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PONTALIS, J.-B. Perder de Vista - Da Fantasia de Recuperação Do Objeto Perdido v1

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J.—B.

Pontalis

PERDER DE VISTÃ
Da fantasia de recuperação
do objeto perdido

Tradução:
VERA RIBEIRO
psicanalista

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
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36%24 I. Achar-se ou perder—se no negativo


O homem imóvel
Atualidade do mal-estar 15
O ódio ilegítimo 28
Uma cara que não agrada 34
Uma idéia incurável 47
Não, duas vezes não 54
Essa transferência chamada negativa 74
II. Livrar—se da crença 79
Título original:
Confiar... sem acreditar 81
Perdre de vue Entre Groddeck e Freud 90
Os vasos não comunicantes 98
Tradução autorizada da primeira edição francesa
publicada em 1988 por Éditions Gnllimard, de Paris, França,
Idas e vindas
na coleção “Connaissance dc l'lnconscient', dirigida por I.—B, Pontalis (seguido de Paradoxos do Efeito Winnicott) 112
Da mãe, o materno 125
Copyright © Éditions Gallimard, 1988
O quarto das crianças 128
Copyright © 1991 da edição em língua pormguesa:
Jorge Zahar Editor Ltda.
Fora do templo 134
me México 31 sobreloja
20031 Rio de Janeiro, RJ Ill. Afastar—se do visivel 141
Todos os direitos munidos. A melancolia da linguagem 143
A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo Mais uma profissão impossivel 147
ou em parte, constitui violação do copyright, (Lei 5.988) Freud posto em imagens 152
Ohm publicada com o apoio do Ministério da Cultura da França. A moça 163
[Edição para o Brasil] A atração dos pássaros 172
Capa: Gustavo Meyer
Últimas, primeiras palavras 190
Perder de vista 205
Impressão: Tavares e Tristão Ltda.
Notas 223
ISBN: 2-07—071399-7 (ed. orig.)
'
ISBN: 85-7110—162-0 (JZE, RJ) Referências Bibliográficas 237
Para Maurice MerleawPonty

Achar-se ou perder-se
""
no negativo
Apatia. — Mal-estar, crise.—-

O amor ao próprio ódio. —


quer que doa, sou eu. ” —
' “Aonde
Não largar.
O homem imóvel

Ele deu seu nome a uma doença. E no entanto, não era nem médico nem
enfermo. Foi prontamente reconhecido Como herói, o anti-herói que
considerava toda e qualquer ação inútil pior, talvez: criminosa e que
— —

só gostava de uma coisa: ficar deitado.


Seria esse um melancólico, ou seja, um ser eternamente possuído,
perseguido, arruinado pelo objeto perdido? Não creio. Dele não tem os
traços sombrios e atormentados. Ao contrário, vê-se em seu rosto, como
nos relata alguém que o conheceu bem, uma luminosidade plácida de
despreocupação; e quando porventura ressurge do fundo de sua alma uma
sombra de inquietação, ela se dissipa com um suspiro. A apatia é seu
estado, e a posição estendida, a mais favorável à manutenção desse estado.
A inércia é nele mais que uma força: é um princípio.
Obstinado a rejeitar qualquer alteração em si, como suportaria ele
aquilo que, a seu redor, no quarto ou no mundo externo, na cidade de que
se protege ou nos campos distantes, se modificasse? Se algum ódio povoa
esse homem sensível e meigo, é o ódio ao tempo. Vivente imóvel, é o
tempo que ele mata. Acaso chegará sequer a perceber que o jornal jogado
em sua mesa data do ano anterior? Se constata que seu apartamento vai
sendo invadido pela poeira, não conclui disso que é preciso limpa—lo; não
é que goste do sujo ou desdenhe do limpo, mas a limpeza, segundo pensa,
deveria "instalar-se por si só”. Quanto aos móveis, a mesma coisa: o
espaldar desse sofá, por exemplo, quebrou a si mesmo, "não era eterno,
tinha mesmo que se quebrar algum dia".
Não existe agente'e não existe ator em seu mundo.
Quando os amigos vão visita-lo, justamente aqueles que afirmam
fazer alguma coisa, não lhe vem nenhuma inveja, nenhum sarcasmo, mas
um grande assombro e algumas perguntas singulares. Diante do atarefado,
ele se indaga: “Onde está o homem nisso tudo? Em quê se fragmenta?”
Frente ao escritor profissional, ele, que se recusa a escrever o menor
bilhete, não compreende, apieda-se: “Escrever o tempo todo, escrever
como uma máquina, despender a alma em troca de ninharias... Quando é,

9
10 O HOMEM IMÓVEL ] !.
ACHARSE ou PERDER—SE NO NEGATIVO

afinal, que ele poderá parar, respirar um pouco? Pobre homem!“ ' Dirigin- gente, oscilando entre o embotamento e o pasmo. Como que magnetizado,
do—se a quem entra no aposento, estas palavras iniciais: “Não
se aproxi— estive lá com ele.
me, você está vindo do frio.” Era freqiiente ele me entediar, continuando a me envolver ali, mas
com um tédio que não era o dele: eu me entediava por ele (pois, por sua
F ra gmentar-se, despender a alma por ninharias, como pura perda. Que tem vez, eu seria capaz de jurar que ele não conhecia o tédio). Era a lentidão
ele, portanto, a conservar, a guardar para si, a manter em si, bem aquecido, de sua fala, de seus gestos: dir-se-ia que ele nunca deixava seu roupão,
inalterado? Que bem tão precioso e tão frágil é esse, que o menor que estava sempre se preparando para... se preparar. Sua vida me parecia
movimento lhe é fragmentação, desgaste nocivo, chegada do frio? Que ar bastante pobre, mal chegava a ser uma vida, e no entanto, não era a morte.
tépido é esse que ele respira, seu sopro próprio? E, contraditoriamente, eu o representava para mim como um rio imenso,
Podemos pressenti-lo: é a infância, a enorme casa da infância. Que atravessando planícies infinitas e correndo com tal lentidão que não se
encontra ele nessa casa, naquele tempo? Já o sono, já a imobilidade. Mas distinguia nele nenhuma correnteza. Como podia aquele homem, que
o sono reinava na casa, a imobilidade no tempo. O campo, as estações, as ocupava tão pouco espaço, despertar visões tão poderosas?
festas, a cozinha (muito importante, a cozinha). Nada se mexia, era a Vez por outra ele me irritava. Era quando se queixava dos infortú-
eternidade. “Um morre, outro nasce", dizia a sabedoria do lugar. Sim, nios da época, de um credor, daquele a quem chamava de seu administra-
mas quando morreu a mãe, por sua vez, acabou-se essa calma confiança dor, ou de sua empregada, que chamava de preguiçosa (o cúmulo, vindo
na ordem da natureza. Quando morreu ela, já não nasceu outra. Ele dele que não fazia nada). Seria eu esse credor abusivo, essa empregada
renunciou a qualquer movimento. Ficou em seu lugar. negligente, mas de uma devoção a toda. prova, esse administrador sem
Como gostavam de dormir naquela casa sonolenta! Mas ele, o escrúpulos, eu, que lhe dedicava boa parte de meu precioso tempo e de
garotinho transformado no homem deitado e no homem sem idade, era meus cuidados atenciosos? É provável. Mas, exatamente como soubera,
então singularmente ativo, alegre, empreendedor. Meio imprudente, até, com total ausência de sedução, transportar—me para dentro de seu sonho,
trepando no pombal e se embrenhando mato adentro, e também dos mais ali estava ele conseguindo me arrastar para sua indolência eu não ousava

irrequietos: um "verdadeiro pião", reclamavam “afinal, quando é que


— dizer preguiça, tão atuante era ela e eu era capaz de passar horas,
-—,

você vai ficar sossegado?” Não, seus olhos nem sempre eram inocentes, admitamos, sem me preocupar com o que ele me contava: os fatos
nem tampouco as histórias que se comprazia em ouvir das babás. minuciosos, realmente muito minuciosos de sua vida cotidiana.
Seria essa a chave de seu mistério: o mundo adormecido a seu redor Aconteciaime falar sobre esse homem com alguns colegas, há tanto
e ele velando, malicioso, às vezes cruel, ele observador e ativo, móvel tempo já vinha durando o caso (desde quando? - eu era totalmente incapaz
como um pião? Mas desde então, e no presente, a situação se inverteu: já de dizer). "—Nada de mudança? perguntavam-me. Não, nada. Como

não é a casa a adormecida, e sim ele o que dorme. E porque, senão para poderia ele mudar alguma coisa, se quer que nada se modifique? Você

que a casa não morra, para que permaneça fora do tempo? '
nos disse isso nos mesmos termos no ano passado. Sim, sim, eu sei, aí

Ã
é que está o problema. Pouco a pouco, sinto-o perfeitamente, ele vai me
Essa foi, em todo caso, a idéia que me ocorreu enquanto ele mê contava conquistando para sua causa. Aliás, eu o afirmei: ele quer.. Acabo queren—
um grande sonho que o havia transportado àquela época. Até então, do o que ele quer, tornando minha sua paixão pela imobilidade. Deve _ser
vendo-o estirado, eu dizia a mim mesmo que fazia parte daquele lote de uma paixão tão violenta quanto as outras, e talvez a úmca verdadeira.
visitantes importunos, de ativistas para quem sua apatia era mais uma Sabem, esse homem e atraente.” .

ofensa do que um enigma. Porque, afinal de contas, dizia-me ainda, não Atraente: sem dúvida era o que diziam dele seus poucos amigos, e
deixa—lo em paz, deixa-lo estar? Que loucura é essa,
que às vezes nos em particular um deles, que o conhecia desde a infância e que se chamava,
acomete, de querer mudar os outros? E depois, ao escutar esse sonho cujo creio eu, Stolz: um sujeito ativo, em perpétuo movimento, que se safa bem
relato ocupou muitos dias, e que, aliás, ele preferia chamar de divagação, nos negócios e que, sem se propor como modelo, em vão tentava a] udá-lo,
para dele melhor se alimentar e não se separar, percebi que ele me fazê-lo sair de casa.
transportaria para lá. Não foi a intensidade das imagens, como às vezes
acontece, que teve esse efeito sobre mim', elas eram basicamente banais, Conseguiu fazê-lo, um dia, e nosso homem conheceu numa reunião uma
essas imagens, próximas do lugar-comum; não, foi uma força mais secre— mulher deliciosa, que se mostrou sensível a seu encanto incomum. Recu-
ta, mais envolvente: vi-me naqueles campos, naquela mansão cheia de perei, como o amigo Stolz, uma certa esperança. Finalmente ele iria, com
12 ACHAR-SE OU PERDER—SE NO NEGATIVO O HOMEM IMÓVEL IJ

aquela moça, desde que ela não se mostrasse demasiadamente exigente, movimento, que o outro encarnasse a figura do imóvel? Ele estava curado.
abrir um pequenino espaço para esse estranho íntimo chamado desejo, sob Amor medicinal? Cura milagrosa? Pouco me importava! De qualquer
a condição de que esse intruso não o perturbasse demais! Depois disso, modo, os rumos tomados por nossos tratamentos nos são, a maioria das
podia-se esperar tudo dele. Animado pelo amor (ainda assim, a palavra vezes, misteriosos. E depois, Olga tinha uma vantagem sobre mim: era
me parecia um tanto forte), talvez uma certa animação fosse aos pouqui— uma moça, e uma moça que esperava dele, para si mesma, sua própria
nhos conquistando todo o seu território; melhor, talvez o fizesse sair de metamorfose, ao passo que eu, fazia já muito tempo, só queria uma coisa:
seu território, assegurado de que, com aquela mulher, ele sairia ganhando. que ele mudasse, ele e ele só.
Vi em Olga era esse o nome dela —, tão confiante, e no entanto maliciosa,
— Como foi, então, que não fiquei tão surpreso quando ele me veio
tão alegre, e no entanto calma, a terapeuta que eu não soubera ser. Com anunciar, friamente: “Foi um erro. Eu me deixei levar. O coração dela
toda a certeza ela não o deixaria dormir. estava à espera do amor, e quis o acaso que ela caísse em cima de mim.
Ele faltou a algumas sessões. Rejubilei-me: finalmente lhe aconte- É tudo. Escrevi-lhe a esse respeito. Acabou-se." Claro, não acabou
cera alguma coisa. Depois, retornou, inquieto: “Que é que me prova que naquele dia. Houvq novamente impaciências, frêmitos, momentos de
ela me ama? E se estiver zombando de mim?" Essa agitação, embora doçura e febre. Houve até projetos de casamento, incessantemente adiado.
assumisse nele uma forma racional, parecia-me de bom augúrio: ao Olga se cansou. Deveria eu, assim, continuar a ser o único a não se cansar?
conhecer os tormentos próprios do estado amoroso, ali estava ele pare- Porque Olga havia falhado? Só me vinham hipóteses vagas, perguntas sem
cendo—se com qualquer um nas mesmas circunstâncias. Abstive—me de lhe resposta ou respostas ocas: medo da vida, medo da mudança, medo do que
dizer isso. Ainda mais que nunca me esquecera da cena sim, da cena
— — vem depois do sonho e anuncia a morte.
que ele fizera comigo no dia em que tive a infelicidade, não sei mais em
que contexto, de invocar “os outros”. Levantara-se imediatamente do Ele parou de vir algum tempo depois. Sua imagem permanecia em mim.
divã: "— Como? O que foi que o senhor disse? Vejam só a que ponto o Eu percebera nele — como Olga, como Stolz —
recursos imensos, e
senhor chegou! Agora vou ficar sabendo que, para o senhor, sou a mesma
,.)...

alguma coisa me impedia de pensar que eles ficariam eternamente


coisa que os outros.“ Pusera-se a andar de um lado para outro pelo
inexplorados. Curiosamente, eu dizia a mim mesmo, quando tudo na
,,,.

aposento. Novamente deitado, após um longo silêncio, dissera-me grave- realidade afirmava o contrário, que ele tivera êxito em sua vida, que
mente: “— O senhor me magoou." Com brandura, perguntei—lhe: "—
seu destino, antes, estava consumado, e que todos aqueles, dos quais eu
aPorquê? O senhor quer que eu lhe diga? Já chegou ao menos a refletir

fazia parte, que tinham querido arrasta-lo para outro lugar faziam-no
sobre o que vem a ser um outro?" E me dera uma aula. O outro era o extraviar—se e se extraviavam.
horror, era aquele que trabalhava sem trégua, que pedia, que se humilhava, Tive noticias dele alguns anos depois. Soube que Stolz desposara
tudo isso porque tinha sempre novas necessidades a satisfazer. Foi então
R—__..m=.»mtmmmu

Olga, que eles tinham filhos e viviam o mais feliz dos amores possiveis.
que vi surgir uma criança plena, imaginária, sem dúvida, a quem nunca Entretanto foi o próprio Stolz quem me confidenciou —, Olga tinha às

teria faltado nada, uma criança incomparável, uma criança única, uma
vezes momentos de grande tristeza, a melancolia se apossava dela. "A
criança régia e regiamente servida. Era um "não—outro", era ela mesma. vida' ', dizia ela, ' 'a vida me parece incompleta nessas horas. Tenho medo
Qualquer mudança significaria sua perda. P: de que isso mude, de que pare, eu mesma não sei." Através dessas
Eis que, com o aparecimento de Olga, ele consentia em se esquecer ; palavras de Olga, foi a ele que escutei.
de seu ser, eis que ela lhe fazia falta, que ele a esperava, endoidecia com Quanto a ele, soube que passara seus últimos anos junto de uma certa
suas alterações de humor, eis que passava da angústia à exaltação. “— Ah! Agafia, uma viúva que tinha dois filhos e que não era bonita, nem
— queixava-se se ao menos a gente pudesse sentir o calor do amor sem

inteligente, nem rica, mas totalmente dedicada às tarefas domésticas. Era
seus tormentos!” Cheguei a inveja-la. Enquanto ele me contava algum meio gorda, tinha a pele macia e cozinhava esplendidamente. Quando ele
passeio luminoso com a moça, alguma conversa descontraída de verão, e morreu, foi difícil decidir se havia encontrado um berço ou se já estava
me tornava testemunha da incessante mobilidade da alma provocada pelo há muito tempo em seu caixão. Seja como for, Agafia nunca se recuperou,
amor nascente, eu me sentia um perfeito palerma, atarraxado a minha ela tampouco, do desaparecimento de nosso amigo. Ficou, como se diz,
poltrona. Agora, eu é que me tornava o funcionário em disponibilidade, alheia a tudo o que a cercava.
o homem sonolento que se embrulhava num roupão usado. Teria eu Uma jovem, uma viúva... Teria sido da mulher que ele fugira, aquele
tomado o lugar dele, como se fosse preciso, para que um ficasse em homem imóvel que só queria ser ele?
ACHAR-SE ou PERDER-SE NO NEGATIVO

A doença a que o homem deu seu nome chama-se Oblomovstchina. Um


revolucionário que chegou ao poder costumava dizer, segundo contam,
que seu principal adversário, aquele a quem ele temia jamais conseguir
vencer, era a doença que trazia esse nome. Esse homem, o revolucionário,
casualmente nascera na mesma cidade daquele que fez do primeiro seu
herói. Chamava-se Vladimir Iliich Ulianov, mais conhecido pelo nome de
Lenin. Entre outras obras, a ele devemos: Que fazer? Atualidade do mal—estar
O romance de Ivan Gontcharov, Oblomov, foi recentemente objeto
de uma tradução integral de Luba Jurgenson, com prefácio de Jacques
(
Catteau (L 'Áge d 'Homme, 1986). Em 1 926 fora publicada uma tradução 'A'

parcial na editora Gallimard. A advertência ao leitor assinalava que


É uma palavra curiosa esta, mal-estar: uma palavra discreta, quase tímida,
parecem oportuno proceder a ”alguns cortes” naquele romance ”fati-
gante' ': os alguns cortes representavam mais da metade do livro. muito fraca ou muito forte, conforme a maneira como se queira ouvi-la.

“Ele teve um mal-estarª ' pode ser um sinal que anuncia a morte próxima,
ou quase nada: uma vacilação, um distúrbio vago, difuso, que se dissipará
sem deixar outro vestígio a não ser a recordação também vaga do proble-
ma, que volta insidiosamente a inquietar, a advertir que é passado o tempo
da quietude, da segurança tranquila do corpo, da confiança ingênua num
equilíbrio sempre capaz, através de suas variações e rupturas, que com—
%

põem a vida, de se restabelecer, quer se trate do corpo biológico ou do


corpo social. E eis que agora, surgido o problema, já não é mais nada disso.
Corre o boato de que há um passageiro clandestino a bordo: igualmente

possível que ele desembarque despercebido ou que faça explocur o navio...


Freud não fala em crise, mas em mal—estar. Quererá isso dizer mais
ou menos? Uma crise, quaisquer que sejam sua duração e sua amplitude,
invoca sua superação, sua solução. Tem como protótipo ao menos a

nossa, como nos empenhamos bastante em nos convencer a crise do —

crescimento. Uma doença que entra em sua “fase crítica” pode conhecer
um desfecho fatal ou um desenlace feliz; de qualquer modo, a fase será
decisiva, produzirá a decisão. Um “simples mal-estar" não permite nem
um diagnóstico seguro nem um prognóstico provável; desarma nosso
saber, escapa a qualquer apreensão. Os que vão consultar um psicanalista
estabelecem perfeitamente a diferença entre uma situação de crise e um
estado de mal-estar. De um lado, abandono doloroso, luto impossível,
enfraquecimento do desejo, angústia que conhece ou julga conhecer seu
objeto: o apelo para “sair disso” pode então ser premente. De outro, a
queixa ou, pior ainda, a constatação sem queixa de um mal—estar que se
enuncia precariamente, numa insipidez que reproduz a falta de relevo da
existência, na trivialidade de expressões que não pertencem a ninguém:
"sinto-me indisposto”, “não estou em parte alguma”, “não sinto real-
mente nada“, "estou vazio”. Não há aí sintomas localizáveis que, aos
próprios olhos de quem deles sofre ou com eles se regozija, façam alusão,

15
16 ACHAR-SE OU PERDER-SE NO NEGATIVO ATUALIDADE DO MAL-ESTAR I7

por sua aberração e sua insistência, a um conflito ignorado, a exigências insistência realmente pulsional, a única que é capaz de fazer a mente
opostas que, cada qual por seu turno, reclamem o que lhes é devido. Nada trabalhar sobre o que resiste a ela. Mas, onde está a inovação no Mal as
além de um mal-estar indefinível, indefinido, do qual acontece que só tar?5 Em que sinais reconhecer nele a irrupção de algum recalque do
saímos produzindo sintomas finalmente dizíveis, finalmente falantes. Os pensamento? O leitor tem inclusive muitas oportunidades de ficar surpre=
sintomas: nossa cultura privada (por isso é que há quem os “cultive“, so, irritado, ao ver Freud tirar um partido tão precário de suas próprias
nem que seja para não cair no amorfo). grandes contribuições. Assim é que a noção de pulsão de morte vê—se
reduzida a uma “tendência inata do homem para a maldade, a agressão,
Em 1919, logo após o que ainda se deve chamar a Grande Guerra, Valéry a destruição e, portanto, também para a crueldade' ', como se essa intuição
publicou La crise de l'esprit. Em 1935, na ocasião que se seguiu à tomada genial, louca, propriamente inadmissível, que alia numa só palavra, To-
do poder pelos nacional—socialistas, Husserl proferiu em Viena sua con— destrieb, aquilo que anima todos os desejos e aquilo que representa. o
ferência sobre "A Crise da Humanidade Européia e à Filosofia". Em inanimado, viesse apenas confirmar o velho adágio do Homo homim
1929, Freud escreveu O mal—estar na cultura, Das Unbehagen in der __3

lupus. O outro exemplo: o princípio do prazer, que supostamente regeria


Kultur. Não há crise nesse título, com o que a palavra sugere, por "
o curso das excitações, conferindo-lhes uma descarga imediata, sem
oposição, de relativa estabilidade, coerência ou até harmonia, tal como contemplação nem acomodação, é ali assemelhado a uma prudente regra
pode oferecer sua forma consumada. Não há Europa, com o que seu papel de hedonismo. E, o que é ainda mais estranho numa obra que não hesrta
histórico, sua "imagem espiritual“, como diz Husserl, pode implicar de em definir o fundamento e a finalidade de qualquer civilização, o com-
valores a serem propagados, mantidos, defendidos, Não há apelo a uma plexo de Édipo mal chega a ser evocado no Mal-estar, embora Freud
tarefa filosófica, nem mesmo qualificada de interminável, e nada que nunca tenha deixado de sublinhar sua universalidade e de assmalar, em
indique o discurso de um profeta, seja ele de infortúnio ou salvação. Á termos que a antropologia contemporânea não renegaria, a eficácia estru—
palavra Zivílisatíon preferiu-se Kultur,1 como se conviesse abster—se de turante e “civilizatória” da proibição do incesto.
qualquer ênfase, conjurar de imediato a atração pelo “superior”. Que é, pois, o Mal-estar? Seria efetivamente, como o sugere seu
Esse cuidado encontrou sua base no juízo feito pelo autor sobre seu autor, a recreação de um velho fati gado que, ao menos uma vez em férias
ensaio, como atestam estas linhas, frequentemente citadas, que ele ende- de análise, sai do “subsolo do prédio"ª para se entregar aoprazer —

reçou a sua amiga Lou Andreas—Salomé: "Este livro trata da civilização, tentação que é por demais sabido tornar—se irresistível com a idade e a
do sentimento de culpa, da felicidade e de outras coisas elevadas do consagração7 da dissertação estival? Na falta das longas caminhadas

mesmo gênero, e me parece, seguramente com justa razão, absolutamente pela montanha, um passeio, uma excursão8 pelas bandas das ' coisas
supérfluo, quando o comparo a meus trabalhos anteriores, que sempre elevadas”. E as coisas elevadas, sem dúvida para qualquer psicanalista,
provieram de alguma necessidade interior.2 Mas, que outra coisa podia eu e com toda certeza para Freud, são necessariamente coisas “banais”.
fazer? Não se pode fumar e jogar cartas o dia inteiro. Já não posso fazer Dessa equivalência, Freud teria a sua custa a experiência. Podemos
longas caminhadas, e a maioria das coisas que se lê deixou de me senti—lo, de ponta a ponta, pouco à vontade em seu Mal-estar, e cºm ele
interessar. Escrevo e, assim, o tempo passa muito agradavelmente. En- seu leitor. ,

quanto me entregava a esse trabalho, descobri as verdades mais banais.“3 Para isso, diversas razões. Abordar a civilização, as restrições que
A mesma constatação desiludida se repete quase no final da obra: "Ne- ela impõe e a renúncia que exige, e as aspirações que, a despeito de tudo,
nhuma me deu como esta a impressão tão viva de estar dizendo o que todo continuam vivas, inabaladas, no sentido de maior união, mais amor, para
o mundo sabe, e de usar papel e tinta e, em seguida, mobilizar tipógrafos
que enfim se consume a "bela totalidade", que grande tema seria esse,
e impressores para dizer coisas que, falando propriamente, mostram-se justamente para aquela a quem Freud confessou sua decepção diante dos
óbvias.”4 resultados de seu próprio trabalho! Sim, com que prazer se empenharia
Juízo autodepreciativo? Não é esse o estilo de Freud. Ou simples— Lou, aquela a quem Freud chamava afetuosamente sua 'entendedora", e
.“

mente lúcido? A verdade é que o livro não parece responder a uma cujo pensamento era, na opinião dele, inteiramente animado pela neces-
exigência do pensamento. Não são tanto as repetições, a retomada de sidade de síntese, em encontrar no movimento civilizatório a expressao
idéias já muitas vezes enunciadas, nem a hesitação da formulação e seus multiforme de Eros! Mas quanto a Freud, quão pouco era ele filho desse
desvios, que perturbam a leitura: Freud é useiro e vezeiro nisso. Esta deus! A ciência que fundou ele deu o nome, sem hesitação e literalmente,
justamente nisso sua maneira própria de inovar, pela repetição, pela de análise, desligamento daquilo que compõe uma massa. E lhe deu por
18 ACHAR-SE ou mansa-ss NO NEGATIVO
ATUALIDADE no MAL-ESTAR ”
objeto a exceção, o resto, o diferente, o parcial aquilo que denominou
— meiros capítulos do Mal-estar, mas igualmente protegida da análise
de "irreconciliável”, tudo o que se opunha à meta incansável por ele corrosiva. Freud talvez seja uma das últimas imagens do sábio ou do

atribuída a Eros: a de reunir, de manter unido. E mais: nessa ciência e no Herói aportando às margens da sabedoria a nos ser proposta pelo mundo

método que ela conferiu a si mesma, é o próprio espírito de seu fundador moderno. Daí sua facilidade em recusar o "palavrório sobre o ideal .

que está em ação, esse instrumento de grande precisão feito para dissecar, Todavia, esse palavrório não foi denunciado, como observou recen—
separar, decompor mas sem dilacera-lo o tecido da psique. Inúmeros
— — temente Paul-Laurent Assoun,'º em prol do ceticismo, mas em nome de
sonhos do homem Freud representam esse desejo, tão contrário à natureza um naturalismo: “Tenho muito respeito pela mente, mas acaso o terá
de Eros; e cada novo texto mobiliza e reinstaura uma pulsão de saber também a Natureza? [A mente] não passa, em suma, de um pedaço desta,
derivada da pulsão sexual, mais “selvagem” do que “civilizada". e o restante da a impressão de poder perfeitamente sair-se muito bem sem
Nopróprio principio de uma reflexão global sobre a civilização esse pedaço." “ .
haveria, portanto, algo de estranho e até de oposto ao procedimento Detenhamo—nos por um instante nessa revocaçâo à supremacra da
psicanalítico. Daí o embaraço de Freud, que encontra no seguinte um Natureza. Talvez enepntremos nela apenas um eco mais decorrente do
.—

motivo suplementar: acaso todo discurso sobre a civilização, quer denun— humor do que de uma profissão de fé, um dito espirituoso dirigido contra
cie seus malefícios, quer exalte suas realizações, não é mais ou menos o Espírito do anúncio feito por Valéry no famoso texto a que aludi há

idealista? Não exige ele, necessariamente, que se faça referência a ideais pouco: “Quanto a nós, civilizações..." Mas o termo de Freud diz outra
que seriam ameaçados pelo estado de coisas vigente posto que tal
— coisa. Não nos remete apenas a dura lei da vida que pretende queAtudo seja
discurso só se justifica nos momentos em que um grande abalo da História perecível. Menos ainda dá margem a idéia de que a decadenCia e a
põe em questão as próprias bases de uma civilização? Ora, Freud sempre mortalidade de uma civilização possam prender-se a um destino contrário;
teve uma posição bastante ambígua em relação àqueles a quem chamava Se a mente e suas obras não passam, no final das contas, de um “pedaço
"profissionais do ideal”. Se gostava de dialogar com eles, era para de uma Natureza indiferente, a ordem da cultura traz em si uma precarie-
chama—los à realidade, a das coisas e a do homem. Ele tinha estima
pelo dade essencial: não tem nenhuma autonomia, não se beneficia de nenhum
excelente Dr. Putnam, o norte-americano que lera Bergson, e pelo pastor privilégio. Daí a necessidade, para quem se empenha em elucida-la, de
suíço Pfister, que queria encontrar na psicanálise uma nova pedagogia, adotar um método regressivo, reducionista, se preferirmos, porém num
mas não se furtava de repreendê-los respeitosamente. "Profissionais do sentido muito particular.
ideal”: a ironia da expressão, por si só, fala da desconfiança. Não que É notável que Husserl, na Crise da humanidade européia, se formu—
faltassem ideais a Freud, não que ele não tenha obedecido, inclusive de le essa questão em termos muito similares, porém para lhes dar uma
maneira exemplar, como homem privado e público, como pesquisador e resposta totalmente diferente.12 Também ele reconhece que a ordem do
como terapeuta, às mais tradicionais virtudes, isto é, às que lhe foram espírito humano se fundamenta na physis"13 e que, por conseguinte, as
transmitidas por sua cultura. Mas realmente parece que, a seu ver, todas ciências da mente não devem —
caso tenham por ambiçao. atingir a
essas virtudes a integridade, a coragem no sofrimento, a dupla rejeição

exatidão, o estabelecimento de leis e o dominio através da técnica que as
das concessões e do abuso de poder eram uma coisa esperável: inútil
— ciências da natureza obtêm - considerar a mente como mente. .Se o
fazer delas um prato cheio! E, acima de tudo, dado que a função de mundo", escreveu Husserl, ' “fosse formado por duas esferas de realidade
produção de ideais decorria de uma instância intrapsiquica, em suas duas que tivessem, se nos é lícito dizê-lo, a mesma dignidade, a natureza e o
fo as, de “eu ideal" e “ideal do eu", era impossível ela se delegar sem espírito, sem que inna dependesse da outra quanto ao métodoe quanto ao
se aviltar (vide as massas que se entregam a um chefe que se ofereça para conteúdo, a situação seria diferente. Mas a simples natureza já constitui,
encamá—las). A moral de Freud e silenciosa, não legisla nem prega. Tal por si só, um mundo fechado; só ela pode ser puramente explorada como
como sua ciência, não se instala no universal, mas o encontra como que natureza, sem ruptura no encadeamento das conseqiiencms; pºis bem, ela
é o embasamento causal do espirito." “ Contudo, como havemos de
(

por acaso na apreensão do mais particulamº Dir-se—ia que, por ter-se


confrontado com o mal, com o ódio e com o desencadeamento das paixões lembrar, opera-se prontamente uma inversão: não apenas Husserl fala da
na realidade psíquica (individual e social), e por ter reconhecido em ação possibilidade de "fundar uma ciência rigorosamente fechada e geral do
no inconsciente uma lógica imperiosa que fazia pouco de todas as outras espírito", não apenas ele imputa à tese anterior, em que se afirmou com
lógicas, dir—se—ia que Freud precisou, como contrapartida, de algumas suas “evidências" o objetivismo triunfante, sua “parcela de responsabi-
certezas simples: uma sabedoria sem ilusões, tão perceptível nos pri- lidade na doença da Europa", mas também mostra como aquilo que
20

㺗
ACHAR-SE OU PERDER—SE NO NEGATIVO

tomamos por ambiente material é obra do espírito. O meio histórico e


geográfico dos gregos da Antiguidade, por exemplo, é sua ' “representação
do mundo". Contra os irmãos inimigos e complementares como ainda

A posição de Freud não pode ser nem a defendida


hoje podemos comprovar que são o cientificismo e o irracionalismo, ele


relembra com admirável firmeza os poderes da filosofia, sob a condição


de que se entenda por filosofia, como na Grécia antiga —
“lugar de
nascimento" da Europa -, não um trabalho de especialistas do espirito,
mas a própria cultura.
por Husserl nesse
texto, que tem a aparência de um manifesto, nem a que ele denuncia.
Seelische Apparat: “aparelho anímico". Teremos avaliado suficiente-
mente o que essa expressão continha de discretamente provocador, tanto
diante do espiritualismo quanto do positivismo? A alma tem um aparelho,
a alma é um aparelho, mas é uma alma! Ora pensa, ora fala... Podemos,
devemos considera-la como um aparelho ótico, diferenciado em peças e
em funções, como um sistema nervoso distribuído em redes de neurônios.
ºu
ATUALIDADE DO MAL-ESTAR

primeva e do assassinato do pai responde invocando a realidade do evento:


no começo era o ato. Ora, com o Mal-estar, nao somos nem deportados
para o terreno do mito nem trazidos para o do trajeto pulsional e,
repente, a velha e fictícia oposição
restrições da sociedade é
entre
incessantemente
as aspiraçoes do'lttleldulo as

a Freud recorrer ao que ele chama de sua própria mitologia , a saber,


sua teoria final das pulsões, no que ela forneceria, em sua opOSiçao
vida-morte, união-desunião, uma referência universal, como se renuncias-
se à análise.
_
Observe-se que nossa hesitação diante do Mal-estar nao se expres—
saria de maneira similar no tocante ao conjunto da obra “sociologica de
Freud. Para tomarmos apenas um exemplo, a Massenpsychologie tratadde
um objeto bem determinado: a identificaçao com o líder do hipnotiza pr

—-

ao condutor de povos e a dos sujeitos entre Sl. Por isso a investigaçao


pode produzir, ali, noções novas, a ponto de fazer do livro uma das
e
21

de

utilizada: Por ultimo, so resta

A suposta dignidade do objeto, sua complexidade real, não invalidam o análises mais vigorosas e mais modernas começam finalmente a perce-

modelo. Mas é uma tópica subjetiva que convém constituir, e não a ber issols — das diversas modalidades do vínculo soc1al. Quanto ao
anatomia de uma coisa. Em se tratando de civilização, portanto, a questão Mal-estar, ele se situa, na maioria das vezes, num tal nível_de generalidade
que desestimula a discussão. Como rejeitar, como aceitar propoSiçoes
se desloca das obras para o trabalho, das produções para o processo. Sobre
a natureza das civilizações, sobre as múltiplas imagens que elas assumem preliminares do tipo “os homens buscam a feliCidade , das quais, nao
através do tempo e do espaço, a psicanálise nada tem de específico a dizer: obstante, decorre todo o desenvolvimento subsequente? A mescla de
são tarefas dos historiadores e etnólogos aquelas que se chamavam, na audácia e “prudência que, em outros textos, assegura ao pensamento ,de
Freud sua força demonstrativa é ali singularmente deficitaria. .Dai o
época de Freud e Husserl, “ciências do espírito". Entretanto, captar os
determinantes do “processo civilizatório", do “progresso na espirituali- mal-estar que acompanha progressivamente a leitura, por se estar lidando
dade“ (Geisti'gkeit), rastrear as vias tomadas pelo ser humano para se com o não verdadeiro nem falso.
civilizar, e avaliar o que isso lhe custa interessam—lhe diretamente. Pode-
mos até dizer que a psicanálise só cuida disso. Paradoxo: as páginas do Mal-estar que reputo. mais interessantes sao
aquelas em que Freud menos faz intervir a teoria pSicanalitica, aquelas
A que se prende, pois, a decepção trazida pelo Mal—estar? Ao fato de em que, em tom tranquilo, o velho sábio se exprime, aquelas, por exemplo,
Freud não descrever o trabalho cultural ali onde efetivamente o desnudou, em que ele estabelece uma espécie de recenseamento e balanço das
a saber, essencialmente, no destino aleatório, polimorfo e jamais realizado diferentes técnicas que utilizamos para evitar o sofrimento. Dliríse-ia que
das pulsões sexuais, ali onde uma oposição ferrenha entre o que seria da Freud experimentou todas essas técnicas, desde o uso dos toxieos ate a
ordem da natureza humana e o que decorreria da cultura perde toda e sublimação pelo trabalho intelectual ou pela contemplaçao estetica, pas-
sando pelo amor, e que se decepcionou com elas.
qualquer pertinência. Não há oposição, mas uma tensão permanente, .
atuante desde as origens. Não podemos, com Freud, pensar um estado, A droga? Ela assegura um gozo imediato, proporciona um sentimen—
nem sequer imagina-lo, seja ele o estado de natureza ou o estado de to eufórico de independência e até de triunfo maniaco em relaçao a um
civilização. Somente o movimento pode ser pensado, sendo o próprio mundo exterior hostil; mas o organismo e a realidade não tardam em fazer
pensar um movimento que ignora o que o impulsiona, bem como a forma
';
ouvir seu duro chamamento à ordem. A ioga? Inteiramente orientada para
acabada em que poderá encontrar repouso. Uma tarefa infindável, o domínio das pulsões, ela pode trazer serenidade, mas ao preço de uma
portan- "inegável diminuição das possibilidades de gozo'_; e aCima de tudo,
to; mas, em seu princípio, Freud postula a pulsão, e não o espírito.
Existe apenas o mito, tal como o narrado em Totem e tabu, observa Freud, “a alegria de satisfazer uma pulsao que permaneceu
para selvagem, não domesticada pelo ego, é incomparavelmente mais intensa
responder à questão do advento do cultural; e, como todo mito, o da horda
que a de saciar uma pulsão domada“.16 E quanto a atiVidade do criador

22 ACHAR-SE ou
manu
PERDER-SE NO NEGATIVO
ATUALIDADE DO

ou do pensador? Ela só está ao alcance de um pequeno número mesmo


e, ' “Terá o mundo jamais sido transformado de outra maneira ªlgunª;
entre os eleitos, não os resguarda nem dos golpes do acaso nem da dor. A
arte? A “ligeira narcose" em que ela nos mergulha é fugidia. E
a ação
pelo pensamento e por seu suporte mágico, a palavra? diªs?; PÍfFreud
formulada por Thomas Mann,18 e nao há nenhuma uv1 a
que visa a transformar o mundo? Ela tem como imagem prototípica o lq
“é
paranóico, que pretende “corrigir por intermédio do sonho os elementos teria respondido pela afirmativa. Mas. ela fºi formtalada en:) palert? ªntgodo
ca
do mundo que lhe são intoleráveis, para inserir suas quimeras do desprezo", que era, antes de mais nada, um esprez
na realida— ia" (gªs pala-
de”.“7 E assim por diante... ººªªªmºmº' “mª “É?“ º'“ “ªº ººíâàºáºãâªâ'êiízí ªfff—Éh”, daquele
Nada de extraordinário nisso tudo, dirão alguns. Talvez. Mas há vras havia mudado e campo, pass
le ue arrasta parª
se notar, primeiramente, que essas linhas, escritas há meio século, con—
que que, poeta ou pensador, esclarece o obscuro, para aquel: Cq
à morte or encantamento ver a : 'omo, então , não
templaram a maior parte dos rumos de salvação em que se precipitaram 3135133 %“;eªgªfmo de segs poderes e até de seu direito a exrstencia? __ _

as gerações seguintes, e que estas acreditaram inventar. Sem dúvida,


Freud exprimiu-se na ocasião como um homem de sua idade Mal-estar, Unbehagen. Seria de se esperar que encontraâãemos 23:32

"
em 1929,

contava 73 anos —, mas, em sua crítica serena de nossas palavra frequentemente na pluma daquele quê: dgdicçiili suaexgcenazjdso
crenças, antecipou
mais do que adiou. Por outro lado, toda a sua avaliação se
assenta numa
idéia, numa convicção intransigente. Se o Mal—estar, muito surpreenden-
dos disturbios do pSiqmsmo. Pois
é claro o ensaio aqui
' ' aborda do
'bemFreusanza,
, em
,
duas ou
.
tres
_ .-
ocaSioes.
.
E
.'
o faz
se
-,ª
propósito de uma forma de neurose que inclm na categoria das. nªl-2230S
_

temente, começa por uma reconsideração, através do exame do “senti—


mento oceânico", da questão da religião, ou melhor, da religiosidade, é atuais“ Essa indicação, para' nós, é preCiosa. Ngurâises atuais, (:1 aç (ªx: S do
que Freud precisou, antes de mais nada, preparar o terreno. A alteração reune '
' aí duas acepçoes. Atuais e las são no senti o e que as con
_
para explicar seu d ese ncadcamento. E 0 sao,
' .
provisória dos limites do ego não autoriza a postular uma união ilimitada presente parecem suficrentes
com 0 Todo, assim como as emoções do estado amoroso não devem levar
' '
pnnctpalmentC, no sentido ' de
que " atua 'l'izam ” , encontrando uma expres-
, . difusa
, sem
_

sao" 'imediata,' '


direta, nos
'
Sintomas s omáticos ou numa an g ustia
a supor, mesmo que nos façam crer nisso, que a fusão com um
outro está ' ª ” do smtoma .
iconeuró-
a nosso alcance. Rejeitar o sentimento oceânico, recusar-se recorrer aos caminhos que conduz em a formaçao ps
para ' explic' á-las , uma " carencta d e. e a.bom ç ps
a encontrar ' ' ' . _

[ ão (.
nele o fundamento da religião, para reduzir esta última a necessidade de tico.“º Freud invoca,
proteção pelo pai, foi para Freud, portanto, o meio de desacreditar pro— qmca ' ' '
' ' ' Nada de]' o go de simbolização, portan to , e prevalencm d o reg ist“)
' e stase e descarga do que
gressivamente todas as tentativas que são numerosas, e que '
“ economico "'. mais' tensao " do
que conflito,
'
. “
mais
. " .
ressurgem crise, mais expressão do que criaçao, mais agir , no corpo e no exte nºr ,

. _
reiteradamente sob nomes que mal chegam a ser novos
que prometem

ao indivíduo ou a coletividade uma mudança de estado, do que deslocamento.


'

ou seja, a obten- . '


ção de um estado sem conflito: boa natureza ou boa sociedade, espelhos Falar em mal—estar da cultura equivale, qualquer;! que sejasgueãgâàcia) -
do infinito. Daí a crítica, in fine, ao comunismo, então ainda
repleto de '
çaº que dele '
fomeç amos - e sabemos que Freu o re uz ,. em.
' ' d I o men os , a indicar o efeito
_
,

esperanças; daí a insistência, em todo o texto, na irredutibilidade da a um sentimento inconsciente e culpa pe


' . de

, .
.
Vida eo l et1va , essa carenCia
divisão e dos conflitos, tanto intrapsíquicos que pºde ter, um' a vez transposta para' a'
quanto sociais, e na necessi-
dade de fundamenta-los, mitologicamente, no dualismo
inultrapassável
'
elaboração psíquica. Só que - e sem duvrda
'
é por isso q ue Freud nao faria
_ .

pouco a tarefa de elabora-


.
seus os termos de Thomas Ma' nn que citei há
_

das pulsões de vida e de morte. —

'
窺eºmovmle
'
nto de '
Simbolizaçao
' '
' '
nao estao_
rese rvados ao “ pensa
' erl da . .
dor" .
ciVilizaçao.
_
_

Acontece que negligenciamos, chegamos até a Essa (&


'
ustamente a tarefa, mfim ta , como d'iria uss . , . . . H
Através] de
esquecer O conteúdo do suas instituições e do que as ªªfPªªv por suas micizliItliit/errãztâgoas
_

Mal-estar. O título em si deixará sua marca. Podemos tomar


demasiado genérica a formulação de Freud, julgar inadmissívelcomo obras, uma coletividade, quer sua extensao se restrinja. a u reflete:
de sr
defesa da mensuração do devir coletivo de uma civilização sua quer se difunda pelo mundo, faz uma representação mesilna, ão não
do desenvolvimento do individuo. Continuaremos,
pela bitola se Só há pensamento coletivo no refletido. Portanto, uma em izaç nciam
no entanto, a en- pode ser objeto de pensamento para seus atores, para os qm:i a Ylíerecusa
contrar na simples palavra “mal—estar" uma indicação pertinente
e a constroem.' ela os pensa. É' desse modo que eu compreen er
a
quanto ao estado de nossa civilização. Permanecemos nele, no tempo '
.
deduzxr da al“tse, a despeito
_ _

de Freud tao firmemente reitera da , a pSican


do mal-estar. Após tantos esforços inúteis
das solicitações nesse sentido, algum tipo. de Welfunscãiljuíungàlbuennãºcomo
x
.
para vivencia—lo e pensa—lo
como uma fase de crise, continuamos nele, até mais do de sistemas .O e t, o , não
que nunca. sua repugnância pelos “construtores
24 ATUALIDADE DO MAI/ESTAR 25
ACHAR—SE ou naum-sa NO NEGATIVO

se deixa pensar como tal, principalmente quando o pensamento, Daí o recurso maciço feito por Freud, no Mal-estar da cultura,. a
que é
trabalho, que é movimento, pretende confundir-se com uma Schauung, pulsão de morte, no combate que ela trava com Eros, como se a oposgio
com uma visão. Mas o mundo se pensa, se representa, se diz, se deixa ver. mais fecunda, mais dialética e menos desrgual entre Logos e A;) e
Donde o respeito que Freud nunca deixou de votar aos grandes êxitos da tivesse que ceder seu lugar. Quão discreto se toma entao olapf ?, .ao:
civilização, desde a ciência até a arte, e aos heróis civilizadores, desde possíveis recursos de Eros, como é tímida a voz do r_nte echo t.
Édipo, o transgressor a despeito de si mesmo, até Moisés, sobretudo necessidade pode ser negociada e vencida. A morte, nas, so tirªno do
no uma outra vr a
momento em que, tomado de paixão enfurecida, ele superou seu desejo quando já não é percebida como passagem para nem“
de quebrar as Tábuas: em ambos os casos, são
pontos extremos em que se acontecimento natural, mas não pára de nos atormentar de dentro. Que
articulam a "selvageria" e a "civilização". Assim, pode-se esclarecer nos oferece nossa civilização como única certeza comum? U?“ certedía
também uma frase bastante enigmática encontrada no Mal-estar:
"A com a qual, impotentes para pensa-la,. também nao podemos azerinnâfe:
civilização e um processo particular que se desenrola acima da humani— Por isso, o vislumbrado, fim da espécie humana nos deixa qtliasse
dade."ºº Um processo sem sujeito, portanto, e sem agente, como qualquer rentes, com a indiferençiação provocando a indiferença. 0 Mad—e .
pode
:;
processo inconsciente. Assim como o inconsciente só é identificável por encerrar—se assim: “os homens de_h01e levaram tao longe o .10m 0 das
]
suas formações forças da natureza que, com a ajuda delas, tornou-se fácr para e es
diversamente de Jung, não existe um “mundo" do
ª

inconsciente em Freud —, ninguém, nem individuo, nem exterminar-se mutuamente, até o último.“
grupo, nem
Será a “neurose coletiva" de que sofreriamos'uma neurose atual,
'

classe, nem nação, pode aspirar a encarnar a civilização. De resto, pode- ,

mos confiar no movimento civilizatório, sempre a ser retomado —


proces- no sentido freudiano, isto é, uma neurose nao criadora e como (hire
so, nao progresso. esvaziada de desejo, impotente para elaborar e. transformar seustcion, :;
Incontestavelmente, com o Mal-estar, essa confiança fica abalada, tos, capaz apenas de gerar suas tensoes, sem Jamais tomar (full of.!!
chega a parecer perdida. E há muitos motivos para o desencanto de consentirmos numa transposição sempre aleatória do indivrdaua pa
de
º
Freud. Uns são explicitamente admitidos e, reconhecidos
por qualquer coletivo, muitos sinais levam a crer nisso. Nesse ponto, ca umopgis-
pessoa, juntam—se no plano das "verdades banais": a vertente destru— convocar os que lhe pareçam mais peremptórios: encontraremos; rn
tiva, em relação à natureza e aos homens, do domínio científico criminadamente denunciados, o afluxo das imagens que imp. lerlrlrdc;
e
técnico, a agressividade e o egoísmo, a liberdade achincalhada, etc. julgamento, a inflação da informação que anula a sr mesma, a vxããnali-
Outros são mais secretos e decorrem, a meu ver, da crescente distância cotidiana (desde a delinqiiência juvenil até o carro que mata), a
dade do Mal, o fechamento em si mesmo ep gnorancra do que rga me me
1
cuja dolorosa experiência Freud vivenciou no campo da própria psica- 1

nálise, tanto no seio da comunidade que se constituiu em torno de seu possa ser esse “si", o declínio da língua, a feiura e a tristeza encãssas
nome quanto na prática terapêutica, a distância entre a ciência do novas cidades, etc. Além disso, ora nos felicitamos por nao maisi a en:
psiquismo e seus efeitos, que assim poderíamos formular, de maneira
certamente abrupta: a psicanálise e verdade, mas, apesar disso, não
a nenhuma grande crença coletiva, emçque vemos o anúãicitz) e
futura tirania, ora gememos por não mais acreditar em'na a. ;]u ªo
_o
funciona como deveria! De Além do princípio do clínico de nossa apatia febril, não há jornal que nao saiba pân rã 0,515
terminável e interminável, Freud só faz acentuar uma
prazer até Análise mensal não saiba analisa-lo. O
é—

constatação que há publicação que aborreci fªtequuo



descrições e comentários nos são de escassa serventia. re
_

o afasta cada vez mais do modelo original da talking cure; a magia das ão
palavras deixa de ser operante. Com a neurose de destino, ou com o visível, ou, nos melhores casos, tornam—no legível. A consc i*ncia
e
que mais tarde se chamariam neuroses de caráter ou estruturas narcí- mal—estar só faz tornar-nos mais rabugentos e culpados.
sicas, faz—se como que um retorno às neuroses atuais. O conflito, em
vez de ser representado e, com isso, abrir-se para a mobilidade da Ainda no início do século, podíamos opor o mundo crvrlrzadt:i ao 13232:
interpretação, repete-se no presente sempre acessível do corpo e da não—civilizado.23 Já a Grande Guerra fez da Razao seu gran edcalIº
de
realidade, que continuam também a oferecer novas circunstâncias Desde então, “progredimos” e logramos mstalar a barbÉne endas
explicativas. O mal-estar existe também para Freud, nos limites na nossos muros, através de uma gestão racronal da morte.. que_:come_ as

"rocha" em que esbarra o poder da análise, no desafio da reação


— nossas paixões coletivas são racionais, todos os_nossos crimesísit;izadºra
terapêutica negativa: que meu sofrimento dure, que se perpetue o tidos em nome de um ideal. Que resta da oposrçao, afinal tranlq as
mal—estar, desde que sejam meus! em que Freud ainda se apoiou, entre as forças pulsronais se vagens e
26 ACHAR-SE ou PERDER-SE no NmATtvo 27
ATUALIDADE no MAL-ESTAR

exigências civilizatórias, quando estas últimas servem de máscara 26


as primeiras? para Uma civilização não é um “complemento da alma:”. lãea 336353211;
Hoje em dia, já não se fala em civilização, jamais no singular, e ovo 0 roduto desse “ aparelho anímico cup Jogo . .
Eonflitospinternos é
o único capaz de assegurar o dlnamtsmo tªpadª).
_

nunca fazendo dela um privilégio do Ocidente. Fala—se em desenvolvi-


mento. Só se «faz referência a um único modelo: o desenvolvimento Formulemo-nos a pergunta inconveniente: é possívãlh uãna &le 11,3%
de massa ” 'inteiramente orientada para a reduçao ao 1 en ICO.
' ' " rá
econômico. A oposição clássica mudou de feições: sociedades industria- ' " . Ima? Essa
lizadas - sociedades em vias de desenvolvimento. Já não há ai uma contradiçao dos termos ? Ou amda: tem a massa uma a
outra univer-
.

salidade senão essa universalidade de fato. Mas ela é seria a pergunta diretamente abordada por Freud na Masserltpsy. Chotlgãêia e.
desprovida de Ela ressurge, latente, em seu Mal-estar, e mduz ao nosso, pc a һgilidade
legitimidade, e aliás não precisa disso. Por isso é que, paralelamente,
e e pela incerteza culpada em que nos encontramos quanto a pos51
com certa hipocrisia, podemos professar um relativismo cultural e cele- ' '
brar a diferença, sem hierarquia, entre os milhares de “culturas” de pto or ou sequer imaginar uma resposta.
distri- quanto mais nosso mundo se deixa .
conhecer em seus determina?e
.

buídas pelo globo. Claro, a predominância do referencial


cada vez mais contestada, mas a crítica cessa quando ecOnômico
econômico é tes , menos se deixa palmar em seu devir e sua finalidade. Constituma es
,

o nos paradoxo a atualidade do mal—estar?


convoca à ordem, faz sentir duramente sua desordem. Quanto ao relati—
vismo cultural, começamos a ver a que ele pode levar:
menos a uma
“experiência do estrangeiro"24 fecunda no que faz vacilar a
certeza, o

excesso de confiança segura no “próprio" e no “doméstico” do


uma aceitação frouxa, passiva, que perdeu até os encantos do

que a
exotismo,
das múltiplas e quase infinitas identidades culturais.
Paradoxalmente, o
"quanto a mim" fica então valorizado. Justamente o Freud dizia da
felicidade que é uma questão individual vê—se

que
transposto a escala
coletiva: a cada cultura seus mitos e seus hábitos, suas para

,
crenças e Seus
valores, a cada qual suas opções e a cada qual suas soluções.
Sem dúvida, esta atitude de respeito
pela diversidade das culturas é
intelectualmente sadia. Mas é muito conveniente admitir
_

ela difi—
cilmente pode ser conciliada com uma criação cultural, que
seja qual for.
Que obra de arte e do espirito ter-se—ia imposto, algum
dia, se seus
autores não tivessem tido a convicção e a vontade de tornar
as outras
caducas ou inúteis?
Foi grande a surpresa, para alguns, de ver um
etnólogo que tanto fez
por nos levar a tomar consciência da complexidade e do refinamento de
culturas obscuras, desprezadas ou dizimadas, e durante muito
tempo tidas
como atrasadas, e que, correlativamente, tanto fez abater o orgulho
das grandes civilizações, escrever nos dias amais: “A por
maioria dos povos
que chamamos primitivos se autodesignam com um nome
que significa
os “verdadeiros', os “bons”, os “excelentes” ou, muito
simplesmente,
'os homens”; e aplicam aos outros qualificativos
que lhes recusam a
condição humana, como “macacos de terra' ou “ovos de
Não vamos concluir daí que esse seja um piolho'."ºª
exemplo a ser seguido!
Devemos reconhecer, no entanto, não na afirmação de
uma suprema—
cia, mas na certeza de que sua particularidade equivale
ao universal, uma
das condições de existência de uma cultura, a
menos que ela prefira seu
mal—estar a suas obras.
O Omo mmm ”
duelo que os
a cavalo, sabre desembainhado, em campo aberto —, esse
fortalecendo cada vez mais seu ' “vínculo intimo“ '. Se o que
opõe e os une,
suscita o amor e dele nos mantem cativos é o outro, e, no outro, o mais
mais
estranho, o mais desconhecido, o que cimenta o ódio, e que o torna
duradouro e mais tenaz do que o amor, é o semelhante.

O ódio ilegítimo Naturalmente, Conrad indica e chega até a sublinhar as diferenças


d'Hubert é
entre os dois homens. Féraud e gascâo, tem cabelos negros;
um homem do Norte, louro; 0 primeiro e um militar vocacional, o segundo
é racional e bem educado; Féraud não tem família, é pobre, d'Hubert
escreve aos pais e à irmã caçula em sua rica e bela casa na Provença.
Féraud, incontestavelmente, o passional, o louco, o paranóico que provo-
encontra—se em
ca o primeiro duelo. 'Mas é d'Hubert que, sem o desejar,
Nao se trata de um dos romances mais conhecidos de Joseph Conrad É sua origem: na ocasião, ordenança de um general —
o que já é, aos olhos
também, aparentemente, por seu tom alerta, pela linearidade do relato um sombrios de Féraud, um sinal de degradação e indignidade —, cabe a ele
dos menos 'conradianos' '. Fala arrebatadamente da ferocidade Mau,
as- anunciar ao colega que está detido e, humilhação suplementar, para tanto
irmãos
sant poderia, se não tê-lo escrito o traço dele é por demais sutil —p ao
— o retira do salão e das graças de uma dama. Questão eterna entre os
beligerantes, entre os amantes que se enfrentam:
menos contar sua história para ilustrar, na sabedoria empanzinada ue s e inimigos, entre as nações
instala depºis do jantar, a loucura dos homens. Luminoso sem descªrios ' 'Quem começou?" É esse o espírito do duelo quando ele se afasta, como
e decidir
sem sombras, ele nos conduz, no entanto, ao âmago das trevas do ódi 0, acontece aqui, de sua forma canônica: reconhecer a ofensa sem
imediato reciprocidade e
“xiii

ali onde ,º]? e persistente e implacável, onde se alimenta de si mesmo e sobre o ofendido, ou melhor, instituir de uma
se O derrotado tem o direito de exigir
torna o unico objeto de uma paixão desmedida. Chama-se O duelo uma equivalência entre os parceiros.
Como manda
reparação. Cada um e alternadamente ofendido pelo outro.
duelo se torna infindável.
(Díª: (322135 de cavalaria do exército napoleônico se batem em duelo. a lógica, e Conrad não se enganou nesse ponto, o
A morte de um dos combatentes
, ezes, nao importa. É sempre o mesmo duelo. Só se da durante Está, em sua essência, fadado repetição.
à
o s curtos momentos de trégua, e somente a guerra interrompe sua re ti seria seu fracasso. Nossos heróis, no entanto, não fingem bater-se. Muito
ãggàªque alguerraãàro regime do Império, não é em si um confronto
firn-e pelo contrário: quanto mais avança a narrativa, maior o encamiçamento
insana. Sonham
e as am não existem mas um e
— ' com que arremetem um contra o outro, com uma violência
_—
nªisIl 323151135“ Iliªrllrhentd: rachar—se de alto a baixo, mas, justamente, sonham com isso. Seu ódio
Napoleao e a Europa inteira (isso já,nos é dito as vivo. Se o amor
tem necessidade de um objeto muito real, de um ser muito
narrativa). Eis a história completa. Nada confere
dors irmaosem armas, igualmente valorosos e de igual se nutre da ausência, ao ódio é necessária a permanência.
pªtentlãoisroficrais, do existir. Nossos
melhor do que ele, em sua desrazâo racional, a certeza
.- omovrdoum, e assrm dotado de uma patente superior à do são frágeis. O ódio nunca o é,
cªro, nao será precxso esperar muito tempo Napoleão e a morte têm
— amores, com seu objeto improvável,
inteiramente seguro que está de seu alvo.
ãe Stigmª-823%“? oêquilíbrio se restabeleça e, com ele, a possibilidade É
e o. que essa e uma regra e é respeitada: um oficial não Entretanto, não forcemos demais a simetria entre os dois homens.
pºde. se b a [er, sem correr o risco da corte marcial, com um oficial situado bem verdade que percebemos mais ódio, mais paixão, no olhar, nas
da história, empe-
a b auto dele na hierarquia militar. Irmãos em armas,
portanto de uma palavras e na alma de Féraud. D'Hubert é o mocinho
ªpªga: gªna, edas vezes, mãos noforma sofrimento: vemo-los, na retirada da nha-se nesse confronto implacável contra sua própria vontade, convém
, pºis e_ perderem toda a humana, prestar-se assistência dizer. Mas esse é também um dos traços do ódio: é raro, é até impossível
múm a (sao _
as mais belas paginas do relato). Semelhantes na vitória e na de si próprio. O "eu odeio",
que alguém o reconheça como emanando
derrota, na glória e no infortúnio, o tenente Féraud e o tenente d'Hubert quando ousa enunciar-se, afirmar—se sem disfarces, sempre se coloca
,
ele e só ele
como uma reação: o objeto é que é intrinsecamente odíável,
.

olhgapltªo, «; comandante, o general Féraud e o general d'Hubert. Seme-


e uelo, salvo por algumas variações que levam cada vez mais é que desperta meu ódio, ao passo que não é pelo fato de o objeto ser
ge o f:ror do combate com a espada num jardim fechado ao confronto
Iºnn é

amável que me volto para ele. Se o ódio pode ser cego, por cegar-se para
28
30 ACHAR-SE OU PERDER-SE NO NEGATIVO O Omo ILEGmMO ”
seu movimento primordial, por ser projetivo em seu princípio, «ln paixão e do direito.) Um desenlace amarga para Féraud, com toda
por exigir
que eu não tenha nada em comum com aquele a quem crueza. Afirmei que no último duelo, no pequemno bosque, d Hubert, pâir
execro, e no
entanto, eu o execro porque ele é quase igual a mim. Quase, mas não Inteligência, por astúcia, mas uma astúcm que nao contraria as regras
completamente. jugo, saiu-se vencedor o que não quer dizer nada, pºis, nesse caso,
— :
Querem saber como o “mocinho" d'Hubert ulltcstâo poderia e deveria ser retomada —, mas vencedor de uma vez r
seu perseguidor, do intratável Féraud? Através de uma consegue se livrar de pod
astúcia diabólica. todos. E esse é um dos outros achados da trama imaginada por Conra
O duelo, dessa feita, tem lugar num
bosque. Os adversários (como é (que não figurava na reportagem 'do Jornal em que _ele enconlp-hou a
imprópria a palavra!) combinaram ir ao encontro um do outro história). D'Hubert, que, ao contrário de Féraud, nao disparou ne uma
sem se
verem. Cada um tem duas balas em sua pistola. Féraud é melhor ile suas duas balas e que mantém o adversário a seu alcance, torna-se o
e d'Hubert sabe disso; é, mas d'Hubeit se desloca
atirador,
com mais habilidade, senhor absoluto: preserva o direito, para sempre e quando bem'lhe aprouá
pode surgir de qualquer lugar, e Féraud o sabe. Féraud ver, de ser o único a usar a arma. Não se vale desse direito e restitui Férai;
dispara um
primeiro tiro, que não atinge d'Hubert. Este se esconde atrás de tl seu exílio nos confins da província. Assm, Féraud é,vencido pe o
pedra, chega até a se estirar no chão, de costas, coisa em uma
que o orgulhoso próprio código a que siibmeteu d'Hubert durante. anos, e d Hubert, aoése
Féraud jamais consentiria. Nessa posição, livrar do duelo, fica livre dele. Féraud, simbolicamente morto, por m
que o torna invisível, ele pode,
com a ajuda de um espelhinho, controlar as idas e vindas de Féraud à mantido vivo, é colocado fora de condição de incomodar, como acontece
sua
procura. D'Hubert, que durante quase quinze anos esteve preso, como com Napoleão em Santa Helena. Não é certo que o ódio queira matar,
num espelho, pelo ódio que lhe votava Féraud, que se viu forçado revidar que
a pois, nesse caso, correria o risco de se extinguir. O que ele quer, antes e
seus ataques, privado de si mesmo e quase que de sua vida, inais nada, é imobilizar e, melhor ainda, forçar o outro a querer essa
captura, por sua vez, em virtude do pequenino espelho. Depois do agora o
que o imobilidade, a de uma presa cativa, que sanciona sua derrocada e assma ,
terá a sua mercê, porém a sua maneira,
que não e a de Féraud. Veremos sua
ªai: ao.
1
de que modo. _ .
dizem de Féraud'os realistas e os restauradores? Que nao havra
nada a extrair disso, que ele "amava demais o Outro_ (0 Outro era o
Embora nada nos seja ocultado, esse relato é um enigma. Será homem de Santa Helena). Também dão razão à acusaçao antes feita por
arte do narrador que lhe confere sua potência? Será O duelo apenas a
apenas uma Féraud contra seu companheiro de armas: "Ele nunca amou Napoleao.
notícia do cotidiano, estranha e singular como todas De ambos os lados, isso é dito de passagem, deixado escapar como
as notícias? Terá a qm
era napoleônica fornecido a Conrad apenas um cenário? Não creio. segredo, com a ênfase da evidência: a convtcçao de ter revelado a ía ta
“Esse homem nunca amou o Imperador", eis o ou o excesso de amor. No ponto extremo do duelo, a confissao. con esse
que Féraud dirá de
d'Hubert. É uma acusação terrível a respeito de um homem
que esteve em que você não o amava, confesse que você o amava demais. Realmente.
todas as batalhas. E no entanto, dessa vez, Féraud
acerta o alvo: esse
homem serviu valentemente ao Imperador, mas
nunca o amou de verdade! Será, então, uma história de amor, essa história de ódio? É claro. D'Hubert
Como nos apressamos em dar razão às suspeitas mais infundadas! o admitiria, ele que reconhecia "sentir em si uma ternura tnsensata por
Quão ativamente nos empenhamos em confirmar a seu eterno adversário", ele que, em 1814, interveio _!unto aoºdMinistão
convicção do outro!
D'Hubert passa sem prejuízo do Império à Restauração, (Fouché, o que soube servir a todos os regimes, caricatura o
chega até a ser losaºó
chamado para um novo comando; casa-se com honrado d'Hubert) para evitar que Féraud fosse fuZilado, ele que, m g-
uma jovem de família
monarquista, tem um filho e gere seus bens. É passado o
tempo do uito, mandou dinheiro para seu ' “irmão” ' banido. Mas nao é o amor secrêto
usurpador, voltou o da legitimidade. Aparentemente, tudo volta a ficar dos dois soldados um pelo outro que constitui o motor de seu ódio. _o
ordem. O duelo esta terminado. em
Outro (com O maiúsculo...), mais do que o outro. E se o absurdolencarm-
Fala-se no desenlace feliz do relato. Feliz, só se considerarmos çamento manifestado pelos dois homens seu duelo intermmáve ttornou-

assinala o triunfo do "mocinho" sobre o que


"vilão", da sabedoria sobre ª se lendário no exército, ninguém mais ousa perguntar.-lhes qual ot. smi
loucura ou do Rei restaurado sobre o Imperador decaído.
Mas é um primeira ocasião, como se eles tivessem 'que se sacrificar a um uma
desenlace irônico e amargo. Para Conrad, talvez, sem dúvida sagrado, como se celebrassem a sua maneira a verdade da guerra
confiado e intransigente, como Féraud, do
mais des-
esse encarniçamento, no cômputo final, se prendesse apenas a istª). (;
tel:?
que habilidoso e flexível como
d'Hubert. (Mas o duelo também estava em Conrad, a
um tempo homem raud, que eu facilmente imaginaria bastardo, embora isso nao seja ito,
32 Acmvsa ou PERDER—SE No NEGATIVO
o Ouro ummmo 33

um fora-da-lei, e seu ódio, como todo ódio, sem dúvida, é essencialmente


coisa que ele sabe de si. Por isso é que aspira infatigavelmente a se fundar
ilegítimo; d'Hubert, nessa época conturbada em que a França troca inces-
santemente de dono, só sabe pactuar com a lei e não é muito atento àquilo como direito. Nossos tribunais são pagos para ISSO, e a historia política,
que, mesmo nos raros períodos em que se reveste de aparencras c1v1liza-
que a representa. Com a Restauração, como vimos, ele faz um belo das, continua a ser uma questão de ódio, é quem nos faz pagar.
casamento. Os campos de batalha devastados cedem lugar a jardins de
flores e frutos, as marchas forçadas, ao passeio aprazível. Mesmo coxean-
do em decorrência de seus ferimentos, ele saboreia uma laranja. Quão
insípidos lhe devem parecer os prazeres da vida diante da melancolia, da The duel, a military tale foi publicado em 1908, numa coletânea
assustadora solidão vivida por sua sombra ridicularizada, seu duplo con— intitulada A set of six. Conrad começou a redigi-lo durante uma estada
denado que nada mais tem a saborear, por sua vez, a não ser seu ódio, um em Montpellier, depois, segundo afirmam, de algumas conversas com um
ódio que desde então já não tem outro objeto presente senão ele mesmo! oficial de artilharia conhecido num c'afe'. Também tirou “partido das
lembranças de membros de sua família que haviam combatido nos regi-
Será possível que o ódio, o ódio tenaz, esse que não cede diante de coisa mentos poloneses do,,s exércitos napoleônicas. A seu editor, conjidencrou:
"Minha primeira intenção era intitular esse conto de Os senhores da
alguma e que nada aplaca, tenha mais de uma imagem? Que o ódio que
tomamos por paixão fratricida seja uma paixão recente, nascida da Revo- Europa, mas afastei esse título como demasiadamente pretenszoso. Tentei
lução e de seu fracasso em fazer do povo, segundo seu ideal proclamado, conscienciosamente colocar nele tanto do clima napoleônico quanto o
um soberano? Nascido da Revolução, isto é, de um regicidio. O Rei está tema era capaz de comportar. "
morto, viva o Povo! Poderia a transferência de legitimidade efetuar-se
sem perda? Um monarca por direito divino não tem que formular a questão
de sua legitimidade, não é ele que a fundamenta. Acaso Deus algum dia
se perguntou se sua existência era legitima?
Isso'não é tudo. Assim como todos os homens são iguais perante
Deus, todos os súditos são iguais perante o monarca. A desigualdade
social, flagrante no Antigo Regime, não afeta a igualdade, digamos,
“ontológica” dos súditos; esta acarreta a igualdade no amor que eles
*

supostamente nutrem pelo Rei. Com o “usurpador' ', tudo se modifica: os


iguais são necessariamente rivais; cada um, na verdade, tem que rivalizar
para dar provas de seu amor. A legitimidade desse soberano não tem outra
garantia senão o amor dos que se dedicam de corpo e alma a sua causa. E
cada um acredita, deseja amar mais do que seu semelhante.
Não creio, ao aludir dessa maneira a esse imenso problema, estar-me
afastando por completo da narrativa que nos ocupa, nem da psicanálise (basta
reler Totem e tabu...), e nem tampouco de Conrad (“Conrad e a questão do
pai” ', eis um livro pelo qual podemos aspirar). Acontece que aquilo com
que
O duelo nos confronta é um ódio que ignora seus motivos e que os ignorará
cada vez mais, chegando os dois cúmplices até a fazer
crer, para enganar e
fornecer um motivo aceitável, que se trata, entre eles, de uma “questão de
mulher". Mas ele nos confronta também com um ódio que, na impossibili—
dade de encontrar uma lei, dá a si mesmo regras estritas
que é impossível
transgredir. Quando se perde a Lei, não há como perder honra. _a

O ódio é obscuro, ignora o que o impulsiona e precisa ignora—lo


para se
perpetuar. O ódio é ilegítimo e sabe disso. Aliás, essa é justamente a única
UMA CARA QUE NÃO AGRADA 35

ptxler justificar o desdém. Como se sempre tivéssemos uma necessidade


de desprezar, como se essa fosse uma necessidade profunda. Chegando a
case ponto, sou levado a dizer a mim mesmo: “ “Eu, é claro, não sou racista,
mas será que também não tenho necessidade de desprezar?” Quando me
lntcrrogo sobre a maneira como me fiz, percebo que o que mais me ' "fez“ '
Uma cara que não agrada foi o que me fez mal, e que, entre as coisas que me fizeram mal, há muitas
que destilaram em mim uma necessidade de desprezar.

