Como afirma Maricato (2013, p. 92):

(...) concentrar os esforços nas conquistas legais formais (o que tem


sido frequente no meio profissional e mesmo na esquerda) conduz ao
fetichismo ou a à mistificação dos instrumentos jurídicos, como se eles
trouxessem a solução em sua formulação técnica.

Ou seja, creditar à Lei o papel principal de efetivação da reforma urbana signifi-


ca esvaziar a ação política dos movimentos sociais, tornando-os reféns de um complexo
conjunto de mecanismos de dispersão adotados para fragmentar e neutralizar suas rei-

292
vindicações – com o deslocamento de competências legislativas e administrativas, a frag-
mentação institucional no mesmo âmbito de governo, a remissão a leis regulamentadoras,
a judicialização, as alegações orçamentárias não transparentes, a instituição de conselhos
institucionais não paritários e a cooptação política de conselheiros, o que desmobiliza a
luta por direitos na proporção em que o tempo passa.
Enquanto isso, corre-se o risco de perpetuar o que Bolaffi já alertava em 1975,
quando apresentou estudo na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC):

Nos últimos anos, perante uma realidade que já não pode ser ignorada,
políticos e tecnocratas despertaram para o problema da deteriorização da
qualidade da vida urbana. Mas, ao contrário do que faziam os arquitetos
na época em que os debates públicos atingiam a raiz dos problemas, pro-
cura-se agora obscurecer o fenômeno, confundindo-o com os processos
naturais. O empobrecimento e a deteriorização das cidades são apresen-
tados à população como um processo orgânico de envelhecimento na-
tural, ou de crescimento excessivo, e não como a consequência direta da
economia política vigente (Bolaffi, 1976, p. 83).

Conclusão

Embora não se possa desconsiderar todos os avanços legais e institucionais obtidos no


campo sociourbanístico ao longo das últimas décadas no Brasil, o fato de os planos di-
retores pós-Estatuto da Cidade pouco ou nada terem avançado na promoção do acesso
à terra urbanizada exige uma postura mais crítica do meio acadêmico e dos planejadores
urbanos acerca da mistificação dos instrumentos jurídicos.
Diante das circunstâncias históricas é compreensível o otimismo gerado com os no-
vos marcos regulatórios urbanísticos pós-Constituição Federal de 1988 (Estatuto da Cidade
e Plano Diretores municipais). Mas em um cenário de inefetividade de direitos e de aumento
da desigualdade nas cidades – ocasionados pela especulação imobiliária e pela concentração
de recursos públicos em áreas ricas ou que sejam de interesse dos investidores privados –, a
questão central parece ser primeiramente identificar os atores beneficiados pela regulação
do solo urbano e para onde são direcionados os investimentos públicos.
Este artigo aposta na importância de aprofundar a análise sobre as estratégias de fe-
tichização da Lei, ou seja, explicitar os mecanismos jurídico-institucionais utilizados pelo
Estado para manter a exclusão social e desmobilizar os movimentos sociais, ainda que for-
malmente objetivem realizar a reforma urbana. Defende-se que certas formulações técnicas
e apropriações de linguagens relacionadas à efetivação genérica de direitos, que impedem a
realização de mudanças na apropriação do solo urbano, são instrumentalizadas por um con-
junto de estratégias, tais como: os deslocamentos de competência legislativa, as remissões às

293
legislações regulamentadoras, a ausência de vinculação dos instrumentos jurídicos à gestão
do território, a não espacialização de instrumentos urbanísticos que objetivam concretizar a
função social da propriedade, a prioridade em alocar recursos públicos em operações urba-
nas consorciadas e em grandes projetos urbanos em detrimento das áreas pobres.

REFERÊNCIAS
O ANTEPROJETO. Jornal da Tarde, maio 1977.
ARANTES, Otília B. F. Uma estratégia final: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, Otília;
VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos.
Petrópolis: Vozes, 2000. p. 11-74.
ARQUITETURA, Seminário de Habitação e Reforma Urbana. Arquitetura, Rio de Janeiro, n. 15, p. 17-24,
set. 1963.
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. A luta pela terra urbana. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO,
Adauto (Org.). Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de
Janeiro: Revan, 2003. p. 71-92.
BOLAFFI, Gabriel. Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema. Cadernos (Universidade de São
Paulo – Centro de Estudos Rurais e Urbanos), São Paulo, n. 9, p. 65-85, 1976.
BONDUKI, Nabil; KOURY, Ana Paula. Das reformas de base ao BNH: as propostas do Seminário de Habi-
tação e Reforma Urbana. Arquitextos, maio 2010. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/
read/arquitextos/10.120/3432>. Acesso em: 06 ago. 2014.
BURNETT, Carlos Frederico Lago. Da tragédia urbana à farsa do urbanismo reformista: a fetichização dos pla-
nos diretores participativos. São Luís, 2009. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas da Universidade Federal do Maranhão.
CORREIA, Fernando Alves. Problemas actuais do direito do urbanismo em Portugal. Revista do Centro de
Estudos de Direito do Ordenamento do Urbanismo e do Ambiente, Coimbra, n. 2, p. 9-32, 1998.
COSTA, Maria de Fátima Tardin. Ideologia e utopia no ocaso da reforma urbana no Brasil. Rio de Janeiro, 2012.
Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
DANIEL, Celso. Gestão local e participação da sociedade. Pólis, São Paulo, n. 14, p. 21-41, 1994.
DE GRAZIA, Grazia. Estatuto da cidade: uma longa história com vitórias e derrotas. In: OSÓRIO, Letícia
Marques (Org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002. p. 15-37.
DOCUMENTO. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 16-17, 27 jan. 1982.
FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade: o grande desafio para os juristas brasileiros. In: II CONGRES-
SO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO. Porto Alegre: Evangraf, 2002. p. 9-12.

294
FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. In: FERNANDES, Edésio Fernandes;
ALFONSIN, Betânia Alfonsin (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizon-
te: Del Rey, 2006. p. 3-23.
GAIO, Daniel. A interpretação do direito de propriedade em face da proteção constitucional do meio ambiente urba-
no. Rio de Janeiro: Renovar, 2015.
HARVEY, David. Espaços de esperança. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
A LEI do solo, na íntegra. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 155, maio 1983.
LIRA, Ricardo César Pereira. A propriedade urbanística. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 300, p. 53-59, 1987.
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: planejamento urbano no Brasil. In:
ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (Org.). A cidade do pensamento único: desman-
chando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 121-192.
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1988.
MOREIRA, Antonio Cláudio Moreira Lima et. al. O solo criado. São Paulo: CEPAM, 1975.
OLIVEIRA, Fabrício Leal de; BIASOTTO, Rosane. O acesso à terra urbanizada nos planos diretores bra-
sileiros. In: SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves; MONTANDON, Daniel Todtmann (Org.). Os planos
diretores municipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital/Ob-
servatório das Metrópoles/IPPUR/UFRJ, 2011. p. 57-96.
OSORIO, Letícia Marques; MENEGASSI, Jacqueline. A reapropriação das cidades no contexto da globali-
zação. In: OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e reforma urbana: novas perspectivas para as
cidades brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002. p. 39-60.
PARA CNDU, plano não é socializante. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 285, maio 1983.
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992.
REFORMA urbana vista como “forte demais”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 16, 29 jan. 1982
RESENDE, Vera. Planejamento urbano e ideologia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
SANTOS, Boaventura de Souza. O direito e a comunidade: as transformações recentes da natureza do po-
der do Estado nos países capitalistas avançados. Direito e Avesso – Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, n.
3, p. 139-163, jan.-jul. 1983.
SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves; MONTANDON, Daniel Todtmann. Síntese, desafios e recomenda-
ções. In: ____. (Org.). Os planos diretores municipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas.
Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles: IPPUR/UFRJ, 2011. p. 27-56.
SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves; SILVA, Renata Helena; SANT’ANA, Marcel Claudio. Introdução. In:
SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves; MONTANDON, Daniel Todtmann (Org.). Os planos diretores muni-
cipais pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das
Metrópoles/IPPUR/UFRJ, 2011. p. 13-26.

295
SAULE JÚNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade – instrumento de reforma urbana. Caderno Pólis, São Paulo,
n. 4, p. 10-37, 2001.
VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria – notas sobre a estratégia discursiva do planejamento
estratégico urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (Org.). A cidade do pen-
samento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 75-103.
VAINER, Carlos; OLIVEIRA, Fabrício Leal de; LIMA JÚNIOR, Pedro de Novais. Notas metodológicas
sobre a análise de grandes projetos urbanos. In: OLIVEIRA, Fabrício Leal de et. al. (Org.). Grandes projetos
metropolitanos: Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Letra Capital, 2012. p. 11-23.

296
Do momento-espaço político: o momento
político e o espaço diferencial
Natália Lelis

Apesar de você / amanhã há de ser / outro dia (...)1


Chico Buarque

Introdução

Nesta breve reflexão,2 propomos construir uma possibilidade de aproximação entre a abor-
dagem da política em Rancière (1996a; 2005; 2014) e a discussão do espaço diferencial em
Lefebvre (1975; 1991). Com isso, buscamos tanto explorar o pensamento do espaço dife-
rencial como mundo dentro do mundo, que o questiona mas faz parte dele também, quanto
contribuir para o pensamento crítico a respeito dos posicionamentos que se constroem a
partir de alguns eventos e algumas discussões contemporâneas no Brasil.
A realidade experimentada suscita reflexões, e alguns eventos nas dinâmicas da re-
alidade, aqueles que deixam o pensamento instituído “no ar”, suscitam não apenas novas
reflexões, mas uma busca por outras maneiras e outras associações reflexivas que permitam
outras aproximações. As manifestações de junho de 2013 no Brasil parecem provocar esses
ímpetos interpretativos. Não raro, as reflexões acadêmicas que ocorrem a posteriori desses
momentos tentam, antes que construir novas formas de pensar, acomodar esses aconteci-
mentos a velhos modelos, a torná-los quase que ilustrações de problematizações prévias.
Outras vezes, o movimento da reflexão teórica que contribui para determinados
engajamentos, ao se tornar, ele mesmo, uma luta pela sua realização, se esvazia de sua poiesis
política e passa a se dedicar ao aperfeiçoamento da ordem, algumas vezes, sem consciên-

1 As citações de Chico Buarque utilizadas são trechos da letra da música de sua autoria “Apesar de você”,
escritas no contexto de e como crítica à ditadura militar no Brasil.
2 O delineamento preliminar que aqui se apresenta marca o início de uma reflexão a se aprofundar no
processo de pesquisa de Doutorado.
cia quanto a essa nova posição. O pensamento crítico se deixa engolir pela sedução de ver-
se realizado. Rancière e Lefebvre propõem que a reflexão crítica não apenas problematize
essas formas de interpretação, mas também se estruture de formas outras. Rancière apon-
ta o problema da verdadeira política tal como entendida pelos filósofos. Esse problema,
de acordo com o autor, leva à tentativa de realização da verdadeira política, que é, de fato,
a realização da filosofia política no lugar da política. Para Lefebvre esse problema pode ser
demonstrado através da diferença entre a busca de realização do espaço verdadeiro pelos
filósofos e a compreensão da verdade do espaço. Os posicionamentos criticados por esses
dois autores podem ser percebidos tanto no enquadramento teórico da prática quanto
na definição de sujeitos e pautas precisos para ela. Tais posicionamentos reconstroem a
ordem, e eles não criam mundos. Mundos foram criados naqueles momentos não pres-
critos, poéticos. As ocupações urbanas talvez apresentem esse aspecto de, ao se tornarem
projetos de concretização de ideais, terem sua dimensão política criadora subestimada.
A cena política caracterizada por Rancière, que institui uma ruptura na ordem so-
cial, pode ser entendida como a criação provisória (ou fugaz) de um mundo que difere
do mundo dado, que realiza, ainda que efemeramente, um mundo diferente. Um espaço
diferencial, tal como definido por Lefebvre. A despeito do fato de que a força e a potência
desse outro mundo tendam a se dissolver em sua inexorável incorporação pela ordem
social, há alguma reconfiguração nessa ordem.
Neste trabalho, propomos a aproximação dos conceitos de momento político
em Rancière e de espaço diferencial em Lefebvre como parte da construção de cami-
nhos interpretativos. Buscamos nos pautar pela explicitação da contradição, do conflito,
do que rompe e do que cria, como dimensões essenciais da reflexão sobre as dinâmi-
cas urbanas. Mais que a conhecida oposição entre reforma e revolução, privilegiamos
a dialética do previsível e do imprevisível, do que se dá ao entendimento na lógica do
pensamento moderno (marcado pela ideia de coerência) e daquilo que a desafia. Esse
tipo de reflexão tenta contribuir para uma forma de conhecer que se entende compro-
metida com o que costumamos chamar de “prática transformadora”. Tentamos formu-
lar algumas questões quanto à relação do que é proposto como pensamento ou prática
com o tipo de horizonte que orienta a proposta. É nesse sentido que acreditamos que a
construção teórica aqui apresentada se justifica.
De um lado, pode ser pretensioso (ou ingênuo) considerar que se trata de um pe-
queno germe de espaço revolucionário e que de alguma forma ele contribui para o pro-
cesso em direção à realização da sociedade urbana (no sentido de Lefebvre, 1999). De
outro, essa realização seria impossível sem esses espaços-momentos: sem eles, o espaço
abstrato, a ordem, seria total. E de ainda outro, tratar-se-iam de concretizações fugazes da
realidade urbana, o que ela é, poderia ser, em cada momento-espaço?

298
Na estruturação do texto, iniciamos com uma breve revisão conceitual dos princi-
pais autores de referência. Em seguida, apresentamos dois exemplos de casos, as manifes-
tações de junho de 2013 e as ocupações urbanas organizadas, e a partir da reflexão sobre
eles aprofundamos o debate conceitual. À guisa de considerações finais, procuramos des-
tacar possíveis contribuições desse raciocínio para o debate e a prática urbanos.

Momento político e espaço diferencial:


a instituição política de outro mundo
Inda pago pra ver / o jardim florescer / qual você não queria (...)
Chico Buarque

Henri Lefebvre (1991), ao caracterizar o espaço abstrato, aquele do capitalismo por exce-
lência, aponta sua tendência à homogeneização, à supressão das diferenças. As propostas
e as realizações socialistas não teriam conseguido romper com essa lógica, e talvez tenham
acentuado ainda mais a homogeneização, realizando um espaço totalitário.
Há, em Lefebvre, também uma vinculação histórica dos grandes tipos de espaço.
Antes da emergência do sistema capitalista de relações de produção, o espaço era absolu-
to, essencialmente religioso. Hoje vivemos (n)o espaço abstrato.

O espaço abstrato se relaciona negativamente com aquele que o precede


e suporta – nominalmente, o histórico e político-religioso. Ele também
se relaciona negativamente em relação àquele que carrega consigo e que
almeja emergir dele: um espaço-tempo diferencial (Lefebvre, 1991, p.
50, tradução nossa).

Depois dele, à realização da sociedade urbana, corresponderia um espaço novo,


que acentua as diferenças: o espaço diferencial.

Eu chamo esse novo espaço de “espaço diferencial”, porque, uma vez que
o espaço abstrato tende para a homogeneidade, para a eliminação das
diferenças ou peculiaridades, um novo espaço não pode nascer (ser pro-
duzido), a menos que ele acentue as diferenças (Lefevbre, 1991, p. 52)

O autor aponta diferenças que acontecem no seio do espaço hegemônico e que


tanto podem ser diferenças mínimas, que fazem parte daquela ordem como outras di-
ferenças, mais significativas e que podem caminhar no sentido de subverter a ordem e
criar outra ordem hegemônica. Ele dá o exemplo do processo que culmina na ruptura
do espaço absoluto medieval com a afirmação do espaço abstrato. Da leitura do espaço

299
diferencial lefebvriano, especialmente em sua vinculação histórica, poderia haver ao me-
nos três entendimentos (não exatamente contrapostos): o espaço depois da revolução
urbana, o espaço das sementes da revolução urbana e o espaço escavado em pleno espaço
abstrato, produzindo rupturas e, daí, reconfigurações. Neste texto, buscamos desenvolver
essa última forma de entender o espaço diferencial em Lefebvre.

A reprodução das relações sociais de produção dentro desse espaço inevita-


velmente segue duas tendências: a dissolução de velhas relações e o nasci-
mento de novas relações. Assim, a despeito de – ou antes por causa de – sua
negatividade, o espaço abstrato carrega dentro dele mesmo as sementes de
um novo tipo de espaço (Lefebvre, 1991, p. 52, tradução nossa).

Esse sentido parece contribuir para pensar tanto as fragilidades da ordem tanto
quanto seus mecanismos de reconfiguração.
No processo de perpetuação de uma ordem social, as perturbações são reabsorvi-
das, a ordem se reconfigura – modificando-se sem desintegrar, sem alterar sua essência.
Em outras palavras, a reprodução das relações de produção comporta também aspectos
de produção, ainda que dentro de certos limites. As pequenas ou provisórias perturbações
algumas vezes realizam rupturas, que demonstram esteticamente, materialmente, que há
outras possibilidades, que a ordem instituída não define o único possível. E que as outras
configurações podem acontecer sem projetos ou prescrições do pensamento crítico, não
menos institucionalizado. Lefebvre considera que o saber institucionalizado é uma forma
de poder e de manutenção das relações que instituem esse poder, assim, esses outros pos-
síveis teriam necessariamente de romper com a prescrição. “Manipular as pessoas, tê-las
nas mãos, conhecer os procedimentos de manipulação, não é acaso um prazer, quiçá um
prazer supremo do mundo moderno?” (Lefebvre, 1975, p. 65, tradução nossa). As formas
muitas vezes brutais como esses outros espaços são combatidos – esvaziados, destruídos,
desqualificados – dão uma noção do seu potencial de ruptura no espaço abstrato.
O espaço diferencial tem uma dimensão material, sensível. Tal como o espaço ab-
soluto e o abstrato, ele se realiza.

A reconstrução do sujeito individual se concebe na medida em que sua


construção se realiza efetivamente (praticamente) a partir do corpo, cujas
atividades e capacidades têm sido desconhecidas durante muito tempo.
(Lefebvre, 1975, p. 92-93, tradução nossa, grifo do autor).

A ideia de um espaço material que realiza e acentua a diferença em oposição a um


espaço homogêneo, que massacra a diferença e que se pretende total, pode apresentar con-
vergência com a noção de um momento que se realiza materialmente, que é estético e que

300
tem precisamente nesse caráter uma dimensão política: faz existir algo novo e diferente, fora
da ordem social estabelecida, que se impõe como presença reconhecível e reconhecida nela.
Essa é a própria concepção de política em Jacques Rancière (1996a). Para esse
autor, a ordem instituída corresponde à polícia.
Ela define um regime estético específico, que dá a cada um uma parte, que coloca
cada um em seu lugar e que define, a partir desse lugar, graus de visibilidade e de audibi-
lidade. O mundo sensível é, assim, o mundo partilhado dentro de uma ordem específica
(Rancière, 2005). O momento político é aquele da instituição de uma presença sensível no
mundo, é um tomar a palavra, é um surgir na cena visível do mundo. O dissenso é uma si-
tuação que diz respeito à situação daquele que fala, antes de ao que é falado. É a ruptura na
ordem instituída. Essa ruptura provoca um rearranjo, uma reconfiguração, uma outra polícia.
Assim, apenas o momento de concretização desse “nus sumus, nus existimos” (Ran-
cière, 1996a, p. 48) é, para ele, considerado como política.
O caráter estético do ato político é enfatizado por Rancière,3 uma vez que o mo-
mento político de Rancière é uma instituição prática-sensível de mundo.

A invenção política opera-se em atos que são ao mesmo tempo argu-


mentativos e poéticos, golpes de força que abrem e reabrem tantas vezes
quanto for necessário os mundos nos quais esses atos de comunidade
são atos de comunidade. Eis por que o poético não se opõe ao argumen-
tativo. É também porque a criação dos mundos estéticos litigiosos não é
a simples invenção de linguagens aptas a formular problemas intratáveis
nas linguagens existentes (Rancière, 1996, p. 70, grifo do autor).

Nesse sentido, se o momento político rancieriano é estético, ele é espacial. Daqui


se propõe retomar o conceito de espaço diferencial para pensar em um momento-espaço
político, que fende a ordem espacial abstrata (e policial), que impõe um outro espaço,
não totalmente prescrito, caracterizado por uma estruturação efêmera de corpos, objetos
e práticas que rompem com a homogeneização ordenada.

3 É importante, no entanto, marcar o sentido em que ele usa o termo: “Existe, portanto, na base da
política, uma estética (...) pode se entendê-la (...) como o sistema das formas a priori determinando o
que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído
que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A
política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência
para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. / É a partir dessa
estética primeira que se pode colocar a questão das práticas estéticas, no sentido em que entendemos,
isto é, como formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que fazem no que diz
respeito ao comum” (Rancière, 2005, p. 16-17, grifos do autor).

301
A relação entre o político e o diferencial chega a ser tangenciada em Lefe-
bvre: “A diferença se realiza no mundo extra filosofia, aquele da tragédia e
da música, da cotidianidade e do esforço para transformar o cotidiano, o
mundo das lutas políticas.” (Lefebvre, 1975, p. 84, tradução nossa.)

A não fixidez e não fixabilidade do momento-espaço político, bem como os pro-


blemas dos “projetos” que tentaram instituí-lo como ordem cotidiana, são apontados pe-
los dois autores:

Em política, um sujeito não tem corpo consistente, ele é um ator inter-


mitente, que tem momentos, lugares, ocorrências e cujo caráter próprio
é o inventar, no duplo sentido, lógico e estético, desses argumentos e de-
monstrações para colocar em relação a não relação e dar lugar ao não lugar
(Rancière, 1996a, p. 95, grifos do autor).

Além disso, há em Rancière e em Lefebvre, embora talvez mais claramente no se-


gundo, uma noção de que a força criadora que é a construção de um momento-espaço
político, o espaço diferencial realizado, se torna uma força transformadora que de fato
transforma pouco da ordem social, mas não é de maneira alguma irrelevante:

o pensamento diferencialista apoia as diferenças revolucionárias e as re-


voluções diferentes. Retoma e lança à luz novamente o projeto marxista
de uma revolução máxima (total), projeto abandonado a um lado do ca-
minho. Mostra que sem essa ideia de revolução total (o impossível-possí-
vel) não existe nenhum projeto, nenhuma ação, nenhuma conquista, ne-
nhuma reforma. Para obter o menos, é necessário pensar e querer o mais:
querer tudo, isto é, querer mudar a totalidade criando outra totalidade
(Lefebvre, 1975, p. 109-110, tradução nossa).

Há uma distância entre o horizonte revolucionário que essa poética permite vis-
lumbrar e a ordem nano modificada que dela resulta. Daqui se cria uma noção de proces-
so de transformação cujas diferentes apropriações sustentam diferentes práticas orienta-
das para o mesmo horizonte.
Uma delas se expressa na busca da constante valorização de todas as conquistas
formais alcançadas através das lutas dos movimentos sociais organizados. A constituição
de alguns direitos, nesse caso, configura um esboço da transformação, pode e deve am-
pliar-se. Ao conceber o momento político como culminação de algo que é um processo,
que a ruína do espaço policial ocorre aos poucos e continuamente, então é possível de-
finir a institucionalização da participação como elemento de um processo político. Uma
aparência de democracia se torna um ponto do processo que vai da tirania explícita ou do

302
totalitarismo declarado para um regime democrático. O que no caso brasileiro particu-
larmente seria um considerável avanço nessa direção, levando em conta as características
históricas das formas de exercício do poder. Os espaços policiais tendem a ser lentamente
e sistematicamente reconfigurados, em todas as suas dimensões. As incongruências entre
as práticas participativas e os processos de democratização devem ser tratadas com uma
certa condescendência, considerando que podem e devem ser superadas sem mudar sua
lógica. As críticas são menos incisivas porque é mais importante ampliar o processo que
prendê-lo nos apontamentos de suas contradições. As críticas mais contundentes tendem
a ser desqualificadas como discursos ingênuos e ou como alimento para o não reconhe-
cimento dessas conquistas, que poderia levar à desconstrução dos direitos. As práticas
orientadas por esse entendimento se centram no envolvimento com as lutas pelo reco-
nhecimento formal do direito à cidade decomposto em uma série de direitos específicos,
como moradia, saneamento ambiental e mobilidade urbana, e no envolvimento com as
práticas de planejamento participativo institucionalizado.
Outro entendimento possível dessa dialética entre produção e reprodução é que
apenas uma prática revolucionária vislumbra horizontes revolucionários. Isto é, ainda que
se tenha consciência de que cada outro mundo realizado se torne cada vez menos diferen-
te, trata-se essencialmente de outro mundo. As práticas que resultam desse entendimento
buscam construir mundos outros primeiro e depois lidar com sua absorção.
O envolvimento é com a criação e realização de direitos antes que por sua solicitação
ao Estado. O caso das ocupações urbanas parece se aproximar dessa constituição (política, liti-
giosa) do direito através da constituição (política, litigiosa) do mundo. Ainda que em segundo
momento as ocupações tenham que se entender de alguma forma com a lógica jurídica do
Estado para permanecerem, a poesia já está feita, o espaço diferencial se escavou no espaço
abstrato. Os duelos de MCs e as arquiteturas extranorma assessoradas que se constroem são
outras práticas que se realizam como diferença, ainda que em algum momento se tornem me-
nos diferentes. As manifestações de junho, pelo seu caráter de efemeridade, realizam o espaço
público como lugar do direito à festa e não se institucionalizam depois pela repetição. A difi-
culdade em prever quando elas vão acontecer, e com qual força, é uma expressão disso.

As manifestações de junho de 2013 no Brasil: a poética da festa


Você vai se amargar / vendo o dia raiar / sem lhe pedir licença (...)
Chico Buarque

Na ordem socioespacial, lugares, processos e sentidos são ao menos parcialmente predefi-


nidos. Vias são lugares de circulação, desde que os modernismos empreenderam sua morte

303
da rua para o nascimento da via. Protestos têm face e lista de reivindicações definidos. Crí-
tica do Estado, do capitalismo, lutas urbanas, reforma urbana, tudo isso tem pauta, agentes
privilegiados, problematizações. Nos fóruns sociais mundiais se encontram grupos estru-
turados e reconhecidos das lutas sociais urbanas (e rurais), com reivindicações claras, iden-
tificáveis por grupos que se juntam, mas não se misturam – a bandeira da questão racial, a
bandeira da questão de gênero, a bandeira do meio ambiente, e daí por diante. As manifesta-
ções de junho não seguiram essa lógica. Marcadas com pouca antecedência, divulgadas nas
redes sociais, sem pauta definida, sem identidade majoritária. Uma infinidade de cartazes
com os mais diversos dizeres, pessoas das mais variadas idades, cores, rendas, escolaridades,
gostos, endereços, princípios, pensamentos e práticas. Um número considerável de pessoas
sem cartaz. Um turbilhão de multiplicidades, a partir do qual uma infinidade de leituras e
de percepções se puderam construir e até demonstrar, mediante recortes específicos.
Entre essas leituras e percepções há um conjunto considerável que converge para a
expressão de uma insatisfação generalizada com as cidades, com os governos e com todas
as formas instituídas de representação política (no sentido corrente do termo). É quase
evidente que se se perguntasse para qualquer uma dessas pessoas se há uma insatisfação
nesse sentido, ela confirmaria, é quase inegável que existe a insatisfação. E também que as
cidades são pradarias, que há problemas de várias nuances com o Estado brasileiro, com
as formas institucionalizadas da nossa dita democracia. Nesse sentido, há que se concor-
dar com as manifestações como expressões emblemáticas de uma “crise”. Essa análise tem
presença marcante no pensamento crítico institucionalizado: permite confirmar, ilustrar
décadas de crítica às dinâmicas da urbanização brasileira e à sua condução pelo Estado.
Essa dimensão dos eventos teve ainda o papel de dar força e amparo simbólico a ou-
tras lutas, de movimentos constituídos e com pautas definidas, a uma atuação mais incisiva
do Ministério Público em alguns processos, bem como de colocar em pauta a necessidade
de um envolvimento mais direto do pensamento urbano crítico instituído com as diversas
formas de resistência e de lutas urbanas contemporâneas. Em Belo Horizonte (MG), no
seio das manifestações foi formada a Assembleia Popular Horizontal (APH). Composta
por professores e estudantes universitários, especialmente das áreas ligadas aos chamados
estudos urbanos, militantes de movimentos sociais urbanos, moradores de vilas, favelas
e ocupações urbanas e demais interessados, a APH é um espaço de reflexão, informação,
mobilização e debate quanto a questões urbanas atuais. Seu papel tem sido significativo nas
discussões quanto a algumas dinâmicas da gestão urbana no município, como no debate
quanto às operações urbanas consorciadas propostas e ou em andamento e na ocupação
mais significativa de espaços de participação social, como o Conselho Municipal de Políti-
ca Urbana (COMPUR) e a Conferência Municipal de Política Urbana. Vale lembrar, ain-
da, as paralisações realizadas pelos garis e pelos professores no Rio de Janeiro, que demons-

304
traram uma força e uma energia de resistência renovadas. Por fim, observa-se um aumento
da atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos conflitos fundiários urbanos
em favor do cumprimento dos direitos e garantias constitucionais aos pobres. Tudo isso se
inscreve e cabe nas formas precedentes de pensar as dinâmicas socioespaciais urbanas no
Brasil. Se, por um lado, a leitura que interpreta as manifestações de junho e seus possíveis
desdobramentos por esse viés é pertinente e contribui para fortalecer a crítica e a mobili-
zação urbana, por outro, há também um risco. Em termos dos chamados estudos urbanos,
bem como da prática do planejamento urbano, ele tem um sentido ligado àquele apontado
por Lefebvre para a política: “A indiferença e a diferença institucionalizada se sustentam
mutuamente” (Lefebvre, 1975, p. 1, tradução nossa) Trata-se do enquadramento ao exis-
tente, que exclui a dimensão do novo e esvazia o potencial da dialética possível-impossível
a partir da exclusão da dialética pensável-impensável, previsível-imprevisível.
Nas análises das manifestações de junho de 2013, um aspecto menos abordado é
o da festa (no sentido lefebvriano) que aqueles eventos talvez apresentassem. É provável
que mais da metade das pessoas encontradas nas manifestações, sem apresentação prévia
de algumas opções, não soubessem apresentar (espontaneamente) qualquer reivindica-
ção que as tivessem motivado a estar ali. E raramente essas pessoas estavam sozinhas. Es-
ses acontecimentos transformaram avenidas em espaço de festa, de encontro, de ser ao
mesmo tempo sujeito e expectador dos conflitos, impuseram uma presença pelo prazer
(ainda quando produzido pelo Facebook) de estar ali. Significaram tomar à força e quase
que distraidamente o direito à rua, à multidão, à manifestação sem partido, sem sindica-
do, sem pauta e sem discurso. Nessa abordagem, as manifestações de junho não foram
políticas porque ilustraram determinados discursos e determinadas críticas. Elas foram
políticas porque prescindiram deles, os ignoraram, os subverteram. Elas não romperam apenas
com a ordem do Estado, mas com a ordem da democracia institucionalizada, das práticas
espaciais rotineiras, do pensamento sobre as lutas urbanas e sobre a cidade. “Este caos ad-
quire sentido ao se distinguir, no meio dos conflitos e enfrentamentos, o combate titânico
entre os poderes homogeneizantes e as capacidades diferenciais” (Lefebvre, 1975, p. 31, tradução
nossa, grifos do autor). Nós somos, nós existimos, nós estamos aqui. Porque a gente quis. Porque
nossos colegas convidaram. Porque achamos bacana. Porque não tem água no nosso bairro nos fins
de semana. Porque somos vítimas de homofobia. Porque sofremos racismo. Porque não aceitamos o
empresariamento da cidade. Porque queríamos ver como é. Porque todo mundo vem.
As manifestações expuseram a olho nu as fragilidades de um entendimento do urbano
que se pretenda total. E expõem a fragilidade de um pensamento que acredita em rupturas
necessariamente direcionadas ao melhor, ao desejável. Rebanhos são rebanhos. São capazes
de eleger e aclamar líderes, mas também da violência e do linchamento. A massa, a turba, a
multidão. Não é potência só e para o que alguém definiu que é correto, justo, lícito.

305
À diferença pensada e não vivida por filósofos e lógicos se opõe a dife-
rença vivida e não pensada. Formulada ou informe, a diferença não pode
reduzir-se a representações banalizadas: a originalidade, a diversidade, a
variedade, a distinção etc. (Lefebvre, 1975, p. 43, tradução nossa).

Essa forma de entender aqueles eventos aponta para uma capacidade criadora das
pessoas, reforçando o aspecto de elas serem (e de fato foram) capazes de criar alguma
coisa que está para além da expressão de insatisfação (seja com algo identificado, para os
seus apoiadores, seja com “uma vontade de nem sei”, para seus opositores). Assim, estaria
colocado em questão também quem de fato detém a condição de sujeito. Nos termos
de Rancière, a ordem policial se caracteriza por uma certa configuração do sensível que
define quem detém realmente a palavra e quem é destinado à animalidade da voz que
exprime prazer e dor. A atividade política, escreve Rancière,

é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a des-
tinação de um lugar (...). Pode ser a atividade (...) dessas manifestações de
ruas ou barricadas que literalizam como espaço público as vias de comuni-
cação urbanas (Rancière, 1996a, p. 42-43, grifos do autor).

As manifestações de junho de 2013 no Brasil seriam momentos-espaços políti-


cos por realizarem rupturas na ordem socioespacial: na ordem do pensamento acadê-
mico, na ordem da democracia representativa (dos partidos, dos sindicatos, das associa-
ções), na ordem espacial – do uso do público, do público-privado. Esse espaço realiza-
do, essa estética carregada de contradições que em um nano tempo e em um nano espaço
realizou outro mundo. Quando haverá outra, nessas proporções? Não aconteceram
durante a Copa. Não aconteceram quando as passagens de ônibus de fato passaram a
custar mais caro. Se fosse possível chamar esse momento-espaço de espaço diferencial,
ele seria um espaço diferencial cheio de contradições, posto que gestado e realizado
no espaço abstrato. Momento-espaço político traz algum movimento, algum sonho,
algum medo. A ordem também não é total.
Lefebvre escreveu o Manifesto diferencialista em 1970, depois de O direito à cidade
(1968); e ainda refletindo sobre os acontecimentos de maio de 1968 na França, sobre os
quais coloca:

Movimento sem suporte e sem substância, sem modelo e sem institui-


ção, espontâneo, porém com uma espontaneidade altamente cultivada,
ao mesmo tempo mental e social. Esse movimento introduziu “algo” no
mundo, depois do que desvaneceu. O centro começa a deslocar-se: essa
é a lição do acontecimento (Lefebvre, 1975, p. 122, tradução nossa).

306
Vistas dessa maneira, as manifestações de junho de 2013 não deixam de recolocar
a questão do direito à cidade Elas questionam o poder instituído pelas reivindicações que
surgem, mas também pela sua simples presença – a festa da apropriação, a multiplicidade
do encontro. “Apropriação e diferença não podem pensar-se separadamente, e menos ain-
da viver-se e entrar na práxis” (Lefebvre, 1975, p. 120, tradução nossa).
A festa também é uma forma de tomar o direito à cidade, enquanto se realiza e
impõe sua realização ao Estado. O direito à cidade em questão aqui parece se aproximar
daquele discutido por Lefebvre,4 em seu famoso livro de 1968, do direito à diferença, do
qual ele fala em outros textos (como no Manifesto diferencialista). Parece se distanciar do
direito à cidade institucionalizado, expresso nas lutas por conjuntos de direitos específi-
cos, pela sua constituição através da instituição formal (no sistema jurídico), bem como
nas suas conquistas. O direito à cidade na sua versão formalizada nesses sistemas e apro-
priada pelos discursos do Estado e das agências multilaterais de desenvolvimento. Não é
esse o direito à cidade na “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”?

Ocupações urbanas organizadas: a poética do direito em ato


Inda pago pra ver / o jardim florescer / qual você não queria.
Você vai se amargar / vendo o dia raiar / sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir / que esse dia há de vir / antes do que você pensa.
Chico Buarque

As ocupações urbanas organizadas se consolidaram como parte importante das dinâmi-


cas urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), especialmente a partir
de 2009. Elas se caracterizam, grosso modo, pela ocupação de terrenos privados urbanos
vazios, de interesse comercial relevante, por grupos de famílias pobres, com finalidade de
moradia. Diferenciam-se de outras formas de constituição de assentamentos pobres em
terrenos de terceiros por alguns aspectos essenciais: (a) não se realizam em áreas residu-
ais, áreas de preservação permanente ou outras áreas inservíveis para o mercado; (b) as
famílias são recrutadas por movimentos sociais, como Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra e Brigadas Populares, mobilizadas e organizadas por esses movimentos, que
promovem as ocupações; (c) toda a estruturação prévia e os processos de resistência para
permanência nas áreas são assessoradas por advogados, que até o momento trabalham
voluntariamente (sendo alguns militantes das Brigadas); (d) a organização espacial das
ocupações se estrutura a partir de um plano urbanístico que define o ordenamento terri-
torial, segundo a mesma lógica de desenho de qualquer projeto de loteamento, isto é, res-

4 “... ‘o direito à cidade’, quer dizer, à vida urbana, única existência civilizada” (Lefebvre, 1975, p. 27, tradução nossa).

307
peito aos parâmetros urbanísticos estabelecidos pela legislação, critérios de eficiência e de
respeito aos condicionantes ambientais no traçado de ruas e lotes. A assessoria urbanística
tem acontecido também de forma voluntária, e em alguns casos, há também assessoria
em arquitetura (para as edificações); e (e) além de prover moradia para as famílias, há
uma finalidade explícita por parte dos promotores em realizar o enfrentamento radical do
paradigma da propriedade fundiária urbana privada absoluta, rompido formalmente pela
Constituição Brasileira em 1988, mas ainda não apropriado de fato na gestão urbana nem
nas práticas do Judiciário, de maneira geral.
O exemplo mais emblemático talvez seja a Ocupação Dandara, formada em Belo
Horizonte em 2009 e que se mantém na área, em processo contínuo de resistência e ainda
sem segurança da posse. Dandara tem sido bastante divulgada nos media, além de ser um
projeto urbanístico premiado. Seu sucesso tem contribuído na mobilização de famílias
para novas ocupações e para a energia de resistências das que se formam, aspecto que foi
chamado “de efeito” Dandara:

Acho que o que está animando muito essas ocupações tidas como es-
pontâneas é que eu chamo de efeito Dandara. Espalhou nacionalmente,
internacionalmente, o êxito da Dandara, que não é só Dandara, é o êxito
da Camilo Torres, é o êxito da Eliana Silva, é o êxito da Guarani Kaiowá.
Juntas, elas estão mostrando, sinalizando para os pobres do Brasil que
quando a gente faz essa conjugação de forças, empoderar os pobres inter-
namente, contar com movimentos sociais populares legítimos e idôneos,
com um grupo de arquitetos, um grupo de advogados populares, mon-
tando uma rede de apoio, trazendo as muitas forças vivas da sociedade,
isto faz uma grande diferença (Moreira, 2013, religioso e ativista, apud
Lourenço, 2014, p. 30).

As ocupações urbanas são espaços cheios de contradições e de conflitos inter-


nos e externos, como se pode perceber no trabalho de Tiago Castelo Branco Lourenço,
que atua nas ocupações urbanas como assessor de arquitetura e urbanismo, que foi o
autor, entre outros, do plano Urbanístico da Ocupação Dandara e problematizou as
questões vivenciadas no trabalho Cidade ocupada (2014). Além desse caso, elas têm
sido tema de vários trabalhos acadêmicos e alvo de várias experiências de extensão uni-
versitária. Além disso, apresentam uma nova forma de trabalho de arquitetos, urbanis-
tas e advogados para os pobres, estabelecendo uma relação direta com eles que não é
mediada pelo Estado (através das tradicionais políticas públicas).
Há um conflito permanente entre processos autônomos e heterônomos cujo cer-
ne é talvez o objetivo programático dos movimentos sociais promotores das ocupações
em produzir um espaço de comunidade pautado por valores outros que não aqueles

308
hegemônicos na sociedade capitalista contemporânea. As principais decisões e as prin-
cipais estratégias são estabelecidas por um núcleo restrito e precisam ser seguidas pelos
demais, que devem se apropriar aos poucos da elaboração conceitual dessas lideranças e
se conscientizar da importância desses sentidos e dessas práticas. No entanto, essa nova
estruturação social em torno de um comum deve acontecer através de processos partici-
pativos que visem formar sujeitos autônomos. Isto é, busca-se, através de procedimentos
fortemente heterônomos e de uma estrutura hierarquizada, construir uma comunidade
formada por sujeitos autônomos.
A ideia dos promotores da ocupação em torná-la a instituição do seu projeto po-
lítico acaba por caminhar para uma nova polícia, no sentido em que Rancière aborda o
problema das vanguardas estéticas e da realização material dos projetos utópicos:

As utopias e os socialismos utópicos funcionaram com base nessa ambi-


guidade: por um lado, como revogação das evidências sensíveis nas quais
se enraíza a normalidade da dominação; por outro, como proposição
de um estado de coisas no qual a ideia da comunidade encontraria suas
formas adequadas de incorporação, no qual seria, portanto, suprimida a
contestação a respeito das relações das palavras com as coisas, que cons-
titui o núcleo da política (Rancière, 2005, p. 61-62).

Os processos participativos para definição dos projetos de arquitetura e urba-


nismo utilizam instrumentos de representação para o debate em grupo que são decor-
rentes de processos de projeto conservadores, que consistem mais em apresentar uma
proposta predefinida pelo especialista para debate, análise, modificações e aprovação e
que numa construção efetivamente conjunta que estimule o pensamento sobre o espa-
ço físico e torne cada vez menos necessária a presença do especialista. Para Lourenço
(2014), essa contradição nos processos de mobilização e organização e nos processos
de projeto urbano decorre especialmente das diferenças de classe entre as lideranças do
movimento e os assessores técnicos, provenientes da classe média, e a maioria dos mo-
radores das ocupações, provenientes, em primeiro lugar, da ralé estrutural e, em segun-
do lugar, dos batalhadores.5 Segundo o autor, trata-se essencialmente de um conflito de
classe (ou um conflito de habitus de classe, utilizando o conceito de Bourdieu) que, ao
ser negado ou negligenciado, tende a ser reproduzido.

5 O autor se baseia na proposta de Jessé de Souza para conceituar a estratificação social brasileira, que
estabelece as noções de “ralé estrutural” e “batalhadores”, além de trabalhar com os conceitos já existentes
de “classe média” e “classe alta” (cf. Lourenço, 2014, p. 104 et seq.).

309
Percebo que a atitude de não salientar as diferenças parte dos ativis-
tas e militantes dos movimentos sociais e os moradores dentro de sua
necessidade aceitam essa situação até que não precisem mais desses
sujeitos para resolver suas questões. Como essas diferenças não são dis-
cutidas, os moradores ao retomarem as suas práticas cotidianas, aban-
donam as supostas conquistas do momento do evento da ocupação,
que almejavam uma emancipação social desses sujeitos, retomando
então práticas que remetem ao imaginário capitalista ao qual estavam
submetidos, agora muito mais dependentes e com elementos que eles
não sabem manipular, já que foram criadas soluções para situações que
antes não existiam.
Mesmo que não seja a intenção de nós ativistas e dos militantes dos
movimentos sociais, essa situação de não assumir as diferenças de clas-
se tem se configurado como uma má-fé de nossa parte, o que impede
outras possibilidades de resistência a partir dos moradores das ocupa-
ções urbanas (Lourenço, 2014, p. 171-172).

Há, nas ocupações, segundo o autor, um conflito mais ou menos silencioso diante
das críticas das lideranças aos desejos e às práticas dos moradores no cotidiano das ocu-
pações. Ele propõe entendê-lo essencialmente a partir de diferenças de classe. Podemos
também pensar em, a partir das descrições, das falas e das ilustrações que o autor traz das
ocupações, criar outras associações entre essas partes e a partir daí pensar em outra forma
de entender esse (e outros) conflito(s). No caso deste, entendemos que ele decorre de
uma contradição nas ocupações rica para análise: o fato de que os moradores se utilizam
do enfrentamento radical da propriedade privada absoluta como forma de fazer parte
dela, e não de desconstruí-la.
A riqueza da contradição de lutar contra a ordem territorial existente e ao mesmo
tempo lutar para fazer parte dela se apresenta de maneira emblemática nos conflitos que
envolvem a estruturação do ordenamento territorial da ocupação. Em primeiro lugar, na
própria ideia de seguir os parâmetros urbanísticos para a área e a partir deles elaborar um
plano que se torna normativo. Os parâmetros utilizados são para loteamentos quaisquer e
não para as chamadas Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS), também amparados por
lei, ou por quaisquer outros criados em cada caso por serem considerados mais adequa-
dos que os da legislação. Os advogados ligados aos

movimentos sociais promotores da ocupação, a coordenação local e os


moradores pretendiam, desde o início, realizar um projeto pautado nos
parâmetros urbanísticos de Belo Horizonte, conferindo com isso maior
legitimidade ao processo político ali instalado e melhores perspectivas
para uma futura regularização fundiária (Lourenço, 2014, p. 42).

310
No entanto, percebemos que em várias falas dos moradores e de alguns mili-
tantes, o ordenamento territorial é importante, porque, para eles, é essencialmente o
aspecto visual de ordem dado pelo traçado urbano que difere a ocupação de uma favela,
e eles não querem ser favela.
Em segundo lugar, há o debate entorno da proposta de lotes coletivos e sua rejei-
ção pelos moradores, aspecto ainda mais significativo do universo de contradições que
envolve as ocupações urbanas e sua luta por partilhar o mundo em condições melhores
que as que lhe são dadas.
A afirmação dos representantes dos moradores de que os lotes coletivos tenderiam a
gerar muitos problemas, pelo fato de exigirem a criação de condomínio, foi usada como ar-
gumento para que fossem rejeitados em prol dos lotes individuais. Ela pode ser vista de duas
formas: em uma primeira aproximação, pode-se entender que os moradores vivem numa
sociedade individualista e por isso são individualistas também;6 mas essa rejeição ao coletivo
pelo morador pode ser percebida, também, não como um exemplar de uma sociedade que é
inteira assim (em um raciocínio dedutivo), mas como o resultado de um processo social das
famílias de vida marcada por sofrimento, em que o compartilhamento da moradia (seja do
lote, seja da casa mesmo) esteve associado a graves carestias, à falta de opções, ao superaden-
samento, à precariedade, à falta de privacidade, à humilhação de depender em vários graus
diferentes do favor de um outro. Nesse sentido, entendemos que a busca pelo lote individual
significaria não um comportamento pequeno-burguês, mas parte da imagem territorial do
sonho de uma vida digna, sem depender de outros e organizando sua vida em família com
privacidade. O lote individual, aqui, é um pedaço da mesma imagem ideal almejada de um
loteamento territorialmente ordenado significando seguro, digno.
A fantasia que motiva as pessoas na ocupação é a fantasia de uma vida me-
lhor, em prol da qual utilizam os métodos que lhe parecem viáveis. Nesse sentido, o
discurso das Brigadas e do MST quanto à legitimidade de ocupar terrenos funciona
como uma espécie de canto da sereia. Esse fator, se considerado, muda um pouco a
forma de se entender algumas coisas: a preferência por lotes individuais deixa de ser
um exemplo de puro e simples individualismo; o fato de participar de uma ocupação
deixa de ser uma mistura simples de necessidade com predisposição para a contra-
venção. Além disso, a constituição do imaginário do pobre quanto à vida almejada,
desejada, sonhada, se apresentando como a vida de classe média, que por sua vez tem
aspirações burguesas, torna-se uma questão relevante. Inclusive para entender os des-

6 “Os moradores da Ocupação Dandara vivem nesta mesma sociedade e estão submetidos a todos os
seus discursos ideológicos e, portanto, também à mesma desconfiança em relação a qualquer tipo de
coletivização” (Lourenço, 2014, p. 46).

311
caminhos entre o que os moradores querem (e eventualmente fazem) e o que os pro-
motores e assessores das ocupações querem.
A desconfiança dos moradores quanto à coletivização e a importância que tem
para eles se tornarem proprietários individuais de um lote aponta para a possibilidade de
que não se trata de lutar contra as instituições da sociedade atual – como a propriedade
privada. Antes, trata-se de participar do mundo dessas instituições – de partilhar desse mun-
do –, ainda que usando estratégias que o rompem para que nele entre, à força, essa nova
parte. Nessa leitura, há um aspecto essencialmente político na realização de uma ocupação
urbana organizada: há que se romper o mundo sensível para instituir outro mundo sen-
sível em que um novo sujeito se constitui como parte dele. Romper para integrar à força.
A instituição política da ocupação rompe o mundo e se irrompe no mundo a partir
de uma concepção específica do direito e do dano, uma concepção que é política e não
jurídica, tornando-a direito em ato. É o direito à moradia colocado em litígio no ato da
instituição de uma existência espacial. A ocupação urbana se realiza como território, um
espaço-eu, diferenciado do espaço-outros. Territorializa existindo espacialmente. “A apro-
priação (do corpo, o desejo, do tempo e do espaço) não se define senão pelo conjunto
das diferenças que a prática pode extrair dos recursos naturais” (Lefebvre, 1975, p. 120).
Trata-se de um momento-espaço político, que é instituição de um espaço diferencial.

Como cada palavra implicada na política, a palavra direito é homônimo de


coisas muito diferentes: disposições jurídicas e maneiras de pô-las em prá-
tica, ideias filosóficas da comunidade e do que a funda, estruturas políticas
do dano, modos de gestão policial das relações entre o Estado e os grupos
e interesses sociais. A simples celebração do Estado de direito entra então nas
cômodas abreviações que permitem, em face do não direito dos Estados
arqui-policiais, unir todos esses direitos heterogêneos num único reino não
questionado do direito, feito da harmonia feliz entre a atividade legislativa do
poder público, os direitos dos indivíduos e a inventividade processual dos
escritórios de advocacia (Rancière, 1996a, p. 110, grifos do autor).

Tal como apontado anteriormente, o espaço diferencial que as ocupações realizam


se escava em pleno espaço abstrato da cidade contemporânea, sendo por isso mesmo re-
pleto de contradições. Acentua as dialéticas do possível-impossível, do pensável-impen-
sável, de produção-reprodução.
À medida que permanecem e lutam pelo seu reconhecimento institucional, a for-
ça de ruptura e de criação tende a diminuir, fazendo com que esses espaços caminhem
para a homogeneização e para o ordenamento e a ordem. O processo de incorporação da
cena política pela ordem, o preenchimento homogeneizante das fissuras, como colocado,
é reconhecido tanto por Rancière quanto por Lefebvre como parte do macro processo

312
de produção-reprodução do mundo, no qual toda reprodução se faz com um pouco de
produção, decorrente da poética do político (Rancière) e do diferencial (Lefebvre).

Aprender a aprender o mundo


Você que inventou esse estado / e inventou de inventar / toda a escuridão (...)
Chico Buarque

A partir de algumas provocações que Lefebvre faz no seu Manifesto, podemos nos pergun-
tar em relação a nossas práticas se com elas não acabamos por fortalecer aquilo contra o
que nos colocamos. No caso das manifestações de junho de 2013, antes ou além de se
sentir realizado em sua capacidade teórica de problematização e prognóstico, é possível
procurar de várias formas participar dos desdobramentos daqueles eventos na vida de
alguns dos seus sujeitos e nos desdobramentos nos movimentos sociais, buscando apren-
der de novo a aprender o mundo das lutas.7 No caso das ocupações urbanas, o conflito
silencioso e silenciado entre os cotidianos sonhados esvazia o potencial criativo que elas
constituem enquanto ato de instituição territorial de sujeito.
Mais que isso, o endurecimento dos olhares sobre as dinâmicas urbanas e a fixação
com a ideia de coerência e de um modelo preestabelecido de transformação podem im-
pedir que se vejam os momentos-espaços políticos que se constroem e que constituem
aqueles momentos lefevbrianos que constroem a história como não linearidade.

Nenhuma coisa é então em si política. Mas qualquer coisa pode vir a sê-
-lo se der ocasião ao encontro de duas lógicas. Uma mesma coisa – uma
eleição, uma greve, uma manifestação – pode dar ensejo à política ou não
dar nenhum ensejo (Rancière, 1996a, p. 45).

A análise diferencial traz à tona as variações, pluralidades e multiplicida-


des que se introduzem em dualidades geneticamente anteriores, bem
como as disparidades, disjunções, desequilíbrios, conflitos e contradi-
ções que emergem delas. Por causa da diversidade do processo envol-
vido, a exposição pode dar a impressão de que o espaço abstrato não
tem estatuto claramente definido. De maneira alguma: a teoria de fato
restituiu a verdade desse espaço – nominalmente, seu caráter contradi-
tório no seio da estrutura dominante que tende para a homogeneidade
(isto é, em direção à consolidação de um espaço dominado) (Lefebvre,
1991, p. 411, tradução nossa).

7 Um exemplo interessante dessa disposição para aprender com as manifestações e com os desdobramentos
que elas vêm tendo no Rio Janeiro são os componentes do grupo Universidade Nômade. Para mais
informações sobre esse grupo, suas práticas e suas reflexões, cf. uninomade.net.

313
Os conceitos utilizados por Lefebvre e Rancière, bem como sua associação, con-
tribuem para explorar as contradições que os momentos-espaços políticos apresentam,
bem como os conflitos entre atos e interpretações, e a poética que esses momentos-espa-
ços realizam. A principal questão que se coloca é até que ponto a lógica do pensamento
acadêmico instituído contribui para entender as dinâmicas urbanas e até que ponto se
tornou muito mais comprometida em reproduzir-se e ser programática.

O “modernismo” contém o projeto redutor e o dissimula no funciona-


mento mesmo dos esquemas redutores (sistematização, quantificação,
simulação) e das ideologias redutoras (formalismo, funcionalismo, estru-
turalismo). Também o cobre sob o aspecto de nobres preocupações que
passam por “valores”: comunicar, ordenar. E dispõe de um instrumento
que parece soberano: a coerência (Lefebvre, 1975, p. 65).

Pensar em termos de momento-espaço político, diferencial, escavado, no meio do es-


paço abstrato, pode contribuir para o entendimento e a prática destes e nesses mundos outros,
efêmeros e cheios de contradições. Previsíveis? Problematizáveis? Sua poética prescinde da
reflexão teórica? A reflexão teórica talvez não prescinda de pensar essas poéticas.

REFERÊNCIAS
FORUM SOCIAL MUNDIAL. Carta Mundial pelo Direito à Cidade. 2006.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969.
LEFEBVRE, Henri. (1970). El manifiesto diferencialista. 2. ed. Trad. Moguel Escobar. México: Siglo Veinteu-
no Editores, 1975.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Trad. Donald Nicholson-Smith. Oxford: Blackwell Publishing, 1991.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LELIS, Natália. Sutilezas da vida urbana. Arquitetura, Belo Horizonte, v. 4, p.148-188, 2007.
LOURENÇO, Tiago Castelo Branco. A cidade ocupada. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
MARRIFIELD, Andy. Henri Lefebvre: a critical introduction. New York: Routledge, 2006.
MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil.
São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Trad. Ângela leite Lopes. São Paulo: Ed. 34,
1996a.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996b.

314
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: Ed. 34;
EXO experimental org., 2005.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes: passe livre e
as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo/ Carta Maior, 2013.

315
Cidades, urbanização, desenvolvimento
na Amazônia: notas para uma
interpretação lefebvriana
Harley Silva

Introdução
O debate sobre o desenvolvimento na Amazônia se depara com as relações contradi-
tórias entre uso de recursos e conservação do bioma, e não raramente aí se paralisa. O
desenvolvimento – não sem razão – identificado com a expansão da sociedade indus-
trial se vislumbra como a negação necessária da existência da floresta e das teias de vida
natural e social que a tornam possível. Aí se coloca também uma identificação entre o
industrial e o urbano, entre tecnologia e high tech, entre conhecimento e saber científico,
entre economia e mercados.
Num paradoxo, a discussão sobre o papel da região para o desenvolvimento bra-
sileiro se torna mais intenso e a paralisia ou o conformismo, ou ambos, se convertem nas
saídas disponíveis por dentro do mesmo paradigma de natureza e de produção, de urbano
e de desenvolvimento.
Este trabalho explora as relações entre urbanização e desenvolvimento. No cerne
da discussão, a distinção lefebvriana entre urbano como virtualidade de emancipação so-
cial e o urbano industrial como derivação da industrialização.
A explicitação desse debate é o objetivo deste texto, que se compõe por cinco se-
ções, além desta introdução. Na seção seguinte, tentamos uma recuperação do papel his-
tórico da cidade no sistema econômico e suas relações com a natureza. A seguir, discuti-
mos como a cidade serviu como lugar de formação das economias de mercado e simulta-
neamente criou formas de regulação do mercado fundamentais para o desenvolvimento.
Nas duas seções a seguir discutimos o impacto do processo de industrialização na cidade
e na vida econômica e os elementos de superação da época industrial. Nas duas seções fi-
nais se discute o alcance desse percurso teórico na compreensão do subdesenvolvimento
a partir da obra de Celso Furtado, e esboçamos uma discussão do problema do desenvol-
vimento no contexto da Amazônia.

Cidades, natureza e vida econômica


Henri Lefebvre faz da transformação da cidade pela industrialização o ponto de partida
de sua investigação sobre o fenômeno urbano e o espaço: “a industrialização caracteriza
a sociedade moderna.” A hipótese desenvolvida pelo autor é que a sociedade moderna
encaminha-se para uma “urbanização completa”, para tornar-se “a sociedade urbana” (Le-
febvre, 2008c). No entanto, sua argumentação sobre o sentido da urbanização no mundo
contemporâneo se baseia na compreensão profunda do significado da cidade na História
e da forma pela qual o fenômeno urbano veio a se tornar realidade.
“A Cidade preexiste à industrialização... uma observação em si mesma banal, mas
cujas implicações não foram inteiramente formuladas.” “Quando a industrialização come-
ça, quando nasce o capitalismo concorrencial com a burguesia especificamente industrial,
a Cidade já tem uma poderosa realidade” (Lefebvre, 2008b, p. 11, 12, grifo nosso).
Realidade poderosa, reunião de aspectos naturais e culturais, mágicos e racionais,
econômicos e simbólicos, temporais e religiosos, a cidade acumulou desde cedo “as cria-
ções mais eminentes, as obras mais belas” (Lefebvre, 2008b). Desde cedo foi resultado e
mediação da relação do homem com a natureza. Em torno de um marco zero, na ausência
completa de urbanização, pura natureza natural, as origens da relação entre urbano e natureza:
“os primeiros grupos humanos marcaram e nomearam o espaço, o exploraram, balizando-o.
Indicaram os lugares nomeados, as topias fundamentais” (Lefebvre, 2008c, p. 18). Quere-
mos destacar essa unidade fundamental entre os aspectos diversos da cidade como realidade
social. A cidade não surge como negação da natureza, mas sua socialização e apropriação
pelo homem, demarcação, criação de significados humanos e sociais para o espaço.
Sobre as origens da cidade, teses divergentes se colocam, sendo provável sua com-
plementaridade. No que interessa aqui, recuperar e revigorar o significado da cidade para
a discussão do desenvolvimento, a divergência fundamental diz respeito à precedência na
história do campo ou da cidade como forma original de organização social do espaço. É
importante distinguir as características gerais de cada uma dessas versões.
Na versão mais difundida, hegemônica, o campo precedeu a cidade. A domestica-
ção de plantas e animais, chamada “revolução agrícola”, ocorre antes e fornece condições
para o surgimento da cidade. Do campo proveio o excedente econômico, cuja apropria-
ção diferencial entre membros da comunidade teria permitido a diferenciação social e

318
espacial das primeiras sociedades (Singer, 1981; Monte-Mór, 2006). Antes disso, a vida
urbana não seria viável. A baixa densidade e a “tirania das distancias” no cenário onde a
única força motriz disponível é o próprio trabalho humano tornariam a existência de as-
sentamentos densos uma impossibilidade. “É necessário destacar aqui este ponto crucial:
a existência de verdadeiros centros urbanos pressupõe não apenas um excedente de pro-
dutos agrícolas, mas também a possibilidade de esse excedente entre na comercialização”
(Bairoch, 1988, p. 11, tradução nossa).
Mas a obra de Jane Jacobs (1969) postula o inverso. Numa “hipótese extremamen-
te heterodoxa” altera a direção da interação entre invenção da agropecuária e a emergência
de cidades (Bairoch, 1988). A tese de que o campo precedeu a cidade, diz Jacobs, é dog-
mática, fundamentada na “autoridade”, mais que na reflexão crítica e na pesquisa empírica.
Além disso, a aceitação da precedência do campo distorce o entendimento sobre o
que são as cidades, qual seu papel no desenvolvimento e de que forma este se dá. A hipótese
da primazia do campo sobre a cidade, mais do que uma explicação inaceitável para as pri-
meiras experiências urbanas, deve ser questionada, diz Jacobs, porque afeta negativamente
as ideias sobre o que são as cidades, qual seu lugar na estrutura do sistema econômico, tanto
agora quanto no passado. Se as cidades derivam do desenvolvimento da agricultura e do es-
paço rural, pode-se concluir que estas, cidades e centros urbanos, são secundárias em relação
à produção rural, e por extensão, às demais formas de produção externas a elas.
É importante destacar que a hipótese da anterioridade do campo em relação à ci-
dade pressupõe – pelo menos implicitamente – que a criação do excedente no campo
decorreu de algum processo de aprendizado e enraizamento de conhecimentos e práti-
cas, tanto na produção primaria quanto artesanal. Porém, a questão é: Como tais práticas
ultrapassariam o nível esporádico e assistemático na ausência de uma convivência que
tornasse a experiência cotidiana densa? É difícil dizer como isso aconteceria sem o aden-
samento da experiência que é característico do contexto urbano.
A hipótese jacobiana tem como premissa que, tanto nas economias contempo-
râneas quanto nas primeiras formas de civilização a cidade é o local onde esse adensa-
mento e a frutificação da experiência pode ter lugar. Ela teve desde sempre funções de
acumulação e transmissão de saber (Mumford, 2008). Portanto, mais do que formular
uma hipótese sobre o aparecimento da cidade, a qual pode ter sua abrangência ou ex-
clusividade questionada, Jacobs põe em relevo que a cidade é o local onde é possível e
onde acontece a transformação da vida econômica do homem, devido aos processos
que apenas a convivência estreita e continuada cria.
Densidade e articulação, permanência e simultaneidade: no centro urbano vivên-
cias múltiplas se articulam, grupos populacionais diferentes, gerações diferentes, diferen-
tes contextos ambientais se encontram num mundo em formação. Eventos esporádicos

319
se integram à experiência coletiva e se tornam perenes, repetidos e repetíveis, logo transmis-
síveis como experiência codificada, mito, história, representação artística e escrita. Gera-
ções se conectam no tempo-espaço marcado por signos e por objetos, retirados da natu-
reza e transformados, dotados de significado social novo e sempre renovável. A cidade
cria a simultaneidade e a conexão de tempos e experiências, acumulando-as e ampliando
seu sentido e diversidade (Mumford, 2008).
De sua relação com o meio natural o homem deriva experiências e habilidades indi-
viduais, mas somente a convivência socialmente enriquecida lhes dá significados novos, pro-
vocando o surgimento e o aprofundamento da divisão social do trabalho. Da coleta e atri-
buição de sentido a elementos naturais ou seres vivos na natureza – alimentos ou materiais
transformados em alimento ou artefatos – surgem ocupações esporádicas e básicas. Mas estas
ganham sentido social e dão lugar a sofisticações, abrindo-se em novas possibilidades.
Esse é o argumento de Mumford (2008). Das práticas elementares do coletor de
pedras, lenha, animais ou peixes, decorrem diferenciações do trabalho: o minerador, o
barqueiro, o navegante, o construtor de embarcações. Destes se diferenciam o comer-
ciante ou o mercador volante, e assim por diante. Cada grupo de práticas, por sua vez, se
materializa em objetos e artefatos, cujo uso deriva em novas possibilidades e necessida-
des. Ressaltamos aí a ligação permanente entre a apropriação da natureza e a criação da
vida econômica. Da diversidade oriunda da natureza provém conhecimento do diverso
e trabalho humano que se diversifica. Esse é o argumento notavelmente desenvolvido
por Jacobs (1969) em sua exposição sobre a origem dos assentamentos humanos como
locais de transformação e trocas de materiais retirados da natureza. Dessa dinâmica, diz
a autora, provém, inclusive, a criação das ocupações que costumam ser consideradas
como não urbanas: a agricultura e a criação de animais. Essa relação, ademais, prossegue
como um elemento fundamental da vida urbana. A constante introdução de materiais
naturais na vida material das sociedades foi e continua sendo um aspecto fundamental
dos sistemas econômicos. Se esse aspecto parece nas sociedades atuais uma prerrogativa
da atividade industrial, outra vez pode-se dizer que a indústria transformou e prolon-
gou essa realidade que a vida urbana já detinha. Esse é um aspecto fundamental para
se pensar o lugar da natureza no sistema econômico em geral e nos desafios do desen-
volvimento, em particular no contexto da Amazônia. Se há relações fundamentais entre
diversidade natural, conhecimento sobre o diverso e trabalho humano que se diversifica,
a extensão conhecida (e desconhecida) da biodiversidade deve ser vista, sem dúvida,
como um drive do desenvolvimento. Indo além, o que de fato é o fundamental diante do
conflito entre urbanização e sobrevivência de biomas complexos: é fundamental discutir
como e quando a relação urbanização e natureza pode se basear não apenas no uso de
recursos naturais, mas na sua reprodução ou permanente reconstrução.

320
A constante criação da diferença é o que faz da cidade o órgão essencial da vida
econômica; o que faz dela o lugar onde nasce o novo, trabalho novo, segundo Jane Jacobs
(1969). Sendo o lugar para onde tudo conflui, a vida na cidade adiciona práticas, usos, co-
nhecimentos que vão do técnico ao artístico e político. Segundo Lefebvre (2008c), “a cidade
atrai para si tudo o que nasce da natureza e do trabalho”. Se por um lado “não cria nada”, ao
“centralizar atividades e criações”, “ela cria tudo”. Isso porque “nada existe sem troca, apro-
ximação, proximidade, relações”. Na situação urbana, as coisas advêm umas das outras; ela
constrói, destaca e liberta a essência das relações sociais (Lefebvre, 2008c, p. 109).
Aqui, em busca dessa recuperação do sentido da cidade na vida econômica, apro-
ximamos as obras de Lefebvre, Jacobs e Mumford. A abordagem desses autores não é
idêntica no tocante à concepção das origens ou às estrutura da cidade. Mas os três des-
tacam o peso da vida urbana na construção da experiência humana, social e econômica.
Em conjunto, sua abordagem ilumina a relação entre vida urbana, sistema econômico e
recursos naturais, ultrapassando a redução da natureza à fonte de matéria-prima.
O trabalho dos três autores evidencia que o espaço e a cidade não são reflexos ape-
nas dos processos que ali transcorrem. Ambos, cidade e espaço, oferecem suporte e simul-
taneamente criam ocasiões, restrições e sentidos para o funcionamento e a modificação
do sistema econômico. Formas simples frequentemente emanam ou derivam práticas
sociais complexas, que, por sua vez, se transformam pela criação de novos espaços onde
as novas práticas se realizam de modo mais complexo, mais elevado (Mumford, 2008).
O caso emblemático empregado por Mumford desse processo de derivação é a
relação entre a aldeia e a cidadela nas origens da cidade. É notável que Lefebvre revisite
a discussão ao formular a metáfora da implosão-explosão da cidade.1 Mumford (2008)
emprega essa imagem ao discutir as transformações na civilização por volta de 3000 a.C.
Nessa ocasião, teria havido um enorme salto tecnológico – cultivo, charrua, roda de olei-
ro, navio a vela, tear, metalurgia do cobre – e de conhecimento – matemática abstrata,
observação astronômica exata, calendário, escrita – acontecido num curto período, gra-
ças ao desenvolvimento da cidade. Para tal expansão tecnológica o único paralelo está
nas transformações da época industrial, na qual “uma explosão tecnológica produziu uma
explosão na própria cidade”, a qual se despedaça espalhando “órgãos e organizações com-
plexas por toda a paisagem”. O “recipiente urbano murado” se rompe e perde magnetismo.
O autor compara essa situação às origens da cidade, indicando o efeito oposto, por oca-
sião da “primeira grande expansão da civilização”. Naquele momento uma implosão e não

1 Mumford publica City in history em 1961. Le droit à la ville, de Lefebvre, foi publicado em 1968. É
tentador afirmar o diálogo, mas para isso não temos evidência, embora possa dizer que ele é possível.
Vale a observação de que a metáfora é empregada por ambos.

321
uma explosão teria ocorrido. Elementos diversos que se encontravam dispersos “foram
mobilizados e ajuntados sob pressão, por trás das maciças muralhas da cidade” (Mum-
ford, 2008, p. 39). Colocados em interação na cidade murada, esses elementos transfor-
mam-se numa estrutura complexa que amplia as possibilidades humanas.
A cidade murada, cidadela, se transforma em espaço da experiência e da abun-
dância. Habitada pelo poder, religioso e temporal, ela subordina e mobiliza a seu favor
o melhor que a comunidade produz e atrai. O aprofundamento da divisão social do
trabalho afasta da labuta diária grupos privilegiados que se dedicam à fruição de uma
vida nova, enriquecida pelo refinamento e a sofisticação da técnica, do conhecimento,
das artes e ofícios (Mumford, 2008).
De seus elementos originais, o templo, o palácio, o tesouro, o pórtico, derivam
instituições, práticas e espaços novos. Espaços e práticas embrionárias transpiram criação
cultural e política. Do templo e seus rituais, a música, o teatro, a dança, a poesia e seus res-
pectivos templos. Do templo também a biblioteca, os espaços do saber e da investigação.
Do palácio, as instituições do poder, do pórtico, a guarda e a diplomacia. Da sofisticação
da vida da nobreza e dos cuidados com a fé e o sagrado, a demanda pela técnica aplicada
à vida cotidiana: a alimentação sofisticada e sua relação com a natureza, a vestimenta
e o adorno, a arquitetura e os materiais sofisticados, o calçamento de vias, o azulejo, a
escultura e outras artes, a produção em larga escala para tropas militares. Dentro da ci-
dadela ou junto a ela prosperam mercados, trocas locais e os primeiros mercadores de
longa distância, talvez dedicados aos objetos sagrados ou valorizados pelos governantes
e sacerdotes. Na cidadela a relação contraditória entre sofisticação e a escala de produção
se soluciona pela primeira vez. Essa disjunção ainda tão central na economia contempo-
rânea em função do dilema da criação e inovação, por um lado, e ampliação da demanda,
por outro, encontra pela primeira vez um equilíbrio aristocrático. Esta formulação indica
que, o adensamento da experiência na cidadela, ao se estender sobre a aldeia, da origem
a cidade como realidade que encampa a sofisticação da vida urbana e de sua base mate-
rial, a natureza transformada pela socialização. Cidadela e aldeia, entrelaçadas, transmitem
mutuamente os elementos que conduzem a cidade propriamente dita. Trabalho mobi-
lizado e técnica capazes de transformação da base natural, capacidade de produção de
excedentes, organização, sofisticação técnica, saber codificado-acumulado-transmitido,
capacidade de autoreprodução (Mumford, 2008).
Ao papel da cidade como resultante da relação cidade e natureza, se interliga seu
papel como lugar da sofisticação de artes e ofícios, adensamento do conhecimento e da
técnica. Ademais, esses aspectos, recuperados a partir da cidade em seus primórdios, se-
guem fundamentais para a discussão do lugar das cidades no desenvolvimento em so-
ciedades de mercado. Por certo, é preciso considerar as distinções que se introduzem no

322
contexto do capitalismo periférico ou central, isto é, a realidade do subdesenvolvimento.
A cidade na época industrial se modifica, e sob as restrições do desenvolvimento depen-
dente tem ainda outras peculiaridades. Mas mesmo considerado esse aspecto, pode-se
dizer que o papel da cidade ou da base urbana no sistema econômico se mantém aquém
do que deveria na discussão do desenvolvimento, e em particular, no desenvolvimento da
Amazônia. Essa realidade, aparentemente, se deve a uma avaliação restrita do que seja o
fenômeno urbano e a identificação entre urbano e industrial.

Cidades, formas de integração econômica e criação institucional


Como dissemos, a passagem da civilização das cidades à sociedade urbana pela via da
industrialização é pedra angular da obra lefebvriana. O retorno aos aspectos históricos
da origem da cidade torna mais manejáveis os conceitos do autor realizados em alto ní-
vel de abstração: a tríade urbana festa-poder-excedente (Cunha; Monte-Mór, 2000); a
implosão-explosão da cidade, ou a virtualidade da sociedade urbana como superação do
industrial. Esse campo conceitual, por sua vez, nos parece essencial para a compreensão da
relação cidade/urbanização/desenvolvimento.
Lefebvre postula épocas históricas marcadas pela produção social de diferentes pa-
drões de cidades. Na origem, a cidade política; em seguida, a cidade comercial. No ponto
de inflexão o choque entre a indústria e cidade, dando origem à cidade industrial e ao
processo de urbanização.
A cidade antiga é o ponto de partida. Suas funções foram, sobretudo, políticas (Le-
febvre, 2008c). Essa observação põe em relevo que a contradição entre o mercado e a
cidade como totalidade se colocam desde o primeiro momento. Lefebvre não se demora
nesse aspecto, mas não deixa de indicá-lo. Polanyi (2000; 2012), por outro lado, discu-
tindo o quão recente na história são as sociedades de mercado, também esclarece que da
Antiguidade até o século XIX, as trocas e a vida econômica em geral estiveram reguladas
por instituições sociais amplas – religiosas, culturais, políticas etc. Se o mercado existiu
desde as civilizações mais antigas, inclusive porque a cidade é um ponto de confluência
do diverso, logo, lugar de trocas, ele funcionou como um mecanismo econômico regu-
lado, imerso em instituições sociais que contrabalançaram seu potencial disruptivo. Por
isso mesmo a vida econômica dos grupos humanos foi provida por outras formas de inte-
gração econômica - FIEs, as quais Polanyi denomina como reciprocidade, redistribuição e
domesticidade, além da própria troca que através de inúmeras e tortuosas mutações não
lineares deriva os mercados modernos. Estas FIEs, no entanto, integravam a totalidade da
vida social. Desta forma, as trocas, tanto quanto como a produção e distribuição de bens
jamais conheceram regras autônomas em relação à vida social.

323
O livre mercado surgiu na Europa moderna emergindo de uma luta prolongada
dos mercados não locais contra as instituições sociais e políticas que regularam a vida
econômica por séculos. Polanyi (2000) mostra como parte fundamental dessa luta a
emancipação dos mercados que ocorreu em torno das instituições da cidade medieval.
As interdições que vigoraram contra o mercado são mostradas como traços institucio-
nais que mantiveram a coesão social. Elas não são, assim, signo do atraso à civilização
ou obstáculo ao progresso, como é lugar-comum na historiografia liberal. Os exemplos
fundamentais são sobre a regulação do trabalho e a transmissão da terra, impedindo
que ambos viessem a se tornar mercadorias. As instituições urbanas, as guildas, sobre-
tudo, impediram por séculos que o trabalho fosse transformado em mercadoria. De
igual forma, inexistiram mercados para a terra. A propriedade fundiária não se transmi-
tia por compra e venda, o que, segundo Polanyi (2000), implicava a interdição à mer-
cantilização dos elementos da natureza com um todo. Existia produção e circulação de
mercadorias, mas a lógica dessa produção-circulação pouco se estendia ao reino dos
insumos básicos das mercadorias – terra, recursos naturais e trabalho.
Todo esse mecanismo se conectava com as instituições urbanas. O mercado ope-
rava circunscrito a espaços onde se permitia a produção e circulação de mercadorias,
dentro da cidade ou onde a legislação urbana concedia. Além disso, distinções claras se
estabeleciam entre mercados locais e de longa distância, dado que estes, por sua própria
natureza, foram sempre mais avessos à regulação das instituições urbanas (Polanyi, 2000).
A cidade medieval, embora permaneça como cidade política, assumiu funções
comerciais, artesanais e bancárias crescentes (Lefebvre, 2008a). Ela acresceu à vida eco-
nômica setores e instituições que ao mesmo tempo expandiram e regularam os mercados.
Centros remanescentes da romanidade atraíram e abrigaram as transações de longa dis-
tância, atuando como aceleradores para o que sobreviveu da vida comercial antiga (Mum-
ford, 2008). Ali se acumulou a riqueza imobiliária e mobiliária, e as primeiras formas do
capital comercial, mas a cidade medieval, não perdeu sua condição de obra coletiva. Ela
criou um notável arranjo institucional pelo qual a riqueza socialmente produzida se ex-
pande mas o mercado se mantém como realidade contida.
Houve luta das forças de mercado para apropriar-se da cidade e moldar suas insti-
tuições; luta que já havia se instalado na polis grega e mesmo antes (Lefebvre, 2008b; Po-
lanyi, 2012). Ela se estende por séculos e suas contradições foram fonte de invenção social
e política, institucional e técnico-científica para as sociedades europeias (Lefebvre, 2008b).
Dela nascem ou renascem instituições fundamentais para as economias de mercado. As
corporações, o “trabalho livre”, as companhias comerciais controladas pela monarquia, as
sociedades de investimento por cotas de reponsabilidade limitada, as alianças de cidades

324
comerciais como a Hansa2 e suas operações econômicas e bancárias seguradas. Todas estas
invenções foram básicas na construção econômica e militar da economia-mundo. Daí pro-
vém um imenso dinamismo social e econômico que origina a ciência aplicada, o conheci-
mento econômico organizado e outras realizações que conformam a própria modernidade
(Mumford, 2008; Polanyi, 2000; Lefebvre, 2008a).
Deve-se reter aí a importância do confronto entre instituições urbanas e mercados
como aspecto essencial do próprio desenvolvimento das economias centrais. Mais do
que a expansão irrestrita dos objetivos imediatos do mercado ou sua difusão sem obstá-
culos, o conflito dialético com instituições urbanas foi um motor da ampliação e diversifi-
cação da vida econômica e do desenvolvimento.
No mundo antigo3 ou na Europa medieval, a posição da cidade na dinâmica do de-
senvolvimento foi central. Criação de densidade e escala, diversificação, especialização, sofis-
ticação da produção. Local de aprendizado e socialização da experiência, suporte da inven-
ção cultural e artística, filosófica e científica, técnica e tecnológica. As próprias contradições
entre mercados não locais e a unidade econômica formada pelas cidades e seu hinterland
foram fontes de criação social que surge tanto como resultado de ampliações positivas como
de restrições a ímpetos do mercado que ameaçavam a coesão social da vida urbana.
A própria indústria significa em parte uma projeção de elementos da vida urbana
– técnica, produção padronizada, acumulação direcionada e capacidade de reprodução
ao longo do tempo, dentre outros aspectos. A indústria sobrevém a seu tempo, como
uma realidade potente que repete o choque produção-reprodução, adensamento-mul-
tiplicação que a hipótese da cidadela-aldeia postula (Mumford, 2008). Outra vez o ní-
vel de criação, potência técnica, mobilização social e política e mobilização do espaço
físico atinge o nível crítico para a implosão-explosão da cidade. A dialética entre con-
centração e repulsão modifica a vida urbana, com resultados de complexidade ainda
maior. Na primeira vez se cria a civilização, e do choque entre a cidade e a indústria – na
hipótese lefebvriana – nasce a sociedade urbana.