J.=B,P.: Você diz ter tido uma confiança excessiva na eficácia de seu
Entrevista com Albert Jacquard trabalho de cientista. Não creio que você fosse tão ingênuo, na época,
quanto o afirma. Uma paixão nunca cede a uma argumentação, por mais
irrefutável que possa ser, nunca cede sequer diante dos fatos, por mais
comprobatórios que sejam, os saberes nunca têm razão frente a uma
convicção. Também não creio que você deva se mostrar, hoje em dia,
desiludido a esse ponto. Parece-me importante, de fato, que o racismo já
A'i': Para mim ficou evidente, no momento em que preparávamos o não possa, como fez por muito tempo, valer—se da ciência que lhe garantia
primeiro número de Genre humain, que era preciso dedica-lo ao tema A legitimidade. O racismo persiste como fato, mas, como doutrina, está
cténcza diante do racismo. Admitíamos,
a priori, que o racismo 6 uma morto, e morreu, em parte, sob os golpes que os cientistas, em particular
tara. Na época, parecia—me claro que, os geneticistas mas não nos esqueçamos dos etnólogos —, desferiram
para lutar contra o racismo, como

contra qualquer coisa, contra o diabo em geral, a melhor arma contra ele. Um discurso sobre a desigualdade das raças, como o de
ctencta. Porquê? Porque a ciência é esse esforço maravilhoso doera a Gobineau, já não e sustentável, pelo menos em voz alta. Isso é uma
humano para entrar em acordo com o universo, ser conquista. Portanto, não perca o ânimo... O que me perturba mais, e nisso
para enxergar com clareza me alia a você, é que conhecemos relativamente bem os mecanismos do
nele, para ser coerente, rigoroso, lúcido, etc. E depois,
traziamos, com a constatação da impossibilidade de uma graças à biologia, racismo e, não obstante, continuamos sem influência sobre ele, sobre sua
definição das eclosão, sobre seu desenvolvimento. Conhecemos seus mecanismos
raças humanas, um argumento decisivo. Era pretensioso, sem dúvida. Na
verdade, graças à biologia, eu, o geneticista, acreditava sociais as condições econômicas e políticas que facilitam sua emer—

permitir que as gência —, e cremos desvendar seus motores psicológicos. Por mais que
pessoas enxergassem com mais clareza ao lhes dizer: “Vocês falam
em saibamos que não basta definirmos os determinantes de um fenômeno
raça, mas o que vem a ser isso?' ' E lhes mostrava que não se pode defmi—la
sem arbítrio nem sem ambiguidade. Esse procedimento se para nos assenhorearmos dele, sobretudo quando se trata de fenômenos
aparenta com humanos, nem por isso ficamos menos atarantados, todas as vezes,
os teoremas mais fundamentais, aqueles que demonstram que uma
tao esta mal colocada, que é impossível decidir sobre ques- diante da recorrência do racismo. Porque a rejeição científica, porque
Em outras palavras, o conceito de uma dada afirmação.
a condenação moral, porque as inúmeras análises que se forneceram
"raça" não tem fundamento e por
consegumte, o racismo deve desaparecer. Alguns anos atrás, eu admitiria dele não têm maior, efeito?
que, tendo enunciado isso, eu fizera bem feito o meu trabalho de cientista Segundo ponto: você enfatizou o desprezo, a necessidade de des-
e de cidadão. E, no entanto, se não existem prezar, para a qual o racismo, entre outras coisas, forneceria uma saida na
certeza existe! Ainda que só houvesse na França
“raças”, o racismo com
medida certa. Sem dúvida, no racismo entra um desprezo mais ou menos
todas, a mesma forma de nariz, o mesmo formato dos pessoas que tivessem
olhos, a mesma cor confesso por outro grupo humano. Mas eu não veria nisso uma reação
de pele, continuaria a haver atitudes racistas do primária, antes a colocaria no fim da cadeia. O que me parece primordial
tipo: "Essa gente não é
como nós, eles não são como eu'." Não mais se trataria do é o pavor diante do estrangeiro, a xenofobia no sentido literal. Mas cabe
da pele, da forma do crânio critério da cor
ou do nariz. Escolheríamos um critério de imediato uma ressalva: esse pavor é um fascínio, e portanto, também
qualquer e constituir-íamos um grupo coerente, marcado uma atração. E, logo em seguida, convém corrigir: esse estrangeiro não é
ristica que o particularizasse. Se não existem por uma caracte-
um estranho qualquer, só provoca um sentimento de estranheza por ser
raças, inventa—se uma para
também meu semelhante. Os psicólogos já descreveram o que chamaram
34
36 ACHAR-SE OU PERDER-SE NO NMATIVO 37
UMA CARA QUE NÃO Aum/t

de angústia do oitavo mês, a que se apodera do bebê quando um rosto exemplo simples: quando e que vemos surgir os fenômenos racistas?
que
não é o da mãe ou o de uma pessoa de seu meio se aproxima do dele. Quase sempre, quando um grupo é ameaçado, ou se sente ameaçado, por
Podemos levantar a hipótese de que esse rosto é percebido, não em sua um grupo vizinho que possa tomar seu lugar ou faze-l_o perder o que ele
singularidade, mas simplesmente como não sendo o da mãe. Ora, essa encara como seus privilégios. Geralmente, numa srtuaçao de crise, em que
angústia, que pode chegar ao pânico, não é manifestada pelo bebê diante a identidade do grupo fica menos garantida, e é então que ele denunc1a
de um "objeto" bem mais diferente do rosto materno do que outro rosto como responsável por essa crise o grupo vizinho. Atualmente, na França,
humano, diante de um animal, por exemplo. Logo, quando é que intervém devido ao desemprego real ou virtual, o fenômeno raCista está novamente
a angústia diante do estranho? Quando o outro é simultaneamente pareci- ativo, tanto que alguns políticos concordam em explora-lo, começando,
do e diferente. Por isso é que considero falsa, ou pelo menos incompleta, naturalmente, por proclamar: “Não sou racista, mas... Voces acham
a idéia aceita de que o racismo seria testemunho de uma rejeição radical normal que vocês, franceses, fiquem privados de emprego, enquanto os
do outro, de uma intolerância essencial às diferenças, etc. Ao contrario do . imigrantes o têm?“ Subentenda-se: são eles que os privam disso, que o
que se acredita, a imagem do semelhante, do dupla, é infinitamente mais tiram de vocês. O raçismo popular é o mais dificil de extirpar.r.É também
perturbadora que a do outro. Veja os filmes de terror: eles só são eficazes o que nos deixa mais desarmados, a nós, intelectuais, cuja identidade
quando nos colocam na presença de monstros humanos, de seres que nunca é unicamente social, ao passo que um trabalhador sem emprego,
poderiam ser nós mesmos, e que só nos parecem disformes por terem um pequeno comerciante forçado a fechar seu negócio, têm a sensaçao de
quase a nossa forma. Todos vivemos essa experiência, a minima, quando não ser mais nada. '

sem querer percebemos, ao andar por uma rua, nosso reflexo na vitrine de '

uma loja: “Esse sou eu?" Um eu que é outro. Não posso negar que seja A.J.:Nessa defesa contra os que nos parecem ameaçadores, que querem
eu e, no entanto, não me reconheço naquela imagem. tomar “nosso território", acontece nos enganarmos completamente de
inimigos. Em 1940, o que nos ameaçava eram realmente os alemães. Eles
Saber que ele é outro e não ter certeza de poder distingui-lo de mim,
A.J.: estavam em nossa casa, com suas tropas e seus tanques. Mas nao se dura
é isso? Essa"imprecisão" é que, para você, estaria no ponto de partida. “que raça ruim". Havia, ao contrário, uma espécie de fascínio por
Mas estamos longe do racismo que leva aos ódios, às destruições. soldados tão bem vestidos, que marchavam com passo tão bem marcado,
e as pessoas se "voltaram contra os judeus e os franco-maçons. Ora, nao
J.-B.P.: Na minha opinião, esse é o eram eles que nos ameaçavam.
começo do processo. É a experiência
que eu situaria no ponto de partida. Na outra extremidade, temos não . _
Mais uma vez, ficamos diante da dupla constatação de uma opOSiçao
apenas a humilhação, o desprezo e o ódio, mas a destruição real. entre as causas objetivas de um comportamento e o conteúdo desse
comportamento. Volto a meu ponto de partida: para a genetica contem-
A.J.: Mas o que você está descrevendo é
puramente individual. É um porânea, a noção de “raça humana“ não existe mais. O racismo, por sua
indivíduo que faz esse efeito em mim, ao passo que no racismo há uma vez, devasta. Como compreender isso?
coletivização desse medo. É preciso que todo o conjunto dos x crie em
mim esse medo. J.-B.P.: Ha' uma noção que ainda não evocamos. Por mais que não seja nova
e se tenha vulgarizado, ela me parece continuar a fornecer uma chave para
J.-B.P.: Tomei esse exemplo no indivíduo, mas sem inferir daí
uma gene- a compreensão do fenômeno racista, tanto no individuo quanto na coleti-
ralização que se propague de indivíduo para indivíduo até se tornar um vidade: é a noção de projeção. A palavra tem dots sentidos, que, aliás,
fenômeno coletivo. Creio, porém, que encontrariamos no plano coletivo podem se unir. No estado amoroso, por exemplo, prºjeto no .mundo
o equivalente do fenômeno do espelho que me restitui uma imagem ambiente meu sentimento de elaçâo, deslumbro-me com uma nmliaria.
simultaneamente semelhante e dessemelhante. Inveisamente, se estou deprimido, tudo me parece, na melhor das hipóte—
ses, indiferente, e na pior, uma ofensa a minha dor. Pode-se dizer, em
A.J.: Então, é preciso começar por definir “meu grupo”, "minha raça". ambos os casos, que projeto, que ponho do lado de fora minha alegria ou
meu sofrimento, sem efetuar uma distinção estável entre mim e os maos.
J.-B.P.: O grupo talvez se defina a gente se coloca por oposição no
— — Além disso, há um sentido mais radical da projeção: colocar do lado
momento em que encontra um semelhante-dessemelhante. Tomemos um de fora aquilo que não quero nem posso admitir em mim, aquilo que
38 Actua-sr. ou PERDER-SE NO NEGATIVO
UMA CARA QUE NÃO xama ”
percebo como ruim, culpado, perigoso. Deposito isso no outro É justa—
racismo?“ Nesse aspecto, talvez entre no discurso científico ou ético uma
mente isso que se observa nas reações racistas: "Eles cercam nossa
Cidades, tomam nossos bens, violentam nossas certa negação.
mulheres etc " A uilcs> Mas, voltemos por um instante a noção de território que você evocou
que eu. supunha confusamente "ruim" em mim, um possível excesgo de
rapidamente. Que é preciso maneja—la com precaução, que é preciso, em
sexualidade e agressividade, passo a atribui—lo ao outro que se toma
mau objeto", o agente do Mal. Percebe-se o "lucro” dessa particular, suspeitar das extrapolações da etologia animal para a sociolo—
ãoº
opera gia humana, isso e certo: o elefante que defende seu território não autoriza
:Tudo o que um individuo rejeita ou desconhece em si a contradi; ão

o trator de terraplenagem! Mas fico impressionado com uma coisa: o
interna, a Violência, 0 pulsional é expulso para fora dele
expulso gra mesmo homem que tem prazer em viajar, que eventualmente enaltece, por

dentro do outro. E por último vem a expulsão do outro, qde vai desge o exemplo, as qualidades dos magrebinosf depois de uma estada em seus
repatn'amento para o país de ori g em até a elim'ma
. .
' '
çao fistca, passando pelo países, pode perfeitamente fazer colocações racistas, uma vez de volta a
apnsmn emo.
sua terra. Lembro-me de um dia ter dito & Sartre, com uma ingenuidade
pela qual ainda hoje tenho dificuldade de me perdoar (foi no anoem que
trata-sc de desprezo do que de um medo de si. ele escreveu La putain respectueuse, que denuncia, como você sabe, o
É;; 3153011
e esprezo,nãenos
Mas, se
. . Sou .
e onde '
vem, no racista , essa necessrdad e de dizer.'
'
racismo contra os negros nos Estados Unidos): “- Mas, na França, esse
superior a..."? racismo não existe. Claro! respondeu-me Sartre não há razão para que
— —

ele exista." A verdade é'que em Paris, naquela epóca, só encontrávamos


só se pode desprezar, ou melhor, uns poucos estudantes africanos. Ainda não tinhamos feito deles nossos
;.-B.P.: hílas querer desprezar aquilo que
sa
dels1. Fan própfia Violência desse desprezo, ou dessa supe—
rªfªgg e proc garis e nossos operários especializados. Em outras palavras, o fenômeno
ama a, reve a que se atribui ao o utro um poder extraordi—' racista só surge quando o "estrangeiro" está na cidade, na praça. Além
nário, disso, geralmente são os últimos a chegar que se convertem no alvo
Mas há uma coisa que me incomoda em nossa discussão: predileto. Podemos supor que o racismo antiárabe um dia se extinguirá,
ao procu—
como estamos fazendo, as motivações psicológicas do comportamen— em beneficio, se assim podemos dizer, de uma outra população. Portanto,
ªr, nao estaremos a tenho a sensação de que o racismo encontra uma das suas fontes e um
lâãsta, compreendê—lo, quase a justifica-lo? Humanizamos
a ta imunda , aquela que sai do “ventre”. motivo de sua retomada numa oposição cujo alcance todos nós subesti-
mamos: a oposição entre o próprio e o estrangeiro, uma oposição que, no
A.J.: Tentar explicar o racismo não é justifica-lo. racista, reproduz-se na existente entre o limpo e o sujo, o puro e o impuro.
Referi-me à xenofobia como significando, ao mesmo tempo, repulsa e atração
diante do estrangeiro. Sim, os dois movimentos contrários coexistem.
I.:B.P.: Certo. Partimos, portanto, de sua constatação: os
argumentos
elentíflcos e o protesto moral não têm efeito sobre o racismo. Demonstrar
M.: Você acaba de admitir que “todo o mundo é racista“. O problema é
que lsso nao tem sustentação, denunciar sua ignomlnia, não impedem ue saber se lutamos contra isso, se o dominamos.
rssoextsta, que ressurja. E às vezes, o racismo chega até a invocar segã
Justificativas científicas, ao menos “valores [de
civilização" íªor u: J.-B.P.:Você vê que eu não estava errado em temer que minha busca de
sucede essa paixão vil dar-se ares de causa nobre, sucede defesa odicclisa
a uma explicação se voltasse contra mim! Eu nunca disse: "Somos todos
ããgãdzdos mteresses de um grupo social dar—se o nome de "defesa do racistas, e portanto, todos culpados", o que efetivamente equivaleria a
inocentar o racismo. Apenas indiquei que a relação com o outro, com o
Assim, fomos levados a compreender essa situação de fato No estranho, é problemática para todos.
fundo, nao queríamos descarregar na pessoa do racista o fenômeno racista
como se nos repugnasse aplicar-lhe o tratamento
que ele inflige aos Você considera, pelo menos, que todo o mundo é xenófobo.
outros, como se fosse demasiadamente simples fazer dele A.Lz
por nossa vez
nosso mau objeto, nosso bode expiatório! Daí nos voltarmos
para nós
mesmos, dai a pergunta: "Onde pode realmente inscrever—se em cada um
de nós, a ongem de um processo cujo produto final “ Nome dado pelos árabes aos nativos do extremo norte da África, marroquinos, argelinos
corre o risco de ser o
e tunisianos. (NT.)
40 ACHAR-SE OU PERDER—SE NO NEGATIVO
UMA em QUE NÃO xama 41

J.-B.P.: Não digo que todos estejamos


fadados, por natureza, a xenofobia: dude cultural, o que leva necessariamente a exacerbanas diferenças. Por
digo que todos nos defrontamos com isso, em nós, sob mil
formas. A outro lado, é—nos pedido, em nome de toda a tradição humanista, que
própria palavra é carregada de ambiguidade, de ambivalência:
na Grécia antiga, o hóspede que se acolhe e se honra, o xénos é, consideremos nulas essas diferenças. Recentemente, Claude.Lév1-S trauscsl
e também aquele escandalizou as pessoas por ter
que não é do país, sem que a palavra estrangeiro possa ser reduzida
a sua ' ' ' t” cia râlembrado, em seu prefacio ao Regar
acepção étnica; e phobos é a fuga, o pavor, com o dessa contra 1 ao.
que isso implica, repito, italgníoâi23ãse3m cotidiaçno.
da atração, ou mesmo de fascínio. exemplo Uma criança, ao voltar da escola,
diz que seu vizinho tem a pele negra. Convrrá faze-la calar-se
imediataF:
A.J.: Adiferença que você estabelece entre racismo e xenofobia é mente, para cortar na raiz um possívei racismo, ou dar-lhe uma 'lçªllo"
segunda fórmula, existe atração e repulsa, ao que, na que importância tem isso? É um menino como voce. Isso equrva 5211103
passo que no racismo existe, negar uma percepção, rejeitã-la. Seria um pouco como se um garoTºd S,
ainda por cima, o desprezo, não é?
ao descobrir que a menina não é como ele, ouVisse copio resposta. ?
J.-B.P.: Não “ainda pºr cima”. O pertencemos... ao gênçro humano." Essa comparaçao que me ocorre nao
desprezo e um ingrediente constitutivo fortuita: é possível que a superacentuaçao da diferença entre as
do ódio desde o começo. Sem dúvida ele
(&

se torna mais flagrante ao raçsas ,


as etnias ou os grupos venha compensar uma. “deficiencia da pr
_

término do processo, na explosão racista. Acontece prâa


o desprezo ajuda
a justificar o ódio, a racionalizá-lo: tenho razão de que identidade sexual do sujeito. Veja com que frequencia a, raça despreza 'a
expulsar esse objeto, é qualificada de "feminina“, mesmo que lhe seja atribuida uma potenCia
já que ele não vale nada, é menos que nada, um
resto, uma imundicie, um sexual fora do comum.
"sub-homem“. O protótipo desse objeto seria o
de precisar o seguinte: para expulsar objeto fecal. Mas deixei Quando falo em negação, tenho em mente certas formas de discurso
_

para fora de si, é preciso primeiro anti-racista, seguramente bem-intencionadas, mas que, inteiramente em—
ter ingerido. Só se vomita o que se engoliu. Não há
dentro do próprio corpo. Encontramos corpo estranho senão penhadas em seu combate, desacreditam como imediatamente racista o
no individual a mesma convicção
que havíamos constatado no coletivo: “O inimigo está na que tivemos ocasião de chamar, num outro contexto, expenencra do estran-
Dito isso, é verdade que vejo uma praça.” geiro". Essa experiência não deve ser afastada, cada um deve faze-la
racismo, e uma diferença que não é uma
diferença entre a xenofobia e o
conta, longe de qualquer dom, a fim de elabora—la, de transformar
pgsuaos,
simples gradação. Primeiro, a
do das seuâªd
mentali
xenofobia é um sentimento, um movimento interno tal como o fazem, por exigência ofício, o historiador es, o
que pode ou não tradu-
zir—se num
comportamento, enquanto o racismo e uma paixão etnólogo das sociedades "primitivas” ' ou o pSicanalista. É pelo fato de uma
possibilidade de se fundamentar numa doutrina. que teve a psicanálise ser o encontro de dois desconhecidos que ela proporciona uma
Depois, já não há no racista
essa oscilação ansiosa entre a atração e o medo, já não há oportunidade de se descobrir o desconhecido dentro de Si, sem que se reaja
confusa e perturbadora pelo estranho essa fascinação
e pelo estrangeiro; resta apenas o a ele pela rejeição ou pelo terror.
inimigo, a convicção, totalmente feita de ódio
e deprezo, de fato, de que o
mal está ali. Daí haver, nesse sujeito, uma A.J.: Então, mais uma vez, o geneticista que sou tem de reconhecer
espécie de amor por seu ódio. O 1gaste
racista separa - “cliva” — a atração e a rejeição fato duplo: mostrar em que sentido a noçao de raça já nao tem
que coexistem, bem ou mal,
na xenofobia: a atração, ele vai encontrá-la do lado curlsg oje
de seus irmãos no ódio, em dia é útil, sem dúvida, mas não elimma o mesmo Por outro a to, os
e a ação de rejeição e totalmente orientada "bons sentimentos" bastam tão pouco quanto os argumentos cienti icos
para o grupo maldito. Parece-me
que a xenofobia pode persistir como uma questão individual, para lutar conna o que teve ocasião de ser, ou,. quem sabe, pode vºltªíl a
racismo (5 coisa de grupo, conclama necessariamente ao passo que o
uma violência maciça. tornar-se, um dia, um flagelo social. Para o pSicanalista, o fenomtgno o
racismo teria sua origem no indivíduo, no ódio a Sl mesmo. este
A.J.: Você também havia falado numa negação... determinaria, no tim, a expulsão social do outro. Será essa uma
de afirmar que, ao dizermos que “Essa cara nao me agrada , nao mar?? a
J.-B.P.: É, uma negação cara do outro que se trata, mas da própria...?
que limita, quem sabe, a eficácia da luta contra o
racismo. Eu me explico: atualmente, vemo—nos
confrontados com duas l.-B.P.: Eis—nos outra vez diante do espelho... “Minha cara me agrada
exigências contraditórias. Por um lado, cada vez mais numerosos

grupos
isso vai desde um continente até uma cidade quando o espelho me restitui uma imagem em que posso me reconhecer.
reivindicam sua identi-

Logo , se uma cara não me agrada, é porque fica do lado de fora, e talvez
.
42 ACHAR-SE OU PERDER-SE NO NEGATIVO 4.5
UMA CARA QUE NÃO AGRADA

seja minha cara, uma cara de que não consigo me reapropríar e Quer dizer que haveria no grupo, na coletividade, um mecanismo
que, não
obstante, tem todo o jeito de ser a minha. A cara: isso é precisamente
A.J.:
o chamado racismo, cujo equivalente poderia ser srmetrrcamentedescobcra
que mais me define (não se diz: esse corpo ou esses braços não me to no interior de si mesmo. Em outras palavras, haveria em mim contra—
agradam). Daí o esforço de que falei para colocar essa cara cada dições que seriam equivalentes às que provocam o racismo. Fºi isso: scam
vez mais
longe de mim, para mantê-la a distância, para exclui-la, dúvida, que chamei de desprezo. No fundo de mim, sou uma Visao o
já que ela não
pode se reproduzir em mim. A experiência do estrangeiro é mundo. Ora, essa visão não é inteiramente coerente. Esforço—me desespe-
um vaivém:
faço meu um país estrangeiro, vou fazendo com radamente por tomá-la coerente, mas afinal, isso nunca é totalmeiite
que aos poucos se me
torne familiar, e depois disso descubro o desconhecido conseguido. Assim, se me defmo como uma Visao de mundo multip a,
familiar. Quando esse vaivém não se afetua, existe risco de meu país
em
o que a cara haveria no interior dessa visão de mundo lugar para mecamsmos homó-
se torne cada vez mais estrangeira, até que sejam aniquiladas as logos ao racismo?
pessoas
que têm essa cara.

A.J.: Será J.-B.l>.: Sim. ªrt.

que, nos trabalhos clínicos feitos pelos psicólogos sobre o


racismo, foi possível constatar um encaminhamento paralelo entre ódio
o J.: Que seria, em mim, esse equivalente do racismo existente na coleti-
a si mesmo e o racismo? A
vidade? Zonas de mim mesmo de que não gosto? '

J.-B.P.: É a paranóia. Certamente podemos afirmar


que o racismo, pelo
menos em suas manifestações extremas, é uma paranóia coletiva. 1.-B.P.:Você acredita que os seres humanos, individualmente, Vivam em
Agora,
proteger—se do "ruim”, mantê—lo afastado, até mesmo expulsa-lo não perfeita harmonia com eles mesmos? .

bastam. É preciso destruí-lo de uma vez


por todas. Esse delírio paranóico
pode levar até ao assassinato. bom demais. Mas há em mim como que um' “_supe-
A.J.: Ah, não! Seria
Você por certo vai me objetar outra vez rindivíduo“ que tenta pôr ordem em todos os aspectos contraditórios de
que passo com muita
facilidade do individual para o coletivo. No minha pessoa.
entanto, de modo algum e'
assim que encaro as coisas. Existe, para mim, uma
equivalência entre
a massa (ou o grupo, que pode ser uma massa em
estado reduzido) e o i.-B.P.: E quando isso não funciona? E quando esse esforço de síntese é
ego. O ego, como forma, como uma bela totalidade,,já é uma massa. E
a massa pode fazer as vezes de ego. Veja o título do ensaio de
repetidamente obstaculizado por outra cºisa que provoca desordem, e que
Freud, faz essa ordem se afigurar cada vez mais uma superestrutura arbitraria e
Massenpsychologie und Ichanalyse (Psicologia das massas e análise frágil? Essa é a diferença entre o sonho e o pesadelo, Voce tem sonhos
do ego ). Ele indica um paralelismo entre o funcionamento do
da massa. Mas indica também uma disparidadezo ego e o que são o estrangeiro bem assimilado, que se limitam a despertar uma Vida
à análise; já a massa só pode ser objeto de
ego pode oferecer-se psíquica meio inerte, os sonhos ' “bons“ ' que o poem em comumcaçalo codni
uma psicologia. Massa, seu passado, com outros aspectos seus que nao os que YQCCIClee a uz o
forma moderna e encarnada da psique, da alma. Penso também essa dia. E depois, tem o pesadelo, que é absolutamente 1m_ntegrável e que,
num
termo que encontramos amiúde na pena de Freud: muitas vezes, reduz-se a imagens muito elementares: nao há encenaçao,
“incompatível"
(unvertrà'glich). Algumas representações são incompatíveis com o nem história, nem dramatização. Não há cenário. Do pesadelo a gente sai
com o grupo de representações que ele constitui e ego,
que só visa a manter com um grito. Você não consegue dizer nada sobreelezºa nao ser alguma
sua unidade. Pois bem, que constatamos nos grandes fenômenos de coisa como: “Um bicho enorme desabou sobre mim. O racismo seria
massa? Uma abolição das diferenças. O indivíduo, dizem,
submerge um pesadelo social. Por isso é que, como ele, é tão elementar e brutal em
na massa. A heterogeneidade é negada. Não apenas já não se reconhece
suas manifestações. O discurso não tem poder sobre o pesadelo. Nao se
a diferença entre si mesmo e os outros, como já não
se a reconhece em pode analisa—lo. Tentamos ver o que pode tê-lo desencadeado, mas seu
si próprio. Todos iguais e cada um igual a si
mesmo. Do semelhante conteúdo e' maciço demais, e ao mesmo tempo, pobre demais e intenso
ao mesmo, esse é o lema da massa, esse deus decaído. Triunfo do demais para ser submetido a uma ordem qualquer do discurso e do sentido.
homogêneo, evacuação do incompatível. O incompatível, o O pesadelo é uma explosão, uma implosão. É um exterior, um intruso que
que não
pertence à massa, é então atirado para fora. irrompe em nossa serena interioridade.
44 ACHAR-SE ou PERDER-SE no NEGATIVO UMA CARA QUE NÃO xama 45

.
_HOJe em dia, quando todo mundo fala, não sem uma certa
com la— A.J.:Exatamente. Para mim, a pessoa e' sempre evolutiva. Albert Jacquard
de “seu" inconsciente, cada um recorre está sempre por fazer, por construir. Mais ou menos como um país está
cencra, a um inconsciente Ifem
temperado, a uma realidade cuja alteridade ele certamente reconhece o — sempre por construir. E, no dia em que eu disser a mim mesmo que, agora,
inconscrente, esse outro em mim —, mas com o qual pode negociar ue 0 Albert Jacquard que vim a ser é realmente o ideal do que eu podia
no final das contas, ele pode gerir. O sonho angustiante siritgma, imaginar, estarei morto. Você me acha otimista. Provavelmente, esse
o
aborrecrdo, e até a repetição mortificante de uma situação',de fracasso otimismo é gratuito. Provém de eu ter ouvido o Sermão da Montanha e de
acabam, de fato, por ganhar sentido. Mas há uma outra experiência do ficar deslumbrado com a riqueza de todos os homens. Os conflitos não
mconscrente infinitamente mais perturbadora, que Freud designou lo passam de peripécias, ou melhor, só vemos conflitos por não sabermos
nomede Unfzeimlichkeít (a estranheza inquietante), quando o mais frªgi— ver neles uma construção. Pode a vela ser descrita como estando em
lrar vtra subitamente o mais estranho. É uma conflito com o vento?
experiência que pode ser
extremamente passageira, como um breve momento de despersonaliza âo
em que o ego perde sua sustentação. O sonho, mensageiro do inconsciegte J.-B.P.:No fundo, vóªcê se poupa da crise, da crise econômica, e também
e al go que voce sempre chega mais ou menos a elaborar,
ou até a esquecer, da crise psicológica. Como se, no momento da crise, já soubesse que
J a uma experiencia como essa não se deixa dispõe da solução. É como num filme policial. Desconhecemos o que vai
integrar. Ela questiona funda:
mentalmente nosso sentimento de identidade, confunde fronteiras acontecer, mas dizemos a nós mesmos que é preciso que o ator principal
as entre
o dentro e o fora. Porque evocar isso ao falar de racismo? esteja lá até o fim, logo, tranqiiilizamo-nos: o herói não desaparecerá nos
Porque o racismo
se transporta para ,a cena social, coloca do lado de fora o
que não é primeiros cinco minutos do filme. Para o espectador infantil, as coisas não
elaborado entre o sr e o si mesmo. funcionam assim, porque ele não sabe que o ator terá de ficar até o fim.
Pode ter um medo pavoroso, nos primeiros cinco minutos, de que o herói
A.J.: Mesmo assim, essa cisão interna é
permanentemente angustiante O morra. Pois bem, você, por sua vez, é um pouco como um ator que
que espero é. que o "eu, eu mesmo " seja unitário. Naturalmente sempre estivesse convencido de que seria encontrado no fim do filme, e portanto,
se pode analisa—lo aos pedaços. Mas o que chamo eu e algo de de que, mesmo que fosse ameaçado de assassinato, continuaria a ser
profunda-
mente umtário, que domina todo o resto. Podem me contar coisas sobre Albert Jacquard, o herói de sua própria vida. Mas, justamente, ocorre que
todos esses pedaços de mim, mas eles não me interessam, é
ao que os une os grupos sociais que se acreditam ameaçados não estão absolutamente
que. chamo eu; Como no indivíduo, não será essa dissociação que leva na seguros de serem os heróis da história. Temem ser aqueles que vão pagar
sociedade, ao racrsmo? Essa espécie de clivagem em que não se conse, ue o pato.
mtegrar tudo? Existo quando consigo integrar tudo o que esta em mim
mclusrve o que não considero admirável. Não importa. Tomo meu ró rir; A.J.:Não seria o fato de tomar qualquer diferença por superioridade ou
partido; constituo—me ao dizer: todos os aspectos parciais na verdarde lirão inferioridade uma doença infantil da humanidade? Claro que é excessiva-
sao eu. Nem sequer a soma disso tudo sou eu. É minha capacidade de mente otimista supor que a humanidade, que mal chega a ter cem mil anos,
integra—los que sou eu. Assim, também a nação é a capacidade de inte
o conjunto. E se dissocia quando rejeita pedaços de si g rar ou cinquenta mil, conforme a maneira de contar, esteja sequer saindo de
mesma. sua acne juvenil, e que o medo do outro seja um complexo que um dia
Voltando ao racismo, essa é sem dúvida uma visão meio angelical será superado. De tanto dizer isso, mesmo que ainda leve cinquenta mil
mas, paramim, a França é justamente aquilo que é capaz de ser enquantd anos o que é pouco para a história de nossa espécie —, não chegará o ser

ser unitano, com os meninos e meninas nascidos em Paris ou ,no Jura humano a superar esse medo do estrangeiro?
e
também os que vêm de outros lugares. É esse algo que chamo "Fran ç a,"
justamente por se compor apenas de franceses ,
J.-B.P.: É possível que um dia a espécie humana venha a se vivenciar, e
não apenas a se pensar, como uma totalidade não hierarquizada, da qual
J.-B.P.: Você é extraordinariamente, eu não diria
otimista mas confiante cada parte seria um componente. Será isso realmente o que devemos
em seu poder de integração pessoal. Parece viver uma coexistência
fica consigo mesmo. Você afirma: “Não sou Albert paci- desejar? Porque o preço a ser pago por essa espécie de reconciliação geral
Jacquard desde corre o sério risco de ser uma redução ao homogêneo. O que alguns
sempre, vrm a me tornar Albert Jacquard, e continuo tendo que me tornar chamam, um pouco apressadamente, de civilização planetária, na verda—
.Albert Jacquard.“ '
de, tem toda probabilidade de ser uma extensão de um único modelo de
'
46
ACHAR-SE OU PERDER-SE
NO NEGATIVO

muito tempo em r elaçao " '


ao undo animal
, es u ecend º
111
dele . Hav er á entao
- .. .
esPímºs elevadºs", comª nós 11 que .fªZIª parte
.

um “racismo" antimarciano ª ªtualldade, para


denunciar , por exemplo,

Uma idéia incurável


espécie arª
identidadª diagrêâelí se defina. É claro que é preciso afirma '
a Pró Prla
a ele? Será Sem pre nem outro, mas não será possível fazê—lo sê
opºr
Ouvindo Você fica-SCCCSSáno que o encontro com ºutrem seja sp
13,11

confiam e na mudança 521231; sensação de que, frente a meu "ideaiisíªgz?


«
1:

fa lando em termos de , ncara os roblema .' de que vtmos


uma permanênclia imóvelsóle rªvtsmo
. O campo das práticas sociais concernente à idéia de cura
é indefinido. A
medicina está longe de delimita-lo. possível, como se empenham em
É
fazer numerosos autores preocupados em demarcar os poderes difusos de
normalização, englobar sem artifício, sob a simples epígrafe da cura, a
um lado, a manutençao
- das . orientação educativa, a função da. religião, as pretensões da política, a
diferenças, no que elas têm de
irredutível finalidade, ao menos contemporânea, da justiça, e até os efeitos da arte -
como “ purgaçâo" das paixões, segundo a velha e sempre retomada
,,

g
definição, quando se trata da representação.1 Sim, podemos afirmar que
por toda parte, hoje em dia, é imperiosa e até preponderante a preocupaçãoé
de curar. Não apenas o hospital moderno, mas o conjunto da sociedade
que mereceria ser definido, na imagem ideal que
ela faz de si mesma,
“máquina de curar". É a lenta extinção das religiões da redenção
como
e do Mal, 0 apagamento progressivo do Direito em benefício da "neces-
e VI
ª sidade de segurança, o da punição em prol da “reeducação" da “rein—
e
serção” social, e a dissolução de um ensino cuja estrutura correspondeu
por muito tempo aos fins buscados.2 Por todas as brechas assim abertas,
a vontade de curar, franca ou camuflada, consegue deslizar para o primei-
ro plano. ' “A era médica pode começar' ', afirmava Knock, já se vão mais
de cinquenta anos. Estamos nela.
Mesmo aqueles, numerosos hoje em dia, que denunciam seu domí-
nio corroboram-na inadvertidamente. Fala-se, por exemplo, imitando o
jargão rejeitado, em doenças “iatrogênicas”, a saber, induzidas ou agra-
vadas pelo tratamento médico ou pelo consumo de medicamentos, mais
isso é feito para nos convidar a confiar nos médicos de pés descalços

nossos antigos "oficiais de saúde” ou, como Sganarelle,' promovidos a


médicos a contragosto. Ou então nos comprometemos a nos encarregar
de nosso corpo, supostamente sempre ameaçado: que cada um se torne

* Personagem de Molieie que personifica o bom senso vulgar e que, entre outros papéis
muito diferentes. aparece como lenhador em Le médecin malgre' lui. (MT.)

47
48 Acuxnsa ou PERDER—SE NO NEGATIVO
UMA [Dam INCURÁVEL Att

para si "seu pró rio médico”, mesmo com o risco de


absoluta do médico, a idéia de cura estaria excluída do campo Sªggiºrio
'
hipocondríacos! 15 que a “saudável” auto-sugestão da saúde multiplicar os —
.
lugar autodesconfiança "malsã" das próprias deficiências... logo
à cede da psicanálise . A “cura" viria, no máximo, como dbenefâcéiodg E“;
Decidida- '
e a' mas estará a fórmula de Lacan, toma a ao letra ,
mente, parece que só se pode criticar a medicina em gigàâtd do pensamento médico quanto se acredita? .
Na verdadte, o nââiiâoº
_

medicina uma medicina cada vez mais nome de mais


só atribui um valor escasso - isso, incluSive, é o que o di ciªnº

presente, que nos informe a cada
momento, num check-up incessante, o estado de nosso
vez, Knock: “Entendam, o que quero, antes de mais nada, é
corpo. Mais uma curandeiro ao sentimento subjetivo de bem-estar que É?; 22:11 evadp, ode

' ' '


um e em en em
cuidem de si.” E mais: “Vocês me dão que as pessoas experimentar.Quandom uito , avalia-o como
alguns milhares de indivíduos " muito mais efeitos de um
_
.
importantes. Os
_ _

neutros, indeterminados. Meu papel é determina-los, conduzi-los à entre outros que sao
exis- gritªram “bem conduzido” são identificados dãáomêã'manãilirífâm
_ _ . . 10
tência médica.” Nos dias atuais, não foi
esse objetivo atingido, até
ultrapassado? É a existência inteira que é médica, assim exªme, pelos teses
'
de laboratório. Se já quase nao '
'
' m icos
,
garantindo, para de doenças 'imaginárias, ' ' sua des confiança é ain d a ai aior quanto as curas
além de seus limites, o triunfo da ' '
medicina.3 ' ' as a f'um & ç ões do paciente:
_

'imaginárias, .

Eis um exemplo entre milhares, que viriam atestar unicamente


propositalmente extraído do que '
“Sinto-me renascer, doutor. " Oiis arei
.
eu
_

dizer que, ne sse aSpecto , às


afirma querer escapar do domínio excessivo da .

"desmedicalizar” a abordagem das crianças


ordem médica. Querendo vezes os analistas se mostram menos eXigentes? Prontos, .cqrn inegª—8
“esses semiloucos que

denunciar a “fuga para a cura", caso ela sobrevenha no in em o[
toleramos entre nós” ', dizia Paulhan —,
passa-se a designa-las por sintomas
(do casal, do inconsciente familiar). Querendo
mento , mas também prontos a. ceder às imagens do new beginning n ovo
"despenalizar” a justiça, com o] quando ele se anunc ia no fim...
começamos por isolar como entidade a delinqíiência juvenil, tal eçO
debate pode ser travado de outra maneira, linDindzti magrsigãçâiâívgl;
. . . .

falava antes em “crise de originalidade“, como se


medidas reeducativas, psicoterápicas -
e depois a tratamos —
com e tam bém ela, ao con trár'10 do que se afirma, tota en .
e a
como um sintoma (da sociedade ' Aos outros, dizemos, a cura dos sm t0mªs , uma curª
.
urbana). Violência, droga e desespero? Sintomas. modelo médico.
Sintomas. Tudo se dá como se os poderes, Campos e torturas? fictícm, ' já '
que estes nao ' deixam' de reaparecer depºis ou e m mmo lugar ,
.

inquietos, despojados de sua ou entao "


uma cura perigosa, porque,
'
em sua funçao . _
d e ªnan'o 3 e compro-
legitimidade, se remetessem a única linguagem mal A nós
passível de obter unani— '
misso, muitas vezes os sm'
' '
tomas *
nao passariam
.
d e um menor.
midade, por ser reconhecida como natural.
Depressa, senhores médicos,
façam de nós, refaçam de nós uma sociedade sadia! No as modificaçoes ' ' estruturais.
'
' fo
'
rtalec1mento
.
do ego ou c astra
_
ç 㺠“Ebon-
.
.
, .
_
entanto, sabemos ca. Embora acreditemos assma lar com essa proclamaçao uma opoaçªo
para onde isso leva, ou deveríamos sabe-lo: .
' entre as metas da pst'canahse ,
e as da medicma - o “ das micºtº-
.
para a eliminação dos párias,
_
' .
a destruição dos restos. Mas, quem nos curará da essenCial
'
.

amnésia? É verdade que, ' abido ' elas , re [ o mamos , mm'to pe 10


atualmente, com a ajuda do progresso, nossas sociedades rªplªS que nªº tenhªm '
S romper '
com
'

. .

acreditam poder prescindir dos recursos ao exorcismo desenvolvidas '


contrário, a uma diferença das mais clásswas em me dicrna' a eXistente
'
.
'

bode expiatório. Bons mecanismos ou ao sacrifício do '


entre o rocesso mórbido e 'a eclosao da doença, que, po[ sua vez ,
imunológicos hão de bastar. Imuno- superpõegse “basicamente à diferença entre o " terreno ” e o " ag eme
logia, a ciência piloto da política.
Essa invasão do modelo médico, P atogênico".
retrospectivamente, pode ser tida .
_

como consumada desde a época em que a medicina Vamos dar um passo suplementar, afirmando que, no pSicartiªiàstª
atribuiu a si, além de
sua função tradicional de “assistência”, a tarefa de que desvaloriza por princípio a cura sintomática, é (ânitedicooqsqâmmá
manter a saúde, tarefa cujo custo social, feitas prevenir a doença e
todas as contas, seria
'
nao o pSicanalista
' '
(nem o doente...). Na me reina, e a 0,
' . quanto o Sina vermelho" é uma
é
arbitrario
_
'
tão
_

economicamente menos elevado para apenas um Sinal, as vezes 1
,_
assegurar o bom funcionamento da ' ' v ezes tardiamente, pc ] o org anismº prejumca-
_

mensagem enViada, mnitas


_

máquina social.4 E podemos considerar tal


mutação como anterior ao '
'
- po conseguinte , _

do ou perturbado.' um Sinal de alarm e. Sua mamfestaçao,


_

advento e aos progressos da medicina científica. ' , t.


Esta só faz fornecer seus tem apenas valor ' '
indicativo, pa ssível de
.
orientar o
.
diagnos ic º., da mesma
títulos de nobreza a um projeto mais -
global de profilaxia, e sobretudo de forma, seu desapareCimento na"o implica que o proces so mórbido
' . . .
nªo
auto-regulação do corpo social'. O velho sentido de
garantir encontra enfim sua confirmação objetiva. curar—
curar é ' '
continue em açao. Por isso mes mo , no curso . estu os e' dos d d medlcma . .
, a
' Na 'l' , .
º

' ' só faz 'mtroduzrr '
a patologia. pSicana i se ao contrario,
semiologia ,
Objeção esperada e ouvida: em que é que esse
aos psicanalistas? Se a obtenção de uma cura relativa quadro diz respeito tra ' eto inventado
sinjtoma é dado
'
pela formaçao do ' .
_

smtoma é o essenCia 1 . 0 mºdelº. dº


- deve ser buscado numa opOSiçao
_

-
— —é exigência — pelo sonho. O sentido nao
50 5'
ACH/ursa ou PERDER-SE No NeoArivo UMA mm INCURAVEL

entre conteúdo latente verdadeiro e conteúdo manifesto



Curiosamente, hoje em dia, embora todos se comprazam em reco—
—, mas na

enganador —

trama psiquica. Como se fabricou este sonho, este sintoma? A nhecer o “núcleo de verdade" do delirio e a "tentativa de cura" que ele
resposta nao está nem numa nem na outra extremidade da cadeia das
representa, eles são desconhecidos no sintoma neurótico. Sim, é mais do
r p n , que hora de "reabilitar" o sintoma!
O emprego de uma mesma alavra sintom
- — ' Enquanto Freud, enquanto os psicanalistas reconhecem no princípio do
portador de um duplo mal—entendidª. Conviria, púmâirampgxeÍc'grtiétiÉlrlf prazer a única regra das trocas intrapsiquicas, a cura pode realmente
gio-nos da realidade designada, em psicanálise, pelo termo sintoma- constituir um problema, mas não uma aporia. A situação continua a ser,
epois, nao nos limitarmos a transpor uma causalidade orgânica um:; definitivamente, a mesma da medicina, onde a cura é constantemente
causalidade psiquica. Dizer que um neurótico está doente de para subentendida, sem ter que ser tomada por objeto de reflexão. Somente
sua imago
ªatema ou que sofre de um superego imperativo demais é, evidentemen- quando o principio do prazer é despojado de sua soberania no mais além

, o mesmo tipo de raciocinio que leva a invocar uma insuficiência


renal há algo mais forte é que já não se pode mais eludir a questão da cura.

ou uma hiperglicemia (salvo pelo fato de que estas são quando não se pode cifrar que é preciso curar.
mensuráveis) . O
pensamento que procede à maneira do “isso remete a" e que atribui Freud descobriu muito depressa os benefícios da doença. Também
, ª'º
designa—lo, um término a esse processo,6
permanece causal E isso muito cedo fez-se a constatação de que o neurótico dá mais valor a sua
qual for a causalidade invocada, e seja qual for o referencial
instancia psiquica ou trauma sofrido, relação de objeto
nª: neurose do que a si mesmo. A primeira geração de analistas, aliás, era
mais atenta do que nós - que vemos na admissão do sofrimento uma
ou funcionamento
mental, lesao orgânica ou alteração do ego, fantasia originária ou organi-x condição necessária da contratação de uma análise - à bonificação de
faâzo
libidmal. Ora,
sea psicanálise, no exercício de seu método, preserva prazer oferecida pelo sintoma, e, por conseguinte, mostrava-se mais
o s as_ suas probabilidades de
escapar da objetividade que condu desconfiada quanto ao desejo, destacado pelo paciente, de se livrar dele.
necessariamente a reduzir o sintoma a uma expressão secundária de un? Reconheciam-se, pois, de imediato, a resistência à mudança e a intensi-
processo ou de uma estrutura, ela também corre o risco quando envereda dade das fixações, o “mais gozar” no sofrimento e o caráter excepcional
pelo cammho da teoria, de se ver moldada, como que a das sublimações bem—sucedidas. Freud, no tocante a tudo isso, não tinha
despeito de si
mesma, pelo discurso causal. Não é fácil pensar diversamente do “isto a menor dúvida, a menor ilusão, mas isso não o impediu em absoluto de
inventariar as “perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica" (1910)
Superficial, Visível, enganoso) remete a (profundo, oculto, sabido pelo
No entanto, o “pensar' ' psicanalítico só advém ou de traçar, um pouco mais tarde, suas "linhas de progresso" (1918).
colíntrz) . quando a
sse pensamento seja ele médico, filosófico ou psicológico ruptura

lo g ra —
Tudo se modificou diante do encontro insistente com a "reação
se efetuar. Há interpretações simbólicas ou genéticas
que P erm 811806111 terapêutica negativa"7 e quando da introdução, na clínica, da pulsão de
aprismnadas no molde causal. morte. A "virada", na verdade, não foi puramente teórica, como sempre
tentaram acreditar, mas clínica: a coisa "tomava um rumo ruim". Não é
bem ou mal,
O ou tro mal—entendido a que aludi pode
agora ser mais bem apreendido Foi que, antes disso, tudo corresse como se poderia desejar, mas,
por. uma especie de concessão cega ao modelo médico que construímos e podia—se dar um jeito, de transigência em transigência, de deslocamentos
utilizamos uma semiologia erigida sobre os mesmos pressupostos Quando em retificações. Se o amor medicinal nem sempre conseguia curar do
'
dizemos, por exemplo, que um dado paciente sofre de fobias ou obsessões amor, pelo menos o tratamento podia consolidar-se num “compromisso'
sera que se trata dos sintomas dele, que ele efetivamente '
de saúde menos “dispendioso" do que o compromisso neurótico: ficava-
produziu ou dos
queo saber produz? A meu ver, é pela impossibilidade de percebera ue é se dentro dos limites de uma economia liberal... Mas será que a concepção
o Sintoma em pSicanãlise que, já se vão anos, fica—se a
repisar a raridadg das de um masoquismo originário, introduzido justamente como um "proble-
neuroses. smtomãticas e a multiplicação das “neuroses de caráter" e dos ma econômico", e sobretudo o encontro com uma força que faz do
distúrbios narciSicos". Eu diria, antes, negativo do inconsciente um poder de antivida, um desejo de não-desejo,
que para o psicanalist- não existem
neuroses assmtomáticas. Uma neurose nem sempre deixa ver seus sintomas será que esse esbarrão não veio proibir qualquer possibilidade de cura,
de imediato, mas os deixa necessariamente ouvir. A existência
de sintomas seja qual for o conteúdo que lhe demos?
transitórios, que aparecem e desaparecem no correr da análise tem ness e Um médico que acreditasse ferrenhamente, se ouso dizê-lo, na
sentido, um valor demonstrativo para todos os sintomas. ,
pulsão de morte não teria mais nada a fazer senão fechar o consultório.
“,
52 ACHAR-SE OU PERDER-SE NO NFBATIVO S',
UMA mam INCURÁVEL

Há analistas, sobretudo norte-americanos, que chegaram à mesma conclu- . . à submorte. Podemos ver . a a em
.

são, e é porisso que, da pulsão de morte, não querem nem ouvir falar. E crematório, da sobrevivencra glsso rªnge“
de
invertida uma subvida e de uma sobremane, que nossa poca se
no entanto, como adiantei há pouco, são precisamente os pacientes mais
sujeitos ao que chamei em outro texto de trabalho da morte a morte —
igualmente em administrar.
trabalhando dentro do corpo psíquicoª - que mais "vivamente“ desper- ,
.
"0
tam o desejo de curar, embora não julgassemos estar sujeitos a ele. Este Existe uma ambição de curar que e, ao meslmo tegiw,_3esa£o É) 8211233383
absoluta '
última avra 0 Sl enc . e
a morte, senhora ' cu3a pa

pode assumir muitas formas: de reparação (há furos por toda parte) ao C virá namo
holding (se eu não o segurar, ele desmorona), da construção da fantasia
'
curar do pswanahsta nao p ode encontrar sua fonte
' " a.( on po
_
a' morte esse desejo qu e estimula, justamente, na ª g, açao
.
' ' .
_o ne
(é uma coisa frágil, feita de pedaços e fragmentos dispersos) à fantasia de ondena—lo _

morte , mas a recusa da execução, fique ela a cargo


_

(da
um parte (ele não nasceu realmente, não nasceu para a verdade), ou até qa realidadedpstqâlàgª
de uma ressurreição (mataram-no, aniquilaram-no, enlouqueceram-no). ou da realidade externa, aliás, 'mmtas vezes, smgu
' e a l
armen e ª eq
desnuda-lo, e entao- ta 1 vez d esc “bramos
Que o analista, com isso, procura se proteger, não se deixar dominar pelas ara se revezar? Podemos preferir .
corsas do que da ldéla de cura .
_
.
gue é mais fácil nosj,curarmos de mmtas .

operações violentammte destrutivas ou malignamente corrosivas da mor-


te no trabalho, e coisa certa. Mas é também, a meu ver, uma felicidade.
De outro modo, ele só faria confirmar que o desastre não
apenas se
consumou, mas é contagioso.

O desejo de curar nem sempre é tão maciçamente solicitado,


mas nunca
está ausente do tratamento analítico. Simplesmente, é colocado entre
parênteses enquanto a análise funciona, isto é, satisfaz nossa idéia da
análise. Não creio, ao contrário do que se diz aqui e ali,
que o analista não
deva ter nenhuma expectativa, esperar nada. Que vem a ser não desejar
nada, senão desejar nada? E é justamente esse o mais irresistível, o mais
inesgotável e, literalmente, o mais atrapalhador dos desejos. Também não
creio que a reação terapêutica negativa, se é verdade
que se apóia na
pulsão de morte, deva conduzir o analista a reconhecer sua tarefa como
impossível. Ocorre que, nas análises mais tranquilas, a morte e atuante.
Tem apenas uma máscara. Suas manifestações mais evidentes a perda, —

o luto, os massacres - a localizam e a expelem como um acontecimento


acidental ou como um desfecho fatal.
Freud, por sua vez, muito antes de invocar Tanatos explicitamente,
situou-o dentro de nós: inter'nalizou-o. Disso, não estamos
prontos para
nos restabelecer. Mas, enquanto vida e morte ficarem unidas (a união das
pulsões), o terreno da psicanálise não corre o risco de ser minado ou
destroçado. É a desunião delas que inaugura o "desencadeamento" da
pulsão de morte. Então já não há entrelaçamento ou quiasma, porém
bipartjcipaçâo, clivagem. O querer curar vem reagir digo, efetivamente,

reagir, e não responder ao querer morrer. Na verdade, o “furor terapêu-


tico” esquecemos disso ao denuncia—lo - vem apenas ecoar a violência


onipresente dos aparelhos de destruição: arsenal contra arsenal. Tanto no


indivíduo quanto na coletividade.
Qual seria, hoje, o arquétipo do falecimento, da “passagem"?
Nenhuma perda de tempo: diretamente da sala de reanimação
para o
NÃO, DUAS vezes NÃO 55

sobretudo, que prometam algo positivo (adaptação, sentimento de bem-


da reação
estar, expansão, criatividade). Chega assim a hora do desamor,
negativa a psicanálise, da qual nada garante que na França, sob a aparente
efervescência, estejamos resguardados.
Afirmei que raramente se fala, hoje em dia, em reação terapêutica
Não, duas vezes não negativa.— Quando isso é feito, em geral é:
totalmente
1) para constatar o impasse, para dar uma explicação
verbal do fracasso do tratamento;
Teztattlva de_dejinição e desarticulação 2) mais especificamente, quando esse fracasso sobrevém ou se
a reaçao terapêutica negativa ” acentua in fine;
foi porque
3) para imputá—lo ao paciente: “Se a coisa degringolou,
ele teve, ele me fez uma reação terapêutica negativa“ (como diria uma
mãe sobre o filho que, para prende—la, obter seu amor, despertar inquieta-
má—vontade, optasse por prejudicar, antes de mais
não,
«ºm—www—

ção ou, porque por


«
i nada, a si mesmo).
Embora o analista tivesse o direito de esperar da análise, em função
.,

,“

congresso recente anunciou em seu programa- .


Urtr:
do trabalho de elucidação realizado, uma mudança libertária, é o inverso
so re a reaçao terapêutica negativa."' Interessante “Novas perspectivas
smal dos tempos. É sintomas antigos, ou até
ue os sic '
' que se produz: retorno ou agravamento dos
gibliogglfiaªlslâgfêªzsglalase nap falam da reação terapêutica negativa, e a produção de novos sintomas; recrudescimento dos conflitos; proclamação
é, comparada à massa das
publicações de um sofrimento definitivo: o pior continua infalível... O paciente, dizem
relativamente rara Mas qpestao
e a eficácia do “Lamen:0,
es se mterrogam cada vez mais sobre
os limites então, “prefere” seu sofrimento à cura. Talvez mais valha supor que ele
sobre o valor e a estabilidade de seus resulta- não quer trocar a totalidade de seu sofrimento, como se esse mal fosse seu
dos. Por pouco a lhes d
bem próprio, por uma melhora, mesmo parcial, que represente para ele,
Só "casos imposi—
veis”. E, ainda pºr cimªr, (3:33:31?a encontrariam
pertinência de seus mod acima de tudo, uma resposta à expectativa de seu analista, a satisfação do
rela 㺠“site?;
. . .
âãâo'㪪tlãàã'àãiiâíffãªtíããíª ªnªlisº-Pm ªº ª anseio demasiado evidente dele, a submissão a sua exigência: você tem
- con ra tção
que mudar. É melhor ficar doente do que cair
descob . _

. _
em ue curado. A queda, ou a
aprimoranilentcf><ãdczieclªfrÉ
cepçâorilríiãigáncliíssã de“ uma retificação, de um recaída, resguardaria da perda.
interna de sair:, âââªí'ZÉZÃÉSÉ-ººªiºªºdíºªªº“mª
c1v1 iza
ªºººªªiªªªº
" ou sofistic Sabemos que foi num texto que muitos consideram “testamentário”,
Freud veio
indefm' e ainda defmidor do contexto de nossa problemática atual, que
xeque só que em 233in
.
ou mantida em_
sem esàâitãl㪪esggâtâlsltada "dessa se defende

esbarrar e como que entregar os pontos diante força que
por

sua-experiencia, cada vez mais descon:
certante e à sua mane.ares mais da cura por todos os meios e quer a todo custo agarrar-se à doença e ao
antes. De ,modo que ªtªcamâude discreta), “selvagem” do que sofrimento”:3 dir-se-ia que, no cômputo final, ele a achou mais forte do que
poderíamos julgar que a reação terapêutica
a análise. Triunfo, portanto, da metáfora militar: “Tudo se
negativa tornou—se com ouv1 izer, um conceito da como se a
em que estaria eªcesso anacrônico na medida

batalhões mais fortes."4 É o Napoleão de
vitória tivesse que ficar com os
absoluto de uma rejeiçâldlââetgtgmªíftiod:%rmanifesm, crismlizªriª no Waterloo, e não o Bonaparte da ponte de Áreole, constatando, mais com
ocesso —, como poderíamos batalhões têm razão.“ '
,
do
realismo que por pessimismo: “Os grandes sempre
.
p
il.
Existe aí, aparentemente, uma confissão de derrota, quaSe que de
.

”Observe-se desde logo que é nos meios em


que a preocupação ruína, ou pelo menos um toque de renúncia que, à primeira vista, não pode
terapeutica tem sido mais destacada nos Estad os Unidos, onde deixar de surpreender. Na verdade, não faltam a Freud" instrumentos para
o título

de medico é exigido pelos psicanalistas domesticar essa força, ou pelo menos para contornar esses grandes bata-

para se praticar a análise — que


essa crise, surgida depois do sucesso de que lhões. Recordemos alguns marcos:
mals Visível: prefere-se recorrer a terapi as temos conhecimento, faz—se l. A satisfação libidinal encontrada no sintoma por mais penosa

mais breves, mais eficazes e, consequências
54
que seja sua vivência, por mais invalidantes que sejam suas
56 ACHAR-SE OU PERDER-SB NO NEGATIVO NÃo, DUAS VEZES NÃO 57


e na fantasia subjacente foi quase que imediatamente reconhecida, com princípio de antivida, que Freud inscreveu no coração do ser vrvohugnanã):
o lucro secundário e principalmente primário que se liga a ela. É inclusive o escândalo da pulsão de morte, que é também o do desconhecido » . o
sob a condição desse pressuposto sob a queixa manifesta, ouvir e que não se deixa conhecer, entender, captar. Nao
— há nenhum
identificar o gozo secreto que se efetua qualquer análise. domãmo,

nenhuma apreensão possível daquilo que exerce sobre nos a mais orte
2. Correlativamente, a “fuga para a cura” foi considerada
suspeita,
bem mais suspeita até do que seu simétrico, a "fuga 350611363: 1305
anuncia Além do princípio do prazer? Que, se há “progra-
para a doença", que
tem sobre a primeira a vantagem de testemunhar a atualização do conflito.
Não há um só desejo de cura no paciente (e no analista, tomado de “zelo mação" biológica, a programação em pauta de modo algum assegurado
amadurecimento, nem a produção do novo, nem tampouco o advento e
terapêutico”) que não mereça ser interrogado e analisado como um estruturas mais flexíveis ou mais diferenciadas, porém: essenctlaàmente; a
sintoma., A primeira geração de analistas era certamente mais atenta do
repetição do mesmo, inteiramente orientada pela atraçaodmortâ agrªriª
que nós - que vemos na admissão do sofrimento uma condição necessária Os psicanalistas ainda não se havram refeito disso quan o es arra
para o encetamento de uma análise â "bonificação de prazer" trazida

obstaculo constituidorpor essa lei do retomo em seu próprio campo, e nao
_

pelo sintoma. Por conseguinte, mostrava-se mais reservada em sua ava- mais do lado de fora, sob a forma, por exemplo, de uma neurose e do
liação do desejo, amiúde formulado em alto e bom som pelo paciente, de destino. Mais além das regulações que asseguram o jogo do prazer e tão
se livrar dele.
3. Mais tarde, a nova teorização do sentimento de desprazer, é o que poderíamos chamar princípio de agoniaã de gozá) e É
culpa permitida dor que está em ação. Quando impera esse princípio, eixam e se

pela segunda tópica das instâncias ofereceu uma explicação quase aritmé— válidas as leis da economia libidinal e narcísrca que regem o funcrona-
tica para o sofrimento - desprazer para um sistema, o
ego, prazer para mento neurótico de bom quilate - leis que, no fundo, foram retomadas por
outro, o superego e, com isso, uma possibilidade de definição relativa-

Freud da economia liberal. É compreensível que, ao mesmo tempo, a
mente precisa da reação terapêutica negativa. De fato, Freud viu nesta
última uma expressão deturpada do domínio exercido pelo obtenção de um compromisso de cura deixe. também. de se afigurar, em
superego: relação a tal princípio de gozo—dor, menos custosa do que o compro
“Esse sentimento de culpa fica mudo para o doente. Não lhe diz que ele misso neurótico. O cálculo dos custos e a estimativa dos lucros Ja nao
é culpado. O sujeito não se sente culpado, mas doente."6
intervêm. “Pouco importa o que isso me custe, o que,,custe a voced ,
4. A perspectiva econômica adotada dure . A
para esclarecer o paradoxo do parecem dizer-nos alguns pacientes, “desde que tlogica
o
masoquismo do prazer encontrado na dor, do “ele goza onde sofre"7

desprazer-prazer parece ceder lugar a (ou ser totalmente reco

cria pai-())
permitiu dar um passo a mais: o masoquista procura manter a qualquer uma lógica do desespero - que leva ao desespero nossa lógica, tan o a
preço, e às vezes o preço é muito elevado, uma certa “quantidade de processo primário quanto a do processo secundano. -
sofrimento". Assim, pode encontrar na situação analítica um meio de , .
Vemo-nos confrontados, portanto, ao cabo dessa rapida apreciaçao,
.

garantir essa possibilidade; ela se transforma no lugar predileto de uma com o seguinte paradoxo: quanto mais a_teoria parece em condiçoes ge
queixa infindável ou de um processo já perdido de antemão, levar em conta a reação terapêutica negativa, quanto melhor está arma a
para vencê-la, mais esta nos desarma, mais se apresenta como irma força
S. Por fim, ao invocar uma "necessidade de punição", não foi
apenas a outra face do sentimento de culpa que se designou, mas num — irredutível, e até como um núcleo indiVislvel do ser, que nao apenas
movimento de interiorização progressiva tão característico do escapa às garras da interpretação .como mantém em xeque, em SÉ:
pensamen-
to freudianoª uma realidade inscrita no registro pulsional, ou melhor, na

próprias raízes e finalidade, a análise: a analise encontra em Sl ªe?)“
ordem vital. É que, nesse ponto, Freud falou em necessidade (Bedãrfnis), aquilo que a nega. Sua função, na verdade, e desligar ª; represente çom;
não em pulsão ( Trieb). A escolha desse termo é ainda mais significativa mas para ligá-las de outra mane1ra.(nesse sentido, ela e etivamen
na medida em que Freud sempre se recusou a reconhecer ao contrário— o partido de Eros, que certamente desarranja, mas para estrmu ar arranj
'os
de Jung e, mais tarde, de tantos analistas anglo-saxões a existência de
— mais sutis); ou então, ela visa a que a representaçao oe afeto se unam
qualquer impulso natural para o desenvolvimento (Entwicklungstrieb) onde estão desunidos. Ora, eis que ela esbarra, no nega-tivo e como que
que permitisse assimilar a complexidade do psiquismo ao amadurecimen- encarnada, nessa função de desligamento; eis que alguma entre os srgntçs
to progressivo de um organismo, e que fundamentasse, já não passa de um vínculo - de ódio, de amor? nao se sabe mais elndg

por conseguinte,
a idéia clássica (pre—analítica) de cura: restabelecer a suposta integridade, dois corpos. Mas Eros não comparece ao encontro. Passamos para o a
equilíbrio e harmonia do ser vivo. Ao contrário, foi uma força, e até um das máquinas de destruir.
58 ACHAR-SE ou Planam-sa no NEGATIVO 59
NÃO, DUAS vezes NÃO

Freud soube reconhecer e decifrar o sintoma dos


que fracassam
diante do sucesso,10 no exato momento em que seu desejo (consciente)
_
na prática: “Ele está se defendendo”, “ele está resistindo" são formula-
ções correntemente utilizadas como equivalentes. No entanto, a distinção
está prestes a encontrar satisfação. Das que fracassam melhor dizendo , é teoricamente situável e operante. A resistência é suscitada pelo movi—
pots ele se baseou, em seu artigo de 1915, no caso de duas mulheres Lad mento da análise, seja ela externa resistência cultural, filosófica, médi-

Macbeth e Rebecca West, e, convém notar, de duas mulheres esie'reig ca, psiquiátrica ou interna. Existe resistência à, na e pela análise.
— Dito
referenc1a em que podemos ver um efeito de “anterioridade"
se consi: de outra maneira, mesmo que a palavra não tenha sido inventada pela
derarmos que a “rocha" que fundamentaria em última instância a reação psicanálise, a experiência da coisa é tão especificamente analítica que
terapeutica negativa seria, precisamente, e em ambos os sexos uma certa esclarece, em contrapartida, fenômenos decorrentes de outros campos. Já
rejeiçao da feminilidade...“ Esse fracasso diante do sucesso Freud o
'

a defesa é um conceito biológico, transposto do organismo para a psique


“Í

analisou... com sucesso e com a paixão de um detetive certo de frustrar ª“

pela psicanálise. Daí resulta o seguinte:


os ardis do adversário, mas, curiosamente, analisou-o em casos de ficção 1. Enquanto os mecanismos de defesa podem ser compreendidos
extraídos da dramaturgia, e portanto já representados por palavras &;
como hábitos, mais pu menos bem integrados no funcionamento psíqui-
Simbolizados por uma ação dramática (o cenário edipiano). Quando é ele
co“ e, como tais, atribuídos ao indivíduo, a resistência e' efeito de um
quem fracassa em sua prática, quando a esterilidade atinge a própria .me—ªw

processo a que ficam submetidos o analista e seu paciente, o paciente e


analise, que constata sua impotência para gerar o novo, a história é outra
Daí uma estranha inversão que se operou no próprio âmago do seu analista.
2. Enquanto a defesa, modo de comportamento psíquico, é global e,
pensamento freudiano. Uma inversão que quase levou a formular a r-
portanto, relativamente indiferente ao que, em sua singularidade, a desen-
gunta no outro sentido: como podem efeitos positivos não enganadªs cadeia (há um perigo, mas em que consiste o perigo, ela ignora), a
ser ObtldOS pela análise? Se reconheço na pulsão de morte como se ,eu—«

resistência é sempre pontual, à semelhança do recalque.


empenhou em fazer o Freud dos últimos textos, a própria essência do
_.

:
3. Na medida em que se opõe à emergência de uma representação
pulmonal, so me resta fechar as portas, dizia (leviana ou gravemente
, ou de um afeto, a resistência é interpretável, e só é interpretável se a
depende) o autor de Gue'rír avec Freud [Curar com Freud].
Mas essa inversão foi também um retomo, um retorno a um representação e o afeto em questão forem designados pelo analista.
pensa- inversamente, não interpretamos uma defesa, mas a constatamos (com o
mento médico que parece ter-se reabilitado na própria época do fracasso risco, aliás, de reforça-la), ou a evidenciamos quando ela é inconsciente.
—_
diante do sucesso - da análise. A expressão “reação terapêutica nega- Nesse caso, não existe análise no sentido psicanalítico do termo a saber,

tiva , sempre empregada por Freud entre aspas, como se fosse extraída
desligamento entre a representação e a coisa significada —, mas, na melhor
de outro vocabulário que não o dele,12 testemunhou nesse “médico a das hipóteses, análise no sentido cartesiano. O que se chama abusivamente
contragosto“ (o termo é de Leo Stone") o movimento de rebaixamento de análise dos mecanismos de defesa pode favorecer o insight, assegurar
da pretensão terapêutica que o levou a formular a
pergunta: porque o uma conscientização do funcionamento psíquico, mas não tem como
doente reage negativamente a um tratamento prescrito com exatidão induzir efeitos de sentido.
e
corretamente conduzido? Como vimos, não faltaram respostas mas Freud Pois bem, a que assistimos e do que vimos participando há anos,
limitou cada vez mais seu alcance. Em suma, ele só reconheceu
plena- senão uma crescente assimilação da resistência às defesas? Porque essa é
'representaçâo-meta” do médico e do paciente que comparti- uma longa história, que eu remontaria de bom grado ao texto precursor de
ªí:-tiª] esma: curar no momento que ela for' radicalmente
'

em posta em Karl Abraham que denunciou “uma forma particular de resistência ao


xeque. método analítico' ' (1919).15 Vemos a interpretação propriamente analíti-


É a famosa formulação de Bichat em sua forma invertida.
Longe de ca dos motivos de uma resistência pender para a objetivação das defesas
se poder definir a vida como o conjunto de forças que resistem à
morte, é com a invocação de uma “resistência permanente" ou de uma “resis-
'

' '
tência à descoberta das resistências" permitindo essa passagem. É assim
a morte, em sua imagem concreta d e repetição '
mststente do "dem ºnfª -
co ” , que resrste à vida!
.

que procedemos a um recenseamento, cada vez mais extenso e requintado,


dos “tipos de personalidade” que seriam, por natureza, refratários à
Acabo de utilizar o termo resistência. Ficamos tentados, análise: a neurose de caráter (a "carapaça" reichiana), a personalidade
para delimitar o
'
que acontece na reação terapêutica negativa, a nos apoiarmos na distinção as if(como se], a ' “carência fundamental", o “falso self' ', etc. Observe-se
entre defesa e resistencia. Essa distinção é certamente dificil de fantasmática, falta de
empregar que é sempre em termos deficitários (carência
60 ACHAR—SE OU PERDER-SE NO NmATlVO NÃO, DUAS vezes NÃO 61

elaboração psíquica, etc.) que essas estruturas são apreendidas E a lista


e sobretudo acentuaria o deslizamento que assinalei da resistência para a
vai—se ampliando a cada dia: vejam os “antianalisandos” de J
defesa. Seria um conceito a descartar?
McDougall, os 'intratáveis" de Nathalie Zaltzman ou mais recente;:iz'ciie-

Entretanto, a emergência reiterada de um termo em Freud, escan-


te, os "analisandos parasitas", que não sabem- dar, nem receber d e dindo, além disso, momentos distantes de seu pensamento,"5 não nos pode
Micheline Enriquez. Ora, uma vez que, ao mesmo tempo repisam-nbs deixar indiferentes. Teria Freud “esquecido”, quando parece confessar-
afirmaçao de que as indicações clássicas tornaram—se impossiveis da
se derrotado diante da força do que chamou reação terapêutica negativa,
Zçhmêã%ue além disso, se encontradas, render-nos-iam as piores desilucÍ uma de suas primeiríssimas definições da resistência, a saber, “Aquilo
l íc11 enxergar o que nos poderia convir. Mas
sais,] não equivalerá isso,
p esmente, a desconhecer o fato de que não existe análise efetiva isto que faz com que o doente se agarre a sua doença e, com isso, lute contra
, seu restabelecimento"?l7 Essa definição é ainda mais notável, na medida
e, analise que também empenhe o inconsciente do analista
a não ser em que foi introduzida para indicar a superioridade do método analítico
aquela que nos leva aos limites, numa experiência dos limites da
e de nossos próprios limites? Os analistas,
análise em relação à hipnose,;la qual, por sua vez, se pouparia a experiência da
principalmente devem con resistência. Ora, os termos dessa definição foram os mesmos a que ele iria
vencer—se disso, já que somente seus "casos difíceis", ,seus "casos
recorrer, mais tarde, para invocar a reação terapêutica negativa. Sob as
;iªiãªssíveis , é que os fazem trabalhar, teorizar, escrever: nesse ponto, mesmas palavras, estaria ele falando de outra coisa? Apliquemos à teoria
pmmentos convergem, é possível até que eles lhes permitam viven— a regra áurea do método: é ali onde há um obstáculo, uma contradição ou
de sua propria , .
'
ciar, como analistas , aquilo que nao conheceram
como p aciente Sªº lºngº um esquecimento, ali onde há uma “experiência negativa", que se sina-
análise. liza... o quê? Digamo-lo globalmente, por ora: o que foi mantido a
A atual multiplicação dos quadros clínicos não teria distância, o que, não tendo sido realmente inserido no "envoltório teóri-
_. . grandes conse
quenCias, se nao trouxesse o risco de produzir o seguinte efeitoº uando co",13 retorna então maciçamente no corpo da análise. Com a reação
fazemos com que nosso desânimo ou nossa impotência derivem de terapêutica negativa, tanto na teoria quanto no tratamento, as resistências
um
morfologia da realidade psíquica de nossos pacientes comportamo-no: compõem uma massa.
como os que, dentre eles, imputam seu estado de miséria interior a u
realidade social ou familiar que seria demasiadamente assim ou ins [?ª Reação terapêutica negativa: uma só expressão, três termos sempre liga—
eientemente assado. Defendemo-nos, portanto, uns e outros atravésudla dos. Três termos que têm, cada um, sua história (longa) e sua carga
realidade; o fato de ela ser qualificada de psíquica ou material de
social semântica (pesada). Talvez seja útil começar por separa-los: do desmem-
ou corporal, em nada modifica a história, a
partir do momento ein ue n bramento da noção podemos esperar uma desarticulação da coisa.
referimos a realidade invocada como uma causa. Continuamosl soboã Detenhamo-nos por um momento, para começar, na palavra reação.
domínio do discurso causal, com o qual, entretanto o método sican li _ Jean Starobinski mostrou que esse foi um termo de surgimento tardio.19
tico teve de romper para abrir seu próprio caminho., p ª
Ação—Paixão foi, na verdade, o par de opostos que prevaleceu até o século
Voltemos a reaçao terapêutica negativa, XVII, a partir do qual o emprego do termo reação veio rapidamente a se
que a rigor não abandonei
ao ev ocar a reaçao dos analistas frente aos
, que, dessa maneira fazem seu generalizar, com a aceitação da idéia da interdependência de todas as
metodo fracassar num "não". Hoje em dia, essa noção em sua es ecifi— coisas. Não podendo nenhuma ação escapar a uma ação contrária, daí
cidade, parece ter-se dissolvido. O fato é que, de tanto reconlliecida resultou, como escreveu Starobinski, que “...se desfez o privilégio onto-
ser
por. toda parte, ela já não pode ser localizada em parte alguma Não lógico pelo qual um agente é mais nobre do que um paciente [...], vindo
deSigna mais nada. Não mais identifica um evento
psíquico localizãvel o paciente a padecer por sua vez. Passividade e atividade são ambas
Mesmo os términos de análise tidos como fracassos transitórias”. Sabemos que Newton viria a formular em linguagem
são mais facilmente
“...m

compreendidos em relação às particularidades da transferência e da con- quantitativa essa intuição global da interdependência: "A toda ação se
__:

tratransferencia hipótese frequentemente confirmada por uma se g und &



opõe sempre uma reação igual." Ou ainda: “As ações recíprocas de dois
analise do que como reação terapêutica
corpos, um sobre o outro, são sempre iguais e dirigidas em sentido

negativa.
tiªgo, seria um conceito ruim essa reação terapêutica negativa, que oposto."20
faria rencia a organizações psíqmcas muito diversificadas, englobaria Acabamos por esquecer, com a extensão exagerada que o termo
mov_imentos psíquicos
heterogeneos, sem explicá-los nem discrimina-los reação assumiu por algum tempo na medicina, que o "re-agir" e resposta
a um "agir" anterior. Os dois formam um par. Um par muito mais
. ,
62 ACHAR-SE ou PERDER—SE NO NEGATIVO Não, DUAS VEZES NÃO 63

estreitamente ligado que o da ação e da paixão, um par portador de onde ela deixa de ser uma metáfora, um transporte, onde não há mobili—
imagens 'de reciprocidade, simetria, interação sem mediação. Já não dade das representações, mas se institui uma relação com o objeto em que
trata aqui de um par de opostos (paixão = contrário se
lógico da ação) mas toda a energia psíquica do sujeito parece se investir? O vínculo transfe-
de um par compensado”, ambos os termos do qual obedecem à mesma rencial é, então, dos mais estreitos. É também tenso ao extremo, tenso a
logiça. Para melhor perceber a ressonância do termo “reação” no ponto de se romper, com alternâncias súbitas e violentas de sentimentos:
semantico freudiano, consideremos a Reaktionsbildung cam 0
(formação
reafi—
admiração e desprezo, gratidão e rejeição. Tudo branco, tudo preto. Sem
va), o abreagieren (a ab—reação, que não passa de uma nuanças. A gente não se entedia com esses pacientes. Mas sofre. Nosso
reação adiada
vinda de dentro, à ação do trauma infligido de fora) ou ainda a transer “
“motor” gira em rotação muito baixa ou muito alta, sem jamais poder-se
renCia, definida comoA modalidade do agieren, e a,contratransferêncía permitir uma velocidade de cruzeiro... E a contratransferência também se
Zilmnqêsqgçío a transferenCia. Em cada uma de suas ocorrências, o modelo anuncia numa forma de agieren: apenas nosso corpo se exprime numa
tensão difusa, reproduzindo—se a imobilização física numa paralisia do
Donde uma primeira observação elementar:
, . quando se identifica na curso do pensamento.;ft atenção não “flutua” mais: focaliza-se, siderada,
analise uma reação, mesmo em ponto menor ( “Pele reagiu a minha inter- como que atingida por uma proibição.“
pretaçao, a minha ausência, com...", ou, do lado do analista “a estridên— Ação-reação: o par funciona a pleno vapor. Já não há troca possível
eia da voz. dele me exaspera, seu silêncio me
abate") isso é indício de nem circulação de sentido, mas controle e vigilância recíprocos. A pulsão'
que o analista é percebido ou se percebe como agente que sua função de de dominação parece ser a única a se exercer: quem se tornará senhor do
interprete, de suporte da transferência, vai-se apagando, ou inversamente outro? Não retornaria, então, aquilo que foi excluído nas origens da
que o analisando está, à parte as palavras que consegue dizer inteiramente
psicanálise? Com efeito, parecemos remetidos de volta à época da suges-
ocupado em exercer uma força ativa sobre geralmente contra tão e da contra-sugestão, da ação imediata, em que transferência e trans-
o


analista corno pessoa. Assim, encontramo—nos
no registro do,agir mesmo missão (dos pensamentos) - uma mesma palavra: Úbertragung — tendiam
que esse agir so seja veiculado por palavras. Essa dimensão do efeito do a se confundir, numa espécie de transfusão das energias.
discurso no psiqmsmo e no corpo do analista decerto está Não encontramos em Freud a expressão reação terapêutica positiva.
toda analise. É inclusive necessária, a presente em
meu ver, mas sob a condição de não Vejo nisso a indicação de que uma reação — no tocante às exigências da
ser prevalente, e sobretudo de ter valor de índice, de não
ponto de partida para perlaboração psicanalítica, do trabalho do aparelho de pensar —

urna_elaboração psíquica. Mas, que elaborar quando toda a relação analítica poderia, aos olhos dele, ser positiva. Vejo também aí a recordação daquilo
Ja nao passa de uma relação de forças? Quando os
“grandes batalhões" em que todos ficaríamos facilmente de acordo, a saber, que os benefícios
entram em cena, exit a liberdade de pensar. A
gente enfrenta como pode. terapêuticos, por mais necessários e desejados que sejam, não são sepa—
'

É_um dado da experiência corrente ráveis do processo de mudança intrapsíquica efetuado pela análise.
que os pacientes mais refratários
ao mov1mento da análise — movimento do
qual a associação livre é apenas Precisemos as coordenadas: a reação terapêutica negativa, que é um
uma testemunha, nem sempre a mais segura - são os que investem mais efeito de resistência maciça a esse processo de mudança, assume a
intensamente a relação analítica em sua realidade instituída
e o analista aparência de uma defesa global, quase orgânica, e surge então como
em sua atualidade, em sua presença corporal. Encontramos na história intratãvel. Mas, a menos que nos submetamos ou nos demitamos, isto é,
infantil desses pacientes — uma história pobre de lembranças e revives- que façamos nosso o sistema do paciente e soframos, obedecendo ao que
cepcias —, principalmente, palavras proferidas, na maioria das vezes pela constitui sua lei, à dominação que ele mesmo sofre, convém nos formu-
mae. Esses ditos têm valor de atos. Como veredictos lannos a pergunta: nessa defesa em que prevalece o par ação-reação, qual
sem apelação
sentenças recebidas como negações de justiça, eles não são
passíveis de é a fantasia atuante? Qual é a ilusão, ou melhor, a convicção oculta? Quais
nenhuma recomposição que os relativize e que, ao mesmo são os afetos mobilizados?
tempo relati—
vize a imagem e o poder daquele ou daquela que os enuncia. Absolutos
so podem susc1tar, em contrapartida,
uma reação. Por isso não raro vemos Joan Riviere, num belíssimo artigo, mostrou como os pacientes a propó—
sobreVir na análise desses pacientes um “agir” externo,ou somático sito dos quais ela citou a reação terapêutica negativa eram inteiramente
. A
mae e o analista são denunciados em sua fala pelo ato. tomados por um desejo eu diria, antes, uma necessidade egóica compul—

Nesses casos, a transferência merece plenamente siva de reparar, de remediar... Recusavam-se a "se curar", numa
F reud sob a rubrica do ter sido situada por —

agieren. Mas caberá ainda falar de transferência espécie de auto-sacrifício, enquanto não tivessem “curado" seus objetos
64 ACHAR—SB OU PERDER-SE NO NEGATIVO
NAO, DUAS vezes NÃO 65

internos primários.22 Tarefa que, de resto, parecia inesgotável, tão inten-


sos e imbricados eram o amor e o ódio por esses objetos. Quer sejamos não será porque atribui de uma vez por todas o lugar depgente, de ator, a
ou não adeptos das concepções kleinianas da autora, há nisso uma intuição uma imagem parental na origem... de tudo? A impotencra é sempre a
vigorosa. Harold Searles lhe deu, a sua maneira, uma formulação mais admissão de que há uma onipotência no outro, que a conserva parasr e
radical, ao reconhecer, dentre as forças mais poderosas que nos impelem, que deve, inclusive, preserva-la para sempre. Frente a essa ompotencra, a
uma “tendência essencialmente psicoterapêutica' '. Na doença do pacien- essa excitação permanente, a esse excesso de mae dentro de sr, só há uma
te, ele vê a expressão de uma tentativa inconsciente de cuidar do analista.23 rcspº sta: a rea çpensarmos
ao. . .
No que concerne ao problema que me ocupa aqui, eu proporia, Convém aqui no que, por muito tempo, for ndo pela
antes, que
o que constitui a mola de reação terapêutica negativa é uma paixão medicina de inspiração vitalista como privrlégro' da Vida: 'os seres Vivos
desvairada de mudar, de curar a mãe enlouquecida no interior de si sucumbiriam aos ataques externos, se não tivessem. em Si um pnncípro
mesmo. permanente de reação. E note—se de passagem a ambiguidade ligada, pelo
A análise de Fabienne colocou—se, de uma
ponta a outra, sob o signo menos em francês, ao entrelaçamento dos três termos: reação-terapeutica-ne-
da reação terapêutica negativa, isto é, sob o signo tríplice da gativa. Podemos ouvirªmsso, junto com o sentido usual de recusada ema, um
“reação”,
do “terapêutico" e do "não". Assim, houve o;risco de outro sentido, que imputaria à própria reação um efeito terapeutico: rdéãa de
que se impusesse
a nós a imagem do tonel das Danaides cuja própria banalidade uma reação salutar no organismo, conforme ele volta a se assenhorear e sr

reforça isto é, luta por se desfazer da dominação do outro — e se afirma em sua
nosso desânimo ou a da rocha de Sísifo, que representa a punição, o
— —

esforço e o retorno ao ponto zero. Já não tinha validade a imagem do individualidade.24 Ninguém soube mostrar mais vigorosamente do que o
trabalho de Penélope, que ao menos nos garantiria
que a metáfora freu- autor de Mars a que forma extrema pode conduzrressa exrgencia de um
diana do ofício de tecer ficasse, em principio, ativa. “não”.” Poderíamos fazer com que toda a trajetória percorrida por Fritz
Todas as vezes que se esboçava em Fabienne um desligamento da Zorn ficasse contida nestas duas proposições: “Duvido que eu tenha apren-
dominação irrestrita da imago materna, respondia nela uma necessidade dido com meus pais a palavra “não“ [:..] o simples fato de dizer sun eraurna
de sofrer e de fazer sofrer. Passar mal, ter a experiência do mal, denunciar necessidade" (p. 33); e ainda (p. 205): “Os tumores cancerosos—em sr nao
o mal eram, para Fabienne, uma condição vital, não de incomodam; o que incomoda são os próprios órgãos sadios, que _sao compri-
gozar o gozo era

midos pelos tumores cancerosos. Creio que a mesma corsa se aplica à doença
monopólio da mãe —, porém, mais simplesmente, de ser. Lembremo-nos
da definição dada por Sartre, em Huis clos, à maldade (muito precipita— da alma: aonde quer que doa, sou eu."26
damente assimilada pelos psicanalistas ao sadismo): "Ter necessidade do O “ “fazer não” ' precede o “dizer não“ — mas, por vezes, chega tarde
sofrimento dos outros para se sentir existir.” Não e nisso demais. E o “não" tem que preceder o “sim".
que está contido
o paradoxo do "mau objeto"? É que ele continua
sempre disponível, não
pode ser definitivamente perdido e, por isso, corre menos risco
que o A interpretação tinha em Fabienne, mais nítida .e corporalmente do qàre
“bom' ”objeto de arrastar o sujeito no movimento de sua perda. Indestru- nos outros, um efeito de disjunção, de corte. Por rsso é que, se seu Sãntl o
tível, o mau objeto garante ao sujeito sua própria permanência. pontual podia ser aceito, seu alcance logo tinha que ser drmmu _o gu
Pensando em Fabienne e em outros, não falarei aqui em identifica- anulado. A interpretação, por si só Simplesmente enquanto doaçao _e

ção: a palavra, com o que pressupõe de um mínimo de distância, de


folga sentido por um terceiro -, introduzia uma drstancra no excesso de ligaçao
entre dois sujeitos, seria fraca demais. Falo em possessão: possessão
por com a mãe, que ela precisava reduzir, assrmrlando a fala do analista :B11:21;
um corpo estranho interno que invade incessantemente, que violenta sem repetição da fala, proferida ou latente, da mae..Ela'barrava o que c_
trégua, e que exerce sua dominação de dentro, como se a mãe fizesse as em outro texto, mais do que “relação srmbrótrca ., supostamente rsen m
vezes de uma pulsão; daí, em contrapartida, o esforço enfurecido de de conflitos (embora a luta e mesmo a discussao sejam permanerâtes), um
"possuir“ esse corpo estranho, de controlã-lo, também incessantemente incesto entre aparelhos psíquicos que procuram apoderar-se um o (;_utro,
e sem trégua, colocando—o do lado de fora. Eu proporia a
seguinte hipó- possuir-se mutuamente: cópula temida-desejada - gozo e dor 1:11: asel-
tese: se a Bemãchtigungstrieb — a pulsão de dominação que visa a se nação. Assim, qualquer interpretação corria o nsco_de ser recebi como
apossar do objeto como de uma presa aparece como "não sexual”, a iminência de uma ruptura da vinculação à (â e.nao com a) mae, e com
o analista-objeto. Sucede perceber-se. qualquer ' progresso cªrão artrite-

decorrente da ordem vital, não será porque a pulsão sexual está


como que
confiscada pelo objeto interno prevalente? E, se o sujeito só cipação de uma separação, irremediável, de uma vez pgr t as. rn
pode reagir,
naufrágio. A análise termina'vel é, para alguns, o fim de tu o.
66 ACHAR—SE OU PERDER-SE
NÃo, nuas vans mto 67
NO NEGATIVO

Externamente, Fabienne mostrava-se de um “altruísmo" violência. (E, incontestavelmente, colocado diante da reaçãcãterafpeutsilclª
a toda
prova: mães solteiras (o pai real era mantido fora do negativa, o analista nela descobre a perversaozconi seu djsãolgéxual
enfermos, amigos em "breakdown" [colapso] (em circuito), bebês monotonia e seu ódio secreto, porém uma perversao des oca
depreSsão "reativa"
a algum rompimento), almas e para o vital ) Mais do que se baterem com a loucura de Bros, e 1 es op mm
corpos adoecidos... ela sozinha era um
socorro permanente para toda sorte de prescritos e pelo combate antecipadamente perdido com Tanatos. da
era um comitê de defesa das causas justas e sem —
vítimas, ela sozinha
se apoiar em nenhuma
Curar-s;
lidade, curar-se do excesso de mãe, não querer se curar, é tu o a m sªiª;
convicção política, religiosa ou ética. Não, sua coisa.
lugar: a realidade exigia ser tratada, só a realidadecrença estava em outro
Entretanto, uma estupenda esperança de mudança de " renasãç;
.—

tinha o direito de sê—lo,


tinha prioridade absoluta. Mas essa mento” , ou de nascimento partenogênico favorecido pelo ana ]“ista—m
realidade, Fabienne o sabia era —

justamente essa a contradição —, era incurável. Em .


fica ligada, sob e pelo negativo, ao tratamento, ao' mesmo tempuo guedgs
S,

sua miséria e seu horror


sem fim, ela sempre teria a última palavra. A realidade meios deste último sâo implacavelmente denunCiados': o rii
ditava a lei. A
necessidade ditava a lei. A Fabienne só restava
reagir imediatamente aos ' ' ' '
sessoes, sua duraçao givariáve l , a quietude do. lugar e a impass v
iâade de
seu encarte ado. No entanto, que l ntoleranCia a menor mu da nç ª , sal
acontecimentos. Ela precisava ser requisitada do _
, ) na
dico no serviço de emergência, exterior, como um mé-
acolhida seãa num pequeno atraso ou em qualquer elemento ntãvo introo-
.
para determinar a conduta a ser adotada.
Não havia nela nenhum messianismo, nenhum duzido rio campo visual! E, conjuntamente, que exigêncial eoãªf'ia'
fanatismo ativo do salva-
dor. O que poderíamos chamar seu “furor ' sua " técnica " , cuja influênCia
' '
analista modifique tam m e e s
'

.
terapêutico" às vezes
censuramos numa medicina que imagina poder suplantar que

. _ .
a morte ah'. se você fosse Winnicott... Um fato, em particular,l merece aãtêrgçzziaa
desencadeado pela dificuldade extrema, ou então

era ' " da ' '
pela impossibilidade de depreciaçao linguagem, ou seja, do veículo da ana ise,_ uma -
êxito. Todo o querer curar vinha reagir " enraivecida ' ' às '
de uma acusaç ao f ranca, at é o
- reagir, não responder a um çao' que pod e chegar taxas
fazer morrer.

a constataça_o comqueua da
_ _

ódio, e que, de qualquer modo, u l trapassa


Pois bem, essa mulher inteligente,
generosa, ativa ao contrário de
'
' '
madequaçao entre a linguage m . e a Vivencia.
. . .
Pºis .
bem, como afirme! , as
.

suas afirmações, eficaz em suas iniciativas, mostrou e,


.
palavras, mas em sua p rópria literalidade, em sua imo bilidade de tatua-
.

durante um bom tempo e, creio



em sua análise,
eu, apenas em sua análise —, um rosto ' '
gem, de marcas no c orpo , sao superinvesu'd as .co m uma intenSidade .
_

.
.
igual
_
totalmente diverso, obstinado,
amargo e desconfiado. A generosidade já
'
a essa recusa da linguagem, pelo q ue ela deixa pressen m de criaçao e
não tinha curso: Fabienne não deixava - . . .
nada em mim. Viera à deslocamento de sentido. É que as palavras dao continuidade,
análise para encontrar nela, segundo dizia,passar “o direito à fala“ (isso fazia contato a ortas fecnadas ' com a mãe. A linguagem. se mexe, e
mantgiãd:
indiretamefite ,
parte do clima da época, mas, para ela, efetivamente, pôr em movimento. Ela rompe a continuidade. Faz com que
eram palavras
verdadeiras). Uma demanda que parecia inteiramente
justificada por suas se perca a coisa de vista.
. .
inibições no trabalho, sua incapacidade de verbalizar A única mudança reconhecida como válida seria uma mudança
vezes intensas, reproduzida numa permeabilidade às emoções muitas efetuada na realidade. O curioso é que sucedçftomarmos a
tros ("sou uma esponja que absorve tudo, palavras dos ou-
sem filtro"). Só bem mais exi ' ' ao menos durante algum tempo ,_e nos izermos:_ com . 32:
' encia
assigm tâ,o
1111111

-
tarde é que compreendi que ela viera buscar -
na análise, ao mesmo - psicótica, tão impreVisivel, tao mcoerenteci (;_uttao abuilxaáâsg
tempo rejeita-lo, um outro direito, mais fundamental: para erse uidora ' ou com um meio p " '
recoce” tão e ei uoso,
o de fazer bem
'

a si mesma, a possibilidade de famafha sucessão de desgostos e catástrofes, .


ser, para si própria, uma mãe que que o)utra corsa fazer senao
cuidasse dela. Essa era uma condição, tentar reparar, colar pedaços nos buracos da trama .
para Fabienne, prévia a qualquer
acesso ao prazer de viver. Não nos precipitemos em dizer que, nesse caso, saimos dª algm“: álise
Eu proporia, num prolongamento das Primeiro porque toda interpretação, mesmo que nao seja essa sua:)
concepções de Joan Riviere,
que a reação terapêutica negativa nunca é tão manifesta
quanto nos dade pode assumir um efeito reparador. Depºis. porque um úmero
sujeitos em quem a categoria do therapeuin cuidar, cresdente de analistas, vindos dos mais diversos for
-
1
tratar, curar, três horizonteshçlsejlz:= g;:con
termos que conviria diferenciar é —
pregnante, tendo como corolário um
recalcamento maciço da sexualidade. No fundo, talvez
'
'
sua orientaçao teórica, procuram
'
'
' ' '
c ada vez mais (e, natura en , -

esses sujeitos tram) a etiologia


'
dos disturbios p síquicos na realida
. .
de d e um a Situação
peçam para cura—los da sexualidade, ineducável e incurável, de nos '
infantil ' sob a crescente ' * '
mfluencia da . ps1canálise
. . .
de crianças, tomada
sexualidade que é, para eles, como na uma niodelo . . -
de referência; por mais criticável que seja essa orientaçao,
_

perversão, carregada de inveja e como


68 Acm-se ou mutans! no naoxnvo NAo, DUAS vezes NÃO 69

quando não faz sua autocrítica, ha realmente nisso uma indicação: a de


ali singularmente inadequado: não há “auto" algum nesse apagamento
que o espaço psíquico em que nos movemos, o da mobilidade das do “eu", nenhuma história de vida quando não pode acontecer nada que
repre-
sentaçoes, requer, para se constituir e se estimular, uma espécie de base não seja consequência de uma programação, e uma “grafia“ necessaria-
de ancoragem numa realidade “suficientemente boa".27 Por
último pa: mente sem brilho. Essa vida e essa morte só podem ser objeto de uma
rece-me que não podemos escapar de atestar, de um modo ou de outro ao constatação.
pacrente a quem a realidade maltratou ferozmente, que reconhecemos a
violencia que lhe foi infligida. Qualquer intervenção de nossa parte que Sempre foram fascinantes as obras que colocam em cena o poder de
de mais ou .menos a entender, por exemplo: “você captação exercido por um sujeito desejante sobre outro. Basta pensarmos,
sente - você imagina para tomar um exemplo relativamente recente, na História de 0. E
=
voce prºjeta sua mãe assim", só faz repetir e, com isso, autenticar o avaliarmos o caminho percorrido, digamos, em duas décadas. É que, com
veredicto originário: você não está dizendo o
que acredita dizer, você e' o Mars, já não se trata de sedução, dessa ação sutil de distorção que impõe
que eu digo. Podemos conduzir nossos pacientes rumo ao outro sentido
recalcado ou desconhecido, de uma “vivência". Mas não uma cumplicidade, onde um empenha todo o seu talento em fazer do outro
podemos des: o ator de seu cenário, grande o sedutor faz crer ao seduzido que na verdade
qualificar seu ser. —

é ele, o seduzido, que está realizando seu desejo até então inconfessado.
Não creio estar desconhecendo, com isso, a função defensiva Não há nada, tampouco, que possa evocar as técnicas requintadas da
do
recurso à realidade a que aludi há pouco. Mas não nos tortura e da confissão, da violação dos corpos e dos pensamentos, que
esqueçamos
tampouco de seu simétrico: a "defesa pela fantasia" (Lagache) ou pelo fazem da vítima seu próprio algoz. Não, em Fritz Zorn não há nada disso.
fantasymg ' (Winnicott), que impede a atividade representativa de Os pais, que de fato é preciso incriminar para apontar um culpado, não
ga—
nhar corpo, Isto é, realidade. Concordo em
que não há nada que tenha querem nada. A “margem dourada" do lago de Zurique não quer nada,
ocorrido na realidade externa, nenhum trauma,
por mais “cumulativo" nem a “burguesia”, nem o “sistema”. Nenhuma doutrinação, nenhuma
que o suponhamos,” que justifique por si só a persistência de seus efeitos violência visível. A matança se efetua silenciosamente, pela própria
na atualidade. E reconheço que, inversamente, o sujeito morte. E daí já não e' mais apenas o “espirito assassinado", ou o “assas-
do mais íntimo fragmento do real pode se apoderar
para tecer sua trama fantasmática e nos sinato da alma" do presidente Schreber em vias de se tornar o herói de

prender nela,.ou formar seu casulo e nele se aprisionar. Mas o que tenho nossa época... -, ou o "assassinato psíquico" cada vez mais invocado
em vista aqur não é a defesa através da realidade,
pois o que está em pelos psicanalistas, como se, por sua vez, eles tomassem a si a construção
questao nos pacientes em quem estou pensando é fazer com de seus pacientes. É, no fim das contas, a morte no corpo, o corpo
que a reali-
dade—atue, tomá-la atuante no presente da situação. A realidade assassinado depois da alma morta, e isso porque alguém “alguém"
assume a —

funçao de insistência, geralmente atribuída ao id, quando anônimo, como a morte ou uma sociedade matou a criança. Para Zorn,
passa assim a —

ocupar inteiramente o campo da fantasia e da representação: é ela que não há dúvida: seu nascimento foi uma condenação à morte. Mas e nisso

repetitivamente, diz o insensato. O ego, então, passa a não ser mais do reside a força do livro, que, de outro modo, seria apenas um documento
que. uma reação a essa realidade, uma reação negativa a uma suposta psicopatológico ou sociológico o aparecimento do câncer é também o

positividade plena, imagem do Mal. O demoníaco fica do lado de fora aparecimento de um "eu”: finalmente, ele existe. Decerto o autor começa
potencia absoluta. A capacidade de devanear fica vedada a quem assimila por nos dizer, curiosamente, que "contraiu“ o câncer, a tal ponto lhe é
a realidade externa a um pesadelo. E
que entender do “destino das preciso crer e nos convencer de que todo mal vem de um mundo externo
pulsoes”, quando é a força do destino que assim parece reter em si toda perseguidor. Entretanto, quanto mais o livro avança (na medida em que
a força das pulsões? A projeção para o exterior efetua
aí, simultaneamen- se pode perceber um movimento em sua estagnação deliberada), mais o
te, uma espécie de inversão no oposto. O mundo está contra mim
, logo só
'-
corpo estranho interno, a princípio simples internalização do Mal, trans-
posso estar contra o mundo. »

forma-se naquilo que faz Zorn viver, que lhe dá, finalmente, o sentimento
de ter alguma coisa própria, alguma coisa que seja ele. Mais uma vez, cito
Mais uma vez, Mars. Sabemos quão rofundo foi o eco que teve em seus estas palavras: "Em todo lugar onde incomoda, sou eu."
leitores esse relato autobiográfico. quue nele vemos representado sem Não estaria nisso o impulso da reação terapêutica negativa? Apa-
enfase, com uma frieza patética, numa rigorosa monotonia, o domínio de
uma convrcção tomada como explicação: a condenação a morte da rentemente, com Mars, estamos no extremo oposto dos casos que evoquei
própria anteriormente. Nada de excesso de mãe ali, nada de trauma infligido,
possrbilidade de qualquer desejo. Por isso é que o termo
autobiografia (&
conflitos espalhafatosos, cenas; e no entanto, é um excesso que se denun-
70 Actwesa ou PERDER-SE NO NEGATIVO

NÃO, DUAS vezes NÃO 71


cla, reiterada e im lacav ' de nada. Afinal, é mais certo
por
asfãia (1022153621: âªsso
mºrte;-se energia e, no fim das contas, situaria a reação terapêutica negativa no
moluSigíªââgrl-ldã: discurso de Fritz Zorn - pois se trata de um discurso
campo do masoquismo? Digamos apenas que eles não querem perder,

exerce sobre seus ªgêntfníãínpãdªdeonrªmon ª
surge menor fªlha, entendendo perder, nesse caso, nos dois sentidos: não perder o objeto e
de um d , e se reproduz na lucid não ser perdedores. De fato, ficamos impressionados, como afirmei, com

. * . _
a dom1n_açao totalitária, policialesca,,que ele
ter schlªf??? i;:nêco, nós, tao
_

sua necessidade imperiosa de fazer com que o outro se modifique, ou


discurso como º(rjdmadque uma prontos a especificar este ou aquele melhor, de fazê-lo dobrar-se. E, na linha do horizonte, esse outro é sempre
do paranóico ficam olpor ldgica, por exemplo, a do obsessivo ou a mãe, mãe inflexível em seu "não", em seu: “Você nunca foi, nunca
a ! convencidos de que só podia ser assim, e não
de Dum mªnª". vii): será a causa de meu desejo. Você pôde ser o objeto de meu amor e de
dessa vez, da lógica? A resposta é que toda a minhas agressões, de minhas exigências e minhas rejeições, de meus
denúncia sistemáii dgaá
ommaçao nao nos deixa mais recursos do
àquele que se fez caá m
_
dela. A melhor prova do que cuidados ou minha negligência. Pode até ser que pertençamos um ao
dizer-nos Zorn, 6 rgr
s _posso dizer o que digo: fizeram-me
que afirmo, parece outro, e para sempre. Tenho poder sobre você e você tem poder sobre mim,
tamente o que sºuque tão comple- mas não há como eu file perder em você."
tam um só pensaníªêlfmªlíâºdã'íãfâíã⪠83 Pªlªvrª ”ªº “ªº Dªmª" Esse discurso, evidentemente, não é proferido em nenhum momen—
ar e outra maneir .
312% :mmqbli, 232138
.

223%? de rlrliiimó Reduziram-me a iss; gªiª: to, em qualquer de seus termos. Mas é ininterruptamente praticado,
mostrado, atestado. A reação terapêutica negativa seria, pois, dizer não,
,.ou a . st ria de uma possessão fria.
apossando-se dele, a esse não praticado da mãe, seria recusar sua “trai-
.
. .
âlêélaiiâgãeclgssrca do psicanalista olhe o papel que você assume
ção'ºª' e conservar a esperança de fazê-la dobrar-se. Por isso é que a

nessa mfamia, ou nessa perturbação esse convite
ao voltar—se pªra si uánessa nao é. oportuna: no si mesmo há -, análise parece funcionar, nesse caso, como um sistema fechado, e como
Perdemos o poder ,dj apenas o Outro que repetir um incesto materno impossível, que nunca aconteceu.
“Eu te
acreditmm(:sexormsta, que também acreditava na possessão:
Tampouco que se possafabrtcaro nâo-desejo, ou amo, eu também."
de destruir o dese _o esse desejo
chama autodestruição. Julgamos, enfim que a
negação que o . _]fque ése.
inicialmente uma rejeição, uma expulsão Há de ter ficado claro que não coloco todas as análises que "não funcio-
fora, e portanto int; para nam“ na categoria da reação terapêutica negativa. De fato, está claro que
sustentado pelo desejo de um prazer sem
limites. "O ego-, rªwêramenter original aspira a mtrojetar em si tudo o que é bom toda Organização neurótica só pode opor uma resistência de inércia diante
a rejeitar para folga d tudo o que_é mm. O mim, daquilo que pretende modificar-lhe o equilíbrio. Assim como Freud, não
o que é estranho ad
ego,.o que se acha d els:i
temos que invocar, para justificar todos os nossos fracassos e todas as
idênticºs., ,
Isso é Freud, e do mªisasãglíªgríizoepãraãàe, imªiªlmente,
., o o ' ' nossas decepções, uma reação terapêutica negativa qualquer. Todo mundo
' ,
é 3333113333 ama sua neurose, e muitas vezes só é amado por ela - por essa neurose
.
externãlgze lmtrqetado? Então, é Melanie Klein,
3%

desilusão do
que se compõe da recusa da insatisfação e que não admite a
introjeção pªgªrá, ágio—de. compromisso, talvez seja esta: que, nessa amor. Em todo caso, todos a preferem... ao resto. O que considerei aqui é
ruim , encontra-se em ação um desejo de sofrida
apropriar e de control ar o estrangeiro; se de outra ordem. Já não se trata da inércia, mas de uma força e
natureza lhe esca o snjeito torna seu aquilo que por exercida: o domínio do não.
como o desconhecldo (e depois se deixa devorar
ele). Destaquemã' por Como nação, a reação terapêutica negativa vem assinalar, em cada
passo a mais e afirmemos que é na fantasia
não elaborada e ind 0; um —
um de seus termos, o retorno, no campo teórico, daquilo que é excluído
lindamente mantida - da "cena primária” ue v
se condensar esse e ruim ou colocado entre parênteses pelo psicanalista: o agir, a urgência de curar;
. originário, esse desconhecido definitivo Clã à
quanto ao “trabalho do negativo“, que é inerente ao pensamento e
linguagem, que começa
e a partir do momento em que há uma repre—
sentação da "própria coisa“, vemo-lo ser substituído, como que para
ocupar todo o espaço, por um “não" elevado ao absoluto, ou, se prefe-
Dond ' rizmos, pela pulsão de morte em estado puro. Sem dúvida, toda a questão
“negativosi,?aª(rlífl, a lpergunta,
.
ª qne é que n㺠querem renunciar os da reação terapêutica negativa deveria ser retomada, mais nitidamente do
rea mente ªº sºfnmªªtº, que mobilizaria toda a sua deter o
que o fiz, a partir da Verneinung, para apreendemos o que pode
processo da negação: de que modo a aquisição do "símbolo" da negação,
72 ACHAR-SE OU PERDER-SE NO NEGATIVO NÃO. DUAS vezes NÃO 73

que permite "à atividade de pensamento um primeiro de inde- constitui para ele muito embora ele faça questão de protege-lo aquilo
pendência em relação às consequencias do recalque",32 grau
— —

pode se cristali- que poderá converter-se em seu espaço interior, parece-me que temos que
zar, por exemplo, como negativismo. '
-
reconhecer plenamente a legitimidade de sua reaçao negativa, ou seja,
Como acontecimento, a reação terapêutica ,
aceitar nossa carência, num "muito pouco" que é, de fato,. a umca
negativa suscita uma
apreciação que pode se modificar por completo. Quando ela resposta possível a um “demais da conta“. Quando conseguimos dar
um fenômeno que pontua a análise, e sobretudo a aparece como
interpretação, ela pode forma e limites a esse espaço interno, sem que ele seja uma Simples
testemunhar a mobilização do conflito, na atualidade do duplicação do externo, quando conseguimos construí-lo sem fazer nenhu—
análise. Por isso, mais conviria falar aqui em momento da
resposta negativa — do tipo ma intromissão,” longe de ver nele um deserto, descobrimo-lo ja percor:
do "Nunca pensei nisso" que forneceu a Freud
seu argumento do que
— rido, dilacerado de ponta a ponta por forças que seria preciso grafar aqui
em reação. A interpretação que acerta o alvo incomoda, diz si
a mesmo o em letras maiúsculas, como nas pinturas alegóricas medievais: Inveja,
analista que continua confiante na análise,
suporta a transferência nega—
tiva e não tem um medo excessivo da agressividade. Orgulho, Ódio, Voracidade, Medo, _Vingança, Tristeza, etc. Oii, em nossa
alegoria moderna: Reparação, Onipotencia, Falo, Cena i'rimária, et<í:.
Mas, quando a reação terapêutica negativa define eletivamente Uma porção de palavras—coisas, uma porçao de palavras.—paixoes, inflex
o —

comportamento psíquica do paciente. e foi essa forma que reteve veis. Sim, longe de ser um deserto, trata-se de um territorio ocupado desde
nossa

atenção —, tr'ocamos de registro: nossas diferenciações tópicas já não têm a noite dos tempos. A reação terapêutica negativa surge entao como
serventia, nossas interpretações parecem inúteis (“é
eles que interpretamos", assinala Freud), e para nós, e não para resistência, mas, desta vez, no sentido vital e quase heróico do termo,
nossa função de analistas fica diante daquele que afirma querer apenas o nosso bem, quando tudo o que
reduzida à de um objeto utilizado, geralmente
como saco de pancadas. Em pedimos é para respirar o ar puro.
suma, vivemos a cada instante a experiência dos limites da análise de - .
e Só que, eis a questão: ex1stem maes e ex1stem analistas -' que
_

seu poder, e portanto, do nosso. Mas, nessa experiência, —.

fazemos a não ser retomar, à nossa maneira, a que outra coisa precisam acreditar ou que precisam se acreditarxrealiiiente zrreszstiveis.
identificação com o Como, então, não se resistin'a impetuosamente a analise, quetcomo se
agressor pela qual nosso paciente se construiu (e destruiu)? Sem
perceber, fazemos nossa a própria meta dele de poder e pode pressentir desde o momento em que ela se inicia,.só_ da a ilusao-dg
controle, sua reencontro do objeto, de sua posse atemporal, para instituir a separaçao.
convicção de que fizeram dele o que ele é, sua exigência de
venha ao caso o “mudar o imutável“, o "curar que só A análise não é nem “reativa“ — imagem invertida da pulsao nem

o incurável", não "reacionária” terror enfurecido diante do que possa surgir-de novo a

passando o resto de palavras perdidas no ar. Para
inscrever as palavras do Outro em sua quem só pôde ,, partir do mais antigo. Ela não grita “não" na repulsa, na reªeiçao, na fuga
carne, sem nunca lograr se ou na exclusão. Ela diz o não. Não 0 representa, não_o exprime, mas OAdlZ,
inventar, sempre há de parecer que nós nos
recompensamos com pelo menos quando consegue dar nomes ao inominável. E,_ao dize-lo,
palavras. E, para ele, toda moeda é falsa. Assim, é preciso
de outra maneira. Sofrendo, que paguemos permite a decisão, que é sempre afirmação, sempre separação. Romper
por nossa vez, na carne. com o analista e preserva-lo, e não é de modo algum a mesma ecisa que
Por outro lado, no plano teórico, tendemos então
modelo biológi o 'e a desconhecer que ele não
a recair num separar-se dele.
passa de uma metáfora que
o paciente nos impõe: metáfora de um eu—corpo exclusivamente
fadado a Tentativa de definição e desarticulação da reação terapêutica negativa,
se defender da intrusão de um exterior ameaçador, esfalfando-se enunciei como subtítulo. Ao término desta reflexão,.diria que, se
em tapar
as brechas abertas pela invasão das excitações externas e funcionando
quisermos ter uma chance de desarticular, na teoria e napránca, a
apenas por reação. Ora, ao ser assim submetidos ao domínio de tal reação terapêutica negativa, mais vale fracassarmos em defini-la. Por-
representação de si, que se afirma como recusa de qualquer análise
possível, proibimo-nos, ao mesmo tempo, qualquer acesso ao fantasmáti- que, nesse caso, acreditando tê—la circunscrito, ou bem nos protegemos
dela, querendo afirmar nossa própria lei, ou bem a instalamos,_de1xan-
co. Pois é com um único e mesmo movimento do o terreno ocupado por dois desejos Similares, porem dirigidos em
que ( l) o inconsciente se
reduz ao ego ou a seu correlato, a realidade
externa; (2) o analítico se sentidos opostos em outras palavras, dois “nãos travando um!

reduz ao biológico ou ao social; e (3) o texto se reduz à combate entre si. Ora, não nos esqueçamos de que os "maiores bata-
capa.
Entretanto, se quisermos preservar alguma
esperança de atravessar lhões" nunca estarão no campo da analise.
com nosso paciente a terra árida, o deserto ressequido e estéril
que
Essx TRANSFERENCIA CHAMADA NEGATIVA 75

rada, e que reduz prontamente o pensamento ao bom senso: não é a mesma


coisa, de maneira alguma, ser querido ou atacado, acolher a queixa ou ser,
a cada momento, seu destinatário!
É possível nos atermos a isso? Proponhamos, antes, o seguinte: o
que estes ou aqueles (não me excluo do lote) chamamos, por comodismo
Essa transferência chamada negativa ou até por preguiça mental, “transferência negativa", não é um conceito
analítico, ou seja, não é um instrumento mental que permita apreender o
que não é visível, designar o que, de outra maneira, permaneceria ignora-
do ou desconhecido. Poderemos dizer, pelo menos, que isso descreve uma
Notas posteriores a um ' 'bom ' ' realidade? Invocar, por exemplo, a compulsão (ou coerção) à repetição,
congresso
certamente é algo que não explica nada, mas designa, descreve uma
sequência que ninguém identificam antes de Freud. lá ao qualificar uma
transferência de negativa, quando ela é marcada por uma hostilidade
franca ou dissimulada, estamos na psicologia do manifesto, e numa
psicologia bem pobre, que toda a literatura romanesca renegaria. Não
Ao atribuir um nome a certos fenômenos, sobretudo falamos como psicanalistas.
aos que contrariam Pois bem, podemos mostrar-nos mais prudentes e distribuir as cartas
nossas expectativas, acreditamos esclarece-los
e, desse modo, começa— da seguinte maneira: aspectos positivos e aspectos negativos da transfe-
mos a nos assenhorear deles. A denominação transforma-se
rapidamente rência. Mas isso não nos adianta nada. Naturalmente, como qualquer
numa senha, que tranqíiiliza e dispensa q ua ] q uer interro
'
3 a çª o. 0 corre que

a palavra esmaga o sentido. pessoa, preferimos ser apreciados a ser desprezados, ver nossas palavras
Foi nisso que pensei ao partici ar de uma reuniâ reconhecidas a vê-las rejeitadas ou anuladas, ficamos reconfortados quan-
.
ps1canalistas em torno da questão da ' gransferência negaligalªç. 33355)? do os pacientes gostam de nós (não demais, contudo), etc. Só que a análise
não é isso, sem contar que, nela, o fogo continua a arder sob as cinzas, e
do tema me chamara a atenção: Interpretação e compreensão da transfe—
queima tão mais intensamente quanto mais longo tenha sido o tempo em
rencra negativa. Não supunha ele que a coisa estava identificada conhe—
crda, e que apenas as maneiras de enfrenta-la podiam variar? E verdade que ardeu em silêncio.
é que a Certamente, Freud foi o primeiro a falar em transferência negativa.
as diferentes exposições efetuadas mostraram que conforme os Mas, não nos esqueçamos: Freud teria dispensado de bom grado a trans—
referenciais teóricos de cada um, não se
respondia de maneira idêntica ao ferência! Por muito tempo, viu nela um obstáculo, e até mais do que um
que de comum acordo era chamado de transferência negativa. Mas
ao que se pretendia abarcar com isso, permaneci na perplexidade quanto obstáculo: “nossa cruz", escreveu a um amigo (um pastor, é verdade).
Eu Enquanto se tratava de uma transferência moderada, a cruz era suportável.
ouvn'a' repennvamente palavras como sentimentos hostis do paciente
-

Com o amor transferencial - o amor, e não as "moções ternas ou sexuais” '


agressmdade e oposição; vez ou outra, palavras mais fortes como ciúme,
—, as coisas se deterioravam.2
in_veja, rancor e destruição. E todos esses sentimentos, todas
essas pai: A reserva de Freud e compreensível. Refere-se, convém notarmos,
xoes, todos esses movimentos tão diferentes entre si eram
apresentados tanto ao amor transferencial quanto ao ódio transferencial, ou seja, a qualquer
num mesmo pacote, classificados sob uma única rubrica. Poderia um
forma de paixão que resista, por natureza, a análise, sendo esta um movimento
,

psrcanalista, perguntava eu a mim mesmo, compor hoje em dia um


Tratado das paixões da alma"? Muitas vezes, pelas virtudes da palavra e um movimento sem objeto, ao passo que a paixão, em seus tormentos, seus
ambivalencra, eu já não sabia muito bem se, nos violentos altos e baixos, imobiliza-se num objeto. Sob a máscara do amor, mesmo
casos clínicos quando a idealização não é patente, o ódio está sempre em ação. Inversamen-
que nos eram relatados, o que se exprimia era a fúria odiosa ou o
amor te, sob o ódio, nas censuras reiteradas, na acusação insistente, através dos
desvalrado. Caberia tomar a primeira por "negativa" e todas as manifes—
taçoes de lªres por “positivas"? Pois eles, meus colegas, pareciam agar- ataques contundentes, o amor tem sempre'uma palavra a dizer. Não é tanto
rar—_se â distinção, certamente presente em Freud,
entre transferência que haja oscilação ou alternância, mas coexistência.
posmva e transferência negativa. Urna distinção, aliás, bem Caberá fundamentar essa ambivalência intrínSeca, esse conflito de
pouco elabo-
desejos que tanto mais nos possuem quanto mais visam, ambos, à

74
76 ACHAKSE OU PERDER-SE NO
NEGATIVO
ESSA TRANSFERENCIA CHAMADA NWATIVA 77

.ossessâ _ - .
inerente: médiª")“ dçªlldªdº Pªl—“ªlºnª" Caberá reduzir o anta on“ mos, nesse caso, que o vínculo transferencial tão maciço que
é proíbe
bfadolílgo
em surdina à opgssipflxges, quer elas se manifestem em altos qualquer ligação e desligamento. A transferência para o objeto passa
a
orientadas Eiara o “ ça? -e I.,—"ndº 10.8 ºmº pªlªõºs dª Vidª: sulJºStªmentZ:l constituir um obstáculo às transferências das representações. Há transfe-
de destruir tudo? ªgitª; :
a P ressad os em assemelhar
,
, 85218068 de morte, supostamente
'
ce-me que os PSlcanalistas
-
-
desejosas
'
rências, qualificadas de positivas, que negam a análise, ou que a tornam
sem fim e sem começo: sobretudo, não acontece
nada! São essas as que
amor e Vida, ódio e morte. Esquecesrão ªftas?(fut e
-
.
e mais legitimamente poderíamos considerar negativas...
Desse congresso restou-me uma palavra. Foi a de uma mulher cujos
de progressos
fragmentos de análise nos foram relatados? Eis que, depois
haviam satisfeito seu analista, tudo voltou a se degringolar, lá estava
que
ela a invocar seu sofrimento. Lembro—me desse apelo, dessa confissão:
que o ódio a ' ' “Onde está meu sofrimento? Gostaria de vê-lo voltar, passei a procurar
era dos mai ªpegª: 328. 38313333 que o
vínculo entre o ódio e o objeto deveriamos meditar, e que
por ele.” Isso é realmente algo sobre o qual
amor: “Será
e amor é tão incerto uanto o ' seria muito leviano colocar na categoria do masoquismo (' “isso goza onde
o(a) amo? amda? será realmeilite (13352?
ªge gâmente isso sofre"), bem como seria imprudente situar apenas no registro
trans—
que amo?.
_
a ela
10, ao contrário,_é imperioso, humilha-lo, reduzi-lo à impotência,
e a incerteza , conhec e seu alvo; desconhece a dúvida ferencial (desestimular o analista,
acredita-se bem fundado ou confundi—lo, etc.); seria insuficiente até mesmo compreende-lo em termos
quer sê [ o a ,—

fantasmáticos (destruir o "bom” e transforma-lo em “'mau'“), como nos


convidam a fazer os kleinianos. Creio que isso toca no que há de mais
fundamental na experiência do negativo, ali onde o sujeito só se sente
existir numa relação secreta, apaixonada, com o objeto primário amado-
odiado, amado e odiado de maneira igualmente desmedida. Esse objeto,
dar-lhe um
A ue sc ' esse lugar de atração e repulsa inextricavelmente unidas, para
do ódio que faz com que, ao mesmo fato ele certamente tem
tempº,
cqc
vise Zigg-Éris: opêradoxo nome, nós o chamamos "mãe arcaica", e é que
do
se encontra nº princí iº d e
jeto e queira sua permanência? É
que o ódio a ver com a mãe, porém menos com sua figura real ou imaginária que
sua constituição. Releiamos Die Verneinun ' desconhecido intimo, não é seu desejo,
º objeto só “me(tpmorg_en; mov1mento de expulsão, de pro—jeção
com seu desconhecido, seu que
fora de qualquer
literal do termo no senticfo mas aquilo que a ocupa por dentro e que fica eternamente
are, lançar fora); colocado como um ,"não-eu'ª alcance; e o inacessível, o inconquistãvel, mais do que o perdido, ao qual
ele permite simultajng , de si.
“aumente, 'o advento de um “eu"! Portanto no não há como renunciar. Seria o mesmo que aceitar ser despojado
começo é a Le -
sou isso"), e depois a permanência ,
abandonar sua dor não seja
Que (, óãaçaoi
nao Como compreender que, para alguns,
ele é tão mais Viipºsgjuaaãgvo na analise não deve surpreender-nos. É viver, mas morrer?
que
de que se depende A mais o objeto a que é dirigido e também
aquele Saberemos ainda pensar o mal? Fazer uma idéia do que vem a ser a
experimiantamos pºi. umexperiencta comqueira mostra isso: o ódio que possessão?
a
juntos. A indiferença mivªªtãg': necessrdade que temos dele caminham
do que de medo de ter ºdíjmmenos um smal de incapacidade de amar
que " ,

Não é o fat '


experiências dolorªsâes [dªssfãcísscoenctêlsermpeú'mm reªluªlílªrem SUªS
“ , a, raiva e viu an a
Pªrece “ne . . .
_

poderia ser ufna ªnalisª (1113:


.

evitasse o sªgrnqeliâ dàfícú imaginar o que


presente, de tais experiências. Tampouco são
os atªques diretos ou,m gi retos,
tendemos contra o analista ataques
ºuua, atom ar ao pé da letra que realmente

que vez por
São ºs ataques , na ma torra .- nos põem,à prova
das vezes .

ª atividade de pensamento, tanto do s11enciosos, contra a análise co tr


paciente quanto do analistaf Dilfiaª
Livrar-se da crença
.,,

ª? O indiviso. — O sonho partilhado. —


A mãe de quem se pode prescindir. -
As crianças no corredor. —
Não acreditar na psicanálise.

79
Confiar... sem acreditar...

Seja ela proclamada ou inconfessa, poderosamente coletiva ou mantida em


particular, secreta, para ser mais bem preservada, a crença e onipresente em
todos os lugares, em todas as épocas: e difícil imaginar uma cultura de
descrença absoluta, só os mortos não crêem em nada. Fato habitualmente
denunciado nos otimos — ' 'Como é que eles puderam, como podem crer numa
coisa dessas?” -, e mais raramente em si mesmo, e," nesse caso, sempre por
denegação e deslocamento para outrem — ' “Como pude? Mas é que me
enganaram, eu já não era eu mesmo, ou ainda não estava em mim” —, porém
Ml“ l fato incessantemente ressurgente: uma crença só é rejeitada para ceder lugar
a outra crença, consente em trocar de objeto com mais facilidade do que de
forma ou de técnica; por isso é que pode virar do positivo ao negativo, do
adorado ao abominado, do Paraíso ao Inferno, sem no entanto modificar nem
sua estrutura nem suas modalidades de funcionamento, e, acima de tudo, sem
renunciar a sua finalidade, que é firmar o sujeito numa convicção, preenchê-
lo. Em crer e persuadir há sempre quem se interesse. ' “Nessa não me apanham
mais !' ', exclama—se no exato momento em que se é 'apanhado' ' , talvez como

nunca: é Alceste em seu desvario de desconhecimento. Quanto ao argumen—


tador racional, que não deixa aos crentes outra opção a não ser a credulidade
de Orgon ou a impostura de Tartufo, há que lhe perguntar de que crença ele
próprio é escravo. Querer expulsar a crença a qualquer preço é confundir as
exigências do espírito científico com o culto de uma racionalidade militante,
mortal, em última instância, para o que não é ela. O Terror sempre se exerce
em nome da Razão.
É possível, pois, nos curarmos de crer? E será preciso nos curarmos
disso, se crer e também, como o delírio, uma “tentativa de cura' ' da morte
é!

em suas múltiplas imagens?

Curar os homens da (falsa) crença, no entanto, acha—se no princípio do


projeto filosófico. Somente o amor à sabedoria poderia libertar da paixão
'

de crer, purgar a alma de seus miasmas: uma catarse sempre por reefetuar,
como se houvesse um pendor natural do espírito para conferir crença
àquilo que a ele se oferece. Começaríamos por nos deixar enganar, por
nos deixar seduzir por aquilo que tanto mais tem jeito de verdade quanto

81
82
LIVRAR-SE DA CRENÇA

CONFIAR... SEM ACREDITAR... 83


mai . . , . , .
em ªªirªietzelcparec?
. omo
_Na
ãSicanallse, nem mais
nem menos do que
01 se utora no as sa d '
com . . ,
_
pteoria
0, a
da sedu ão! encontrando sua razão de ser e um prazer perverso em me iludir. É também
hoje
mà: euªderosa, filho. dia, em a da mae onipotente! O pai seduz a fisiha
&
o Impossivel de acreditar, logo verdadeiro , o caso da histórica, que pode dizer de si mesma, qual um espectador no
Ig— ématar . teatro: “Foi bem representado, mas não acreditei nisso nem por um
ao '
espontaneamãrtf, 5353131310 0 ensma a filosofia, que prim '
eiro se creia segundo." Ou o do borderline, que, colocado em sua fronteira, não pode
a esão imediata , no que se rcebe ,
se fiar nem nas mensagens que recebe de dentrô nem nas que lhe vêm de
,
d
_

numa - posteriori): no
egª; t(<)1uãªsorrfllente sucessao de tempos ,templdlseãã

os fora.
“ludibríadosri Zaiclgáigaigerificação, da crítica ao testemunho dos sentidos Já o deprimido nos leva a dar um passo a mais (qual seria a imagem
, açao “enganadora” , do ar gumento ª' falac1oso”
' filosófica da depressão? Certamente não o niilismo, onde entram a arro-
e, ue . , .
mstalem aduvrda , . —

mªmª e .
sua pratica racronal. Uma ontogênese da cren gância e o desafio). Admitamos: na atualidade do cara a cara com o
a, com mu1to mais facilidade, a ça
“em precedência da incerteza ansiosa' deprimido, diante de sua queixa amiúde tão apagada quanto sua existên-
pro
3511536131) quem confiar?” que determina todo o
preço da apropria uãlg cia, é difícil nos defendemos do sentimento 'para não dizer da certeza

dúvgdª pªgªtãzzieêoquâiãfiazel”. Edo Ípercebido, então, longe de suscitªr - de que, em seu desmoªonamento, ele também está na verdade. Não diz
, es azem e mitivo'. “E u so' acreditaria a
V: , e
_ _

basta. Deus .
' '
ven a verdade, mas está na verdade. Aparentemente, com o estado ou o
emste, eu o encontrei. Esse “visto", que então adãSire
.
[São
osepesoenc e momento depressivo, a questão da verdade é efetivamente colocada sem
umzàrevelaçao, é tao mais triunfante sobre a incerteza quanto mais disfarces, num cara a cara insuportável, numa lucidez nua/do horrendo
?

o inacreditavel.l O valor apologético


vertid 32312111 o da experiência do con- i como também a conhece o insone. Se fugimos do deprimido, não é porque,
apreciado em todos os campos, muito além do
1

é (mm coi sa 0 que diz Freud religioso Não ? como o esquizofrênico, ele esteja a milhares de léguas de nós, num outro
. aos filósofos que, ante a hipótese de
um pemar mundo, mas porque estaria perto demais da verdade do nosso. No curso
de uma análise, o encontro com a depressão é sempre um momento forte,
i
% sem dúvida necessário. E dizemos, sobre um número crescente de orga-
nizações neuróticas, que elas são defesas contra a depressão - um punhado
de soluções engenhosas para ' “simular' ' . O deprimido j a não sabe simular,
ou pelo menos é nisso que ele nos leva... a crer.
E nos leva a crer recorrendo, em nós, à confusão entre o real e o
ciênci verdadeiro. Seu abatimento testemunha um rebaixamento do verdadeiro
ciênciª, gªtª? oscolocariamos
cientistas podem

na posrçao
fazer
definitiva de crentes. Em
os nâo—cientistas
nome da
ao real. O que o ser do deprimido afirma seu ser, mais do que seus ditos
ónªmº a“,

cºisa . ' exibida, ela visa a engolir qualquer


ctentlfrctdade
impor silêncio — é o efeito produzido em Hegel pelas montanhas: É assim. Vistos de seu
" abismo, os gestos do cotidiano lhe são como montanhas, porque “são
Dos s assim”. Sua queixa, dizem, é monótona, pobre, repetitiva, e não poderia
políticquclãttrados da crença, sobre os quais fala Claude Roy a clínica
deixar de sê-lo. É assim, não há nada a dizer a respeito, nada a fazer. Já
analítica nosempâranea nostomeceu amostras assustadorasz clínica
com os distúrbios da que tenho de morrer - realidade objetivamente inelutável —, devo morrer
sofridos pelºsc;)eqírionttírtaáriaismfacilmente
es crença = é preciso que eu morra. A realidade produz a lei.
os descren ç & . ª É O casº,
, .
duv1da . .
mststente do obsessivo que por exemplº, dª
Essa equivalência absoluta entre o real e o verdadeiro, tivemos que
rios , i nstala se na '
suspensao indefinida

' ' ' do juízo e da açãº"
vertente
vivê—la, efetivamente, num ou noutro momento, no insustentável de uma
perda real ou imaginária. Se o chão materno se furta sob nossos pés, vem
a queda, o desabamento. A depressão é a recusa do luto, a vontade muda
de assimilar a ausência a perda, a afirmação de que o gozo exclusivo do
objeto total, por ser sempre recusado, continua a ser o único que é
legítimo. Se já não vejo aquele rosto, aquele sorriso, aqueles braços que
*
Personagem da comédia italia na
me carregaram que é que resta? “Minha mãe morreu", exclamou um

velhacarias de sumiu]. (NJ,)


''
apresentado por Mohere em Les fourseríes de Scapin [As dia alguém que era filósofo. "Não a verei mais. "4
No abismo depressivo, não se vê mais. A vida psíquica tende a se
reduzir ao que Freud chamava de sistema Percepção—Consciência, que tem
“ LNRAR-SE DA CRENÇA
Conama... sm ACREDITAR... 85

dificuldade de dar conta da percepção efetiva, pois esta fica redu-


rzriiãiâta
objeto uma clivagem irredutível ou uma fusão ilimitada, mas sim intervalo
constataçao esta mesa é uma mesa —, e a consciência, a um e envolvimento recíproco. Não só convém reconhecer, como indica
André
m ruma

.
inªisin erãi consliâdero. uma mesa que é uma mesa. Tautologia absoluta é
Green, um "sujeito da crença”, como o crer que faz o sujeito.6 O
ável. assun, é só isso, que é demais ou muito pouco para mim, "creio" não se diz. É ante-predicativo. Ao enunciar "aquilo em que
]o d emais, perto demais, presente demais em sua ausência. Ou
esitiige
a meu alcance, e nesse caso posso viver através dele,
o objeto creio”, já instauro a dúvida, ou então me instalo na impostura.
sempre
ºu egª
mirar,
ido para sempre, e não me resta nada senão morrer nele. 0
de . 'ger Erra—se, a meu ver, em afirmar' que o ato de crer, em sua origem, está
nurpiintllnelsaãie m;?tgatgomo guaãdião de seu próprio cemitério. Pretende, relacionado com o desejo de verdade. Sua função primária é metaforizar
co a 1 rio, guar ar sua ilusão p erdida . Nã O te m
arrumar as sobras, esse aí.
. ª ªrte de o real, a fim de que ele não seja o verdadeiro. O que se pode “censurar"
diz: ' há". A passagem (inanalisável?) do naquele que não crê em nada não é sua falta de entusiasmo, de revolta ou
éassigm poeta“; éApollinaire —
de fé, mas é o identificar o real com a morte, mortificá—lo, forma última
para o 0 Sinal de que se saiu do círculo fechado da depressão
de .
realizou de identificação com o agressor. Basta lembrarmos os “muçulmanos”
tauâllle se

por que trabalho imperceptível? a mudança da

descritos por Bruno Bettelheim no campo de concentração.
Volta—se a respirar, existe
paira a metáfgra. ar, troca-se, o fora
e 0 (1:53) nao sao o'is mundos separados, hostis, ' 'irredutivelmente
' Quando essa confiança tropeça, quando o aparelho psíquico de um
indivíduo ou de um grupo renuncia, abatido, a realizar sua tarefa de
_]

clivados,
mortaiÉ qlªiela tautologia é impossível de viver, e algumas evidências são representação e pensamento, ele corre o risco de se converter em aparelho
de crença, num sistema que vem obturar, quase que de qualquer maneira,
“maiªs; Lªmenttãpgra ele, É provável que don Juan esteja mentindo ao a falha, onde quer que ela se situe: na elaboração do conflito, no funcio-
acre
1
que " ois e dois são quatro“. A prmc1 ' ' '
10 ele cre'
_ .
Ema namento mental ou do lado do ideal. O curandeiro é realmente a imagem
3112; .as x(iliiêlheres sao amáveis. Depors, sabe-se ameaçado por
.
“arit- mais comum daquele que se oferece para que creiam nele. O profeta, o
rca i 'erentenrente severa". Mille e tre = zero. Tensão
ansiosa q ue o condutor do povo, como antigamente o rei, tem que ser um taumaturgo.
faz preferir a corrida a imobilidade da largada. é?

estado decisiva, essa que faz passar da tau tologia Todo aparelho de crença e uma promessa de saúde.
à metáfolrlªª. 311312338dã epressão —
quando não por seu inverso com le-
.
triunfo maníaco ao descobrir O traço mais evidente do aparelho de crença é que ele vem substituir o
ããitar, ouma
.

ou encontrar 0 “há” quepfaz
coisa também seja outra coisa. O modelo da percepção deve trabalho do pensamento. O pensar questiona, dá a si mesmo respostas
bque
S r
_e uscado, dizia mais ou menos Merleau-Ponty, no sonho ou na estética
a limitadas, provisórias. É, por natureza, experimental, exploratório, curio-
que sao capacrdades infimtas de transformação —, e não na informática , so. Conclama a contradição, reflete-se, e' polêmico consigo mesmo.
laboratório. Já a crença - inabalável, infalível, indissuadível, mas saben—
%

que e tratamento de dados.


sonho nos ensina", do—se totalmente vulnerável — não se questiona. Porque precisa a qualquer
alma
&? escreve Novalis, "[...] a aptidão de nossa nâo-ser de pensamento. Facilmente inquisidora
ein qualquer objeto, para se transformar instantaneamen— preço perseverar em seu
[e nelª , aêntrar Todo o visível adere ao invisível, todo o audível diante dos outros, pretende colocar-se, por sua vez, fora de qualquer
inaudí. ] t o o sensível
olclllals. ao influência. O aparelho de crença é uma resposta (para tudo), tranquila ou
dve , ao insensível. Sem dúvida, tudo o que pode ser
pensa o adere da mesma forma ao que não pode ser pensado ”5 violenta, que antecipa todas as questões. “A pergunta não tem que ser
_Só então aquilo que “não nos dizia nada“ ' - como enuncia formulada”, eis a regra de seu funcionamento. Ela, que se constrói e se
propriedade a linguagem comum volta a “dizer” solicita nosso d
com tanta sustenta sobre o desmentido da realidade (a Verleugnung freudiana), não
pode receber desmentidos. É—lhe preciso obedecer à lei do tudo ou nada,

de iniciativa, de imaginar, de falar, de construir real. As


o coisas findªr
nos dirigimos a elas, dão sinal de fala e de vida. É esse o que a faz produzir em massa a alucinação negativa: cegar-se para o que
crer rirªordi
(;
uma N(;_onfianriça. Confiança em que, em quemem nadia salta aos olhos.
ª:;ãgrzãu⪠ma. ao te o nenhuma necessida É compreensível que o saber tenha querido distinguir-se dela, pro-
teger-se, até expulsa-la definitivamente para fora de suas fronteiras.
O
dessa “confiança básica, de me convencer de que greihlfãrãiâztªdeseãªro
.

história tem um sentido, ou de que existe uma ,ordelrln dª saber se compraz em admitir zonas de ignorância (ainda não sabemos): a
garantia da estimula conquistas. Mas ele se
mundo. A unica certeza necessária é a de existência de uma terra incognitq suas
que não há entre o sujeito e ::
recusa a transformar, por um golpe de força, o desconhecido em conheci—
86 87
[Nm-se DA
cama, CONFIAR... SEM ACREDITAR...

dº ' º Provável e m certeiro o des ' Não há seita


ªlªdº em obtido. contenta em reproduzir a revelação: ela tem seus doutores.

.
oarbn ' em seu : Pºd? ªté dººm". mªlªir
. se
-
Não há partido
_

nªrárlº Prºººdlmento: que não exija referência a seu grande ou pequeno - livro.
o axioma ref º

Ção , ºrçª rlgor da demonstra- “ciência“, seja ela


'zll'oãatomª mªls dócil. que não aflance suas palavras
de ordem com alguma
dicoto -
º a nossa [radi 5º f]! osólica mau
9“
.
ura - , política, social ou histórica. Gostamos de acreditar
sob palavra, quando
o sªbºr e a crença.7 Onde ngm sedâfgrfmmªmº ªpóia—se na perdemos nossa confiança, mas com a ressalva de que essa palavra seja
abdicªlªrgâue
aqui tºm adotªrªmconc tenli que
. a a sabedona de Alain' _ proferida em nome da verdade.
é
na afirmação vigilante e insistente
usâo Mesmo enquanto a dualidade radical entre o saber e a crença
vão uma resposta
»w-umWe-WMMM

m quª nunca s incessantemente invalidada e enquanto buscamos em


preciso exa ' crer, e que é e ciência ou crença? —, recorremos a
ainda nãg cªve marxismo
.
aliiigªf A incredulidade que seja decisiva o—

capazx» E ͪmpre. ºstrou do que e recaídas:


a. agradável acreditar em ªlguém. dualidade do “Você sabe ou acredita?" com suas sucessivas
“Você sabe ou acredita saber?”,“Você acredita ou quer acreditar?"
3321125; lzItlcredlita também fica feliz por se
ne e, e por crer em si mesmo "
. Ou então : “Q uase só lado da
vejo O saber sempre se atribuiu limites. Havia entre os gregos, ao
está ªcreditar no que é verda- é acepção de nossa palavra crença),
- ereconhecer a. e1ro."ª Há que admira r episteme, lugar para a doxa (que uma
à qual se pode inclusive ligar a palavra verdadeira (opinião
verdadeira);
d e poder e de
, que o ue lr .
crença descende em lilnha gifest: ÉLSÍÍZHSOSZSOS apªrelhºs contrário; não haveria vida política. Havia necessidade da pistis
confessada nesse .. Só . e caso
Vºlº crentes Pºr toda parte“? E] está, a errota (outra acepção de crença: dar confiança e crédito), sem
a qual simples—
.

º realmente E havia
.

mente nenhuma vida social, nenhuma transação seria possivel. Admitir


também uma admiração, mais oculta, pela metis polimorfa.” que
nada altera
politica mente falando, ºpor-lhes O
' ' existe um imenso campo do “incerto" e do “arriscado” em
, (lue SÓ conseguiu, reconhecer o poder das
ra dica l—Socialísmo a confiança do saber em si mesmo; nem tampouco
Já não e stamos tao
- se DIOS de ' ilusões, tenham elas futuro ou não... A ilusão, na verdade, pelo menos
a crençª ª. arte a _g Que a linha . .
drvrs ' ' e
oria sªber e falsa como lugar de acolhida
definida aparência,
fªlªs ººmº ideªis, seja tão fíâfãe traçar.
. .
enquanto continua como
Vejam a ,hisfória dassiçflmçºes
iencras: nao basta dizer do imaginário, não ameaça o saber em sua própria constituição.
que ela mostra um a sucessão do
_
Mas a situação parece mudar radicalmente - e inaugurar mais
“saber” e “crença”
que uma crise: efetuar uma inversão - quando
deixam de ser colocados numa relação de exclusão mútua; quando, por
C de pretensões cien-
.
exemplo, as disciplinas científicas, não cientificas ou
.
c:;(gtãrtas que desrgnaremos apenas se e

ecorrentes da cre nça. Uma tese tificas podem ser igualmente designadas como “discursos” que obede-
exem p ! o, como for. recente e ' são inseridas em
cem às mesmas “regras de formação dos enunciados", e
ª
. possivel a Kepler, sem contrariª)" de
tentaculares, geradoras de “efeitos
"práticas discursivas" anônimas, de maneira
julgava ter estabelecido' ' .
a exrstencia de uma alma da Terra e a poder". Sucede utilizar-se a iniciativa de Michel Foucault -
toda
p ausi b ili- totalmente abusiva, a meu ver para desacreditar a ciência e rejeitar
1
. —

Trmdade, etc. Não se Pºde fªlª; :Éufªª esfera o símbolo da Divina raiz.
.
mal ser extirpado pela
' 1: numa sim les ' “ ' e qualquer forma de saber, que constituiria o a
crenças e n
todp;
.
De Kepler para nóspe já 222136110" de O fato é que não cai bem, hoje em dia (não, já era assim antes) apresen—
e com ciªirãteicrentitico.
. escar tar—se como "aquele que sabe". Nesse sentido, podemos
ver em toda
e v oces ,
para mim, ª concepção do plausíveltíse,
.

.
modlfÍCª; arqueologia do saber que ultrapassa amplamente a
— epistemologia no
Por sua vez toda má uin d indireta à influência da crença, às

&
sentido estrito uma homenagem
' ª ºº'"
" —

racronalid ade,. antes, ..


_ q nªº ºde re ' ' levar crer), à eficácia da retórica persua-
exagera—as“. Nem mªsmopunsiânrlgllir dªs armas da armadilhas da estratégia (do a e
grao revelada siva (como se a própria lógica fosse uma forma de propaganda).
Mais uma palavra sobre Foucault. Quando o vejo escrever que f'Não
de poder o que seria uma
se trata de'libertar a verdade de todo sistema
* Alcunha de Émile Chartier, —
ensaísta francês (1868—
1951) de orientação ªpilimalism de destacar o poder
quimera, posto que a própria verdade é poder —, mas
humalu'sta. (NT.)
e
88
lemsa DA
carna
CONFIAR... SEM acamrmi... 89
da verdade das formas de '
he g em oma ' '
(sociais econ“ ' “'
dent
digo ªtªràªllturals)
_
.
ele ersopedlaªs
Egªs ela—funciona provisoriamente";l rico do pensar, que é um movimento assintótica de verdade, através da
elª pressupõe ;â—ªâ 33511233 íª-ªíã ºs?“ “iªªººªª “ “ ºººªªªlªzgxz
edificação de uma “neo-realidade” fechada e tautológica, que se faria
. m l & e
alguma idéia do poder... do sujeitoº, que talvez ele ªté guªrde
I o
*

«W;,
tomar pela causa, na verdade, do acontecimento. Nesse sentido, crenças
"vulgares" como o espiritismo ou “sofisticadas” como a ciência politica

constgôi . ::
uanto à prática etnoló gica, '
ela só pode confirmar
&,

são perfeitamente equivalentes. Também nesse sentido, a "máquina de


históri ., . . -
»

ªs) nossas crenças as quais enqtilítfts: “iºdet-nª descrer' ' descrita por Didier Anzieu'ª não é antagônica à máquina de fazer
:>"

nâo poa ;:1enc1as. .sao —


t

pensar, já que elas determinam inclusive crer; e a mesma máquina, consistindo sua finalidade, ao levar a crer nela
cªrgª?,
15,34%“-

nossas o as
O etnólogo ao analisar fu ' e apenas nela, em forçar o sujeito a não mais acreditar - a não mais confiar
o ncionatnento de outro '
o seu. Ma
,
SlStemª, ' ' - naquilo que ele percebe, julga e pensa, e, mais fundamentalmente, em
'
Pode desligar—se dele “pode relattvtzar
&

ÍnTso pode analisa-lo. fazê-lo negar qualquer legitimidade a seu próprio modo de funcionamen-
vertigem , será reapnsronado ao pensa—lo pe prazo de uma
,
to. Assim destituído, só lhe resta entregar-se ao Outro, que determinará
em seu lugar, do qual ele foi despojado, aquilo que é objetivo.

Psicanalistas e psicanalisandos, não acreditem na psicanálise!

As operações que se efetuam na realidade da situação analítica - no que ela


traçao da verificaçao . Já nao 5 e dll:' tem de propriamente aberrante — os ajudarão nisso. Pela experiência decisiva
.
ou que piada! ( “ meu filho, por exemplo"...),p º
ªh! cºm exode Éd . po 1
que 11 orror da distância, para começar.,Distância entre "teoria“ e "clínica" seria uma
e sim: volcês, reforçam e, maneira abstrata e bem policiada de falar; é a uma distância entre dois modos
perpetuam a ideologia da familia, sua
fala, que é a do Senhor é um de ser, de viver, e portanto, de crer, que ficamos expostos. O analista não tem,
, código
a meu ver, que se resguardar do momento - que nem sempre coincide com o
9

Há psicanalistas
_ que se consolam com esse deslocamen . começo da análise, marcado por uma concordância excessiva em que se

çºes, Znue
31:13.pr
.
çapgãªlígllliltde uma crítica de natureza interroga, dwarmado: mas, como pode ele (ou ela) se impor esse sofrimento?
na Fr epistemológica
umª dººúªºiª dº ªbusº
Castel acima de mim' pªrª ªº
Pºdêr (Degleixa Ou seja lá o que for; ele ganhará, vivendo essa distância, a apreensão de sua
outrºs), E“ veria nissº, muito mais, o sinal de É; própria singularidade (singular também designa o único e o bizarro), na
ª Psicanálise comºtºs medida em que ela lhe é revelada por cada paciente a partir de uma outra
pru entemente posição. A distância mantida entre dois aparelhos psíquicos, isto é, regidos
'

. .
pnos PSlºªnªllstas), corre o risco de não ser maiseiilci) 21%: diª): los pró-
_

por diferentes regras de funcionamento, e um instrumento seguro para que


.
crença cada um se desapegue de seu próprio aparelho de crença.
de crer na psicanálise ou de
. , '
não lhe dar crédito -

Depois, vem a experiência da contradição, incessantemente reavivada


:lªmcíinlãipglêgãde aparelho de crença.12 Para degelifiseãszfrmezªªâ: que pela prática, não apenas nas imagens conflitantes dos desejos, mas naquilo
numa
objeto _ o nâº-salãidaté—, pela posrçâo privilegiada, pela natureza deçao, que vem contradizer o dito da interpretação, o nâo-dito da expectativa.
finalidade admitida de seu E por fim, a experiência do paradoxo, que Winnicott destacou
acesso a ele e , e m a 1o método É"
gumas pessoas, prometer domina-lo” como específica do "jogo" da análise, e cuja importância tentei
-—

de:
e, acima —-

mostrar em outro texto.


Para que possa consumar-Se de ambos os lados esse movimento de
desligamento no tocante à crença, para que possa ser retomado ou instau-
rado o trabalho do pensamento, dissipando-se aquilo que o produz, são
necessárias condições mínimas de “confiar em": a constância do espaço e do
tempo da análise. Quando aquilo que organiza o contexto de nossa experiência
qualql deixa de ser garantido, de ser "confiável", quando se “deprime”, atiramo-
E! IF“ lh:
nos no "acreditar em" para sobreviver. É'o real, e não o verdadeiro, que
(E Clença' pºl till“ E
[tªl: llhc mflndá El |! If
precisa de uma garantia. Freud, nessa aspecto, era kantiano.
E
,
Em 63013an a FREUD ”
4mvb4$m_
Roustang, aí culminaria a contradição imanente do “ser-discípulo", que
é o tema de seu livro, exigindo o discípulo uma aprovação total daquilo
em que é infiel ao pensamento do Mestre. Como poderia essa dupla
»

exigência ser simultaneamente satisfeita? Se Freud, adotasse Groddeck,


desconheceria a diferença em relação a ele e aos “confrades”; mas, se
sublinhasse a distância entre o pensamento de Groddeck e o seu, justa—
Entre Groddeck e Freud mente o manteria afastado. Freud, com certeza, sentiu a ambiguidade e a
intensidade da demanda, concedendo de bom grado a Groddeck um lugar
na “borda selvagem", porém um lugar à parte, que permitiu a Groddeck
valer—se de sua singularidade - ele seria o único analista selvagem! — e
que permitiu a Freud não se deixar arrastar para onde não queria ir. Ele
nunca visitaria Baden-Baden.
Que Groddeck não era um discípulo como os outros (mas há algum
guiªdo Georg Groddeck escreveu a Freud pela primeira
vez em 1917 que se aceite como tal?) é evidente. E não apenas por ter-se voltado
atividafil: lÃmhomem moço. .Tinha 51 anos e, atrás de si, uma importante tardiamente para Freud, mas porque o Mestre que reconhecia para si, com
.
'
t1v1dade de escritor:
seio de movrmentos romances, poemas; atividade social no quem efetivamente trabalhara e a quem votava uma admiração extraordi-
'
cooperativos; ' '
e, principalmente, atividade médica-) nária, a ponto de idealiza-lo e fazer dele o modelo do médico, não era
f . .
Freud, e sim Schweninger. “Há quarenta anos", escreveu ele em 1930,
3333335“ prlópna clírnca em 1909, em Baden—Baden, onde recebia
aque es que nao tinham podido tratar—se em outro lugar“ ' “meu pensamento e minha experiência médica têm sido estimulados pelo
médico o, era um,
essléãgralngelro renomado. E mais, seu pensamento havia,percor-
já dom que recebi de Schweninger [...]. Ele foi para mim - e ainda o é o —

rido o médico em pessoa.“ ' Em Schweninger se encarnaria a regra áurea: Natura


auditório muiltªo erÍíeu ltrajeto: desde 1916 ele pronunciava, diante de um
cu ar os pacientes de seu "san atóno
— ' “
ou “ sata - sanar, medicas curat.4 "Aquele que cura é definitivamente o doente [...].
no” - .
_

de onde sairia, anos depois Le livregu A cura situa-se fora do poder médico."
_
_
.
[O,Íuas Cácnferencras) alguns
ça Estaria Groddeck projetando em Schweninger, nesse ponto, o que
nenhmui:rgcCgsstitáâdApâtrentemente, portanto, ele não tinha, em 1917
e e recorrer a Freud . Já se t ,
ornara ele mesmo constituía sua própria intuição fundamental? Porque, no que concerne ao
tomando ,
poder médico, Schweninger o exercia plenamente. A maneira como tratou
_

primeira gramª: ãemdgrolpzio, como se apressou a sublinhar desde sua


r
. .
. ec completamente . Por
conseguinte '
, podemos o velho Bismarck fornece uma divertida ilustração disso.s No confronto
]eglthamente fo rmular—nos a
per g unta' . que mosca o picou? ' das intransigências do Chanceler e do Médico, foi o segundo o grande
diabos ele fez tanta questao _ Porque
de se fazer reconhec er pc l O fundador vencedor, que obteve a obediência, o respeito e a gratidão de seu paciente.
.
psrcanálise, ele que , comi gualmsrstencia
_

' ' “ ' " da


Sim, Schweninger nunca deixou de fascinar Groddeck “amei muito esse
'

seus pacxentes doentes “verdad erros , nao cansav a d eproclamar que —


_

' ' '


homem“ —, na mescla que este lhe atribuía de onipotência e submissão a

havram . . , atmgldos no corpo é que lhe


ensmado tudo?
uma Natureza que era a única a deter o privilégio de curar a doença, já
relaçâldaZm-eãsâspãrogiung, que vai muito além das particularidades da que ela é que a havia criado. Groddeck lhe devia, ou lhe atribuía, uma
de
s omens , podemos ima gmar '
Fm _ d'iversas res os . suas idéias fundamentais, tão contrária à ética médico-social de hoje, que
tedgçsáããtãustzªg, por exemglo, afirma num livro recente2 que Grgddeacsk nos atribui, sob a capa do direito à saúde, o dever de sermos sadios. Se
, convenci o da originalidade (! e seu
Groddeck, por sua vez, nos concedeu o direito de ficar doentes, foi porque

. “
ideias, mas duvidando , aquele original ' ' percurso e suas
de estar re a lm ente na ar:'
seu .. a seu redor , toda em o sintoma, a seus olhos, era menos uma linguagem a ser interpretada, isto
parte, precisamentí corri?

umªplínãsaêªegtg pordougir por
ome e reud. "Quando a pren d' a conhecer é, no final das contas, a ser traduzida, do que, como a obra de arte, uma
,
as obras de criação do id no corpo. Ou melhor, havia para ele, em última análise, uma
1
Freud, tive que tem nciar .
a ser eu mesmo um descob tl'd Ot "
.
ria. Assim, não havia outro recurso " , CºnfidenClª- '
indiferenciação entre a linguagem e o corpo. 0 “isso goza onde isso
senao ' “
freud;
_
. _
toma r - se aceito no círculo” fala” ', que hoje se declina em todos os sentidos, foi Groddeck que nos fez
mal—e [1113311135 gªga gªlã“ ciar? que
nao lhe era devedor em nada. Daí
vamen
o apreender seu começo. Em seus livros, tanto podemos ver a expressão de
e persiste e ins'[se t ao lon o de toda
Corre spondenc1a . . 3e
que, longe de se dlSSlpaf, só faria agravarg-se. Segund:
. . um simbolismo desenfreado - ele é de fato o único "psicanalista" que

90
92 "
LlVRAR—SE DA CRENÇA
Em GRODDECK E FREUD 93

fªzzãir

quanto a explosão de um corpo que já não
g consegue conter seu momento, em atribuir como objeto ao pensamento aquilo que este havia
piu seu sofrimento. Com ele, todas as barreiras caíram, a
[ as começar excluido de seu âmbito o insensato —, ela consistiu, num segundo

pia uan3oidentidade pessoal. A submissão ao ld era a divagação do Eu momento, em não ceder ao poder do pensamento, em nunca tomar as
se diz: eu penso, eu Vivo, isso é uma mentira e uma deforma ão
Dever—se—ia dizer: isso
pensa, isso vive."õ
ç . palavras pela coisa. Os limites da psicanálise, ele fez mais do que reco-
No Id, no Deus-Natureza, residia a nhece—los, habitou neles. É o que se costuma chamar seu pessimismo...
onipotência da qual o médi 00, Groddeck chegou, portanto, na hora certa, num momento de crise,
por reconhece—la , p odia ser me d'iador. A causa da
_ doença, bem como a da e a meu ver, é uma apreciação precária de sua contribuição indireta a
curª , nao p od“ia ser localizadavnum indivíduo—agente. O ser humano nunca
passava de um pedaço da Natureza". Freud reduzi-la ao empréstimo que este faria do simples termo id.
Groddeck, portanto, Freud era prudente demais. A questão dos limites nunca deixou de estar silenciosamente em
de miar; n os poderes propriamente exorbitantes
Porque, depois ação na empreitada freudiana. A interrogação de Groddeck, que, por sua
limitav a e lecer do inconsciente vez, não reconhecia barreiras entre corpo e alma, ciência e jogo, consciên-
e a_ operaçao analítica â “circunscrição
nã das neuroses"? Porque '

cia e inconsciente, masculino e feminino, criança e adulto, e que via em


Huis)? eãtendia ao domimo do orgânico? Porque, tendo denunciado as
0357 ;) ego, esse ridículo palhaço de circo ação por toda parte, inclusive na forma de nossos órgãos, os “milagres”
que mete o bedelho em do id, onde todas as diferenças eram reabsorvidas, não podia deixar de
«wu—«m

md e nao Via a própria ciência, ao menos a da alma,


denqrº, ;, que encerrava-se trazê-la plenamente à luz. Encontramos na Correspondência uma carta
os mesmos imites daquilo '
que pret endia
«

tanto . - apreender? Já ue surpreendente em que, jogando com as palavras, os limites e as barreiras,


ágariiãos, na condiçao de “doentes“ ' quanto na de “sábios”? jogueltes
, Groddeck reivindicou como seu destino próprio ":“. supervalorização do
_, restava-nos brincar: “Aqmlo com que se brinca e
sem absolutamente subjetivo e do contraditório” e aquilo a que deu o nome, em oposição à
importanCia, mas tem-se que brincar."ª
ciência, de “burrice exata“, de “exatidão do paradoxo”. As “cabeças
profeslíonoFçgããng, Grªtideckãesse menino brincalhão, voltou—se para o sistemáticas”, escreveu, “também precisam, para sua valorização, de
,. por -voz o ilimitado , o poeta da atopia '
co de
_
,
topicas e aparelhos , . recorre u ao gente da minha espécie, exatamente como uma pitada de pimenta não deve
“Está?? pSiqUicos, ao racionalista hostil a qual- ser desprezada [...]. Já na escola, meu armário era uma bagunça terrível,
ghauungs 11:11:33 a quem seànpre repugnaria cunhar uma nova Weltans- onde pentes e fatias de pão com manteiga travavam amizade com os
, e nunca per cria a esperança de fa ' ' ' u mª
.. . Foi
c1enc1a.
_

realmente um sinal d eque Groddeck à zer


da pSicanalise manuais. E assim permaneceu. Em outras palavras, não vejo os limites
'
to de seus méritos à parte seu ' ' ,
p arte oreCO nh eclmen- entre as coisas, vejo apenas sua confluência." “º
, desejo de uma inserção s 'ocio-cultural
' '
bem mais Freud, já em sua primeira resposta a Groddeck, tê-lo—ia advertido
?

.
buscou em Freud algo como uma
altª;—mada, proteção. Contra quê? de que não o seguiria nesse terreno. E como poderia fazê—lo, ele, o homem
;;;/11d, crm 19173dquando Groddeck resolveu dirigir-se a ele, onde da definição e da nomenclatura, que nomeava, designava, interpretava,
estªva?. cc 0 senti o, sua obra estava co ncluída' '
, . o campo do inte r— ligava e desligava pela análise? Ele, o clínico que havia começado por
fora explorado, os
conceitos fundamentais definidos e
_

píãtlave:
postos à desemaranhar, na ª “bagunça do armário” em que os médicos de sua época
po taa, raçados os eixos principais da metapsicologia. Obra acabada
dispunham as “doenças nervosas“, as neuroses atuais (as afecções psi-
gbr nto, se a identificarmos com sua fase de conquista e instauração Mas cossomáticas de hoje) e as psiconeuroses? Ele, que estava sempre pronto
ircaa 351%.
inteiramtªnte retomada, se virmos a essência do pensamento a fazer surgir o " par de opostos" no seio da aparente unidade, que
ps co no con ronto com aquilo
que resist e a ele na " ' d
negativo que ele faz inelutavel mente. Ora depºis' da , & experienCia
.
.

tent t' '


º identificava o conflito em cada nível de funcionamento psíquico, em cada
te abortadaº de edificar a "
,
'
lVª pªfClªlmºn- etapa do desenvolvimento, em cada instância? Ele, teórico impenitente do
. construçao metapSicológica '
, o negativo tanto dualismo, que tinha repulsa pelo paradoxo e pelas seduções da ambigui—
Zia teoSaíquanto na clinica, impos
, . .
. com Vigor .
cada vez maior suas exigên- dade? Sim, logo de saída, a precaução: Groddeck era um "filósofo”, um
pras. , .a sairiam] sucesswamente, noções como a pulsão de morte _ monista que desprezava as "belas diferenças“ em prol da bela totalidade.
neipio. por exce ência do negativo —, o ' '
. . masoqu1smo primário e a rea ão E, também de saída, a acusação de misticismo.
ªerapeuâi'ca negativa a do indivíduo que prefere sUa dor à cura — e gor
.
_—

uirrnn,r;ici leiadde um Sujtãllo clivado, fendido, não mais


Com o tempo, as críticas se avivaram, e o enunciado das divergên-
em relação a
a ea o posto a istância mas no ' ' lugarapenas
proprio '
cias tornou-se mais contundente. Freud: “N ão compartilho com o senhor
.
e m s1 alguma autonomia. Se a _
, em que reconh ecra de seu panpsiquismo..,. A mitologia do id... Uma monotonia insatisfató-
coragem de Freud consistiu, num primeiro
.

ria." Groddeck, por seu turno, não dissimulava o fato de que as reservas
94
LIVRAR-SE DA CRENÇA

ENTRE GRODDECK E FREUD 95


de Freud no tocante a seus escritos feriam—no
infinitamente: “O senhor não
é um leitor no sentido habitual da
palavra. É Freud e, como tal, talvez fizesse É de assombrar que Freud, tão atento à questão da
melhor em julgar com indulgência as doutrinª, tao lsggãreq
extravagâncias de seus adoradores.” E de poder decidir entre o que era psicanal' ise e o que deixaria e seg—termos
acrescentou estas palavras, que dizem muito sobre Adler , Stekel, Jung, Rank), nunca tenha
sua relação com Freud: “Assim como a paixão que perpassou colorªdo o probleliªal 316886311 nenhum
sua apreciação estimula, sua censura
mata."“ Em outro texto, numa carta dirigida com Groddeck. É como se houvesse pe-rce i o que nao
'
«

' ' nao podendo a fantasia e


publicação de O ego e o id, a amargura se confessou
a sua companheira após a risco de heieSia,
'
insp iiaçao de . Groddeck, em sua
sem rodeios, por baixo u descomedimento levar a um sistema o rgamzado, .
mas é com o se também
da ironia com um toque de Íniuvesse
perseguição: “No fundo, é um texto percebido que a psicanalise, tanto agil? sua teânââpãnêguiêacsogifsgs -
. . _

se apoderar secretamente dos empréstimos para poder


extraídos de Stekel e de mim...'2 ' " surgidas '
O que há de construtivo em tuiçoes para defen dê-la , só tinhaa g aracei n
meu id ele deixa de lado, provavelmente m Groddeck. Depºis de Freud ado lar e adaptar, com 0 ego e o [d, p ubhcado
' . _

introduzi—lo de contrabando da
próxima vez.” 'ª para :l umas semanas depois do Livro do id,_o .
termo id — o termo,
.
a
_

mall;l 203111116;
'

O curioso é que, cogisa


agora que o diálogo impossivel entre os dois —, escreveu a Groddeck: “Em seu id, reco “
. naturalmenteínao
,, Ha' a , senao ª m ãfiSsão
homens terminou, o mal-entendido
persiste. A psicanálise continua a não '
id ' ' '
eiVilizado, burgues, ' despºjado . |
do nnsticismo.
o

saber o que fazer com Groddeck. Ignorou-o por muito de uma saudade, pelo menos a cons tataçao de uma renunc ia necessám.
_ , _

tomou conhecimento dele, a


contragosto, foi
relegá-lo a o lugar do poeta ou do vidente, do para
tempo. Quando
lhe conceder —
ou
Mal «starna “ eiVilizaçao ' ' '
' " ps1canal—
' .
iticae , em Groddeck, .
fm uro, [31ch , ou
pelo menos permanência de uma ilusao - a de existir, deposnada em algum
_ _

intuitivo meio genial, meio


provocador. Mas inofensivo: aceito, lugar e difundida por toda parte, uma onipotenCia.
por
no seio da Associação internacional, e recomendação decisiva de Freud,
Para Freud, o erro de Groddeck consistiu, seguramente, em apag ar na
exclui-lo dali, ainda que o seriíssimo depois tolerado, não houve como & ão
rasse Freud demasiado complacente pastor suíço Oskar Pfister conside- indeterminação do Es (neutro) toda e qualquer posibiliíladelílse deteãiãríd-
'
para com 'a observou, e e asse
nos... Nem mesmo nossos psicossomatistas de os gracejos groddeckia- específica, e e plausível, como ] se que pe . .
deck quando observou, num de seus u ltimissmos fragmen tos.. "Omisnasmo
. .
hoje, em sua preocupação
_

metódica de determinar com rigor cada


doente, dos distúrbios, dos mecanismos
vez maior a especificidade do ' '
é a autoperoepçao obscura do reino fora do ego, do id. Aprox1
. , , mar—se dessa
a ela, consti_tiii tºda ª "luz"
' .
mentais psicossomáticos,

cialmente no tocante a convenção espe- obscuridade, sem nela se perder ou su bmeter-se


* '
histérica, reconhecem em Groddeck seu '
Mas o gemo de Groddec k deVia consrstir, aos 0 lh os de Freud , em
. _ _

freudiana.
precursor. A verdade é que, em sua extensão
operações do “id simbolizador”, Groddeck situa-se
a todo o orgânico das '
deixar o id falar, no extremo de sua se lvagena ou sua so isticaç ão , em ceder
'
'
_

f _

lS pretender fa 1 ar e m seu nome.


_ _

de suas colocações: para eles, no extremo oposto o es a o ao desconheCido, sem jama"


E(Báriandopseç
ao contrário, seria de uma "falta de fala do id, só se pode balbuc1ar , obserà'ogdtâe imngàãuglnglfã.
simbolização”, de uma "carência fantasmática”, ' ' fala. r ec
da limitação a um uciar como a criança que nasce par, a a
pensar estritamente "operatório” que daria
testemunho o chamado doen—
Bªtªta ':Cunhei para mim a palavra id , cuja . . _
impreCisao me sãuíiiâm);
_ .
.
te psicossomático. Aliás, Groddeck feria
tampouco aceitaria um vínculo de sido excessivamente matemático, e além disso, )(1
filiação com a moderna medicina psicossomática. com;e ocuparia
Para ele não bastava solução, ao passo que meu id indica justamlente que 351253
considerar secundária a distinção
entre o soma e a psique, nem tampouco em querer compreende'- lo. Nâohánada neequese guªraná“ .
"16
rejeita-la: ele recusava a própria idéia de - é o ti 1h o, o herdeiro
uma
doenças são psicogenéticas e fisiogenéticas... A psicogênese: “Todas as
'
Brincar de 1d' '
brincar com o 'id. Groddeck nao
questão da psicogênese qde _ ' . '
pai, nao e o filho
::
.
do
_

não existe... Já é hora, seja de eliminar fiel ou revoltado retoma a palavra glsrigâªqlêsig,
as palavras corpo e alma, seja de ' '
defini—las de novo”“ Foi
justamente mas o filho na psrcanálise, que vem repetidamente, por s ,
isso que Freud, censurando
Groddeck por seu "panpsiquismo", por abalar o conquistado, o construido, os oãârtelqcées dqzsggiàlgiziapgêªvú ue
.

falar em "panorganismo“, desde enganou-se de alvo: mais valeria voces “


' '
sao tao sensatos, e tao tns tes?Gr ' '
ec nec
a bactéria até a obra de arte. Para
de contra eso ao que sempre eu tra de soberbo " no pensa memo , ate
“ & ,
Groddeck, a psique não passava de um
mesmo nª menos' iludido por seus poderes. O gqeahâmnztéeªisigoge-
subproduto do
análise”, então, quão distante parecia disso, do issovivo. E a "psico-
_

morrer! Uma só lei: a do id, ignorando que faz viver e “


testavelmente, de arrogancia pess oal vem respon e
'
a hierarquia, a segmentação, a ' ' . . - se preten dia um espe-
“secção”. 0 mundo, o ' “Deus—Natureza”, era saber pSicanalitico. Groddec k , na mediana, nao
alma generalizados. indissoluvelmente corpo e '
' lista. ' ' '
Sem duVida pressentia que a psicanálise Viria a se tornar umª
. . _
.