2 A Hansa foi uma liga de cidades do norte da Europa, surgida no século XII e que reuniu ate o século
XVII cidades comerciais da região. Entre as inovações politico-econômico-institucionais introduzidas
por essa associação de cidades esteve o uso de garantias a operações comerciais e financeiras realizadas
dentro das cidades sociais e das normas da Hansa. Ver Braudel (2005, v. 2) e Dollinger (1970).
3 Aqui nos referimos à cidade na experiência greco-romana e da Mesopotâmia, para as quais temos mais
elementos. Há sem dúvida muito a dizer sobre a posição da cidade na economia da Ásia e África, assim
como na América anterior a chegada europeia.

325
Emergência da indústria e origem do período urbano industrial

Desdobramento dialético do adensamento da vida econômica na cidade – técnica, orga-


nização e crescimento da escala de produção, formação de mercados, criação constante
de novas mercadorias e tecnologias etc. –, a indústria nasce em conflito com a cidade.
Não por acaso, ao se instalar como sistema de produção, a indústria foi construída fora da
cidade, embora esta não seja regra sem exceções. De um ponto de vista pragmático, era
atraída pelas fontes de energia e repelida pela força das corporações medievais. Além dis-
so, a cristalização do espaço urbano medieval ou barroco era limitativo para as aspirações
da nova classe industrial e as estruturas físicas que as novas atividade demandavam.
De vários pontos de vista – institucional e político, social e econômico, físico e
técnico – a indústria nasce em contradição com a cidade, como não cidade, negação a
elementos essenciais da cidade; negação de práticas estabelecidas pelo embate entre a
cidade e os mercados (Polanyi, 2000; 2012). Trata-se de negação dialética e não abso-
luta,4 não a destruição do oposto, mas sua transformação profunda e preservação relati-
va. A indústria nasce produzindo outra coisa, o urbano industrial, que sucede, modifica
e prolonga seu oposto dialético, a cidade.
O afastamento entre indústria e cidade dificilmente poderia se manter. A produ-
ção não se isola do circuito econômico, circulação e reprodução social dos fatores de
produção (trabalho, capital financeiro etc.) e das relações sociais de produção (aprendi-
zado social e técnico, hábitos de consumo etc.). Ocorreu então um movimento duplo:
a indústria tanto retorna às cidades quanto produz as suas próprias áreas urbanizadas;
se apropria da cidade e a recria. Onde encontrou cidades antigas a indústria delas se
apropriou intensamente. As cidades preexistentes se expandem; surgem cidades operá-
rias e subúrbios, surgem assentamentos precários. Onde a industrialização não ocupa
ou fixa a mão de obra disponível proliferam cidades amputadas, dotadas apenas do in-
dispensável à reprodução precária (Lefebvre, 2008a, p. 16).
Industrialização e urbanização formam, segundo Lefebvre, um processo duplo,
mas interligado. São faces conflituosas de uma realidade conjunta. A indústria transfor-
ma a urbanidade preexistente ameaçando-a, e ao mesmo tempo a recria numa expan-
são urbana sem precedentes.
O choque cidade/indústria cria e recria contradições: cidade/campo, natureza/
obra humana, entre outras. Ao recriar a urbanidade este choque reorganiza a vida social
amplamente. Surgem outra prática social, outra relação com o espaço e com a natureza.

4 Para uma visão de processo e lógica dialéticos, ver Lefebvre (1975).

326
A compreensão dessas mudanças é fundamental para o debate sobre cidade, espaço e
urbanização, logo, sobre o desenvolvimento. Esse é sem dúvida uma contribuição teó-
rica fundamental de Henri Lefebvre.5
A cidade sempre teve como um dos seus vetores a relação homem-natureza. Na
hipótese da anterioridade da cidade urbana (Jacobs, 1969), a cidade cria o campo, como
derivação de suas relações endógenas. A agricultura, a criação e a pesca estiveram fora
da cidade por contingência, mas também estiveram inseridas em suas relações sociais de
produção e reprodução, e, às vezes, dentro de seus muros6 (Braudel, 2005, v. 2). Essas
contradições, no quadro da indústria, serão muito distintas das que existiram no período
anterior. A implosão-explosão da cidade elevou-as a outro patamar.
À dispersão dos elementos da vida urbana no espaço social e hiper-adensamento do
espaço e das experiências internos à cidade correspondem a expansão e o aprofundamento
de características abstratas, à sua transformação em abstrações concretas.7 Realidades que an-
tes compunham a cidade como totalidade, inclusive a natureza e o campo, se recriam como
realidades que parecem opostas ao urbano, mas não perdem a relação com ele.
Em se tratando da natureza, ela transforma-se duplamente. É transformada, pela
indústria e pelo urbano. A indústria “desmonta” a natureza, incorporando-a como recurso
natural de maneira voraz. As intervenções humanas na paisagem natural atingem escala

5 A incompreensão sobre a natureza dessa mudança prende à discussão sobre o urbano numa armadilha
curiosa. Os padrões da discussão são fornecidos por uma realidade que já não existe – a cidade. E os
dilemas são enfrentados com base numa lógica, a lógica industrial, cujo sentido não é completamente
compreendido em sua peculiaridade quando aplicada ao urbano. Noutras palavras, numa realidade que
se urbaniza, a sociedade mantém padrões (estéticos, construtivos, éticos) que ainda dialogam com a
miragem da cidade, e ao mesmo tempo age orientada pela lógica industrial.
6 Braudel, falando da cidade entre os séculos XV e XVIII, ilustra a íntima relação entre esses campos e
cidade. A cidade murada guardou em si espaço para a agropecuária, e valorizou a presença dos ofícios a
ela afins (Braudel, 2005, v. 2, cap. 8).
7 Na tradição hegeliana, Marx empregou o termo “abstração concreta” para se referir a elementos do real cuja
natureza tanto os afasta quanto os aproxima do tangível e do imediato. Em sociedades que se tornam mais
complexas, elementos imediatos da vida se separam de uma massa indistinta da experiência do real. “Este
martelo é um objeto que isolo provisoriamente, por contornos definidos. Ele vai me permitir separar da
totalidade natural outros elementos (pedras), vai me permitir impor a tais objetos... contornos definidos”
(Lefebvre, 1975, p. 112). Isolando-se dele, sendo extraídas, abstraindo-se de um conjunto indiferente,
ganham uma nova concretude. O movimento é simultaneamente de abstração, isolamento, recorte e
concretização, o que significa retorno ao mundo concreto e imediatamente sensível. O pensamento faz tal
movimento de forma incessante – abstrai a partir da experiência e transforma-se em ideia, conceito, teoria
(Lefebvre, 1975). Mas as práticas cotidianas, incluindo fortemente aquelas afeitas ao mundo do econômico,
também o fazem explicitamente. Marx indicou o caráter de abstração concreta da mercadoria em geral e da
moeda em particular. No que nos toca aqui, podemos pensar no movimento – de pensamento e de prática
– entre o trabalho humano, sua abstração e reconcretização na técnica e na tecnologia.

327
tristemente monumental (Mumford, 2008). Por outro lado, dentro do espaço urbano
derivado da industrialização, surgem esforços para “reunir o espontâneo e o artificial, na-
tureza e cultura”. Na cidade barroca (Mumford, 2008) e na emergência do urbanismo,
multiplicam-se jardins e parques urbanos, mas estes são cada vez menos espaços naturais
internos à área urbana e cada vez mais evocações estilizadas da natureza. Dentro do espa-
ço urbano a natureza evanesce mas ressurge simulada. “Os signos da natureza e do natural
se multiplicam” e são produzidos e vendidos, abstrações concretas – “uma arvore, uma
flor, um perfume... signos da ausência” (Lefebvre, 2008c, p. 34).
O campo também é transformado. Atingido por forças do centro urbano e da in-
dústria ele não desaparece mas é modificado. A ele se sobrepõe uma nova organização
do espaço: infraestruturas, condições gerais de produção,8 afeitas à produção e ao consumo
para o mercado. Novas formas de consumo e padrões estéticos. As instituições políticas e
jurídicas da cidade também o atingem, mais ou menos enfraquecidas – regulação do solo,
do trabalho, da propriedade, do consumo, da produção.
Às vezes a ruralidade parece suprimida, corroída pela extensão urbana, se transfor-
ma em múltiplas formas de periferia. Ora em área residencial precária, urbano sem festa,
poder e excedente, quase não lembra a cidade,9 ora se reduz a estruturas da produção ou
distribuição: fábricas, centros de compras, instituições de ensino, locais de eventos e espe-
táculos, autoestradas, aeroportos e portos. Outras vezes o próprio aparato do poder retira-
se dos centros e se isola em periferias.
O rural é recriado e apropriado por racionalidades e usos urbanos: subúrbios ru-
rais, sítios de veraneio e segunda residência. Assim como os parques e jardins urbanos
da era industrial, uma ruralidade nova se forma com elementos abstraídos da realidade
anterior mais diversa. E claro, há o agrário e agropecuário: espaços de produção altamente
tecnificado, verdadeira indústria da produção de alimentos e matérias-primas, derivação
industrial da antiga lavoura. Portanto, “a relação urbanidade-ruralidade não desaparece”; se
intensifica e se multiplica (Lefebvre, 2008a).
Estendendo-se fisicamente sobre áreas naturais ou sobre o rural, o urbano tende
a cobrir todo o espaço social. E essa extensão ultrapassa o aspecto físico. Ela significa que
as relações de produção e reprodução oriundas no urbano atingem o conjunto do espa-
ço social. São condições de urbanização extensiva (Monte-Mór, 1994). O padrão urbano
“se estende para além das cidades”, penetrando “virtualmente todos os espaços regionais

8 Conceito marxiano retomado por autores neomarxistas interessados na urbanização como dimensão
da economia capitalista (Monte-Mór, 2006).
9 Lefebvre viu na criação dessas periferias, do habitat como redução do habitar uma estratégia de classe,
através da qual a burguesia negou as classes subalternas o direito à cidade, à festa, ao poder e ao excedente
econômico.

328
integrando-os em malhas mundiais”. Ela tanto expressa “a extensão das condições gerais
(urbano-industriais) de produção a todo o território” quanto “a extensão, no bojo do teci-
do urbano, da práxis urbana, isto é, da política (da pólis) e da cidadania (da civitas), a todo
o espaço social” (Monte-Mór, 2011, p. 176).
Por tudo isso, a urbanização contemporânea não significa abolição da natureza
ou do campo. Estes são frequentemente entendidos como opostos, antiurbana, mas o ur-
bano constitui em verdade um terceiro elemento, uma terceira realidade que emerge na
dialética campo-cidade e recria ambos (Monte-Mór, 1994). É certo que a cidade, antiga
e medieval, ou as muitas outras cidades e formas urbanas criadas pelo homem alhures
– na Ásia, África, América, na Amazônia inclusive –, retinham em si a natureza e a produ-
ção primária de alimentos e materiais. Estas formas urbanas, no mínimo, criaram sentido
social para a natureza e para a produção primária, inclusive por meio de sua constante
renovação técnica e produtiva. O urbano ainda faz isso? É possível dizer que sim, mas isso
ocorre em meio à radical recriação dessas relações.

Do urbano industrial à sociedade urbana

A indústria como forma de organização da produção nasce também com grandes impli-
cações para todas as esferas da vida fora da produção imediata, isto é, para a reprodução.
Nas sociedades tradicionais a vida econômica foi regulada por um conjunto de
restrições não econômicas. Os mercados existiam e cumpriam papéis importantes, mas
seu alcance era restrito. A vida externa à produção e a troca de mercadorias – a esfera da
reprodução – era enorme, majoritária. Produção e reprodução se conectavam graças a
regulação de mecanismo sociais amplos e uma esfera econômica integrada na vida social.
Os mercados estiveram sempre presentes, já que a vida social, vida na cidade, inclui a tro-
ca; mas os mercados não regularam a sociedade. Eles eram regulados por ela. A produção
se inseria na vida, mas não a controlava.
A sociedade de mercado se consolidou no mesmo processo pelo qual a indús-
tria se tornou força organizadora da produção e reprodução. Os mercados, liberados do
aparato regulatório ao longo de um conflito secular no qual foram favorecidos pela mão
pesada do Estado monárquico, expandem-se sobre múltiplas esferas da realidade. O
mercado de “trabalho livre” introduziu a lógica econômica na vida humana. O mercado
de terras e recursos naturais fez o mesmo em relação à natureza, ao espaço e à cidade
(Polanyi, 2000; Mumford, 2008; Lefebvre, 2008a).
Tal processo prossegue nas primeiras décadas do século XX e se aprofunda de
rapidamente após a II Guerra Mundial. Numa inversão em relação às sociedades pré-in-

329
dustriais, a manutenção e a vitalidade da economia capitalista dependem cada vez mais
do aprofundamento do controle dos mercados sobre partes da realidade social antes ex-
ternas a ele. Para isso, o controle do espaço construído e da vida cotidiana oferecem as
fronteiras fundamentais. O espaço, seu controle e sua produção, foram de início alvo de
menor atenção. O poder econômico e o capital atentaram mais ao controle do tempo,
tempo de trabalho não remunerado, fundamento do lucro e da acumulação. Mas essa re-
alidade se altera no século. XX. Controlar o espaço significa controlar recursos naturais,
integrar mercados, assegurar suportes à circulação, e sobretudo forjar a vida cotidiana de
maneira cada vez mais ajustada ao consumo de mercado.
Por tudo isso, diz Lefebvre (2008a), o “capitalismo sobrevive produzindo espa-
ço”. O espaço transforma-se em mercadoria, embora não como qualquer outra. Ela é
10

aquela que fornece grande parte da coerência e estabilidade que o sistema necessita. Por
essa via, o cotidiano, que antes prefigurou o oposto da produção – a casa oposta à fábrica,
o tempo livre oposto ao tempo vendido, o lúdico oposto ao ofício –, se integra a lógica da
produção. A esfera econômica se assenhora da reprodução, no mesmo movimento em que
se assenhora do espaço e produz a urbanização. Após tornar-se a força que controla a pro-
dução de objetos-mercadoria, o capital impõe seu controle sobre o tempo e em seguida
sobre o espaço, passando a produzi-los como mercadoria. Produção de espaço significa
então produção de espaço construído, mas também de uma segunda natureza, derivada
da intervenção técnica e industrial sobre a (primeira) natureza. A interação cultura/natu-
reza se integrou à vida na cidade, e também adentra a escala e lógica industriais.
No coração desse processo está a formação das centralidades urbanas, as me-
trópoles modernas, centros dinâmicos da economia contemporânea. Na produção do
espaço metropolitano se articulam grandes esferas do capital – construtores, capital
financeiro, indústria automobilística, entre outros – e do Estado. Na moldura da metró-
pole os setores econômicos se multiplicam. Nesse movimento, eles capturam segmen-
tos cada vez mais profundos da vida cotidiana – educação, saúde, arte, entretenimento,
alimentação, cuidados pessoais, assuntos domésticos.
O urbano industrial transbordou sobre campo e natureza; a produção transbor-
dou sobre a reprodução, implicando tendências de homogeneização. Abordemos apenas
um aspecto desse fato. A prática industrial se baseia na padronização. Produtos padroniza-
dos, trabalho padronizado, insumos padronizados, consumo padronizado. As exigências
da escala de produção e redução de custos explicam parte dessa tendência. Mas outros de-

10 Enunciada assim ligeiramente essa hipótese não deve ser tomada como rasteira ou trivial. Ela integra
uma das contribuições mais originais e mais criticadas do autor, e está na base de uma obra extensa
(Lefebvre, 1991; 1976; 2008a).

330
terminantes entram na equação: a ciência e a técnica, os aparatos educacionais, estratégias
concorrenciais; a penetração de todas essas forças nas instituições e na política. Lefebvre
(1991) indica que o próprio espaço produzido tem papel fundamental nessa homogenei-
zação: ele chama espaço abstrato à síntese espacial de abstração e concretude embutidos
nessa padronização. O espaço homogêneo se difunde como ataque ao diferente e ao di-
verso, como na urbanização do campo e nas ameaças à biodiversidade.
Mas, isso não significa que o industrial seja a forma final que o espaço adquire. O
urbano industrial não é a última forma da organização da sociedade e espaço, embora ele
se apregoe a si mesmo como esta última forma; e ainda que de fato ele seja altamente
funcional para a permanência das economias de mercado.
O período industrial difunde e enraíza a lógica industrial. Mas há aspectos a indicar
que este padrão não pode se estender indefinidamente. A ampliação da capacidade científica,
tecnológica e produtiva, combina-se com crises recorrentes. As exigências ambientais torna-
ram-se proibitivas e as consequências atingiram escala planetária: fala-se hoje num antropoce-
no, era geológica em que o homem ameaça o equilíbrio natural do planeta (Crutzen, 2006).
Segundo Lefebvre, a virtualidade que dá sentido à época industrial é o devir de um pe-
ríodo novo, a época urbana. O autor chama essa passagem da revolução urbana, na qual haveria
o triunfo de uma sociedade urbana. Assinala que se há um horizonte de emancipação contra
a redução do homem e da natureza à mercadoria, passando pelo urbano como contraponto a
lógica industrial. Lefebvre nota que a cidade antiga e medieval prefigura ou antecipa processos
que a indústria e a industrialização realizaram de modo mais intenso, embora isolado e seccio-
nado da vida como um todo. A época industrial deu as partes desse todo e dimensões inéditas
e ameaçadoras, as quais se esgotam e devem se reverter numa época urbana. Reencontramos
aqui a dialética das abstrações concretas, no tratamento de Lefebvre (1991) do espaço abstrato,
projeção abstrata, mas real, do poder do capital e do Estado no espaço.
Por essa ótica, não há fantasia em dizer que a superação do industrial é revanche do
urbano sobre o industrial. A indústria realiza uma projeção dialética da cidade, entrando
em conflito com ela e superando-a em parte, torna-se uma potência estranha à vida na
cidade. A homogeneização própria da indústria se sobrepõe à diversidade própria da vida
na cidade. A produção, isolada e autocentrada, se impõe a reprodução. Mas esse movi-
mento encontra seus limites. A industrialização se revela “como uma etapa da urbaniza-
ção”, um momento intermediário (Lefebvre, 2008b, p. 126).
Há não só uma inversão teórica, mas prática. A transformação do espaço em mer-
cadoria eleva a urbanização ao primeiro plano. Podemos vê-lo de várias maneiras. O capi-
tal sobrevive produzindo espaço e estendendo-se sobre o espaço. O controle do cotidia-
no e da reprodução se transforma em prioridade e se realiza por meio da urbanização. A
centralidade se torna suprema raridade, aquela que concatena todas as raridades (Lefeb-

331
vre, 2008c). A economia tornou-se um fenômeno deslocalizado e indiferente ao espaço
geonômico, para em seguida se relocalizar de modo mais marcante como espaço abstrato.11
Isso não quer dizer que a indústria deixa de ser fundamental no desenvolvimento ou
que desapareça. Ao contrário. Trata-se de perceber como a lógica da indústria penetrou pro-
fundamente na prática social e por isso mesmo pareceu tornar-se a única lógica possível, ocultando
assim suas próprias limitações. O que Lefebvre ajuda a perceber é que a urbanização industrial
pode ser compreendida como prelúdio de outro urbano. Esse novo urbano inclui características
da época industrial mas a ultrapassa. Ele prolonga a potência produtiva, científica e econômica
da indústria, mas modifica profundamente as tendências da lógica industrial.
Nesse movimento passamos da recuperação do sentido da cidade em relação a
economia à compreensão da urbanização industrial. Esse movimento torna claro os limi-
tes da própria industrialização. A obra de Henri Lefebvre fornece, na perspectiva aqui as-
sumida, elementos para uma visão de desenvolvimento que ultrapassa a lógica industrial.
A ideia de que exista sociedade urbana em formação, anuncia a superação das ten-
dências redutoras da indústria. Recupera elementos da vida na polis, na civis, no burgo, nas
cidades orientais, nas formas urbanas aborígenes da floresta tropical (Risério, 2012), entre
outras, que a difusão do urbano industrial destruiu, marginalizou ou pôs em risco de morte.

Subdesenvolvimento e vida cotidiana


Parece improvável, diante desse quadro, discutir desenvolvimento e subdesenvolvimento
sem se referir a esses processos. Não soa razoável debater a urbanização como um fenô-
meno derivado e se ater aos sintomas do processo.
Se a sobrevivência do capitalismo depende do controle sobre o espaço e a vida co-
tidiana, haverá algo a dizer sobre o peso de ambos na persistência do subdesenvolvimen-
to. Assim também tocante as relações centro-periferia e colonialidade em escala mundial.
A difusão, do centro à periferia, de padrões produção, consumo e organização do espaço,
foi apontada pela escola estruturalista latino-americana (Rodríguez, 2009), e em especial
por Celso Furtado, como fundamento do subdesenvolvimento (Furtado, 1978). A adoção
de padrões de consumo e cultura hegemônicos liga as sociedades periféricas ao centro de
modo sutil e persistente, difundindo uma mesma visão de mundo, valores, e visão de nature-
za e futuro. Conectada a esses aspectos imateriais, adentra a periferia uma camada de civiliza-
ção material: universo de objetos, técnicas e tecnologias que forma o aparelho produtivo, mas
também povoa e orienta a reprodução, o cotidiano, as relações com a natureza.

11 Aqui o argumento lefebvriano converge com a análise de F. Perroux sobre a espacialidade abstrata das
hierarquias bancarias (Perroux, 1967, cap. “Os espaços econômicos”).

332
Furtado enfatizou esse fato como mecanismo fundamental do subdesenvolvi-
mento. Destacou sua ligação com macroestruturas sociais e econômicas que operam há
séculos nas economias dependentes. No caso brasileiro tais macroestruturas operam des-
de as origens coloniais como economia exportadora de commodities.12 Destacou que esse
foi o traço básico da manutenção da concentração de renda, da precariedade, exclusão;
da industrialização e modernização conservadoras que a sociedade brasileira realizou. A
ligação entre desigualdade e diferenciação de consumo no topo da distribuição de renda
se tornou um pilar no funcionamento das economias dependentes (Furtado, 1961).
Segundo o autor a dinâmica tecnológica das economias periféricas constitui um
dos principais elementos de manutenção da dependência. Como sistemas dependentes,
as economias periféricas experimentam a difusão tecnológica mais via consumo do que
via produção. O padrão de consumo das elites periféricas acompanha parâmetros do cen-
tro, graças às importações, tanto de objetos intensivos em tecnologia como nas cadeias
de consumo trivial (Furtado, 1980). Mas o grosso da população esteve costumeiramente
de fora desse processo, de modo que uma das marcas do subdesenvolvimento é que o
“padrão de consumo da maioria da população seja baixo ou sofrível”.
Como a plêiade de objetos e técnicas adentra as sociedades dependentes se orienta
ao consumo, a produção se moderniza, mas o predomínio secular da economia primário
exportadora se renova. A organização urbano-industrial se difunde, mas o setor primário
exportador permanece como core das economias dependentes. Dessa forma, os setores
dinâmicos da produção industrial não possuem (ou quase não possuem) demanda in-
terna. Isso permite a renovação sem transformação do sistema econômico, prolongando
a desarticulação das relações produção/consumo. Um sistema urbano industrial peculiar,
portanto, que se organiza mais como suporte do sistema primário exportador do que
como suporte de um sistema econômico que devesse atender a vida local e se comple-
mentar com exportações e importações.
Jacobs (1986) destaca como esse arranjo é impróprio para a diversificação da
economia e a criação de diversificação e desenvolvimento a partir de dentro, endóge-
no. De Janvry (1981) chama economias desarticuladas aquelas em que os salários dos
trabalhadores têm baixa importância para a formação da demanda, e os investimentos
têm pouca ou muito pouca importância para a modificação do consumo e bem-estar
dos trabalhadores, graças ao predomínio da produção exportadora, ao desemprego/
subemprego e a distribuição de renda desigual.

12 É bom lembrar que o açúcar talvez tenha sido da primeira das commodities do comércio internacional.

333
O atendimento à demanda interna por produtos industriais se soluciona pela im-
portação de bens finais, mas também de bens de capital e insumos tecnológicos. Grande
parte do influxo de objetos, serviços industriais e tecnologia se agrega à vida material de
maneira exógena. Isso implica que esse influxo não necessariamente vai em direção às
necessidades formadas internamente. Vindo de outra realidade – outros problemas, cul-
tura, costumes, questões, interesses econômicos –, é usual que o padrão de oferta se dirija
a uma demanda distinta da local. Um padrão de consumo urbano industrial se difunde,
mas a realidade local assume pequena importância como indutora de criação econômica.
Logo, não há surpresa no fato de os problemas locais não encontrarem solução,
permanecendo até que deixem de existir como problema, ou atraiam a atenção de algum
agente econômico não local. O caráter desarticulado das economias dependentes (De Jan-
vry, 1981) transparece de um modo peculiar no desencontro entre um aparelho produ-
tivo que se moderniza para produzir para exportação e uma vida cotidiana urbana cujos
problemas mais triviais tendem a permanecer num campo opaco, excêntrico.
Sob esse prisma a precariedade das condições de vida de grande parte da população
nos países periféricos, não corresponde (apenas) à falta parcial ou absoluta de recursos para o aten-
dimento de suas demandas. Ela espelha a desarticulação entre o sistema econômico e as neces-
sidades que brotam dos circuitos mais internos da vida econômica dessas sociedades. Num
cenário extremo, trata-se de economias cujo arranjo estrutural não tem ligação com o que defi-
ne essa sociedade como um ente para si, com aquilo que constitui seu cotidiano. O subdesen-
volvimento não se ajusta (totalmente) à descrição de carência de poupança ou crédito.
Essa situação é corriqueira para a população pobre, mas não apenas. Se atentarmos
à maneira pela qual objetos de consumo final ou intermediário se ajustam ao cotidiano dos
grupos abastados no Brasil, notaremos evidências desse desajuste. Há convivência conflituo-
sa entre improvisação precária e high tech, por exemplo, como efeito de cadeias descontínuas
de suprimentos modernos para a maioria dos setores, em especial os mais sofisticados, consu-
midos apenas por quem tem maior renda e riqueza. O desgaste ou falha de um artefato high
tech cria um beco sem saída. Ou se interrompe seu uso, ou se apela à improvisação.
Ora, a improvisação é um aspecto básico da criação de respostas técnico-econô-
micas novas; ela é o cerne do trabalho novo. A falha, o desgaste, a inconsistência, a insufici-
ência de um artefato, material ou técnica, são sinais que o seu uso envia aos usuários e/ou
produtores. Se esses sinais são percebidos e compreendidos, abrem-se portas às respostas,
à criação (Jacobs, 1969). Logo, há uma intima conexão entre a improvisação cotidiana e
o próprio fenômeno do desenvolvimento:

Se alguém deseja definir desenvolvimento econômico em uma única


palavra, essa palavra seria improvisação. Mas improvisações inviáveis são

334
estéreis, então o seria mais exato dizer que desenvolvimento é um proces-
so de improvisar continuamente em um contexto que faz injetar tais im-
provisações dentro da vida econômica cotidiana de modo viável (Jacob,
1986, p. 154-50. tradução nossa).

Ocorre que no subdesenvolvimento, a improvisação enraizada no cotidiano precá-


rio sofre, ela mesmo, de precariedade. A distância em relação à produção formal concorre
para que ela se esterilize, mesmo quando oferece uma resposta perspicaz ou efetiva a um
problema cotidiano. Ela é encarada como um caminho infrutífero: mesmo que atenda a um
descasamento da técnica ou dos artefatos com o uso ou com o ambiente de modo criativo,
não se considera que possa levar a gambiarra a sério. Classificada, ou desclassificada, como
gambiarra, a improvisação precária se tolera, às vezes. Mas essa tolerância vai geralmente até
que uma nova camada do high tech se superponha ou apague o problema, mesmo que, iro-
nicamente, a solução avance em uma direção apontada pela própria improvisação precária.
A perspectiva lefebvriana sobre a importância do cotidiano, da urbanização e da
produção do espaço adiciona ao debate do desenvolvimento aspectos pouco usuais. A
compreensão do movimento de sofisticação da vida material que emana da metáfora da
cidadela – lugar do enriquecimento da experiência e socialização da natureza (Mumford),
assim como o papel da cidade no nascimento do trabalho novo (Jacobs) –, desloca a ques-
tão da criação técnico-econômica. Usualmente se diz que a criação depende da concorrên-
cia entre firmas, mas não se atenta ao papel da vida urbana onde ocorrem a simultaneidade,
as articulações e as relações com o ambiente natural. A vida urbana cotidiana é o terreno
do constante surgimento de situações que desafiam a técnica e o universo de artefatos co-
nhecidos. Quando esse terreno é privado de diversidade e se seus frutos são interrompidos,
a criação endógena de respostas a problemas específicos – uma das definições de Furtado
para desenvolvimento – se esteriliza. Além disso, se o trabalho novo nasce do trabalho ve-
lho (Jacobs, 1969), cada esterilização desse movimento, como no caso das gambiarras, é
um curto-circuito nas possibilidades internas de autotransformação.
O subdesenvolvimento aparece então como interação peculiar entre cotidiano
precário e “inadequação tecnológica”, conforme a expressão de Furtado (1969). No nível
abordado por Furtado, essa inadequação se traduz em importação de modelos de consu-
mo pelas elites e no constante travamento da endogenização do progresso técnico, o que
recoloca permanentemente a desigualdade e a dependência como pilares do modelo de
crescimento do aparato econômico.
No nível que queremos destacar, a manifestação do fenômeno encerra as pos-
sibilidades criativas da vida urbana na armadilha da dependência porque aborta o nas-
cimento de trabalho novo na vida cotidiana, tornando infrutíferos os ensaios criativos

335
surgidos na defasagem entre a técnica e a prática, natureza e vida urbana, artefato e
uso. Além disso, diversificação e sofisticação da cultura material se tornam limitadas
em função da exclusão da parte majoritária da população dos circuitos de consumo
que não os muito básicos. As soluções de consumo de massa tendem ao homogê-
neo, e o binômio diversificação-sofisticação se circunscreve à cidadela de consumidores
privilegiados. Como destacamos, esse duplo processo diversificação-sofisticação é ca-
racterístico da vida urbana, característico da aplicação da técnica e das possibilidades
criadas pela acumulação em direções que escapam ao terreno básico da sobrevivên-
cia, como também destacou Furtado (1980). A sua redução ao circuito elitista é fatal
para o dinamismo econômico, e ainda pior na medida em que ocorre exogenamente,
como no subdesenvolvimento.
Retomando o aspecto redutor do urbano industrial, da lógica industrial, os de-
safios da superação do subdesenvolvimento aparecem sob uma luz distinta. Se a lógica
industrial tende a redução de diversidades, e o desenvolvimento tem a diversificação
como vetor, focalizar a emergência do urbano como recuperação da diversidade se tor-
na fundamento da criação endógena de respostas técnicas, econômicas e institucionais.
Como evidenciam os problemas ambientais contemporâneos, a relação entre indus-
trialização e natureza tende para a redução da biodiversidade. A cidade, por outro lado,
criou aberturas em outras direções. A socialização do espaço e da diversidade natural
estiveram na base da criação econômica na cidade, como argumentamos acima. Assim
também, argumentamos sobre o papel que as instituições urbanas antigas e medievais
que forneceram obstáculos positivos, restrições cuja presença, foi propulsora do pa-
drão de criação econômica que distingue a trajetória dos países centrais.
O desenvolvimento como industrialização é a base da compreensão sobre o
debate econômico nesse terreno, desde meados do século XX. Ao mesmo tempo a
urbanização tem se discutido em geral como realidade derivada. A indústria e não o
centro urbano assumiu, não sem razão, o protagonismo no debate sobre a transforma-
ção socioeconômica emancipatória embutida na discussão sobre o desenvolvimento.
Há verdade nessa visão, mas uma verdade-limitada, particularmente se estamos interes-
sados na superação do subdesenvolvimento percebido como uma armadilha histórica
e não como etapa de um caminho virtuoso.

336
A Amazônia, desenvolvimento e o urbano como
realidade pós-industrial
A aglomeração urbana é o centro dinâmico da vida econômica. A época industrial consti-
tui uma época de expansão sem precedentes do fenômeno urbano. Entretanto, a urbani-
zação não carrega consigo o dinamismo econômico por toda parte.13
Nos países subdesenvolvidos essa disjunção se explica em parte em função do ca-
ráter periférico do processo de urbanização: o espaço se urbaniza como suporte da pro-
dução, condições gerais de produção e consumo, mas de forma muito limitada no sentido de se
tornar centro de vida econômica. Um tecido urbano recobre o espaço, mas a tríade urbana
– festa, poder e excedente – que deu sentido e endogeneidade à vida econômica sediada
na cidade se fragmenta e se ausenta da maior parte desse tecido (Lefebvre, 2008b).
Mas então qual é o centro da vida econômica na época industrial? O centro urbano
deixa de ser seu lugar? Há respostas positivas e negativas a esta questão. Como processo
dialético, ela comporta respostas de sim e não, como tentamos discutir ao longo do tex-
to. Sim porque em parte o centro dinâmico da vida econômica se torna a indústria. Dela
emana a lógica que organiza a produção e transborda para além desta esfera imediata,
atingindo o conjunto da vida social. Não, entre muitos motivos, porque a centralidade
contemporânea renova e modifica o sentido da aglomeração urbana. Mas no que nos in-
teressa aqui, não principalmente porque o urbano se anuncia como nova forma de organi-
zação da sociedade que recupera a diversidade como elemento da vida social; recupera a
diversidade como elemento-chave da convivência frutífera com a natureza.
Se não houver um horizonte do urbano como realidade emancipatória, que reco-
loca a cidade como “obra humana por excelência” e reinterpreta a industrialização como
um momento na realização da sociedade urbana, a discussão do choque entre urbaniza-
ção-industrialização e natureza estaciona em um impasse. Foi com o objetivo de ultrapas-
sá-lo que fizemos esse percurso. Retornamos à origem da cidade e tentamos perceber seu
lugar na vida econômica: na relação com a natureza, no surgimento do conhecimento e
da técnica organizadas, assim como na sua sofisticação e diversificação. Retomamos tam-
bém o papel da cidade no embate com as forças econômicas da troca e do mercado e
os limites institucionais colocados por ela, a cidade a essas forças de mercado, e como
esse embate foi criador. Finalmente, procuramos compreender a explosão-implosão deste

13 É interessante notar que qualquer menção à difusão das condições de desenvolvimento traz
implicitamente alguma menção à difusão da urbanização. É folclórica a identificação entre os sinais de
urbanização e a “chegada do progresso”, assim como a desilusão com as mudanças que se seguem.

337
aparato da cidade, provocado pelo seu próprio agigantamento na industrialização, colo-
cando em evidencia aquilo que anuncia os limites a esse processo e sua superação.
Na discussão sobre a Amazônia esse movimento parece fundamental. A discussão
do desenvolvimento na região recai na perplexidade frente à percepção de que a incorpo-
ração industrial dos recursos naturais ameaça o bioma e põe em marcha uma cadeia de
eventos funestos para a sociedade brasileira e mais amplamente para as condições climá-
ticas do planeta, hipótese ainda controversa, mas não facilmente descartável.
A voracidade e o despropósito da supressão acelerada da floresta tropical – e
juntamente com ela todo o ambiente altamente complexo de rios, espécies animais,
clima – não é a única opção para a incorporação dos recursos naturais da Amazônia.
Essa sensação é compartilhada por muitos, mas não parece haver resposta alternati-
va razoável. Esse impasse deriva da identidade suposta entre urbano e industrial, a
qual como argumentamos a partir da obra de Lefebvre, contém uma verdade limitada.
Adicionada a percepção de que a vida econômica aconteceu desde seu princípio no
suporte urbano e que a simultaneidade e a articulação próprias do centro urbano são
aspectos fundamentais para a incorporação criativa e não destrutiva dos recursos na
natureza, a disjunção urbano/natureza se relativiza. Reintroduzida a ligação entre pro-
dução e reprodução, percebendo o cotidiano como aspecto fundamental do desen-
volvimento e a ligação da vida urbana com o ambiente, a busca ingrata de caminhos
para uma prática econômica não predatória se conecta de modo menos problemático
ao pensamento sobre natureza e economia.
Se refletimos como Becker (2009) sobre a relação da economia madeireira com
as cidades amazônicas, por exemplo, inclusive pela grande ameaça que esse setor repre-
senta ao bioma, podemos imaginar com a autora uma “rede de cidades da madeira”. Es-
ses centros urbanos seriam pontos de organização da produção, mas algo muito além de
aglomerados de serrarias situadas num urbano precário. Ao invés de expressão do uso
predatório, bastiões do desmatamento, constituiriam polos de uma relação urbano-natu-
reza baseado num uso racional do recurso, mas uma racionalidade abrangente, que não se
esgota no ganho econômico privado de curto prazo. Mais do que suporte da produção
industrial, esses centros abrigariam outras racionalidades, assim como a racionalidade do
outro (Santos, 2000): o outro não industrial, o outro indígena, o outro natureza.
Se a vida econômica de tal centro urbano extrai da floresta sua matéria-prima e a
substância de seus valores de troca, seu aparelho econômico precisa produzir e reproduzir
a floresta, pois esta é pressuposto da sua existência. Destruir a floresta equivale a destruir o
alicerce que se sustenta o edifício produtivo. A natureza não é mais fonte de matéria gené-
rica, que alimenta um mecanismo que lhe é indiferente. Ao contrário, nessa perspectiva, a
natureza é força produtiva viva, valor que se valoriza ao se reproduzir e se ampliar (Costa,

338
2012c). O que Becker chama “articulação do complexo verde e o urbano” é necessaria-
mente um artifício de convivência com o bioma.
Alterando dessa maneira a perspectiva usual, poderíamos dizer que capítulos trágicos
da história econômica da Amazônia como economia da borracha (Costa, 2012a), a deple-
ção dos castanhais de Marabá (Emmi, 1999) e a quase extinção do mogno (Homma, 2013)
ou do jaborandi (Pinheiro, 1997), para usar alguns exemplos, devem-se em parte a inexis-
tência de centros urbanos de economia diversificada onde esses recursos de alto potencial
econômico pudessem se enraizar num mecanismo de desenvolvimento endógeno. Obvia-
mente existem bases urbanas associadas à produção dessas matérias-primas originarias da
biodiversidade, mas elas têm funcionado como suporte à produção industrial, e não como
centros de diversificação social e econômica baseados numa vivência associada à biodiver-
sidade como tal. Nos termos atuais, a base urbano-industrial abriga e torna possível a pro-
dução da indústria com sua tendência a redução do diverso ao homogêneo. A vida urbana
que adiciona a diversidade ao cotidiano e daí extrai valores econômicos como resposta local
aos problemas cotidianos e então cria valores exportáveis é um fenômeno de outra natureza.
Devido ao seu caráter específico ela é em grande parte uma invenção a ser conduzida, mas
um passo inicial é considerá-la uma virtualidade possível. A ausência e a não presença de
certo padrão urbano surgem como ancora do subdesenvolvimento predatório.
Devemos notar também que eventos virtuosos na história econômica da região
amazônica se deram quando esse casamento feliz vida urbana-natureza se realizou. Esse
fato remonta a ligação entre vida urbana e natureza nas vilas amazônicas dos séculos
XVII e XVIII oriundas das reduções jesuíticas, na chamada economia das drogas do ser-
tão (Costa, 2012b). Um capítulo recente é a entrada do açaí nos circuitos econômicos
nacionais e internacionais, inclusive com um nível de retenção local da renda e criação
de trabalho novo no circuito produtivo bastante notável. Ora, se recorrermos à visão de
Santos (2008) sobre os dois circuitos da economia urbana nos países subdesenvolvidos,
e admitirmos que o circuito inferior se adéqua ao atendimento das necessidades locais,
logo mantém maior porosidade as especificidades locais e regionais. A trajetória do açaí
é essa: espécie da biodiversidade local introduzida na cultura material amazônica pelas
populações nativas, e mantida pela população mestiça, adentra a vida material urbana
pelo circuito inferior da economia, isto é, como artigo que atende as necessidades de uma
população que se move à margem do mercado e da economia amazônica interligada a
economia mundo. A prática urbana enraizada nas tradições regionais, mas interligada a
esses circuitos externos, abre-se em algum momento para seu consumo. Modificado, so-
fisticado, diversificado, o consumo e a produção do açaí se integra cada vez mais à econo-
mia amazônica como um de seus produtos de exportação. Um universo de derivados se
forma, e um conjunto de técnicas e artefatos emerge para dar conta dessa produção.

339
Tal qual o açaí, um conjunto de outros artigos realiza trajetória semelhante. Alguns
atingiram a condição de produtos exportáveis, outros são consumidos em circuitos urbanos
regionais, muitos outros ainda compõem o universo de artigos consumidos por populações
locais, isto é, que fluem no circuito inferior da economia Amazônia. Esse circuito, seja como
for, fornece um padrão de incorporação de artigos da biodiversidade que parece promissor como
fundamento de processos de desenvolvimento endógeno na Amazônia. O caráter verdadei-
ramente endógeno, no entanto, compreende a capacidade de produzir reproduzindo o bioma
como força viva, como conjunto ambiental complexo que fornece valores de troca únicos
(Costa, 2012b) e fazê-lo de forma continuamente renovada. O ciclo de introdução de traba-
lho novo, nesse sentido, apenas começa com a entrada de materiais retirados da biodiversida-
de na vida econômica. O verdadeiro processo criativo implicado no desenvolvimento se dá na
diversificação de artigos daí derivados, o que por sua vez abre caminho e cria espaço, expertise,
oportunidades, para a continuidade da própria “exploração” criadora do patrimônio natural,
que Costa diferencia do “extrativismo de aniquilamento” (Costa, 2012b).
O que se destaca nessa trajetória de incorporação dos elementos da biodiversida-
de à vida econômica, que articula a produção econômica e reprodução do bioma, é sua
ligação a elementos da vida urbana. Aí estão a construção de uma relação desalienada ur-
bano-natureza; as instituições urbanas como regulação do livre mercado; a compreensão
e limitação das tendências homogeneizantes da produção industrial e sua superação na
emergência da sociedade urbana. De igual forma a consideração, de modo sério, da vida
cotidiana e dos mercados locais, do atendimento às suas necessidades e superação das
formas variadas de precariedade, terreno onde emergem o trabalho novo, a diversificação
e a sofisticação econômica, o desenvolvimento como processo gerado endogenamente.

REFERÊNCIAS
BAIROCH, P. Cities and economic development: from the dawn of history to the present. Chicago: University
of Chicago Press, 1988.
BECKER, B. K. Articulando o complexo urbano e o com plexo verde na Amazônia. In: Centro de Gestão de
Estudos Estratégicos (CGEE). Um projeto para a Amazônia no século 21: desafios e contribuições. Brasília:
CGEE, 2009.
BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII: os jogos das trocas. São Paulo:
Martins Fontes, 2005a. v. 1 e 2.
COSTA, F. de A. Grande capital e agricultura na Amazônia: o projeto Ford no Tapajós. Belém, NAEA, 2012a.
(coleção Economia Política da Amazônia)
COSTA, F. de A. Formação rural extrativista na Amazônia: os desafios do desenvolvimento capitalista (1720-
1970). Belém: NAEA, 2012b. (coleção Economia Política da Amazônia)

340
COSTA, F. de A. Elementos para uma economia política da Amazônia. Belém: NAEA, 2012c. (coleção Econo-
mia Política da Amazônia)
COSTA, F. de A. Formação agropecuária da Amazônia: os desafios do desenvolvimento sustentável. Belém:
NAEA, 2012d. (coleção Economia Política da Amazônia)
COSTA, F. de A. A agropecuária na economia de várzea da Amazônia: os desafios do desenvolvimento susten-
tável. Belém: NAEA, 2013. (coleção Economia Política da Amazônia).
CUNHA, A. M.; MONTE-MÓR, R. L. M. A tríade urbana: construção coletiva do espaço, cultura e eco-
nomia na passagem do século XVIII para o XIX em Minas Gerais. In: ANAIS DO IX SEMINÁRIO SO-
BRE A ECONOMIA MINEIRA. Vol. 1. Cedeplar, UFMG, 2000.
CRUTZEN, P. J. The “anthropocene”. Berlin: Springer Berlin Heidelberg, 2006.
DE JANVRY, A. The agrarian question and reformism in Latin America. Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1981.
DOLLINGER, Philippe. The German Hansa. Stanford University Press, 1970.
EMMI, M. F. A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais: do Burgo de Itacayuna ao Município de
Marabá Belém: NAEA/UFPA, 1999.
FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
FURTADO, C. Teoria e política do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Biblioteca Universitária, 1969.
FURTADO, C. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento: enfoque interdisciplinar. Companhia Editora Nacio-
nal, 1980.
HOMMA, A. K. O. Madeira na Amazônia: extração, manejo ou reflorestamento? Embrapa Amazônia
Oriental (ALICE) 2013.
JACOBS, J. The economy of cities. Random House Inc., New York, 1969.
JACOBS, J. Cities and the Wealth of Nations. Harmondsworth, UK: Penguin, 1986.
JACOBS, J. The nature of economies. Random House LLC, 2002.
LEFEBVRE, Henri. Lógica formal lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
LEFEBVRE, H. The survival of capitalism. London: Allison and Busby, 1976.
LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Cambridge: Blackwell, 1991.
LEFEBVRE, H. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2008b.
LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008c.
LEFEBVRE, H. Critique of everyday life. London: Verso, 2014.
MONTE-MÓR, R. L. M. Espaço e planejamento urbano: considerações sobre o caso de Rondônia. Disserta-
ção de mestrado. UFRJ, Rio de Janeiro, 1980.

341
MONTE-MÓR, R. L. M. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. Território, glo-
balização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur 1994.
MONTE-MÓR, R. L. M. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2006.
MONTE-MÓR, R. L. M. Urbanização extensiva e economia dos setores populares. O Brasil, a América Latina e
o mundo: espacialidades contemporâneas (II). Rio de Janeiro: Lamparina/FAPERJ/ANPEGE, 2008.
MONTE-MÓR, R. L. M. Formas e processos urbanos nas Reservas Extrativistas da Amazônia. In: CGEE
- Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. Soerguimento tecnológico e econômica do extrativismo na
Amazônia - Brasília, DF, 2011.
MUMFORD, L. A cidade na história. Suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2008.
PERROUX, François. A economia do século XX. Lisboa: Herder, 1967.
PINHEIRO, C. U. Jaborandi (Pilocarpus sp., rutaceae): a wild species and it’s rapid transformation in a crop.
Economic Botany, v. 51, n. 1, 1997.
POLANYI, K. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
POLANYI, K. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RISÉRIO, A. A cidade no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012.
RODRÍGUEZ, O. Estruturalismo latino-americano. São Paulo: Civilização Brasileira, 2009.
SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente, para um novo senso comum. São Paulo: Cortez, 2000.
SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. São Pau-
lo: Edusp, 2008.
SINGER, P. Economia política da urbanização. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1981.

342
Espaço e cultura: forjando um corpo
Deborah Cimini Cancela Sanches

O artigo que se segue é parte da dissertação de mestrado intitulada A produção do espaço no


território Xakriabá, que desenvolve um estudo sobre esta comunidade indígena localizada no
Norte de Minas Gerais. Trata-se do marco teórico da pesquisa, que emerge em um contexto
específico, em que arquitetura, sociologia e antropologia precisam se unir em um estudo
comum. As questões iniciais que motivaram a pesquisa foram muitas e vão desde os debates
mundiais acerca do reconhecimento da diversidade cultural, dos direitos e práticas indíge-
nas, a questões de âmbito nacional relacionadas e refletidas na sociedade brasileira, além de
questões específicas levantadas e demandadas pelo povo Xakriabá em seu território.
Desde 19951 existe uma parceria da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) com o Território Indígena Xakriabá (TIX) por meio do Programa de Educação
Indígena, envolvendo professores e alunos daquela instituição de ensino com a realidade
dessa comunidade indígena. Em 2004, face aos grandes desafios que vêm enfrentado em
relação à falta de alimentos, geração de renda e degradação do meio ambiente, foi solici-
tada à UFMG, pela comunidade representada pela Associação Indígena Xakriabá, apoio
para a realização de uma pesquisa sobre a economia local, o que acabou por gerar outros
projetos e parcerias com aquela comunidade.
Entre os inúmeros projetos desenvolvidos na UFMG estão: a pesquisa “Conhe-
cendo a Economia Xakriabá”, com o objetivo de compreender o processo de produção
e consumo desse povo; o projeto “Etnodesenvolvimento Xakriabá: Educação e Alterna-
tivas de Produção”, com o objetivo de capacitar as associações indígenas na elaboração e

1 Dados retirados de Clementino; Monte-Mór (2006).


execução de projetos locais e promoverem reuniões para identificar possíveis soluções
e alternativas sobre questões relacionadas ao plantio, ao trabalho e à circulação de bens,
além de atualizarem as aldeias dos resultados obtidos nos projetos; e o projeto “Casa de
Cultura”, voltado para a promoção socioeconômica, ambiental e cultural da comunida-
de (Marcolini; Magalhães; Cardoso, 2010). Com base na proposta do etnodesenvolvi-
mento foram desenvolvidos no campo da arquitetura: uma pesquisa sobre os processos
construtivos, e em conjunto com a comunidade, o projeto da “Casa de Cultura Xakriabá”,
que foi construída na aldeia Sumaré. Este espaço tornou-se uma referência de arquitetura
alternativa desenvolvida com a participação da comunidade indígena no seu território.
Tradicionalmente, os Xakriabá se caracterizam por uma economia baseada nas
relações e trocas familiares, pela tomada de decisão em grupo, por políticas voltadas para
interesses internos e coletivos atrelados a uma vontade de desenvolver-se enquanto co-
munidade, sem, no entanto, abandonar aquilo que lhes é intrínseco. Essas características
se expressam através de redes espontâneas de solidariedade que partem de uma identifi-
cação ao que é comum entre eles. Isso acontece principalmente e de maneira diferenciada
na relação entre os parentes estabelecidos dentro do grupo. Esta relação é demonstrada por
Rogério Silva (2011) na citação abaixo:

O que pudemos perceber é que a vida entre parentes era algo muito im-
portante, sendo parte essencial da vida entre os Xakriabá, como aquilo
que era vivido de forma intensa: uma atualização cotidiana de vínculos,
marcados pela produção e troca de alimentos, pela circulação de pessoas
pelas casas, pelas rodas de conversa, pelo trabalho na roça, pelos apadri-
nhamentos, pelas festividades, tudo isso sendo feito por um grupo muito
além da família nuclear (Silva, 2011, p. 12).

Pertencentes aos povos indígenas seculares do Brasil central, os Xakriabás, assim


como os povos Xavante e Xerente, são identificados como pertencentes à família linguís-
tica Jê, subdivisão Akwê (Lowie, 1963, p. 478 apud Santos, 1994, p. 3). Esses povos indí-
genas eram organizados em sistemas de clãs e compunham uma complexa organização
social, onde suas aldeias, em arranjo espacial circular, eram controladas conforme o qua-
drante solar (Guerra, 2011, p. 5).
Situando-os historicamente, ao final do século XVII o bandeirante Matias Cardo-
so e seu filho Januário chegaram àquela região do rio São Francisco com a finalidade de
“restaurar a segurança dos sertões” e escravizar índios para atuar como mão de obra na
abertura de “fazendas voltadas principalmente para a criação de gado” e construção de
igrejas (Santos, 1997, p. 18 e 19). Além disso, os Xakriabás seriam também aliados nas
guerras contra tribos locais, principalmente seus tradicionais inimigos, os ameaçadores

344
Cayapós. Em 1728, como reconhecimento aos serviços prestados, mas também com a in-
tenção de confiná-los para maior controle, os Xakriabás receberam de Januário Cardoso
a “doação” de uma “vasta extensão de terras que equivaleria hoje a todo o território de Ita-
carambi, parte de Manga e São João das Missões” (Clementino; Monte-Mór, 2006, p. 4).
Depois de lutas e ameaças de grileiros e de políticas de regularização de terras do
Estado na segunda metade do século XX, a chamada “guerra”, conduzida por lideranças in-
dígenas, levou à criação da Reserva Indígena Xakriabá, ao final dos anos de 1980. A área,
hoje ocupada pelo povo Xakriabá, é composta por regiões de Cerrado, Veredas, Mata Seca
e Caatinga, apresentando relevos cársticos e cavernas na região do Peruaçu, delimitada pelos
rios Itacarambi e Peruaçu. O Cerrado se caracteriza por disponibilizar ciclos anuais interca-
lados de alimentos, e deste modo, para sua permanência nessa região, os povos ali instalados
desenvolveram hábitos de caçadores e coletores para seu sustento. No entanto, à medida que
seu território foi sistematicamente reduzido pela grilagem de pecuaristas, a obtenção de ali-
mentos nos modos tradicionais deixou de ser suficiente, pelas invasões e alterações no seu
ecossistema, e a agricultura desenvolvida nos moldes regionais passou a ser utilizada como
alternativa alimentar principal (Socioambiental, 2004 apud Guerra, 2011, p. 5).
Nesse contexto histórico, esse grupo étnico, em que pesem suas especificidades
culturais, apresenta hoje “uma organização social característica do campesinato e se reco-
nhecem na centralidade que atribuem à condição de agricultores” (Gomes; Monte-Mór,
2006, p. 5). Ainda hoje sofrem as consequências dessas invasões, principalmente por te-
rem sido empurrados para as piores áreas para o plantio da região, ficando

circunscritos a um recanto de terras altas, ou seja, nos rincões mais áridos


e improdutivos do território delimitado pela doação de 1728, nas chapa-
das, nos gerais, pois toda a parte baixa, no médio e baixo riacho Itacaram-
bizinho, nas planícies próximas ao Rio São Francisco e no baixo Peruaçu,
foi apropriada por fazendeiros (Silva, 2007, p. 17),

sendo que até pouco tempo, muitas aldeias sofriam falta de água até para subsistência.
Muitas transformações e um longo histórico de influências de diversas culturas,
miscigenação e incertezas quanto ao direito à terra, se desenrolaram na Terra Indígena
Xakriabá,2 o que acabou modificando a estrutura física e cultural daquele povo, gerando
desconfianças sobre sua autenticidade étnica, exigida aos índios pela sociedade nacional
em vários momentos. Ana Flávia M. Santos (1997), em sua pesquisa sobre a formação
desse povo, identificou a presença de “não índios” nas terras doadas à missão utilizando
uma citação de Saint-Hilaire (1975, apud Santos, 1997, p. 341, grifos do autor), que

2 Ver histórico Xakriabá mais detalhado em Santos (1997).

345
se referirá à população aldeada como xacriabás, fazendo notar que, em-
bora estes houvessem se fundido com negros e mestiços, à época de sua via-
gem (1817), reclamavam do Rei o privilégio de serem julgados por um dentre
eles, regalia que a lei não concede, creio, se não aos índios puros.

Embora o Território Indígena Xakriabá corresponda hoje a cerca de um terço do


território doado e historicamente herdado, constituem ainda a maior reserva indígena do
estado de Minas Gerais, tanto em termos de área ocupada quanto populacionais. Sua po-
pulação está em torno de 10.000 habitantes, distribuídos em 27 aldeias e 30 subaldeias,
e desde a primeira homologação do território, em 1988, sua população vem crescendo
constantemente. Em 2003, conseguiram anexar à terra indígena mais 6.798 ha referentes
à aldeia de Rancharia, totalizando uma área de aproximadamente 53.000 ha. Ainda assim,
é objetivo desse grupo a retomada do restante das terras inicialmente doadas em registro
documental concedido pela Coroa Portuguesa, em 1728, no qual constam as referências
do território originalmente doado. Esse documento é uma referência marcante na história
desse povo e forte elemento cultural aglutinador entre eles, sendo possível identificar
nesse processo da retomada um traço de grande importância almejado pelos Xakriabás,
como um ato que representa também um referencial de cultura e identidade – ambas
constantemente perseguidas por esse povo, desde o início do processo de “levantamento”
de sua cultura para a demarcação do território após a chegada da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) no território em meados do século XX.
Vê-se assim que a demarcação do território e seu aparente isolamento não signifi-
caram, porém, o isolamento desse povo em relação às cidades e povoados não indígenas.
Ao contrário, o que fica dessa história, desde o início de sua trajetória, é a constante troca
de influências entre esse povo e as diversas culturas que povoaram essa região. Assim, o
termo “caboclo”, tradicionalmente usado na região para se referir aos indígenas mistura-
dos – “grupos de caboclos” –, é fruto do processo de miscigenação que outrora se remetia
à mistura (no sentido de “não autenticidade”) desse povo com brancos e negros, e que
ganha hoje um forte significado de identidade e tradição.
Rafael Santos (2010) conta, em sua pesquisa sobre essa cultura, que para os
Xakriabás, ser “caboclo” significa “aquele que tem em si sangue de índio, que habita, trabalha
e se nutre de uma terra legada pelos índios” (Santos, 2010, p. 70-71, grifo do autor). Quan-
to aos integrantes incorporados historicamente ao contexto do território, diz que

se a convivência e o compartilhamento desses elementos através do paren-


tesco (a mistura) podem não transformar um baiano ou outra gente de fora,
propriamente em um caboclo, são capa.zes de torná-lo um herdeiro, gente da
terra, elemento do conjunto Xakriabá (Santos, 2010, p. 70-71, grifos do autor).

346
Assim como os Xakriabás, os povos ameríndios do Brasil se encontram hoje, de
modo geral, em situação bastante delicada. Ao mesmo tempo que representam fonte
de interesse, devido aos saberes relacionados às práticas e conhecimentos tradicionais
para a conservação da diversidade biológica e do meio ambiente, não têm seus direitos
reconhecidos de maneira a considerar suas visões de mundo específicas e nem o apoio
necessário para tal, mediante os órgãos políticos e sociais da sociedade hegemônica
que mantêm controle sobre essas decisões.
O ponto de partida para a tentativa de “compreender” o universo das comunida-
des indígenas foi um interesse preexistente nas comunidades intencionais (ecovilas). Desta
maneira, iniciamos o estudo procurando conectar o que existia de semelhante entre as co-
munidades tradicionais e as intencionais. Vimos então que as comunidades intencionais
se inspiram tanto nos modelos ancestrais de comunidade quanto em teorias e técnicas
modernas, em sua organização social, política e espacial, para a conformação de suas vilas
ou cidades, com o objetivo de criar ambientes mais ecológicos e sustentáveis. No entanto,
a colaboração e o intercâmbio de experiências entre povos indígenas e essas iniciativas
contemporâneas, com o interesse de fortalecerem essas práticas, acabam por se refletirem
mutuamente em muitos aspectos. A busca por sustentabilidade a partir de soluções des-
centralizadas, cooperativas e integradas são bons exemplos disso. Esses e outros aspectos
e sua relação com as dimensões citadas anteriormente puderam ser encontrados e levan-
tados em pesquisas e projetos realizados no Território Indígena Xakriabá e em campo.
Assim, começamos a compreender que essas iniciativas, bem como as comunida-
des indígenas, se apoiam e fazem parte de um movimento maior – também político – que
acontece em âmbito mundial, com a intenção de reafirmar visões não hegemônicas ou
diversas de mundo (indígenas, povos africanos, aborígenes) e propor ações práticas de
novos paradigmas e posturas diante da realidade. Desta maneira, compreendemos que
este deveria ser um estudo que fundamentalmente não poderia partir de uma visão par-
cial, ou seja, teria que ser uma pesquisa transdisciplinar, algo do tipo antropológico, como
fala Latour (1994, p. 20).3 Percebemos, nesse sentido, que no campo da Antropologia
ter uma visão ampla dos acontecimentos e da realidade é fundamental. Os antropólogos
seriam, então, em sua essência, seres transdisciplinares, que muitas vezes têm formações
acadêmicas também em outras áreas do conhecimento.

3 A citação de Latour (1994, p. 20) é a seguinte: “(...) é tarefa da antropologia falar ao mesmo tempo
sobre todos os quadrantes. Na verdade, como já disse, qualquer etnólogo é capaz de escrever, na mesma
monografia, a definição das forças presentes, a repartição dos poderes entre humanos, deuses e não
humanos, os procedimentos de consensualização, os laços entre a religião e os poderes, os ancestrais, a
cosmologia, o direito à propriedade e as taxonomias de plantas e vegetais.”

347
Iniciamos então a busca por referências na arquitetura, que nos embasam nesta
tarefa, e entendemos que uma leitura do território a partir da visão de Lefebvre (2006),
proposta na teoria da produção do espaço, seria um ponto de partida interessante para este
estudo, que nos possibilitaria compreender as especificidades do povo indígena Xakria-
bá a partir das relações socioespaciais refletidas no território e em seu cotidiano, além de
demonstrar um caminho coerente para se pensar tanto o urbano quanto as comunidades
por ele influenciadas. Sobre a produção do espaço, Lefebvre (2006, p. 3) nos fala que:

(...) essa teoria do espaço social compreende, de um lado, a análise crí-


tica da realidade urbana e de outro lado, a da vida cotidiana. De fato, o
cotidiano e o urbano,4 indissoluvelmente ligados, concomitantemente
produtos e produção, ocupam um espaço social gerado através deles e in-
versamente. A análise se refere ao conjunto de atividades prático-sociais,
assegurando até um certo ponto a reprodução das relações de produção
(relações sociais). Através desse espaço atual, de sua crítica e de seu co-
nhecimento, alcança-se o global, a “síntese”.

Dito isto, vimos não ser possível executar tal tarefa sem nos referenciarmos à an-
tropologia e a seus conceitos referentes ao universo indígena. Encontramos então diver-
sos autores que, de certa maneira, dialogavam com a ideia lefebvriana da “produção do
espaço”, como Viveiros de Castro (2002; 2004; 2008), Carneiro da Cunha (2009), La-
tour (1994), Verran (1998), Strathern (2009) e Sahlins (1997; 2007), que trazem em
seus estudos e teorias novas visões sobre conceitos que muito nos interessavam: cultura,
aprendizado, território, economia.
Outra referência importante partiu do livro Um discurso sobre as ciências, no qual Bo-
aventura S. Santos (2004, p. 60) nos fala sobre o paradigma emergente de uma nova ciência:

Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria re-
volucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas
um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem
que ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente).

O autor finaliza seu discurso sobre as ciências levantando quatro teses que justifi-
cam esse paradigma e que também serviram de orientação na construção deste trabalho,
por natureza e definição pós-moderno. São elas: 1) Todo o conhecimento científico-natu-
ral é científico-social; 2) Todo conhecimento local é total; 3) Todo conhecimento é au-
toconhecimento; 4) Todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.

4 Cabe lembrar que, para Lefebvre, o conceito de “urbano” não se restringe às cidades.

348
Inspirados por esse contexto, levantamos e delimitamos conceitos trazidos pela an-
tropologia contemporânea sobre os significados correntes dos termos território, identidade,
cultura e comunidade, articulando-os entre si para que nos orientassem no estudo e análise
dos dados levantados e constantemente incorporados à pesquisa sobre a produção do espaço
no território Xakriabá. Desta maneira, nosso marco teórico foi sendo construído. Compreen-
sões iniciais foram crescendo à medida que novas informações chegavam através das teorias
acadêmicas e da vivência no cotidiano das aldeias em busca de um novo paradigma capaz de
corresponder a um universo ainda pouco explorado na área da arquitetura e urbanismo.

Forjando um corpo: (re)produzindo o espaço

Ao desenvolver os conceitos de sua teoria sobre a produção do espaço, Lefebvre (2006) pro-
põe-se a refletir e repensar esses dois conceitos, produção e espaço, à luz da contempora-
neidade, reunindo-os e trazendo para o cerne do debate a necessidade de se pensar o espaço
social a partir de seus mecanismos de (re)produção, investindo no levantamento histórico do
conceito com a intenção de melhor delinear o que ele denomina “ciência do espaço”.

Esta obra procura, portanto, não apenas caracterizar o espaço em que


vivemos e sua gênese, mas reencontrá-la, através do e pelo espaço produ-
zido, da sociedade atual. Ambição que o título não anuncia abertamente.
Resumamos esse propósito, inerente à démarche perseguida: um estudo
“para trás” do espaço social na sua história e sua gênese, a partir do pre-
sente, remontando para essa gênese – em seguida, retorno sobre o atual,
o que permite entrever, senão prever o possível e o futuro. Essa démarche
permite estudos locais a diversas escalas, inserindo-os na análise geral,
na teoria global. As implicações e imbricações lógicas se compreendem
como tais, mas sabendo-se que essa compreensão não exclui (ao con-
trário) os conflitos, as lutas, as contradições. Nem, inversamente, os acor-
dos, entendimentos, alianças. Se o local, o regional, o nacional, o mundial
se implicam e se imbricam, o que se incorpora no espaço, os conflitos
atuais ou virtuais, não estão nem ausentes nem eliminados. Implicações
e contradições, no espaço e nos outros domínios, têm mais amplitude
atualmente do que desde quando este livro foi escrito. As relações de im-
plicação não impedem as estratégias adversas, nem sobre os mercados,
nem nos armamentos. Portanto, no espaço (Lefebvre, 2006, p. 7-8).

Segundo o autor, desde 19745 até a data em que escreve o prefácio à edição ori-
ginal, em 1986, as concepções sobre o espaço estavam, em suas palavras, “confusas, pa-
radoxais, incompatíveis (Lefebvre, 2006, p. 5). Mesmo falando-se em diversas maneiras

5 Data em que escreveu a primeira edição de A produção do espaço.

349
de se pensar o espaço (pictórico, escultural, musical), a palavra tradicionalmente remetia
à concepção matemática do termo. Quando relacionado às ciências sociais, o termo apa-
recia de forma fragmentada como espaço sociológico, geográfico, histórico. O mesmo
acontecia quando pensado na área do planejamento (urbano), o que para ele apresentava
“uma contradição notável e, entretanto, pouco notada entre as teorias do espaço e da prá-
tica espacial” (Lefebvre, 2006, p. 4). Sobre os modernistas (arquitetos e urbanistas), suas
obras e seu ensino, diz que:

O espaço da “modernidade” tem características precisas: homogeneidade-


fragmentação-hierarquização. Ele tende para o homogêneo por diversas
razões: fabricação de elementos e materiais – exigências análogas interve-
nientes –, métodos de gestão e de controle, de vigilância e de comunicação.
Homogeneidade, mas não de plano, nem de projetos. De falsos “conjun-
tos”, de fato, isolados. Pois paradoxalmente (ainda) esse espaço homogêneo
se fragmenta: lotes, parcelas. Em pedaços! O que produz guetos, isolados,
grupos pavilhonares e pseudoconjuntos mal ligados aos arredores e aos
centros. Com uma hierarquização estrita: espaços residenciais, espaços co-
merciais, espaços de lazer, espaços para os marginais etc. Uma curiosa lógica
desse espaço predomina: que ele se vincula ilusoriamente à informatização
e oculta, sob sua homogeneidade, as relações “reais” e os conflitos. Além dis-
so, parece que essa lei ou esse esquema do espaço com sua lógica (homoge-
neidade-fragmentação-hierarquização) tomou um alcance maior e atingiu
uma espécie de generalidade, com efeitos análogos, no saber e na cultura,
no funcionamento da sociedade inteira (Lefebvre, 2006, p. 7).

Concepções que, no limite, representam o espaço como um produto (objeto) no


sentido estrito da mercadoria. Nesse contexto da lógica da homogeneidade-fragmenta-
ção-hierarquização, Lefebvre explica que não é possível se pensar o espaço social e sua (re)
produção. Segundo o autor, o espaço não poderia designar apenas um “‘produto’ insignifi-
cante, coisa ou objeto, mas um conjunto de relações”; e para se alcançar esse conceito seria
necessário “um aprofundamento das noções de produção, de produto, de suas relações”.

(…) O espaço não pode mais ser concebido como passivo, vazio, ou en-
tão, como os “produtos”, não tendo outro sentido senão o de ser trocado,
o de ser consumido, o de desaparecer. Enquanto produto, por interação
ou retroação, o espaço intervém na própria produção: organização do
trabalho produtivo, transportes, fluxos de matérias-primas e de energias,
redes de repartição de produtos. À sua maneira produtivo e produtor, o
espaço (mal ou bem organizado) entra nas relações de produção e nas
forças produtivas. Seu conceito não pode, portanto, ser isolado e perma-
necer estático. Ele se dialetiza: produto-produtor, suporte de relações
econômicas e sociais. Ele não entra também na reprodução, a do aparelho

350
produtivo, da reprodução ampliada, das relações que ele realiza pratica-
mente, “no terreno”? (Lefebvre, 2006, p. 5, grifo do autor).

Lefebvre demonstra ainda a existência, anterior e já bem estabelecida nas ciências,


do espaço físico e mental, que segundo ele não foram capazes de contemplar a totalidade
do espaço, resultando assim numa fragmentação e por isso persegue a elaboração de um
conceito diferenciado de espaço social a partir das relações. Segundo ele, para se explicar o
espaço social não é suficiente apenas a natureza, a história ou a “cultura”, esse espaço seria
concebido nas relações de todos esses elementos entre si. O esquema então não estaria
mais fundamentado sobre uma lógica causal, mas relacional, produzido e reproduzido a
partir de interações dialéticas entre as “partes”.
Assim, como elemento fundamental para a superação da prática fragmentária
instaurada a partir da desconexão das relações – restabelecidas pelo e no espaço social –,
como objeto de análise nas ciências, Lefebvre (2006, p. 9) sugere uma ampliação de pers-
pectiva voltada à globalidade do pensamento, sem, no entanto, excluir “pesquisas precisas
e determinadas “no terreno”, embora alerte para “o perigo do ‘pontual’, a esse título valo-
rizado porque controlável”, por aceitar ou ratificar a fragmentação. A globalidade, por sua
vez, permitiria uma maior abrangência em relação a outros campos de experiências teóri-
co/empíricas e resguardaria um estudo mais próximo àquilo que ele chamou de verdade
do espaço.
Para Lefebvre, a produção do espaço estaria compreendida também nessa verdade
do espaço e explica que,

sem dúvida, não existe espaço verdadeiro (o que postulava a filosofia clássi-
ca, o que postula seu prolongamento, a epistemologia e a “cientificidade”
que ela define). Mas indubitavelmente existe uma verdade do espaço, que
inclui o movimento da teoria crítica, sem a ela se reduzir (Lefebvre, 2006,
p. 110, grifos do autor).

Sobre isso diz também que “o discurso sobre o espaço implica uma verdade do es-
paço, que não pode vir de um lugar situado no espaço, mas de um lugar imaginário e real,
portanto ‘surreal’ e contudo concreto. E, não obstante, conceitual!” (Lefebvre, 2006, p. 199).
Indo além no conceito de “globalidade” apresentado por Lefebvre e aprofundando
um pouco mais o debate, Capra (1997) propõe o que ele chama de “pensamento sistêmi-
co como uma alternativa ao pensamento cartesiano fragmentário”. Sobre o critério geral
desse pensamento, diz que pode ser entendido como “a mudança das partes para o todo”,
o que compreende assim um pensamento contextual que explica as coisas considerando
o seu meio ambiente, resultando, segundo ele, em um pensamento ambientalista. Capra

351
entende que o pensamento, nestes termos, induz também a uma mudança paradigmática,
uma tomada de consciência, uma maior reflexão sobre valores e ações que poderia nos
levar a uma percepção espiritual das coisas sobre os termos da ecologia profunda.6

A ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano. Ela vê os


seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte de
todos os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de “uso”, à na-
tureza. A ecologia profunda não separa seres humanos – ou qualquer outra
coisa – do meio ambiente natural. Vê o mundo não como uma coleção de
objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamen-
talmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda
reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres hu-
manos apenas como um fio particular na teia da vida (Capra, 1997, p. 25).

Latour (1994), em Jamais fomos modernos, traz a questão das redes como um ele-
mento importante na mudança de percepção que ele propõe à ciência. Segundo o autor,

os imbróglios e as redes que não possuíam um lugar possuem agora todo


o espaço. São eles que é preciso representar, é em torno deles que se reú-
ne, de agora em diante, o Parlamento das coisas. “A pedra rejeitada pelos
construtores tornou-se a pedra angular” (Latour, 1994, p. 142).

Para ilustrar esse contexto com uma experiência mais concreta e mais radical, as-
tronautas que tiveram a experiência de sair da atmosfera e ver o planeta a partir do espaço
relatam em um documentário7 – com imagens maravilhosas e impressionantes – a mu-
dança de percepção que se procedeu após esse fenômeno, o qual denominaram Overview
Effect. Eles contam como o impacto gerado por essa vivência foi capaz de tocá-los profun-
damente e deflagrar uma experiência cognitiva única até então. Algo como uma consci-
ência e sensação muito real e nítida de pertencimento, unidade e de grande respeito em
relação ao planeta como um todo, ao percebê-lo como algo extremamente frágil e sensível
– quando comparado à imensidão do espaço e observado a distância, onde sua atmosfera
pode ser representada por uma linha – com capacidade de gerar tanta segurança e con-
fiança quando se está “dentro”, sobre a sua superfície, na atmosfera.

6 A escola filosófica foi fundada pelo filósofo norueguês Arne Naess, no início da década de 1970, com
sua distinção entre “ecologia rasa” e “ecologia profunda”. Essa distinção é hoje amplamente aceita como
um termo muito útil para se referir a uma das principais divisões dentro do pensamento ambientalista
contemporâneo (Capra, 1997, p. 25)
7 Documentário intitulado Overview Effect.

352
Ao terem a visão da Terra por inteiro e perceberem um processo de mudança con-
tínua em sua paisagem, a descrevem também como um ser vivo, um organismo em cons-
tante transformação. Para eles, foi possível visualizar a íntima interconexão à qual estão
submetidos todos os elementos dentro dessa bola azul. Mais do que uma visão sistêmica e
holística da realidade, essa também pode ser entendida como uma visão holográfica, onde
cada parte contém e está contida no todo e vice-versa.
Apesar de hoje o processo da globalização social, “cultural”, política e principalmen-
te econômica ser ainda bastante questionado e controverso enquanto prática, pois ainda
fragmentário, mostra-se também um fator importante no contexto das relações e da con-
cretização de diversos aspectos relacionados à (re)produção do espaço em âmbito local
e global. É interessante notar que a globalização, apesar de muitas vezes apontada apenas
como uma investida homogeneizadora, tem “intenções” (boas ou más) diversas, assim
como definições, segundo o perfil de quem as relata. Segundo Canclini (2003, p. 10), ape-
nas alguns poucos a pensam de fato como uma globalização circular:

O resto imagina globalizações tangenciais. A amplitude ou estreiteza dos


imaginários sobre o global evidencia a desigualdade de acesso àquilo que
se conhece como economia e cultura globais. Nessa concorrência desi-
gual entre imaginários, vê-se que a globalização é e não é aquilo que pro-
mete. Muitos globalizadores vão pelo mundo simulando a globalização
(Canclini, 2003, p. 10).

Para Boaventura Souza Santos e César Rodrigues (2005 apud Diniz, 2006),8

existem formas de encarar/ver o mundo que estabelecem uma relação


radicalmente diferente da capitalista/moderna entre seres humanos e na-
tureza, entre produção e consumo, entre trabalho e tempo livre, entre o
uso e o lucro e entre desenvolvimento e crescimento.

Ao compreendermos isto, é preciso então que, além de respeitarmos a diversidade


cultural e suas respectivas visões de mundo, possamos também aprender com elas para
a construção de um “paradigma de conhecimento e ação cosmopolita distinto do que
está subjacente à globalização neoliberal”. Boaventura9 (2005, p. 14) acredita que uma
globalização alternativa esteja de fato emergindo e é “no seu embate com a globalização
neoliberal que se estão a tecer os novos caminhos da emancipação social”. Ao que conclui:

8 Apud Diniz (2006), em epílogo.


9 Prefácio do livro Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais.

353
(…) esta forma de globalização, apesar de hegemônica, não é a única, e
de fato, tem sido crescentemente confrontada por uma outra forma de
globalização alternativa, contra-hegemônica, constituída pelo conjunto
de iniciativas, movimentos e organizações que, através de vínculos, redes
e alianças locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal mobi-
lizados pela aspiração de um mundo melhor, mais justo e pacífico que
julgam possível e ao qual sentem ter direito (Santos, 2005. p. 13).

No caso de comunidades, em certo aspecto, mais “livres” ou que apresentem al-


guma resistência aos valores e práticas neoliberais, como as comunidades indígenas, é
possível identificar nas práticas cotidianas cooperativas instrumentos de potencial forma-
dor e transformador para uma nova base social. Essas práticas são capazes de insurgir em
diferentes formatos de sociedades/comunidades, emergindo novos modelos sobre esses
valores e gerando modos de vida que coexistam com o capitalismo hegemônico.
Monte-Mór, apoiando-se em Lefebvre, demonstra que os efeitos da globalidade
globalizada, acabou por culminar na expansão da urbanidade em grande parte do planeta,
gerando assim uma deflagração dos valores, práticas e principalmente tecnologias urba-
nas para o campo, achatando assim a dicotomia campo-cidade/rural-urbano que preva-
lecia até então, denominando esse fenômeno de urbanização extensiva.10 Assim, diz que

agora, junto com essa sociedade urbana, Lefebvre diz haver também uma
revolução urbana (...) expressa, segundo Lefebvre, na recriação da práxis
urbana, na repolitização da cidade em torno do valor de uso, na tendência
às crescentes restrições que a sociedade contemporânea em construção
(...) impõe à lógica industrial (Monte-Mór, 2007, p. 6).

Monte-Mór explica que, de fato, a repolitização das cidades, seja no centro ou na


periferia, se faz presente em todo o mundo entre os anos de 1960 e 1970, levando diversos
autores a escreverem sobre os Movimentos Sociais Urbanos (MSUs) que surgem neste
período. Esses movimentos são “sociais e políticos de naturezas e organizações diversas,
desde movimentos voltados para a extensão dos meios de consumo e reprodução cole-
tiva, incluindo o movimento ambientalista, até os movimentos políticos das chamadas
minorias” (Monte-Mór, 2007, p. 6).

Entretanto, ao final dos anos 80, já não mais se falava de movimentos so-
ciais urbanos, mas apenas de movimentos sociais. A qualificação urbana
havia perdido o significado, na medida em que esse processo de politiza-
ção e de luta pela cidadania, que se iniciou nas cidades, atingiu o campo

10 Conceito apresentado e defendido por Monte-Mór (1994), entre outros.

354
e as regiões envolvendo: populações agrícolas deslocadas de seu espaço
de vida e trabalho – os atingidos por barragem; os trabalhadores sem-terra,
dando origem a um dos mais expressivos movimentos sociais no país – o
MST; os seringueiros, organizados num Conselho Nacional e articula-
dos mundialmente; os índios, organizados em mais de uma centena de
associações e Conselho Nacional; os povos da floresta e do Cerrado, arti-
culados em diversas instâncias envolvendo também várias populações
extrativas; os garimpeiros; enfim, o conjunto da sociedade para muito
além das cidades, atingindo o campo (e a floresta) como um todo (Mon-
te-Mór, 2007, p. 7, grifos do autor).

Reparem que chegamos agora em um ponto de grande importância que justifica


as opções teóricas deste estudo. A assimilação da ideia de superação das dicotomias é de
suma importância no desenvolvimento deste trabalho, pois é o que nos permite traçar
esse paralelo que estamos propondo entre as teorias aplicadas à sociedade moderna e aos
povos indígenas/comunidades tradicionais, dando suporte aos exemplos que virão. Esse
raciocínio será exaustivamente apresentado em contextos e por autores variados.
Milton Santos (2002, p. 320 e 321), assim como Lefebvre, também diz que através
do entendimento do espaço,

poderemos, talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez,


teorização) dessa relação entre espaço e movimentos sociais, enxergando
na materialidade esse componente imprescindível do espaço geográfico
que é, ao mesmo tempo, uma condição para a ação; uma estrutura de
controle, um limite à ação; um convite à ação.

E citando Marx e Engels (1947, p. 18 e 19), conclui dizendo que “o espaço inclui,
pois, essa “conexão materialística de um homem com o outro” (…), conexão que “está
sempre tomando novas formas”. Ficando assim a potência de uma cotidianidade transfor-
madora sobre a qual nos fala Lefebvre.
Retornando ao social, vemos que o espaço (seja ele global ou local) é o lugar onde
ocorrem as relações; é o meio onde se encontra a possibilidade da experiência vivida, do
cotidiano,11 da revolução.12 Ao definir uma entidade independente de sua escala (um objeto,
um ser, uma comunidade, um povo ou nação), em seu entorno encontra-se o espaço que
a conforma, o entre, é o seu “preenchimento”, que possibilita a “criação” de uma prática do
cotidiano e a partir desta o estabelecimento da cultura.

11 Ver Lefebvre (1991); e Heller (1994).


12 Ver Lefebvre (1999).

355
A partir dos espaços e do modo como realizamos as práticas cotidianas, temos os
encontros, os trabalhos e as relações de modo geral – seja troca de informação, financeira
ou de afeto – como mecanismos que permitem a troca entre as partes, formando, assim,
redes de relações. Em última instância, o espaço, de acordo com a maneira como é visto e
compreendido, é o que possibilita a existência das relações, e determina, em parte, o modo
como certa comunidade (conjunto de práticas cotidianas) poderá se expressar cultural-
mente, ao mesmo tempo que é determinado por esta.

Cultura: uma questão cultural

Podemos dizer que o momento de transição pelo qual estamos passando se caracteriza,
de modo geral, pela nossa capacidade cada vez maior de reconhecer e assimilar as dicoto-
mias, incorporando a elas os paradoxos que lhes sejam cabíveis dentro de uma percepção
dialética das coisas. Essa realidade permite uma ampla variação de possibilidades de de-
senvolvimento de pessoas e comunidades, não limitando-as a formas e conceitos deter-
minados e preconcebidos de maneira superficial e preconceituosa, ao contrário, possibili-
ta a legitimação e o reconhecimento de novas/velhas realidades. Quanto à peculiaridade
desse momento histórico Marshall Sahlins nos diz o seguinte:

(…) a homogeneidade e a heterogeneidade não são mutuamente exclu-


sivas, elas não disputam um jogo histórico de soma zero. “A fragmentação
étnica e cultural e a homogeneização modernista não são dois argumen-
tos, duas visões opostas daquilo que está acontecendo hoje no mundo,
mas sim duas tendências constitutivas da realidade global.” Integração e
diferenciação são coevolucionárias (Sahlins, 1997, p. 58).

Devido à aculturação sofrida pelos grupos étnicos desde o período colonial e a


partir do pressuposto de que a antropologia faria o papel de encarcerá-los a meros ob-
jetos conceituais, Sahlins (1997) faz uma reflexão sobre uma possível morte da cultura.
Ele conclui que, embora o entendimento do significado de cultura tenha assumido uma
“variedade de novas configurações”, após seu desvencilhamento ao pensamento positi-
vista (antropologia tradicional), “a ‘cultura’ não tem a menor possibilidade de desaparecer
enquanto objeto principal da antropologia”. Para ele, “em lugar de celebrar (ou lamentar)
a morte da ‘cultura’, portanto, a antropologia deveria aproveitar a oportunidade para se
renovar, descobrindo padrões inéditos de cultura humana”, o que abriria assim uma “pers-
pectiva quase equivalente à descoberta de vida em outro planeta” (Sahlins, 1997, p. 58).
Viveiros de Castro (2008, p. 8) responde a essa questão com uma afirmação ca-
tegórica bastante pertinente: “Não há culturas inautênticas, pois não há culturas autênti-

356
cas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afro-descendentes, ou quem quer que
seja – pois autêntico não é uma coisa que os humanos sejam.” Segundo Viveiros, o termo
“autenticidade” é algo que pode dizer respeito apenas ao “homem branco” no campo da
metafísica, o que nada significa ao universo indígena, sua lógica e entendimento do mundo.
Sobre tal assertiva – o fato de diferentes culturas conceberem o mundo a partir
de óticas diferentes –, Viveiros de Castro vai além e desenvolve uma teoria que denomi-
nou “perspectivismo ameríndio”. Segundo ele, “trata-se da concepção, comum a muitos
povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de su-
jeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o apreendem segundo pontos de vista
distintos” (Viveiros de Castro, 2004, p. 226). Sendo assim, os índios teriam sua maneira
particular de ver, pensar e agir no mundo.
Logo no início de seu raciocínio, Viveiros de Castro faz uma crítica à distinção
clássica de cultura e natureza sob rótulos como “universal e particular, objetivo e subjeti-
vo, (...) animalidade e humanidade, e outros tantos”, segundo os quais não seria possível,
como já concluíram muitos antropólogos, “descrever dimensões ou domínios internos a
cosmologias não ocidentais sem passar antes por uma crítica etnológica rigorosa”. Nesse
sentido, Viveiros sugere em contraposição à ideia do “multiculturalismo” moderno o ter-
mo “multinaturalismo”, invocando uma concepção ameríndia, que, ao contrário do pen-
samento ocidental, pressupõe “uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A
cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a natureza ou o objeto a forma do
particular” (Viveiros de Castro, 2004, p. 226).
O perspectivismo ameríndio se referencia nas diversas etnografias amazônicas que
descrevem a compreensão indígena de que a visão que os humanos têm dos outros seres,
como as plantas, os animais, os espíritos, os rios, as montanhas, enfim, todo outro não
humano ao qual ele se relacione, é diferente da maneira como esses seres se veem e veem
os humanos. Esses seres veriam a si mesmos como os humanos se veem, ou seja, como
humanos, e assim veriam os humanos como os humanos veem os animais, ou seja, como
animais, e a mesma lógica se daria com espíritos e outros elementos naturais.

Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos


como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes
seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as “condições” não
são normais. Os animais predadores e os espíritos, entretanto, veem os
humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa veem
os humanos como espíritos ou como animais predadores: “O ser humano
se vê a si mesmo como tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o
veem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles matam”, anota Baer
(1994: 224) sobre os Matsiguengas. Vendo-nos como não humanos, é a si
mesmos que os animais e espíritos veem como humanos. Eles se apreen-

357
dem como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias
casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob
a espécie da cultura: veem seu alimento como alimento humano (os jagua-
res veem o sangue como cauim, os mortos veem os grilos como peixes,
os urubus veem os vermes da carne podre como peixe assado etc.), seus
atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou
instrumentos culturais, seu sistema social como organizado identicamente
às instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamento etc.)
(Viveiros de Castro, 2004, p. 227).

Viveiros (2004, p. 231) explica que nessa lógica está implícito na visão indíge-
na que assim como os humanos, os não humanos também têm alma, e o que os di-
ferenciam entre si são seus corpos. A ponte nesse diálogo entre os seres humanos e
não humanos seria o Xamã, aquele que tem o poder de ultrapassar “deliberadamente as
barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de modo a
administrar as relações entre estas e os humanos”, tendo assim um papel político nesse
contexto. Viveiros compara que “se o multiculturalismo ocidental é o relativismo como
política pública, o perspectivismo xamânico ameríndio é o multinaturalismo como po-
lítica cósmica” (Viveiros de Castro, 2004, p. 231).
Outra característica importante do Xamã dentro dessa prática da diplomacia
política seria a capacidade dele de conhecer o Outro: porém, diferentemente do pensa-
mento da modernidade ocidental, em que conhecer seria “dessubjetivar”, ou seja, “expli-
citar a parte do sujeito presente no objeto de modo a reduzi-la a um mínimo ideal”, no
xamanismo ameríndio aconteceria o oposto, ou seja, conhecer, para ele, é personificar,
“tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido”, e nessa perspectiva, “a forma
do Outro é a pessoa” (Viveiros de Castro, 2004, p. 231).
Viveiros (2004, p. 233), então, demonstra ainda que os não humanos, assim como
os humanos, também perceberiam seu comportamento sob a forma da cultura, o que
para ele representa, dentro desse raciocínio, a redefinição da ordem cultural; “assim, o que
uns chamam de ‘natureza’ pode bem ser a ‘cultura’ dos outros.” Viveiros também aponta
para uma característica dos materiais que muito nos interessa nesta pesquisa, que é a ideia
de que um determinado artefato “são objetos, mas apontam necessariamente para um su-
jeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade
não material”. Essa ideia dialoga diretamente com a proposta da produção do espaço de
Lefebvre (2006), na qual o espaço vivido seria fruto da interação das pessoas com um
determinado lugar. Porém, na proposta de Viveiros de Castro (2004), a cultura, assim,
estaria sim, de algum modo, impressa nos artefatos que a compõem, mas sua corporali-
dade/materialidade se modificaria de acordo com a cultura possível de ser expressa pela

358
especificidade dos corpos de um determinado povo (incluindo os não humanos). Sendo
assim, Viveiros demonstra esta subversão de valores culturais da seguinte forma:

O caso mais comum é a transformação de algo que, para os humanos, é um


mero fato bruto, em um artefato ou comportamento altamente civilizados,
do ponto de vista de outra espécie: o que chamamos “sangue” é a “cerveja” do
jaguar, o que temos por um barreiro lamacento, as antas têm por uma grande
casa cerimonial, e assim por diante. Os artefatos possuem esta ontologia in-
teressantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para
um sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma
intencionalidade não material. E assim, o que uns chamam de “natureza”
pode bem ser a “cultura” dos outros (Viveiros de Castro, 2004, p. 233).

Assim, Viveiros demonstra que dentro dessa perspectiva a dicotomia natureza e cul-
tura, humanidade e animalidade não mais se aplica; está além do persistente corolário cien-
tífico da distinção entre Natureza e Cultura, que afirmava “a universalidade da cultura como
natureza do humano”. O presente paradigma demonstra que esta visão transfere os índios do
patamar de uma visão etnocêntrica, fruto de um multiculturalismo ocidental, para uma visão
cosmocêntrica do multinaturalismo “selvagem”. Então, remetendo-se ao tempo em que os
colonizadores chegaram às Américas com a missão de investigar se os índios tinham alma
ou não, Viveiros propõe uma subversão aos valores sociopolíticos desta parte da humanida-
de situada (já ou ainda em todo o globo) no paradigma da modernidade, nos dizendo que:

Em lugar de precisarmos provar que eles são humanos porque se dis-


tinguem dos animais, trata-se agora de mostrar quão pouco humanos
somos nós, que opomos humanos e não humanos de um modo que
eles nunca fizeram: para eles, natureza e cultura são parte de um mesmo
campo sociocósmico. Os ameríndios não somente passariam ao largo do
Grande Divisor cartesiano que separou a humanidade da animalidade,
como sua concepção social do cosmos (e cósmica da sociedade) ante-
ciparia as lições fundamentais da ecologia, que apenas agora estamos em
condições de assimilar (Viveiros de Castro, 2004 , p. 233).

Concluindo, Viveiros (2004, p. 240) nos explica que “uma perspectiva não é uma
representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vis-
ta está no corpo”. Ao compreendermos que humanos e não humanos têm alma, percebe-
mos que a especificidade entre eles não poderia então residir na alma – mesmo sabendo
que capacidade de ocupar o ponto de vista seja sem dúvida uma potência da alma –, mas
estaria implicada ao corpo. A diferença então entre humanos e não humanos seria dada
pela especificidade de seus os corpos e não de almas, e finaliza da seguinte forma:

359
Se os índios têm razão, então a diferença entre os dois pontos de vista não
é uma questão cultural, e muito menos de mentalidade. Se os contrastes
entre relativismo e perspectivismo e entre multiculturalismo e multinatu-
ralismo forem lidos à luz, não de nosso relativismo multicultural, mas da
doutrina indígena, é forçoso concluir que a reciprocidade de perspectivas
se aplica a ela mesma, e que a diferença é de mundo, não de pensamento
(Viveiros de Castro, 2004, p. 240).

Neste momento consideramos importante trazer ainda algumas questões sobre


a maneira como a compreensão dessas novas perspectivas são apropriadas no âmbito
da cultura capitalista.13 Muitas dessas questões são levantadas por Manoela Carneiro da
Cunha (2009), e escolhemos duas delas para tratar. Ambas retratam a necessidade de re-
conhecermos e valorizarmos as contribuições indígenas mediante o conhecimento que
estes preservam e (re)produzem sobre as coisas, perspectivas, saberes, tecnologias. A pri-
meira questão diz respeito à necessidade de se perceber uma diferença clara entre saberes
tradicionais e saber científico, para assim estabelecermos pontes entre eles; e a segunda,
de se perceber as diferenças implícitas ao termo “cultura”.
Quanto ao primeiro item, Cunha (2009) nos diz que ao contrário do que possa se
pensar esses dois tipos de saberes são mais diferentes do que se imagina, não apenas pelos
seus resultados, mas pelos regimes de conhecimentos tradicionais, ou seja, os processos,
modos de fazer, utilizados para se chegar aos resultados e a maneira como estes se apli-
cam, “pois enquanto existe por hipótese um regime único para o conhecimento científico,
há uma legião de regimes de saberes tradicionais” (Cunha, 2009, p. 302). Sabendo então
que esses saberes são diferentes, a questão recai sobre as possíveis formas de estabelecer-
mos pontes entre eles. Assim, a autora busca primeiramente levantar as diferenças sobre
as quais esses saberes operam e identificam, que, segundo Lévi-Strauss, “não se trata de
lógicas diferentes, mas antes de premissas diferentes sobre o que existe no mundo” (Cunha,
2009, p. 303) (como visto no perspectivismo ameríndio). A diferença, então, “provém dos
níveis estratégicos distintos a que se aplicam”, ao que conclui que “a ciência moderna he-
gemônica usa conceitos”, enquanto “a ciência tradicional usa percepções”, cheiros, gosto,
cores, sabores... operando, assim, sobre as chamadas “qualidades segundas”.
Segundo Cunha, “sem negar o sucesso da ciência ocidental, Lévi-Strauss sugere
que esse outro tipo de ciência, a tradicional, seja capaz de perceber e até antecipar des-
cobertas da ciência tout court” (Cunha, 2009, p. 306). As pontes invocadas, no entanto,
trazem questões controversas, pois muitas vezes utilitaristas, levando assim a uma reflexão
entre ciência e ciência tradicional deslocada de suas práxis, reduzindo a questão a inte-

13 Ver Sahlins (2007).

360
resses parciais sob dimensões institucionais, legais, políticas e econômicas. Este tipo de
atitude tem mantido a ciência tradicional subordinada aos interesses nacionais (publico
ou privado) – que quando muito reconhecem apenas parcialmente seu valor –, ao utili-
zarem seus serviços e tecnologias na (re)produção da cultura capitalista, sem no entanto
serem beneficiadas diretamente disso. Para ilustrar essa questão, Cunha coloca diversos
exemplos dos quais trazemos o seguinte:

As populações indígenas e tradicionais em geral (entenda-se ribeirinhos,


caiçaras, seringueiros e extrativistas, por exemplo) estão para o Brasil como
o Brasil está para os países do G8, os países mais completamente industria-
lizados. Ou seja, enquanto o Brasil protesta, com razão, contra a biopirataria
– o acesso indevido a recursos genéticos e ao conhecimento tradicional –,
enquanto ele arregimenta as populações tradicionais para serem vigilantes
contra os biopiratas, estas, por sua vez, depois de serem por cinco séculos
desfavorecidas, não percebem grande diferença entre biopirataria por es-
trangeiros e o que consideram biopirataria genuinamente nacional. Esta-
mos (mal-)habituados em nosso colonialismo interno a tratar os índios e
seringueiros do Brasil como “nossos índios”, “nossos seringueiros”, sem nos
darmos conta de que isso é um indício de que os consideramos como um
patrimônio interno, comum a todos os brasileiros (exatamente aquilo con-
tra o que protestávamos quando nossos recursos eram ventilados como
“patrimônio da humanidade”) (Cunha, 2009, p. 308-309).

Uma grande contradição, nesse sentido, se instala no país hoje e para superá-la
seria necessário revermos a maneira como nossa política é feita. Cunha constata que o
Brasil “está perdendo uma oportunidade histórica de instaurar um regime colaborativo
e intercâmbio respeitoso com suas populações tradicionais” (Cunha, 2009, p. 309), e su-
gere que para que essa situação se reverta seria necessário encontrar uma forma para que
o conhecimento científico e o conhecimento tradicional coexistam lado a lado. Para isso
ela considera importante encontrarmos meios institucionais adequados que preencham
três condições ao mesmo tempo, a saber: “reconhecer e valorizar as condições dos valores
tradicionais para o conhecimento científico; fazer participar as populações que as origi-
naram nos seus benefícios; mas, sobretudo, e essa é a mais complexa, preservar a vitalida-
de da produção do conhecimento tradicional” (Cunha, 2009, p. 309). Essas condições,
como reconhece Cunha, são mais fáceis de dizer do que de fazer e existem muitos obstá-
culos a superar, mas alerta que “se não soubermos construir novas instituições e relações
equitativas com as populações tradicionais e seus saberes, estaremos desprezando uma
oportunidade única” (Cunha, 2009, p. 310).
Para finalizar, é interessante que esclareçamos aquilo que Cunha (2009) reconhece
como uma diferenciação, que geralmente passa despercebido ao ser aplicado de maneira

361
corriqueira nos significados do termo cultura, ao qual a autora denomina cultura (sem aspas)
e “cultura” (com aspas). Cunha destaca a relevância dessa diferenciação, principalmente no
tocante ao debate dos direitos intelectuais sobre os conhecimentos dos povos tradicionais.
O debate é bem mais profundo do que isso, mas em linhas gerais, podemos enten-
der o termo cultura (sem aspas) como a vida cotidiana, “esquemas interiorizados que or-
ganizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação
entre os grupos sociais” (Cunha, 2009, p. 313), algo subjetivo e pertencente ao subcons-
ciente como “um complexo unitário de pressupostos, modos de pensamento, hábitos e
estilos que interagem entre si, conectados por caminhos secretos e explícitos com arran-
jos práticos de uma sociedade, e que, por não aflorarem à consciência, não encontram
resistência à sua influência sobre as mentes dos homens” (Trilling, apud Cunha, 2009).
Já a “cultura” estaria relacionada a “unidades num sistema interétnico” com “a pro-
priedade de uma metalinguagem: é uma noção reflexiva que de certo modo fala de si
mesma”, algo como a objetivação da cultura e por definição passível de ser compartilhada.
Em síntese (e fazendo uso das palavras de Viveiros de Castro, 2008, p. 2), entendo que
enquanto a cultura seria um modo de ser, a “cultura” então seria um modo de aparecer.

Enquanto a antropologia contemporânea, como Marshall Sahlins apon-


tou, vem procurando se desfazer da noção de cultura, por politicamente
incorreta (e deixá-la aos cuidados dos estudos culturais), vários povos
estão mais do que nunca celebrando a sua “cultura” e utilizando-a com
sucesso para obter reparações por danos políticos (Cunha, 2009, p. 313).

Uma das questões colocada em debate por Cunha (2009) então é: existe uma parte
da cultura que é interna e só diz respeito aos grupos e outra parte da “cultura”, que é passível
de compartilhamento e, portanto, é também negociável, podendo ser trocada, vendida ou
patenteada; e é sobre essa parte que se instala o debate sobre a questão dos direitos intelectu-
ais sobre os conhecimentos dos povos tradicionais, o que inclui também o direito às terras
e tudo o mais. Desde 1980, os povos indígenas fizeram várias manifestações que reivindi-
cavam os direitos culturais que incluíam artefatos, padrões gráficos, objetos arqueológicos
e a cultura material de modo geral. A reivindicação pelos direitos intelectuais, no entanto,
só veio posteriormente, com a questão do conhecimento tradicional levantada pela CDB
(Convenção sobre Diversidade Biológica).14 Sobre essas reivindicações Cunha relata que

14 Segundo resumo do artigo de Sidarta Prakash, disponibilizado pelo Banco Mundial (2002, p. 1), “até 1992,
os recursos e conhecimentos tradicionais, eram vistos como sendo herança comum da Humanidade. Não
existiam normas internacionais (nem na maioria dos países) que regulassem o acesso aos recursos genéticos.
Como resultado, houve um aumento no uso dos recursos biológicos dos povos indígenas. O rápido
esgotamento de recursos do meio ambiente e a necessidade de remunerar utentes e fornecedores, deram

362
desde 1948, quando a Declaração dos Direitos Humanos enfatizou a não discriminação e
a participação política no pós-guerra, as coisas começaram a se transformar, beneficiando o
direito das minorias, direitos estes comprovados principalmente no final do século XX.

Sinal dessa mudança: em 1984 o conselho Mundial dos Povos Indígenas


ratificou uma declaração de princípios que afirmava que “a cultura dos
povos indígenas é parte do patrimônio cultural da humanidade, ao passo
que, em 1992, a Carta dos Povos Indígenas e Tribais das Florestas Tropi-
cais, (…) afirmava os direitos de propriedade intelectual sobre tecnolo-
gias tradicionais, enquanto num evento pan-indígena paralelo à Eco-92,
no Rio de Janeiro, foi aprovada uma Carta da Terra dos Povos Indígenas
na qual os direitos culturais apareciam ao lado dos direitos de proprieda-
de intelectual. Ou seja, em menos de dez anos passou-se da cultura dos
povos indígenas como patrimônio da humanidade à cultura como patri-
mônio tout court, e mais especificamente ainda à “cultura” como proprie-
dade particular de cada povo indígena (Cunha, 2009, p. 327).

Percebemos então que, apesar da visão ideológica de críticos da propriedade que


viam os povos indígenas “como exemplos para o resto do mundo” contra a cobiça, contra
o direito de propriedade, sobretudo o intelectual, entre o regime de domínio público ou
a propriedade intelectual coletiva esses povos preferiram ficar com a opção dominante,
frustrando assim os setores progressistas. Vê-se, no entanto, que, contrariamente ao que
pode se pensar, a objetivação da cultura não começou no colonialismo. Cunha conta que
o antropólogo Simon Harrison fez um levantamento enorme da literatura Melanésia que
incluía o período pré-colonial, segundo o qual os “traços culturais constituem-se em ob-
jetos ou quase objetos passíveis de todo o tipo de transação: direito sobre rituais, cantos,
saberes e fórmulas mágicas podem ser ofertados ou vendidos” (Cunha, 2009, p. 359).
Havia “sociedades especializadas na produção de cultura para exportação” e outras
produtoras de “tradição” que forneciam aos seus vizinhos bens imateriais como danças, can-
tos e rituais. Essas transações tomavam formas variadas, como vendas exclusivas, emprés-
timos do direito de uso ou até mesmo “franquias” onde se cedia o direito de executar uma
dança, por exemplo, mantendo-se outros direitos de propriedade sobre ela. Ao que parece,
nesse contexto, era mais valorizado “o direito exclusivo de autorizar empréstimos ou aquisi-
ções culturais” do que “a exclusividade cultural da execução” (Cunha, 2009, p. 360).

origem à Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) que, pela primeira vez, reconheceu o valor dos
recursos e do conhecimento indígena. A convenção estabeleceu um quadro de referência para proporcionar
o acesso aos recursos genéticos e um meio justo e equitativo de partilha de benefícios”. Disponível em:
<http://www.worldbank.org/afr/ik/pr/ikn19.pdf>. Acessado em 08/2014.

363
Na Amazônia, os costumes, cantos, cerimônias, saberes e técnicas também têm
uma “origem alheia: o fogo foi roubado da onça ou do urubu; adornos e cantos são rece-
bidos de espíritos ou conquistados de inimigos” (Cunha, 2009, p. 360). Segundo Cunha,
esse costume pode estar relacionado ao “prestígio associado aos bens exóticos” identifica-
do na “abertura para o Outro” desses povos identificada por Lévi-Strauss.
Tais fatos são muito interessantes, pois desmistificam por completo a ideia de “pre-
servação” das culturas tradicionais no sentido estagnante da palavra. Demostram que as
culturas indígenas eram muitas vezes construídas e alimentadas a partir da troca de ele-
mentos “culturais”. “Num tal universo, como bem diz Viveiros de Castro, cultura é por
definição aculturação” (Cunha, 2009, p. 361).
Neste sentido, Cunha (Cunha, 2009, p. 273-274) propõe a valorização daquilo
que denominou sociodiversidade. Para ela, “as culturas constituem para a humanidade um
patrimônio de diversidade, no sentido de apresentarem soluções de organização do pen-
samento e de exploração de um meio que é, ao mesmo tempo, social e natural”. O que faz
da sociodiversidade tão preciosa quanto a biodiversidade e nos leva a avaliar as possíveis
perdas sociais a partir da busca de um progresso materialista. No entanto, alerta,

não se pense que há contradição entre essa perspectiva e a de que as


culturas são entidades vivas, em fluxo. Quando se fala do valor da socio-
diversidade, não se está falando de traços e sim de processos. Para man-
tê-los em andamento, o que se tem que garantir é a sobrevivência das
sociedades que o produzem.
A linguagem ordinária (…) prefere a completude à consistência e permi-
te-se falar sobre tudo. Movimenta-se sem solução de continuidade entre
cultura e “cultura” e não dá atenção a distinções entre linguagem e meta-
linguagem ou fatos contemporâneos e projetos políticos. Como a com-
pletude prevalece sobre a consistência, aquilo que alguns chamariam de
incoerência tem pouca importância. É num mundo assim, com a riqueza
de suas contradições que temos prazer em viver (Cunha, 2009, p. 373).

Enfim, aproveitamos a conclusão de Cunha, e com o intuito de demonstrar o


modo geral pelo qual operamos na pesquisa sobre a produção do espaço no território
Xakriabá, citamos brevemente o artigo de Viveiros de Castro, “O nativo relativo”, e o
livro de Latour, Jamais fomos modernos, que indicam maneiras interessantes de percorrer
o caminho que procuramos seguir.
No artigo referido, Viveiros de Castro (2002, p. 131) intenciona demonstrar que
da mesma maneira como a antropologia estuda as relações, o conhecimento produzido
por esta é ele próprio uma relação. Assim, sugere, a partir de Wagner (1986, p. 30), uma
postura antropológica que se recuse a colocar as questões dos nativos nos termos de cren-

364
ças, dogmas e certezas, com o risco de cair em uma armadilha de ter que acreditar “ou nos
sentidos nativos, ou em nossos próprios.” Posteriormente, no subitem de título sintético
Nem explicar, nem interpretar: multiplicar e experimentar, Viveiro de Castro recorre a Deleu-
ze (1969a, p. 335) em sua determinação do conceito de Outrem, como uma lição a ser
aproveitada pela antropologia, que diz,

a regra que invocávamos anteriormente: não se explicar demais, significava,


antes de tudo, não se explicar demais com outrem, não explicar outrem de-
mais, manter seus valores implícitos, multiplicar nosso mundo povoando-o
de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões.

Ao que Viveiros finaliza,

manter os valores de outrem implícitos não significa celebrar algum mis-


tério numinoso que eles encerrem; significa a recusa de atualizar os pos-
síveis expressos pelo pensamento indígena, a deliberação de guardá-los
indefinidamente como possíveis – nem desrealizando-os como fantasias
dos outros, nem fantasiando-os como atuais para nós. A experiência an-
tropológica, nesse caso, depende da interiorização formal das “condições
especiais e artificiais” de que fala Deleuze: o momento em que o mundo
de outrem não existe fora da sua expressão transforma-se em uma condi-
ção eterna, isto é, interna à relação antropológica, que realiza esse possível
como virtual. Se há algo que cabe de direito à antropologia, não é certa-
mente a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas de multiplicar nosso
mundo, “povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de
suas expressões” (Viveiros de Castro, 2002, p. 373, grifos do autor).

Latour (1994), ao final de seu livro, sintetiza o propósito de sua obra, ao mesmo
tempo que propõe uma abordagem para a ciência. Segundo ele, o papel da ciência con-
temporânea, mediante todas as críticas capazes de serem feitas à ciência moderna, não
seria o de apelarmos para mais uma revolução como esta ambicionou, mas sim, o de
homologar as práticas do passado, demonstrando e reconhecendo o quanto as práticas
modernas e tradicionais sempre coexistiram, o que no limite nos leva a compreender e
afirmar que jamais fomos modernos, para que então possamos repensar o presente. Desta
maneira, será possível reunir as metades que teriam se separado naquele período, uma
metade da política, feita nas ciências e nas técnicas e a outra da natureza, feita nas socieda-
des, renascendo assim a política. Legitimar a representação oficial e alterar a Constituição
são ferramentas eficazes neste processo.

Não temos outra escolha. Se não mudarmos o parlamento, não seremos


capazes de absorver as outras culturas que não mais podemos dominar, e

365
seremos eternamente incapazes de acolher este meio ambiente que não po-
demos mais controlar. Nem a natureza nem os Outros irão tornar-se moder-
nos. Cabe a nós mudar nossas formas de mudar (Latour, 1994, p. 142-143).

REFERÊNCIAS
CANCLINI, Néstor G. A globalização imaginada. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 2003.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida – uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix/
Amana-Key, 1997.
CLEMENTINO, Alessandro; MONTE-MÓR, Roberto Luís de M. Xakriabás: economia, espaço e for-
mação de identidades. In: XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2006, Caxambu. Anais. Belo
Horizonte: ABEP, 2006.
CUNHA, Manoela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
DINIZ, Sibelle Cornélio. Em busca de um (etno)desenvolvimento regional: o caso do Território Indígena
Xakriabá, no Norte de Minas Gerais. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2006. (Mo-
nografia de conclusão de curso em Ciências Econômicas)
GOMES, Ana Maria; MONTE-MÓR, Roberto Luís de M. Educação e alternativas de produção: diagnósti-
co da economia e implementação de projetos de sustentabilidade junto à comunidade indígena Xakriabá
(Norte de Minas Gerais). In: III Seminário Internacional da ARIC – Association pour la Recherche Inter-
culturale na América Latina, 2006, Florianópolis. Anais. Florianópolis: UFSC: 2006.
GUERRA, Emerson Ferreira. Gestão territorial na terra indígena Xakriabá e a geopolítica das retomadas.
Revista Geográfica da América Central, Costa Rica, 2 sem. 2011.
HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. 4. ed. Barcelona: Ediciones Península, 1994.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
LEFEBVRE, Henri (1974). A produção do espaço. Versão preliminar; trad. Doralice de Barros Pereira e Sergio
Martins. Belo Horizonte: IGC/UFMG, 2006. (do original: La production de l’espace, 4. ed. Paris: Éditions
Anthropos, 2000).
MARCOLINI, Ana Rosa; MAGALHÃES, Pedro Arthur; CARDOSO, Vanessa. Etnodesenvolvimento e or-
ganização do espaço na comunidade indígena Xakriabá. In: XIV Seminário Sobre a Economia Mineira, 2010.
MONTE-MÓR, Roberto L. M. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In:
SANTOS, Milton et al. (Org.) Território globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1994.
MONTE-MÓR, Roberto L. M. Cidade e campo, urbano e rural: o substantivo e o adjetivo. In FELDMAN,
S.; FERNANDES, A. (Ed.). O urbano e o regional no Brasil contemporâneo: mutações, tensões, desafios. Salva-
dor: EDUFBA, 2007.
SAHLINS, Marshall. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a “cultura” não é um
objeto em via de extinção (Parte I). Mana – Estudos de Antropologia Social, v. 3, n. 2, 1997.

366
SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
SANTOS, Ana Flávia Moreira. Do terreno dos caboclos do Sr. São João à Terra Indígena Xakriabá: identidade e
história as circunstâncias de formação de um povo. Um estudo sobre a construção social de fronteiras. Universi-
dade de Brasília, Brasília: 1997. (Dissertação de Mestrado em Antropologia)
SANTOS, Ana Flávia Moreira. Xakriabá: identidade e história. Série Antropologia. Universidade de Bra-
sília, Brasília: 1994. (Relatório de pesquisa). [on-line]. Disponível em: <http://www.unb.br/ics/dan/Serie-
167empdf.pdf>. Acesso em: jun. 2014.
SANTOS, Boaventura S. Um discurso sobre as ciências. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2004.
SANTOS, Boaventura S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: _____. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção.
São Paulo: Edusp, 2002. p. 313-330. (Coleção Milton Santos)
SANTOS, Rafael Barbi Costa. A cultura, o segredo e o índio: diferença e cosmologia entre os Xakriabá de
São João das Missões/MG. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2010. (Dissertação em
Antropologia)
SILVA, Edinaldimar Barbosa da. Política e autonomia: os Xakriabá no contexto do indigenismo. Universida-
de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2007. (Monografia em Ciências Sociais)
SILVA, Rogério C. Circulando com os meninos. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2011.
(Tese de Doutorado em Educação)
STRATHERN, Marilyn. Contemporary moments: land as intellectual property, 2009 [on-line]. Disponível
em: <http://xa.yimg.com/kq/groups/25631922/2002232619/name/Strathern+(Terra+como+pro-
priedade+ intelectual).rtf>. Acesso em: ago. 2013.
VERRAN, Helen. Re-imagining land ownership in Australia. Postcolonial Studies, Austrália, v. 1, n. 2, 1998.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo, Mana, v. 8, n. 1, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. No Brasil todo mundo é índio exceto quem não é. In SZTUTMAN,
Renato. Coleção Encontros: a arte da entrevista, Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azou-
gue, 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena, O Que Nos
Faz Pensar, Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, 2004. Disponível em: <http://www.
oquenosfazpensar.com>. Acesso em: jun. de 2014.

367
O espaço da resistência: uma
construção teórico-prática inspirada
em Henri Lefebvre
Carolina Herrmann Coelho-de-Souza

Introdução

Este trabalho busca no pensamento do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre


as bases para a inserção da perspectiva espacial na análise dos conflitos ambientais.
Trata-se de uma discussão teórico-prática, que procura estabelecer relações entre os
estudos sobre o espaço em Lefebvre (1975; 1991; 2008), o conceito da doxa de Pierre
Bourdieu (2004; 2006; 2007) e o conflito ambiental na Serra do Gandarela, locali-
zada na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde a ameaça da
extração de ferro fez surgir um movimento de resistência que tem conquistado êxito
em impedir a atividade minerária na região.
Tal articulação permitiu a construção do que denomino espaço da resistência, elo en-
tre o espaço abstrato e o espaço diferencial lefebvrianos. Como elemento que pode levar à
passagem de um espaço ao outro, o espaço da resistência transita entre ambos, ou seja, entre
a hegemonia que impõe a acumulação e o que busca romper com a ordem estabelecida
ao realizar o movimento do possível-impossível para a transformação da prática social.
A hipótese do espaço da resistência é, portanto, uma contribuição teórica a partir de uma
reflexão sobre a prática, que se insere na teoria do espaço de Lefebvre.
Apresento neste trabalho, sobretudo, a teoria que deu origem à construção concei-
tual sobre o espaço da resistência. Para isso, faço uma introdução aos conceitos de Lefebvre e
Bourdieu, que serão necessários à formulação teórica sobre a noção do espaço da resistência
na Serra do Gandarela e suas representações. A parte empírica está sintetizada no início
do texto e é decorrente da análise do conflito ambiental ao longo de mais de dois anos, a
partir de observação participante e entrevistas em profundidade com integrantes do Mo-
vimento pela Preservação da Serra do Gandarela (MPSG).1

A ameaça na Serra do Gandarela

A Serra do Gandarela localiza-se no Brasil, estado de Minas Gerais, na porção nordeste do


Quadrilátero “Ferrífero/Aquífero”, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (Figura 1).
Ela faz parte da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço determinada pela UNESCO.

Figura 1 - Localização do Quadrilátero “Ferrífero/Aquífero” em Minas Gerais/Brasil


Fonte: Danilo Siqueira (cedido).

1 Este artigo é resultado da pesquisa de doutoramento da autora em Arquitetura e Urbanismo pela


Universidade Federal de Minas Gerais e foi escrito na fase final de elaboração da tese.

370
O conflito ambiental teve início com as tentativas da atividade de mineração de
ferro pela multinacional Vale, empresa brasileira que nasceu em Minas Gerais em 1942
(Silva, 2004). Em 2009, a Vale entrou com a solicitação de licenciamento ambiental da
Mina Apolo, com o empreendimento localizado nos municípios de Caeté, Santa Bárbara,
Raposos e Rio Acima, os quais fazem parte da Serra do Gandarela e integram a Região
Metropolitana de Belo Horizonte.
No Estudo de Impacto Ambiental (EIA, 2009) estava prevista a produção de 24
milhões de toneladas anuais de minério de ferro, contemplando uma barragem de rejeitos
com 128 metros de altura à montante do município de Raposos, além da pilha de estéril e
demais infraestruturas. A vida útil prevista para a Mina Apolo era de 17 anos (EIA, 2009).
Nesse mesmo documento é mencionado o mercado asiático, principalmente China, Ja-
pão e Coreia do Sul, como o principal comprador do minério de ferro.
Esta ameaça da mineração já vinha sendo percebida pelas comunidades através de
movimentações da empresa no local e matérias em jornais da região com dizeres sobre a
“maior mina de ferro a céu aberto do mundo”, diz o Entrevistado-A. E desde o princípio,
havia muita preocupação sobre as consequências à relevância hídrica da região, que pos-
sui água de alta qualidade e em quantidade, diz o Entrevistado-B. “Onde tem ferro tem
água!” é uma das falas do movimento de resistência, que aponta a região da Serra do Gan-
darela como responsável por grande parte do abastecimento de água de Belo Horizonte e
Região Metropolitana, com mais de 5 milhões de habitantes.
Diante disso, criou-se o Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela
(MPSG) em 2009, formado por moradores de Belo Horizonte e das comunidades da
Serra. O MPSG solicitou junto ao órgão responsável – o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – a criação de um Parque Nacional (PARNA)
como proposta inicial para bloquear a mineração. O PARNA somente permite o uso indi-
reto de seus recursos naturais (BRASIL, 2000), impedindo a atividade de mineração. De
acordo com o Entrevistado-B trata-se de uma “resistência propositiva”.

(...) nós não somos da turma “do contra”, nós somos do “a favor de outra
coisa” (...) é ser a favor da vida, da água, e isso é muito mais agregador
do que ser contra algo. (...) e isso inspirou muita gente (Entrevistado-B).

O ICMBio apresentou os estudos para a proposta de criação do Parque em 2010.


De acordo com o documento (Brasil, 2010, p. 3), o local possui “uma quantidade expres-
siva e em bom estado de conservação do geossistema Canga/Itabirito, uma das forma-
ções mais ameaçadas do Brasil por sua inevitável coincidência com áreas de interesse mi-
nerário”. São listados diferentes aspectos bióticos e abióticos que justificam a importância

371
da área, tais como a elevada diversidade biológica, relevante área de recarga de aquífero
devido à quantidade expressiva do geossistema Canga/Itabirito, grande número de raras
cavernas em canga, atributos paleontológicos e históricos notáveis (Brasil, 2010).
O processo de licenciamento ambiental da Mina Apolo está parado até que se de-
finam os limites desta Unidade de Conservação. Desde então há um intenso conflito polí-
tico sobre parcela da área que poderá ser excluída do Parque e concedida às mineradoras
ou não. Para o Entrevistado-A a sociedade tem o direito de “dizer não!”, pois tem lugares
que não se pode minerar.

A nossa luta é diferente. Para nós não pode minerar. Tem lugares que não
pode minerar. (...) A nossa luta é a de dizer não! Não pode! (...) É outro
olhar, é outro raciocínio (Entrevistado-A).

Em 2012 houve a solicitação pelas comunidades locais para que parte da área pro-
posta do Parque seja substituída para a categoria de Reserva de Desenvolvimento Susten-
tável (RDS), de forma a não prejudicar os usos tradicionais, já que a categoria de Parque
de proteção integral impede a mineração, mas impede também as atividades de extração
de musgos e apicultura, entre outras, realizadas pelas comunidades. Assim, a reivindicação
do MPSG é pelo mosaico de Unidades de Conservação.
Observa-se ainda que o MPSG não se limita à estratégia de utilizar o instrumen-
to institucional “Unidade de Conservação” para bloquear a mineração. O movimento de
resistência tem levado à discussão pública questionamentos e contraposições quanto à
atividade minerária e o modelo econômico atual. O Entrevistado-D sugere as questões
que a sociedade deveria elaborar para avaliar a necessidade da mineração no local: “Para
que minerar?”, “Para fazer o que com os minérios?”, “Com qual a justificativa?”. O Entre-
vistado-A também argumenta que “não é desenvolvimento a palavra”, pois o termo im-
plica “des-envolver”, ou seja, “cortar o envolvimento” ao invés de envolver. “É possível dar
emprego, é possível as pessoas viverem, as pessoas terem alegria na vida, sem destruir a
natureza”, mas “o capitalista enxerga a natureza como uma forma de fazer dinheiro”, critica
o Entrevistado-D. A luta pela Serra do Gandarela “hoje já é uma briga por uma mudança
de modelo econômico”, diz o Entrevistado-C.

(...) para mudar, independente de como isso vai acontecer, a gente tem
que ter um novo olhar e um novo sonho de uma nova realidade. (...) Para
mim tem que mudar este sistema total que a gente criou, a gente tem que
construir um novo sistema de relações, de valores (…) (Entrevistado-A).

372
O MPSG elaborou um estudo econômico (MPSG, 2012) que gerou um contra-
ponto à Vale. O trabalho desconstrói o discurso da empresa mineradora e lança propos-
tas, “porque é preciso mostrar à sociedade que existem alternativas além da mineração”,
afirma o Entrevistado-D.
O documento apresenta uma sugestão de economia solidária e gestão comunitária
dos negócios, através do turismo de base local e do “empreendedorismo individual, fami-
liar e de pequena e média empresas”, como a agricultura familiar orgânica e o artesanato
(MPSG, 2012, p.153). São atividades permanentes no tempo e com um olhar a partir das
raízes culturais e sociais do lugar que poderão ser consolidadas e fortificadas. Além disso,
proporcionam a “ampliação da geração de emprego e renda para a população local” e o “au-
mento da capacidade de arrecadação própria dos municípios” (MPSG, 2012, p. 151 e 212).

(...) E hoje as pessoas já conseguem sonhar com outras coisas que não a
mineração, e isso mexe muito com o imaginário das pessoas, e quando
você imagina algo, projeta algo, aquilo torna-se muito mais viável a que
ocorra realmente (Entrevistado-B).

Além da apresentação de alternativas econômicas, o MPSG enfatiza a importância


da água. São “minas de água e não de minério!”, dizem, pois a atividade da mineração de
ferro destruiria com o gigantesco reservatório natural de água da região. Trata-se da uto-
pia-concreta nos termos de Bloch (1977).

Essa luta é a utopia, e ela não está lá longe não, ela está aqui, no nosso fazer,
no acordar a cada dia (...) A utopia é o ser no cotidiano, levando todos os
ideais para as ações mais simples, (...) ela é palpável, ela é vivenciada, (...)
ela é possível porque ela é intenção, e a intenção vive (...) A intenção pro-
move mudanças (...) Na verdade a [nossa] utopia se resume: eu preciso
de água pura para beber. É a utopia mais concreta (Entrevistado-F).

Somado a isso, integrantes do MPSG vislumbram por uma mudança profun-


da na sociedade, na compreensão de diferentes linguagens de valoração (Healy et al.,
2013), de outros modos de vida baseados em relações mais harmoniosas entre os
seres humanos e destes com a natureza, em sintonia com as filosofias de vida do Bem
Viver dos povos Andinos (Acosta, 2013), do Ubuntu na África (Louw, 1997) e do
conceito dos Comuns (Bollier, 2014).
Alguns expressam seus sentimentos pelo lugar, o consideram sagrado, pois alí se
percebe, se sente a vida, dizem. A Serra do Gandarela é o “último Santuário” que restou no

373
Quadrilátero “Aquífero”,2 expressa o Entrevistado-F. “Para mim [o Gandarela] é um espaço
sagrado mesmo, que a gente tem que defender”, diz o Entrevistado-G.

O Gandarela me representa um sentimento muito forte, é algo que é di-


fícil de explicar, é algo que a gente sente. Eu penso que é uma energia
mesmo muito grande que está naquele local, que é uma energia mesmo
da vida (Entrevistado-B).

Um recorte na teoria do espaço de Henri Lefebvre

Henri Lefebvre (1901-1991), filósofo e sociólogo francês, expõe o espaço no nível teóri-
co, mas isso não significa que está ausente ou distante da prática, pelo contrário, o autor
justifica que o conhecimento não se encontra mais separado da prática; a isto o filósofo
chama de “metafilosofia” (Lefebvre, 2008). Para Lefebvre (1991),3 o objetivo da luta te-
órica é o de reunir o que foi separado, e discernir o que foi confundido. O conhecimento
do espaço implica a crítica do espaço, nos ensina Lefebvre (1991).
O espaço não é neutro, afirma Lefebvre (2008). O autor critica a hipótese do espaço
sem conteúdo, como forma pura, que se desenvolve no espaço mental e se povoa tardiamen-
te de coisas, de usuários (Lefebvre, 2008). A tese do espaço vazio se mantém “indiferente” ao
que o preenche, ao que o autor questiona: “O que garante que as pessoas e suas necessidades
vão se deixar inserir na logística sem resistência?” (Lefebvre, 2008, p. 60, grifo nosso).
O espaço tem conteúdo, afirma Lefebvre (1991), e quem se torna o conteúdo é o
espaço social, com seus sentidos e conteúdos diversos. O espaço é um instrumento políti-
co “intencionalmente manipulado” pelo poder, o qual reproduz os meios de produção e as
suas relações sociais que se efetuam na cotidianidade através do espaço inteiro (Lefebvre,
2008, p. 47-48). O espaço é, portanto, político e estratégico na obra do autor.
Milton Santos (2008) nos auxilia a diferenciar espaço de território. A configura-
ção territorial sugere o conjunto formado pelos sistemas naturais existentes e pelos acrés-
cimos impostos pelos homens, numa realidade material. O espaço, por sua vez, reúne a
materialidade e a vida que a anima, dada pelas relações sociais (Santos, 2008). Para Soja
(1999), o importante é ter a consciência da espacialidade da vida humana, expandir a sua
compreensão teórica e prática para além dos limites atuais, ao lado das tradicionais abor-
dagens das dimensões históricas e sociais.

2 Integrantes do MPSG denominam de Quadrilátero Ferrífero/Aquífero (QFA).


3 A referência utilizada de Lefebvre (1991) do livro A produção do espaço foi, em sua maioria, lida na versão
em processo de tradução por Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins do IGC/UFMG. A versão lida foi
disponibilizada para estudos sobre Lefebvre no NPGAU/UFMG ao longo do ano de 2012.

374
A triplicidade do espaço
O espaço tem uma triplicidade em relação dialética, conforme Lefebvre (1991);
ele é percebido, concebido e, ao mesmo tempo, vivido. O espaço percebido é a prática
espacial que associa a realidade cotidiana e a realidade urbana”; é a percepção da base prá-
tica do mundo exterior (Lefebvre, 1991). O espaço concebido é também denominado
de “representações do espaço”, relacionado às relações de produção, à ordem imposta; é
o espaço dos cientistas, dos planificadores, dos tecnocratas; é o espaço dominante numa
sociedade, expressa Lefebvre (1991).
Por fim, o espaço vivido, ou “espaço de representações”, é o espaço dos habitantes, dos
usuários, é a representação dos seus símbolos e imagens; ele contém os lugares das situações
vividas, portanto, implica o tempo ele é essencialmente qualitativo (Lefebvre, 1991).

O espaço abstrato: o espaço da acumulação


A história do espaço mostrará a dominação crescente da abstração e do visual,
afirma Lefebvre (1991), resultante de uma estratégia a partir de uma determinada ló-
gica. É onde funciona o capitalismo, estilhaçado e dissimulado, é o espaço dominante,
dos centros de riqueza e de poder (Lefebvre, 1991). Ele é o espaço das técnicas, das
ciências aplicadas, o lugar, o meio e o instrumento de suas implicações, definido pela
alienação reificante (Lefebvre, 1991).
O espaço abstrato é contra toda a diferença; ele nega, anula as diferenças da nature-
za, do tempo, do espaço, do corpo, destruindo a natureza e os tempos naturais, impondo
a homogeneização abstrata, expõe Lefebvre (1991). Ao mesmo tempo que busca o ho-
mogêneo, diz Lefebvre (1991), é um espaço recortado, fragmentado, desmembrado por
especialistas, parcelado sobre lotes.
É o espaço que reúne em si o espetáculo (visual) e a violência; ele simula a diver-
sidade, mascara suas contradições; ele é normativo e repressivo, ele é voltado ao lucro,
expressa Lefebvre (1991). A realidade do espaço abstrato, para Lefebvre (1991), aparece
como meio da acumulação, da mercadoria, do capital, é uma verdade abstrata que se im-
põe à realidade dos sentidos, dos corpos.

A natureza no espaço abstrato


A natureza ao ser modelada, transformada, dominada, é distanciada pelo espaço abs-
trato; ao ser controlada é devastada, ameaçada de aniquilamento ameaça a própria espécie hu-
mana, afirma Lefebvre (1991). A abstração é inventada pelas sociedades humanas, expressa
o autor, que promove a desnaturalização do espaço natural por intervenções da ciência e da
técnica, portanto, da abstração. A violência é exercida por toda a natureza, pelos recursos, pelas
riquezas, pelo território, afirma Lefebvre (1991); a natureza é colocada em seu limite, diz.

375
O Estado impõe leis, recortes administrativos, princípios políticos estranhos às
leis naturais e às qualidades iniciais dos territórios e pessoas, expõe Lefebvre (1991). A
racionalidade da acumulação e da burocracia se estabelece sobre a natureza, continua o
autor. A natureza é transformada em produto, em espaço explorado, estendido, produzido,
e assim, ela é arruinada (Lefebvre, 1991).
Lefebvre (1991) argumenta que a natureza é a nova raridade, o seu valor de uso foi
transformado em valor de troca, a natureza é destruída e remanejada segundo as exigências da
sociedade neocapitalista, continua Lefebvre (2008); há a venalidade generalizada da própria
natureza. Substitui-se o espaço-natureza por um espaço-produto (Lefebvre, 1975; 1991).
Essa estratégia destrói o advir para atender os interesses imediatos; é a trágica
supremacia do espaço (abstrato) sobre o tempo que se observa na natureza (Lefebvre,
1991). Por outro lado, a finitude da natureza e da terra modifica a crença cega na potência
infinita da abstração, afirma Lefebvre (1991).

O instrumental do espaço abstrato


O espaço abstrato é instrumental, manipulado por autoridades, seu lugar e meio,
afirma Lefebvre (1991). A classe dominante não poderia deixar de lado o espaço, argu-
menta o autor, pois o espaço é o lado ativo, operatório, do modo de produção existente.
O espaço serve à hegemonia a qual exerce sobre ele o emprego do saber e das
técnicas; um sistema definido pelos instrumentos (Lefebvre, 1991). O espaço abstrato
é político e instituído por um Estado, portanto, institucional, reforça Lefebvre (1991);
seus instrumentos são consagrados e aceitos. A intervenção do Estado se dá em todos os
níveis e instâncias, nada passa exterior ao Estado e seus serviços, eles recobrem o espaço,
continua o autor.

... estendido ao espaço inteiro


O valor de troca é imposto ao planeta inteiro, o mundo da mercadoria está ocu-
pando todos os espaços, expressa Lefebvre (1991). O capitalismo se mantém se esten-
dendo a todo o espaço, se apoderando dos espaços preexistentes da Terra, observa Lefeb-
vre (1991), estendendo-se no solo, no subsolo e no sobre-solo.
Isto também é acompanhado da extensão da reprodução das relações de produção, e
a produção do seu espaço (capitalista), através da urbanização para atender ao mercado mun-
dial, aponta Lefebvre (1991), produzindo também as cidades globais (Sassen, 2001; 2012).
Monte-Mór (1994, p. 170) compreende, a partir de Lefebvre, que essa “nova dinâmica con-
temporânea da organização do espaço social” está apresentada na ideia de “urbanização exten-
siva”. Mesmo em se tratando de áreas rurais ou mesmo distantes de centros urbanos, Mon-
te-Mór (1994, p. 173) compreende que existe uma lógica comum levada pela dinâmica do

376
capital e do Estado, seu aliado. Nesse sentido, a Serra do Gandarela tornou-se parte da lógica
estendida a partir do momento em que se propôs inserí-la nas práticas desta lógica.
Refiro-me à lógica do uso tanto para a atividade de mineração, que a coloca ple-
namente dentro da reprodução do espaço de produção do capital, quanto à sua institu-
cionalização na condição de Unidade de Conservação (UC). Como UC o território se
insere dentro da concepção de uma natureza produzida que serve para o lazer e a proteção
da natureza controlada (Lefebvre, 1991), serve para as compensações ambientais, para o
marketing das empresas, para a produção do “espaço de reserva” (Euclydes, 2012), em vez
de simplesmente cumprir o seu papel de ser natureza.

O contraespaço
Por outro lado, a proposta de institucionalização da Serra do Gandarela através do
mecanismo Unidade de Conservação é uma estratégia de “contraprojeto”, de um “contra-
espaço” que representa um instrumento que tem servido também à heterodoxia. Lefebvre
(1991) denomina de “contraespaço” as forças que se opõem às intenções estratégicas do
espaço abstrato, isto é, são os seus obstáculos.
O caminho para a diferença chegar ao concreto passa pelo “contraprojeto”, a nega-
ção ativa, teórica e prática ao que se opõe, passando pela intervenção “ativa e massiva dos
interessados”, afirma Lefebvre (1991). Este contraespaço se instala dentro do espaço abs-
trato, diz. Toda proposição de um contraespaço abala da base ao cume o espaço existente,
sua estratégia, seus objetivos (a homogeneidade), continua o autor.

As contradições do espaço abstrato


Os conflitos, lutas e contradições são inerentes à compreensão do espaço, afirma
Lefebvre (1991). As contradições do espaço não são determinadas por ele, pois o espaço
não tem nenhum poder em si, ou seja, as contradições advém do conteúdo prático e so-
cial, do conteúdo capitalista, afirma Lefebvre (1991; 2008).
Para o autor, o espaço abstrato esconde, sob sua aparente homogeneidade, as rela-
ções reais e os conflitos; sua homogeneização, seu suposto consenso, quer fazer desapare-
cer com as diferenças. O espaço abstrato provoca sua própria dissolução pelos conflitos,
contradições que nele nascem (Lefebvre, 1991), que o conduzem ao seu fim. O nasci-
mento de um novo espaço terá o nome de “espaço diferencial”, conforme o autor.

O espaço diferencial
Lefebvre (1991) expressa que a diferença é uma teoria difícil e inacabada, que vai
do concebido ao vivido; em outras palavras, a diferença está também presente no espaço
abstrato, nos instrumentos da heterodoxia, partindo do contexto atual para transgredí-lo.

377
O conceito da diferença é uma reflexão intelectual que se dá sobre a prática, mas a diferen-
ça não pode realizar-se unicamente pelo pensamento, afirma o autor.
A diferença recusa e contesta “o que está dado, o conhecido, para descobrir e afir-
mar as diferenças” (Nasser; Fumagalli, 1996, p. 29). A diferença critica a indiferença, pro-
nunciando contra a homogeneização que é proveniente do Estado, do poder político, do
mundo da mercadoria, menciona Lefebvre (1975; 1991).
As diferenças estão à margem da homogeneização; são resistências, exterioridades;
o diferente é o excluído, o periférico (Lefebvre, 1991). Os poderes diferenciais se encon-
tram geralmente na defensiva; eles resistem, afirma Lefebvre (1975). Mas, para Lefebvre
(1991), as diferenças precisam contra-atacar, e não apenas permanecer na defensiva, para
não se deixarem absorver pelas potências homogeneizantes que utilizam da capacidade
de integrar, recuperar ou eliminar aquilo que transgride.
Para Lefebvre (1975), quem deseja ser “outro” já está na diferença:

Por que a diferença? Esta pergunta já não tem sentido. Vocês estão, nós
estamos, cada um de nós está no diferente. Aquele que não pode e não
quer imitar nem de longe a algum grande modelo, nem identificar-se
com ele, não tem outra escolha que desejar ser outro. Já o é! (Lefebvre,
1975, p. 33, tradução nossa, grifo do autor).

E Lefebvre (1975) conclui:

O diferencialismo não é um sistema. Trata-se de discorrer sobre a dife-


rença? Não. Trata-se de viver, não de pensar, senão de “ser” diferente (Le-
febvre, 1975, p. 129, tradução nossa).

A produção do “novo” espaço


A ampla transição, conforme Lefebvre (1991), poderá se definir de múltiplas ma-
neiras, diferentes e convergentes. A ideia da diferença é a única que une entre si as lutas
dos negros, dos estudantes, dos diversos povos; há o “mundo das diferenças”, continua
o autor. É preciso compreender que não há somente uma lógica da sociedade, mas sim
várias lógicas (Lefebvre, 1975).
A revolução precisa da capacidade criadora de “obras na vida cotidiana”, na lingua-
gem, no espaço, no urbanismo e na produção arquitetural correspondente, afirma Lefeb-
vre (1991). A passagem de um modo de produção a outro se verifica por um espaço que
é apropriado; um novo espaço se produz durante a transição, afirma Lefebvre (1991).
Uma transformação da sociedade, continua Lefebvre (1991), supõe a possessão
e a gestão comum do espaço, realizada pela intervenção ativa e contínua dos interessa-

378
dos. Por outro lado, Lefebvre (1991) considera que somente inventar “outro espaço”
não é suficiente para criar uma nova vida; é necessário vida nova (outra prática social)
para espaço novo, e vice-versa.
Para Lefebvre (1975), revolução é criação, é a capacidade criadora. O autor fala na
revolução que “transforma a vida”; trata-se de querer “mudar a totalidade” criando outra.
“Nesse sentido, o pensamento diferencialista é radicalmente revolucionário” (Lefebvre,
1975, p. 110, tradução nossa). Para Lefebvre (1991) estão abertas no horizonte as possi-
bilidades múltiplas de criar, assim como anunciaram os grandes utópicos, que tiveram seu
pensamento teórico estimulado não só por conceitos, mas também por sonho e imagina-
ção, expressa Lefebvre (1991).

A passagem do possível ao impossível


As relações de produção quebram os espaços dos sonhos, do imaginário, da utopia,
afirma Lefebvre (1991); assim, as possibilidades práticas são reduzidas. Lefebvre (1991)
expressa que a separação do possível e do impossível é um erro; o espaço que contém as
condições para uma vida nova coincide com o espaço que as impede, diz Lefebvre. Para
Lefebvre (1991) a sociedade nova não pode se definir senão pela inversão do mundo ao
avesso (inversão do espaço abstrato). O autor reforça sobre a reabilitação do uso contra a
troca; trata-se da importância de restituir a teoria do valor de uso e recolocá-la em primei-
ro plano (Lefebvre, 1991).
A produção de um novo espaço requer um projeto teórico e prático a longo prazo,
diz Lefebvre (1991). Este projeto deve transpor o intervalo entre ciência e utopia, rea-
lidade e idealidade, entre o concebido e o vivido, e tende a explorar a relação dialética
possível-impossível (Lefebvre, 1991).

Hoje, mais que nunca, não existe pensamento sem utopia. Ou então, se nos
contentarmos em constatar, em ratificar o que temos sob os olhos, não ire-
mos longe, permaneceremos com os olhos fixados no real. (...) Não existe
pensamento que não explore uma possibilidade, que não tente encontrar
uma orientação. (...) encontramo-nos diante das fronteiras, bastante difíceis
de discernir, entre o possível e o impossível (Lefebvre, 2008, p.73).

Do movimento “possível-impossível” nasce a diferença:

É o movimento do possível-impossível. Ou seja, o movimento pelo qual


o possível é a diferença que consegue romper, transgredir e vencer o ho-
mogêneo e que, ao lograr esse intento, cria, como capacidade diferencial,
a possibilidade de transformação da prática social (Nasser; Fumagalli,
1996, p. 35, grifo do autor).

379
A doxa de Pierre Bourdieu

A seguir, apresento conceitos do sociólogo e filósofo francês Pierre Bourdieu (1930-


2002), especialmente para a compreensão da doxa.

O espaço social, um campo de forças e de lutas


O mundo social pode ser representado em forma de espaço, considera Bourdieu
(2007), em várias dimensões, continua o autor, em que cada agente está numa posição,
numa região determinada do espaço. Trata-se de uma estrutura mutável, em que operam,
ao mesmo tempo, a dinâmica da conservação e a da transformação da estrutura da distri-
buição das propriedades ativas, e assim, do espaço social (Bourdieu, 2010).
Na medida em que as propriedades do espaço são atuantes, Bourdieu (2010) percebe
o espaço social global como um campo em que forças atuam, ou seja, um “campo de forças”,

(...) um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com


meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo
de forças, contribuindo assim para a conservação ou a transformação de sua
estrutura (Bourdieu, 2010, p. 50, grifos nossos).

A doxa: o inquestionável mundo feito evidente


Bourdieu (2006) observa que quanto mais ajustada está a estrutura objetivada
daquela internalizada (experiência subjetiva), resultante de uma lógica de simples repro-
dução, o estabelecimento da ordem política é percebido não como arbitrária, não como
uma das ordens possíveis no meio de tantas outras, mas é vista como fechada nela mesma,
como se fosse uma ordem natural inquestionável.
Assim, expressa Bourdieu (2006), toda a ordem estabelecida tende a produzir a
naturalização da sua própria arbitrariedade para conservar a sua estrutura, o seu senso
da realidade. Coisas que poderiam ser de “outro modo” são o que são, somente porque
são o que deveria ser, continua o autor. Os agentes têm na experiência subjetiva o senti-
mento de que “não há nada a fazer” a não ser o que se está fazendo, que é somente o que
se deveria fazer (Bourdieu, 2006).
Bourdieu (2006) aborda que a posição que cada um exerce na sua prática é confirma-
da e reforçada tanto pela prática dos outros membros do grupo quanto pelas instituições. O
mundo tido como evidente é reduplicado pelos discursos instituídos sobre o mundo, no qual
a aderência de todo o grupo para esta evidência é confirmada, afirma o autor. Duarte Júnior
(2006, p. 70) expressa que a conservação da realidade interiorizada se dá pela rotina e pela
interação com os outros, através da conversa “o mundo é incessantemente confirmado”.

380
“Um simples ‘bom-dia’ do porteiro de meu edifício me informa que as coisas
continuam como sempre” (Duarte Júnior, 2006, p. 70). E quando a certeza na realidade
cotidiana é abalada, são “acionados os mecanismos de conservação da crítica da realida-
de” para que a “confirmação da realidade” se torne “explícita e intensa”, e seja rapidamente
reestruturada, tanto em nível individual como coletivo (Duarte Júnior, 2006, p. 71-72).

(...) o governador ou o prefeito podem ir aos meios de comunicação e de-


clarar que a polícia estará nas ruas para garantir a ordem e a normalidade
(vale dizer, a realidade) (Duarte Júnior, 2006, p. 72).

As necessidades subjetivas e tidas como evidente num senso comum do mundo


são validadas num mundo objetivo, cuja essência existe “sem ser falada”, explica Bourdieu
(2006). Para o autor, as leis habituais são silenciosas; os princípios permanecem implíci-
tos e não formulados, porque inquestionáveis, nada é mais majoritário do que a “unanimi-
dade da doxa” (Bourdieu, 2006).

E quando as estruturas incorporadas [subjetivas] e as estruturas objeti-


vas estão de acordo, quando a percepção é construída de acordo com as
estruturas do que é percebido, tudo parece evidente, tudo parece dado.
É a experiência dóxica pela qual atribuímos ao mundo uma crença mais
profunda do que todas as crenças (no sentido comum), já que ela não se
pensa como uma crença (Bourdieu, 2010, p. 144).

A doxa, portanto, é o “tido como certo”, o inquestionável, o indiscutível, o “não


nomeado”, considera Bourdieu (2006). O “campo da doxa” está para além do questiona-
mento, e sobre o qual cada agente concorda pelo simples fato de atuar de acordo com a
convenção social, diz o autor. A aderência expressa na “relação dóxica” ao mundo social,
explica Bourdieu (2006), é a forma absoluta de reconhecimento da legitimação pelo “des-
conhecimento da arbitrariedade”.
Assim, os instrumentos de conhecimento são, para Bourdieu (2006), instrumentos
políticos que contribuem para a reprodução do mundo social pela produção de adesão ao
mundo, visto como evidente e incontestado, do qual se é produto e se reproduz as estruturas.

381
O mundo imposto e legitimado pela ortodoxia
A ortodoxia é a maneira oficial, correta de falar e pensar o mundo, “impõe censuras” e
“esconde a oposição” entre a opinião correta e a errada, e, assim, delimita o universo das pos-
sibilidades de discursos, esclarece Bourdieu (2006). A ortodoxia torna legítimo ou ilegítimo,
e assim mascara tudo o mais que pode ser estabelecido, pensado e discursado; esconde tam-
bém a delimitação que faz do impensável, nos diz o autor. Assim, conclui Bourdieu (2006), a
ortodoxia impede o acesso aos “instrumentos de luta” para a definição da realidade.
Nas lutas simbólicas está em jogo a própria representação do mundo social, pela
produção do senso comum, expõe Bourdieu (2004; 2007). Porém, a legitimação da or-
dem social não é produto de uma imposição simbólica, diz Bourdieu (2004); ela resulta
do fato dos “agentes aplicarem às estruturas objetivas do mundo social estruturas de per-
cepção e apreciação do mundo como evidente” (Bourdieu 2004, p. 163).
A imposição da ordem estabelecida é dada como natural pela ortodoxia; ela é masca-
rada, logo, ignorada, segundo Bourdieu (2007). Harvey (2012) fala do controle dos fluxos
de informações e da comunicação em massa que influenciam a maneira “como podemos es-
perar entender e transformar o mundo”; eles “moldam o contexto imaginativo no qual vive-
mos. Elas o fazem sem que praticamente ninguém se dê conta disso” (Harvey, 2012, p. 206).
Tal imposição quer evitar a transformação do mundo, continua o autor (Harvey,
2012). Além disso, na nossa apressada vida diária, em nome da “interminável acumulação
do capital”, somos privados de tempo para imaginar e construir alternativas distintas das
que são impostas, manifesta Harvey (2012, p. 310). O efeito disso é “limitar nossa visão
do possível”, conclui o autor (Harvey, 2012, p. 310). Boaventura de Sousa Santos (2011)
expõe as barreiras do pensamento para pensar a diferença; ele fala da “razão indolente”, as
“monoculturas”, e propõe a sua superação pelas ecologias (Santos, 2011).

(...) muito do que não existe em nossa realidade é produzido ativamente


como não existente, e por isso a armadilha maior para nós é reduzir a rea-
lidade ao que existe (Santos, 2011, p. 28).

A ordem estabelecida legitima também as distinções, definindo-as pela sua distância


em relação à cultura dominante (Bourdieu, 2007). Bourdieu (2006) considera que os modos
de dominação se dão pelas relações de dominação decorrentes da interação entre as pessoas
e pelas formações sociais mediadas de forma objetiva por mecanismos institucionalizados.
Bourdieu (2010) percebe o Estado como aquele que promove um processo de
“unificação dos diferentes campos sociais, econômico, cultural, político etc. Porém, esta
unificação acompanha “a constituição progressiva do monopólio estatal da violência físi-
ca e simbólica legítima” (Bourdieu, 2010, p. 51).

382
A objetivação em mecanismos também garante a reprodução da estrutura das re-
lações de dominação e dependência, continua Bourdieu (2006). Assim, a dominação não
existe mais diretamente entre indivíduos, mas entre instituições socialmente garantidas,
qualificadas e definidas em suas posições, expõe Bourdieu (2006). Desta forma, tendo
a sua autoridade legitimada, a classe dominante somente deixa que o sistema que eles
dominam exercite a sua dominação (Bourdieu, 2006).
A ortodoxia somente existe em sua relação objetiva à aquilo que a opõe, a hete-
rodoxia, expõe Bourdieu (2006). Esta última vista como heresia, cuja crítica explicita as
alternativas não apresentadas pela ordem estabelecida, continua o autor.

A fronteira entre o universo do discurso (ortodoxo ou heterodoxo) e do


universo da doxa, no duplo sentido do que é sem dizer e do que não pode
ser dito pela falta de um discurso disponível, representa a linha de divisão
entre a forma mais radical de desconhecimento e o despertar da consci-
ência política (Bourdieu, 2006, p. 170, tradução nossa).

A noção da doxa é expressa graficamente por Bourdieu (2006) na Figura 2.

Figura 2 - A representação da doxa


Fonte: Bourdieu (2006).

383
Questionando o inquestionável
A verdade da doxa só é revelada na constituição de um campo de opinião, na con-
frontação dos discursos que competem, expressa Bourdieu (2006).

A crítica que traz o indiscutido para a discussão, o não formulado para a


formulação; tem a condição de gerar uma crise objetiva, a qual, em quebrar
a imediata ligação entre as estruturas subjetivas e as estruturas objetivas,
praticamente destrói a autoevidência (Bourdieu, 2006, p. 168-169, tradu-
ção nossa, grifos nossos).

A crise é a condição necessária para o questionamento da doxa, mas ela não é sufi-
ciente para a produção de um discurso crítico (Bourdieu, 2006). Em situações de crise a
ordem cotidiana é desafiada, porém, a crise pede uma linguagem, um “discurso extraordi-
nário” que precisa ser “legitimado e autorizado pelo grupo”, diz Bourdieu (2006).
Deslegitimar o discurso dominante é uma das possibilidades contra os fundamen-
tos simbólicos do poder, diz Bourdieu (2007); trata-se de expor as contradições e os con-
flitos do espaço abstrato, como nos fala Lefebvre (1991).

A destruição deste poder de imposição simbólico radicado no desconhe-


cimento supõe a tomada de consciência do arbitrário, quer dizer, a revelação da
verdade objectiva e o aniquilamento da crença: é na medida em que o discurso
heterodoxo destrói as falsas evidências da ortodoxia, restauração fictícia da
doxa, e lhe neutraliza o poder de desmobilização, que ele encerra um poder
simbólico de mobilização e subversão, poder de tornar actual o poder poten-
cial das classes dominadas (Bourdieu, 2007, p.15, grifos nossos).

Os dominados têm o interesse de “expor a arbitrariedade do tido como certo”; do


outro lado, os dominantes têm o interesse em “manter a integridade da doxa”, esclarece
Bourdieu (2006). É somente quando os dominados possuem os meios materiais e sim-
bólicos para rejeitar a definição imposta do real e expor as censuras institucionalizadas ou
internalizadas que os “princípios arbitrados aparecem como tais”, afirma o autor.

O poder simbólico de construção do mundo


As estruturas objetivas produzem o que Bourdieu (2007) denomina de “catego-
rias de percepção” do mundo social, as quais conduzem os agentes a manterem a “relação
dóxica”, a aceitarem o mundo tal como ele é, ao invés de rebelarem-se contra ele. A parte
indeterminada e vaga dos objetos do mundo social está implícita nos esquemas de per-
cepção e de apreciação que lhes são aplicados, continua o autor. Portanto, para Bourdieu
(2007), conservar ou transformar as categorias de percepção é o cerne da luta política.

384
O conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias
que o tornam possível, são o que está, por excelência, em jogo na luta
política, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar
ou de transformar o mundo social conservando ou transformando as ca-
tegorias de percepção desse mundo (Bourdieu, 2007, p. 142).

Se, por um lado, Bourdieu (2004) percebe que os agentes têm uma apreensão ati-
va do mundo, que eles constroem sua visão de mundo; de outro, o autor considera que
essa construção é operada sob “coações estruturais”, já que o mundo social tende a ser per-
cebido como evidente. Estamos limitados e imersos no mundo institucional e construído,
diz Harvey (2012), mas isso não significa que abolimos a imaginação.

Postular essas alternativas nos permite realizar uma “experiência de pensa-


mento” em que imaginamos como é ser (e pensar) numa situação diferente.
Essa experiência diz que, ao alterar nossa situacionalidade (material ou men-
talmente), podemos alterar nossa visão de mundo (Harvey, 2012, p. 312).

Bourdieu (2004) considera que estamos diante do “poder simbólico”, um poder


de construção do mundo.

Para mudar o mundo, é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, isto


é, a visão de mundo e as operações práticas pelas quais os grupos são produ-
zidos e reproduzidos (Bourdieu, 2004, p. 166, grifos nossos).

A construção do espaço da resistência


e suas representações dialéticas

Elaboro aqui minha proposta do espaço da resistência, contribuição teórica a partir da práti-
ca, a qual insiro na teoria do espaço de Lefebvre com o auxílio ao entendimento promovi-
do pela noção da doxa de Bourdieu.
A partir da representação gráfica de Bourdieu (2006) na Figura 2 sobre o cam-
po regido pela doxa, percebeu-se a oportunidade de expressar graficamente o campo
do espaço abstrato e sua doxa, com a sua ruptura dada pelo espaço diferencial em seu
primeiro momento, o qual denomino de espaço da resistência. Parto da compreensão de
que a diferença em Lefebvre é uma transgressão, subversão e superação da própria doxa
do espaço abstrato.
Opto por inverter o desenho de Bourdieu (2006). Represento o espaço abstrato
como um quadrado, e não um círculo, pois este espaço é cartesiano, rígido, cheio de nor-
mas; é burocrático e institucional, o que me leva a pensar numa forma dura, com linhas

385
retas, como o quadrado. A ortodoxia deste campo de lutas é representada pelo sinal de
“mais” (+), e a heterodoxia está em sua posição contrária.
Ao mesmo tempo, transformo a doxa em um círculo. Compreendo que por mais
que esteja fechada em si mesma, a doxa é maleável, pois a ortodoxia do espaço abstrato se
apropria dos discursos da heterodoxia e os desvirtua, adapta, inverte o sentido a seu favor;
suas verdades são remodeladas ao longo do tempo.
Para a representação do espaço diferencial eu visualizo a imagem do infinito, que
simboliza as infinitas possibilidades de perceber e ser no mundo, de realidades no plural,
como nos diz Duarte Júnior (2006). A inserção do espaço diferencial parte do interior do
espaço abstrato, o que significa a sua presença na prática social, mais precisamente pela he-
terodoxia, conforme Figura 3 a seguir. Isto também reafirma a fala de Lefebvre e Bourdieu
de que a mudança parte da realidade, ou seja, para transformar o quadrado é preciso partir
de dentro dele e atuar em suas fissuras, como fala Lefebvre (1991).
Assim, defendo a minha hipótese de que há o espaço da resistência que promove
o elo e transita de forma dialética entre o espaço abstrato e o espaço diferencial quando
estes se encontram; é a sua interconexão. A Figura 3 é a síntese gráfica do espaço da resis-
tência que proponho, com suas representações: os instrumentos, as contraposições e as
utopias, explicadas a seguir.

Figura 3 - O espaço da resistência e suas três representações


Fonte: elaboração própria.

386
Nessa Figura 3 escrevo possível e impossível e coloco uma seta entre ambos para
representar o movimento de que Lefebvre fala, o qual considero o rumo do espaço da resis-
tência. É um movimento que se dá a partir do espaço abstrato em direção ao espaço dife-
rencial. Seguindo o deslocamento do possível-impossível, compreende-se que o espaço da
resistência é o primeiro momento do espaço diferencial.
O espaço da resistência está em cor sólida ao fundo, unificado, ao mesmo tempo que
possui as três hachuras distintas. A hachura de listras horizontais é o momento em que o
espaço da resistência está inserido dentro do espaço abstrato; é o instrumental em seu uso
dado pela heterodoxia. Escolho as listras horizontais, pois trata-se de leis, normas, parece-
res, ou seja, linhas a seguir para obter a legitimação dentro do espaço abstrato.
Em seguida, a representação das contraposições é o momento em que o espaço da
resistência está dentro da doxa, porém fora do espaço abstrato. É quando se coloca em dis-
cussão o que até então não havia sido discutido, questionando os motivos pelos quais as
coisas são da maneira que são. Esse momento é marcado pela dúvida da própria doxa con-
trapondo a sua crença cega. É não concordar com os valores que este espaço implica, com
a sua lógica e sua maneira de compreender o mundo, permitindo a crítica ao modelo atual.
Assim, proponho o desenho de linhas cruzadas entre si como a representação gráfica
das contraposições, pois é rejeitar, é dizer “não”, mesmo que não haja instrumentos reconhe-
cidos para tal, pois aqui, inclusive, os instrumentos também são questionados; é o momento
em que os argumentos do espaço abstrato são contrapostos fora de sua legitimação oficial.
O vislumbre do questionamento da doxa pelas contraposições traz consigo ou-
tras visões de mundo, cujas possibilidades são infinitas. Duarte Júnior (2006, p. 6) diz
que quando se está fora da legitimação oficial, institucional, teórica e simbólica, ou seja,
quando se está nesse vácuo e se questiona as concepções “tidas e havidas como a única
realidade possível”, é que se pode começar a falar em utopia.
Assim, é no momento em que o espaço da resistência consegue “escapar” da doxa,
permitindo o pensamento fluir para o que é considerado impossível pelo espaço abstrato,
é que surgem as utopias. Esse é o momento em que o pensar e o sentir se libertam de
qualquer censura imposta e se expressam livremente e de múltiplas formas. Por conta
disso é que para representar as utopias eu reinsiro a imagem do infinito várias vezes; são
vários universos infinitos, são incontáveis diferenças dentro do espaço diferencial e estas
continuam a existir para além da resistência.
Compreendo que a utopia é o lugar que não existe em determinadas condições (Blo-
ch, 1977); é o que não tem lugar dentro do espaço abstrato e sua doxa, mas pode vir a ser rea-
lidade, ou já o é, em outros espaços que proporcionem as condições para a sua existência. Em
se tornando realidade, ou já sendo, não se trata de utopia, é realidade presente, pois o desejo da
utopia é por querer mudar uma determinada realidade. E ao alcançá-la outras surgirão no hori-

387
zonte. Pois, conforme o escritor Uruguaio Eduardo Galeano, citando Fernando Birri, a utopia
serve para caminhar. E, para tanto, Bloch (1977) considera a capacidade ativa do homem.
Assim, é na representação das utopias que se manifesta a incomensurabilidade de va-
lores (Martínez-Alier, 2011; Healy et al., 2013); é aqui que os conhecimentos e os modos de
vida que são deslegitimados, marginalizados e desqualificados no espaço abstrato, têm a sua
expressão. É onde tem lugar a alternativa ao desenvolvimento (Acosta, 2013; Gudynas, 2011).
Nesse momento cabe tudo o que não está enquadrado no espaço abstrato; são
os sentimentos, a espiritualidade, a sensação de que é possível haver outra relação mais
harmoniosa entre os seres humanos, e destes com a natureza. É aqui que tem lugar o Bem
Viver (Acosta, 2013), o Ubuntu (Louw, 1997) e os Comuns (Bollier, 2014).4
A representação da utopia no espaço da resistência é, portanto, quando o impos-
sível do espaço abstrato é vislumbrado como possível fora dele; é a utopia-concreta de
Bloch (1977); portanto, a utopia está do lado de fora da doxa. O desenho da seta na
Figura 3 também representa que, ao mesmo tempo que a ruptura do espaço abstrato
se faz a partir de dentro, a sua motivação, o que move e faz agir pela imaginação do
que pode ser, se dá pela visão para além dele. Por isso, tenho a compreensão de que o
espaço da resistência é movido em direção contrária ao espaço abstrato e sua doxa; ele
é “puxado” pelo lado de fora, pelas outras visões de mundo. É a utopia, necessária ao
pensamento que explora uma possibilidade, como diz Lefebvre (1991), que provoca o
movimento em direção à diferença.
Por fim, compreendo que este desenho também pode ser expresso em três dimen-
sões, pois todos os espaços, inclusive as suas representações, acontecem em diversas es-
calas, isto é, são interescalares. Refiro-me às escalas geográficas, mas também às diversas
dimensões de poder, institucionais, de contraposições, de ações, de pontos de vista, de
imaginários concretos e filosofias de vida etc.
Concluo com a compreensão de que as três representações do espaço da resistência
estão numa relação dialética, de forma simultânea, sem ordem ou sequencia, mas num
movimento, podendo, inclusive, ter pesos relativos distintos para cada agente social e cada
grupo. Compreendo que este diferente peso relativo entre os instrumentos, as contrapo-
sições e as utopias, faz com que as ações dos agentes dentro da prática social do espaço
abstrato também se manifeste de forma distinta, e, como resultado, a interferência no ter-
ritório pode se dar de diversas maneiras.
As ações dos agentes sociais, consequentes da ênfase em determinada represen-
tação, resultam em acordos ou não, em aceitar compensações ou não, em soluções con-
sensuais ou não, ou seja, em aceitar certas realidades ou ir além do que é dado. Ao mesmo

4 Mais informações sobre esses conceitos e filosofias de vida em Coelho-de-Souza (2014).

388
tempo, a ênfase também varia de acordo com o contexto político e espacial em que se
encontra, e pode alterar-se no tempo dentro da mesma luta.
Cabe salientar que o resultado e alcance no campo de lutas das estratégias desem-
penhadas marcam diretamente o território e sua comunidade, como por exemplo, na
delimitação de terras, na definição de seu uso, neste caso: minerar ou não. No final, é no
território que se materializam as representações mentais do espaço em disputa política,
como consequência das ações dos agentes sociais levadas por determinadas convicções,
anseios e visões de mundo.