:;Zecialidade geral... Doutores em matéria


cúmulo da impostura!
de .inconsaente .
'
para ele, o
96 LlVRAR-SE DA CRENÇA
Eme GRODDECK E FREUD 97

Quando Groddeck conheceu o


psicanalistas começaram a contar sucesso, pelo menos na França, os Groddeck morreu em 1934, sem deixar alunos,
mquietg quiargpeâg
com ele, e certamente não tiveram destino de sua obra, afetado no corpo e na menfte: devastaçoleã= (foi
dificuldade em criticar, dentro da linha das
nas, 0 conceito de id:'7 demiurgo obscuro
objeções de princípio freudia- ' '
sobrevrveria a ele, morrendo a os 83 anos, a ma mais' o q.“ seu
que, uma vez reconhecida a '
ancer. No exílio mas em mel'o aos seus, cercado por se us
“ livros e seus
imanência indefinida de seu poder
absoluto, proibia qualquer tópica âbjetos preferidos, seguro de sua posteridade
' .
diferenciadora das instâncias e, no limite e relendo, nos derradeiro S
extremo, dias , La pena de chagrin: vitória, sem grande ilusao, do ego.
apagamento, em benefício de uma linguagem universal qualquer análise;
(a “compulsão à
simbolização“), de qualquer distinção especifica
entre a ordem do soma,
assimbólica, a ordem das pulsões, que produz
sua "linguagem" própria,
e a ordem do ego, que, engodo ou
não, tem efetivamente suas regras de
funcionamento; desconhecimento da oposição
entre o processo primário,
que desliga e liga de outra maneira, na fantasia e
no sintoma, e o processo
secundário, que rege o pensamento lógico, etc.
Críticas
ri.—t

toda certeza, e que seriam mais merecidas pertinentes, com


por muitas das atuais tentativas

psicanalíticas ou literárias
que, sem o viço e
Groddeck, visam a nos dar aulas de inconsciente. a insólita alegria de

Só que o id não é um
conceito! E não é como o iniciador de
uma nova teoria que convém ler
Groddeck. Aquilo a que ele nos convida
é, muito antes, a nos perguntar—
mos de que são feitas nossas teorias:'ª
alimentadas por fantasias em seu pulsionais em sua origem, e
conteúdo, eles sempre estiveram mais
ou menos aliadas ao ego em sua finalidade
de dominação. Se é verdade
que a psicanálise e experiência do descentramento, ela
trar-se nem na função teórica do não pode recen—
ego nem na potência criadora de um id.
Por isso mesmo, Groddeck se
presta menos para ler do que dá a entender.
E o que ele da a entender, disse-0
sem rodeios a seu amigo Ferenc7i.
de quem se sabia intimo
(não foi por Ferenczi, mais analista
descobertas e suas audácias, que Freud por sua:
se deixou comover, ao passo que
guardou distância de Groddeck?): ' “Pessoalmente,
não produzo nada, sou
excessivamente maternal, orientado
para o deixar conceber e o deixar
crescer; minhas brincadeiras com minha irmã, aliás
chamadas por nós de mãe e filho, e mais velha, eram
eu era sempre a mãe." E em outro
ponto da mesma carta: "Você tem obrigação de
coisas, e eu, por minha vez, tenho obrigação de querer compreender as
Sinto—me bem na
não querer compreender.
imago do corpo materno, enquanto você
dela” (e, nesse aspecto, ele se dirigiu mais quer ficar longe
a Freud do que a Ferenczi).
O inconsciente como
matriz, lugar efetivo do indiferenciado e do
indiviso. Foi essa a principal
inspiração ou aspiração de
propósito: como despertar o maternal do homem? Mas Groddeck. E seu
recurso a Freud consistiu em Groddeck ter-se o paradoxo de seu
voltado para ele como para
um Pai, detentor do saber, do sentido da
e lei, ao mesmo tempo desejando,
ao preço de que empenho e
que decepções, converte—lo numa mãe
precisasse dele! Fantasia confessa de que só
re-uniâo, que só podia retardar a
experiência da ruptura, da divisão, do des—ligamento.
Os VASOS NÃO oortumcmns 99

duquesajum acidente absurdo: Peter, sem que o desejasse, mata seu tio —

o cruel coronel Ibbetsbn —, que, por despeito, havia caluniado sua mãe,
designando—o como bastardo. Após o quê, assassino a sua revelia, ele
passa todo o resto da existência na prisão, onde encontra a felicidade. A
prisão, para ele, é fuga. *

Se o curso da narrativa assim nos fosse retraçado, veríamos nele o


Os vasos não comunicantes
que se chamava antigamente de romance "freudiano": uma representação
mal disfarçada, mal deslocada, do tema edipiano, uma versão do romance
familiar, a expressão de uma neurose (bem-sucedida) de destino.
Mas esse seria apenas o cenário do livro. Seu encanto particular-ís-
simo emana de outra coisa: de uma verdadeira invenção do autor e de seu
casal de heróis. Eles são dotados, segundo nos é dito, do poder de ' “sonhar
Çonfrontar Freud e Breton no orgulho de sua posição individual a verdade”, um poder adquirido ao término de uma longa aprendizagem:
e coletiv
lenslulrlnamente intimidante... Escolheremos como companheiro, portantoª um “eu ainda não tinha aprendido a sonhar” escande o tempo que
modesto e até um pouco timrdo,
, .
um individuo comum, mas
e , antecede o pleno domínio dessa descoberta. Contudo, uma vez adquirido
migrªrem
esse poder, não apenas seus sonhos se dão como realidade (impressão que
de Peter Ibbetson foi narrada todos chegamos a experimentar), e, correlativamente, a realidade tica
um (353133522 cu suligular
o passado, George Du Maurier, alguns
em Londres por
dominada pela nulidade, pela precariedade, como também eles produzem
Freud d esco b m em Viena o
. anos antes de
segredo do sonho e algumas décadas antes ao mesmo tempo o mesmo sonho, um sonho em que se reencontram. Há
(jue Breton fizesse em Paris, a despeito de todos os obstáculos uma cena espantosamente perturbadora em que os dois descobrem pela
de um a
epoca implacavel, o elogio do amor desvairado. Que Peter Ibb primeira vez esse poder: um deles começa a contar um sonho que teve, e
Sirva de “ponto de cruzamento“. etsºn nºs
em que o outro aparecia, e este dá continuidade ao relato, sem perceber
Se nos disserem apenas
que ele era um rapaz solitário e muito bonit o que prossegue nele acreditando obedecer apenas à lembrança de seu
(o cmema lhe deu o olhar trístcnho
e as
Cooper), que levava uma vida sem alegria, pernas compridas de G próprio sonho. Eles podem comunicar o sonho um ao outro porque se
até o dia em que o acasâry comunicam no mesmo sonho: unidos pelo sonho, movendo-se à noite
levou a
reencontrar e reconhecer, sob os traços de uma duquesa matl) numa mesma paisagem, conhecendo as mesmas aventuras, unemse,
casada., a menina que fora a companheira de sua infância assim, no mesmo sonho. Assim se inverte a fórmula corrente: o amor é
protegida, e que logo nasceu ou renasceu entre eles radiosa e
a convicção de tere um sonho. Aqui, o sonho é que é amor, o único a permitir aos amantes
enfim encontrado o ser humano complementar,
correremos o risco de vm (mais valeria «dizer aos ímantados,“ pensando no título de um livro com—
uma história água-com-açúcar, um floreado
33.3; apeílas meio piegas , e; posto em comum por Breton e Soupault, Les Champs magnétiques) con-
esa, sobre o tema popular do .6
ªmºr.—mg sempre se retorna ao primeiro sumar seu amor. E pouco a pouco, através do sonho, é todo o passado que
lhes é restituído, tornado visivel "como se estivessem lá”: primeiro, seu
Indrquemos, agora, a sequência dos principais acontecimentos Fim próprio passado, depois o de seus ancestrais, e por fim o de toda a espécie
do paraiso verdejante dos amores
infantis, marcado pela morte da mãe . humana. "Ressurreição integral do passado”, fórmula a ser tomada aqui
Brusca retirada do lar e do jardim dos
folguedos, das mil e uma ba atela ao pé da letra. "Nada, nada se perdeu” , exclama a duquesa. Na conjunção
sons, odores, cantigas tolas, linguagem secreta da
primeira infância

É
do desejo de sonhar e do sonho do desejo, ambos levados ao extremo, o
que compoem a camada inalterável da memória. Exílio
do jovem herói , anseio de imortalidade pode se efetuar. Quando morre a heroína, cessa
entregue nas mãos, de um tio cruel fazendo-o mudar de nom
confere-lhe uma identidade emprestada. que, “em

para o herói o poder de sonhar.


Ingresso na carreira de arquitetã,
como se Peter não pudesse fazer outra coisa não
a ser tentar reconstruir,
www,-_,

o que havra perdido para


sempre. Sentimento de vazio de um va
desencanto que não abandona o rapaz nem mesmo em, sucessgoo Www
* No original, aimams, que tem a dupla acepção de enamorados, levados a amar (como
Depors, quando se produz o milagre do seu adjetivo), e de imã, magneto, aquilo que atrai (como substantivo). Há também um jogo de
reencontro com a bela e bondosa
,

palavras com amants (amantes). (NT.)

98
100 LlVRAR-SE DA CRENÇA
Os vasos NÃO oomumcmnas 101

Essa perturbação que eles sentem ante a maravilha de tal


poder é proclamar sua dívida para com Freud. Num questionário intitulado 'Você

também experimentada pelo leitor: porque, pergunta-se este o sonho


me liga, por um infinito jogo de espelhos, a todo um povo, de sombras que abriria a porta?" (a determinado visitante ilustre), publicado nos anos
que faz ressurgir os vestígios mais longínquos do passado que me permite cinquenta, ante a pergunta “Você abriria a porta para Freud7”, Breton
ver o mvrsível e põe em cena o universo, porque fica eleºisolado respondeu: "Sim, com profunda deferência."> O termo designa bem a
em meu
quarto escuro, porque só floresce no jardim secreto do “quanto a mim”"? relação: com deferência, na falta de coisa melhor. É que Freud, por seu
. lado, não podia ter sido mais reticente a propósito dos surrealistas. Disse
“"—5:

Porque, de fato, não seria o sonho, em vez de minha propriedade p rivad


partilhado como o é por esses eleitos? ª, (numa carta a Stefan Zweig, em 26 de julho de 1937) tomá-los, a eles que
() haviam escolhido como santo padroeiro, por completos loucos, acres—
'Se tomarmos _como eixo de leitura o tema do sonho compartilhado
(se nos mesmos, leitores, como no—lo convida a fazer toda centando: "digamos, 95%, como o álcool absoluto." Não havia nele
leitura
lharmos do mundo desnorteante dos heróis), então não estaremosparti- nenhum traço de algum reconhecimento pelo papel essencial desem—
já num
romance popular, e menos ainda num romance freudiano mas penhado pelos surrealistas na introdução da psicanálise na França —-

na presença de um romance propriamente


estaremos oxide ela esbarrava numa sólida resistência filosófica, psiquiátrica,
surrealista, independentemente
da forma sumamente clássica do texto escrito. O livro de universitária e médica, francamente germanófoba e dissimuladamente
Maurier nos surge como a representação ingênua do George Du anti—semita. Entretanto, Freud nem sempre foi muito atencioso no
surrealismo Leva-
nos, sem os meandros da retórica, ao cerne da intuição ou da fant ' tocante a seus embaixadores.
fundamental de André Breton.

ªSla —
Será que o mal-entendido se prendeu a motivos contingentes, como
Quando li recentemente esse romance, que tem seus apreciadores a extremadistãncia de Freud em relação a todas as tentativas da arte
moderna, sua reserva natural, seu estilo de vida “burguês" e, do lado
.
apaixonados,1 Julguei compreender porque Breton confessou "um fraco
al! particular” por aquele de seus livros intitulado Les vases communicants oposto, o desafio e a provocação surrealistas, e, mais particularmente em
,

Os vasos
comunicantes: e se isso não fosse apenas o titulo de um livro., Breton, uma vontade irritante de incorporar, como colecionador que era,
mas a metafora central de Breton, que vemos todas as obras de arte ou do pensamento com que entrava em ressonância?
em ação nos variadíssimo S A primeira vista, ficamos tentados a achar que a incompreensão não
campos que ele explorou?
era inevitável. É que, pelo menos do lado de Breton, as coisas pareciam
Sonhar a verdade foi o que guiou sua inspiração. bem encaminhadas. Mas é preciso olhar mais de perto.
Primeiro, Breton tivera uma experiência psiquiátrica que foi, creio
eu, decisiva em sua formação, e cuja importância tem sido subestimada.
âlsltêãrªílgªf] lãlrãton, e pouco dizer que o princípio dos vasos comunican- Aos vinte anos, estudante jovem e descuidado de medicina, já apaixonado
pela poesia, Breton ficou afeito, durante o verão de 1916, ao centro
Separâãtpn/Freud. os vasos nao comunicantes. Onde traçar a barra de neuropsiquiátrico de Saint-Dizier. Ali tomou conhecimento um conhe—

cimento necessariamente de segunda mão, já que na época nenhum livro


Recordernos a ' “entrevista com o professor Freud” ' ( 1922) relatada
r de Freud fora traduzido - do método psicanalítico: associação livre,
Breton com uma msolência bizarra, que não esconde a amargura (diriamroª
análise dos sonhos. O choque e o entusiasmo foram imediatos. Disso dá
; amcilmâalenma), em Les pas perdus: "Uma modesta placa na entrada, prof.,
—4,
tama ãnada que nao é especialmente bonita, uma sala de espera
testemunho, entre muitos outros sinais, o distico psiquiátrico-lírico ende-
Cªern: 3,5
pare es ecoradas por quatro gravuras precariamente alegóricas reçado a um amigo: “Demência precoce, paranóia, estados crepuscula-
e res/Oh, poesia alemã, Freud e Kraepelin."2
uma fotografia representando o mestre em meio a seus colaboradores um
clientes do tipo mais vulgar... Descubro-me Mas, com igual presteza, a febre que o dominou ante a descoberta
dulzlllãlge na presença de unzi de um novo mundo em que se associariam a poesia e a loucura, que
ares de'lmpOI—Tâncla, que recebe em seu mísero consultório
;Íédicoª esim.arrro. Ah. ele de afastaria para o infinito os limites da chamada realidade, foi temperada
nao gosta mutto da França, a única que se manteve
por uma outra constatação igualmente irrefutável. A aflição, e às vezes
.
indiferente a seus trabalhos... Dele só extraio
_

generalidades , COIIlO'. “F e l'12.


mente, contamos muito com a juventude'.” a decadência física dos doentes mentais impressionaram-no para sem"-
Mas, a despeito da acolhida decepcionante, Breton, pre: "a amargaobstinação das frontes, as pálpebras cercadas de olhei—
mu mente pronto a abominar o apesar de co- ras, o olhar carregado daquela súplica de um socorro impossível,
que havia adorado, nunca deixaria de desconhecido.” “
LIVRAR-SE DA CRENÇA
Os VASOS NÃO COMUNlCANTES 103

Quarenta anos depois, com uma honestidade que há de se saudar hoje Em Point du jour (1929): "Conheci durante a guerra um louco que
em dia, quando o elogio da loucura passa alegremente à margem do indizível
não acreditava na guerra. Segundo ele, as pretensas hostilidades não
sofrimento do "louco", Breton continuava a reconhecer como amante nele passavam, numa vastíssima escala, daimagem de um tormento inf'ligido
a mesma atitude mesclada de atração e repulsa: de um lado, ' "viva curiosidade unicamente a ele, muito embora não soubesse dizer com que finalidades“
e grande respeito pelo que se convencionou chamar desvarios da mente (mas, acrescentou Breton, "éramos muitos na mesma situação").
humana", e de outro lado, a "preocupação de se precaver contra esses Nas Entrevistas que concedeu em 1952 à Radiodifusão Francesa,
desvarios, considerando as intoleráveis condições de vida que eles acarre- ele se mostrou mais explicito: "Encontrei entre aquelas paredes [Saint-
tam.” .ª Sem dúvida estava pensando em Antonin Artaud.
Dizier] um personagem cuja lembrança nunca se apagou. Tratava-se de
Aí, nessa confissão lúcida, encontra—se a força— e a limitação - da um homem moço, culto, que na linha de frente se havia destacado, para
aventura surrealista, no que ela tem de mais conhecido e mais tangível: inquietação de seus superiores hierárquicos, por uma temeridade levada
uma atividade intensiva de prospecção, destinada a captar aquilo que por ao cúmulo: de pé sobre um parapeito em pleno bombardeio, dirigia com
natureza escapa à consciência. A estranheza inquietante transmuda-se em o dedo as granadâs que passavam. Sua justificativa perante os médicos
arte de surpresa; o desregramento sistemático de todos os sentidos, ope- foi das—mais simples: contrariando todas as probabilidades, nunca fora
ração de alto risco, às vezes sem retomo, em programa de trabalho. Temos ferido.
que render homenagem a esse esforço de destravar o homem, mas temos "A suposta guerra não passava de uma simulação, os simulacros de
também que nos perguntar, agora que há na modificação da sensibilidade
granadas não podiam fazer mal algum, os aparentes ferimentos decorriam
assim obtida um fato consumado, se as técnicas surrealistas poderiam
apenas de maquilagem e, além disso, a assepsia se opunha a que, para tirar
produzir algo diferente de uma imitação bem arranjada de um inconscien- as coisas a limpo, se desfizessem os curativos."
te já representável e já posto em palavras. Criação ou manipulação?
As palavras foram libertadas — "faziam amor" - ou até deixadas à
Como a maioria dos homens de sua geração, Breton reconheceu na
Grande Guerra essencialmente um engodo: “essa carnificina injustificá-
deriva, mas os fios que iriam prendê-las ficaram bem firmes na mão. Para
vel, essa burla monstruosa“, foram suas palavras. 0 que deve tê-lo
evocar o desconhecido, Breton se valeu de um estilo encantador, natural—
mente oratório, sem desdenhar dos encantos de uma bela língua, na perturbado no caso evocado foi, juntamente com o delírio de interpreta-
tradição dos grandes prosadores. A soberania às vezes altiva de sua ção, a negação sistemática da realidade: encarnação exemplar de um
idealismo suficientemente soberano para colocar sob suspeita o estatuto
linguagem nunca seria contestada.
Denunciou-se muito cedo entre os surrealistas um gosto excessivo da realidade. Todo o famoso “Discurso sobre a escassez de realidade",
pelo simulacro. Um grupo de poetas inicialmente próximo deles separou- que inaugurou a posição doutrinária do surrealismo, encontra-se em
se, intitulando seu movimento, para marcar bem a distância, de Le grand germe nesse passe de mágica que denunciou o real como aparência. Assim
como Peter Ibbetson sonhava a verdade, poderíamos dizer desse homem
jeu [O grande jogo], em contraste com o que denominou de “joguinhos
de salão“ dos surrealistas. que, aos olhos de Breton, ele delirava a verdade. No mesmo texto de Point
du jour, ele homenageou "essas criaturas da dúvida, tão desvairadas,
Mas a noção de simulacro é co—subsiancial no surrealismo. A arte,
o artifício e a trucagem vieram corresponder, nele, a uma experiência da
capazes de testar a cada instante nossa faculdade de resistência diante do
que se faz passar por ser, a ponto de tornar mais ou menos impossivel
simulação efetivamente autêntica, uma experiência que não foi simulada. aquilo que não é".
No percurso de cada escritor inovador encontra-se uma experiência
Que esse breve encontro com o “espírito maligno“ de Saint-Dizier
subjetiva que desencadeia sua mutação. E se, no caso de Breton, fosse a da teve um valor de súbita inspiração é algo cuja prova vejo num dos
simulação? Breton, que retraçou cem vezes seu itinerário, era avaro em
primeiríssimos textos de Breton a ecoar manifestamente esse episódio. De
confidências pessoais. Sobre seus encontros com os poetas, os artistas, os
fato, nele encontramos os mesmos termos, até mais acentuados: simula-
livros, os lugares e os objetos, bem como sobre a história do movimento com
ção, encenação, impostura, representação. Dessa vez, porém, é um eu que
o qual ele quis confundir seu próprio destino, estamos bem informados. Mas fala, um eu anônimo, como se Breton tornasse a seu encargo, ao encargo
houve um encontro mais íntimo e capital, que se deu menos com um homem de todo Eu, o desvio de sentido (significação e direção) efetuado pelo
do que com uma disposição propriamente revolucionária da mente » revolu— doente, como se reconhecesse ali, numa certeza antecipada, o que nunca
cionária no sentido de inverter, de consumar a “revolução” ' da atitude
deixaria de orientar sua linha de vida: a afirmação, a ser feita em todas as
moral. Breton referiu-se a ela em duas ocasiões em sua obra. (:*ircunstâncias, das prerrogativas do espírito, do possivel, diante do apa—
104
lem-sr DA CRENÇA
Os vasos NÃO comumcm 105

relho de morte que é, no fundo, a realidade


a morte do imaginário. Só

Essa meta sincrética, a meu ver, esta no extremo oposto de meta
um excesso de imaginário pode servir de contra
.
da reahdade. pcs o ao abuso d e pode!” analítica de Freud, todo o pensamento do qual centrou-se no irreconciliá-
val, na infinita aptidão para o conflito que ele detectou no cerne da psique.
Esse texto curto se chama,
significativamente, Sujet.4 Montado em Que pensamento é tão continuamente, tão irredutivelmente dualista?
seu parapeito, o rapaz desviava as granadas, Sua Freud, em seus longos anos de formação de médico “a contragos—
onipotência não era
observe-se, a de um Deus criador: ele era o sujeito absoluto, to”, foi mais neurologista — um grande neurologista — do que psiquiatra.
dor, revrrador; irrealizava o mundo, negando mas desvia:
o que o negava. Era, sozinho Tinha dificuldade em tolerar a patologia escancarada, ampliada: basta ver
um manifesto do surrealismo, no que manifestava sua alegria diante, entre outros, de um Dostoievski. E recordemos como
o surreal ao denunciar
o domínio do real. . ele motivou sua rejeição dos surrealistas: qual! eles são loucos. É como
época fecunda, portanto, Breton deparou com se ouvissemos Descartes...
,.»

“ _Nessa
1

a tríplice expe-
riencia da loucura, da guerra e do idealismo em estado puro, ' “selvagem” A primeira grande tentativa teórica de Freud no campo da psicologia
O importante '.
éque essa experiência tenha sido conjunta: ela determinou e da psicopatologia foi uma genial transposição da neurologia.6 Depois
uma postura militante e coletiva. dela, Freud não mais falaria em neurônios, mas em cadeias de repre-
Tratava-se de enfrentar o real através da sentações, não mais em barreiras de contato, mas em resistência, não mais
distorção de sua função:
uma resposta necessariamente marcada pelo desafio. A em escoamento da energia, mas em processo primário, não mais em
em transmudar a realidade numa aparência operação consistia
anulasse quantidade, mas em pulsão. O modelo nem por isso deixou de ser o
ela se arroga em nome da evidência funcional: que os poderes que
havia como que um dever mesmo. Liberto de seu substrato neurológico com a Traumdeutung, ele
de msubmrssâo diante de um continuou extraordinariamente ativo, uma vez deslocado para o domínio
princípio de realidade que pretenderia
constituir a lei. A polêmica, o contra—ataque e a provocação não foram mental: “fluxos de pensamento", com suas vias, suas comutações, seus
acidentais no surrealismo, mas essenciais. Entretanto, a pontos nodais, seus trajetos e entroncamentos, imagens e termos que tanto
distorção não chegou a constituir, frente àlrealidade, operação de evocam o sistema nervoso quanto uma rede ferroviária. Podemos até

a da. ficção, da arte, da poesia: em
uma outra' realidade
mesmo ver no consultório do prof. Freud a transposição de seu laboratório
certo sentido, não havia obra de observação e pesquisas de neurologista. Era um laboratório da psique,
surrealista possível. O processo da “colagem”, que articulava de
outra pois a própria psique é um laboratório que trata sem cessar as excitações
maneira fragmentos de realidade utensílios, objetos, imagens e palavras

—, continuaria por certo


a ser o modelo da manipulação da combina que lhe chegam de fora e de dentro.
da produção surrealista. , ç ão , Porque acentuar essas evidências? Para tentar apreender a divergên-
Enquanto Freud opôs à realidade material uma cia, desde o começo, entre as orientações de Freud e Breton. Afirmar que
, “realidade psiqui- ela se resumiria, definitivamente, na do cientista e do poeta seria reduzir
ca“ , na qual toda a criação, desde a fantaSia até a obra, tinha
nao terá o surrealismo afirmado, em sua sua origem a questão, invocando imagens arquetipicas. Tão menos aceitáveis, aqui,
própria negação a primazia na medida em' que lidamos, nos dois casos, com fundadores que abalaram,
exclusiva do real? Em alguns surrealistas, -

marcados por Dada a negação


prevaleceu. Em outros, particularmente em Breton - guardiãd, avalista ambos, a ciência e a poesia.
e
prmeipro unificador do grupo —, a negação, sob pena de se voltar
o proprlo surrealismo, foi necessariamente contra Evoquei o que pode ter cristalizado a experiência princeps de Breton, a
parte integrante de uma meta enunciada no Sujet, de uma escassez de realidade do mundo externo:
maior: a abolição das antinomias. Paralelamente, desafio
o se fez crença. paradoxalmente, era por nãoestar seguro de seus fundamentos que ele se
Foi a célebre frase do Segundo manifesto:
. "Tudo leva a crer que ; tornava tão coercitivo, que afirmava a lei do “é assim, você não pode
exrste um certo ponto do espírito a partir do qual a vida e a morte o real fazer nada” '. Também Freud era avaro em confidências pessoais, mas não
e o imaginário, o passado e o futuro, o
comunicável e o incomuniciivel o é preciso forçar sua reserva para reconhecer em ação o desejo que o
alto e o baixo deixam de ser percebidos ,
contraditoríamente."S animava: o desejo de saber, tão intenso, tão insistente nele, que chegou
ôí triunfou o princípio dos vasos comunicantes: a
negação tornou —se até o fim de sua exigência e se transformou em saber sobre o desejo. O
negaçao da negação, da antinomia, e até da diferença. Buscar o lugar do livro inaugural o Traumbuch, livro sobre o sonho, mas também livro-
-—

nao-contraditório, crer nele, custasse o que custasse: foi


proclamado. esse o projeto sonho, até mesmo em sua composição volumosa e barroca - atesta isso a
cada página. A T raumdeutung não foi apenas a tese do sonho, mas uma
106
mma—sr na CRENÇA
Os vasos NÃO OOMUNICANTES 107

reali ' '


desejo, º
a Traumdeutung acabada foi a .

de Hªir—gp;: do corpo do sonho seu realização do dese'o O sonho, portanto, não foi para Freud um outro mundo que, em sua
deu sem soft-iªrª“! segredo. E isso nem sempre se
abundância de representações, viesse duplicar e enriquecer este aqui,
tica . Trabalho gªtçlefââ—selem trabalho, e não em revelação psicanalf - sumamente desolado. Não foi nem sur-realidade nem sub-realidade, nem
e , eva do ao encontro de
trabalho. uma verdade como fantasma vago nem visitação do Espirito Santo (o sonho não é a divaga—
uan ' '
naraszeu sªíremn e seus “amigos se interessaram pelo sonho consi - ção). Ele próprio é produto de um trabalho, e foi unicamente esse trabalho
ate, inspirando—se no método freudiano retiaçararrgr que reteve a atenção de Freud. “Por muito tempo confundiram-se os
exercendo um ong mo de controle, 6 ' , sonhos com o conteúdo manifesto. Não vamos agora confundi-los com
as 'assocrações"
qual foi , atingiu, a por ele suscitadas,,
,

meta buscada? Aumentar o campo da consciên ' um inconsciente misterioso", escreveu ele visando a Jung, mas isso
ampliar o espaço do SUjelto, estabelecendo poderia ter sido uma advertência dirigida ao futuro autor de Arcano 17.
_
uma comunicação entre o $$$
Não, decididamente, Freud e Breton não compartilharam o mesmo sonho.
indicado o ' “ ' '
[ªç㺠das gprrêslgàCSIntlgrpiretaçao, sim, sempre, mas, acima de tudo, liber.
De Goethe, Freud retomou, justamente a propósito do trabalho do
sonho - mas isso também se aplica à formação do sintoma —, a imagem
dos poderes originais 36103331: 53713823: _, com ViStªS à recuperaç㺠do tecelão: “A cada pedalada movem—se os fios aos milhares / As
d . .
.
-se, recusar o ence
lançadeiras vão e vêm / Os fios deslizam, invisíveis / Cada lançadura os
.
5320521123! gagª for esse o desejo de todos os que buscaram 53511123?
.

artifictais ou na promessa de um liga aos milhares.” O que a tecelagem liga, a análise desliga: ela tece de
miragens de um “aflitª? essos,. além, as outra maneira. Mas - e é isso que torna tão difícil a apropriação do método
moderna metamorf ose dessa Nesse caso, não passaria o surrealismo da
. tradiçao? Será que o culto dos freudiano, inclusive pelos psicanalistas os fios entrecruzados conduzem

poderes a algum lugar, porque vêm de algum lugar: há um “centro", um "umbi-


_

go" do sonho, cicatriz do que Guy Rosolato denominou de relação de


desconhecimento. Todos os fios tecidos pelo sonho e pela vida vêm
entra da no sonho, como
meio, a' ' ª entrada dos médiuns“ '. Mas não instrua
'
substituir o cordão originário que nos liga à vida e à morte.
mos o processo depressa d emais ' ª
de escolher Jung como "santo padroeiro”2uma ve que Breton nunca uma ' '
3 Idéia
Parecemos ter-nos afastado muito de nosso herói de há pouco. Mas não,
A meta esse "sonhador definitivo", o maravilhoso Peter Ibbetson, não se deixa
de qUalquer Siiiífâªlrggdãqualquer mºdº” era bem diferente: º Cºntrário esquecer tão facilmente, ele, o homem da memória imóvel.
. que ele descobnu no Sºnhº fºi”
o pºder do Pensament (d seguramente Aftrmei que ele me fez pôr o dedo na função privilegiada que
efluivztleu a uma isen º(;) Pensamento, n㺠dº ºSPÍfitº), mas isso 1158
desempenhou em Breton a metáfora dos vasos comunicantes. Mantenho
.

Aliás, muito pelo conãgolãɪg (13:33? restrição lógica ou moral, essa afirmação, mas estava errado ao falar de metáfora, pois, onde há
eàver
'
.oso onãoesca aà
vm pesadelo, Chegª ª flºªt Sgbre iºgª vasos comunicantes, não pode, por definição, haver metáfora. Na verdade;
_

superegg'gnloígrfsªrozezcçsílguªndo
o ronta-nos com todas as imagens então não há transporte, mas passagem, não há transformação da energia,
do incesto,
-
Cºloca-nos caraa
festocªm com ª cªbeçª dª Medusa. QUanto à decerto mas igualação dos níveis, não há um outro,,mas o mesmo.
o sonho mani lógica,
n㺠Passa de uma fantasia desen- E foi justamente isso o que fez o surrealismo: arte, não da metáfora,
freada. Mas os gªme escapar-lhe,
desenham uma 1%6g ic a mentos DIZ
do sonho, na complexidade
de sua rede mas do encontro, como se a multiplicação das imagens rompesse o
rigorosa.
Freud li g 3 numa só palavra
Breton: ”Trajetória de
sonho . " Ja: processo metafórico, reconduzisSe'a metáfora, que é perda, â metonímia,
sonho e interpretação:
Traum-deutung que é vínculo. Encontro de dois objetos que nada, na ordem da natureza,
Breto “ ' 18n0r_ªV_ª, . . do hábito ou do uso de utensílios, destina a se encontrarem, encontro de
e o latente Rªiº é.claro, a distinção freudiana entre o manifesto
palavras e imagens. O surrealismo, dizia Breton, suprime a palavra “co—
distinção ve sua importância decisiva esfumar—se
ser ªssemelhada acªsaistmçao entre ao mo" . “Proponho, para o que se toma pelo imbecil [é ele falando], aquele
um discurso falsificado truncado
verdade escondida,
' ' e uma
mtegral. Passa-se então “a considerar , que ainda se recuse, por exemplo, a ver um cavalo galopar sobre um
apressadamen tomate.” Mas eu pergunto [desta vez, sou eu falando] st“ ) ato poético não
é, à semelhança do que advém no sonho, a metamorfose silenciosa que se
produz no seio do mesmo sujeito e do mesmo objeto: o invisível passa ao
visível, o visto demais ao invisível e, se o cavalo fica vermelho (como
108
lavam-sr: DA CRENÇA
Os VASOS NÃO COMUNlCANTES wa

um e porque, em—funçao " da ' do


lógica
SiOI)l 5311236, desejo sexual que impul— —Por fim, a comunicação querida, esperada, entre poesia e política,
o sonho, nao há outra coisa que ele
nm;)“ possa fazer! entre surrealismo e comunismo. Mas a essa, a realidade dos fatos, mais
enàcontro o surrealismo de Breton, e técnica da obstinados que Breton, se encarregaria de infligir um sangrento desmen—
Breton az; 33183 a, '
s passagens" parisiens es — P passagem .
Passagem Vivienne... — , muitas . assagem dos Panoramas , tido. “Rêvolution”:' essa palavra, escrita num muro de maio de 1968,
vezes escondida s entre os prédios '
pareada com estes outros dizeres: “Sejam realistas, pleiteiem o impossí—
das por lojas inSÓI'rtas e ligando
_

' , ladea—
fre "
secretam ente entre sr bulevares muito vel", bastam para mostrar que a esperança continua.
nEtlue nàesmlpe lançou passarelas entre as mais distantes formas
de (Sªpucªí); Qual o fio que liga entre si essas diferentes expectativas? Nosso
.ªvi-LU»

, m o, m antes de Malta ux, seu museu ' '


Ta , . . , . ima mário. J herói de romance nos faz pressentir a resposta: é a idéia de que o objeto
;:ãZptroªpara Sl, amrude incorporou, inúmeros precãrsores
perdido pode ser reencontrado tal e qual. Os inúmeros encontros com que
[1132123211
ce 1 tear-se :; e descendente s. Tam be ' ,
de m nisso o contrario se encanta esse sonhador ativo que é o surrealista são, na realidade, um
confípgâesgmpre preocupado em ser o primeiro e, desde muito cedo punhado de sinais, de promessas de um reencontro total. Que nos confia
a
dos sucesso;??? ma o
gaus; , a “coisa" seria transferida para e através Peter Ibbetson quango, do fundo de sua cela, compartilha seus sonhos com
ra o
' mudanças pensamento que é metáfora — tem chanc
.
a amada? Ele nos diz:

de sobrevrver . .
as mais brutais. Uma arte do encontro e dª “A realidade de nossa união estreita, de nossa verdadeira posse um
p ár] do outro, era absoluta, completa, inteira [...]. Embora cada um de nós não
,
passasse, num certo sentido, de uma evidente ilusão do cérebro do outro,
O princípio (já não falamos da a ilusão não era ilusão para nós. Era uma ilusão que revelava a verdade.
' ' ' metáfora) dos vasos comunicantes apiica— “
Como duas amêndoas na mesma casca, tocávamo—nos por mais pontos e
se a
des ;;;ªllââlàsllzlihos
,
lugares por onde Breton, com a curiosidade
seus passos. Creio que uma investi
nos mostraria por toda parte e constantemente
" '
sempre
gaçao Sistemática '
estávamos mais próximos um do outro que todo o resto do mundo (ainda
que cada um de nós estivesse numa casca separada)"
, em a ç
'
ão , e SSC princípiº ' Nessa variação do mito platônico cada metade procurando e
que a físrca nos esclarece ser independente
_ —
'
da forma (1 os Vasos encontrando sua metade complementar, que lhe assegura a'unidade —,
em comunicação" E'o fato é qu e,
_
' postos
quaisquer que tenham s'd ] º & forma e
.
Freud não teria dificuldade em identificar uma fantasia de re-união com
_

a natureza dos “vamos" Bret


on, sempre em busca do " pº nto
,
em que as antinomias seriam reab ' supremo " a mãe - para além dos muros da prisão, 'simboliradores da proibição —,
sorvrdas, soube colocar em com '
“mcª
. uma fantasia a negar a separação, a castração e a morte inelutável. Breton
_ .
çao as

.
nªis heterogeneas manifestações do espirito:
era um homem “inteiro”, diz—nos Mulien Gracq. E afinal, onde se pode
tofala—do ªçiªepnpêgsarâaento e a linguagem, na invenção do pensamenÁ
10 e uma escrita automática d encarnar melhor o princípio dos vasos comunicantes do que no líquido
, e umª fªlª prºpria—
, '
mente ditada, (lue levou a postular uma ' "
com sua lmgmgem".
_
' ' '
dentiticaçao perfeita do homem
1
intra—uterino?
O sonho e realização de desejo, sim. E todo o esforço de Breton e
sel-Cã determmlsmo e a liberdade, pelo acaso objetivo que faz com seus amigos consistiu em generalizar essa fórmula, em não deixar ao
que zem num ponto preciso a linha dos fatos
e a linha do desejo sonho, como produto do sono, o monopólio de introduzir a noite no dia,
A representaçao mental e a
percepção do objeto , cujo encaix º de suscitar um maravilhoso do cotidiano em que se unem o homem deitado
d efine o efeito surrealista.
e o homem de pé, o homem adormecido e o homem desperto. Esse poder
A vi g íl'1a e o sono.' " Dormir de olhos
— ' ' de maravilhamento, o produto surrealista — poema, quadro ou mesmo
abertos,agir de olhos
fechados.” simples palavras a brincar — podia preservar intacto, sob a condição de
O homem e a mulher pela glorifica

ha, soluçao
_
fora do amor").
,
'
' '
ç ao do amor desvalrad0( " nao ' que brotasse de uma fonte viva.
O paradoxo da situação de Freud em nossa cultura se atém, falando
meme—SÉ comumcaçao imediata entre sujeitos falantes, se eles simples—
rapidamente, ao seguinte. Ele veio, simultaneamente, dizer-nos que o que
ao poder da linguagem, se se deixarem imantar nos move a todos, por toda parte e sempre, e' o desejo inconsciente;
ela . Penseentregarem'
mos nas inumeras obras produzidas por
por Breton com seus amigos
poetas, obras que p renunciara m a palavra de ordem.' '
obra de todos. a poeSia há de ser * Jogo entre réve (sonho) e re'valun'on (revolução), qualquer coisa como revolução sonhada,
' ' revolussonho ' '. (N.T.)
110
Uvm-sa DA car-mca Os vasos NAO COMUNICANTES 111

denunciou como um embuste de falsa dominação


a arrogância do ego, evoque a amargura das “ilusões perdidas“. O que se recusa e aquilo que
esse “palhaço de circo” que, à semelhança de um se impõe como crença falsa, fornecedora da resposta,.e nunca'a travessría
personagem de Coc—
teau, declara: “esses mistérios nos ultrapassam, finjamos necessária da fantasia. Exemplo: por mais que a ' “teoria sexual constru:
nizadores" ; lançou uma suspeita sobre o excesso de ser seus orga-

confiança nos
,

da pela criança, em relação aos dados objetivos, ' “se engane


poderes do conceito, do discurso, da razão. Mas, ao redondamgxrte É
ela é qualificada de “solução genial“, é “fundamentada na verda
imprimiu sobre esse desejo, “núcleo de nosso
impossível e do proibido.
mesmo tempo, Freud
ser”, o duplo selo do “&;va
a imaginação, die Phantasie, que estrutura a realidade. Nossa poca : .

provavelmente está errada em confundir a desrlusao que pode ser um


Teremos frisado o bastante que, ao estabelecer


uma espécie de reimpulsionamento da verdade, a brecha aberta do recalcado com o —
inventário dos destinos das pulsões recalcamento,

sublimação, etc. —,
tem:»

amento do deses ero.


Freud contemplou diversas saídas, mas endauãiiãnto elepfoi
que uma, com toda certeza, foi
afastada: a satisfação plena? E, quanto mais
a Breton, o homem da ilusão deliberadamente. man-
avançou em sua pesquisa, tida. Por isso é que, no plano social, só pôde realmente unir-se à revo-
mais ele foi levado a reforçar, com a introdução .
da Todestrieb, o conluio lução traí ", e só pode aceitar a “revoluçao permanente . Senurzse-ãa
entre o desejo e a morte.
próximo de Trotski, exilado. Jamais renunciaria a sua cpuvrcçao a
“õ
Essa dupla afirmação o sujeito é desejaute, mocidade: a aliança entre o "n*ansformar o modificar a
o objeto capaz de mundo] e o

satisfazê-lo plenamente não existe - é tão difícil de '


Vidª ” '

imbiose do mais coletivo com o mais smgu ar.


manter como contra-
dição fecunda que, incansavelmente, vemos a psicanálise É? :o menos nesse .
empenhar-se: ponto, Breton e Freud se aproximam: nenhum

quer, em nome da'rejeiçâo da onipotência, uma ética da renúncia, d os dois transi e.
do compromisso ou até da adaptação,
para terminar - e para me atrapalhar —, ao logo do “ “liege
que às vezes deixa um travo amargo; Voltemog, . .

quer, e disso há hoje marcas cada vez mais numerosas, na reivin— abriria a porta”. Para Freud? A pergunta nâoCterra sentido, se formu a a
dicação, igualmente imperativa, de um “gozo sem entraves".
a um analista. Faz muito tempo que ele permrtiu a entrada de Freud e que;
Pois bem, Freud não se reconheceria nem numa coisa graças a ele, algumas portas aferrolhadas por dentro cederam. Freud ]
nem na outra.
que, para ele, era precisaniente a impossibilidade de recuperar e possuir estava lá desde o primeiro dia, parece ao analista comum.
o of:]eto perdido que condicionava a busca do objeto E para Breton? Breton é alguém que eumao mandaria .
andar, mlas
fadados à metáfora: ao trabalho físico, ao trabalho do novo. Estamos
sonho, ao trabalho antes lhe pediria, com “profunda deferencra , para caminhar com e e,
do pensamento, ao trabalho da escrita,
ou seja, definitivamente, a um para colocar meus passos nos seus. Passos perdidos que talvez nos
trabalho de luto. A mais íntima criação é produto de um luto: uma ausência conduzissem por passagens ocultas e, através de pina Ponte ainda
significada. A própria repetição nunca é uma "imobilidade“, bªova,
pois seu à praça Dauphine. Sobre essa praça, lugar de eleiçao para ele, Breton me
paradoxo se prende a que repetimos o que não vivemos. A verdade é em algum lugar que, “por sua conformaçao triangular, ligeirameníe
um
movimento, e não uma coisa a ser possuída. O desejo de saber, curvilínea, e pela fenda que a bissecta em dots espaços arbonzados, ...ea
em Freud,
continuou por toda a vida a ser mais intenso 6 inequivocamente o sexo de Paris' '. O que prefiro em Breton é a
que o desejo de conhecer. evocaçao
Será Freud um herói da desilusão? Incontestavelmente, dos lugares. Vê-se que não se trata de lugares Quaisquer. Ele alimentou,
sentido: ele não celebrou o sonho denunciou, ao em certo
como sonhador diurno, meu (nosso) imaginário, antes que Freud cons—
'


contrário, sua “super—
valorização" romântica ou mistª ;a —, mas desmontou-lhe os truísse como arquiteto nosso (meu) pensamento.
mecanismos;
jamais glorificou o amor de arado, nem o sensato.
"Cientista”, anali-
sou as “condições" determuiantes da escolha do objeto
amoroso. "Me-
tafísico", subordinou Eros a Tanatos. Ilusão, a religião, ilusão, a
política
que afirma assegurar a felicidade, encarnar a utopia; ilusão até
mesmo o
poder da psicanálise, como se não tivéssemos outra escolha senão
trocar
um compromisso neurótico por outro, menos custoso. Somente
a arte
escapa a suspeita, porque não pretende enganar, mas se dá pelo
que é:
ficção. Assim, cabe nos entendermos aqui no tocante à
palavra desilusão,
e talvez preferir-lhe “desiludimento”,
que pressupõe, como o trabalho de
luto, antes um processo que um, estado. De fato, nada há
em Freud que
mas E vmnas 113

espaço transicional, um pátio de recreio a boa distância da dominação dos


pais-mestres. A escola inglesa de psicanálise talvez se constitua daqueles
que não reclamam para si escola alguma.
No entanto, o observador estrangeiro realmente encontra neles algo
em comum com as famílias despedaçadas! Foi—me dada a oportunidade,
Idas e vindas nestes últimos anos, de participar de uma série de encontros com colegas
ingleses de diversas tendências. Vez após outra, eu voltava desses encon-
tros com a impressão de que efetivamente havia, & parte a disparidade dos
modelos de referência e das pessoas, uma maneira "inglesa" de praticar,
de pensar e de viver a análise. Querer precisar essa impressão equivale,
evidentemente, a correr ao mesmo tempo o risco do esquematismo redu-
cionista do denominador comum e o da idealização própria daquele que
PARIS-LONDRES só extrai dos costumes do pais o que é conveniente (o fim de semana em
Londres...)', equivale, acima de tudo, a exortar à observação enganadora
daquilo que só tem efeito na atualidade do encontro. É que há trocas entre
Z:;Slªriêãââshistória da psicanálise, a das filiações e rompimentos das analistas como as que se dão entre o analista e seus pacientes. O simples
que nao terminam de se liquidar e d os , ' ' texto é impotente para suspender um recalcamento, fazer emergir uma
nunca se cansam de fazer valer sua 5 Darelslsmos gue
. ' . pequenas '
diferen ças, '
por baixo dª verdade, despertar para a fala uma área de sensibilidade até então opaca.
historia tantas veze s revoltante dos
M
*
confrontos e das clsoes ' ' '
exrste a
Ainda assim, esbocemos em linhas gerais o que especifica, a meu ver, a
gªtosãallgaúggngrenclrilfreug, pelo menos a se acreditar na universidade psicanálise inglesa. Comecemos por desfazer um preconceito do qual
. srcana ISC " americana" ' nosso parisiano—centrismo faz com que nos vangloriemos.|
.
, , que ha m uito nos tem servndo '
d:; 202361113) I(Iilesdetri e que, portanto, tem-nos dispensado de ir lá ver- um
o , imaginem só! Existirá uma '
.
_

princípio, ficamos tentados a re sponder ps ic 8 nal''se Inglesa? A


pela negativa , a tal ponto
.
geografia mtra-analítica parece prev alecer sobre
a do sol º cu turª . Entre
ª
os disc1pulos , 1 1
CLÍNICA-TEORIA
_

de Melanie Kleí 11, que, convem ' reconhecer


.
do mais fa zem
mp0; es que propor um Sistema de pensamento que vem ,ultrapassar o
.

gue (à concebem somo Sistema fantasmático, e os defensores de Anna


sãº;-u , sempre preocupados em expor seu estrito ponto de vista genético Os analistas ingleses, eternamente enredados em sua tradição empirista,
diretaào fosso é considerável ha mais de trinta anos . seriam teóricos medíocres. Por pouco não isolaríamos em seu meio a
Se Zecíãbistgrvaçao
, çao no seio e uma mesma institui çªO fmª
melhor sobre a clivagem patente, se ' mente levºu ª
1 famosa proposição que lhes faz as vezes de filosofia: nihil est in intellectu
a guerra quente e d CPO“, ' &' quod non sit prius in sensu.' Nada no intelecto: daí o trabalhoso apoio na
os dos blocos cedeu lugar nos (1188
_

'

lª - entre
case history,“ a abundância de referências bibliográficas (l937c, 1972a,
'
- continua ativa , atuais a uma distensão Vlgl ' 'l
opostçao
_

. Oposição na t
',
cena na técnica ' ante, a
etc.), atestando a seriedade e a modéstia "científicas", o recurso a
, .
analise, bem como na extens'ao das zonas de ,'
influência , o posi窺 ' "
º
e no b'Jenvo ' da
citações sem surpresa do Freud da chamada edição Standard ( ! quote, End
pronta a se reavivar, a despeito da exrstenc1a ' “ ' do ' & Oshamempre of the quote..."'), dai enfim, para dar o personal touch,"" o apelo ao
middle group, do qual Win mcott
.
q ue se Vºlº ªr
' '
fº]' um dos mcentivad orcs. O ra, nesse vivido, sob o título doravante obrigatório da contratransferência: "At that
grupo mediador e particularmente inv entivo '
(dele fazem arte ho 'e entre
outros, Marion Milner . _

e Masud Khan), podemos ver umfmodalijdade


do
* Não há nada no intelecto que não tenha, anta, passado pelos sentidos. (NET.)
** Relato de casos clínicos. (N.T.)
* Freud francês. (N.T.) *** Abre aspas, fecha aspas. (N.T.)
**" Toque pessoal. (NT.)
112

4 l
114
Iam-sa DA CRENÇA
[DAS E VINDAS 1 15

moment, I felt deeply embarassed, then I progressively realized that my


patient wanted me to feel the way his mother had made him feel...“' desprovido de princípios, da mesma forma que não convida a síntese.
Aceitemos momentaneamente essa caricatura. É verdade Ocorre que não é apenas com seu objeto que uma teoria que se pretenda
os
analistas ingleses mostram—se desconfiados perante as teorias que unitária se mostra contraditória, mas com as próprias condiçoes de'desen-
que se cadeamento e operação da atividade de pensar própria da _pSicanalise. A
enunciam sem contraposição. Também nós o somos, na França, só
que em verdade é que umã obra psicanalítica só nos diz alguma cºisa quando
nossa poltrona, de onde então denunciamos, como qualquer um, a intelec-
tualização do paciente que toma as palavras pelas coisas; mas, uma vez conserva em si, pelo menos em seu movimento, vestigios daquilo que a
no tablado, a história é outra! A recusa a economizar o material clínico, tornou necessária. Por baixo do relato do sonho, o trabalho do sonho: SAob
no entanto, não implica nenhuma ancoragem num positivismo primeiro — e dentro do texto, o trabalho do pensamento. E, no pensamento, a exxgen-
os fatos, apenas os fatos —, positivismo esse que a própria natureza do cia da pulsão. O aparelho teórico não pode ser uma bateria conceitual coin
objeto psicanalítico imaginado, construído, transferido de um lugar

para que o analista se arme; ele é metáfora do "aparelho psíquico , está tao
outro, de uma fala para outra necessariamente exclui. Não, a insistência
— “livremente em suspenso" quanto a atenção, e por isso aberto ao que
na clínica não atesta uma incapacidade de teorizar. Vejo nela, ao contrá- perturba seu bom fuii'pionamento. Uma teoria unitária não passa, decidi-
rio, uma incitação a nos livrarmos da oposição clássica, indevidamente damente, de uma fantasia de onipotência, ela mesma ompotente.
aceita na psicanálise, entre a teoria e a prática. Vejo nela também Mas, se a situação analítica e um laboratório, nem por isso é
um
desejo, certamente alimentado por uma parcela de ilusão: "Agora, chega exemplar. Aí se situa, creio eu, outra diferença sensivel entre os analistas
de discutir os precursores do superego ou da indentificação ingleses e (alguns) analistas franceses. Vejamos o destino que se deu aqui
projetiva. E
se disséssemos uns aos outros o que fazemos, o que fica gravado em nós à formulação lacaniana desta vez, com toda certeza, estritamente freu-

(e não numa fita de gravador ou na folha de papel) de uma dada diana - que diz: “a cura, lucro adicional". Adota-la Significa nos preo-
sessão,
de um dado momento da análise?" Não se trata ai da
“ilustraçãoclínicá ' cuparmos com o paciente como com o azar. Rejeita-la, desacreditar a
ou do fragmento de discurso que, num dado momento, vem ilustrar a tese
titi si

interpretação que pode incomodar - em benefícm da reparaçao, ou ainda


'“

preconcebida. Trata-se, muito pelo contrário, de tentar transformar o outro assimilar o término da análise a um estado de bem-estar. A questao nao é
numa testemunha do trabalho efetuado entre certo paciente e certo ana- essa, pois que analista se reconheceria numa ou noutra dessas atitudes?
lista, entre eles e em cada um deles. Tarefa impossível e inútil, dirão Mas, talvez por se ari'iscarem a aceitar em tratamento paCientes .mais
alguns: não há transposição, sobretudo quando se pretende honesta, “doentes" que os nossos, talvez por trazerem em Sl uma preocupação de
não seja travestimento eresistência. Pois seja. Mas, nesse que
caso, porque "care' encontrada em todas as suas instituições, e não apenas nas médicas,
tantos colóquios, revistas e livros? Simplesmente para levantar o moral? talvez, enfim, porque a psicanálise não tem entre eles nenhuma chance de
Não creio nisso. se diluir na cultura ambiental e no discurso da época, os ingleses nao
Um velho dito de La gache voltou-me à memória ao ouvir
ao ouvir, — correm o risco de desmembrar o homem ou a mulher que a eles se confia
mais do que ao ler meus colegas ingleses: “A teoria, numa máquina de associar, numa combinação de instâncias ou num
para o psicanalista,

é o conjunto das soluções que ele tenta dar aos


problemas que seus conjunto de significantes. O bebê, disse Winnicott, nao existe: o que eiuste
pacientes lhe formulam." Definição que, na época, havia-me parecido, é a relação entre uma dada“ mãe e um dado filho, numa interação móvel
por um lado, excessivamente impregnada do modelo indutivo da ciência de necessidades e respostas. O "analisando" também nao eiuste. Ora,
para ser aceitável, e, por outro, alheia demais à precedência da teoria ao ler certos analistas franceses, ao ouvir sobretudo uma certa popula-
'

freudiana sobre a própria instauração da situação analítica. ção “divanizada”, tem-se muita vez a sensação de. que fazer análise
Hoje, porém,
eu lhe daria uma importância diferente. confere ao sujeito o atributo de alguma substância diVina. Metamorfo-
O atual pluralismo das "teorias" psicanalíticas em última se moderna do cogita: estou em análise, logo extsto. Mas só oanalista
instân-

é que fica em análise por toda a vida... O humor 'deiim Winnicott,
cia, cada um tem a sua, o que Jean Laplanche chamou de ”metapsicolo—
giazinha portatil" não deve ser compreendido como um ecletismo

relembrando—nos que a psicanálise não é a way of life, pode Vir bem
a calhar.

* ' “Nesse momento, fiquei profundamente e'mbaraçado(a), até ir


percebendo, pouco a pouco,
que meu paciente queria que eu me sentisse tal como sua mãe o fizera sentir—se. " (N.T.) * Assistência. (N.T.)
** Um estilo de vida. (N.'l'.)
1 16
LIVRAR-SE DA CRENÇA
[nas E VINDAS "7
Todo ' '
afirmar que a pSicanálise tanto a
quanto quªíqclªiícglrlíaªmfm.nao propoe um ideal de normalidade“inglesa”

este ou aquele processo de pensamento; no caso clínico evocado, que tem


Mas ela tªmpouco of psiquica. valor de protótipo, ofamasying era um fenômeno isolado e estático, que
ere-cena modelo de um funcionamento mental ou de
um tipo de ser D i de se contentava em “absorver a energia' ': a parte principal da existência da
cia submissa dianÍeÍl elnSlStlenCla Winnicott em denunciar a complacên-
qua'quer código social, parental ou interpretativo
— paciente em questão situava-se "onde ela não fazia absolutamente na—
—, em fazer com u da".3 A seguir, trata-se de reconhecer, no plano tópico, 0 lugar psíquico
tal como lhe agrada, derive de
regras e que é invcàncãidanálise,
o, que também pode prosseguir depois
um jogo sem
em que as representações são efetivamente ativas; há uma superprodução
termina . P orque a umca
, . que a articl de sonhos que pode ser o oposto da capacidade de sonhar, assim como há
diferença entre a análise e as outras “terª iasil
: o processo
que ela desencadeia continua a ogerar uma hiperatividade no real que é o oposto diametral da ação. Consequên-
. . cia paradoxal: o dreaming e o living; geralmente opostos, acham-se aqui
do mesmo lado, como testemunhas de uma possibilidade criadora.
Percebe—se a mudança de orientação. O pensar psicanalítico per—
manece, na maioria das vezes, na dependência simultânea da disposição
das relações de objeto e do encaixe das instâncias psíquicas. Ora, a
CORPO—M EN TE pregnância do objeto traz sempre o risco de apagar o que está em ação
na relação. E a tópica das instâncias, no que comporta de maquinaria (o
Xiiglmcott e uma ama-de—leite, é a maternaliza
ção universal, o pai só ego, o superego, etc.), traz sempre o risco de encobrir a tópica singular
freudª por sua ausencia, não há vestígio de li bido: são afirmações de de cada sujeito, a saber, a organização de seu próprio espaço psíquico, a
Admitamos: é possível lé-lo dessa configuração concreta e secreta de seus espaços de inconsciente. O
Mas iaãirgscgntranmgentes. maneira
miinha criticar um autor pelo que ele disse; próprio Winnicott, a meu ver, foi vítima desse modo de pensar: basta
em cªiª,—;;, lgaãrta nunca há.,
que censura-lo pelo ue el e n " dlZ-
, .
diferenciar
o
,
a resposta teórica proposta] ªº ' .
Depºis, comparar a propagação que se fez de sua descoberta do objeto transicio-
cºáivem
_ a ex , . .
nal e a dificuldade que encontramos de integrar, em nossa teoria e nossa
que;;eíâârjicm que a suscitou. Pºis bem, no
.

me caso de
Winnicott parece prática, sua concepção, embora de alcance maior, do espaço potencial —

do “ambiente ªgirá]:oraºmpilamente desenvolvida nos menores detalhes , nem objeto, nem instância.
' a a uma .
dª" .
_ _
., a "mãe sufic'ientemente boa " , etc. , e' secun—
inmiçao nascida,
Alinnei que sua teoria do desenvovimento foi secundária a uma
ela smi, na clínica analítica
.

intuição mais fundamental. Intuição que se enuncia de maneira facilmente


criticável na oposição entre um "eu verdadeiro" e um “falso eu", de um
modo que 'pode parecer banal na afirmação de uma aliança psique-soma,
de uma maneira, enfim, que parece retornar a uma era pré-analítica, com
viver. Obserçzgrãigaruae Iagiteâiser ativo durante o dia para se sentir ser e a insistência colocada no ser (como se o negativo não funcionasse em
o p cria nós), no viver (como se o trabalho da morte não fosse sempre ativo), ou
umª observação mªs sermais banal, sim, enquanto é apenas
pode ser deciSiva quando e' percebida na saúde (como se não fôssemos todos animais enfermos). No entanto, o
Geme da Simªçãã anªltljtue a no próprio
ica, saber, ali onde a permanência e a fixidez do essencial de Winnicott efetivamente se deposita aí.
contato têm como efeito, paradoxalmente, turvar todas
as fronteiras Consideremos, particularmente, o modo como Winnicott se des—
viou cada vez mais do kleinianismo. Falar em "mãe“, em lugar de
“seio” ”, já equivaleu a assinalar que o objeto parcial seio é previamen-
te retiraclo, por assim dizer, de uma realidade infinitamente maior: a
Refiramo- mãe, desde os primeiros dias, é diferente de um seio que alimenta, se
nosa po“ r exemplo, ao texto Intitulado nsonhar fantasiar oferece ou se recusa; ela é um banho de palavras, são olhares, sorrisos,
-

viVer" , onde es sa em e particularmente destacada º O título, ', contatos, braços que amparam 0 que se chama, na falta de coisa melhor,
1

: por si 5 O,
_

'

ramente , de determinar
' "
a funçao desempenhada na economia psíquica
por * Sonhar e ViVºfv (NT-)
1 18
LIVRAR-SE DA CRENÇA
IBAS E VINDAS 119

" ' .
dº nªcªo como o podem
só que ser a [gumas
ªfmªçººsflãáfífâfomas
_

é qbe não pensei nisso? " ), deswos


' rente-
ªºnwri㪺tfm da análise e, de 3135211130
que
repentf, Tmetílll; ?:nbíriianorteado seus
ivenciar... É compreens ve que
. -

ZCRIZÉÉÉZXS muito embora . faç a p arte dª


a imagem dº ºmeumeo
-
.

ou :
tradição britânica.
sempre dessa época e desse
tanto quanto ela o cria. espaço mdivididos em que o filho cria ' '
a nua em glºbªl dª Pªlºª nálise. inglesª, ªcªbºlº se m sequer
. .
a mãe - .
ª
'A psique e extensão; nada Pªmgfcgªfiia
me RP pasiªªºm» Pºr “fºº“ w
. - é
to ele nao
cite essa nota de Freud,4 sabemos dela." Embora Winnicott estªiclíglãittgnsoãinhºy
talvez somente com ele é não .
tºda & psic análise inglesa, longe dlSSO, está até a mas
que ela deixe de ser um Tªlvez nem venha a ter um
sempre so zinho com alguém”- mesmob e m assim Com
é
sucessor, mngll .maÉáÍ/ise ue invoque seu aval. E está muito
ao mesmo tempo mais
matrzadas os a te pode sobreviver pºr algum tempº. S em loucos
imago kleiniana do “bom” do e mais distantes do fantasmático, da mesuâês fãn uma chance de viver .
'
_ -

e "mau” objetos. Trata—se de nem rndefimdamºlllrl: .


ramente diverso. Pors o algo intei- II'll'iirslvezpor acreditando def'mrr os de seu pensa-
que esta em questão já não é isso, algunsuigªle çª minha própriª
um objeto, em seu excesso de a incorporação de
presença, positiva ou negativa, mºntº.” “Pªrª:—hes-
.
eito
-
aludir _ como
eº? o sq ' .
constituição progressiva da ausência. ' ' tomara que isso nao seja apenas, Pªrª ºs an
ahstaS
_

A mãe ausente cria mas a situaçao.


nosso “eu verdadeiro", é a nosso interior e franceses, uma oportunidade de trocar de espelho.
cia, sem o quê fica faltando relação que se mantém viva com essa ausên-
o sentimento de ser e de viver.

O SEU DO MEU
Uma invenção em psicanálise
nunca é uma técnica. Só é fecunda
autor. Como o squiggle para
Sua vez de jogar; é game, por exemplo. "Eu começo; agora é sua seu
minha.” Sim, mas não vez.
que um imponha seu jogo ao para marcar pontos, não para
outro, a fim de prende—lo e
não, um jogo para procurar encerra—lo ali;
juntos o que ignoramos.
Misturemos, desmis-

perdido isso!
Todavia, todo leitor pode
de troca ue se instaura encontrar um equivalente dela
últimos. que, por ª com o autor em alguns textos no estilo
vezes, há em Winnicott uma transiçãoprincipalmente
a escrita; por certo ele não é

do squiggle para
os
um autor fácil de
ainda é antecipar-se a ele. acompanhar,
Descoberta genial e elaborações mas menos
trabalhosas,

x_—
*
**
Manejo, modo de tratar.
(N.T.)
Sustentação, capacidade de
conter. (N.T.)
Pmmxos no ermo Wmmoorrr 121

seguem o rumo de Anna Freud), constituiu-se, como você sabe, um middle


group.“ Entre esses adversários irredutíveis, esses Capuleto e Montéquio
do campo fechado da análise, era preciso haver um espaço aberto, transi-
cional, onde se pudesse deixar surgir o paradoxo, em vez de exacerbar e
PARADOXOS DO EFEITO cristalizar as contradições. Desse grupo intermediario, Winnicott não se
'

WINNICO'IT
pretende como figura principal: nunca se propôs como a imagem do
Entrevista a Anne Clancier Mestre. Isso também me agradou, incontestavelmente.
Assim, foi o clima desses colóquios um clima que sem dúvida

tendo, com a ajuda da distância e do tempo, a idealizar que me levou a


ler Winnicott mais atentamente. Ao que veio somar-se uma influência


«Mai,.

amistosa, a de Masud Khan, cujo vigoroso nâo-dogmatismo e cuja acui-


L- ' A dade clinica sempre “admirei. Na verdade, não creio ter realmente “traba-
Bt?" Yoce quer saber como conheci W' lhado” os textos de Winnicott. Eu diria que os "consultei", no sentido
.

r o tao mequreto,
os sua fala ao mesm que ele dava à "consulta terapêutica”: muitas vezes, algumas páginas
pa avras buscadas e extraviadas—
dele, em análises difíceis ou estagnadas, deram-me uma liberdade de
movimento que eu não me autorizava. .

Foi nesse período que publiquei, na Nouvelle revue de psychanaly-


se, textos de Winnicott, em particular “Fear of breakdown" [O medo do
colapso], e que traduzi com Claude Monod, Playing and reality [O brincar
e a realidade].

Atualmente, o que lhe parece mais interessante nos conceitos de


A.C.:
Winnicott?
J.-B.P.:Não são tanto os conceitos que me interessam nele, e imagino que,
nesse ponto, ele partilharia de minha maneira de ver! Fabricar conceitos
está ao alcance de qualquer um, a genialidade de Winnicott não está nisso.
Por exemplo, fui e continuo reticente quanto ao emprego genera-
lizado do "conceito" de objeto transicional, que agora se aplica a torto
e a direito. Em contrapartida, utilizei, aliás sem poder precisar com
exatidão a extensão de minha dívida, a intuição subjacente a esse
conceito, uma intuição que provavelmente justificou, para Winnicott,
a importância que ele dava ao, objeto, e sobretudo aos fenômenos
transicionais. O que consegui escrever sobre o sonho—objeto, sobre a
distância, ou mesmo a antinomia entre a produção de sonhos e a
'
capacidade de sonhar, isso vem mais ou menos diretamente de Winni—
cott. E, em termos mais genéricos, a idéia de que uma atividade mental
só era realmente significativa para o sujeito quando não era puramente
mental, a ponto de se reduzir a uma mecânica de representações, mas
ganhava corpo na vida psíquica.
Um grande psicanalista, para quem não teve a oportunidade de
trabalhar com ele, se reconhece por isto: cada leitura que se faz dele é
120 como uma boa sessão! Suspende—se uma inibição do pensar, ativa-se um
122
lem-sa DA CRENÇA
“anexos no ermo WmNioorrr 123
_

do espaço. psíquico. Winnicott não fornece


pedaçg/I É, foi a primeira vez que alguma coisa de oculto se manifestou,
«»»-fªva“;—

uma grade teórica J.-B.P.:


como . elame Klein. É possível dizer quehá pacientes “kleinianos” mas ;,
.

tanto para um quanto para o outro. que minha própria intervenção


nao creio que os haja “winnicottianos”. ,
espontânea me desconcertou tanto quanto a ele. A posteriori, ela me fez
A.C.: Sim,—é principalmente
nas intervenções que fazemos que nos perceber positivamente, nele, aquilo que, fazia algum tempo, eu me
mos wmmcottianos, sem ter buscado isso voluntariamente senti— formulava em termos negativos e a distância: ele mentaliza demais, logo
não vivencia nada, etc. Nesse dia, esse paciente tornou—se para mim
«l.-B.Pn
completamente diferente, um outro próximo, em vez de um semelhante
.

-
distante. Eu sabia que ele perdera os pais ainda muito pequeno. Sabia
! &

a o ºgº dª disso, mas só podia, como ele, constatar a coisa: “É assim." Só constatar
, n a pobreza das lembranças de sua primeira infância. Só constatar o que
viera em lugar disso: um investimento ativo e incessante nas palavras.
Foi—nos possivelfa partir dessa sessão,'deixar a mãe surgir na análise. A
g
! s
ª
good enough mother, não a mãe boa nem má, porém, no sentido literal do
inglês, aquela que basta, aquela que é suficientemente conveniente para
!

,
p que, chegado o momento, seja possível prescindir dela. Mas, para poder
prescindir dela, continua a ser preciso que ela exista: mais um paradoxo!
A.C.: São momentos como esse, que você acaba de evocar, que nos
ensinam muitas coisas sobre nossos pacientes, sobre nós, e nos permitem
captar o que está em jogo numa análise. ,

) 1.-B.P.:Volto aos conceitos de Winnicott. Justamente para me referir a


um deles, o de "utilização do objeto“, eu diria que Winnicott se deixa
g 9
utilizar. Tome, por exemplo, a noção de "_falso self“. Eu mesmo a
critiquei: teoricamente, ela me parece inaceitável, sobretudo quando é
substantivada, tratada como uma instância ou como uma entidade
J nosogr'áfica. No entanto, ela corresponde a uma intuição clinica incon-
testável. A idéia de que alguns sujeitos têm que construir para si um
edificio aparente, para proteger ou dissimular seu ' 'eu oculto” ' - como
diria Masud Khan -, demasiadamente frágil e ameaçado, essa idéia tem
não apenas um valor descritivo, mas é operante. Na França, gostamos
de forjar “neo—conceitos", nem que seja para nos diferenciarmos de
nossos professores e colegas; depois disso, eles são aplicados, e sempre
se encontra algo com que justificar sua pertinência. Winnicott procede
ao contrário: descobre - as análises difíceis que conduz o impelem à
descoberta - e, não se tratando de um freudólogo, mais ou menos
, , ªs q lh coloca palavras nessa descoberta. Isso pode ser sentido em seus textos:
g muitas banalidades e, de repente, no volteio de uma frase, a ilumina—
,
ção, o rasgo fulgurante.
' obter resposta. Nenhuma resposta
pedir, certo q ue estava de nao
"ele.
A.C.:Você é um dos raros psicanalistas, entre aqueles a quem interro—
A.C.. Pro guei, que tem atividades literárias, tanto no campo da criação quanto
3 elm nt S
no da crítica. Será que, nesse aspecto, Winnicott lhe trouxe alguma
contribuição?
124
LIVRAR—SE DA
CRENÇA

J.-B.P.: Há um texto dele


faz muito tempo, me havia causado
forte impressão, um texto que, uma
curtíssimo, intitulado também paradoxalmen—

te "Da comunicação à

nâo—comunicação". Ali Winnicott fala,
me lembro, do adolescente e de se bem
seu desejo duplo e contraditório de
comunicar e não comunicar. Também faz
alusão ao escritor e, creio
particularmente a Henry James, a totalidade eu,
de cuja arte, tão cativante
quanto irritante, consiste em girar em torno de
'
definitivamente um segredo... sobre nada. um segredo, que talvez seja
Há nesse aspecto uma analogia,
Da mãe, o materno
uma proximidade bem evidente entre
a psicanálise e a literatura. Nelas
vemos em ação, decerto por vias bem
diferentes (a literatura vive de
travestismos, é até mais “mentirosa" do
a
postulação: ser, pela primeira vez, ouvido e que análise), uma mesma
lo que se ignora de si, reconhecido, inclusive naqui—
e, nesse mesmo movimento, ter medo de Melanie Klein'. quem tera contribuido mais para promoçz?º 1231353;—
absorvido pelo pensamento e pela
linguagem de um outro.
Uma área de ilusão, que ultrapassa
ser
' ' eiro
' ' e depois
areia] ' total? Ne la contu à
ªâsldrommatergal não está muito , o,ocam .
-
as clivagens do eu e do não-eu, presente. Pai a pergunta.. havçrªàiciª
do fora e do dentro: essa também
poderia ser uma boa definição da antinomia entre a utilização (forçada) da mae, do seio com:;
atividade do escritor edo leitor. Através
da análise de um paciente, o maior e a referência (implícita) aomaterno? E isso, tanto na orã: q uanto
analista se' modifica. De um livro '
escrito ou lido, saímos diferentes de e ( uica?
na magâªàifisniíott
quem acreditavamos ser. .
não encontro, a despeito do que se tenha .
ldito ;gbiâ
O que você acha da noção de criatividade
A.C.: ele essa promoção da mãe, com o que ela pressupoede ideal lfziªní
em, “.um
segundo Winnicott? rego do materno, sim. A "good enough moíher nao e
J.-B.P.: Não gosto muito dessa
figgra de mãe, e sim um ambiente, um "enquadre (Eleger), uma condi—
palavra, nem
sua promoção a pau—para-toda—obra. Fazertampouco, principalmente, de ção favorável à vida, algo assim como um pára-traumas.
existe nele um tesouro qualquer um acreditar que
que aguarda o momento de vir à tona é um engodo.
Que é que se ganha ao dizer “o materno" em vez de iid_afumae ., ?âvãííiàrâo
"
Dizer, como Winnicott, mesmo com
fazendo ovos estrelados humor, [que se pode ser tão criativo ' '
ao adjetivo substantiva' do nos
propoe '
um ser neutro, i so , se

quanto Schumann compondo uma sonata, isso


' ' f
.

' tam en te assmalável


não lhe parece meio abusivo? Se çanlre com uma pesso a com uma igu ra , um sexo.
exprimo uma emoção, nem por isso crio ' ' ,
Deslocamento para a funça o? Mas , nao vamos e ncontrar tambem ,
nisso
_

' '
'
' ' .
'f'
outras conotaçoes ideolo'g mas. o que seria especr ic amente ma. t em o ,
. pa ] avras p ªra tudo Issº)? o
º
take care of; a devonon (o s ingleses tem
_

'
Atâição
' . _
ma temo urifica a mae, exorci za a seduçao recíproca,
. .
a brandaa famasm,
.
.

não é animado por um olhar. Nesse para não confundir a referencia ao materno com a reveren
_

já existe. Criar um mundo já é outra sentido, criamos o mundo... mas ele


coisa. Aí, trata-se de fazer
' à materna em.
cla
Há um lgucro, pelo menos, no círculo analíticª). . 8131! do 362333112
. .
novo numa dada cultura. Winnicott nascer o
conseguiu isso na “cultura” psicana- '
faz com que se objete etemam ente aos defensores o ome - o-
lítica, provavelmente por ter vindo de
sob medida para ela. Uma oqu lugar, por não ter sido feito a pergunta.º “ Que faz em voces ' da relaçao_ .
primor d'ial , sensoria ] , se usual
.
,
um sistema.
tradição pessoal, isso ajuda a ser original, e não '
eamaeeomfans'? ' ”
,ecomq.
ªgendo- "Vocês desconhecem a instanCia
ue se retruque aos defensores da mae
, . d
_

' ,,
, . paterna, a precedenCia
º
ter ceiro. .
Entretanto, começamos a avaliar até que ponto certas fórmulaz gee
moeda corrente, como, de um lado, a “relaçao fuswnal com a mae ,

me (m.)
125
126 LIVRAR-SE DA CRENÇA
DA MÃE, 0 MATERNO 127

outro, o “acesso ao simbólico", nos tornam


cegos e surdos para o evento propria motu, a mãe se retire, se ocupe dela mesma, fique seljª'a?storbed,
psíquico. É que elas elevam à categoria de princípio
na realidade, é instável. uma bipartição que, como dizem os anglo-saxões. Postular a ex1stencia de um
rixa Torqeçle

uma explicação que tranqíliliza, autoriza e desvra a hosulidãae: etni 120
O primeiro desejo: Tudo. Imediatamente. "«

se, algumas vezes, ver na proibição edipiana uma fábula forja pe ] (;


Não há como fazer concessões
Sempre. Fábula que tem uma vantagem dupla: protege-lo de sua impotenc para
quanto a isso.
.au—Mr

ao
Não existe um desejo de renúncia. É claro, todos satisfazer efetivamente a mãe, e justificar a retirada de investimen qu e
renunciam à satisfação de ele sofre.
seus desejos, mas em nome de exigências vindas da
Não vejo como possa haver na renúncia
- realidade, do superego.
um desejo que se afirme. E o
Freud: a mãe é inicialmente edipiana, tardiamente
masoquista? — Uma vítima que não larga sua
presa. E a grande histérica, reconheciílz:l como
transformada em grande renunciadora?
Fiquemos atentos... pré—edipiana, e sempre sexual. Na falta, sem duv1da, de ter articu a
Glºriª:
precisão o sexual e o “pré-sexual”, isto é, o tempo em que o sexua
Ersatz: produto de substituição, se diferencia como tal,?sua concepção deu ampla margem _
peça de reposição, objeto que “faz as cui " dos ingleses e, com isso, à mãe real que_mventar_nos. mªlÍIquÍe
vezes de”. Palavra sinistra (especialmente
Não há Ersatz aceitável da mãe. para os ouvidos franceses). elalrea
fazia os gestos, mas seu coração não estava ali, ou entao ela a meu &.
mas sem ninar, ou ainda: ela falava, mas sem tocar. N_unca se cansaria “;
.

Mudança de pai, sim (vide Fi liations, de Granoff). Mas os analistas, menos de fazer do que de refazer? mae? Nao estariam,
de mãe. Donde a vontade de mudar não se pode mudar também eles, apenas procurando modificar a mae? E, para começar, a
a mãe. Vontade, até
mesmo obstinação deles.
de modifica-la em sua realidade, tão
patente naquilo a que chamamos
reação terapêutica negativa, onde o ódio esconde
tenho que muda-la, curá—la, eu sozinho, o amor desvairado:
para que ela exista só para mim.
A mesma loucura, a mesma
obstinação, a mesma intolerância, a
mesma hiperlucidez quanto ao outro e a
mesma cegueira quanto a si
(paranóia) em certas formas da paixão amorosa:
a demanda é de amor, o
comportamento, de ódio.

De minha própria mãe ao materno


em mim: que trajetória! Difícil, mas
necessária para que haja vida psíquica, mobilidade
interna, jogo.
O modelo freudiano da
experiência original de satisfação promove
uma inversão: só a satisfação ' 'alucinatória' '—
que pouca relação tem com
o fato clínico da alucinação, com a
experiência alucinatória, sempre
problemática para o próprio sujeito - e
plena, só ela fornece a própria
coisa, somente ela e posse. Ao contrário de
um Taine, que vê na imagem
uma percepção esmaecida, um reflexo
exangue da coisa, poderíamos dizer
que, para Freud, a percepção vígil é esmaecida em
onírica. (O Merleau—Ponty de Le visible relação à percepção
da mãe seja “'cameº'.)
et l'invisible: que o pensamento
Possuir a mãe: "experiência de
satisfação", "alucinação" mantida
a qualquer preço.

A “mãe morta" de
que fala André Green num texto de intensas ressonân-
cias. A que dá e toma. Mas André Green
tem que invocar uma depressão
da mãe, consecutiva a uma
perda de objeto, tão intolerável é o fato de
que, * Absorta em si mesma. (N.T.)
O QUARTO nas CRIANÇAS 129

fixos, deixar o cordão umbilical ser cortado pelo obstreta ou pelo pai,
iniciar a aprendizagem da leitura aos cinco anos ou aos cinco anos e meio,
trancar-se ou não no banheiro“)... Não há um só comportamento relacio-
nado à criança, de perto ou de longe, que não disponha agora de suas
prescrições.
O quarto das crianças Quando surge a criança e ela não pára de surgir —, cada qual tem,

portanto, uma opinião a dar. Donde os debates apaixonados, como,


anti—

gamente, os dos teólogos. É que a pedagogia,an sentido lato do termo,


transformou-se em nossa teologia. E esses debates não podem deixar de
ser incessantemente retomados, como se a criança, por uma questão de
sobre
postura, impedisse a possibilidade de se dispor da última palavra
ela. Ás palavras insólitas das crianças, vindas não se sabe de onde,
Ao dar ' portadoras do desconhecido e do novo, esforçam—se por responder os
numero da Nouvelle revue de psychanalyse o título “L'En—
fam” ! ruim nao for discursos dos pais, discursos oscilantes, tão peremptórios quanto muta-
publiéadolndha Tintençao acrescentar um volume aos trinta 'a
“smile; lhe Psychoanalytical Study of the Child. O propósito nãJo
veis ao sabor do momento, prontamente carregados de incerteza e como
em fazer a anço do que a psrcanálise trouxe que gastos antes de usar. Dir—se-ia que a criança tem por função
descon—
crian a e para o conhecimento da Seria ela psicanalista de nosso
especãâcostãªggiscãsmdâ reabrir mais uma vez o dossiê dos problemas
certar todo o saber a seu respeito. o
cotidiano? O adulto sente-se intimado a responder à criança-pergunta,
, c mcos e técnicos) levanta d os pela ratrca
' ' '
src
mas sempre teme que suas respostas sejam falsas, tão convencido está de
.
lítrc ela se aplica
. -
crianças. Queríamos convidª os psiªanftllizsl
& .
ªagltlrlzàndo as
ras
referêncialãâíríozglªçío mais radical, empenha-los num-a reflexão sobre que as perguntas das crianças, por sua vez, são verdadeiras.
.
infantil.
o os azem — _[ '
se'a qual for sua ortentaçao '
a' criança
—'
a
e ao
Talvez sempre tenha sido assim em seu íntimo. Mas houve uma
intervenção de mudanças profundas e recentes. Por outro lado, diante da
referencra _é tão evidente que a indagação pode parecer estra— criança, todas as instâncias sociais passaram a ficar envolvidas: as grandes
nhª' ªiªi?) instituições a que há muito se delegou a função de educar e instruir - a
qUªino aápsrcanalrse nao e, em seu próprio princípio, tanto na teoria
na tica, inteiramente movida pela crença Família e a Escola já não são suficientes para essa tarefa; é toda a
que o ue p;

sempre confirmada de
adulto” aliás, com hesitação cada vez maior2
— sociedade que se proclama puericultora. Por outro lado, assistimos a uma
é melgadocdzênrgglos —

a outra pelos conflitos, traumas, fantasias e estranha inversão, particularmente sensivel no lento declínio, tantas vezes
desejosdacrian a?aRponta fixaçao, repetição, recalque, transferência“ descrito, do papel do mestre-escola, e depois no declínio atual do papel
não há um só coçl
.
egressao,
do professor. Já não é o adulto que institui a criança, mas a criança que
_

Ecerto freudiano que não recorra à sobrevivência ativa da


criança em nós ha um umco analista que, sob a queixa atual de ensina ao adulto. Pelo menos, o adulto faz o que pode para acreditar na
pªdente , não p.rºcnao seu a sua conclusão final, no
ure escutar a aflição da crian ça e seu
gozo secreto. realidade dessa pedagogia invertida, já levada
Nã ' .
nisso nada que nao seja amplamente aceito talvez
_ .
sonho do bebê sapiente.ª
'
imaginário, pelo
meme deªn? ampla—

alem do círculo da psicanálise e daqueles


influencia ds Iªmuno que ela
rsrâdâriisenêe. dNatda que não inspire uma porção de práticas As práticas sociais que concemem diretamente à criança mereceriam, no
familiares e e e ato é verdade , como pretende a ” " tocante a esse aspecto, ser observadas com muita atenção, pois é provável
ula "
.
' . versao
gidafª gasgãrcgãhse, que ". tudo se poe em jogo nos primeiros anospge
' - da mudança
que constituam o campo de experimentação privilegiado
.
_

Jamais conseguirá dar provas suficientes de social. Tomemos, por exemplo, a Justiça. É comum pensar-se que a
dºma ,solicitulãe di: nattdtàlta e a criança. Já que é a cr'rança criação relativamente recente dos “juízes de causas da criança”, dos
o adulto, ela não pºde ser outra corsa que faz e desfaz

' "centros sócioeducativos“, bem como a instauração progressiva de um

.
'
senã o nosso capital ' '
Nao- ha, como deixei—lo mais precioso.
“dormir" . sistema de educação vigiada, tenham vindo unicamente responder ao
P . ' infância e
problema levantado para a sociedade pela existência de uma
,
pringícrlãglgã (tlàfzerrirfquanto aos metodos de gestão, mas o acordo quanto
ao mais Mas aquilo
e orçar-se com isso . Deve - se '
praticar uma educa ã uma juventude "abandonadas“, cada vez numerosas.
ªmo ntarra
, .
_

constituiria
_

ou permrssrva, .
amamentar conforme a demanda ou em horárçios) daquela a exceção
que se aplica à criança, na qualidade que
128
130
LlVRAR-SE DA CRENÇA

0 QUARTO DAS CRIANÇAS 131


_ rs
sepgestpíª “irretsponsabllldade
,, a. regra geral,
. .
.
aquilo que a princípio só

a in
anciã, como idade (frágil) e como estado (de necessária pelo mundo da criança, seja observando—a de fora, de maneira cada vez
de ndên
nãpetªrda Zªt por parte dos adultos preocupações particulares
ex1gmdcl>.
e genera mar para a totalidade do ' ' ,
mais minuciosa, seja explorando-a em seu interior mais recôndito. A
curiosidade analítica parece ter-se deslocado do quarto dos pais para o
. cor posoc1al.F01 or '
ISSO
211331215 gzsrpntmeiãos de nossos legisladores encarregados deppropor
_

quarto das crianças: que tramam elas lá dentro? Como se ali é que se
_

e en es e assistência à infância aba ' desenrolasse a cena realmente originaria...


ndonada Viu—se
mar a regra tida como ideal emtªod
.
pela Simples lógica lev (1 o,
f
.
de sua tarefa a ' Acaso os defensores da análise de crianças não a consideram um
.
oststema pemtenciáriO'subordi
.
.
.
,
'
nara pumçaoareeduca ' “

ç ão . 4R ecºnstltmr,
' ' º modo de acesso privilegiado ao inconsciente, a nova "via real"? Enquan-
a partir do delito , o curso da hi stória
determmames nª quilo .
'
pessoal ,
que a criança suportou e “ psrco
_
b uscar suas condiçoes
' '
'
" -ou r
' to o sonho não passa de uma formação, uma produção do inconsciente —
eleita por Freud como modelo de todas as outras —, assistiriamos, ao
fim “ . . . " a _

é tudo
l ogizar
penetrar no quarto mental da criança, à própria formação do inconsciente.
_

,CSSESigêisiâmzar t— justiça, a mesma coisa. Essa assimilaçlã?)


ºu zamen o, parece-nos hoje uma evid“encta ' ,
portador de uma convrcção .
' , a tal p onto é Ora, tal concepção é contestável. Deve inclusive ser contestada,
'
co mum. só exrste verdade na ' tanto em razão dos fpressupostos epistemológicos de" que é portadora
.
cmgªm, e a
.

origem está na criança . Quer se faça dessa


criança um " pervertido
'
co .
_

” , 5 ,e. . .
'
quanto em função da experiência. Acontece que a análise de crianças, por
portanto, um criminoso mecuperável, quer se veja em mais precoce que seja, de modo algum nos torna contemporâneos da
_

selrltsâietªigionail
e v1t1ma a
.ªm als. fino imagem de um "carrinho abandonado" ª que "concepção" e do “nascimento" do inconsciente (seria essa a fantasia
_]
ara outra coisa senao acelerar sua queda de cena primária própria dos analistas?); ela não nos faz descobrir um ser
em pauta continua mabalada. vertiginosa , a conv,i cçao "
mais simples, porém uma outra complexidade; mostra-nos em ação menos
as pulsões em estado bruto, ou os afetos sob forma rudimentar, do que
uma lógica tão sofisticada quanto a nossa, mas cujas operações e, em
parte, cujos objetos diferem.
Assim, só resta à psicanálise fazer a mesma revisão, dolorosa ou
não, experimentada faz algum tempo pela etnologia: o pensamento selva—
51313582: a dcnança, esse selvagem, fosse ele bom ou
, a estrada (ou readestrada, em mau, tinha que ser gem não é um pensar primitivo; ou ainda: se existe, incontestavelmente,
caso de fracasso), “civilizada", uma elaboração progressiva dos processos secundários, nem por isso ela
saber do que uma mudança de estado. Pois bem se desenvolve a partir dos processos primários; as leis que regem o
?âgilsiãçaio die funcionamento primário do pensamento e as que regem seu funcionamen-
essa.
alíançaa dª] tetrlãoªpããe; Pregamos a “pedagogia dos adultos” ' (estianha to secundário nunca deixam de coexistir e de se opor. Paradoxalmente, é
gomcos que tem feito fortun ª), e eXlglmos' '
"formação permane nte " , em vez de lim1tar uma a psicanálise de crianças que nos deveria livrar, mais radicalmente do que
.

' '
'
c

no passado, aos “anos de aprendi o te mpo da forma ç ao , cºmº a psicanálise de adultos, da “ilusão arcaica".
zagem “ , que devram
«,,-..,”

'
permitir aca d ªum
encontrar e assegurar sua identidade
, .
'
própria.
novas praticas na idéia de que o e stado
'
Nao se justifi Camo essas ' '
.
Não obstante, essa é uma ilusão que os analistas continuam a
alimentar. E nem poderiam deixar de fazê—lo. A referência ao infantil de
adulto , lon g e d e constituir
' '
uma
_
co nclusao qualquer, e' uma perda, fato é, reafirmemos, a própria mola, o pressuposto fundamental de seu
uma lenta decadência em relação às
potencialidades , supostamente inf, mta
' trabalho. Mas essa referência necessária também corre o risco de se tomar,
, s , do estado infantil? A
. . -

tambem é nosso modelo. 011ng para empregarmos a fórmula de Bachelard, um “obstáculo epistemológi-
co", ou, em outras palavras, uma forma particular de resistência do
Di ,

Ícªrº;ezpsrcanálise
.
analista, que entra em ressonância com a do analisando: essa é a criança
_ _ .
tem alguma corsa a ver com .
ela! essa evolução que
concessões cada vez mai orcs, ao
passo que as outras
, que você foi; esta é a criança (sua) que sou...
disciplinas , se gumdo
.
o movtmento inverso
. _

' Dignemo—nos avaliar, nesse aspecto, a distância que nos separa do


. '
, recusaram—se a isso à verti-
em _
Éssimãlaas origens, qu nao apenas recua cada vez mais no tem,
mas que Freud visava. Quando procurou evidenciar a neurose infantil, de um
mais profundo”. Muitos analistas chegariam lado, Freud não a confundiu com uma afecção neurótica que efetivamente
afirmar q?;e , 2:3ch ao[
ouve a gum progresso desde Freud ele a
. se 'deveà ue es se atualizasse na infância; de outro, ele a reconstruiu, segundo a fórmula
( e principalmente aquelas, filhas , 1
_

ou maes...) que ousaram se avegturar
_
canônica, a partir da neurose de transferência. O procedimento foi retro-
ativo e deliberadamente parcial: a totalidade da criança, se assim podemos
] 32
LIVRARSE DA CRENÇA
O QUARTO DAS CRIANÇAS 133

dizer nã '
deterinin: 111361388?“ a Freud, quesó pretendia apreender os elementos oral”? E mais,
's erivados do infantil. Fragmentos luto, ou que a retirada do seio signifique uma “castração
ressunei _ integral do passado. Entretanto, dessa arqueológicos e não quando falamos, por exemplo, como se faz por toda parte, numa "relação
por
Freuâªo' criança “construída” simbiótica mãe-bebê”, não estaríamos projetando num comportamento
Gréciª-n?º» perfeitamente possível, a nós leitores, como assinalou
André , azer uma image .7 Faz parte da família não observável em lugar nenhum (nem mesmo in utero) uma fantasia
Hans com s aquele pequeno materna, ou uma fantasia retroativa do adulto-menino que se tivesse
e sua girafa aman-otada' E qualquer
um p;)deria Eustgavalosªassustadores
º
m r um retrato de Dora” ' ; apossado dessa idéia? Que observador, armado do saber psicanalítico,
de crianças catª] agudas, no estilo quando menina. Ja a multidão
. .

Hampstead Cl'mic , ou a crian


' ' seria hoje mais capaz que outro observador real do escrúpulo atento,
em
. _
. . a ue a discreto e afetuoso de que deu mostras um Heroard, já se vão mais de três
tgem alidade de Melanie Klein mergulhou no caldeirão mítico qiiryase1
não séculos, junto a "seu“ filho'I'º
eigsstencia: admitamos, a não ser psicanalítica.
.

liçao e importante e é dupla. Primeiro, Há algo mais grave: ao se dedicar ao estudo do desenvolvimento —
(sia a nos mantemos à
es reira se passa no quarto das crianças quer fiquemos seja ele o das funções do ego, dos mecanismos de defesa, dos estágios
à [portª se 3111; —
plantados libidinais ou até das prganizações fantasmáticas —, a psicanálise privilegia
,q ompamos quarto adentro , corremos o forte risco '
a mas , . .

de ouvir necessariamente a ontogênese, correndo assim o risco de retroceder jus—
nªme :fªãrâililodde seu proprio discurso interno.ª Depois , e principal _
.

a as origens, que subjaz eletiv tamente âquilo que tanto contribuiu para abalar: a idéia de um indivíduo
,
amente a' investi
' '
a ão
anal“
pouêãtÉotÍ-lgª quanto, observemos, estimula a da
_

levagpgucodª que construiria progressivamente seu mundo, tendo por equipamento


criança, único o que lhe fosse programado pela Natureza, e por contribuição única
, a me inação regressiva uase 'irres1stivel
' ' '
náno à origem , acaband o por encarnarqesta , a re d Uer 0 ºng!-
. ' '
a que lhe fosse assegurada pelo meio ambiente.
_

últ'
una numa '
realidade.
de e ssa realidade ser concebida
. .

_ O fat Feitas essas ressalvas, o contato com a criança, na realidade senso-


como material o “ambiente precoce”?

,


_ [38 q _ rial de seu corpo e de seus movimentos, pode ser (também), para o
"
?

psicanalista, gerador de mudança. Sim, só podemos imaginar a criança,,


mas acaso a criança real não se presta melhor para imaginar do que outra?
Nenh ' '

' ' Basta pensarmos em Winnicott. Sem afirmar, como indica erroneamente
prescindir de um mito das origens que lhe sirva
etàmlaiccultura pode
pªrª a organizaçao de seu mundo. Estaria o título de uma de suas obras, que ele tenha ido da pediatria à psicanálise,
mito napºmar a nossa buscando esse
tenho certeza de que, se não tivesse mantido por toda a vida seu contato
35125321? Nao e que ela celebre, como se diz muito
damente , () criança-soberana , por q ue sa b e maltratar as apressa
-
com as crianças, ele não teria descoberto, como o fez, toda uma área do
'
p sf q ui ca e fisicamente,
. crian a funcionamento mental. Só que, vejam: Winnicott nâo observava as crian-
como qualquer outra. Mas tende a fazer da criaÍiçsai'
sua causa. Foi nesse sentido ue afirmei' há ças; podemos até dizer que tampouco as interpretava, mas sabia, mais
.
respeito dela têm um ar teolóªico. pºucº que tºdºs OS debªtes ª visivelmente em sua prática do que em sua teoria, deixar surgir o sentido,
e também respeitar o contra-senso delas. Para ser mais exatos, digamos
Todav' ' '
psicanâisgª: vamos conclu1r do que fºi dito acima que o encontro da
'
que ele interpretava à sua maneira. É que não se pode deixar de interpre-
mais ou me 32; afgrriaiâça
mesmo que se trate sempre de um

encontro tar a criança. Isso é até, nos primeiros tempos de vida, uma condição de
. ça o por uma das partes
,

so' tenha tido


' '
efeito— sua existência, e às vezes, de sua sobrevivência: mais até do que atender
ne am, ! ,

;: ate heSitaria em subscrever


. .
apgSªr 113131
completamente as críticasS às necessidades do infans, a mãe tem que adivinha-las. Por seu lado, nem
sito da clªn; a amente argumentadas, que encontramos aqui e ali a propó: por isso a criança deixa de ser, desde o começo, interprete. Foi dessa
a observaçao, "direta” da
criança. Certamente. como distância entre as duas interpretações que Winnicott tirou partido. Acima
qual “er b
çªdªqem giãgrwwao, ela nada tem de direta nem de neutra;º está,alicer _ de tudo, ele não praticava uma psicoterapia da criança, mas com a criança.
eses ou em preconceitos e muitas
,
'
vez es sem ue A distância cria o jogo. 0 espaço intermediário facilita a linguagem, que
& eme ba
p. - impregnada
disso, esta' tao
. .
da teoria que supostamente lhª caí: não equivale a pôr suas próprias palavras na boca do outro.
Entre o quarto dos pais e o quarto dos filhos, não é nada mau que
haja um corredor. E todos sabem que as crianças adoram brincar nos
corredores.
FORA DO TEMPLO 135

evidência serena, foi amiúde mal acolhida e sempre mal compreendida!


Seguramente, para Freud, a questão da análise leiga era a questão da
própria análise.
A situação vienense e a situação de Reik não nos devem fazer
esquecer uma outra, talvez mais importante, a saber, a atitude dos psica—
Fora do templo nalistas norte-aºmericanos. Em 1925, conta—nos Jones, A.A. Brill, então
presidente da Sociedade de Psicanálise de Nova York, “publicou um
artigo num jornal nova-iorquino para expressar sua desaprovação da
análise praticada por não-médicos, e em seguida anunciou sua intenção
de romper com Freud, caso a atitude dos vienenses perante a América não
se modificasse”.ª Entre Viena e a América, as relações nunca foram
fáceis. Mesmo em 1910, quando Freud pronunciou suas famosas confe—
;fgcgianssáaqcia que provocou a publicação de Die fraga der Laienanaly- rências em Worcester, ele se mostrou reservado quanto ao entusiasmo
conhecrda.'Durante a primavera de 1926, Theodor despertado por suas idéias. Depois, aqui e ali, encontramos em sua pena
membrº dªnse Reik,
exepqiedatlie PlsÉanalítica de Viena, foi alvo de um processo algumas advertências, mais marcadas de ironia do que de veemência,
penal Pºr e C10 1 ega a medicina . Quando
processo, Freud começou a redi gir' seu opusculo. '
' ' '
s einicioua
'
Iniciad
'
instru
'
'
çao d O
contra este ou aquele traço imputado por ele, como aliás fazia a maioria
dos europeus, ao American way of life. Entre eles: a preocupação de
se achava na gráfica em julho e chegou às ' '
o em junhº, es“:
se ve, . as coisas não livrarias ]'a em setembro. Como poupar tempo, donde o sucesso da psicanálise breve de um Rank, centrada
se arrastaram . Talvez gra ç as a Freud na reatualização do trauma do nascimento; o culto dos valores morais,
lí»
também por falta de prov as (a ' , , e provavelmente
. queixa de um doe n te, consrderado ' muitas vezes tão "elevados" quanto ocos, donde o idealismo de um
dlgno de crédito , e stivera na origem do
. . pouco
- caso) o rocurado Putnam; o gosto pelos slogans, impelindo a simplificação, etc. Mas, nos
,

' | . , '
açao jªdiciana apos o inquérito preliminar.
a
. , p r encerrou a
anos que precederam a publicação de Die Frage, a situação se tomara,
favºr d (5:53 2:12):tinte—s, Frggd já tivera oportunidade de se posicionar a mais tensa, e precisamente a propósito do exercício da psicanálise por
s nao-m icos. Testemunho d'ISSO é ' não-médicos. Alguns norte—americanos, vindos do outro lado do Atlântico
Kar . “ _
. . uma carta escrita a
riorldâlgâªâgliha (2 2321081“ Dung, que é membro do Conselho Supe- para se fazer analisar por Freud, passavam a praticar a análise, uma vez
. .- , anto um personagem oficiali ' ' ' de volta aos Estados Unidos, numa situação que a Sociedade Psicanalítica
opiniao sobre a análise lei ga (Latenanalyse)
' sslmo, pedlu minhas
.
e depors conversei com el e sobre . Eu lhat tªnsmlll pºr eSCfltO
' ' ' Americana não podia admitir. Porquê? Se a psicanálise abrisse as portas
,
essa questão . Ch egªmOS & um a pessoas que não tivessem a habilitação médica, ela se ofereceria, ao
acordo."2 É muito prováv el '
que tenha srdo esse a ] to funCionario
ªmplº
“homem de inclina çao _
' ' ' esse mesmo tempo, à mais grave das críticas: não mais se diferenciada das
benevolente e de uma inte 'dad ' ,
” ,3 terapias, das seitas e das falsas ciências sempre aptas a proliferar em solo
quem serviu de modelo p ara a figura do ' grl e Incomum
interlocutor imparcial norte—americano, e cairia, por sua vez, sob a acusação de charlatanismo.
'
Frage. de Die
,

A medicina, que conquistara nos Estados Unidos em época relativamente


de ser o único não-médico
de Viâªk. 15:22:32? era prontamente vários del
membro da Sociedade tardia seu estatuto científico, e com ele, sua dignidade, corria o risco de
Rank, vindos dos mais. .
' Otto
es, d entre os quais se confundir com o que a contestava ou ameaçava. Para afastar esse risco,
diversos horizontes " In umeros
'
'
.
. , . deles .
têm só havia uma solução: considerar a psicanálise uma especificação médica.
tempos. Toªda , 1123:
praticavam a analise, pelo menos nos primeiros Não há dúvida de que essa foi uma preocupação que orientou e continua
Freud se contentou, nesse
caso a orientar a psicanálise made in USA. Não apenas as Sociedades —

refiro-me às afiliadas à Associação Internacional de Psicanálise — só


aceitam médicos, os M.D.,7 como ainda, além dessa regulamentação, todo
Laienana ' pode ser reduzida ao simples caso da
a meu ver, nao o movimento das idéias psicanalíticas fica sujeito às exigências de satis—
análise prlâlããgue,
Fm .
a por não—médicos foi um a
, ' de prmcr
questao ' ' 10.
'
Para fazer as normas aceitas da respeitabilidade científica. O papel preponde-
rgálçsse forum desafio essencral. Daí sua decepção, às vezesp irritada
. .

ao rante conservado por muito tempo por Heinz Hartmann não se explica de
ar ate que ponto sua tomada de
posição, em sua firmeza , em sua outra maneira. Nem tampouco a vontade de integrar a psicanálise a
134
136
LlVRAR-SE DA CRENÇA
FORA DO mmm 137

dis . .
. . . .
cOgcliptlilxnaasnsupostamente Vizinhas: a blologla, a etiologia e a psicologia
tao patente nas publicações, de sua especificidade como teoria, como método e como prática, uma espe—
os dados ,dªzmhjigíeocupaçaã,
eses, ou e reproduzir in extenso como o faria
distinguir
' um cliicidade fundamentada, por sua vez, na de seu objeto. Por isso é que só
gravador, uma sessao _" , tardiamente (a partir do capítulo 'VI) a questão das relações entre a
. Ou amda a d e aferir os
. '
resultados das ªnª'1'1865. Por
psicanálise e a medicina foi efetivamente abordada em suas modalidades
pouco, se fosse possivel , invent ar—se-ia
calcular, por exemplo, o preço do complexo de
' '
um aparelho de mensur a ç ao ar ' p ª concretas, a despeito da pressão exercida pelo interlocutor,. É que, primei-
castração.
ro, era preciso, com palavras deliberadamente simples, como que para
113; laio v1enense, o peso de uma instituição estava igualmente
jogo em melhor se diferenciar do vocabulário especializado da medicina, estabe—
a médica que se tratava de defender,
mªs ;; prãpriaeíplgtritãgãra mstitlilíçao lecer a autonomia, o ineditismo irredutível da psicanálise. Podemos até
ao pstcana tica bem e '
,
nava exercer sobre todos os que dela sãvalessãtªciªieggârcªgâ ªtleticª?!)— considerar que, inteiramente voltado para essa preocupação, Freud aca—
bou por se exceder um pouco: preferiu assinalar sua dívida para com a
pâçgãilrillxgãialtliêdqe editar suas próprias normas, principalmente a dª nãã
- cos em seu seio, e uivalería '
mitologia ou o saber popular a reconhecer alguma filiação entre a medi-
curto, a impossibilitar qualquer ª'cªmunidadefªlar?;iízticsªf'ssªudfrªg:
_
cina e a psicanálise. % que, no tocante a essa questão, ele não tinha
nenhuma dúvida: a oposição à Lai enanalyse, que se manifestava inclusive
223222111: la:ntliilxlflersas sociedades, isto é, se lhes atribuirmos o direito de em seu campo, era a ' “última máscara da resistência a psicanálise, e a mais
es aprouver ,
Wim um a ruptura em _ escreveu Freud a Eitingon,8 “isso talvez perigosa de todas”.'2
termos imediatos, mas perderemos o privilégio de .

ue vim Todavia,, não nos deixemos enganar: a medicina só foi convocada


gm Sãgâãâpão ate hoje, .o de emigrar como quisermos? na medida
que o nao—medico da $pciedade de Viena não
mais teria a nessa história a título de exemplo privilegiado. A demonstração poderia
p 088“)in 1 a d e de partlcipar de reumoes Científicas
na América ou n ser feita, de maneira análoga, caso se tratasse de defender a análise de
Holanda, por exemplo." Acaso a diáspora não
supõe um elo indivi ( la qualquer tentativa de anexação, de onde quer que viesse — dos padres ou
gpãudlegorrre metnos deTum credo do que de uma comunidade espirituªãclâ dos “pastores de almas“, dos pedagogos, dos filósofos ou dos políticos.
c escen ou: “ emos necessidade a A psicanálise, tanto por essência quanto por sua história e sua meta, é
de uma autoridade de que não dispomosf: goãlercrilgsgõorefnlgslsaª Zªhªízagtzfrªl, leiga, "profana"; não se submete a nenhum dos discursos “religiosos"
a confissao de um pesar: “Encontro—me", ou “sacros” em vigor; não pretende substituir nenhum deles, e a ciência
,ª'Í—ª

escreveu Freud em outra çªt:


ao mesmo Eltmgon, "na posição de um
comandante sem exército.??? médica faz parte do conjunto. Essa ciência em respeitada por Freud;
se estava mais na época em que a palavra do simplesmente, ele se recusava, sem o menor espírito de compromisso, a
Fundalããrfato, Ja não
era a unica a constituir a Lei , em que o Comite ' ª permitir que a psicanálise, sua psicanálise, fosse uma herdeira ou uma
Secreto odia
_
;:soldverl as questoes e as diferenças. Agora, era preciso negºciar, mogtmr-
.
especialidade dela. A cada uma sua instituição, já que a cada uma seu
— o
que Freud execrava e do que Jones sabia cuidar
Maw—unam

campo. Nesse ponto, ele não variaria jamais.'3


convi orlnatico
21,1
Por isso é que o titulo pelo qual essa obra era até recentemente

em çonta Simãoes de fato, relações de forças que não


diziam rªsgª; acorsa em si psicanálise , àquel a casa ' ' conhecida na França, Psychanalyse et me'decine [Psicanálise e medicina],
, & q uela cau Sª ª
ue(3111233 menos uma liberdade nao _
trazia o risco de induzir o leitor em erro. A reivindicação dos médicos, na
_

podia
_

2 ser recusada: a de emigrar, não


gªrra e um pais para outro, mas de uma ciência ou de uma língua para verdade, teve apenas um valor de índice; foi exemplar em termos de um
no em. que se anunciasse uma tentativa de embargo abuso de poder e de um equívoco, talvez mais tóxico do que outros, nada
emanª, sse enlioràaento
, .
a _e um regime político ou de
um regime de saber . A p sic ª—
, mais." Também por isso é que sairiamos do caminho certo ao querer,
nalise ou a emigração. como se sugeriu, encontrar nos argumentos propostos por Freud o eco de
1111203 Ifl'cf); lrêesse decididamente, que se situou o debate, e é isso algum acerto pessoal de contas com a medicina. Nesse caso, estaríamos
qoàltg, voltando contra ele suas próprias confissões, a'saber, que a necessidade
que
' . ,
a na 1 a
e ainda hoje , quando a d'lsputa médicos
'
pjiãldlçâf testa ultrapassada (pelo menos na França e na Grã-Bretanha“)
x nao- ' “de compreender um pouco os enigmas deste mundo" sempre suplantou,
a e cujo plvo foi o caso Reik, cujo desafio manifesto foi institu- nele, a “de ajudar os sofredoresº'." É possível que devamos ver em Freud
dºnª!nf sua instituiçao contra a minha", parecia dizer Freud aos médi- um médico a contragosto, e é certo que ele suportou o desprezo e a
cos) as
lmponancia era de ordem epistemológica. Na verdade incompreensão das autoridades médicas. Mas por seu lado, pelo menos,
trata:! (çUJa
a-se e enuncrar mais uma vez aquilo que ele nunca faltou a ética médica no que ela tem de melhor: dedicar sua
assegurava a psicanálise:
atenção à singularidade daquilo que produz sofrimento. Tanto que, na
138
Lrvm-sa DA CRENÇA FORA DO mmo "9
Questão—.., embora denunciasse as pretensões abusivas da ná-la aos selvagens. Na verdade, a defesa da Laienanalyse caminhou de
medicina em
relaçao a psicanálise, Freud não deSqualificou de maneira mãos dadas com uma denúncia da wilde Analyse, da análise selvagem,
alguma a
pratica médica e, ao sublinhar a “unilateralidade” que o caracterizava que tanto podia ser característica de um médico quanto de um nâo—médico.
fe-lo para reconhecer prontamente
que uma disciplina científica só se Daí o requisito de uma análise “didática”, que supostamente ana-
define e só progride sendo unilateral, excludente das lisaria mais “a fundo” do que a análise comum, daí a instauração de
outras.
Quanto à preocupação terapêutica, ela não órgãos não apenas de ensino e formação, mas também de controle, daí os
, . estava ausente da psica—
nalise, sendo perceptível ao longo de todo o procedimentos rigorosos de seleção, dai a instituição de uma hierarquia
livro, e até mesmo reivindi-
cada:_a analise foi ali apresentada como o tratamento que fosse do analista iniciante, sujeito à supervisão, até o analista didata,
por excelência das
afecçoes psíquicas, particularmente das etc. Com toda certeza, Freud percebeu o perigo. Afirmar a especificidade
Freud tinha outra finalidade. Tratava—se neuroses.
A argumenta ão de
de “impedir a terapêufica de absoluta da psicanálise e, portanto, recusar—se a fazer dela uma especiali-
matar a c1enc1a” (p. 1471“), e, para zação de uma ciência já constituida (como a medicina), assegurar sua
tanto, de chegar ao ponto de afirmar
que a analise em si era apenas uma “aplicação da psicanálise transmissão por vias,!extra-universitãrias, tudo isso trazia o grave risco de
científica"
(pp.. 137 e 153). Convinha assinalar, por outro lado, fecha-1a sobre si mesma. Ora, nada seria mais contrário, simultaneamente,
recorrendo tanto à
teoria. quanto à psicopatologia, que a psicanálise não à trajetória pessoal de Freud — trajetória que o levara a inventar a
proprio camrnho, distante dos que tinham sido traçados parava de abrir seu
, de
maneira nãO psicanálise — e ao objeto de investigação. Por isso, ao esboçar o projeto
menos legítima, pela medicina e pela psiquiatria. de um instituto ideal de psicanálise, Freud lhe atribuiu as mais amplas
De minha parte, é assim que metas. Convocou para ele toda sorte de disciplinas, entre outras, a mito-
compreendo a posição de Freud' havia
e tinha que haver uma solução de continuidade logia, o estudo das religiões, das civilizações, da literatura, e a biologia
_

entre a formação inicial e


a segunda formação; na e através da análise. (p. 133).
O fato de o indivíduo ser
medico, filósofo, escritor ou professor, como Freud deu a entender Nessa ambição, que decerto já não é possivel satisfazer nos dias
interlocutores _(todos, na verdade, parciais), pouco importava' de na] seus
a
atuais, em que as ciências da mente (nossas modernas ciências humanas)
maneira, a psrcanálise era outra coisa. Talvez seja convenierilte qara uer
se multiplicam e se aperfeiçoam, e em que as ciências da natureza
apreender bem a intensidade dessa convicção, alcançaram um alto grau de complexidade, encontramos em ação a preo-
como as produções e as operações do inconsciente propor uma analogia pTal
rompem com o. ue cupação de cotejar a psicanálise com algo diferente dela própria, de
rege-nossa Vida consciente e, por conseguinte, com as categorias menqtais confronta-la incessantemente com o que lhe era estranho, a fim de que ela
e os instrumentos de pensamento redescobrissc sua própria estranheza, de que fosse para si mesma, se assim
que forjamos, também a psicanálise ue ,

tem por objeto precisamente essas operações e essas produções não , gde nos podemos expressar, um “corpo estranho". Essa mesma preocupação
deixar de constituir uma ruptura em de manter viva, atual e inquieta a experiência da alteridade comanda de
relação a qualquer aprendizagelin a
qualquer domínio que vise a se apropriar setorialmente da ,
ponta a ponta o percurso analítico, onde quer que ele se efetue. Todo
realidade.
hA/Ias, supondo—se que esse princípio seja aceito, isso não
analista e "leigo", no sentido de que nunca pode se identificar com um
nada . o contrario, começam as dificuldades. resolve saber, nem sacralizá-lo, não constituindo o saber analítico uma exceção.
A questão da análise
nos faz entreve-las. De fato, se prescindirmos da leiga preciso que ele fique fora do templo, fora de qualquer igreja, inclusive
“garantia” oferecida da que a psicanálise erigiu.
mesmo que ilusoriamente, pela instituição médica torna-se grande a
tentação de buscar uma garantia na instituição analítica. Se a análise Mas, para dar peso a essa alteridade, para que não venha a ser
não
A

e propriedade dos'profissionais de comodamente evocada como um álibi, é preciso que ela ganhe corpo. Para
de um
medicina, não se tomará ela em nome
mesmo critério de competência, de recurso ao ue que o psiquismo seja reconhecido como realidade — o que a psicanálise
confere autoridade, propriedade exclusiva dosum mesmo exige —, é necessário que ele possa, num primeiro momento, diferenciar-se
profissionais da análise? O
fortalecrrnento da instituição psicanalítica decorria necessariamente de uma outra realidade e até opor-se a ela, e que esta também tenha sua
de
seu desligamento da medicina. Assim, convinha criar e desenvolver consistência própria, sua própria coerência. Devemos inquietar—nos ao
institutos de psicanálise, a tim de satisfazer a exigência que pretendia
_

que ver, como frequentemente acontece hoje em dia, analistas que parecem
praticasse a _análise sem ter adquirido o direito a isso nunca ter tido a experiência de outra coisa a não ser a análise: criados num
d nrdnguern através
meio restrito, sem ter lido nada além de Freud ou Lacan, ei—los dispensa-
teendetermãnada formaçao" (p. 113). Acontece que Freud estava comba-
o em uas frentes. nao entregar a analise aos médicos dos da experiência decisiva do estrangeiro e da ruptura a que fiz alusão.
e não abando-
Ҽ LIVRAR-SE DA CRI-INCA
!

Foi plenamente justificado que Freud mostrasse a descontinuidade


a medicina e a psicanálise, mas talvez, inteiramente entre i

empenhado em seu
combate, ele tenha negligenciado o fato de que só é
i

possível comprome-
ter-se com a psicanálise, como fez ele (

mesmo, ao vir da neurologia,


quando se renuncia primeiramente a um outro objeto, I

a uma ou tra lingua-


gem, a um outro amor, cujos limites só descobrimos, chegado
|

o momento,
por ter investido neles apaixonadamente.


Afastar-se do visível
www-m.
A linguagem na luta. —
Emigrar na própria língua. —
Recusar—se à imagem. - Aquela que estimula. —

' 'Queremas atravessar


o mar?” —
.”»,

A melancolia ativa. — ' 'Não a verei mais. ”

141
A melancolia da linguagem

vt

.,
Nestas palavras de Freud para descrever o trabalho do luto "A tarefa é

realizada detalhadamente, com um grande dispêndio de tempo e de


energia de investimento, e, durante esse período, a existência do objeto
perdido prossegue psiquicamente" vejo a definição da fala na análise,

de uma verificação que só pode ser efetuada, dolorosamente, ali, e não em


outros lugares (a literatura, por mais longe que vá na dispersão, na
fragmentação, na descontinuidade, na errância, conserva a preocupação
com uma forma que assegura uma saúde efêmera). No detalhe, no ínfimo,
no passo a passo dos restos, a fala, quando nada a comanda a não ser seu
próprio impulso, reconduz ao objeto perdido, para dele se desligar. E isso,
ao longo de toda a sua trajetória. De toda ela, e não apenas no fim. A
entrada na análise inaugura o desbaratamento da união.

Separar-se, desunir—se do objeto e de si, desligar-se do semelhante ao


idêntico, medir incessantemente a distância entre a coisa possuída e a
palavra que a designa, e que, ao designa-la, diz de imediato que ela não
está ali. Dessa distância, por sua vez, tentamos fazer uma coisa. Procura—
mos provas de que ela poderia, de que deveria nâo ter—se produzido, de
que nos fez sofrer um prejuízo que não temos como tolerar. Queixamo-nos
de todas as separações de que fomos vítimas. Não nos cansamos de
fixa—las no tempo: uma partida, uma morte, uma negligência — tantos
abandonos, outras tantas ofensas. Conferimo—lhes uma imagem e um
lugar: uma casa imóvel e seus odores, que já não existem; um olhar de
mãe que se voltou para outro lugar (pior: para dentro dela mesma, onde
não estávamos); um nadinha qualquer que, para nós, era tudo de que
precisávamos.
Essas queixas, em forma de acusação ou de súplica, essa pretensa
rememoração, tudo tem apenas um objetivo: dar realidade e consistência
a um antes, um antes absoluto.
Podemos admitir que nunca existiu de verdade esse antes. Por isso
é que a palavra saudade, que pretenderia abarcar o movimento que ()

HJ
144
Aus-ranma DO VlSlVEL
A MELANmLIA DA LINGUAGEM 145

invoca, não nos convém. Consentimos em reconhecer


mos nenhuma terra natal e“ que, portanto, nenhuma que não conhece- Uma linguagem que ignorasse a perda que lhe dá vida e que a
lembrança poderia nos 32111??ng
fazer reencontrei-la; que tampouco atingiremos linguagem convencida de enuncrar a verdade, a rigor, só remefer
uma terra prometida, e que mesma." Acreditando que, sem ela, as corsas seriam mudas, con un
â' .

-
nenhum compromisso de fidelidade pode fazer-nos msg,
chegar a ela. Entre- ia com a eloquência. E, quanto mais a eloquencra (que poderia
e..».

tanto, a certeza de uma coisa sem nome nos acompanha. De ,

seãgrese
uma coisa que .

uma poesia que se encantasse com ela mesma) fica segura de Íeus podá
se declararia por si, tal como é. Se não é nem nossa
futuro, continua a ser nosso horizonte origem nem nosso mais dura e a queda; O "empolado", que se ama em suas pa avras, u “;
permanente. Só ela assegura a grande deprimido.
tensão da fala na sessão, que é levada ao extremo. '

Palavras “impróprias, imperfeitas, impotentes A informática não e'meu forte. Será a incompetência que motiva minha
para..., incapazes de...“
(como a sexualidade, a linguagem chega ao homenzinho
cedo demais ou repulsa, ou outra coisa? No decantado triunfo do computador, vejo a
tarde demais; como aquela, perturba o vivo). linguagem e a língua humilhadas.
Como prescindir dessa
queixa? Ela é necessária. Quem a ignorasse desconheceria
da linguagem e, com isso, desviar-se-ia de também o luto '
No extremo oposto, seu complemento.' a exaltaçao (através de urlrlr a
uma vez por todas da coisa profusão de palavras...) do “pré—verbal” - das trocas, efusoes e comu 1—

ausente e só encontraria nas palavras substitutos, cações mãe-bebê, corpo a corpo.


sem procurar nelas,
apesar de tudo, a marca da coisa. . .
Numa e noutra, o mesmo desconhecimento. Como transmitir—lhes,
Sem dúvida, é preciso ter levado a
queixa contra a linguagem mais a esses bons apóstolos do antes e do depois, a ma non—cia trazrda por uma
além da suspeita, até o ódio, para poder
depositar nela alguma confiança, linguagem sem fim nem finalidade, que nao se propoe nem a expressao
confiar em seus movimentos e até amar
suas limitações, a inflexível nem a comunicação? (Estas são consequências dela, nao sua razao de ser.)
smtaxe.
Quando rapazola, ensaiei-me por algum tempo na pré—historia. O
Porque a linguagem não e captura: não se apodera de nada da sílex e o bronze me entediavam. O que me atraia naqueles homens
do real, nem sequer da mais ínfima substância
porção. (A pintura, sim, e também a distantes, meus irmãos, era, com suas. peles de animais, o enigma que rate
música, que, como dizia Schumann, “permite formulavam: que é que realmente os impelira a falar? Nao podialt'er Sl 0
Mas ela tampouco é renúncia; não admite confessarconversar com o além”)
uma necessidade, como a de comer ou estar aquecrdo. Entao, o que Nesse
que “Isso não é para
.

mim". Faz parte de sua própria natureza ir em direção ponto, não mudei de opinião: digo a mim mesmo que eles mventararãt uma
Já que nasceu da perda e que nada tem ao que não é ela.
que lhe pertença, seu apetite e língua (simultaneamente língua-lmguagem-fala) para nada, para na a que
enorme! Ela pode e deve, para viver, “incorporar” ª tudo, lhes pudesse ser útil, e que essa língua lhes era necessariamente estran
inclusive o corpo
e mais do que ele: seduz melhor do geira. Não tinha relação com seus gestos ou seus'gritos, nem com seus
que o sexo, comove mais profunda-
mente que as lágrimas, convence com mais vigor do sinais, com tudo o que já fazia com que se exprimissem e se comunica—s-
que um fere,
entorpece, aturde... tem todos os poderes. Nesse movimento murro, sem. Ela rompía com o corpo. Eu seria capaz de Jurar que eles nao
que a leva da
dominação, da magia, à consciência de sua vacuidade
essencial, ela oscila “inventaram" a linguagem para falar entre sz, mas para falar com o
entre o triunfo maníaco e a melancolia. Mas a melancolia desconhecido: seria a morte? seriam nossos deuses?
revela sua
natureza, e a mania, apenas seu esforço.
Por isso é que não devemos opor aquilo Que indicam as censuras que formulamos contra as palavras? Há nisso,
que, sem muita dificuldade,
pode ser posto em palavras, ao que estaria fadado ao indizivel. É como em outras coisas, um imenso amor frustrado: a loucura de segurar,
própria operação de linguagem inscreve-se a impossibilidade de que na a obstinação de reter, a convicção de deter a corsa em Si.
satisfazer
sua exigência. A não—realização do desejo está nela, '

As palavras, minhas palavras, jamais serão minhas. Mas e, precrso


.

limites. Deslocando-se justamente mas o desejo não tem


para ali onde falha, a linguagem reali- ter qUerido que se tornassem minhas para reconhecer que nao pertencem
za seu fracasso. É, ao mesmo tempo, um luto se faz e um luto que não a ninguém, e que assim, não tendo dono nem senhor, para sempre estran-
termina. Que diz o “nada a dizer", senão a que
do trabalho de luto a que nos abandona recusa embrutecida, teimosa, geiras, nelas posso me perder e me encontrar.
o "objeto perdido", a "coisa
inominável", a "verdade sem frase”? Tanto não existe
vazia) quanto não há silêncio compacto (ou oco).
palavra plena (ou “A sombra do objeto recai sobre o ego.” Sem essa sombra, sem essa
queda, a linguagem e ruído imóvel, e não luz.
146 AFASTAR—SE DO VISÍVEL

p f
nao mais proclama o que lhe falta, e encontra nisso
seu recurso infinito.
Para permanecer em relação com a
coisa, é preciso que tenha che ado
momentode desfazer o vínculo com o objeto (término da análise? 'Parao
ww

se pernntir sonhar, há que consentir primeiro


no distanciamento .l'ue o Mais uma profissão impossível
sono proporciona. A fala que não vem de parte alguma e não se diili
ninguém aparentemente faz a ordem da linguagem ea
adormecer “eg no
entanto, produz o dizer, através de mil vozes
que, vez por outra unindo-se
sem meu conhecimento, passam a criar
uma, ou quase uma, na oscilação
, p “ a
'A?

Nada me autoriza, nem mesmo em algumas notas, fadadas por seu objeto
a se contradizer, a discorrer sobre a tradução. Minha experiência como
tradutor e muito reduzida, muito esporádica, e já não é atual. Pois bem,
como acontece com a análise sobre a qual todos podem discorrer, da

qual é um milagre que se fale no que ela efetivamente é -, a experiência


é a condição requerida. Não suficiente, e claro, mas necessária: e' preciso
estar dentro, de uma maneira ou de outra. É preciso ter a experiência do
estrangeiro (conforme o belo titulo holderliniano de Antoine Berman) e,
sem nunca fechar essa experiência, conhece—la na língua. É preciso sofrer
a tirania das línguas. Traduzir não é, de fato, como gostaríamos de
acreditar, passar de nossa língua, dita “materna", a uma língua dita
"estrangeira“, e depois voltar à primeira. Esse vaivém de turista pode se
efetuar sem lágrimas e também sem a excitação que estimula o verdadeiro
viajante. O tradutor e alguém que vejo, antes de mais nada, como um ser
em sofrimento: perdeu sua língua sem ganhar outra. Mas imagino também
seu prazer, que talvez se prenda a isto: a linguagem seria suficientemente
poderosa para sobrepujar a diversidade das línguas. Como poderia o
tradutor preservar alguma confiança em sua tarefa, sem a convicção' louca
de ser capaz de chegar a um antes de Babel? Mas é depois que ele se situa,
e não há para ele meio de esquece-lo.
Porque traduzir e uma operação que modifica, corta e mutila, e da
mesma forma acrescenta, enxerta e compensa, altera por natureza o tecido
vivo. O tradutor opera. Por mais que o saiba e deseje, a restitutio ad
integrum não esta a seu alcance. Dizem que a qualidade soberana do
cirurgião é, a cada momento, a decisão. Decidir: o tradutor não faz outra
coisa a escolha das palavras, a ordem das palavras, o arranjo da frase, o

ritmo, a ênfase colocada nesta conjunção ou naquele adjetivo, etc. Não


confundir uma tradução "cuidada", medicinalmente prudente (primum
non nocere...), com uma tradução operada, a única que pode ser operante.
Só que o que o tradutor tem que decidir sempre lhe parecem ser
soluções de compromisso. Ele se vê indo de concessão em concessão, de

147
148
AFASTAR—SE DO VISÍVEL
MAIS UMA PROFISSÃO massiva 149

ª“ªgiâiiiããçiiã-
. . - -
gm aprªxnnaçao, e nao tem outra alternativa. Pode vencer
a e, isto , em seu caso contorna - l a '
lente, porque não é uma moeda conversivel, por mais, que eu saiba que
e] . . , , mas nunca tnunfa so b re Phantasíe não é fantasia, nem pulsão Tríeb, que Wunsch não é desejo, ou
nãmlânpossiveis os momentos de exaltaçao _
que o autor conhece. Para ele anseio, ou aspiração, que der Dichter não é o poeta ”e, em última análise,
láxtmo, uma vez terminado o trabalho, feitos os pontos de sutura uni
"vá , e mais ou menos isso !, . O tradutor
'
sabe que poderão opor que Bro: ou bread não 6 pão, continuo fascinado pela impossibilidade da
ao palavra exata. Como escritor, também posso vivenciar essa preocupação,
até as raias da paralisia. Mas sua motivação é muito diferente. O escritor,
e não apenas o poeta, é o homem da nomeação (se é digno ou indigno
desse poder, já é outra história). Seu “referencial” continua a sera coisa.
gãsãçtzâ Sªas próprias palavras, e nao tem o poder de restituir as palavras Ele é filho da linguagem, numa acepção dupla e paradoxal: 'a linguagem
. es ino injusto, o dele: quanto mais rofu d ' ' '
com a língua estrangeira , quanto mais ' p n a é suª Intlm1dªde o precede e ele tem que inventa—la. Nele, 0 i nfans e o scriptor se reúnem.
se sente em casa 11e l ª, menºs ele A fantasia de dizer, de tocar “pela primeira vez" o anima. A “palavra
conhece os meios de retranspor a fronteira. '
Quem não sonh ºu, ªº Iraduer, '
exata", portanto, é;,essencialmente a que for exata para ele, de uma
em acabar com essa moradia atr aves ' da ' ' solução aceitáv
umca l'
e . re rodu- exatidão absolutamente interna, numa adequação a... ele desconhece o
l ir tal e qual o texto original?
. . .
(A ediçao . _
bilíngiie realiza algo desse sªnho )
.
quê. Se o intimarmos a esclarecer, responderá: ao que penso ou ao que
Há - . . percebo, a minha lembrança ou àquilo que sonho, ou à frase, ou ao tom
ª"Durãrlirzlitexgressao pretenSiosa que desrgna, a meu ver, menos o tradutor
do conjunto, mas sem se deixar enganar por sua resposta forçada. Na
denâtin—º (; que aquele que se esquece de seus limites: "tradução
um escritor indicar, sob o título de um de verdade, a ilusão de que a coisa possa se realizar, de que possa vir
“temo defiilitl'weflºe as seus livros , inteirinha, não a se representar, mas a se apresentar em suas palavras, o
_

ivo so significa , não que ele conSidera '


sua obrª 'Impe-
.
,
cavel, mas que resolveu n'ao mais ' lhe habita: ela inspira seu desejo de escrever.
desde o começo , e, retoque.
fazer ret oques. S o' que a traduçao
Chegando depois , oP erando num te X t0 ','
' Para ele, a perspectiva é de que não haverá dissociªção entre suas
.
produz1do, ela desconhece a fase
em que se procuram e ªs ' vezes se Jª palavras e a coisa, e, no presente, não há dissociação entrê'a linguagem e
encontram as palavras para d' sua língua: esta é capaz de dizer tudo. Seus poderes são ilimitados, por
no que está sob as palavras . O tradutor
net, para tocar no que não e S tá em palavras,
des _
' ”
, por sua p o s1çao, nao partiCi ' ' '
a
mais reduzido que seja seu vocabulário, por mais rígidas que sejam suas
:: produz fica 50 regras sintáticas. Quando um escritor deixa de ter convicção disso, deixa
.
âoglilnâgto que o texto: reduzido a colocar
lug palavras
. outra pa avras, que não apenas pertenc em a uma
outra li também de escrever. Mas, enquanto escreve, e ele que se sabe deficiente
' ' e nguª,
tem - .
' ' em relação à língua: acusa-se, como o enamorado inquieto diante do
_

conSistenci a, outra materialidade


senado . , outras ressonanc1as outro
latente _ que o locutor pode objeto amado que lhe escapa, de não saber "encontrar as palavras que..."
continua a ser portadora
_
esquecer , m as do q ual a pª l ªvrª
, mas que vem também
— ”
arcar uma trajetória ' ' (prova de que elas existem no repertório da língua); pode fazer mil
de pensamento que so' podemos
111

presumir . 0 au t or pensa em '


sua lingua , censuras a si mesmo, por ser vago ou abstrato, fluente ou preciosista, claro
há umª tensão (“ nao _
é isso que quero dize r " ) '
_

.
'
, nao ex1ste hi ª t 0. Quªntº
' demais ou obscuro demais, e pode experimentar a vergonha de reconhe-
ao tradutor, ele reside nesse hiato '
.
'
. Por isso P ar a se
,
'
ver livre del e é cer, no que acreditava ser sua própria voz, o som de outras vozes admira-
inversamente atraído , pelo lad o do das. Mas nunca, seja ela qual for, move uma queixa contra sua língua,
ue o . . pensamento , para a pergunta: " ue é
gem nª:;lolrnquis dizer aqui? , e, como tem que responder a essa pergunta
.
salvo nos momentos de amarga constatação de sua própria impotência.
a certeza, vai sendo conduzido
lá;-io ineo f a contragosto para o comen- Na tradução, a experiência é inversa: uma vez deportado para a
opacidade-n 851851? pu entar; se restringe aos enunciados, aceitando sua lingua estrangeira, eis que invariavelmente o tradutor a julga mais “rica” ',
ri o ou a dra. a essa altern ativa ' ' mais "matizada", mais “metafórica", mais "musical” do que a sua, e
.
. odiosa , q u e O autºr
ignora, e, que o tradutor fica 5 ubmetido '
— a de um redator de enu neiados ' , sem poder
'
esc ªpara suª Cºndl窺 ' " percebe nela uma profundeza de sentido que sua língua teria perdido. Sim,
-
p me uraçao, o lugar sempre incerto, e, .
que renunCiou a alcan ç ar m esmo r sua lingua lhe parece descamada, esquelética e exangue em comparação
verdade, do sujeito da,enunciaçgg com aquela em que a linguagem veio agora se encarnar. Daí a idéia,
A b prudentemente proposta por Berman num ponto qualquer de seu livro, de
ç
' ª. uªduçªo que "o motor da pulsão de traduzir” bem poderia ser o ódio a língua
materna. Conviria fazer do “esquizo” (ver Wolfson), mais do que de são
Jerônimo (ver Larbaud), o santo padroeiro dos tradutores?
150
Aaxsrxnsa Do vrstvEL
Mus UMA momssxo umsstvm. 151
Só duas teorias seriam
capazes de livrar o tradutor de seu tormento:
que fizesse de nossas línguas, em sua uma
diversidade, sua dispersão e sua e ªt é os "contra-sensos" revelados numa tradução são pecados &???
é
MaS, p0_der dizer que um texto cheira a traduçao, isso inacei. 'da
bem-intencionada da "miscigenaçao das culturas ºu
crença arcaica numa língua originária,
menos universal do que sagrada, invocaçaod
lin uas' ' não muda nada nessa história. O cheiro de du ç ãº
da qual as línguas atuais seriam
os dialetos leigos; do outro, a moderna égªªrª caseirogde tªs
cozinha: corta o apetite e tira o sabor dos pra .
celebração (conviria dizer "pós—moderna”?)
da informática. Discutir
fundamentação dessas concepções a .

' ' mi rar em


opostas, no Q ue é traduzir portanto? É emigrar, Sim, com certezaà,
nªs

linguagem e a segunda e desqualifica deixa que a primeira exalta a qui tinha-


-
simplesmente porque ambas são igualmente o tradutor indiferente, muito nossa pr6p ria língua. Reviver o exílio nela, renunciar r

por sua paixão. Para ele, o absoluto e contraditas por seu trabalho, mos de ser (Sie us roprietários e senhores, à ilusão de que po díamos disiªpgcr
língua vernacular que lhe parece irredutível“dialeto": não é apenas cada
o dela como e uiª bem a nosso bel-prazer. É atravessar a experiencesmo
a alguma outra, mas o mesmo lin ua due já conhecemos - a nossa e, nesse mla

ªpreilrgãlntlomãos dgiãrarmos
grandiosa da “versatilidade infinita" das mov , despojar desse saber, desse uso, dessa re ç âo
línguas pode seduzir qualquer
um, exceto aquele que se dedica, até as tranquili'lrtdu
raras de vertigem, a discernir a zir (transferir): menos mudar de língua do que mudaâgâaãógãa
diferença e a distância de uma língua
a outra e, no seio de uma língua, língua e nela, reencontrar o estrangeiro da linguagem. Emigr

do sentido a mais ,
que uma obra pode dar aos nomes ' '
mltlr a mi ração das palavras:
desvario do tradutor, só existissem comuns, como se, no
estrangeiras. Todas voam de um um ndo p ara
<?I'lfdnzlrls
nomes próprios... lignguas são
as ,

OlltI'O.
Tradutor, será ele uma placa de vidro
nf CUJO único ofício e deixar
ll lw luz? Um mensageiro, um passar a
go between que transmite a mensagem, e
que
emissor e as expectativas do
Essas imagens, que sob diversas
formas já foram muito úteis, receptor?
parecem se impor. Os próprios tradutores
retomam a sua maneira, colocando as
seu de honra na humildade,
opondo à eterna acusação de traição ponto
seu ideal de fidelidade. Debate
cansativo, mas inevitável. Na época em
posição sumamente cômoda, ali como que trabalhei com tradutores na—

em outras áreas, de "supervisor"


—, quantas vezes
me ouvi dizerem: “ '
o mais perto possível, e agora julga
meu trabalho excessrvamente literal
pela preocupação com a exatidão." Ou:
“Você me encorajou a correr
riscos, e ai está a me censurar
por interpretar, pela preocupação de
expressar bem." É verdade: como
escapar a contradição, a essa tensão
que constitui a impossibilidade do ofício? Escolher
ou menos maltratar a lingua alvo; a lingua fonte é mais
resido nem numa nem na preferir esta é sacrificar aquela. Não
outra, diz-nos o tradutor: estou necessariamente
entre as duas.

ras para o leitor que sou. Que arrisca


produzir, na verdade, esse go between
profissional, esse residente entre duas
línguas? Uma lingua terceira,

ninguém fala nem entende (da que
qual as “traduções simultâneas" dos
congressos nos fornecem uma amostra). Para
mim, os “sentidos falsos"
FREUD rosro EM IMAGENS lã.!

de Freud, rapidamente transformado, para atrair mais público, em Freud,


the secret passion (em francês, Freud, de'sirs inavoue's).' Quase não fez
sucesso. Montgomery Clift fazia o papel de Freudzª por sua simples
fisionomia, por seu rosto ao mesmo tempo puro e devastado, por seu olhar
claro, quase alucinado,4 e por sua representação quase sempre patética,
Freud posto em imagens esse grande ator acentuou os traços atormentados, a tensão e o sofrimento
de seu personagem. Apesar - ou por causa, diriam alguns - dessa inter-
pretação, o filme pareceu a muitos não escapar nem ao ridículo nem ao
exagero.
Reconhecemos na história desse roteiro um conhecido comporta—
mento de Sartre. A principio, uma simples encomenda. Depois, a entrega
ao trabalho, um trabalho de que ele se apossou com imensa alegria, e que
se apoderou dele, porém mais como um jogo, um desafio, do que como
Lembro-me que Sartre trabalhou
no
roteiro do Freud de Huston.
uma obra. Nenhuma preocupação realista com a moderação: se o roteiro
GEORGES Franc, original fosse aceito tal e qual (“da grossura da minha coxa”, diria
Je me souviens, 1980 Huston), teria dado um filme de cerca de sete horas (“pode—se fazer um
filme de quatro horas quando se trata de Ben Hur, mas o público do Texas
não suportaria quatro horas de complexos”, diria Sartreª). E no fim,
renúncia voluntária a qualquer direito de “paternidade” e desinteresse
CIRCUNSTÁNCIAS total pelo resultado final: terá Sartre sequer visto o filme?
No ' Na verdade, como nos revelou nossa investigação, as coisas se
162333552 ano de 1958, o diretor norte-americano John Huston pediu desenrolaram de maneira um pouco mais complicada e ainda mais “sar—
ª artre que escrevesse um roteiro sobre Freud:
mais precisa— triana”. Depois que Huston recebeu o roteiro completo e emitiu objeções
mente, segundo uma tradição bem hollywoodiana, sobre
ea da descoberta, a incrível época em a época “herói— cujo teor exato não conhecemos, Sartre lançou-se outra vez ao trabalho,
inv que Freud, renunciando à hipnose tornou a dar tratos à bola; mas, longe de encurtar o texto, como lhe fora
a
a dgnâaaogco uptouco, dãlorosamente, a psicanálise.1 “A idéia básica , solicitado, tornou—o mais longo! Naturalmente, cortou inúmeras seqiiên—
ven erro”, iria Huston mais tarde “ rtiu ' de '
, pª mim . E u cias, chegou até a eliminar alguns personagens que ocupavam um lugar
queria me concentrar nesse episódio a maneira
_

'
_


de um em d o pºlme]. ' ' ”2
Sartre acertou prontame nte a
_

'
importante na primeira versão, especialmente Wilhelm Fliess, o amigo
. .
proposta
. .
. a soma oferecida era sr 111 ' '
berlinense de Freud, mas acrescentou cenas novas, novos personagens,
21331111; edele precrsava de dinheiro. Trabalho circunstancia? pªcmatlíâ,
e encomenda e até falimentar”, mas do ampliou as exposições teóricas e didáticas e, em suma, escreveu outro
101?ng qual ele se apossaria roteiro. De fato, segundo os manuscritos e transcrições datilografadas que
e
guamo pªrir? IÉIO qualdse dedicaria por alguns meses com tanto prazer pudemos consultar, graças à infalível gentileza de Arlette El Kaim-Sartre,
. .
ao. o lm e 1958, Sartre fez che
_
_
'
gar as '
maos de Huston parece que ele não levou inteiramente a termo essa segunda versão.
ãiâãªsger 35:12:13 sunplesdmeilite “Freud”, e que contava com 95 páginª:; Entretanto, com toda certeza, ela chegou às mãos de Huston: diversas
espaço up 0. Esse “trabalho pre l'lmmar ' ” datado de 15
de dezembro, foi aceito . N o ano ' , sequências que só figuram nessa segunda versão (por exemplo, o “sonho
.
segurnte , ele escreveu o rot um. '
Cºnhe— da montanha”) seriam retomadas no filme, mais ou menos sitnplificadas.
cemos a contmuação da história ou pelo
.
'
menos ,' éassrm q ue e ] & costuma
,
Que houve exatamente entre Sartre e Huston? Faltam informações
'
.
ser narrada: o diretor pediu a Saftre algumas modifi
fez concessões , pºdo u, alterou , e depois se caçoes e cortes, Sartre precisas. Mas dispomos de depoimentos dos dois interessados que é
.,
acabaria sendo consideravelm ente
_
_

'
can Sºu- N O fim, O rºteiro '
divertido cotejar. Em outubro de 1959, Sartre passou algumas semanas na
reduzrdo e transf mmª d '
.
nais do cinema, Charles Ka ufmann e ºpor prºt—[SSID-
Wolfgang Reinhardt amr' os d
à
_
. .
53151203; Sªge extgiria que seu nome não figurasse na ficha técngica
ro o em 1961 e lançado nas telas no ano * Respectivamente, “Freud. a paixão secreta“ e "Freud. desejos inconfessados". No Brasil, o
seguinte, com o título filme recebeu o titulo de “Freud além da alma“. (N.T.)
152
154 AFASTAR-SE no VistvEL
FREUD POSTO EM manaus nas

ca St. Clarence, na Irlanda, em


"assªltª; fgªªifoosªlfa em principio para
. emetemos o leitor à carta implacá vel e ' cv ' revelação. Ali estavam dois documentos essenciais, dos quais, passados
25 anos, agora que se multiplicaram ate' as raias do exagero os estudos e
. .
533133: (lili: la a Simone de BeªUVOlI.6 Uma pérola! Citemos agjienaltaslígtlgÉ
.

que trabalheira! Quanta ruminaçâo intelectual depoimentos sobre Freud, é difícH avaliar a soma de informações novas
aqui'. Todª) tªl::ãah; o em seus complexos , e isso ' por
que traziam. Até então, ignorava—se quase tudo sobre a pessoa e a
história
fem vai' do mas msmo ' '
desde muito pretendendo,
_
de Freud, como ele mesmo havia desejado cedo,
_

Aiqtes nun?
eno ãiªggaªiopfrgfá .
poréán, estamos no Inferno.
mun o esqãe morto , com os complexos congela- ,
ao que dizia com uma mescla de ironia e orgulho, “tornar árdua a tarefa
dos . A ammação
.
é pouquinha,.
" de seus futuros biógrafos”, e pretendendo acima de tudo, ao que me
pouquinha . E maiS'. “H uston usou É
_
ele
eêgrâãsolfngªçada para falar de seu “inconsciente” a propósito de prªtª? parece, confundir seu destino com o da “causa” psicanalítica. que
.

nada. E o tom indicava o sentido: mais temia, provavelmente com razão, que as verdades da ciência que havia
velhos deseª'º . nada, nem sequer
trabiiollsi inchíifessáveis.
Uma imensa lacuna. Imagine
como é fácil fundado, tidas por ele como simultaneamente singulares e universais,
fazê—lo
porque ele o entristece. Esta- ficassem comprometidas, uma vez que se desnudassein os determinantes
mos todos “magºs Sªge dp pensamrãilto,
a sa a reserva aos fum an te 5 todos pessoais, familiares egculturais que haviam possibilitado sua descoberta.
do . conversan-
de plena Ora, embora se tratasse, de um lado, de uma biografia “oficial”,
em _
coàse repente, discussao, ele desaparece. É muita sorte
gu1rmos teve—lo antes do almoço ou do jantar.” construída por um guardião da ortodoxia e discípulo vigilante (até as
aI-Illiliston, por sua vez, guardou dessa mesma estada uma lembrança sombras se destinam a fazer ressaltar a luz do herói), Jones trouxe, a
mais propósito do homem Freud, dados então insuspeitadosJº Quanto à corres—
sªrngriê. ImNgãcz; trabalhei com ninguém tâo teimoso e categórico
quanto ss vc ter uma conversa com ele . Im DOSSíVel 'mta—rom— pondência com Fliess, ela atestava, entre outras coisas, a intensidade do
»

.
.
pe-lo. Sem parar para respirar el
, e me afogava numa t
'
vínculo que unira os doishomens, principalmente Freud a Fliess; sem essa
[...]. Sucedia, .
oucmezumdepªlavrªs
&
esgotado pelo esforço, eu deixar
'
o cômod 0. O '
bldo de paixão, sem essa transferência ainda por nomear, teria a psicanálise algum
sua voz me acompanhava por um in stante dia vindo à luz?
e, quando eu voltava ele n
:$
.
::?rillfiroªgfiâ ãeepârcâtâo que!-: eu msíaíra."7 Além disso, no capítulo de Não há dúvida de que essas leituras transformaram radicalmente a
0 ao re , a amargura transparece a c ada '
imagem que Sartre fazia de Freud. Elas lhe mostraram uma personalidade
contundentes não poupam ninguém: colaboragâfelªae
_

fnãiâgªgnfplgs contraditória, violenta e contida, em luta permanente com ela mesma e


s a projeção de um curta—metra em ( Le there be '
, com o meio, teimosa e dilacerada; fizeram da invenção da psicanálise o
.
g Light)
que ele havia dirigido , em 1945 , sobre o tratamento
por hi' nose dos produto de um longo trabalho feito em si mesmo e, acima de tudo o que

.
ne uróticos com traumas de guerra, Huston, durante estaãa
a em St. tinha muito mais valor aos olhos de Sartre —, contra si mesmo, com rasgos,
&

Clarence, tentou hi pnotizar '


Sartre! Fracasso total . “ ' ' ' '
víduos rebeldes”, concluiu Huston.ª Assm, ethtem md]— impasses e retrocessos;“ enfim, permitiram a Sartre, essas leituras, ver na
sucessão das hipóteses formuladas, na modificação às vezes drástica da
teoria (pensemos no abandono da teoria da sedução), algo inteiramente
diverso de um exercício puramente intelectual ou do resultado empírico
FONTES de um levantamento minucioso dos fatos: era muito mais o próprio
movimento de uma análise, da qual Freud, exatamente como os neuróticos
uais “ " '
.
de quem tratava como podia, e só como podia, era o pivô. Freud, médico
aãnãontes de Sarne? As contingências editoriais às vezes
Salemfplil'laiªn
enfermo, teria descoberto quase a contragosto a psicanálise ao mesmo

Em
numa tradução &&:cíggziguiiçao. ]1958, precisamente, foi publicado —

tempo, o método e seus objetos para curar a si mesmo, para


— resolver
meiro vo ume da grande bio rat'ia de F prenunciou
por Ernest Jones; esse volume cobria o período intereêsava Hursígg seus próprios conflitos. O Freud revelado a Sartre naquele ano
que a
e Sartre, relativo ao 'ª'Jovem Freud " e terminava seu Idiota da família: neurose e criação tinham algo em comum, e o
.
consecutivaàmorte do pai, dalnterpre; ação dossonhos.9 D '
'
co m & publicaçao, ' tinham porque a neurose já era uma criação, só que privada, e privada de
tinham Sido publicadas, sob o título de La sentido para seu autor por estar escrita numa língua cuja chave ele não
_ '
_

naissance de la 2322213133,
_

as carta '
de Freud a Wilhelm '
Fliess possuía (e como abrir um cofre forte cuja chave esta no interior?). Neurose
à cºrte:p ::::áiperadas
e os manuscritos anexos
encia, que, mesmo para os especialistas, constituíram e criação: tema de dissertação, desde que se opusessem entidades, mas
uma caminho a ser sempre reaberto em seu “universal singular”, caminho, pelo
156-
AFASTAR—SE no VISIVEL
FREUD POSTO EM IMAGENS I57

menos, incessantemente reabe rto r Sartre de ' a


, Baudelaire Flaubert, estimulada pelo imaginário, sem jamais poder reassenhorear—se de si? Quo
passando por Sat nt Genet 8 Les mal;-).
.

vinha a ser um histérico, portanto, afastadas a hipótese da simulação e a


escolaAdbâiincgãosarm't—izfªª de Freud anteriormente — a de um chefe de do trauma? Em certo sentido, a loucura se afigurava a Sartre menos
e meio limitado, de um filósofo medíocre, nenhum de estranha, pois ele via nela uma forma de lucidez distorcida, mas superior
cujos conceitos r es1stia
a um exame, e Deus sabe que o de Sartre podia (pensemos no personagem de “La chambre” [O quarto], no Franz dos
ser devastador _
385831 ªlém(já nao se sustentava. E Sartre extraia um Séquestre's d 'Altona [Os sequestrados de Altonal). Daí a tirada que ele
extremo de ver S,“ prazer
ele a tirar as cons tiêllias ã,.pernas para o ar, sob a condição de que fosse soltou um dia: “Considero os loucos mentirosos.” Mas seria possível
isso... .? mtransrgência de Freud,
nele de intratáveiq crias o que havia tomar os distúrbios histéricos por mentiras, sobretudo quando eles atin-
quan o a questao era ceder quanto ao exigido pela giam funções vitais (cegueira, anorexia, paralisia, astasia-abasia, asma),
verdade sua o s' tenaz à medicina e a psiquiatria
elas só faziam gªga; reinantes, no que como acontecia com as pacientes tratadas por Breuer e Freud? O psicana—
ele foi alvo, sua solidão s::smtgllllilgrs,oº ªtm.lsmnitisInº diSSimulado de que lista qualificava de misterioso o salto do psíquico para o somático. Muito
e_ainda sua pobreza e seu longo desdiêli; glªvãcgdlriãªft como Sºlidãº, mais misterioso aindª, para o filósofo, era o salto da consciência para a
inércia: como diabos podia a transparência “escolher” a opacidade? Como

podia um ator—agente cair (decair) na passividade original?
Observe-se que foram sobretudo os casos de histeria que retiveram
'
exclusi va por Martha, por seu crume ' '
sombrio, ele que escreveu que “não
se p ºd e pretender ao mesmo tempo
agradar e amar” " a atenção de Sartre, e, mais especialmente, os casos de histeria feminina.
Lem - ª . .
d.) zer, enquanto liª O livro de
Naturalmente, a época considerada se prestava a essa escolha, mas senti-
com deleitªªhãffãªãªfggdº
' a em
Jones, e mos Sartre simpatizar com essas mulheres a-históricas (nos dois sentidos
esse seu Freud era neurótico
medula!” Ao mesmo tempo, S artresa,
, .
até a da palavra), com aquelas vienenses todas feitas de nervos e fantasias, que,
_
“ oç oe s que antes, como filósofo '
pôde com preender senao ace '
num mesmo movimento, atraíam, desafiavam e faziam troça do homem-
que permanecem mais cartesiano do girl;
su unha ' ' médico, todo enterrado em seus trajes de cerimônia e num saber que
rªcalca, atrªiª) (128533 eu:i pedaços, como as de pensamento inconsciente
e re uma testemunha, Sartre costumava dizer pretendia infalível. Sem dúvida, ele que nunca escondeu o fato de que
ao falar de Huston- “O ligiª preferia a companhia das mulheres à dos homens teria apreciado, se as
de maçante nele é
inconsciente.” Revira qlue que ele não acredita nd houvesse conhecido, estas palavras de Lacan (cito-as de memória): “Há
ta saborosa
ou projeção desconhecida? Como
leitor do roteiro inclinvo em toda mulher qualquer coisa de desvairado ...e em todo homem qual—
testável que Sartre S o-tnêe pela primeira hipótese, pois me parece incon- quer coisa de ridículo.” De fato, que facilidade, por parte de Sartre, para
ou tomar sensiveis e portanto, inicialmente,
destacar no roteiro o ridículo.e o odioso masculinos. Apenas Freud

sensibilizar-se para _ diversos


havia promovido pormuito fenomenos, que a noção de má fé, que ele
' tem
po p a ra “ contrariar - » .
Freud,já - bªSfªVª escapou, sem dúvida porque Sartre soube perceber, naquele que, apesar
_
Para explicar. nao de excelente marido e bom pai de familia, soube pela primeira vez escutar
as mulheres jovens 4 e não para seduzi-las, mas para permitir que falassem
de seu sofrimento e seu prazer —, alguma coisa de feminino., Com o
reconhecimento da bissexualidade, a linha divisória masculino/feminino
deixou de ser o que era.
Mas voltemos às fontes: Jones, portanto, em primeiro lugar, as
cartas a Fliess, os Estudos sobre a histeria e o caso Dora das Cinq
psychanalyses, para beber neles o material clínico e deles extrair “figuras
compostas*; e finalmente, uma leitura, que imagino bastante cursiva, da
Interpretação dos sonhos, para dela retirar alguns sonhos de Freud.
Acrescentemos, a titulo anedótico, que, para esclarecer a passagem de
. .
gin á no a ponto de se perder nele de
corpo e alma? Era concebível que
em brevíssim e em condiçoes particulares
- — Freud pela Salpêtriere, Sartre colheu algumas informações sobre Charcot
ela se tomas sãs gªmeâtos (sono, emoção)
por intermédio de uma leitora. As mentes sérias ou rabugentas
é
ou “mágica” ' dia
º 1213 0 Jºvem Sartre,
consciência “imaginativa”: disso trabalho de

5 como compreender
Que uma existência inteira fosse
freqiiente serem as mesmas concluirâo

que seu docu—

mentação não foi nem considerável nem muito preciso. Que seja. Mas,
158 AFASTAR—SE DO FREUD POSTO EM IMAGENS lSº
VlSlVEL

para começar, a finalidade de Sartre não era fazer um filme


rigorosamente 0 LAÇO DE PATERNIDADE
conforme à realidade dos fatos. Depois,
as invenções de Sartre foram às
vezes de tal força que mesmo quem acreditava conhecer Quem não se lembra desta formulação de Les mots: “lªlao exrste bpânopâre,
língua a saga freudiana já não confiava em sua na ponta da
memória, e ia vasculhar & essa é a regra; que não se censurem os'homens por isso,! mas plc game
biblioteca, na preocupação de verificar o fato e localizar paternidade, que é podre”? Todavra, fp! em torno desse aço q
a
invenção pura, antes de voltar a se tornar certamente mais deturpação, a ordenou seu roteiro, segundo uma Visao bastante clássrcatpara ós , mªs
freudiano e de nd
reconhecer que, sendo a lembrança e a provavelmente nova para ele: Freud as voltas com a krgurhal ficªaie,
ficção impossível de separar, a
questão do verdadeiro e do falso não mais se colocava! repercorrendo incessantemente, com seus mestres, Bruc e, dzyre
exemplo, na cena do cabeleireiro (3ª parte, versão I, Penso, por eti-
Breuer, essa trajetória de apego, rejerçao e ruptura, reencontran strªdor
pp. 356—360) ou no
espantoso retrato do professor Meynert (2ª parte, versão 1, damente em seus enfermos, ora o pai sedutor (Cecily), 0 [ciªl ca)
Mais verdadeiros do que o natural! A pp. 154—159"). or? ai da
(Karl), até a libertação final que, com a morte de ..Íakob, ez e
que ele foi buscar isso? A gente juraria
língua comum diz bem: “Aonde é
É
psicanálise. provável que Sartre, que se pretendia semdpar, e“q .
ie Erê
em
ele esteve lá.” Posteriormente,
Sartre “inventariar” da mesma maneiraque seu trabalho de escritor tinha se de sua
os, pais e a infância de Flaubert. repugnancra por consrderar . pal
Poderíamos dizer que treinou para isso
com seu “Freud”. obra”, tenha encontrado nesse destino do jovem Freu mgtrvost,=Ssenão
Por último e também nesse para destruir, ao menos para abalar sua convrcçao; Centran o a ps Scªm-e “isa
aspecto seria justificada uma compa-

ração com O idiota da família —, o projeto de Sartre e a descoberta freudianas, como o fez, na relaçao com o
não escapou à meta pªli-iamente
“total” que pareceu encontrar sua mostrou, ao mesmo tempo, que essa relaçao nao estava nelcessàa
realização plena no “Flaubert“. A fadada â desgastante alternância entre a submrssao e a revo ta, osi ão
tentativa grandiosa e, temo eu, propriamente
palmente de compreender, tudo de um homem,
absurda de saber, e princi- nítida entre a passividade e o ato puro; talvez tenha a_té perce
s㺠(the

tentativa durªnte:
explicitamente nessa “súmula”, era sem dúvida um velho que se afirmou querendo prescindir do pai, corre—se o sério risco de nao passarªível
(um desafio a Deus, de
desafio de Sartre toda a vida, de um filho das palavras..._A vantagem e o amen das
quem essa seria a vez de se tornar uma “paixão palavras e' que elas só se ligam entre sr. Quem se. recusa a rec cher e 3
inútil”). Mas me parece mais fácil acreditar
litado o “Flaubert”. Com L 'Idiot de la que o “Freud” tenha possibi- transmitir fica sempre com medo de ser um falsárro, um ser ver bal , um
famille, o desafio (quase) foi aceito. fazedor de gestos.
Com o roteiro, ficou em aberto, na
própria medida em fracassou. É
que Sartre pretendeu segurar diversos fios ao mesmo que Não creio - o leitor poderá julgar que Sartre tenha propostoéçãrãl

nenhum. Na verdade, ser-lhe-iam necessários tempo e não soltar seu roteiro, uma “interpre tação” pessoal e original de Freud. Ao cor:= :aso,
milhares e milhares de' agrada-me acreditar que Freud, mesmo que, comoacontecepártress
páginas, dentro de sua perspectiva totalizante,
juntos, o Freud judeu e o Freud burguês, o Freud-filho para tornar inteligíveís, tenha sido recortado em linhas gerais (o _corte. crnematog bri ;
e o Freud-Fliess, rego—o ãe
o Freud neurologista e o Freud a isso), tenha interpretado Sartre. N_ão for depors de sua freq a 0311666—
neurótico, o Freud civilizador e o Freud gn
pulsional, o Freud da “Viena de fim de século” e Freud Freud que Sartre iniciou uma autobiografia., da qual por ora Sr
o sem fronteiras... ctarnbém
Como, acima de tudo, tornar visível a realidade mos o titulo (Jean sans terre, Jean sem par...)? Desse .prºje_o,.
objeto da psíquica, que é o único inacabado, derivariam Les mots e, em seguida, por vra mais direta
psicanálise? A realidade psíquica e não o mt bio;
ventre macio —, feita de representações distribuídas

“psiquismo”, esse L 'Idiot de. la famille. Lembro—me que, para ”levar a bom termo a
att; oseus
em redes, como grafia que tomava o rumo da “auto—análise Sartre
nervos com suas sinapses, trilhos com suas , resolveu ano rle
e regida por mecanismos. O problema é comutações, submetida a leis sonhos, ele, o homem do dia, e se submeter a testes prºjetàvos, e o
lancinante de Sartre “Que podemos saber que, ante a indagação abrupta e homem do “projeto"; que chegou até a contemplar e verda ,10

de um homem?”
-, ante essa
—_

e,?“ pºeue
indagação que não lhe pertencia, a psicanálise só espaço de uma brevissima conversa a ideia de inicrar “Em anjhrseúnen—

podia dar uma resposta


decepcionante: não um “Nada”, mas, “O representava para ele a psicanálise? lJ'm util mstrumentp le lco ec
que esse homem sempre soube”.
Primeiro e talvez único obstáculo: a amnésia. to, indispensável, por certo, mas um instrumento do qua. e, e lolgrarrzkiªumª
Quanto à suspensão da vez que pusesse mãos à obra, se apropriar. Transferencra. ao sa dº
amnésia, ela consiste menos em exumar —

maneira do arqueólogo, do lembranças enterradas, à


que em permitir à memória tornar seu
aquilo que não o era. O evento, em psicanálise, não é
cia do uma reminiscên-
vivido, ,
* Perdem-se na tradução as implicações trazidas pela rima original: “lean sans pete". (NT.)
160 AFASTAR-SE DO VISÍVEL
FREUD rosro EM IMAGENS Nil

que se tratava. Não da transferência, quer dizer, da necessidade para


deixar adVir em si o desconhecido, de se dirigir a Como é que um sonho, embora apareça ao sonhador como uma
um destinatario alheio
a esse apelo, definitivamente ausente, quase impossível de representação em imagens, ou até como um filme do qual ele seria
encontrar. espectador e que se desenrolaria numa tela,” sim, porque é que um sonho,
Sem querer exagerar, podemos levantar a
hipótese de que o roteiro uma vez transcrito no cinema, deixa de ser um sonho, ao mesmo tempo
sobre Freud também tenha sido, para Sartre, um roteiro de Freud
ele desempenhou seu papel (Sartre nunca depreciou em que que um filme inteiro, dito “realista”, pode ser percebido como onírico?
Freud, expondo Há nisso um paradoxo. Num certo sentido, a psicanálise libertou o
honestamente suas primeiras concepções); de que, inicialmente encarado
como um desvio do trabalho em que ele se iria empenhar por inteiro - a imaginário, estendeu para além do campo da percepção o domínio do-
Cntica, o Idiota —, o roteiro também o tenha desviado de seu próprio visível e assinalou sua influência tanto na vida pessoal quanto coletiva:
prºjeto. É possível que, por algum tempo, ele tenha consentido embora os sonhos, devaneios, fantasias, cenas visuais, o teatro privado e as
rindo as escondidas, em se aceitar, como todos nós, como filho de Freud cidades ideais dos visionários nunca param de nos acompanhar. Em outro
So que era um filho infatigável e inteiramente decidido sentido, porém, ela desacredita esse visível, destituindo—o da condição a que
a não carregar por ele aspira: o inconsciente, tal como o ser dos filósofos, não se dá a ver.
muito tempo nas costas aquele Anquises.
Tomemos um exemplo: quando Freud discerniu, através da análise,
os diferentes processos do trabalho do sonho condensação, deslocamen-

to, sobredeterminação, elaboração secundária —, deparou com um a que


E SE A COISA PSICANALÍTICA SE RECUSASSE A
IMAGEM? denominou de Darstellbarkeít,“ a saber, a necessidade em que fica o
sonhador, devido à impossibilidade em que o sono o coloca de recorrer à
Por uma vez na vida, também Freud poderia ter—se deixado seduzir pelo atividade motora, de representar em imagens visuais, de “alucinar” seu
cinema, pelo projeto efetivamente tentador de colocar a psicanálise em Wunsch, seu desejo inconsciente.20 Trata—se de uma restrição imposta ao
mia gens. Em 1925, Karl Abraham, o bom discípulo, pressionou-o a aceitar sonho, apenas isso, e que não é encontrada em outras formações do
uma proposta séria: “O projeto”, escreveu, “está em conformidade inconsciente, tais como o sintoma ou o ato falho. Em outras palavras, a
com o
espirito de .nossa época e certamente será executado.” De início Freud imagem é menos expressão do que figuração, representação plástica,
ficou indeCiso. O argumento tradicional do “se não for feito conosco será como disse Freud em sua resposta a Abraham, citada há pouco por nós.
feito sem_ nós, por incompetentes, e isso será muito
pior” não,teve Ora, o cinema, assim como o sonho, está fadado a esse tipo de repre-
nenhuma influência sobre ele. Abraham insistiu. Freud irritou
se sentação (Darstellung): tudo o que o roteirista registra em palavras na
alegou coluna da esquerda de suas laudas gestos, movimentos, emoções, ento-
que o estavam apressando.lõ O motivo que fundamentou sua recusa foi de —

ordem teorica, foi uma questão de princípio, relacionando-se com a nações, descrições dos locais, de objetos, etc. tem, idealmente, que ser

propria essência da coisa. Eis como Freud o formulou: "Minha principal transposto em imagens. Caso contrário, é uma perda completa. A “repre-
objeção continua a ser que não me parece possível fazer de nossas sentação plástica”, a figurabilidade, de simples condição, torna-se lei. O
abstraçoes uma representação plástica minimamente respeitável. ' 7 Afinal “não-figurativo” (as “abstrações”) fica assim submetido ao “figurativo”:
nao daremos nossa concordância a uma coisa insípida [...] O pequent; tudo, sem que nos apercebamos disso, tem que se reduzir à imagem. Tudo
ãxemplo que você menciona, a apresentação do recalcamento por meio aquilo que-constitui a investigação analítica, a saber, o funcionamento
1583112132- gomparaçao de Worcester,18 parece-me mais ridículo do que superposto da pulsão e daquilo a que ela delega seus poderes: afetos e
sinais, na maioria das vezes pontuais, “insignificantes”, fora do contexto
e fora do texto. A pulsão opera e, ao cabo de suas operações de pensamen-
Que pretendeu Freud dizer exatamente com “abstrações”? As gran-—
.
des instancias tópicas, ego, id e superego? As operações psíquicas to, atravessa a imagem; ela produz sinais, não produz imagem. Daí muitas
o recalcamento ou a projeção? Certamente, mas creio
como incompreensões, das quais o relativo fracasso do “cinema psicanalítico”
que é preciso é apenas uma manifestação, aliás benigna. O equívoco não cessa — e
estender o alcance da palavra e portanto, da objeção ao conjunto da

deveria cessar? depois de se haver dito e mostrado cem vezes que a coisa

cºisa” ps1canali'tica: nada da vida mental pode ser traduzido pela —

imagem sexual freudiana não é reduti'vel às coisas do sexo, e que vive dessa
sem falseamento. A recusa peremptória que Freud opôs a Abraham só
teria feito enunciar uma rec usa categorica
' '
acolhe o inconsciente.
' ' ' '
primordial' '
'
. a ima g em n ªo

* Representabilidade ou figurabilidade. (N.T.)