Considerações e questionamentos para além...

Considero que a noção do espaço da resistência serve para melhor compreender as diversas
dimensões da resistência na Serra do Gandarela, uma resistência à conjuntura do espaço
abstrato em que vivemos. É o espaço vivido que resiste à imposição do espaço abstrato, na
linguagem de Lefebvre.
Ao mesmo tempo, a noção do espaço da resistência gera reflexões sobre as represen-
tações que existem sobre o espaço. Trata-se de uma tradução para a teoria dos pensamen-
tos e inspirações que influenciam as estratégias e suas consequentes ações e impactos na
“prática” social das lutas por territórios, comunidades e modos de vida.
O espaço da resistência na Serra do Gandarela insere-se na resistência contempo-
rânea que se apresenta frente ao contexto político neoliberal. Insere-se nas lutas contra
as injustiças ambientais (Martínez-Alier et al., 2014), resistências que abrangem questões
nos seus mais diversos âmbitos, assim como os movimentos occupy pelo mundo (Harvey
et al., 2012) e as manifestações de junho de 2013 no Brasil, por exemplo.
Por outro lado, esta pesquisa foi formulada a partir da análise do conflito ambiental
na Serra do Gandarela, e, portanto, não tenho a pretensão de generalizar a noção do espaço
da resistência e suas representações. Inclusive, compreendo que a resistência contra uma
ameaça é bastante distinta de uma resistência a um lugar já impactado.
De qualquer modo, creio que é possível adaptar a noção de espaço da resistência aqui
desenvolvida de acordo com cada realidade particular, pois entendo que há um espaço da
resistência proveniente de cada luta. A incorporação da dimensão espacial na análise do
conflito ambiental é um dos avanços que observo como resultado da pesquisa.
Por fim, termino este artigo lançando questionamentos. Se o espaço da resistência
é o primeiro momento do espaço diferencial, que continua para além deste, conforme o
desenho da Figura 3, qual é o seu segundo momento?
Será o espaço diferencial presente na realidade da prática social depois de inverti-
da? O que de fato significa quando se atinge o diferencial no meio de um contexto abstra-

389
to? O espaço abstrato estará rompido em um pedaço? Como lidar com o pedaço rompi-
do no meio de um homogêneo ainda abstrato?
Afinal, o que vem a ser o segundo momento do espaço diferencial? Ou seria me-
lhor chamá-lo de espaços diferenciais? Será este o espaço da emancipação? Será que, por
um momento, teremos várias diferenças abrindo os seus espaços dentro do abstrato até
elas predominarem?
Para responder tantas perguntas são necessárias outras pesquisas, ou melhor, é ne-
cessário vivenciar as outras realidades. Pois, conforme Lefebvre (1975), não se trata de
pensar a diferença, senão de “ser” diferente.

Nós precisamos é deixar o ferro e o ouro lá, com as cangas, e as águas


sendo guardadas no subterrâneo. (...) Nosso modo de viver é que tem
que mudar, e esse modo de viver segundo alguns sábios (...) é o que vem
pelo coração (Entrevistado-F).

REFERÊNCIAS
ACOSTA, A. El Buen Vivir: Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otros mundos. Barcelona: Icaria
Editorial, 2013.
BLOCH, E. El Principio esperanza. Madrid: Aguilar, 1977. t. I.
BOLLIER, D. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island/
Canada: New Society Publishers, 2014.
BOURDIEU, P. Espaço social e poder simbólico. In: _____. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.
149-168.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 10. ed. Campinas, SP: Papirus, 2010.
BOURDIEU, P. Structures, Habitus and Power: basis for a theory of symbolic power. In: _____. Outline of
a theory of practice. Cambridge University Press: Cambridge, New York, 2006. p. 159-197.
BRASIL. Lei no 9.985, de 13 de jul. 2000. SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Brasília:
Presidência da República, 19 jul. 2000.
BRASIL. MMA – Ministério do Meio Ambiente. Proposta de criação do Parque Nacional da Serra do Gandare-
la. Brasília: MMA/ICMBio, 2010. Disponível em: <http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/o-
que-fazemos/Estudo%20que%20originou%20a%20proposta.pdf>. Acesso em: 03 Jun 2013.
COELHO-DE-SOUZA, C. H. A necessária utopia: uma das representações do espaço da resistência na Serra
do Gandarela. In: Anais do International colloquium Epistemologies of the South: South-South, South-North and
North-South global learning - Coimbra, 10, 11, 12 July 2014, publicado na revista Crítica de Ciências Sociais.
Coimbra/Portugal: Projeto ALICE / CES – Universidade de Coimbra, 2014.

390
DUARTE JÚNIOR, J. F. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 2006.
EIA – Estudo de Impacto Ambiental. Projeto Mina Apolo. Belo Horizonte: Vale, 2009.
EUCLYDES, A.C.P. Proteção da natureza e produção da natureza: política, ideologias e diversidade na criação de
unidades de conservação na periferia sul da metrópole belo-horizontina. Dissertação de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2012.
GUDYNAS, E. Debates sobre el desarrollo y sus alternativas en América Latina: Una breve guía heterodo-
xa. In: LANG, M.; MOKRANI, D. (Comp.). Más Allá del Desarrollo: Grupo Permanente de Trabajo sobre
Alternativas al Desarrollo. Quito: Abya-Yala; Fundación Rosa Luxemburgo, 2011.
HARVEY, D. Espaços de esperança. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
HARVEY, D. et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo;Carta
Maior, 2012.
HEALY, H. et al. (Ed.). Ecological Economics from the ground up. New Work: Routledge, 2013.
LEFEBVRE, H. El Manifiesto Diferencialista. 2. ed. México: Siglo Veintiuno, 1975.
LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LEFEBVRE, H. The Production of Space. Oxford: Blackwell, 1991.
LOUW, D.J. Ubuntu: An African Assessment of the Religious Other. Annual Meeting of the American
Academy of Religion. San Francisco/USA: 22-25 Nov. 1997. Disponível em: <http://www.bu.edu/wcp/
Papers/Afri/AfriLouw.htm>. Acesso em: 27 abr. 2014.
MARTÍNEZ- ALIER, J. et al. Between activism and science: grassroots concepts for sustainability coined
by Environmental Justice Organizations. Journal of Political Ecology, v. 21, p. 19-60, 2014.
MARTÍNEZ-ALIER, J. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo:
Contexto, 2011.
MONTE-MÓR, R. L. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In: SANTOS, M.;
SOUZA, M. A. A.; SILVEIRA, M. L. Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur, 1994.
MPSG (Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela). Parque Nacional da Serra do Gandarela: opor-
tunidade de riqueza limpa e para toda vida. Belo Horizonte: MPSG, 2012.
NASSER, A. C. A.; FUMAGALLI, M. A opressão da equivalência, as diferenças. In: MARTINS, J. S. (Org.).
Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.
SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2011.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universi-
dade de São Paulo, 2008.
SASSEN, S. The Global City: New York, London, Tokyo. 2. ed. New Jersey: Princeton University Press, 2001.
SASSEN, S. Cities in a World Economy. 4. ed. Los Angeles: SAGE Publications, 2012.
SILVA, M. G. S. A Terceira Itabira: os espaços político, econômico, socioespacial e a questão ambiental. São
Paulo: Hucitec, 2004.
SOJA, E. W. Thirdspace: journeys to Los Angeles and Other Real-and-Imagined Places. Oxford: Blackwell, 1999.

391
(Fase) crítica das áreas verdes urbanas:
entre o industrial e o urbano
Ana Carolina Pinheiro Euclydes

Para compreender os rumos da sociedade contemporânea, Henri Lefebvre (1999) tra-


ça um eixo espaçotemporal que parte da natureza em estado puro e alcança a urbaniza-
ção completa da sociedade, em que se sucedem, sem deixar de coexistir, a era rural, a era
industrial e a era urbana. Nesse eixo, a realidade social atual está posicionada numa fase
crítica, situada entre o declínio da era industrial, na qual predominam o produtivismo, a
fragmentação e a racionalidade cartesiana moderna, e a ascensão da era urbana, marcada
pela fruição, pelo encontro e pelo pensamento dialético.
Na fase crítica, a urbanização completa da sociedade mundial se anuncia como
uma virtualidade, associada a uma crise também mundial da realidade e do pensamento.
No entanto, há uma grande dificuldade – um campo cego – em apreender o urbano, o que
se deve ao fato de tentarmos ver o campo novo com olhos “formados pela teoria e pela
prática da industrialização, com um pensamento analítico fragmentário e especializado”
condicionado a reduzir as diferenças e resistências para reconhecer coerência (Lefebvre,
1999, p. 38). Assim predispostos, tendemos a preencher o vazio (possível-impossível, pre-
sença-ausência) do urbano com objetos, produtos, operações e técnicas da era industrial,
ignorando sua forma, seus vetores e tensões, sua lógica e seu movimento dialético.
Para Lefebvre, o conhecimento sobre o urbano demanda um pensamento urbanísti-
co – que não corresponde ao urbanismo industrial, mas à reflexão crítica sobre a sociedade
urbana – que relativize o que antes passava por absoluto (a razão, a história, o Estado, o ho-
mem), reconhecendo as diferenças (mentais e sociais, espaciais e temporais) à luz da forma
urbana (do encontro, da reunião, da simultaneidade) e situando-as num contexto mais am-
pliado. A construção desse pensamento passa por uma revolução urbana, que consiste no
conjunto de transformações que a sociedade contemporânea atravessa
para passar do período em que predominam as questões de crescimento
e de industrialização (modelo, planificação, programação) ao período no
qual a problemática urbana prevalecerá decisivamente, e em que a busca
das soluções e das modalidades próprias à sociedade urbana passará ao
primeiro plano (Lefebvre, 1999, p. 19).

Entre as questões inerentes à problemática urbana está a da relação homem-natu-


reza, que não é totalmente contida pelo eixo espaçotemporal, como aponta o filósofo. No
eixo estão apenas indicados os pontos – as inflexões campo-cidade e cidade-urbano –, em
que ocorrem inversões de sentido nessa relação, que não provocam a superação de en-
tendimentos anteriores, mas a variação da predominância das acepções em cada tempo.
Na primeira inflexão, que aflui na Europa ocidental durante o Renascimento, junto ao
desenvolvimento do racionalismo moderno, as pessoas deixam de se reconhecer “na natu-
reza, mundo tenebroso atormentado por forças misteriosas”, para se perceberem como per-
tencentes às cidades (Lefebvre, 1999, p. 24). Nesse momento, a cidade não mais é percebida
como heterotopia – o paradoxo, o inferno ou o paraíso oposto à natureza aldeã –, tornando-se
a referência mental e social das pessoas e projetando sobre a natureza e o campo o caráter
heterotópico.1 O advento da era industrial capitalista, que sucede essa transição, contribui
para cristalizar os novos entendimentos em todas as dimensões da existência humana:2 na
dimensão espacial, instala-se a oposição campo-natureza-heterotopia x cidade-isotopia; na
temporal, coloca-se a dualidade campo-natureza-passado x cidade-presente-futuro; e na do
ser social, consolida-se a separação natureza-objeto x homem-sujeito.
Na segunda inflexão, a atual fase crítica, a natureza aparece no primeiro plano dos
problemas. Por um lado, ela se distancia, enquanto a industrialização e a urbanização ame-
açam extinguir ou tornar impróprios seus elementos (água, ar, vegetação, energia), que se
convertem em novas raridades – opostas às “antigas” raridades (produtos manufaturados),
cuja escassez foi superada pelo desenvolvimento tecnológico da produção industrial. Por
outro lado, esse distanciamento/escassez incita a capitalização da natureza e desencadeia
sua produção, configurando o que Martin O’Connor (1993) define como a fase ecológica do

1 Para compreender as propriedades unitárias e duais do espaço urbano, Lefebvre (1999, p. 47) introduz
os conceitos de isotopia, compreendendo um lugar, aquilo que o envolve e os espaços que lhe são
homólogos; heterotopia, consistindo no lugar que se distingue do inicialmente considerado, no nível do
simples contraste ou do conflito; e utopia, “o alhures, o não-lugar que não acontece e, entretanto, procura
seu lugar”, o espaço real cuja amplitude ultrapassa seus limites materiais.
2 Recorre-se ao nexo ontológico espaço-tempo-ser proposto por Edward Soja (1993) para examinar
as relações entre história, geografia e modernidade. Os pares de oposições aqui propostos
combinam leituras de Henri Lefebvre (1999), Boaventura de Sousa Santos (2006) e Carlos Walter
Porto-Gonçalves (2006).

394
capitalismo. Assim, espécies de seres vivos são criadas em laboratório, créditos de carbono são
comercializados internacionalmente, reservas naturais são constituídas para lastrear empre-
endimentos econômicos e os signos da natureza e do natural são produzidos e vendidos em
massa. Caberia dizer que, na fase ecológica do capital, tudo “o que não tem mais sentido pro-
cura reencontrar um sentido pela mediação do fetiche da ‘natureza’” (Lefebvre, 1999, p. 36).
Na fase crítica, a oposição cidade-campo, dominante na linguagem, nas ideias e nas
representações sociais, tende a se desfazer em favor da oposição entre a grande cidade e
sua periferia, impulsionando uma nova transformação da noção de natureza, que, (para)
além de heterotopia, tem reforçado seu sentido de utopia (Lefebvre, 1978). No tecido
urbano, os parques e jardins públicos expressam esse sentido, figurando como o contraste
extremo, a dupla utopia da natureza absoluta e a da pura artificialidade.

Quando o parque e o jardim (públicos) não são submetidos a uma racio-


nalidade de origem produtivista e industrial, quando não são neutraliza-
dos e não são reduzidos ao “espaço verde”, geometria mesquinha e carica-
ta, sugerem a natureza absoluta e inacessível, a caverna, o vento, a altitude,
o mar e a ilha, bem como a artificialidade: a árvore modelada, torturada,
servindo de puro ornamento (Lefebvre, 1999, p. 123).

Essa dupla utopia pode ser igualmente reconhecida nas áreas naturais protegidas,3
como os parques nacionais e as reservas naturais, mais comumente associadas ao meio
rural, onde se pretende resguardar a perenidade da natureza por meio da imposição de
limites rígidos à presença humana. Embora os objetivos e a aparência dessas áreas reme-
tam mais diretamente à utopia da natureza pura, sua existência só se realiza por meio de
um arcabouço de estratégias de repressão e interdição. Nesses casos, portanto, a utopia da
plena artificialidade não transparece nos jardins moldados à manicure, mas na pretensão
totalitária de segregar espacialmente homem e natureza.
São esses espaços (e suas utopias) o objeto de interesse do presente estudo, que
considera homólogos os parques e jardins públicos inseridos na malha urbana e as áre-
as protegidas associadas ao meio rural. Além de reconhecer as origens comuns desses
dois tipos de espaço – relacionadas à inflexão campo-cidade e às emergências do Es-
tado burguês e do naturalismo romântico –, o estudo propõe compreendê-los como

3 O conceito de área natural protegida (ou área protegida) diz respeito à destinação de determinados
fragmentos do território à conservação da biodiversidade ou das paisagens. A associação desses
espaços ao meio rural é difundida a ponto de a lei brasileira que rege o tema definir como zona rural
todas as áreas abrangidas por unidades de conservação do grupo de proteção integral, onde o uso
humano deve ser apenas indireto.

395
frutos do processo de implosão-explosão vivido pela cidade industrial4 a partir do século
XVIII: enquanto os parques e jardins públicos resultariam da concentração da nature-
za-heterotopia-utopia na malha urbana, as áreas naturais protegidas corresponderiam
aos fragmentos dessa noção de natureza projetados pelo território nacional com a ex-
plosão da cidade. Com o progressivo avanço da urbanização e a superação da dicoto-
mia cidade-campo decorrentes de tal processo, acredita-se que esses espaços venham
a ter destinos análogos, imersos nas dinâmicas do urbano – o que justifica a opção pela
expressão “áreas verdes urbanas” para fazer referência tanto às áreas verdes inseridas na
malha urbana como aquelas associadas ao campo.
Para desenvolver esse argumento, combina-se pesquisa histórica e estudos contem-
porâneos sobre áreas verdes urbanas com apontamentos de Henri Lefebvre (1978; 1991;
1999; 2011) sobre a produção do espaço e a revolução urbana. Partindo do eixo espaçotem-
poral proposto pelo filósofo, busca-se, nas seções “Utopias burguesas”, “Variações do espaço
abstrato” e “Áreas verdes industriais”, compreender a produção das áreas verdes urbanas pela
sociedade industrial, desde suas origens, exemplificadas pelo Central Park (Nova York) e
pelo Parque Nacional Yellowstone, até suas formas atuais, ilustradas a partir da política bra-
sileira de áreas protegidas e parques urbanos. Para tanto, contribuem as reflexões de Robert
Fishman (2002) sobre a formação dos subúrbios nas metrópoles industriais, de Keith Tho-
mas (2010) sobre as transformações da relação sociedade-natureza entre os séculos XVIII e
XIX, de Regina Camargos (2006) sobre as concepções modernas de áreas protegidas e da
autora deste texto sobre a política ambiental brasileira e as áreas verdes urbanas da Região
Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais (Euclydes, 2012; 2014).
Já na seção “Utopias do urbano na era industrial”, esses espaços são interpretados
a partir de suas tensões dialéticas, procurando-se apreender, em casos de desvios verifica-
dos em áreas verdes urbanas, práticas espaciais que escapem às lógicas industriais, sinali-
zando a iminência da produção de espaços novos, onde as relações de dominação (dos
homens entre si e com a natureza) possam dar lugar a relações mais horizontais, entre
seres semelhantes. Como exemplo dessas práticas, mencionam-se iniciativas de agricul-
tura urbana na Área de Proteção Ambiental (APA) Fazenda Capitão Eduardo, em Belo
Horizonte, que, embora irregulares legalmente, apresentam potencial para a melhoria da
qualidade de vida (humana e não humana) na região. Por fim, nas “Considerações finais

4 No eixo espaçotemporal proposto por Lefebvre (1999, p. 26), o desenvolvimento da cidade industrial
enseja um processo espacial de implosão (enorme concentração de riquezas, pessoas, atividades, objetos,
instrumentos, pensamentos) e explosão (projeção de fragmentos múltiplos e disjuntos, como periferias,
subúrbios, residências secundárias, satélites), que leva(rá) “à urbanização da sociedade, ao tecido urbano
recobrindo as remanescências da cidade anterior à indústria”. Tal processo redefine o espaço no sentido
da superação da dicotomia cidade/campo, dando origem ao urbano.

396
para a construção da crítica das áreas verdes urbanas”, reúnem-se os principais aponta-
mentos dessa crítica das áreas verdes urbanas, que, como parte da crítica da vida cotidiana,
pretende indicar a “emergência e a urgência de uma prática social nova, que não mais será
a da ‘sociedade industrial’, mas a da sociedade urbana” (Lefebvre, 1999, p. 129).

Utopias burguesas

Para Karl Marx, o estudo da sociedade burguesa – considerada por ele a organização pro-
dutiva mais desenvolvida e diversificada da história – permite compreender as formas de
organização e as relações de produção de todas as sociedades que a antecederam, já que
ela carrega os escombros das sociedades a partir das quais se desenvolveu. Entre esses
escombros estão alguns de seus resíduos atrofiados, bem como outros que, tendo se de-
senvolvido, adquiriram significações plenas (Lefebvre, 1991; Marx, 2011).
A análise do espaço produzido pela burguesia industrial empreendida por Fishman
(2002) contribui para a compreensão do papel da segregação na cultura burguesa – que
leva e desenvolve resíduos da sociedade medieval europeia. Nesse papel estão elementos
fundamentais da concepção das áreas verdes urbanas, como se verá adiante.
Para Fishman,5 os subúrbios são para a burguesia industrial o que os castelos re-
presentavam para a nobreza medieval: a forma espacial da afirmação coletiva da riqueza
e do prestígio de uma classe sobre as demais. Por sintetizarem os valores da cultura bur-
guesa que inspiram os modos de vida de grande parte da sociedade capitalista industrial
– como o ideal da vida familiar (nuclear, fechada), a separação de moradia e trabalho, a
segregação dos bairros das classes médias com relação ao centro cidade e a autonomia da
classe dominante para moldar o espaço conforme suas aspirações –, os subúrbios podem
ser considerados o autêntico monumento da civilização moderna. No limite, Fishman
os define como uma utopia burguesa: a materialização do projeto de autossegregação das

5 Antes de avançar nos argumentos de Fishman (2002), cumpre situar seus conceitos de burguesia,
subúrbio e utopia. O autor considera burguesia “a parte da classe média que por seu capital ou sua posição
profissional obteve renda equivalente à aristocracia, mas cujo trabalho diário em escritórios urbanos
a vincula ao estilo de vida das classes médias” (Fishman, 2002, p. 27, tradução nossa). Enquanto sua
riqueza permite que essa classe crie novas formas de vida, ela compartilha valores com o restante da classe
média, o que a torna um modelo seguido pelos menos prósperos economicamente. Já os subúrbios a
que o autor se refere são as periferias privilegiadas das cidades modernas, habitadas pelas classes médias.
Quanto ao conceito de utopia, é possível apreender no texto de Fishman a ideia do espaço idealizado,
capaz de condensar certo conjunto de valores de uma cultura. Trata-se de uma acepção distinta da
utilizada por Lefebvre (1991; 1999), que remete ao espaço que enseja outra concepção de mundo, uma
transcendência, um alhures. No presente estudo, a expressão utopia burguesa tem apenas o sentido que
lhe confere Fishman, não se confundindo com a utopia a que se refere Lefebvre.

397
classes médias com relação aos elementos ameaçadores da cidade e da sociedade, como
o aspecto cinza e poluído dos centros industriais, o trabalho industrial e a pobreza urbana.
Essa utopia remonta à Revolução Industrial e consiste em uma criação cultural da
burguesia inglesa, que, experimentando a nova forma de vida em família em residências
apartadas dos negócios, pôde testar e adaptar diversas formas de moradia tradicionais
até estabelecer um padrão espacial que refletisse sua distinção de classe. Esse processo
foi catalisado por um importante fator econômico: o fato de a formação de novas zonas
residenciais periféricas ser tanto um empreendimento simples de concretizar (em compa-
ração à criação de distritos de classe média no interior da cidade) quanto rentável, por per-
mitir transformar terra agrícola barata em zonas residenciais de alto valor. Assim, logo tais
subúrbios se tornaram um modelo para as cidades em expansão no período, moldando os
anseios de construtores e famílias e promovendo a engrenagem da produção do espaço
que se tornou a lógica estrutural do crescimento das grandes cidades anglo-americanas.
Esses subúrbios desenvolveram um padrão arquitetônico e paisagístico próprio, ins-
pirado na estética pitoresca,6 pautado no casamento entre campo e cidade – sem se confundir
com nenhum deles. Das cidades diferenciavam-se por sua posição geográfica, sua ocupação
por uma única classe social e seu uso exclusivamente residencial e por apresentarem (con-
trastante) baixa densidade de construções, sendo marcados pela primazia das residências
unifamiliares situadas em meio a cenários verdes semelhantes a parques (Fishman, 2002). Já
do campo se distinguiam pelo modo de vida urbano, pela alienação com relação ao trabalho
camponês e pela opulência, discrepante do decadente cenário agrícola inglês.
Para Thomas (2010), essa busca pelo casamento entre campo e cidade pode ser
vista como uma reação à crescente diferenciação entre esses espaços percebida durante a
inflexão campo-cidade, ao longo do século XVIII.7 O casamento, nesse contexto, expres-
sava a insatisfação com a cidade deteriorada pela indústria e a (reativa) romantização do
cenário rural por parte da burguesia não envolvida diretamente no processo agrícola.
Por meio dessa realidade urbano-industrial emergente, reelaborava-se também a
noção de natureza, que se opunha à cidade como “imagem e conceito, nostalgia, esperan-
ça”, sendo valorizada no limite do fetichismo (Lefebvre, 1999, p. 102). Essa reelaboração
se expressou na radical transformação das atitudes dos ingleses com relação às plantas, aos

6 A estética pitoresca faz referência ao que remete à pintura. Uma paisagem é considerada pitoresca por remeter
à arte, e não por sua semelhança com o espaço rural real, o que explica sua valorização por parte da burguesia
inglesa – letrada e conhecedora da tradição pictórica europeia – do século XVIII (Thomas, 2010).
7 Entre 1700 e 1800, a população urbana britânica saltou de 5% para 85% (Thomas, 2010). Essa
urbanização da população, fortemente associada à indústria, compôs uma nova ordem em que a cidade
não era mais o centro de coordenação e controle do excedente produzido no campo, mas passava a ser,
ela mesma, a sede da produção do excedente social (Soja, 2008).

398
animais e aos habitantes das áreas “incultas” ocorrida entre os séculos XVII e XVIII. Do
imperativo moral da dominação da natureza e do desprezo pelos moradores das florestas
e montanhas vigentes no início do período moderno, as classes mais abastadas passaram
à devoção semirreligiosa perante a paisagem selvagem e à admiração das montanhas e de
seus habitantes antes do fim do século XVIII (Thomas, 2010). 8
Assim, os subúrbios, como monumentos da civilização moderna, convivem, des-
de suas origens, com uma natureza alçada à condição de monumento. Mas foi em meados
do século XIX, nos Estados Unidos da América, que esses monumentos naturais – as
áreas verdes urbanas – se materializaram como representações de um Estado. Então, a
nação recém-instituída, ainda não dotada de experiências artísticas ou tradições próprias
relevantes, buscava um emblema que pudesse, ao mesmo tempo, distingui-la dos demais
países e estabelecer uma identidade comum à sua ocupação extremamente heterogênea,
expressando seu espírito liberal e democrático. Esse símbolo foi identificado nas imensi-
dões naturais do país, sem paralelo nas nações europeias e carregadas de referências filo-
sóficas, religiosas, científicas e estéticas (Camargos, 2006).
Entre os primeiros monumentos naturais relacionados à autenticidade estaduni-
dense estão o Central Park, de Nova York – cidade então tida como a metrópole comer-
cial do Novo Mundo –, e o Parque Nacional Yellowstone, situado numa zona de difícil
acesso no selvagem Oeste estadunidense, nos territórios de Montana e Wyoming. O pro-
jeto do Central Park, de 1857, combinava princípios higienistas de planejamento moder-
no, planos de manter feições originais da ilha de Nova York,9 anseios de equiparação às
metrópoles europeias e a proposta de oferecer aos cansados trabalhadores da cidade – e
não só os cidadãos com alto poder aquisitivo – um lugar de descanso, de contato com a
natureza e de lazer (Benton-Short; Short, 2008). Já o Parque Nacional Yellowstone, recor-
rentemente referido como a primeira área protegida na concepção moderna, foi instituí-

8 Essa transformação é descrita por Thomas (2010). Merece destaque a contextualização do autor sobre
o surgimento do estilo dos jardins ingleses, no século XVIII, divergindo dos padrões geométricos dos
demais jardins europeus. Segundo ele, o novo estilo consistiu em uma reação – pautada na crescente
valorização do pitoresco – à modernização da agricultura inglesa, que imprimia ao campo padrões cada
vez mais rígidos e simétricos. Observe-se, contudo, que “o gosto pelo agreste e pelo irregular seduzia
mais os abastados que os pobres, que lutavam pela subsistência, ou os agricultores, que ainda batalhavam
com a terra” (Thomas, 2010, p. 373).
9 Na defesa da concepção do plano, Frederick Law Olmstead, corresponsável pelo projeto e pela
coordenação da construção do Central Park, afirmava antever que um futuro em que toda Nova York
estaria nivelada e aterrada, com exceção da área do parque, que conservaria as formações rochosas
pitorescamente variadas da ilha (Schama, 1996 apud Camargos, 2006). Como se verá adiante, o parque
se compôs de contornos fluidos e ondulados – mas não os originais do terreno, e sim os moldados pelo
paisagismo de inspiração inglesa.

399
do oficialmente em 1872 por abranger um conjunto de paisagens naturais consideradas
únicas no planeta devido às suas exóticas formações geológicas. Seu objetivo principal era
promover o turismo, oferecendo ao “público em geral”, e não apenas aos “ricos que pode-
riam se dar ao luxo de comprar e manter suas próprias reservas particulares”, a visitação a
um santuário, um lugar de êxtase, de autoformação, de aprendizado científico e de forma-
ção de civilidade (Whittlesey; Schullery, 2003, p. 17, tradução nossa; Camargos, 2006).
No entanto, para estabelecer identidade entre as paisagens naturais e a auten-
ticidade estadunidense, foi preciso reunir sentimentos ambivalentes, como o apreço
antiurbano pela natureza e o anseio de converter a fronteira selvagem em território
civilizado, a estima pelas paisagens agrestes e a preferência pela estética pitoresca, a ad-
miração pelos desbravadores pioneiros e a rejeição aos fazendeiros incultos do Oeste,
a preservação do selvagem e sua dominação, o progresso e o atraso, a democracia e a
oligarquia. Assim, desde suas origens, a concepção das áreas verdes urbanas se relaciona
à aceitação dessas contradições, o que talvez explique por que a criação dos primeiros
parques nacionais estadunidenses não tenha sido visto como incoerente com a con-
quista do Oeste, mas como orgulho do desenvolvimento.

Se foi possível, para um país em desenvolvimento, excluir imensos ter-


ritórios do uso econômico convencional e atender uma demanda dife-
renciada de uso – condensada no termo turismo – nada mais próximo
do significado de democracia do que a intenção de possibilitar, para o
benefício coletivo, a ambiguidade de nostalgia das origens e crença no
futuro, como se o remorso do preço do desenvolvimento pudesse ser
transformado em orgulho (Camargos, 2006, p. 31).

Não surpreende, portanto, que essa noção de democracia tenha justificado ações
tão arbitrárias por parte do Estado quanto a imposição de fronteiras entre uma natureza
representativa da nação, digna de preservação, e uma natureza ordinária, mero recurso
produtivo, ou a distinção de homens civilizados, também dignos de preservação, de
homens selvagens – aí incluídos tanto os índios expropriados de suas terras conver-
tidas em parques10 como os fronteiriços considerados xucros –, cujos modos de vida
deveriam ser substituídos pela cultura burguesa. Ainda que essas áreas verdes urbanas
tivessem por objetivo o benefício coletivo, parece inevitável estabelecer um paralelo
entre a arbitrariedade da forma com que foram concebidas e as práticas despóticas da
monarquia medieval inglesa na instituição dos parques de cervos (ou florestas de caça)
para uso exclusivo da corte. Do mesmo modo, parece inevitável reconhecer a relação

10 A criação de Yellowstone, por exemplo, expulsou da área índios das tribos Crow, Blackfeet e Shoshone-
Bannock, cujo modo de vida moldava aquela paisagem há 11 mil anos (Kemf, 1993 apud Diegues, 2001).

400
genealógica entre esses parques de cervos e as áreas verdes urbanas – que repercute, por
exemplo, na permanência da denominação “parque”.11
Do mesmo modo, é possível identificar em tal arbitrariedade o princípio da ex-
clusão que Fishman (2002, p. 22, tradução nossa) identifica no “mundo suburbano do
lazer, da vida familiar e da união com a natureza”. Assim como os subúrbios anunciaram
a autoexclusão burguesa dos males da cidade industrial, as áreas verdes urbanas expressa-
ram a exclusão da natureza com relação à cidade (reflexo da oposição cultura-natureza) e
contribuíram para difundir a cultura burguesa de fragmentação e valorização diferenciada
da natureza a todo o território estadunidense.
Além de se assemelharem por seu princípio constituinte e seus papéis na di-
fusão do modelo burguês de produção do espaço, subúrbios e áreas verdes urbanas
têm em comum, desde suas origens, seu potencial gerador de mais-valia. Da mesma
maneira como a disseminação dos subúrbios se firmou como um negócio lucrativo
para construtores e especuladores, a criação de parques urbanos logo se revelaria um
mecanismo estratégico para a valorização imobiliária12 e para a indústria do turismo.
Daí que, em alguma medida, as áreas verdes urbanas possam ser associadas à utopia
burguesa a que se refere Fishman.
Por meio dessa utopia burguesa, as classes médias buscaram produzir o mun-
do urbano-industrial à sua imagem e semelhança. A partir do princípio da exclusão/
fragmentação, ofuscado sob a noção de democracia, puderam estabelecer fronteiras
físicas para proteger, dos perigos dos homens incultos e da indústria, o modo de vida
burguês e as paisagens naturais consideradas especiais – seja por diferenciarem o país

11 Na Idade Média, os reis normandos da Inglaterra expediam decretos (Forest Laws) confiscando grandes
extensões de terras do domínio comum ou particular com fins de reservar animais de caça considerados
nobres e estoques madeireiros para aproveitamento exclusivo da nobreza (Camargos, 2006). Ao longo
do século XVI, os objetivos principais dos parques se deslocaram para o paisagismo das residências da
nobreza, tendo muitos deles se transformado em jardins (landscape gardens) – que, dois séculos mais
tarde, seriam o berço do estilo próprio dos jardins ingleses (Hoyles, 2002; Thomas, 2010). Desde então,
convivem as noções de parque enquanto área de vida silvestre e enquanto jardim, o que se reflete nas
denominações e nos tipos modernos de áreas verdes urbanas (parques nacionais e parques públicos
inseridos na malha urbana).
12 Para Peter Harnik (2010), Olmstead, que é comumente referido como o inventor do paisagismo
estadunidense, pode também ser considerado o criador da economia da paisagem, pois teria sido pioneiro
em cogitar que os recursos auferidos pelo poder público com as taxas decorrentes da valorização
imobiliária dos terrenos no entorno do parque seriam maiores que o custo de sua implantação. Embora
a valorização imobiliária decorrente da criação de áreas verdes urbanas seja largamente observável nas
cidades capitalistas, ela não pode ser considerada regra. Como observa Jacobs (2009), outros fatores –
como a quantidade de áreas verdes de uma vizinhança e os projetos desses espaços – concorrem para
sua valorização, podendo as áreas verdes levar inclusive à desvalorização de uma vizinhança.

401
das demais nações em razão de sua exoticidade, seja por equipará-lo a elas em sua
cultura de apreciação da estética pitoresca –, reinventando a segregação socioespacial
medieval entre nobreza e plebe.

Variações do espaço abstrato

Desde o século XVIII, as utopias burguesas se fortaleceram e se disseminaram pelo


mundo capitalista. Em nossos dias, os subúrbios permanecem sendo a opção resi-
dencial de parte das classes médias, alcançando inclusive cidades pouco populosas
cuja economia não se baseia na indústria. Do mesmo modo, ainda que a discussão
em torno da conservação da natureza tenha adquirido novos contornos no último
século, as áreas verdes urbanas se mantêm associadas a importantes valores imateriais
por parte dos grupos urbanos. Como sintetiza Camargos (2006, p. 88), no terreno das
representações, o espaço das reservas ainda constitui, como na Inglaterra do século
XVIII, “o imaginário do contrário dos problemas urbanos, mas, ao mesmo tempo, seu
complemento imprescindível”.
O valor imaterial das áreas verdes urbanas permanece pouco abalado pelo re-
pertório de contradições inerentes a esses espaços – o que, pode-se supor, deva-se
à obliteração da crítica face ao sentimento de solidariedade com relação às demais
formas de vida que enseja o ideário da causa ambiental. Não parece causar estranha-
mento, por exemplo, o fato de que a destinação de espaços específicos para o respei-
to à natureza seja também a delimitação de espaços (muito mais extensos, inclusive)
onde a regra é o desrespeito, e que muitas vezes as ações consideradas de proteção
ambiental acarretam o comprometimento de modos de vida humanos que respeitam
os limites da natureza (Euclydes, 2012; Diegues, 2001). Também não se questiona a
efetividade da proteção ambiental decorrente da criação de áreas verdes urbanas, nem
se problematiza a expectativa de que a violência do Estado empreenda a harmonia
entre humanos e as demais formas de vida.
Para grande parte dos moradores das cidades, as áreas verdes urbanas se situam
num plano abstrato: o da esperança alienada de que a espécie humana possa conter sua
autodestruição e a destruição das demais formas de vida do planeta por meio de me-
didas pontuais no sistema capitalista.13 Essa combinação entre alienação e expectativa

13Como explicita Porto-Gonçalves (2006, p. 48), a reprodução do modo de produção capitalista pressupõe
tanto a garantia dos meios materiais necessários a cada ciclo de produção – o que demanda a manutenção das
bases da exploração da natureza pautada na maximização do lucro, e não no atendimento das necessidades
de toda a sociedade – quanto “a reprodução das classes sociais, fazendo com que haja sempre pessoas sem
condições de produzirem/manterem as suas próprias vidas e que, assim, precisam se submeter aos donos

402
positiva sobre as ações violentas do Estado situa as áreas verdes urbanas no plano do
espaço abstrato a que se refere Lefebvre (1991).
Para o filósofo, espaço abstrato é uma face do espaço social – produto social que
condiciona a vida em sociedade – que se engendra na época moderna, junto ao modo
de produção capitalista. Esse espaço é político, produto da violência e da guerra, e institu-
ído pelo Estado, portanto, institucional. Nele, a forma dominante do espaço – o mundo
das commodities, da produção em série, sua lógica e suas estratégias à escala mundial – se
esforça para moldar os espaços dominados, o que alcança, frequentemente, de modos vio-
lentos, reduzindo obstáculos e resistências aos interesses do capital, como as contradições
que provêm da natureza, do tempo, do corpo, das etnias, das religiões.14 Por reduzir drasti-
camente as diferenças e contradições, o espaço abstrato adquire certa aparência homogê-
nea, construída sobre os pilares do geométrico, do ótico e do fálico.
O caráter geométrico do espaço abstrato reduz o espaço social ao espaço eu-
clidiano, homogêneo, limitado a duas dimensões, como o plano, a folha de papel em
branco, o desenho sobre a folha, os mapas. O caráter ótico, por sua vez, subjuga os de-
mais sentidos do corpo (olfato, paladar, tato e audição) à visão, restringindo o espaço
à sua imagem. Já o caráter fálico dá significado a esse espaço vídeo-geométrico, preen-
chendo-o com um objeto portador de mitos – o falo –, que lhe confere o sentido de
violência masculina, privilegiando as formas verticais e a repressão física e ideológica
(Estado, Exército, polícia, burocracia).
Uma reflexão mais detida sobre as formas homogêneas dos exemplos do Central
Park e do Parque Nacional Yellowstone permite avançar na aproximação das áreas verdes
urbanas à noção de espaço abstrato. A Figura 1 ilustra o Central Park, que influenciou a
concepção de parques públicos do urbanismo do início do século XX.

do capital”. Em outras palavras, se a sobrevivência do capital é indissociável da espoliação do homem e da


natureza, então medidas que visem conter essa degradação da vida sem enfrentar questões fundamentais
do modo de produção (como o valor de uso da natureza, a estrutura de propriedade da terra, e as lógicas de
produção e de consumo vigentes) terão alcance limitado, insuficiente para atender a seus propósitos.
14 Nos termos propostos por Lefebvre (1991), a dominação do espaço consiste em sua transformação por
meio de uma técnica e uma prática; consiste em tomar poder sobre um espaço por meio da construção,
da tecnicidade. De modo diverso, apropria-se de um espaço um grupo que o modifica para servir às suas
necessidades e possibilidades, conformando um espaço semelhante ao da obra. (Segundo o filósofo, a
obra tem algo de original e insubstituível, ao contrário do produto, que pode se repetir e resulta de gestos
e atos repetitivos). O dominado e o apropriado podem existir juntos, mas, na época moderna, com o
papel do Estado e do poder político, a dominação reduz ao extremo a apropriação – que não se esgota,
mas reaparece reclamando sua restituição, explicitando o movimento conflituoso, a contradição.

403
Figura 1 - Mapa-guia do Central Park de 1875
Fonte: United States of America (1875).

Com inspiração em parques europeus – antigos jardins e parques de caça da aris-


tocracia que vieram a ter uso público – e no naturalismo romântico, que fundamentava o
movimento por parques públicos na Europa e nos Estados Unidos, o projeto do parque
pretendia “neutralizar os males da vida urbana” por meio da purificação dos ares da cida-
de industrial, da disponibilização de espaços de lazer para os trabalhadores da cidade e
do oferecimento de atividades e esportes organizados, que concorreriam para o “aperfei-
çoamento moral” do público. O parque espelharia, assim, o ideal democrático da nação
recém-instituída (Benton-Short; Short, 2008).
Explorando o ideal antiurbano, o projeto se compôs de formas curvilíneas e apa-
rentemente desordenadas, contrastantes com a malha retangular da cidade, que remetia
à produção industrial em série. Rejeitando também a estética dos jardins franceses, de
caminhos estruturados e plantas aparadas meticulosamente, o desenho do parque visa-
va sugerir natureza, priorizando os caminhos errantes e o plantio irregular de árvores e
evitando o uso de flores – que remetiam ao trabalho humano. Essa negação romântica
da cidade e da indústria, fundada na mesma estética pitoresca que dera fama aos jardins
ingleses do século XVIII, pautava-se, portanto, na pura artificialidade. Embora possam pa-
recer naturais, seus ambientes resultaram de grandes esforços de simulação da natureza
– e da primazia da visão sobre os demais sentidos. Daí que, considerando a dimensão
das intervenções – escavação de rochas, movimentação de terras e águas, construções
e plantio de árvores – envolvidas na constituição do Central Park, Harnik (2010, p. 3) o
descreva como “tão natural quanto a Disneylândia”.
E se internamente as formas do parque repudiam a geometria da malha urbana,
externamente seus limites – um retângulo perfeito – se ajustam a ela perfeitamente. Esse
ajuste, bem como o predomínio das formas geométricas na malha urbana, expressa o po-

404
der do Estado capitalista no comando da produção do espaço, submetendo as diferenças
ao padrão estabelecido e reduzindo o espaço a um plano, a uma imagem bidimensional.
Nesse caso, o caráter fálico do espaço abstrato se expressa tanto no preestabelecimento
do rol de atividades permitidas na área como nas grandes dimensões do parque, pensadas
para demonstrar o poder do Estado democrático, que podia oferecer áreas verdes – maio-
res, melhores e mais acessíveis que os jardins europeus – para o bem físico e moral de seus
cidadãos, e para anunciar o pleno desenvolvimento da metrópole americana, que podia
despender tal quantidade de terras em ornamentos e no descanso de seus moradores
(Rosenzweig; Blackmar, 1992; Camargos, 2006).
Já a Figura 2 (item A) traz um mapa de 1880 do Parque Nacional Yellowstone, que
durante muitos anos foi referido pelos estadunidenses também como Wonderland – terra
das maravilhas. A concepção desse parque combinou o propósito de conservar, como
num museu, as paisagens exuberantes que remetiam à herança natural do continente
norte-americano e a noção de que a criação de áreas verdes urbanas constituía medida
democrática (Whittlesey; Schullery, 2003; Camargos, 2006).
De forma similar ao Central Park, o perímetro geométrico de Yellowstone sugere
que ele tenha sido concebido sobre um mapa, a partir de coordenadas arbitrárias – assim
como ocorrera com os limites dos estados onde ele se situa –, expressando o poder do
Estado, capaz de reduzir as diferenças da natureza e da cultura indígena ao espaço homo-
gêneo. Na mesma linha, seu objetivo de proteger apenas as paisagens consideradas exube-
rantes revela o privilégio da visão em relação aos demais sentidos do corpo, e sua gestão
pautada na burocracia e na repressão expõe o caráter fálico do espaço abstrato.

Figura 2 - Mapa do Parque Nacional Yellowstone de 1880 (A) e


Cartão-postal do Arco Roosevelt na entrada norte do Parque Nacional Yellowstone (B)
Fonte: Yellowstone (1880); Haynes [s.d.].

405
Os pilares do espaço abstrato se expressam também no grande arco triunfal que mar-
ca a entrada norte da área protegida (Figura 2, item B). Embora a história oficial15 mencione
o arco apenas como um elemento comemorativo e de realce do parque na paisagem, seus
símbolos permitem interpretações mais dilatadas. O arco triunfal – estrutura relacionada às
conquistas militares desde a Roma Antiga – tornou físicos (vídeo-fálico-geométricos) os
limites do parque, distinguindo-o da paisagem rude do Oeste e materializando, na totalidade
do território estadunidense, a supremacia do Estado e da cultura burguesa.
Central Park e Parque Nacional Yellowstone expressam os pilares do espaço abs-
trato de forma notável. Trata-se de monumentos naturais (expressões da noção de na-
tureza-heterotopia) por meio dos quais o Estado norte-americano pôde apresentar ao
mundo sua força e autenticidade, reduzindo obstáculos – como os índios, no Oeste, e os
moradores das quadras que deram lugar ao Central Park16 – e moldando os espaços do-
minados. Nessa perspectiva, na escala nacional esses espaços poderiam ser interpretados
como marcos da expansão, das cidades à totalidade do território estadunidense, do modo
de vida urbano-industrial e da concepção moderna de natureza.
Por meio dessas áreas verdes urbanas, que se tornaram modelos nas políticas de ge-
renciamento da natureza das nações capitalistas, a natureza concreta – lugar de vida e tra-
balho – foi decisivamente reduzida a uma simulação pautada no ótico e no visual, e essa
representação se tornou a forma dominante da natureza no espaço abstrato, contribuindo
para afastar a sociedade da concepção/produção da segunda natureza, aquela à qual os ho-
mens pertencem e da qual se apropriam, uma natureza diferente da original, mas concreta
e emancipada da artificialidade (Lefebvre, 1991). Nesse sentido, caberia compreender
tais espaços, na escala global, como alegorias da conclusão de um percurso que vai do
temor da sociedade rural à natureza à sua completa domesticação e transformação em
espetáculo pela sociedade urbano-industrial. Como observa Lefebvre (2011, p. 117),

estranho percurso, dizemos: a natureza entra para o valor de troca e para a


mercadoria; é comprada e vendida. Os lazeres comercializados, industria-
lizados, organizados institucionalmente, destroem essa “naturalidade” da
qual as pessoas se ocupam a fim de traficá-la e trafegar por ela. A “natureza”,
ou aquilo que é tido como tal, aquilo que dela sobrevive, torna-se o gueto
dos lazeres, o lugar separado do gozo, a aposentadoria da “criatividade”.

15 Apreendida de textos como o de Whittlesey; Schullery (2003).


16 Segundo Adam Sweeting (1999), cerca de 1600 moradores foram desapropriados para a construção
do Parque.

406
Áreas verdes industriais

A referência ao Parque Nacional Yellowstone como Wonderland e a aproximação (incons-


ciente?) do Central Park à Disneylândia denunciam que, para além dos fundamentos na-
turalistas dos séculos XVIII e XIX, as áreas verdes urbanas são criações do mundo urba-
no-industrial, sendo desde suas origens espaços produzidos para serem consumidos. Por
serem espaços de lazer, esses espaços são controlados e impõem coações específicas, que
vão do estabelecimento de modelos de construções17 até a padronização dos ritos (como
a passagem por uma portaria), dos gestos (como o de fotografar uma paisagem ou o de se
sentar em bancos fixos) e das formas discursivas de seus usuários (como ser compelido a
falar baixo para não espantar animais ou poder gritar numa montanha-russa).
Ao longo do século XX, os modelos de áreas verdes urbanas sofreram transfor-
mações, sem perder sua essência nem a potência de sua reprodutibilidade. Enquanto a
urbanização e a industrialização se expandiram e se intensificaram internacionalmente,
disseminando os costumes e padrões espaciais das economias burguesas, difundiu-se a
percepção do eminente esgotamento dos recursos naturais, provocando a progressiva
politização do tema da natureza – agora designada meio ambiente18 – em paralelo à cres-
cente capitalização da vida humana.
Os parques e jardins inseridos na malha urbana afastaram-se do modelo, inspirado
no Central Park, de áreas verdes dotadas de grandes equipamentos (zoológicos, cassinos,
pistas de patinação), mas se mantiveram como espaços especializados voltados para o lazer
e para o paisagismo da cidade, incorporando também alguma nuance de fim ecológico.
Como observa Jane Jacobs (2009), entre governantes e urbanistas desenvolveu-se certo
fetiche por áreas verdes, sendo estas apresentadas como solução aos mais variados proble-
mas, mesmo em zonas já bem supridas desse tipo de espaço. Não obstante, ainda que a
criação de áreas verdes tenha se tornado regra para a urbanização formal, em grande parte
dos casos as imposições da legislação e a busca pela maximização dos lotes levam à produ-

17 Como arquiteta em uma instituição responsável por gerir áreas protegidas, Regina Camargos (2006, p. 1)
nota a dominância de uma postura que busca amenizar os indícios da presença humana nas intervenções
nesses espaços: “Nesses projetos de intervenção, é como se o homem devesse ser submetido a uma roupagem
de disfarce ou camuflagem, resultante de uma espécie de culpa por adentrar o ambiente natural.”
18 Para Wolfgand Sachs (1992, apud Escobar, 1996), o termo meio ambiente consiste em uma construção
necessária à incorporação das preocupações ecológicas ao discurso capitalista. Para o autor, a
conversão da Natureza (com N maiúsculo, nome próprio de um sujeito) no objeto meio ambiente
retira da primeira seu caráter de instância superior, desmistificando-a, limitando-a a um papel passivo e
reduzindo-a a quantidades de matéria e energia. Essa transformação discursiva torna o homem o sujeito
da ação sobre a natureza, coroando a visão do mundo como um recurso, construção indispensável para
o funcionamento do sistema capitalista.

407
ção de áreas padronizadas – como praças rotatórias e parques lineares homogêneos –, que
contribuem de forma limitada para o uso público ou para fins ecológicos.
Já no que se refere às áreas verdes associadas ao campo, a noção de natureza a ser
conservada se transformou, deslocando o foco da proteção da paisagem para a da biodiver-
sidade, o que reforçou a lógica da exclusão humana desses espaços. Nessa medida, o turis-
mo deixou de ser o objetivo central das áreas protegidas, passando à condição de principal
entrave à preservação. A partir de meados do século XX, a variedade de categorias de áreas
protegidas cresceu sensivelmente, assim como o percentual do território mundial abrangido
por esses espaços. Entre as categorias criadas no Brasil depois de 1970, algumas permitem
a manutenção da propriedade privada e outras admitem a permanência de grupos tradicio-
nais (Camargos, 2006). Mas, como aponta Arturo Escobar (1996), a remoção violenta des-
ses grupos de seus territórios vem dando lugar à capitalização de seus saberes.19
Entre as empresas, assistiu-se à oscilação de uma postura reativa à legislação ambien-
tal predominante até os anos de 1990 para a atual apropriação das normas ambientais, que se
realiza tanto por meio da influência do setor na política quanto na incorporação do discurso
ambientalista e de normas ambientais pelas organizações (Camargos, 2004). Na atual fase
ecológica do capital, as empresas internalizam a conservação da natureza em seus custos,
considerando-a investimento para produção futura de mercadorias de maior valor, e valem-
se dessa estratégia em publicidade voltada para o mercado verde (O’Connor, 1993).
Com as transformações da legislação ambiental brasileira das últimas décadas,
muitas áreas verdes urbanas se tornaram moeda de troca para a viabilização de empre-
endimentos de expressivo potencial poluidor por meio dos processos de licenciamento
ambiental, além de terem se revelado um instrumento político relevante para apaziguar
ânimos de associações ambientalistas, atuando como selos verdes, que atestam a relevância
ambiental de espaços cuja proteção é reclamada, sem que nenhuma medida de conserva-
ção seja empreendida. A criação de áreas verdes urbanas – e de novos tipos de áreas verdes
urbanas – continua intensa, ao passo que a gestão das áreas permanece pouco eficiente
para a qualidade ambiental e para o lazer e que o conhecimento da população sobre esses
espaços continua limitado (Euclydes, 2012).

19 O processo de capitalização consiste em trazer elementos ao domínio de mercadorias, o que implica atribuir-
-lhes valores monetários, viabilizando sua comercialização. Para O’Connor (1993), nos lugares onde o
capital não logra estabelecer direitos de propriedade explícitos sobre os domínios naturais, as comunidades
e os movimentos sociais são atraídos para cooperar com o processo de capitalização, passando a representar
a si mesmos como “guardiães” dos capitais social e natural, cuja gestão “sustentável” passa a ser tanto sua
responsabilidade como seu negócio à escala global. Assim, os objetivos dos movimentos de protesto são
subvertidos, e a retórica conservacionista é apropriada pelo projeto de reprodução ampliada do capital.

408
Reconhecendo essa distância entre a complexidade da legislação ambiental bra-
sileira e a precariedade de grande parte das áreas verdes urbanas, o Estado brasileiro tem
buscado aproximar legislação e realidade, não por meio do esforço para o cumprimento
das normas, mas pela via de sua contínua flexibilização e do esvaziamento de seu conteú-
do.20 Essa tendência, porém, não é ilegal ou irregular, mas constitui a dinâmica esperada da
política ambiental fundada no preceito do desenvolvimento sustentável, que pressupõe
que a conservação da natureza deve atender às necessidades das gerações atuais e futuras
– o que significa que essas futuras gerações humanas poderão explorar o ambiente hoje
protegido nas áreas verdes urbanas, caso isso venha a ser necessário. Daí que, no limite,
todas as áreas verdes urbanas possam ser consideradas provisórias.21
Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, esse cenário tem se
traduzido no avanço da degradação ambiental em espaços teoricamente já abrangidos
por áreas protegidas, o que leva a novas demandas pela criação de áreas em sobreposição
às existentes, revelando um processo de obsolescência das áreas verdes urbanas. Apropriado
pelo capital, esse caráter provisório pode ser mobilizado com vistas a promover a reserva
de espaço (e de recursos naturais) para empreendimentos futuros – o que suscita o debate
sobre a existência de um processo de produção do espaço de reserva em curso (Euclydes,
2012). Em nossos dias, é possível observar a atuação das empresas na criação e na alte-
ração de limites das áreas verdes urbanas, e já se vislumbram possibilidades de obtenção
de benefícios extraordinários para aquelas influentes o suficiente para manejar o processo
legislativo a médio prazo, já que a criação de áreas protegidas em zonas urbanas em expan-
são pode render lucros expressivos se a flexibilização das normas ocorrer no tempo e nas
condições adequadas aos proprietários/investidores (Euclydes, 2014).
Diante dessas constatações, e retomando as características das áreas verdes urba-
nas arroladas até este ponto – utopias burguesas, espaços institucionais, espaços (domi-
nados) de lazer, lastro da exploração, instrumentos politiqueiros, mercadorias sujeitas à
obsolescência, espaços de reserva –, é possível reconhecer a inserção desses espaços na
dinâmica de reprodução das relações de produção capitalistas, atestando que, para além
de suas origens industriais, as áreas verdes urbanas permanecem aderidas à era industrial.

20 É o que ocorreu, por exemplo, com as áreas de preservação permanente (APPs), instituídas em 1965 e
sensivelmente descaracterizadas na última década (Euclydes, 2012).
21 Lefebvre (1991) chega à proposição semelhante ao vislumbrar o auge do processo de consumo produtivo do
espaço, supondo um possível fim das áreas verdes urbanas (não integradas à estrutura viária). Por produzirem
mais-valia reduzida em comparação, por exemplo, às autoestradas – que fomentam a produção de carros,
que demanda a construção de mais autoestradas –, as áreas verdes urbanas tenderiam a ser consumidas por
outros usos produtivos. O raciocínio é válido mesmo para as áreas vinculadas à indústria do lazer, já que a
mais-valia do setor é sensivelmente inferior à produzida pelo setor da construção civil.

409
Essa percepção é de suma relevância para a crítica das áreas verdes urbanas, mas é
insuficiente. Embora identifique estratégias de dominação escamoteadas em espaços as-
sociados a valores humanísticos – democracia, ecologia, sociabilidade, espiritualidade –,
a crítica que alcança esse estágio se mantém no campo cego, limitando-se a reconhecer
objetos, operações e técnicas da era industrial sem (se arriscar em) apreender as tensões
do possível-impossível do urbano que se anuncia. É preciso ir além.

Utopias do urbano na era industrial

Em uma passagem da Introdução geral à psicanálise, Sigmund Freud exemplifica a relação


entre o domínio mental da fantasia e o princípio da realidade22 com o ato de criação de
reservas e parques naturais. Assim como o domínio da fantasia consiste num reduto (do
irreal, do sonho, do desejo) preservado das penúrias da realidade, as reservas naturais se-
riam lugares onde o “velho estado de coisas” é resguardado dos imperativos da necessida-
de, da exploração agrícola, industrial e urbana. Nesses redutos, todas as coisas – o prazer,
a espontaneidade, o que é inútil e mesmo o que é nocivo – podem proliferar livremente,
sem interferências da realidade (Santos, 1992).
Mas por que limitar a fantasia contida nas áreas verdes urbanas ao saudosismo
de um passado que talvez sequer tenha ocorrido?23 Não estaria Freud apegado à oposi-
ção campo-natureza-passado x cidade-presente-futuro? Por que não pensar essa fantasia
como a de um possível-impossível reprimido pela realidade presente? Por que não inter-
pretar as áreas verdes urbanas como utopias do urbano na era industrial?24
Construir essa interpretação – arriscando a transcendência do campo cego – impõe
identificar nas áreas verdes urbanas os desejos de natureza não realizados pela sociedade urba-
no-industrial, assim como os mecanismos que os reprimem. Para essa identificação, recorre-se
novamente aos exemplos do Central Park e do Parque Nacional Yellowstone.
De algum modo, esses espaços querem expressar a busca da religação humana
com a natureza, mas eles conseguem remeter apenas a uma natureza abstrata, espetacu-
larizada. À sua maneira, eles insinuam como seria o mundo antes dos homens, mas não

22 Na teoria psicanalítica, os princípios do prazer e da realidade são as bases do funcionamento mental


humano. Enquanto o primeiro consiste na busca instintiva do prazer e do evitamento da dor, o segundo
corresponde à consciência da necessidade da modulação do desejo instintivo de satisfação em face das
solicitações do mundo exterior (“Princípio da realidade”, [s.d]).
23 Considerando que grande parte das áreas que vieram a ser demarcadas como reservas eram habitadas
por grupos humanos, como ressalta Diegues (2001).
24 Essa proposição se relaciona com a associação que Lefebvre (1999) estabelece entre a era industrial e o
princípio da realidade, sugerindo a possibilidade de a era do urbano ser a do gozo, da fruição. As utopias
do urbano, nesse sentido, são utopias no sentido proposto pelo filósofo (o alhures, o outro espaço).

410
deixam de anunciar o temor pelas consequências das ações autodestrutivas da sociedade
industrial. Por meio desses espaços, quer-se oferecer contemplação e aprendizado a todas
as pessoas, mas essa proposta se pauta numa noção de democracia que trata os diferentes
como iguais, negando as diferenças e criminalizando as culturas dominadas. Primordial-
mente, esses espaços se destinam à fruição, mas são espaços especializados, que revelam
a separação do lazer e do trabalho, denunciando o predomínio do trabalho repetitivo e
desgastante. Há nas áreas verdes urbanas a reclamação por formas de vida mais espontâ-
neas, mas ali espontaneidade só é admitida dentro de seus limites rígidos, onde não possa
interferir na dinâmica produtiva. Por meio desses espaços, busca-se construir a diferença
estética e funcional com relação à cidade industrial, e tal construção é aceita, sendo incor-
porada ao cenário urbano como objeto de consumo.
Nessas tensões, verificam-se desejos de pertencimento à natureza, de esponta-
neidade, de convívio social, de fruição, de equilíbrio entre utilização e perpetuação da
natureza, de convivência das diferenças, de produção de diferenças, de criação de obras.
Tais desejos podem ser vistos como a busca pela produção da segunda natureza, a natureza
apropriada, lugar de vida, de trabalho, de desenvolvimento e de criação, que pode ser in-
terpretada como o espaço diferencial a que se refere Lefebvre (1999).
Essa interpretação encontra respaldo na reflexão do filósofo (Lefebvre, 1991) so-
bre o direito à natureza. Para Lefebvre, se os urbanos carregam o urbano consigo quando
buscam o campo ou os espaços associados à natureza, então o que a sociedade urbano-in-
dustrial reclama quando demanda áreas verdes urbanas é uma outra forma de vida urba-
na. Daí que o direito à natureza possa ser visto como uma variação do direito à cidade – este
entendido como o exercício coletivo do poder de mudar a sociedade (as relações sociais,
a relação com a natureza, os estilos de vida, as tecnologias e os valores estéticos) por meio
da transformação da cidade (Lefebvre, 2011; Harvey, 2008).
A segunda natureza consistiria, portanto, num espaço novo, onde a vida cotidia-
na seria ao mesmo tempo transformadora e objeto de transformação, deixando de ser
comandada pelo nível global (o do Estado, do mercado de capitais, da divisão social do
trabalho) ou pelo nível intermediário (o da cidade, dos domínios do edificado e do não
edificado) para tornar-se comandante. A produção desse novo espaço resultaria de uma
transformação revolucionária, capaz de criar obras na vida cotidiana, na linguagem e no
espaço (Lefebvre, 1999).
Para Lefebvre, uma transformação dessa dimensão deve nascer do acirramento
das contradições do espaço abstrato (quantidade e qualidade, trabalho e não trabalho,
necessidade e desejo, valor de troca e valor de uso, dominação e apropriação), já que os
vetores repressivos dessas contradições estão sempre atuando sobre os desejos e, assim,
nutrindo a transgressão. Daí que o filósofo vislumbre a transgressão nos espaços de lazer,

411
reconhecendo nesses espaços a potencialidade da superação das separações entre o social
e o mental, o sensível e o intelectual, o cotidiano e a festa.
Ainda que se trate de espaços dominados, nos espaços de lazer o corpo reivindica
sua revanche como gerador do espaço. A praia, por exemplo, é um lugar de gozo encon-
trado na natureza pela espécie humana, onde o corpo tende a se comportar como um
campo diferencial graças ao uso amplo dos órgãos sensoriais – sem privilégio da visão – e à
sexualidade. Na praia, o corpo se comporta como corpo total, “libertando-se da carapaça
temporal e espacial desenvolvida em resposta ao trabalho, à divisão do trabalho, à localiza-
ção dos trabalhos e à especialização dos lugares” (Lefebvre, 1991, p. 384, tradução nossa).
Mesmo com as transformações de seus objetivos ao longo do século XX, as áre-
as verdes urbanas guardam componentes de sua concepção original de espaços de lazer.
Ainda que o lazer tenha se limitado a frações cada vez menores dessas áreas, a busca por
esses espaços expressa o desejo do prazer e enseja, ainda que superficialmente, o movi-
mento “do cotidiano ao não cotidiano através da festa (fingida ou não, simulada ou ‘au-
têntica’), ou então do trabalho ao não trabalho” por meio da colocação da rotina entre
parêntesis e em dúvida (meio fictícia, meio real) (Lefebvre, 1991, p. 354, tradução nossa).
E mesmo onde as áreas verdes são apenas espaços interditados, onde o uso hu-
mano é criminalizado e reprimido, pode haver uma centelha da transgressão que almeja
a apropriação. Essa centelha aparece em algumas áreas verdes urbanas na forma do desvio,
que consiste na reapropriação de um espaço por outro uso – temporariamente, sem a
criação de um espaço novo –, e pode servir de inspiração para a apropriação verdadeira.
Nas áreas verdes urbanas brasileiras, dotadas de pouca estrutura e muitas vezes im-
perceptíveis aos usuários do espaço (passando por terras devolutas), os desvios tomam
formas variadas, sendo a principal delas a ocupação para fins de moradia pelas classes mais
pobres da sociedade – principalmente nas zonas menos valorizadas da cidade, onde a fis-
calização tende a ser menor. Como aponta Ermínia Maricato (2000), isso ocorre porque
grande parte da população urbana brasileira é excluída do mercado imobiliário formal,
sendo levada a ocupar irregularmente os lugares preteridos por esse mercado, onde o par-
celamento é proibido ou de alto custo técnico, como os espaços definidos como áreas ver-
des urbanas em decorrência de sua fragilidade ambiental – às margens de cursos d’água, as
encostas íngremes e as áreas alagáveis. Nesses espaços, a invasão não só é tolerada como
também apresenta certa funcionalidade para as relações políticas arcaicas, relacionadas à
aplicação arbitrária da lei, e para o capital, já que mantém baixo o custo de reprodução da
força de trabalho e favorece a manutenção do mercado imobiliário restrito e especulativo.
Quem ocupa irregularmente um terreno não construído tende a ser consciente
do desvio com relação à propriedade da terra, mas pode desconhecer a existência de uma
área verde urbana. E mesmo quando a área verde urbana é conhecida, pode ocorrer de os

412
riscos à sua ocupação serem menosprezados e de a destinação à conservação ambiental
ou ao lazer ser vista como supérflua em face da necessidade da moradia. Nesses casos, o
desvio se pauta mais no princípio da realidade – a reprodução das relações de produção
– que na utopia, limitando a possibilidade da produção de espaços novos. Como nota
Maricato (2000), o direito à invasão (o desvio) é admitido, mas não o direito à cidade.
Há, no entanto, um exemplo de desvio em uma área verde urbana do Município de
Belo Horizonte que pode servir de inspiração à utopia urbana da sociedade industrial. Trata-
se da APA Estadual Fazenda Capitão Eduardo, situada na periferia nordeste da capital, em
uma zona de bairros de baixa renda, marcada pela ocupação irregular, inclusive em áreas de
risco, e pela precariedade da infraestrutura dos bairros. Embora criada há mais de uma déca-
da, a APA nunca foi implantada de fato, de modo que uma grande gleba pública nela contida
permaneceu sem uso público ou manejo ambiental desde então (Minas Gerais, 2012).
A partir de meados dos anos 2000, uma associação comunitária se organizou para
promover a revitalização social e ambiental dos bairros ali situados, desenvolvendo, en-
tre outras atividades, a agricultura urbana.25 Valendo-se do interesse e do conhecimento
dos moradores – muitos dos quais de origens ligadas às práticas agrícolas – e contando
mais tarde com o suporte de uma ONG, as práticas da agricultura urbana (incluindo os
mutirões) adquiriram adeptos e expandiram sua área de atuação, alcançando partes da
tal gleba pública.26 Nessas áreas, vistas como abandonadas e utilizadas para descarte de
lixo e entulho, “o grupo realizou um trabalho de limpeza, cercamento e plantio de árvores
frutíferas e hortaliças, contornando a incômoda situação” (Paixão; Almeida, 2012, p. 20).
Além dessas ações, alguns moradores vêm buscando reverter a degradação percebida na
área por meio da proteção de nascentes e do plantio de árvores.
O caso da APA Fazenda Capitão Eduardo exemplifica a situação de muitas áreas ver-
des urbanas brasileiras, existentes na lei e não na prática, revelando contradições do espaço
abstrato na fase ecológica do capital. Mas o exemplo se destaca mais por expressar, no desejo
dos moradores de modificar o espaço para atender às suas necessidades/possibilidades, a
latência da apropriação no espaço onde impera a dominação. E há nessa latência uma prática
especial, que sugere caminhos para produção da segunda natureza: a agricultura urbana.

25 Conceito objeto de disputas, a agricultura urbana inclui o cultivo, o beneficiamento e a prestação


de serviços relacionados à produção de produtos agrícolas (hortaliças, frutas, plantas medicinais,
ornamentais, cultivados ou advindos do agroextrativismo etc.) e pecuários (animais de pequeno, médio
e grande porte) voltados para o autoconsumo, para trocas e doações ou para a comercialização, (re)
aproveitando-se os recursos e insumos locais. Essas atividades estão vinculadas às dinâmicas urbanas e, no
geral, pautam-se pelo respeito aos saberes e conhecimentos locais, pela promoção da equidade de gênero
e pela participação social na gestão das cidades (Santandreu; Lovo, 2007 apud Costa; Almeida, 2012).
26 Note-se que o cultivo não autorizado em espaços públicos ou em faixas de domínio da rede elétrica é
considerado irregular perante a lei.

413
Entre outras coisas, essa prática envolve ações de cultivo e conservação dos recur-
sos naturais em meio ao tecido urbano; incide na vida cotidiana, estabelecendo novos
ritmos e fortalecendo os laços sociais e os vínculos com o lugar e com a natureza; interfere
na relação das pessoas com o alimento; e enseja o debate sobre o valor de uso da natureza
e do espaço urbano (Costa; Almeida, 2012). Além disso, podem-se reconhecer nessas
práticas os potenciais de redução da separação entre o trabalho intelectual e o manual, de
reunião de conhecimentos científicos e saberes populares e de conexão entre as esferas do
trabalho e do lazer, identificados por Martin Hoyles (2002) na atividade da jardinagem.
É possível conjeturar um contexto em que, amplamente praticada, a agricultura urbana
possa interferir regionalmente na produção do espaço, alterando não só as características do
campo e as redes de produção e comercialização de produtos agrícolas, mas também mo-
dificando as configurações da cidade, com o incremento da diversidade biológica e cultural,
e transformando a relação da sociedade com a natureza e com o espaço (Costa; Almeida,
2013). Nessa medida, poder-se-ia vislumbrar no espaço produzido pela agricultura urbana
uma semente do espaço diferencial – uma das formas de realização da utopia urbana.

Considerações finais para a construção da crítica


das áreas verdes urbanas

A ação de delimitar e a de interditar espaços com objetivos específicos de proteção e con-


templação da natureza pode ser vista como um produto da sociedade industrial capitalis-
ta – fundada na cristalização da relação homem/sujeito x natureza/objeto e baseada na
crescente exploração do homem e da natureza. Por meio desses instrumentos, o homem
moderno se distingue da natureza-objeto ao mesmo tempo que discrimina uma natureza
ordinária de uma natureza merecedora de ser afastada da exploração industrial. Não por
acaso, a sociedade que considera razoável a limitação espacial do respeito à natureza julga
natural que apenas uma parte da sociedade seja digna do direito à cidade.
A percepção de natureza – situada fora do homem, da cidade e do presente – que
se fortalece com a era industrial favorece a alienação da sociedade com relação ao mundo
natural-urbano-industrial, tornando a natureza um campo fértil para as ideologias, o que
explica a criação de áreas verdes urbanas como estratégia tanto de preservação da vida na
Terra quanto de construção de identidade nacional ou de venda de imóveis. Convertida
em abstração, a natureza se reduz às novas raridades e a um tipo de espaço produzido, no
qual se enquadram as áreas verdes urbanas – o que reforça sua aproximação do espaço
abstrato e dificulta a concepção da segunda natureza, o espaço diferencial.
Enquanto espaço abstrato, as áreas verdes urbanas tendem ao homogêneo, padro-
nizando formas, gestos e condutas e excluindo, por meio da violência, o indesejável – pes-

414
soas, práticas, objetos, diferenças. Na fase ecológica do capitalismo, esses espaços se tor-
nam instrumentais à reprodução das relações de produção, funcionando como espaços
de lazer, lastro da exploração econômica, mercadoria, investimento e argumento político
para justificar as mais diversas (e arbitrárias) ações.
Porém, o espaço abstrato é repleto de contradições, e nelas as diferenças, os de-
sejos e as utopias pulsam, anunciando a iminente transgressão. Nas áreas verdes urbanas
brasileiras, essa iminência aparece na forma do desvio. O desvio das áreas verdes urbanas
para a agricultura urbana verificado na APA Fazenda Capitão Eduardo expressa a latência
do desejo pela apropriação do espaço, pela superação da divisão intelectual e física do tra-
balho, pela reunião de trabalho e lazer, pelo estabelecimento de relações mais horizontais
dos homens entre si e deles com a natureza, pela reunião das diferenças, pela fruição, pelo
convívio, pela primazia do valor de uso, pela criação... pelo urbano. Mas o desvio é apenas
provisório, incapaz de transcender o espaço abstrato.
Isso porque, como aponta Lefebvre (1999, p. 38), antes que o urbano possa nascer
e se afirmar, ele se vê reduzido: de um lado, “pelo rural (os subúrbios compostos por casas
ajardinadas, os espaços ditos verdes) e, de outro, pelo cotidiano industrial (as moradias fun-
cionais, as vizinhanças, as relações, os trajetos monótonos e obrigatórios)”. Daí a necessida-
de da crítica da vida cotidiana: ao problematizar a forma como as pessoas vivem, explicitam-
-se as estratégias que conduzem à “cotidianidade, lugar social de uma exploração refinada e
de uma passividade cuidadosamente controlada”, e pode-se apontar para “a emergência e a
urgência de uma prática social nova”, a da sociedade urbana (Lefebvre, 1999, p. 129).
Tendo como norte essa crítica da vida cotidiana, este estudo (e a pesquisa de dou-
torado que o suporta) busca construir uma crítica das áreas verdes urbanas capaz de ex-
plicitar o ideário e as estratégias de dominação inerentes a esses espaços e identificar neles
tensões tendentes à produção de espaços novos. Com Lefebvre (2011), acredita-se que,
se o direito à cidade não pode ser concebido como um direito individual, de visita ou
de retorno às cidades tradicionais, então também o direito à natureza, que o integra, não
pode se resumir à proteção de fragmentos selecionados de natureza ou à busca individual
por moradia em meio a belas paisagens protegidas por homens armados.27 Se o direito à
cidade consiste no exercício coletivo de transformar a sociedade por meio da produção
do espaço, então a apropriação do espaço e do tempo deve ser um de seus pilares – o que
revela a distância entre as áreas verdes urbanas atuais, onde a possibilidade da apropriação

27 Isso não equivale a dizer que as áreas verdes urbanas sejam dispensáveis, irrelevantes para a
perpetuação da biodiversidade, insignificantes para a vida nas cidades, ou que não haja casos bem-
-sucedidos na combinação de proteção da natureza e dos modos de vida de certos grupos. O que se
afirma é que a simples existência desses espaços não transforma as relações que a sociedade capitalista
industrial estabelece com a natureza.

415
aparece timidamente, e a realização da utopia do urbano. Cumpre, então, avançar na busca
por iniciativas que almejem à apropriação, no esforço rumo à apreensão do urbano.

REFERÊNCIAS
BENTON-SHORT, Lisa; SHORT, John R. Cities and nature. New York: Routledge, 2008.
CAMARGOS, Regina. Homem, natureza e sensibilidades ambientais: as concepções de áreas naturais protegi-
das. 2006. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação
de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro.
CAMARGOS, Regina. Nascimento da APA Sul – RMBH: o poder da polêmica. In: ACSELRAD, Henri
(Org.). Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 131-146.
COSTA, Heloisa S. M.; ALMEIDA, Daniela A. O. Agricultura urbana: possibilidades de uma práxis espa-
cial? Cadernos de Estudos Culturais, Campo Grande, n. 8, v. 4, p. 61-78, jul./dez. 2012.
DIEGUES, Antônio C. (1996). O mito moderno da natureza intocada. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2001.
ESCOBAR, Arturo. Constructing nature: elements for a poststructural political ecology. In: PEET, Richard;
WATTS, Michael (Ed.). Liberation ecology: environment, development social movement. Londres: Routle-
dge, 1996. p. 46-68.
EUCLYDES, Ana C. P. Proteção da natureza e produção da natureza: política, ideologias e diversidade na cria-
ção de unidades de conservação na periferia sul da metrópole belo-horizontina. 2012. Dissertação (Mestra-
do) – Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Belo Horizonte.
EUCLYDES, Ana C. P. Áreas protegidas e planejamento estratégico “ecologizado”: a Operação Urbana do
Isidoro (Belo Horizonte, Minas Gerais). e-Metropolis: Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais,
Rio de Janeiro, ano 5, n. 17, p. 41-51, jun. 2014.
FISHMAN, R. Bourgeois utopias: visions of suburbia. In: FAINSTEIN, Susan; CAMPBELL, Scott. Readin-
gs in urban theory. 2. ed. Cambridge: Blackwell Publishers, 2002. p. 22-31.
HARNIK, Peter. Urban Green: innovative parks for resurgent cities. Washington: Island Press, 2010.
HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, London, n. 53, p. 23-40, set./out. 2008.
HAYNES, Frank J. Postcard of the Roosevelt Arch at the north entrance. No date. In: UNITED STATES OF AME-
RICA. U.S. Department of the Interior. National Park Service. Yellowstone’s Photo Collection. Disponível em: <http://
www.nps.gov/features/yell/slidefile/ history/postcards/fjhaynes/Page-3.htm>. Acesso em: 02 jul. 2014.
HOYLES, Martin. English gardens and the division of labor. Cabinet Magazine, New York, n. 6, spring 2002.
Disponível em: <http://cabinetmagazine.org/issues/6/hoyles.php>. Acesso em: 07 maio. 2014.
JACOBS, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
KEMF, Elisabeth. In Search of a home: protected living in or near protected areas. In: ______ (Ed.). The
law of the mother: protecting indigenous peoples in protected areas. San Francisco: Sierra Club Book, 1993.
LEFEBVRE, Henri (1970). De lo rural a lo urbano. Antología preparada por Mario Gaviria. Barcelona: Edi-
ciones Peninsula, 1978.