162
AFASTAR-SE DO vrstvrsx.

dlstância; que o Édipo não é o


qpe .nos liga a pai e mãe; que o horror ao
incesto nasce de uma re p res entaçao
social. insustentavel, e não de uma prescrição
Esse ' ao autor do Roteiro sobre Freud. Pare-
ce-me que ªggggcàªglescapou ivre em relaçao ao “gênero” que lhe foi imposto
ele conseéum fazer aSSIm posso dizê-lo, mais inconsciente?
simo_o mais freudiªtfãszãràãs A moça
audácia e sua eficácia de dranªllmtãme, quªndº Éle Põe em cenª, cºm suª
a rgo, as relaçoes passionais entre seus
pesonagens do 131ue e in suas incursoes forçadas na
Cecily ou no 5 SO os CUJO Simbolismo edipiano fantasmagoria de
mas apenas o simbolis-

mo e llunca 0 nª.| eto Slngulª! de


representªçoes Eletivªs Sªltª
9

aºs
#

A que se prende o encanto da Gradiva? Já desponta uma hesitação ao se
escrever essa palavra, “Gradiva”. Que designa ela, exatamente? A narra—
tiva de Jensen ou a de Freud, que mais faz duplicar a primeira do que
interpreta-la? O mármore do museu Chiaramonti? O fantasma perseguido
Zoé
por um rapaz a quem as mulheres de carne e osso apavora mm, ou
Bertgang, cujo prenome significa “vida”? Como poderíamos separar a
“fantasia pompeiana” do comentário erudito, como poderíamos dissociar
a escultura que um velho autor, num dia de inspiração, retirou do esque-
cimento, e a história que ele inventou, uma história que encantou Jung,
depois Freud, depois os surrealistas, depois tantos outros, e que oxalá não
tenha parado de conquistar leitores? O herói, o dr. Norbert Hanold,
diz—nos Jensen, havia pendurado um molde do baixo-relevo em seu
gabinete de arqueólogo; o dr. Sigmund Freud colocou outro aos pés de
seu divã de analista: assim, seus pacientes imóveis tinham continuamente
diante dos olhos aquele andar inimitável. Gradiva, a que avança, tal qual
o deus Marte gradivus- rumando para o combate, só que, neste caso, o
combate do amor. E Gradiva rediviva, a que revive e dá vida, forma e
objeto ao desejo. Que promessa para as histéricas da Berggasse, que
ilusão para todos nós!
Foi Jung quem recomendou a Freud a leitura de Gradiva. O ano era
1906. Na época, nenhuma nuvem, nenhum conflito entre os dois homens,
Freud não
que mal se conheciam (apenas pela troca de algumas cartas).
resistiu ao encanto do romance nem ao de Jung. De imediato, em suas
férias de verão, como que tomado pelo mesmo impulso contagiante que
levara Jensen a contar sua história e Norbert Hanold a empreender sua
viagem, ele redigiu seu comentário, que seria publicado no ano seguinte
Seelenkun-
para inaugurar uma série intitulada Schrijien "zur angewandten
M...—__,
de [Escritos sobre o conhecimento animico aplicado], que se destinava a
ampliar o campo de aplicação e, com isso, o público da psicanálise.' Jung
,...

o felicitou tão logo recebeu o exemplar: “Estimado senhor professor, sua.


Gradiva é magnífica. Li-a de uma só vez.”
ló.)
164 AFASTAR-SE DO VISÍVEL
A MOÇA IM

Nessa época, a psicanálise gostava de .


em alemão , numa língua anterior à confusao daslàiiiâuãs. Adi-1:55 :selqignª
.,
provar a si mesma e ao público que nª

suas descobertas não eram absurdas, que a


Dichter atingia, por caminhos diferentes, imaginação, a “fantasia” do '
ra oes eram mais
bueç
' amáveis
'
do qu e assustadoras. a
.
e in
dos
ir
amiúde mais curtos e mais lhes prestássemos contas ou que nos deixassem envergâªníiíiºkmtae
intuitivos, a mesma região. E que alegria deve ter sido galpados. Simplesmente, um acidente da natureza, uma
autor que, muito provavelmente desconhecedor da a descoberta de um eruptçtº
claro, como que sem a menor dificuldade,
jovem ciência, deixava ur ida das entranhas da terra, detivera em seu movnne . homens amei;
que sempre se volta aos Ínuàeres e crianças, e era deles que, desde entao, a
primeiros amores (fórmula que Freud existetililcª 1%
gostava de citar em francês), e que S
acidental. Ali estavam eles, nem completamente mortos“pee pleta-
estava em condições de confirmar, só de um modo ao mesmo
V:,

narrativo e visual, que nossos atos que tempo mente vivos, mas suspensos no tempo por um ªshtaii , riância. quer esse
i,.

mais irracionais são ditados Sem


instante durasse um segundo ou dºis milenios, na? t a impo
"M“».

impressões tão persistentes quanto esquecidas de por


detalhes ínfimo nossa infância, e que nenhum exagero, podemos imaginar Ecªd, ªttaolâigjiâa) Élelho eia—idade a

no caso, um andar singular, a posição de um ' Jensen,
decidem sobre a escolha do objeto pé — '
onfundir à semelhança do _jove m Nor rt 'ano

amoroso. Noções difíceis de admitir âaquela hora quente do meio—dia em que o vapor ve os
_

pela razão, como a de recalcamento, ou dodar digitªl resti-


processos complexos, como os contornos das formas, apaga as fronteiras do sonho e
“do“ Zªp; la de
pressupostos pela formação do sonho e do delírio, eram
forma literária, sem que houvesse necessidade de evidenciados, sob '
tuindo
' '

' ' '
a Visao seu mistério a lguma visitante .com es o
— suas
. .
Irma Emm aou Dora,o até com Gisela, seu am ºr de mªme“ ,
.
argumentar, de fornecer '
acientes 11
provas e contraprovas. Sim, estava tudo ali, visível, descrito
com precisão Is)ua Gradiva
paiticular, que ficara em suspenso em eran
_

e com uma espécie de ingenuidade: o


romance de Jensen era como uma Freitªg, sªl; 131513 de
experiência natural, capaz de convencer leigos e dentro do escrínio (e do escrito...) da lembrança, port a a
e recalcitrantes. Com ele,
a psicanálise decerto nâo “progrediu” Freud -
quase não introduziu idéias A paixão de Freud pela arqueologia é cºisa notória. , sua'ccaoâZçZÉÃSe
— . . .
novas em seu comentário, e foi o primeiro a admiti—lo
—, mas, o que talvez
tenha sido um benefício maior,
encontrou ilustrado aquilo que penosa— antiguidades, sua biblioteca (que sempfre se coªst—2205161332 rlin
mente conquistara. Dir-se-ia que a Gradiva de arqueologia ' '
que de 'psrco logia) e a requen , eninice, da
se pôs a trilhar suas pegadas ' ' ' _ . . .
mais
_

vrs í .
veis dela . E Freud
e que, prontamente, a ciência trabalhosa ilustrada de Philippson sao ps s mais
adquiriu a graça e a leveza de
uma mocinha maliciosa e repleta do único saber Edgªrtilhou essa paixão com a maioria de seus . _

a que a psicanálise contemporanegs. Slçâirlciseizs


gostaria de aspirar: o saber amoroso. mann o “inventor” de Tróia, e depois de Micenas, era um .rgs
culturais da época. E o foi para Freud por dupla r tei-
' ' ' tiidade remota e quaseruª;).m ca
píiâisessgªrra-
Local da cena: Pompéia. Freud a conhecia feito ressurgir de uma antig
e também or haver confidenc iado que conv inh a buscar. em seus
.
bem pelos livros. Depois,
visitara-a em 1902, não em viagem de diªtisriieiros ãe vida " .
núpcias, como os “Augustos a origem de sua vocaçao, mesmo terrª:: le—
únicos” e as “adoráveis Gretas”, mas
com seu irmão Alexandre; nem Eiann
anos
fora comerciante).3 Assrm se conjug (33le
isso deixara de passar, conta-nos por , por muito tempo, . | '
,
Jones, “momentos inebriantes”. Em outra, o arcaico da humamdade e o do indivíduo.
relação a sua dificuldade de chegar a
Roma, o próprio Freud e seus A metáfora arqueológica é sedutora: satisfaz, «1:31 gerzilsgoede con-
.
comentadores nos forneceram amplos esclarecimentos.
bação que o acometeu na Acrópole de Quanto à pertur-
Atenas, tampouco ignoramos
' ' '
fundi-las, a atraçao pelas origens e a paixão pe as pro , , acima

grande coisa. Nesses dois lugares sagrados, a do leva a crer que de fragmen to em fragmento, d e resto em resto, ,
imagem do Pai comparecera dª gina em ruína, todo ,o perdido pode ser traZido .
de novo a
.
la.
*

ao encontro. Mas em Pompéia seria ela hiªzliggsíté


um sítio materno?
Por isso mesmo , ao longo de toda a sua obra, desde as cartas a

mente, nada de angústia, nada de Unheímlichkeit ou distúrbio -, aparente- -


da
que, ali, a memória era feliz, o estranho e o familiar davammemória. as “Construções”, Freud cedeu a essa sedêçao. Masíleasct)ã 32:15:mee gassé
se bem. Ali '

uma certa tese rva , comoseame oraemq


imaginamos um Freud regozijante sempre com .
Bertgang, em conformidade com seu
e, ao menos uma vez, como Zoé ' ª ' ' .
ia em demaSia e fosse conven lente , em se tratan do dº .
p Slqmsmº,
nome, um Freud deslumbrado, flªiãirlecuma
orientação muito particular, murto diferente, pelo menos, da
. .
eloquente no Albergo, à noite, e inteiramente
análise. Assim, era realmente verdade confiante nos poderes da de um Schliemann.
que o passado podia ser totalmente
sªídª
,.,- .

conservado, que por pouco seria possivel Por exemplo, havemos de lembrar quet, nos_Estuzfââis;brã:
cruzar com os habitantes da ' ' ' " de estrati icaçao ps
antiga cidadezinha e conversar com eles, meio o a á se impusesse a ideia ,
em grego ou latim, meio Zililptergogtas desordem Freud evocou, ou 5 ej & ,
, foram os arquivos em que
166
AFASTAR-SE DO VlSlVEL
A MOÇA 107
inscrições, enigmas cifrados e hieroglifos,
números e letras, e não objetos,
mesmo que fragmentados. Arquivos . .

tuir, lacunas por situar, linguas mortaspor decifrar, classificar e reconsti— e imensamente distante, onde nada do que um diia se 5531133333;-se
de Schliemann. E, mesmo a traduzir. Champollion mais além perdido e onde todas as fases de seu desenvo Vim. &

atrªcªm
quando a analogia com subsistir ao lado das anitiâas.“i Pºlãgfnnã,á)ª(âlgpllii%81iicarlãºacessível nesse
Império, ou do
arqueólogo com o seu, a assemelhar seus instrumentos
enxadas e sua finalidade desenterrar


picaretas, pás e

uma morada destruída e sepulta


?,;mm
de
não seria uma ci a e, nao a

cidades, uma mu tip lei e


_ .
, _
“ em”

—, ele sempre norteou


a comparação no mesmo sentido: moderno. Duas coisas nos chamam a atençao nessa imagem, Num
_
saxa loquuntur. certo
Pedras, sim, mas sob a condição de :eítido, Freud se apodera, impelindo a hipótese .
ia de
que falassem! Em outras palavras, em azuqxstãgªádzlioidsmce
a conservação sem perda do passado, mas, conv
essa conservação à dos monumentos, templos, pa ládeiols, Cªmus
passado, como era o desejo e provavelmente iiIiIiliitar .
a loucura de Schliemann,
etc. Mostra-se, portanto, mais arqueólogo do que htistoriíiuolrl.e massa,
sempre disposto, como sabemos, a dar algumas
para tornar mais convincente a “ressurreição”. Se ajeitadas ou picaretadas Tacome-
era impossível, tal não se deu esta, aos olhos de Freud, lhe mais o vestígio do que o_curso dos acontecnnfn 28311513 1iq]
apenas por um escrúpulo cuidadoso de não cimentº, pªrª ele, é ((it/685310. bfiÍeªÉTÉSZrtrija eme porque
éa aado,aiéia aress ªpoia é inconcebível;
gªga mefngria nos torna - , .
tes
distante, arcaico ou infantil, era
sempre um coqtemporªªegs
“ser sí uico” é simu taneam & $$$ 5122123522 rªsgªm ;
nunca um material bruto que bastasse fazer passado presente, e portanto, gªrªge sabão, ª, ao marcharmos_Roma adentro, naoépgtãínipã _
,
. .

ções, para reencontra-lo tal e qual. Por maissurgir, cercando-se de precau— 3:15:33]: gg
do sepulto e do exumado, ela é falsa. O tentadora que seja a imagem estamos ontem, hoje ou amanha, nem se o ontem
recalcado não é o sepulto,'o papado. É uma Roma surrealista, no estilo de Max Ern St, q ue a compara—
.—
ªi
|W“
enterrado, simultaneamente mantido intacto e
do recalcamento, força ativa inerte; ele não escapa à ação ç ão do Mal-estar permite entrever.
que dissimula, deforma e nunca deixa . .
Nada ganhariamos ao querer definir estritamentetâimrgiãçêããigtrãr: -
estar em ação no presente. E aquilo a de
não é um ressurgimento em plena luzque chamamos retorno do recalcado psicanálise e arqueºlogia. Bgaiªcxiiâegnciíãsnâílsgerixmos.
a
do dia, pois esse retomo ' Ora reduz a
por vias indiretas, complicadas, diferentes das se efetua vável. O ró rio reu o
que produziram o recalca- allililãrSgia umapfangasia, . . ” -
.
o
mento. A análise daí seu nome não é a e até a um

uma “:diveªiircnâpªtgsgiªoâpmãgrgêmíãscslo
interprete ou reconstrua", ela opera com base simples exumação; quer

num de seus ultimíssimos textos - ve no
em elementos disjuntos, ólo o: “Seu trabalho de construçao, ou, se pre fe ritmos , de recons—
rearranja um passado, ele próprio
por mais longe, por mais a fundo que

32150, airesenta uma profunda semelhança com o ue
possamos ir já submetido a rearranjos: já ficção.

proustiano do que Freud: o tempo não foi Não há nada menos desenterra uma moradia destruida e sepulta, ou
0qu Égªqgquo
ser “encontrado”. “perdido”, e portanto, não pode Pªssado. No fundo, é idêntico a ele, com a unicaIldi diferença de que o
analista trabalha em melhores condiçoes: Essas co regais ões mais favorá-
A famosa formulação de vivos que &
que “O inconsciente desconhece o veis são que o analista, por sua vez, lida com ma
tem feito com que se digam muitas tolices. tempo”
Sim, ele está fora do tempo repetição na transferência não pára de atualizar, :, e nunca existe, no
linear, irreversível e secundarizado, não dá tota suma , º analista
(113211

a mínima importância a nossos que concerne ao objeto psíquico, destrmçao .


referenciais cronológicos, embaralha
são testemunho disso —, pode fazer do
as épocas todos os nossos sonhos

seria um arqueólogo feliz. ,

passado nosso futuro, do futuro


.
Seja como for, em Pompéia ele o é, e só pode ãípehãfswllªlâªt; Sªia tremº
nossa memória e do presente, às e a
vezes, um instante de eternidade. Mas prazer quando a história da Gradiva lhe É
nem por isso escapa a toda a experiência do nai'raéia.é melhor do
tempo e àquilo que é sem exceção. Como escreveu Laurence Kahn, Pomp muito
dúvida seu núcleo: a experiência da
perda e da ausência. O inconsciente Roma. Ali n㺠há nenhuma
são os tempos misturados, e não o que Tróia, talvez muito melhor do que
atemporal. necessidade de coçar a cabeça diante de cada pequeni restº indagando
“1,10

Não é isso o que ilustra a admirável res.; de escavar


da Cidade Eterna com inquietação a que camada ele'pode pertenlcere ãe; a p)
no Mal-estar na cultura? “Imaginemos“, representação não terá levado a confusão dos niveis_arqueo ogic ( Em Pompéia,
um lugar de habitações humanas, mas escreve Freud, “que ela não seja ' chão % Exumar a
um ser psíquico imensamente rico f a rópria cidade que se exumou. Nao ha lacunas no .
pªpªia cidade: o profundo remonta à SllperflCle, o desapareCi'do toma-se
168
AFASTAR-SE no VlslVEL AMO“ 160

visível , o passado é o atual . Quando ' ' Nela, por um instante precário a jovenzinha se transforma muito depres-
a própria corsa está resent f

.
livre o espaço para alucmar!
.
Para Norbert, o
arqueólogo logico, 81381113 sa na solteirona, e Zoé Bertgang nâo desconhece isso, donde sua pressa
ll , pªl
, l' em concluir —, encama-se uma frágil aliança dos contrários, toda feita de
harmonia e tensão. Jensen sabe mostrá—la ao esboçar o retrato, tanto físico
Concordancras são algo que o texto de .

quanto moral, de sua heroína. No movimento que & anima se reconhecem


Jensen, a todo instante , da a
gãíuãêtãaegfªgg Ígonu'ar. Fraud não faz o inventário delas, mas não se igualmente “a leve desenvoltura da mulher que caminha com passos
, e isso evt entemente o encanta . Uma vez formulada

firmes e o ar seguro que é dado pela mente repousada”; ela paira acima
a analogia (que estimula todo o ' ' do chão, ao mesmo tempo que o calca com firmeza: em seu olhar podemos
comentáno freudiano) entre º recªlcamen—
to e o sepultamento de Pom '

.

.
pela, esse “ '
desaparecimento conse rva ao do —
' reconhecer “uma aptidão real para ver as coisas com clareza e uma serena
pªscªcâeàtiogglàiªaarséne de ouârªs correspondências se impõe vem concentração em seus pensamentos". Indicações como essas, que encon-
%:

quaisquer i iculdades teóricas e pr á ticas: ' tramos desde as primeiras linhas, pontuam a narrativa. Em tom menor,
recalcamento e o retorno do te calcado entre o elas sugerem, como ,? pode fazer a repetição de algumas notas numa
. .
,
"o recalcado u ando

com prªiª;:
,
.
33:33); surge hdmi—tância recalcadora”, o que é ilustradª fantasia musical," uma contradição, porém sempre móvel, jamais cristali-
gravura e icien Rops , entre a inv ' ª do
tratamento, entre o tratamento amoroso sutilmente '
estigaçao

deli no ' '
e seu'
zada: o milagre de uma estátua que se mexe... Ela é para Jensen, na
sedução de Norbert Hanold, no pavor, a vida mesma e a jovem outra...
o método catártico entre a vida ( ' do ' ' cond 'd
uzt o por Zºé e
ps q uma mdividu o e os estagios ' ' de “O encanto simples e natural de uma moça, encanto que parecia ser
.
desenvolvtmento da hu mamdade '
inspiração da própria vida.” São essas as palavras, também simples, de
, entre ic
o ps ana l'ista e o escritor. Mas
'
toda S essas como rdan , ºi as ficariam _

' Jensen.
sem efeito , p em anecertam ' '
'
.
genéricas, de excessiva simplicidad e se teoricas,
nao fossem ' Inevitavelmente, os psicanalistas, por sua vez, ao se apossarem do
W _

ms _ , s ugeridas a todo
lévãnâgg 533513? grãogãaelãto, por mil. smais discretos, insistentes e relato, iriam propor outras palavras, mas sem que estas conseguissem
_

r iva e nisso reside o talento d e Jensen.' nao é


o autor que insiste, mas os sinais em
seu duplo sentid ' ' F
' quebrar inteiramente o encanto, como se Zoé Bertgang preservasse entre
os doutores, como os lagartos e as borboletas de Pompéia, o poder de lhes
.
sublinha, é necessariam ente mais ', o, reud, que os
escapar. Girl = phaliusz' a questão simbólica proposta por Fenichelª e

pesado) . A cada passo, o leitor '
os vai'
descobrindo, sem que seja
'
. .
preciso recorrer a uma tradu çao de símbolos: retomada por Lacan, no caso da Gradiva, e' incontestavelmente pertinente.
tudo ali fala
. .
por Sl, 0 canário em sua gaiola o caçador de borboletas Esclarece toda a situação: as investigações de Norbert, seus temores e
_
_

a
emoções, o mistério guardado e desvendado de Zoé e, é claro, seu andar.
gróãigszºãªímãi? gllá um bestiário delicioso na Gradiva), e até os nomes Serge Viderman soube mostrar, recentemente, seguindo o texto muito de
ummoso, com aquela luz va porosa perto, como a Gradiva representava, não “a mulher fálica ou castrada, mas
.
.
cºls _ .
umhvéu tao tenue _ que banha as
fmoasuiºgl que nao é .
preciso arranca-lo ou rasga—lo tão sim fálica e castrada“?
ao encobre nada e, ao contrário,
q É notável que Freud, em seu comentário, não tenha enveredado por
aguça a acuidade do olhar
Daí rede ao mesmo tempo sutil' e
dªs “máfiªs?22:21:10. Mats, o acentua seu efeito,
transparente de concordân- esse caminho. Provavelmente o título que deu a seu texto (Delírios e

fascinio quse o que garante o doce sonhos) e testemunho disso —, não era esse seu propósito, deliberadamente
que el ce so re n 5, prende-se a um '
motivo '
mas' Singular. limitado. Mas outros motivos devem ter intervindo. O fato de a Gradiva
,
O prazer das concordancias
só tem essa intensidade
_

ter exercido tamanha atração sobre ele chegou-se. a falar em “paixão


*

repentina” - não se prendeu apenas ao local da cena, nem tampouco à ação


ali desenrolada, com a dupla identificação que ela autorizava: com Zoé,
.!

pelo amor medicinal, e com Norbert, movido pelo desejo irrefreável de ir


ver. Houve representações mais íntimas em jOgo. Todos os apaixonados
e _ _ . _
uma am
' caberia dar ao feti c hi smo
,_ pela Gradiva, todos os entusiastas de Freud têm o dever de ler as páginas
s::ãnãªgciªgªpulgi'állo a uma fixaçao neste ou naquele detalhe do cargª:. perspicazes que Wladimir Granoff consagrou à lembrança encobridora, à
a ar , não num fetichismo d o '
da m . pé, mas num fetichismo
'
. é moça
nós ,
eoçníilvfzqstgtanGradiva a (oque provavelmente se tomou para
pre tenha srdo, um mito, uma
representação imaginária) * Mºça = falo. (N.T.)
170
AFASTAR-SE DO VISÍVEL
AMºCA 171

fantasia de Freud, tanto em sua estrutura


o encontro com o relato de Jensen certamentequanto em seus ingredientes, que
not regarded as of very great distinction." E qualifica o ronãancªcsl:
despertou.lº
Mas, se Freud se proibiu de “analisar” a “historinha engenhosa, nada além disso”.'5 A mesma condescen
Gradiva, bem que gostaria, revela no juí zo de Octave Mannoni: '“ “Podemos encontrar um certo p
enqamr
em contrapartida, de analisar Jensen! A
psicanálise, escreveu ele quando
de uma segunda edição, “pede 11a leitura desse idílio fora de moda.
para saber a partir de que material de Não equivalerá isso a seguir as pegadªs die Fretpg,e (3611233332;th
impressões e lembranças o escritor construiu
conhecimento de dois outros romances do sua obra”. Depois de tomar
'
Selbstdarstellung, ele qualificou a Gradiva e ense
teria uma irmã com quem teria autor, ele não hesitou: Jensen '” "'
sem rande valor em Sl '? Só que essa avaliaçao
. - severa foi. feita po r ele
experimentado, na infância, uma “relação 1g925, _
- .
retrospectivamente, numa époça em'que íádgaªtqsiãna
repleta de intimidade”; essa irmã certamente
até supor que fosse afetada estaria morta; poder-se-ia
em
nada a Jung. Talvez guardasse também a gum ranco —
333
um pé defeituoso...“ E Freud se
por alguma malformação, provavelmente
empenhou em obter de Jensen a
' ' — '
nao esquecia nada por nao ter-se mostradoum “ ana l'isan do» mais dócil,.
.
A meu ver, porém, há uma razao 111 ais forte que pode _]llS tit'icar distan-
_
º
_ _

confirmação da hipótese.
'
cramento do prazer encontrado em ler e em reescrever a G rad'va i a sua
As cartas de Jensen a Freud
contradizem um pouco a lenda maneira, a ponto de resumi'-la.' 'ª Em Vinte anos, Freud p ôde me dir toda. ª
' .
afirma que Jensen se teria mostrado reticente que
diante das perguntas de seu ' ”
distancia ' entre Pompéia ' e Viena, e ntre Norbert Hanoi d e e 1 . o idílio
e,
interlocutor.12 A segunda
carta, em particular, descreve com refinamento ' ' e a psrcanálise
' .
efetivamen te caíra de m ºd a.
perfeito entre a arqueo logia
_

e modéstia as circunstâncias
que favoreceram a composição do relato. A análise ' ' a nao
" .
era um tratamen to amoroso.. o ód'10, a Vl'olêncm e a morte
Somente na terceira e última carta é
que Jensen opôs um não firme: “Não, a povoavâin; .
a repetição do mesmo passara a ser sºfrislmegotgbitifãgª
_

não tive nenhuma irmã.” Mesmo


assim, mostrou—se conciliador, já irreparável, mais do que reencontro aprazível do docebpara o
confidenciou ter experimentado um sentimento que
һ'
de infância prematuramente morta. Mas amoroso por uma amiga infantis. E também o século se revestia de cores som rins..
:rll
Freud teria querido mais. Assim, a psicanálise já não se parecia, nem nos traços nem no jeito,
Quem demonstrou, aqui, maior desconhecimento?
ao responder que “o conjunto nada tem
Terá sido Jensen, com uma mocinha. E eis que se reconheceu, como se .se aptªoxicipsaeslígiàilo
' de sua ancestral distante no rosto
'

a ver com uma experiência outono da Vida inquietan e


tenha vivido, no sentido habitual da que eu ' ' ' _,
'
Se haVia perdido seu encan to , & Gradiva ,
. .

palavra”, acrescentando prontamente: mente discordante da feiticeira.


_

“trata—se inteiramente de
uma fantasia; ela avança por uma aresta or sua vez soubera conservar o dela. Mesmo que as p edras deixassem
é mais larga que a lâmina de que não ãe
uma faca, com passo sonambúlico. No nos falar: ainda assim ela continuaria a ser para nós aquela que av an ç 8 ,
. _

e' o que acontece em


toda criação literária”?'3 Ou terá sido fundo,
Freud, que se comportou, nessa situação, mais mais ainda a que desperta, a que dá vida ao inanimado.
analista, ao tencionar, de um lado, como detetive do que como
encontrar nos dados reais da infância
a causa primordial de uma
elaboração imaginária, e de outro, fazer
que se confirmasse, pela confissão do com
realmente o núcleo de verdade, a única interessado, que ali se escondia
sendo todo o resto deturpação, pedra capaz de falar sem mentir,
dissimulação, adorno? Isso equivaleu não
apenas a ignorar tudo sobre a criação literária,“
como lhe sugeriu Jensen
amavelmente, mas também a esquecer tudo sobre
trabalho do inconsciente, ou seja, o trabalho do sonho, o
o trajeto das representações, e
mesmo, o trabalho da interpretação. Fosse ele mais por isso
poderia ter submetido seu inquisidor, astuto, aliás, Jensen
experiências infantis remontava o intensopor
sua vez, à pergunta: a
que
mentado ao ler essa fantasia e se assenhorear prazer que Freud havia experi-
dela?
E Jensen? Jones 0 confunde com
um homônimo dinamarquês. Quanto
James Strachey, ele usa termos muito a
British para defini-lo (numa nota
de duas linhas): “A North German
playwri'ght and novelist, respected but * “Dramaturgo e romancista do norte da Alemanha, respeitado mas não considerado de
extremo mérito.“ (N.T.)
A ATRAÇÃO DOS PÁSSAROS l7J

De fato, é um Leonardo próximo de Freud, por muitos traços, que


se descobre no correr das páginas desse extenso romance: um homem que
“sabe tudo e não crê em nada”, um homem reconhecido como Mestre por
alguns e denunciado como ímpio, como Anticristo, por outros; um homem
“que acorda cedo demais, enquanto ainda está escuro e todos ainda estão
dormindo”. Não teria Freud, ao mesmo tempo, como Leonardo, dito
A atração dos pássaros gravemente que “Aquele que sabe não precisa gritar; a fala da verdade
é
única e, ao ser pronunciada, todos os gritos dos que discutem devem
calar-se”, e admitido que fizera mal em se deixar “tentar pela esperança
de que basta mostrar a verdade aos homens para que eles a aceitem”? Além
disso, o romance evoca todo o tempo uma série de contradições no
comportamento, nªs atividades, nos interesses e nas preferências de
Leonardo, que não podiam deixar de ecoar, em Freud, aquilo que sua
, q experiência clínica, particularmente da neurose obsessiva, lhe permitira
confid . _ numca coisa bonita gão
dez anos depºis da_publicação1
ue escr '”
encontrar: o conflito psíquico reiterado, a ambivalência essencial, o
diveísldsi
Escreveâcgliivffãªl —,
pensamento ou a ruminação incessantes. O pintor da Ceia demonstrava a
pouco como produzrr um sonho, recorre a fontes
múltiplas presentes e
passadas, atende a mtenções nem sempre conver— mesma atenção apaixonada pela figura de um apóstolo e pela de um
gentes e lmss“ _e & e a insistência de um desejo vindo de monstro disforme, era repetidamente atraído pelo horrivel, gostava de
longe. (pg emptãrmanencm deuses
munº A
e ele obedece a uma exigência provocar medo, podia desenhar tanto o projeto de um mausoléu dos
interna, quando é ign “1 umdllvro, quando quanto o de um prostíbulo, divertia-se como uma criança com. adivinha—
por uma paixãº, não [ªdªgª-ªaªh elªine evrdentemente aconteceu aqui
ções, demonstrava a mesma curiosidade insaciável, sabia ver o desperce-

a esta ou aquela circunstância,


cada uma delas apºntª para entrau pois bido e se assombrar com tudo... Enfim e nisso reside um dos achados

Em . . .
“Quais são seus dez livros favori— do romance Merej kovski, imaginando um Diário supostamente mantido

tºw”, Frelrãsfpeãsãâstªguesnonárro,
e'sua lista O romance de Leonardo da Vinci do por um jovem discipulo, soube integrar em seu relato as
reflexões que
escritor russo D mim Merc-lkovskr.2 Romance
. . , Leonardo consignou em seus manuscritos (que nunca comporiam os
de um “roman ce ” , de fato, mais
º
mais d qu Tratados projetados). Reflexões, como sabemos, concernentes aos
mentado, e que faz reviver, num afresco histó ' ' diversos domínios anatomia, ótica, botânica, geologia, etc. —, e que

rico extraordmariam
ex ress' misturam, sempre sob a forma de fra gmentgs e sem organização temática,

.
QuE; 01:23 (na? 353%; peâonalrdade de Leonardo, mas a Toscanaeliitcí=
m-
, o ouro e Savonarola, todo um meio social pensamentos filosóficos, invenções técnicas (ceifadeiras e máquinas voa—
artístico e político 3 A1“ vemos doras), alegorias e chistes. O artifício do “Diário de Giovanni Beltraffro”
citada a famosa lembrança infantil, mas ativida—
sem que um valor. ml lhe seja atribuído.4 Um “romance”, permitiu a Merejkovski tornar—nos testemunhas dessa prodigiosa
convém notar que Iªtieúdcular pois e de mental, ao mesmo tempo que nos forneceu as reações do rapaz, ora
perguntou se ele mesmo não teria feito outra
cºisa sen㺠escrever um “seomance psrcanalítrco”.s Em seu próprio ensaio, repleto de admiração, ora de pavor, e sempre desconcenado. Assim, o
Freud presta uma homenagem de
passagem ao livro de Merejkovski e o “caso Leonardo” é apresentado ao vivo, tal como nos apareceria numa boa
observação psicopatológica (se esse gênero, infelizmente, não se houves-
oferece
'“ conhecedor
de almas” soubera se perdido nos dias atuais); logo, já é um “quase-paciente" que se
exprimir suª concep ão “ 1(;_romanasta à investigação freudiana. Ali vemos Leonardo abandonar repentinamente
ao palavras exangues, mas, à maneira do mal
poeta, numa lin “& (Em ,lá strcaeu; . Em diversas seu afresco para se ocupar com asas de mosca, e proibir que fizessem
Freud se refer eg exg Heil; passagens, como veremos até às embora vegetariano convicto se delei—
mente a.MereJlrovski, mas não foram apenas aos animais e plantas, esse
informações mºdºs tasse com o espetáculo de uma aranha sugando sua presa.
Vemo—lo a
l_ertura dele, e sim, sem nenhuma
dúvidª pºsswel maãgugueãxtraiu'da
vo e inspiraçao, como acontece ao desenhar “bombardas enormes, balas explosivas, canhões com bocas
mos pintada peãºlmo , e m sua complexidade, encontrar- múltiplas e outros engenhos de guerra, tratados com a mesma delicadeza
e exaltada em sua grandeza
solitária , ª imagem etérea de luz e sombra dos rostos de suas mais belas Madonas”. Leonardo,
.
de um de nossos heróis
secretos.
172
174
AFASTAR-SE DO vrstvat A AmÇÁO DOS PÁSSAROS ”&

GIO» aíllll [01113 CºlúICCInlentos


caprichoso e instável; iniciava pesquisas em campos diferentes e, uma vez
Seul dCCIdlI cºlllpletªlllenle se
se trªtª ºu começadas, abandonava-as (...). Sua compreensão da arte o fez começar
mª ª q muitas coisas, mas sem concluir nenhuma delas, pois lhe parecia que a
, l' () 101
ª mão não poderia atingir a perfeição sonhada (...). Querendo sempre uma
excelência após outra, 'a obra era retardada pelo desejo“, como diz
Petrarca.”
A obra retardada pelo desejo: em nenhum objeto, nem mesmo
artístico, pode o desejo consumar-se, concluir-se. Freud poderia ter re-
conhecido suas próprias colocações nessa bela formulação. Mas seguiu
outra pista.
Na verdade, a essência do “ser enigmático” estava enunciada nisso
.
enlglnª, e "le para ele. Freud a traduziria em seus próprios termos: de um lado, perfec-
ICCOIdO de “Iriª de suas ªdlvlllhªçOCS.
.
cionismo, inibiçõesfformações reativas, supremacia crescente da “pulsão
. ,.
ºs nlªlores
. .
1105
'
de investigação” sobre a criação acabada; de outro, uma aliança descon-
Sim a d' certante do gênio e o do gênio universal com “bizarrias”, e bizarrias
para com o romancista

é imensa . Mas ele —

sua vez , se; emªtggãadçaI—Zãlud reso ver o eni g m aenaoa " por bem singulares. A princípio, o enigma residia nisso; ele convidava a
e] ementos. Buscarra . enase m reunir' seus estabelecida
e acredltarla encontrar-lhe a “clfave” pensar, com base num exemplo ilustre, sobre a constatação já
. _

Houve outras fontes de a ' ª ' “ ' ' Freud em sua análise da coisa sexual, a saber, que as mais nobres
parencra mais seria”, re'm às ' por
dessa ve “sublimações” vão beber no mesmo fundo pulsional das mais estranhas
,
própzáfrãggjârâcoír/Ieudepms de ja ter tomado a dedigão de escªlª/les;
seu
Herzfeld, autora de uma obra importante “aberrações", por vezes as mais chocantes: “No campo da sexualidade”,
sºbre “Leonardo da Ví.neiane
, pensador, pesqursador e poeta” e escreveu ele em 1905 nos Três ensaios, “as coisas mais elevadas e as mais
da primeira edição cmi prefaciadora vis ligam-se umas às outras por toda parte, da maneira mais intima.”“
da pintura; Edmondo Seal, estabelecida por Heinrich Ludwig, do Tratado Portanto, Freud se infortnou bastante antes de iniciar seu Leonardo.
cup biografia de Leonardo fora traduzida
parª o alemão em 190;, I?ll,mo Smiragha Teve acesso aos trabalhos mais seguros da época. E, se outros trabalhos
novos documentos , Scognamiglío que lhe traria
posteriormente publicados invalidam, ou pelo menos tornam incertos
'
juventude de seu háónãgaclãentemente esperados, sobre a infância e a
warm-1,1 .- . Richter,.um dos primeiros compiladores dos diversos dados factuais a que ele deu crédito particularmente no tocante

manUScriros.9 E Vasari, autor que Freud estimava aos primeiros anos de Leonardo —, não podemos censura-lo por isso, na
em italiano e c:]jª Vita grego, da Vinci (1550) continua a que
e lia
medida em que persiste uma dúvida sobre muitos fatos.
hoje, ª despeito de snªas il onardo ser ainda
houvesse desenhado de
ncorreçoes, uma referência obrigatória, como
se Dito isso, que foi que impeliu Freud, que não era nem historiador
A maioria dos trªços “uma vez. por
todas o retrato ou a lenda do pintor.lo da arte nem das ciências, e que, ele mesmo reconhecendo não ser um
sua pesquisa acha-se ;;]. %consntuirlam para
Freud o ponto de partida de “visual”, tampouco se mostrou grande conhecedor de pintura, a iniciar'º
“ser admirável e celestialímlíglzlellt: 133513
dª!
Leºnªfgº é quªlificªdº de esse ensaio e a se dedicar a ele com o ardor de que Jones foi testemunha?
“seu e .
,
,
. .
quer corsa e sobre- ” Vejo várias razões para isso.
entregzstpzfrltgd [21:53 €pítlralde destilar invenções sutis”, mas ele triltlriglêriliºse, Primeiramente, Freud nunca excluiu da investigação psicanalítica
os escritores e os artistas. Num de seus manuscritos endereçados a Fliess,
e e misteriosamente atraído
mas fisionomiªs bizarre puTcuras , por “algu-
ria que se tomºu cél re. Passandoencontramos narrada na Vita a histó-
las .. »ambem encontramos um estudo (1898) sobre uma narrativa de Conrad Ferdinand
de
tirava de suas gªiºlª: pelo mercado de pássaros, ele os Meyer, Die Richterin [A juíza]. O comentário consagrado à Gradiva
solicitado e os deixava alçar vôo Jensen data de 1907. Em ambos os casos, observa—se que a escolha do
restituindo-lhes ª libe,rcll):dgavª (ªpreço
ida.
per 'Que voassem os pássaros, batendd tema, aos olhos de Freud, fora determinada no escritor por uma lembrança
ªs asas com forçª e ª ualequer
lar-mente, nª inconclugão preço. Mas Yasari insiste, muito particu— infantil recalcada, que uma experiência atual viera redespertar. Em 1908
atribui tªnto ª sua ineo nstancra que sena caracteristica de Leonardo, e
que ele foi publicado Der Dichter und das Phantasíeren: desta feita, foram
ido muno ]on g e n o saber e no quanto ao culto da perfeição: “Ele teria essencialmente a imaginação e os rumos tomados pela criação que foram
.
aprofundamento da cultura, se não fosse tão considerados, e, numa carta a Jung, Freud anunciou que realmente tinha
176
AFASTAR-SE DO VlSÍVEL [77
A ATRAÇÃO nos PÁSSAROS

a inte " "


diretailriãgtgedgªºaâ Wenger ª “sº º quªº “umª PfÓXÍmª ºcasião, trataria
-

Numa _outra cana, afirmou com vigor ainda meu ver, foi a descoberta do que levou à elaboração das teorias sexuais
maior sua Vontade ;;eisnc infantis (0 artigo que traz esse nome data de 1908 e, portanto, precedeu
minha convi6ção de q ue ºl'poraçªf); Alegra-me que voce Cºmpartilhe de pouco 0 Leonardo) que serviu de condição desencadeadora. Esta
Pºr nós (...). O cam daabl?mºloglª deve ser lnteirameme conquistada confidência feita a Jung o confirma: “Posso revelar—lhe o segredo. Lem-
Por fim p odemos £?ent-nºs lºgfªfla deve igualmente tornar-se nosso.”" bra-se de meu comentário, nas Teorias sexuais infantis, sobre o fracasso
ª dlscussao que, numa das reuniões das
_

Quartas-feiras se uiu inelutável da investigação primitiva das crianças e sobre o efeito parali-
de Graf sobre os métodos de sante que resulta desse primeiro fracasso? Releia essas palavras; na
ªbordagem da psigcolo—S'c aduma exposlçao Nessa
deria ter sido mais claglª. “os escritores,” ººªSi㺺 Freud n㺠Pºª ocasião, elas não foram compreendidas com tanta seriedade quanto as
ro: A [751an31186 merece ser colocada acima da
pªtografia pois fom compreendo agora. Pois bem, o grande Leonardo, que era sexualmente
sobreo processo da criação. Qual- inativo ou homossexual, era igualmente um homem que cedo converteu
quer escrifo r pode secicebinformaçoes de patografia, mas esta não nos ensina
nada de novo.” Assim Zvjiãto uma
enc1ar, a semelhança das Patografias, os
sua sexualidade numa pulsão de saber e que permaneceu agarrado ao
neuróticos ou perversos d traços cunho exemplar do inacabado. Encontrei recentemente seu homólogo
ou daquele artista não era a
Freud. A pSícanálise era este preocupação de (sem sua genialidadefhum neurótico.“ls
num outro sentido! Não se tratava de
descobrir o neurótic o no inovadora(grande Assim, na lembrança do romance de Merejkovski lembrança que

coisa! ...), mas de considerar
processo da cria ão l:):riador
no modelo da constituição de neurose. As
o havia permanecido ainda mais viva na medida em que Freud pudera
pulsões e seus dZstinÍZI-n asle
era o destino pulsional de Leonardo, encontrar correspondência entre Leonardo e ele mesmo veio enxertar—se

pudera ele tornar-se ª hqlua como um projeto “colonizador”: marcar com o selo da psicanálise a psicobio-
'e e Itlultiplo, aquele pintor único e
sempre insatisfeito - eq pãsqmsador grafia. Esta encontraria seu ponto de aplicação privilegiado se o persona-
aquele sorriso —, aquele apaixonado platô—
nico por rapazolas? F ºlpintor gem escolhido fosse um escritor, um artista ou um pensador, posto que
SUStentava todos e' ÍÉSSª ª Pergunta feita por Freud. E tudo isso se
cada um deles, segundo modalidades diferentes, nunca fazia outra coisa,
realmente deviam conjugar-se num ponto
nodal, Foi ,esse o prªses _tlos
posi o, que pressupºs, tªl cºmº º tratamento PSÍCª- pintor, filósofo ou sonhador, senão dar forma a suas representações. Mas
nalítico, uma investi ga窺 que
nªº desprezasse nenhum detalhe e uma o que possibilitou a realização do projeto por Freud, inclusive com o
constru ç ão 8 em fa lh as. Tratava-se de sentimento de urgência que a descoberta e capaz de dar, foi a conjugação,
acompanhar Leonardo, traço após
8. descoberta na criança, entre a sexualidade e o pensamento: a criança,
n gl g confrontada com o “enigma” da concepção, do nascimento e da diferença
!
! 1

Claro " ' entre os sexos, entregue à questão das origens, era o primeiro teorizador,
condições
(3522111302)? pretendia,.ao executar esse programa, ficar em perplexo e desnorteado, porém talvez o mais “genial”.'9 Acionado pela
ªrtística“ escreveu Clear; o m1sterlo daarte:
“A essência da realização sexualidade - desejo de saber sexual, desejo sexual de saber —, o pensa-
nes: “Não depos“ de,
e—nos pswanallticamente inacessível”;ló e a Jo- mento nunca rompia esse elo originário. Tal como a sexualidade, ele
encontrar nele o segredrgaãaªgirgesªegnça nZSSC
Leºnªrdº- N㺠espere conhecia “a excitação, a tensão, o contato, o encontro surpreendente, o
problema da Gioconda.”'7 No entanto? ;;;)” veiªífántílgaªasgclzifãgsfrízlãg prazer, a insatisfação e o fracasso, e a Abirrung, a desorientação”.ºº
do livro a nos fornecer o segredo desse Freud viu em Leonardo da Vinci a ilustração mais convincente —

segredo, o segredo da mãe —mulher Mas ainda precisava


pªrª o filho? porque nada tinha de evidente dessa conjugação.

Em ue ' poder produzir, para ser realmente convincente, uma prova. Essa prova
da Vinci., foi,. aos olhos de ele foi encontrar na prima ricordatione della mia infantia: primeira e
o

de eleiçãoqparg gªrªãonardã Freud, uma figura


dava comparar-se ª unguee-e se atrrburu'fCom certeza, não lhe desagra- única lembrança (Leonardo não lançou nenhuma outra em seus Regis-
genio
reconhecido, com mai certezataoexcepcronal e tão excepcionalmente tros), e fantasia construída, retroativa, em vez de lembrança anotada e
sentado pelo estudo de “s ainda, ele percebeu o interesse repre- guardada, o que acentuava seu poder revelador.
pela paixão pela invesám
personalidade aparentemente mais estimulada Uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci. Podemos consi-
nesse sentido mantinh
gaçao, do que pela vontade de concluir, e que derar enganoso esse título, porque o ensaio, longe de se referir apenas à
prOXima de outro questionador incansável: &
criança invesiigadom . aO—se análise da referida lembrança, considera a totalidade do destino de Leo—
pequeno Hans e o grande Leonardo... nardo. Também podemos, a meu ver abusivamente, considerar que ele
casº como no outro, a » pulsao de saber” estava ativamente Tanto num
em ação. A designa o essencial, ver nele a viga mestra do edifício (certamente frágil)
178 AFASTAR—SE no VlSlVEL
A amem DOS PÁSSAROS 179

construí .,
Ving?) gor grená, ja que nessa cena imaginária, nessa Leda fantástica
. . ,

teria
que compusera a realidade de Leonardo,. Freud teria percebido uma relação entre o procedimento intelectual
A cada um su): ªnim-se tgdãªo de Leonardo e o seu. Como se fabricavam uma neurose, um sonho ou uma
. aaroua ”acadau
,
, as maos
m sua " Rosebud“ º ue ale ri ª
deVe ter srdo
para Freud por _
nessa lembrança, uma alegria qfe multidão? Como se fabricavam um quadro, um corpo ou um filho? Que
vinha a ser um fóssil? Ou então: que é que se procurava adivinhar numa
adivinhação? Acaso as pesquisas de Leonardo sobre a anatomia e suas
dissecações, tão novas em sua-época, não exibem uma certa equivalência
A inc '' " destacamos
que Freud fez dela o principal “sintoma” com as de Freud sobre a tópica animica? Os diagramas minuciosos e
de Legªgliàsaqãja
ep]; ;;;/(23,5%
ele tomado conhecimento do texto de
um jovem fantasiosos do primeiro, com os esquemas, às vezes tão estranhos, do
publicado , provavelmente teria a p reend'ido com 111 318 segundo? A cada um sua terra incognita, a cada um sua vontade de
1
' ' "
o que eram a ambiçao . _ ' " exatldao
" '
, a paixao e o metodo” de L Cºnªrdº dª VmCl- ' '
AO circunscrever e reduzir suas fronteiras. Um nos arrasta para o estúdio do
enfatizar no pintor a diflculdade de
.
'
terminar suas obras e s uam '
d '
lferen pintor, para nele reconhecer a ordem orgânica das coisas, e o outro para
ªnte ()
.
delas, ao tomar por falta de firmeza a
de seusdtieãino extrema diversidadel o estúdio do sonho, para nele reconhecer o que ordena o sujeito dividido.
eresses, e sobretudo ao pressupor um conflito entre a Ambos seguem a mesma trilha, que desafia a proibição de pensar.
investi-
Releiamos, em Leonardo, o elogio admirável do olho, “por onde a
tal de Leonardo? alma “contempla a beleza do universo e se compraz com ela". O olho,
cuãtãtsqdâalªafêãrrliããco Por um lado, de fato, o objeto da “senhor da astronomia, autor da cosmografia, conselheiro e retificador de
refenaessencialmente ao que Valéry chamaria todas as artes humanas. (...) Ele é o príncipe da matemática. Suas disci—
operações do espíritª???
Registros de Leonardo) 3335310? Sªder-"ºf n㺠deixªm de lembrªr OS plinas são absolutamente certas (...). Ele permitiu o anúncio de aconteci-
o a o, a ideia—de
pudessem entrªr em cohflito provavelmente que a arte e a ciência mentos futuros, graças ao curso das estrelas; gerou a arquitetura, a
para Leonardo, A arte d e _ nao tinha nenhum sentido
perspectiva, a divina pintura. 0h, mais excelsa de todas as criaturas de
mais imperativamente pintíar era, para os artistas do Renascimento, e Deus!"23 Todos conhecem, igualmente, a obstinação de que ele deu
e e doque para qualquer
ºbservações e nos conhpara um, baseada nas mostras para afirmar a supremacia da pintura, essa “poesia muda"?l frente
Cientificos. A aliança entre a ciência
& arte
em consagrada Tormentas que era e à poesia, “pintura cega”; frente à música, essa “infeliz” que, forçada a se
“conhecimento supremo”: essa desenrolar no tempo, ignora a simultaneidade oferecida pela imagem
em ª religião de Leo pear âpmtura,
o: E e celebrada a cada página do Tratado de
pintura, Logº não f sentido sustentar, como o fez Freud, (“tornar visível de uma só vez”); e até frente a escultura e seu “discurso
Leonardo teriª sacriª'z nàuito dons artisticos à ciência. que sumário”. Leonardo estava menos preocupado, portanto, em fazer preva-
Valéry, prefaciando o??? oiseus Novamente lecer a arte em que se distinguia do que em "descobrir o lugar onde se
se cansava de exaltar egtstros daquele cuja soberania intelectual não
seu proprio ideal —, escreveu: “Era
— pudesse refletir e representar a conjugação do matemático (demonstração)
Alguém que podia olh mesmo espetáculo ou o mesmo objeto,
uma vez e do sensível (exibição). A pintura era, idealmente, a mais perfeita ciência
como O teria olhado umar'o ora como naturalista; ora como médico
ora das qualidades. Era a “anunciação” que falava da realização do espirito
outras vezes como eâintor, e, nos corpos figurados.
, e dessas VlSõeS era superficial.” Os
“pontos de Vastª” popdqª m e áienhuma.
evram diferir (a perspectiva é isso) Assim, poderiamos autorizar-nos, sem forçar demais a analogia, a
objeto visado confinuava o mesmo: chamava-se mas o
“Natureza“. Por isso, aproximar o projeto leonardiano do projeto freudiano, avaliando logo em
se
seguida a distância entre eles. Freud, apoiando-se intensamente no “eco-
no chamad ' ' ' ,
nômico”, nas quantidades móveis de energia capa zes de investir qualquer
do foi um iª 5281222 gingª?) 30 que no
de suas obras pictóricas: Leonar-
objeto e qualquer forma de atividade, pretendendo-se o fundador, contra
mªs; prefigurundo a maioria das inven«

ções modernas _ e não um tor de teorias gerais. Continua a todas as dificuldades, de uma ciência, também tentou reduzir a oposição
nisso que ele nos Zieslu m b ser
entre o inteligível e o sensivel: o afeto era medido, o delírio era decifrado;
.

o que existe contªr rad Identificar os segredos de fabricação de tudo


º
infinita _ (“,e ele se asusiâílifr qsàdlqaqlfllrcm, essa foi a tarefa efetivamente
a paixão, mesmo a mais desenfreada, e o equivoco, mesmo o mais
insignificante, ofereciam-se à análise lógica e gramatical. Freud e Leo-

que nunca passaram pela experiência???rfãtgnrtãâltítªade mm'lftªs' rªZõeS nardo reconheceram equivalências e permutações possíveis entre organi-
unica mestra” que ele reconhecia.22 , expenenc1a era ª
zações aparentemente heterogêneas. Só que o grande X a que tudo
reconduzia, definitivamente, chamava-se, em Leonardo, Natureza, uma
180
AFASTAR-SE DO vrslvm.
PÁSSAROS 1.81.
A ATRAÇÃO nos
nature
adªgª?0,Leiaose Sinais,
' '
que produzm formas, e em Freud, Libido fadada
o ao parcial: o objeto total estava perdido nosos, quando, esgueirando—se no escuro por baixo das cobertas, na cama
, de Catarina, ele se comprimia contra ela com o corpo todo“.27 No correr
dessas páginas, Freud pôde perceber também o enigma do sorriso da Mona
Lisa — e de muitas outras, como se o pintor nunca tivesse desejado
representar outra coisa além disso: “Leonardo recordava sua mãe como
de seu sorriso
' que através de um sonho. Lembrava-se particularmente
, em luta com o meio malicioso, estranho naquele
'

terno, inapreensivel, cheio de mistério,


samento (natural) da
harmonia, pensamento (sexual) da divagação
Pensamento belo rosto simples, triste, austero e quase severo."28 Nunca teria Leonardo
smcrqmco) do visível, pensamento (temporal d (espacial e conhecido senão uma só mulher, eternamente desconhecida, a quem daria
escontínuo) de discursos
antagonlcos e lacunares. Pensamento
que
(Tdi mais tarde o nome de Natureza? “O artista”, afirmava ele, para indicar
cosmos, pensamento que se recusava a síntels)e, “a ainda comparar-se ao que a verdadeira autoridade residia mais na observação
do que nos livros,
a Visão do mundo,
Se Fre ”
' ”deve ser filho e não neto da Natureza.”
cotrlltliopggp Sltrapassar os seculos que o separavam de Leonardo
,

e trará-lo e seus contemporâneos, se


pôde negligenciar sua
respectiva penen ça a dºis universos culturais tão distintos a Retardei o momento de chegar à história do abutre. Ocultada durante
serem opºstos f ponto d ?
muito tempo, ela não para mais de suscitar explicações, com o risco de
porque se sentiu extraordinariamente próximo de seg
modelo Falou,801 cansar o leitor e, principalmente, de focalizar a atenção numa questão
projeção Jones Íe em identificacao e a identificação nunca se dá sem

menos importante, em minha opinião, do que muitas outras levantadas


das por ªmd (algum dos
ma em grimeiros
a nota—la: “As conclusões
enuncia _
pelo ensaio de Freud.
rança da '
'

infá neta... foram '


murto r
mente ex , , . ,
Primeiramente, os fatos. Em 1923, um especialista do Renascimen—
.
Leonªrdotraâíassgqâgãtptropria analise (...). Ao estudar a personalligalâelfile

, lCOll com esta e descrev U


e 8 Sl' mesmº. , ,” E & to, leitor do Burlington Magazine for Connoisseurs, escreveu ao editor
identificação _.intelectual” foi fortalecida
_
. —

dessa publicação artística. Considerara excessivamente elogioso o artigo


especralmente relativas à situação infantil'
em forma de editorial dedicado à Lembrança da infância, que a revista
havia publicado no mês anterior, e assinalou o seguinte: não era de um
abutre que se tratava no texto da lembrança, mas de um milhafre. Freud
cometera () erro de se fiar numa versão alemã em que a palavra italiana
nibia fora falsamente traduzida por Geier (abutre). Esse erro de tradução
tinha graves consequências. De fato, escreveu o correspondente, “o dr.
cia entre seu venerand o e honrado Freud dedicou páginas e páginas ao simbolismo egípcio do abutre, e um
. p ai e o Url/ater dª leitor imparcial há de admitir que ele fez disso o fundamento de sua tese”.
nidade! Ficamos tentados_

— ele teria passado seus


'
E prosseguiu assinalando, maliciosamente: “Contudo, Freud efetivamente
cinco anos sozinho com cita, numa nota, o texto da lembrança em italiano (onde aparece, portanto,
amorosa e querida26 a r pfimeirosde uma mãe
o termo exato, nibia), mas, ao que parece, nenhum de seus admiradores
mater ceníssí ma. O romªííêzãçí) van desejo secreto: pater incertas ,
e eonar o da Vinci s e
presta a acolher o se deu ao trabalho de lê-lo.”2º
romance familiar“ de Freud, que talvez
seja o de todos nós . Estávamos em 1923, o Burlington Magazine nada tinha de confi—
_

Pri semos novamente


dencial, e é provável que mais de um “admirador” de Freud tivesse tomado
, na me d'ida em que os
'
-

fazem alusã exegetas uas


Freud deveu à leitura de Merejkdlvski e Sªº conhecimento da sinopse de seu livro.30 No entanto, silenciou-se sobre o
.

migrª rdssoí'o que


capítulo m
o ivro descreve o retorno de
cidade natal ( V inc' - Freibergºy
' Leonardo a Vinci., sua erro durante trinta anos!31 Foi necessária uma nota de Irma Richter,
'
a op ortumdade q ue ele te v e d e responsável por uma nova edição dos Registros, para que Jones 0 apon—
1 —

rea v !' v ar
.
.
, .
sua primeira mfancra
. _ .

e, antes de mais nada , a fi tasse discretamente em sua biografia, e depois Strachey na Standard
Edition.32 Mas foi preciso, principalmente, que o grande historiador de
arte norte-americano Meyer Schapiro publicasse seu estudo intitulado
o psicanalista atento e o
& “
beleS misteriosos e quase crimi- Leonardo and Freud para que a comunidade psicanalítica se mexesse.33
Kurt Eissler, sempre pronto a quebrar lanças contra o inimigo, com tanto
182 AFASTAR—SE no VISÍVEL A ATRAÇÃO DOS PÁSSAROS t tu

ímpeto quanto ciência, dedicou então a Leonardo da Vinci . . '


, teressa.
ropósito portanto, não é polemico, e e nesse aspeºªªãquÉ IzaosdànhiSlófiª
livro, que em grande parte constitui uma um extenso
resposta a Schapiro. O motivo
PEleconsifate em examinar o livro de Freud do ponto
do contra-ataque foi confessado: “O ensaio i'vltãria ue sabe
do prof. Schapiro convenceu da arte entendida no sentido lato, isto é, o de uma lêsicos (quanto
alguns estudantes dos próprios institutos freudianos. recorre; tanto às práticas religiosas e aos debates teo g à
Muitos deles tende- ,
ram a concluir que o ensaio de Freud sobre Leonardo
fora refutado e que
já não constituía um objeto de estudo válido.”ªª Em lconoârcªlfãiiro
não se detém no erro, efetivamente pouco apªgª,/edu:
no castelo! E grande perigo, pois, suma, havia perigo
-
realmente se abstém de analisar o lapsº)«_Nªº Prº-tºªdªâliríâf a
.
porque não ameaçaria ele, pouco a
pouco, toda a pesquisa psicanalítica, principalmente que Freud
fora dos muros? quando conduzida ara rejeitar por completo a interpretªçªº frºndlªnª'
iivesse transcrito corretamente o texto da lembrança, º 5 comentários
As posições desde então assumidas críticos do historiador conservariam seu méràto.
pelos psicanalistas evocam
irresistívelmente, quando cotejadas, o
argumento do caldeirão furado.35 A lembran 3 indica
-
'
Schapiro, é narra 3 po! Leonardo
' em meio ª
O erro é mínimo: substituir “milhafre” concernenfes, .
do
aº Vôº dos passaros e,. mais pamcmaªgfdoaovôo
_

por “abutre” não altera a essência notas


da fantasia, sua significação sexual de
é pontual: não põe em dúvida
avidez oral e passividade. O erro milhafre. Havia uma raíão simPles Pªrª isso:
osdmeclªlâlvÓo
a totalidade das contribuições da obra,
quer odem ser bem observados no milhafre; esse preda ºr “ªd; e pousaa
digam respeito ao narcisismo, ali introduzido peu arte de utilizar o ªS_bªn S de Sua cauda
do homossexualismo masculino, a pela primeira vez, à gênese bel-prazer, tem a ventº?
representação da mãe com um pênis Sodem servir de modelo para um leme. Asstm, de Leonard o
ou à concepção partenogênica; º'mte'resfffica
quanto à elaboração sobre a Mout egípcia, llªor ele
pode ser explicªdº por uma PtºººuPªçªº Cien e técnica
ela guarda todo o seu valor intrínseco, ' ' doras.
mesmo que não possa ser efetiva— referente as maquinas voa
«

mente deduzida da lembrança. Ou ainda: trata-se ' . , , .


e Situada nª P "_
.
Segundª pergunta: porque a historia do milhafi'e
.
de um lapso (como se o lapso não fosse também menos de um erro que
o mérito de nos orientar
um erro...), e o lapso tem meira infância? Nesse aspecto, Leonardq não teiªla 1532251: ais ' ' ' do ue
fomecigas
para o inconsciente (mas qual inconsciente, o de &

obedecer a um “tema literário constante o qu


Leonardo ou o de Freud sofrendo a ,
' val or de p res—
atração do Egito?ªª). Por último, uma numerosas amostras: a lembrança tem essencialmente um
posição extrema: o único erro de Freud teria
elementos da realidade, ou num saber consistido em buscar em sá g io anuncia um destino excepCional.
confirmar suas construções. Que importa
positivo, algo em que escorar e
um erro
,Finalmente, porque a estranha assoc1açao . ” —
mas âãªifoíriação, ª nós
ao abutre ou aos acontecimentos da infância, factual, diga ele respeito — entre o pássaro e a boca? São abundantes os exemp oisnfantil
se a lógica interna — da Ela assume precisamente a forma de uma lembrançªbios em que um
construção ou da fantasia,'seu homólogo, e a do texto dá testemunho de uma criança
dela funciona?! Felizes os psicanalistas

que animal, “geralmente pássaro ou abelha, pousa nos
que sempre caem de pé!
Cabe admitir que o trabalho de ou entra em sua boca”.
Schapiro se impõe pela precisão de .
Neste ponto , o leitor ou o observador imparCial (esse tªste
.
onªmguem
seus dados. Procedendo através de ita
pequenos toques, de
erudição ,de scholar,* o autor faz vacilar o edifício com uma discreta inencontrável a quem Freud recorreu em outro ”seus textos))alista
do
tão brilhantemente dificuldade de decidir. Podem o “ponto de Vista do e o
erigido por Freud. Chegamos a nos pm;:a
saudado como um “esforço supremo” não teráperguntar se o que foi inicialmente historiador combinar-se? Convirá admitir que um fpmeç gde “was e que º
sido realmente
ilusionista, vr' tima de sua própria ilusão. A crítica um exercício de um outro comprove apenas seu virtuOSismo inventivo.- Qpe ge
maior na me lida em que é iniciada assume um peso ainda si g nificar para um psicanalista, por exemplo, a objeçaoª criªçãoo que se ue
e conduzida o tempo todo com grande indivi-
respeito: a teoria desenvolvida na Lembrança da toma por uma fantasia eminentemente Singular, por um ' imo
piro, é “exposta com simplicidade e vigor infância, diz—nos Scha- dual somente a
é retomada de um tema m' . uito difundido, ou, no max ,
de nossos
nela “a mão do mestre”; Freud formula admiráveis”, reconhecendo-se uma'ligeira variação dele? Por esse raciocmio,
migo
nh
ãe
de um

.“
encon-
“questões novas e importantes ' '
ue se lesse o rote irodeum ime sucesso
sobre a personalidade de Leonardo, pactentes atua is em q'ltima .
questões em que ninguém havia
pensado até então e que ainda não encontraram 'a sua motivação u no filme, e nao_
na
.
historia ,_

ou no imagina no
resposta melhor”, etc. O :lrãrêonhador Por mais
que o
.
historiador
. .
multiplique
.
as refer ências ªos
' ' ' ' verá neles outra coisa
'

aêontecimentos ou aos textos, 0 psrcanalista jamais


senão “restos diurnos". Por sua vez, que crédito '
pode realmen te atribuir
*
crenças coletivas ,
Estudioso. (N .T.)
o historiador da cultura àquele que parece fiar-se em
184
AFASTAR-SE no VlSlVEL “

,. A ATRAÇÃO nos PÁSSAROS 185


em simbolos sociais ou em formas
canônicas,
formação do inconsciente, própria de determinadoe que toma por uma . . . de
Pois seja. Só que Freud teve a nnprudencia
.
0
decorre inicialmente de um patrimônio individuo, algo que precâszãr, dgaumiilâgrã
comum? Pode o diálogo,
suposta- ue a Anna Metterza era um motivo raramente aborhfmp
iltaliana
9 e de outro, que somente Leonardo poderia p um pluadtº
'
misso, que só fará afastar a divergência. assnn. 39
discutido: admitamos, para satisfazer Pois, que seja, no caso aqui ;;,mmm—amma-mwv

Nesse ponto, o historiador da arte esta, em casa. Anna Metterza, tema


' ser menos corr etc: ao
o historiador, que Leonardo, pouco tratado na época de Leonardo? Nada poderia
registrar sua lembrança, tenha se inserido,
numa tradição, e que portanto não fosse, mesmo sem que o soubesse,
ao ' '
contrário, o tema era florescente. E o especialisêa ªo: &th ªgem' —
recer ao
cena evocada. Mas, para inquietar
propriamente falando, o autor da leigo inúmeros exemplos comprobatonos, o pro es umª
um “A do explicar
seu saber, o psicanalista formulará, em pensar demasiadamente seguro de lição ao imprudente: primeira coisa fazer qtãaªrã“
a se quer
De um lado, em que se apóia contrapartida, uma dupla pergunta. (

uma nova imagem artística é determinar sua Elpfâl'a ) Nesse pomº,


uma crença coletiva, senão numa fantasma- o psicanalista deve dirigir-se a discipilna da s.dr1 da
nãº; aos campos
tica comum? De outro,
porque teria Leonardo
comum”, precisamente um dado elemento em destacado, no “patrimônio
,
culturais vizinhos, a história da religiao e a da v1 alsºocm De fªtº, nelas
A discussão poderia, vez de outro? enderá uma multiplicidade de cºisas: que o cu a Sant' Anna cumu-
assim, prosseguir indefinidamente. Por ªgil nos anos de 1485-1510, que sobre ela se número
plo: naturalmente não foi a lembrança-fantasia exem- escrevpu umfundadas
do ni bio entre os lábios do menino dos batimentos da cauda impressionante de biografias e lendas, que em selu n:)meugrânêelebmçãº
que determinou o interesse do estudio— capelas e confrarias, que ela for pintada e escuspl 3,1%
so pelos pássaros; mas será legítimo
científico? O Tratado dos pássaros
tornar esse interesse
por “puramente” oficial de sua festa foi aceita em 14.181 pelp papa ex que havia tºdª
projetado por Leonardo não era um de imagens populares em circulaçao, represen mão Maria cºm o
trabalho de omitologia: deveria referir—se sorte
tras comportam centenas de unicamente ao vôo.37 Os Regís-
1346211111:
Jesus sentado em seu colo, enquanto ela mesma repousava no cºlo
observações, ilustradas por diagramas e e e que essas imagens valiam por indulgenclas, etc. Em :;etteeka a 80
temente repetitivas, reflexões insistentes
r,
depois de tantos outros e por encomenda, uma Anna
que têm todas as marcas de um $$;de inventar o tema, Leonardo atendeu a uma das exigeªncias d;
pensamento obsessivo. A conotação
simbolismo da cauda, impõe —se ao sexual, a parte qualquer recurso
ao é P oca.
vê a paixão desejante: transformar psicanalista; no interesse científico ele
.
-
É nesse ponto que a discussão com Meyerl$qimpirodee£oqunaíeouuo mos
o pássaro
máquina submetida ao poder do homem.38 voador, o falo alado, numa mais genéricos, entre o historiador e o psrcana lS âogºde
O outro problema examinado rumo. A que correspondeu, de fato, essa pronâoç Sant'Anna?
das vezes negligenciado por Schapiro problema na maioria

Ligou-se a um ressurgimento do nina
interesse pelad cªem da Imaculada
pelos psicanalistas em sua “defesa” de fun XV foi objeto
apesar de ter importância maior Freud, Conceição que, no seio da igreja católica do o
— talvez nos permita ir mais longe. ,érsias apaixonadas!o Foi um desafio de peso. A, Trindade
Trata-se, desta vez, de Anna Metterza (A de. (gªmªs
Virgem com o Menino Jesus e irito Santo T rinitas divinissrma —' con-
Sant'Anna). Recordemos numa palavra —

ªgent:—se zfssim nos podemos expressar, numa Trindade encontrourtumdª


feita por Freud: nele, Ana a “leitura” do quadro do Louvre qua 1 lca de
parece pouco mais velha do que Maria e só , . .
pouquinho mais séria; ambas têm o um h umanissima: Ana-Maria-Memno Jesus:
mesmo sorriso que “glorifica a - de
.

maternidade”; e como se víssemos ' Essa trindade, que acentuava a filiação mateárnec; gzztãªqªªqnde
de privilegia-la, era, convém notar, mais representª; b;;opois
a delimitação e' mais imprecisa,
havendo realmente “duas uma filiação visível: prestava-se por sr só a imagd Leonardo, segundo 0
saem de um único tronco”. E Freud, cabeças que e sabemos e o que podemos supor_da infancia e _ a ilegiti-
como se
assimila—las, essa representação, efetivamente sabe, aproxima, a ponto de qud d de seu nascimento, a
separaçao de Catarina, as ma_ºs múltiplas 're—a
de Leonardo menino, primeiro sin gularíssima, e a gldnfo etªlvez de
entregue a Catarina, sua mãe, e
situação
," , compor apenas uma, tudo ISSO. fas/cqrâãen d opibdreep]
separado dela para ser confiado a dona
Piero, e à avó paterna. Leonardo, filho Albiera,
depois
a mulher (estéril) de Ser
“ “”edeum'parm
sentªçao dhe' l33:35:31?(Elsi15<?adftnuriªelvletterza —,
A.
os
tenha entrado em
mães de sua infância deviam [grifo
de mulheres: “As duas [ou
três] levantar a lp ressonancriz;
meu] fundir-se, para o artista, numa seu imaginário.“ Nesse caso e isso é realmente oquedma

única imagem." lmedlatªâ história o descaso de Freud no tocante ao rubro pong sdar
01111111

(5333133112) de
outra maneira. De fato, se Freud leu abutre no te
186 187
AFASTAR-SE DO VISÍVEL A ATRAÇÃO DOS PÁSSAROS

lembrança, e se leu a Mout egípcia em Matter [mãe], Como ler essa Lembrança da infância? Como lê-la hoje, engªtª nfcãsrâtxiã
e se, mais tarde,
Pfister, como discípulo zeloso, tornou visível o conhecrmentos ' sobre a vtda '
de Leonardo , que contmuam esc
que Freud tinha lido e ,
enxergou a forma do abutre no quadro, é porque o abutre, sao um ito mais ricas dº
' . _
segundo a lenda, precisados, em que as pesq uisas da iconografia
se reproduz de uma maneira muito particular: todos - da
os abutres são fêmeas que na época" de ' Freud, em que tam bé m a vontade de expansao
-

e são fecundados pelo vento! Assim, ' '


Slcanáltse tao evrdente em sua fase. urea , se mo. d pretende-
,

graças a eles, a própria Natureza não á erou ? Quem


desconheceria a imaculada concepção...42 E fia
hoje deter a última palavra, principalmente diante da rios:: ingªme
.
?
W;“

Freud, ao se enganar como


fez, ter-se—ia aliado, sem que o soubesse, ao “
Podemos le-la, para começar e esse é decerto o me
Leonardo para a escolha da Anna Metterza. que pode ter orientado —

co nvidado a ler qualquer texto d e Freud-. sem nos


m—r—wv'ww


_, cºmºparmtantºs nos tem
Abutre vindo do Egito distante, ou milhafre, ' com sua a d uaçao " a “
rea lá 1 a de“ ou com sua

tão hábil no controle eu os demais eq


“.

de seu vôo, ou ainda a pomba do


Espírito Santo: qual deles melhor pode gãergência com os outros saberes, tantas vezes esquectdos, .

expulsar o pai, para que ele é que se torne ilegítimo? ' porêããez;
Qual será o mais apto e ue também só progndem a través do erro e no exagero. ,
a resolver o paradoxo de preservar a mãe do duacllificaçâo de “romance . ” . .
horror da copulação, ao psicanalítico só é pejorativadaos 01323 (daqui;&
mesmo tempo garantindo ao filho um vínculo carnal lies
como rainha Lªchearrdo gªmeso
não nasceriamos de um simples com ela?43 Porque que nunca encarªm a imaginação '
sopro... ou de um vento? Que estranha en tirm os em ler dessa maneira o ensaio so re ,
história de pássaros! Z:;tsados . _ . .
por seu movimento próprio, pela augáciâ antª?) 333231 3558310
S

Quanto ao tratamento específico do tema avanços,“ e sobretudo pela ar te de manter um os a o ,


por Leonardo uma
heterogeneos e mulnformes quan to 0 era seu mode ] o. Urn mesmo homem
representação cuja invenção exclusiva, lembramos, Freud lhe atribuiu:

'
“somente Leonardo poderia pintar esse '
va madonas e desenhava monstros, lacerava cadáveres e só g ostava
quadro” —, Schapiro também gomãrpo dos efebos, organizava festas na corte . .
marca pontos. Só que, dessa vez, a argumentação
cente. Naturalmente, emprestar a mulheres idosasparece menos convin-
'

bombeiro afirmava—se e era enge_nheiro mi 1


'
eloâílsmâlâªãiitseâe
e , .
ªê::
como Ana os traços Sãndente e submisso, artista da harmonia e mcapaz de .
ta
idealizados da juventude era fato corrente
_

na época;“ também natural- fazerdmàQttt: 13111811


nós
:;
mente, embora os exemplos disso fossem mais raros, sucedia Ana de 3
e Maria um homem assim, que qualquer um possa nssÍlt SSI; maneira
' ' ' ' "es co
aparecerem quase como uma única figura desdobrada. Mas,
se situarmos diverstdade ou de tais contradiço , portan o, . e
a Sant'Anna de Leonardo na série das m em' ma
' '
Mas, como se fabrica o enigm ª , a po mº de
_

Metterze, como Schapiro nos


-

demos adnutir.
convida a fazer, nem por isso a diferença será âesafiaª qualÉuer inteligibilidade, como se estabelece a . on-
Ali já não há nada que signifique ordem menos impressionante.“ allagadqgsaçes?
a das gerações, tão evidente nas trários , como chegar ao ponto secreto em que se ;mmmoZm
Metterze tradicionais, clássicas ou populares, nder a essas perguntas, querer delimitar a tgu discussão é
em que Ana era a “matto- ªccesespªariamente - .
na”, a avó majestosa, e não há mais nada mesclar verdade e ficção... e se expor ao desmentido .
que indique um eixo vertical.
Tudo sinuosidade e envolvimento, tudo é olhar
e' '
Se o retrato traçado por Freud é julgado pouco .verwsíísn; çâºo
e sorriso, e o movimento
dos gestos retrata menos o instante frágil do retrato-ou , melhor dizendo, o desenho ou o âsblocço, e
O mistério se toma visível, é mistério que uma serena eternidade.
tásttco ' uanto alguns desenhos de anatomia
.
e
tf; Príãmitamos
ona o ,
encarnado, fusão do terrestre com
_-

o celestial. É semelhança, da mesma forma


que as duas mulheres, quase É; ele
foiqe
continua a ser extraordmananierrge “ loquaz ” , e que obriga os
. . .