416
LEFEBVRE, Henri (1974). The production of space. Oxford: Blackwell, 1991.
LEFEBVRE, Henri (1970). A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999
LEFEBVRE, Henri (1968). O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2011.
MARICATO, Ermínia. As Ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: planejamento urbano no Brasil. In:
ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 121-192.
MARX, Karl (1857-1858). Grundisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da eco-
nomia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
MINAS GERAIS. Assembleia Legislativa do Estado. Parecer para o 1º turno do Projeto de Lei nº
2.482/2011. Diário do Legislativo, Belo Horizonte, 6 jul. 2012. Disponível em: <http://www.almg.gov.br/
atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/documento.html?a=2011&n=2482&t=PL&doc=1>. Aces-
so em: 20 jul. 2014.
O’CONNOR, Martin. On the misadventures of capitalist nature. Capitalism, Nature, Socialism, ano 1, n. 3,
p. 93-108, 1993.
PAIXÃO, Lorena A. F.; ALMEIDA, Marcelo O. Agricultura urbana no Baixo Onça: cultivando uma região
mais produtiva, solidária e sustentável. Agriculturas, n. 2, v. 9, p. 16-22, set. 2012.
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. (1989). Os (des)caminhos do meio ambiente. 14. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
PRINCÍPIO da realidade. In: Infopédia [on-line]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. Disponível em: <http://
www.infopedia.pt/$principio-da-realidade>. Acesso em: 31 jul. 2014.
ROSENZWEIG, Roy; BLACKMAR, Elizabeth. The park and the people: a history of Central Park. New
York: Cornell University Press, 1992.
SACHS, Wolfgang. Environment. In: ______. Development dictionary. Londres: Zed Books, 1992. p. 26-37.
SANTANDREU, Alain; LOVO, Ivana. Panorama de la agricultura urbana y periurbana en Brasil y directri-
zes políticas para su promocion. Cuadernos de Agricultura Urbana, Lima, n. 4, 2007.
SANTOS, Boaventura S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006.
SANTOS, Milton. 1992: a redescoberta da Natureza. Estudos Avançados, São Paulo, v. 6, n. 14, jan./abr. 1992.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-401419920001 00007&script=sci_art-
text>. Acesso em: 18 mar. 2014.
SCHAMA, Simon (1995). Paisagem e memória. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SOJA, Edward (1989). Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
SOJA, Edward (2000). Postmetrópolis: estudios críticos sobre las ciudades y las regiones. Traficantes de sueños,
2008. Disponível em: <http://www.traficantes.net/index.php/trafis/editorial/catalogo/ coleccion_mapas/
postmetropolis_estudios_criticos_sobre_las_ciudades_y_las_regiones>. Acesso em: 25 ago. 2010.
SWEETING, Adam W. Writers and dilettantes: Central Park and the literary origins of antebellum urban
nature. In: BENNETT, Michael; TEAGUE, David W. (Ed.). The Nature of Cities: Ecocriticism and Urban
Environments. Tucson: The University of Arizona Press, 1999. p. 93-110.

417
THOMAS, Keith (1983). O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
UNITED STATES OF AMERICA. Hinrichs’ guide map of the Central Park. In: Library of Congress. Wa-
shington D.C.; [s.d.]. Disponível em: <http://www.loc.gov/item/2006636649/>. Acesso em: 07 jul. 2014.
WHITTLESEY, Lee H.; SCHULLERY, Paul. The Roosevelt Arch: a centennial history of an American icon.
Yellowstone Science, Yellowstone National Park, summer 2003. Disponível em: <http://www.nps.gov/his-
tory/history/hisnps/NPShistory/arch.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2014.
YELLOWSTONE National Park, Wyoming. [S.I.], 1880. In: Library of Congress. Washington D.C.; [s.d.].
Disponível em: <http://www.loc.gov/item/97683559>. Acesso em: 07 jul. 2014.

418
Agricultura urbana: isto e aquilo
Daniela Adil Oliveira de Almeida

Introdução

A temática da agricultura urbana encontra-se nas margens ou nas fronteiras de campos


de estudos tradicionalmente definidos. A ausência de uma literatura consolidada ou
de uma tradição de pesquisa sobre a agricultura urbana nos estudos urbanos no Brasil
e mesmo no campo dos estudos sobre a questão agrária ou sobre a questão ambiental
sinaliza uma lacuna na produção de conhecimento sobre as práticas agrícolas urbanas no
país. Por outro lado, uma busca na internet pelo termo “agricultura urbana” demonstra
que, pontualmente, em diferentes regiões do Brasil, esta temática tem sido motivadora
de iniciativas de organizações sociais locais, bem como pauta de debate na formulação de
políticas públicas e objeto de pesquisas nas universidades.
No âmbito internacional, observa-se uma trajetória mais consolidada de
pesquisas sobre a agricultura urbana, que tem como marco inicial relativamente recente
a publicação do relatório “Urban Agriculture, Food, Jobs and Sustainable Cities”
(Smit; Ratta; Nasr, 1996) durante a II Conferência Mundial sobre os Assentamentos
Humanos (HABITAT II) em Istambul. A construção de um campo de estudos sobre
agricultura urbana pode ser percebida pela identificação de publicações de referência
sobre a temática (Smit; Ratta; Nasr, 1996; Mougeot, 2005; Redwood, 2009, são alguns
exemplos),1 pela existência de programas de ensino e pesquisa em universidades;

1 No cenário internacional, a agência de cooperação canadense International Development Research


Centre (IDRC) teve um papel pioneiro em apoiar pesquisas e a produção de conhecimento sobre a
pelo reconhecimento político e incorporação da agricultura urbana na estratégia de
atuação de organizações internacionais que buscam inserir a temática na agenda do
desenvolvimento2 e pelas conexões estabelecidas entre atores de diferentes países.
Diferentes aspectos da agricultura urbana são considerados neste campo e seguem
certas tendências dependendo do contexto de desenvolvimento dos países em questão.
Nos países centrais são enfocadas as relações entre a agricultura urbana e a segurança
alimentar da população urbana, o bem-estar social, a melhoria das condições ambientais
nas cidades. Nos chamados países em desenvolvimento são especialmente analisados
os limites e as potencialidades da agricultura urbana para o fornecimento de alimentos
e combate à fome; como um meio de vida e uma ferramenta de superação da pobreza.
Questões técnicas, como os impactos ambientais positivos e negativos das práticas de
agricultura urbana na saúde e no ambiente; e questões sociais, como as dimensões de
gênero, da organização social, da institucionalização e agenda política e incorporação
no planejamento urbano são também tópicos encontrados na literatura em ambos os
contextos (Mougeot, 2005; Redwood, 2009; Hamilton et al., 2013; Mok et al., 2013).
Para além dos trabalhos acadêmicos, é importante destacar, nos países do norte global,
a variedade de conhecimentos produzidos e publicados em sítios eletrônicos, livros e
revistas que enfocam, por exemplo, desde relatos de experiências, aspectos técnicos da
produção agrícola urbana (cultivo de alimentos, criação animal, compostagem, irrigação
etc.), mecanismos para sua incorporação no planejamento urbano, até abordagens mais
críticas associadas à justiça ambiental e justiça alimentar nas cidades.
Uma definição sobre a agricultura urbana, frequentemente referenciada nesta
literatura, foi formulada por Luc Mougeot (2000).3 Esta ampla definição conecta aspectos
descritivos de um conjunto de práticas agrícolas, como a localização, o tipo de atividade
econômica, tipos de produtos, a destinação da produção e destaca sua multifuncionalidade
e integração com o sistema econômico e ecológico urbano:

agricultura urbana e sistemas alimentares urbanos. A partir de 1993, programas como o Cities Feeding
People e Agropolis geraram uma série de relatórios e publicações sobre a agricultura urbana em
diferentes países da África, América Latina e Oriente Médio. Para uma revisão recente sobre a temática
da agricultura urbana no contexto dos países desenvolvidos e dos países em desenvolvimento, ver
Hamilton et al. (2013) e Mok et al. (2013).
2 Como exemplos, podem ser citados o IDRC - International Development Research Centre (<http://
www.idrc.ca>), do Canadá; a FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations (<http://
www.fao.org/fcit/en/>); e a RUAF Foundation - Resource Centres on Urban Agriculture and Food
Security (<http://www.ruaf.org>).
3 Luc Mougeot coordenou o programa Cities Feeding People entre 1993 e 2004 e o programa de
premiação/bolsas de pesquisa Agropolis (entre 1998 e 2004), vinculados ao International Development
Research Centre (IDRC).

420
Agricultura urbana é uma atividade localizada no espaço intra-urbano ou
no entorno periurbano de uma pequena localidade, cidade ou metrópole;
que cultiva e produz, processa e distribui uma diversidade de produtos
alimentícios e não alimentícios, (re)utilizando, amplamente, recursos
humanos e materiais, produtos e serviços encontrados dentro e no
entorno dessa área urbana; e por sua vez fornecendo recursos humanos
e materiais, produtos e serviços principalmente para a mesma área urbana
principalmente (Mougeot, 2000, p. 10; 2005, p. 15, tradução nossa).

O conhecimento produzido nesse contexto e a atuação de organizações


internacionais têm repercutido no Brasil por meio da implementação de projetos locais e da
realização de eventos para o debate e formulação de políticas promovidos por organizações
da sociedade civil e pelo poder público, e mais recentemente, nas pesquisas feitas nas
universidades. Por outro lado, algumas iniciativas brasileiras são incorporadas como estudos
de caso da agricultura urbana na literatura internacional, merecendo destaque a valorização
do reconhecimento formal da agricultura urbana na agenda governamental no período de
criação do Programa Fome Zero, pelo Ministério de Segurança Alimentar e Combate à
Fome e da construção de políticas voltadas à promoção da segurança alimentar no Brasil
(Redwood, 2009, p. 236, 240; Hamilton et al., 2013, p. 56).
Nota-se a influência da difundida definição internacional de agricultura urbana
na formulação que se encontra no documento “Panorama da Agricultura Urbana
e Periurbana no Brasil e Diretrizes Políticas para sua Promoção: Identificação e
Caracterização de Iniciativas de AUP em Regiões Metropolitanas Brasileiras”, fruto
de uma pesquisa financiada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS) em 2006:4

(...) a agricultura urbana é conceito multidimensional que inclui a produção,


a transformação e a prestação de serviços, de forma segura, para gerar
produtos agrícolas (hortaliças, frutas, plantas medicinais, ornamentais,
cultivados ou advindos do agroextrativismo etc.) e pecuários (animais
de pequeno, médio e grande porte) voltados para o autoconsumo, trocas
e doações ou comercialização, (re)aproveitando-se, de forma eficiente
e sustentável, os recursos e insumos locais (solo, água, resíduos, mão de
obra, saberes etc.). Essas atividades podem ser praticadas nos espaços
intraurbanos ou periurbanos, estando vinculadas às dinâmicas urbanas ou
das regiões metropolitanas e articuladas com a gestão territorial e ambiental

4 A pesquisa, realizada nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Rio de
Janeiro, São Paulo, Brasília, Goiânia, Belém, Fortaleza, Recife e Salvador, foi coordenada pela REDE -
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Belo Horizonte) e pelo Instituto IPES - Promoção
do Desenvolvimento Sustentável (Lima/Peru).

421
das cidades. Essas atividades devem pautar-se pelo respeito aos saberes e
conhecimentos locais, pela promoção da equidade de gênero através do
uso de tecnologias apropriadas e processos participativos promovendo a
gestão urbana social e ambiental das cidades, contribuindo para a melhoria
da qualidade de vida da população urbana e para a sustentabilidade das
cidades (Santandreu; Lovo, 2007, p. 10).

A redação dessa formulação foi construída coletivamente ao longo da pesquisa


e em um seminário, realizado em maio de 2007, em Brasília, que envolveu um grupo de
pesquisadoras/es de diferentes cidades do Brasil, vinculados a diferentes organizações
e movimentos sociais, setores governamentais e da academia e também representantes
de organizações internacionais. Na última frase, a incorporação de termos que
expressam questões relacionadas às trajetórias de militância política de algumas/ns
participantes da pesquisa revela a preocupação em explicitar valores e princípios na
formulação “oficial” que orientaria a construção da política nacional de agricultura
urbana, para além do caráter descritivo das práticas.
Esse simples exemplo sinaliza que ainda há um caminho a se percorrer na construção
de um referencial político e conceitual da agricultura urbana e no debate sobre as diferentes
visões de mundo e de sociedade que esta temática pode ensejar, seja enquanto uma prática
social, enquanto um objeto de estudos acadêmicos ou de uma agenda para a ação política.
Demonstra que os discursos e o conhecimento produzidos nos países do hemisfério Norte
podem ser referências importantes para se identificar tendências globais, mas devem ser
compreendidos à luz das particularidades do contexto brasileiro
A demanda pela categorização das práticas e sujeitos da agricultura urbana tem
sido constantemente identificada em processos de formulação de marcos legais e
normativos e de institucionalização de políticas públicas; nos debates sobre a fragilidade
da organização social desse segmento da população; nas proposições de incorporação da
agricultura no planejamento urbano e regional. A estas questões, se somam outras que
merecem aprofundamento, como a ideia de periurbano (uma imprecisão legal, mas que
tem força no imaginário coletivo) ou a diversidade de escalas de produção de alimentos
encontradas nos contextos urbanos e sua relação com diferentes mercados.
Entretanto, apesar de reconhecer a importância destas questões o artigo não tem
a intenção de encaminhar diretamente respostas a elas, nem propor uma nova definição
que delimite o que seria e o que não seria a agricultura urbana no contexto brasileiro.
A rota de pensamento sugerida propõe um desvio, uma viagem um pouco
mais longa, no sentido de ir além neste debate e agregar novos conteúdos para cultivar
o conceito da agricultura urbana de forma crítica e sensível. Surge do encontro entre o
espaço vivido em quase 18 anos de ativismo e trabalho direto com experiências e fóruns

422
políticos relacionados à agricultura urbana,5 a vivência da pesquisa acadêmica e o contato
com formulações teóricas que fizeram repensar esta prática.6
Uma abordagem teórica que, parece-nos, permite uma inovadora aproximação com a
agricultura urbana encontra grande inspiração no pensamento e no projeto político presentes
na obra de Henri Lefebvre, que, por sua vez, influenciam outras abordagens que tratam das
transformações espaciais das regiões metropolitanas brasileiras. A obra de Lefebvre é vasta
e muito já foi e tem sido escrito sobre ela. Amplas revisões, feitas por estudiosos e inúmeras
monografias, dissertações e teses estão disponíveis, enfatizando algumas categorias, seu
método ou ainda tecendo críticas. Portanto, é importante esclarecer que a ênfase deste texto
não é dissertar sobre o trabalho do autor, e sim, dialogar com ele, ainda que se corra o risco
de trazer apenas parte de sua obra e deixar de lado tantos outros “Lefebvres” que conformam
um pensamento complexo, que transita em campos diversos como a filosofia, a sociologia, a
geografia, a arquitetura, a economia, entre outros.
A perspectiva teórica lefebvriana da “sociedade urbana” não como uma realidade
acabada, mas como um horizonte, uma possibilidade da emancipação social, abre o
pensamento para se olhar a agricultura urbana não apenas como uma realidade, mas
também como uma virtualidade contida no presente. As elaborações do autor sobre
o espaço, o cotidiano, a cidade e o urbano sugerem novos trajetos e novos conteúdos
de pesquisa para compreender se a agricultura urbana enseja (ou não) a produção de
novos espaços e relações sociais que se contrapõem ou resistem aos espaços e relações
dominantes no mundo contemporâneo.
Como argumenta Boaventura de Sousa Santos (2008), a experiência social no
mundo é muito mais ampla e variada que a tradição científica ou filosófica ocidental
conhece e considera importante para a superação dos problemas e contradições da
modernidade. Nesse sentido, a não existência e a invisibilidade de certas experiências
são ativamente produzidas por uma monocultura racional que considera como não
científicas, residuais, inferiores, locais e improdutivas o que não cabe no tempo linear e na
concepção de totalidade que se refere a um todo superior, como a lógica dicotômica, por
exemplo. Nas palavras de Santos,

5 Destaco o período entre 1997 e 2011, em que trabalhei na Rede de Intercâmbio de Tecnologias
Alternativas (REDE), uma organização não governamental criada em 1986 para apoiar a agricultura
familiar e a agroecologia, onde tive a oportunidade de acompanhar o cotidiano de diferentes processos
relacionados à agricultura urbana (<http://www.redemg.org.br/>).
6 Trata-se da tese em andamento no Programa de Pós-Graduação em Geografia, Instituto de Geociências
da Universidade Federal de Minas Gerais, e da participação em dois projetos coletivos que ampliam as
interlocuções e a reflexão crítica sobre a agricultura urbana: o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana -
AUÊ!/UFMG (<http://aueufmg.wordpress.com/>) e o Projeto de Elaboração do Macrozoneamento
da Região Metropolitana de Belo Horizonte - UFMG (<http://www.rmbh.org.br/>).

423
tornar-se presentes significa serem consideradas alternativas às
experiências hegemônicas, a sua credibilidade poder ser discutida
e argumentada e as suas relações com as experiências hegemônicas
poderem ser objeto de disputa política (Santos, 2008, p. 105).7

Como esta imensa diversidade de experiências não pode ser explicada adequadamente
por uma teoria geral, o autor propõe um trabalho de tradução, entendido simultaneamente
como um trabalho intelectual e político e também como um trabalho emocional, pois
“pressupõe o inconformismo perante uma carência decorrente do caráter incompleto ou
deficiente de um dado conhecimento ou de uma dada prática” (Santos, 2008, p. 129).
Nos termos do autor, a multiplicidade de práticas e discursos que conferem identidade
a movimentos e organizações sociais levou a distinções e fragmentações que contribuem para
afastar os movimentos entre si e até mesmo geram rivalidades. O desafio para uma globalização
contra-hegemômica inclui a aproximação entre movimentos e organizações que estejam
dispostos a questionar sua identidade e autonomia tal como foram concebidas até o momento.
Nesse sentido, o procedimento da tradução deve ser capaz de criar uma inteligibilidade mútua
entre experiências possíveis e disponíveis sem que uma substitua a outra.
A multiplicidade de termos registrada nos espaços de debate acadêmicos e
políticos no Brasil, onde a agricultura urbana foi tema de discussão,8 assinala que existem
hoje diferentes pontos de vista sobre as atividades agrícolas urbanas e provoca a pensar as
possibilidades e limites de articulações entre eles naquilo que os une e não naquilo que
os divide: agricultura metropolitana, agricultura familiar urbana, agricultura ecológica
na cidade, hortas comunitárias, práticas agroecológicas urbanas, agricultura urbana e
periurbana, permacultura, entre outros.
Plantar as ideias de Lefebvre nas leituras sobre a agricultura urbana no mundo
contemporâneo contribue para um trabalho de tradução e torna possíveis deslocamentos

7 Fazendo uma crítica à monocultura racional denominada como “razão indolente”, o autor propõe um outro
modelo, designado como “razão cosmopolita”, que se fundamenta em procedimentos metassociológicos.
Nesse modelo, a expansão do presente (sociologia das ausências) e a contração do futuro (sociologia das
emergências) criam o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social
que está em curso no mundo de hoje e evitar o desperdício da experiência (Santos, 2008, p. 94).
8 Dentre esses fóruns de debate, são exemplos, a AMAU (Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana);
o AUÊ!/UFMG - Grupo de Estudos de Agricultura Urbana; os encontros de articulações e redes temáticas
da sociedade civil sobre a segurança e soberania alimentar e agroecologia (ANA - Articulação Nacional
de Agroecologia; AMA - Articulação Mineira de Agroecologia; FMSANS - Fórum Mineiro de Segurança
Alimentar e Nutricional Sustentável; FBSSAN - Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional); e eventos promovidos pelo governo estadual e nacional para a formulação de políticas públicas
de agricultura urbana (Ministério do Desenvolvimento Social; Subsecretaria de Agricultura Familiar do
Estado de Minas Gerais; Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Nacional e de Minas Gerais).

424
que superam as dicotomias hegemônicas, como rural/urbano, cultura/natureza, local/
global, formas de totalidade que produzem a invisibilidade das experiências sociais,
nos termos de Boaventura de Sousa Santos (2008). Permite situar a agricultura urbana
como uma zona de fronteira capaz de promover conexões e tornar permeáveis a outros
saberes e práticas, campos que usualmente não dialogam entre si, como a agroecologia e
o planejamento urbano, por exemplo.
No lugar das oposições, das delimitações e das exclusões, este texto convida a
considerar o isto e o aquilo; a somar diferentes perspectivas para se acercar das nuances e
da complexidade das interações entre a agricultura e a cidade no mundo contemporâneo.
Justifica o uso do termo “agricultura urbana” para provocar o estranhamento de
aproximar o que parece incompatível ou inadequado – a agricultura e a cidade – e
instigar os conhecimentos disciplinares a explorar interfaces e lacunas entre as disciplinas,
consolidando um campo de pesquisa e ação sobre a agricultura urbana no Brasil.
Como o leque de questões acima apresentado é muito amplo, a discussão
desenvolvida neste texto adota como recorte histórico o momento atual e como recorte
geográfico a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) (território de referência
da pesquisa de doutorado em andamento e da vivência ativista e profissional), ainda que
quando necessário se apoie em informações de outros tempos e contextos.
O artigo coloca em debate um exercício inicial de aproximação entre experiências
atualmente disponíveis de agricultura urbana, a abordagem espacial de inspiração
lefebvreana e aportes conceituais do pensamento ambiental crítico. A primeira parte
do texto apresenta algumas considerações gerais sobre as formulações teóricas sobre
a produção do espaço. As duas partes seguintes ressaltam diferenças entre modelos de
agricultura e concepções de urbano para explorar as relações sociais contidas nos espaços
produzidos pela agricultura urbana e as possibilidades que engendram de transformação
do presente e de cuidado com o futuro das cidades.

Considerações sobre a abordagem espacial

A aproximação teórica proposta entre as práticas agrícolas urbanas e o processo


contemporâneo de urbanização parte do entendimento do espaço como uma categoria
central para se compreender a sociedade.
Levando-se em conta que são múltiplas as concepções de espaço encontradas
tanto no meio acadêmico como nas conversas cotidianas, toma-se aqui como referência
inicial uma conceituação proposta por Milton Santos na sua extensa obra sobre a questão
espacial: “o espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria
sociedade que lhe dá vida” (Santos, 2012, p.15). Um movimento dialético é enfatizado

425
pelo autor, que apresenta o espaço como uma instância da sociedade que contém
processos econômicos, cultural-ideológicos e político-institucionais, mas também
está contido nesses mesmos processos. Esse pensamento dialético revela como esses
processos têm sua espacialidade própria e se “articulam” no espaço, que, desta forma,
deve ser considerado nas análises como uma instância ativa e não apenas como um
instrumento ou o palco da dinâmica socioespacial.
A abordagem dialética do espaço como soma entre forma e conteúdo (social)
também ajuda a compreender a essência social do espaço; o espaço como “um produto
social em permanente processo de transformação” (Santos, 2012, p. 67). As formas
geográficas, entendidas como distribuição ou organização dos objetos geográficos
naturais ou artificiais sobre um território, são na verdade “formas-conteúdo” que estão
em permanente mudança de significação, ao mesmo tempo que o “conteúdo ganha nova
dimensão ao encaixar-se na forma” (Santos, 2012, p. 13).
O pensamento dialético socioespacial e o entendimento do espaço (social)
como um produto (social) são marcantes na obra de Henri Lefebvre, que introduz
uma problemática espacial na teoria social crítica e na compreensão das relações sociais
e aponta aberturas na direção das possibilidades de transformação social no mundo
contemporâneo. O conceito de produção do espaço adotado por Lefebvre desloca o
interesse das coisas no espaço e dos discursos sobre o espaço para a própria produção do
espaço (assim como o deslocamento proposto por Marx, dos produtos para a produção),
procurando revelar as relações sociais nele contidas (Lefebvre, 1991b, p. 37).
Sua elaboração teórica propõe uma mudança na perspectiva economicista e
produtivista de que a organização do espaço é determinada pelos processos econômicos.
Muda o enfoque das elaborações teóricas estruturalistas sobre a manutenção do modo de
produção para os processos pelos quais se realiza a reprodução das relações de produção.
E dá centralidade à dimensão espacial desses processos, ampliando a noção de espaço
(social) para além do ambiente construído e do espaço físico.
Nos termos de Soja (1996), observa-se uma trialética na obra de Lefebvre, uma
ruptura e abertura das oposições binárias pela introdução de um “terceiro” elemento,
que não se situa entre os opostos, mas os engloba e representa mais que a soma das duas
partes. Esse procedimento cria uma forma nova de olhar para o espaço, diferente de como
é usualmente compreendido como espaço físico ou mental e introduz a ideia do espaço
social. Indica, dessa forma, que o espaço pode ser interpretado a partir de pelo menos
três perspectivas diferentes (físico, mental e social), mas que só podem ser separadas em
termos analíticos, uma vez que o que se propõe é restituir a unidade do espaço.
As tríades propostas por Lefebvre se expressam em formulações conceituais sobre
o espaço urbano utilizadas pelo autor e por Soja: espaço percebido – espaço concebido

426
– espaço vivido, que correspondem, respectivamente, à prática espacial (prática espacial
materializada, espaço percebido fisicamente, o espaço produzido lentamente pela
sociedade, por dominação ou apropriação; ambiente construído; coisas no espaço); às
representações do espaço (campo mais mental ou ideal, das representações simbólicas,
imaginário urbano, realidade imaginada, espaço dos cientistas, dos planificadores, dos
urbanistas, dos tecnocratas e agenciadores; abstrações elaboradas intelectualmente, pela
imaginação; espaço dominante em uma sociedade/modo de produção; reflexões sobre
o espaço); e aos espaços de representação (espaços marcados por símbolos e signos
relacionados à história de determinado grupo que dão sentido a certos espaços; tentativas de
modificação e apropriação do espaço dominado pela imaginação; lugar simultaneamente
real e imaginário, atual e virtual) (Lefebvre, 1991b, p. 38, 41; Soja, 2000, p. 10).
Assim como Milton Santos, Lefebvre argumenta que cada período histórico, cada
sociedade (e consequentemente cada modo de produção) tem sua própria lógica de
produção do espaço. As relações sociais de reprodução e produção intervêm diretamente
na produção do espaço segundo suas qualidades e propriedades, segundo as sociedades,
segundo as épocas. Analisando a produção do espaço na sociedade capitalista, Lefebvre
argumenta que as relações dominantes de produção se reproduzem no espaço; e que,
portanto, o espaço é uma categoria central na reprodução da sociedade capitalista.
Na perspectiva lefebvriana, o capitalismo tem sobrevivido estendendo-se no espaço,
para além do âmbito das unidades de produção e das empresas e expandindo o controle
do Estado e do capital sobre as condições de produção e reprodução da sociedade e suas
contradições. Criando novos espaços e subordinando espaços (anteriores à sua existência,
onde se privilegiava a reprodução) à lógica da mercantilização e da industrialização,
aprofundam-se e renovam-se as relações sociais centradas na acumulação de capital. O
autor apresenta a noção de espaço abstrato, produzido pelo capital (a abstração suprema),
como o espaço dos centros de riqueza e de poder que se projeta, molda e domina os
espaços das periferias; o espaço organizado em uma forma que oculta e mascara a ordem
social dominante (Lefebvre, 1991b, p. 289, 308). Essa forma dominante de espaço,
hierárquica, tende à homogeneidade e busca reduzir obstáculos que encontra por meios
muitas vezes violentos e de repressão. Ao mesmo tempo, esse espaço homogêneo é
dividido em fragmentos que são especializados, negociados e reconectados de forma a
atender exigências e desempenhar funções necessárias do processo de acumulação.
Nesse sentido, as ações de gestão e planejamento urbano e metropolitano,
articuladas com o capital imobiliário e industrial, tendem a negligenciar problemáticas
urbanas relacionadas à reprodução social (como transporte público, habitação de interesse
social, produção de alimentos etc.) e priorizar os investimentos públicos que favorecem
a produção do espaço abstrato (como estruturas viárias, distritos tecnológicos, grandes

427
empreendimentos imobiliários etc.) que avança fisicamente sobre o território (e sobre as
terras não construídas), destruindo formas anteriores e homogeneizando o espaço.

O espaço abstrato não pode ser concebido abstratamente. Ele tem um


“conteúdo”, mas esse conteúdo é tal que a abstração o “compreende” por meio
de uma prática que lida com este conteúdo. O fato é que o espaço abstrato
contém contradições, que a forma abstrata parece resolver, mas que são
claramente reveladas pela análise. Com isto é possível? Como pode um espaço
ser ao mesmo tempo homogêneo e dividido, unificado e fragmentado? A
resposta está em primeiro lugar – e isto não tem nada a ver com uma relação
significante-significado supostamente imanente ao espaço – no fato de que
a “lógica do espaço”, com sua aparente significação e coerência, na verdade
esconde a violência inerente à abstração. Assim como a violência é intrínseca
aos instrumentos em geral (que cortam, fatiam, assaltam, brutalizam a matéria
natural), e aos sinais em geral, a violência é necessariamente imanente ao
espaço instrumental, não importando o quão racional e evidente este espaço
possa parecer (Lefebvre, 1991b, p. 306, tradução nossa).

Lefebvre argumenta que o confronto entre o espaço abstrato, produzido pelo


poder econômico e político e o espaço social, resultado da vida cotidiana e produzido
pela ação e interação entre todos os atores da sociedade, aponta as possibilidades de
mudança social. A tendência do espaço abstrato em transformar o valor de uso coletivo
do espaço em valor de troca, em eliminar as particularidades existentes, em segregar e
desintegrar, engendra um novo espaço, chamado por Lefebvre de “espaço diferencial”, que
aponta aberturas para o seu próprio fim, frente à incapacidade do capitalismo e do Estado
em dominar o caos espacial por eles mesmos produzido (Lefebvre, 1991b, p. 63):

De um ponto de vista menos pessimista, pode-se demonstrar que o espaço


abstrato contém contradições específicas. Estas contradições espaciais derivam
em parte das antigas contradições oriundas do tempo histórico. Passaram,
portanto, por modificações: algumas se agravaram, algumas se atenuaram.
Dentre elas, surgiram contradições completamente novas que podem
eventualmente precipitar a ruína do espaço abstrato. A reprodução das relações
sociais de produção dentro deste espaço obedece inevitavelvemente a duas
tendências: a dissolução de velhas relações, por um lado, e a geração de novas
relações, por outro. Assim, apesar – ou talvez por causa – da sua negatividade,
o espaço abstrato carrega ele mesmo as sementes de um novo tipo de espaço.
Chamo este novo espaço de “espaço diferencial”, porque, enquanto o espaço
abstrato tende em direção à homogeneidade, em direção à eliminação das
diferenças e peculiaridades existentes, um novo espaço não pode nascer (ser
produzido), a não ser que ele acentue as diferenças. Ele também irá restaurar a
unidade do que o espaço abstrato separa: as funções, os elementos e momentos
da prática social (Lefebvre, 1991b, p. 52, tradução nossa).

428
O projeto teórico e político de longo prazo cultivado por Lefebvre identifica na
luta cotidiana que emerge do confronto entre o avanço do espaço abstrato sobre o espaço
social um potencial revolucionário e um caminho para produzir um outro espaço, uma
outra vida social, e um outro modo de produção; onde as mudanças na sociedade devem
estar conectadas às mudanças no espaço: “novas relações sociais pedem um novo espaço,
e vice-versa” (Lefebvre, 1991b, p. 59).
Essa perspectiva orienta o ponto de vista assumido neste artigo de indagar se os
espaços agrícolas metropolitanos podem ser espaços diferenciais que são atravessados ou
que nascem a partir das contradições do espaço abstrato e carregam a possibilidade de
conduzir à mudança social.

Que agricultura?

Assumindo que a prática da agricultura urbana produz espaço, seguir a trilha aberta pelo
argumento lefebvriano de que as relações de produção capitalistas se reproduzem através
da produção do espaço – sendo por isso estruturante na sociedade – incita a pensar
em que medida e em que circunstâncias o uso agrícola do solo urbano pode (ou não)
representar uma forma de produção não capitalista do espaço urbano contemporâneo.
A mercantilização e a imposição da lógica industrial à configuração do sistema
agroalimentar no mundo contemporâneo pode ser entendida como uma das formas de
extensão do espaço abstrato que parte de centros distantes e alcança lugares remotos em
todo o planeta e reproduz as relações de produção dominantes. Algumas poucas empresas
transnacionais do agronegócio acumulam grande riqueza e poder e controlam o mercado
mundial de sementes, agrotóxicos e fertilizantes. Essa concentração de poder corporativo
também acontece na distribuição e comercialização dos alimentos pelas grandes redes
de supermercado. As indústrias de alimentos criam novos hábitos, padrões alimentares e
necessidades de consumo que pretensamente facilitam um modo de vida urbano em que
o tempo é cada vez mais escasso, ocupado pelo trabalho e outras atividades e menos horas
são dedicadas ao cuidado com a alimentação.
As mudanças espaciais resultantes da transposição da lógica da industrialização
e do modo de produção capitalista para a atividade agropecuária e a produção de
alimentos se dão pela difusão e aprofundamento de um pacote tecnológico importado
dos países centrais e conhecido como “Revolução Verde”.9 Esse modelo tecnológico

9 A Revolução Verde tem origem nos anos de 1940 e 1950, alinhada às políticas de estímulo à industrialização
como meio para o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo propostas pela CEPAL (Comissão
Econômica para América Latina). Sua implantação levou a transformações intensas no meio rural nas
décadas de 1960 e 1970. No Brasil, sua difusão foi sustentada pelo tripé crédito, pesquisa e extensão.

429
está centrado na tecnificação da agricultura (fertilizantes químicos, mecanização, uso
de agrotóxicos, “melhoramento de sementes” etc.), nos ganhos de eficiência através da
técnica, na grande escala e na destinação da sua produção para demandas específicas dos
grandes mercados consumidores urbanos. A crítica à imposição desse modelo no Brasil
destaca como consequências negativas a especialização e a verticalização da produção, a
desestruturação de sistemas agrícolas tradicionais, a concentração fundiária e de renda,
além dos graves impactos nos ecossistemas locais e na saúde humana. Do ponto de vista
do consumo, a generalização dos hipermercados e shopping centers, fruto da atuação de
agentes políticos e de interesses econômicos, não só padronizam modos de vida e hábitos
de consumo, como afetam as dinâmicas territoriais onde se instalam.
A contraposição entre o avanço do espaço abstrato sobre territórios onde prevalecem
modos de vida centrados na cultura local e na reprodução dos recursos naturais e da
vida humana acentua as diferenças entre as particularidades e o hegemônico e explicita
contradições espaciais como os graves problemas ambientais e de saúde decorrentes do
sistema agroalimentar atual. Dessa contraposição emergem resistências e novas iniciativas
de luta pela conquista e afirmação de territórios frente à expansão do agronegócio e das
indústrias de biotecnologia, que engendram a produção de novos espaços onde, por
exemplo, a preservação e o uso comum da biodiversidade sejam protegidos da degradação,
da privatização ou da contaminação por transgênicos e agrotóxicos.
Ainda que estas questões integrem mais comumente a agenda de debates sobre
a sustentabilidade dos modelos de desenvolvimento rural, a terra é objeto dos mais
diferentes interesses nas regiões metropolitanas, e os diferentes usos agrícolas do solo
urbano também se inscrevem nessa disputa e nessa contraposição entre o espaço abstrato
e o espaço social.
Essa perspectiva assinala que o uso agrícola do solo urbano não representa,
necessariamente, uma virtuosidade. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte
observa-se a presença de atividades agrícolas orientadas pela lógica industrial e integradas
ao atual sistema agroalimentar hegemônico nas zonas rurais, mas também localizadas
dentro ou próximas dos núcleos urbanos dos municípios metropolitanos. A produção em
escala comercial acontece em empresas de horticultura, granjas de aves e suínos, fazendas
produtoras de leite, sítios produtores de alimentos orgânicos certificados e abastece
nichos de mercados com maior poder aquisitivo na capital e em outras centralidades e
grandes redes de produção-distribuição-comercialização de alimentos hierarquicamente
estruturadas desde os centros de decisão distantes, podendo ou não manter vínculos com
os mercados locais e com as cidades mais próximas de onde se localiza a produção. O
simples fato de ter uma localização em área urbana não parece ser suficiente para indicar
uma integração dessa produção agrícola com o sistema ecológico e econômico das

430
cidades próximas. Por um lado, a produção em escala comercial cumpre um importante
papel no abastecimento de alimentos da população que se concentra nas grandes cidades
e metrópoles; mas, por outro, pode expressar concentração fundiária, espacialização,
condições injustas de trabalho, desestruturação de sistemas agrícolas tradicionais e a
superexploração dos recursos naturais presentes na região.
Nas cidades e suas periferias, encontram-se também práticas agrícolas, relacionadas
às particularidades dos lugares, que resistem ou nascem a cada dia, e que podem,
eventualmente, estar conectadas a redes transescalares de mobilização e de enfrentamento
da lógica de produção capitalista do espaço. Estas práticas materializam espaços sociais
resultantes da vida cotidiana e da interação entre diferentes atores na sociedade.
Esta análise se enriquece com a incorporação de contribuições do pensamento
ambiental, particularmente do campo dos conflitos ambientais, que se insere na vertente
teórica da ecologia política e da justiça ambiental. A perspectiva dos conflitos ambientais
explicita os modos de apropriação, uso e significação do território por diferentes grupos
sociais ou agentes (Acselrad, 2004) e a contraposição entre modos de vida de grupos
locais e modo de vida da sociedade urbano-industrial (Zhouri; Laschefski, 2010).
Como exemplo do espaço abstrato potencialmente produzido pelo Estado,
encontram-se as propostas de ampliação de perímetros urbanos e transformação de
áreas rurais dos municípios da região em zonas de expansão urbana, com vistas ao
parcelamento do solo para uso urbano, feitas por meio de legislação específica ou de
planos diretores e os investimentos em grandes projetos de reestruturação urbana. Estas
práticas elevam o preço da terra e subordinam áreas de diversidade ecológica e cultural a
usos especializados e homogêneos, como a produção de moradia (seja ela voltada para
alta renda ou loteamentos populares), comprometendo a manutenção de práticas de
reprodução material e simbólica de grupos sociais que vivem nessas regiões.10
Conflitos também ocorrem no ambiente construído, quando o Estado atua como
produtor de “mais-valias fundiárias”, a partir do investimento público em infraestrutura e
equipamentos11 que resulta no aumento da valorização e do preço da terra. Essa forma de

10 Acselrad (2004, p. 26) define os conflitos ambientais como “aqueles envolvendo grupos sociais com modos
diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos
grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçadas por
impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos – decorrentes do exercício das
práticas de outros grupos. (…) Este conflito tem por arena unidades territoriais compartilhadas por um
conjunto de atividades cujo ‘acordo simbiótico’ é rompido em função da denúncia dos efeitos indesejáveis
da atividade de um dos agentes sobre as condições materiais do exercício das práticas de outros agentes.”
11 O termo “mais-valia fundiária” baseia-se na teoria marxista da renda da terra e refere-se a uma abordagem
contemporânea da valorização imobiliária urbana como uma “expressão do excedente induzido pelas ações
do poder público que acabam por compor o preço da terra urbana, apropriado em forma de renda pelo

431
atuação do Estado afeta, de forma difusa, as práticas agrícolas desenvolvidas pela população
que é pressionada a sair dessas regiões valorizadas, ou de forma direta, inviabilizando o
uso de áreas públicas ou privadas já ocupadas com a produção agrícola para a implantação
e ampliação de equipamentos públicos, duplicação de vias, implantação de infraestrutura
de saneamento, de habitação popular etc.
Outro aspecto a ser considerado são as desigualdades sociais em torno do acesso
e da utilização dos recursos naturais e as condições de degradação e contaminação desses
recursos resultantes do modo de produção do sistema urbano-industrial capitalista.
Lançamento de esgoto em cursos d’água pela própria concessionária de serviços de
abastecimento de água, contaminação dos rios por empresas do agronegócio e desvios
no curso d’água por atividades de mineradoras, recorrentes em zonas rurais, são também
relatadas em regiões metropolitanas. A privatização de remanescentes de vegetação nativa
e criação de parques e unidades de conservação sob a ótica preservacionista pelo Estado
são exemplos de restrições de acesso da população marginalizada e das comunidades
tradicionais à biodiversidade.
O avanço do espaço abstrato sobre os territórios onde se encontram grupos
sociais como agricultores/as familiares e camponeses, que historicamente vivem
nas regiões metropolitanas, ameaça a continuidade das suas práticas de reprodução
material e simbólica baseadas em formas específicas de apropriação da natureza
que resistem em espaços cada vez mais restritos.12 Por outro lado, observa-se,
simultaneamente, a emergência de inovações nas atividades produtivas, que agregam
valor à produção e estabelecem novas relações com a cidade e com consumidores
urbanos, como os produtos orgânicos e apicultura e a comercialização em redes de
produtores e consumidores. Nas fronteiras urbanas encontram-se também sítios e
chácaras de moradores urbanos de diferentes níveis de renda, cultivados no fim de
semana ou por caseiros/as, cuja produção pode ser direcionada ao mercado local ou
para o autoconsumo e doação entre familiares e amigos.

proprietário da terra”. Problematiza a necessidade de regulação e atuação do Estado na promoção da “gestão


social da valorização da terra”, seja como provedor de instrumentos que possibilitem a recuperação de parte
desta valorização (para que não seja apropriada de forma privada), seja como promotor de programas de
redistribuição dos recursos e benefícios da urbanização (de forma a diminuir a desigualdade espacial urbana)
e investimento nas condições necessárias à reprodução social (Almeida; Monte-Mór, 2011, p. 285).
12 A abordagem dos conflitos ambientais é uma opção teórica e analítica para visibilizar as experiências
populares de agricultura urbana e inseri-las no debate sobre a justiça ambiental e o direito à cidade.
Entretanto, os conflitos associados ao uso agrícola do solo urbano não são comumente encontrados
na literatura deste campo, indicando a relevância de aprofundar estudos sobre suas particularidades nas
cidades e regiões metropolitanas brasileiras.

432
A agricultura também está presente em territórios não muito visíveis nas cidades,
como nos agrupamentos sociais desenvolvidos desde a época da colonização pelos
afro-brasileiros para manterem sua identidade sociocultural. Quilombos urbanos e
comunidades tradicionais de terreiro cultivam e utilizam plantas como forma de oferenda
e contato com o mundo invisível de seus antepassados, além de um recurso alimentar e
para a saúde (Gomes, 2009) e, ao longo de gerações, produzem saberes a partir da relação
estabelecida com a natureza e a biodiversidade presente na cidade.
Mais complexa ainda é a variedade de espaços e atividades agrícolas encontradas
nas áreas não construídas da cidade e nas suas bordas, nas lajes e quintais, nos espaços
institucionais públicos e privados, nas áreas verdes, nos chamados “vazios” urbanos.
Estes espaços dizem das experiências de vida de indivíduos, famílias ou coletivos que
podem ter uma origem rural e uma vivência camponesa ou de empregado rural, mas
também de pessoas de diferentes classes sociais que nasceram ou cresceram na cidade
e não têm um vínculo anterior com o campo. Estas práticas podem ter um papel
importante na ocupação e na fonte de renda destes sujeitos e fazer parte de estratégias de
sobrevivência, frente às necessidades geradas pela marginalização na sociedade urbano-
industrial capitalista. Mas também revelam histórias de organização coletiva, tentativas
de modificação e apropriação do espaço onde o cultivo de plantas, a criação de animais
ou a reciclagem de resíduos conferem sentidos e informam uma opção de ser e viver na
cidade; uma apropriação técnica, social e cultural do espaço que contesta ou pelo menos
não se incorpora ao modo capitalista de produção do espaço urbano.
Um conceito criado por Lefebvre para definir a sociedade atual – “a sociedade
burocrática de consumo dirigido” – busca descrever a organização da vida cotidiana e o
direcionamento da sociedade para o consumo, pelo capital e pelo autoritarismo político e
burocrático do Estado. O tema da vida cotidiana, da cotidianidade programada e sua relação
com a produção social do espaço se faz presente de forma marcante na obra de Lefebvre,
que assinala mais uma nova via para esclarecer os mecanismos de reprodução das relações
capitalistas de produção e propõe, assim, novos deslocamentos e novos enfoques. Do local
de trabalho para o cotidiano, como o espaço primeiro da exploração, da alienação e da luta de
classes. Da organização da produção para a organização do consumo, como centralidades no
modo de produção capitalista. Da dimensão econômica para a dimensão sociocultural, da
ação revolucionária e da transformação social.
Esta perspectiva conduz para uma ação prática em que a cotidianidade tem papel
central. Sinaliza aberturas para antepor as necessidades sociais frente às necessidades
individuais programadas; para contornar as opressões do Estado e suas instituições;
para se apropriar de espaços vividos que escapam das lógicas e mecanismos de
dominação da sociedade de consumo.

433
A politização do espaço da vida é um elemento que enriquece a apreciação da
agricultura urbana como uma possível via de transformação da vida cotidiana. Mudar a
vida a partir da mudança da cotidianidade, do imediato, do dia a dia.
O trabalho cotidiano de cultivar a terra e cuidar da criação animal leva a observar,
aprender e interagir com os ciclos da natureza presente no espaço urbano e viver a
experiência de empregar o tempo na transformação do espaço. As mudanças no cotidiano
e no espaço imediato geram valores e aprendizagens sobre o uso da biodiversidade
cultivada e podem ter reflexos sobre uma maior autonomia, no cuidado com a saúde
e na redução da dependência da indústria de alimentos e remédios. Da mesma forma,
as práticas de trocas e doações de mudas, sementes, alimentos, remédios caseiros, muito
frequentes entre quem cultiva na cidade, nutrem sistemas de trocas e cooperação que
operam, independentemente das regras do mercado capitalista.
Na RMBH, observa-se que são ainda pouco conhecidos e pouco articulados
os sujeitos coletivos historicamente relacionados à agricultura, como os sindicatos de
trabalhadores/as rurais, as associações de agricultores/as, os movimentos pela reforma
agrária, assim como são incipientes as organizações de base e outras institucionalidades
especialmente identificadas pela pauta da agricultura urbana, o que dificulta a identificação
das situações onde se contrapõem espaço abstrato e espaço social ou diferentes modos de
vida e de apropriação, uso e significação do território.
Esta ausência de conhecimento reforça a necessidade de mais estudos e esforços
para caracterizar e visibilizar os conflitos que emergem quando o espaço produzido pelo
Estado ou pelo capital (atividades minerárias, empreendimentos imobiliários, demarcação
de unidades de conservação intocáveis, implantação de infraestrutura urbana etc.) ameaça
as condições materiais e a reprodução das práticas de agricultura urbana encontradas em
uma pluralidade de espaços dispersos no território metropolitano.
No contexto regional, destaca-se a Articulação Metropolitana de Agricultura
Urbana (AMAU) que, desde 2004, tem se consolidado como um movimento de
organização social em torno da temática da agricultura urbana. Desde sua criação,
participaram das ações promovidas pela AMAU indivíduos, grupos formais e informais
e entidades ligadas a diferentes campos políticos e conceituais, como soberania e
segurança alimentar, feminismo, reforma urbana, reforma agrária, saúde coletiva,
justiça ambiental, economia solidária, conferindo uma grande riqueza aos debates
e à construção de uma visão crítica sobre a agricultura urbana na RMBH (Almeida;
Morais; Paixão, 2012; Costa; Almeida, 2012).
Alternando períodos com maior e menor mobilização social, os 10 anos de
trajetória da AMAU sinalizam a potencialidade da agricultura urbana para articular
temáticas e ações coletivas, assim como a riqueza de um processo permanente de

434
conhecimento mútuo entre as pessoas e organizações que atuam na produção de espaços
carregados de sentidos e significados na região.
As atividades de formação realizadas pela AMAU promovem o encontro de
experiências individuais e familiares em coletivos, redes, articulações e fóruns políticos
e buscam fazer a ação política a partir da articulação entre ações cotidianas que ocorrem
de forma dispersa em diferentes lugares na região metropolitana. A cotidianidade dos
participantes e os espaços produzidos pela prática da agricultura urbana encontram-se
no centro dos debates e são confrontados com os diferentes modelos de sociedade em
disputa. As estreitas conexões entre a produção e reprodução que vivenciam nos espaços
urbanos cuidados e cultivados se contrapõem às contradições e separações dos espaços
abstratos produzidos pela atuação de agentes econômicos e políticos onde predominam
valores e padrões de consumo impostos na sociedade contemporânea.
Esta trajetória revela os limites encontrados até o momento, para a construção da
organização de base e de canais de expressão política coletiva, além do reconhecimento pela
sociedade e pelos formuladores de políticas, de que este conjunto de sujeitos e práticas, tidos
como residuais, irrelevantes ou deslocados dos contextos urbanos, possam ser protagonistas
de respostas para questões importantes no mundo contemporâneo. Estes limites desafiam
a pensar se uma maior e mais forte articulação entre estes espaços onde predomina o valor
de uso e a produção (de alimentos, remédios caseiros, composto orgânico etc.) para as reais
necessidades da população e não o valor do espaço como mercadoria representaria um poder
de transformação espacial e social mais amplo e de criação de novos territórios metropolitanos.
Além da construção de vínculos regionais entre experiências locais, a mediação
entre diferentes escalas se concretiza nas conexões estabelecidas entre o âmbito
metropolitano e outras iniciativas de redes e fóruns nacionais e internacionais que
explicitam as relações sociais locais-globais do modo de produção capitalista e as lutas em
curso para sua superação em outros lugares e territórios.
Como um exemplo recente, a Carta do III Encontro de Agroecologia realizado
em maio de 201413 analisa os padrões de desenvolvimento rural atualmente dominantes
no Brasil e enfatiza os conflitos decorrentes do avanço do agronegócio, da mineração e
dos grandes projetos de infraestrutura sobre os territórios historicamente ocupados pela
agricultura familiar camponesa, pelos povos indígenas e comunidades tradicionais. Os
debates realizados ao longo do III ENA denunciaram os impactos sociais e ambientais
deste modelo hegemônico de produção do espaço no campo e o papel desempenhado
pelo Estado para garantir os interesses do capital industrial, financeiro e agrário. Por outro

13 Para mais informações sobre o III Encontro Nacional de Agroecologia, consultar <http://
enagroecologia.org.br>.

435
lado, anunciaram as expressões de resistência das populações no campo (seja no âmbito
da produção ou da reprodução) e uma crescente aproximação entre estas populações
e outros segmentos sociais que anseiam por mudanças e respostas para questões que
desafiam toda a sociedade, como a superação da miséria, a igualdade de gênero, o acesso
a uma alimentação saudável, a conservação dos bens naturais e das paisagens rurais, a
preservação do patrimônio cultural, dentre outras.
Construída com base na diversidade socioambiental, cultural e organizativa
das experiências de promoção da agroecologia desenvolvidas nos diferentes biomas
brasileiros (agricultoras/es familiares, camponesas/es, quilombolas, indígenas,
extrativistas, comunidades tradicionais, pescadores/as artesanais etc.), a Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA) concebe um projeto conjunto para a agricultura no
Brasil e a formulação progressiva de sínteses que reflitam a “unidade na diversidade”.
Para os objetivos deste artigo, cabe explorar um pouco mais a proposta agroecológica,
para identificar os diferentes modelos de agricultura em disputa na atualidade e alguns
fundamentos que qualificam o debate sobre a práxis da agricultura urbana.
Os debates sobre a agroecologia se iniciam com a emergência da questão
ambiental nas décadas de 1960 e 1970, e estão marcados pelo caráter de denúncia
dos impactos do uso de agrotóxicos e pela formulação de alternativas ao modelo de
produção difundido pela agricultura industrial.
Desde então, observa-se uma trajetória de pesquisas e organização social que tem
resultado no reconhecimento da agroecologia como uma ciência que busca articular
diferentes disciplinas do meio acadêmico científico (agronomia, ecologia, economia,
sociologia, dentre outras), e principalmente construir o diálogo com saberes construídos
a partir de uma estreita relação entre as culturas e ecossistemas locais. Encontra-se
associada a esta trajetória, a experimentação de tecnologias e metodologias que favorecem
esse diálogo de saberes e a produção de novos conhecimentos a partir da articulação entre
o conhecimento tradicional e o conhecimento científico.
Perez-Cassarino (2012) identifica, nos saberes historicamente construídos
pelo campesinato, um elemento estruturante e comum nas diferentes perspectivas no
campo agroecológico,14 bem como no âmbito dos movimentos e organizações sociais.

14 Segundo o autor duas diferentes perspectivas se articulam com o pensamento de determinados


autores. Uma perspectiva, que tem como referências importantes os autores Miguel Altieri e Stephen
Gliessman, se apoia nos princípios da ecologia para o uso e manejo sustentável dos recursos naturais nas
práticas agrícolas e pecuárias e no conhecimento tradicional de comunidades indígenas e camponesas.
Outros autores, como Eduardo Sevilla-Guzmán e Manuel Gonzalez Molina, identificam as origens da
agroecologia dentro da evolução dos estudos sobre o campesinato e sua relação com o ambiente e com
o manejo dos agroecossistemas onde estão inseridos (Perez-Cassarino, 2012).

436
Argumenta que estes saberes resultam em diferentes formas de manejo e apropriação dos
recursos naturais para a produção agrícola, que se encontram conectados à cultura e ao
conhecimento das condições ambientais locais, visando maximizar seus rendimentos e
propiciar a conservação dos recursos disponíveis.
O conjunto de princípios apresentados pela ciência e pela prática da
agroecologia orienta um novo paradigma para a agricultura e o desenvolvimento
rural, que se contrapõe ao modo de produção capitalista e à atual configuração do
sistema agroalimentar, baseados na lógica mercantil e industrial. Entretanto, por ser
uma disciplina ou movimento social centrado na construção de uma plataforma
política para o desenvolvimento rural, a incorporação da realidade metropolitana e das
particularidades dos sujeitos e grupos que aí se encontram é ainda pontual.
Mais do que um conjunto de técnicas ou tecnologias que podem ser aplicadas a
diferentes contextos, a perspectiva ecológica e sociocultural da produção agroecológica
incorpora princípios como as condições dignas e justas de trabalho no processo
produtivo; as relações de cooperação com consumidores, a dinamização das relações
econômicas locais e regionais; e a integração com os ciclos da natureza. Dessa forma, a
riqueza da proposta agroecológica está associada à sua flexibilidade e adaptabilidade às
realidades locais, e portanto, cabe olhar para as práticas agroecológicas nos diferentes
contextos urbanos para buscar compreender como as mesmas se estabeleceram ou
podem se estabelecer em cada lugar.
O encontro da diversidade de espaços produzidos pelas práticas agrocológicas
com a diversidade própria da cidade e os conhecimentos nela acumulados sugerem vias
alternativas e ainda pouco exploradas de produção de novos espaços que articulam a
qualidade de vida com a função social da terra e o valor de uso do ambiente não construído
nas cidades e nas zonas rurais dos municípios metropolitanos.
Pensar a agricultura urbana à luz da problemática espacial esclarece a
complexidade e a heterogeneidade de formas e funções que as práticas agrícolas podem
assumir, indicando que a presença da atividade agrícola em contextos urbanos não
necessariamente significa a produção de novos espaços e relações sociais. Ainda que
do ponto de vista espacial, toda atividade agrícola tenha sua importância, a perspectiva
da ciência e da prática da agroecologia confere (ou pode conferir) conteúdo às
práticas agrícolas urbanas como formas de apropriação social dos recursos naturais
e de construção de relações que diferem da produção capitalista do espaço centrada
na reprodução dos capitais envolvidos com as atividades urbano-industriais nas áreas
urbanas (imobiliárias, agrícolas, minerárias etc.).
Nesse sentido, este artigo enfatiza a importância de se consolidar uma agenda
de debates e pesquisa sobre o papel que a agricultura urbana orientada pela proposta

437
agroecológica pode desempenhar no desenho de modos de vida mais sustentáveis para
as populações urbanas e na formação de novas identidades territoriais na RMBH.

Que urbano?

Existem diferentes formulações acerca da cidade e do urbano, seja do ponto de vista


conceitual e teórico, do ponto de vista legal ou da definição de políticas públicas, da visão de
mundo e da sociedade. Estas diferenças podem conduzir a leituras distintas da agricultura
urbana e devem ser explicitadas para superar o cenário de imprecisões e indefinições
observado em fóruns onde a agricultura urbana foi tema de debate acadêmico e político.15
As elaborações conceituais de Lefebvre sobre a cidade e sobre o urbano são
uma referência marcante em sua obra e orientam a definição de alguns pressupostos e o
entendimento conceitual assumidos neste artigo. Como antecipa Lefebvre no início do
livro O direito à cidade, sua reflexão sobre estas questões “deseja romper os sistemas, não
para substituí-los por um outro sistema, mas para abrir o pensamento e a ação na direção
de possibilidades que mostrem novos horizontes e caminhos” (Lefebvre, 2011, p. 9).
A seguir, serão pontuadas algumas considerações sobre as relações entre o urbano
e o rural, a urbanização e a industrialização, a cidade e o urbano, que conferem múltiplos
pontos de vista para analisar a agricultura urbana.
Uma primeira consideração refere-se à visão dicotômica campo-cidade, rural-
urbano ainda presente na academia, nas políticas públicas e nas lutas dos movimentos
sociais, mesmo que no mundo contemporâneo esta relação se mostre cada vez mais
complexa e de difícil delimitação.
Como destaca Sérgio Martins no prefácio da edição brasileira d’A revolução
urbana (Lefebvre, 2008), observa-se, na produção teórica de Lefebvre, um deslocamento
do foco das preocupações sobre as contradições entre cidade e campo para “um outro
processo, mais amplo, rico, profundo e dialético: a urbanização da sociedade”, resultante
das transformações que aconteceram no campo e na cidade através da industrialização e
do “desenvolvimento do mundo da mercadoria”.
O deslocamento do interesse da problemática rural-urbano para a problemática
socioespacial sugere que mais importante que inscrever a agricultura urbana no debate
rural-urbano é analisar em que medida as práticas agrícolas urbanas podem ou não ser
compreendidas como uma práxis espacial transformadora (Costa; Almeida, 2012).

15 Uma discussão sobre a utilização de diferentes termos e expressões para se referir às práticas agrícolas
nos contextos urbanos encontra-se um pouco mais desenvolvida em Almeida e Costa (2014).

438
É fato que são observadas resistências e críticas ao pensamento de Lefebvre por
autores que enfatizam a atualidade do par rural-urbano e interpretam nas formulações
de Lefebvre uma negação da problemática do rural e da agricultura ou uma visão de
substituição do agrário pela expansão urbana.16
Entretanto, do ponto de vista do debate sobre a agricultura urbana, a abordagem
espacial de inspiração lefebvriana abre possibilidades para dar visibilidade à ruralidade
presente nas cidades e no seu entorno e não a sua negação. Permite reconhecer o que
aproxima, o que une os espaços, as práticas e os sujeitos envolvidos com a atividade
agrícola nas regiões metropolitanas (no sentido de serem ou não práxis transformadoras)
e provocar novas ligações e ações conjuntas, mais do que indagar se são rurais ou urbanos.
E nesse sentido, é uma perspectiva aberta para incorporar questões e conhecimentos
produzidos no campo de estudos que afirma a contemporaneidade de novos e velhos
sentidos do rural, das ruralidades e da agricultura familiar no contexto brasileiro.
Estas conexões se contrapõem e buscam superar o posicionamento de alguns
militantes, pesquisadoras/es e organizações que têm uma trajetória de atuação ligada à
questão agrária, à produção agropecuária, ao desenvolvimento rural sustentável, aos conflitos
territoriais, que reforçam concepções de cidade como ambiente construído e artificial,
como impossibilidade, ou como entrave ao desenvolvimento das práticas desenvolvidas por
camponeses e povos tradicionais (Almeida; Costa, 2014; Coutinho; Costa, 2011).
A definição da legislação brasileira, que considera o rural e o urbano como dois
campos distintos e é orientador para a construção de estatísticas oficiais sobre a população
nacional e a formulação de políticas públicas, também não contribui para visibilizar a
multiplicidade de cenários que permeiam e imprimem complexidade a este debate, uma
vez que os perímetros urbanos oficiais dos municípios, principalmente em aglomerações
e regiões metropolitanas, não necessariamente refletem o uso da terra.17
A agricultura urbana indica a existência de algo que não se encaixa no pensamento
que opõe a cidade ao campo e sinaliza a possibilidade de conciliação ou articulação entre
a cidade (vista como lugar de atividades não agrícolas) e a agricultura (vista apenas como
atividade econômica rural). Como argumentam Coutinho e Costa (2011, p. 88),

a cidade não é apenas o lugar da técnica materializada, nem o campo é


apenas o lugar da agricultura e dos ritmos da natureza” e “essa renovação

16 Para uma discussão inicial recente sobre este tema no âmbito da RMBH, ver, entre outros, Costa, Santos
e Costa (2013).
17 Na legislação brasileira, a definição formal do que é zona rural é feita em oposição ou a partir do que é
definido por zona urbana ou zona de expansão urbana, sendo a fronteira entre elas estabelecida pelo
chamado perímetro urbano.

439
conceitual deve ser feita para que as novas relações socioespaciais
entre esses espaços possam ser compreendidas, bem como as novas
territorialidades dela advindas.

Uma segunda questão a considerar na conceituação do urbano refere-se à complexa


ligação entre o processo de urbanização e a industrialização, apontada por Lefebvre como
o motor das transformações da sociedade, o ponto de partida para a reflexão sobre nossa
época, sobre a urbanização e a problemática urbana.
O núcleo urbano está presente desde as primeiras aglomerações humanas, tendo
como essência a reunião, a centralidade: “amontoamento de objetos e de produtos nos
entrepostos, montes de frutas nas praças de mercado, multidões, pessoas caminhando,
pilhas de objetos variados, justapostos, superpostos, acumulados, eis o que constitui o
urbano” (Lefebvre, 1999, p. 108). Assim, a urbanização da sociedade começa antes da
indústria, mas é ela que alavanca o processo. Lefebvre trata esta relação como um duplo
processo ou um processo em dois aspectos, que têm uma unidade, mas são conflitantes.
Uma relação em que é preciso distinguir entre a indução e o induzido e observar a
interação entre os fenômenos induzidos e os indutores (Lefebvre, 2011, p. 16).
Nesta perspectiva lefebvriana, dois aspectos são especialmente destacados por
Monte-Mór (2005) a partir da entrada da indústria na cidade. O primeiro deles se refere
a uma mudança radical no espaço da cidade, que se antes era organizado como lócus
privilegiado da reprodução da sociedade, do excedente econômico, do poder político e
da festa cultural, passa a atender à imposição de uma lógica centrada na produção e às
necessidades da indústria, transformando a própria cidade em produto industrial:

(...) o espaço urbanizado passa então a se constituir em função das


demandas colocadas ao Estado tanto no sentido de atender à produção
industrial quanto, e particularmente, às necessidades da reprodução
coletiva da força de trabalho (Monte-Mór, 2005, p. 6).

O segundo aspecto é a descrição metafórica realizada por Lefebvre de um duplo


processo de implosão e explosão que aconteceu com a cidade industrial:

(...) a implosão se dá na cidadela sobre si mesma, sobre a centralidade do


excedente/poder/festa que se adensa e reativa os símbolos da cidade
ameaçada pela lógica (capitalista) industrial. A explosão se dá sobre o
espaço circundante, com a extensão do tecido urbano, forma e processo
socioespacial que carrega consigo as condições de produção antes restritas
às cidades estendendo-as ao espaço regional imediato e, eventualmente,
ao campo longínquo conforme as demandas da produção (e reprodução
coletiva) assim o exijam (Monte-Mór, 2005, p. 6).

440
Já na década de 1960, buscando compreender o presente a partir do futuro que
ele contém e a sociedade que nasce da industrialização e a sucede, Lefebvre propõe que a
urbanização completa da sociedade é uma virtualidade contida no presente.
Esta proposição teórica é melhor compreendida a partir da diferenciação entre
a cidade e o urbano, que é a terceira consideração que orienta conceitualmente este
artigo. A malha urbana que surge a partir do fenômeno da industrialização não se limita
à sua morfologia ou ao ambiente construído. Tem origem nas cidades, mas não pode ser
confundido com elas, pois corresponde a processos sociais distintos.
Na perspectiva teórica de Lefebvre, as cidades apresentam especificidades:
estabelecer centralidades, ser o local privilegiado do encontro, da criação, onde se acumulam
conhecimentos, técnicas e obras, “uma produção e reprodução de seres humanos, mais
do que uma produção de objetos” (Lefebvre, 2011, p. 53). A ideia da cidade como “obra”,
argumentada por Lefebvre, remete à dialética entre valor de uso (obra) e valor de troca
(produto): “a própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação
irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção
dos produtos” (Lefebvre, 2011, p. 12). Outra especificidade da cidade está no seu caráter
de mediação entre uma ordem próxima e uma ordem distante,18 entre diferentes níveis da
realidade, não podendo ser reduzida a nenhum deles. A cidade como projeção de um nível
geral, da sociedade no seu conjunto, do poder das grandes instituições, dá visibilidade a
esta ordem distante e está contida por ela. Muda quando muda a sociedade. Mas a cidade
também contém um nível específico, das relações imediatas entre pessoas e grupos que se
compõem à sociedade, e responde às mudanças que ocorrem nestas relações diretas. E por
sua vez incide nas transformações da sociedade em geral.
O urbano, que se diferencia da cidade, pode ser compreendido como o tecido re-
sultante da explosão da cidade (e que, ao se estender por espaços regionais, carrega um
caráter de fragmentação e segregação socioespacial), mas também como uma virtuali-
dade que enseja as possibilidades de transformação social (por carregar a práxis política
intrínseca às cidades).
A proposição de urbanização da sociedade a partir da implosão-explosão da cidade
industrial é uma virtualidade contida no presente:

(...) o urbano (abreviação de “sociedade urbana”) define-se, portanto, não


como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira

18 Ordem próxima: relações dos indivíduos em grupos mais ou menos amplos, mais ou menos organizados
e estruturados, relações desses grupos entre eles. Ordem distante: a ordem da sociedade, regida por
grandes e poderosas instituições (Igreja, Estado), por um código jurídico formalizado ou não, por uma
“cultura” e por conuntos significantes (Lefebvre, 2011, p. 52).

441
recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualidade
iluminadora (Lefebvre, 2008, p. 26).

Nesta perspectiva teórica, o urbano em formação não pode ser reduzido ao


urbano-industrial, nem a problemática urbana pode ser reduzida a uma consequência da
industrialização. Lefebvre adverte que esta zona crítica de passagem da era industrial para
a sociedade urbana tem pontos cegos que “antecipam” o virtual (o futuro real), mas que os
“olhos não veem”, por estarem ainda muito próximos da visão, porque ainda olhamos para
a realidade social a partir do pensamento fragmentado do período industrial (Lefebvre,
2008, p. 31). Esse período de transição apresenta ainda simultaneidades e interferências
entre as três eras ou três épocas considerados por Lefebvre ao longo de um eixo espacial e
temporal: o rural (necessidade), o industrial (trabalho), o urbano (a fruição).
Olhar para as interações entre a agricultura e a cidade no mundo contemporâneo
à luz de uma transição entre eras históricas permite inscrever as experiências agrícolas
urbanas como uma possível práxis espacial da sociedade urbana real e virtual, que
devem ser abordadas como uma realidade, a partir de uma aproximação empírica
com as experiências disponíveis, mas também como uma virtualidade, como uma
possibilidade de se repensar a cidade e a sociabilidade urbana e de se reconectar o
campo e a cidade, o urbano e o ambiental.
As práticas agrícolas são mencionadas em antigos registros históricos sobre a origem
das cidades e são atualmente encontradas nos núcleos urbanos e regiões metropolitanas.
Possivelmente o sentido dessas práticas e a relação entre os/as agricultoras/es e a cidade
tenham se transformado ao longo dos tempos. Compreender o que está nos dizendo
sua presença no mundo contemporâneo requer ultrapassar as barreiras impostas pelos
enfoques teóricos que colocam limites para o pensamento e a ação.
No livro A economia das cidades, Jane Jacobs (1969) argumenta que o desenvolvimento
da economia e as cidades teriam se formado, desde suas origens, como uma centralidade
(de produção e de trocas) que produziu o campo e não a partir da necessidade do campo
em trocar o seu excedente (invertendo a sequencia histórica convencional “caça e coleta-
-agricultura-aldeias-cidades-Estados”). Segundo sua provocativa inversão, os primeiros
assentamentos urbanos preagrícolas de caçadores, coletores e comerciantes incubaram no
seu entorno o cultivo de grãos e a criação de animais que posteriormente se descentralizaram
num número significativo e desenvolveram em grande escala.
Esta perspectiva teórica reforça o argumento de que é artificial e imaginária a
separação feita entre comércio e indústria como atividades da cidade e agricultura como
atividade do campo, assinalando que a agricultura sempre fez parte da cidade, desde suas
origens, e possivelmente continuará fazendo, pois fala de uma relação elementar entre

442
as pessoas e a terra, com múltiplos sentidos e significados. Para que sejam consideradas
como parte do “urbano” é necessário transcender a concepção de que os espaços agrícolas
são estranhos à cidade, espaços residuais ou formas arcaicas determinadas a desaparecer.
Outras referências ao incentivo ao cultivo de alimentos na cidade estão associadas
às situações de escassez de alimentos resultantes de crises econômicas, grandes catástrofes e
períodos de guerra, como no período da Revolução Industrial ou no exemplo emblemático
de Cuba, onde a produção urbana de alimentos tem um papel relevante no contexto do
bloqueio econômico. A importância da agricultura urbana nestas conjunturas deve ser
considerada, mas não deve limitar a leitura das práticas agrícolas na contemporaneidade, uma
vez que pode enfocar apenas seu caráter temporário, localizado, de resposta a crises, enquanto
não se superam as condições adversas com o crescimento econômico, a efetivação de políticas
distributivas ou a inserção dos sujeitos destas práticas no mercado formal.
A existência das práticas agrícolas nas periferias urbanas também não deve
ser interpretada apenas como uma estratégia de sobrevivência dos pobres para
complementarem sua alimentação e sua renda; uma expressão das desigualdades
socioespaciais resultantes do modo capitalista de produção do espaço. Fazer a leitura das
práticas agrícolas urbanas apenas à luz da espoliação urbana19 significa ficar preso a um
único sentido, uma única explicação para uma heterogeneidade de espaços e motivações
reveladas pelas pessoas que se dedicam cotidianamente ao cultivo de plantas e criação
de animais nos diferentes contextos urbanos. Ainda que seja fundamental compreender
a articulação entre as contradições do sistema capitalista e a questão urbana, este
enfoque desconsidera a potencialidade de busca de autonomia na esfera produtiva ou de
organização política que a agricultura urbana pode ensejar.
Os enfoques acerca do urbano e da cidade na perspectiva lefebvriana
proporcionam novos olhares para compreender o que a presença da agricultura urbana
no mundo contemporâneo está nos dizendo e identificar pontos cegos que os “olhos
não veem”, na direção do futuro.
Curiosamente, estes olhares convidam para uma inversão provocativa... “fazer uma
leitura da cidade a partir do que a cidade considera estrangeiro”.20 Alterar a condição da

19 Kowarick faz uma leitura do processo de formação das áreas periféricas das metrópoles, com ênfase na
autoconstrução de moradias nas áreas residenciais de baixa renda, como uma “fórmula” do capitalismo
para rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho, compatibilizando uma alta taxa de acumulação
com salários crescentemente deteriorados. O autor utiliza o termo espoliação urbana para se referir ao
“somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo
coletivo, apresentados como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência, e que agudizam
ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho” (Kowarick, 1979, p. 62).
20 Expressão utilizada pelo professor Cassio Hissa no meu exame de qualificação para o Doutorado.

443
agricultura urbana de uma prática marginal, que não tem lugar na cidade, para uma prática
que nutre possibilidades de cidades melhores.
As cidades concentram hoje um enorme número de pessoas que demandam
uma grande quantidade de alimentos, que, por sua vez, podem representar uma grande
porcentagem dos gastos em famílias de baixa renda. A agricultura e a produção de
alimentos não deveriam ser apenas uma questão de interesse para o desenvolvimento
rural e para a economia nacional. Pensar onde e como cultivar alimentos saudáveis e
adequados e experimentar formas de incorporar a agricultura nas cidades e suas periferias
deve ser uma preocupação no campo dos estudos urbanos e do planejamento, das
políticas e da ação dos movimentos sociais urbanos.
A mercantilização da produção de alimentos na sociedade contemporânea gera
contradições, como a fome e o desperdício. A imensa produção de alimentos e a oferta
diversa de produtos nas prateleiras dos supermercados convivem com condições de
insegurança alimentar decorrentes da falta de acesso à comida, dos hábitos alimentares e
da contaminação dos alimentos por agrotóxicos e transgênicos, que afetam não apenas os
pobres, mas o conjunto da sociedade.
A separação do uso da terra, identificando a agricultura como atividade econômica
rural e a cidade como lugar de atividades não agrícolas, contribui para que a agricultura
urbana seja considerada um setor econômico irrelevante para a economia urbana e
se deixe escapar a importância de cultivar alimentos próximos a seus mercados. Nos
processos de planejamento urbano, usualmente não são consideradas as consequencias
da perda de terra agrícola e os possíveis benefícios da manutenção e incentivo a novos
espaços agrícolas (dentro e no entorno das cidades) próximos aos consumidores, com
uso intensivo do solo e produção de alimentos saudáveis e sazonais, voltados para o
mercado local, e sua associação a outras atividades econômicas e novas funções.
A integração da agroecologia no planejamento urbano e na agenda da reforma
urbana, seja como um uso temporário ou como um uso permanente do solo, é ainda
pouco explorada, ainda que exista, nas regiões metropolitanas, muita terra improdutiva e
subutilizada, seja ela loteada ou não.21 Nesse sentido, é importante problematizar o ideário
da reforma urbana, fundamentado na economia política da urbanização, que considera
a permanência de espaços não construídos no tecido urbano como uma distorção do
processo de produção do espaço e como um desperdício de recursos públicos investidos

21 Uma discussão inicial nesse sentido foi recentemente apresentada no III Seminário Nacional sobre
o Tratamento de Áreas de Preservação Permanente em Meio Urbano e Restrições Ambientais ao
Parcelamento do Solo (Almeida; Costa, 2014), argumentando como a agricultura urbana pode ser um
enfoque contemporâneo para aproximar a oposição frequentemente encontrada entre as noções de
urbano e ambiental (Costa, 2000; Costa; Costa, 2005).

444
em urbanização, bem como a visão das cidades apenas como consumidora de recursos e
exportadora de resíduos (Smit, 2000; Santandreu; Perazzoli; Dubbeling, 2002), ou espaços
mortos do ponto de vista ecológico (Monte-Mór, 1994). Esta aproximação da agricultura
urbana com a agenda da sustentabilidade e do planejamento urbano deve ser feita de forma
crítica para não ser capturada como um discurso de marketing oportunista para a gestão
das cidades sustentáveis, uma solução técnica e consensual para os problemas urbanos na
perspectiva da economia verde e da modernização ecológica, ou pelo imaginário simbólico
que remete ao conceito de “cidade jardim” de Ebenezer Howard.
O “direito à cidade”, tema central na obra de Lefebvre, chama a atenção para a luta pela
cidade como uma ação política que ressalta os atributos próprios da cidade e se manifesta
como direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (distinto do direito
à propriedade) (Lefebvre, 2011, p. 134). Este direito deve ser entendido como o direito “à
vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida
e empregos do tempo que permitem o uso pleno e interior desses momentos e locais”
(Lefebvre, 2011, p. 139) e se articula à luta pela afirmação das diferenças frente aos processos
de homogeneização de espaços e modos de vida resultantes do modo de produção capitalista.
Na RMBH, um conjunto de práticas agrícolas produzem espaços vividos que
resistem, se transformam ou nascem a cada dia, revigorando modos de vida centrados
na reprodução da vida e acentuando diferenças frente as tendências homogeneizantes da
urbanização centradas na reprodução do capital. Anunciam possibilidades de se cultivar
a cidade como lugar possível da convivência humana e da coexistência com a natureza
e clamam por mais atenção neste “urbano”, entendido como o local privilegiado do
encontro, da criação e do surgimento de ações coletivas. E por que não, fazem pensar que
as cidades explodidas, cultivadas pela práxis da agricultura urbana, podem semear a vida
no tecido urbano que se estende até espaços distantes e nos fragmentos que se projetam
pelo espaço metropolitano.

REFERÊNCIAS
ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In: ACSELRAD, Henri;
HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2004.
ALMEIDA, Daniela Adil Oliveira de; COSTA, Heloísa Soares de Moura. Agricultura urbana: uma
aproximação possível entre a questão ambiental e a questão urbana. In: APP Urbana 2014 - III Seminário
Nacional sobre o Tratamento de Áreas de Preservação Permanente em Meio Urbano e Restrições
Ambientais ao Parcelamento do Solo, 2014, Belém. A dimensão ambiental da cidade. Belém: UFPA, 2014.
v. 1. p. 1.

445
ALMEIDA, Daniela Adil Oliveira de; MORAIS, Lidia Maria de Oliveira; PAIXÃO, Lorena Anahi
Fernandes da. Articulação metropolitana de agricultura urbana: espaços e saberes da Agroecologia em Belo
Horizonte. Revista Agriculturas: Experiências em Agroecologia, Rio de Janeiro, v. 9, p. 23-28, 2012.
ALMEIDA, Luiz Felype Gomes de Almeida; MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Renda fundiária e
regulação imobiliária: dos aspectos teóricos à (quase) prática do Estatuto das Cidades. In: MENDONÇA,
Jupira; COSTA, Heloisa Soares de Moura (Org.). Estado e capital imobiliário: convergências atuais na
produção do espaço urbano brasileiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. p. 275-300.
COSTA, Geraldo Magela; SANTOS, Reinaldo Onofre; COSTA, Heloisa Soares de Moura. Reflexões
metodológicas sobre a relação rural-urbano a partir da teoria e de evidências socioespaciais da RMBH.
Geografias, v. 9, n. 2, p. 104-120, 2013.
COSTA, Heloísa Soares Moura. Desenvolvimento urbano sustentável: uma contradição de termos? Revista
Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 2, p. 55-71, mar. 2000.
COSTA, Heloísa Soares Moura; ALMEIDA, Daniela Adil Oliveira de. Agricultura urbana: possibilidades
de uma práxis espacial? Cadernos de Estudos Culturais, v. 4, p. 61-68, 2012.
COSTA, Heloísa Soares Moura; COSTA, Geraldo Magela. Repensando a análise e a práxis urbana:
algumas contribuições da teoria do espaço e do pensamento ambiental. In: DINIZ, C. C.; LEMOS, M. B.
(Org.). Economia e território. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 362-382.
COUTINHO, Maura Neves; COSTA, Heloisa Soares de Moura. Agricultura urbana: prática espontânea,
política pública e transformação de saberes rurais na cidade. Geografias, v. 13, p. 81-97, 2011.
GOMES, Ângela Maria da Silva. Rotas e diálogos de saberes da etnobotânica transatlântica negro-africana:
terreiros, quilombos, quintais da Grande BH. 218 f., enc.: Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Departamento de Geografia, 2009.
HAMILTON, Andrew J. et al. Give peas a chance? Urban agriculture in developing countries. A review.
Agron Sustain Dev., 2013.
JACOBS, Jane. The economy of cities. New York: Random House, 1969.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991a.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1991b.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2011.
MOK, Hoi-Fei et al. Strawberry fields forever? Urban agriculture in developed countries: a review. Agron
Sustain Dev., 2013.
MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar
ambiental. In: SANTOS, M. et. al. (Org.) Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec/Anpur,
1994. p. 169-181.
MONTE-MÓR, Roberto Luis de Melo. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Belo Horizonte:
Cedeplar, 2005. (Texto para Discussão, 281). Disponível em: <http://www.cedeplar.ufmg.br/pesquisas/
sub_pes_tex_dis.php>.

446
MOUGEOT, Luc J. A. Agropolis: the social, political and environmental dimensions of urban agriculture.
Earthscan and the International Development Research Centre (IDRC), 2005.
MOUGEOT, Luc J. A. Urban agriculture: definition, presence, potential and risks. In: BAKKER, Nico et
al. (Ed.). Growing cities, growing food: Urban agriculture on the policy agenda. A reader on urban agriculture.
Feldafing: German Foundation for International Development, 2000.
PEREZ-CASSARINO, Julian. A construção social de mecanismos alternativos de mercados no âmbito da Rede
Ecovida de Agroecologia. 450f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-
Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Curitiba, 2012.
REDWOOD, Mark. Agriculture in urban planning: generating livelihoods and food security. Earthscan and
International Development Research Centre (IDRC), 2009.
SANTANDREU, Alain; PERAZZOLI, Alberto Gómez; DUBBELING, Marielle. Biodiversidade, Pobreza
e Agricultura Urbana na América Latina. Revista Agricultura Urbana, n. 6, p. 14-20, mar. 2002. Disponível em:
<http://www.ruaf.org/node/218 Acesso em: 30 out. 2012.
SANTANDREU, Alain; LOVO, Ivana. Panorama da agricultura urbana e periurbana no Brasil e diretrizes
políticas para sua promoção: identificação e caracterização de iniciativas de agricultura urbana e periurbana
em regiões metropolitanas brasileiras, 2007. mimeo.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez,
2008.
SANTOS, Milton. Espaço e método. 5. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
SMIT Jac; RATTA Annu; NASR, Joe. Urban agriculture: food, jobs and sustainable cities. UNDP, New York,
1996.
SMIT, Jac. Urban agriculture and biodiversity. Urban Agriculture Magazine, Leusden, n. 1, Maiden Issue, July
2000. Disponível em: <http://www.ruaf.org/node/107> Acesso em: 30 out. 2012.
SOJA, Edward. Thirdspace. Journeys to Los Angeles and other real-and-imagined places. Oxford: Blackwell,
1996.
SOJA, Edward. Postmetropolis. Critical studies of cities and regions. Oxford: Blackwell, 2000.
ZHOURI, Andrea; LASCHEFSKI, Klemens. Desenvolvimento e conflitos ambientais: um novo campo
de investigação. In: ____. (Org.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2010. p. 11-24.

447
Economia popular e solidária na
contemporaneidade: a heterogeneidade
como recurso
Sibelle Cornélio Diniz

Introdução

As ideias de economia popular e economia solidária ganharam notoriedade na América


Latina na década de 1990, em meio ao debate crítico sobre os impactos da globalização
sobre os países periféricos. O contexto de desemprego estrutural resultante da crise do
sistema fordista abre espaço para um conjunto de formas consideradas “alternativas” ao
assalariamento formal. Duas décadas depois, a persistência de unidades produtivas carac-
terizadas por vínculos pessoais e/ou familiares, muitas vezes informais e marcados pela
reciprocidade, garante a relevância da discussão nos países latino-americanos. O recente
apoio dos governos populares favorece esse quadro (Coraggio, 2013a).
Este artigo discute a atualidade das concepções de economia popular e solidária
no contexto da acumulação flexível, problematizando sua configuração atual no Brasil a
partir da noção de “circuitos da economia urbana” proposta por Milton Santos em 1979.
Por fim, apresenta-se a discussão recente sobre as possibilidades de transformação dadas
pela economia popular e solidária.

Configuração recente do circuito inferior da economia urbana

Em fins da década de 1970, Milton Santos apontou para a existência, nas cidades dos paí-
ses subdesenvolvidos, de dois circuitos econômicos. A origem dessa configuração estaria
nos processos de industrialização e de modernização – seletiva e incompleta – do século
XX, guiados por firmas multinacionais intensivas em tecnologia e geradoras de um nú-
mero limitado de empregos. O espaço dos países subdesenvolvidos, ao se organizar e se
reorganizar em função de interesses externos, caracteriza-se como descontínuo, instável
e multipolarizado. Cria-se assim um circuito da economia urbana altamente beneficiado
pelas modernizações, e outro que só parcialmente se beneficia, ou absolutamente não se
beneficia, do progresso técnico e das vantagens a ele relacionadas.
O primeiro circuito, chamado “superior”, é composto principalmente de atividades
capital-intensivas, em grande parte imitativas, de produção em grande escala, articulada
para fora da cidade e da região, e tendo como objetivo principal a acumulação de capital.
É formado pelo comércio e indústria para exportação, indústria urbana moderna, comér-
cio e serviços modernos, negócios bancários, comércio atacadista e transporte. Já o cir-
cuito “inferior” abrange as atividades de pequena dimensão, principalmente serviços não
modernos abastecidos pelo comércio em pequena escala, intensivos em trabalho e com
relevante potencial criativo e articulação na cidade e região. Trata-se primordialmente da
pequena produção manufatureira, em grande parte artesanal, e do comércio não moder-
no, além das atividades domésticas.
No circuito inferior, prevalece o trabalho familiar e autônomo, organizado em
unidades produtivas de pequeno porte. Enquanto no circuito superior os preços são
definidos nos mercados oligopolizados, no inferior prevalecem a barganha e os acordos
pessoais, levando a maior margem de variação. A noção de lucro também é distinta entre
os circuitos. No primeiro caso, a acumulação de capital é essencial para a continuidade da
atividade e o acompanhamento dos avanços tecnológicos. No segundo, prevalece a lógica
do curto prazo. A tarefa primordial é “sobreviver e assegurar a vida familiar diária, bem
como participar, o quanto possível, de certas formas de consumo peculiares ao moderno
modo de vida” (Santos, 2008, p. 102).
A sobrevivência do circuito inferior depende de sua adaptação às mudanças con-
junturais. Sua alta capacidade de adequar-se às variações de demanda é dada pela mobi-
lidade, tanto da mão de obra quanto do capital empregados. A mudança de atividade é
facilitada pela pequena quantidade de capital investido. A precariedade das instalações ou
sua localização no domicílio de residência facilita sua readaptação. Os vínculos informais
de emprego e a baixa necessidade de qualificação permitem a contratação de trabalhado-
res em momentos de expansão e, em seguida, sua demissão.
A relação entre os dois sistemas de fluxos da economia urbana é determinada por
condições históricas gerais, ligadas à penetração das atividades modernas no território,
e pelo Estado, que atua como intermediário entre os agentes inovadores e as realidades
regionais (Santos, 2008). É o circuito superior que ocupa posição privilegiada diante do
apoio governamental e do crédito. Por esse motivo, as unidades do circuito inferior muitas
vezes recorrem a arranjos de ajuda mútua.

450
Os circuitos convivem em relações de complementaridade e competição, embora
seja nítida a dependência do primeiro em relação ao último. Ao rejeitar a denominação
“setor moderno” e “setor tradicional”, o autor esclarece que ambos são fruto do mesmo
processo: a difusão da informação e do consumo ocorrida a partir da segunda metade do
século XX e que leva à transformação de todo o aparelho de produção. Do mesmo modo,
rejeita a noção de “dualismo”, embora assuma ser este o ponto de partida de sua teoria.1
Para ele, o que se verifica não são formas de produção com idades tecnológicas diferen-
tes coexistindo no espaço. Trata-se de formas diferentes de combinações entre um novo
modelo de produção, distribuição e consumo, e a situação preexistente – “trata-se de uma
aceitação da modernização em diferentes graus” (Santos, 2008, p. 55).
Silveira (2010; 2011) discute a configuração atual dos circuitos da economia
urbana nas cidades latino-americanas, enfatizando o recente fortalecimento do circuito
superior e seu distanciamento do inferior. A esse movimento a autora atribui o cres-
cente uso corporativo dos territórios nacionais pelo primeiro,2 sob a égide do meio
técnico-científico-informacional. Os avanços tecnológicos e organizacionais permi-
tem ao circuito superior ocupar novas áreas de produção, aumentando seu controle
no território. Tal expansão revela, ainda, um acesso privilegiado aos bens públicos e um
uso hierárquico dos bens privados, redefinindo o valor dos capitais, da tecnologia e das
organizações para aqueles que não conseguem acompanhar seu curso. É no circuito
superior que estão os motores da nova divisão internacional do trabalho, pautada na
técnica, ciência, informação e finanças (Silveira, 2007).
Nas décadas recentes, o circuito superior cresce gerando poucos empregos e ex-
pandindo o consumo. A compra de insumos de países como a China, a preços baixos,
permite reduzir os custos sem reduzir os preços finais. A influência sobre os meios de co-
municação é um fator a corroborar a hegemonia do circuito superior, ao “desqualificar”
marcas e produtos “superados” (Silveira, 2011).
Enquanto o circuito superior se distancia do inferior, fomenta um conjunto de ati-
vidades pelas quais o capital hegemônico não se interessa a priori, ligadas ao chamado
“circuito superior marginal”, que ganha espaço e se fortalece. Trata-se dos serviços produ-

1 Nesse sentido, rejeita também a noção de informalidade, como tratam Oliveira (2008) e Montenegro (2006).
2 “Se tratam de corporações globais e multisetoriais que abrangem petróleo, gás e energia, indústria
automotiva, telecomunicações, mineração, siderurgia e metalurgia, comércio atacadista e varejista, e ainda
bancos e seguradoras, fundos de investimento e pensão, indústrias de alta tecnologia, empresas de consultoria
e outras produtoras de informação estratégica, propaganda e marketing, administração e logística, grandes
importadores e exportadores, grandes grupos de entretenimento. Enfim, holdings integradas por empresas
industriais, comerciais e de serviços avançados (Sassen, 2007) que necessitam de um território moderno e,
por tanto, exercem influencia sobre as políticas (Silveira, 2011, p. 4, tradução nossa).

451
tivos e da produção de insumos intimamente ligados à técnica e organização do circuito
superior (transportes, consertos, distribuição, abastecimento, contabilidade, assessoria,
propaganda, produção de certos insumos). São atividades concentradas nas metrópoles e
nas cidades médias onde o circuito superior avança (Silveira, 2010; 2011).
O circuito inferior, nesse contexto, cresce e se mantém a partir do desemprego
estrutural, de um lado, e da insatisfação quanto às demandas (não satisfeitas) criadas
pela produção hegemônica, de outro. Esse movimento cria novas formas de trabalho
– criativas e imitativas – que permitem à maior parte dos trabalhadores sobreviver
por meio da ocupação e, ao mesmo tempo, consumir bens e serviços de menor valor
agregado. Tal situação é, de um lado, caracterizada pela subordinação e dependência
do circuito inferior em relação ao superior. As configurações territoriais evidenciam
as distinções entre os circuitos quanto a tecnologia, finanças, informação, capacidade
decisória e incentivo estatal (Silveira, 2010; 2011).
As interdependências, entretanto, parecem maiores, como evidenciam, por exem-
plo, as novas localizações das cadeias comerciais em áreas periféricas de consumo po-
pular, antes reservadas aos pequenos capitais, o crédito agora concedido pelos grandes
bancos às camadas mais empobrecidas, o uso das técnicas contemporâneas nas atividades
do circuito inferior como telefonia móvel, informática, câmeras, instrumentos, entre ou-
tros (Silveira, 2004). Montenegro (2006) aponta ainda o crescente uso da publicidade
– cartões de visitas, banners, pequenos anúncios – e acesso ao sistema bancário –, uso de
cheques e cartões de crédito e débito – pelo circuito inferior.
Dito de outro modo, no período contemporâneo o circuito inferior se expande,
mas também se redefine ao ser cada vez mais influenciado pelas variáveis-chave do siste-
ma: a informação, a técnica/a ciência, a publicidade e as finanças/o crédito. O crescimen-
to do circuito inferior, sobretudo nas áreas metropolitanas, é associado ainda às reformas
neoliberais dos anos de 1990 e à terceirização (Montenegro, 2006).
Embora seja crescente a distância entre os circuitos, por outro lado, as técnicas mais
flexíveis têm criado um leque de possibilidades de trabalho e resistência para os circuitos
inferior e superior marginal. A coexistência dos circuitos implica um espaço que é ao mes-
mo tempo dividido e compartilhado, abrindo espaço para a convivência e a expressão.

Mas essa desigualdade estrutural da cidade – que, aliás, é o que permite


continuar asseverando a existência de dois circuitos da economia urbana
– é também funcional porque, no presente, as divisões territoriais do traba-
lho são obrigadas a compartilhar o mesmo pedaço do território. A cidade
é o reino da práxis compartida ou, em outras palavras, a manifestação mais
visível do acontecer solidário, isto é, a realização compulsória de tarefas co-
muns mesmo que o projeto não seja comum (Santos, 1996). Poderíamos

452
dizer que o espaço urbano é dividido mas, ao mesmo tempo, compartilha-
do. É nesse contexto que a cidadania poderia ser discutida nos seus verda-
deiros limites e possibilidades históricas (Silveira, 2010, p. 10).

Como aponta Arroyo (2008), a multiplicidade de trabalhos que o circuito inferior


reúne agrega riqueza e dinamismo à economia e à vida urbanas. O trabalho no circui-
to inferior compõe práticas ligadas ao dia a dia da rua, da praça, do bairro, criando uma
pluralidade de expressões e de códigos, diversidade esta que expõe a tensão e o conflito,
definindo a força das metrópoles (Arroyo, 2008).

Com a globalização amplia-se a variedade de tipos econômicos, culturais,


religiosos e linguísticos, multiplicam-se os modelos produtivos, de circu-
lação e de consumo, segundo qualificações e quantidades, e também au-
menta a variedade de situações territoriais. Na realidade, tais situações se
submetem a constantes mutações e encobrem uma rica, variada e sempre
renovada divisão do trabalho e divisão territorial do trabalho. Nessas con-
dições, a metrópole está sempre se refazendo: na forma, na função, no dina-
mismo e no sentido. Essa riqueza do inesperado constitui a possibilidade
de construção de novos futuros (Santos; Silveira, 2001, p. 287).

Salvador (2011) aponta a pouca atenção conferida à teoria dos circuitos da econo-
mia urbana no estudo das cidades brasileiras, a despeito de suas contribuições para a com-
preensão do circuito inferior em sua complexidade, diversidade e constante mutação.3 A
racionalidade característica do circuito inferior se explicita com o processo de fragmenta-
ção do trabalho característico da acumulação flexível, tratada a seguir.

A economia popular e solidária na acumulação flexível

A reconfiguração das relações econômicas em âmbito global, a partir da década de 1970, lan-
çou luz às formas produtivas atuantes em pequena escala, marcadas pelas relações de trabalho
flexíveis e pelos laços pessoais. Usualmente compreendidas como desintegradas do sistema
capitalista e fadadas ao desaparecimento com o processo de desenvolvimento, tais formas
ganham relevância nos mercados de trabalho de todo o mundo, mesmo nos países centrais.
Nos países periféricos, o advento da produção flexível, ou pós-fordismo, signi-
ficou um impulso ao circuito inferior e à economia popular. Essas formas, que sempre
responderam pela reprodução de boa parte da população, ganham espaço com a flexi-
bilização das relações de produção.

3 Exceções são os estudos de caso como os de Montenegro (2006), Bicudo Jr. (2006), Serpa et al. (2007),
Trindade Jr. (2005) e Cataia e Silva (2013).

453
Em oposição à rigidez das regras e processos que marcaram o Fordismo e suas
práticas de controle do trabalho,4 tecnologias, hábitos de consumo e configurações de
poder político-econômico, o regime de acumulação que se instala a partir dos anos de
1970 se apoia na flexibilidade. Na acumulação flexível, a aceleração do fluxo de infor-
mações altera os processos de tomada de decisão, fazendo com que o sistema se adapte
mais rapidamente às mudanças. Ao mesmo tempo, acelera-se a competição e enfraque-
ce-se o poder sindical (Harvey, 2009).
Diante da reestruturação do mercado de trabalho, acentua-se a vulnerabilidade
dos grupos desprivilegiados – as mulheres, os menos escolarizados, os migrantes. Esses
grupos veem nos pequenos negócios uma alternativa de inserção no sistema:

Por exemplo, a subcontratação organizada abre oportunidades para a for-


mação de pequenos negócios e, em alguns casos, permite que sistemas
mais antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e pa-
ternalista (“padrinhos”, “patronos” e até estruturas semelhantes à máfia)
revivam e floresçam, mas agora como peças centrais, e não apêndices do
processo produtivo (Harvey, 2009, p. 145).

Para Harvey (2009), tal reestruturação das formas produtivas constitui uma trans-
formação do modo de controle do trabalho e do emprego, com o solapamento da organi-
zação da classe trabalhadora e a transformação da base objetiva da luta de classes. A nova
configuração das relações de produção e de trabalho é funcional ao capitalismo, permitin-
do uma maior adaptabilidade por meio da maior dispersão, mobilidade geográfica e das
respostas flexíveis nos mercados de trabalho e de consumo.
Na periferia, tal processo faz crescer o “setor informal urbano”, que atua tanto como
colchão amortecedor anticíclico quanto como “exército industrial de reserva” (Coraggio,
2003). O debate sobre a informalidade nesses países tem seu foco nos microempreendi-
mentos mercantis formados primordialmente por trabalhadores oriundos do mercado
de trabalho formal ou da economia doméstica (mulheres). Esse setor informal passa a
competir pelas demandas de serviços originadas no processo de modernização.
Já desde fim dos anos de 1970, intelectuais latino-americanos como Luis Razeto e
Jose Luis Coraggio propunham uma nova maneira de situar a questão, a partir do conceito
de economia popular. Esta não se definiria apenas pela categoria social de seus atores (os ex-
cluídos do mercado de trabalho formal), mas pela qualidade de suas relações e valores e por
sua escala de organização, pequena o suficiente para permitir relações econômicas interpes-
soais, não necessariamente intermediadas pelo mercado. Ao enfatizar tais aspectos, buscam

4 “a disciplinação da força de trabalho para os propósitos de acumulação de capital” (Harvey, 2009, p. 119).

454
diferenciar a “economia popular urbana” do “sistema informal urbano” (Coraggio, 2003).

Ao contrário da economia informal, cuja racionalidade é a flexibilização


das relações entre capital e trabalho, o sentido ético-político das ativida-
des da economia popular é a reprodução ampliada da vida (e não do ca-
pital) (Tiriba, 2003, p. 43).

Para Coraggio (2000; 2003), as células da economia popular são as unidades


domésticas que dependem principalmente do exercício de seu trabalho para se repro-
duzirem biológica e culturalmente. A unidade doméstica, enquanto organização eco-
nômica característica da economia popular (fundada sobre relações de parentesco, de
afinidade, étnicas etc.), organiza os recursos e as capacidades de seus membros (seu
fundo de trabalho) para gerir a satisfação de suas necessidades, tendo como objetivo
último a “reprodução ampliada da vida”.5
Lisboa (2004) identifica Milton Santos como o precursor da categoria economia
popular, pois esta retoma um conjunto de características que o autor atribui ao “circui-
to inferior da economia urbana”. A economia popular baseia-se no trabalho familiar, por
conta própria, artesanal, na autoconstrução da moradia, nos micro e pequenos empreen-
dimentos e na economia camponesa. Sua dinâmica combina a produção doméstica com
as relações mercantis, numa difusa conexão entre valores de uso e valores de troca que não
caminha para o desaparecimento nem para a desconexão com o mercado.
Na visão de Coraggio (2009), as economias latino-americanas não são economias
de mercado puras, e nem suas sociedades, sociedades de mercado completas. Tampouco
o mercado é ali a única instituição que media as relações entre tais sociedades e a base
natural. Elas seriam economias mistas, formadas por três setores ou subsistemas: a eco-
nomia empresarial capitalista, orientada para a acumulação privada de capital, a econo-
mia popular, orientada para a reprodução da vida das unidades domésticas, e a economia
pública, orientada por uma combinação de necessidades sistêmicas. A economia popular
constitui um conjunto heterogêneo de unidades que sempre teve papel relevante na re-
produção de grande parte dos trabalhadores, articulando-se de maneiras diversas às ou-
tras duas esferas.

5 O conceito de reprodução ampliada da vida é apresentado em oposição ao de reprodução simples.


A reprodução simples equivale à manutenção da vida dos membros da unidade doméstica em um
nível aceito como mínimo em cada época e cultura. Já a reprodução ampliada denota uma melhora
de qualidade de vida ao longo do tempo, não apenas por aumento dos rendimentos, mas também do
acesso aos bens públicos, melhor qualidade do consumo, melhores padrões de relação social, melhores
condições de moradia etc. (Coraggio, 2000).

455
Para Tiriba (2003), a economia popular se manifesta em diferentes tempos histó-
ricos, integrando-se aos modos de produção ou modelos de desenvolvimento econômi-
co de forma hegemônica ou subalterna. Não é um fenômeno exclusivo das sociedades
capitalistas, estando presente nas sociedades de caçadores e coletores, escravistas, socialis-
tas etc. Mas é no contexto do modelo neoliberal de acumulação de capital que ela se apre-
senta, fortemente, como “economia dos pobres”, pois é quando se explicita a recorrência à
mesma como estratégia de sobrevivência.

Recentemente descobertas pelos intelectuais e governos, as atividades


que dão substrato à economia popular são, em verdade, muito antigas,
porém não eram visíveis para o olhar regido pelos parâmetros da razão
iluminista. A economia popular era (e continua sendo) incompreensível
(e desvalorizada) pelos parâmetros da razão econômica-social dominan-
te. O olhar iluminista (em especial o pensamento periférico, o qual tende
a reificar ainda mais o moderno) sempre desqualificou as práticas mais
tradicionais, nas quais em geral não existia o sentimento de insegurança
com relação ao sustento da família. Nos países semiperiféricos, em par-
ticular, a acumulação capitalista não levou à desorganização da pequena
produção mercantil: sempre tivemos um grande conjunto da população
“sobrevivendo” às margens do mercado numa economia de “subsistên-
cia”, subordinada sem dúvida (Lisboa, 2004, p. 13).

Tratando a economia chilena, Razeto (1993)6 classifica as atividades da economia


popular em cinco grupos: a) soluções assistenciais, como mendicância de rua, e sistemas
organizados de assistência pública ou privada orientados àqueles em extrema pobreza;7 b)
atividades ilegais como prostituição, pequenos furtos, venda de drogas etc.; c) iniciativas
individuais informais como comércio ambulante, serviços domésticos, entregadores, guar-
dadores de automóveis, coletores e vendedores de material reciclável etc.; d) microempre-
sas e pequenos negócios de caráter individual, familiar, ou de dois ou três sócios como lojas
de bairro, oficinas de costura, bares etc., geralmente dirigidos pelos próprios proprietários;
e) Organizações Econômicas Populares (OEPs): pequenos grupos, de caráter associativo
e solidário, geralmente surgidos de paróquias, comunidades, sindicatos, partidos e outras
organizações populares. As OEPs seriam o polo mais avançado da economia popular, uma

6 Razeto et al. (1983) fazem uma extensa análise da economia popular existente no Chile a partir da
instalação do regime militar no país, em 1973. O modelo econômico que acompanha o regime,
de caráter neoliberal, promoveu excessiva concentração de renda e marginalização no mercado de
trabalho. As atividades da economia popular tratam então, primordialmente, de enfrentar o problema de
subsistência e de satisfação das necessidades básicas, sobretudo de alimentação.
7 Nesse sentido, diferencia-se de Coraggio. Este último autor associa a assistência social e os mecanismos
estatais de redistribuição à “economia solidária”.

456
vez que têm como tendência (ainda que não necessariamente como realidade) um modo
de produzir, distribuir e consumir bens e recursos alternativo ao capital (Tiriba, 1999). Ca-
racterística relevante dessas organizações são seus valores de solidariedade e ajuda mútua,
além da combinação de atividades econômicas, sociais, culturais e educativas.
Segundo Razeto, portanto, nem toda economia popular é de solidariedade, e nem
a economia de solidariedade é necessariamente popular, uma vez que a solidariedade na
prática econômica pode se dar também em outros âmbitos. A interseção entre essas duas
esferas seria a “economia popular de solidariedade” (Razeto, 1993). “Existem na econo-
mia popular embriões do que pode ser uma economia solidária, pois nas práticas dos se-
tores populares encontramos uma racionalidade econômica fundada no trabalho e na co-
operação” (Lisboa, 2004, p. 15). O modelo de organização proposto aspira à autonomia e
à transformação socioeconômica e político-cultural (Razeto et al., 1983).
No Brasil, a economia solidária é compreendida a partir dos empreendimentos
coletivos onde predominam a cooperação na atividade econômica, o uso em comum dos
meios de produção e a autogestão (Gaiger, 2009). As unidades básicas são as cooperati-
vas, associações e os grupos informais onde a distinção entre capital e trabalho é minimi-
zada. A autogestão implica que os meios de produção sejam de propriedade e controle
coletivos e que as decisões acerca das normas de funcionamento e dos rumos a serem
seguidos pelo empreendimento solidário sejam tomadas com base na participação de-
mocrática de cada indivíduo. Assim, a administração, a produção, seus meios e resultados
pertencem a todos, de modo que se fazem necessárias práticas solidárias e promotoras de
autonomia nas organizações (Verardo, 2003).
A economia solidária se coloca então como alternativa pós-capitalista fundada em
relações de solidariedade internas e externas aos empreendimentos (Singer, 1997; 2002).
No Brasil, apresenta-se como movimento organizado, ganhando notoriedade após sua
inclusão na agenda das políticas públicas do Governo Federal, no início dos anos de 2000
(Praxedes, 2009).
Por abrangerem formas diversas de produção, flexíveis no que diz respeito aos cri-
térios de seleção dos trabalhadores, horário e local de trabalho, entre outros, a economia
popular e a economia solidária surgem como alternativas para o público que não se “en-
caixa” em processos de emprego formal e assalariamento, por sua escolaridade, experi-
ência, configuração familiar etc. É reconhecido na literatura que tais organizações têm se
colocado como estratégias de sobrevivência perenes por parte da população vulnerável,
como apontam Abramovay et al. (2003):

É bem verdade que parte muito expressiva dos nano e microempreendedo-


res iniciam suas atividades por falta de alternativa no mercado de trabalho

457
(...). Mas a perenidade dos negócios, os vínculos de proximidade em que
se apoiam, a experiência adquirida em sua gestão e as funções sociais que
preenchem não permitem que sejam encarados como uma forma de orga-
nização transitória e obsoleta a ser sepultada juntamente com as péssimas
condições sociais que hoje a caracterizam (Abramovay et al., 2003, p. 236)

Como apontam Razeto et al. (1983), embora a participação em uma organização


econômica popular seja em boa parte dos casos a única alternativa no curto prazo para en-
frentar a necessidade imediata de sobrevivência, é comum que seus participantes se identifi-
quem progressivamente com essa solução, passando inclusive preferi-la a outras, economi-
camente mais rentáveis, uma vez que aprendem a valorizar o trabalho por conta própria, sem
patrão, em um ambiente de maior confiança e solidariedade, e ainda devido às possibilida-
des de desenvolvimento cultural, capacitação e convivência oferecidas pelas organizações.
Se o movimento de flexibilização dos mercados de trabalho, de um lado, estimula
o “trabalho abstrato”, subordinado a processos de produção exógenos, embora desvincu-
lado da relação de assalariamento, de outro, encontramos o trabalho autônomo de fato,
quando o trabalhador possui o controle do processo de produção. Enquanto no primeiro
caso pode-se falar em trabalho precário, no segundo, o maior controle sobre o tempo e
sobre o processo de trabalho pode ampliar as possibilidades do trabalho ao potencializar
o conhecimento acumulado e as redes existentes (Lago, 2009).
Nesse sentido, cabe pensar em que medida a economia popular e solidária, em
suas múltiplas faces, apresenta-se como característica permanente das economias latino
-americanas e em que situações ela se configura como trabalho abstrato ou como trabalho
autônomo. Embora seja frequentemente associada a um movimento conjuntural ou tran-
sitório, resultante de processos de desemprego e exclusão, é possível pensá-la como parte
de um processo de organização popular mais amplo e permanente, sugerindo-a como um
recurso para processos alternativos de desenvolvimento. Cabe aqui compreender o real
potencial emancipatório e transformador contido nessas práticas.

“Economia plural”: a heterogeneidade como recurso

Coraggio (2009) associa a persistência das formas da economia popular e solidária na Amé-
rica Latina, ainda, à heterogeneidade estrutural que caracteriza a inserção periférica. Tal he-
terogeneidade tem como causas a incapacidade do mecanismo de mercado de abranger tais
iniciativas (por sua escala, insuficiência de capital etc.) ou a persistência de formas institucio-
nais que protegem a vida das populações que resistem à mercantilização. Por ambos os mo-
tivos, configuram-se organizações econômicas com distintos graus de hibridismo, próprias
das redes de mutualidade-reciprocidade e de administração doméstica, que mantêm redes

458
de relações de autoabastecimento e cuidado fora do mercado, em defesa de sua integridade,
inclusive quando a opção do mercado parece mais vantajosa de imediato.8
Como se tratam de economias mistas com hegemonia capitalista, as economias latino
-americanas se baseiam em valores civilizatórios que legitimam a acumulação ilimitada de
capital e a mercantilização das relações humanas (Coraggio, 2009). Embora a organização
interna das unidades domésticas se oriente pela reciprocidade, a solidariedade não cons-
titui o comportamento predominante em suas relações externas. Sendo assim, ao buscar
reproduzir sua vida em condições sempre melhores, operando no interior de um sistema
com predomínio da cultura capitalista, os comportamentos podem se reorientar para a
busca individual da máxima satisfação, a posse e o consumo ilimitado de mercadorias, a
minimização dos esforços, a concorrência destrutiva, a busca do lucro mediante a explo-
ração do trabalho alheio e a acumulação de capital privado (que pode se tornar um fim
em si mesmo). Nesses contextos, as organizações da economia popular que obtêm êxito
na captação do excedente podem passar a fazer parte da economia empresarial capitalista.
A construção de um sistema econômico em que persistam ou prevaleçam a so-
lidariedade e a reciprocidade se afirma, então, como ação política (Coraggio, 2012a).
A construção desse projeto requer o reconhecimento, conceitual e empírico, de uma
heterogeneidade característica.

[uma heterogeneidade que] longe de ser um empecilho, da perspectiva


da modernidade, é um recurso, tanto pela possibilidade de resolver um
sustento que o mercado livre não consegue, como por ser o campo de
constituição de atores sociais que podem assumir esse projeto de reinsti-
tucionalização dos processos econômicos9 (Coraggio, 2009, p. 16).

As leituras conceituais da economia popular e da economia solidária reconhecem


a diversidade de lógicas presentes nos sistemas econômicos, compreendendo essa hete-
rogeneidade como ponto de partida para um desenvolvimento alternativo ou uma “ou-
tra economia” (Cattani et al., 2009). Coloca-se assim a discussão sobre uma “economia
plural”, marcada pela coexistência de princípios econômicos e de formas institucionais
mediadoras das relações entre os homens e entre estes e a natureza (Laville, 2009).

8 De fato, as formas de solidariedade baseadas no parentesco e no convívio social se mantiveram vivas nos
países do Sul, a despeito de não serem consideradas nos planos de desenvolvimento desses países que,
ao contrário, contribuíram para a substituição dos sistemas tradicionais de reciprocidade pelas relações
ocidentais de mercado (Lisboa, 2004).
9 Recondução dos processos econômicos no sentido de relações solidárias e orientadas ao “bem comum”
(Coraggio, 2012b).

459
Coraggio (2012b) propõe uma leitura atual de Polanyi (2011; 2012) que oriente
a construção de um projeto político na direção de uma economia com mercado distinta de
uma economia de mercado. Nesse sentido, diferencia a “economia popular realmente exis-
tente” da “economia do trabalho”, ideal utópico de um sistema econômico em que predo-
mine a lógica da “reprodução ampliada da vida” em detrimento da lógica de acumulação
de capital. A “economia social e solidária” ou “economia solidária”10 seria o conjunto das
práticas solidárias existentes nas três esferas (economia popular, economia empresarial
capitalista e economia do setor público) e que constituem possíveis embriões da transi-
ção da “economia do capital” para a “economia do trabalho” (Coraggio, 2009).

Há componentes solidários na economia popular, mas esta não é sempre


nem predominantemente solidária. Eles existem, muito importantes, na
economia pública (principalmente as relações de redistribuição progressi-
va). E existem também no setor empresarial privado, ainda que seja uma
solidariedade filantrópica e unilateral. Neste diagrama há uma tensão dada
pela luta hegemônica contra a dominância da lógica capitalista. Avança-se
ampliando o setor de economia solidária, articulando-o como um subsis-
tema orgânico, construído a partir do piso fértil de recursos e relações de
reciprocidade e redistribuição da economia pública e da economia popular
e ampliando seu sentido da reprodução da vida dos membros de cada uni-
dade doméstico ao da reprodução ampliada da vida de todos (solidarieda-
de) (Coraggio, 2013b, p. 18, tradução nossa).

Ao discutir a ação política necessária, Coraggio (2013b) propõe compreender os


sistemas econômicos como construções sociopolíticas e não como resultado de evolu-
ções naturais e necessárias, afastando-se da noção de “sequência de modos de produção”,
segundo a qual todas as sociedades caminham inevitavelmente para uma sociedade de
mercado. Assim como a economia capitalista de mercado foi uma construção política a
partir da Revolução Industrial (Polanyi, 2011), outras construções são possíveis, sobre-
tudo em momentos de desajuste estrutural (Coraggio, 2012a). Discutem-se assim as
possibilidades de (re)orientação da economia pública e da economia popular para uma
economia centrada no trabalho e na racionalidade reprodutiva.

10 Coraggio utiliza os dois termos indistintamente, assumindo a “economia solidária” como algo
próximo do que é chamado na Europa de “economia social”: atividades produtivas que não se
encaixam na distinção habitual entre setor privado (que objetiva o lucro) e setor público (que visa
ao interesse geral); “atividades econômicas concernindo à sociedade de pessoas que busquem
democracia econômica associada à utilidade social” (Defourny, 2009). O uso do termo “economia
social e solidária” na América Latina tem raízes tanto na conceituação de Polanyi quanto na discussão
sobre reciprocidade presente em Mauss (2012) e também no reconhecimento da economia solidária
como prática mais consolidada nesses países, sobretudo no Brasil.

460
Tal construção passa, no entanto, pela superação do modelo de ciência moderno e
da decorrente separação entre a racionalidade científica e o chamado senso comum, pro-
pondo um olhar sobre a experiência e sobre as lacunas e os discursos inviabilizados pelo
paradigma de conhecimento hegemônico. Um olhar inovador nesse sentido pressupõe a su-
peração das dicotomias características do pensamento moderno: natureza/cultura, natural/
artificial, observador/observado. Passa pela compreensão da economia popular e solidária
como produtora de “espaços de fronteira”, produtores de tipos distintos de subjetividade e
de sociabilidade, que interessam a novos olhares e novas proposições (Sousa Santos, 2002).
Passa também por uma outra concepção de desenvolvimento econômico que com-
preenda a heterogeneidade de princípios econômicos e de relações de produção como um
recurso a ser potencializado em uma economia orientada para o trabalho. Trata-se de expan-
dir as concepções de economia, de tecnologia, de ação política e de desenvolvimento.

REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, R. et al. Mercados do empreendedorismo de pequeno porte no Brasil. In: COMISSÃO
ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE. Pobreza e Mercados no Brasil: uma análise de
iniciativas de políticas públicas. Brasília: Department for International Development/CEPAL, Escritório
no Brasil, 2003.
ARROYO, M. M. A economia invisível dos pequenos. Le Monde Diplomatique, ano 2, p. 30-31, 2008.
BICUDO JR., E. C. O circuito superior marginal: produção de medicamentos e o território brasileiro. Depar-
tamento de Geografia. Universidade de São Paulo. São Paulo. Dissertação de Mestrado. 2006.
CATAIA, M.; SILVA, S. C. Considerações sobre a teoria dos dois circuitos da economia urbana na atualida-
de. Boletim Campineiro de Geografia, v. 3, n. 1, 2013.
CATTANI, A. D. et al. (Org.). Dicionário internacional da outra economia. Coimbra: Almedina/CES, 2009.
CORAGGIO, J. L. Da economia dos setores populares à economia do trabalho. In: KRAYCHETE, G. et al.
(Org.). Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia, Petrópolis: Vozes, 2000. p. 91-133.
CORAGGIO, J. L. Economía social y solidaria: el trabajo antes que el capital. Quito: Fundación Rosa Luxem-
burg, 2011.
CORAGGIO, J. L. Karl Polanyi y la outra economía en América Latina. In: ____. Karl Polanyi: Textos
escogidos. Buenos Aires: UNGS/CLACSO, 2012b.
CORAGGIO, J. L. La construcción de Outra Economía como acción política, 2012a. mimeo.
CORAGGIO, J. L. La economia social y solidaria (ESS) em America Latina, 2013a. mimeo.
CORAGGIO, J. L. Las tres corrientes de pensamiento y acción dentro del campo de la economía social y
solidaria. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 15, n. 2, nov. 2013b.

461
CORAGGIO, J. L. ¿Qué significa pasar de la economía popular a la economia del trabajo? Proposta, ano 30,
n. 98, p. 12-20, set./nov. 2003.
CORAGGIO, J. L. Territorio y economias alternativas. In: I Seminario Internacional Planificación Regional
para el Desarrollo Nacional. Visiones, desafíos y propuestas, La Paz, Bolivia, 30-31 de julio de 2009.
DEFOURNY, J. Economia social. In: CATTANI, A. D. et al. (Org.). Dicionário internacional da outra economia.
Coimbra: Almedina/CES, 2009. p. 156-161.
GAIGER, L. I. Antecedentes e expressões atuais da economia solidária. Revista Crítica de Ciências Sociais,
n. 84, p. 81-99, mar. 2009.
HARVEY, D. (1989). Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança social. São Paulo:
Edições Loyola, 2009.
LAGO, L. C. do. Trabalho e moradia na periferia: para uma política urbana economicamente orientada.
Revista em Pauta, v. 6, n. 24, 2009.
LAVILLE, J. L. Economia plural. In: CATTANI, A. D. et al. (Org.). Dicionário internacional da outra economia.
Coimbra: Almedina/CES, 2009, p. 145-149.
LEWIS, A. Economic Development with Unlimited Supplies of Labor. Manchester: School of Economics and
Social Studies, 1954.
LISBOA, A. Socioeconomia solidaria: marco conceitual latinoamericano. Texto para discussão UFSC CNM
02/2004.
MAUSS, M. (1923-1924). Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: ____.
Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974. v. II.
MONTENEGRO, M. R. O circuito inferior da economia urbana na cidade de São Paulo no período da globaliza-
ção. USP, Dissertação de Mestrado, Geografia Humana, 2006.
OLIVEIRA, E. L. Algumas considerações sobre o conceito de setor informal e a teoria dos circuitos da
economia urbana. Geografias, n. 6, p. 54-70, jan.-jun. 2008.
POLANYI, K. (1944). A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
POLANYI, K. A subsistência do homem: e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
PRAXEDES, S. F. Políticas públicas de economia solidária: novas práticas, novas metodologias. Boletim Mer-
cado de Trabalho, IPEA, n. 39, maio 2009.
RAZETO, L. De la economía popular a la economía de solidaridade nun proyecto de desarrollo alternativo. Instituto
Mexicano de Doctrina Social Cristiana, México, 1993. (Colección Diálogo y Crítica).
RAZETO, L. et al. Las organizaciones económicas populares. Santiago: Ediciones PET, 1983.
SALVADOR, D. S. C. de O. A expansão e a redefinição do circuito inferior da economia urbana da cidade
dos países subdesenvolvidos no período atual. In: ANAIS DO XII SIMPÓSIO NACIONAL DE GEO-
GRAFIA URBANA. Belo Horizonte, 2011.
SANTOS, M. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

462
SANTOS, M. (1979). O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos.
São Paulo: EDUSP, 2008.
SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
SASSEN, S. El reposicionamiento de las ciudades y regiones urbanas em una economía global: ampliando
las opciones de política y gobernanza. Eure, Santiago de Chile, v. XXXIII, n. 100, p. 9-34, 2007.
SERPA, A. S. P.; PORTO, G. C. S. Circuito inferior da economia urbana: o contexto das feiras livres de
Itapetinga (BA) e arredores. In: ANAIS DO X SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA.
Florianópolis, 2007.
SILVEIRA, M. L. Da pobreza estrutural à resistência: pensando os circuitos da economia urbana. In:
ANAIS XVI ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS. Porto Alegre: Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB), 2010. p. 1-11.
SILVEIRA, M. L. Globalización y circuitos de la economia urbana em ciudades brasileñas. Cuadernos Del
Cendes, año 21, n. 57, p. 1-21, sep./dic. 2004.
SILVEIRA, M. L. Metrópolis brasileñas: un análisis de los circuitos de la economía urbana. Revista Eure,
Santiago de Chile, v. XXXIII, n 100, p. 149-164, dez. 2007.
SILVEIRA, M. L. Urbanización latinoamericana y circuitos de la economía urbana. Revista Geografica de
America Central (on-line), v. 2, p. 1-17, 2011.
SINGER, P. Economia solidária: geração de renda e alternativa ao liberalismo. Proposta, ano 26, n. 72, p.
6-13, mar./maio1997.
SINGER, P. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
SOUZA SANTOS, B. de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2002.
TIRIBA, L. Economia popular y movimientos populares (y una vez más el trabajo como princípio educati-
vo). Contexto & Educação, Ijuí, n. 54, p. 53-80, 1999.
TIRIBA, L. O trabalho no olho da rua: fronteiras da economia popular e da economia informal. Proposta,
n. 97, jun./ago. 2003.
TRINDADE JR., S. C. Entre o público e o privado: agentes de apropriação do espaço na orla fluvial de
Belém-Pará (Brasil). Scripta Nova, v. IX, n. 194, 2005.
VERARDO, L. Economia solidária e autogestão. Proposta, ano 30, n. 98, p. 56-61, set./nov. 2003.

463
Empreendedorismo individual: uma nova
face do capitalismo contemporâneo?
Júlia de Carvalho Nascimento

Introdução

Com o esgotamento do modo de produção fordista, caracterizado por grande rigidez nas
relações capital-trabalho, um novo regime de acumulação, o flexível, passou a ser adota-
do, gerando maior flexibilidade nos processos de trabalho. Esse novo regime, nos países
subdesenvolvidos, resultou no crescimento daquilo que Milton Santos (1979) define
como “circuito inferior da economia urbana”, circuito no qual as atividades econômicas
informais estão bastante presentes. Diante do desafio de ampliar a formalidade urbana por
meio da inclusão no mercado de trabalho formal, face a esse novo regime de acumulação,
o Estado tem criado novas estratégias de flexibilização dos processos jurídicos na tentativa
de reduzir a informalidade urbana. A criação da figura jurídica do Microempreendedor
Individual (MEI) é um exemplo dessas estratégias.
O MEI, no entanto, não é capaz de contemplar a multiplicidade de formas or-
ganizacionais que compõem o setor informal da economia urbana, já que se limita à
regularização da atividade econômica de um único indivíduo – o microempreendedor
individual – e, no máximo, seu respectivo “empregado”. Tendo em vista as atividades
econômicas informais que compartilham o espaço urbano formal, como a venda am-
bulante, a formalização por meio do MEI pode parecer ser a mais adequada. No en-
tanto, nos espaços urbanos “informais”, como em vilas e favelas, a difusão dessa nova
categoria jurídica encontra grandes empecilhos.
Nesse sentido, a implementação de políticas territoriais1 de apoio ao empreende-
dorismo individual também tem ganhado grande visibilidade no Brasil nos últimos anos.
Essas políticas, em geral, têm como objetivo ampliar a atuação de entidades públicas e
privadas em espaços antes deixados de fora do planejamento urbano formal, como vilas
e favelas, por meio da formalização do comércio. Concebidas a partir de uma lógica de
organização distinta da cidade formal e do planejamento urbano tradicional, as vilas e fa-
velas das grandes cidades brasileiras agregam práticas e racionalidades sociais múltiplas,
configurando espaços de produção e comercialização específicos as suas lógicas.
O programa municipal BH Negócios do Aglomerado da Serra consiste em um
protótipo de política pública que, segundo gestores municipais entrevistados,2 servirá de
modelo para políticas territoriais de fomento ao empreendedorismo individual em todas
as vilas e favelas de Belo Horizonte. Outras capitais3 também têm adotado o mesmo mo-
delo de política, em consonância com as diretrizes federais de redução da informalidade e
de ampliação do acesso ao crédito.
Nesse sentido, objetivo, por meio deste artigo, colocar em questão quais são os efei-
tos da ampliação de atividades comerciais formalizadas em espaços que abrigam lógicas
sociais e produtivas diferentes da cidade formal. Essa reflexão é fruto de minha pesquisa de
Mestrado, em andamento, no Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nesta pesquisa, por meio da abordagem
etnográfica, busco compreender quais são as construções simbólicas dos comerciantes do
Aglomerado da Serra em relação ao processo de formalização estimulado pelo programa
BH Negócios. Serão apresentadas, assim, algumas observações iniciais provenientes de
minha pesquisa em campo, com o objetivo de levantar novas questões em relação à imple-
mentação de políticas de fomento à formalização do comércio em vilas e favelas.
Por fim, busco levantar uma discussão inicial sobre as possibilidades e limites des-
sas políticas de fomento ao empreendedorismo em espaços que possuem lógicas sociais
e produtivas distintas da lógica puramente mercantilista. Essa discussão levará em conta
tanto as diferenças ideológicas existentes entre a política territorial e o comércio no Aglo-
merado da Serra quanto as formas de resignificação pelos comerciantes das práticas de
gestão sugeridas pelo programa BH Negócios.

1 Serão discutidos no presente estudo as políticas territoriais UPP Social e BH Negócios, no Rio de
Janeiro e Belo Horizonte, respectivamente.
2 Foram entrevistados gestores do SEBRAE Minas e da Secretaria de Desenvolvimento da Prefeitura de
Belo Horizonte envolvidos no programa BH Negócios.
3 Rio de Janeiro, Salvador e Belém.

466
A modernização na periferia:
visões e expectativas sobre a informalidade urbana

Para situar a atual fase do capitalismo contemporâneo, e assim contextualizar as políticas re-
centes de formalização, recorrerei a uma análise de David Harvey (1992). Segundo esse au-
tor, com o esgotamento do modo de produção fordista, caracterizado por grande rigidez nas
relações capital-trabalho, o capitalismo contemporâneo passa a adotar um novo regime de
acumulação: o flexível. Esse novo regime tem se apoiado na flexibilidade dos processos de
trabalho, o que exigiu uma reestruturação político-institucional antes vigente: o antigo tra-
balho do tipo regular foi ocupado por trabalhos temporários, parciais e até subcontratados.
Nos países subdesenvolvidos, a reestruturação produtiva se deu de forma bastante
diversificada no território, resultando na abertura das economias nacionais ao capital es-
trangeiro, na privatização de empresas estatais e na limitação do papel do Estado na eco-
nomia a um agente regulador e amenizador das desigualdades sociais. Essas reconfigura-
ções econômicas, políticas e sociais foram responsáveis, nesses países, pelo crescimento
do que Milton Santos (1979) define como “circuito inferior da economia urbana”.
O circuito superior, diferente do inferior, segundo Santos (1979), é caracterizado
pela grande quantidade de mercadorias nele envolvidas, pelo inchaço no setor de serviços,
pela definição de preço condicionada à margem de lucro das empresas, pela necessidade da
publicidade para a demanda por produtos e pela seletividade do consumo. O autor ainda
caracteriza esse circuito pelo apoio governamental através de financiamentos, infraestrutura
urbana, legislação fiscal discriminatória, subsídios à produção, dentre outras formas de apoio.
No circuito inferior, segundo Santos (1979), as empresas familiares e os autôno-
mos são numerosos, o capital é muito pequeno, a tecnologia obsoleta ou tradicional, e a
organização deficiente (Santos, 1979, p. 197). Além dessas características, o autor apre-
senta aspectos comparativos que o diferem do circuito superior, como: a pequena quan-
tidade de mercadorias; o preço não é determinado em função do lucro; o lucro não tem
função de acumulação, e sim a de assegurar a manutenção da família; a única publicidade
é o contato direto com os consumidores; o trabalho intensivo torna os custos fixos irri-
sórios nesse circuito; as atividades nele exercidas raramente dispõem de ajuda governa-
mental e, em grande maioria, são perseguidas por não contribuírem tributariamente; o
consumo não é seletivo, e sim resultado da demanda.
Outra especificidade do circuito inferior apontada por Santos (1979) é que ele é pro-
veniente, de forma indireta, da modernização tecnológica, e, assim, fortemente dependente
do circuito superior. No entanto, o autor reconhece que, mesmo dependente da economia
capitalista urbana formal, tal circuito apresenta características que são típicas de um sistema
econômico “tradicional”, já que, nesse circuito, as empresas familiares e os autônomos são

467
numerosos; o capital é muito pequeno, a tecnologia é obsoleta ou tradicional e a organiza-
ção, deficiente (Santos, 1979, p. 197). Afirma, ainda, que no circuito inferior o preço das mer-
cadorias não é determinado em função do lucro, cuja função não é assegurar a manutenção
do núcleo familiar, e não de acumulação capitalista. A compreensão desse autor se aproxima
com o princípio econômico da domesticidade descrito por Karl Polanyi (2000), que con-
siste na produção para prover as necessidades domésticas próprias.
Polanyi (2000), em seu livro A grande transformação, argumenta que em socieda-
des anteriores a institucionalização do padrão de mercado, outros princípios econômicos
regiam as trocas, como a domesticidade, a reciprocidade e a redistribuição. O primeiro
princípio, da domesticidade, consiste na produção para prover as necessidades domésti-
cas próprias. Referenciado em trabalhos de Malinowski e Thurnwald sobre as Ilhas Tro-
briand da Melanésia ocidental, Polanyi (2000) define a reciprocidade como um princípio
que atua principalmente em relação à organização sexual da sociedade – família e paren-
tesco – e busca atender a subsistência da família. A redistribuição é o princípio segundo o
qual a produção é detida por uma autoridade que tem a responsabilidade de distribuí-la,
o que supõe um momento de armazenamento entre aqueles da recepção e da repartição.
Por último, o mercado, mais conhecido por seus conceitos atuais, é o ponto de encontro
entre oferta e demanda de bens e serviços para fins de troca.
Embora Polanyi (2000) se detenha na descrição dos princípios existentes em “eco-
nomias primitivas”, é possível identificar a presença desses princípios mesmo em econo-
mias nas quais o padrão de mercado é predominante. Em espaços onde a distinção entre
o circuito superior e o inferior é bastante clara, como nos países latino-americanos, esses
princípios se manifestam geralmente onde a lógica materialista ainda não é única e exclu-
sivamente intermediadora das relações de produção.
É nesse sentido que Coraggio (2000) afirma que o setor informal, ou a economia
popular que nele está contido, representa um embrião de novas formas de produção e
sociabilidade distintas da economia capitalista. Segundo o autor, a Economia dos Setores
Populares é constituída por Unidades Domésticas (UDs) de produção que têm como
objetivo principal a reprodução ampliada da vida, e não a maximização do lucro. Desta-
ca, assim, uma racionalidade econômica não competitiva de bases locais, característica
dessas atividades econômicas, e entende que o fomento a tais atividades representa uma
alternativa ao sistema capitalista vigente.
Uma outra visão sobre o setor informal urbano, mais compatível com as cren-
ças liberais, entende que a “opção” pelo mercado de trabalho informal é uma forma de
os indivíduos serem “empresários de si mesmos” até que sejam capacitados a entrar no
mercado capitalista formal. Compactua com essa visão o economista peruano Her-
nando De Soto (2000).

468
De Soto (2000) tem uma imagem positiva em relação à informalidade urbana,
tanto em relação a assentamentos informais quanto a ocupação econômica. Segundo De
Soto (2000), o estoque habitacional autoconstruído representa um enorme passivo eco-
nômico que pode ser “revitalizado” por meio da regularização fundiária, transformando
o “capital morto” em capital vivo. Em suas ideias, a possibilidade de geração de valor está
relacionada não somente à transformação de espaços irregulares em propriedade privada
– passível de ser comercializada no mercado imobiliário formal –, mas também à possibi-
lidade dessa propriedade privada ser utilizada como garantia para empréstimos e financia-
mentos. A formalização de empreendimentos, segundo o autor, por meio da adaptação da
legislação existente à realidade dos empreendimentos informais, representaria, da mesma
forma, um estímulo à economia formal urbana.
Na visão de De Soto (2000), a favela teria, assim, em termos econômicos, os três
fatores de produção básicos para a acumulação capitalista – terra, capital e trabalho –,
bastando a adaptação das instituições públicas e privadas à realidade informal. Todo seu
exercício visa demonstrar, portanto, que o combate ao subdesenvolvimento deve passar,
necessariamente, por uma mudança na forma como esses países lidam institucionalmen-
te com sua população mais pobre. Cabe notar, ainda, que para Hernando de Soto, os in-
tegrantes da economia informal já possuem uma racionalidade competitiva, ou seja, são
empreendedores por natureza. O autor se apoia, assim, na ideia do Homo Economicus – na
propensão natural do homem à barganha – para criar um modelo de maximização dos
lucros das atividades informais urbanas.
Diante do fortalecimento de políticas de redução da informalidade urbana com
ênfase no empreendedorismo individual, as ideias de De Soto (2000) parecem ter gerado
maiores frutos na sociedade brasileira. Isso porque essa nova categoria pressupõe uma
única forma de organização, bastante restrita, compatível com a lógica de uma microem-
presa capitalista. Ou seja, políticas de apoio ao empreendedorismo individual não consi-
deram outras formas de organizações produtivas coletivas – familiares ou não – que são
bastante frequentes em vilas e favelas. Essas políticas desconsideram, assim, as outras ra-
cionalidades econômicas que são distintas da economia de mercado, como a racionalida-
de econômica voltada para a reprodução do núcleo familiar. Para considerar essas outras
economias, as ideias de Coraggio (2000) em relação à economia popular e a sua definição
de “Unidade Doméstica” poderia fazer muito mais sentido nesses espaços.
No entanto, ainda que seja possível identificar a priori algumas limitações da am-
pliação da formalização em vilas e favelas diante dessa nova categoria jurídica, não é possí-
vel prever como a possibilidade de se tornar um microempreendedor individual tem sido
apropriada nesse contexto. À luz de políticas territoriais de apoio ao empreendedorismo
individual em vilas e favelas, como no caso de Belo Horizonte, do BH Negócios, objetivo

469
refletir sobre as diversas formas de apropriação pelos comerciantes da lógica empreende-
dora trazida pelo programa e sobre a efetividade dessas políticas enquanto difusoras de
uma lógica capitalista de produção.

Políticas de formalização nas favelas:


empreendedorismo individual como alternativa

Políticas recentes em âmbito federal baseadas na flexibilização das leis de formalização


de empreendimentos têm contribuído para a diminuição da informalidade urbana. A Lei
Complementar 128/2008 criou a figura do Microempreendedor Individual (MEI), que
objetivou proporcionar aos trabalhadores informais direitos trabalhistas, garantias sociais
e acesso ao crédito através da redução da carga tributária e da agilidade no processo de
formalização. Tal lei permitiu a reinserção de indivíduos que estavam antes à margem das
instituições formais de crédito e de Previdência Social por meio do desenvolvimento de
competência individuais, no contexto de pequenos negócios. Nesse contexto, o SEBRAE
(Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) foi a entidade eleita para gerir
programas de expansão e auxilio a essa nova categoria de empreendedorismo no Brasil.
O relatório4 apresentado pelo SEBRAE em 2013 sobre o perfil do novo microem-
preendedor individual aponta que mais de três milhões de empreendedores já aderiram
a nova categoria, mas que 92,3% dos MEI pertencem às classes sociais altas e médias, en-
quanto esse percentual na população brasileira é de 67%. Em relação à escolaridade, 63%
têm ensino médio/técnico completo ou mais e em âmbito nacional esse percentual é de
40% (SEBRAE, 2013). Isso indica que, apesar da grande adesão à categoria nos últimos
anos, ainda há grandes desafios para a entidade passar a incorporar microempreendedo-
res informais com menor renda e escolaridade para estabelecerem empresas formais.
Diante desses fatos, a ampliação da oferta de serviços oferecidos pelo SEBRAE a
camadas sociais de baixa renda tem ganhado corpo em políticas municipais territoriais
recentes com foco no empreendedorismo em vilas e favelas. Embora essas políticas ainda
possuam um caráter incipiente e seus resultados incertos e relativos, nas cidades de Belo
Horizonte e Rio de Janeiro elas se encontram institucionalmente mais avançados. No Rio
de Janeiro, a instalação das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), iniciada em 2008,
tem forçado a criação de novos mecanismos de controle, como analisado por Henriques
e Ramos (2011), e de difusão da noção de empreendedorismo de base comunitária, ana-
lisada por Lívia de Tommasi (2013; 2014).

4 Disponível em <http://www.sebrae.com.br/estudos-e-pesquisas>. Acesso em: 05 jul. 2014.

470
A retomada do controle estatal sobre comunidades sob forte influência do crime
organizado por meio da instalação de UPPs nas favelas do Rio de Janeiro tem sido objeto
de reflexão de diversos estudos. Henriques e Ramos (2011) afirma que o próprio desgas-
te histórico da atuação de forças policiais nas favelas do Rio de Janeiro tem obrigado os
programas de pacificação a buscarem outras estratégias para garantir sua sustentabilidade.
O programa UPP Social para promoção do desenvolvimento socioeconômico, segundo
o autor, foi desenhado nesse sentido. Dessa forma,

a UPP Social foi concebida para se encerrar uma vez que a pacificação es-
teja consolidada e a situação de exceção que caracteriza o território tenha
sido superada. Em outras palavras, o “alvo” final que se pretende atingir é
que uma favela estará pronta para funcionar como qualquer outro bairro
da cidade – mesmo que um bairro mais pobre que seu entorno – quando
a redução do efetivo policial não resultar na volta de gangues armadas
que vão controlar a vida da coletividade (Henriques; Ramos, 2011, p. 3).

Nesse sentido, Lívia de Tommasi (2013) analisa a instalação de UPPs a partir dos
dispositivos acionados pelos setores públicos e privados para a ampliação do mercado
consumidor interno e a promoção de diferentes formas de empreendedorismo de base
comunitária (Tommasi, 2013). Em estudo específico na Cidade de Deus, a autora busca
identificar as práticas de resistência da suposta formalização dos comerciantes:

Para todos os comerciantes a chegada da UPP trouxe um outro desafio: a


regularização do empreendimento. Ou seja: abrir CNPJ, entender como
funciona a burocracia da prefeitura e a muita papelada que precisa ser
preenchida, fazer a declaração do imposto de renda. E conviver, agora,
com o temor pela possível chegada dos “fiscais”. Porque, como me diz a
Mônica, outra operadora do caixa descentralizado do bando em sua loja
de presentes, “vou assinar a carteira do meu marido, ou de minha cunha-
da? Não faz sentido!” Pequenos atos de resistência, ou melhor, de incon-
formidade com as regras da legalidade (Tommasi, 2013, p. 27).

A autora analisa o contexto carioca e as mudanças discursivas midiáticas e políticas


que ocorreram em torno das favelas do Rio de Janeiro, em que a celebração do morro
como berço da criatividade, da inovação, do empreendedorismo ganha um novo e decisi-
vo alento. Essas mudanças possuem forte relação com a tentativa de “espetacularização” da
cidade carioca em contexto de Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas em 2016. A cria-
tividade no campo artístico-cultural presente nessas favelas, segundo Lívia de Tommasi
(2014), é valorizada no âmbito de um investimento significativo na chamada “economia
criativa”, operado, dentre outros, pelo governo do Estado através do Programa de Desen-

471
volvimento da Economia Criativa (Tommasi, 2014, p. 302). Afirma a autora que a cadeia
da indústria criativa representa 17,8% do PIB desse Estado e emprega 82 mil pessoas, se-
gundo dados da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, o que justifica
os investimentos no programa. Para Tommasi (2014), o novo “empreendedorismo de
base comunitária” tem significado um reconhecimento tardio dos preceitos da educação
popular sobre a valorização do saber popular, gerado na experiência e nas práticas, já que

em tempo de crise, esse “capital comunitário” (ou, nas palavras de Gil-


berto Dimenstein, “poder comunitário”) deve ser valorizado, enquanto
permite encontrar soluções mais adaptadas ao meio e de baixo custo
(Tommasi, 2014, p. 302).

No caso de Belo Horizonte, o programa BH Negócios tem revelado interesse na


formalização do comércio no Aglomerado da Serra, maior complexo de favelas do estado
de Minas Gerais localizado na região Centro-Sul de Belo Horizonte. O programa possui
uma estratégia de ação política territorial para a formalização dos empreendedores e para
a difusão do acesso ao crédito naquele espaço.
O Aglomerado da Serra foi alvo recente de uma grande intervenção estatal – o
Programa Vila-Viva –, que, dentre outras intervenções,5 possibilitou a construção de uma
grande avenida cujo objetivo foi unir dois bairros de classe média da capital mineira – os
bairros Serra e Santa Efigênia. Tal programa, segundo diversos estudos,6 representou uma
imposição do espaço concebido sob o espaço vivido pelos moradores (Lefebvre, 1999),
já que os espaços urbanos das favelas apresentavam uma lógica de produção própria, e o
programa representou uma imposição da lógica de produção do espaço da cidade formal.
O programa BH Negócios teve início em 2012 e objetivou, por meio do fomento, a
formalização e a capacitação profissional dos comerciantes do Aglomerado da Serra e a pro-
moção do desenvolvimento local dessa comunidade. Tomaram frente do projeto a Prefeitura
de Belo Horizonte, através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, o SEBRAE e a Fe-
deração das Associações das Microempresas de Minas Gerais (FEMICRO-MG).

5 O programa promoveu a ampliação da coleta e tratamento de esgoto, a interceptação dos esgotos


ao longo dos talvegues, a limpeza dos talvegues, a implantação de bacias de contenção de cheias, a
ampliação da rede de abastecimento de água, a ampliação da coleta de resíduos sólidos, a execução
de novas vias veiculares e urbanização de becos, a implantação de três parques com 250 mil m², a
construção de unidades habitacionais, a remoção de aproximadamente 200 famílias das áreas de risco,
a remoção de quase 300 famílias para abertura da Av. Cardoso, via que permite o acesso entre o bairro
de Santa Efigênia, região Leste da capital, e a Rua Capivari, no bairro Serra (Belo Horizonte, 2011). O
programa previu ainda a construção de cerca de 550 unidades habitacionais.
6 Cf. Almeida (2012), Melo (2009), Tonucci Filho (2009), Motta (2009), Vieira (2012).

472
Segundo entrevistas7 realizadas com gestores do programa BH Negócios da Se-
cretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de Belo Horizonte e do SEBRAE,
a escolha do Aglomerado como projeto piloto se deu por sua maior urbanização e relação
a outras vilas e favelas, graças a presença da CRAS (Centro de Referência em Assistência
Social), a atuação recente da URBEL no programa Vila-Viva e a força do comércio lo-
cal. Os gestores revelam, ainda, que, de início, houve muita resistência ao programa pelo
medo da fiscalização da prefeitura, mas que, aos poucos, “as pessoas passaram a entender
que o programa é bom para elas, que ele tem como objetivo melhorar a capacidade insta-
lada dos negócios do Aglomerado” (gestora do SEBRAE- MG).
A atuação de 15 meses do programa no Aglomerado da Serra gerou resultados
quantitativos bastante exitosos para os parâmetros do programa: foram formalizados mais
de 400 comerciantes. No entanto, entrevistas com executores do programa no Aglomera-
do da Serra, os “Agentes de Empreendedorismo” contratados, revelam que esse número é
bastante relativo, já que a formalização do empreendimento não significou, muitas vezes,
a adequação às normas “formais” sugeridas.
A não adequação às normas formais se deu porque o empreendedorismo indivi-
dual, embora tenha sido a categoria jurídica privilegiada para formalização das atividades
econômicas da favela pelo Programa BH Negócios, possui limitações e incompatibilida-
des em relação aos núcleos produtivos informais em questão. Uma das incompatibilida-
des, também identificadas por Lívia de Tommasi (2013) na Cidade de Deus no Rio de
Janeiro, diz respeito à dificuldade de regularizar a situação de trabalho dos indivíduos que
compõem o núcleo produtivo, os quais, geralmente, possuem relações familiares distintas
das relações de trabalho formais.
Para se tornar um MEI, o empreendimento pode apenas possuir, no máximo, um
“dono” e um “empregado”. Essa distinção é, muitas vezes, incompatível com as relações
de estabelecidas na gestão dessas atividades, as quais podem ou não possuir hierarquias
entre dois ou mais indivíduos do núcleo produtivo. Um exemplo clássico foi observado
no Aglomerado da Serra em pesquisas de campo:

Assinei a carteira da minha filha, que nunca teve carteira assinada na vida.
Ela começou a trabalhar aqui comigo, fichada. Mas aí ela engravidou, e
como eu era a patroa dela, ia ter que pagar sua licença maternidade, aí ela
deixou de ter carteira assinada e conseguiu receber pelo menos o seguro
desemprego (Costureira da Vila Nossa Senhora de Fátima).

7 Entrevistas realizadas entre março e abril de 2014 com gestores da Secretaria de Desenvolvimento
Econômico da PBH e do SEBRAE-MG.

473
O exemplo acima evidencia as diferentes formas de apropriação da lógica formal
em um espaço onde a lógica da produção e reprodução familiar é a predominante. Nesse
caso, as noções de “contrato”, “demissão” e “direitos” foram condicionadas às relações fami-
liares, e não à relação de trabalho formal, em que os “ônus” e “bônus” são preestabelecidos
por lei entre “patrão” e “empregado”.
No Aglomerado também é possível observar uma grande quantidade de estabele-
cimentos, como salões de beleza e lojas de costura, onde o espaço é dividido entre paren-
tes próximos ou pessoas conhecidas. Nesses casos, geralmente, somente as despesas são
divididas entre as pessoas que trabalham no mesmo espaço.

Aqui o salão é meu e eu divido o espaço com a minha colega a mais de


oito anos, mas cada uma tem a sua freguesia. Às vezes, quando uma não
está disponível a outra até atende, mas só dividimos mesmo as contas de
água, luz e telefone, e cada uma tira daqui o tanto que trabalha (Dona de
Salão de Beleza na Vila Nossa Senhora de Fátima).

A escolha por essa prática de gestão pode ter diversos motivos, desde a opção por
“ajudar” um conhecido que está sem trabalho e até pela necessidade de dividir as despe-
sas de aluguel. No encontro das ruas Bandoneon, Nossa Senhora de Fátima e Serenata,
região conhecida como “Savassinha”,8 o aumento dos aluguéis comerciais tem sido uma
questão bastante relevante para esses comerciantes. Nesse sentido, nota-se, nesse espaço,
a grande presença de alternativas coletivas de organização da produção que são distintas
das formas individuais de obtenção de rendimentos.
Outra questão relativa às incompatibilidades da formalização do comércio pela
via individual é a declaração anual do rendimento do empreendimento. Como os micro-
empreendedores individuais precisam manter o rendimento menor que 60 mil reais por
ano, na teoria, a declaração de rendimento exigiria um maior controle contábil das des-
pesas e ganhos dos empreendimentos. Isso significa que o comerciante deveria passar a
distinguir as contas pessoais/familiares das contas do comércio, o que, na prática, é muito
pouco frequente em pequenos comércios familiares. Uma das atuações do programa BH
Negócios no Aglomerado da Serra foi a assessoria contábil aos novos empreendimentos
formalizados, na expectativa de que os comerciantes passassem a ter maior controle de
seus gastos e ganhos, abrindo, assim, o caminho para uma futura aquisição de crédito pro-
dutivo. Segundo uma das Agentes de Empreendedorismo do programa,

8 O nome “Savassinha”, dado pelos moradores da favela, remete à Savassi, bairro nobre localizado na
região Centro-Sul de Belo Horizonte, conhecido pela grande quantidade de bares e espaços comerciais.

474
formalizar foi o mais fácil, difícil foi fazer com que as pessoas permane-
cessem pagando as vias e declarando imposto de renda. A gente parecia
assistente social, implorando para as pessoas pagarem o boleto do MEI,
e ainda assim muitas não pagavam. Mesmo com tantos benefícios, Previ-
dência Social, as pessoas pareciam não ter muito interesse na formaliza-
ção e muito menos em querer melhorar o negócio (Agente de Empreen-
dedorismo do programa BH Negócios).

Assim, mesmo depois de formalizados pelo BH Negócios, a maioria dos comer-


ciantes não passou a adotar o controle contábil, e a declaração de rendimento, quando
feita, geralmente é realizada de forma imprecisa.9 Essa imprecisão, na realidade, só é reflexo
de outras noções de gastos e ganhos relacionadas a essas práticas comerciais, que, muitas
vezes, se confundem aos gastos e ganhos provenientes de todo o núcleo familiar partici-
pante ou não da atividade comercial.
Outra questão referente à formalização dos comerciantes com o foco no MEI é
a existência, no Aglomerado da Serra, de grandes estabelecimentos comerciais na região
da “Savassinha”, como supermercados, armazéns, sacolões, açougues, drogarias, padarias e
depósitos de material de construção que não mais se enquadram nessa categoria. Muitos
deles já eram formalizados antes mesmo da atuação do programa, já que nesses estabele-
cimentos maiores é mais frequente a contratação de mão de obra com carteira assinada.
Ainda que nesses estabelecimentos seja mais possível visualizar uma maior diferenciação
entre “donos” e “empregados”, as relações de trabalho ainda estão, muitas vezes, fortemen-
te ligadas às relações de parentesco e vizinhança. Um exemplo típico é o do Supermer-
cado Goiabal, um dos maiores do Aglomerado da Serra, localizado na “Savassinha”, que
possui três gerações de uma única família trabalhando.
Apesar das dificuldades encontradas na atuação do programa, alguns comercian-
tes também foram beneficiados pela formalização e aproveitaram as novas possibilidades
de acesso ao crédito, melhorando os ganhos e ampliando o comércio. É o caso do Maurí-
cio Souza, vendedor de churrasquinhos que se tornou o “caso de sucesso” mais emblemá-
tico do programa diante da grande mídia:

(...) Maurício Souza e Silva é dono do Espetinhos do Maurício, no Aglo-


merado da Serra. Atualmente, ele e sua mulher faturam R$ 3,2 mil cada
um com o negócio, que começou com um investimento de R$ 200 e
um pedido de demissão. (...) Em maio de 2011, a empresa foi formaliza-
da e uma pequena fábrica foi construída. No total, a Espetinhos Maurí-

9 Para realizar a declaração de rendimento pelo MEI, não é exigido um detalhamento contábil, e, como a
maioria dos empreendimentos da favela não emitem notas fiscais, a declaração realizada na maioria das
vezes não é condizente com o rendimento real do “empreendedor”.

475
cio vende 200 quilos de carne por semana. “Não tínhamos casa. Agora
construímos num lote e também temos a fábrica. Já estamos investindo
em freezer e maquinário. Estamos reinvestindo o que faturamos”, explica
(jornal Estado de Minas,10 16 de junho de 2013).

Embora o programa esteja atualmente suspenso por questões burocráticas de re-


novação de convênio, gestores da Prefeitura de Belo Horizonte, em entrevista realizada,
revelaram as intenções de expandi-lo para os outros espaços do Aglomerado e para outros
aglomerados de Belo Horizonte. Essa expansão, segundo os gestores, está condicionada
às características de atratividade11 do programa: vulnerabilidade social e presença de espa-
ços econômicos comerciais. Foi revelado pelos gestores, ainda, a intenção de expandi-lo
para vários municípios e estados brasileiros por meio do SEBRAE nacional.
Diante dessas políticas territoriais, em especial do programa BH Negócios, foi
possível identificar diversas incompatibilidades em relação as práticas de gestão do co-
mércio sugeridas pela formalização e as lógicas de produção dos pequenos comerciantes
da favela. Essas incompatibilidades, muitas vezes desconsideradas pelos gestores públicos
e privados, colocam, assim, em questionamento o alcance e a efetividade de políticas de
apoio ao empreendedorismo individual em vilas e favelas.

Considerações finais

Face ao novo contexto de acumulação capitalista vigente, caracterizado pela inten-


sa flexibilização das relações de trabalho e pelo inchaço do circuito inferior, a figura
jurídica do microempreendedor individual tem representado uma possibilidade de
ampliação de direitos sociais – como a Previdência Social – e de setores informais
da economia urbana. Por outro lado, cabe refletir até que ponto essa nova categoria
jurídica é compatível com as relações de produção, circulação e trabalho que são esta-
belecidas nesse circuito inferior.
Certamente, não é possível compreender essas relações da mesma forma como é
encarado o circuito superior da economia urbana, cujas atividades econômicas são condi-
cionadas à racionalidade econômica mercantilista. Uma multiplicidade de racionalidades
econômicas pode ser observada na economia informal, desde a capitalista, como defende
De Soto (2000), como a da economia doméstica, como caracteriza Coraggio (2000) em

10 Reportagem disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2013/06/16/


internas_economia,406396/pequenos-negocios-podem-render-grandes-lucros.shtml>. Acesso em:
04 nov. 2014.
11 Segundo o conceito dos gestores da prefeitura.

476
relação à economia popular. Cada atividade informal terá uma especificidade própria, que
também irá variar de acordo com cada espaço que essa atividade está inserida.
Nesse sentido, as lógicas internas específicas à economia informal não se altera-
ram em função da ampliação da formalização por meio da flexibilização e simplificação
de processos burocráticos antes estabelecidos, ainda que tenha melhorado o acesso aos
direitos antes restritos aos indivíduos pertencentes ao circuito superior da economia
urbana. O exemplo do BH Negócios revela como esse programa territorial não trouxe
grandes transformações às lógicas internas dos comerciantes da favela, uma vez que,
mesmo depois de sua atuação, comerciantes “formalizados” mantêm práticas de gestão
do comércio tipicamente “informais”.
O que se observa nesses espaços comerciais é uma forte presença de relações
familiares que engendram relações de trabalho bastante distintas das formas de contra-
tação formalizadas e de uma grande vinculação dos ganhos produtivos às necessidades
dos membros desse núcleo produtivo. Essas características se assemelham com a defi-
nição de Unidades Domésticas (UDs) de produção de Coraggio (2000) em relação à
caracterização da Economia dos Setores Populares.
Ainda que seja possível identificar uma grande diferença entre a lógica de organi-
zação do espaço comercial trazida pelo BH Negócios e as lógicas produtivas e organiza-
cionais dos comerciantes do Aglomerado, não é possível afirmar, a priori, que as lógicas
internas ao Aglomerado estão sendo modificado pelo programa municipal. O que se tem
mais notado, pelo contrário, é que a concepção da formalidade advinda pelo programa é
que está se adaptando ao contexto dos comerciantes locais. Se, por um lado, esse espaço
já abriga grandes e antigos centros comerciais, que não se enquadram na nova categoria
jurídica de microempreendedor, por outro, o comércio da Serra também é caracterizado
por uma multiplicidade de lógicas de organização da produção e do trabalho bastante es-
pecíficas à realidade local. Muitas vezes, essas lógicas comerciais estão muito mais ligadas
às relações sociais de parentesco e vizinhança do que exclusivamente à obtenção de lucro.
Nesse sentido, a implementação de políticas territoriais de apoio ao empreende-
dorismo individual evidencia as limitações de tentativas de incorporação de lógicas sociais
“formais” a espaços que abrigam lógicas múltiplas de produção e sociabilidade. Essas políticas
poderiam ter um maior alcance e efetividade se reconhecessem as lógicas internas dos terri-
tórios em questão e se orientassem suas ações a partir dessas lógicas. As formas coletivas de
produção, familiares ou não, que compõem as práticas comerciais do Aglomerado da Serra
são exemplos dessas lógicas que ainda permanecem invisíveis diante a gestão pública.
Por fim, enquanto os espaços da favela forem encarados como novos espaços a
serem incorporados pelo espaço econômico formal, cuja lógica mercantilista é unânime,
eles somente serão tidos como alvo de políticas públicas homogeneizantes. Por outro

477
lado, se espaços comercias da favela começassem a ser vistos por sua diversidade de for-
mas sociais, poderiam passar a ser tidos como um modelo diante dos espaços urbanos
formais homogêneos.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Reginaldo Magalhães de. Favelas viraram bairros de verdade? Sobre a propaganda do progra-
ma Vila-Viva do Aglomerado da Serra. Campinas. Oculum Ensaios, 2012. Disponível em: <http://periodi-
cos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/oculum/article/view/1449>. Acesso em: 31 Jul. 2014.
BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Processo de licenciamento ambiental do
programa Vila Viva. Belo Horizonte: SMMA, 2011.
BOTELHO, M. L. Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres. Boitempo.
2013
CORAGGIO, J. Da economia dos setores populares à economia do trabalho. In: KRAYCHETE, G. (Org.).
Economia dos setores populares: entre a realidade e a utopia. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Capina; Salva-
dor: Cese: UCSAL, 2000.
DE SOTO, H. The mistery of capital. Nova York: Basic Books, 2000.
HENRIQUES, Ricardo; RAMOS, Silvia. UPPs Social: ações sociais para a consolidação da pacificação,
2011. Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/datacenterie/pdfs/seminarios/pesquisa/texto3008.pdf>.
Acesso em: 31 Jul. 2014.
HARVEY, D. A. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
LANNA, Marcos. Notas sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e Política, Curiti-
ba, n. 14, p. 173-194, jun. 2000.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Trad. para o inglês de Donald Nicholson-Smith. Blackwell: Ox-
ford, 1991.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do empreendimento e da aventura dos
nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Anuário Sociologia
e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974. p. 37-184. v. 2.
MELO, Izabel Dias de Oliveira Melo. O espaço da política e as políticas do espaço: tensões entre o programa
de urbanização de favelas Vila Viva e as práticas cotidianas no Aglomerado da Serra em Belo Horizonte.
Dissertação de Mestrado, UFMG, 2009.
MOTTA, Luana. D. Da construção da nova capital mineira ao atual modelo de gestão de vilas e favelas:
notas sobre um estudo de caso do programa Vila Viva. Cadernos de História, v. 13, p. 126-146, 2012.
NERI, M. C.; MEDRADO, A. L. Experimentando microcrédito: uma análise do impacto do Crediamigo sobre
o acesso a crédito. Rio de Janeiro: EPGE, dez. 2005.