idênticas em sua expressão, sua ' '


pose e sua graça, essas mulheres inteira-
mente voltadas para a ascendência exercida sobre elas que o exammam a se srtuar em re lação a . e e. .

descende delas, só um tantinho apressado pelo menino que Ademais e por isso é que foi preciso voltar [ao magâstzlluelsntpodgâz

'
r Scha tro o ensaio dá acesso, tanto_ parao istona. o
em se livrar de sua meiga ' —
dominação. '
?;ZiZanalisª a novas pistas para a reflexao. Acaso o hisctiorttªalcllltêr gag?)
_

O quadro de Leonardo realmente


nada sobre a arte do pintor sobre a parece escapar para não dizer
— ' corre sem
,
re o '
risco,
iiªignificanteg, a variação tão mais eloquente
mais ' ou os
men , “ de desprezar o e. ,.
47
m
aliança, ali também sem fronteiras, quanto Tiªsªilggentês"
entre os verdes e os vermelhos e as túnicas leves à lei benefício'da definição de uma tradição, da
— da série, aos identificaçao
cânones do gênero, a tal ponto que podemos
legitimamente formular-nos e das “influências”, da atribuição a uma “escola ? I_Ele tei:ide também a
a pergunta: mas, será que ainda se trata de uma
Metterza? Acabamos então desconhecer , dada & pregnância do motivo, a ((iliversrdade caminhos
“250 subjetivi)
por nos aliar ao julgamento meio peremptório de Freud e a fazer '
evam à obra singular, à obra única,
.
onde
I |
a tsttnçao en
:—

suas análises mais arriscadas: sim, esse quadro só nossas ªlbedbjetivo entre o fora e o dentro deixa de .mtervrr.. quem poderá algu m _

podia ser de Leonardo! ,


188 AFASTAR—SE no VISÍVEL
II”
A ATRAÇÃO nos PÁSSAROS

dia dizer através de quem se efetua


uma invenção na pintura? Só se '
encontra, só se cria o que já existe... preciso atingir manquejando. ” Manquej ando, porque nossas p;]:isvras não
têm imagem, porque nossas palavras claudicam. Certamen te , do que
Na psicanálise, não se pensa por temas, mas ' 'mconclusao,
" inacabado.
dessas conexões, por ligações e desligamentos; isso por conexões e rupturas o, els—nos condenados à ao
Leonalflsdtaremos _
riscos, riscos que Leonardo também conheceu.
não deixa de ter seus portanto libertos e deveríamos estar?' da atração pelos
— —

Gostaríamos de poder ler pássaros, da atração que exerce também sobre nossa lmguagãgipsãã㺠"o
seus Registros fora de qualquer classificação
desordem associativa de sua redação, por categorias, na aparente rumo ao longe? Aqui, é a um outro “profeta , mais próximo
que sempre imaginamos feita às que foi Leonardo, que convém passar a palavra:
pressas, na urgência de dar forma, de dar corpo ao vinha à mente:
palavras, desenhos, chistes, pensamentos profundos que
'
:- ais
'
Todos os pássaros intrépidas que alçam vôo
tes de uns aos outros (os Registros ou Einfalle' de
e passagens incessan- rumoniâºdgãretçâ
extrema distância — claro, vtrá o momento:? em qleecife
:“?
de ioga, sim, mas também controle Leonardo...). Doação Ian3 e e pousarão num mastro ou num m em r. gratos ainda por
,d'
imediato, a fim de manejar o leque com esse rejiígio miserável! Mas, quem teria o. irei“to de concluir
das idéias que alçam vôo e ª?:sguque já não se abre diante deles uma imensa via I'v'aerideesqunístres
eles
partem não se sabe para onde, como os
pássaros.“ voaram tão longe êuanto se pode voar? Todos os
ZSÉZâígh
Por outro lado, postular com o psicanalista e predecessores acabaram por se deter, e o gesto que se detém
8como
que o aparelho de pensar não é nem o mais nobre, nem o mais gracioso. a mªn,“
.
a ti isso
trata, qual uma máquina, dos mais diversos materiais também acontecerá! Mas, que me .importa, e gue rta! 0,“th
sensações fugazes,

pºvoa com eles
representações fixas, lembranças, cenas, crenças e pássªrºsvºª'ªº mªiªlºªªº'ª Eªª'ãéªííªr'áíªêãããíalêíâiªafâsascomforça
trabalho de si sobre si mesmo, onde que só pode ser um

em disputa rumo àsdistânctase u _a ,


quer que busque os materiais em '
sua nn d'.ireça"o ao céu de onde
.
téncxa, em
questão, não deve levar a desqualificar como '
3321501283 ;?Zgavgoíede pássggos
são atribuídos à cultura ambiental. A análise decontingentes aqueles que mais pgtenâstªqzienãgsê
em designar seu “conteúdo latente” como sendo
um sonho não consiste '
31158212: çgirgrz
'
' mmªo
nos lan vamos,
riaEd (Lííiºãnndgugntão, quçeremos
on
ir? Queremos, asstm,
.

a verdade do manifesto, , ) ',,


mas em reconhecer, através dos efeitos de deslocamento transpor o mar?
a atividade de transformação do e condensação,
desejo de que o sonho é portador.
Máquina de sonhar, máquina voadora; pássaro
desperta à noite, Transposição do mar, transgressão do pensamento e pelo pensªr?;
pássaro que transpõe os dias e as noites, sombra que
e luz... O mesmo se dá to É com esse fragmento de Nietzsche que se encerra Aurora.
quanto ao trabalho da obra: ela inclui em sua forma intitula: “Nós, os aeronautas do espirito !
aquilo que a determi-
na, suas fontes e seu devir, ela é aquilo que a faz ser.
Objeto oferecido a
nosso olhar, é também pulsão, e justamente
por isso é que ela nos estimula,
que suscita em nós, leitores ou espectadores, desejos
ignorados. Ficaria-
mos tentados a retomar, a propósito dela, 'o Freud soube dizer do
trabalho do sonho: ele não cria nada, transforma. que
Essa
dora, conviria ao menos àqueles que a Lembrança da fórmula, provoca-
Leonardo e Freud, dois grandes infância aproxima:
transformadores, inteiramente ocupados
que estiveram, um e outro, com as infinitas transformações
pela vida mental. Assim fazendo, ambos foram conhecidas
filhos de sua época:
Leonardo da Vinci nos orienta
para o que é figurado e deve ser visto;
Sigmund Freud, para o que faz signo [signe], e só
pode furtar-se.
É chegado o momento de ouvir de
novo a obscura e reveladora
profecia: “O grande pássaro alçará seu primeiro vôo
Cisne [Cygne].” Ao que poderia no dorso do grande
responder, como eco, a fórmula que
Freud gostava de citar: “Aquilo
que não podemos atingir voando, é

* Oeon'ências súbitas. o que irrompe de improviso


na mente. (N.T.) * Vale lembrar a homofonia entre la mer (o mar) e la mêre (a mãe). (N.T.)
ÚLTIMAS, mutans PALAVRAS 19!

narrativa fosse conduzida na primeira pessoa não impedia que se tratasse


de um “ele”. O emprego do pronome “eu” não garante o sujeito da
enunciação, o que seria simples demais. Nascido em 1895, numa família
judia da Rússia meridional, depois no colégio em Odessa, chegando à
França para estudar medicina, exercendo a estomatologia em Paris, a
Ultimas, primeiras palavras guerra, Vichy, o casamento, dois filhos... Eu ou Ele, que importa isso
quando o eu se define, se narra como um ele, apresenta—se nele para se
ausentar de si? Todavia, já nas primeiras páginas do livro, a incerteza e,
com ela, o mal-estar iam ganhando terreno. Quem era o autor? Quem era
o testa-de—ferro? Aparentemente, era o filho que escrevia no lugar do pai,
mas poderia ser o pai tomando como pseudônimo o nome do filho, escritor
célebre, e, deliberadamente, falando dele como de um outro. Afinal,
conhecemos autobiografias que — por pudor, por medo da autocomplacên-
cia, pela preocupação de se ater à factualidade, por incapacidade de
transmudar o memorial dos acontecimentos numa ficção do possível — não
fazem outra coisa senão desenvolver um curriculum vitae. Conhecemos
algumas, sobretudo entre os modernos, cujo projeto autobiográfico só se
justifica quando o eu é tratado como outrem, observado por um outro
(penso em L 'Áge d'homme, de Leiris, e em certa medida em Les mots,
onde Sartre acusa os traços do menino Poulou). O dr. Simkha Opat-
chevsky só podia dizer aquilo de si, talvez só considerasse reais os fatos
que haviam escandido sua vida e que diríamos não lhe pertencerem, talvez
se tratasse de alguém que não gostava das frases e não admitia que o
pelomenos certamente insuportável se transformasse em literatura, que o horror criasse beleza.
&
oq tiªenc1a,. e adivmhei um filho culpado
. . . . ,
por não ter sabido manifeftlalrmarg Um Protokolstyl, um estilo de protocolo, de escrivão, essa impossibilida—
de de uma literatura sem frases, foi esse o ideal de Kafka. E o Código civil
foi o modelo de Stendhal. '

Pachet ,
fala ª em seu nome. ESCI'C V era O seguinte: A fªlª de Declarei que a incerteza quanto ao sujeito e o mal-estar daí resul—
V
lIlOI'tO ped ti
para falar atraves de mim, como meu pª . tante para nós iam progressivamente ganhando terreno. Ambos atingiram
nunca falou , mais além dª
o auge quando, ao avançar mais na leitura, a alteridade ganhou corpo. O
título do livro, retrospectivamente, passou a se impor como o único
A quem pedia necessário, deixou de ser engenhoso para se fundamentar na infelicidade.
&

para falar
dificul da de em se perdoar por nãísíâãªçlyªw'a sepulta'tAo filhº, que tinha
.
O pai, na verdade, fora atingido por uma doença sem nome. Ela afetara
sua visão, depois sua memória, seu pensamento, e todas as relações.
Obcecara-o. Sim, essa doença não recebera nome: a princípio, tentamos
dar-lhe um demência pré»senil, afecção cerebral —, mas essa necessidade

morte fez um ausente definitivo, e qu e talvez de designa-la, sentimos, destinava—se apenas a nosso próprio apazigua-
daqutlo que se chama vida? Sim ei sempre tenha estado ausente mento. Leitor como o filho, como Pierre Pachet, recusamo—nos a nomeá—
, s-nos tambem convocados a
rumo à ausência. avançar la, sabíamos que haveria nisso uma fuga, que o nome dado, que o
Temí ' " " diagnóstico neurológico ou psiquiátrico não faria uma brecha no muro,
belo, tao
não pªssassglàí (31:21:33?an
1
perturbador, tão rico em ressonâncias
1c10. Temos. conflrmado mas, ao contrário, o fortificaria.
em que se d'1st1ngu1a
. ' num primeiro momento-,
essa “autobiografia” de uma É que esse homem estava dentro de seus muros. Um homem murado
biografia? Que a
190
em seu silêncio, ou uma fala murada num corpo? Esse outro, esse estranho
192 AFASTAR-SE DO VISlVEL
ÚLTIMAS. PRIMEIRAS PALAVRAS 1.93

'
ue
ª, “o [1511112038
;;;: ªtªlhoesmo.
tornou-se, sd que corporalmente, cotidianamen-
Meu cerebro. tornou-se um estranho grafias que continuam a ter como protótipo, na França, as Confissões
de
mim, comunicava-me para Rousseau. Contudo e isso é justamente um traço que as diferencia das

recordações vagas, quase
sempre incongmemes (comhfondescendencra Memórias —, não serão as autobiografias sempre movidas pela vontade de
conhecidº, incoerente, indomílniªfíªªtªíildlbfgsgeíggl num eSpªçº dªs. descobrir a nós mesmos e de descobrir nosso ser, através da recusa,
ram essas as a - sucessão dos
"ªs do ͪhgãfaãanlíiopelo pai,. tentando, num movimento
.

de identificªção portanto, a nos definirmos pela soma de nossos atos ou pela


nós
com º q o in a identidade, dar alguma acontecimentos? É o substrato desse ser, desse sermos mesmos, que
coerência, algum sentido ao talvez, na desacreditar em seu
muda conforme as épocas, até, nossa,
próprio princípio qualquer projeto autobiográfico.
E se Na época de Rousseau, porém, a vontade de descobrir a si mesmo
CXZZZÉíOÍZ gusteãredo de todas as autobiografias? E se nessa
aparente o lografia de um outro, e de um era evidente, confessa: a possibilidade do dizer-se em sua unidade e sua
outro trªnsformado e parente, de um diversidade, de dizer (a verdade, e de dizê-la inteira, não era questionada.
estranho_para sr mesmo é que devêssemos
Vejam-se as cartas ªºao sr. de Malesherbes, anteriores à redação
ãomd —
das
encontrar a motiva esconhecrda, Inclusive pelos que se empenham
nele, do projeto Ugª atos.“ Eles interpretam; quanto
,,,

Confissões: “Os outros interpretam meus


um livro? E se sª tra t2:81:(lisapª;;pªrªdisenàterrogar: fªzer da própria vida revelam-i,
-

a mim,. vou dizer, e dizer tudo. Meus atos: é meu coração que
: os casos, e restituir um desnudado: “Ninguém no mundo me conhece a não ser eu
nem
. ,
meu coração
galavrgstgãísãgzrfªo e, em ultima instância, de inventar, conformíuaª
, . _

mesmo.” Seria “a história de uma alma“. Aparentemente, Rousseau não


, regrª ficªsse E“ dºsrºgfªdº? De fazer ouvir ªlém MMm—wuu

contrário, invocou-os e, através deles, o Juiz


dos traços visí vers,
'
mas a partir deles, a voz do desaparecido, do ªpagado rejeitou seus juízes; ao
de
do incompreendid 0. De fazer falar
*) , supremo, convencido que estava de que eles ratificariam, depois
. o mundo, de dar, pela escrita,
.
uma ouvi-lo, ou melhor, de vê-lo no retrato sem disfarces que lhes submetia,
linguagem ao infans? do
A au . o julgamento que ele fazia de si mesmo: “Nenhum deles foi melhor
.
término de confissão, ele seria mais do que reabilitado,
que eu.” Ao
.
se afigura um necrológio antecipado sua
um gesto dª?;ââirªfãetªmtas vezes de sr mais do que absolvido: seria amado. Não, o que ele recusou, ele, que o
prgpnaçao
de desacreditar o ue o s so e, com isso, quem sabe, um meid
nâg reviventes pensarão e dirão de nós, de afastar delírio impelia a interpretar tudo, foi ser interpretado. Sabemos que o que
o risco de que fez Rousseau se decidir por iniciar efetivamente suas Confissões pois o
alguma. Nunca somos tão bem servidos

mesâgsemeorsa foi
quanto por nós projeto era antigo, e inúmeros eram os estímulos vindos de terceiros

quando fingimos desservir-nos na difamação
na confissão das infâmis, atá, as vergonhas. Sermos a publicação de um libelo anônimo (na verdade, de Voltaire)
revelando
autores de nossa própria
orªção fúnebre sem as, de ao mundo o abandono de seus filhos.5 Uma injúria (injuria, recusa
de
comº o herói (je umotsexestemunhas nossa morte, podermos escrever exigia menos reparação em
o pouco conhec1do de Zola, justiça) que, vindo depois de tantas outras,
anúndo: “Foi num sáb d 0, que começa peld confissão
mesmas
horas da manhã, que morri.”3 Dizer que o prescrito se tornasse acusador do que confissão, mas
respeito de nós aslseis
as rimas palavras: esse desejo, essa fantasia
o completa, confissão que fosse toda feita de luz: “Eu gostaria de poder, de
certªmente é amªnte M :; algum modo, tomar'minha alma transparente ao leitor:“ a fim dezque ele
o mesmo modo, dizer de nós as primeiras '
palavras, e com isso. así“azer o desejo si
pudesse julgar por o princípio que a produziu.”
cuja contradição interna toda
autobiografia ex erimsans. autor de minha vida (autobiografia Transparência: Starobinski fez dela o termo chave da iniciativa de
de meu pai, pai dª mijª?" fazer“-me
lª...), e me fazer autor dela inclusive ali Rousseau. E a pareou, justificadamente, com obstáculo. Com obstáculo,
onde sou mais assujeitad 'rogra e não com seu antônimo, que seria opacidade. que, para Rousseau, nada,
É
o. wo es war... e, como perspectiva, funciona
comº se me fosse permrtldo ser o autor da linguagem. Grafia: o eu se por menos que se dissimulasse deliberadamente, constituía de dentro um
obstáculo à transparência. 0 obstáculo estava fora, como as portas da
cidade de Genebra, encontradas fechadas certa noite, num incidente de
juventude que, a lhe dar crédito, teria decidido seu destino. O obstáculo
Autobio r e o inferno eram os outros... A alusão de Diderot de que “Apenas o mau
É;
' ' '
proponhª gla registro obituário e/ou ato de nascimento? 0 que
issesrá
e solitário” (alusão feita, ainda por cima, em Ojilho natural), Rousseau
acerto por todos no
autobiográficos (1:11 ossa epoca. É mais que concerne a alguns escritos retrucou: “O inferno do mau é ficar reduzido a viver sozinho consigo
difícil reconhece-lo nas autobio-
mesmo, mas esse é o paraíso do homem de bem.”
194
AFASTAR-SE DO VISlVEL ÚLTIMAS, rmams PALAVRAS 195

Essa transparência não era evidente" tal


conqmstada de umª vez
_
, '
como o Paraíso, nao era gando-me ao mesmo tempo à lembrança da impressão recebida e ao
sentimento presente, pintarei duplamente meu estado d'alma, ou seja, no
alcance. De fato Rousseaupohrdtodasnmas continuava sempre a nosso
e admitir nos Devaneiosz' “O conhece-te momento em que ocorreu o “evento e no momento em que o descrevi. Meu
ª ti mesmo não ,é uma m , po tao fatal de seguir quanto acreditei próprio estilo (...) fará parte de minha história.”8 Está tudo dito
aí: o
Confissõesºº- depois de aâlma nas continuo a gozar”),
páginas de ,seu umd sle
aver mostrado tal como era nas centenas de presente da escrita (“ao dizer a mim mesmo: gozei,
eu Singular, ele iniciou sua primeira de uma escrita tão próxima quanto possível da voz; a atualidade da
“Caminhªdª” cmg] & er Nrº.?)
gunta. Que sou eu? Eis o que resta procurar.” E
pôde renovar essa inª: gaçao, cons1dera-la emoção; o abandono ao estado de humor, que não faz do sentimento um
não duvidava de ue e] pudesse sempre por formular, porque objeto de reflexão, mas aviva o estilo; e a bizarria, a única apta a exprimir
de tudo, porém,
de compeilia a encontrar uma resposta, e principalmen- o ser múltiplo e sucessivo, sua dissonância íntima. Acima
te, que unicamente a ele fornecê—la: “As pessoas ue c ' confiança na linguagem. Confiança que pode surpreender, por parte de
vem mais im.lmamente comigo não me conhecem.” Roussâm estª:/la homem tanto sofreu com as palavras dos outros, que nunca deixou
. . um que
de denunciar a linguagem enganadora e o burburinho vão, que
e afirmou
, a reconhecer que os “verdadeiros e derra-
só poder confiar, mªs, nesse caso, sem reservas, naquilo que havia senti do
(“Não posso me enganar sobre o que senti”); mas uma confiança muito
fosse a
9 S ) particular, porque pressupunha uma condição: que a linguagem
própria emoção. Aqui, conviria voltar ao Essai sur 'origine l des langues
tal ponto
[Ensaio sobre a origem das línguas] e poder demorar-nos ali, a
deixou de obcecar Rousseau e a tal ponto
a questão da linguagem nunca
m g se acha, por definição, no cerne da autobiografia.
Por mais ativa que fosse em Rousseau, como em qualquer um de
nós, a nostalgia da comunicação imediata, intuitiva, dispensada da media-
ção dos sinais, Rousseau reservou a Deus esse privilégio. Quanto ao
Oferecer um espetáculo sem so mbras homem, ele estava inteiramente fadado aos sinais. Só que havia sinais e
e nos tornar cúmplices dele, sinais: os sinais naturais - gritos, gestos, movimentos, linguagem da ação
isso é o que efetivamente importava para ele, o
fosse exata (que im portªva tivesspalfa Rousseau. Não que a biografia - e os sinais da instituição, convencionais, com os quais,
que e av1do um equívoco sobre os fatos malefício começava. Rousseau não se causaria de reduzir a distância entre
e as data?), nem um (me o
confissão que mais mpl a vez,
que o retrato fosse fiel. Prova disso foi
uma uns e outros, de fazer ouvir a lingua primitiva, a língua cantante, na
Mas
cido de que sên] p re somos precedeu qualquer crítica: “Estou conven— linguagem articulada, de reencontrar a voz da Natureza no discurso.
bem pintados quando pintamos é preciso discriminar algumas sutilezas nessa visão clássica. Por um lado,
mesmos , a.m da que o retratomuito ª n óS dotado da
nao tenha nenhuma semelhança ”7 no Essai, Rousseau afirmou que o homem não é originalmente
fala e o é tão pouco que a primeira dificuldade

consiste justamente em
! imaginar como foi que as línguas puderam tornar-se “necessárias”; na
de constitu'ir a " cadeia
' '
de sentimentos”,
9

“espaço imenso entre o


história da humanidade, Rousseau presumiu
!
a saber, a dos acontecimentos um
estado puro de natureza e a necessidade das línguas",9 como se lhe fosse
do que ao
preciso conceder ao reino do infans um tempo mais longo
império dos sinais. Por outro lado, entretanto, o privilégio
do discurso em
relação à expressão direta não lhe é
escapou; que o discurso é sucessão:
questão de torna-lo uniforme:
tereãsempre o que me vier, modifica —lo-e1 sem escrúpulos segundo meu
.
“A impressão sucessiva do discurso, que tem um impacto redobrado,
esta o de animo, direi cada coisa tal

&
como a sinto, como a vivo, sem realmente nos dá uma emoção diferente da presença do próprio objeto
rebuscamento, sem cerimônia sem me de
, embaraçar com a bizarria. Entre- (...). Ao ver uma pessoa aflita, dificilmente vos comovereis a ponto
chorar, mas basta dar-lhe o tempo de dizer tudo o que ela está sentindo e
A paixão precisa da linguagem; é
logo vos debulhareis em lágrimas."10
* .
Devaneios de um caminhante solitário. (N.T ) ela, mais do que as exigências da vida social, que a inventa. “A linguagem
196 AFASTAR-SE no vrstva. ÚLTIMAS, rumam PALAVRAS m
fi ..
a primeira
I
.
a nascer; o sentido º
d 5333505 paixao precisa do
próprio foi o último a ser impossível, a palavra reúne três termos que são todos problemáticos: auto,
ada tempo e do desvio, precisa da metáfora
Re bio e grafia. Não basta dizer que o pensamento moderno, a começar pela
cadceci); ªªa: Cprgfissoes, mas agora isso assume outra importância'.
psicanálise, fez recair a suspeita sobre cada um desses termos. Combina-
uma en tmentos , uma cadeia de patxoes.
diríamos'. uma cad ela.
.
'
(Por nossa vez ,
de representações cade“1a de s1gn1ficanteS'
' '
' los num só parece ainda mais absurdo, principalmente aos olhos dos
.
. ,
cadeia?)
só psicanalistas (de outro modo, para que serviriam eles?). Mas são justa-
1853115 5:38:33 ttr'ocar [de Toma—se então compreensível 00111110:
mente essa suspeita, essa impossibilidade mesma, que estimulam o tempo
, .
e ormu ar, quanto a sua meta du as
mente contrarias- “ Aqut. é de m ,
'
proposr ç oes a parente
'
' —
"

todo a iniciativa do autobiógrafo. Sua questão, sem dúvida, já não é “quem


eu retrato que se trata , e não d eum livro ”'
sou eu?” “que fiz?”, “de onde venho?”, mas: “onde estou?”, “de que sou
. ,
. . “
e
_

leiam meu coração.” O coração, livro aberto,


%%%&?
_

liªíígegltliegm qal: todios


um ou e coincidiriam o ser e , feito?”, “a quê estou subjugad07”, e talvez, principalmente, “que é que
enfim deixaria de ser chamada tra 'tdora. Ou, ' pªrecer,
onde palavra º ª "
me faz falar?” Por mais presos que estejamos à interpretação, forma
bem
'
igualmente, o livro: um temperada de nossa paranóia, temos uma tendência, no “que é que isso
corªção abertº.
quer dizer?”, a esqueçer 0 “isso quer”.
de voltar a Rousseau, não foi
leção Ézsíiãªquãstâo
as
apenas por uma predi *
, porque as Confissões testemunh ªm uma aliança ' Primeira lembrança emblemática para ele, e mais ainda para nós - de
"

para nós, brilha com as luzes de um sonho pe rdld ' que, —

de um eu , refor çada pela .


o. a l'lança entre a certeza
' . Elias Canetti: uma lembrança “banhada de vermelho”. Ele tinha dois anos
pressuposr ç ão da b oa a ma, e a confiança , apesar 1
e estava no colo de sua babá. Um homem avançou em sua direção e
lhe
de tudo, em que ª escrita desse eu _

lâmina de
pode eo nsumar-se or uco ue sorriu gentilmente: “Mostre a língua.” Depois, expôs a um
d elxe seduznr, sem nele se reabsorver,
pelo mito de Jafa ligªva niiltui'jle
_ _
_

, canivete e disse (imagino que sempre com a mesma meiguice sorridente):


por pouco que seja mais est'lmulada pelo Rou SSCªu mUSlcº ' '
autor dos Discursos.
_
dº que Pelº “Agora nós vamos cortar a lingua dele.” E então, na hora de executar seu
gesto: “Não, hoje não, amanhã.” O título do livro de Canetti é
La langue
pãefrâtzªmâs Íssg'aliança, essas certezas já não nos pertencem . Sabe _ sauve'e! [A língua salva], onde ele fala dos anos de sua infância e juven—
mos en e ISSO. Assim evitamos o s d es d obramentos de ' tude.
,. hábito
hoje tão esperados que, a princípio
. .
eminentemente PC nu rb ªdºreS, ªcªbª-
,
Houve algo de curioso em torno desse título. No manuscrito de meu
ram por assegurar nosso conforto Intelectual mandei um
resumo, eu havia escrito A língua cortada. No dia seguinte,
' '
_. (o “de— ser ” vªl bem): o
sujeito '
fundamentalmente div'idldooeucomoc
.
escrita podendo apenasre pisaroluto
' , ap 窺 imaginária,
de toda p resen ç a . Tudº '
' a ta' bilhete a Jacques Cain para retirar meu erro.12 Imagino com que gentil
delicadeza, também por sua vez, ele o acolheu, sem externar sua opinião.
apontando para o fun da autobiografia. Issº, é Clªrº,
E, nestes últimos dias, relendo o belo estudo que Michel Schneider
V

publicou sobre Canetti, vi que ele também confessou um erro: havia


fornecido como título do livro A língua roubada.13 Outro amigo, indican—
do—me alguns livros com vistas a esse colóquio, escreveu junto ao nome
P "
de Canneti: A língua perdida. Que cadeia de lapsos! Que relutância, em
'

estejdz:ª por
toda p arte e cada vez mais (a menos
que sejãeããlgàêãgm
encerra num “gênero” a q ue deva ºbedecer). Nº
,

nós três, em admitir que a lingua o órgão e o conjunto das unidades da


romance: vejamos
. , '
Mila
como '
n Kundera, em seu últim o llVI'O re ' linguagem pudesse ser salva. E então, roubada, perdida ou cortada?

'
ªiªtpásiândgtgorâance, nas multiplas formas que este assumiu, ,desãgçâiª_
.
Certamente ameaçada, no caso de Elias, por ter esbarrado na proibição de
_

ous e oyce, é sempre da “b usca do eu ”


se trªtª , falar, de trair o segredo sexual (mesmo assim a babá foi despedida), e
segundo Kundera , é sem pre o mesmo “assombro diant d & que ' ameaçada para sempre: o “Não, hoje não, amanhã” teve como efeito
eu e de sua identidade” . “ E na ' ' filosofia desd O º Incertezª dº
propria , e mºmentº em que garantir a perpetuidade do hoje.
ela deixa de ser um sist ema. Recordemos Nietzsche'
.
Estamos longe do infans imaginado por Rousseau, para quem o ser
passa de uma autobiografia” e entao leremos Sartre M 1
. “Tod "
filºsºfia nªº
' ª desprovido de linguagem era todo positividade, como se apenas o irfans
quem sabe até Descartes , de outra manelra' , can—Ponty,
(no tocante a Bend, 'ISSOJâ
'
se
e " tivesse acesso à verdade. E agora, eis que o in privativo, negativo, está na
faz, mas na maioria das vezes sem método).
.
própria fala. Seriamos nós privados da fala no exato momento em que
_

acedemos a ela? Maldição: o mal está no dizer.


'

govenllgnrposszrel: mas tudo que nos interessa é “impossível” educar Não obstante, se Canetti pôde intitular seu livro de recordações de

, ana isar, traduzrr, escrever, falar... Pois seja, a


autobiografia é: A língua salva, deveu isso ao multilingíiismo. Na cidadezinha búlgara
198 AFASTAR-SE Do vtstvm.
ÚLTIMAS, PRIMEIRAS PALAVRAS [W

onde a ' ' '


lingual; 3:33:13: sªrmeiros anos de Vida, ele podia ouvir sete ou oito alta e articulando bem: Ich
ante o dia. Qual for a língua materna de Canetti? língua, mas na língua do outro, disse em voz
Haverá se “er se tid falar numa “língua'materna”, naquela que não sterbe, e caiu morto”" uso O da fala começa por essas palavras, por um
poderia seq comxda I(:eem roubada, “eu morro”, dito na língua do outro. Eu diria de bom grado que a
uma vez por todas'; E gr nem perdida, pois nos seria dada de desconhecido
casa, seus pais, mas apenas entre si, falavam autobiografia moderna diversamente da de Rousseau, esse

foi a de
alemão e não es anh [ cuja demanda manifesta foi o reconhecimento, e cuja expectativa
bulgaro, como era comum. O pequeno Elias sombra da morte.
desconhecia o alpmâºo Pou um novo nascimento está — inteiramente marcada pela
recusou a elucidar, por mªdobeãhgdlenlgoâshrªnhd) fânômcnº que ele se O exemplo mais evidente nos é oferecido por 'Age
L d'homme [A
. , os, e estruir o ue— '
de .
livro foi um modelo para
tenãªlãelãããlãiofotrºdês as suas lembranças, inclusive as dzisqcenfllsixiilizl idade do homem]. Em minha mocidade, esse
verdade,
stemunha, as dos contos apavorantes com que seu mim. Eu ainda não havia deparado com a análise, pressentia, na
meiº infantil () embal ilusória, tinha esgotado as delícias e o aca-
hºrror do Sécmº t(ªndava, e que antecrpavam sombrias e vermelhas 0 —
— que & autotransparência era conservava a
a a vrolencra e a loucura lhe vinham à mente brunhamento da inupspecção, esse prazer solitário, mas
em
palavras alemãs ,“Es convicção de que dª autoconhecimento estava ao alcance de quem o
mmm], n㺠tento eâªãâfâííªí ?âpªlííãíªàªº ɺªãººmº'º'ªmºª” ou menos cartesianos, tinham—
e es mu ando ou di desejasse. Nossos professores, todos mais
cendo em
nos ensinado que não se podia duvidar da própria existência, mas que,

uma obra literária


_
Nao
_
é como tradução de
em “3532312231; uçao que se faz sozinha”,
sega. a
autoconhecimento era uma coisa das mais incertas, e, por
e nesse ponto, ele acres- contrapartida, o
cento“: “,noi nconscrente, e espero que me perdoem a outrem:
uma estranha contradança, que o inverso acontecia no tocante
_

por usar, nesta única contrário,


era possível, se a gente soubesse se arranjar, conhece-lo; ao
continuava das mais improváveis... Assim, dizia
nossa própria existência
“”'“ ” ºmº'ºªª' não só
.
A , .
.- considerasse como um outro, eu conse—
º'º sº
.
eu a mim mesmo, se me
pªli???”[Zâíãaªifãífâíºifâíããºfªíªªª
a icar essa guiria me situar como escaparia à miséria do solipsismo: meu
cuzinho se
riamos d'
, , operação
1
ue de- —
etnógrafo, seu
E se, efetivamente, o incínsclignte tornaria um outrão! Bastava a gente se tornar seu próprio
_
_
de traduçao.
_

fosse a lílnzgiãgªgídlªld coisa era possível. Já nas


osa osnpais, alíngua secreta disso, estrangeira a tal próprio mitólogo. Leiris me mostrava que a
da
ponto que im [ entes ficava dado tom: “Acabo de fazer 34 anos, metade
dpara traduza—la” para nossa língua, esforçamo-nos primeiras frases o
pºr tomá-ia não [52181111
eles? Canettl,
autor do grande livro que é Musset vida.“5 Fisicamente, sou de porte médio, mais para pequeno (...). Alguns
et puissance de minha mão, roer meus
a e poder], escreveria sua autobiografia em alemão gestos me são familiares: cheirar o dorso
seu p oli g ]0 [.tsmo o teria salvo da loucura polegares até quase sangrar, apertar os lábios (...); quando estou sozinho,
que pretende que a palavra da confissão que me
coçar a região anal”, etc. Não era tanto a franqueza
(na confissão, a duplicidade não está ausente), mas antes
impressionava
dos mitos pessoais, trazia
o rigor do método: ele permitia o levantamento
livro 55:03:22: exíocíimedtatamente
Nathalie Sarraute. Não tanto o
em ranças infantis quanto aquele que, creio à luz, mas sem reduzir-lhes o mistério e sempre indicando de que ingre-
revela mais sºbr eal a, ou pelo menos interessa mais eu dientes elas eram compostas, aquilo que chamaríamos imagos predomi-
a meu objetivo,
Trata-se de L'Ue sage de la parole [O uso da fala], cada um de cujos nantes (a começar pela da mulher) às quais o autor estava assujeitado.
capítulos ex _ ouvidos e acompanha seus Nada de biografia, portanto, fosse ela linear ou fragmentada, mas aconte-
efeitos (comªogºzhizriiãdgbtsifmditos ::nais
autora de não desistir). São dit cimentos; nada de busca do tempo perdido; nem nostalgia nem ressurgi-
açao mais ou
mento do passado; tampouco uma perspectiva genética, sempre
_ .
ue n a mnguém, do tipo “Até logo”, “Não me fale disso?"s
quua: 1535313?
e que, em. algumas Circunstâncias, podem assumir, menos presente nas autobiografias: eis como me transformei no que sou.
mito, unicamente o inventário de um
apenas pªrª & q ue],e a _quem sao dirigidos, um destaque extraordinário, Não: unicamente a compreensão do
agita ões im sagrado pessoal. Ora, o valor do mito, lembra-nos Lévi-Strauss, provém
_

çrealmelftrmmávels. ou .uma ferida indelével. Mas o primeiro dito,


digo a ser relatado por Nathalie Sarraute, é de “de que os acontecimentos, que supostamente se desenrolam num momen—
mm;-elª difereelpeprEiªeiríssnno to do tempo, formam também uma estrutura permanente. Esta se
relaciona
. e primeiro dito são as últimas palavras pronuncia-
das por um méd'1co russo que fora morrer numa simultaneamente com o passado, o presente e o futuro".'7 Mito: Zeitlos —

estação de águas da certa ordenação do


Alemanh a, chamado Anton Tchekhov. “Ele
disse, não em sua própria atemporal - e, no entanto, narração que implica uma
maneira de homenagear nossos
tempo. O sagrado: um culto privado,
200
AFASTAR-SE DO vtster ÚLTIMAS, PRIMEIRAS muvrus 20 |

deuses desconhecidos, de celebrar —


pela escrita cerimoniosa de Leiris, do ' O autor permanece como observador, observador—píâticipanptãâé clªaraoà
que parece ela mesma obedecer a rituais as '

forças, as imagens e os mas à espreita do fantasma que o' ocupa e que sempre e esca . ,
objetos a que todos estamos submetidos.
Para esta oportunidade de hoje, reli A idade meªnio. Lembro-me
'
mesmo tem o o leitor nao é solicitado a fazer ' .

'
ou tr a c oisa a não ser Isso
.
.
_
que, apos minha leitura dinªsãªgºh naº
.
do homem. Continuo a consigo
considera-lo uma obra-prima, no
talvez seja essa sua falha principal,
que ele persegue infalivelmente —
e
' '
encontrei nada de mais p temente a fazer senao, po r m ' , ao
' ' ” proceder a u m invcntáno .
esse domínio contínuo o projeto de
— encontro de minha “ Áfric a fantasma ,
cons—
enunciar, em suas camadas e suas dobras, uma '
cienCioso
'
de minhas'
fantas ias .inconsc1entes(.), . ' 19 reum't à mmha .
mªneuª,
.

Mas diviso melhor seus limites, organização imaginária.


modelada na de Leiris, o q ue ele chama de . ves tí gio S da metafísma. de “
' ' . .
como o próprio Leiris, que desde então
se lançou numa empreitada de outra
. Renuncre iaissoeiniciei umaan álise ,p.
minha ' 'infancia “ ' ” ' . . . .
ressenundo
envergadura, já que é o inacabado
que o norteia (a série de La rêgle du jeu), assim va
'
amente que haveria aliu ni . lugar que nunca pr ºd uz iria umhvro , conde
'
da primeira e, principalmente, reconhecendo o fracasso eugnão saberia
o que estava dizendo. Nem a quem o diria.
_ _

daquilo que esperava dela: uma catarse


supostamente lhe abriria o caminho para, nas palavras que
dele, “uma pleni— É possivel fazer na autobiografia . ., .
uma expeligiencmfde
. - e'a
tude vital”. Decididamente, Rousseau
não morreu. Além das confissões ' ' '
uma recapitulaçao de 51? C reto que Sim. A auto iog ra ia
' ' mg:: 523; II])
-— ; ª
sempre se perfilam os devaneios... "
das razoes que me levam a n ão tornar minha essa pa 1 a vm * é compreen—
_

A que se prendem esses limites? A _ .


һl se
palavra “limite” é realmente a dida , com grande frequência, como uma variaçao daritgãiªãgáigªiâir
_

que convém aqui, pois o limite que obceca Leiris é da ' '
diferenciaria apenas pelo fato de o personagem p
'
, ªo
a única marca irrecusável da finitude. Com o morte: para ele, “ ” ”
menos idealmente, com o autor. Mas o prefixo auto , o ãempoma: to se
&
a linguagem, acessível ao
duplo e ao triplo sentidos, à infinidade de médo
assenhorear-se dela: “glossário, nele estreito
sentidos, ele pode brincar, pode assim me posso expressar e que nao se deve ͺnqunvirdíoquando

minhas glosas“; “linguagem ' dots éa


re exo — faz osc11arem os o utros componen es. ,
arfagem”, e não naufrágio: sempre poderemos ngslsa que está em questão, se afigura, salvo
_

! um
ao inconsciente (desculpe, Canettil), navegar na galera! Quanto megalomaniª, afâtâgââomªis
com a linha de separação que ele coeficiente de «escassez de realidade”, mais forte] e iºuitrruos.
instaura, Leiris julga possível, esse velho
surrealista, senão domina-lo, ao perturbador dº q ue quando se trata da e xistenCia os . . forçados ª
menos delimita—lo. A idade do homem e' uma ' ' _
por isso mesm o lhes garantimos uma identidade , nao temos
tentativa de objetivação do ' ' ' _

inconsciente encerrado em suas identifica—los


produções. Do tempo, através do recurso demasiada dificuldade em estabelecer a v1da_dos outros. Qªntoeãtagdeix; rafia
_

ao mito e à fantasia mas à fantasia constituída


sendo também marcada pelo sinal “auto”, e isso o tempo t. '(l),

apreendida em estado nascente Leiris não é como cenário, e não


senhor. Conhecemos seu pesar, a obsessão escravo. Mas a morte é seu de ser um simples meio de dizer o objeto, ela emfsr e oi 38111716; Ereditando no curso
que o atormenta: “Não posso, da enunciaçao. '
' ' eu me escr evo. Onde esta' o re eren c
propriamente falando, dizer que
lenta ou não, só assisto a uma morro, já que, morrendo d dedicar-se' ' . '
a sua afirmaçao excluswa, a manifestaçao de sua diferença,
-
. _ .

parte do evento. E uma grande parte do idam


_ .

sucede que a pessoa se deSigna como nao-peísoa unEiãàªplãsquteto —


pavor que experimento ante a idéia da morte talvez
se prenda a isto: o ' '
diria Queneau, ou um outts, diriam Ulyssese acan...
' d;
desvario de ficar suspenso em
pleno meio de uma crise cujo desenlace ' '
Vida na medida em que rec onhecemos um para nos,
, "ªnºrmal—se num
desaparecimento me impedirá para todo o meu .
sempre de conhecer.”18 Recorde— traçado de escrita, com seu mOVimento ,
proprio, suas surprissaâhªsuas
_ ,

mos La mort d 'Oli vier Bécaille ou Feu Mathias


Pascal, de Pirandello. Poderá quebras ou seu repisar. O risco esta ai, e nao, comoêe/iíirshgde de
aquele que quer desfrutar do espetáculo de
desfrutar da vida, a começar pela sua própria morte continuar a
sua, a não ser como espectador?
acreditar,
'idealizar
' ' '
na aSSimdaçao ' da literatura a tauromaqma
.
que , ªo
a tourada, ele ta mbem pode idealizar a eo nflssâo) . Com quem
' , .

Não poder dizer “eu morro". Em " -


sua língua, efetivamente essas fala, afinal, o autobiografo, seéamaodopoetaqueog
_ .
um , e nªo ª pena
palavras não podem ser ditas. Assim, infiltram—se
do homem, ocupam metodicamente todo ao longo de toda A idade do escrivao? ' ' '
Com o leitor desconhecrdo, com o am1go sonhado (lembro-
_ .

que Masud Khan dedicou, atra vé s dos três


' ' casos
o terreno. Duas coisas me ím— do artigo
_

pressionaram na releitura. Embora me a 111

raramente, pelo menos naquela época ilustrªtivos de Montaigne, Rousseau e Freud, ao papel da aluna .
de nª
(1939), a confissão de um imaginário íntimo, de
e de uma gramática imóvel tivesse sido um dicionário particular experiência de si).20
levada tão longe, o autor não
estava presente, quer dizer, o autor no
narrado, descrito, dissecado, e não o sujeito presente; a “auto” ali é o objeto De que sucessão de lutos é hoje portadora a autobiografia? Creio-os mais
falante, escrevendo, divagan- à flor da pele do que no romance, seu irmao mais velho.
202 AFASTAR-SE no VISIVEL 203
ÚLTIMAS, PRIMEIRAS PALAVRAS

Já se foi o tempo em t “:e não havia nenhuma dúvida


.
destinatário:
quanto ao dicotomia. A Fenomenologia de Hegel, similarmente, é a história do
Agostinho depôs diante de Deus, de um deus sempre presen- calvário que o espírito atravessa, penosamente, através de toda uma
te, o que bastava para garantir a veracidade de seu relato; se ele se dirigiu
a seres humanos, foi obliquamente, a fim de edifica-los ou converte—los
galeria de imagens, para enfim se reencontrar no resultado, ao término do
Nao eram eles seus interlocutores. Em Rousseau, trajeto, como o mesmo. A experiência do estrangeiro, no final das contas,
que retomou de santd é condição da plenitude ou da sabedoria, compreendida, não como uma
Agostinho ? titulo Confissões, Deus continuou a ser invocado: “Que soe
adequação a alguma Natureza, mas como travessia da loucura. É que em
quando qmser a trombeta do juízo final; irei, com este livro na mão
transformação, em formação, subsiste a palavra forma.
apresentar—me diante do juiz supremo.” Mas, como notou Starobinski, Ler o Wilhelm Meister de Goethe, e depois ver a transposição
Rousseau só requereu o olhar divino preliminarmente, de uma vez po;
cinematográfica que dele forneceram Peter Handke e Wim Wenders, é
todas: no corpo e no curso do relato, não há mais nenhum traço de aquilatar a que ponto a idéia de Bildung já não pertence a nosso mundo:
mvocaçan ou apóstrofe a Deus. A testemunha passou a ser o outro ser a aprendizagem cedeu lugar, não tanto ao nomadismo, mas à errância, a
humano, cujas suspeitas se tratava de desarmar, a quem era preciso provar plenitude conquistada, ao vazio definitivo, e a cidade, seu teatro e sua
a própria inocência, oferecer o cristal de sua'alma. A garantia da verdade
nao era mais o olhar divino, porém a evidência interna, fundamentada no arquitetura, ao arrabalde universal da alma, ao não-lugar.
Assim, privados que estamos de qualquer garantia de verdade,
sensível. Perdemos uma e outra dessas testemunhas supostamente infalí—
veis, tanto o deus transcendental quanto a imanência do “coração”. Já não incapazes de diferenciar o fictício do real, nossa história de nossos sonhos,
sabemos com quem estamos falando, e menos ainda em e ignorando tanto a origem daquela quanto o umbigo destes, sabendo que
que solo estável o tempo subjetivo e descontínuo, deslocado e até reversível (portanto,
pode realmente apoiar—se nossa fala. Depois do pater incertas mater
adeus também à duração, seja ela longa ou curta), privados, pelas redes
nicemssima! E, luto ainda mais pesado de carregar, tomamos por fantasia
diferentemente de Agostinho, Rousseau e do próprio Freud, a questão : que hoje encerram o espaço de qualquer topos, dos “gênios locais” que
das origens. Ora, como designar uma cadeia sem pareciam garantir—nos uma permanência, não podendo dizer “estas pala-
apesarde'inelutável —

lhe atribuir um começo? A toda gênese faz—se necessário um primeiro dia vras, ”minha vida', sem conter as lágrimas”, nem dizer “eu mesmo” sem
uma série de primeiras vezes.
' , rir às gargalhadas do espelho, que resta ao infeliz autobiógrafo? Talvez
Essas perdas não deixam de ter efeito na narração. Não tendo apenas isto: traços que lhe retornam da folha em branco, traços que ele
. não sabe muito bem se deve inscrever no presente, ou se já estão inscritos
ninguém a convencer, nenhum deus a quem rezar, nenhuma evidência a nele, e que não espera que lhe restituam um Eu ou lhe dêem a vida; apenas
impor, qualquer narrativa autobiográfica tem todas as probabilidades de oferece a si mesmo a ilusão de não ter perdido inteiramente nem um nem
se afigurar uma ficção mais pobre do que o romance, que ao menos tem a outra, pelo menos durante o tempo da grafia. Porque a transferência da
o meritode pôr em cena, com a variedade de seus personagens uma— escrita, assim como a transferência analítica, não é simples reporte nem
multiplimdade de egos imaginários, ao passo que aqui existe apenas um reportagem. Ela cria um outro tempo e um outro espaço, que provocam
e sempre muito apaixonado por sua insubstituível singularidade. Duran to; novos objetos.
muito tempo, a narrativa autobiográfica pôde encontrar seu modelo na
ideia poderosa da Bildung: através de uma série de provas, de experiências “Em vez de me deixar entrar em desespero”, escreveu Van Gogh a seu
do estrangeiro em si fenomenologia do espírito ou anos de aprendizagem

irmão Téo, *tomei o partido da melancolia ativa, porquanto tinha o poder
—, o eu acabava por conquistar sua própria identidade, afirmava-se
como da atividade, ou, em outras palavras, preferi a melancolia que espera e
o produto dessa formação, que aqui convém entender em seu sentido aspira e procura àquela que, morna e estagnante, desespera.”22
amplo,'Simultaneamente ético e estético, de acesso a uma forma plena Melancolia ativa: intrigante aliança de contrários. Essa carta data
onde a invenção e a tradição, o exílio e a terra natal consigam, ao términci
de julho de 1880. Van Gogh conheceu então uma “fase de mudança”23 da
de uma longa viagem, constituir um só.21 Também da Bildung tivemos
qual pôde sair “como que renovado”: efetivamente, do evangelista nasce-
que fazer nosso luto, bem como o de uma psique que pudesse apreender-se ria o pintor. E essa carta é uma das raras e foi a primeira a ser escrita
— —

em sua totalidade. A Bildung, na verdade, conjugava uma referência


por Van Gogh numa língua estrangeira (em francês); mas todas as línguas
dupla: ao eu e à forma. Sich bilden: formar-se. A abertura para o estran- não eram, para ele, línguas estrangeiras?
geiro só fOl apregoada por Goethe por trazer em seu bojo a garantia de um
advento do si mesmo. O próprio e o estrangeiro formam um Algumas linhas acima, encontramos as seguintes palavras, subli-
par, não uma nhadas: “Éfreqíiente eu sentir saudades da pátria na pátria dos quadros."
204 AFASTAR—SE DO VlstVEL

ngãnlllãªoªrrãlrª irlitrigalnte, que podemos aproximar da que anunciou a


.
e anco 1a. Aqui, é na Sehnsucht freudi ana ue ensa—
mos. Sehnsucht.. nao
_
é a nostalgia .
ou a dor do retorno impoªsívgl' é a
'
ªsPirªÇ㺠por um lu ar ue nao figura em mªpª algum: o futuro, do
ªs“?
passado, ª perder de

Perder de vista
,

Nao, hºje nao, amanhã.” E, simultaneamente: “Não ontem não


me ] .”
precrso se escrever com isso. Ich sterbe, vou nascer.;Últimas rim elrªS
arma—ul

&&
palavrªs, a seremditas em duas línguas, mas con'ruma única mun».

mumiª? 5335321303 âíiiiãífdâª'àí ãfººªª? ºª"? ª ªªªºbiºª'ªªª


lutos, e como que tomada pela “melancolie mui OneStlmmªdª por seus
&
cªiaíitovfie 3111521136 :::tu'ªr
transmutação do objeto perdido em espaço
11!
'

pais de fundo” distante do país, um exílio voluntário. Uma dªtinizlãgnê Um homem que desde a juventude dedicara sua vida à interrogação
realmente o mínimo nesta situação, que corre o riso 0 de filosófica, um homem de linguagem e pensamento que, segundo confiava,
ser apenas when—mmm!“

tivera a tara oportunidade de fazer de sua paixão seu ofício, perdeu a mãe.
autobiográfica.
Por longos anos ela conhecera o sofrimento no corpo. Um parente desse
filósofo, tentando, na banalidade que se impõe nesses momentos, mitigar
-.
ii

ela já não está


jlx

a tristeza, disse—lhe: “Pense, você que a amava tanto, que


M sofrendo.” E ouviu como resposta, com uma espécie de ira surpreendente
naquele homem de grande doçura: “Mas, será que você não compreende
interna prossegui-
que não a verei mais!” O filósofo sabia que a conversa dali
ria, chegava até a pressentir que pensaria e escreveria, por diante, a
do vazio instaurado pelo desaparecimento. Mas a dor, unicamente
partir
não vendo, não mais seria
a dor, continuava ali: ele não a veria mais. E, a
visto por ela.
Acaso o mais insuportável na perda seria o perder de vista? Anun—
ciaria ele, no outro, a retirada absoluta do amor, e em nós, a inquietação
de uma fragilidade essencial: não ser capaz de amar o invisível? Primeiro,
ser—nos-ia preciso ver. Não apenas ver, mas ver primeiro, e poder sempre
acalmar a angústia suscitada em nós pela ausência, garantindo que o
objeto amado esteja inteiramente ao alcance de nosso olhar e que nos
reflita em nossa identidade. Porque é que sonhamos, a não ser, a cada
confir-
noite, para ver o desaparecido (mundos, lugares, pessoas, rostos),
tentar unir o efêmero ao eterno? As “assombra-
mar sua permanência e
rediviva: restituida
ções” noturnas nem sempre são torturadoras. Gradiva
à animação do visível. Há efetivamente qualquer coisa de morto nas noites
não vê mais do sua solidão infinita até o
sem sonhos do insone, que que
momento em que se filtra um pouco da luz da aurora, salvadora, ainda que
seja lívida.
dela.
A visão algo que podemos perder mesmo quando dispomos
e'

Perdemo-la quando ficamos fascinados, “estupefatos”, quando a morte, e


mais vida, está dentro dos olhos. E talvez a percamos também
não a
205
PERDER DE VISTA 207
206 (,
AFASTAR-SE no VISÍVEL
//
do vivo e a ordem da linguagem: acaso a biologia não nos faz agegitiêuã);
,/
quando cremos estar/apenas a seu serviço, isto é, quando observamos.
Observar, contudo, vé'recusar—se a ficar fascinado, a ser captado pelo olhar entrever os constituintes
' ' do Si'mbólico? O campo—sempre cres
do com o conheCido é ate com o .eXiswmc .
' ' . ,
mudo e pelas ordens proferidas pelo hipnotizador, é '
Visível acaba por 'ser identifica
recusar-se a estar “ Nunca encontrei uma alma n a ponta de meu bisturi.” , ironizava um
. ' .

adormecido, subjugado, assujeitado à onipotência da coisa e do


cego: em outras palavras, a uma imagem fixa que só extrai seu poder de
amor '
cirurgiao " satisfeito
' '
na épo ea do pOSitiVismo. E, na nossa, um cosmonauta
' . . .

não ter cruzado com o Ser S. upr e m o nos ceus. Erª


,
' relatou
supereqmpado
.

se propor como inteiramente presente. Já a observação nunca é suficien-


'
sowético. ' '
Outro, igualmente superequipado,
.
teria declarado , segundº
temente vigilante, precisa, minuciosa. Ela passa
por um crivo, discrimina, . _

não tolera a imprecisão. Mantém o objeto a distância, dizem'. “I saw God, she is black." Fºi. um norte-amentc'anq (NÉ: irmã-
exige que ele seja
inteiramente visível visível, mas não vidente, pois ela desconhece trong). Aquilo que
' ' '
nao vejo , afirma o olho que a ecniea . rn ta
' Aco ntece ques ó acre di tam os no

a ' ' .
eXiste.
reciprocidade, exclui qualquer troca. É o olho que observa. E, quando o pod CIOSO, nªº e Xiste. O que vejo,
. E a cada um seu
'110
olho não basta, e' o microscópio. ue vemos porque vemos aqu em que acre d'tamos i
(c]redo secreto (She is black, porque
.
até o credo e 0 m etc
A invenção do microscópio (composto: diferente da , divulgado ou!
lupa) deve
mais ou menos contemporânea da do telescópio (de reflexão: diferente ser
,,
lapsos...). ' .
da '
Skopein: observar, examinar, julgar (as vezes, espiar). Skopta diª?"
_

-
luneta). Uma visita ao Museu de História das Ciências, em
Florença, a E um cetico (a raiz
dois passos do UjYízzi, vale o desvio. Ali se vêem na a torre de observação. que vem ser a érª mgrsoibin
expostos, entre outros
instrumentos, microscópios e telescópios admiráveis, feitos de materiais '
ao a uele ue observa, passa pe lo crivo
tsiílílhescªlualqger vôo impulsivo e denunc1ando-os como ilusoes de otica ?.
nossos pensamen_ os, , . -
.

preciosos. Aparelhos de precisão e obras de arte, oferecidos tanto à


utilização quanto à contemplação, eles celebram as bodas do visivel
com
0 cético ou antivisonário. . . -
o inteligível, da ciência com a arte. Aliança entre a ótica E se a pulsão escópica, assim engrandeCida por sulas conqgiiãasâãag
esse o ideal consumado da Renascença. Numa outra sala acham-se
e a estética: foi
' '
de umª [> ulsao pareial, quer dizer, de um a pu sao pa .
'

tos mapas—mundi que também permitem ver a terra


expos—
inteira, inclusive as
pªssªsse
Ettª? no
'
olhar? E se ela defimsse ' '
mais o orgao ' ' cap tado p elo objeto que o
terrae incogm'tae, cujos contornos são circunscritos. Entre o globo terres- do que as funções? Estaríamos errados em supor que (lala:l esgotª:
é inteiramente estimii a a por
tre e o globo ocular existe uma afinidade que não se prende campo do visual. A visão do pintor não
.
apenas a sua Um d
forma, e que leva a crer que nossa retina é o espelho do mundo. Degas, ao ficar cego, apalpava os objetos. sentado :(gitigíin:
A metáfora do espelho é mais antiga
que a do olho-janela, aquela substitui outro que falha. Não, não é que um de nossos senti (ãe reten,
que seria exaltada por Leonardo da Vinci, o filho de Catarina: “Oh, compensatoriamente substituto de outro, e 81111 que caia :;nepsabogeia
()
excelência do olho acima de todas as outras coisas
que Deus criou! (...) der representar os outros quatro.' o olho ouve, toca, e e ..
_ .
da em: p ção Por
Que linguas poderão descrever plenamente como de fato funcionas? Ele º
Pintºr tem Pºder de restituir' a Visao o conjunto pfilósofos
' ISSO
_

.
.
é a janela do corpo humano, pela qual a,alma é que todos os debates que agi taram por tanto tempo os a respeito
contempla e desfruta das ' '
.
ou da anteriorida de deste ou daquele sen ndo _ uns se
' ' '
belezas do universo, e suporta essa prisão do reeminenCia
corpo que, sem ele, seria um .
iiiilclpinando
pelo tato ou pelo olfato (Condillac) _ hºj e
_

tormento.“- pela visão, outros


0 microscópio e o telescópio e, mais tarde, a fotografia, e depois
— nos parecem retóricos. . ,
ainda, os raios X, e em seguida, a endoscopia ao mesmo tempo exaltam — Para compreender não apenas o que é oAVisualiªmâs : qnqíseoª
o poder do olho, aumentando infinitamente o território do convocou, nao a cienCia ic ,
visível, e o percepção Merleau—Ponty
desvalorizam como aparelho: seu campo e sua acuidade são demasiada- '

pintores, com
9

uma
'
predileçao ' pelos
'
pintores que romperam com a s “leis”
que traduz o grego op tike' , ciência
mente limitados. Mas esses instrumentos, justamente em decorrência de ' da visão).
tiva nome latino , ' .
suas explorações ver melhor, ver mais e mais longe, fazer com dEaissãngãongcf toda obra, desde Le de

de a sua dente Cezdnne [AFUVIdÍ—
que se
de Cézanne] redigido em 1942, até o seu último texto, oeil etl espriix
veja o interior do corpo e o do nosso reduzem a visão ao escópico. L

O
ganho, para a ciência e para a medicina, é imenso. Já não funcionamos às [O olho e a mente] (1960), passando por
Le langage indirect et es vo
cegas, aquilo que tomávamos por eorpúsculos indivisíveis revela-se com-
posto de elementos discemíveis, o imóvel é agitado por movimentos
incessantes, e a fronteira entre a matéria e a vida se assim como se " ' la é ne ra.“ (NT,)
reduz hoje, graças à extensão da noção de “código”, apaga, :* .
Dílxgtszvsíeptikoí pensativo, e de skeptomaz, olhar em volta, examinar.
.
(NT.)
o corte entre a ordem
208 AFASTAR-SE DO VlSÍVEL

/
,,
PERDER DE VISTA 209

du silence [A linguage indireta e as vozes do


'

silêncio] Foi no são exata no conteúdo visual do sonho.” Exprime-se de acordo coªlizãº
estúdio dos pintores meditando sobre seu trabalho, sobre(1952).
o trabalho da poética de imagens no sonho. Enuncta—se de outra maneir'fa. nasse
mão, mais do que ntemplando suas obras acabadas,
que ele buscou a formações do inconsciente; lapsos, atosilfªlsriqãvsªrgaesfôgsnêmºs
(mºª
resposta para a pe uma o que e' ver? e, nessa pergunta, a via de ' ueci mais
acesso a isso é como
33335: gªlaas imagem (ªonhada
todas as demais,,fnclusive o que e' pensar? es o, se, ,
do que pelo relato, e mais mªltª-111313;
_

Freud, não/. No que concerne ao ver, na teoria, o modelo ótico é


foi inicialmente solicitado: foram que relato do que por sua trajetória e seus componenêes..:tm
esquemas e gráficos sem profundidade, reta,ão do
atraídos pela substância do que pelo acidente) que. a : Coªstituçi
sem espessura, que ele visualizou na superfície plana da
página;
prática, o sonho é que foi o interlocutor privilegiado (justamente e, na sonho, a saber, a transposição da. imagem em sinais, que cre'ul ª via
para Freud, ele era essencialmente um locutor que falava em todos porque, real, e não o sonho sonhado. Assrm, a figurabihdade na; p jialg a que o
sentidos). Quanto ao pensar, é o arrancamento do ver os visual tenha um vínculo eletivo, ou pelo menos consu stanclisãªscom º
que o inicia, um sistema inconsciente. Se o sonho preserva, para alguns ana um
arrancamento sempre a ser reefetuado, a tal ponto a atração utanios
pela imagem
nunca deixa de ser ativa. E nós, ao colocarmos a poltrona atrás do estatuto privilegiado (Ferenczi já o havra assmaladoz nao em º
divã, relato de um sonho éomo o restante do discurso), isso!: mas r
damos uma forma concreta a essa divisão entre olhar
o e o pensamento. '

proporcionar como que um desdobramento do smtoma, n gr


;p Ressªca
Instituímos o perder de vista como condição do
pensar. vez
alguns elos de uma cadeia de representaçoes que o smtoma, pª suasinto:
Mas não sigamos depressa demais. Foi tanto
'”
sf

nas obras de arte dissimula. Pode—se interpretar um sonho, mas nao se interpre um
visíveis quanto nos textos que Freud
encoptrou aquilo que desencadeou ma.
nele a exigência de pensar, como se ele tivesse - '
que se livrar do fascínio
. .
Segunda hipótese: a relação entre o. visual e o mqomcªrgªnzgne
"
m I

“&
iii
através da observação (o Moisés de S. Pietro in
Vincoli), do mistério contingente, mas essencial. A Via regressiva tomada-pedo so ressáo
através da investigação (a Sant 'Anna) e do encanto
através da interpreta- foi
W ção (a Gradiva). Mas, a principio,'ele se deixou arrebatar, juntamente, regressão para a imagem Visual (a_noçao e regra
imagem, um movimento ou um andar, numa captar por uma ão
inicialmente introduzida por Freud em sua acepçao topica) e a . çi ag; lo
captura que é a única passível
de provocar o despojamento de si e a falência de recalcado. A atração exercida pelo _recalcado, portanto, estátua [%]-endà
qualquer pensamento atração pelo visual. Ao final dessa Via, ficticiamente retraça arpmo1
garantido. E Freud, esse não-visual que um dia se emocionam
com itiva da
Charcot, por sua vez um grande “visual”, guardaria que encontramos? A identidade de percepçao, a alucmaçao p
de casa, em seu consultório, ao alcance do por toda a vida dentro experiência de satisfação. A imagem visual, e mesmlo quaraqªna re re-
olhar, as obras que o haviam 555
fascinado, encantado e inquietado. A Bíblia legada pelo sentação que se da a ver, tenderia, sem Jamais alcança- (a;, paºr nª; da
ilustrada. Em todas as páginas. O Livro pai era uma biblia coisa em sí, tal como esta pode ser representada, fixa a, .p cena
que ditava a Lei era um livro de cristalizada por toda a eternidade. Como o ícone, ela serrariª:lenos umª
figuras.
seria o
Em seus escritos científicos, não foram
os pintores que Freud
“ºrºªºª'ªºªº dºmª? dº ª"? Sãº; à'iíâífaíãaífããããâofa ; religião
lei a e ora ao e
convocou, mas o sonho. E nisso, no que concerne ao estatuto do
ficamos na ambiguidade. O sonho, visual, $$;ch ãZrÉcÍssasgmemórifs? François Gantheret, . interrogandot—ªsttâ:l 8521":
como se sabe, embora comporte o que poderia efetivamente fundamentar, alem da Simples cons enª es,“:
ocasionalmente outros ingredientes, e essencialmente
composto de ima- prevalência do visual em nossas representaçoes, acentuog Vivarª-reªlizado
gens visuais. Essa é a constatação, mas, como interpreta-la?
Há duas hipóteses possíveis, de igual valor. ponto: “A representação”, diz ele, “na medida em que e o esejo
Podemos afirmar que, “ªº “ºm ººmººº' ”º“ do ( ) É
ao se apresentar como visual, o sonho faz obedecer a
uma condição, a ' “fªrªº“ ºªºªºsããáâbªãâãí'âêªãí
resenta ão visua o erece essa
Íãfªêfãffguàim
condição de figurabilidade: já não tendo a seu dispor ?;oalfãâado, regresentação da . .
articulada nem a motricidade, só restam àquele nem a linguagem rea lização do desejo atemporalllpâenàeêiàu;
que dorme, para falar e do (vor-gestellt) dianzte de um sujeito que ah suspende seu o ,
para se mover, as imagens. Assim, ele passa a falar
mover na sucessão delas. Em suma, faz da necessidade por imagens e a se todo e ara sem re."
uma virtude. Prodemos ãesfazer-nos .
Virtude, sim, porque o cerceamento a que ele fica submetido de nosso desejo de analogia. entre o
sertãrio
como pode fazê—lo a submissão às regras na poesia, favorece, visível? E deveremos desfazer—nos dele? Entre as duas hipotleseiâtêcun-
a condensação e o zadas pela Traumdeutung - a da representablltdade como conrilãçãurªme
deslocamento. “O desejo sexual”, escreveria Freud,
“encontra sua expres— daria, específica apenas de um aparelho psíquico que so O
2 10
AFASTAR-SE no VlSlVEL
PERDER DE VISTA 211

sono, e a de uma osmose entre o inconsciente e o visual não tenciono


escolher, por enquanto. Melhor é mantê—las em tensão. -, verdade muito mais intensa e paradoxÁil, porque toctaánlprpêrgaldââ: de toda
'
'
Visao ue é o fato de que a p erda
inerentg,
e Vista ja es nela , é
a seu destino. A observação nos ensxna que podeniilpjéªiàe algave-
_
Do Diário de Paul Klee extraio as seguintes linhas:
_

“Começo, logicamen— ' é


te, a partir do caos, isso é o que há de mais natural. mos aprender a ver. A pin tura e o sonho .enSinam-nos .o . ,

fazê-lo porque me foi permitido, inicialmente, Permaneço calmo ao ' horizo nte da cºisa, seu p ano de
ser eu mesmo um caos. prCCISO desapre nder a ver para que o
fundo, se de' a ver em seu imedia tismo , para que o mv isível apareça através
' ' ' '
Essa e' a mão materna. Diante da superfície branca,
era frequente eu ficar
do Visível. Tornar Visível, diz Klee: logo, havíamos per. d'd i o isso que
' '
trêmulo e tímido. Mesmo assim, eu me sacudia e W.;»ww—nu—l—

'
me obrigava à estreiteza tivéssemos tido ,
das representações lineares.”3 Caos, ' '
ter diante de'nós. Pode até ser que nunca o
porém na calma, quando a mão pensªvamºs ' ' ' ' .
Visão do e a
_

materna o contém, medo e im'bição diante da superfície em branco nunca o tivessemos Visto,. nunca Visto nascer. A pintor . -
da tela, . -
da página... ou da sessão, estreiteza das transferência na análise dariam lugar a isso. A Visao como perqaoiªe- “Sªo:
, _

representações lineares. Essa é


uma confissão que pode surpreender, vindo de um artista
cuja inventivi— não é isso também o que ilustram os mitos gregªs - nossossiír;el ou, o do
dade se manifesta com máximo brilhantismo no | . -
se n o do
.

'
cego Vidente, vendo q, qu e a Vista oculta na ev1 encra ,
desenho, no grafismo. Só
que, justamente, como mostrou Michaux num texto esplêndido, a
linha,
'
eiclo dotado nao de um ' olho amenos , masdeumo 1h oam ais?. O .
ciclope
deus do
para os seres humanos, o que tem apenas dºis olhos, o
.
em Klee, é uma aventura, e não um traço que delimita. tamlbíãm,
Ouçamos'Michaux: é
"A linha s'onha. Até então, nunca haviam
.t'wvngvimf-

deixado a linha sonhar (...). A '


raio (que mata)—
linha aguarda. A linha espera. A linha
repensa um rosto'(...). A linha se
eleva. A linha vai ver (...). A linha germina. A linha , a'a
Uma coisa que pode parecer muito estranha, e ate chocante, éhqiêgâdjª
.
renuncia. A linha
repousa. A linha se fecha. Meditação. Dela continuam a partir fios longa— ' ' '
extste, sempre mov
uma hzstoria da pintura. Pots_ bem , ela
' '
,
mente.”4 Aí está o que poderia definir
uma arte da escuta, de uma escuta história das tecmcasí, . ..
e pa;/[ Ciencias
_

ue
apaixonada e atual. Uma [faíââãgda
que, à sua maneira, disse a si mesma os meios de ver e de conduzir
o amor pela psicanálise essa aventura de linhas. para '
se 'impoe. Da filosofia, da literatura , e conceb ve . as em se . _
' ' '
apenas como um d o 5 modelos d a Visao , uma
' '
que aqu i evoco
— —
plntura' —
'
Mas, quanto a essas linhas, tal como não lhes podemos ' ' l queri dela de progresso ,
_ _

historia, mesmo que saiba precav er—se contra qua


prescrever
'
,

é nossa con Vicçao de fazer como idirem


.
uma destinação, não podemos atribuir—lhes uma ' . *
proveniência (a vida pªrece negar seu objeto , tao' forte ' ' cada um tenha sua
psíquica não é uma rede ferroviária). Tudo o que sabemos é o desvelamento do ser e o ViSibi'l'izado. Admitimos que
'
que elas não
se sustentam por si, que não se bastam, que trazem o inacabado
traçado. Todo o esforço do pintor (de Klee, no em seu
' '
ro ria Visao, '' '
atribmda
[depªnde do “ponto de vista”, e sabemos. ,
' a ele r seu lugar, sabemos que to da cºisa vista
po .
.