478
NERI, M. C. Microcrédito o Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro: perfil e performance dos clientes do
Crediamigo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008
OLIVEIRA, Edson Marques. Empreendedorismo Social no Brasil: atual configuração, perspectivas e desafios
– notas introdutórias. Revista FAE, Curitiba, v. 7, n. 2, p. 9-18, jul./dez. 2004. Disponível em: <http://www.fae.
edu/publicacoes/pdf/revista_da_fae/fae_v7_n2/rev_fae_v7_n2_02.pdf>Acesso em: 30 ago. 2014.
PEREIRA, Claudius Vinícius Leite; AFONSO, Andrea Scalon; MAGALHÃES, Maria Cristina Fonseca
de. Programa Vila Viva: intervenção estrutural em assentamentos precários. Apresentado no 17º Encontro
Nacional da Anamma, Recife, 2007. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.
do?evento=conteudo&idConteudo=22546&chPlc=22546&viewbusca=s>. Acesso em: 23 jul. 2014
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Trad. Fanny Wrobel. 2. ed. Rio de Ja-
neiro: Campos, 2000.
POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro. Contraponto, 2012.
HENRIQUES, Ricardo; RAMOS, Silvia. UPPs social: ações sociais para a consolidação da pacificação.
Disponível em: <http://www.ie.ufrj.br/oldroot/datacenterie/pdfs/seminarios/pesquisa/texto3008.pdf>.
Acesso em: 02 nov. 2014.
SANTOS, Milton. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
SEBRAE. Perfil do Microempreendedor individual. SEBRAE, 2013.
TOMMASI, Lívia de. Culturas de periferia: entre o mercado, os dispositivos de gestão e o agis político. Polí-
tica & Sociedade, Florianópolis, v. 12, n. 23, jan./abr. 2013. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br/index.
php/politica/article/view/2175-7984.2013v12n23p11>. Acesso em: 31 jul. 2014
TOMMASI, Lívia de. Juventude, projetos sociais, empreendedorismo e criatividade: dispositivos, artefatos
e agentes para o governo da população jovem. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura
Jurídica, v. 6, n. 2, maio-ago. 2014.
TONUCCI FILHO, João Bosco Moura; ÁVILA, Jorge Luís Teixeira. Urbanização da pobreza e regulariza-
ção de favelas em Belo Horizonte. In: ANAIS DO XIII SEMINÁRIO SOBRE ECONOMIA MINEIRA, p.
21. Disponível em: <http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2008/D08A117.
pdf>. Acesso em: 10 fev. 2009.
VIEIRA, Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de. A questão da moradia popular
no Brasil: desafios da questão urbana. Campinas-SP: Unicamp, 2012
YUNUS, Muhammad. O banqueiro dos pobres. 4. ed. São Paulo: Difel/Algés, 2007.

479
Aberturas e apropriações pela
mobilidade urbana: a potencialidade
transformadora das “pequenas
práticas” sociais
Marcelo Cintra do Amaral

Introdução
Não tão evidente nos textos de Henri Lefebvre, a mudança dos processos de mobilidade
cotidiana também é uma das condições para a sociedade urbana, pois há uma relação
intrínseca com o espaço produzido e os processos de localização das pessoas e atividades
na cidade. O urbanista francês Marc Wiel defende a indissociabilidade entre cidade e
mobilidade e entre os mecanismos de localização das pessoas e das atividades no espaço
urbano e os mecanismos de mobilidade que não se limitam a ser resultado da localização,
mas que também participam das decisões de localização. Essa proposição de Wiel
contribui para se entender a participação da mobilidade urbana nos processos de produção
do espaço e na constituição da vida cotidiana e a confirma como uma das condições para se
caminhar em direção ao urbano. Ao se aceitar o “convite” de Lefebvre (2008, p. 26) para
considerar a sociedade urbana (ou o urbano) como uma direção desejada – e possível
de ser alcançada –, deve-se identificar obstáculos a serem contornados (ou rompidos)
e esse é o caso dos atuais processos de mobilidade dominantes nas cidades brasileiras,
ainda pautados no automóvel e em uma urbanização que segrega e afasta.
Para contribuir com a reflexão sobre a superação desses obstáculos, propõe-
-se identificar aberturas (teóricas e práticas) possíveis e atuais que articulam o micro (a
cotidianidade) e o macro (a produção do espaço) dos processos que contribuíram para
cidades dependentes do automóvel e que transformou o espaço em objeto de disputa
uma nova raridade. Também se propõe identificar ações de apropriação do espaço (do
tempo, do corpo e do desejo), principalmente dos espaços públicos1 – o lócus dos
deslocamentos – que estão surgindo nos últimos anos e que permitem pensar as escalas
do corpo individual ao coletivo político, denominadas de “pequenas práticas” sociais.
Desde o final do século XIX, a história das cidades urbano-industriais brasileiras
está ligada a problemas com os transportes. Pode-se considerar a Revolta do Vintém –
movimento social contra o aumento no valor das passagens dos bondes, ocorrida em
1879 e 1880, no Rio de Janeiro – como um marco inicial dessa ligação de manifestações
políticas transporte-cidade, que se desdobra em diversos momentos ao longo do século
XX, e ecoa até os movimentos sociais de junho de 2013, não por acaso deflagrados
pelo aumento de vinte centavos nas tarifas de São Paulo. Se os problemas com os
transportes (os serviços) se iniciam praticamente junto com os recentes processos
de urbanização das cidades brasileiras, apenas ao final da década de 1960 é que se
associam aos problemas de trânsito (a circulação de veículos e pessoas) nas grandes
metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro. Essa associação transporte-cidade-trânsito
vai se expandindo gradativamente, junto com a frota de veículos, para outras cidades
a partir de meados da década de 1990, quando uma nova situação se instala de forma
generalizada, provocada em grande parte pela ineficácia das soluções adotadas para os
transportes decorrentes dos poucos investimentos na década de crise econômica (década
de 1980) em associação direta com o aumento da venda de automóveis.
A Figura 1 apresenta os totais anuais de veículos licenciados no Brasil e mostra
que nos anos de 1990 há uma mudança de patamar, para valores de mais de um milhão
de veículos, o dobro dos registrados na década de 1980. É a denominada crise da
mobilidade, que teve como uma de suas principais causas os processos que produziram
uma cidade dependente do automóvel e dos modos motorizados, que levou à expansão
exagerada das áreas urbanas, ao crescimento de necessidades de deslocamentos mais
longos e à transformação dos espaços (públicos) onde se realizam esses deslocamentos
em objeto de disputa (disputa vencida pelos veículos).

1 Utiliza-se aqui a proposição de Thierry Paquot (2009, p. 3, tradução nossa), francês, filósofo do urbano,
que considera que o espaço público (singular) “evoca o lugar do debate político, da confrontação de
opiniões privadas que a publicidade se esforça de tronar pública”, mas não apenas esse lugar, como
também “uma prática democrática, uma forma de comunicação, de circulação dos diversos pontos de
vista”. É um vocabulário da filosofia política, mas também, há relativamente pouco tempo, das ciências
da comunicação. Por sua vez, mais comum ao vocabulário de engenheiros, urbanistas e arquitetos, os
espaços públicos (plural) “designam os locais acessíveis ao(s) público(s), percorridos pelos habitantes, que
residem ou não na proximidade”.

482
Figura 1 - Evolução do licenciamento anual de autoveículos no Brasil
(automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus).
Fonte: ANFAVEA (2015).

Nova mudança de patamar ocorre a partir de 2007, com a produção ultrapassando


os dois milhões de veículos licenciados por ano e alcançando quase quatro milhões em
2012 e que começa a cair a partir de 2013. Esse novo momento parece apontar para o
prolongamento e agravamento da crise pelo efeito dessa enxurrada de automóveis nas
cidades e sua consequência é a difusão generalizada dos congestionamentos, tanto no
espaço (atingindo ruas e bairros antes tranquilos) quanto no tempo (com os horários
de pico se alongando por horas).
Obviamente, esse processo não é exclusividade das cidades brasileiras e já aconteceu há
algumas décadas em várias outras cidades europeias e americanas, pois a produção do espaço
está intrinsecamente associada a essa opção pelo automóvel em todas as cidades do mundo
ocidental. Um de seus resultados mais evidentes é a transformação do espaço em uma nova
raridade, como pontua Lefebvre (1991, p. 60): “(...) o espaço se torna raro (...) em particular
em tudo que diz respeito à cidade e ao urbanismo. O tempo também se faz raro, assim como
o desejo.” Se antes se restringia aos países industriais avançados, hoje se pode perceber esse
fenômeno também nos países em desenvolvimento: o impacto do aumento no consumo
do espaço é mais evidente em relação aos espaços públicos, que se tornam disputados e
insuficientes para a circulação de tantos veículos, mas está longe de causar a imobilidade, pois
o trânsito vai se formando aos poucos, permitindo adaptações e aceitação gradativas.
Para descobrir/revelar aberturas e provocar apropriações pela mobilidade urbana,
propõe-se uma abordagem da relação indissociável entre mobilidade e cidade, articulando os

483
processos de produção do espaço da cidade e os (contra)processos de (re)apropriação dos
espaços e dos tempos da mobilidade. Além desta introdução e de uma conclusão, o texto se
estrutura em três partes: “Aberturas e apropriações”, que desenvolve os conceitos e possíveis
abordagens teóricas; “Cidade e mobilidade: processos indissociáveis”, que apresenta os
processos indissociáveis de formação da cidade e da mobilidade; e “‘Pequenas práticas’
sociais”, de caráter mais metodológico, que as identifica como possíveis aberturas teóricas
e práticas e condição para as apropriações desejadas. Apontar apropriações relacionadas aos
processos de mobilidade, que se manifestam por “pequenas práticas”, não deixa de ser uma
tentativa de mostrar possibilidades de ruptura nesses processos que parecem tão fechados.
A reflexão sobre as possibilidades das “pequenas práticas” (individuais ou de pequenos
grupos) de apropriação do espaço e do tempo da mobilidade cotidiana são feitas a partir de
ações recentes de movimentos sociais relacionados ou não à mobilidade urbana, tanto em
Belo Horizonte quanto em outras cidades brasileiras.

Aberturas e apropriações
A utilização do termo abertura pressupõe a constatação prévia de que há um fechamento a ser
rompido em um “sistema” ou um “processo”. Para Lefebvre (2011, p. 9), “todo sistema tende
a aprisionar a reflexão, a fechar os horizontes”, e seu rompimento resulta de uma operação de
“abrir o pensamento e a ação na direção de possibilidades que mostrem novos horizontes e
caminhos”. A proposição de busca de aberturas teóricas e práticas surge juntamente com o
próprio conceito de mobilidade urbana, que tenta romper com um processo urdido ao longo
de muitas décadas de produção de um espaço urbano focado em um modo de transporte
dominante, que ultrapassou os limites da técnica e se transformou em um fato social total.
Em 1968, Lefebvre sintetizava algumas das questões da vida cotidiana no mundo moderno:

O Automóvel é o Objeto-Rei, a Coisa-Piloto. Nunca é demais repetir.


Este Objeto por excelência rege múltiplos comportamentos em
muitos domínios, da economia ao discurso. O Trânsito entra no meio
das funções sociais e se classifica em primeiro lugar, o que resulta na
prioridade dos estacionamentos, das vias de acesso, do sistema viário
adequado. Diante desse “sistema”, a cidade se defende mal. No lugar em
que ela existiu, em que ela sobrevive, as pessoas (os tecnocratas) estão
prestes a demoli-la. (...) Concebe-se o espaço de acordo com as pressões
do automóvel (Lefebvre, 1991, p. 110).

Mas já em 1961, Jane Jacobs (2009, p. 377) constatava que nos Estados Unidos,
todos os que prezavam as cidades estavam incomodados com os automóveis e que a

484
erosão das cidades era um dos principais sintomas da destruição urbana, identificando os
elementos dos processos que se estabeleceram em torno desse “Objeto-Rei”:

(...) por causa do congestionamento de veículos, alarga-se uma rua aqui, outra
é retificada ali, uma avenida larga é transformada em via de mão única (...) o
solo vira estacionamento, para acomodar a um número sempre crescente de
automóveis quando eles não estão sendo usados (Jacobs, 2009, p. 389).

Os ecos dessas constatações ainda estão soando alto nas cidades brasileiras mais
de 50 anos depois, por certa demora com que esses mesmos processos chegassem e se
agravassem na realidade brasileira, mas também pela ausência de um aprofundamento
teórico no contexto brasileiro que trouxesse contribuições para aplicação da tática
de redução dos automóveis pela cidade (e não apenas nas cidades) defendida por Jacobs
( Jacobs, 2009, p. 404-405) como a única maneira de reduzir o número total de veículos
para dar “espaço a outros usos urbanos necessários e desejados, que rivalizam com as
necessidades viárias dos automóveis”.
No Brasil, antes de se adotar mobilidade urbana como termo dominante – termo que
segue ainda em construção e em disputa – tentou-se o debate em torno do transporte humano
e sua relação com as cidades e a qualidade de vida, como defendido pela Associação Nacional
de Transporte Público - ANTP (1999), tendo como ponto de partida a identificação de
alguns processos que permitiam “abrir o pensamento e a ação” em direção a uma abertura.
Esses processos foram apresentados pela ANTP em forma de dois “círculos viciosos” que
mostram a relação entre automóvel e transporte público e destes com a cidade, tendo como
pontos comuns o incentivo ao carro e o prejuízo aos usuários do transporte coletivo.
O próprio Lefebvre (2000, p. 414-415) aponta para outros processos similares
associados às contradições de consumos do espaço. Seus exemplos mostram que o consumo
produtivo do espaço (pelo automóvel) recebe subvenções, pois não há interesse coletivo em
se pagar pelos espaços verdes e árvores que não trazem nada a ninguém em especial (ainda
que tragam a todos o prazer) e que tendem a desaparecer. Constata Lefebvre que o consumo
não produtivo não recebe investimentos, porque produz “apenas” charme. A contradição se
instaura entre os “utilizadores” (capitalistas) e os “usuários” (pertencentes à coletividade).
Lefebvre utiliza os “círculos do asfalto” de Goodman (1972, p. 113, apud Lefebvre, 2000, p. 431-
432, tradução nossa) para demonstrar que as estratégias do espaço visam diversos objetivos,
notadamente para produzir as diferenças. O que se produz, nas palavras de Lefebvre, é um
“círculo vicioso, invasor e portador de interesses econômicos dominantes”. Será que Lefebvre
exagera ao concluir que “virtualmente o automóvel e a autoestrada ocupam o espaço inteiro”?
Seria o automóvel uma totalidade? Para ele, há uma estratégia de encadeamento de operações
que implica um consumo produtivo do espaço, produtivo duplamente, pois produz mais-valia

485
e produz outros espaços. Por outro lado, a produção de espaço se efetua com a intervenção do
Estado, que age influenciado pelo Capital, parecendo obedecer apenas às exigências racionais
de partes da sociedade e dos interesses dos usuários do automóvel.
Os quatro “círculos viciosos” propostos pela ANTP e por Lefebvre possuem
um ponto central em comum: o incentivo ao uso do automóvel. A sobreposição
deles, apresentada na Figura 2, caracteriza esse sistema fechado de produção do espaço
para o automóvel e que precisa ser aberto. Outros círculos poderiam ser sobrepostos,
mostrando a enorme força desse sistema e comprovando que a disputa por uma
outra mobilidade urbana é um (contra)processo lento e complexo que passa pelo
entendimento de formação da cidade e da relação entre cidade e mobilidade para
se chegar às aberturas que se pretende, em que as “pequenas práticas” sociais ainda
parecem insuficientes para provocar uma real transformação.

Figura 2 - Sobreposição dos círculos viciosos de incentivo ao automóvel


Fonte: ANTP (1999, p. 18 e 19) e Lefebvre (2000, p. 414-415; 431-432).

Após essa constatação, parece evidente a importância do aprofundamento


da abordagem espacial para tratar da mobilidade urbana para contribuir com a
reflexão proposta. Pode-se facilmente constatar que há uma relação entre os processos
econômicos, as políticas urbanas e de mobilidade e os espaços produzidos, e que se deve
compreender a importância do potencial transformador do espaço social, indissociável
do tempo e do corpo como categorias e fatores dessa potencial transformação. Se a

486
abordagem pelo espaço parte da ideia de que ele é ao mesmo tempo produto e produtor
das relações sociais na cidade, evidencia-se que os deslocamentos cotidianos de pessoas e
bens na cidade se realizam no espaço e são parte do espaço (social). Uma possível interface
entre espacialidade e mobilidade, campo (ou entre campo) ainda pouco explorado pelas
ciências sociais e humanas – apesar de nunca esquecido –, pode ser esboçada através de
uma justaposição das abordagens de Henri Lefebvre e Milton Santos. Para Santos (2006,
p. 39), o espaço é formado por um conjunto indissociável – solidário, mas também
contraditório – de sistemas de objetos e sistemas de ações. Trata-se dos homens e das
relações humanas produzindo objetos que se incorporam à paisagem, se inserem no
espaço físico e que se modificam pela sua própria inserção. Os objetos, produto de uma
elaboração social, não agem, mas podem nascer predestinados a certo tipo de ações. Já as
ações, são entendidas como comportamentos com fins e objetivos que não se restringem
a indivíduos, são também ações de empresas e instituições e, claro, de movimentos sociais
e políticos. Sintetiza Santos (2006, p. 33 e 38) que se está tratando do espaço como um
conjunto de fixos e fluxos (sua materialidade e suas ações), ao afirmar que a realização da
sociedade humana se dá sobre uma base material, seu espaço e a sua produção e o que ele
reafirma ou transforma. Essa proposição de espaço como fixos e fluxos (objetos e ações)
parece facilitar a compreensão da mobilidade na sua relação com o espaço.
Essa abordagem espacial desdobra-se nas dimensões tempo e corpo dos
deslocamentos humanos, pela constatação óbvia de que toda e qualquer atividade do
ser humano acontece em um espaço e exige um tempo e seu corpo. Mas talvez mais do
que outras atividades, os deslocamentos humanos são essencialmente uma relação
do corpo através do espaço-tempo expressa tanto em movimentos para superação de
distâncias quanto em velocidade. Nos conceitos de Milton Santos, é no sistema de ações
que se encontra o corpo, pois são ações de sujeitos ou de indivíduos e seus corpos, já
que “é sempre por sua corporeidade que o homem participa do processo de ação. (...) A
corporeidade do homem é um instrumento da ação” (Santos, 2006, p. 51-52).
Se as ações fazem parte do espaço, o tempo é inerente a ele e muitas vezes
seu sinônimo, sendo a velocidade a relação imediata entre tempo e espaço. Há uma
evidente diferenciação entre os tempos (e as velocidades) das viagens pela cidade entre
as pessoas ou grupos sociais e essa diferença interfere na capacidade/oportunidade
que cada um, ou cada grupo, tem para usufruir das áreas e atividades urbanas. Dispor
(ou não dispor) desses tempos (e dessas velocidades) são condições para aproveitar
oportunidades e poderia ser mais explicitado pelas políticas públicas. Nessa
perspectiva, também se evidencia a possibilidade de (re)apropriação desse tempo
“perdido” do deslocamento através da diminuição de distâncias e da recuperação do
prazer (desejo e fruição) durante os deslocamentos.

487
Milton Santos (2002, p. 21), em um texto extraído da transcrição de uma de suas
conferências que trata do tempo nas cidades, lança uma proposta de diferenciação entre
os tempos lentos e os tempos rápidos.

Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições


hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos
homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde
as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a
economia hegemônica, são as firmas (Santos, 2002, p. 22).

A partir dessa conceituação de Milton Santos, pode-se até ousar uma analogia
com Lefebvre, identificando os tempos rápidos com o espaço abstrato e os tempos lentos
com o espaço diferencial, o que politiza a defesa de uma cidade para homens lentos, que
recuperam o prazer ao percorrer a cidade:

Durante séculos, acreditávamos que os homens mais velozes detinham a


inteligência do Mundo. (...) Agora, estamos descobrindo que, nas cidades,
o tempo que comanda, ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos.
Na grande cidade, hoje, o que se dá é tudo ao contrário. A força é dos
“lentos” e não dos que detêm a velocidade elogiada por um Virilio (...).
Quem, na cidade, tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-
-la – acaba por ver pouco, da cidade e do mundo (Santos, 1996, p. 220).

Ao se propor uma abordagem dos tempos, pode-se associar ao âmbito da vida


cotidiana, tratada na obra de Henri Lefebvre de forma crítica e como uma possibilidade
de atualização do pensamento marxista. Antes de construir sua obra urbana e espacial,
Henri Lefebvre inicia sua “crítica da vida cotidiana” que contempla uma série de quatro
obras2 que se estendem até 1981, e constrói uma instigante análise de como o sistema
econômico (no caso, o capitalismo) produz e reproduz uma vida cotidiana para sua
própria reprodução. As possibilidades de relação entre essa teoria crítica da vida cotidiana
e a mobilidade parecem evidentes quando se pensa no automóvel como objeto símbolo
do capitalismo urbano, mas pode-se também relacionar os tempos dos deslocamentos
aos tempos da vida cotidiana. Essa crítica sobre a vida cotidiana de Lefebvre foi um
projeto tanto político quanto intelectual, em que ao mesmo tempo em que constrói uma
sociologia do cotidiano, atribui ao próprio cotidiano um caráter político. O tempo da vida

2 Crítica da vida cotidiana I (1947); Crítica da vida cotidiana II – fundamentos de uma sociologia da cotidianidade
(1962); A vida cotidiana do mundo moderno (1968); Crítica da vida cotidiana III – Da modernidade ao
modernismo (por uma metafilosofia do cotidiano) (1981).

488
cotidiana é o tempo do corpo: tempo do trabalho e do lazer, do sono e da alimentação. Essa
natureza cíclica torna o tempo um elemento de alienação, mas remete a uma abordagem
pelo corpo, nossa menor unidade geográfica, termo proposto por Costa (2011) ao traduzir
a expressão the geography closest in da poetisa americana Adrienne Rich. Outra tradução
possível para esse termo foi proposta por Soja: a geografia mais próxima.

(...) nossa performance como seres espaciais tem lugar em diversas escalas,
desde o corpo, ou aquilo que a poetisa Adrienne Rich denominou, em
alguma ocasião “a geografia mais próxima”, até toda uma série de geografias
mais distantes, que abarcam desde dormitórios e edifícios, casas e bairros,
até cidades e regiões, Estados e nações e, em última instância, toda a terra – a
geografia humana mais distante (Soja, 2008, p. 34, tradução nossa).

Diferentemente das geografias distantes, essa menor geografia – ou geografia mais


próxima – se move, se desloca. Para pensar esses movimentos/deslocamentos do corpo
por outras geografias, deve-se considerar seus desejos e necessidades e suas escolhas pessoais,
mesmo quando essa escolha seja por falta de opções.
Não deixa de ser do corpo no espaço-tempo que Lefebvre está tratando ao propor a
triplicidade do conceito de espaço – percebido, concebido e vivido – e sua associação respectiva
aos conceitos de prática espacial, representações do espaço e espaços de representação. No dizer de
Lefebvre (2000, p. 50, tradução nossa) o espaço social se reporta ao corpo, já que “a relação
com o espaço de um ‘sujeito’ membro de um grupo ou de uma sociedade, implica da sua
relação com seu próprio corpo, e reciprocamente. A prática social tomada globalmente
pressupõe o uso do corpo”, ou seja, o espaço percebido é percebido pelo corpo. Da mesma
forma, Lefebvre associa as representações do corpo às representações do espaço (concebido) e é
sobre o vivido corporal que Lefebvre define a complexidade do espaço vivido. A dimensão
corporal do espaço também é retomada quando defende a superação das contradições do
espaço abstrato pelo espaço diferencial. Quando Lefebvre (2000, p. 408) defende o resgate do
valor de uso do espaço (contra o valor de troca característico do espaço abstrato) no espaço
diferencial é pela restituição do corpo, do desejo e do prazer. Logo, por analogia, vale propor
que há que se (re)apropriar também do próprio corpo em deslocamento.
Lefebvre revela no capítulo final de A vida cotidiana no mundo moderno que esse
encontro de termos se aplicava perfeitamente a seu pensamento, ao defender “que
o cotidiano se torne obra! Que toda técnica esteja a serviço dessa transformação do
cotidiano!” Para Lefebvre (1991, p. 214-215, grifos do autor), o termo obra é “uma atividade
que se conhece, que se concebe, que reproduz suas próprias condições, que se apropria
dessas condições e de sua natureza (corpo, desejo, tempo, espaço), que se torna sua obra”.
Não se trata de coincidência encontrar a tríade espaço-tempo-corpo associada ao desejo

489
como descrição de um processo de apropriação (no caso, do cotidiano tornado obra)
nesse ponto da obra de Lefebvre. Muito menos é por acaso que ele conclui A produção do
espaço de forma similar, dizendo que a necessidade da transformação da sociedade (e de
seu espaço) pela confrontação tende a

ultrapassar as separações e dissociações, notadamente entre a obra


(única; objeto portando a marca de um “sujeito”, o criador, o artista, e de
um momento que não voltará mais) e o produto (repetido, resultado dos
gestos repetitivos, portanto reproduzível, levando ao limite a reprodução
automática das relações sociais). (Lefebvre, 2000, p. 485, tradução nossa,
grifos do autor)

Lefebvre também está falando de apropriação (do espaço) ao descrever o processo


de superação das contradições do espaço em direção ao espaço diferencial. Esse importante
conceito de apropriação (em Lefebvre é sempre de inspiração marxista e associado ao valor
de uso em contraposição ao valor de troca) está presente de forma latente na proposta da
tríade espaço-tempo-corpo associada à mobilidade urbana.

Cidade e mobilidade: processos indissociáveis


Para aproximar essas reflexões de inspiração lefebvriana da disputa que ocorre
em relação aos deslocamentos cotidianos contemporâneos, as conceituações do
urbanista francês Marc Wiel parecem contribuir de forma decisiva e incisiva na
associação e indissociação entre urbanismo e transporte. Sua obra mais conhecida
trata do que ele denomina de transição urbana – a passagem da cidade pedestre para
a cidade motorizada (Wiel, 1999) – e nasce de sua “intuição” de que a mobilidade
tem um papel central na evolução urbana. Wiel (2005, p.1, tradução nossa, grifo
do autor) explica que “os fluxos de deslocamentos de um lugar a outro constituem
o lado dinâmico de uma realidade cujo lado estático é a disposição geográfica dos
estabelecimentos humanos (o que chamamos frequentemente planejamento urbano3)”.
Para ele, “a mobilidade é a contrapartida desta fixidez relativa”, uma consequência do
fato de que os estabelecimentos “mudam de natureza ou de localização tão lentamente
(em relação à mobilidade cotidiana) que podem ser considerados fixos”.
A mobilidade pode então ser entendida como a conexão entre os lugares de
copresença (todos os lugares onde se realizam atividades humanas: moradia, trabalho,
lazer, comércio, estudos etc.), expressa através de um investimento (em tempo, em

3 Adotou-se o termo planejamento urbano, mas o original termo em francês, aménagement urbain, é mais
abrangente que apenas a aplicação das leis urbanísticas, envolvendo as dinâmicas das pessoas.

490
dinheiro e em conforto) que torna possível uma interação social. Há uma relação
dialética entre os processos de localização das pessoas (habitação) e os processos
de mobilidade – conexão real ou latente entre os lugares de copresença que formam a
cidade. O desdobramento imediato da ideia de que mobilidade é a contrapartida da
localização das atividades sociais no espaço é que a localização é o fator fundamental
da necessidade de mobilidade (quantitativa e qualitativa), evidenciando a importância
da distância (expressa em espaço e/ou tempo) entre os diversos lugares de copresença.
De certa forma, há uma relação dialética entre o próximo, normalmente desejável
quando se fala em mobilidade; e o distante, presumidamente indesejável. Mas em
torno dessa dicotomia fundamental entre o próximo e o distante se desenvolvem os
processos de produção (e reprodução) do espaço urbano e o urbanismo manifesto
por projetos urbanos e por instrumentos urbanísticos. Naturalmente, as distâncias
de uma cidade não se limitam apenas a seus extremos e há uma relatividade nesses
conceitos em função dos atributos dos deslocamentos. Essa relatividade das escalas
tanto é fundamental para quem pensa e contribui para a formação da cidade (os
urbanistas no sentido amplo) quanto para as pessoas em suas decisões e escolhas (ou
falta de escolhas) cotidianas. Se por um lado o urbanista, principalmente o urbanista
modernista, torna-se um ajustador de distâncias (como constata Offner [2010]), os
moradores da cidade estão constantemente criando estratégias para se ajustar (ou se
submeter) às distâncias que a cidade lhes impõe, ajustando suas próprias distâncias
por processos de localização (da moradia, do trabalho, estudo e demais atividades).
É importante destacar dois mecanismos fundamentais e recíprocos, identifica-
dos por Marc Wiel, que associam a mobilidade à cidade: (1) avaliações das famílias
e das empresas para se localizar na cidade; (2) avaliações das famílias e das empresas
para organizar sua mobilidade. Nenhum desses mecanismos de avaliação (de locali-
zação e de mobilidade) é rígido e definitivo e, apesar de possuírem temporalidades
completamente diferentes, contemplam igualmente a consideração das possibili-
dades disponíveis e resultam em escolhas e decisões. Os mecanismos de mobilidade
(avaliações e decisões sobre os deslocamentos de um lugar a outro) são dinâmicos e
os mecanismos de localização são tão lentos que são normalmente considerados fixos.
Essa fixidez da localização é apenas relativa, pois é “consequência do fato de que um
estabelecimento urbano não pode se deslocalizar facilmente e que sua localização é
pensada para uma multiplicidade de pessoas diferentes (localizadas diferentemente)”
(Wiel, 2005, p. 1, tradução nossa).
Esses complexos mecanismos de localização e de mobilidade são influenciados por
fatores econômicos, sociais e regulatórios (e, portanto, urbanos), mas ao final, há sempre
uma escolha/decisão tomada, por opção ou falta de opção. Os fatores gerais induzem

491
as decisões – ou as restringem –, mas serão sempre pessoas que irão tomar decisões de
onde morar, onde trabalhar, onde comprar, como se deslocar; sendo, da mesma forma,
pessoas que decidirão onde as empresas e instituições serão localizadas. A ideia de escolha
parece levar a questão para um lugar oposto ao da economia política (utilizada como
referência principal): o campo da microeconomia. Para a microeconomia, há sempre uma
hipótese de que as pessoas realizam escolhas “ótimas” em função de fatores de oferta e de
demanda, onde o preço entra como uma variável importante para a tomada de decisão.
Mas essa aparente contradição entre o entendimento pela macroeconomia e a solução
pela microeconomia será tratada aqui como complementar à abordagem espaço-corpo-
tempo, com o econômico (ou o bolso) tratado como uma questão ligada ao corpo e aos
sujeitos que tomam decisões também pelo custo. Esses dois mecanismos de arbitragem
funcionam e se inter-relacionam, formando um sistema; e Wiel propõe um esquema que
tenta explicar as decisões de localização (dos lugares de copresença) e de deslocamento
(entre esses lugares), apresentado na Figura 3.
No esquema, o contexto demográfico é um pano de fundo; de um lado (no alto)
estão as instâncias de decisão (instituições, empresas e famílias), e de outro (abaixo), os
fatores que induzem atitudes (valores, recursos e atitudes). Os quatro quadros centrais
representam a cadeia de decisões, começando na organização da sociedade e chegando
à decisão do indivíduo. De certa forma, o primeiro nível refere-se às decisões de natureza
política que definem o contexto das condições de mobilidade de regulação, passando para
um segundo nível específico das decisões de localização, seguido pelas decisões sobre as
interações sociais e, por fim, as decisões de mobilidade.
É evidente que as condições de mobilidade e regulação são decorrência direta do
planejamento e regulação do uso e ocupação do solo urbano, que afeta o potencial de
uso de cada território urbano, mas também estão associados à transformação da cidade
pelas novas condições da mobilidade urbana. Em função da leitura e avaliação dessas
condições, os atores econômicos (famílias, empresas e instituições) decidem se instalar em
um lugar particular e, mesmo que não explicitamente, também decidem se permanecem
nesse determinado lugar. Mas essa decisão é afetada pelas decisões potencias de iteração
social e de mobilidade que se fazem mais cotidianamente. Uma mudança significativa
das condições em qualquer dos quatro níveis de decisão apresentados no esquema pode
levar à mudança da decisão do outro nível, levando ou à deslocalização (e relocalização)
ou à mudança da decisão sobre sua mobilidade. O grau de interdependência depende das
pessoas, dos contextos e dos tipos de interação.

492
Figura 3 - Esquema de arbitragens da mobilidade
Fonte: Wiel (2015, p. 13).

“Pequenas práticas” sociais


Na tríade conceitual do espaço (percebido-concebido-vivido) proposta por Lefebvre, o
espaço social está fundado na prática espacial de uma sociedade que “o cria e o supõe, em uma
interação dialética: ela o produz lentamente, seguramente o dominando e se apropriando
dele” (Lefevbre, 2000, p. 48, tradução nossa). Lefebvre considera que a sociedade “associa
estreitamente no espaço percebido a realidade cotidiana (o emprego do tempo) e a realidade
urbana (os percursos e redes religando os lugares do trabalho, da vida ‘privada’, dos lazeres)”
(Lefevbre, 2000, p. 48, tradução nossa). Essas práticas espaciais “modernas” se definem então

493
pela vida cotidiana dos habitantes e o espaço concebido pode ser considerado influenciável
por essas práticas que são associadas diretamente à concepção do espaço. E, naturalmente,
os espaços de representação, vivido pelos habitantes e usuários, transformam o espaço
com práticas socioespaciais que criam esse espaço vivido que vai recobrir o espaço físico
ao utilizar simbolicamente seus objetos (Lefebvre, 2000, p. 49, tradução nossa). Esse espaço
social em três momentos se reporta ao corpo, e a relação entre o sujeito, membro de um
grupo, e seu espaço, depende de sua relação com seu próprio corpo.
Ao se aproximar o olhar para os espaços e seus fixos (sistema de objetos), aproxima-
se simultaneamente de seus fluxos, (sistema de ações), das pessoas e de seus corpos, agindo
e se deslocando nesses espaços. Em sua maioria, as pessoas agem seguindo lógicas dos
processos dominantes, mas também atuam contra eles e são essas pequenas práticas
contra-hegemônicas que se quer destacar como tentativas de aberturas e apropriações. Para a
reflexão proposta, serão destacados três níveis de “pequenas práticas” sociais (individuais ou
de pequenos grupos) de (re)apropriação do espaço e do tempo da mobilidade cotidiana e
urbana. O primeiro nível é o do corpo, da menor geografia possível, do indivíduo que decide
agir contra o processo dominante. Trata-se de práticas de pessoas que decidiram sua moradia
ou seu emprego (mecanismos de localização) e/ou seu deslocamento (mecanismos de
mobilidade) de forma consciente e contrária ao processo hegemônico. Algumas pessoas
estão tomando decisões conscientes de onde morar, onde trabalhar e que modo de
transporte utilizar. Essas decisões cotidianas, com temporalidades diferentes, também
estão direcionando políticas públicas, como demonstra o esquema da metodologia
A-S-I (avoid-shift-improve; evitar-trocar-melhorar), adotado internacionalmente,4 que
dialoga diretamente com o fluxo de arbitragem de Wiel apresentado. A Figura 4 mostra
o esquema de decisões desenvolvido pela GIZ - Deutsche Gessellschaftfür Internationale
Zusanmmenarbeit (Empresa Alemã para Cooperação Internacional), que tenta induzir as
políticas de mobilidade urbana para evitar o uso desnecessário do carro, pela integração
do planejamento de uso e ocupação do solo, fazendo reduzir necessidades de viagens e
encurtando deslocamentos. Em seguida, espera-se mudar as viagens para modos de
transporte mais eficientes, como o transporte coletivo, bicicletas e trajetos a pé, fornecendo
infraestrutura e programas de incentivo a esses modos. E, por fim, espera-se melhorar as
tecnologias existentes, potencializando os efeitos de sustentabilidade.

4 Essa abordagem ASI foi desenvolvida inicialmente pelo GIZ e vem sendo adotado por ONGs e
instituições de fomento de vários países.

494
Figura 4 - Decisões associadas à metodologia avoid-shift-improve.
Fonte: Giz, ([s.d], p. 2, tradução e adaptação nossa).

A apropriação dos espaços da cidade passa necessariamente pela apropriação de


seu próprio corpo e seus próprios desejos, contrapondo-se à sociedade burocrática do
consumo dirigido (termo utilizado por Lefebvre, 1991). O corpo é um fator influente nas
escolhas pessoais para realização dos deslocamentos, tanto para uma melhor análise da
questão quanto para explicitar as políticas que possam direcionar essas escolhas por fatores
mais coletivos que individuais. Esse corpo em deslocamento vai além do corpo humano
e suas diversas condições físicas para a deambulação e de suas “transformações” em duas
ou mais rodas, principalmente do automóvel, que, como diz Milton Santos (1996, p. 42),
“é um elemento do guarda-roupa, uma quase vestimenta. Usado na rua, parece prolongar
o corpo do homem como uma prótese a mais, do mesmo modo que os outros utensílios,
dentro de casa, estão ao alcance da mão.” Algumas pessoas estão decidindo usar seu corpo
como única propulsão de seus deslocamentos, deixando de usar o carro (ou de querê-lo)
e decidindo usar o transporte coletivo. Para isso, organizam suas vidas – seus lugares de
copresença e sua mobilidade – de forma diferente e, apesar de pouco notadas no Brasil,
essas mudanças têm se intensificado aos poucos.
Pode-se constatar essas mudanças por meio de pesquisas de opinião realizadas
pelo órgão gestor de mobilidade municipal de Belo Horizonte (BHTRANS), no qual se
faz a pergunta: “Nos últimos 12 meses, você mudou de meio de transporte para realizar
o seu principal deslocamento?” Utilizando o resultado das duas últimas pesquisas,

495
realizadas em 2011 e 2013, percebe-se um crescimento discreto de 4,8% para 6,0% de
respostas positivas, ou seja, do percentual de pessoas que mudaram o modo de transporte
principal. Esses números parecem pouco expressivos, principalmente se considerarmos
que boa parte das pessoas está optando por modos individuais motorizados (carro
e moto), representando 52,7% do novo modo utilizado em 2011 e 58,0% em 2013. O
que é importante destacar é o resultado complementar, ou seja, que mais de 40% das
pessoas estão passando a utilizar modos coletivos ou não motorizados. Em resumo, se
os processos dominantes de produção do espaço para o automóvel têm resultado em
que cerca de 3,5%5 de pessoas estão adotando motos e carros, há um (contra)processo
em curso que faz com que 2,5% das pessoas entrevistadas adotem modos coletivos e não
motorizados, resultado contraintuitivo para a maioria das pessoas.
Sem nenhuma intenção de “comprovar” essas práticas através do aspecto
quantitativo, os números apresentados apenas confirmam relatos e percepções dessa
dinâmica. Mas o que tem levado as pessoas a optar por novos modos de transporte em
Belo Horizonte? Na pesquisa de 2013, os entrevistados identificaram seus motivos para
suas mudanças de escolha. Entre os que passaram a usar automóvel: 37% declararam
ser por mais rapidez, 21% por comodidade, 9% alegaram o trânsito como causa e 6%
declararam ter trocado de emprego. Entre os que passaram a usar moto: 55% o fizeram
por rapidez, 18% pelo trânsito e 18% por economia. Das pessoas que passaram a utilizar
ônibus: 31% alegaram economia, 19% por mudança de emprego e 13% pelo trânsito. Entre
os que passaram a andar a pé: o trânsito foi o motivo para 71% das pessoas e a rapidez para
29%. Entre os que passaram a andar de bicicleta: todos declararam ser por mais rapidez.
Essas pesquisas não foram realizadas com esse objetivo, mas confirmam uma
associação direta com os mecanismos de localização e mobilidade de Marc Wiel. Nota-
-se que ninguém alegou mudança de moradia para essas trocas, mas a mudança de
emprego é citada em vários casos, mostrando a influência dos mecanismos de localização.
Tampouco surgiu nos resultados a explicitação de motivos ambientais ou ecológicos que
comprovariam a existência das pequenas práticas conscientemente contra-hegemônicas,
mantendo os resultados associados às decisões de mobilidade.
Ao pensar estritamente nessas decisões, Vasconcellos (2005) apontava que dentre
os fatores que interferem na organização dos deslocamentos estão os fatores pessoais
(idade, renda, escolaridade e gênero), fatores familiares (estágio do ciclo de vida, posse
de automóvel) e fatores externos (oferta de transporte público e seu custo, custo de usar
o automóvel, localização dos destinos desejados e hora de funcionamento dos destinos

5 Os números exatos seriam: Em 2011, 2,53% adotaram carros e moto e 2,27% adotaram transporte
coletivo e não motorizado; em 2013, 3,48% e 2,52%, respectivamente.

496
desejados). Para considerar a existência de pequenas práticas no nível do corpo, deveria
existir um quarto grupo de fatores (cultural ou político) ou, ao menos, um desdobramento
e complexificação dos fatores pessoais. Em um estudo sobre repartição modal em cidades
francesas e suíças, Bovy (1999) caracterizou uma variável que parece bem interessante
nesse contexto, que é o tipo de usuário em função da sua sensibilidade para a escolha. Sua
proposta, baseada nos hábitos modais e atitudes em relação ao automóvel e ao transporte
público, considera quatro tipos de usuários:

• motoristas cativos: pessoas que jamais utilizam o transporte coletivo, mesmo


dispondo de um transporte de boa qualidade próximo;
• motoristas obrigados a usar transporte coletivo: pessoas com posição favorável ao
automóvel e desfavorável em relação ao transporte público, que só utilizam o
transporte público quando o uso de seu próprio veículo se torna problemático em
relação às condições de trânsito e de estacionamento;
• usuários sensíveis à oferta existente: pessoas que não têm preconceito e uma atitude
ponderada em relação ao carro e ao transporte público.
• ecologistas cívicos: pessoas com um sistema de valores essencialmente focado no
respeito ao meio ambiente, que privilegiam a utilização do transporte público ou
de modos mais leves de transporte (caminhada ou veículos de duas rodas), cada
vez que isto é possível sem inconvenientes excessivos.

A maioria dos usuários brasileiros ainda se enquadra nos dois primeiros tipos e os
motivos apresentados nas pesquisas em Belo Horizonte mostram o crescimento dos usuários
sensíveis à oferta (problemas de trânsito, rapidez etc.). Também estão surgindo ecologistas
convictos, ainda que não estejam evidenciados nas pesquisas. São pessoas que agem com
consciência crítica – não apenas na mobilidade – e que muitas vezes adotam atitudes políticas
na escala individual. Há uma tênue fronteira entre agir politicamente e agir de forma crítica e
consciente do impacto de suas escolhas. Essas outras “pequenas práticas”, que poderiam ser
caracterizadas como um ativismo pessoal, compõem o segundo nível a ser explorado. As atitudes
desses ativistas estão ocorrendo em vários locais do mundo e são apresentadas como ideias
em duas obras: Apocalipse motorizado (2004), de Ned Ludd, e Desobedecer ao carro (Désobéir
à la voiture, 2012), dos “Desobedientes”, grupo ativista francês. São pequenas ações políticas
de “desobediência ao carro” ou ações “anticarro”, pouco registradas quando implicam ações
que extrapolam a legislação. Ludd (2004, p. 135-140) traz uma série de sugestões de ações
anticarro, classificadas em: ações diretas; ações de via legal; ações orientadas às famílias; ações
para indivíduos (ou pequenos grupos); e ações de confrontamento das pessoas para os perigos
reais do carro. O autor explica que as ideias objetivam colocar o automóvel na ordem do dia da

497
discussão social, promovendo o questionamento da “sociedade do automóvel”, através de um
anarquismo social. Alguns exemplos citados por Ludd (2004):

• ações diretas: colocar outdoors contra obras com mensagens provocativas; criar
carros de papelão com mensagens para queimá-lo sem “um ritual de sacrifício ao
deus dos espaços públicos”; organizar ações de pedestres atravessando ruas para
protestar por segurança. Também constam ações mais radicais (lançar fumaça
em feiras de automóvel), lúdicas (festas de rua); e intervenções na infraestrutura:
pintar sua própria ciclovia, mudar a entrada de uma rua, tornando-a estreita para
diminuir a velocidade, instalar quebra-molas. Ludd ainda estimula a organização
de eventos como a “Massa Crítica”, uma pedalada que percorre a cidade para
protestar por uma cidade com menos carro.
• ações pela via legal: interferir nas políticas públicas trabalhando com a prefeitura
local ou oferecendo serviços à comunidade (“aconselhamento gratuito para
viciados em carro”) ou atuando com grupos artísticos para protestar com arte.
• ações orientadas à família: sugestões de festa sem carros e almoços comunitários.
• ações dos indivíduos ou de pequenos grupos: colocar multas falsas no para-brisa de
carros estacionados; subverter outdoors e propagandas de carro de maneira que
passem uma mensagem anticarro; carregar o sofá para a rua, sentar-se e ler um
livro; construir uma armação do tamanho de um carro para a bicicleta e andar com
ela pela cidade; modificar placas de “Pare” para “Pare de dirigir”.
• ações de confronto: ações sobre segurança (passeatas lembrando mortes no trânsito,
campanhas de arrecadação de fundos etc.).

Muitas ações similares a essas vêm sendo realizadas no Brasil e no mundo todo.
A “Massa Crítica”, citado por Ludd, é realizada em Belo Horizonte desde 2011. O texto
na página do Facebook6 do grupo “Massa Crítica Belo Horizonte” explica que “é uma
celebração para quebrar a monotonia, mecanicidade e agressividade do trânsito urbano,
levando alegria e outros elementos mais humanos – braços, pernas e rostos – no asfalto”.
Explica ainda que é organizada de forma horizontal, sem porta-vozes e sem líderes: “Ela
não tem uma voz. Ela tem tantas vozes quanto participantes. Cada um é livre para levar
a manifestação ou a reivindicação que quiser.” A primeira “Massa Crítica” ocorreu em
25 de setembro de 1992, em São Francisco, com cerca de 50 ciclistas (Les désobéissants,
2012, p. 29, tradução nossa) com objetivo de “imprimir o ritmo das bicicletas ao fluxo
de automóveis ao invés de subir a velocidade dos carros”. Insere-se em um grupo de

6 <http://www.facebook.com/groups/massacriticaBH/>.

498
ações que são simultâneas no mundo inteiro, similar ao Park(ing)Day,7 que se iniciou
em 2005, também em São Francisco, quando o grupo artístico Rebar8 transformou
algumas vagas de carro em parques temporários no centro da cidade. Outra ação
realizada em todo o mundo é o “dia mundial sem carro”, que nasce na Europa e hoje é
praticado no mundo inteiro no dia 22 de setembro.
O livro do coletivo francês Les Désobéissants (2012) proclama a desobediência ao
carro, trazendo um histórico das ações no contexto francês e também propostas focadas
nas bicicletas, como promover a vélorution (uma revolução através das bicicletas),
propostas para combater montadoras de automóveis e dificultar suas propagandas
e ações de (re)apropriação da rua, entre outras. Esse livro-panfleto faz parte de uma
coleção de “desobediências” e se alinha às propostas de ações que questionam os
modos de produção e consumo dominantes, tendo como referência a ação individual
e de pequenos grupos. Essas ações de apropriação, especialmente dos espaços públicos,
lembram as ações diretas feitas por grupos de São Paulo e Belo Horizonte, apresentadas
na Figura 5. Além de mostrar intervenções sobre a sinalização de forma lúdica (faixa de
pedestres de pano e transformação do texto das placas “PARE” para “PIRE”)”, mostra
ação de pintura do viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, criando uma via comum,
onde a bicicleta seria bem-vinda.
De forma similar, percebem-se ações no âmbito da arte, ou do que poderia ser
denominada de artivismo. Esse ativismo artístico se mistura com o político, como no caso
do Grupo Poro (de Belo Horizonte) e o Grupo Gia - Grupo de Interferência Ambiental
(de Salvador). A Figura 6 apresenta algumas ações desses dois grupos, como uma
campanha de mensagens que estimulam as pessoas a perder tempo (campanha PERCA
TEMPO: pergunte-me como) e cartazes inspirados na mobilidade urbana. Do Grupo Gia,
ações que dialogam com questões de mobilidade e apropriação dos espaços públicos.9

7 <http://parkingday.org/about-parking-day/>.
8 <http://rebargroup.org/>.
9 O grupo registra suas ações em vídeos, que podem ser assistidos em: <http://youtu.be/zPywduVsMt8>
(cama) e <http://youtu.be/v0Sh3RE-ZYo> (degrau).

499
Figura 5 - Exemplos de ações diretas de indivíduos ou pequenos grupos
No alto: à esquerda, intervenção de faixas de pedestre de pano em São Paulo; à direita, placa Pare
modificada, em São Paulo. Abaixo: à esquerda, intervenção no Viaduto Santa Tereza em Belo Horizonte,
reclamando compartilhamento de via com bicicletas; à direita, cartaz da “Massa Crítica” de janeiro de
2014 em Belo Horizonte”, que teve mais de 150 ciclistas.
Fontes: <http://vadebike.org/2014/02/faixa-de-pedestres-intervencao-largo-da-batata/>; <http://
umados3porfavor.blogspot.com.br/2012/10/pichacoes-poeticas.html>; <https://www.facebook.com/
groups/massaCriticaBH/?fref=ts>.

O mais interessante dessas ações é o fato de serem tão coincidentes às propostas do


livro de Ned Ludd (obviamente um pseudônimo que faz alusão ao ludismo, movimento
inglês antifabril do século XIX) de dez anos atrás, que parece representar a inspiração de
uma geração que agora começa a colocar em práticas estas ideias. As ideias desse livro
foram difundidas no Brasil pelo site apocalipse motorizado,10 criado em 2005 por Thiago
Benicchio, que posteriormente se alinhou ao movimento de ciclopolítica, principalmente
na Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade).

10 Disponível em: <http://www.apocalipsemotorizado.net/>.

500
Figura 6 - Exemplos de ações diretas de indivíduos ou pequenos grupos
Ações do Grupo Poro (BH) e do grupo Gia (Bahia)
Fontes: <http://poro.redezero.org/>; <http://giabahia.blogspot.com.br/2009/08/degrau-do-gia.html>;
<http://acasoarte.wordpress.com/tag/almandrade/>.

Cabe destacar que essas ações de ativismo pessoal ainda são facilmente observadas
e difundidas pelas redes sociais – não se limitando ao tema de mobilidade urbana – e
estão associadas a uma nova geração de pessoas que tanto reproduzem pequenas práticas
individualmente quanto participam da formação dos coletivos organizados, apresentados
como um terceiro nível. As redes sociais, além de permitirem a difusão dessas ações políticas,
são a base de sua estruturação. Os grupos se organizam e suas ações são divulgadas por
meio das páginas em Facebook, vídeos no Youtube (outros sites de compartilhamento de
vídeos) e de grupos de contato por celular (tipo WhatsApp), que permitem a organização
de ações. Fica evidente que está sendo formada uma nova (contra)cultura que, apesar de
não se limitar às novas gerações, estão firmemente associadas a elas.
Um terceiro nível de “pequenas práticas” refere-se a práticas coletivas de ação
política, em que coletivos organizados realizam ações para interferir tanto no simbólico
quanto no real, através de ações diretas e de intervenção junto às políticas públicas.
Nesse caso, entre muitos, apresenta-se exemplos de três coletivos de Belo Horizonte
que atuam na apropriação dos espaços públicos, nos modos de transporte coletivo e

501
não motorizados (bicicleta): “Pise a Grama”, “Tarifa Zero” e Associação de Ciclistas
Urbanos de Belo Horizonte – “BH m Ciclo”.
O coletivo “Pise a Grama”, hoje institucionalizado como uma editora que publica
a revista homônima, tem se destacado na promoção de ações associadas a estratégias
de marketing para debater o espaço urbano. Uma “campanha” iniciada em setembro de
2012 durante o evento “Noite Branca” lançou produtos (cartaz, adesivo e sacolas) com
seis mensagens e obteve um sucesso impressionante. A Figura 7 mostra as mensagens
dessa campanha, que parece alterar – através do conceitual e do racional – o espaço
triádico concebido-percebido-vivido, criando possibilidades utópicas (utopias possíveis/
impossíveis) e trazendo um efeito de “desalienação” e de politização, evidenciando
possibilidades para o espaço que podem ser consideradas aberturas. Essas mesmas
mensagens foram objeto de uma “campanha não eleitoral” que disputou os muros e
cavaletes da cidade com cartazes de políticos durante as eleições de 2012.

Figura 7 - Campanhas do coletivo Pise a Grama


No alto: sacolas da campanha do Pise a Grama; abaixo: campanha não eleitoral.
Fonte: <http://piseagrama.org/>.

Por sua vez, o movimento Tarifa Zero (TZ), que nasce como desdobramento
do movimento estudantil pelo Passe Livre, ganha força nas manifestações de junho de
2013 e aponta o dedo para essa uma nova utopia possível/impossível que é circular
livremente pela cidade através de um transporte público gratuito. Após as manifestações,
o TZ passa a atuar no Grupo de Trabalho de Mobilidade da Assembleia Horizontal,
criado após a ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte na política urbana

502
da cidade. A conexão entre o “Pise a Grama” e o TZ vai além das mensagens similares
(#ônibussemcatraca), uma vez que compartilham pessoas e estratégias, criando sua
própria campanha (esteticamente similar à do Pise a Grama). A Figura 8 apresenta
imagens da interface visual entre o “Pise a Grama” e o TZ, além da “busona sem catracas”
e de cartaz sobre propostas de emendas orçamentárias.

Figura 8 - Passeata, camiseta do Tarifa Zero e busona sem catracas


Fontes: <http://tarifazerobh.org/>; <http://piseagrama.org/pagina/834/campanha-nao-eleitoral>;
<http://www.facebook.com/tarifazerobh>.

O que se destaca aqui é o potencial transformador do espaço que uma tarifa zero
poderia provocar, pelo seu caráter simbólico e fatual (plena liberdade de ir e vir) e que
vem sendo testado na prática por ações de ônibus gratuito durante o Carnaval de 2014 e
durante o Festival de Inverno da UFMG em julho de 2014. Suas ações diretas continuam a
acontecer e a chamar a atenção, tendo a ação “busona sem catracas”11 sido selecionada para
o prêmio Mobilidade Minuto, promovido em 2014 pelo Instituto Cidade e Movimento.

11 Ver: <http://www.cidadeemmovimento.org/premiomobilidademinuto/iniciativa/
aae264cb789408f14a99f11b7db34958>.

503
Circular com um ônibus sem catraca e tarifa zero no carnaval ou em um festival é uma
ação simbólica de alto impacto, mas a partir do momento que circula no itinerário de uma
linha existente (fato que ocorreu no dia mundial sem carro de 2014) e transporta pessoas
em seu dia a dia, a ação ganha uma dimensão política ainda maior, que ampliam a gama
de ações de um coletivo que também faz proposições de leis e de emendas orçamentárias.
Já a Associação de Ciclistas Urbanos de Belo Horizonte – BH em Ciclo, criada em
2012 e atuando na ciclopolítica da cidade com um pequeno grupo de pessoas (pouco mais
de 30 associados), tem conseguido catalisar o interesse de milhares de pessoas que desejam
uma cidade com espaços reais para modos não motorizados e bicicletas. Suas estratégias
envolvem ações na “via legal”, influenciando nas políticas públicas, tanto forçando a criação
de um espaço de debate sobre a bicicleta (Grupo de Trabalho para debater o Programa
Cicloviário de Belo Horizonte - GT Pedala BH) quanto fazendo proposições diretas como
a aprovação de recursos no plano de investimentos municipal (aprovação de emenda no
Plano Plurianual de Governo - PPAG) a serem destinados para campanhas educativas.
Mais uma vez, há uma interface entre os coletivos, como foi o exemplo de ação conjunta
entre TZ e “BH em Ciclo” em uma pedalada contra viadutos na cidade ocorrida em julho
de 2014. A Figura 9 mostra algumas das ações da “BH em Ciclo”.
O espaço de atuação de um grupo de ciclistas pode parecer limitado à primeira
vista, mas a articulação nacional dos grupos de ciclistas através da União de Ciclistas do
Brasil (UCB) mostra que essas pessoas, como o Thiago Benicchio, estão bem envolvidas
no contexto geral da mobilidade urbana, participando de ações políticas em diversos
níveis (individual, ativista ou coletivo). Apesar de haver indícios de ser um fenômeno
geracional, envolve ativistas de outras gerações, pessoas de diversas idades e de diversos
países. Eventos internacionais estão ocorrendo, como o 4º Fórum Mundial da Bicicleta,
em fevereiro de 2015 em Medellin-Colômbia, e do Velo-city (Nantes-França, 2015), com
a internet e as redes sociais facilitando a articulação das pessoas e grupos, propagando
ações e estimulando coletivos em diversos países. De certa forma, grupos de ciclistas são
ótimos exemplos de como as denominadas “pequenas práticas” que procuram questionar
o sistema fechado de cidades feitas para carros se propagam hoje em dia.

504
Figura 9 - Ações da BH em Ciclo
No alto: imagem do convite para a pedalada “Não foi acidente” e cartaz alusivo ao momento; abaixo:
chamada para reunião do GT Pedala feito pela “BH em Ciclo” e imagem da campanha de recursos para
campanhas educativas no PPAG.
Fonte: <http://www.facebook.com/bhemciclo>.

Os exemplos aqui apresentados para ilustrar os três níveis de “pequenas práticas”


identificados indicam que há uma forte interconexão e autoalimentação entre esses níveis,
fazendo com que o envolvimento em coletivos, o ativismo pessoal e as decisões individuais
sejam apenas faces do que parece ser um mesmo (contra)processo, que induz mudança
em comportamentos individuais e estimula envolvimento político em um formato novo e
que ainda precisa ser melhor estudado. Inúmeros outros movimentos e práticas coletivas
podem ser encontrados em atuação tanto em Belo Horizonte quanto em outras cidades
brasileiras e do resto do mundo. Uma boa fonte de iniciativas pode ser encontrada na edição
do Prêmio Mobilidade Minuto,12 que recebeu inscrição de iniciativas que mostram uma boa
diversidade nas “pequenas práticas” sociais relativas à mobilidade urbana que privilegiam:
sustentabilidade nos transportes, melhoria do meio ambiente urbano, qualidade de vida e o
uso equânime do espaço urbano, a melhoria do meio ambiente urbano, a qualidade de vida

12 Prêmio promovido pelo Instituto francês Cidade em Movimento, que se instalou recentemente no Brasil.
Disponível em: <http://cidadeemmovimento.org/premio-mobilidade-minuto/>. Acesso em: 1º dez. 2014.

505
e o uso equânime do espaço urbano. Foram selecionadas quase 80 iniciativas inovadoras
que mostram a diversidade e a criatividade na área de mobilidade.

Conclusão
Wiel (2002, p. 16, tradução nossa) vai constatar que “‘Cidade e mobilidade’ são indissociáveis, se
coproduzem mutuamente, se explicam reciprocamente, fazem sistema etc., que “a mobilidade
participa da definição da cidade” e que “são as avaliações das famílias e das empresas para
organizar sua mobilidade em função de sua localização, e reciprocamente, que modelam e
desenham a cidade”. A não compreensão dessa relação pode levar a certos equívocos, como a
autonomia excessiva da política de mobilidade em relação à política urbana, que ele qualifica
como a “fonte de todas as nossas dificuldades” (Wiel, 2005, p. 2, tradução nossa). Para Wiel,
o que justifica essa incompreensão é o pensamento dominante da cidade “como uma forma
material e simbólica, portanto estática, e não como um sistema dinâmico se adaptando
permanentemente às incessantes e flutuantes interações de seus ocupantes”.
No século XX, durante décadas, a autonomia da política de mobilidade em prol do
automóvel foi tão intensa que dominou a cidade e seus espaços. O presente texto procurou
mostrar como esse sistema foi se urdindo até ser considerado um sistema fechado, difícil
de ser rompido, mas que clama por aberturas. As “pequenas práticas” identificadas nas
últimas décadas em cidades de todo o mundo não foram suficientes para romperam
com esses processos de forma global, mas pelo menos foram capazes de transformar os
espaços internos de algumas cidades pelo mundo, como Copenhague e Amsterdam. Na
capital da Holanda, uma rica história foi a resistência dos moradores do bairro de Pijp13
contra o uso das ruas pelo automóvel. Movimento iniciado por crianças, em março de
1972, que resolvem questionar os motivos das ruas serem para carros e não para brincar.
Após mobilizar moradores do bairro, as ações se desdobram em um movimento social
que se inicia de forma pacífica, mas que acaba gerando reações e contrarreações violentas.
As reivindicações são levadas aos políticos e os resultados acabam por transformar as
políticas públicas da cidade de forma definitiva.
Em recente entrevista, o antropólogo português Paulo Barroso trata do movimento
que funde ações artísticas com estratégias políticas ao ativismo político com estratégias
artísticas. Registra Paulo Raposo que esse artivismo inicia-se em Londres, nos anos de
1990, não casualmente por um movimento denominado “Reclaimingthestreets”, com festas
nas ruas para resistir à implantação de vias rápidas em Londres.

13 Um pouco da história pode ser vista no site: <https://bicycledutch.wordpress.com/2013/12/12/


amsterdam-children-fighting-cars-in-1972/>; ou no vídeo De ijp, Amsterdam 1972, disponível no em:
<www.youtube.com>.

506
Para Raposo (2014, [s.p.]), os espaços públicos são os últimos lugares que nos
restam para dialogar com o poder. E completa:

Parlamentos, ministérios, prefeituras são lugares aos quais o cidadão tem pou-
co acesso. Há o voto, mas não há diálogo. Por isso as pessoas sentem necessi-
dade de reafirmar que o espaço público é um espaço do público. Passeatas e
até grandes revoltas sempre foram dirigidas ao poder. As novas formas bus-
cam o diálogo com o mundo em busca do comum (Raposo, 2014, [s.p.]).

Figura 10 - Ações de (re)apropriação no Bairro de Pijp, Amsterdam, em 1972.


No alto: fotogramas do documentário De Pijp, 1972, com as frases: “tudo é devotado ao estacionamento.
Por que não podemos andar de bicicleta?” e “Tirem os carros do caminho, nós queremos brincar!” Abaixo:
cena de manifestações contra carros nas ruas e artigo de jornal relatando mais uma manifestação.
Fonte: <http://www.amsterdamculture.com/2014/02/06/pijp_1972_video_ferdinand_bolstraat_
noord_zuid_lijn_north_south_lin/http://comunidadecologicapenalolen.bligoo.com/ninos-
que-lucharon-por-sacar-los-autos-en-holandae https://bicycledutch.wordpress.com/2013/12/12/
amsterdam-children-fighting-cars-in-1972/>.

507
No início deste texto, adotou-se a proposição de Paquot (2009) de utilizar o
termo espaços públicos (plural) para “os locais acessíveis ao(s) público(s)”, ruas, praças e
avenidas onde se realizam os deslocamentos da mobilidade cotidiana, em contraposição
ao espaço público (singular), lugar do debate político e da confrontação de opiniões. Ao
final, percebe-se que as “pequenas práticas” de apropriação relacionadas à mobilidade
apresentadas acabaram por transformar esses espaços públicos em espaço público.

REFERÊNCIAS
ANFAVEA. Séries temporais de autoveículos. Disponível em: <http://www.anfavea.com.br/tabelas.html>.
Acesso em: 06 mar. 2015.
ANTP - Associação Nacional de Transporte Público. Transporte humano – cidades com qualidade de vida. São
Paulo: ANTP, 1999.
BENNICHIO, Thiago. Quem fomos. São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.apocalipsemotorizado.
net/>. Acesso em: 30 nov. 2014.
BHTRANS. Pesquisas de opinião. Belo Horizonte: 2013 e 2011.
BOVY, Philippe. H. Structure urbaine et répartition modale: tendances globales et effets sur les transports
publics Public Transport International, Bruxelas, UITP, v. 48, p. 8-15, 1999.
COSTA, Tiago Esteves Gonçalves da. O transporte, a cidade e as pessoas – possibilidades e implicações do
uso de estações subterrâneas de ônibus compactas. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura e Urbanismo da
UFMG, 2011.
GIZ - Deutsche Gessellschaft für Internationale Zusanmmenarbeit (Empresa Alemã para Cooperação
Internacional). Sustainable Urban Transport: avoid – shift – improved (A-S-I). Eschborn: Giz, [s. d.].
Disponível em: <http://www.giz.de>.
JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
LEFEBVRE, Henri. La production de L’espace. Paris: Ed. Anthropos, 2000.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2011
LES DÉSOBÉISSANTS. Désobeir à la voiture. Congé-sur-Orne: Le Passager Clandestin, 2012.
LUDD, Ned. Apocalipse motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído. São Paulo: Conrad
Editora de Brasil, 2004.
OFFNER, Jean-Marc. L’urbaniste? Un ajusteur de distances. Urbanisme, Paris, n. 372, p. 56-57, 2010.
PAQUOT, Thierry. L’espace public. Paris: Éditions La Découverte, 2009.

508
RAPOSO, Paulo. Conte algo que não sei (entrevista). O Globo, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://
oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/paulo-raposo-antropologo-espaco-publico-
espaco-do-publico-14621245#ixzz3KhBvH7LM>. Acesso em: 1º dez. 2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2006.
SANTOS, Milton. O tempo nas cidades. Ciência e Cultura, v. 54, 2002. Disponível em: <http://
cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v54n2/14803.pdf>. Acesso em 1º dez. 2014.
SOJA, Edward W. Postmetropolis: estúdios críticos sobre las ciudades y lãs regiones.Madrid: Traficantes de
Sueños, 2008.
VASCONCELLOS, Eduardo. Mobilidade, equidade e sustentabilidade. I Curso Internacional de Transporte e
Sustentabilidade. ANTO/Movimento. São Paulo, junho 2005. mimeo.
WEIL, Marc. Questions de mobilité – la mobilité en questions.Apostila do curso (capítulo 1). Brest: Institut
de Géoarchitecture de Brest, 2005. não publicada.
WEIL, Marc. Ville et automobile. Paris: Descartes & Cie, 2002.
WEIL, Marc. La transition urbaine – ou le passage de la ville pédestre à la ville motorisée. Paris: Sprimont:
Architecture + Recherche / Pierre Mardaga, 1999.

509
Implosão e explosão:
mercado imobiliário e
a Exópolis belo-horizontina
Renan Pereira Almeida

Introdução1

No princípio, era o valor de uso. A moradia era o lócus da proteção, alimentação e re-
pouso, permeando a própria constituição civilizatória sedentária. Contudo, ao longo do
processo de desenvolvimento capitalista, com o valor de uso sendo substituído pelo va-
lor de troca, o uso do solo assumiu dimensões e características inimagináveis, quando se
consideram problemáticas contemporâneas como o déficit habitacional, a degradação
de antigas centralidades, a especulação imobiliária, o simulacro dos condomínios fecha-
dos e a fabulosa valorização dos imóveis ocorrida na última década em várias partes do
mundo (Guigou, 1982; Harvey, 2006; 1974; Plambel, 1987).
Partindo desse amplo panorama, este trabalho pretende discutir as tendências
espaciais contemporâneas das metrópoles, através do mercado imobiliário metropoli-
tano. Essas tendências são pensadas a partir das obras de autores como Lefebvre (1999;
2001a;) e Soja (2000; 2013), visando buscar uma “ligação” nos termos que Harvey
(2009) discute. Após toda a desconstrução representada pela Pós-Modernidade, have-
ria chegado a hora de religar conceitos para formar alguns consensos. Ainda buscando
estabelecer conexões, o mercado imobiliário é utilizado para a ilustração empírica dos
conceitos aqui apresentados.

1 Agradeço aos comentários e sugestões de Roberto Monte-Mór, Pedro Amaral, Marcelo Brandão,
Leandro Souza e Felipe Magalhães. Todos eventuais erros são de inteira responsabilidade do autor.
Especificamente no plano teórico, os conceitos de implosão e explosão, extraídos da
obra de Lefebvre (1999; 2001a; 2001b), são apresentados como dois dos movimentos
espaciais que caracterizam as metrópoles contemporâneas, e são conceitos que parecem
dialogar com o que Soja (2000) chama de Exópolis: a metrópole que está simultanea-
mente “virada de dentro para fora” e “virada de fora para dentro”.
Esta reflexão é, então, ilustrada por dados do mercado imobiliário da Região Me-
tropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Isso permite notar como o contexto da globa-
lização, da urbanização extensiva, da própria formação da sociedade urbana, vem (re)defi-
nindo o papel das áreas centrais da cidade (implosão) e das vastas áreas incorporadas às
regiões metropolitanas pelo processo de produção imobiliária (explosão). Esses dados
evidenciam ascensões e declínios de espaços na hierarquia do mercado de terras urbanas
da Exópolis em questão.

Fenômenos espaciais das metrópoles contemporâneas

Dentre as numerosas tentativas de se compreender a estrutura espacial das aglomerações


humanas contemporâneas, pode-se destacar a obra de Henri Lefebvre, o qual parte da hi-
pótese-definição de sociedade urbana, derivada da percepção de que a humanidade está
em um processo de urbanização completa da sociedade (Lefebvre, 1999). Nesse sentido,
o urbano (que pode ser entendido como abreviação de sociedade urbana) é uma virtuali-
dade: processo que se vislumbra e que é presumido em vias de concretização. Em outras
palavras, as sociedades contemporâneas estariam caminhando para um processo de urba-
nização plena, embora isso ainda não tenha ocorrido (Almeida, 2015).
Nesse contexto, Lefebvre (1999; 2001b) elabora um constructo que pode ser re-
presentado por um continuum, que é ao mesmo tempo espacial e temporal. Em sua extre-
midade esquerda, há (houve) a “pura natureza”, ausente de urbanização, enquanto em sua
extremidade direita, há a culminação do processo, a urbanização inteiriça. Como expõem
Monte-Mór (2006) e Tonucci Filho (2013), a partir da leitura de Lefebvre (1999) so-
bre esse continuum, encontram-se, respectivamente, a cidade política, a cidade mercantil,
a cidade industrial e a “zona crítica”. Como há uma noção de temporalidade, entende-se
que tais “tipos” de configuração se sucedem cronologicamente, apesar da existência de
casos de cidades que não passaram por algumas das “fases” (Almeida, 2015). A seguir, esse
constructo é exposto na Figura 1.

512
Figura 1 - Continuum
Fonte: Lefebvre (1999).

Diante disso, Lefebvre (1999) expõe, então, os conceitos que são destacados no
presente artigo – implosão e explosão. Na transição da cidade industrial, centrada na lógi-
ca da produção, para a zona crítica, na qual se encontra o princípio da urbanização total,
a cidade implode sobre si mesma e explode pelo espaço circundante (Monte-Mór, 2006,
2014). Nesse ponto, vale citar:

A implosão se dá na cidadela sobre si mesma, sobre a centralidade do ex-


cedente/poder/festa que se adensa e reativa os símbolos da cidade ame-
açada pela lógica (capitalista) industrial. A explosão se dá sobre o espaço
circundante, com a extensão do tecido urbano, forma e processo socio-
espacial que carrega consigo as condições de produção antes restritas às
cidades (Monte-Mór, 2006, p. 9).

Nesse contexto, a implosão pode ser interpretada como uma retomada ou cristali-
zação das áreas centrais das metrópoles, que antes foram ameaçadas pela lógica industrial, e
com os processos de acumulação flexível e globalização no pós-fordismo são revaloradas. Sobre
essa possibilidade, Harvey (2014, p. 57) afirma que “as cidades centrais na Europa Conti-
nental estão, por exemplo, passando por um singular reavivamento”. Em outros termos, no
processo de mercantilização da cidade, as áreas centrais são revitalizadas, seja via Estado ou
capital privado, o que pode gerar o processo que tem sido chamado de gentrificação.
É interessante refletir que o processo de implosão pode, na verdade, se dar como
“ondas” ou “ciclos” ou “rodadas” de implosões, em um processo em que a mesma área
pode receber um choque positivo e se elevar na hierarquia intraurbana, e após certo pe-

513
ríodo, decair novamente.2 Esse processo de ascensões e declínios pode ocorrer diversas
vezes ao longo da história da cidade.
Para a explosão, vários termos têm sido usados para tentar capturar o que está
acontecendo com as áreas não centrais das metrópoles contemporâneas. Dentre esses
termos, podem-se citar as expressões “dispersão urbana”, “espraiamento”, “crescimento
nas franjas metropolitanas”, “urbanização extensiva”, “metrópole invertida”, “urbaniza-
ção periférica”, entre outros. Sudjic (1992) usa o termo “100 Mile City” para deno-
tar a escala expandida e a forma galáctica das metrópoles contemporâneas, e Muller
(1976) utiliza a expressão “Outer City”. Todos eles, de alguma maneira, estão tentan-
do relatar o que está ocorrendo nas últimas décadas nas periferias das metrópoles,
que expandem suas dimensões físicas e reconfiguram uma série de novas relações
socioeconômicas. Esse processo é ilustrado pelas palavras de Castells (1996, p. 207),
que afirma que “megacidades são constelações descontínuas de fragmentos espaciais,
pedaços funcionais, e segmentos sociais”.
Nesse panorama, é possível estabelecer uma relação da obra de Soja (2000) com
esses conceitos. Esse autor elabora o conceito de Pós-Metrópole, a metrópole Pós-Fordis-
ta e Pós-Moderna.3 Após apresentar diferentes discursos sobre a reestruturação urbana
dos últimos 40 anos, o autor apresenta outra ideia fundamental a este estudo, o conceito
de Exópolis. A Exópolis é exposta como a síntese da nova escala regional explodida e im-
plodida da Pós-Metrópole (Tonucci Filho, 2013).
Soja (2000) explica que esse termo de múltiplos lados contém o prefixo “exo” em
referência direta às cidades “outers”, aquelas que crescem fora da centralidade. E, também,
sugere a crescente importância de forças exógenas reformulando o espaço urbano na era
da globalização. O prefixo pode também ser visto como uma dica de “final de”, como em
“ex-cidade”, a ascensão de cidades sem os traços tradicionais de como elas eram definidas
no passado. Como salienta o autor, o termo Pós-Metrópole não quer dizer que todos os
traços das metrópoles foram apagados, mas consiste em uma tentativa de evidenciar o que
há de novo e que vai além das metrópoles comumente entendidas (Soja, 2000; 2013).
O termo Exópolis é usado, em Soja (2000), para significar uma síntese recombi-
nante e uma extensão. A Exópolis é produto de

(...) ambas descentralização e recentralização, desterritorialização e reterri-


torialização, contínua extensão e nucleação urbana intensificada, crescente
homogeneidade e heterogeneidade, integração e desintegração socioespa-
cial, e mais. A complexa Exópolis pode ser metaforicamente descrita como

2 Devo essa observação a Leandro Aguiar, feita no workshop “Teorias e Práticas Urbanas”.
3 Para uma discussão mais detalhada do conceito de Pós-Modernidade, ver Harvey (1992).

514
a “cidade virada de dentro para fora”, como na urbanização dos subúrbios e
na ascensão da Outer City. Mas ela também representa “a cidade virada de
fora para dentro”, a globalização da Inner City que traz todas as periferias do
mundo para o centro (...) (Soja, 2000, p. 250, tradução nossa).

Portanto, “implosão” e “explosão” são os termos escolhidos, dentre vários outros


que existem, para definir os fenômenos de interesse discutidos neste trabalho. Esses dois
fenômenos podem ser abarcados, simultaneamente, pela ideia de Exópolis. Assim, vê-se
uma ligação entre esses dois importantes autores, Lefebvre e Soja, permitindo uma tenta-
tiva de vislumbrar um consenso sobre o que está acontecendo nas últimas décadas nos
espaços metropolitanos.

À guisa de empirismo: uma ilustração a partir de dados do


mercado imobiliário da RMBH

Para atender ao objetivo de ilustrar os fenômenos espaciais discutidos neste artigo para
Belo Horizonte (BH) e sua região metropolitana, foram usados dados do mercado imo-
biliário residencial – apartamentos para o caso de BH e casas para o caso da RMBH. O
banco de dados utilizado no caso de BH foi construído a partir de dados do “Imposto de
Transmissão de Bens Imóveis ‘Inter-vivos’” (ITBI), que são fornecidos pela Prefeitura de
Belo Horizonte (PBH) ao Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contá-
beis (Ipead), que os repassaram ao autor deste estudo. O ITBI é um tributo cobrado sobre
cada operação de compra/venda e permuta de um imóvel, a partir de um valor declarado
do bem, sendo condição necessária para o registro em cartório da transferência do imóvel.
Para a análise da implosão foram usados dados anuais agrupados para 2007 e 2013, para a
tipologia “apartamentos” (Almeida, 2015).
Para a explosão, foram usados dados do site “Net Imóveis”,4 para o ano de 2013.
Evidentemente, seria preferível usar dois anos para a comparação e captura de um proces-
so dinâmico. Entretanto, trata-se de uma metodologia nova de obtenção de dados, e por
isso só foi possível utilizar um ponto no tempo.

Implosão
Um dos objetivos deste artigo é ilustrar, a partir de dados do mercado imobiliário,
se existem evidências da tendência espaço-temporal da implosão na área central de Belo

4 A Net Imóveis é uma rede de imobiliárias associadas que compartilham suas carteiras de imóveis.
Dentre os portais investigados, este foi o que possibilitou o maior banco de dados para a RMBH, com
mais de 57 mil observações, em quase todos os municípios da região.

515
Horizonte nos últimos anos. A área central de Belo Horizonte é visualizada na Figura 2,
com as Unidades de Planejamento (UPs) que a compõe em evidência.

Figura 2 - Belo Horizonte e sua área central


Fonte: Elaboração própria.

Dessa maneira, como mostram a Tabela 1 e a Figura 3, a área central de Belo


Horizonte apresentou diferentes movimentos em relação à hierarquia no mercado
imobiliário residencial.
Como pode ser apreendido da Tabela 1, a UP “Centro”, que é composta apenas
pelo próprio bairro Centro, manteve-se praticamente estável na hierarquia de preços do
mercado imobiliário de Belo Horizonte – muito embora seu preço médio tenha subido
cerca de 200% em termos reais. Isso significa que em outras UPs esse aumento de preços
foi muito maior. Assim, essa UP subiu apenas duas posições nesse ranking, passando a
ser apenas a 32º mais cara em 2013, em um total de 80 UPs consideradas. Ademais, e
principalmente, foi a UP da área central que sofreu a maior queda nas quantidades tran-
sacionadas, numa magnitude de 45%. Isso mostra que os modelos que definem o Central
Business District (CBD) como a área onde o preço da terra é mais alto e decai a partir dali
em algum gradiente envolvendo distância e/ou densidade não parecem contribuir para
entender o mercado imobiliário belo-horizontino e a estrutura urbana da cidade.

516
Uma situação semelhante pode ser vista para a UP Francisco Sales, que recebe o
nome de uma avenida que corta parte dos bairros Floresta e Santa Efigênia. Essa UP teve
um preço médio que se elevou bem abaixo da média das demais UPs da área central,
levando a uma queda da 10ª para a 12ª colocação no ranking. Quanto as quantidades
transacionadas, houve uma queda de 27% nas transações.

Tabela 1 - Quantidades transacionadas (N), Preços médios e ranking entre 2007 e 2013

* A preços de dezembro de 2013.


Fonte: Resultados da pesquisa.