- e,
0 13301130
caso) visa a que a É: nigga 313%
representação linear ou a representação verbal não seja


pura perda, a
'
desvmculavel ' '
da representaçao, masestáinc ut one a, o
attle qàie
,
que algo do “caos na calma” esteja presente nela, a algo que contradiz nossa exp eriênc1a imediata, a da. reve aça , ª q “elª que
.
' _ .
l _o
que a mão do pintor
faz com que possamos, sem nenh um esforço, sentir—nos e ontem p erªmos
A

permaneça como uma metáfora da “mão materna”, ela


dúvida, metáfora... de quê? Não sabemos. Do mesma, sem ' " uer eles o tenham Sido por um artista da
desses “'instantes eternizados
_

que não podemos “repre— , q


sentar” para nós, destinados que estamos ao dinastia Song, por Georges de La Tour ou por Morandi. P ara a balar essa
.
' '
“anterior” a qualquer representação, a tempo, a não ser como ' saber-.
certeza 1nduz1da pela cºisa v ista , o_ ver tem que dar ugar ao
' ' 1
qualquer figuração, a qualquer
linha: um movimento para. Não: movimentos ' ' ' '
faculdade em relaçao ao passado e com ma is dificulda-
descontrolados, antagôni— discernimos, com
cos, dos quais, por vezes, a desordem de nossos pensamentos *
v e num Sistema
_

ao presente, que toda representação se inscre


_

"
nos fornece de em relaçao
uma amostra, em suma, suportável. de representações. ' É verdade q ue
_

eXistem revoluçoes
. .
_
_
.
pic«táticas (por
- da
menos que isso seja proc lamado , mesmo aSSim eXiste), r evo uçoes
' ' 1
“A arte não reproduz o visível. Ela torna
visível.” O axioma que ' ' ão , testemunham e as vezes . ªmem p ªm -
_ .
abre a Confession cre'atri'ce [Confissão Visao que, como "toda revoluç

criadora] de Klee é famoso. É


também inesgotável. Ele não diz apenas o uma transformaçao no
'
regime ,do pensar., O pensar rege a VIS ão , e não o

que facilmente produziria um . ' ferida do
_

't
_

acordo que o pintor, e nesse sentido todos somos



inverso. Isso é um fato da historia, mas e tambem uma
sªlgªr?)
.
pintores, não se propõe visões - e
a reprodução do que já lhe é oferecido. Tampouco diz É uma lição toda de análise: nossas mais comprovadas Ipe ,
que a representação história perdem o eqUilíbrio no Antigo eg ime
nos leva a ver mais (como algumas fotografias, nossas certezas, nossa —

por exemplo, que permi- 5.0


tem identificar detalhes insuspeitados) A invenção da perspectiva foi também exemplar nesse aspectpf.icou
ou a ver outra coisa. Ele diz uma
é , para meu objetivo, por uma dupla razão. Primeiro, porque Sign .
212
AFASTAR-812150 vrstvizt."
PERDER DE vxsrx 2"
ara seu ª '
preocupãçcãtànâímspçrâªpgs um desvro e até uma reviravolta da mime'sis. A tratamento analítico. Ela implica toda uma concepção do inconsciente e
“'

natureza, no Quattrocento, foi mais imperiosa-


meme afir-mada do ue n de seus processos, orienta nossa clínica e nossa técnica. É que o espaço
a
inverso; arte deixei de tunca, porém adequação funcionou no sentido
ª do sonho e o espaço da sessão não deixam de estar relacionados.
a imitação, o que reduziria sua
importância a ponto de c:;fpogfmalidade Tomemos esta frase da Traumdeutung, que atesta toda a dificuldade '
nuam—.»wwuau-dh

un 1_-la mais ou menos com imagens


dárias, cºm o rene“ . .
a condenação da pintura
secun- de uma resposta unívoca. Cito-a: “O conteúdo manifesto e o conteúdo
Pascal; ali estªva & bíaiàlgãnficªnª por Platão ou latente aparecem-nos como duas representações do mesmo conteúdo em
foâeZesreo'seZcfifsnílír nª Arte, que construía sua duas línguas diferentes, e o conteúdo do sonho nos aparece como uma
forrãa verdadeira: ao se uma pro'e ão calc
to ndi
Ennio seªtíiçetlmâaãâperfície bidimenswnal, o artistª gonquistgltªgªdií
. . _
_
transferência dos pensamentos do sonho para um outro modo de expressão
inteiramente racional, isto é, infinito (Ausdrucksweise), cujos sinais e leis de composição (Fílgungsgesetze)
contínuo e homog ene 0” . Selgpaço
m outras palavras, deixou de haver devemos aprender pela comparação entre o original e a tradução.”7
um vazio,,
ou mesmo intervalos, ou ual
quer ruptura. '
' havra O partido tomado por Freud e claro. Por isso mesmo, esse enunciado
ponto de fuga em localizágel, apenas planos. Até o anuncia a
serve de preâmbulofaao capítulo sobre o trabalho do sonho e
aconteceu ao final de algum tempo? A famosa proposição que tem valor fundante e imperativo, que rege a
cialis Crªque impunha sua lei (era qualificada de “
perspectiva artíf— interpretação: “O sonho e' um rébus, e nossos predecessores cometeram o
derivãrq legítima”), tendeu a deve
p ar a o que bem poderíamos chamar de n ma perversão, especial— erro de querer interpreta—lo como desenho.” Num rébus, a imagem
mente se pensarmos na clínica do fetichismo ser tomada, deve ser lida como um sinal: uma palavra, uma sílaba, uma
o trompe-l'oeil,” olho sinal de
enganado, olho enganador. O “espírito mali no”d e Descartes letra ou um pontuação.
se apoderou
da Visão, misturando a tal
ponto o verdadãiro e o falso que a ilusão de Entre duas opções teoricamente possíveis o modelo da tradução

modelo
(“duas línguas diferentes”, o texto original e o texto traduzido) e o
da expressão (Ausdruck), Freud não hesita: o primeiro se impõe. Ao ler
ver 6 am
” aa
,
6
f
trmar que nao há na dª pªrª
-—

essa frase, fora de seu contexto, detive-me em


“leis de composição” e
31,1 ,p .
negara diferença
_

sexual, tenta instituir uma e q uiv ['enem entre


ª
_

a sencra e a presença, o falso e o verdadeiro. Com fiquei tentado a puxar a coisa para a composição pictórica (ou musical),
pseudos oc o trompe-l'oeil, 0 desmentido sequência da exposição freudiana. Na

o que certamente
é pela
semblanligª 50352: tenção a custa da mime'sis. Passamos da semelhança
ªº , sem ante a que Laca n re d uzma ' '
pro ressiva
verdade, as Fú'gungsgesetze são leis de ensambladura, de montagem
são
de
sua come pç ã o do imaginario, de marcenaria); aqui, para
peças fabricadas (Fâgung é um termo
. . , . .
mmto embora sua teorizaçãogdo estágiãxtlltã
Freud, as leis de uma junção de sinais, e Strachey, que as traduz por
não
syntactic laws [leis sintáticas], sendo nisso lacaniano sem o saber,
está equivocado. De onde veio, portanto, meu erro apressado de leitura?
Ao evocar há Terá vindo de eu fazer questão de manter uma ambiguidade onde Freud
hipoteses que a Traumdeutu não a revelou, inteiramente tomado que estava por seu desejo de tornar o
terei formulado bem o problema? Não sonho, com exceção de seu umbigo, interpretável? Para ele, a imagem
te É
oferece um sentido, mas esse sentido oferecido oculta o sinal. engana—
que lhe seria não leva à derrota
- deslocamento,especifica
, ao tom dor, trapaceiro. Acaso a denúncia do culto da imagem
por certo que as outras
daria _ funcionariam em

condensação, elaboração secuiif de qualquer imagem visual?
ros da mesma maneira e obedecendo
às mesmas leis? “O trab a lll“o do lugares, Essa ambiguidade intrínseca é algo que reencontro nos processos
sonholimita-sea transformar.” Seja . Mas
qual é a natureza de
transformaçao que o sonho faz ºs pe , descritos. A Entstellung: convirá considera-la como uma transposição,
sofrerem? A tespostassª
. qàie se
da essa pergunta não se limita ao sonh uma translação (translation, em inglês, equivale a tradução), uma passa—
a_
ou como uma
como tal , e menos am a a maneira como convém utilizar
o sonho nb) gem de um registro para outro, de um código para outro, de
modificação do volume, do conteúdo? Ver nessa mudança lugar uma
traduzir Entstellung em francês) não
deformação (termo proposto para
,, T écmca
.
de pintura
. . . resolve o problema. Podemos dizer de um texto que sua transcrição o
que, a distancia, da uma ilusão de realidade
uma espécie de “tapação do olhar”. (N.T.) e em pªrticular. de Elevº -
deforma, e posso dizer a meu interlocutor que ele esta' deformando meu
El Greco ou
pensamento, mas não no mesmo sentido em que digo que
214 AFASTAR—SE DO ZIS
vrstvizr. PERDER DE VISTA

Picasso deformam os rostos e menos ainda representado pela


, no d e que os rs ctiv' ção atribuída ao visível, mas ao poder de encarnação considerou
ou Franc“
mudançalfieleiâon
deformam o espaço. Portanto, será Eriptestegãmg $$ pintura ou, vez por outra, pelo sonho. Merleau-Ponty que a
corn alteraçoes, colagens e cortes modelo, deve ser buscada na percepção onirica,
imPutados à cagª; a, que incidem sobre fra m entos e que podem ser percepção desperta, seu
' real do longínquo: a tele-visão (essa bela
do texto orrgmal? Ou será umagmudança díugs aztgnzªm ª capaz de assegurar a presença
. . - . .
de imagens em série, que
giªnititurçao rªra? ripªs;— palavra confiscada por nossos distribuidores
publicaãlgª esgeveu Jean-François Lyotard num livro de tanto contribuiram para desacreditar qualquer imagem).
71, que antecrpou todos os nossos debates atuais sªbre & do estúdio do sonho, entre o espaço do
Entre o estúdio pintor e o
ngráVel e :)nre
presentável, passagem de um espaço de leitura
e tua e Visual, excluída do sistema lingiiístico”?ª A para
“tensãoregnds uma sonho e o espaço da pintura, de formas igualmente múltiplas, vejo uma
se fazem
ção se
deforma homologia, uma homologia tão profunda que as tentativas que
a violência da passagem . E essa violência é sonhos (cf. os surrealistas) fracassam: o
de nat lpreza tãrirtaérnessedtfso, de pintar diretamente nossos
eu e que as palavras podem exer Cºl? Sºbre ºuª'ªS tomado objeto do pintor. Como vimos, é o estúdio
,
palavras, ao força—las . sonho não pode ser por
a se inserir numa língua diferente
do sonho, o lugar de transformação que deteve o interesse Lyotard, que
de
P ' .
extraordinariamente evanes-
todas 821353151? <rªgàialmente interrogar—nos, como faz Lyotard, sobre produz e sofre um ªfeito, e não as imagens fadadas
em Jogo no trabalho dº sonhº. Por exemplo centes que dele resultam, imagens fadadas ao desaparecimento,
Poderíamos ver nª e çodesensaçao consistentes, salvo talvez aos
uma mudança de estadº, resultante de a se perder de vista, e nem mais nem menos
uma ação quase físicfâ de uma “fºrçª que olhos do sonhador, do que as oriundas outros pontos
de — da memória, do
tritura e mistura sua umÉâímpíeçssao, esmaga o texto Restos vários cujo trajeto, uma vez
dºs , ou ver no deslocamento o reforço dia, de uma impressão corporal.
umª ou ::
Myllª atenuação de al ? “,mªs
llbarkeit [consiãera çªo ª rep
ªº te“º: .A Própriª Rªºkºícht auf Darsze-t metamorfoseados em sinais, a análise às vezes consegue perceber.
Ilesemªblhdªde] pode dª' margem a duas As coisas se apresentam de maneira totalmente diversa no
tocante
till!“ interpretªções difer ou ªte ºpostas. Uma interpretação dº tipº hiStó- há no sonho, bem como no quadro,
ria em Quadrinhos—6:22 à lembrança encobridora. Sempre
encobri-
destinada ª ilustra—los , Pºagemhsubsmur
a palavra, o texto; inicialmente inclusive o mais figurativo, algo de indescritível. Já a lembrança
º º ºgar a ponto de encobri-los; essa é, diga- dora pode ser evocada com grande precisão, sem os
“dir-se-ia que...”, os
mos sem desrespeito ' ª [fªse “ªmºlªdª evocação do
imPondo uma reli i'
por Moisés e o monoteísmo “era mais ou menos como...” que geralmente acompanham a

conta dados que não? 5


ªim
º
lmªlgçns' º
Outra interpretação; Sºnho leva em,
sonho. O texto de Freud atesta, inclusive em seu estilo, essa diferença:
demonstrativo, esclarecedor,
um
tão
ºxpllºltªntente presentes no discurso; não estão artigo de ri queza sem precedentes, exato,
presentes na medida em_que do pensar.“ O
semiótico mas ainda ºs.“ .ummº Sºjª fºdªlídº ao sentido ao esclarecedor que faz o leitor se aperceber das incertezas
estao incluidos e como que imersos nele e de destacar uma produção
são () ritmo ª voz o asírm, objetivo, no entanto, é inequívoco: trata-se
0, elementos Váriºs que, Prºpríamente falando oferece traços muito particulares
não são da,0rdem, dãsu' muito específica, uma lembrança que
Visual: mas do figuravel (acaso não falamos de Afasta—se de imediato o que possa
“figuras" de estilo?) em relação a nossas outras lembranças.
dao carne ª linguagem. Durante mªltº persistência da referida lembrança: ela estaria
Perguntei a mim násggue tempo tomar "compreensível“ a
em seus ultimos trabalhos filosóficos, de um irmão ou irmã,
Merleau-Pomy deu mmanãºfãluº, ligada a acontecimentos importantes (nascimento
? “jªque.“ par Visível] inViSíVºl e, Pªrªlelª— intenso afeto ligado a ela (medo, vergonha,
mente, promoveu de rn anerra tao rnsrstente quanto obscura, a por exemplo), ou haveria um explicação que,
noção de dor), etc. Tampouco se conserva como convincente uma
carne (carne e não co 6. tambem porque passou a exaltar a pintura satisfatória a mente, a saber, que a lembrança
mo demª aque CézananO), no entanto, poderia ser para
º 558111", ª ponto de reconhecer nela uma “mutação é um fragmento a partir do qual a reconstituição do
nas relaçoes entre o ho guardada apenas
Não, a intenção
ser universa 1... Emmy/6323230513] 1:32 representação
sem conceito do conjunto poderia ser efetuada, à maneira da arqueologia. e
que significativo
%
' , , essa ciencia secreta ue de Freud é manter o enigma: do passado infantil, aquilo
intor t (1361112133)?
ge toda): citªdª: 81832223 lãs—se fundªmentº de tºdª pintura º, (bedemsam) é reprimido; o indiferente (gleichgt'ilrig) e' conservado, e o e'
&. Essa
filosofia que está por fazer é a que anima com uma profusão surpreendente de detalhes.
Num sonho perturbador,
o pintor no momento e "1 que sua Na lembrança
“8.00 Sªlfaz gesto, quando ele pensa em pode haver detalhes insólitos que aumentam a perturbação.
pintura.”'º Creio ue ª ínfimos ocupam toda a
prêdorâíâçspgsm mlflhª llldagação prende-se a isto: não encobridora, existem tão-somente detalhes que
a um suposto 'º
visual” , nem tam pouco a um pnvrlegro
º flºgªº mal designamos como “registro cena, uma cena gleichgú'ltíg, nem quente nem fria. Esse é o enigma. O
exorbitante, a uma supervaloriza- todos os outros
fato de estarmos hoje familiarizados com ele, como com
216

"g m q

l ,
,

Todavia , p a rece - me que o "


Arxsrusa

' ' Freud,


proprio
c
*_*—_“
DO VISÍVEL

nesse texto , perde um


.
9
Pupi-:x DE VISTA

Freud não despreza nenhum desses traços em sua explicação; ao


contrário, eles vêm reforça-la. Por exemplo: “Todas as vezes que, numa
lembrança, a própria pessoa entra em cena dessa maneira, como um objeto
entre outros, podemos ver nisso a prova de que a impressão original sofreu
uma modificação.” Mas, logo em seguida, ele acrescenta:
“É como se um
"7

, istº é '
, uma soluçao que V enha mais .

em vez de contradizê ] a ou complica—la D ou menos confirmar ª teoria :


'
traço mnêmico da infância fosse retraduzido (rúckúbersetzt) numa forma

. e f ato, ele acaba or ' plástica e visual.”


uma forma ão “ análoga à A posição é firme: do infantil restam traços, e não imagens nem
formação de umª) reªlizei!
.

no pamleloªranil: cÍ'o;_nprorr,z,i.s'so, ne
da imagem mês“ima
e orças , o mecanismo do
e deslocamentoº “No! lembranças, e esses traços são secundariamente representados sob forma
, originariamente justificada sobrevém outra imalglâl plástica e visual. A consideração à reptesentabilidade só funciona no
,
g sonho. Os traços se inscrevem, a lembrança da forma. Ela representa,
não ter
numa sequência ordénada de imagens, traços pontuais que podem
em si nenhum conteúdo representativo e que, tendo sido gravados em
-nos a isso, de nos contentarmos 'us
te com o ue de -
circunstâncias e épocas muito diferentes, são passíveis de se combinar
toda lembgançífgulitísriznªdo
lnlClO como uma
resposta inzldeãllalâª'
entre si, por condensação e deslocamento, segundo leis e segundo uma
lil

(logo, toda lembrança seria


encobridora)- a cenª te toutra uma lembran a
ensamente'rememorada, insignificante indifã— lógica desdenhosas do tempo, da verossimilhança e da vivência.
rente, encºbáriª omrp e é
esqueCida, srgmiicativa e carregada de
afeto Ou Todavia, na frase que acabo de citar, Freud não diz que o traço
HI
então, em benefício dé certa tranquilização, aderiremos apressada- traduzido (numa imagem visual), mas retraduzido, traduzido de novo,
mente à hipótese que nounia
como se já fosse produto de uma tradução, isto é, não apenas um peda-
safª—

s e proposta no final do artigo e


!

rw
gemis, é extrem amente convmcente: que em t ermºs
_
. a de que não temos lenibran cinho da impressão, algo como a impressão leve deixada por uma pegada
não conhece
na areia, mas já uma perda, já o impresso. Ora, o impresso
outra matéria a não ser os sinais. É desprovido de qualquer referência ao
sensível. Reencontramos nossa pergunta: será a tradução uma mudança
de
de língua, de código, de registro? Ou será uma mudança de estado,
Será ue '
à fºrmaçãoqdª iliâgãfaãsfumam nessa concepção alguns traços essenciais
regime, mutação violenta, metamorfose, exilio num outro lugar? Inclino-
a começar pelo dele próprio me pela segunda hipótese.
Freud nos conãdencia??'encwndorª, que
ao retomarei a análise da referida
lembrança tal Na própria análise da lembrança que nos é relatada por Freud, em
comº feita pºr Freud ret
seu conteúdo, não faltam indicações de lugares e de rupturas com
os
Granoff. 12 Indico gªs Oíllada por Didier Anzieu e seguida por Wladimir
ª ªedes guns traços. estruturais que concemem à lugares: Freiberg, a partida forçada, o retorno aos dezessete anos à terra
psíquica dº visual função
natal e, três anos depois, a visita a Manchester. Lugares sempre evocados
&;

e traços salientados por Freud em sua descri ãO'


1. A insistência d es!
têm suas
os e ementos Visuais —
gm”, meiº em decliv verde densamente “vejo uma pradariamuitas
refan' com seus pontos sensiveis. Também eles, como todo corpo,
belas florestas... Evidentemente, entre
flores amarelas” etc . e, e plantada; no verde há zonas erógenas: os goiveiros,,as
De
de Freud na medida em ,
inSistenCia essa que chama ainda mais
que, em suas outras “imagens mnêmicas”
a aten '
r$;
'
um lugar e outro se estabelecem
nos separam
conexões,
os sinais?
marcadas pela separação.
.

que lugar, portanto,


,
Para mim, o visual não é uma simples função de apoio a uma
amarela assu me, como em certos quadros, um da visão traços
representação secundária que venha colocar ao alcance

destaque singular Ora


invisíveis, invisíveis na exata medida em que são suscitados pela perda
2. A coe ' “ ' '
Xistencia, no quadro, do in—significante (a forma , o si g nit"]- de vista. Claro, a colocação em forma “plástica, visual“ pode ser qualifi-
cado) e dº su
3 . A dupclcr-Sigmf'icante
(o excessivamente distinto) cada de secundária, mas no sentido de que a elaboração secundária está,
p a presença do sujeito na cena evocada: ele do sonho. Mas a
f ' a observa de ao mesmo tempo, no fim e no começo da formação
! , 1
n superenfatização dos elementos visuais, que atesta ela senão aquilo que o
ç ,
mnêmico deixou que se perdesse? O retorno do recalcado se efetua
traço
neles. Na “profusão de seus detalhes” eles tentam restituir o luxo, 0
?
2 18 2'"
) AFASTAR-SE DO vtstvaL PERDER DE VISTA

,
su . . - sexual: arrancar
sofíleãlgokoexcessivo da excitaçao recomendando
as flores O im
o rigatoriamente a morte do sensivel, do visual: suas atribuições anteriores. Ele chegou a esse resultado
na China clã-:$ de das linhas gerais de
, que se desviasse o olhar da impressão conjunto ou
de detalhes
um quadro e se pusesse em relevo a importância característica
secundários, de bagatelas como a representação das unhas das mãos, dos
lóbulos das orelhas, das auréolas e de outras coisas que o copista se
Detalhes. todo artista executa de uma maneira
do que ºugítallhzsdtâieamtognam uma mulher mais desejável (ou o inverso) esquece de imitar e que, no entanto,
etermmado objeto de um valor inestimável e E Freud conclui sublinhando o parentesco entre esse
sobretudo qu,eqnºs que o caracteriza.” ela esta habituada a
estarmos lidando com o original, com, o procedimento e a técnica da psicanálise. “Também
único. (Entre Parêntgarantem
eses, será possível dizer que existe original de um adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de traços subestimados, a partir
temo?) do refugo, dos dejetos, da observação?” O parentesco é sublinhado, mas
O - - do visual.
tos, de
2332112128 3125130 fragmentos. Nossa memória é feita de fragmen— o que não se enfatiza é o fato de ele ser reconhecido no campo
os, e e por isso que, como as minas, está
Se, por curiosidade, vocês se reportarem às pranchas de Morelli,
em condições,d e a le sempre
imentar nossa nostalgia. Mas ela é estimulada excitada entrarão, não numa galeria de quadros, mas naquilo que, uma vez figura—
por detalhes e por é
ISIS? _que também desenha nosso futuro. Então se pode de objetos “pequeno a”, como se a
estabelecer ; e mamfesta no caso da lembrança encobridora
do, poderia parecer um repertório
em
figuração transformasse o detalhe sensível, mas despercebido, frag—
entre lembran çqrizafencia,
antasra, ambos colagens, montagens quimeras : mento; ali verão desenhadas sequências de orelhas ou
de dedos, e indicada
artifícios que norteiam
.
e desnorteiam toda nossa vida, tornando-a
cada a posição e a flexibilidade de cada um deles, com uma atenção idêntica à
de Freud em seu estudo sobre o Moisés, estudo realizado com uma
verdadeira paixão pelo detalhe. A preocupação de Morelli, preocupação
todo Zªíraããenâgs, somados, reunidos, permitem a reconstituição do do conhecedor de arte, bem como do clínico, foi identificar indices tão
p, _endo ate pretender valer pelo todo (cf. na literatura do original, índices que não
ªf(,)tísmºq seguros que pudessem diferenciar uma cópia
O a maxrma, tao bem denominada,
que transmitida toda de Filippo Lippi, os lóbulos de
, a,
enganassem (os dedos de Botticelli e ainda menos
S
Signorelli, só faltou o pé de Zoé Bertgang), e que fossem
enganadores por terem escapado ao artista, tão absorto na figuração
Assim, o era negado pelo olhar voltado para o
Ane publicou, numa revista alemã de História da
<ªtingem;r8ttl>4Leiinsr<71lleff quanto o espectador. que
inicial
Schvvarze
e
6, umasérie de estudos traduzidos
por um incerto todo foi evidenciado pelo procedimento de Morelli. A justificação
A1 guns
do processo foi policial: tratava-se de identificar. Aliás, foi mais ou menos
“. anos depºis, o autor se desfez da dupla máscara r
trás da de Polícia de
na mesma época que se aperfeiçoou, dessa vez na Chefatura
] italialri?)
Morelliêãnds: shalria disstmulado.“ Tratava-se de um medico
o
warze equivalente de seu nome, do qual Lermolieff Paris, a chamada “bertillonagem”, a partir do nome de seu inventor, que,
constituía um anc imperfeito). Freud leu Morelli, havendo em sua irritado com a precariedade dos depoimentos humanos e com a pobreza
d::grabma
biblioteca uma 5 o ras dele, com sua data de
aquisição (14 de setembro das descrições inspiradas pelos rostos aos empregados da Chefatura
de 1898) É de identidade, que
recprglxldvel que o conhecesse antes. Prestou-lhe uma homena- (“forma oval”, “nariz médio”), inventou a fotografia
gem sem. sua dívida para com ele, no considerava “infalsificável”. Ela era o melhor dos indicadores:
segunda se 5: d eget plenamente começo da (já!)
identificado nessa imagem acu—
própíio ng Moisés de Michelangelo”, que publicou
disfarçando- “Todo ex-condenado está obrigado a ser
se, ele (estranha concordãncia com Morelli usando satória”, escreveu alguém de sobrenome Lacan e prenome Ernest na
um pseudônimo: ªmªrga]? se fizeram inv1siveis para revelar o década de sessenta do século passado.16
“She] não
que capta 0 01h al('))i'nens
Poderíamos perder o rumo se levássemos longe demais a analogia
“M ' ela merecesse
eu pudesse ouvxr entre o olho clínico de Morelli e o olho do policial (embora
.
falar em psicanálise”, diz-nos
Freud , “tZÃZiÉytãlsl que lado de Charcot: as poses e estigmas,
ferimento de que um amante da arte, de nacionalidade ser estendida, principalmente pelo
russa Ivan Lerm ie , havia. da Morelli não é Bertillon. De sua parte, é mais
européias ao revo provocado uma revolução nas galerias a iconografia Salpêtriêre),
ele
a imagem que ele coloca sob acusação. Os indícios perseguidos por
de inúmeros quadros a este ou
pintor ao,ensinare; âatribuiçao àquele
certeza as cópias dos originais e ao imagem pode fazer surgir, porque estão
constric ir istinguir com são aqueles que só uma leitura da
o olho
.
novas individualidades artísticas & partir das obras libertas
.
olho—leitor
inseridos, fundidos, captados nela, que nos capta. O

de
220 AFASTAR-SE DO VISIVEL
PERDER DE vxsrx 221

a mais do ciclope - desvenda os sinais descontínuos


oculta: torna legível o visível, a fim de minorar que o olhar humano campo visual é imenso, e talvez' nao seja
- .
unificavel.
. ,
Entreglgiããrvlalíasé

seus poderes. ' ” ' a con em
do visível, sim; mas, e quando o visivel Arrancar-se por ' exemplº, que
ª
mantém o objeto a distanCia, e ,
ass1m c omo o é entre a olhadela d o
' ª ' é consrderável, ' '
se arranca de nós, que acontece? apóia nele, a distanCia
Acontece A câmara clara, de Barthes,

' .
entre as fotografias
livro, composto, como se sabe, quando ele estavaque considero seu mais belo
Síggdas tor e o olhar apaixonado da me ancolia 1“
amorosa,
de um Nadar,“ que revelam a interioridade, e a metralllâingoo
. . .
às voltas com um luto
do qual não saiu. Barthes trata da
fotografia e, através dela, paradoxal- repórter profissional, que pulveriza a superficie. Logo,bsolt>(i)'e o Vis
mente, do invisível, porque uma fotografia, mesmo
de você e de mim neste instante, atual, mesmo sendo há visão de conjunto, inadequada por natureza Sa
se; Omi;! ; Geistigkeit
ausência. Quanto mais os indícios"
nunca representa outra coisa a não ser a
parecem é ela mesma,
'
A opos1çao ' comumente invoc
'
' ada entre mn ic ,
sim, é exatamente seu sorriso —, mais ele se seguros sim, subscrevo-a de bo m g tado., com a
' ' '
e sensorialidade e espiritua lidade

afetação e pedantismo que lhe são necessários


desespera. Com o tantinho de ::galva de não reduzi-la a uma diVisao . _
,_
.
realista. . _
rtel'açao engrercosgggzsde
e
para deixar passar a
emoção, desviando—se do patos, Barthes mostra admiravelmente ' '
a mae, de um lado, e lei pa tema , do outro. E tam em com . .
o seguin- " ' o segundo desses termos como in [air ªmªnte posmvo. A
_

te: que a imagem não dá a ver. Mas,


então, o que caberia ver? O rosto da nao conSiderar _
'
' " em " é irredutível, e portanto, es tá sempre em ªçªo.
mãe, supõe-se, que é nosso primeiro espelho (cf. questªº
Winnicott).
Mas, e se fosse o invisível da mãe? Quando o narrador
OPOSlçªO
'
Violenta. ' '
Nao pode ter uma 5 oluçao harmoniosa, suave e equilibrada.
' . .

observa Albertine adormecida, sua inquietação da Busca Somente a arte, ocasionalmente, e alguns momentos gerindo?) têem º trata—
e seu ciúme conhecem um mento analítico nos levam a crer que o Sinn esta no elS no
momento de calmaria. Ela “se tornou uma planta”, ele '
habitar me
seno
em suas
a “mantém sob seu '
Smn. O olhar nunca renunCia a o espmto, nem
olhar”, ela fica como que “encerrada em seu '
' Vidades ' elevadas. Um se m-numero , de nossas pa lavras da teste-
,
corpo” e deixa de ser, em seu mais
sono profundo, aquele “ser de fuga” que escapole a todo gªnho disso. Entre outras: adm1raçao,
podia”, escreve Proust, “sonhar com ela.”17 Mas, tivesse ele momento. “Eu - respeito, _
. . _ . .
ev1denc13,l:intu(ilçi;giie tªm
_
º
pelo desejo louco de captar o que ela sonhava, de tê-la
sido tomado o movimento do iluminismo, da Aufklarung, do .qual reu ,

estar lá no lugar para onde a orientavam


toda para si, de dúvida, um dos grandes representantes, talvez o ultimo. .

seus pensamentos noturnos, - .


e
pensamentos que decerto ela mesma desconhecia, O título do livro de Lyotard é Discours figure: lªlisculrãoºs
ansiedade do narrador teria sido duplicada. Somos mas que via, então a
11111180

Imagem, que os uniria, nem tampoucoADisCIÉrÍodZuhiªtgge , q


sonhos do outro. Quanto a isso, os amantes felizes têm sempre excluídos dos o Pº na. ' Nem
sequer uma virgu la: sua ausenc1a a . a .
interesse em calar. , .
Só Peter lbbetson, o herói do romance de
George Du Maurier, encontrou É nessa distância, nesse branco, que o analista se mantem, imóvel ,
a solução: partilhar com sua bem-amada
o mesmo sonho." Ele estava só, ali onde o discurso falha, onde a imagem desaparece.
trancafiado numa prisão, e eis que, todas as
noites, os dois sonhavam ' dizendo
' isso e dizendo-o a mim,
&

juntos, viviam as mesmas aventuras, moviam-se “Vê-la como vejo ' voce,”
*
Paul se ouViu
no mesmo espaço visivel,
retrocediam no curso do tempo, ressuscitavam a quem ele não via e que o escutava, mas qule, ao e s:;utáJo sem bem me
seu passado, o de seus
ancestrais e, finalmente, o de toda a '
dar conta disso,
'
acolhia apenas , de suas pa avras e re Iates, , () que havia
espécie humana. Então podiam ' Durante meses, anos talvez, ele procura rª indícios .
de sua
exclamar: “Nada, nada se perdeu!” A visão onirica les de valio.
'

tornara tudo visível. ªfãe apagada. Apagada no real, sem memorial, sem o _
.
10 e
_

menor Xísstiíâ êle


Agora percebo melhor o que me conduziu ao longo de toda apagada nele, porque nenhuma imagem Vinha em Sã!) soczrsre. aposentos
esta caminhada
rocurava algo com que suscita-la: percoma cida es, ru
.

incerta, desconhecedor de qualquer linha


reta, onde citei textos, livros de
filósofos, escritores e pintores como se fossem
Em fºu) rafia,
punhado de lugares vazios, sem uso, e perscrutavihulrlnaprªgnglemos,
meus pacientes, ou eu 0
deles. Não, creio eu, como acontece mas era uma fotografia de identidade, no estilo Betrtirizq“;am
com todo mundo, para chama—los em
meu socorro, mas para, _com o risco de me contradizer ' ' '
usculos - fragmentos, nao detalhes que nao au o _
nenhuma

no percurso, lrªíªmstruçiio de um todo. Sinais descontínuos mas, que sao os 5 mals


_ _
.
manter-me em diversos lugares heterogêneos, —

passíveis de produzir efei-


tos diferentes ou até antagônicos.
Se tenho algo a lastimar, é não
me haver transportado para um ' '
desenhistae oscn“tor francis ,(1820—1910), autor
número ainda maior de lugares. Conviria, ' ' e'lebre fotógrafo, avmdor,
quando alguém se propõe tratar
do visual, não pretender incluir tudo unicamente
de áfricª mªnias
,
celebridades de sua época e das primeiras fotos aereas tira dª s d e um
.

na categoria do olhar. O balão. (N.T.)


222
ArasrAa-sa no VISÍVEL

quando não evocam uma continuidade e marcam de imediato


a ruptura?
Relíquias mas, que são as relíquias quando 'não tocaram

num corpo?
Martha, por sua vez, era possuída pela imagem de
uma mãe suicida,
alcoólatra, destigurada por um acidente. Desde nossa
primeira entrevista,
essa mulher me havia enregelado. Eu jamais conhecera
dura, tão desesperada e se tratando tão mal. Não tinha uma pessoa tão
nenhum vínculo
perceptível, a não ser de desprezo: por seu trabalho, pelos homens
“arrastava”, por sua aparência física e pelos que Notas
poucos lhe
restavam. Queixava-se, mas secamente, do vazio de amigos que
sua existência. A
verdade é que, por meu lado, eu não via nada de
caloroso nela ou ao seu
redor. Um deserto frio. Onde estava a chama
Se eu não via nada, é
daquela mulher enregelante?
porque uma única visão a ocupava, fixa, uma única
paixão, imóvel e eternizada. A imagem daquela mãe
era totalmente visual, 'A'

e o era ainda mais na medida em


que seu olhar é que sempre au'aíra Martha Atualidade do mal-estar (pp. 15-27)
quando menina: um olhar vazio, ou seja, cheio daquilo a
nunca teria acesso. Não havia outra saída que ela, sua filha,
para Martha senão perder a mãe ] Sabemos que Freud se recusou a entrarno debate sobre a diferença de sentido entre essas
de vista. duas palavras. Mas adotou Kultur.
“Vê-la” e não tê-la' “como vejo você", em
— —
sua presença ausente.
'
di Dran : lm o, aquele da Trieb.
83232028 de julhã de 19:29:31 S. Freud, Correspondance 1873-1939, Galhmard,
22!- .
1966 .
Nesse dia, percebi que Paul havia encontrado
sua mãe invisível e que, sem 4 São essas as primeiras linhas do capitulo VI de O Mal-Estar na Cultura, p. 7 l da traduçao
dúvida, saberia curar o filósofo que evoquei há
pouco; poderia enfim francesa, PUF, 1971.
imaginar a mãe e a memória dela, ele que
sempre se apresentara como gçsãíetªlfnggâo é encontrada numa carta :: Binswanger (C orrespondance, op. cit., p. 470),
sem memória e sem mãe, e que sempre %
começava seus relatos por “sonhei ' ' '
pronuncra do pelas alturas.
com...”; poderia imaginar a “mão materna” de Freud, tinha um gosto excesswarnente
que liga o caos às repre- 7.
%uº.&2$n falª:?
foi antes da publicação do Mal-estar que
.
Freud se vªm hamlegnão '
sentações lineares, que faz “as linhas sonharem”. Percebi que pouco
de correr esbaforido, numa corrida incessante, que ele pararia Oi:!
8“ 1252136“ r'momas Mann ("O lugar de Freud na civilizaçao moderna ),ique 01 'e
e portanto infeliz, de uma 0 prestigioso Prêmio Goethe, e que foi em 1932 que Einstein se votou part-:
representação de palavra para outra, sem que nenhuma cor se ªreª do Instituto de Cooperação Intelectual da Sociªade gas
depositasse , por iniciativa 53:26:53 ...
numa superfície, e que iria, nâo reencontrar, mas deixar ' desse a “ pergunta mais unportante na o em .a
. .

a “coisa” falar. ªl; ºrq


pegªraqgãerrã'fgnrkssim, eis
Mas o que eu não podia prever é
. .

que seriam ele e Martha, seu duplo que Freud, por tanto tempo desconherãdo ou rªting:),
invertido, aqueles cujo rosto se esfumaçaria desde então sim les pesquisador, viu-se chamado a ocupar o lugar de gran e pensa ,

lembrança, que provocariam todas as palavras aos olhos da 203113“me & responder não mais às
perguntas que seu traba lho lhe colocava e nos ' cºmum ºs
que acabamos de ler. Para qb,:lhTZram próprios, mas às que os “tempos atuais“ ' supostamente formulavam, pa
ouvir, para dizer, é preciso, ao mesmo tempo, .
que a imagem, em sua .
mumª rapostaimediata.

presença obnubilante, se apague e permaneça em sua ausência. O invisivel 8. ªgêzlâªem . .


.“
sua acepção metafórica, surgma na pena de Freud. Ao término e
.
d
não é a negação do visível: está nele, frequenta-o, é xcursâo", o .ciL, p. IS.
seu horizonte e seu 9 . 85353313: Lou
Andreª-Salomé
(lª de abril de DW): " Yoce satbe que me preocupo
A

começo. Quando a perda está na visão, ela deixa de ser um luto intermi—
nável. com o fato isolado e que “pelo que dele brote por sr só o umversa .
10 . Cf Fluid às voltas com o ideal, em Ideaux, nª 27 da Nouvelle revue de psy Mªndy” ,
l9à3. Também extrai de P.-L. Assoun a citação que se segue.
d 7 de fevereiro de 1930.
% gatti-111255252 cerise de l'humanite' européenne et la phrlosophze . . .
(1935). Refenmo—nos
in Revue de métaphysíque et de morale, nª 3, l950, pp.
aqui à tradução de Paul Ricoeur,
22.5-258.
13. Ibiá, p. 231.
1: gfída'sli'efeªãtes
obras de Serge Moscovici, L'Áge desfoules, Fayard, 1981, e de Eugene
* Entre “Ia voir“ e 'l'avoir". é completa a homofonia em francês, que se perde na tradução. Enriquez, De la horde :) I'état, Gallimand, 1983.
(N."l'.) 16. Malaíse..., op.cír., p. 24.
17. Ibiá, p. 27.

223
224 NOTAS 225
PERDER DE VISTA

18. 2. Alusão ao título deum texto de Freud: ' 'Um caso de paranóia que contradiz [grifo meu]
ficªsªegâopgg ocasião daicolnferência proferida por ele para
' ”
comemorar o octogesimo
da doença".
scrrneno e reud. Cf. "Fre “ det [ ' ªvªtªr (1936). "ªd. frªncesª m' a teoria psicanalítica
S.E.. XXIII; trad. franc. in
Noblesse de l'espril, Albin Michel l960 . 3. "Análise terminável e interminável", 1937, G.W., XV];
lmago, vol. XXIII.]
19 .A meu ver , as “modernas" conce '
pçoes da somatização' A

e a distin ' ' Résultat; idées, problemas, ll, PUF, 1985. [E. Standard Brasileira,
coiízosãggªrãgfnzlas 4. Ibid.
tentahrª'estabelecer com a conversão histérica não fazem outra l' ª traduzido no
teoria freudiana das neuroses amais a que faço alusão aqui. 5. Cf., por exemplo, o artigo de H. Nunberg, "Du desir de guérion" 0925),
20. Mvel
a arse, op. en., pp. 46 e 77. Freud deixa claro que essa intuição se im ós
_

nº 17 da Nouvelle revue de psychanalyse.


meu), e que ele ficou "domina” do por essa concepção."
P ª e [ (Sªfº
'
ª 6. S. Freud, 0 ego e o id, G.W., XIII, p. 279; S.E., XIX, p. 49;
trad. franc. (ed. Payot), p.
21. Cf. J.-B. Pontal'15, " Le naval' de la mone " ' Entre le 207 (grifo meu). [E.S.B., vol. XIX.]
. rn ré've et la douleur, Gallimard,
7. J . Laplanche, Vie et mort en psyehanalyse, Flammarion, l97l, p.
1977. 177.

lalª ”ªªª"
22. "letr-avail de la mort", in Entre le rêve et la douleur, Gallimard, l977.
Open., p. 107. 8. Cf. L-B Pontalis,
23. 9. Recordemos estas linhas de "Análise terminável e interminável":
"Foi com justa razão
5132385 essa diferença canônica ainda em ação, ,apesar de tudo, na conferênciª de inteiramente à doença e aos sofrimentos] ao
que atribuímos essa força [que se agarra entre
24. Cf. o ensaio ' .. sentimento de culpa e à necessidade de autopunição, e que a situamos nas relações
. ,
ºªªªªª'ª' o ego e o superego. Mas tinta-se apenas da parte psíquicamente ligada pelo superego, e
ii: elementos dessa mesma força devem, livres ou
“projeto de sºdª que assim se toma eognoscível; outros
dade", '?propósito gm㪪tà?gggã?ââsãªgxgªÍmemº: não, atuar não sabemos onde." (Grifos meus.)
10. A tradução francesa do texto que traz esse título pode ser
encontrada em "Alguns tipos
er autres
de caráter encontrados no trabalho psicanalítico", L'Inqur'e'tante e'trangeté
essais, Gallimard, 1986. [E.S.B., vol. XIV.]
11. Cf. “Análise terminável...", art. citado.
12. Não consegui descobrir a que corrente da medicina da época se ligava essa
expressão.
Uma idéia incurável (pp. 47-53) l96l.
13. L. Stone, The psychoanalytic situation, International Universities Press,
14. Cf. esta passagem de "Análise terminável...": "Ninguém
utiliza todos os mecanismos
Ligªr/5233115333 :::atesdsobre os filmes de violência ou pornografia São eles
de defesa, mas apenas alguns. Estes se foram no ego e costumam transformar-se em modos
'.
saú do e corpo social? Fal ª - Sº d e [ 65 cºmº dº mºdlºªmºfltºs- de reação de seu caráter, em instituições." (Grifos meus.)
2. A escola leiga e obrigatória era uma escola de laicidade
e abri a ões 15. Digo "precursor" porque muitos dos traços que é costumeiro
creditar—se à psicanálise
professor [mstituteur] institula o cidadão. As 'g'hãmagdígãsêçgiggmmamqa -
_

2:15:11 ?nrrso; o contemporânea já tinham sido delineados com mão firme por Abraham: a aparente
, enam-no numa tradição de cultura . A univ em'd & d ' '
identificação com o analista fazendo as vezes da transferência, o
sal, cºm seus valores p ró pnos. . . etransmitraosaberuniver— submissão regra, a
à
O conjunto for. chamado Ensrno Público, e depois,
Educação Nªºum“. desafio, a inveja e, acima de tudo, o narcisismo.
O homem dos ratos.
3. Esse é , como o leitorhá de lemb m o su b titulo da 16. Encontramos a expressão "reação negativa" já em l9l0, em
peça de Jules Romams. [A peça, escrita
. trad. franc. in La technique
17. S. Freud, "Sobre a psicoterapia“ (1905), G.W., V; S.E.. VII;
.
,
1923. intitula-se “,an (NJ,)S
Em
4 . f. Michel Foucault "La politique psychanalytique, PUF, p. l4. [ES.B., vol. VII.]
,
' '
de la santé a ' " m ' Les mªChlneS
' & 18. A expressão é de François Gantheret.
obra coletiva, Instituto do Meio Ambiente:]PÍrxlrsmlÉâÉde ,
.

5. gfrrr, 19. Cf. ) . Starobinski, "Reaction. Le mot et ses usages". in Confrontations psychiatriques,
serve-'se, alias que Lacan intitulou um de seus textos de "La direction d [ ª ºu” ªt
[ es
prmcrpes de son pouvoir".
ª nª 12, 1974.
20. Fórmulas relembradas por StarobinSld, art. citado.
[“A dire ç do d o tr atamento e os princípios
' ' ' “Bornes ou
21. Descrevi mais detidamente esse estado, já assinalado por Ferenczi, em
de seu poder"] (termos sublinhados
mim). por
6. N , confrns'Z", Entre le re've et la douleur, op. cit.
. .
termo e conveniente, pors ha de fato a imputação do mal a um agente
.
reaction", J.
7. Eãsrgspsgztoàoe, 22. Joan Rivier—e, "A contribution to the analysis of the negative therapeutic
sr só: devem sacudir os
"por que tiram partido da denúncia freudianado Psycho. Anal., l936, xvu, pp. 304-320.
zelo e dº
(o);

disso que Freud não se interessava pelo 23. Cf. H. Sendas, Le contre-transfert, Gallimard, l98l, e, mais particulamente, o
capítulo
benefício
8. Cf. Entre le
dargculmoàírªãelrgsicos-para
re” ve
.
dconcluir
,, ca :
et la douleuªmêallimgãlíªifeªçao,
' ' ' '
lefªPºªªºª' ' '
“gªmª. intitulado "Le patient, thérapeute de son analyste".
24. Sucede descobrirmos que nossos pacientes... e nossos colegas, em sua complacência para
do Mestre, carecem
com a regra e para com nossos ditos. ou em sua submissão ao código
singularmente de reação.
25. Fritz Zorn, Mars, Gallimard, 1979.
minha em "Sur Ia douleur
Não, duas vezes não (pp. 54-73) 26. Grifo meu. Essas palavras condensam uma formulação
psychique", in Entre le reªve et la douleur, op.cit.
-

environment' '
1. Terceira Conferência da Federação Européia de Psicanálise, Londres 27. A "good enough mother" [mãe suficientemente boa] ou o "good enough
outubro de 1979 de Winnicott não significam, de maneira nenhuma, um
[ambiente suficientemente bom]
' ' foram publicadas
As comunica ç ões a p res entadas nessa conferencra '
no Bulletin (nº ló) da apelo à boa mãe, como crêem os que torcem o nariz diante dessa expressão supostamente
Federação,
226 PERDER DE VISTA
NOTAS 227
ingênua. Na verdade, good enough e bad enough são a mesma coisa. Winnicott não é
Melanie Klein. Toda a sua problemática visa inclusive a
rejeitar o maniqueismo kleiniano
do porn objeto e do mau objeto. ' 'It is good enough for me' ' Gorgias: - De maneira alguma. Sócrates: - Ciência e crença, portanto, não são a mesma
isso quer dizer: ' 'Não me é preciso coisa. Gorgías: - Exatamente. Sócrates: - No entanto, a persuasão é igual entre os que
mais,
. me basta perfeitamente." ,

sabem e os que crêem. Gorgias: É verdade. Sócrates: Proponho-te, pois, distinguir


— —
28. Cf. 'Masud Khan, "Le traumatisme
cumulatif“, in Le soi cache', Galliiiiard 1976 . duas espécies de persuasão, uma que cria a crença sem a ciência, outra que fornece a
!fsr'canálise: teoria, técnica e casos clínicos, Rio de Janeiro, Francisco Alves [977.1 ciência. (Tradução [francesa] de Alfred Croiset, ed. [& Belles—lettres)
29. Dre Vemeinung",G.W.,XIV,
11—15;S.E.,XD(,235-239.["Anegação",E.SÍB. XIX.] Note-se que a distinção entre ciência e crença só é mantida em seu rigor durante o tempo
30. Convém reconhecer
que foram quase que exclusivamente os ldeinianos que souberam que instaura a bipartição. Tão logo ambas são abarcadas sob a categoria da persuasão, que
falar da reação terapêutica negativa. Cf., além do
artigo já citado de J. Riviere H. por sua vez deve ser diferenciada, o problema precedente salta aos olhos. O discurso de
Rosenfeld, "Negative therapeutic reaction", in P. Giovacchini (org.), Tactics and te— Calicles que não reconhece outra lei a não ser a força, não é, portanto, de modo algum um
chnics m psychoanalytie therapy, J. Aronson, Nova York, 1975.
31. Cf., in Psychanalyse a' l'universite', nº entremeio, mas o eixo do diálogo. A questão do Gorgias, na verdade, é: Como fazer com
26, março de 1982, o texto de Gabrielle que prevaleça a razão? O que pressupõe que se tenha a seu lado a força da razão. Nesse jogo
Entre le deuil et la trahison, la femme", que assinala Dorey
com vigor o impacto decisivo é de dominação, Sócrates, que nisso não rompe com os sofrstas, é... muito forte. Sócrates já
permanente desse não da mãe no destino da mulher. '
'

não é um mestre da verdade (aletheia), mas um mestre do discurso. Maiêutica a fórceps.


32. S. Freud, "Die Verneinung", art. citado. º 8. Alain, Minerve ou Dªia sagesse, passim.
33. O
que não nos é permitido por Fritz Zorn, que em nenhum momento deixa que nos 9. Cf. Gérard Simon, Kepler, astronome, astrologue, Gallimard, 1978.
aproxrmemos dele. 10. Cf. M. Detienne e .L—P. Vernant, Les ruses de l'inrelligence, Flammarion, 1974.
11. Michel Foucault, "Verité et pouvoir", in L'Arc, nª 70.
12. Assim, nada há de surpreendente em que, decepcionadas em suas expectativas, as pessoas
se voltem cada vez mais, como acontece nos Estados Unidos, para outras crenças,
Essa transferência chamada negativa (pp. portadoras, ao menos, de um ideal e de promessas de um gozo (zen, ioga, etc.).
74-77) 13. Naturalmente, a maoiria dos analistas recusa esse objetivo de um possível domínio do
1. Conferência da
inconsciente. Chegam até a se comprazer em fornecer ao público amostras, cuidadosa-
Federação Européia de Psicanálise, Barcelona, abril de 1987. mente destiladas, da persistência de seus efeitos neles. Mas, qual o psicanalista que não
2. Tanto que
íteni Freud tido a lealdade de reconhece—lo, ou será que tornava todos os nossos está convencido de que "conhece" melhor seu inconsciente do que o comum dos mortais,
amores comqueiros por ' ”imaginários“ '? ' “nada nos
7 permite negar ao estado amoroso que de que é mais “esclarecido" sobre ele, mais apto a detectar seus meandros e artifícios?
surge no correr da análise o caráter de um amor verdadeiro' ' (' “ºbservations É aí que a vaidade do analista encontra seu motivo.
transfert", in De la technique psychanalytique, PUF, p. 127 sur l “amour de
("Observações sobre o amor 14. Cf. a invenção de Morel de Bioy Casarê e D. Anzieu, “Machine à décroire: Surum trouble
transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da
psicanálise , III)" , E.S.B XII]) . de la croyance dans les états limites". N.R.P., nº 18, 1978.
..
2. g;. ÉupÉ-a, % 28, “O— ódio ilegítimo".
. . . reu ,“La nég ation",inRe' su ltals tdees,
' ' '
problemes, II, PUF, 1985 [ " A nega-
ção"! R&B" x1x]_
5. Cf., no nº 29 do Boletim da
Federação Européia, a exposição de Terttu Eskelinen.
Entre Groddeck e Freud (pp. 90-97)

1. Conferences psychanalytiques à l'usage dos malaria, 4 vols., Champ Libre.


2. Un destin sifuneste, ed. Minuit. 1976.
Confiar... sem acreditar (pp. 81-89)
3. In G. Groddeck, Ça et moi, Gallimard, 1977.
1. Cf. Guy Rosolato, "La scission 4. Desse axioma hipocra'tico, só que reduzido às sílabas iniciais de cada um de seus termos,
que porte l'incroyableº', N.R.P. nº 18 . 1978 . a ponto de parecer transmudar—se em alguma divindade do Oriente, Nasamecu, Groddeck
%. gf. lSºlitude Roy, Les chercheurs de dieux, Gallimard, 1981. criou o titulo de uma de suas obras, onde criticou vivamente a psicanálise.
. rn ra o meio analítico nos dê a oportunidade de inúmeros ' '
enco dº pnmelrº
*

tipº- 5. Cf. a biografia de Bismarck assinada por Emil Ludwig, Payot, 1929, p. 453.
que confere a este volume seu “mªtºs
4. Ver adiante, p. 205, o capitulo
6. ln La maladie, l'art et le symbole, Gallimard, 1969.
5. Novalis, Fragments, 176 98, col.
e "Le cabinet cosmopolite", Stock. 7. A expressão é de Freud, antes de conhecer Groddeck. [Cf. História do movimento
6. Cf..A. Green, "Le credo du
psychanalyste", N.R.P. nº 18, 1978. psicanalítico, E.S.B. vol. XIV (N.T.).]
7.
Xeja-se'esta passagem chave do Gorgias: Sócrates: Existe alguma coisa a chamei 8. Carta de 6 de abril de 1916 a Emmy von Voigt.
saber ? Gargr'as: Sim. Sócrates: — E alguma coisa a que chamas "crer“ '?que

9. Freud não chegaria a escrever todos os textos previstos, e teria destruido outros". O que

Sim. certamente. Sócrates: — Sabere crersão a Gorgias- —


mesma coisa, em tua opinião ou a ciência foi publicado sob o título de Merapsicalagia não passa de uma realização muito parcial
(mathesrs) e a crença (pistis) são distintas? Gorgías:
- Represente—as para mim Sócrates da obra projetada.
como distintas. Sócrates: — Tens razão, e aqui está a
.

prova. Se te perguntasseml- ' 'Haverri 10. Carta de 6 de agosto de 1921 (grifo meu).
urna crença falsa ou verdadeira?", responderias, penso eu, afirmativamente. Corgias' — 11. Carta de 7 de setembro de 1927.
Sun. Sócrates: — Mas haverá também uma ciência
(Episteme) falsa e uma verdadeira? 12. Freud havia aproximado os nomes de Stekel - a quem, como era público e notório,
detestava - e de Groddeck. Este, como é compreensível. ficou profundamente magoado.
228 PERDER DE VISTA

3. Note-se que foi precisamente aquele a quem se chamou “a criança turbulenta” da


13. Carta de 15 de maio de 1923 a Emmy von“ Voigt.
14. "De l'absurdité de la psychogenése", in La maladie. l'art et le symbale, psicanálise - Ferenczi - o primeiro a relatar (ou sorllmr?) os sonhos do "bebê sapiente' '.
op.cit., pp. 4. Aludo aqui a la Rochefoucauld-Lianeourt, presidente do Comitê de Extinção da Mendi-
103-105.
cância criado 'em 1790 pela Assembléia Constituinte. Escreveu Lianccmrt: "A nova
15. Cf. A. Green, Le discours vi vam, PUF, 1973.
16. "De l'absurdité de la psychogenese", art. cit.
legislação deverá distinguir o crime cometido na idade madura daquele que escapou a
17. Cf. A. Green, op.cit.
juventude imprudente." E, em outro trecho: "É hora de reconhecer e ensinar por toda
18. “Que projetamos nossos próprios complexos nas descobertas científicas, e evidente. parte que a punição que não aprimora e a que pode corromper são criminosas." Há um
elo de consequência entre os dois enunciados. Cf. Jehanne Charpentier, Le Droit de
Como poderiamos, de outra maneira, produzir a menor coisa?", escreveu ele a Ferenczi.
l'enjiznce abandonne'e. Son evolution sous l'influence de la psychologie (1552-1791),
PUF, 1967.
5. Essa clássica representação da criança foi elevada à categoria de entidade psiquiátrica
Os vasos não comunicantes (pp. 98-111) por Du pré, no começo deste século.
6. Cf., in N.R.P. nº 19, o artigo de Jean-Michel Labadie que leva esse título [“Le landau
lâché").
1. George Du Maurier, Peter Ibbetson, traduzido do inglês [para o francês] por Raymond 7. Cf. A. Green, “L'Enfant modela", N.R.P., nº 19.
Queneau, Gallimard, 1946. Reproduzido na coleção “L'lmaginaire”, Gallimard. 8. Como mostra a admirável exposição de Louis-Rene Des Forêts, La chambre des enfants,
2. No tocante a tudo isso, cf. o belo e sóbrio livro de Marguerite Bonnet, Andre' Breton.
na coletânea que leva esse título, Gallimard, 1960.
Naissance de l 'a venture surre'aliste, José Corti, 1975. 9. É verdade que já são muito poucos os psicanalistas, esses párias da comunidade científica,
2. Enrretiens, Gallimard, 1952, p. 30. que aderem ao positivismo. Alguns só se autorizarão a falar da angústia de castração no
. Podemos encontra-lo na coletânea de ensaios sobre Bret n

dinger, ed. La Bacormiene, Neuchâtel, 1970.


º Cºmpllªdª
' '
Pºr Mªrc 51861 —
dia em que ela for quantificável.
10. Cf. o Journal de Jean Heroard sur l'enfance et la jeunesse de Louis XIII. [Diário de Jean
5. Palavras sublinhadas por mim.
Heroard sobre a infância e a juventude de Luis XIII], excertos do qual, apresentados por
6. O Projeto para uma psicologia científica, de 1895.
Helene Himelfarb e Michele David, foram publicados no nº 19, já citado, da N.R.P.
7. Entretiens, op.cir. Grifo meu.
8. Isso foi tentado muitas vezes. Com moderação e prudência
por Jean Starobinski ("Freud
Breton, Myers", in la relation critique, Gallimard, 1970), que destacou a influência de
toda umancorrente parapsiquica (Myers, Floumoy) em Breton. E com impeninêncía
por
Jean-Louis Houdebine (Tel que!, nº 71), cujo tom jdanoviano retira, a meu ver todo o F um do templo (pp. 1344140)
,
crédito a acusação formulada.
9. Serge Leclaire, Psychanalyses, Le Senil, 1968, p. 33.
1. S. Freud, La question de l'analyse profane, Gallimard, 1985. [A questão da análise leiga,
Ed. Standard Brasileira, vol. XX, Rio, Imago Ed.]
2. Essa carta, datada de 1 l de novembro de 1924, não figura na Correspondência de S. Freud
Idas e vindas (pp. 112—124) e K. Abraham. Foi citada por James Strachey.
3. Foi assim que Freud o qualificou, sem nomeá—lo em seu posfácio.
4. O leitor interessado podera reportar-se às Atas da Sociedade. Cf. Les premier: psycha—
]. Pode-se encontrar um exemplo notável dessa atitude num artigo do número de Critique
dedicado à " psicanálise vinda de fora". Ali vemos causticamente denunciado o "com- nalystes, 4 vols., col. "Connaissance de l'inconscient", Gallimard.
5. Cf. o imenso debate a que deu lugar, na comunidade psicanalítica da época, a publicação
plexo ideológico inglês". Em linhas gerais, esse complexo tem o defeito de não ser o
de Die Frage der Laienanalyse. Os órgãos oficiais do movimento, primeiro o Internatio-
nosso, e Winnicott, em particular, o de não se chamar Lacan. Já que o inconsciente não nale Zeitschrift e depois o International Journal, abriram suas colunas a psicanalistas de
e'detimdo como "um operador linguístico, gerador de um tropológico, de uma operação diversos países. Esse procedimento, absolutamente incomum, e que quase poderíamos
srgmficante gue instaura o sujeito como processo" (sic e etc.), o autor infere disso que
ele (o inconsciente) não tem direito de cidadania "nas costas inglesas". qualificar de uma medida de urgência, mostra que a questão nada tinha de acadêmica.
2. Capitulo 11 de Jeu et re'alité, Gallimard, 1975 [Obrincarea realidade, Rio, Imago 1982] 6. Ernest Jones, La vie et l'oeuvre de Sigmund Freud, PUF., vol. [II, p. 332. Sobre esse
3. Op. cit., p. 44. ' ' mesmo Brill, Jones nos diz em outro trecho que, ' “durante seus quarenta anos de atividade,
4. Cf. S. Freud, Re'sulrars, ide'es, problemas, 11, PUF, 1985, ele serviu a psicanálise bem melhor do que qualquer outro, graças a sua confiança
p. 288. inabalável nas verdades psicanalíticas, a sua maneira amistosa mas firme de tratar seus
opositores", etc. (Ibiá, p. 126. [A vida e a obra de Sigmund Freud, 3 vols., Rio, Imago,
1989.]
7. Em outras palavras, opera-se ai um curioso deslizamento: a análise praticada por não-
0 quarto das crianças (pp. 128-133)
médicos não é condenada por lei como exercício ilegal da medicina, mas é rejeitada pelas
sociedades psicanalíticas como exercício ilegal... da psicanálise.
1. Número 19, 1979.
Há alguns anos, certas sociedades locais, inquietas diante do esgotamento ou da medio-

2. "AirtdaAexistem adultos?", perguntava, faz uns trinta anos.. Georges Canguilhem


“já
cridade da seleção, abriram suas portas para os Ph.D., mas em número limitado e sob
(Conferencra no "Colégio de filosofia' ', que não foi, ao que eu saiba, publicada em livro).

Il
230 PERDER DE VISTA
» NOTAS

condições muito estritas. Na verdade, parece que eles são mais aceitos
como "pesquisa—
dores", particularmente no campo psicossocial, do
que como praticantes. crédito ao primeiro volume, que retraça os anos de formação de Freud. A ' “horda" ainda
8. Carta de 22 de março de 1927, citada - hav1a. . . . - . .
por Jones, op. cit., p. 335 [da ed. francesa]. não existia, nao nem o par pnmevo nem os irmaos mtrmg os.
9. Grifo meu. _
11 ' Era preciso, diz Sartre na entrevista a Kenneth Tynan, mostrar Freud, nao
10. Carta de 3 de abril de 1928,
quandº 15:22
um trecho da qual foi citado por Jones, ibid. teorias já o haviam celebrizado, mas na época em que, por voltados trintã anos,!ªdd.
11. A título de exemplos, a Sociedade Psicanalítica completamente, e em que suas idéias o conduznam a um impasse escape
de Paris conta entre seus membros
com enganou
aproximadamente 1/4 de não-médicos; a Associação Psicanalítica (loc. cit.).
Francesa, com 1/3; e
a Sociedade Britânica, com 1/3. Ao que saibamos, título de . E Les mots, Gallima rd , p. 20 .
o médico não interfere na 1123.
C? in L'ldior de la famille, (1854— 1861) que Sartre consagrou ao
.
seleção dos candidatos. Gallimard, as paginas
12. Carta a Ferenczi de 11 de maio de denominou de “compromisso histérico".
1920, in Jones, op. cit.
14 ?::páginas indicadas são as de minha“ edição do Scenario Freud, Galhmard, 1984.
, .
13. Assim foi que, tendo corrido o boato de
_

que Freud, no fim da vida, teria mudado de opinião


quanto à questão da Laienanalyse, ele opôs a isso o seguinte desmentido: ' “Nunca 15. “O Pai! Sempre o Pai! ", p. 564.
meus pontos de vista, e os mantenho com vigor ainda repudiei |

16. O tilme seria finalmente rodado, com a colaboraçao de Abraham e Sachs, 331355 tservneat d:
_
maior do que antes, diante da
evidente tendência dos norte-americanos a transformar Freud: Geheimnisse einer Seele (Segredos de uma alma), dirigido por 96?)
quiatria" (carta de 5 de julho de 1938, citada por Jones,
a psicanálise em criada da psi-
propósito desse episódio, a Carrespondance F reud-Abrahatn, Galhmard, 1 ,
.bmào
14. "0 desenvolvimento interno da op. cit., p. 342 [da ed. francesaD. SOP
as pp. 388—391. Ver também o estudo "Chambre à part" (in Nouvelle Revue de sycfha

psicanálise levou—a a se tomar uma mera especialidade


médica, e considero isso fatal para seu futuro" (Freud a Ferenczi,
in, Jones, ibid). nalyse nº 29, 1984), de Patrick Lacoste, que me recordou a troca de cartas a que me te no
15. Cf'. o posfácio deA questão..., aqui.
op. cit., p. 145 [da ed. francesa].
.

que sonhava filmar 0 capita 19.


16. As páginas indicadas são as da t ' Freud dito a Eisenstem, ' .

edição anteriormente citada.


i; .

.
%Íafszade . .
uma comparação proposta por Freud numa das conferencias que profenu em
_

1909 em Worcester (as Cinco lições), entre o desejo recalcado que msrste em retomarl:
um personagem intrometido, do tipo "A gente o põe porta afora e ele toma a entrar pe
' ela".
Freud posto em imagens (pp. 152-162) "
19. jêznfusão, mais do que lapso, feita com frequencia por quem relata um sodn'lio.. "hljessa
.

hora do filme..." Ver também os trabalhos de Bertram Lewrn sobre a tela son .
1. Segundo Huston, que já dirigira a encenação teatral de Huis elos 20 . Essa exigência pode acarretar longos desvios atraves da imagem para que a m:;sage m
em Nova York, em 1946, seja transmitida. Por exemplo, para que a palavra court [curto, pequeno], com tl. ª.ª sgªa
e que imaginam levar às telas Le diable et le bon Dieu, Sartre
era “o autor ideal": “Ele
conhecia a fundo a obra de Freud e poderia trata-la carga semântica e suas referências sexuais, possa transpor com segurança o tâmagdo
com objetividade e lucidez.“ (An consciência, ela é visualizada sob a forma de imagens de campo [court] de tems, e t;)
Open Book, Vaybrama, 1980; trad. franc. John Huston
1982, p. 275.)
por John Huston, Pygmalion, [cour], de corrida [course], ou de um personagem quese chame sr. CourtÃIt, :: c. A
2. Entrevista de John Huston a Robert insistência, nesse caso, só aparece no relato do sonho, o unrco que se oferece rn erpr&.
Benayoun, Positífnª 70, junho de 1965.
3. Em sua autobiografia (op. cit.), Huston diz tação.
ter pensado em contratar Marilyn Monroe para
o papel de Cecily, que seria finalmente
representado por Susannah York. Anna Freud
teria feito oposição a esse projeto.
Montgomery Clift e Marilyn Monroe haviam traba-
lhado juntos no filme anterior de Huston, The mis-fits
(Les de'saxe's, 1960 [no Brasil, Os
desajustadosD.
A moça (pp. 163—171)

4. Na época, segundo seu biógrafo, ele sofria


de uma dupla catarata.
5. Numa entrevista a Kenneth
Tynan in The Observer, 18 e 25 de junho de 1961, parcial-
mente reproduzjda em francês in Jean-Paul Sartre, Un the'a'tre de 1. '
'eublicada de 1907 a 1928. Comporta vinte monografias. Freud tambem
foi
Gallimand, 1973.
situations, col. ' 'Ide'es' ',
'
vê;
Éãiâ: nela, ªm 1910, sua Lembrança da infância de Leonardo da Vmcr. Embªrâflz
6. Cf. Lettres au Castor, Gallimard, houvesse declarado, no texto de apresentação da .coleçao, que ela llesstarraAiznmmm
se

1983, vol. 2, p, 358.


7. Apesar de seu tom constantemente pesquisadores de qualquer orientação, foram principalmente psrcanla IXtas (243) ,
amargo, o capítulo inteiro merece ser lido. Realmente
parece que o tema do filme não deixou de ter efeito nessa história toda, mais ainda Jones, Rank, Pfister, etc.) que lhe fizeram contnburçoes. (Cf. SE., vg] . ,lp. Rev.“
durante de
a filmagem, a darmos crédito ao relato detalhado 2. Cf. Lydia Flem, “L'Archéologie chez Freud", m LArcharque ( ouve e
que dela fornece Robert LaGuardia em
sua biografia de Montgomery Clift, Avon Books, se, nº 26, outono de 1982).
devastadoras...
8. Op. cit., p. 276.
1978, cap. IX. Paixões secretas e
3. Zªgªto .
ao destino fascinante de Schliemann, cf. H..S_ch11ema'nn, ”13:17?
.

mªgnª:
1956; Emil Ludwig, Schliemann de Troie, Nouvelles I::drttons latinos, p
19,8e2p
9. Na verdade, provavelmente fiz mal mente a peça de Bruno Bayen, Schliemann, episodes tgnores, Gallrmar d ,
em invocar as contingências editoriais. É ln"): E. 3 . B
de fato, que a biografia de Jones provável, 4. S. Freud, Malaise dans la Civilisation, PUF, 1972, p. 13 [O mal-estar na cu
publicada nos Estados Unidos em 1953 é que tenha dado , .,
a Huston a idéia de fazer um filme sobre Freud.
10. A parcialidade às vezes wªoísfrlticltàrlgnshgzglllmlyse“ (1937), in Re'sultats,
vingativa de Jones aparece em especial quando, com a constitui— S. ide'es, proble'mes, vol. II, P.U.F.,
ção do “movimento", os rivais entram em cena. No 1985 [“Construções na análise", E.S.B., vol. XXIII, R10,Imaºgo].
conjunto, entretanto, podemos dar 6. L. Kahn, "Une ruine en son absence", in L'Écnt du temps, n 1 1, 198 6 .
232 PERDER DE VISTA 1 NOTAS 233

7. Ein Phantasiestu'ck: é assim que Jensen qualifica seu romance no subtítulo, à maneira de 12. Cf. Ernest Jones, La vie etl'oeuvre de Sigmund Freud, PUF., 1961, vol. II, p. 82, [A vida
Hoffmann ou de Schumann. e a obra de Sigmund Freud, 3 vols., Rio, Imago, [989.1
8. Cf. Otto Fenichel, ”The symbolic equation: Girl = Phallus" (1936), in Collected
papers, 13. Cf., in Correspondance S. Freud-C. G. Jung, Gallimard, 1975, a carta de 8 de dezembro
11, Nova York, 1954. de 1907.
9. Cf. S. Viderman, Le ce'leste et le sublunaire, P.U.F., 1977, capitulo V. 14. Ibid, carta de 17 de outubro de 1909 (grifo meu).
10. Cf. W. Granoff, La pense'e et lefe'mim'n, Éd. de Minuit, 1976. 15. Cf., in Minutesde la société psychanalytique de Vienne, vol. I, Gallimard, 1976, a ata da
11.
fgforln
Minutes de la société psychanalytique de Vienne, a sessão de 11 de dezembro de sessão de 11 de dezembro de 1907, p. 275 e seguintes.
16. Cf. Un souvenir d'enfance de Le'onardde Vinci, nova tradução, Gallimard, 1987, p. 171.
12. O texto dessas cartas pode ser encontrado como apêndice na nova tradução de Le de'lire 17. Cf. E. Jones, op. cit., p. 369.
et les rêves dans la “Gradiva“ de W. Jensen, Gallimard, 1986. 18. Cf. Correspondence 8. F feud-C. G. Jung, op. cit., carta de 17 de outubro de 1909.
13. Grifo meu. 19. Essa foi a palavra com que Freud qualificou as "soluções" dadas pela criança aos
14. O artigo ' “Der Dichter und das Phantasieren" (O criador literário e a fantasia) seguiu de ' '
enigmas do sexo, em oposição tanto às 'fábulas' com que os adultos a entretém quanto
perto (1908) a publicação de Delírios e sonhos... às informações que eles lhe dispensam.
15. Cf. a Nota do editor, vol. IX da Edição Standard. 20. Retorno essas palavras do prefácio de Michel Gribinski aos Trois essais, op. cit.
16. Em seu Freud, col. “Écrivains de toujours", Le Seuil, 1968. 21. Paul Valéry tinha 24 an'os quando publicou, em La Nouvelle Revue, sua Introduction à
17. Cf. Sigmund Freud pre'sente' por lui-même, Gallimard, 1985, p. 111. ["Um estudo la méthode de Le'onardde Vinci. [Introdução ao método de Leonardo da Vinci.]
autobiográfico", ES. B., vol. XX.] 22. Cf. os Carnets de Leonardo da Vinci, col. "Tel", Gallimard, 1987, p. 60.
18. Sarah Kofman salientou acertadamente (em Quatre romans analytiques, Galilée, 1973) 23. Traité de la peimure, op. cit., p. 89.
como Freud rnfringiu as regras de seu próprio método ao resumir, não apenas o romance 24. Fórmula que podemos ligar a esta recomendação surpreendente: para representar a mente
de Jensen, mas os sonhos de Norbert. Quereria também “resumir" o escritor em sua de um personagem, o pintor devia ater-se à observação dos gestos e movimentos dos
infância e a fantasia na realidade? mudos, como se neles fosse encontrar menos artificio: uma expressão pura do estado
mental (Traité dela peinture, op. cit., p. 246).
25. E. Jones, op. cit., 456.
26. Novos documentos determinaram, de um lado, que leonardo, nascido em 1452, teria
passado apenas alguns meses junto à mãe, sendo então confiado à família paterna, e, de
A atração dos pássaros (pp. 172—189) outro lado,que Catarina, tendo contraído matrimônio, teve outro filho em 1454.
27. D. Merejkovski, op. cit., p. 342.
'

1. Carta de 13 de fevereiro de 1919, citada 28. Ibid., p. 336.


por Ernest Jones.
2. "Antwort auf eine Rundfrage Vom Lesen und von guten Biichern“, 1907. 29. Eric Maclagan, carta ao editor, em resposta a um artigo intitulado “Leonardo in the
3. A tradução alemã foi publicada em 1903. 0 exemplar de Freud, conservado em consulting room", The Burlington Magazine, Londres, janeiro de 1923.
sua
.

biblioteca, mas que não pudemos conanltar, tem anotações. O romance foi traduzido para 30. Jones, pelo menos, não desconhecia a revista. Numa outra situação, dois anos antes,
o francês [Le roman de Le'onard de Vinci] (Gallimand, 1934). soubera encaminhar a Freud um número que dizia respeito, dessa vez, ao ensaio sobre o
4. D. Merejkovski, op. cit., p. 353. Assim, não é inteiramente exato creditar a Freud, Moisés de Michelangelo.
como 31. Em defesa dos psicanalistas, convém dizer que, por seu lado, os especialistas em
o faz a maioria dos comentaristas, inclusive Myer Schapiro, o mérito de ter sido o primeiro
a exumar essa lembrança, à qual, segundo eles, ninguém antes dele prestam atenção. Leonardo da Vinci, com exceção de sir Kenneth Clark, negligenciaram completamente
5. S. Freud, Un souvenir d'enfance de Le'onardde Vinci, Gallimard, 1987, o ensaio de Freud, ou então trataram-no com ironia dasdenhosa.
p. 174. ["Uma 32. Cf. sua introdução à Lembrança da infância..., S.E., XI, pp. 59-62 [E.S.B., Xl].
lembrança da infância de Leonardo da Vinci", E.S.B., vol. XI, Rio, [mago.]
6. Ibid., pp. 73 e 127. 33. Esse estudo, publicado em 1956 in The Journal of History of Ideas, XVII, nº 2, pp.
147—148, foi traduzido para o francês na coletânea Style, artiste et société, Gallimard,
ª

7. D. Merejkovski, op. cit., p. 160.


8. Também Scognamiglio cita a lembrança sob o titulo de "Um presságio feliz". Acom— 1982
34. Kurt Eissler, Le'onard de Vinci, e'tude psfíchanalyrique, 1961, trad. franc. PUF., 1980, p.
panha a citação do seguinte comentário: "Narmmos essa anedota por um dever de ' "

18.
cronista, e acrescentamos que, não sendo nosso oficio o de romancista, mas o de
historiador, não nos deteremos em extrair desse texto um horóscopo que o próprio 35. Para discutir o erro-lapso, vamos reportar-nos principalmente a Serge Vidennan, La
Leonardo não teve nenhuma preocupação de pedir aos astrólogos de sua época.” construction de l'cspace analytique, Denoêl, 1970, e a Jean Laplanche, ldsublimarion
.Sou grato a J .-P. Maidani-Gérard por esse esclarecimento.
(Problémtiques III), P. U.F., 1980.
9. Indicº aqui as principais obras a que Freud se referiu; ele mesmo indicou outras 36. Desde o “sonho com a mãe querida e com personagens com bicos de pássaros“, sonho
em seu infantil de angústia relatado na Interpretação dos sonhos, até o Moisés egipcio de Moisés
texto ou em suas notas.
10. O texto de Vasari encontra.-se reproduzido na edição recentemente estabelecida e o monoteísmo, não faltam sinais do interesse de Freud pela mitologia e pela religião
por André egípcias. Gérard Huber preferiu seguir essa pista em seu livro L'Égpte ancienne dans la
Chastel para o Tratado da pintura de Leonardo (Traire' de la peinture, Berger—Levrault '
1987). Nossas citações foram extraídas dessa edição.
,
psychanulyse, Maisonneuve et Larose, 1987. »
37. ' “Dividi o tratado sobre os pássaros em quatro livros. O primeiro-“viera sobre seu vôo pelo
ll. Trois essais sur la the'orie sexuelle, Gallimard, 1987, p. 74..I[Tre's ensaios sobre a teoria
,

batimento das asas; o segundo, sobre seu vôo sem batimento das asas e a favor do vento;
da sexualidade, E.S. B., vol. VII, Rio, [mago.] :
234 PERDER DE VISTA NOTAS 235

0 terceiro, sobre o vôo em geral, como o dos pássaros, morcegos, peixes, animais e insetos; Últimas, primeiras palavras (pp. 190-204)
e o último, sobre o mecanismo desses movimentos" (Carriers, op. cit., p. 421).
38. Cf. adiante, nota 48, o fragmento Della Verga.
1. Pierre Pachet, Autobiographr'e de mon pêre, Belin, 1987.
39. Cf. Un souvenir d'enfarrce..., op. cit., pp. 139 e 178.
2.1br'd., p. 118.
40. É frequente confundir-se imaculada concepção com maternidade virginal. Na verdade, a
3. Émile Zola, La mort d'Olr'vier Be'caille, in Comes e nouvelles, La Pléiade, pp. 803—830.
primeira pressupõe que Maria foi concebida pela união entre Ana (até então estéril) e 4. Jean-Jacques Rousseau, Oeuvres completes, la Pléiade, vol. I, p. 1.133.
Joaquim união que, segundo alguns, teria consistido apenas num beijo, num suspiro

-, 5. Cf. meu prefácio às Confissões in “Folio", reproduzido em Entre le réve et la douleur,
mas livre do pecado original: teria havido um milagre. A segunda pressupõe que Maria
concebeu sem conhecer homem, pela intervenção do Espirito Santo: mais mistério do Gallimard, 1977.
que 6. Jean Starobinslci, La transparence e! l'obstacle, Gallimard, 1971, p. 217. Faremos
milagre. Sabemos que somente em 1854, sob o pontificado de Pio IX, é que a imaculada
referência particularmente ao cap. Vll, “Problemas da autobiografia", do qual extrai a
concepção de Maria por Ana foi proclamada e se tornou um dogma. maioria de minhas citações de Rousseau.
Religião da boa mãe, religião do Nome-do—Pai: prossegue o debate na "igreja" psicana- 7. Grifo meu.
lítica... '
8. Oeuvres comple'tes, La Pléiade, vol. I, p. 1.154.
41. E talvez, também, com algumas de suas recordações infantis... De fato,
segundo uma 9. Grifo meu.
pesquisa recente, conduzida por lean-Pierre Maidani-Ge'rard, Freiberg/Pribor, a cidade- “,

10. Essai sur [ ”origina des lhngues, trecho citado por J. Starobinski, op. cir., pp. 371-372.
zinha da Morávia onde Freud nasceu e passou seus primeiros anos de vida, era um bolsão
11. Milan Kundera, L'Art du roman, Gallimard, 1986, p. 45.
católico marcado pela devoção mariana: sua igreja era dedicada à Natividade de Maria e
12. Inicialmente, esse texto foi objeto de uma exposição num colóquio do qual Jacques Cain
à Imaculada Conceição.
42. M. Schapiro assinala que os Patriarcas da Igreja viam no abutre um e Alain de Mijolla foram os organizadores.
protótipo natural da 13. Cf. Michel Schneider, "Elias Canetti: la défusion des langues", in Le temps de la
Virgem, op. cit., p. 95.
re'flexr'on, II, Gallimard, 1981, pp. 384-402.
43. "O ato da copulação e os membros que concorrem
para ele são de um horror tamanho 14. Cf. Elias Canetti, La langue sauve'e, Albin Michel, 1980.
que, não fora a beleza dos rostos, os adornos dos atores e a discrição, a natureza perderia 15. Nathalie Sarraute, L'Usage de la parole, Gallimard, 1980, p. 11.
a espécie humana" (Carriers, op. cit., p. 104). '
16. Lembremos Henry Brulard: "Vou fazer cinquenta anos, realmente já era tempo de me
Essa célebre passagem deve ser aproximada desta outra, menos conhecida, onde
se lê conhecer."
todo o desprezo pela animalidade humana: "Parece-me que os homens grosseiros, de
17. Claude Lévi-Strauss, Anlhropologr'e structurale, Plon, 1958, p. 231 [Antropologia estru—
costumes vis e inteligência reduzida, mereceriam, não um organismo tão sutil quanto
aqueles que são dotados de idéias e de grande inteligência, mas um simples saco em que rural ].
18. Michel Leiris, L'Áge d'homme, Gallimard, 1939, p. 86.
seu alimento entrasse e de onde saísse (...). Não me parece que eles tenham nada em
19. Não nos apressamos muito em sorrir, porque, quando falamos de nossa contratransferên—
comum com a espécie humana" (ibid, p. 142).
44. Convém destacar, no entanto, no Traire' de la peinture (op. cit., Cia, de nossª autofanálise, não estaremos sendo tão ingênuos, tão pretensiosos quanto o
p. 250), as indicações
precisas dadas por Leonardo para caracterizaras idades: ' 'Que as velhas sejam mostradas rapazola de então?
20. Cf. Masud Khan, Le soi cache', Gallimard, pp. 135-148. [Psicanálise: teoria, técnica e
decididas e sem moderação, com movimentos de cólera como as fúrias do inferno", etc.
45. Jean-Pierre Maidani—Gérard, num artigo publicado in Psychanalyse a“ ! 'Universite' casos clínicos, Rio, Francisco Alves, 1977.]
(vol.
,

8, nº 32, 1983), e depois em sua tese de doutorado ainda inédita, Le'onard de Vinci, 21. Cf. Antoine Berman, L'Épreuve de l'e'tranger, Gallimard, 1984, e, do mesmo autor,
Sigmund Freud, estudou particularmente o problema da Arma Menem: e de suas impli- "Bildung et Bildungsroman", in Le temps de la reff'lexíon, IV, Gallimard, 1983, pp.
14 1- 159.
cações “mariológicas”.
46. Freud —,-- Schapiro --— Eissler (cujo livro vale mais 22. Correspondance complete de Vmcem Van Gogh, Gallimard/Grasset, 1960, vol. I, carta
por suas próprias contribuições do que 133, p. 190. Essa correspondência, sobretudo as cartas a Téo, não constituirá & autobio—
por sua polêmica), sem contar os trabalhos de muitas outras mentes curiosas, igualmente
movidas pela infatigável "pulsão de investigação". grafia de Vincent?
47. Sabemos do interesse que Freud demonstrou pela técnica de Giovanni 23. Essa expressão aparece na carta.
Morelli, que
permitia a atribuição dos quadros e a identificação das falsificações a panir de detalhes
involuntários por parte do pintor e despercebidos pelo espectador. Cf. "Le Moi'se de
Michel-Ange“ ', in L 'Inquie'lante e'rmngere' et autres essais, Gallimard, 1986. ["O Moisés
de Michelangelo", E.S.B., vol. XlIl, Rio, Imago.]
48. Um fragmento dos Registros frequentemente citado, sobretudo Perder de vista (pp. 205—222)
por Eissler (op. cit., p.
175), e' muito revelador a esse respeito: trata-se do Della Verga (Da virgem): "(...) às
vezes ela possui inteligência própria; a despeito da vontade que deseja estimulá-la, ela se N—
Leonardo da Vinci, Traite' de la peinture, Berger-Levrault, 1987, p. 89.
.

obstina e age a seu critério, por vezes movimentando-se sem a autorizªção do homem, F. Gantheret, "Étude d'un modéle perspectif en psychanalyse", in Psychanalyse &
.

ou até sem o conhecimento dele; (...) segue apenas seu impulso; muitas vezes, o homem [ 'universire', nº 40, outubro de 1985, p. 499.
dorme e ela fica velando, e sucede o homem estar acordado e ela dormir; muitas 3. Paul Klee, Journal, “Grasset, 1959, p. 178 (grifo meu).
vezes,
o homem quer se servir dela, que se recusa a isso; muitas vezes, ela o quereria, e o homem 4. Henri Michaux, "Aventures de lignes". prefácio do livro de W. Grohmann, Paul Klee,
lho proibe" (trad. franc. Servicen, p. 128). Não há dúvida de que, se houvesse conhecido Flinker, 1954.
essa passagem, Freud a teria aproximado da lembrança infantil. 5. E. Panofski, La perspective comme forme symbolique, Minuit, 1975, p. 41.
236 PERDER DE VISTA

6. S. Freud , “Le clivage du moi dans les '


processus de defense" (1938), trad. franc. '
N.R.P., nª 2, 1970, reproduzrdoin
.
Re'sultals, lde'es, problêmes, [I, PUF, 1985. divisz'i:
["A
7.
20:30 :omecesso de defesa", ES. B., vol. XXIII, Rio Imago ]
. reu , 'Interprétation des rêves PUF 1967 207' 'G W Il III p 83 (Eurºs '
me“).
EA lªnterpretaçao
dos sonhos, E.S.B., IV e V, Ric? Imago . ]
&
. .- . Lyotard, Discours figure . Klincksieck, 1971 . Cf. '
mcularmente 0 ea P ítulo cu"Jº
,
titulo retorna uma
pensâlmnaçao
f ' ' du gª
de Freud.' “ Le travail reve ne pense pas " . [O trabalho
dº sºnho não
9. [bia/., p. 245.
M. Merleau-Ponty, L'Oeil et l'esprit, Gallimard, 1964.
Referências bibliográficas
10.
l.
fêãmgdlv Sur
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12 . D .
.. Rio,1mago.]
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13 Qurgnard. Une géne technique a“ l'e'gard des frangmexts, Fata Morgana, 1986.
14. Pªscal
.
ge. S:?ªªlilã estudª de (ªarlos Ginsburg, "Signes, traces, pistas. Racines d'un paradig—
, m e D bat, n º 6, 1980, de onde retirei
. .
algumas dessas informações Este livro se compõe de textos publicados, em sua maioria, em revistas, como
sºbre 140an prefácios ou em obras coletivas, ao longo dos últimos dez anos. Foram retomados
15.
J.;; Morsleogelâgicãellilzªmge", in L'Inquie'tante e'trangete' et autres essais, Gallimard aqui, ligeiramente modificados, numa ordem que não respeita a cronologia de sua
., X, 1). 185 (grifos meus). [“O Moisés de Michelangelo", ES. B.,
1

xm: 151%,
[mªgo.],
.
publicação inicial.
16. Christian Phéljne, "L'Image
accusatrice", in Cahiers de la photographie, nº 17, 1985.
17. Marcel P rous t , Á la recherche du " "L'Homme immobile”, Nouvelle revue de psychanalyse (N.R.P. ), nº 35,
temps perdu, La Plerade, vol. [II; La Prisonm'êre, p.
69 s. 1987.
18. Cf. acima, p. 98, "Os vasos não comunicantes“. “Actualité du malaise", Le Temps de la re'flexion, IV, Gallimard, 1983.
“La haine illégitime", N.R.P., nº 35, 1987.
“Une tête qui ne revient pas“, Le Genre humain, nº 11, 1985.
“Une idée incurable“, N.R.P., nº 17, 1978.
"Non, deux fois non", N.R.P., nº 24, 1981.
“Ce transfert qu'on appelle négatif' ', redigido a partir de uma intervenção
__,i

feita no Congresso da Federação Européia de Psicanálise, Barcelona, 1987.


"Se fier à... sans croire en...”, N.R.P., nº 18, 1978.
“Entre Groddeck et Freud", La Nouvelle Revue française, nº 297, outubro
de 1977. _,

“Les vases non communicants”, La Nouvelle Revue française, nª 302,


março de 1978.
"Aller et retour”, L'Arc, nº 69, 1977.
“Paradoxes de l'effet Winnicott", in Anne Clancier e Jeannine Kalmano-
vitch, Le paradoxe de Winnicott, Payot, 1984.
"De la mete, le maternel", primeiro caderno de Varia, N.R. P., nº 28, 1983.
“La chambre des enfants”, N.R.P., nº, 1979.
“Hots duxtemple“, prefácio a Sigmund Freud, La question de l'analyse
profane, Gallimard, 1985.
"Melancolia du langage", segundo caderno de Varia, N.R. P., nª 29, 1984.
“Encore um métier impossible”, L'Écrit du temps, nº 7, 1984.
“Freud mis en images", prefácio ao Sce'nario Freud de Jean-Paul Sartre,
Gallimard, 1984.
"La jeune fille”, prefácio a Sigmund Freud, Le de'lire et les re'ves dans la
"Gradiva" de W. Jensen, Gallimard, 1986.
"L'attrait des oiseaux”, prefácio & Sigmund Freud, Un souvenir d'enfance
de Leonard de Vinci, Gallimard, 1987.

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PERDER DE VISTA

“Derniers, premiers mots”, exposição !

lítico de Aíx—en-Provence”, julho de apresentada no “Encontro Psicana- (

1987, e publicada na obra coletiva


biographie, Les Belles Lettres, 1988. L'Auto-
“Perdre de vue”,—N.R.P., nº 35, 1987.

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