Se as UPs Centro e Francisco Sales apresentam evidências de uma posição relati-


vamente estável, principalmente quanto a preços médios de apartamentos, a UP Savassi
mostra uma cristalização de sua centralidade. Essa UP, que é composta pelos bairros Fun-
cionários, Boa Viagem, Savassi, Lourdes e Santo Agostinho avançou no ranking de preço
médio, passando da 3ª para a 2ª mais cara. Mais uma vez, a ideia de distância para explicar
o preço da terra urbana parece pouco razoável, já que essa UP é contígua a todas as outras
mostradas na Tabela 1. Mesmo tendo uma queda nas quantidades transacionadas entre
2007 e 2013, o avanço no ranking indica que a UP Savassi teve maior variação no preço
médio do que outras UPs que estão no topo do ranking.
Quando se analisa a UP Barro Preto, novamente a ideia de distância se torna pouco
explicativa para o mercado imobiliário, uma vez que essa UP, contígua ao Centro e à Savassi,
destoa de suas vizinhas em todas variáveis consideradas. Em 2007 e 2013, suas quantidades
transacionadas foram bastante inferiores ao de todas as outras UPs dentro da área da Avenida do
Contorno, e sua valorização (nominal, ou seja, sem considerar efeitos inflacionários) no período
considerado foi discrepante da média das outras UPs: 237%. Por isso, essa UP (que é composta
apenas pelo próprio bairro Barro Preto) passou de 26º para 15º no ranking dos preços médios.

517
Ao analisar a Figura 3, que mostra os preços médios de todas as UPs consideradas
nos dois períodos, a percepção de que as áreas centrais – se entendidas como a Regional
Centro-Sul de BH – estão com seus preços médios se elevando acima da média da cida-
de. A área de coloração vermelha mais intensa representa exatamente a Regional Centro-
-Sul, com as favelas do Morro das Pedras e da Barragem Santa Lúcia incrustadas ao meio
das áreas residenciais das elites. As áreas em amarelo evidenciam principalmente a Regio-
nal Pampulha e a região da Avenida Cristiano Machado. Uma mudança notória se deu na
Regional Venda Nova, com considerável elevação dos preços médios.
Portanto, a partir dessa perspectiva, a área central de Belo Horizonte apresentou evi-
dências do fenômeno da implosão – no sentido de revitalização ou revalorização das áreas
centrais. Devido à heterogeneidade interna da área central, torna-se difícil determinar ao certo
uma tendência única, já que os pontos de partida são severamente diferentes – em outras pa-
lavras, Savassi e Barro Preto já eram muito diferentes das demais. Caso se pense na hipótese
de implosão exclusivamente para o Centro, então é possível interpretar esses dados como um
processo de revitalização, no qual não há mais muitas unidades a serem vendidas (o que ex-
plicaria a queda nas quantidades transacionadas), e os preços médios estão subindo além da
média da cidade (o que pode ter provocado aumento no ranking de preços médios).

Figura 3 - Preço médio de apartamentos por UP (2007-2013)


Fonte: Resultados da pesquisa.

518
Explosão
Para essa tendência espacial, os resultados foram gerados a partir dos dados do site Ne-
timóveis, contemplando toda a RMBH. Nesse caso, a unidade de análise é o município. Para
esses dados, a variável “área” está disponível, de maneira que foi possível realizar uma análise de
preços por metro quadrado, evitando o viés que pode surgir devido ao tamanho do imóvel.
Assim, a Figura 4 mostra, através de suas cores, as tendências espaciais relativas
ao preço médio por metro quadrado para a RMBH para março de 2014, considerando
a tipologia casa. Os círculos de cor preta mostram a quantidade de anúncios para cada
município. Dessa forma, é notável a importância hierárquica de Belo Horizonte em sua
Região Metropolitana, seja em termos de preços quanto em termos de volumes. Essa
característica é, inclusive, apontada como uma das principais fragilidades dessa Região
Metropolitana (Costa et al., 2006; Monte-Mór; Ruiz, 2010; UFMG, 2011).
Entretanto, essa centralidade da capital em relação aos demais municípios da
Região não impede que existam evidências da extensão das moradias pela metrópole.
Tomando apenas a tipologia “casas”, essa tendência à expansão se torna mais clara, com
municípios tão distantes do hipercentro metropolitano como Jaboticatubas, tendo pre-
ços médios do metro quadrado mais altos do que a própria capital. A Tabela 2 apresen-
ta um ranking desses preços, considerando apenas os municípios que possuíam mais
do que 30 observações.

Tabela 2 - Ranking dos preços médios por m² para casas - RMBH (2014) – Municípios Selecionados (n>30)

Fonte: Resultados da pesquisa.

519
Além disso, a Tabela 1 mostra a grande quantidade de ofertas de imóveis em outros
municípios da RMBH, com destaque para Contagem, Betim, Nova Lima, Ibirité, Lagoa
Santa, Jaboticatubas e Esmeraldas. Esses dois últimos distam, respectivamente, cerca de
65 km e 40km do centro da capital, evidenciando a “urbanização extensiva” (Monte-Mór,
2006) atual e forma galáctica da metrópole contemporânea (Soja, 2000).

Figura 4 - Preço médio do m² - Casas – RMBH (2014)


Fonte: Resultados da pesquisa.

520
Nesse contexto, vale mencionar também que essa expansão das moradias da
RMBH se dá essencialmente de duas maneiras, definidas a partir do público-alvo dessas
moradias: casas em condomínios fechados para as elites; e moradias estendidas pelo teci-
do urbano para trabalhadores. O tipo de uso do solo desse primeiro grupo é refletido nos
dados de municípios como Nova Lima, Jaboticatubas, Brumadinho e Lagoa Santa. No
caso do tecido urbano, isso está refletido em municípios como Contagem, Ibirité, Vespa-
siano, Betim, Ribeirão das Neves, entre outros.

Conclusões

Pelo que foi exposto neste texto, tem-se a compreensão de que os fenômenos da implo-
são e explosão podem caracterizar os espaços urbanos pós-modernos, e há possibilidade
de serem discutidos a partir da lógica da produção imobiliária nas metrópoles. Ademais,
essas tendências espaciais contemporâneas podem ser esclarecidas pela leitura crítica das
Pós-Metrópoles. Sendo assim, este artigo visa conectar a tríade implosão/explosão - Exó-
polis - mercado imobiliário metropolitano.
A partir da apresentação dos conceitos, das visões dos autores e da discussão teó-
rica suscitada, é possível perceber que, embora existam diferenças de nomenclaturas de
acordo com cada autor, vários deles parecem tratar da ocorrência de uma mesma classe
de fenômeno. Em outras palavras, vislumbra-se um consenso de que nas últimas décadas
tanto os espaços centrais das metrópoles quantos suas periferias expandidas sofreram (e
sofrem) importantes alterações. Atualmente, esses espaços que passam por processos de
degradação, renascimento e expansão, respondem aos estímulos de uma ampla gama de
novas cadeias produtivas globais, fluxos de capitais financeiros e humanos, e processos
de politização diversificados. Nesse contexto, buscam-se diálogos transdisciplinares, entre
Filosofia, Geografia, Economia e Planejamento Urbano e Regional, a fim de lidar com
uma realidade fenomenológica assaz complexa.
Além disso, a implosão-explosão pode ser ilustrada a partir de dados do mercado
imobiliário de uma metrópole como Belo Horizonte. De fato, existem evidências de um
processo de retomada do Centro, de consolidação de outras centralidades, de expansão
sobre outros municípios e formações de aglomerações espaciais cada vez mais conurba-
das e estendidas. A moradia, primordialmente objeto possuidor de valor-uso, passa a ser
cada vez mais um indicador das relações decorrentes da produção capitalista no espaço.

521
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, R. P. Implosão e explosão na Exópolis: evidências a partir do mercado imobiliário da RMBH.
(Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
CASTELLS, M. The informational age: economy, society and culture. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.
COSTA, Heloisa Soares de Moura et al. (Org.). Novas periferias metropolitanas – a expansão metropolitana em
Belo Horizonte: dinâmica e especificidades no Eixo Sul. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.
GUIGOU, J. L. La rente foncière. Paris: Economica, 1982.
HARVEY, D. Class-monopoly rent, finance capital and the urban revolution. Reg. Stud. J. Reg. Stud. Assoc., v.
8, p. 239-255, 1974.
HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edi-
ções Loyola, 1992.
HARVEY, D. Limits to capital. 3. ed. New York: Verso, 2006.
HARVEY, D. Espaços de esperança. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2009.
LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LEFEBVRE, H. A cidade do capital. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001a.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001b.
MONTE-MÓR, R. L. M. O que é o urbano, no mundo contemporâneo. Textos para discussão, n. 281, 2006.
MONTE-MÓR, R. L. M. What is the urban in the contemporary world?. In: BRENNER, Neil (Ed.). Im-
plosions/Explosions: towards a study of planetary urbanization. Berlin: Jovis, 2014. p. 576.
MONTE-MÓR, R. L. M.; RUIZ, R. M. A Região Metropolitana de Belo Horizonte: o antigo, o novo e
tudo ao mesmo tempo e agora. In: OLIVEIRA, Fabrício (Org.). As muitas Minas: ensaios sobre a economia
mineira. Belo Horizonte: ABDR, 2010.p. 227-260.
MULLER, P. O. The outer city: geographical consequences of urbanization of the suburbs. Assoc. Am. Geogr.
Resour, p. 2-5, 1976.
PLAMBEL. O mercado de terras na Região Metropolitana de Belo Horizonte (n. 2). Plambel, Belo Hori-
zonte, 1987.
SOJA, E. W. Postmetropolis: a critical study of cities and regions. Malden, MA: Blackwell Publishers, 2000.
SOJA, E. W. Para Além de Postmetropolis. Rev. Universidade Fed. Minas Gerais, 20, p. 137-167, 2013.
SUDJIC, D. The 100 Mile City. London: André Deustch, 1992.
TONUCCI FILHO, J. Dinâmica imobiliária e dispersão metropolitana: notas a partir de transformações
socioespaciais recentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Presented at the 37o Encontro Anual
da ANPOCS, Anpocs, Águas de Lindóia, 2013, p. 20.
UFMG. Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte – PD-
DI-RMBH, 2011 (vol. 1), Produto 6. UFMG, Belo Horizonte .

522
Um rio, três políticas: o Ribeirão
Arrudas e sua inserção na
Região Metropolitana de Belo Horizonte
Leandro de Aguiar e Souza

Introdução

Uma interpretação inicial acerca da inserção do Ribeirão Arrudas no espaço metro-


politano belo-horizontino tende a descrever esse corpo d’água como um elemento
cinzento na constituição da paisagem, perfazendo de maneira homogênea seu per-
curso, canalizado, por vezes tamponado, em prol da maximização de determinadas
infraestruturas urbanas, sobretudo rodoviárias. Porém, ao empreendermos uma aná-
lise espaço-temporal do Ribeirão Arrudas, percebemos uma infinidade de processos
sociais acumulados em seu percurso, desde a sua formação no encontro dos Córregos
Jatobá e Barreiro, na divisa dos municípios de Contagem e Belo Horizonte, a Oeste,
até a sua foz no Rio das Velhas, no município de Sabará, a Leste.
A análise proposta parte da dimensão espaço-temporal proposta por Lefebvre
(2008), que busca compreender tanto a ideia de percurso do Ribeirão, de montante à
jusante, como, também, as diversas transformações ocorridas ao longo do tempo. Assim,
ao reconhecer esse espaço como um produto social, formado a partir de um conjunto
de políticas e estratégias estabelecidas sobre um elemento natural, tem-se como objetivo
empreender tal discussão sob o espectro de três políticas principais que, embora públicas,
construídas pela sociedade, nem sempre são empreendidas exclusivamente pelo Estado.
A primeira política estaria ligada à busca pela renaturalização total do rio, uma es-
pécie de espaço concebido (Lefebvre, 2012) que buscaria a desocupação do mesmo de
modo a conformar fundos de vale pouco adensados e livres para a recuperação da fauna e
da flora, além da recuperação de várzeas de inundação. Essa política estaria em conformi-
dade com a aplicação máxima da legislação ambiental vigente, que compreende as mar-
gens de fundo de vale como áreas de preservação permanente.
A segunda política, situada na outra extremidade, seria aquela que trata o corpo
d’água como mero depositário de esgotos domésticos e industriais, base para a implanta-
ção de eixos viários. Tais ações, que culminam com o tamponamento dos cursos d’água,
parecem por vezes desejar a sua aniquilação. Essa configuração política e espacial, predo-
minante na paisagem construída pelo poder hegemônico, se impõe à sociedade como um
tipo de espaço percebido (Lefebvre, 2008).
Surge então uma terceira política, com contribuições oriundas do Estado, mas,
principalmente, fruto de ações diretas da sociedade, que busca compreender o contexto
atual e reinventá-lo de diversas formas, reconhecendo a importância do Ribeirão como
elemento fundamental para o estabelecimento de novas estratégias de apropriação do es-
paço, politicamente ativas e inclusivas.
É importante destacar que o espaço ao longo do Ribeirão Arrudas foi constituído sob
um regime de acumulação capitalista, cujas relações têm produzido marcas nítidas ao longo
do tempo. São também identificadas, em uma primeira análise, uma espécie de luta de clas-
ses bastante peculiar, em que famílias pobres foram, em diferentes momentos, desalojadas
em favor de interesses específicos do capital, ligados a processos industriais e imobiliários.
Essa abordagem, baseada no confronto de três políticas distintas, é justificada
pelo entendimento de que uma análise baseada na dialética socioespacial sobre a in-
serção do Ribeirão Arrudas no espaço metropolitano pode contribuir para levantar e
apontar situações que ultrapassam as duas lógicas extremas, voltadas, por um lado, ao
aniquilamento do Ribeirão e, por outro, à sua renaturalização. A terceira política, oriun-
da de uma espécie de caminho do meio entre as duas políticas extremas anteriormente
citadas, seria um desdobramento das contradições desse espaço, geradoras de um es-
paço diferencial (Lefebvre, 2000) que contém uma série de conflitos sobre os quais
emergem outras tantas potencialidades. O estabelecimento dessa discussão a partir do
curso de um Ribeirão mostra-se bastante apropriado, uma vez que, do ponto de vista
físico, a calha do curso d’água conforma uma linha entre duas vertentes que, na perspec-
tiva socioespacial, torna-se receptora de fluxos, não só de águas limpas e servidas, como
também de pessoas, veículos, animais, mercadorias.

Bases teóricas

A discussão dos objetivos acima apresentados é suportada por categorias de análise de-
senvolvidas por dois autores principais: Henri Lefebvre e Karl Marx.
Serão adotados, a partir de Lefebvre (2000), os conceitos de prática espacial, repre-
sentações do espaço e espaços de representação, com suas correspondências na escala do
sujeito denominadas pelo autor de espaço percebido, espaço concebido e espaço vivido.

524
Aplicada à presente discussão, a prática espacial corresponde à apreensão do es-
paço socialmente produzido ao longo do Ribeirão Arrudas. É, ao mesmo tempo, pro-
duto, especificado através da água poluída, da aridez imediata, e processo, ligado tanto à
somatória das transformações ocorridas em seu curso, tais como canalizações e tampo-
namentos, como aos fluxos diversos estabelecidos em e sobre seu leito. Na perspectiva
da prática espacial o Ribeirão Arrudas foi dominado e transformado com o propósito
de maximizar a produção de áreas privadas e eixos voltados à circulação, demandadas
pelo sistema de acumulação capitalista.
O espaço percebido a partir dessa prática espacial parece ser, predominantemen-
te, aquele que relega o Ribeirão às infraestruturas que o sufocam, tanto no cotidiano de
um determinado sujeito quanto na inserção urbana metropolitana do mesmo. O curso
d’água, nessa lógica, torna-se uma camada profunda e quase esquecida nas redes e percur-
sos que articulam a moradia, o trabalho e os espaços de lazer e consumo que, por diversas
vezes, se misturam no contexto contemporâneo.
As representações do espaço mostram que, ao longo do século XX e da primei-
ra década do século XXI, prevaleceram concepções voltadas à dominação do curso
d’água frente às demandas do capital. Várias representações espaciais foram concebi-
das ao longo desse período, prevalecendo aquelas em que a ideia de circulação, maxi-
mizada através de, pelo menos, duas camadas físicas (a água canalizada e o sistema vi-
ário sobre ela), predominou sobre a possibilidade de serem criados espaços de perma-
nência e fruição. Esses espaços, concebidos, estão ligados aos técnicos e detentores do
poder em diferentes períodos. Há uma elaboração intelectual que prepondera nesse
espaço concebido. Temporariamente esta será ligada a dois signos verbais, verificados
ao longo deste trabalho: dominação (da natureza, do rio, das pessoas) e circulação (de
mercadorias e, também, pessoas).
Os espaços de representação emergem no ocupado Ribeirão Arrudas, possivel-
mente na perspectiva bucólica do termo “ribeirão” e na ideia que este traz de um ambiente
natural, hoje quase imperceptível para além dos relatos do passado, da memória de alguns
e da imaginação de outros. Nesse contexto, os aspectos simbólicos presentes na busca
por um espaço público, acessível e coletivizado a todos, em oposição à privatização do
mesmo, fruto de uma concepção específica de espaço, tornam-se ferramentas e estratégias
poderosas na construção de um determinado espaço vivido.
A teoria de Karl Marx se torna aqui importante à medida que podemos analisar as
transformações do Ribeirão Arrudas sob a ótica do capital, aqui entendido como um pro-
cesso social na qual uma dada quantidade de valor é colocada em circulação com o obje-
tivo de gerar um valor excedente em relação à quantia original. Para a geração desse valor
excedente é fundamental que uma classe detentora de capital e de meios de produção o

525
extraia a partir da exploração de uma classe trabalhadora, que atuará no processo de trans-
formação de matérias-primas em mercadorias. Marx (2008a) destaca que todo o valor na
sociedade capitalista tem como origem a exploração da força de trabalho. A lógica da ge-
ração de valor, no entanto, se baseia em uma noção pretérita em relação às mercadorias, o
valor de uso, cujo potencial de apropriação, utilização e consumo cotidianos possibilitam
que estas sejam valorizadas por determinado grupo social.
Sabe-se que Marx desenvolveu suas teorias sobre o capital a partir da análise do
processo de produção de mercadorias. Porém, fica aqui uma breve provocação acerca da
possibilidade de analisar uma dada espacialidade sob a lógica do valor de uso. No caso do
Ribeirão Arrudas, em um momento anterior a 1897, ano da inauguração da capital do
Estado planejada por Aarão Reis, consideramos ser possível analisar esse cursos d’água
enquanto ambiente natural e, a partir da apropriação humana, enquanto valor de uso.
No período pré-republicano, anterior a 1889, há registros orais que remetem ao
uso do Ribeirão Arrudas e seus afluentes para a pesca artesanal, como no entorno do en-
contro do Córrego do Cardoso com o referido Ribeirão. E, se considerarmos os Arraiais
de Contagem, Bello Horizonte/Curral Del Rey e a cidade de Sabará como principais
ocupações urbanas da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Arrudas nesse período, percebe-
mos que, além da pesca artesanal, o Ribeirão também teria sido utilizado para fins de irri-
gação de pequeno porte, voltada à produção de alimentos.
Considera-se que o marco da transformação do Ribeirão Arrudas enquanto base
para a geração de valor se dá, sobretudo, a partir da implantação do Distrito Industrial de
Belo Horizonte, no entorno imediato do curso d’água, no entorno oeste do centro plane-
jado por Aarão Reis, em 1936. Tal processo se intensifica na década seguinte com a cons-
trução da Cidade Industrial Juventino Dias no atual município de Contagem, criada em
1941 através do Decreto Estadual n° 770 e inaugurada cinco anos depois, no ano de 1946.
A partir desse processo de industrialização a calha do Ribeirão Arrudas se mostrou um
espaço propício e de baixo custo para o encaminhamento de resíduos líquidos industriais.
Soma-se a esse processo a implantação de avenidas marginais e, mais recentemente, sobre
o Ribeirão tamponado, fazendo com que, na lógica marxista, este se transforme em um
componente do capital fixo, aqui entendido como a parte do capital fixada no espaço de
modo a viabilizar o processo de circulação de capital (Marx, 2009). As matérias-primas,
também transportadas pela estrutura viária implantada sobre e lateralmente ao Ribeirão
Arrudas, se juntam às fontes de energia elétrica, conduzidas através de redes de transmis-
são, formando o capital circulante (Marx, 2008) consumido no processo industrial esta-
belecido a oeste da capital Belo Horizonte.
Com a intensificação da produção e comercialização de veículos, sobretudo a par-
tir da década de 50, as redes viárias situadas ao longo de cursos d’água como o Ribeirão

526
Arrudas tornaram-se, também, elementos para a viabilização dos chamados fundos de
consumo de mercadorias (Marx, 2009).
Ainda baseado em Marx (2008b), podemos apreender o espaço socialmente pro-
duzido sob a perspectiva marxista da teoria da renda da terra. A retificação e canalização do
Ribeirão Arrudas, ocorrida em momentos diversos ao longo do século XX e início do XXI,
ampliou consideravelmente a quantidade de áreas formalmente parceladas e, consequente-
mente, comercializadas no mercado imobiliário. Os investimentos públicos sucessivos, asso-
ciados à delimitação de terrenos privados nas margens do Ribeirão Arrudas e seu entorno,
viabilizaram a conformação de rendas diferenciais, sobretudo da renda diferencial do tipo
02. A renda diferencial 01, aqui entendida como a situação na qual quantidades idênticas
de capital e trabalho são aplicadas em diferentes terrenos, de extensões equivalentes, geraria
rendas distintas ao capitalista que explora a melhor terra (Marx, 2008b). A renda diferencial
02, por sua vez, se daria através do investimento sucessivo de capitais ao longo do tempo
em um determinado terreno ou conjunto de terrenos (Marx, 2008b), uma situação verifi-
cada nos processos empreendidos no Ribeirão Arrudas. Cabe destacar que a sucessão des-
ses investimentos não gerou uma valorização sempre crescente no preço dos terrenos e sua
consequente renda da terra. Tais processos, a serem discutidos ao longo do texto, geraram
aumento e depreciação nos preços de terrenos, qualificações e degradações, bem como mu-
danças de ocupações e usos no próprio Ribeirão e em seu entorno.
É necessário apreender, também, as discussões de Lefebvre (2012) sobre o espaço
socialmente produzido, elaboradas com o intuito de ultrapassar a lógica de que este seria, ex-
clusivamente, o abrigo da produção e do consumo de mercadorias. O autor destaca que, no
processo de acumulação contemporânea, a reprodução das relações de produção se estende
para além dos meios de produção, atingindo, desse modo, o cotidiano das pessoas. Nesse
sentido, não teríamos somente a produção e o consumo de coisas no espaço, mas a produ-
ção social do espaço (Lefebvre, 2000). Ao capital parece não interessar mais que o Ribeirão
Arrudas e suas avenidas sejam somente espaços voltados ao fluxo de mercadorias e pessoas.
Requalificações urbanísticas pautadas na repotencialização do Ribeirão e seus terrenos lin-
deiros estão na ordem do dia de empreendimentos público/privados atualmente em curso.
O direito à cidade surge então com o propósito de que esses processos não repitam ciclos de
acumulação e concentração de capitais que, consequentemente, expulsariam aqueles que já
habitam e se relacionam cotidianamente com o Ribeirão Arrudas.

Metodologia adotada

A metodologia aqui adotada busca compreender uma espacialidade vinculada ao percurso de um


curso d’água, de sua nascente à sua foz, associada às transformações sofridas ao longo do tempo.

527
Nessa perspectiva foram elencados os seguintes marcos temporais relevantes:

• O Arraial e o Ribeirão;
• A cidade planejada;
• A industrialização no eixo Leste no final do século XIX;
• O distrito industrial às margens do Ribeirão, no entorno oeste do centro da capital
na década de 30;
• A industrialização no eixo Oeste a partir da década de 1940;
• O crescimento de Belo Horizonte e as ocupações de baixa renda ao longo do Ribeirão;
• As inundações, tragédias e grandes processos de remoção e reassentamento de fa-
mílias no início da década de 1980;
• O tamponamento de um trecho do Ribeirão na primeira década dos anos de 2000;
• A retomada de partes do Ribeirão Arrudas enquanto espaço livre de uso público;
• Os novos processos urbanísticos, imobiliários e os riscos de novas substituições de
população em grande escala.

As análises desses marcos foram pautadas nas bases teóricas anteriormente apre-
sentadas, tendo sido também adotados, como importante fonte de consulta, estudos e
relatórios técnicos elaborados por diferentes empresas e órgãos públicos, a seguir citados:

• Arquivo Público Mineiro;


• Companhia de Saneamento do Estado de Minas Gerais (COPASA-MG);
• Companhia de Distritos Industriais do Estado de Minas Gerais (CDI-MG);
• Departamento de Obras Públicas do Estado de Minas Gerais (DEOP-MG);
• Fundação João Pinheiro;
• Programa de Saneamento Ambiental de Belo Horizonte (DRENURBS);
• Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana (PLAMBEL).

A pesquisa contemplou também a busca por mapas e imagens históricas e, quando


relevante, foram feitas elaborações próprias sobre os materiais obtidos.
A partir desse conjunto de materiais foram produzidas as reflexões concernentes
ao presente trabalho.

Considerações sobre o Ribeirão Arrudas nos tempos do Arraial

Os dados referentes à estrutura urbana do período anterior à cidade planejada no final


do século XIX mostram outra lógica de relação entre o espaço socialmente produzi-

528
do e os cursos d’água que atravessavam esse espaço, principalmente se comparada
às intervenções posteriores. Nas imagens disponíveis é possível compreender que o
Córrego do Acaba Mundo, mesmo sem ter um aparente destaque na hierarquia do
desenho urbano à época, tangenciava o Largo da Matriz em sua porção sul, um espaço
importante no contexto do Distrito de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral Del
Rey (IBGE, 2014).
A prática espacial decorrente dos períodos colonial e imperial brasileiro, sob as
quais o Curral Del Rey foi constituído, mostra um traçado urbano predominantemen-
te desenvolvido na meia encosta das bacias hidrográficas dos Córregos da Serra, do
Acaba Mundo e do Leitão, cabendo destacar que as principais edificações, largos e vias,
como os Largos da Matriz e do Rosário, eram localizados na vertente do Córrego do
Acaba Mundo (Fundação João Pinheiro, 1997). Nesse período o Ribeirão Arrudas se
localizava fora dos limites da antiga mancha urbana, com algumas edificações isoladas
próximas à foz do Córrego do Acaba Mundo.
Entende-se que esse contexto possuía, além de uma prática espacial nítida, uma
representação de espaço muito peculiar, na qual a localização dos edifícios das igrejas e
largos, que hierarquizavam o espaço, desempenhavam importantes papéis. O desenvol-
vimento do sistema viário na meia encosta estaria mais ligado às facilidades de implan-
tação de vias paralelamente às curvas de nível, que demandavam menores movimenta-
ções de terra, que quaisquer outros aspectos simbólicos e funcionais. Os cursos d’água,
mesmo que não negados, tiveram uma relação predominantemente funcional com o
Distrito de Belo Horizonte, enquanto fontes de água, deposição de esgotos, sistemas
artesanais de pesca e irrigação.

529
Figura 1 - “Planta Cadastral do Arraial de Bello Horizonte”, na qual é percebida a relação entre o Córrego do
Acaba Mundo, que atravessa o núcleo urbano no sentido sul norte, e o Ribeirão Arrudas, localizado ao norte.
Fonte: Fundação João Pinheiro (1997).

Ainda referentes às representações de espaços, mapas da Comissão Construtora da


Nova Capital mostram que a equipe técnica responsável pelo projeto desenvolveu levan-
tamentos planialtimétricos do então Distrito de Belo Horizonte, antigo Curral Del Rey,
nos quais fica evidenciada a alteração completa da estrutura urbana pretérita. Em termos
políticos tal alteração esteve ligada ao desejo das estruturas administrativas republicanas,
instaladas oito anos antes, em 1889, em produzir uma nova espacialidade baseada em pre-
ceitos técnicos e geométricos, completamente distinta das formas coloniais e imperiais.

530
Figura 2 - Planta Cadastral do extinto Arraial de Belo Horizonte, antigo Curral Del Rey, comparada com a
planta da nova capital no espaço abrangido por aquele arraial.
Fonte: Fundação João Pinheiro (1997).

O Ribeirão Arrudas na construção da capital planejada

A capital do estado de Minas Gerais, desde seu planejamento no final do século XIX,
priorizou a consolidação de uma forma urbana imposta sobre o sítio, implicando alte-
rações significativas no relevo e na canalização, em diferentes períodos, da maior parte
dos seus cursos d’água. O Ribeirão Arrudas, principal curso d’água do município de Belo
Horizonte, sofreu significativamente esse processo. Com extensão total de 47 km, a Ba-

531
cia Hidrográfica do Ribeirão Arrudas pertence à Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas e
abrange uma área de 206 km², percorrendo, além de Contagem, os municípios de Belo
Horizonte e Sabará. Ao longo de seu percurso o Ribeirão Arrudas recebe a contribuição
de 44 afluentes, sendo 21 pela margem esquerda e 23 pela margem direita. Desses afluen-
tes, três estão localizados no município de Contagem, 29 situados em Belo Horizonte e
12 em Sabará (DEOP-MG, 2008).
No processo de planejamento da capital o Ribeirão Arrudas se constituiu como o
limite norte do núcleo circundado pela Avenida do Contorno, e sua relação com a forma
urbana se dava principalmente através do eixo da Avenida Afonso Pena, que articulava,
geograficamente, o Ribeirão à Serra do Curral (Monte-Mór, 1994).
No campo das representações de espaços, durante a concepção do espaço planejado
de Belo Horizonte, um relevante conflito técnico e político se deu baseado em divergências
acerca da relação entre a forma urbana proposta e os cursos d’água que a atravessavam.
No projeto presidido por Aarão Reis o traçado proposto priorizava o estabeleci-
mento de grandes eixos rodoviários, perpendiculares entre si, rotacionados em 45° em re-
lação aos eixos viários de menor dimensão transversal. A partir dessa malha viária seriam
localizados parques, praças e jardins em pontos estratégicos, geralmente articulados à im-
plantação de edifícios públicos no entorno. Na “Planta Geral da Cidade de Minas”, publi-
cada em 1895 (Fundação João Pinheiro, 1997), apesar da ausência de legendas, tem-se o
entendimento de que os três córregos principais que atravessam o polígono da Avenida
do Contorno seriam canalizados e tamponados, havendo um pequeno trecho do Córre-
go do Acaba Mundo a ser tratado de forma “naturalizada”, dentro dos limites originais do
Parque Municipal. Nas interseções entre o Ribeirão Arrudas e a malha viária proposta,
compreende-se que o mesmo seria tratado na forma de um canal aberto, solução relativa-
mente comum à época (Nascimento; Bertrand-Krajewski; Britto, 2013).
O engenheiro Saturnino de Brito fez parte da comissão construtora da nova capital
do Estado de Minas Gerais, tendo dirigido os projetos de abastecimento de água potável
entre 1894 e 1895. Segundo Nascimento, Bertrand-Krajewski e Britto (2013), Saturnino
de Brito teria considerado adequado o traçado proposto por Aarão Reis, destacando o di-
mensionamento das vias, parques, praças e jardins. O engenheiro, no entanto, questionava
a rigidez do traçado geométrico proposto sobre o sistema hídrico, uma vez que os cursos
d’água presentes na zona urbana concebida à época drenavam vales estreitos em uma to-
pografia que, mesmo variada, possuía um número significativo de colinas e terrenos ín-
gremes. A crítica elaborada por Saturnino de Brito se desdobrou em outra proposta de
representação de espaço, que buscava incorporar os cursos d’água à geometria elaborada
pela Comissão Construtora, promovendo ajustes no desenho de acordo com a forma dos
vales estreitos (Nascimento; Bertrand-Krajewski; Britto, 2013).

532
Essa divergência técnica-política culmina com a saída de Saturnino de Brito do
projeto, tendo prevalecido o traçado geométrico coordenado por Aarão Reis.

Figura 3 - Comparação entre o “traçado geométrico” proposto para Belo Horizonte, coordenado por
Aarão Reis, contraposto pelo “traçado sanitário”, elaborado por Saturnino de Brito.
Fonte: Nascimento; Bertrand-Krajewski; Britto (2013).

Acredita-se que a implantação da proposta de Saturnino de Brito poderia repercu-


tir, significativamente, sobre a prática espacial e os espaços de representação desdobrados
a partir daquela concepção, com implicações não só nas áreas internas à Avenida do Con-
torno, como também na expansão e adensamento das zonas suburbanas originalmente
planejadas. A presença dos cursos d’água no espaço socialmente produzido provavelmen-
te traria novas relações entre a sociedade e o sistema hídrico.
Ainda no final do século XIX, através da Lei n°150 / 1896, são identificadas menções
ao Ribeirão Arrudas, através dos processos que criaram os subúrbios da capital. Dentre os
subúrbios criados destaca-se o de “Carlos Prates“, que compreendia os terrenos dos vales do
Córrego do Pastinho e do Ribeirão Arrudas, cuja localização levou em conta, além da fertili-
dade do solo para fins agrícolas, a presença de fontes de água (PLAMBEL, 1979).

533
Com relação ao abastecimento de água da população, o Ribeirão Arrudas, desde
o processo de planejamento da capital, foi pouco mencionado para esse fim. Isso se de-
veu, provavelmente, à sua localização em cotas altimétricas mais baixas que outros cursos
d’água. Já havia, nessa época, a prática de serem coletadas, sempre que possível, águas para
o consumo humano em locais com cotas altimétricas superiores e com poucas interfe-
rências de ocupações urbanas. Nesse sentido, a comissão construtora da capital apontou,
para o abastecimento da população, os Córregos da Serra, do Acaba Mundo, do Leitão e
do Pinto, situados no perímetro da zona urbana e, fora da zona urbana, os Córregos do
Cardoso, do Taquaril, do Cercadinho, da Ponte Queimada, do Bom Sucesso e de Capão
da Posse, todos afluentes do Ribeirão Arrudas (PLAMBEL, 1979).
Se não foi cogitado o seu uso para abastecimento de água, o despejo de esgotos
in natura no Ribeirão Arrudas foi uma marca do processo de ocupação em Belo Hori-
zonte. Apesar da ideia inicial de Aarão Reis de recuperar as águas servidas através da sua
reutilização em sistemas de irrigação, prática muito comum à época nos EUA, as difi-
culdades no direcionamento dessas águas às áreas agricultadas, cada vez mais distantes,
levaram ao abandono da proposta.
É importante ressaltar que, apesar de o espaço de Belo Horizonte ter sido concebi-
do com o propósito de canalizar e tamponar os principais cursos d’água que atravessavam
a zona urbana, a prática espacial desenvolvida a partir dessa concepção não foi imediata,
tendo ocorrido, por um determinado período, a presença de cursos canalizados não tam-
ponados em algumas ruas e avenidas internas à Avenida do Contorno. Segundo Borsagli
e Medeiros (2011), até a década de 1920 a ocupação na zona urbana de Belo Horizonte
se restringia à área central e aos bairros Funcionários e uma pequena área do Barro Preto,
internas à Avenida do Contorno, e aos bairros Floresta e Lagoinha, externos à mesma. Se-
gundo os autores, as demais áreas localizadas na zona urbana não tiveram, nessas décadas
iniciais, demandas significativas de ocupação, o que teria gerado um processo de urbaniza-
ção parcial nesses bairros. O aumento da ocupação nos quarteirões da zona urbana, sobre-
tudo a partir da década de 1920, implica ao Estado a necessidade de avançar no processo
de implementação do espaço concebido pela Comissão Construtora. Nesse contexto, a
transposição dos cursos d’água e utilização das quadras adjacentes torna-se importante po-
lítica a ser empreendida à época. É interessante notar que, ao contrário do projeto original,
que previa o tamponamento dos Córregos da Serra, do Acaba Mundo e do Leitão e a cana-
lização do Ribeirão Arrudas, as ações desenvolvidas na década de 1920 se deram de modo
a canalizar os principais córregos, retificando e alterando os seus cursos, tendo sido os
mesmos mantidos em canal aberto. Em uma pesquisa documental feita junto ao Arquivo
Público Mineiro foi possível constatar que, à exceção do Córrego da Serra, cujo percurso
atravessa parte do Bairro Funcionários, uma das primeiras áreas ocupadas na nova capital

534
do Estado, os Córregos do Acaba Mundo e do Leitão, bem como o Ribeirão Arrudas, per-
maneceram, entre as décadas de 1920 e 1960, abertos entre as ruas por eles atravessadas.
Durante essas quatro décadas Belo Horizonte vivenciou uma prática espacial com a
presença de três dos quatro principais cursos d’água na malha urbana da cidade. Essa práti-
ca, no entanto, não foi sempre harmônica, uma vez que o adensamento progressivo levou à
saturação dos receptores de esgotos instalados ao longo dos Córregos, ensejando o lança-
mento direto das águas servidas sobre os cursos d’água. Os impactos desse adensamento se
desdobraram na elaboração do projeto “Nova BH 66”, elaborado na década de 1960, cuja
concepção foi pautada no tamponamento dos Córregos do Acaba Mundo e do Leitão,
tributários do Ribeirão Arrudas, com o objetivo de minimizar os problemas decorrentes da
poluição dos cursos d’água, bem como maximizar as condições para o fluxo de veículos nas
áreas adjacentes (Borsagli; Medeiros, 2011). Entende-se que a implementação desse proje-
to é definidora da prática espacial hegemônica em Belo Horizonte e Região Metropolitana,
que, em sua maioria, buscou aniquilar os cursos d’água do espaço urbano.

O processo de industrialização e seus reflexos


sobre o Ribeirão Arrudas

É também fundamental discutir, complementarmente, a inserção da indústria no espaço


belo-horizontino e metropolitano, cuja inserção se deu, sobretudo nos momentos ini-
ciais, de maneira articulada ao Ribeirão Arrudas. Ainda nas décadas de 1920 e 1930, com
a implantação das primeiras indústrias na área urbana, os estudos locacionais apontavam
a área localizada ao norte/nordeste da Avenida do Contorno, às margens do Ribeirão
Arrudas, como adequadas ao uso industrial, tendo sido considerados, como “benefícios”
dessa localização, a possibilidade de utilizar o curso d’água como receptor dos dejetos pro-
venientes dos processos industriais (CDI-MG, 1978).
O processo de industrialização da Região Metropolitana liga-se ao Ribeirão Arru-
das em dois momentos principais distintos. O primeiro deles, conforme citado no item
anterior, se articula à implantação das primeiras unidades industriais entre o Ribeirão e as
Estradas de Ferro Oeste de Minas e Central do Brasil. Esse processo culminou com a cria-
ção da zona industrial de Belo Horizonte em 1936, por meio da Lei Estadual n° 998, o que
demonstra, desde esse período, a ação do Governo Estadual sobre os assuntos vinculados
à industrialização da capital, com apontamentos regionais que precederam a abordagem
metropolitana vivenciada quatro décadas mais tarde.
A partir das décadas de 1930 e 1940 o Estado de Minas Gerais começa a se firmar
como centro siderúrgico nacional e, dentre as principais ações empreendidas no período,
é destacada a implantação da Cidade Industrial Juventino Dias, empreendida pelo Gover-

535
no Estadual no recentemente emancipado município de Contagem. Os impactos desse
empreendimento no Ribeirão Arrudas são muito significativos, uma vez que todo o esgo-
to da Cidade Industrial foi direcionado para a sua bacia hidrográfica, tendo sido, durante
muito tempo, lançado in natura nos corpos d’água da região.
Além do aumento progressivo dos níveis de poluição hídrica, decorrentes tanto do
adensamento da área central de Belo Horizonte e, principalmente, da ocupação progres-
siva da Cidade Industrial, é importante ressaltar que o eixo Oeste do Ribeirão Arrudas,
que articula os municípios de Belo Horizonte e Contagem, ficou relativamente esquecido
pelo poder público entre as décadas de 1940 e 1970. Nesse sentido, é possível dizer que o
mesmo ficou ofuscado, em seu entorno sul, pela Avenida Amazonas, até então o principal
eixo de articulação rodoviária entre Belo Horizonte, Contagem e São Paulo e, em seu en-
torno norte, pelas Estradas de Ferro Central do Brasil e Oeste de Minas.

O adensamento progressivo e as inundações recorrentes

Outro aspecto recorrente no processo de expansão da mancha urbana em Belo Horizonte


foram as enchentes nas calhas de inundação dos cursos d’água, ocupadas em diversas porções
do território. Já na década de 1930 são identificadas ocupações diversas ao longo do Ribeirão
Arrudas, em áreas limítrofes dos bairros do Prado, Carlos Prates e Calafate, a oeste, e Santa
Tereza, Santa Efigênia e Esplanada, a leste (Fundação João Pinheiro, 1997).
Em um discurso do então prefeito municipal Otacílio Negrão de Lima no ano de
1949 (PLAMBEL, 1979), o chefe do Poder Executivo ressalta a presença de enchentes
periódicas e seus impactos sobre a população residente nos fundos de vale. Dentre os
cursos d’água citados, Otacílio Negrão de Lima ressalta a magnitude das enchentes no
Ribeirão Arrudas, nos córregos do Leitão, da Serra, do Acaba Mundo e do Pastinho. Em
seu discurso Otacílio Negrão de Lima cita as limitações para solucionar o problema, de-
correntes da prática, já consolidada naquela época, de se ocupar intensivamente os fundos
de vale. Dentre as soluções propostas, o então prefeito propunha uma política baseada na
construção de bacias de acumulação, prática retomada no vetor oeste da Região Metro-
politana de Belo Horizonte (RMBH) na última década.
No eixo Leste, nas adjacências da Avenida do Contorno, as ocupações no entorno
do Ribeirão Arrudas se caracterizaram pela precariedade das condições de implantação
e saneamento, dentre as quais se destacavam as então denominadas Vilas União, Favela
da Baiana, Gogó da Ema, do Perrela e do Pirité (PLAMBEL, 1983). Essas áreas ficaram
marcadas pelas enchentes dos anos de 1979 e 1983, quando diversas famílias morreram
e perderam as suas casas. Apesar de não terem sido encontrados dados precisos sobre o
universo total de mortos e desabrigados, Guimarães (1999) demonstra, através de um

536
levantamento junto aos principais veículos de comunicação da época, a comoção que
esse processo causou junto à sociedade. O período já era marcado pela política de “des-
favelização”, implementada pela Coordenação de Habitação de Interesse Social (CHIS-
BEL); e a já citada comoção social divulgada pela mídia à época impulsionou um grande
processo de remoções ao longo do vetor leste do Ribeirão Arrudas. A diferença da prática
empregada nas ocupações do Ribeirão Arrudas em relação às praticadas pela CHISBEL
foi a adoção do reassentamento associado às remoções, uma vez que a mencionada Coor-
denação adotava predominantemente a prática da indenização em dinheiro (Guimarães,
1992). Tais reassentamentos se deram em áreas distantes como o Bairro Gorduras e o
Conjunto Morro Alto, este último localizado no município de Vespasiano, e foram alvo de
mobilizações e protestos por parte dos moradores, que se organizaram em movimentos
como a União dos Moradores da Periferia de Belo Horizonte.
Tais fatores associados (políticas de “desfavelização”, enchentes, comoção social)
se constituíram em uma importante base política para o processo de implantação da via
leste-oeste no final dos anos de 1970, articuladora dos municípios de Belo Horizonte e
Contagem, discutida no tópico a seguir.

A expansão metropolitana e o
encaixotamento da hidrografia no eixo Centro-Oeste

Diversos estudos realizados no âmbito da Superintendência de Desenvolvimento da Re-


gião Metropolitana (PLAMBEL) durante a década de 1970 apontaram para a necessi-
dade de serem implementadas ações no eixo Leste-Oeste da RMBH, sendo o Ribeirão
Arrudas o elemento de referência desse processo (PLAMBEL, 1975).
Tais estudos ressaltavam o acúmulo de “usos inadequados, sujeitos a inundações” e
a busca pela implantação de ações integradas que envolveriam a “canalização do ribeirão,
a localização dos interceptores de esgotos sanitários, transporte de massa e uso do solo”
(PLAMBEL, 1975, p. 5).
Nesse contexto, foi desenvolvido o projeto da via urbana leste-oeste, cujo escopo
abrangia, além da via, a canalização do Ribeirão Arrudas, faixas exclusivas para transporte
coletivo de massa, à época denominadas Busways, e o remanejamento da via férrea, que
cruzava o Arrudas em diferentes trechos (PLAMBEL, 1977). Identifica-se, naquele mo-
mento, um sistema semelhante ao BRT (Bus Rapid Transit), recentemente implantado
em alguns eixos rodoviários de Belo Horizonte.
Outra questão levantada nesses estudos esteve ligada ao estabelecimento de di-
retrizes para o aproveitamento de áreas marginais ao longo da via, sendo previstos usos
residenciais, comerciais e de serviço e áreas livres de uso público. Foi também destacada

537
à época a importância de uma geometria viária sobre o leito do ribeirão, com o intuito de
reduzir o número de desapropriações.
É importante ressaltar que, apesar do objetivo de serem minimizadas desapropria-
ções, o processo de implantação da via leste-oeste envolveu um número considerável de
remoções de populações de baixa renda, localizadas principalmente no eixo Leste da via
proposta. Outra questão a ser ressaltada é o fato de o Programa de Aproveitamento Inte-
grado do Vale do Arrudas, ao contemplar áreas destinadas ao uso residencial, ter destina-
do estas ao reassentamento do grande contingente populacional removido em decorrên-
cia das enchentes do final da década de 1970, o que de fato não ocorreu.
O projeto previa também que a canalização fosse executada em seção fechada, do
tipo galeria tri-celular de concreto armado (PLAMBEL, 1977). Esse parâmetro de proje-
to foi usado como justificativa para o tamponamento do Ribeirão Arrudas em 2007, em
um processo completamente desrespeitoso às áreas de preservação permanente, a serem
discutidas posteriormente no presente trabalho.
Com relação ao transporte ferroviário de passageiros, o Plano ressalta que este
estaria vinculado à necessidade de ser desviado o transporte de cargas das linhas exis-
tentes no Vale do Arrudas. Nas décadas de 1980 e 1990 verificou-se a implantação de
um sistema de trens de passageiros paralelo ao Ribeirão Arrudas, que, apesar de não
ter executado o remanejamento do transporte ferroviário de cargas no eixo, conseguiu
implementar, parcialmente, a diretriz proposta.
A implantação da Via Leste-Oeste, também conhecida como Via Expressa, se por
um lado melhorou, por um período determinado, o trânsito rodoviário de cargas e veículos
(predominantemente particulares, tendo em vista que o sistema de transporte coletivo de
massa denominado Busway não foi implementado à época), por outro, demonstrou uma to-
tal falta de cuidado com o Ribeirão Arrudas, que terminou por se consolidar como um curso
d’água para o transporte de dejetos. As soluções empregadas demonstraram também muito
pouco cuidado com o pedestre, criando extensas áreas de difícil apropriação, voltadas predo-
minantemente ao fluxo dos processos produtivos metropolitanos. A conformação do canal
do Ribeirão Arrudas, além da sua aparência agressiva, tinha poucos pontos de travessia de
pedestres, consolidando uma cisão entre as margens norte e sul de seu curso. Essas ações de-
monstram, mais uma vez, como os empreendimentos públicos têm sistematicamente prio-
rizado aspectos voltados às lógicas de produção e consumo. É esse o sentimento em relação
ao empreendimento denominado Boulevard Arrudas, cuja primeira etapa foi empreendida
pelo Governo do Estado entre os anos de 2006 e 2007. Integrado à Linha Verde, também
empreendida pelo Estado com o propósito de articular a capital ao Aeroporto Internacional
de Confins, o Boulevard Arrudas consistiu, basicamente, no tamponamento do Ribeirão
no trecho entre o complexo de viadutos da Lagoinha e o Parque Municipal, associado ao

538
alargamento das calçadas, implantação de jardineiras centrais e novo sistema de iluminação.
Além dessas ações o Boulevard contemplou, obviamente em se tratando do contexto de
Belo Horizonte, novas faixas destinadas ao trânsito de veículos. Um aspecto positivo que
pode ser atribuído ao Boulevard Arrudas se deve ao fato de seu entorno ter recebido, poucos
anos antes, as requalificações das praças da Estação e Rui Barbosa. No trecho compreendido
entre as duas praças o Boulevard Arrudas contribuiu para melhorar a articulação entre as
mesmas, anteriormente comprometida pelo antigo canal, que cindia o espaço. Considera-se,
no entanto, que essa área poderia ter sido objeto de um tratamento urbanístico mais elabora-
do, priorizando outros aspectos além do trânsito de veículos.
Apesar de reivindicações por soluções diferenciadas, o Boulevard Arrudas encon-
tra-se em processo de duas ampliações, uma no sentido leste e a outra no sentido oeste.
Desse modo, não é difícil prever a intensificação de políticas voltadas ao prolongamento
das ações de tamponamento do Ribeirão Arrudas, sob a lógica hegemônica de aniquila-
mento do mesmo no espaço metropolitano. Essa política, no entanto, começa a ser con-
traposta por outras, oriundas de setores do próprio Estado como, também, diretamente
empreendidas pela sociedade.

O fortalecimento da questão ambiental e


seus rebatimentos sobre a bacia hidrográfica

À época do fortalecimento da questão ambiental enquanto pauta global, ocorrida, sobre-


tudo, a partir da década de 1970, os processos de ocupação e uso do solo nas margens
do Ribeirão Arrudas já se encontravam em estágio avançado. O desenvolvimento da
legislação ambiental na instância estadual no final de década de 1970 em Minas Gerais
mostra que, desde o início dessa construção política, os processos urbanos pareciam es-
tar recortados das discussões ambientais então em voga. Essa lógica de representação se
deu, em um primeiro momento, baseada em um aparente antagonismo entre ser humano
e natureza, com repercussão direta sobre o espaço produzido. Essa contradição entre as
agendas urbanística e ambiental, discutida por Costa (2008), se manteve, em certa medi-
da, mesmo após a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente realizada duas
décadas depois no Rio de Janeiro, em 1992. Entende-se que a Conferência de 1992 teve
significativos desdobramentos políticos que culminaram, localmente, com a consolida-
ção de um sistema de planejamento e gestão ambiental no município de Belo Horizonte.
Esse processo contemplou, de fato, alguns avanços, tais como a criação e implementação
de parques urbanos em diversas regiões do município e, principalmente, a incorporação
do licenciamento ambiental na instância municipal para atividades de impacto, o que fi-
nalmente gerou um nível inicial de articulação entre as agendas urbanística e ambiental.

539
Permaneceu, no entanto, uma lacuna acerca dos procedimentos a serem adotados
sobre as margens de cursos d’água previamente ocupadas, um contexto em que o Ribeirão
Arrudas estava inserido. No que diz respeito à preservação das margens de cursos d’água,
a legislação ambiental em suas instâncias federal, estadual e municipal determina que as
áreas marginais às calhas de inundação do sistema hídrico fluvial devem ser tratadas como
espaços de preservação permanente, sendo vedado, como condição geral, o parcelamen-
to, a ocupação e o uso do solo para fins urbanos. Essa regulamentação torna clara as ações
em novos loteamentos, mas nas áreas previamente adensadas tal política se torna distante
e de difícil aplicação. Sente-se falta, nessa construção sociopolítica, de uma agenda que
busque considerar os usos urbanos nas margens de rio previamente ocupadas, de modo a
construir representações de espaços voltadas a situações mais compatíveis aos processos
já estabelecidos nesses eixos. A ausência dessa pauta pôde, inclusive, ter contribuído para a
intensificação de políticas voltadas à maximização dos eixos rodoviários sobre o Ribeirão
Arrudas, que culminaram no seu tamponamento parcial.
No que tange à legislação ambiental municipal, cabe destacar a criação do Parque
Linear do Vale do Arrudas no final da década de 1990, localizado no eixo Centro-Leste de
Belo Horizonte, cuja apropriação pela sociedade será discutida adiante.

O espaço produzido à jusante:


o Ribeirão Arrudas no eixo Leste da RMBH

A dinâmica desenvolvida no espaço do Ribeirão Arrudas no eixo Leste da RMBH con-


tém uma série de peculiaridades. Primeiramente é nítida a diferença de tratamento urba-
nístico dado ao trecho que se inicia na Avenida do Contorno no sentido leste, correspon-
dente à atual Avenida dos Andradas, quando comparado ao tratamento dado no sentido
centro-oeste. Nesse trecho, compreendido entre a região central e o Bairro Vera Cruz, na
divisa dos municípios de Belo Horizonte e Sabará, o Ribeirão canalizado e com meandros
suprimidos é acompanhado por dois eixos rodoviários e pela linha férrea. Entre essas in-
fraestruturas uma maior quantidade de espaços livres foi preservada em comparação com
a solução dada ao eixo Centro-Oeste. Além disso, esse espaço concebido no início da
década de 1980 criou uma hierarquia no sistema viário proposto, sendo o eixo rodoviário
implantado ao sul, na margem direita, voltado aos fluxos regionais, enquanto o eixo ao
norte, implantado na margem esquerda, teria sido originalmente concebido para receber
fluxos locais. Nota-se, atualmente, a subutilização desses eixos rodoviários locais situados
na margem esquerda do Ribeirão Arrudas. Essa situação tem gerado um movimento polí-
tico que clama pela criação de um amplo parque linear, com cerca de 5,20 km de extensão,
cuja representação mostra grande potencial transformador nas esferas da prática espacial

540
e, consequentemente, das representações de espaços. Se a essa área for somado o trecho
do Ribeirão Arrudas que percorre o município de Sabará, com cerca de 5,90 km, até a
sua foz com o Rio das Velhas, a reapropriação do Ribeirão Arrudas enquanto espaço livre
voltado ao uso público seria significativamente aumentada.
Em um percurso ao longo do Ribeirão, de montante à jusante, é constatado que a
dinâmica urbana no sentido leste perde intensidade quando se aproxima da foz junto ao
Rio das Velhas. O fim da Avenida dos Andradas, dando origem à Rua Marzagânia, é aqui
compreendido como um divisor de práticas espaciais, sobretudo no que diz respeito à re-
lação entre o traçado urbano e o Ribeirão Arrudas. Na divisa entre Belo Horizonte e Saba-
rá o Ribeirão retoma seu curso natural, e assim segue até a sua foz. A área, de menor aden-
samento urbano, contém importantes registros do processo de ocupação e uso do solo
ocorrido na segunda metade do século XIX e início do século XX. Dentre esses registros
são destacados o ramal da Estrada de Ferro Central do Brasil, concluído em 1902, e a Vila
Operária de Marzagão, construída para abrigar as demandas voltadas à reprodução so-
cial da indústria de tecidos de mesmo nome, implantada em 1878 no atual município de
Sabará (Ávila, 2009). A reapropriação desses espaços para usos culturais e, também, para
novas atividades industriais, é uma realidade na área, dada através da unidade industrial
têxtil da empresa Marcell Phillipe e pelo Centro Técnico de Produção da Fundação Cló-
vis Salgado, uma escola voltada ao ensino tecnológico aplicado a apresentações artísticas.
Essa espacialidade demanda estratégias de representação de espaços distintas daquelas
aplicadas no oeste e no centro-leste. Ao mesmo tempo, esse apelo cultural se mostra pro-
pício às novas estratégias do capital imobiliário, cujos atributos naturais e culturais podem
ser atrativos para a implementação, em um cenário de médio prazo, de empreendimentos
de grande porte na região, repetindo processos de exclusão já verificados e em curso.
Ainda no eixo Leste cabe destacar, também enquanto representações de espaço, a
estratégia do Governo Estadual voltada ao tratamento dos esgotos da bacia hidrográfica
do Ribeirão Arrudas. Nesse sentido, a implantação da Estação de Tratamento de Esgo-
to do Ribeirão Arrudas, em 2001, constitui-se na principal ação de tratamento de águas
servidas na bacia hidrográfica em estudo. Essa ação, inegavelmente, trouxe um horizonte
positivo para o Rio das Velhas, do qual o Ribeirão Arrudas é importante tributário. Sen-
do um dos principais poluentes do Rio das Velhas, a implantação da ETE no Ribeirão
Arrudas, localizada próxima a sua foz, trouxe consigo o propósito de implementar o trata-
mento secundário do esgoto proveniente da bacia hidrográfica. Porém, o que se verificou
alguns anos após a implantação da ETE foi o comprometimento da sua eficiência em
função do grande volume de esgotos lançados diretamente na rede de drenagem pluvial.
As ações de caça-esgoto promovidas pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte na pri-
meira década dos anos 2000, associadas à implantação e ampliação da rede de intercep-

541
tores articulada à ETE, que atinge hoje uma extensão equivalente a 44,70km, ampliaram
significativamente o volume tratado. Segundo dados da COPASA (2010), a vazão média
tratada pela ETE Arrudas em 2002 era equivalente a 1215 l/s, atingindo 1995,03 l/s em
2010. De acordo com dados do Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte
- DRENURBS (2010), na atualidade o sistema de esgotamento sanitário no município
compreende 90% de coleta, 61% de interceptação e 45% de tratamento.
Apesar das ações empreendidas pelo programa DRENURBS, que tem contribuí-
do para o tratamento de fundos de vale em diversos cursos d’água de Belo Horizonte, cabe
discutir as ações de interceptação de esgoto diretamente na calha do Ribeirão Arrudas.
Se for considerada a tendência de ampliação do tamponamento do Ribeirão ao longo do
eixo Centro-Oeste, os interceptores de esgoto provavelmente contribuirão apenas para
consolidar o Arrudas como uma rede de drenagem pluvial, devidamente separada do es-
goto. Essa ação, apesar de se constituir em avanço e ampliar a eficiência da ETE Arrudas, é
consideravelmente limitada em termos urbanísticos. Mesmo com a implantação da ETE
o Ribeirão Arrudas segue como um recurso hídrico impactado, sobretudo no eixo Cen-
tro-Oeste. Além disso, o sistema de tratamento de esgotos implantado, dada a sua magni-
tude, ameaça apropriações existentes no eixo Centro-Leste.

O espaço produzido à montante: novos usos no eixo Oeste


e suas relações com o Ribeirão Arrudas

O programa DRENURBS trouxe para o município de Belo Horizonte uma política


que propõe a ampliação do conceito de saneamento, que deixaria de se vincular ex-
clusivamente ao provimento de água e esgoto e passaria a abranger também aspectos
vinculados à eliminação de áreas de risco geológico e à criação de áreas livres de uso
público, de forma associada a ações de educação ambiental. As intervenções em curso
na porção oeste da bacia hidrográfica do Ribeirão Arrudas ligam-se, direta ou indire-
tamente, às ações do DRENURBS. O programa teve rebatimentos no vetor oeste da
RMBH, principalmente nos municípios de Betim e Contagem. Em termos gerais, o
DRENURBS consiste no tratamento, através da busca por técnicas alternativas, dos
fundos de vale ainda não canalizados no município de Belo Horizonte.
Dentre as ações do DRENURBS em curso na bacia do Ribeirão Arrudas desta-
cam-se a construção de bacias de detenção de cheias nos córregos Olaria e Jatobá e, de
forma indireta, as bacias nos Córregos Água Branca, Riacho das Pedras e Ferrugem (loca-
lizadas nos municípios de Belo Horizonte e Contagem) e a criação do Parque Linear do
Arrudas, localizado em Contagem. É importante ressaltar o caráter diferenciado dessas
ações do DRENURBS em relação a outras ações empreendidas na RMBH, principal-

542
mente aquelas vinculadas ao tamponamento do Ribeirão Arrudas. Porém, quando os
projetos são avaliados com um aprofundamento um pouco maior, verifica-se que algu-
mas dessas ações merecem uma discussão mais detalhada.
Com relação às bacias de detenção, os estudos recentes têm demonstrado que as
mesmas podem, de modo geral, amenizar o problema das cheias em seu entorno imedia-
to, mas não seriam capazes de solucionar o problema das enchentes no Ribeirão Arrudas,
que após alguns anos de ausência voltaram a ocorrer, causando estragos expressivos nos
anos de 2007, 2008 e 2009 (DEOP-MG, 2008; 2009). Uma das causas apontadas para a
insuficiência das bacias de detenção se deve às altas taxas de impermeabilização do solo
ao longo da bacia, associadas ao grande número de cursos d’água canalizados. Nesse sen-
tido, as bacias de detenção teriam o papel principal de liberar áreas inundáveis atualmente
ocupadas, e os barramentos contribuiriam, como mencionado, de forma limitada para
a redução das inundações à jusante. Os parques lineares, sem dúvida, se constituem em
ganhos urbanísticos à medida que são criadas áreas livres de uso público para a população,
em regiões muito adensadas e com poucos usos desse tipo. Uma análise do Parque Linear
do Arrudas, o principal dessa natureza em implantação no eixo Oeste dessa bacia hidro-
gráfica, no entanto, demonstra a repetição de algumas práticas. Construído no âmbito
do Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal, com a participação do
Governo Estadual, o projeto, popularmente conhecido como PAC Arrudas, traz consi-
go, além do parque ecológico de 145.000,00m², a remoção e o reassentamento de 672
famílias e a implantação de uma via de alta capacidade de tráfego articulando a Avenida
Tereza Cristina, a Avenida Presidente Castelo Branco e o Viaduto do Barreiro, localiza-
do no município de Contagem. Tal articulação gera um importante eixo de crescimento
econômico no vetor oeste, articulando áreas até então isoladas, como a Vila São Paulo e,
consequentemente, criando bolsões de valorização e especulação imobiliária.
Na Figura 3 é possível observar o porte dessa via em relação às demais intervenções.

Figura 3 - Vista geral do Parque Linear do Arrudas


Fonte: DEOP-MG (2008).

543
Um aspecto positivo do PAC Arrudas se deve ao fato de o empreendimento
ter conseguido solucionar o reassentamento dentro de seu perímetro de intervenção,
algo raro nos projetos que envolveram remoção e reassentamento de famílias na bacia
do Ribeirão Arrudas. Isso se deveu principalmente ao fato de a área contar com uma
articulação precária associada à recorrência de inundações, o que permitiu que algumas
porções de terreno permanecessem desocupadas. É destacado, também, que o Parque
Linear do Arrudas conserva os meandros naturais do Ribeirão que, associados à rede
de espaços livres dispostas no entorno, pode contribuir para a construção de uma me-
lhor relação entre a população local e o curso d’água.

Reflexões sobre as experiências coletivas recentes


no centro-leste

A implementação do Parque Linear do Vale do Arrudas, em 1999, na região leste de Belo


Horizonte, entre os bairros Santa Efigênia e Vera Cruz, é uma demonstração de que deter-
minados espaços livres podem ter um alto nível de apropriação, independentemente da
dotação adequada de infraestrutura pelo poder público.
A simples interrupção do trânsito de veículos na faixa marginal da Avenida dos
Andradas, situada na margem esquerda do Ribeirão Arrudas, gerou um nível expressivo
de apropriação pela população local, que passou a utilizar o trecho como pista de cami-
nhada, ciclovia, pista de skate e patins, dentre outros usos. Tal situação é emblemática à
medida que, mesmo circunscrita entre a linha férrea e a rodovia, esse trecho se tornou
um dos principais espaços de relação cotidiana entre o Ribeirão Arrudas e a população
belo-horizontina. É possível que essa apropriação seja ainda ampliada à medida que me-
lhores condições de acesso e permanência sejam dadas ao local. De qualquer modo, esse
contexto mostra que, mesmo com a predominância de políticas voltadas ao tratamento
do Ribeirão enquanto espaço voltado à circulação de veículos e esgotos, a população tem
se apropriado de uma margem do Ribeirão Arrudas a partir de condições mínimas.
Próximo do Parque Linear, na área central de Belo Horizonte, as margens do Ri-
beirão Arrudas têm sido objeto de diferentes processos de reapropriação coletiva. Tais
processos, fortemente politizados, têm se pautado por reações contrárias a determinadas
decisões do poder público municipal, que buscaram restringir o uso de espaços públicos
em Belo Horizonte.
O Movimento Praia da Estação é emblemático nesse contexto. Surgido como re-
ação ao Decreto Municipal nº 13.798/2009, que suspendia a realização de eventos na
Praça da Estação, um dos principais espaços públicos de Belo Horizonte, o movimento
se difundiu a partir de mobilizações coletivas através da internet, tais como blogs e redes

544
sociais, com o propósito de se opor a essas restrições de uso. Surgido de forma horizon-
talizada, sem uma liderança destacada, o movimento foi pautado na proposta de resig-
nificação do ambiente da praça a partir da ideia da praia, inexistente em Belo Horizonte,
enquanto espaço público acessado pelas mais diversas classes sociais. Na perspectiva le-
febvriana essa resignificação pode ser compreendida tanto como uma manifestação do
espaço vivido, reinterpretado e transformado através de uma apropriação multicultural
e artística, como também enquanto espaço diferencial, oriundo de uma reação contrária
à contradição de um espaço público de uso restringido. O movimento ganhou força e
passou a ocupar, com uma frequência cada vez maior, a praça e seu entorno, contribuin-
do para o fortalecimento de outros movimentos de apropriação do espaço público, tais
como o Carnaval de Rua de Belo Horizonte.
Apesar da ausência de correlações explícitas, entende-se que, sob o espectro do es-
paço vivido, há uma íntima relação entre o Movimento Praia da Estação e as apropriações
potenciais das margens do Ribeirão Arrudas. A primeira correlação é locacional, uma vez
que a Praça da Estação está situada sobre uma antiga várzea de inundação do Ribeirão
Arrudas. A segunda se liga ao contato corporal das pessoas com a água, dadas na Praça da
Estação através das fontes secas, existentes na mesma, e do uso de caminhões pipa. Esse
contato tenta retomar a relação entre o corpo e a água, ao mesmo tempo tão próxima e tão
distante do Ribeirão Arrudas.

O Ribeirão volta à pauta: o projeto Nova BH, a proposta de


requalificação urbana e ambiental do Ribeirão e os riscos de um
novo ciclo de gentrificação

Não seria correto deixar aqui de discutir, mesmo que preliminarmente, o Projeto Nova
BH no contexto do Ribeirão Arrudas. As discussões aqui desenvolvidas serão base-
adas em diretrizes de projeto, apresentadas em relatórios e audiências públicas no ano
de 2013 que, no entanto, ainda não se desdobraram em um projeto devidamente con-
solidado, aprovado e regulamentado na forma de lei, conforme exigido pela Lei Federal
n°10.257/2001 e pela Lei Municipal n° 9959/2010.
O projeto Nova BH tem como uma de suas principais premissas a requalificação
da porção centro-leste do Ribeirão Arrudas e da Avenida dos Andradas. No entanto, os
recursos para essa requalificação seriam provenientes de uma engenhosa fórmula que
consistiria, principalmente, na elaboração de um plano urbanístico que indicaria áreas de
adensamento construtivo, superiores aos permitidos pela legislação vigente, definição de
tipologias de ocupação e uso do solo e qualificação e implementação de um sistema de
espaços públicos que compreenderia sistema viário, equipamentos comunitários e áreas

545
livres. Para um determinado empreendedor conseguir implantar um edifício com área
construída superior à prevista na lei, ele deveria pagar, para cada metro quadrado cons-
truído adicionalmente, uma determinada quantia, que seria revertida na qualificação dos
espaços públicos previstos no plano urbanístico. Desse modo, para o projeto ser bem-su-
cedido, ele demandaria um intenso processo de substituição de população, tendo em vista
que os empreendimentos imobiliários acarretariam em um maior valor da terra e repeti-
riam, com novas estratégias, ciclos de concentração de renda anteriormente verificados.
O projeto Nova BH é aqui compreendido como uma face das novas investidas do
capital contemporâneo, que mais que a produção de mercadorias busca produzir direta-
mente o espaço na busca por ampliar a acumulação. Essa abordagem demonstra que um
novo desenho para o Ribeirão Arrudas, por mais que enseje um novo tratamento para as
suas margens, não será suficiente para torná-lo um espaço mais inclusivo. Ao contrário,
ações como estas poderão intensificar a cisão atualmente predominante.

Considerações finais

As discussões aqui empreendidas mostram a predominância de uma política hege-


mônica sobre o Ribeirão Arrudas, transformando-o em infraestrutura voltada à cir-
culação, sobretudo de veículos particulares e esgotos domésticos e industriais. Nessa
política a representação do espaço foi baseada na dominação do Ribeirão Arrudas em
função de demandas do capital, transformando-o em recurso, capital fixo a serviço
do sistema de acumulação capitalista. Essas ações privilegiaram, também, o espaço
privado em detrimento do público. Desse modo, outros usos para além dos fluxos
estabelecidos foram sufocados e, cada vez mais, inapropriados diante de uma prática
social imposta ao longo do último século.
Para a emergência das lutas políticas em prol de um espaço socialmente mais jus-
to e mais acessível, barreiras precisam ser suplantadas. Muitos dos processos atualmente
vivenciados em Belo Horizonte, contrários às determinações verticais do capital, estão
geograficamente localizadas na bacia hidrográfica do Ribeirão Arrudas. Muitos desses
processos, inclusive, estão extremamente próximos do curso d’água. A cisão da linha fér-
rea e dos eixos rodoviários de ligação regional parece distanciar essa relação, que necessita,
urgentemente, de reaproximação. Nessa ótica os espaços de representação possuem gran-
de potencial na busca por unir e fortalecer lutas que hoje permanecem separadas, fisica-
mente e politicamente. Ativismos urbanos como o “Fica Fícus”, o “Fica Vila Dias”, o “Salve
Santa Tereza”, o “Duelo de MC’s” e o “Praia da Estação” estão todos, coincidentemente ou
não, situados nas vertentes de contribuição direta do Ribeirão Arrudas. Há, de fato, articu-
lações entre estes, pautadas na interrupção imediata de processos de remoção de famílias,

546
na oposição à concentração de renda e, principalmente, na busca pela apropriação de es-
paços públicos atualmente subutilizados. Entende-se, nesse sentido, que a reapropriação
do Ribeirão Arrudas pode servir como elemento articulador desses processos, uma vez
que, além das pautas acima elencadas, a luta política atrelada ao curso d’água busca uma
nova relação entre a sociedade e o espaço socialmente produzido.
Na outra extremidade, a aplicação literal da política ambiental, que prevê a preser-
vação das margens dos cursos d’água, se parece cada vez mais distante da realidade do Ri-
beirão Arrudas, intensamente ocupado. Essa possibilidade poderia, talvez, ser concebida
no trecho do Ribeirão situado no município de Sabará, entre a divisa com o município de
Belo Horizonte e a foz junto ao Rio das Velhas. Porém, mais que uma aplicação irrestrita
da legislação ambiental vigente, entende-se que essa política precisa se desenvolver para
além do entendimento do curso d’água como algo a ser preservado de forma separada do
espaço socialmente produzido. Ao contrário, a busca por relações pautadas no respeito ao
sistema hídrico e ao meio ambiente, se baseada no acesso universal a esses espaços, pode
contribuir para a construção de um espaço mais acessível e menos excludente.

REFERÊNCIAS
ÁVILA, Rodrigo Pletikoszits de. A centralidade do trabalho na formação social da Vila de Marzagão. Revista
Mundos do Trabalho, Florianópolis, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Santa Catarina v. 1, n. 1, 2009.
BORSAGLI, Alessandro; MEDEIROS, Fernanda Guerra Lima. Os córregos e a metrópole: a inserção no
espaço urbano dos cursos d’água que atravessam a zona urbana de Belo Horizonte. In: XII SIMPÓSIO
NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA, Anais... Belo Horizonte: IGC/UFMG, 2011.
COPASA. Companhia de Saneamento do Estado de Minas Gerais. ETE ARRUDAS - apresentação. Belo
Horizonte: 2010.
COSTA, Heloísa Soares de Moura. A trajetória temática ambiental no planejamento urbano no Brasil: o en-
contro de racionalidades distintas. In COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (Org.).
Planejamento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. p. 80-92.
CDI-MG. Companhia de Distritos Industriais do Estado de Minas Gerais. Diagnostico das áreas industriais exis-
tentes na RMBH. Governo do Estado de Minas Gerais, Convênio CDI-MG/PLAMBEL. Belo Horizonte: 1978.
DEOP-MG. Departamento de Obras Públicas do Estado de Minas Gerais. Relatório de Controle Ambiental/
Plano de Controle Ambiental do Projeto de Requalificação Urbana e Ambiental do Ribeirão Arrudas, no tre-
cho compreendido entre o Viaduto do Barreiro e a Avenida Presidente Castelo Branco. Belo Horizonte: 2008.
DEOP-MG. Departamento de Obras Públicas do Estado de Minas Gerais. Relatório de Controle Am-
biental/Plano de Controle Ambiental do Projeto de Requalificação Urbana e Ambiental e de Controle de
Cheias do Córrego Ferrugem, no trecho compreendido entre a Avenida General David Sarnoff e confluên-
cia com Ribeirão Arrudas/Avenida Tereza Cristina (Via Expressa). Belo Horizonte: 2009.

547
DRENURBS. Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte. Recuperação Ambiental de Bacias
Hidrográficas: a experiência de Belo Horizonte. In: II SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE REVI-
TALIZAÇÃO DE RIOS, Anais... Belo Horizonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2010.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Panorama de Belo Horizonte: Atlas Histórico. Belo Horizonte: Centro
de Estudos Históricos e Culturais da fundação João Pinheiro, 1997.
GUIMARÃES. Berenice Martins. As favelas da Região Metropolitana de Belo Horizonte: desafios e pers-
pectivas. Cadernos Metrópole, São Paulo, EDUC, n. 5, 1999.
GUIMARÃES. Berenice Martins. Favelas em Belo Horizonte – tendências e desafios. Análise &. Conjuntura,
Belo Horizonte, v. 7, n. 2 e 3, maio/dez. 1992.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Belo Horizonte – Minas Gerais: Histórico. Disponível em:
<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/minasgerais /belohorizonte.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2014.
LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Ed. Anthropos, 2000.
LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell Publishing, 2012.
MARX, Karl. O Capital, livro 01, volume 01: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2008a.
MARX, Karl. O Capital, livro 03, volume 06: o processo global de produção capitalista. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 2008b.
MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo. Belo Horizonte: a cidade planejada e a metrópole em construção.
In: ____. (Coord.). Belo Horizonte: espaços e tempos em construção. Belo Horizonte: Centro de Desen-
volvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR), 1994.
NASCIMENTO, Nilo de Oliveira; BERTRAND-KRAJEWSKI, Jean-Luc; BRITTO, Ana Lúcia. Águas
urbanas e urbanismo na passagem do século XIX ao XX. Revista da UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n. 1, p.
102-133, 2013.
PLAMBEL. Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Aproveitamento Integrado
do Vale do Arrudas: análise do anteprojeto da Via Urbana Leste-Oeste. Governo do Estado de Minas Ge-
rais, Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral. Belo Horizonte: 1975.
PLAMBEL. Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Via Urbana Leste-Oeste:
primeira etapa de implantação. Governo do Estado de Minas Gerais, Secretaria de Estado do Planejamento
e Coordenação Geral. Belo Horizonte: 1977.
PLAMBEL. Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana. O processo de desenvolvi-
mento de Belo Horizonte: 1897-1970. Governo do Estado de Minas Gerais, Secretaria de Estado do Plane-
jamento e Coordenação Geral. Belo Horizonte: 1979.
PLAMBEL. Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Identificação das áreas fave-
ladas sujeitas a inundação e desabamento ao longo do Ribeirão Arrudas. Volume I. Governo do Estado de
Minas Gerais, Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral. Belo Horizonte: 1983.

548
Sobre os autores

Geraldo Magela Costa (Organizador) – Engenheiro, Mestre em Planejamento Urbano e


Regional (UFRJ), Doutor em Geografia (London School of Economics and Political
Science). Professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais.
Pesquisador do CNPq.
[email protected]
Heloisa Soares de Moura Costa (Organizadora) – Arquiteta e Urbanista, Mestre em Plane-
jamento Urbano (AA, Londres), Doutora em Demografia (UFMG). Professora do Ins-
tituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do CNPq.
[email protected]
Roberto Luís de Melo Monte-Mór (Organizador) – Arquiteto e Urbanista, Mestre em Pla-
nejamento Urbano e Regional (UFRJ), Doutor em Planejamento Urbano (UCLA). Pro-
fessor do Cedeplar/Faculdade de Ciências Econômicas e do NPGAU/Escola de Arqui-
tetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador do CNPq.
[email protected]
Ester Limonad – Arquiteta e Urbanista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional
(UFRJ), Doutora em Arquitetura e Urbanismo (USP). Professora do Departamento de
Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do CNPq.
[email protected]
Rainer Randolph – Físico, Pós-Graduação em Economia e Administração (Universidade
Técnica de Munique), Doutor em Ciências Econômicas e Sociais (Universidade Erlangen-
Nurenberg). Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador do CNPq.
[email protected]
Rita Velloso – Arquiteta (UFMG), Mestre e Doutora em Filosofia (UFMG). Professora da
Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected].
Felipe Nunes Coelho Magalhães – Economista, Mestre em Geografia (UFMG). Doutoran-
do do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Thiago Andrade dos Santos – Geógrafo, Mestre em Geografia (UFMG).
[email protected]
Orlando Alves dos Santos Junior – Sociólogo, Mestre em Planejamento Urbano e Regional
(UFRJ), Doutor em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). Professor do Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro. Pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
[email protected]
João Bosco Moura Tonucci Filho – Economista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP).
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências
da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Marcos Gustavo Pires de Melo – Economista, Mestre em Geografia (UFMG).
[email protected]
Rafael de Oliveira Alves – Advogado, Mestre em Direito Urbanístico (UERJ). Doutorando
do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais. Professor da Universidade Federal de Ouro Preto.
[email protected]
Daniel Gaio – Advogado, Mestre em Direito (Universidade de Lisboa), Doutor em Direito
(PUC-Rio). Professor da Faculdade de Direito da UFMG.
[email protected]
Natália Lelis – Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG).
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências
da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]

552
Harley Silva – Historiador e Economista, Mestre em Demografia (UFMG). Doutorando
do Programa de Pós-Graduação em Economia do Centro de Desenvolvimento e Pla-
nejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Déborah Cimini Cancela Sanches – Arquiteta Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanis-
mo (UFMG).
[email protected]
Carolina Herrmann Coelho-de-Souza – Arquiteta e Urbanista, Mestre em Engenharia/
Meio Ambiente (UFRGS), Doutora em Arquitetura e Urbanismo (UFMG).
Ana Carolina Pinheiro Euclydes – Geógrafa, Mestre em Geografia (UFMG). Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
de Minas Gerais. Consultora da Gerência de Acompanhamento e Avaliação de Políticas
Públicas da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.
[email protected]
Daniela Adil Oliveira de Almeida – Bióloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Sibelle Cornélio Diniz – Economista, Mestre em Economia (UFMG). Doutoranda do Pro-
grama de Pós-Graduação em Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento
Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Júlia de Carvalho Nascimento – Economista. Mestranda do Programa de Pós-graduação
em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Marcelo Cintra do Amaral – Engenheiro Civil, Especialista em Administração Pública (Fundação
Santo André) e Desenvolvimento Gerencial (USP). Doutorando do Programa de Pós-Gra-
duação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]
Renan Pereira Almeida – Economista, Mestre em Economia (UFMG). Doutorando do Pro-
grama de Pós-Graduação em Economia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Re-
gional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected]

553
Leandro de Aguiar e Souza – Arquiteto Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo
(UFMG). Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de
Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected]

554
Esta edição foi composta com
as fontes Zurich e Arno Pro., em
maio de 2015, pela Editora C/
Arte, em papel supremo 250g.
(capa) e offset 70g. (miolo).

Você também pode gostar